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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13

10 Anos do Código Civil


Aplicação, Acertos, Desacertos e
Novos Rumos

volume I

CURSO 10 Anos do código civil - aplicação, acertos, desAcertos


e novos rumos - RIO DE JANEIRO, 29 E 30 DE março DE 2012

Rio de Janeiro
EMERJ
2013
© 2013 EMERJ
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJERJ
Trabalhos de magistrados participantes do Curso 10 Anos do Código Civil: Aplicação,
Acertos, Desacertos e Novos Rumos, realizado em 29 e 30 de março de 2012, como
parte do Programa de Atualização de Magistrados e Inserção Social da EMERJ, em
cumprimento a exigência da ENFAM.

Produção Gráfico-Editorial: Divisão de Publicações da EMERJ.


Editor: Irapuã Araújo (MTb MA00124JP); Programação Visual: Rodolfo Santiago;
Revisão Ortográfica: Suely Lima, Ana Paula Maradei e Sergio Silvares.

CURSO 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL: aplicação, acertos,


desacertos e novos rumos, 2012, Rio de Janeiro.
10 anos do Código Civil: aplicação, acertos, desacertos e
novos rumos. Rio de Janeiro: EMERJ, 2013.
2 v. (Série Aperfeiçoamento de Magistrados, 13)

ISBN 978-85-99559-15-4 (v. 1)


ISBN 978-85-99559-16-1 (v. 2)

1. Código Civil, Brasil (2002). I. EMERJ. II. Série. III.


Título.

CDD 342.1081

Os conceitos e opiniões expressos nos trabalhos assinados são de responsabilidade exclusiva


de seus autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta obra,
desde que citada a fonte.
Todos os direitos reservados à Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ
Rua Dom Manoel, 25 - Rio de Janeiro/RJ CEP: 20010-090
Telefones: (21) 3133-3400 / 3133-3365
www.emerj.tjrj.jus.br - [email protected]
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 Diretora-Geral
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 Conselho Consultivo
Desª. Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueiredo
Des. Milton Fernandes de Souza
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Des. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

 Comissão de Iniciação e Aperfeiçoamento de Magistrados


Des. Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho
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Des. Claudio Brandão de Oliveira
Des. Claudio Luis Braga Dell’Orto
Des. Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez

 Coordenador de Estágio da EMERJ


Des. Edson Aguiar de Vasconcelos

 Secretária-Geral de Ensino
Rosângela Pereira Nunes Maldonado de Carvalho

 Assessora da Diretora-Geral
Donatila Arruda Câmara do Vale
Sumário
Apresentação........................................................................................ 9
A Exceção que Virou Regra
Álvaro Henrique Teixeira de Almeida. ................................................. 11

Legalidade e Eficácia Constitucional na Aplicação do Código Civil


Ana Carolina Fucks Anderson Palheiro. .................................................. 17

Direito Civil Constitucional – Famílias Contemporâneas na


Legalidade Civil-Constitucional
Ana Carolina Villaboim da Costa Leite................................................... 23

Os Dez Anos do Código Civil de 2002


Ana Paula Pontes Cardoso . ........................................................................ 31

10 Anos do Código Civil de 2002 e seus Avanços à Luz da Constituição


Belmiro Fontoura Ferreira Gonçalves ....................................................... 37

Os 10 Anos do Código Civil


Camilla Prado. ......................................................................................... 47

O Código Civil de 2002, as Novas Relações Familiares e as


Aspirações Constitucionais
Carla Silva Corrêa. .................................................................................. 52

A Boa-fé Objetiva no Direito Brasileiro e a Proibição de


Comportamentos Contraditórios
Carlos Eduardo Iglesias Diniz. ................................................................ 61

A União Estável no Novo Código Civil


Claudia Nascimento Vieira....................................................................... 76
A Lesão nos Contratos sob a Luz do Código Civil
Cristiane da Silva Brandão Lima............................................................... 81

Uma Leitura do Papel Jurisdicional a Partir do Novo Código Civil


Cristiane Tomaz Buosi........................................................................... 89

10 Anos do Codigo Civil de 2002


Cristina Alcântara Quinto. .................................................................. 97

Aplicação dos Princípios e Cláusulas Gerais nas Relações Negociais


e Reais Imobiliárias – O Uso Anormal da Propriedade
Daniela Reetz de Paiva .......................................................................102

A Responsabilidade Civil nos Dez Anos da Codificação Civil, na


Construção da Doutrina e da Jurisprudência
Danielle Rapoport..............................................................................112

O Princípio da Boa-fé Objetiva e sua Evolução Doutrinária e


Jurisprudencial ao Longo dos 10 Anos de Edição do Novo Código Civil
Denise de Araújo Capiberibe.................................................................117

Dez Anos do Código Civil – Aplicação, Acertos, Desacertos e


Novos Rumos
Eduarda Monteiro de Castro Souza Campos........................................125

Fundamentos do Novo Código Civil


Elizabeth Maria Saad..........................................................................134

Legalidade e Eficácia Constitucional na Aplicação do Código Civil


Flávia de Azevedo Faria Rezende Chagas. ............................................144

Observações Panorâmicas Sobre o Código Civil Após Dez Anos


de sua Edição
Gustavo Quintanilha Telles de Menezes..............................................150
Dez Anos do Código Civil - Evolução do Direito de Família e
Incidências. Hiperjudicialização do Direito de Família
Ivone Ferreira Caetano........................................................................... 159

Responsabilidade Civil das Pessoas Jurídicas de Direito Privado


Prestadoras de Serviço Público
Joana Cardia Jardim Côrtes.................................................................... 168

Empresa Individual de Responsabilidade Limitada


Katylene Collyer Pires de Figueiredo. ................................................... 174

O Código Civil de 2002: Princípios Básicos e Cláusulas Gerais


Lisia Carla Vieira Rodrigues. .................................................................. 179

10 Anos do Código Civil – A Evolução Civil-Constitucional do Direito


Lúcia Regina Esteves de Magalhães........................................................ 195

Evolução Histórica e Legislativa da Família


Luciano Silva Barreto............................................................................ 205

10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos


Lúcio Durante....................................................................................215

10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos


Luiz Henrique Oliveira Marques............................................................ 222

Filhos – Evolução até a Plena Igualdade Jurídica


Mafalda Lucchese.................................................................................. 231

Proteção Contratual no Direito Brasileiro – Visão do Direito Civil


Sob Prisma de Influência Constitucional – Princípios
Magno Alves de Assunção..................................................................... 239
Legalidade e Eficácia Constitucional na Aplicação do Código
Civil de 2002
Marcia de Andrade Pumar ..................................................................... 261

Ponderações Sobre os 10 Anos do Código Civil


Márcia Paixão Guimarães Léo. ................................................................ 268

Famílias Contemporâneas na Legalidade Civil-Constitucional


Maria da Penha Nobre Mauro................................................................ 273

Anexo 1: Programa do Curso.........................................................283

Anexo 2: Parecer da Enfam . ..........................................................289


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
9

Apresentação
Por ocasião dos dez anos de vigência da nova codificação civil brasilei-
ra, em março de 2012, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janei-
ro, em parceria com a ESAJ e o CEDES, promoveu o Seminário “10 Anos
do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos”.
Com tema de amplo espectro o evento mereceu programação acurada
que perpassou pelas inúmeras matérias que compõem o Codex, elegendo
questões de profunda indagação e interesse na atualidade.
Nesta publicação da série “Aperfeiçoamento de Magistrados” apre-
sentamos, como de costume, o conteúdo dos melhores trabalhos apresenta-
dos pelos Magistrados participantes, os quais refletem o conhecimento com-
partilhado com os renomados palestrantes e suas experiências na judicatura.
Com fito de difundir esse conhecimento, trazemos a público,
em dois volumes, o teor da produção acadêmica proveniente de tão
profícua interação.

Desembargadora Leila Mariano


Diretora-Geral da EMERJ
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
11

A EXCEÇÃO QUE VIROU REGRA


Breves apontamentos a respeito da
responsabilidade objetiva no Código Civil*

Álvaro Henrique Teixeira de Almeida 1

NOTA INTRODUTÓRIA

A responsabilidade civil se consubstancia em tema jurídico de suma


importância e é alvo de constantes estudos e debates, tendo sido a área da
ciência do direito que sofreu maiores mudanças ao longo do século XX²,
talvez até em razão de sua própria natureza, pois, como leciona José de
Aguiar Dias, “o instituto é essencialmente dinâmico, tem de adaptar-se,
transformar-se na mesma proporção que envolve a civilização, há de ser
dotado de flexibilidade suficiente para oferecer, em qualquer época, o meio
ou processo pelo qual, em face de nova técnica, de novas conquistas, de no-
vos gêneros de atividade, assegure a finalidade de restabelecer o equilíbrio
desfeito por ocasião do dano, considerado, em cada tempo, em função das
condições sociais então vigentes.”³
Com efeito, a responsabilidade civil de natureza subjetiva sempre foi
considerada como a norma base em nosso direito, e isso se deve a uma con-
quista do Iluminismo, que introduziu elemento subjetivo (culpa) como

* Texto elaborado com base na palestra proferida pelo eminente Des. Sergio Cavalieri Filho (“A Responsabilidade
Civil nos Dez Anos da Codificação Civil na Construção da Doutrina e Jurisprudência”) proferida quando do en-
cerramento do Seminário “Os 10 anos do Código Civil” realizado pela EMERJ nos dias 29 e 30/03/2012.

¹ Juíz de Direito da 12ª. Vara Cível - Comarca da Capital.

² Cf. DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sergio, Comentários ao Novo Có-
digo Civil. 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2011, p. 1. Os autores afirmam que as mudanças ex-
perimentadas pela responsabilidade civil foram maiores até que as ocorridas em sede de direito de fa-
mília e, citando o jurista francês Josserand, esclarecem que, em verdade, as mudanças foram de tal
ordem que se operou uma verdadeira revolução, levando a teoria da responsabilidade civil a novos destinos.

³ In, Da Responsabilidade Civil, XI ed., Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2006, p. 25.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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pressuposto genérico do dever de reparação, ideia essa abraçada pelo Códi-


go Civil francês de 1804 (art.1382), daí irradiando-se para as codificações
que se seguiram4 , inserindo-se nesse contexto o Código Civil brasileiro de
1916, que adotou como regra a responsabilidade subjetiva, tratando as
hipóteses objetivas como exceções.
Contudo, não se pode olvidar que por força da própria evolução da
sociedade, com seu desenvolvimento científico e tecnológico, consequência
da Revolução Industrial, e também por força da introdução de novos para-
digmas filosóficos, revelados na incessante busca da justiça social na constru-
ção de uma sociedade mais solidária, o tradicional sistema de responsabili-
zação com base na culpa revelou-se insuficiente, abrindo espaço para uma
nova concepção embasada na teoria do risco, que pode assim ser resumida:
todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem causou
o risco, independentemente de ter ou não agido com culpa.5
Assim, sob esta nova concepção, afasta-se a imprescindibilidade da
comprovação da conduta culposa a autorizar a responsabilização, bastan-
do, para tanto, a comprovação do dano e da relação de causalidade deste
com a conduta adotada pelo agente, independentemente de culpa.
Sob as luzes desse novo cenário, foi elaborado o Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº 8.078/90), que adotou a responsabilidade objetiva como
regra para as relações de consumo, não fugindo desta nova concepção o Có-
digo Civil vigente, que embora não tenha afastado (e nem poderia) a respon-
sabilidade civil de natureza subjetiva, adotou expressamente a teoria do risco,
como se vê da regra estatuída pelo parágrafo único do art.927, dispositivo esse
que prevê, genericamente, a responsabilidade sem culpa, além dos casos esti-
pulados em lei, “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.6
4 Cf. CASTRO, Guilherme Couto, Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro, 3ª ed., Rio de
Janeiro, Ed. Forense, 2000, p. 02 e 04.

5 Cf. DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sergio, op. cit. p. 02/10. Os auto-

res ressaltam que o sistema de responsabilização mediante comprovação da culpa mostrou-se insu-
ficiente antes mesmo da entrada em vigor do Código Civil de 1916, uma vez que a “Lei das Estradas de
Ferro”, de 1912, já havia estabelecido a responsabilidade objetiva para aquele meio de transporte.

6 Como leciona Paulo Nader, Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil, v. 7, 3ª ed., Rio de Janei-
ro, Ed. Forense, 2010, p. 59, “anteriormente ao novo Códex, a ordem jurídica carecia de um critério geral e
autônomo de adoção da responsabilidade independentemente de culpa, prevalecendo a teoria do risco apenas
admitida expressamente em lei. O novo dispositivo prevê, genericamente, a responsabilidade sem culpa, além
dos casos estipulados em lei (...). Dessarte, caracterizada a atividade de risco, a vítima fica liberada da prova de
culpa do ofensor”.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Vê-se, pois, que a orientação geral do Código Civil de 2002, ao


contrário do seu antecessor, faz prevalecer a responsabilidade objetiva, ten-
do o presente estudo, pois, o escopo de, em breves e singelas linhas, tecer
comentários (sem a mínima pretensão de se esgotar o assunto) a respeito
de alguns artigos de supracitado diploma legal que consagram a responsa-
bilidade independentemente de culpa.

DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO CÓDIGO CIVIL

O título IX do Livro I da Parte Especial do Código Civil, que trata


da responsabilidade civil, é inaugurado pelo art. 927, que, inovando em rela-
ção ao diploma anterior e acompanhando uma tendência que já se manifes-
tava na doutrina, estabelece um sistema de coexistência genérica da teoria da
culpa e do risco, pois o seu caput reproduz a cláusula geral da responsabilida-
de aquiliana, ao passo que seu parágrafo único estabelece uma cláusula geral
da responsabilidade sem culpa, baseada na ideia do risco criado.7
Importante ressaltar que aludida cláusula geral da responsabili-
dade sem culpa não implica concluir, em absoluto, que o ordenamento
jurídico acolheu a tese do risco integral, pois como antes explicitado, a
ideia na qual repousa a responsabilidade objetiva estatuída pelo dispo-
sitivo legal ora em comento é a do risco criado e, tanto isso é fato, que
a regra é clara no sentido de que, afora nos casos especificados em lei, a
responsabilidade objetiva só terá espaço quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.
Em assim sendo, não é qualquer atividade de risco que enseja a
responsabilização objetiva, mas tão somente aquela que decorre de um exer-
cício habitual e que, efetivamente, por sua natureza, implica em um risco

7 Cf. GODOY, Cláudio Luiz Bueno, in Código Civil Comentado,Coord. Min. César Peluso, 3ª ed., Barueri/SP,
Ed. Manolo, 2009, p. 884/885.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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criado, e não inerente, pois se assim não fosse, todas as atividades estariam
sujeitas à responsabilização objetiva, o que não é o caso. A atividade de di-
rigir, por exemplo, quando não exercida profissionalmente e, portanto, de
forma não habitual e rotineira, se consubstancia em uma atividade de risco,
mas nem por isso, com a devida venia dos que pensam ao contrário, poderá
ser abrangida pela responsabilidade objetiva, isso porque a hipótese não re-
vela risco adquirido, mas, sim, risco inerente.
Com efeito, como leciona Sergio Cavalieri Filho, ao dissertar sobre a
responsabilidade pelo desempenho de atividade de risco, “o bom senso está a
indicar que a obrigação de indenizar não decorrerá da simples natureza da ativi-
dade, mormente quando tem perigosidade inerente. Para não chegarmos a uma
inteligência absurda, devemos entender que os danos decorrentes da perigosidade
inerente dão ensejo ao dever de indenizar, só respondendo
8
o fornecedor de serviços
pelos danos causados pela perigosidade adquirida”.
A cláusula geral da responsabilidade objetiva também é encontrada
no art. 931 do Código Civil que, em perfeita sintonia com o Código de
Defesa do Consumidor, consagrou a teoria do risco do empreendimento (ou
empresarial), pela qual todo aquele que se disponha a exercer alguma ativida-
de no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios
ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa.
E assim é porque não seria justo nem razoável impor ao consumi-
dor o ônus de assumir os riscos das relações de consumo, arcando com os
prejuízos decorrentes dos produtos por outros fabricados e comercializados,
razão pela qual, sem qualquer necessidade de comprovação de culpa, deverá
o empresário individual ou a empresa ressarcir os danos causados pelos pro-
dutos postos em circulação, em contrapartida ao bônus que auferem de sua
atividade empresarial.
O art. 933 do Código Civil também impõe a responsabilidade objetiva
por ato de terceiro, sepultando definitivamente antigas divergências a respeito
da natureza da responsabilidade por fato de outrem, existentes quando da vi-
gência do Código Civil de 1916. Sob esta nova concepção, pois, afastada está
a possibilidade de qualquer dos responsáveis, uma vez demandado, procurar

8
In, Programa e Responsabilidade Civil, 6ª ed., São Paulo, 2006, p. 185.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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se eximir de seu dever de reparar os danos provocados por seus filhos menores,
tutelados ou curatelados, empregados, serviçais e prepostos, dentre outros, ale-
gando que escolheu bem ou que vigiou bem.9
Também de forma expressa, o atual Código Civil contemplou hipó-
tese de responsabilidade independentemente de culpa pelo fato do animal,
como se depreende da leitura do art. 936, sendo da mesma natureza a res-
ponsabilidade prevista pelo art. 937, que trata da hipótese de danos que
resultarem da ruína de edifício ou construção, impondo ao respectivo dono
a responsabilização, quando verificado que os danos provieram da falta de
reparos, cuja necessidade era manifesta.
No mesmo sentido, o art. 938 impõe responsabilidade objetiva pelo
fato da coisa, responsabilizando o habitante do prédio pelos danos decorren-
tes das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar impróprio.
No contexto do Código Civil atual, verifica-se, pois, que o legislador
fez opção pela prevalência da responsabilidade de natureza objetiva, numa
clara tendência de se proteger a vítima, visando a salvaguardá-la de qualquer
dano, desviando, portanto, o foco da responsabilidade civil, que antes era
centrado no agente ofensor, ante a inafastável necessidade de comprovação
de sua culpa a autorizar a sua responsabilização.10

CONCLUSÃO

Não restam dúvidas de que o exclusivo regime de responsabilização


mediante aferição da culpa do agente ofensor se mostrou insuficiente para
solução de inúmeros problemas impostos por uma sociedade de massa e
tecnológica, problemas esses antes inimagináveis, sendo mesmo imperativo

9 Cf. GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit., p. 897. Esclarece-nos o autor que o dispositivo legal ora em comen-
to segue a tendência preconizada pelo art. 927 no sentido de a lei elencar um responsável pela reparação, no caso al-
guém que, de alguma forma, possui autoridade ou direção sobre a conduta alheia, diretamente causadora do dano.
Acrescenta ainda o referido autor que, “por isso, vislumbram alguns, no caso, verdadeiro dever de garantia afeto ao
responsável por terceiro com quem mantém relação especial, muito embora prefiram outros ver na hipótese um ris-
co pela atividade ou pela conduta de terceiro. De toda sorte, sempre uma responsabilidade independente de culpa”.

10 Sobre tal tendência, Paulo Nader faz pertinente e relevante observação no sentido de que, não obstante o foco
da responsabilidade civil tenha se modificado, “a imputação de responsabilidade deve seguir critérios seguros, a fim
de não se perpetrarem injustiças quando o objetivo é justamente o suum cuique tribuere”. Op. Cit. p. 60
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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o desvio do foco da responsabilidade civil para a pessoa da vítima, para con-


cretização da justiça, ante a imensa dificuldade, na maioria dos casos, de
comprovação da culpa do agente ofensor.
Tem-se, pois, que o regime de responsabilização objetiva, em coexis-
tência com a responsabilidade subjetiva, sistema esse adotado pelo Código
Civil vigente, é o que melhor espelha o ideal de justiça nas relações inter-
subjetivas, por se alinhar com o anseio da busca da justiça social, em prol
do fortalecimento de uma sociedade solidária, sendo inquestionável, pois,
o acerto do legislador em positivar a responsabilidade objetiva em diversos
casos, como se viu, sem, no entanto, excluir a responsabilização de nature-
za subjetiva para os casos em que a teoria do risco não se aplica.
Não restam dúvidas, pois, que, em que pese a coexistência de ambos
os regimes de responsabilização – objetiva e subjetiva -, deflui do exame
dos dispositivos legais estatuídos pelo Código Civil ao tratar da responsabi-
lidade civil, certa prevalência da responsabilidade objetiva, o que autoriza a
conclusão no sentido de que, o que antes era exceção, hoje é regra. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Guilherme Couto. A Responsabilidade Civil Objetiva


no Direito Brasileiro, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2000.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Ci-
vil, 6ª ed., São Paulo Malheiros Editores, 2005.
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, XI ed., Rio de
Janeiro, Ed. Renovar, 2006.
DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sergio. Co-
mentários ao Novo Código Civil, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2011.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Código Civil Comentado, Coord.
Min. César Peluso, 3ª ed., Barueri/SP, Ed. Manole, 2009.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil,
v. 07, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2010.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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LEGALIDADE E EFICÁCIA
CONSTITUCIONAL NA
APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

Ana Carolina Fucks Anderson Palheiro 1

O Código Civil de 1916 continha 1.807 artigos e era antecedido


pela Lei de Introdução ao Código Civil. Os Códigos Francês (1804) e Ale-
mão (1896) exerceram influência em sua elaboração, tendo sido adotadas
várias concepções.
Elogiado pela sua clareza e precisão dos conceitos, o referido Código
refletia as concepções predominantes em fins do século XIX e no início
do século XX, em grande parte ultrapassadas, baseadas no individualismo
então reinante, especialmente ao tratar do direito da propriedade e da li-
berdade para contratar. Por essa razão, nasceu o novo Código Civil.
No balanço geral, o novo Código Civil é bom e, embora não escrito,
em suas entrelinhas possui mensagens resumidas nas três palavras mágicas,
às quais se referia o Professor Miguel Reale: a SOCIALIDADE, A ETICI-
DADE E A EFETIVIDADE.
A socialidade significa a substituição do modelo individualista do
Código Bevilaqua, que era característico do Século XIX, por um modelo
agora profundamente comprometido com a função social do direito. Há
uma visível preocupação em colocar o direito a serviço da sociedade e não
apenas dos interesses individuais.

1 Juíza de Direito da 1ª. Vara Criminal de Barra Mansa.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
18

A eticidade significa substituir o princípio da boa-fé subjetiva, que


o Código passado adotava – um princípio inócuo em que a boa-fé era
uma mera exortação ética aos contratantes, mas não significava um dever
jurídico – pela boa-fé objetiva. O novo Código Civil diz expressamente
que os contratantes são obrigados a agir, durante toda a vida do contrato,
com a mais absoluta boa-fé e probidade. O próprio artigo 113 estabelece
que os negócios jurídicos serão interpretados pelas regras da boa-fé. Novos
vícios dos negócios jurídicos foram introduzidos, certamente oxigenados
pelo conceito da boa-fé objetiva: o estado de perigo, a lesão, a teoria da
onerosidade excessiva.
Finalmente, a efetividade, que significa dizer que esse novo Código
mudou completamente a técnica legislativa. Passamos a adotar a técnica
das cláusulas abertas, os princípios indefinidos, para permitir ao juiz, com
muito mais discricionaridade, adotar medidas mais adequadas a resolver
os conflitos de interesses. O juiz deixa de ser “a boca da lei”, de ser mero
aplicador do direito, e passa a ser solucionador dos conflitos de interesses.
Temos um Código mais preocupado com a efetividade, em dar as
partes uma resposta mais adequada, mais célere, da maior utilidade possí-
vel. No balanço geral, o novo Código Civil contribuiu para a construção
de um novo tempo, mais democrático, igualitário e justo.
O Código de 1916 – fruto da doutrina individualista e subjetivista
– conferia prevalência às situações patrimoniais, que espelhavam resquícios
de um sistema liberal, cujos protagonistas eram o proprietário, o contra-
tante e o marido. Por intermédio do absolutismo da propriedade e da li-
berdade de contratar, era permitido o acúmulo de riquezas, preservando-se
a tranquila passagem do patrimônio do pai aos então filhos legítimos, no
contexto de uma família essencialmente patrimonializada.
Em contrapartida, no novo Código alicerçado pela Constituição de
1988, a primazia foi atribuída às situações existenciais ou não patrimo-
niais. Nesse sistema, passaram a ser tutelados, com prioridade, a prole,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
19

independentemente da origem, os consumidores - contratantes vulnerá-


veis- e, ainda, os não proprietários.
Vejamos:
A Parte Geral é uma das melhores do Código. Sua redação deve-se
ao notável Ministro Moreira Alves. Por exemplo: o capítulo da prescrição
e decadência é muito mais claro. A questão da invalidade dos negócios ju-
rídicos, os vícios dos negócios jurídicos e, principalmente o enfrentamento
dos direitos da personalidade, tudo isso, faz da Parte Geral um documento
moderno de que nos podemos orgulhar.
Do ponto de vista da formatação, a parte geral nada mudou. Há uma
perfeita ordem lógica na disposição dos temas na parte geral: sujeitos de di-
reitos, objetos de direitos e fatos jurídicos que fazem nascer as relações jurídi-
cas. Evidentemente, o que mudou foi o conteúdo de cada um desses livros.
Uma das principais inovações da Parte Geral do novo Código
Civil é, justamente, a existência de um capítulo próprio destinado aos
direitos da personalidade.
O citado Código resgata uma lacuna imperdoável do Código pas-
sado. O Código de 1916 não tinha uma palavra sobre direitos da perso-
nalidade, por não ser considerado como uma categoria autônoma. O que
hoje se chama “direitos da personalidade” eram considerados à época,
efeitos da personalidade.
Trata-se de um dos sintomas da modificação axiológica da codificação
brasileira, que deixa de ter um perfil essencialmente patrimonial, característico
do Código Civil de 1916, concebido para uma sociedade agrária, tradiciona-
lista e conservadora, para se preocupar substancialmente com o indivíduo, em
perfeita sintonia com o espírito da Constituição Cidadã de 1988.
Essa noção de direitos da personalidade coube à Constituição de
1988 em seu artigo 5º. Por exemplo, coube a Constituição de 1988 men-
cionar, de maneira objetiva, que o dano moral é indenizável, que a união
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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estável é uma entidade familiar. Observe que isso é matéria de direito civil,
que deveria ser disciplinada no Código Civil, mas como o Código Civil de
1916 estava defasado em relação à realidade social, coube a Constituição
assumir este papel, dando margem ao fenômeno chamado de publicização
do direito civil ou a constitucionalização do direito civil.
Ainda sobre os direitos da personalidade, essa lacuna do Código
Civil de 1916 foi recuperada no artigo 11. O capítulo segundo do novo
Código Civil é um dos mais importantes, uma das maiores e mais elogiá-
veis inovações, de uma importância social e ética inacreditável.
Já no tocante à parte do Código sobre a Teoria Geral dos Contratos,
podemos dizer que tornou explícito que a liberdade de contratar só pode
ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando
os valores primordiais da boa-fé e da probidade.
O artigo 112 do Código Civil, por sua vez, declara que “nas declara-
ções de vontade se atenderá mais a intenção nelas consubstanciada do que
ao sentido literal da linguagem.” Portanto, o novo Código brasileiro deu
prevalência à teoria da vontade sobre a da declaração.
Dois princípios hão de ser sempre observados na interpretação do
contrato. O primeiro é o da boa-fé. Deve o intérprete presumir que os
contratantes procedem com lealdade e que tanto a proposta, quanto a acei-
tação foram formuladas dentro do que podiam e deviam eles entender ra-
zoavelmente, segundo a regra da boa-fé. Declara o artigo 422 que “os con-
tratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como
em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Esta, portanto, se
presume; a má-fé, ao contrário, deve ser provada. Preceitua ainda o artigo
113 do mesmo diploma que “os negócios jurídicos devem ser interpretados
conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
O segundo princípio é o da conservação do contrato. Se uma cláu-
sula contratual permitir duas interpretações diferentes, prevalecerá a que
possa produzir algum efeito, pois não se deve supor que os contratantes
tenham celebrado um contrato carecedor de qualquer utilidade.
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Com relação aos Direitos Reais, principalmente no que diz res-


peito à função social da propriedade, importantes inovações foram tra-
zidas pelo novo Código, por óbvio que, sempre embasada na tutela
constitucional da propriedade.
A função social é um princípio inerente a todo direito subjetivo. A
evolução social demonstrou que a justificação de um interesse privado mui-
tas vezes é fator de sacrifício de interesses coletivos. Assim, ao cogitarmos
da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de
que o ordenamento jurídico apenas concederá legitimidade à persecução
de um interesse individual se este for compatível com os anseios sociais;
caso contrário, o ato de autonomia privada será considerado inválido.
O parágrafo 2º do artigo 1.228 do novo Código Civil exemplifica
bem isso quando considera proibidos os atos que não trazem ao proprie-
tário qualquer comodidade ou utilidade e sejam animados pela intenção
de prejudicar outrem. Com mais de cem anos de atraso, foi consagrada a
Teoria dos Atos Emulativos e o Abuso do Direito de Propriedade.
A refundação da propriedade prende-se a três princípios: o bem co-
mum, a participação e a solidariedade. Quanto ao primeiro, a sociedade
surge porque as pessoas descobrem uma vontade geral e um bem que é
comum e dispõem-se a construí-lo. A eles se subordinam os bens parti-
culares; a participação resulta na contribuição de todos, a partir daquilo
que são e daquilo que têm. A participação transforma o indivíduo em ser
humano; por último, a solidariedade, que nasce da percepção de que todos
vivemos uns pelos outros, valor sem o qual a sociedade não é humana.
Diante do exposto, podemos concluir que o novo Código Civil man-
teve a estrutura do Código Civil de 1916, mas procurou atualizar a técnica
deste último, afastando as concepções individualistas que norteavam para
seguir orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo.
Cumpre visualizarmos um Direito Civil constitucional, no qual
princípios de caráter superior e vinculante criam uma nova mentalidade,
erigindo como direitos fundamentais do ser humano a tutela de sua vida e
de sua dignidade. Essas normas de grande generalidade e grau de abstração
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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impõem inúmeros deveres extrapatrimoniais nas relações privadas. Os li-


mites da atividade econômica, a organização da família e a função social da
propriedade passaram a integrar uma nova ordem pública constitucional e
devem ser encarados como meios de ampla tutela aos direitos existenciais
de personalidade do ser humano, e não como meros direitos patrimoniais
que se destinam a perpetuar relações de poder. 

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Parte Geral, 9ª


edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2002.
PAMPLONA FILHO, Rodolfo, Novo Curso de Direito Civil, 1ª
edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2002.
ROSENVALD, Nelson, Direitos Reais, 3ª edição, Rio de Janeiro,
Editora Impetus, 2004.
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DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL
FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS NA LEGALIDADE
CIVIL-CONSTITUCIONAL

Ana Carolina Villaboim da Costa Leite¹

Embora o modelo de família nuclear ainda predomine em nossa


sociedade, não podemos considerá-lo como o único modelo familiar. O
surgimento de novos arranjos familiares nos leva à conclusão de que o
modelo de família nuclear foi ultrapassado e houve o reconhecimento de
inúmeros outros modelos, resultado de uma série de transformações so-
ciais, especialmente ocorridas na segunda metade do século passado com a
chamada constitucionalização do Direito Civil.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é princi-
piológica e introduziu nova ordem jurídica, de modo a incluir valores, en-
tre eles a preservação da dignidade da pessoa humana; garantia dos direitos
fundamentais e eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao intro-
duzir nova ordem jurídica alicerçada em princípios jurídicos, passou a in-
fluenciar na elaboração de regras infraconstitucionais e iniciou-se a erosão
da dicotomia entre o direito público e o direito privado.
Hoje, esses mundos se complementam. Foi nesse cenário que surgiu
a chamada constitucionalização do direito civil.

¹ Juíza de Direito Titular da Primeira Vara de Família de Nilópolis.


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O Direito Civil Constitucional é a visão do Direito Civil à luz dos prin-


cípios constitucionais. Há uma integração entre os ramos.
Assim, como nos outros ramos do direito, o Direito de Família deve
ser interpretado à luz da Constituição Federal, sendo certo que todas as suas
normas jurídicas têm fundamento de validade constitucional.
O professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama, em seu livro
intitulado Princípios Constitucionais de Direito de Família, aponta
como um dos princípios constitucionais gerais de Direito de Família
aquele referente ao pluralismo demográfico, a evidenciar a substituição
do modelo monolítico de família matrimonial pelo modelo plural e de-
mocrático das entidades familiares.
Assim, vale mencionar as lições de Guilherme Calmon: “Como terceiro
princípio geral, surge o princípio do pluralismo democrático no âmbito dos
organismos familiares (art. 1, inciso V, da Constituição Federal), que se asso-
cia à liberdade de escolha do modelo e da espécie de família. A passagem do
modelo autoritário para o período notabilizado por valores democráticos, em
termos políticos, também se refletiu no campo dos princípios gerais de direito
de família. Assim, a passagem do modelo único, patriarcal e hierarquizado para
o modelo plural, igualitário e humanista, em matéria de entidades familia-
res, reflete a encampação dos valores democráticos também no grupo familiar,
com igual dignidade, respeito e consideração a todos os seus integrantes, sejam
crianças, adolescentes, adultos (ou idosos), homens ou mulheres, havidos no
casamento ou fora do casamento” ²
A Constituição Federal de 1988, além de admitir e reconhecer expres-
samente a adoção e o casamento, também identificou o companheirismo e a
família monoparental como entidades familiares.
Assim, faz-se necessário saber o que forma a família contem-
porânea, de modo a identificar o que forma a família no mundo dos
fatos, no mundo sociológico.

² GAMA - Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Princípios Contitucionais de Direito de Família,


Ed. Atlas, p. 72.
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Com esse objetivo, Paulo Lôbo analisou a PNAD ( Pesquisa Nacio-


nal por Amostragem de Domicílios) realizada pelo IBGE (Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística) e constatou que tal pesquisa oficial apurou
a existência das seguintes entidades familiares: (i) homem e mulher casados
e com filhos biológicos; (ii) homem e mulher casados, com filhos biológi-
cos e não biológicos, ou só com filhos não biológicos; (iii) homem e mu-
lher não casados e com filhos biológicos (união estável); (iv) homem e mu-
lher não casados, com filhos biológicos e não biológicos, ou só com filhos
não biológicos (união estável); (v) pai ou mãe e filhos biológicos (família
monoparental) (v) pai ou mãe e filhos biológicos e não biológicos, ou só
com filhos não biológicos (família monoparental); (vi) união de parentes
e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que
a chefie (grupos de irmãos, avós com netos ou tios com sobrinhos); (vii)
pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter perma-
nente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou
econômica; (viii) uniões homoafetivas; (ix) comunidade afetiva formadas
com “filhos de criação”, segundo generosa tradição solidária brasileira, in-
cluindo as famílias recompostas (possuidoras de padrastos/madrastas com
os respectivos enteados), além dos casos de posse do estado de filiação.³ A
partir desses agrupamentos familiares, o autor acima mencionado consta-
tou as seguintes características comuns das entidades familiares: afetivida-
de, estabilidade e convivência pública.
Foi baseado nesses parâmetros que o referido autor defendeu que o
elemento formador da família contemporânea é o amor familiar, ou seja,
o amor que visa a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pú-
blica, contínua e duradoura.
Portanto, a proteção do núcleo familiar tem como ponto de partida
a tutela da própria pessoa humana, sendo inconstitucional toda e qualquer
forma de violação da dignidade da pessoa humana.
De acordo com as lições de Gustavo Tepedino, a preocupação cen-
tral do ordenamento é com “a pessoa humana, o desenvolvimento de sua
personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja reali-

³ LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 56-57.
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zação devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular


aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais
íntimas e intensas do indivíduo social”
4

Dessa maneira, a família deve servir como espaço propício para a


promoção da dignidade da pessoa humana e a realização da personalidade
de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo
como base para o alcance da felicidade.
Como bem diz Maria Berenice Dias, não há dúvida de que o sonho de
todos é alcançar a felicidade, ao passo que os direitos fundamentais consti-
tucionalmente reconhecidos visam, no final das contas, a assegurar o direito
fundamental à felicidade, que pode ser tido como direito fundamental im-
plícito também por este fundamento, por força do art. 5º, § 2, da CF/88,
quando este afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.
Reconhecendo os direitos fundamentais constitucionalmente reco-
nhecidos verifica-se que não há espaço para preconceitos diante de relações
sociais extremamente dinâmicas, visto que seus desejos e necessidades se
alteram o tempo todo.
O direito deve obrar para que todos os indivíduos e todas as for-
mas de entidades familiares sejam incluídas e aceitas no meio social, de
maneira que cada um tenha reconhecida sua liberdade de escolha na
forma de viver e de ser feliz.
Nesse sentido tem se posicionado a jurisprudência, que em diversos
julgados tem reconhecido as diversas formas de entidade familiar e, em
votação histórica, no dia 05/05/2011, os ministros do Supremo Tribunal
Federal reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo, ao julga-
rem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e a Arguição de
Descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 132.

4 TEPEDINO, Gustavo, cf. Temas de Direito Civil, cit., p. 326, Ed. Renovar, 1999.
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Segue transcrição de parte do voto do relator, Ministro Ayres Britto:


“... II.3. que a terminologia ‘entidade familiar’ não significa algo
diferente de ‘família’, pois não há hierarquia ou diferente de qua-
lidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo
núcleo doméstico. Estou a dizer: a expressão ‘entidade familiar’
não foi usada para designar um tipo inferior de unidade domés-
tica, porque apenas a meio caminho da família que se forma pelo
casamento civil. Não foi e não é isso, pois inexiste essa figura da
subfamília, família de segunda classe ou família ‘mais ou menos’
(relembrando o poema de Chico Xavier). O fraseado apenas foi
usado como sinônimo perfeito de família, que é um organismo,
um aparelho, uma entidade, embora em personalidade jurídica.
Logo, diferentemente do casamento ou da própria união estável,
a família não se define como simples instituto ou figura de direito
em sentido meramente objetivo. Essas duas objetivas figuras de
direito que são o casamento civil e a união estável é que se dis-
tinguem mutuamente, mas o resultado a que chegam é idêntico:
uma nova família, ou, se prefere, uma nova ‘entidade familiar’,
seja a constituída por pares homoafetivos, seja a formada por
casais heteroafetivos. Afinal, se a família, como entidade que é,
não se inclui no rol das ‘entidades associativas’ (inciso XXI do art.
5º da CF), nem se constitui em ‘entidades de classe’ (alínea b do
inciso XXI do mesmo art. 5º), ‘entidades governamentais’ (ainda
esse art. 5º, alínea a do inciso LXXII), ‘entidades sindicais’ (alí-
nea c do inciso III do art. 150), ‘entidades beneficentes de assis-
tência social’ (§ 7º do art. 195), ‘entidades filantrópicas’ (§ 1º
do art. 199), ou em nenhuma outra tipologia de entidades a que
abundantemente se reporta a nossa Constituição, ela, família, só
pode ser uma ‘entidade... familiar’. Que outra entidade lhe resta-
ria para ser? Em rigor, trata-se da mesma técnica redacional que
a nossa Lei das Leis usou, por exemplo, para chamar de ‘entidades
autárquicas’ (inciso I do § 1º do art. 144) as suas ‘autarquias’ (§
3º do art. 202). Assim como chamou de ‘entidade federativa’ (§
11 do art. 100) cada personalizada unidade política da nossa
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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‘Federação’ (inciso II do art. 34). E nunca apareceu ninguém,


nem certamente vai aparecer, para sustentar a tese de que ‘entida-
de autárquica’ não é ‘autarquia’, nem ‘entidade federativa’ é algo
diferente de ‘Federação’. Por que entidade familiar não é família?
E família por inteiro (não pela metade)?

II.4. que as diferenças nodulares entre ‘união estável’ e ‘casamen-


to civil’ já são antecipadas pela própria Constituição, como, por
ilustração, a submissão da união estável à prova dessa estabilida-
de (que só pode ser um requisito de natureza temporal), exigência
que não é feita para o casamento. Ou quando a Constituição
cuida da forma de dissolução do casamento civil (divórcio), dei-
xando de fazê-lo quanto à união estável (§ 6º do art. 226). Mas
tanto numa quanto noutra modalidade de legitima constituição
da família, nenhuma referencia é feita à interdição, ou à possi-
bilidade, de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde
que preenchidas, também por evidente, as condições legalmente
impostas aos casais heteroafetivos. Inteligência que se robustece
com a proposição de que não se proíbe nada a ninguém senão
em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem.
E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto
jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos he-
teroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito
à não equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua he-
teroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os
beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição
de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois
não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos
ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação
é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no plura-
lismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres
do preâmbulo da nossa Constituição.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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III – salto para o § 4º do art. 226, apenas para dar conta de que
a família também se forma por uma terceira e expressa modali-
dade, traduzida na concreta existência de uma ‘comunidade for-
mada por qualquer dos pais e seus descendentes’. É o que a dou-
trina entende por ‘família monoparental’, sem que se possa fazer
em seu desfavor, pontuo, qualquer inferiorizada comparação com
o casamento civil ou união estável. Basta pensar no absurdo que
seria uma mulher casada enviuvar e manter consigo um ou mais
filhos do antigo casal, passando a ter que suportar o rebaixamen-
to da sua família à condição de ‘entidade familiar’; ou seja, além
de perder o marido, essa mulher perderia o status de membro de
uma consolidada família. Sua nova e rebaixada posição seria de
membro de uma simplória ‘entidade familiar’, porque sua antiga
família morreria com seu antigo marido. Baixaria ao túmulo
com ele. De todo modo, também aqui a Constituição é apenas
enunciativa no seu comando, nunca taxativa, pois não se pode
recusar a condição de família monoparental àquela constituída,
por exemplo, por qualquer dos avós e um ou mais netos, ou até
mesmo por tios e sobrinhos. Como não se pode pré-excluir da
adoção ativa pessoas de qualquer preferência sexual, sozinhas ou
em regime de emparceiramento.

36. Por último, anoto que a Constituição Federal remete à lei


a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à
adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e condições da sua
(dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§ 5º do art.
227); e também nessa parte do seu estoque normativo não abre
distinção entre adotante ‘homo’ ou ‘heteroafetivo’. E como possi-
bilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir
entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime
de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de
proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5º da CF,
combinadamente com o inciso IV do art. 3º e o § 1º do art. 5º da
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Constituição. Mas é óbvio que o mencionado regime legal há de


observar, entre outras medidas de defesa e proteção do adotando,
todo o conteúdo do art. 227, cabeça, da nossa Lei Fundamental.

37. Dando por suficiente a presente análise da Constituição, jul-


go, em caráter preliminar, parcialmente prejudicada a ADPF nº
132-RJ, e, na parte remanescente, dela conheço como ação direta de
inconstitucionalidade. No mérito, julgo procedentes as duas ações
em causa. Pelo que dou ao art. 1723 do Código Civil interpretação
conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que
impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida
esta como sinônimo perfeito de ‘família’. Reconhecimento que é de
ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da
união estável heteroafetiva. É como voto.”

Portanto, diante de todo o exposto e frente a atual jurisprudência,


é evidente que as transformações sociais deram origem ao reconhecimento
de inúmeros outros modelos de entidade familiar, denominadas famílias
contemporâneas, as quais devem, em última análise, ser tuteladas pelo di-
reito e pela sociedade de modo a atender aos preceitos constitucionais.

REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva: o preconceito e a


justiça. 4. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.118).
GAMA - Guilherme Calmon Nogueira da, Princípios Constitu-
cionais de Direito de Família, Ed. Atlas p. 72.
LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. 1. Ed. São Paulo: Saraiva,
2008. P. 56-57.
TEPEDINO, Gustavo, cf. Temas de Direito Civil, cit., p. 326, Ed.
Renovar, 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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OS DEZ ANOS DO CÓDIGO


CIVIL DE 2002

Ana Paula Pontes Cardoso¹



O Código Civil de 2002 trouxe importantes inovações e mudan-
ças na legislação pátria. Algumas totalmente novas e transformadoras,
outras embora já existentes , passaram a ser expressas, alterando o com-
portamento das partes contratantes. São exemplos dessas mudanças:
a) O Instituto da Lesão nos contratos , já existente no direito civil,
passou a ser expresso, garantindo o equilíbrio contratual para que uma das
partes não se aproveite da outra. Garante a boa-fé das partes.
b) O art. 1.228, parágrafo 1º do Código Civil submete o exercício
da propriedade à preservação da fauna, da flora e da cultura do povo. Co-
loca o proprietário subsumido à preservação do meio ambiente.
c) Já o parágrafo 2º daquele mesmo dispositivo legal veda os atos
do proprietário que não lhe tragam benefício ou proveito e que prejudi-
que terceiros.
d) Os parágrafos 4º e 5º trouxeram exemplo da técnica das cláusulas
abertas. Isso porque, se o imóvel consistir em área extensa, ocupada por
mais de cinco anos, por um número considerável de pessoas, pode haver
sentença de propriedade a seu favor. Declara-se a usucapião a seu favor.
Mas o juiz é que deve definir o que é um considerável número de pesso-
as, e também deve definir o que são “obras de relevante interesse social”.

¹ Juíza de Direito da 7ª Vara Cível - Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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e) O art. 2.035 do Ato das Disposições Transitórias estabelece que as conven-


ções terão que se submeter a princípios. Seus efeitos, mesmo elaborados antes
do Código Civil, não prevalecerão se ferirem tais princípios.
f ) A autonomia da vontade está limitada pela função social do contrato,
e só pode ser exercida nos limites desta, o que impede que o contrato
produza efeitos negativos, prejudiciais à sociedade. Atualmente o contrato
não pertence apenas aos contratantes, mas transborda deles, para atingir
toda a sociedade. Os magistrados são, portanto, controladores do controle,
são equilibradores éticos e econômicos do contrato, e não apenas os regu-
ladores de sua legalidade estrita. Não se pode interpretar o contrato senão
através dos princípios emanados da Constituição Federal. A interpretação
dos negócios jurídicos se fará pela boa-fé e pela probidade.
g) Na área de família, não há mais distinção entre homem e mulher no
que tange ao exercício do poder familiar, atualmente não mais chamado de
pátrio poder. Prevalece sempre o interesse do menor, e não dos genitores.
Somente a família pode determinar quantos filhos deseja ter.
h) No ramo das sucessões, houve fortalecimento da posição do cônjuge,
que passa a concorrer na sucessão com os herdeiros, dependendo do regi-
me de bens do casamento.
i) No direito ambiental, foi vislumbrado pelo art. 225 da Constituição
Federal de 1988 que o meio ambiente vem sendo degradado de forma
irrecuperável. Embora a Política do Meio Ambiente tenha sido instituída
por lei em 1981, foi a Constituição Federal que erigiu o direito ambiental
à categoria de direito fundamental, sendo certo que o direito erigido à
categoria de direito fundamental independe de lei que o classifique como
tal, haja vista ter a Constituição Federal o erigido como tal. O Direito Am-
biental procura o equilíbrio ecológico, proporcionando a todos a fruição
satisfatória dos recursos naturais que a natureza oferece. O Direito Am-
biental é difuso, e portanto, indivisível, estando-se diante da solidariedade,
permitindo a todos sua defesa. O direito fundamental é bem comum do
povo, e quando se fala em bem comum do povo, não se pode falar em pro-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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priedade. A natureza proporciona os bens que não podem ser usados com
ganância A proteção ambiental deve existir, para garantir a sobrevivência
das futuras gerações.
j) A propriedade sempre teve concepção individualista, eminentemen-
te patrimonial. Com o advento do Código Civil de 2001, a propriedade
passa a ter função social. Se o direito de propriedade é o direito de usar,
gozar e dispor do bem, obtendo toda sua potencialidade, deve observar
sua função social, o que não significa limitar a propriedade, mas apenas
caracterizá-la.
k) Os princípios constitucionais devem ser usados com concretude, tais
como a boa-fé e a função social do contrato. O objetivo é aplicar na prá-
tica os princípios, adequando-os ao caso concreto. Não se almeja apenas a
referência simbólica dos princípios constitucionais, mas sim sua aplicação
ao caso concreto.
l) Existe atualmente um movimento de desjudicialização, utilizando-se ou-
tros mecanismos de composição de litígios, tais como o Juízo Arbitral, a
escritura amigável de separação, a escritura amigável de partilha de bens
que substitui o inventário etc). Mesmo assim, grande número de feitos
ingressam atualmente no Judiciário, em decorrência dos fatos do dia a dia
(ex. cobrança de aluguel social ajuizada contra o Poder Público decorren-
te de enchentes e derrubada de moradias; remoção de comunidades em
área de risco; ação contra o Município porque ao lado de uma residência
formou-se uma favela etc.)
m) Atualmente considera-se que , em muitos casos, a invasão de terre-
nos por terceiros demonstra que o proprietário não cuidou da função
social de sua propriedade. Isso porque no direito das coisas, a posse e a
propriedade são os dois maiores institutos, os quais têm maior relevân-
cia. A posse geralmente é estigmatizada, é vista como um direito ruim.
O sistema capitalista rejeita a posse e prioriza a propriedade. Mas a pro-
priedade também traz compromissos e obrigações, bem como o dever
de cuidar dela. A aquisição da propriedade pode ocorrer pela função
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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social da propriedade. Exemplo disso é o usucapião. A função social da


propriedade, quando cumprida, impede o exercício da função social da
posse por outra pessoa sobre o mesmo imóvel. Se um deles estiver cum-
prindo sua função, o outro não encontraria espaço para exercer função
social diversa sobre o mesmo imóvel. Exemplo disso é que o usucapião é
incompatível com a ocupação do terreno pelo proprietário. Certo é que
a propriedade formal é aquela que consta no Registro Geral de Imóveis,
mas pode haver terceira pessoa que já é dona do imóvel pela posse pro-
longada, mas que ainda não formalizou o domínio porque não ajuizou
ação de usucapião. Na hipótese de desapropriação, deve ser ouvido o
ocupante, que já é o proprietário sem declaração formal, porque o pro-
prietário formal tem apenas uma espécie de nua propriedade.Hoje em
dia o conceito de função social integra o próprio conceito de proprieda-
de. Se o proprietário não está exercendo sua função social, ele não é mais
proprietário e não deve ter proteção jurídica. Ele já se despiu do direito de
reivindicar. A posse exercida com função social por terceiros evidencia o não
cumprimento da função social da propriedade pelo proprietário.
n) O Código Civil de 2002 deu muita importância à posse. Reduziu,
por exemplo, os prazos para a aquisição por usucapião. O Enunciado
492 do Conselho da Justiça Federal estabelece que a posse é direito au-
tônomo em relação à propriedade e deve integrar os interesses sociais e
econômicos merecedores de tutela. A posse protegida, que exerce a fun-
ção social, não afasta a posse ruim, que não cumpre sua função social,
tal como a que degrada o imóvel, e o deteriora.
o) No direito de família, também houve mudanças. Ao longo dos anos, o
casamento que era indissolúvel, passou a ser resolúvel, através do advento
do divórcio em 1977. O chefe da sociedade conjugal deixou de ser o ho-
mem, passando a haver isonomia entre os cônjuges. Os direitos e deveres
são exercidos igualmente entre homem e mulher. Não há mais que se falar
em pátrio poder, mas sim em poder familiar. Isto porque o poder familiar
é exercido por ambos os cônjuges e não apenas pelo pai.
p) A guarda unilateral dos filhos passou a ser compartilhada. A guarda era
atribuída ao cônjuge inocente, não responsável pela separação, o que repre-
sentava confusão entre a culpa pelo fim do casamento e a falta de condições
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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para ser guardião dos filhos. Hoje em dia a guarda deve ser, sempre que
possível, compartilhada. A lei reconhece como direito subjetivo da criança
o de ter o convívio saudável com ambos os genitores. Trata-se de direito
fundamental que desaguou na Lei 12.318 (Lei da Alienação Parental),
a qual estabelece que um genitor não pode denegrir a imagem do outro.
Estas mudanças decorreram de mudanças sociais, basicamente em relação
às mulheres, devido à disputa pelo mercado de trabalho, o que destrói a
ideia do homem superior e provedor. A entrada da mulher na universidade
destrói a ideia de homem mais culto e inteligente. A mulher passou a ter
acesso a cargos de direção, de destaque. A descoberta da pílula anticon-
cepcional permitiu que a mulher descobrisse a maternidade, determinando
sua própria vida.
q) A presunção da paternidade deu lugar à certeza da paternidade através
da realização do exame de DNA.
r) Pela Constituição Federal, a família é constituída pelo casamento e terá
a proteção dos poderes públicos. A proteção é destinada ao casamento e
seus integrantes.
s) Surgiram relações plurifamiliares, com a contração de novas núpcias,
filhos havidos fora do casamento. Hipóteses como tais, anteriormente
inadmissíveis, hoje têm proteção jurídica.A família homoafetiva passou
a ser aceita, aplicando-se por analogia o regime jurídico da união estável.
Em alguns países, o casamento entre pessoas do mesmo sexo passou a ser
aceito. O Supremo Tribunal Federal admitiu o casamento de homoafe-
tivos por conversão da união estável , embora ainda não tenha admitido
o casamento direto.
t) A separação judicial não mais subsiste, porque perdeu sua finalidade. Os
cônjuges podem se divorciar diretamente , não cabendo mais, na atualida-
de, a discussão da culpa. Não há mais a exigência de prazo para o divórcio
direto. Para quem ainda admite a existência da separação judicial, tanto
esta, quanto o divórcio, podem ser realizadas por escritura pública, sendo
que a Emenda Constitucional 66/2010 teria facilitado o divórcio, mas não
teria acabado com o instituto da separação. Apenas acabaram os prazos
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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para o exercício do direito, mas não o direito em si. Haveria ainda vários
motivos que levariam as pessoas a buscar a separação judicial, tais como
motivos religiosos, financeiros, a facilidade de reatar o casamento.
u) O dever de fidelidade recíproca pode ser afastado por pacto antenupcial,
embora a união estável paralela ao casamento não seja aceita.

Todas estas mudanças são exemplos de inovações decorrentes do


advento do Código Civil de 2002, e das alterações constitucionais poste-
riores a este novo diploma legal, harmonizando-se ambas as normas. 


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
37

10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL DE


2002 E SEUS AVANÇOS À LUZ
DA CONSTITUIÇÃO

Belmiro Fontoura Ferreira Gonçalves¹

Inicia-se o estudo abordando-se o Direito nos séculos XVIII e


XIX, o qual refletia o ideário de um Estado liberal, que emergiu da Re-
volução Francesa. Este era um Direito individualista, patrimonialista,
que se opunha aos abusos da monarquia. Era preciso se assegurar de que
todos os indivíduos tivessem sua liberdade garantida, além da proprie-
dade do pedaço de terra onde morassem, bem como a igualdade entre os
cidadãos. Buscava-se, ainda a fraternidade, que em uma visão moderna
nada mais é do que a solidariedade social.
Tudo isso se convergia para a formação do Estado Liberal Clássico,
o qual possuía dois pilares: A autonomia da vontade e a Força obrigatória
(imutabilidade) dos contratos.
O nosso primeiro Código Civil (1916) foi norteado por esses para-
digmas, sendo influenciado ainda pelo Código de Napoleão (1804).
O Código de 1916 possuía três grandes atores: o marido, o pro-
prietário e o contratante. Isso lhe garantia o caráter individualista e patri-
monialista. Assim, verificam-se os três livros que compunham sua parte
especial, a saber: Direito da Família, Direitos Reais e Direito das Obri-
gações e dos Contratos.
O marido era o representante legal da família, célula mater da so-
ciedade. Era tão importante que se preservasse a soberania do marido, que

¹ Juiz de Direito da 3ª Vara da Fazenda Pública - Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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a solução encontrada foi tornar a esposa relativamente incapaz, mesma


condição dos silvícolas e dos pródigos, para que ela não pudesse praticar
nenhum ato da vida civil sem a assistência do marido.
No Código de 1916, a propriedade era quase sacralizada, concedendo a
seu titular os poderes a ela inerentes e exercidos com pouquíssimas limitações e
sem a definição precisa do que seria um abuso no exercício desse direito.
E, quanto ao positivismo, o legislador de 1916 não deixava aos juízes
intimidade à liberdade de examinar os fatos concretos da hipótese jurídica
que lhe foi submetida. O juiz “algemava-se” ao texto da lei, não possuindo
compromisso único com a justiça social. O seu dever era o de prolatar
sentenças legais, isto é, alicerçadas somente no texto da lei.
Foi então que o Estado liberal começou sua decadência. Aliás, conta-
minado pela própria liberdade, que acabou conduzindo a uma nova escravi-
dão. A autonomia da vontade que pautava os contratos acabou se converten-
do na supremacia do mais forte (economicamente) contra o mais fraco.
Os franceses diziam que tudo que era contratual era justo, desde que
as partes fossem livres para contratar. O tempo mostrou que esta era uma
terrível falácia. Não é somente a liberdade das partes que assegura o equi-
líbrio e a justiça do contrato. As partes podem ser completamente livres e
uma massacrar a outra, que lhe é mais vulnerável.
Assim, o Estado liberal começou a decair e aos poucos foi se perce-
bendo que o Estado precisava abandonar aquela postura de neutralidade
e indiferença diante dos fenômenos econômicos e sociais, assumindo uma
posição em que pudesse intervir para proporcionar um mínimo de igual-
dade real, e não apenas uma igualdade formal.
Percebeu-se, então, a necessidade de se proteger a parte mais
fraca nas relações civis e contratuais, numa espécie de Justiça Salomô-
nica, em que o Estado tornava juridicamente mais forte aquele que
era economicamente mais fraco.
Surge, então, o Estado Social.
E foi nesse cenário que recepcionamos a Constituição de 1988, sin-
tomaticamente chamada de cidadã. Uma Constituição que traduz a busca
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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pela liberdade e pela democracia, que volta seus olhos para o ser humano
real. Uma Constituição principiológica. Os seus redatores, com as fragi-
lidades de qualquer ser humano, cometeram erros, mas, por felicidade,
entenderam que não nos bastava apenas uma nova carta política para fazer
esquecer os anos difíceis da Ditadura Militar.
Seus redatores perceberam que o Brasil precisava de uma carta de
princípios, capaz de introduzir uma nova ordem jurídica. Por isso, a Cons-
tituição de 1988 passou a incluir valores fundamentais, que passariam a
inspirar, inclusive, os legisladores. Não é sem propósito que logo no seu ar-
tigo 1º, o qual define o Brasil como uma república federativa democrática
e um Estado de Direito, a Constituição incluiu, como um dos fundamen-
tos da República, a preservação da dignidade humana.
Já no artigo 3º, inciso III, pela primeira vez aludiu a essa solidarieda-
de social, que é a versão moderna do fraternité da Revolução Francesa.
Criou-se, portanto, um novo tempo, que haveria de impactar a so-
ciedade brasileira.
A Constituição de 1988 fez ainda questão de consagrar o Princípio
da Igualdade Real, sem a qual de nada adiantaria a autonomia privada,
além do Princípio da Garantia dos Direitos Fundamentais, a densa mensa-
gem que os constituintes de 1988 nos enviaram.
É necessário o estudo hermenêutico dos princípios que nortearam a
Carta de 1988.
Primeiramente, verifica-se o Princípio da Unidade da Constituição.
As normas constitucionais não podem ser pinçadas do texto e interpreta-
das isoladamente. A Constituição é monolítica, deve ser lida e entendida
como um todo.
O Princípio da Harmonização ou da Concordância Prática. Muitas
vezes, magistrados e advogados se deparam com bens constitucionalmente
protegidos e cuja proteção é, em princípio, difícil de harmonizar. Mas, o
que se quer do aplicador do direito é que, diante deste aparente conflito,
ele busque uma solução que harmonize esses valores aparentemente confli-
tantes, para garantir a plena eficácia da Constituição.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Deste último, decorre o Princípio da Eficácia Integrativa. Na inter-


pretação da Constituição, os operadores do Direito devem sempre buscar
aquela solução que melhor integre a Constituição na unidade política e dos
princípios éticos.
É a força aplicativa da Constituição, desbordando os limites formais,
para então repercutir em toda a ordem jurídica, influindo na elaboração
das normas infraconstitucionais. O Princípio da Interpretação segundo a
Constituição denota que estas leis devem ser interpretadas com os olhos
postos na Constituição. Não se pode aplicá-las de forma que colidam com
a Constituição, sob pena de se trair esses ideais de justiça social, de solida-
riedade social e de igualdade real.
Por último, tem-se a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamen-
tais, pois são estes direitos que suportam toda a estrutura dessa nova ordem
jurídica. Esses princípios não podem ser esquecidos.
A partir da Constituição de 1988, ocorreu a erosão da dicotomia
entre o direito público e o direito privado até então existente, em que a
Constituição era a “locomotiva” que puxava aquele, e o Código Civil a
regra norteadora deste.
Atualmente, a divisão existente entre estes direitos deixou de ser
uma “muralha”, passando a ser uma “linha de giz” facilmente apagável.
Hodiernamente, esses mundos se interpenetraram. Nesse cenário, ocorreu
o fenômeno da constitucionalização ou publicização do Direito Civil, nas-
cendo o Direito Civil Constitucional.
O Direito Civil Constitucional é uma releitura das normas do di-
reito privado à luz dos preceitos constitucionais. Nesse cenário nasceu o
Código Civil de 2002.
O Novo Código Civil foi recebido com grandes resistências doutri-
nárias. De fato, o Código de 2002 está repleto de defeitos. Foi tímido, ao
tratar de matérias em que deveria avançar corajosamente.
Porém, tais defeitos foram compensados pela sua grandeza, na medi-
da em que recepcionou os princípios constitucionais de 1988.
O Código de 2002 se inspirou em três grandes paradigmas: a função
social do Direito, a efetividade (operacionalidade) e a boa-fé objetiva.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Para a implementação desses valores, houve que se mudar, in-


clusive, a técnica legislativa até então utilizada no Brasil, a qual não
deixava espaços para o Juiz, no sentido de buscar a solução que melhor
atendesse à justiça e às partes.
Adotamos, então, inspirados pelo Direito Alemão, a técnica das
cláusulas abertas, deixando propositalmente ao juiz a tarefa de preenchê-
las, usando os valores e princípios constitucionais, o que, de início, foi
muito criticado. Chegou-se a dizer que esse Código iria instituir, no Brasil,
a ditadura dos juízes.
O tempo, contudo, mostrou que esse Código não é dos juízes, mas
da comunidade jurídica brasileira. O Código que teve a coragem de insta-
lar na sociedade brasileira estes novos paradigmas.
Partindo-se do Princípio da Eficácia Constitucional, o Código de
2002, em inúmeros dispositivos, reflete essas mudanças, fato que ocorre
em vários de seus livros.
Começando pela Parte Geral, na qual, logo no seu capítulo segundo
encontramos o título “Dos Direitos da Personalidade”. O Código de 1916
só se referia à personalidade para delimitar seu início e seu fim. O Códi-
go de 2002 disciplinou esses direitos, nos artigos 11 a 21. E mais ainda,
criou uma tutela preventiva e repressiva para esses direitos da personali-
dade, tornando-os absolutos, intransferíveis, irrenunciáveis, inalienáveis,
impenhoráveis e imprescritíveis.
Criou-se o direito à honra, ao sigilo, à privacidade, ao corpo. Criou-
se o consentimento informado, que mudou completamente o relaciona-
mento médico-paciente. O médico, que outrora tudo podia em relação ao
paciente, sem lhe dar satisfações quanto ao tratamento que lhe iria aplicar.
Hoje, em não havendo iminente risco de vida, o Código diz que ninguém
pode ser submetido a tratamento ou terapia sem ser previamente informa-
do acerca das suas consequências.
Assim, esses direitos da personalidade, que inauguram o Código de
2002, são fundamentais para a garantia da dignidade da pessoa humana.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Ainda na Parte Geral, há o artigo 187, que, pela primeira vez, define
que o abuso de direito é um ato ilícito, gerando a responsabilidade civil,
aferida objetivamente.
Nesta Parte Geral, encontramos dispositivos que vão prestigiar
a garantia do direito à igualdade no momento de contratar; o esta-
do de perigo, a figura da lesão, visando a garantir que os contratos
já nasçam justos e equilibrados, para garantir que uma parte não se
aproveite da premente necessidade da outra para contratar, ou ainda,
de sua inexperiência ou vulnerabilidade.
É a boa-fé objetiva, inspirando esta nova teoria contratualista.
No que tange os Direitos Reais, a propriedade, antes quase sacraliza-
da, hoje sofre limitações importantes, em nome do interesse coletivo.
O artigo 1.228, § 1º, pela primeira vez, submete o exercício do direito
à propriedade à preservação da fauna, da flora, das águas, dos monumentos
históricos, da cultura do povo. No parágrafo 2º vedam-se todos os atos do
proprietário que não lhe tragam nenhuma utilidade e que visem a prejudicar
terceiros. É o abuso de direito, aplicado ao direito à propriedade.
Atualmente, qualquer pessoa pode socorrer-se ao Poder Judiciário,
pleiteando a cessação dos atos emulativos do proprietário, os quais não lhe
tragam proveito, mas tragam o ranço do prejuízo a terceiros.
Em relação aos parágrafos 4º e 5º, tratam-se de exemplos das cláu-
sulas abertas e dessa preocupação social com o exercício do direito de pro-
priedade, através da noção inexata do que seja “extensa área” ou “conside-
rável número de pessoas”, o que deve ser aferido pelo juiz, em cada caso
concreto. Trata-se do fortalecimento da posse social, em detrimento da
propriedade ociosa.
Também não é em vão que, no artigo 2.035 das Disposições Finais,
diz-se que as convenções terão que se submeter a esses princípios, sendo
afirmado, em seu parágrafo único, que os efeitos dessas convenções, mes-
mo celebradas antes do Código de 2002, não prevalecerão se contrariarem
os princípios dele emanados, principalmente os princípios da função social
da propriedade e dos contratos.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Passando-se ao Direito das Obrigações, a autonomia da vontade, que


no passado era quase absoluta, está limitada à função social dos contratos.
Função social do contrato, nesse sentido, significa impedir que o contrato
produza efeitos negativos, prejudiciais a toda a sociedade.
A função social do contrato comporta que este não seja mais relativo
e obrigatório apenas aos contratantes, repercutindo, assim, em toda a so-
ciedade. E essa função social é uma cláusula geral, estando implicitamente
inserida nos contratos, permitindo que o juiz adentre neles, a fim de veri-
ficar se estão cumprindo sua função social.
Os juízes não são mais meros espectadores dos contratos. Não mais,
tão somente, aferidores de sua legalidade. Assim, os magistrados são os
equilibradores éticos e econômicos dos contratos.
A limitação da autonomia da vontade à função social do contrato
é uma nítida indicação da aplicação constitucional no Código Civil.
Não é mais possível interpretar os contratos, a não ser através dessa
ótica emanada da Constituição.
Como se não bastasse, o novo Código afirma que a interpretação
dos negócios jurídicos se fará pelos princípios da boa-fé e da probidade.
Isso muda completamente as regras de interpretação dos contratos, antes
limitadas ao sentido literal das palavras.
O magistrado de hoje, para interpretar um negócio jurídico, deverá
responder às seguintes perguntas: “O que homens honestos estariam per-
seguindo, ao celebrarem este contrato?”, “Que conduta adotariam homens
honestos, na execução deste contrato?” E é com este paradigma do homem
honesto, do bonus pater familias dos romanos, que o juiz moderno deve
interpretar os negócios jurídicos.
Este magistrado tem aplicado esse novo direcionamento, indo
ao encontro dessa sistemática, em várias oportunidades, como na sen-
tença prolatada em ação ajuizada em face de Plano de Saúde, visando
à conversão de contrato coletivo, para a modalidade individual, após
o falecimento do titular, cujas partes da fundamentação e dispositivo
abaixo se transcrevem:
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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“...A Constituição Federal, artigo 196, ao tratar da ordem


social, consagrou o direito à saúde como autêntico direito funda-
mental de todos os indivíduos, o qual se caracteriza como direito
constitucional de segunda geração.

Não obstante a natureza constitucional que se pretende ressal-


tar, diante da questão oferecida a este juízo é fundamental a apli-
cação da nova dogmática das relações privadas que se estabelecem,
a saber: da função social dos contratos, boa-fé objetiva, lealdade
contratual e vulnerabilidade do consumidor.

Dispõe ainda, o artigo 421 do Código Civil, que a liberda-


de de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato. Segundo o Desembargador Sylvio Capanema
de Souza, “função social do contrato é fazer com que o contrato se
transforme num instrumento de construção da dignidade do ho-
mem, da eliminação da miséria, das injustiças sociais, fazer com
que os contratos não estejam apenas a serviço dos contratantes, mas
também da sociedade, construindo o que se convencionou chamar
o Estado do Bem-Estar”.

O direcionamento jurídico atual abandonou a posição in-


dividualista para se afirmar que a liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato, que
deverá ser útil e justo.

Neste sentido, cumpre concluir que assiste razão à parte autora.

Da análise das alegações das partes e diante do acervo pro-


batório por estas carreado aos autos, restou incontroverso que
a parte autora é cliente da empresa ré por força de contrato
firmado há mais de dez anos, tendo a mesma sempre adimpli-
do com suas obrigações, no que diz respeito ao pagamento das
mensalidades.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Quer se trate de seguro de contratação individual ou de con-


tratação coletiva, o usuário terá sempre a seu favor as normas de
proteção do CDC, pois ambos são típicos contratos de consumo.
Os direitos do segurado em contrato coletivo de assistência à saú-
de são praticamente idênticos àqueles decorrentes da contratação
direta individual, podendo ele exigir o cumprimento das normas
e condições pactuadas.

Assim, a suspensão ou rescisão unilateral do contrato de pla-


no de saúde só pode ocorrer em caso de não pagamento das
mensalidades por período superior a sessenta dias consecutivos
ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde
que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quin-
quagésimo dia de inadimplência, nos termos do art. 13, inciso
II, da lei 9.656/98, o que não ocorreu na presente hipótese.
...

Ressalte-se que o contrato de seguro saúde é de trato sucessi-


vo e de longa duração, criando um vínculo de confiança com o
consumidor, o qual aguarda ser mantido como beneficiário, não
podendo ser rompido unilateralmente.

Deste modo, constitui direito subjetivo da parte autora se man-


ter no contrato celebrado, sem qualquer alteração das regras aven-
çadas, inclusive no tocante ao valor ajustado.

...

Cumpre observar que a mera alteração de titularidade do


antigo plano não prestigiaria o Princípio da Segurança das Re-
lações Jurídicas, nas hipóteses de extinção da empresa estipulante
ou posterior falecimento da primeira autora.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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...
Isto posto, JULGO PROCEDENTE EM PARTE O PEDI-
DO, com a manutenção das relações jurídicas existentes entre as
partes, nas mesmas condições e com as mesmas coberturas previstas
na proposta de adesão firmada em 10/10/2001 (Fl. 104), pas-
sando as demandantes, individualmente, à condição de titulares,
mantendo-se, ainda, a emissão dos boletos de pagamento para
cada um dos contratos individuais, observando-se o valor an-
tes aplicado a cada uma das demandantes, admitindo-se apenas
os reajustes anuais autorizados pela Agencia Nacional de Saúde
(ANS), tudo sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhen-
tos reais), para o caso de descumprimento...”

No que concerne ao Direito de Família, atualmente houve alguns


significativos avanços. O marido, outrora o ápice da pirâmide familiar,
desceu à sua base. O Código Civil garante absoluta igualdade jurídica entre
marido e mulher e entre companheiros. O “pátrio poder”, anteriormente
exercido pelo pai, hoje se chama poder familiar, igualmente exercido por
marido e mulher.
Em relação aos filhos menores, o que predomina é o Princípio do
Melhor Interesse do Menor. Findou-se aquela presunção de que, em caso
de separação, os filhos menores deveriam ficar sob a guarda da mãe. Hoje,
o juiz decidirá a guarda dos filhos menores com os olhos voltados para o
interesse do menor.
Por influência da Constituição, estabeleceu-se que nem o Estado nem
qualquer entidade poderá se imitir na questão do planejamento familiar.
No campo das sucessões, houve um fortalecimento extraordinário
da posição do cônjuge na sucessão, criando uma novidade, que é a da con-
corrência do cônjuge com os herdeiros necessários, dependendo, é claro,
do regime de bens adotado.
Assim, tem-se por patente a aplicação da eficácia constitucional no Có-
digo Civil de 2002. Não é possível, ao magistrado de hoje, aplicar o Código
Civil, senão com a permanente inspiração desses modelos constitucionais. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL


Camilla Prado¹

O novo Código Civil teve longa tramitação no Congresso Nacional,


e o seu projeto contou com a participação de nomes como José Carlos
Moreira Alves, Agostinho Alvim, Silvio Marcondes e Miguel Reale. A pri-
meira vez que foi submetido à apreciação do Congresso foi em 1975, pelo
Presidente Costa e Silva.
Ao longo de mais de três décadas, muitas foram as oportunidades de
atualizá-lo, em razão de fatos e valores supervenientes, como, por exemplo,
as alterações trazidas pela Constituição da República de 1988 no direito de
família. Na medida do possível, outrossim, procurou-se manter o Código
então vigente pelos seus méritos e por respeito à doutrina e jurisprudência
já fartamente produzidas.
Foram três os princípios básicos que nortearam o novo Código:
1. A Eticidade, com o que se procurou superar o apego do antigo Có-
digo Civil ao formalismo jurídico. Impossível deixar de reconhecer a indecli-
nável participação dos valores éticos no ordenamento jurídico, sem abando-
no das conquistas da técnica jurídica que com aqueles deve se compatibilizar.
Essa orientação justifica a opção por normas genéricas ou cláusulas gerais,
sem a preocupação de excessivo rigorismo conceitual, a fim de possibilitar
a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer
pelos juízes, para a contínua atualização dos preceitos legais.
A questão da boa-fé atina mais propriamente à interpretação dos
contratos. O aspecto guarda muita importância com relação à respon-
sabilidade pré-contratual.

¹ Juíza de Direito Titular da 2ª Vara Cível Regional de Campo Grande da Comarca da Capital.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Coloquialmente, podemos afirmar que esse princípio se estampa


pelo dever das partes de agir de forma correta antes, durante e depois do
contrato. Isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, po-
dem sobrar-lhes efeitos residuais.
Importa, pois, examinar o elemento subjetivo em cada contrato, ao
lado da conduta objetiva das partes. A parte contratante pode estar já, de
início, sem a intenção de cumprir o contrato, antes mesmo de sua elabora-
ção. A vontade de descumprir pode ter surgido após o contrato. Pode ocor-
rer que a parte, posteriormente, veja-se em situação de impossibilidade de
cumprimento. Cabe ao juiz examinar, em cada caso, se o descumprimento
decorre de boa ou má-fé. Ficam fora desse exame o caso fortuito e a força
maior, que são examinados previamente no raciocínio do julgador, e inci-
dentalmente podem ter reflexos no descumprimento do contrato.
Na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, devem ser exa-
minadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural
dos contratantes, seu momento histórico e econômico. É ponto da inter-
pretação da vontade contratual.
2. A Socialidade, pela superação do caráter eminentemente indi-
vidualista do antigo código, elaborado quando a maior parte da popu-
lação vivia no campo. Com a alteração drástica desta realidade, com a
aglomeração nas cidades e a mudança na mentalidade reinante, inclusive
pelo incremento dos meios de comunicação, inevitável o predomínio do
social sobre o individual, o que justifica a mudança na forma de tratar a
posse e a propriedade, e a ênfase à função social dos contratos. O novo
Código, sensível aos preceitos inaugurados pela Constituição da Repú-
blica de 1988, soube abandonar a principiologia do Código de 1916,
que, ancorada nos ideais do liberalismo e do individualismo, acabou por
privilegiar a proteção do patrimônio e detrimento do resguardo da pes-
soa e dos valores existenciais.
3. Por fim, a Operabilidade, consistente nas soluções normativas de
modo a facilitar a interpretação e aplicação, eliminando dúvidas persisten-
tes. Não menos relevante é a resolução de lançar mão de cláusulas gerais,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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como acontece nos casos em que se exige probidade, boa-fé ou correção


por arte do titular do direito, ou quando é impossível determinar com
precisão o alcance da regra jurídica. Caberá ao juiz decidir, em cada caso
ocorrente, à luz das circunstâncias que se apresentarem.
Nessa linha, muitas foram as alterações e inovações. Manteve-se a
Parte Geral, que é da tradição do Direito pátrio, destinada a fixar os parâ-
metros do ordenamento jurídico civil. É ela que estabelece as normas sobre
as pessoas e os direitos da personalidade, que estão na base das soluções
normativas, depois objeto da Parte Especial.
Quanto à Parte Especial, preferiu-se seguir uma sequência mais ló-
gica do que a que apresentava o antigo Código Civil. Situou-se o Direito
das Obrigações como consequência imediata do antes estabelecido para
os atos e negócios jurídicos, e disciplinou-se conjuntamente as obriga-
ções civis e mercantis. Passa-se, depois, ao Direito de Empresa, o qual se
refere a toda a vida societária, ao Direito das Coisas, o Direito de Família
e o Direito das Sucessões.
Nos direitos da personalidade, a disciplina é totalmente nova, não
havendo paralelo no antigo Código Civil. Não se reconheciam direitos da
personalidade no início do Século XX, o que obrigou grandes temas do
Direito Civil a migrarem para a Constituição da República. Isso fez nascer
a expressão Direito Civil Constitucional, que reside nas garantias individu-
ais ali previstas, cláusulas pétreas.
No que tange aos negócios jurídicos, toda a sua disciplina é inova-
dora. No antigo Código Civil, não havia referência a negócios jurídicos,
que estavam englobados nos atos jurídicos. A doutrina é quem fazia a dis-
tinção. No novo Código Civil, ao contrário, deu-se destaque ao negócio,
disciplinando suas disposições gerais, e só se fez uma referência aos atos
jurídicos lícitos, e a ele se aplicam as disposições cabíveis.
No Direito de Família, ocorreram mudanças substanciais, instau-
rando-se a igualdade absoluta dos cônjuges e dos filhos, com a supressão
do pátrio poder, que passou a se chamar poder familiar. Essas alterações
importaram na emenda de vários dispositivos, substituindo-se, por exem-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
50

plo, pelo temro “ser humano” a palavra genérica “homem” anteriormente


empregada. Mais importante, porém, foram as novas regras que vieram
estabelecer efetiva igualdade entre os cônjuges e os filhos, inclusive no
Direito das Sucessões.
Por outro lado, o novo Código Civil veio disciplinar melhor a união
estável como nova entidade familiar, que, até recente decisão do Supremo
Tribunal Federal, só podia ser estabelecida entre homem e mulher. Afastou-
se possibilidade de confusão com o concubinato, tendo em consideração o
intuito da lei de facilitar a conversão da união estável em casamento.
Muita crítica houve ao longo período de tramitação, falando-se que
o novo Código Civil já nascia obsoleto por não ter tratado de questões al-
tamente polêmicas, que demandam ainda reflexões e esforços na busca de
soluções. Essas questões, muito modernas, ainda não tiveram sequer con-
senso ético, moral ou doutrinário, e, portanto, não podem vir reguladas.
O Código Civil não foi feito para servir de lei de experimentação.
Não é, evidentemente, uma lei perene,mas uma lei que deve ter uma per-
manência bem maior, tendo em vista que se trata de um sistema. É uma lei
complexa, que se assemelha a uma Constituição do homem comum, tendo
em vista que disciplina as nossas relações jurídicas antes mesmo do nosso
nascimento e até depois de nossa morte.
A intenção, pois, foi de redigir não uma reforma parcial do Código
Civil, mas uma revisão apenas com as modificações que se afigurassem
necessárias. Buscou-se conservar tudo aquilo que merecesse ser conserva-
do, inovando-se somente naquilo que necessário fosse. Também porque
o Código foi reconstruído durante quase 30 anos dentro do Congresso
Nacional, período em que também experimentou os novos paradigmas
criados pela Constituição de 1988; muitos artigos e conceitos do CC se
confundem de forma positiva e recíproca com aqueles presentes na Cons-
tituição, mesmo que em palavras distintas.
Em resumo, o Código Civil é um importante instrumento de pes-
quisa e utilização pela sociedade nas suas relações jurídicas, que refletem a
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
51

própria atuação da pessoa humana em todas suas nuances. Nesse particu-


lar, deve-se prestigiar a sua compreensão e aplicação no cotidiano, objeti-
vando a obtenção de maior justiça e equidade na convivência social. No
mais, cada item inserido no Código Civil, pela sua extensão e importância,
deve ser objeto de análise específica, necessária a compreensão, mesmo que
parcial e preliminar, da complexidade que possue. Por exemplo, as ques-
tões das Sucessões, dos Títulos de Crédito, da seara da Família, são temas
tão vastos que devem, sem sombra de dúvida, ser estudados e interpretados
para a correta e justa aplicabilidade.
Desse modo, cabe reforçar que o Código Civil Brasileiro é um com-
pêndio de dispositivos legais essencial na vida civil do país, basilar para as
relações jurídicas decorrentes.
Ao longo dos anos, o novo Código Civil sofreu diversas alterações,
sempre com o intuito de manter a afinidade possível entre o momento
vivido pela sociedade e o regramento jurídico. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
52

O CÓDIGO CIVIL DE 2002,


AS NOVAS RELAÇÕES
FAMILIARES E AS ASPIRAÇÕES
CONSTITUCIONAIS
Carla Silva Corrêa¹

O Código Civil de 2002 está completando dez anos, e as inovações


por ele trazidas e que nos pareciam, à época de sua natividade, tão prenhes
de modernidade, já podem ser sentidas como tímidas à luz da evolução
e da dinâmica da sociedade, notadamente no que diz respeito às relações
familiares. Com efeito, a ninguém escapa que a legislação, por mais mo-
derna e avançada que possa ser, sucumbirá se comprarada à velocidade das
transformações sociais. Regras são estabelecidas tendo como escopo refletir
as tendências de determinada sociedade e, se visionárias, buscando dar o
norte, acenar com uma diretriz que deve ser seguida por aquele tecido
social oragnizado.
Entretanto, qualquer espécie de regramento jurídico não acompanha-
rá, da maneira ideal, as transformações sociais, as conquistas forjadas no dia a
dia das relações interpessoais, as barreiras que diuturnamente são aniquiladas
pela cogarem e criatividade do seres humanos, atores tão intensos, tão pro-
fundos e tão indispensáveis à evolução da vida como a conhecemos.
Segue daí que os princípios constitucionais, como inspiração e aspi-
ração, nos confortam e nos auxiliam na árdua tarefa de conciliação de uma
sociedade absolutamente dinâmica com o regramento jurídico estanque.
Dentre todos os princípios constitucionais, o mais amplo e relevante
para a interpretação das normas relativas ao Direito das Famílias me parece

¹ Juíza de Direito da Vara Única da Comarca de Casimiro de Abreu.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
53

ser o princípio da dignidade da pessoa humana. Traduz-se ele na garantia


plena de desenvolvimento de todos os membros do grupo familiar, para que
possam ser realizados seus anseios e interesses afetivos, assim como na garan-
tia de assistência educacional aos filhos, com o objetivo de manter a família
duradoura e feliz. Sobre esse particular, assim preceitua Maria Helena Diniz:

“[...] é preciso acatar as causas da transformação do direito de


família, visto que são irreversíveis, procurando atenuar seus ex-
cessos, apontando soluções viáveis para que a prole possa ter pleno
desenvolvimento educacional e para que os consortes ou convi-
ventes tenham uma relação firme, que integre respeito, tolerân-
cia, diálogo, troca enriquecedora de experiência de vida etc.”²

Como sabido, o princípio da dignidade da pessoa humana é um


valor moral e espiritual inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é
dotado desse preceito que se constitui no princípio máximo do estado
democrático de direito.
Está ele elencado no rol de direitos fundamentais da Constituição
Brasileira de 1988 e ganhou a sua formulação clássica por Immanuel Kant,
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (título original em ale-
mão: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, de 1785), que defendia
que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmas, e não
como um meio. Assim foi formulado tal princípio:
“No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignida-
de. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por
algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima
de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência,
compreende uma dignidade.”³

² DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das Sucessões. 21ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 18.

³ KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzba-
ch. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 58 e 64.
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O rol da dignidade humana é uma das questões mais frequente-


mente presentes não só nos debates sociológicos e jurídicos, mas também
nos debates bioéticos. Em razão das inovações científicas, o ser humano
deixou de ser somente sujeito de direito e tornou-se objeto de manipu-
lações. Ficaram, assim, fragilizadas as antropologias que sempre serviram
de parâmetro às preliminares da ética e do Direito. As relações familiares,
nesse contexto, foram profundamente alteradas.
A dignidade da pessoa humana abrange uma diversidade de valores
existentes na sociedade. Trata-se de um conceito adequável a sua realidade
e modernização, devendo estar em conluio com a evolução e as tendências
modernas das necessidades do ser humano. Desta forma, preceitua Ingo
Wolfgang Sarlet ao conceituar a dignidade da pessoa humana:
“[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade in-
trínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor
do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da co-
munidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo
e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham
a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa
e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos”.
4

É relevante referir que o reconhecimento da dignidade se faz ine-


rente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e
inalienáveis, sendo tal condição o fundamento da liberdade, da justiça, da
paz e do desenvolvimento social.
Aliado ao princípio da dignidade da pessoa humana está o direito à
igualdade. Como já afirmou Maria Berenice Dias:

4 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal

de 1988. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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“A igualdade é almejada por todos e em todos os tempos. Não é


por outro motivo que está proclamada nas Declarações de Direitos
Humanos no mundo ocidental. No Brasil, é consagrada no limiar
do ordenamento jurídico pela Constituição Federal, que assegura,
já em seu preâmbulo, o exercício dos direitos sociais e individuais,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igual-
dade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos (...). A igualdade é o princípio mais
reiteradamente invocado na Carta Magna. De modo expresso, é
outorgada específica proteção a todos, vedando discriminação e
preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade. Também
ao elencar os direitos e garantias fundamentais, é a igualdade a
primeira referência da Constituição Federal. O art. 5º começa di-
zendo: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza (...). Esse verdadeiro dogma é repetido já no seu primeiro
inciso, ao proibir qualquer desigualdade em razão do sexo”. 5

Entretanto, não adianta levantar a bandeira da igualdade no texto


legal ou no texto constitucional se essa mesma igualdade não for praticada
diariamente, por todos, sem qualquer espécie de discriminação.
E é nesse contexto constitucional, no campo da igualdade plena,
que devemos buscar interpretar e dar aplicação às regras do Direito das
Famílias trazidas pelo Código de 2002, sendo de relevo ressaltar que nossos
Tribunais Superiores assim já têm atuado quando, atendendo a nada mais
que um comando da Lei Maior, passaram dar a necessária tutela jurídica
aos vínculos afetivos, afastando a possibilidade de a realidade ser encober-
ta pelo véu do preconceito e se posicionando no sentido de reconhecer
e validar a existência de uniões homossexuais. Ignorar ou não aceitar a
viabilidade jurídica dessa situação é “afastar o princípio insculpido no inc.
IV do art. 3º da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado
promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de
6
que ordem ou tipo seja”.
5
DIAS, Maria Berenice. A família homoafetiva, www.mariaberenice.com.br}

6 DIAS, Maria Berenice. A família homoafetiva, www.mariaberenice.com.br


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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O Direito das Famílias, ao receber o influxo do Direito Consti-


tucional, foi alvo de profunda transformação, que ocasionou verdadei-
ra revolução ao banir discriminações no campo das relações familiares.
“Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e
7
preconceito”. Foi derrogada toda legislação que hierarquizava homens e
mulheres, bem como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo
vínculo existente entre os pais. Também se alargou o conceito de famí-
lia para além do casamento. E, nesse contexto, sob a luz das afirmações
constitucionais, atendidos os requisitos legais para a configuração da união
estável, necessário que se confiram direitos e se imponham obrigações in-
dependentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes.
Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter relação
duradoura, pública e contínua, como se casadas fossem, elas formam um
núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a
que pertencem. E isso, diante do silêncio do constituinte e da omissão do
legislador que poderia ter tratado, mas não tratou dessa matéria, faz com
que deva o juiz cumprir com sua função de dizer o Direito, atendendo
à determinação constante do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro e do art. 126 do Código de Processo Civil.
“A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via
analógica, implica a atribuição de um regime normativo des-
tinado originariamente a situação diversa, ou seja, comunida-
de formada por um homem e uma mulher. A semelhança aqui
presente, autorizadora da analogia, seria a ausência de vínculos
formais e a presença substancial de uma comunidade de vida
afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros
8
do mesmo sexo, assim como ocorre entre os sexos opostos”.
Tal como ressaltado por José Maria Leoni Lopes de Oliveira em sua
fala durante o Seminário realizado na Escola da Magistratura do Estado
do Rio de Janeiro a propósito dos 10 anos de vigência do Código Civil de

7 VELOSO, Zeno. “Homossexualidade e Direito.” O Liberal. Belém do Pará, 22 maio 1999.

8 RIOS, Roger Raupp. “Direitos fundamentais e orientação sexual: o Direito brasileiro e a homossexualidade.”
Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 6, dez. 1998.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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2002, e na esteira do que vem sendo defendido por Maria Berenice Dias
há tempos, devemos estar seguros ao constatarmos que não há como afir-
mar que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao mencionar a união
estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente essa
convivência como digna da proteção do Estado. O que existe ali é uma
recomendação em transformá-la em casamento. Em nenhum momento
se afirmou que não existem entidades familiares formadas por pessoas do
mesmo sexo e, ao fazê-lo, o aplicador da regra constitucional adota pos-
tura nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade,
ignorando a existência da vedação de diferenciar pessoas em razão de seu
sexo, pondo de lado a norma pétrea, consagrada no texto constitucional
(art. 1º, inciso III), que homenageia o respeito incondicional à dignidade
da pessoa humana.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF nº
132/RJ e da ADI nº 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de
2002 interpretação conforme a Constituição para dele excluir todo signi-
ficado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e dura-
doura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta
como sinônimo perfeito de família.
Em julgamento recente, dando mais um passo em direção ao pres-
tígio do princípio da igualdade, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu,
em boa hora, a possibilidade de habilitação para casamento entre duas
pessoas do mesmo sexo. Quando do julgamento do REsp. 1183378, cuja
relatoria coube o Ministro Luiz Felipe Salomão, ficou assentado o entendi-
mento no sentido de que se inaugurou
“com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito
de família e, consequentemente, do casamento, baseada na ado-
ção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos mul-
tifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico
chamado “família”, recebendo todos eles a “especial proteção do
Estado”. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma re-
cepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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considerado como via única para a constituição de família e, por


vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção
constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com
os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque
plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento,
o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o interme-
diário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana
em sua inalienável dignidade”.

Disse mais o ministro relator:


“O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas
famílias multiformes recebam efetivamente a “especial proteção do
Estado”, e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção
que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento,
ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege
esse núcleo doméstico chamado família. Com efeito, se é verdade
que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege
a família, e sendo múltiplos os “arranjos” familiares reconhecidos
pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma famí-
lia que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos
partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoa-
fetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas
por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de
seus membros e o afeto. A igualdade e o tratamento isonômico su-
põem o direito a ser diferente, o direito à autoafirmação e a um
projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma
palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude
se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também
não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional
que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art.
226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento
familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em
se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma


em que se dará a união. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e
1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar
uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a
caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não dis-
criminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo
e livre planejamento familiar. Não obstante a omissão legislativa
sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não
poderia mesmo “democraticamente” decretar a perda de direitos
civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão.
Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo -
que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima
importância, exatamente por não ser compromissado com as maio-
rias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre
em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles
das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do
que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se
reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas
de todos. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não
assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitu-
cional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode
o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação
tácita de um Estado que somente é “democrático” formalmente,
sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca
da universalização dos direitos civis”.

E é sob essa postura constitucionalmente adequada, que prestigia a


igualdade mediante a aceitação das diferenças, que valoriza mais os vínculos
afetivos e as realidades dinâmicas existentes na sociedade, que o Código Civil
de 2002 ainda possui terreno fértil para florescer, sempre com os olhos volta-
dos para o futuro e para o bem-estar da sociedade brasileira, e com a certeza
de que é louvável a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que
rondam o tema da sexualidade e quando se rompe o preconceito que per-
segue as entidades familiares homoafetivas.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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REFERÊNCIAS BIbLIOGRÁFICAS

1. DIAS, Maria Berenice. A família homoafetiva. www.mariabere-


nice.com.br;
2. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direi-
to das sucessões. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007;
3. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e
Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004;
4. RIOS, Roger Raupp. “Direitos fundamentais e orientação sexual: o
Direito brasileiro e a homossexualidade”. Revista CEJ do Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 6, dez. 1998;
5. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Di-
reitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5º ed. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2007;
6. VELOSO, Zeno. “Homossexualidade e Direito.” O Liberal. Be-
lém do Pará, 22 maio 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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A BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO


BRASILEIRO E A PROIBIÇÃO
DE COMPORTAMENTOS
CONTRADITÓRIOS
Carlos Eduardo Iglesias Diniz¹

Breves anotações sobre o princípio da boa-fé


objetiva e sua incidência nos contratos

A boa-fé objetiva, denominada por alguns como boa-fé contratual,


foi desenvolvida pela doutrina e jurisprudência alemãs a partir de 1896,
com base no § 242 do BGB, onde se lê:
“O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a
boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”.

Diferentemente do Código Civil de 1916, que se referia à boa-fé em


seu sentido subjetivo, como estado psicológico de ignorância de vícios, o
§ 242 do BGB traz uma concepção objetiva da boa-fé, voltada para uma
conduta leal e confiável, independentemente de considerações subjetivas.
Em sua vertente objetiva, a boa-fé, por intermédio de cláusulas ge-
rais, impõe parâmetros de conduta para as relações sociais, criando direitos
e obrigações anexas àquelas existentes nos contratos, no intuito de alcançar
a mútua e leal cooperação entre as partes. Não é demais observar que, se
no mundo dos negócios fossem as pessoas, em geral, confiáveis e leais, a
consagração do princípio da boa-fé contratual no Código Civil de 2002
teria passado despercebida.

¹ Juiz de Direito Titular da 2ª Vara Cível da Comarca de Araruama.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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No Brasil, embora a boa-fé já fosse conhecida desde a década de 70,


seu ingresso formal no ordenamento positivo se deu somente em 1990, por
meio do Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, o Código Civil
Brasileiro de 1916 não continha norma geral que consagrasse o princípio da
boa-fé, e essa omissão pode ter sido causada em razão da mentalidade capi-
talista da segunda metade do século XIX, mais preocupada com a segurança
da circulação e desenvolvimento das relações jurídicas do que com a justiça
material dos casos concretos, sendo importante lembrar que a ausência de
tratamento legislativo dedicado ao princípio da boa-fé do Direito Brasileiro
causou enormes prejuízos ao estudo a à aplicação desse princípio no nosso
sistema jurídico.
Sendo aplicada inicialmente nas relações de consumo, a boa-fé acabou
adquirindo um caráter pró-consumidor, que não era inerente ao seu conteú-
do dogmático, mas compunha a finalidade do Código. Posteriormente, com
a entrada em vigor do novo Código Civil, novamente a ela se fez referência
no art. 422, que, como fator de renovação do direito brasileiro contemporâ-
neo, introduziu uma profunda transformação na teoria geral dos contratos,
podendo se dizer que nos dias de hoje é impossível se estudar a teoria dos
contratos sem uma perfeita compreensão desse artigo, no qual se lê:
“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do con-
trato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

O art. 422 acrescenta ao conceito de boa-fé que no passado era apenas


subjetivo, o aspecto objetivo.
Um conceito que, no passado, era um conceito ético ou uma exor-
tação ética que se dirigia aos contratantes, para que procurassem agir ho-
nestamente, se converteu agora em dever jurídico. No âmbito contratual,
portanto, o princípio da boa-fé impõe um padrão de conduta a ambos os
contratantes no sentido da recíproca cooperação, com consideração aos
interesses do outro, em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a
existência jurídica dos contratos.
Nesse sentido, o art. 422 diz que em todo e qualquer contrato,
em todas as suas fases, as partes são obrigadas a manter a mais estrita
boa-fé e probidade.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Boa-fé significa, pois, lealdade no cumprimento do contrato, nas


negociações preliminares, transparência na redação dos pactos e equilíbrio
econômico, pois o contrato deve ter uma equação econômica justa. Signi-
fica também cooperação entre as partes para que o contrato seja cumpri-
do, e ainda informação completa. Exige comportamentos que não causem
surpresa a outros e que não rompam presunções ou expectativas nascidas
na mente de outro pelo seu próprio comportamento, ou seja, proíbe com-
portamentos contraditórios. Impõe ainda deveres de cuidado e segurança,
de aviso e esclarecimento, de prestar contas, de colaboração e cooperação,
e de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte.
Tais deveres pressupõem uma nova compreensão da relação obriga-
cional, que passa a ser vista como um processo complexo, que tem em mira
a finalidade global da obrigação, e não apenas o adimplemento, exigindo-
se, por isso, uma relação de cooperação entre ambas as partes, credor e de-
vedor, que subsiste até mesmo depois de adimplida a prestação principal,
na lição de Clóvis do Couto e Silva.
A boa-fé objetiva é a própria norma, fonte direta de deveres de con-
duta exigíveis, quer do devedor, quer do credor no âmbito das relações
obrigacionais, ou seja, a boa-fé atua como fonte de deveres impostos aos
contratantes, exigindo-lhes uma atitude de recíproca cooperação como
forma de assegurar o exato processamento da relação obrigacional e a con-
secução da finalidade que justificou a formação daquele vínculo e o seu ca-
ráter obrigatório, sendo importante frisar que se cuida de fonte autônoma
de direitos e obrigações, não adstrita à vontade nem a texto de lei.
Parte da doutrina denomina esses deveres de cooperação de “deveres
instrumentais”, enfatizando a sua serventia como meio para garantir a con-
secução do fim pretendido com as negociações ou com o contrato.
Teresa Negreiros ensina que “O princípio da boa-fé nos parece um
destes instrumentos jurídicos capazes de conformar o direito civil à hie-
rarquia de valores e de interesses prevista constitucionalmente. Trata-se,
antes de qualquer coisa, de reconhecer que o contrato – como, em regra,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
64

as relações obrigacionais – deve ser valorado em seus meios e fins segundo


a ordem jurídica econômica desenhada na Constituição” (Fundamentos
para uma nova interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 269).
Não obstante sua importância, o dispositivo tem sofrido inúmeras
críticas. Antônio Junqueira de Azevedo em seu artigo intitulado “Insufici-
ências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão
da boa-fé objetiva nos contratos” (artigo publicado Revista Trimestral de
Direito Civil, vol. 1, janeiro, 2000), ressalta que o art. 422 não indica
se o dispositivo cuida de norma cogente ou de norma dispositiva. Como
segunda insuficiência, aponta que o artigo parece supor a limitação da boa-
fé à esfera contratual, esquecendo-se ainda das fases pré-contratual, das
negociações preliminares ou tratativas, e pós-contratual, sendo oportuno
observar que o campo das tratativas é propício para a regra do comporta-
mento de boa-fé, eis que, aí, não há contrato e, apesar disso, já são exigidos
aqueles deveres específicos que uma pessoa precisa ter como correção de
comportamento em relação a outra. No entanto, seu âmbito de incidência
no direito brasileiro ainda não representa ponto pacífico, chegando mesmo
a jurisprudência a restringir sua aplicação em alguns casos. Uma interpre-
tação literal do art. 422 nos leva à conclusão de que a boa-fé só deve estar
presente na conclusão do contrato ou na sua execução. Porém, a boa-fé é
muito mais ampla, e sendo ela própria a norma jurídica, existe sempre e
incide como fonte de deveres, como critério ou como limite a conformar
todas as fases da vida do processo obrigacional, quais sejam, a fase inicial
de formação do vínculo obrigacional; a fase de realização da obrigação; e a
fase final que se desenvolve após a extinção do vínculo. Significa dizer que
a boa-fé incide desde as negociações preliminares, na fase pré-contratual
até a fase pós-contratual. A boa-fé deve estar presente na proposta, nas tra-
tativas, na publicidade, na oferta, e ainda depois de cumprido o contrato.
A terceira insuficiência apontada pelo Professor diz respeito a fase pós-con-
tratual e, portanto, foge ao objeto do nosso estudo, pelo que remetemos o
leitor ao artigo acima citado.
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Canaris, referido por Menezes Cordeiro em sua obra clássica so-


bre a boa-fé (Da boa-fé no direito civil, p. 635) propõe, inclusive, uma
teoria de deveres unitários de proteção no sentido de que desde o início
das negociações preliminares, constituir-se-á, entre os intervenientes, um
dever específico de proteção, derivado da situação de confiança suscitada e
fundado positivamente na boa-fé.
Importante ressaltar, todavia, que o princípio da boa-fé, como cláu-
sula geral, não é aplicável somente às relações contratuais. Pelo contrário,
como cláusula geral, exprime a sua aplicação, em maior ou menor grau, a
todas as relações jurídicas constituídas em sociedade.
Uma das vertentes da boa-fé objetiva é a proibição de comporta-
mentos contraditórios, princípio conhecido pela expressão venire contra
factum proprium. A falta de regulamentação positiva desse princípio faz
com que sua inclusão no ordenamento se dê por meio da cláusula geral
de boa-fé, o que facilita a sua aplicação às relações privadas, inclusive, na
esfera extracontratual.

A tríplice função da boa-fé objetiva

Tem-se atribuído à boa-fé objetiva uma tríplice função no sistema


jurídico. A primeira diz respeito a sua função de cânone interpretativo dos
negócios jurídicos; em seguida está a função de fonte normativa de deveres
jurídicos, que podem até mesmo pré-existir à conclusão do contrato, bem
como sobreviver à sua extinção e, por fim, a função restritiva do exercício
de direitos, ou seja, de fonte normativa de restrições ao exercício de posi-
ções jurídicas. Essas três funções estão bem delineadas respectivamente nos
artigos 113, 422 e 187, todos do Código Civil.
Essa tríplice função existe segundo Antônio Junqueira de Azevedo
“para a cláusula geral de boa-fé no campo contratual, porque justamente a
ideia é ajudar na interpretação do contrato, suprir algumas falhas do contra-
to, isto é, acrescentar o que nele não está incluído, e eventualmente corrigir
alguma coisa que não é de direito no sentido de justo” (“Insuficiências, de-
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ficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé


objetiva nos contratos”, in Revista Trimestral de Direito Civil, v. 1, p. 7).
A primeira função alude à boa-fé como critério de interpreta-
ção, exigindo que a interpretação das cláusulas contratuais privilegie
sempre o sentido mais conforme à lealdade e à honestidade entre as
partes. O Código Civil Brasileiro consagra expressamente esta função
interpretativa em seu art. 113:

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados confor-


me a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

Significa dizer que diante de duas interpretações possíveis para uma


mesma estipulação contratual, deve o intérprete privilegiar aquela que es-
tiver mais de acordo com a verdadeira intenção das partes e que esteja de
acordo com a exigência de atuação segundo a boa-fé.
Em nome do princípio da boa-fé, o juiz pode temperar o rigor da lei
em certas hipóteses, tal como no caso em estudo no qual, na nossa opinião,
como se verá adiante, poderá o juiz obrigar o D a contratar entregando as
ações vendidas ao PA.
A segunda função da boa-fé é servir de fonte para criação (supplen-
di) de deveres anexos à prestação principal, impondo às partes deveres que
não estão expressamente previstos no contrato, tais como o dever de infor-
mar, de segurança, de sigilo, de colaboração, entre outros já mencionados
anteriormente. Seguramente, existe, no contrato, aquilo a que as partes
expressamente se referiram, seu objeto principal, expresso, e depois, há
os deveres colocados ao lado, os ditos deveres secundários, que podem
ser positivos, do tipo o dever de procurar colaborar com a outra parte, ou
negativos, tal qual o dever de manter sigilo sobre algum fato que um con-
tratante soube da outra parte.
Esses deveres secundários se destinam a criar para ambas as partes da
relação jurídica um determinado padrão de comportamento, cujo conteú-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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do objetivará, por vezes, evitar que a outra parte sofra prejuízo, outras vezes
exigir uma atitude de cooperação, para que a outra parte alcance em toda
a sua plenitude a finalidade prevista numa relação negocial.
Cabe ressaltar que, em razão da fonte dessas obrigações ter origem
não voluntarista, elas existem independentemente da vontade das partes
ou até mesmo podem surgir contra a vontade dos contratantes, pois cuida-
se de deveres que decorrem da boa-fé.
Como bem explica Judith Martins-Costa, “Ao ensejar a criação desses
deveres, a boa-fé atua como fonte de integração do conteúdo contratual, de-
terminando a sua otimização, independentemente da regulação voluntaristi-
camente estabelecida” (A boa-fé no direito privado – Sistema e tópica no
processo obrigacional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 440).
Outro ponto importante a respeito da segunda função, supplendi,
refere-se às cláusulas faltantes. É que as vezes as partes elaboram um con-
trato e, por omissão ou mesmo falta de previsão ou incapacidade redacio-
nal, não incluem alguma cláusula e nesse caso, teremos, então, uma lacuna
contratual, devendo a boa-fé atuar com norte a ser seguido para a integra-
ção do conteúdo desse contrato.
A terceira função da boa-fé objetiva, em relação à qual o Código
Civil é omisso, tem por fim impedir o exercício de direitos em contrarie-
dade à lealdade e confiança recíprocas que devem estar presentes nas rela-
ções negociais, ou seja, veda comportamentos que, muito embora sejam
admitidos por lei ou pelo contrato, possam colidir com o conteúdo da
cláusula geral, estando diretamente relacionada à teoria do abuso de direito
nesta sua função de limitar ou mesmo impedir o exercício de direitos que
emergem da relação contratual. Nesse sentido, cabe frisar que o nosso Có-
digo do Consumidor, que foi feito depois do Projeto de Código Civil, esta
muito mais atualizado do que este, uma vez que tratou expressamente das
cláusulas abusivas, no vasto elenco do art. 51.
O princípio da boa-fé, com base nesta função de critério ou limite ao
exercício de direitos subjetivos, desenvolve a teoria dos atos próprios, que
importa em reconhecer a existência de um dever por parte dos contratantes
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de adotar uma linha de conduta uniforme, proscrevendo a duplicidade de


comportamento, na hipótese em que embora ambos os comportamentos
considerados isoladamente não apresentem qualquer irregularidade, con-
substanciam quebra de confiança se tomados em conjunto, incidindo o
chamado venire contra factum proprium. É o caso, por exemplo, de uma
cláusula contratual que por ser tão afastada das obrigações essenciais do
contrato, desnatura o próprio contrato.
A teoria dos atos próprios parte do princípio de que, se uma das
partes agiu de determinada forma durante qualquer das fases do contrato,
inclusive nas tratativas, não é admissível que em momento posterior aja
em total contradição com a sua própria conduta anterior. Sob o aspecto
negativo, trata-se de proibir atitudes contraditórias da parte integrante de
determinada relação jurídica. Sob o aspecto positivo, trata-se de exigência
de atuação com coerência, uma vertente do imperativo de observar a pala-
vra dada, contida na cláusula geral da boa-fé.
O que se quer evitar com a proibição do venire contra factum pro-
prium é que a parte da relação jurídica adote mais de um padrão de conduta,
segundo as vantagens que cada situação possa lhe oferecer. Não se pode ad-
mitir que, em um momento, a parte aja de determinada forma e, no seguin-
te, de forma totalmente diversa, apenas porque nesse segundo momento não
lhe é conveniente adotar a mesma postura que adotou anteriormente.
A função do princípio da boa-fé nesses casos é a de ajustar a
letra fria da norma jurídica à necessidade de solução do conflito de
interesses, de acordo com padrões de justiça. Trata-se de humanizar
a norma jurídica, de fazer com que ela seja aplicada com tempero da
incidência da cláusula geral da boa-fé, que contém padrões mínimos de
comportamentos em sociedade.
Na prática, essas funções se complementam, sendo por vezes difícil
definir, num caso concreto, sob qual vertente a boa-fé está sendo invocada,
ou seja, qual função específica que o princípio está desempenhando naque-
la hipótese em particular.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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A proibição de comportamentos contraditórios

O comportamento incoerente é aquele que se põe em contradição


com um comportamento anterior.
A história do direito mostra que, em diferentes épocas, houve formas
diferentes de se tratar da incoerência, havendo diversas regras específicas,
como, por exemplo, o Corpus Iuris Civilis, no qual era possível se vislum-
brar uma intenção de coibir a incoerência. O primeiro registro expresso do
princípio da proibição de comportamentos contraditórios de que se tem
notícia data do século XII, na obra Brocardica, do glosador Azo, onde se lia,
no título X, o aforismo: venire contra factum proprium nulli conceditur,
ou seja, “a ninguém é concedido vir contra o próprio ato”. Porém, não obs-
tante várias tentativas, só recentemente se veio a cogitar, de forma aceitável,
de um princípio de proibição ao comportamento contraditório, diante da
necessidade de se tutelar as legítimas expectativas e as fundadas esperanças
daqueles sobre quem essa espécie de comportamento repercute, mas ainda
assim, o princípio não chegou a ser expressamente enunciado em lei.
O Código Civil brasileiro de 1916 não continha previsão relativa
ao comportamento incoerente. O código de 2002, por sua vez, também
não trouxe norma geral expressa acerca do princípio, todavia, em algumas
passagens demonstrou a preocupação em reprimir o comportamento incoe-
rente, como se pode ver pelos artigos 175, 476, 491 e 1.146. Nesses artigos
podemos vislumbrar uma preocupação em evitar as consequências de uma
mudança de comportamento inesperada, de uma contradição com uma
conduta anteriormente adotada. Entretanto, na falta de norma específica
que consagre a proibição do comportamento contraditório ou simplesmen-
te o venire contra factum proprium, sua inclusão no ordenamento se dá à
luz da cláusula geral da boa-fé objetiva enunciada pelo art. 422 do Código
Civil. Com efeito, voltar-se contra os próprios atos constitui um comporta-
mento que o princípio da boa-fé não tolera, pois se trata de comportamento
que se volta contra as expectativas criadas na contraparte, ou seja, o que o
princípio proíbe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica é o
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comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca


minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfico negocial.
Não obstante, não são todas as expectativas que ensejam a apli-
cação do princípio, mas somente aquelas que, à luz das circunstâncias do
caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos praticados pela
outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na
manutenção da situação objetiva assim gerada. Mais que isso, o compor-
tamento contraditório só será alcançado pela boa-fé objetiva quando não
for justificável e, ainda, quando a reversão das expectativas assim ocorridas
signifique prejuízos à outra parte cuja confiança tenha sido traída.
Importante frisar que a proibição de comportamentos contraditó-
rios não pretende limitar a liberdade de se mudar de opinião ou de con-
duta, garantida pelo princípio da autonomia da vontade, mas tão somente
frear o exercício dessa liberdade quando dela possa advir prejuízo àquele
que legitimamente confiou num comportamento inicial, no intuito de dar
maior segurança às relações jurídicas e fazer com que as pessoas adotem
comportamentos coerentes, de modo a criar uma nova ética no mundo
contemporâneo dos negócios.
Com efeito, o venire contra factum proprium só tem aplicação
quando e na medida em que a contradição aos próprios atos possa violar
expectativas legítimas e a confiança despertada em outrem, que acreditou
no comportamento inicial, a assim causar-lhe prejuízo.
A proibição do comportamento contraditório aplica-se, pois, àque-
les atos que não são originariamente vinculantes e sobre cuja possibilidade
de contradição o legislador não se manifestou expressamente. Sua aplicação
é subsidiária, pois restrita à hipótese de ausência de norma que incida sobre
o fato. A sanção para o autor da conduta contraditória pode ser o pagamento
de perdas e danos ou até mesmo a substituição da manifestação contraditória
por meio de uma decisão judicial que faça as suas vezes, desconsiderando o
comportamento contraditório e integrando do negócio que deveria ser cele-
brado. O venire contra factum proprium aparece, assim, como um modelo
concreto e específico de comportamento contrário à boa-fé, e a proibição de
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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comportamentos contraditórios surge como fator de segurança, tutelando


todas as expectativas legítimas despertadas no convívio social, independente-
mente da incidência de qualquer norma específica.

A tutela da confiança e das legítimas expectativas

O exercício de um ato contraditório é inadmissível, pois viola a


boa-fé objetiva no que tange ao dever geral de se levar em conta os in-
teresses e as expectativas da outra parte envolvida numa negociação. O
exercício de um direito será, portanto, irregular, e nessa medida, abusivo,
se consubstanciar quebra de confiança e frustração de legítimas expectati-
vas, de modo que, um comportamento formalmente lícito, consistente no
exercício de um direito, pode ser tido como contrário a boa-fé e, como tal,
sujeito ao controle da ordem jurídica.
A consideração pela posição da outra parte, pelas suas particulari-
dades e seus interesses, consiste na razão do desenvolvimento da boa-fé ob-
jetiva em um direito dirigido à realização da solidariedade social, pois ao im-
por sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses
e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela-se,
em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante
do conteúdo da boa-fé, mas também como forte expressão da solidariedade
social. Nesse sentido, como bem ressalta Bruno Lewick “Foi neste contex-
to que se construiu a doutrina da boa-fé, caracterizada como um dever de
agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de
correção, lisura e honestidade. Reduz-se a margem de discricionariedade da
atuação privada: o sujeito, para a consecução dos seus objetivos individuais,
tem que agir com lealdade, observando e respeitando não só os direitos, mas
também os interesses legítimos e as expectativas razoáveis de seus parceiros
na aventura social” (“Panorama da boa-fé objetiva”, in Gustavo Tepedino
(coord.), Problemas de direito civil-constitucional, p.57).
No mesmo sentido, Cláudia Lima Marques ensina que “Boa-fé
objetiva significa, portanto, uma atuação refletida, uma atuação refletindo,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus


interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com
lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem ex-
cessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento
do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes” (Contratos
no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações
contratuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. 107).
Em suma, podemos dizer que as expectativas criadas junto ao ou-
tro contratante jamais podem ser frustradas, sob pena de violação do prin-
cípio da boa-fé. Espera-se do contratante, estando em curso negociações
preliminares ou a execução de um contrato, que atue de modo diligente
e leal, vindo a satisfazer a confiança depositada na declaração de vontade
originalmente emitida, quando da formação do negócio.
Não só o direito, mas também a economia têm voltado seus olhos
para a confiança e, consequentemente, para a boa-fé, havendo quem indi-
que o “nível de confiança inerente a uma sociedade” como fator altamente
relevante para o desenvolvimento econômico e social.
A tutela da confiança não vem expressamente prevista no ordena-
mento positivo brasileiro, sendo o seu fundamento, assim como o da proi-
bição de comportamentos contraditórios, indicado pelo art. 422 do Código
Civil, que trata da cláusula geral da boa-fé objetiva. O exercício de um direito
será, portanto, irregular, se consubstanciar quebra da confiança e frustração
das legítimas expectativas, pois contrário à boa-fé e, como tal, estará sujeito
ao controle da ordem jurídica com fundamento no art. 422 do código.

Conclusão

A era contemporânea caracteriza-se pelo dinamismo, pela cons-


tante alteração da realidade e da sua compreensão. O ritmo das trans-
formações tem inegavelmente se acelerado. Todos os dias nos chegam
novos dados, novas descobertas e novos paradigmas; nosso cotidiano se
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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transforma, nosso conhecimento se amplia e nossas convicções se alte-


ram. O ser humano moderno, de inteligência, tem a obrigação de mudar
de opinião e de certeza várias vezes durante a vida.
O direito, por sua vez, exerce importante papel na transformação
da realidade social e na construção de uma nova ética. O direito existe
justamente para impedir que o homem extrapole de certos limites, pois,
se assim não fosse, se instalaria o caos absoluto e a lei do mais forte ou do
mais malicioso.
A proibição ao comportamento contraditório não quer limitar,
em absoluto, a liberdade de mudar de opinião e de conduta, mas ape-
nas frear o exercício dessa liberdade quando daí possa derivar prejuízo
a quem tenha legitimamente confiado no sentido objetivo de um com-
portamento inicial.
No âmbito contratual, o princípio da boa-fé impõe um padrão de
conduta a ambos os contratantes no sentido da recíproca cooperação, com
consideração dos interesses um do outro, em vista de se alcançar o efeito
prático que justifica a existência jurídica do contrato. Da boa-fé objetiva
derivam deveres impostos aos contratantes, não previstos no contrato.
O princípio da boa-fé expressa, nas palavras de Clóvis do Couto e
Silva, “(...) a principal reação contra as ideias e o sistema do positivismo
jurídico, no plano da ciência do Direito”, devendo ser considerada um
valor integrado ao sistema.
As partes devem sempre agir com base no princípio da boa-fé, e é
este que irá servir como ponto de partida para a análise contratual; em
outras palavras, no momento em que é iniciada a análise jurídica de de-
terminada relação contratual, deve-se adotar como premissa que as partes
negociaram, celebraram, executaram e terminaram, conforme for o caso,
determinado contrato, com base na boa-fé, devendo aplicar o princípio da
boa-fé para, então sim, poder concluir se há ou não violação ao princípio,
qual seu peso e extensão para avaliação e compreensão das obrigações e
responsabilidades das partes em cada uma das fases da relação contratual.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Para a formação do vínculo contratual, é necessário, em concreto,


que uma parte proponha à outra determinado regulamento e que a outra
parte o aceite, pois o contrato forma-se e as partes se vinculam, precisa-
mente, quando essa proposta e essa aceitação se encontram, dando lugar
àquilo que se chama de consenso contratual.
A proibição de venire contra factum proprium, simbolizando a tu-
tela da confiança e da lealdade recíproca entre os contratantes, diminui as
incertezas e a insegurança que caracterizam as sociedades atuais, cada vez
mais complexas e dinâmicas. 

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76

A UNIÃO ESTÁVEL NO
NOVO CÓDIGO CIVIL
Claudia Nascimento Vieira¹

O artigo 226 da Constituição Federal equiparou a união estável en-


tre homem e mulher ao casamento, dispondo em seu parágrafo 3º que “é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher, como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, e, no pará-
grafo 4º, preceitua que “entende-se, também, como entidade familiar a
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
O novo Código Civil, nos artigos 1.723/1.727 e 1.790, estabelece os
requisitos fundamentais para a constituição da união estável entre homem
e mulher, assim como seus efeitos patrimoniais por motivo de dissolução
por convenção entre os conviventes ou pela morte de um deles, matéria
que antes era tratada em legislação esparsa. O Código Civil foi omisso
com relação às uniões homoafetivas, cabendo à jurisprudência a extensão
da aplicação da lei a essas relações.
O artigo 1.723 preceitua que “é reconhecida como entidade familiar
a união estável entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento, configurada pela convivência pública, contínua e duradou-
ra estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Existe nesse dispositivo omissão do legislador com relação à união
homoafetiva, que já foi suprida pelo julgamento da ADIN nº 4.277 e da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 pelo STF,
que julgou procedentes os pedidos.

¹ Juíza de Direito Titular da 1ª Vara de Família da Comarca de Nova Iguaçu.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Não é imperativa a coabitação como requisito para a caracterização


da união estável, mas a convivência sob o mesmo teto pode ser um meio
de prova do relacionamento. Assim, inexistindo a coabitação não resta des-
qualificada a existência da união estável.
O legislador não estabeleceu lapso temporal para a caracterização
da união estável, incumbindo ao juiz reconhecer em cada caso específico
a existência ou não de união estável, independentemente do prazo da sua
duração.
O parágrafo 1º do artigo 1.723 elenca as hipóteses de impedimentos
para a constituição da união estável, que são as mesmas atinentes ao casa-
mento, ressalvada a hipótese do inciso VI do artigo 1.521, que se refere a
pessoa casada desde que separada de fato ou judicialmente. E o parágrafo
2º dispõe que as causas suspensivas do artigo 1.523 não constituem óbice
para a caracterização da união estável, aplicadas ao casamento.
No artigo 1.724 do Código Civil, estão previstos os deveres de leal-
dade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
São livres os conviventes para elaborar contrato escrito com o fito
de reger suas relações patrimoniais, assim como o pacto antenupcial, e, se
não o fizerem, deve ser aplicado o artigo 1.725, ou seja, a essas relações
patrimoniais aplica-se no que couber o regime da comunhão parcial de
bens. O contrato deve obedecer às regras de forma e de registro de pacto
antenupcial para ter valor jurídico.
O legislador previu que inexistindo contrato escrito entre os compa-
nheiros quanto às relações patrimoniais aplica-se no que couber o regime da
comunhão parcial de bens, nos termos do artigo 1.725 do Código Civil.
Comprovada então a união estável, presume-se a mútua colaboração
dos conviventes para aquisição dos bens a título oneroso na constância da
união, que devem ser partilhados igualitariamente, sendo necessária apenas
a comprovação da união estável, a data e a forma onerosa de aquisição.
A conversão da união estável em casamento prevista na Constituição
Federal deve ser feita mediante pedido dos companheiros ao juiz e assen-
to no registro civil competente, gerando efeitos ex tunc, pois trata-se de
união já existente antes da conversão.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
78

Finalmente o artigo 1.727 apenas reafirma que as relações não even-


tuais entre homem e mulher impedidos de casar constituem concubinato,
a este não se atribuindo os direitos decorrentes da união estável.
Com relação aos efeitos patrimoniais da dissolução da união estável
por convenção entre as partes, deve-se observar a regra do artigo 1.725 do
Código Civil quanto à partilha dos bens, ou seja, na hipótese de inexistên-
cia de contrato escrito entre os companheiros, deve-se observar as regras
atinentes ao regime da comunhão parcial de bens.
O novo Código Civil trouxe grandes modificações nas questões
referentes à sucessão causa mortis nas relações de união estável, tratan-
do a questão em um único artigo e limitando-se a vocação hereditária
do convivente ou da convivente aos bens adquiridos onerosamente na
constância da união.
Essa regra não pode ser afastada a não ser que seja elaborado um
testamento com o objetivo de tornar o convivente supérstite herdeiro de
outros bens que não tenham sido adquiridos de forma onerosa na cons-
tância da união.
Todas as hipóteses legais de sucessão causa mortis do companheiro
ou companheira referem-se aos bens adquiridos onerosamente na vigência
da união estável, sendo certo que observar-se-á impositivamente essa regra,
a não ser que tenha sido elaborado testamento.
Assim, preceitua o artigo 1.790 do Código Civil que somente quan-
to aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável a com-
panheira ou o companheiro participará da sucessão do outro.
O inciso I prevê a hipótese de o companheiro ou companheira con-
correr com os filhos comuns estabelecendo que terá direito a uma cota
equivalente à que for atribuída ao filho.
O inciso II refere-se à hipótese de o companheiro ou companheira
concorrer com descendentes exclusivamente do autor da herança, hipótese
em que caber-lhe-á somente a metade do que couber a cada um deles.
Havendo outros parentes sucessíveis, o companheiro ou companheira
terá direito a 1/3 da herança, nos termos do inciso III do mesmo artigo.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
79

Finalmente, o inciso IV dispõe que, inexistindo herdeiros sucessí-


veis, o companheiro ou companheira terá direito à totalidade da herança.
Verifica-se que o legislador não previu a hipótese de o companheiro
ou companheira concorrer com descendentes comuns e exclusivos do de
cujus, devendo essa lacuna ser preenchida pela jurisprudência.
A previsão legal refere-se à sucessão quantos aos bens adquiridos
onerosamente na constituição da união, excluídos todos os bens adqui-
ridos a título oneroso ou gratuito antes de sua constituição, consequen-
temente, na hipótese de o de cujus não deixar descendentes, ascendentes
ou colaterais até o 4º grau, o companheiro sobrevivente não terá direito à
sucessão dessa herança, que tornar-se-á jacente, devendo ser devolvida ao
município ou ao Distrito Federal se localizada na respectiva circunscrição,
ou à União, quando localizada em território federal nos termos do artigo
1.844 do CC.
Prevê o artigo 1.831 do Código Civil o direito real de habitação
somente para o cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens,
sem prejuízo da participação da parte que lhe cabe na herança relativa-
mente ao imóvel destinado à residência da família desde que seja o único
daquela natureza a inventariar.
Inexiste previsão de direito real de habitação para o companheiro ou
companheira, aplicando-se nesta hipótese a Lei 9.278 de 10/05/1996, que
se refere à união estável.
No dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, ajuizada pela Procuradoria
Geral da República, que buscou a declaração de reconhecimento da união
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e que os mesmos
direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos
aos companheiros nas uniões homoafetivas, e a Arguição de Descumpri-
mento de Preceito Fundamental nº 132, proposta pelo Governador do
Estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, reconheceu a união estável para
casais do mesmo sexo.
Os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowiski, Joaquim Barbosa,
Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello, Cezar Peluso, bem como
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
80

as ministras Cármem Lucia Antunes Rocha e Hellen Gracie, acompanha-


ram o entendimento do Ministro Ayres Britto pela procedência dos pedi-
dos com efeito vinculante, dando interpretação de acordo com a Consti-
tuição Federal para aplicação do artigo 1723 do Código Civil a qualquer
caso de reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo,
podendo assim constituir-se como entidade familiar.
Em decisão unânime aos 17/04/2012, os desembargadores da oitava
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro autorizaram a con-
versão em casamento da união estável de um casal homossexual que vive
em união estável há oito anos, cujo pedido havia sido indeferido pelo Juízo
da Vara de Registros Públicos da Capital.
O Desembargador Luiz Felipe Francisco, relator do processo, afir-
mou que a Constituição Federal determina que seja facilitada a conversão
da união estável em casamento e o Supremo Tribunal Federal determinou
que não fosse feita qualquer distinção entre uniões hétero e homoafetivas,
não havendo portanto que se negar aos requerentes a conversão da união
estável em casamento.
O novo Código Civil regulamenta a união estável, a ela atribuindo
efeitos patrimoniais decorrentes da vontade das partes e causa mortis entre
homem e mulher. Evidentemente, o Código não esgota todas as questões
referentes à união estável, sendo certo que as lacunas devem ser preenchi-
das pela jurisprudência como já vem ocorrendo, notadamente com relação
às uniões homoafetivas. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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A LESÃO NOS CONTRATOS SOB


A LUZ DO CÓDIGO CIVIL
Cristiane da Silva Brandão Lima¹

INTRODUÇÃO

O instituto tem origens remotas, em que pese ter sido, por muitos
anos, abandonado e repudiado por alguns doutrinadores conservadores,
influenciados pelo liberalismo individualista dominante no século XIX.
Desde o seu nascimento, com a Lei Segunda de Diocleciano e Ma-
ximiliano (documento cuja autenticidade é discutida), no ano de 285, até
os dias atuais, a lesão contratual sofreu inúmeras modificações em sua con-
ceituação, natureza jurídica, campo de abrangência e efeitos.
No decorrer dos anos, pudemos notar, em leis extravagantes, a volta
paulatina do instituto em nosso ordenamento jurídico, fazendo-nos pres-
sentir a sua positivação no Novo Código Civil.
Finalmente, o espírito de equidade e justiça sob o qual nasceu o
instituto da lesão permanecerá vivo, no propósito de reprimir a exploração
de um contratante sobre o outro, encerrando a discussão a respeito da in-
tervenção do Estado na liberdade contratual.
Os problemas cotidianos serviram para confirmar o óbvio: as pes-
soas são diferentes, necessitando as mais fracas de proteção, devendo o
princípio da autonomia da vontade, presente nas relações contratuais,
sucumbir aos princípios do intervencionismo estatal, agora corporifica-
dos na redação do artigo 157 do novo Código Civil, o qual será o foco
maior de nossa atenção.

¹ Juíza de Direito Regional do 2º NURC.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
82

DESENVOLVIMENTO

Trata-se o instituto da lesão contratual de conceito puramente ba-


seado no critério da equidade, o que se extrai da expressão humanum est
contida no texto original do diploma legal supracitado, representando uma
ruptura total no respeito sagrado à fórmula instrumental.
Tal critério correspondia apenas ao aspecto objetivo do conceito, ou
seja, preocupava-se em evitar a aparente desproporção entre as prestações nos
contratos comutativos, bastando a demonstração de que o preço da venda
havia sido inferior à metade do valor real da coisa - lesão ultra dimidiam.
Não há dúvidas de que o instituto nasceu das Constituições de Dio-
cleciano e Maximiliano, quais sejam, a do ano de 285 (acima transcr ita)
e a do ano de 294 (Lei Oitava do Código de Justiniano), sendo que esta
última se resumia apenas a uma ressalva ou exceção encaixada no final do
rescrito, fazendo referência à primeira.
Entretanto, quando inúmeros juristas, romanistas e latinistas anali-
saram o texto original na sua forma e fundo, surgiu a seguinte indagação: o
instituto teria nascido no terceiro século diretamente com a Constituição
de Diocleciano e Maximiliano, como nos é relatado por alguns autores
como Silvio Rodrigues² e J. M. Leoni de Oliveira³; ou apareceu no sexto
século com a Codificação de Justiniano, que teria lhe acrescentado expres-
sões, modificando o seu texto original?
Embora houvesse um grande número de tratadistas de Direito Ro-
mano e de estudiosos no assunto que se inclinavam pela autenticidade dos
textos originais da Lei Segunda, alguns autores citados por Caio Mário,
como Chretien Thomasius, Girard, René Dekkers, De Page, dentre outros,
se esforçaram em demonstrar o contrário.
O péssimo estilo de redação e a linguagem entrecortada, como se
não tivesse sido lançada por um só impulso, indicam a interpolação de

² PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos Contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 216.

³ OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. Direito Civil: Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1999, v. 2, p. 857.
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textos, uma vez que não se poderia acusar Justiniano ou Triboniano (seu
compilador) de não terem domínio sobre a língua latina.
Por essas razões, Caio Mário convenceu-se da interferência de Jus-
tiniano no conceito original, o qual, na opinião do autor, “teria prefe-
rido, talvez para lhe dar o prestígio da ancianidade, atribuí-lo àqueles
4
imperadores a baixar ele próprio um ato que lhe desse origem”.
Ademais, é consente entre todos os autores, até mesmo entre aque-
les que defendem a autenticidade dos textos, que, após essas Consti-
tuições, não foi colocado em prática o instituto criado, proibindo-se a
rescisão dos contratos com base na lesão.
De tudo isso, resta bastante frágil a tese da autenticidade das duas
Constituições de Diocleciano e Maximiliano, ficando, entretanto, tudo
na base das suposições, em razão da grande deficiência de informações
que se tinha na Idade Média.
A fase codificada no Brasil caracterizou-se pelo movimento de re-
pulsa à instituição, inspirado no liberalismo individualista presente entre
nós no final do século XIX.
Nesse sentido, o último e efetivo golpe foi dado por Clóvis Bevi-
láqua, excluindo o instituto da lesão quando da elaboração do Código
Civil de 1916, sob o argumento de que os Códigos modernos assim
haviam procedido.
A doutrina moderna, impulsionada por mudanças políticas, sociais
e econômicas ocorridas no século XX, buscou adaptar o direito à moral,
aplicando o princípio da boa-fé nos contratos, em busca de justiça e com
vistas a evitar a exploração do homem mais fraco pelo mais forte.
A despeito da discussão, através de leis posteriores ao Código Civil
de 1916, como a Lei do Inquilinato (Decreto nº 24.150, de 20/04/1934)
e a Legislação Trabalhista (Decreto-Lei nº 5.452/1943), percebemos a ten-

4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos Contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 23/24.
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dência moderna de abandono ao individual, em busca do social, através da


intervenção do Estado nas relações privadas.
O movimento de descodificação do Código Civil, com a promul-
gação de leis extravagantes como a Lei do Inquilinato, Lei Trabalhista e de
Proteção à Economia Popular, propiciou, paulatinamente, a transformação
do Direito Civil.
Todas têm em comum a derrogação dos cânones individualistas do
Código Civil, pregando o intervencionismo estatal, a realização da equi-
dade e o sentido de proteção ao mais fraco, cumprindo uma finalidade
humanizadora, de acordo com as ideias predominantes do nosso tempo.
O conceito de autonomia da vontade, baseada no princípio pacta
sunt servanda, perde terreno em favor do interesse coletivo, sob invocação
da ideia de boa-fé e da regra moral.
Isso não quer dizer que a vontade individual deve ser ignorada, uma
vez que “a livre iniciativa é consagrada como fundamento da República, ao
lado dos valores sociais do trabalho (CF /88, art. 1º, IV) e da dignidade da
5
pessoa humana (CF/88, art 1º, III)” . Apenas deve se compatibilizar com
finalidades gerais, voltadas à coletividade.
Inevitável, portanto, a elaboração de um Novo Código Civil que
retratasse bem os novos anseios da sociedade, incluindo institutos como a
lesão, inspirada naquela tendência socializadora.
A lesão, finalmente, foi positivada no artigo 157 do novo Código Civil.
O novo Código Civil reflete bem o abandono aos dogmas individu-
alistas vigentes no século XIX.
Os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos
contratos começaram a ser mitigados, quando se percebeu que não é a
liberdade das partes que promove o equilíbrio contratual, mas sim a igual-
dade entre elas. Surge, então, a força oposta ao princípio da autonomia da
vontade, chamado dirigismo contratual, que caracteriza o Estado Moder-
no, intervencionista, ao contrário do Estado Liberal Clássico.
5 NEVARES, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo Código Civil” in Tepedino,
Gustavo (Coordenador). A parte geral do novo Código Civil. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 2002, p. 274.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
85

Nesse contexto, tornou-se necessária a estruturação do novo Direito


Civil, com base em princípios mais democráticos e socializadores, com vistas
a garantir o equilíbrio entre as partes e promover o bem-estar social, em con-
traposição àqueles princípios individualistas do Código Civil de 1916.
O Novo Código prevê expressamente a função social dos contratos
em seu artigo 421.
A função social dos contratos deve traspassar a esfera dos meros inte-
resses individuais, para atender à finalidade precípua de atingir o bem-estar
social. Deve instrumentalizar a circulação de riqueza da sociedade, promo-
vendo o equilíbrio contratual, com vistas a evitar o acúmulo daquela em
poucas mãos.
Evidencia-se, portanto, o duplo papel da cláusula geral da função
social do contrato: além de representar uma limitação ao exercício da auto-
nomia privada quando esta se mostrar incompatível com as exigências da
socialidade (conotação adjetiva), pode ser considerada como implícita no
próprio conceito de contrato (conotação subjetiva).
Caberá ao juiz, no exercício de sua função jurisdicional, dar concre-
ção a esta norma-princípio.
A boa-fé apresenta-se marcada pela ambivalência, a partir de duas
vertentes: subjetiva – a qual compreende um estado interior ou psico-
lógico relativo ao conhecimento, desconhecimento, intenção ou falta de
intenção de alguém, como ocorre, por exemplo, em matéria de posse – e
objetiva, correspondente a um dever de conduta contratual, que obriga a
certa atitude ao invés de outra, envolvendo deveres, dentre os quais os de
informação correta, esclarecimento, lealdade e assistência, dentre outros.
Em termos clássicos, a boa-fé contratual foi invocada apenas sob a
ótica subjetiva, consistindo na ausência de dolo, maculador dos atos e ne-
gócios jurídicos. O que se esperava dos contratantes era a intenção de agir
com lealdade ou a ignorância de estar causando um prejuízo ao outro.
No entanto, esta boa-fé subjetiva não se mostrou suficiente para ga-
rantir a função social dos contratos. Deseja-se, agora, que os contratantes
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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se comportem, durante toda a vida do contrato, com lealdade e honesti-


dade, como impõe a boa-fé objetiva, que significa, acima de tudo, respeito
ao outro contratante. Não basta o contratante ter a intenção, mas deve agir
com boa-fé. Esta deve se externar através dos comportamentos, atitudes
que a demonstrem. Cuida-se de um dever jurídico que as partes deverão
assumir, sob pena de intervenção judicial. Conforme Marcelo Guerra Mar-
tins, “trata-se de uma regra de conduta que impõe às partes determinado
comportamento (lealdade, retidão, etc.), não se perquirindo a consciência
6
ou convicção da prática de um ato conforme o direito” .
A norma-princípio, prevista expressamente no artigo 422 do Novo
Código Civil, tem aplicabilidade em três momentos dinâmicos do con-
trato: pré-contratual (ex: propagandas), contratual e pós-contratual (ex:
proibição de violação de sigilo profissional).
Assim como cabe ao juiz analisar cada caso em concreto e criar pre-
cedentes a respeito da função social do contrato, a aferição da boa-fé obje-
tiva carreia para o magistrado um acréscimo significativo de sua responsa-
bilidade, visto que o art. 422 é norma vaga, semanticamente aberta.

CONCLUSÃO

O ressurgimento da lesão no ordenamento jurídico pátrio é de gran-


de importância, pois representa um avanço da coletividade rumo ao social,
mediante a intervenção do Estado nas relações contratuais, nas quais o
princípio da autonomia da vontade triunfava por influência do liberalismo
individualista do século XIX.
A própria história, marcada por guerras e dificuldades econômicas,
se incumbiu de mudar a visão egoísta predominante no século XIX, para
dar lugar a essa tendência socializante do Direito, chamada de dirigismo
7
contratual, na qual se busca a justiça nas relações contratuais, mediante a
intervenção do Estado.
6 MARTINS, Marcelo Guerra. Lesão Contratual no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar,

2001, p. 158.

7Expressão de Milton Femandes, “Problemas e Limites do Dirigismo Contratual”, citado por Caio Mário da Silva
Pereira, Lesão nos Contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 204).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Algumas legislações posteriores ao Código Civil, como a legislação


trabalhista, a Lei do Inquilinato, a Lei de Proteção à Economia Popular e
o Código de Defesa do Consumidor, trouxeram mecanismos de proteção
ao hipossuficiente, sinalizando esta transformação e indicando a volta do
instituto da lesão ao direito positivo brasileiro.
Nesse contexto, foi promulgada a Constituição Federal de 1988,
que, instituindo o Estado Democrático de Direito, destina-se, sobretudo,
“a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e interna-
8
cional, com a solução pacífica das controvérsias ( ... )”.
Dessa forma, o Direito Brasileiro está caminhando para o que realmen-
te deve ser: um instrumento de proteção às minorias, buscando justiça e paz,
mediante a realização concreta da igualdade formal entre os particulares.
Outrossim, a inclusão do instituto da lesão no novo Código Civil
veio para cumprir este papel de democratização do Direito Civil. 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil (1916). Coordenação do Prof. Dr. Mauricio


Antonio Ribeiro Lopes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. 7. ed. Revista, atual. e amp. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código
Civil. Novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Auriverde, 2002.

8 BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. 7. ed. Revista, atualizada e

ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, preâmbulo.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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COSTA, Judith Martins; BRANCO, Gerson Luiz Canos. Diretrizes


Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
MARTINS, Marcelo Guerra. Lesão contratual no direito brasileiro.
Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 2001.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito
das obrigações - 2 parte. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
NEVARES, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo
no novo Código Civil”. In: TEPEDINO, Gustavo (Coordenador). A Parte Geral
do Novo Código Civil. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 2002, p. 271-283.
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. Direito Civil: Teoria geral do Di-
reito Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, v. 2.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 1.
_______ . Lesão nos contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
REALE, Miguel. O projeto do Novo Código Civil. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1999.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil - Parte geral. 28. ed. Rio de Janei-
ro: Saraiva, 1998, v.1.
_______ . Dos Vícios do Consentimento. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 1989.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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UMA LEITURA DO PAPEL


JURISDICIONAL A PARTIR DO
NOVO CÓDIGO CIVIL
Cristiane Tomaz Buosi¹

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo expor e desenvolver a ideia


apresentada em uma das palestras ministradas no Curso “10 Anos do Có-
digo Civil, Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos”, promovido
pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
O tema escolhido para ser abordado refere-se à Palestra Legalidade
e Eficácia Constitucional, ministrada pelo Exmo. Desembargador Sylvio
Capanema de Souza, em 29 de março de 2012.

DESENVOLVIMENTO

Considerações históricas

O Código Civil promulgado em 10 de janeiro de 2002 revogou o


antigo Código Civil de 1916 e trouxe consigo, mais que inovações legisla-
tivas, a consolidação de uma nova ordem jurídica e principiológica a guiar
as relações interpessoais no ordenamento jurídico pátrio.
Historicamente, o Código Civil anterior, influenciado pelas teorias
de Montesquieu e do Estado Liberal decorrentes da Revolução Francesa, e

¹ Juiza de Direito da 4ª Vara Cível da Comarca de Barra Mansa, falecida em 2012.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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calcado nos ideais individualistas e patrimonialistas dos séculos XXVIII e


XIX, à semelhança do Código de Napoleão de 1904, retratou uma ordem
jurídica fundada nos princípios da autonomia da vontade e da imutabili-
dade contratual, em razão da então indiscutível força obrigatória dos con-
tratos. Naquela ordem jurídica, o marido era considerado o representante
legal da família, já que a mulher casada era considerada legalmente relati-
vamente incapaz; a propriedade tangenciava o caráter absoluto, uma vez
que que sofria pouquíssimas limitações, e o juiz apresentava-se, ao julgar
os conflitos civis, neutro e impessoal, em razão da prevalência exacerbada
do positivismo na resolução dos conflitos.
Com o surgimento de uma nova ordem jurídica fundada no Estado
social já a partir da segunda metade do século XX, consubstanciada no orde-
namento pátrio através da Constituição Federal de 1988, a qual foi apelidada
por Ulisses Guimarães como “Constituição Cidadã”, já que incluiu dentre
seus alicerces a preservação da dignidade humana e a solidariedade social, e
incluiu em seu texto uma Carta de Princípios baseada na preservação dos
direitos fundamentais, os novos valores fundamentais dela decorrentes pas-
saram a inspirar os legisladores infraconstitucionais que lhe sucederam, bem
como os intérpretes do direito, os quais entenderam que essa nova ordem
jurídica constituía uma unidade de pensamento, a partir da qual deveriam
ser solucionados os conflitos e interpretadas as normas jurídicas.
Desse ideal decorreram as teorias que defendiam os princípios da uni-
dade interpretativa, da eficácia integrativa e da força normativa da Constitui-
ção Federal. Segundo estas teorias, os valores conflitantes protegidos pela Lei
Maior e alicerçados em princípios dotados de força normativa deveriam ser
utilizados como métodos de interpretação e harmonizados entre si, tanto na
criação, como na interpretação das normas infraconstitucionais, bem como
durante a resolução dos conflitos concretos pelos juízes, os quais, por sua vez,
deveriam fundar-se, ao prestar a jurisdição, na busca pela justiça e solidarie-
dade social ou igualdade real entre as partes conflitantes.
Também influenciou tanto a elaboração, como ainda influencia a
interpretação do novo Código Civil a transformação da teoria da utilida-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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de, de Ulpiano, o qual defendia a separação completa do direito público


e privado em teoria da utilidade preponderante. Hoje, segundo esta nova
doutrina, os direitos público e privado se interpenetram e complementam,
do que decorre o que é chamado de publicização ou constitucionaliza-
ção do Código Civil e a teoria do direito civil constitucional, segundo a
qual há uma releitura dos institutos de direito privado à luz dos princípios
constitucionais; integração esta que ocorre em benefício da sociedade e do
Estado. Nesta seara, defende Gustavo Tepedino:
O Código Civil de 2002, embora desenhado sob a égide do para-
digma patrimonialista, imaginando ciosamente um mundo pri-
vado que devesse se resguardar de ingerências estatais, fazendo por
isso mesmo concessões por meio de restrições pontuais em cláusulas
gerais, desponta em contexto axiológico que altera radicalmente o
sentido emprestado para autonomia privada e para a aquisição e
utilização dos bens. Com efeito, vive-se hoje cenário bem distinto:
a dignidade da pessoa humana impõe transformação radical na
dogmática do direito civil, estabelecendo uma dicotomia essencial
entre as relações jurídicas existenciais e as relações jurídicas patri-
moniais. Torna-se obsoleta a summa divisio que estremava, no
passado, direito público e direito privado (...).²

O perfil do Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002 refletiu aquelas mudanças trazidas pela


Constituição Federal de 1988.
Os princípios constitucionais em questão puderam ser revistos e
aplicados em harmonia com os dispositivos legais previstos em todo o Có-
digo Civil, os quais, em muitos dos casos, apresentam um nítido caráter
valorativo-principiológico. Trouxe este, em seu bojo, novas técnicas legis-
lativas, através da utilização de cláusulas abertas a traduzir espécie de metas

² TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. In: http://pt.scribd.com/doc/6486487/Nor-


mas-Constitucionais-e-Direito-Civil-Artigo-de-Tepedino [Acesso em 05/04/2012].
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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jurídicas a serem alcançadas e espaço para os juízes favorecerem a sua apli-


cação, ao preenchê-las e aplicá-las no caso em concreto, o que transferiu
ao Judiciário um importante papel político e mediador da esfera de direito
tutelada e posta à disposição do indivíduo, notadamente em proteção à
dignidade da pessoa humana e aos seus direitos da personalidade.
Dessa forma, em aplicação daquelas cláusulas abertas na prestação
da tutela jurisdicional, possibilitou o novo Código, na subsunção do fato
à norma pelo juiz, ater-se não apenas ao objeto em concreto tutelado, mas
também à profundidade de tutela daquele objeto, o qual, em potencial, seria
devido a todos os cidadãos. Autorizado está o Poder Judiciário, assim, a ope-
racionalizar, via pedido em concreto, o exercício do direito em questão.
Acerca da participação do poder Judiciário neste novo contexto ju-
rídico, ensina Luis Roberto Barroso:
O papel do Poder Judiciário, em um Estado constitucional demo-
crático, é o de interpretar a Constituição e as leis, resguardando
direitos e assegurando o respeito ao ordenamento jurídico. Em
muitas situações, caberá a juízes e tribunais o papel de construção
do sentido das normas jurídicas, notadamente quando esteja em
questão a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados e de
princípios. Em inúmeros outros casos, será necessário efetuar a
ponderação entre direitos fundamentais e princípios constitucio-
nais que entram em rota de colisão, hipóteses em que os órgãos
judiciais precisam proceder a concessões recíprocas entre normas
ou fazer escolhas fundamentadas.³
Apresentou o novo Código, em seu início, grande resistência doutri-
nária. Contudo, aos poucos, os novos paradigmas foram consolidando-se,
notadamente o reconhecimento da função social do direito. Ao recepcionar
os princípios constitucionais, consistiu este numa importante ferramenta

³ BARROSO, Luís Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva:Direito à Saúde, Forneci-


mento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. In: http://www.marceloabelha.com.
br/aluno/Artigo%20sobre%20controle%20judicial%20de%20politicas%20publicas%20de%20leitura%20obri-
gatoria%20para%20a%20turma%20de%20direito%20ambiental%20%20Luis%20Roberto%20Barroso%20
(Da%20falta%20de%20efetividade%20a%20judicializacao%20efetiva).pdf [Acesso em 29/06/2011].
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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para a construção de uma sociedade mais justa. Trouxe consigo, assim,


dentre os valores incorporados pelos operadores do direito uma visão mais
igualitarista e promocional do direito.

Os princípios do Código Civil e a Eficácia


Constitucional

Dentre os princípios trazidos pelo novo Código Civil, a favor da


garantia da eficácia da ordem jurídica constitucional supraelencada, des-
tacam-se o princípio da efetividade ou operacionalidade, segundo o qual
pode-se criar uma justiça concreta, através da aplicação da equidade ou
solidariedade na resolução dos conflitos; o princípio da boa-fé objetiva e
da probidade, previstos expressamente no artigo 422 do Código Civil, os
quais traduzem-se regra obrigatória e legal de interpretação dos contratos e
justa causa para a imposição de sanção, caso violado.
Os direitos da personalidade, corolários do princípio da dignidade
da pessoa humana, foram discriminados e tutelados, preventiva e repressi-
vamente, no Capítulo II, artigos 11 a 21, tornando-se legalmente absolu-
tos, intransferíveis, inalienáveis e imprescritíveis.
O artigo 187 trouxe a figura do abuso de direito como ato ilícito, a
qual gera responsabilidade civil a ser aferida objetivamente.
Também inovou o novo código ao trazer consigo a proteção do es-
tado de perigo e da lesão, previstos respectivamente nos artigos 156 e
157, como garantia de que os contratos já nasçam justos e equilibrados,
em proteção à vulnerabilidade da parte e em garantia à boa-fé objetiva na
sua execução. Tratam-se esses importantes exemplos da eficácia concreta
daqueles princípios constitucionais, supraelencados.
Também no que se refere aos Direitos Reais, inovou o novo Código
Civil ao garantir a preservação do meio ambiente, especialmente de sua flo-
ra, fauna e interesses históricos, como interesse geral e critério limitador à
utilização da propriedade; bem como ao proteger a finalidade social de sua
utilização, visando a impedir o abuso no direito de propriedade, conforme
se verifica pela leitura do artigo 1228 e parágrafos do Código Civil. Neste
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ínterim, observa-se que o exercício do direito à propriedade está condiciona-


do ao interesse social, e subsumida a este, o que demonstra estar a norma em
questão norteada pelo princípio constitucional da função social da proprie-
dade e dos contratos. Na mesma linha principiológica inovada pelo Código
ora em comento, os parágrafos 4° e 5° do referido artigo constituem-se cláu-
sulas abertas e trazem a possibilidade de expropriação social de propriedade
não aproveitada ou subaproveitada, traduzindo-se como uma hipótese de
regulamentação e reconhecimento de preponderância do direito possessório
em detrimento do direito de propriedade, quando em colisão de interesses, e
com base no interesse social, a critério do juiz.
Outro exemplo de cláusula aberta a garantir eficácia à Carta cons-
titucional, o artigo 1035 do Código Civil mitiga a força normativa de
cláusulas contratuais que possam produzir efeitos que sejam reconheci-
dos judicialmente como prejudiciais aos interesses sociais. A autonomia
da vontade, assim, por esta nova ordem jurídica, só pode ser exercida nos
limites da função social do contrato, a fim de não se privilegiar o indivíduo
em detrimento da sociedade como um todo.
No campo do direito de família, no qual as críticas ao novo Código
foram mais contundentes, contudo, também trouxe esta inovação à ordem
jurídica e regulamentação dos princípios constitucionais, ao estabelecer,
dentre outras, a absoluta igualdade entre homens e mulheres, bem como
ao transformar o pátrio poder, antes só pertencente ao homem, enquan-
to chefe da família, em poder familiar, agora pertencente ao homem e à
mulher, em nítida influência do princípio constitucional de proteção ao
melhor interesse do menor.

CONCLUSÃO

Verifica-se, via de consequência que, passados 10 anos do início


da vigência do novo Código Civil, consolidou-se este, tanto na doutrina,
quanto através da interpretação de suas cláusulas pelos Tribunais, como
exemplo de efetivação de nova ordem jurídica, fundada no caráter público
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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do direito e da Justiça, a qual, por sua vez, passou a ser vista como meca-
nismo não apenas de pacificação social, mas também como instrumento
de efetivação de políticas públicas que visem à distribuição da justiça, não
mais apenas inter partes, mas agora também em consonância com os an-
seios e necessidades de toda a sociedade, a qual, ainda que indiretamente,
irá suportar os efeitos das decisões judiciais, e precisa ser considerada na
resolução dos casos em concreto.
É necessária uma abordagem do fenômeno jurídico, não apenas
como um conjunto de regras positivadas, mas também como um instru-
mento de inserção social do indivíduo, e efetivação daquelas políticas de
acesso a direitos fundamentais sociais, como base e meta essencial do regi-
me democrático.
Consolidou-se, assim, a implementação, não apenas de um novo
código de normas, mas de toda uma nova ordem jurídica, através da cons-
trução de um novo direito, a partir do direito positivo criado pela nova le-
gislação ora em estudo; resultado do reconhecimento normativo dos novos
valores vigentes a partir da segunda metade do século XX no Brasil e no
mundo. Para tanto, impossível a aplicação do Código Civil sem a inspira-
ção dos modelos constitucionais, cuja interpenetração normativa favorece
não apenas a legalidade, como também a eficácia constitucional na aplica-
ção do Código Civil, em harmonia com uma gestão de política jurisdicio-
nal de implementação de meios e resultados, e primada pelo princípio da
solidariedade social. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Novos Rumos, promovida pela Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro, em 29 de março de 2012.

SOUZA, Sylvio Capanema de. “Legalidade e Eficácia Constitu-


cional na Aplicação do Código Civil.” Palestra proferida no Curso 10
Anos do Código Civil – Aplicação, Desacertos e Novos Rumos, pro-
movida pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, em
29 de março de 2012.

TEPEDINO, Gustavo. “Normas Constitucionais e Direito Civil.”


In: http://pt.scribd.com/doc/6486487/Normas-Constitucionais-e-Direi-
to-Civil-Artigo-de-Tepedino [Acesso em 05/04/2012].
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10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Cristina Alcântara Quinto¹

Na palestra proferida no dia 30 de março de 2012 um dos temas


abordados foi: “A Responsabilidade Civil nos Dez Anos da Codificação
Civil na Construção da Doutrina e Jurisprudência.”
A teoria clássica da responsabilidade civil aponta a culpa como o
fundamento da obrigação de reparar o dano. Conforme aquela teoria, não
havendo culpa, não haveria obrigação de reparar o dano, o que fazia nascer
a necessidade de provar-se o nexo entre o dano e a culpa do agente.
Mais recentemente, porém, surgiu entre os juristas uma insatisfação
com a chamada teoria subjetiva (que exige a prova da culpa), vista como
insuficiente para cobrir todos os casos de reparação de danos: nem sempre
o lesado consegue provar a culpa do agente, seja por desigualdade econô-
mica, seja por cautela excessiva do juiz ao aferi-la, e como resultado, muitas
vezes, a vítima não é indenizada, apesar de haver sido lesada.
O direito passou então a desenvolver teorias que preveem o ressarci-
mento do dano, em alguns casos, sem a necessidade de provar-se a culpa do
agente que o causou. Esta forma de responsabilidade civil, de que é exem-
plo o art. 21, XXIII, d, da Constituição Federal do Brasil, é chamada de
teoria objetiva da responsabilidade civil ou responsabilidade sem culpa.
Apesar de a “responsabilidade contratual” e a “extracontratual” fun-
darem-se normalmente na culpa, há sim diferenças significativas entre elas.
Exemplificativamente, na culpa contratual examina-se o descumprimento
da obrigação como seu fundamento, enquanto que na culpa extracontratual
consideram-se a conduta do agente e a sua culpa em sentido amplo (dolo,

¹ Juíza de Direito do Juizado Especial Civil da Comarca de Itaboraí.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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negligência, imprudência ou imperícia). Mais um indicativo de que há dis-


tinções entre ambas é o fato de o atual Código Civil disciplinar ambas as
responsabilidades em seções diversas do seu texto. Os dispositivos nucleares
de uma e outra estão nos artigos 389 e 927, caput, do Código de 2002.
Como a própria denominação está a indicar, a “responsabilidade
contratual” surge em decorrência da “inexecução” ou da “execução imper-
feita” de um contrato. Parafraseando MIGUEL REALE, ”o vínculo de atri-
butividade existente entre os sujeitos corresponde a um “ato jurídico negocial”
que é violado, dando origem à responsabilidade. Se a “responsabilidade contra-
tual” nasce do descumprimento de uma obrigação criada pelo negócio jurídico,
ela possui um âmbito de incidência bastante definido, que é o dos contratos. A
“responsabilidade extracontratual”, ao contrário, consolida-se com a violação a
uma obrigação contida na lei”.
Em verdade, é no campo probatório que reside uma importante
distinção entre ambas.
De regra, a “responsabilidade contratual” gera a inversão do ônus
da prova da culpa, favorecendo a parte lesada pelo descumprimento do
contrato. Para que surja o direito à indenização, normalmente basta que o
contratante demonstre a inadimplência do outro e os danos que daí decor-
ram. Assim agindo, a culpa se presume.
Já na “responsabilidade extracontratual”, a prova da culpa ordinaria-
mente cabe àquele que reclama a reparação do prejuízo, exceto nas situa-
ções de responsabilidade objetiva. Além de demonstrar os demais pressu-
postos da responsabilidade civil (conduta, nexo causal e dano), em regra a
vítima estará obrigada a provar também a culpa do agente em uma das suas
modalidades: dolo, negligência, imprudência ou imperícia.
A teoria da responsabilidade civil distingue entre a obrigação do de-
vedor no sentido de cumprir o que estipulou com o credor (num contrato)
e a obrigação de reparar o dano causado por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência (em direito civil, o chamado delito). Dá-se
ao primeiro caso o nome de responsabilidade contratual e ao segundo,
responsabilidade delitual, aquiliana ou extracontratual.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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A partir do momento em que a apuração da culpa – ou melhor di-


zendo, a necessidade de prova da conduta ilícita para que surgisse o direito
à indenização, – deixava muitos dos casos apresentados aos tribunais sem
a devida resposta, isto ocasionou a insatisfação social, que, por seu turno,
acabou por impulsionar estudos a respeito de outros fundamentos para a
responsabilidade civil que não a culpa.
Foi no direito francês, com Saleilles e Josserand, que a teoria da
responsabilidade objetiva foi construída e definitivamente imiscuída nos
demais ordenamentos jurídicos.
A necessidade dessa nova interpretação, como mencionado, remon-
tou à Revolução Industrial, em que um número cada vez maior de aci-
dentes de trabalho tornavam indenes os prejuízos daí resultantes, dada a
impossibilidade de demonstração da culpa por parte do patrão, valendo
ainda exemplos como os casos de transportes de passageiros.
É importante a análise dos pontos em referência de modo a de-
monstrar os princípios que inspiram a teoria da responsabilidade objetiva,
quais sejam a boa-fé e a equidade, como forma de propiciar a entrega de
uma tutela jurisdicional mais justa.
Com efeito, a partir do momento em que a evolução das relações
sociais, em confronto com preceitos que inspiraram legisladores de outras
épocas, torna insuficientes os meios para se obter a indenização corres-
pondente ao dano experimentado, não se deve negar que é preciso rever
conceitos antigos.
Segundo essa teoria, o dever de indenizar não mais encontra am-
paro no caráter da conduta do agente causador do dano, mas sim no risco
que o exercício de sua atividade causa para terceiros, em função do provei-
to econômico daí resultante.
Portanto, consoante referido posicionamento, vale dizer que a parte
que explora determinado ramo da economia, auferindo lucros dessa ativi-
dade, deve, da mesma forma, suportar os riscos de danos a terceiros.
Deve-se mencionar que a insatisfação produzida pela exigência de
demonstração da culpa na responsabilidade subjetiva foi fator preponde-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
100

rante para a mudança de entendimento sobre os elementos caracterizado-


res do dever de reparar o dano.
No direito brasileiro a teoria da responsabilidade sem culpa foi ga-
nhando espaço primeiramente em casos específicos, como ocorria no Có-
digo das Estradas de Ferro, que em seu artigo 17 previa expressamente
o seu acolhimento, valendo ainda a ressalva para a Lei dos Acidentes de
Trabalho e o Código Brasileiro do Ar.
Posteriormente, ganha importância e relevo a interpretação extensi-
va dada ao citado artigo 17 do Código das Estradas de Ferro, no sentido
de reconhecer objetiva a responsabilidade em praticamente todos os casos
de acidentes envolvendo transportes. Contudo, no Código de Defesa do
Consumidor o tema veio a ganhar novos contornos, em que passou a ser
reconhecida expressamente a responsabilidade independente de culpa do
fornecedor de produtos ou serviços (arts. 12 a 17, CDC), baseada na teoria
do risco-proveito.
Neste contexto, o atual Código Civil tem relevo indiscutível, pois
proporcionou o entendimento de que a teoria da responsabilidade objetiva
efetivamente incorporou-se ao direito pátrio.
Da análise dos artigos da Lei nº 10.406/2002 que tratam da res-
ponsabilidade civil, pode-se dizer que as inovações são deveras significati-
vas, mormente no que diz respeito aos elementos caracterizadores ou que
fundamentam o dever de reparar o dano causado, conquanto é de fácil
constatação que, em diversos casos, não mais existe a necessidade da de-
monstração de culpa.

Assim, o fato, e não a culpa, torna-se o elemento mais importante


para que surja o dever de reparar o dano causado, o que implica radical
evolução a respeito da responsabilidade civil.
O Código Civil em vigor, em seus artigos 186 e 927, caput, conservou
a regra geral da responsabilidade civil subjetiva, fundada na teoria da culpa.
Entretanto, o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil esta-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
101

belece uma verdadeira cláusula geral ou aberta da responsabilidade objeti-


va. Inova no sentido de acolher a teoria do risco criado, ou seja, a obrigação
de indenizar ainda que a conduta não seja culposa.
Neste sentido a responsabilidade incide nos casos em que a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza,
riscos para o direito de outrem. É necessário, portanto, que estejam presen-
tes os demais requisitos, quais sejam, a ação, nexo de causalidade e dano.
A responsabilidade civil objetiva caracteriza-se com a demonstração
de três requisitos: conduta (ação ou omissão), dano e nexo de causalidade,
não sendo exigido, portanto, a demonstração da culpa do agente.
Verifica-se, por fim, uma inovação no campo do direito positivo,
a teoria do risco criado. Esta teoria constitui uma questão de socialização
dos riscos, pois, o dano decorrente da atividade de risco recairá, sempre, ou
no seu causador, ou na vítima, sendo forçoso reconhecer ser injusto que o
prejudicado seja aquele que não teve como evitar o dano. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
102

APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS E


CLÁUSULAS GERAIS NAS RELAÇÕES
NEGOCIAIS E REAIS IMOBILIÁRIAS –
O USO ANORMAL DA PROPRIEDADE
Daniela Reetz de Paiva¹

INTRODUÇÃO

O Código Civil de 2002 trouxe um grande número de cláusulas


gerais e conceitos indeterminados² , fato este que, no início, causou perple-
xidade e medo em grande parte dos operadores do Direito.
A existência do duplo grau de jurisdição, os mecanismos próprios
de limitação do poder e o tempo provaram, contudo, que não havia mo-
tivo para tanto medo.

¹ Juíza de Direito do III Juizado Especial Cível - Capital.

² “Na verdade, o tema das cláusulas gerais relaciona-se com o movimento de descodificação que marca o fim do
século XX, e constitui técnica legislativa que permite dotar de mobilidade o sistema jurídico, destacando a ati-
vidade do intérprete em detrimento do legislador, que se abstém de tipificar condutas, em benefício da maior sin-
tonia entre os fatos e o fenômeno jurídico. Como bem sintetiza Heloísa Carpena, ‘a legislação por cláusulas ge-
rais permite, em última análise, a constante atualização do ordenamento, dando flexibilidade ao julgador para
decidir sobre novas e peculiares situações de conflito, que não poderiam ser previstas na lei ou seriam conduzidas
a uma situação injusta. Contrapõe-se, como se percebe claramente, ao dogma da completude do ordenamen-
to e à sua pretensão de atemporalidade, alicerces do positivismo e da Escola da Exegese que lhe deu sustentação’.
(...) Desde então, tem sido observada a presença, nos códigos civis mais recentes e nas leis especiais, de nor-
mas que buscam a formulação da hipótese legal mediante emprego de conceitos cujos termos têm sig-
nificados intencionalmente imprecisos e abertos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados.
(...) Muito embora as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados possu-
am traços semelhantes, tais como o alto grau de ‘vagueza semântica’ e o ‘reenvio a standar-
ds valorativos extrassistemáticos’, certo é que se distinguem, especialmente, no plano funcional.
Enquanto os conceitos formados por termos indeterminados sempre integram a descrição do ‘fato’ em exame, carreando
ao juiz a simples tarefa de precisar o que a sociedade onde vive tem para si sobre determinada expressão (a liberdade do
aplicador se exaure na fixação da premissa), as cláusulas gerais funcionam como um instrumental à aplicação do direito
propriamente dito, impondo ao magistrado a pesquisa de soluções dentro do próprio sistema, através da análise da juris-
prudência e/ou da doutrina, no intuito de criar o regramento aplicável ao caso concreto. As cláusulas gerais, do ponto de
vista estrutural, ‘constituem normas (parcialmente) em branco, as quais são completadas mediante a referência a regras
extrajurídicas’. A sua concretização exige que o juiz seja ‘reenviado a modelos de comportamento e a pautas de valoração
que não estão descritos nem no próprio ordenamento jurídico, podendo ainda o juiz ser direcionado pela cláusula geral
a formar normas de decisão, vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um padrão social, assim
reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta.” (Lautenschläger, Milton Flávio de Almeida
Camargo, in Abuso de Direito, Ed. Atlas – 2007 – p. 73-78).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Ao revés, hodiernamente pode-se concluir que a opção legislativa


decorreu da evolução histórica de nossa sociedade e se mostrou acertada
ao permitir aos juízes uma interpretação mais ampla e casuística das nor-
mas aplicáveis à lide, além de conferir certa mobilidade à jurisprudência,
fator essencial em tempos de globalização.
Parcela dessas cláusulas gerais e/ou conceitos indeterminados é en-
contrada no ramo do direito de vizinhança, mais especialmente no uso
anormal do direito de propriedade.

O uso anormal da propriedade

Consoante o disposto no artigo 1228 do Código Civil, “O proprie-


tário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam pre-
servados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora,
a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio his-
tórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer
comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudi-
car outrem. (Grifos meus) .³

³ “No art. 1.228 caput o diploma civil traçou o conteúdo econômico e o jurídico do direito de pro-
priedade. Em seguida, no parágrafo primeiro, erigiu os suportes para exercício do direito, condiciona-
do às suas finalidades econômicas e sociais, ressaltando, ainda, o respeito à preservação do meio ambiente.
Agora, volta-se para o exercício do direito, que se reprime, quando configurado o animus nocendi. Inibe a prática de atos
cujo móvel é causar mal a outrem. Penetramos, aqui, em aplicação da teoria da abuso de direito. Nesse passo a jurispru-
dência francesa, que impõe restrições aos atos abusivos do proprietário, que se tipificam quando ele exerce seu direito sem
um interesse sério ou visando prejudicar a outrem (Cf. Pierre Voirin, Manuel de Droit Civil, t. 1, 23ª Ed. P. 245, nº 508).
Em rápida síntese, lembramos que a teoria do abuso do direito está assentada na concepção relativista dos direitos, em cuja siste-
matização teórica deparamo-nos com duas correntes: a) a subjetivista, que vacila entre dois critérios: o intencional e o técnico. Pelo
primeiro, o abuso pressupõe o ânimo de prejudicar; no segundo, o exercício culposo; a objetivista divide-se em dois critérios, a sa-
ber: o econômico, em que o abuso se desenha sempre que o direito é exercido sem legítimo interesse, e o teleológico, quando não
se exerce conforme sua destinação econômica e social (Cf. Marco Aurélio S. Viana, Curso, cit. Parte Geral. V. 1, Ed. 2001, p. 316).
Como já observado, foi no direito de propriedade, ‘por ser mais propício ao exercício anormal pela significação que lhe se atribuía, que,
primeiramente, se aplicou o princípio da relatividade’ (Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, 3ª Ed., nº85). É o clássico caso
Bayard: um proprietário de terreno vizinho ao campo de atracação de dirigíveis edificou, sem qualquer interesse, impondo manifesto
perigo para o pouso das aeronaves, enormes torres. Assim agindo ele estava exercendo de modo anormal seu direito de propriedade (...)
(Viana, Marco Aurélio S. In Comentários ao Novo Código Civil – Dos Direitos Reais – volume XVI, Ed. Forense, 2003, p. 44-46).
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Ressalte-se, ainda, a regra do artigo 1277: “O proprietário ou o pos-


suidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudi-
ciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela
utilização de propriedade vizinha. Parágrafo único. Proíbem-se as interfe-
rências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio,
atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites
ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”.
Em priscas eras, o direito de propriedade era absoluto. Atualmente,
como todo e qualquer direito, deve ser exercido de forma ponderada com
os demais interesses em jogo, dando-se prioridade ao coletivo e não mais
ao individual.
O exercício do direito de propriedade passou, portanto, a ser lícito
apenas em seu uso normal.
O conceito, contudo, da normalidade ou anormalidade4 do uso da
propriedade é aberto, motivo pelo qual apenas no caso concreto poder-se-á
concluir pela ocorrência ou não de atos nocivos e/ou interferências preju-
diciais juridicamente relevantes.
Passo, pois, à análise de dois casos concretos, por mim julgados,
quando concluí pela ocorrência do uso anormal da propriedade.

4 “O uso anormal da propriedade, por sua vez, é aquele que ultrapassa os limites do que deve ser tolerado pela pessoa mediana,

e que também só pode ser aferido na situação concreta. Seria o caso, por exemplo, do ocupante de um prédio que nele instalasse
uma marcenaria cuja serra fosse excessivamente ruidosa, ou que todos os dias nele queimasse lixo, enchendo a vizinhança de
fumaça. Ou, ainda, que viesse a fazer escavações tão profundas que estivessem ameaçando de desabamento os prédios contí-
guos. Nesses casos, de modo geral, o vizinho prejudicado pode exigir que cesse a atividade que está causando a perturbação.
E veja-se que o fato do vizinho que causa o incômodo ter se instalado primeiro na área não é suficien-
te para justificar a tolerância dos incômodos causados. Como bem esclarece Hely Lopes Meirelles, a pré-ocu-
pação do local não atribui ao vizinho o direito de perturbar o sossego, a saúde ou a segurança da vizinhan-
ça, por isso que a anterioridade que poderia justificar a manutenção do uso que incomoda não é a individual e
acidental, mas sim aquela prevista de modo coletivo, nas normas municipais referentes ao zoneamento do bairro em questão.
Seria o caso, por exemplo, da fábrica ruidosa que se instalou em bairro destinado, pelas normas de zoneamento, à instalação de
indústrias.
(...) Por outro lado, não se pode esquecer que é possível que um certo uso que se dê ao imóvel, inobstante poder ser enquadrado
como anormal, podendo causar prejuízos aos vizinhos, ser socialmente necessário. E aí, levando-se em conta a função social da
propriedade, o limite do que deve ou não ser permitido deve ser visto não mais apenas em função da normalidade, e sim também
em função da necessidade coletiva, e o prejudicado, em casos tais, ao invés de pleitear a cessação do incômodo, terá que suportá-
lo, apenas tendo direito ao recebimento de uma indenização e, se possível, de pleitear a redução de tal incômodo.
(...) Em resumo, o uso do prédio pode ser separado em normal e anormal, em qualquer dos casos podendo haver incômodo ou
prejuízo para a vizinhança, por isso que a normalidade ou anormalidade não podem ser aferidas em função da existência desse
incômodo, e sim em função da intensidade do mesmo, vale dizer, se está ou não dentro dos limites normais de tolerabilidade.
Se o uso for normal, é evidente que o vizinho prejudicado não terá qualquer medida a adotar, para que cesse tal
uso, e nem ao menos terá o direito de ser indenizado.
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105

DOIS CASOS CONCRETOS

a) Sentença proferida nos autos do processo nº


2004.807.021455-3

“Inicialmente, cumpre salientar ser dispensado o relatório,


nos termos do disposto no artigo 38 da Lei nº 9.099/1995.
Versa a hipótese sobre ação movida por xxx em face de xxx,
em que objetiva o autor indenização por danos morais.

A ré, em sua contestação, fez pedido contraposto.

Constata-se, do exame das provas constantes dos autos, em es-


pecial os depoimentos colhidos em audiência e os documentos
anexados aos autos, que o autor, por mais de uma vez, excedeu
o limite razoável da boa convivência, em contrariedade ao dis-
posto no artigo 1228 §§ 1º e 2º do Novo Código Civil.
À luz da Constituição Federal e do Código Civil, o direito de
propriedade (e de posse) de bens deve ser exercido em conso-
nância com suas finalidades econômicas e sociais, ou seja, deve
ser exercido de forma a não prejudicar ou restringir os direitos
de outrem, em clara ponderação dos interesses em jogo.

Se o uso foi anormal, contudo, deve-se ainda perquirir se o mesmo é ou não socialmente necessário, para que se
possa avaliar qual a providência cabível. Caso positiva a resposta, vale dizer, se houver necessidade social nesse
uso anormal, o prejudicado não terá como impedi-lo, pois o interesse social prevalece sobre o individual, tendo
no entanto o direito ao recebimento de uma indenização e a pleitear a adoção de medidas que possam reduzir
o incômodo causado. Na hipótese de tal uso anormal não corresponder a uma necessidade social, só aí é que o
prejudicado poderá exigir a sua cessação.
É de se realçar, diante do que acima se disse, que o uso só pode ser qualificado como normal ou anormal diante de
uma situação concreta, sendo que a primeira coisa a ser verificada é a intensidade do dano causado. Se este, nas cir-
cunstâncias do caso, está situado dentro dos limites do tolerável, não há qualquer restrição a ser imposta ao causador,
por isso que a própria convivência social conduz a que o vizinho incomodado tenha que suportar certos incômodos
de pequena monta, somente devendo ser imposta a restrição se forem ultrapassados tais limites.” (Junior, Aldemiro
Rezende Dantas, In O Direito de Vizinhança – 1ª edição – 2007 – 2ª tiragem. Ed.Forense, p. 68-70).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
106

No caso em tela, a par das divergências acerca de ser per-


mitido ou não o estacionamento de carros de visitantes em
frente à residência da autora (eis que restou demonstrado nos
autos que apenas os visitantes do réu o fazem, existindo local
previamente destinado para o estacionamento, não tendo res-
tado suficientemente esclarecida a natureza jurídica das ruas
internas do condomínio e ausente convenção ou deliberação
da assembléia sobre tal ponto), infere-se das provas constantes
dos autos que tal fato prejudica a entrada do veículo da recla-
mante na garagem.

Note-se constar de uma das atas do condomínio anexadas em


audiência menção do autor sobre eventual danificação da cal-
çada da residência da autora em decorrência das manobras
efetuadas por esta para entrar na garagem, o que corrobora
a alegação da autora, de que o estacionamento no local em
questão impede ou dificulta a manobra, pelo que, ainda que
a rua seja pública, o estacionamento no referido local é, no
mínimo, desaconselhável.

Ademais, o autor comumente faz uso do aparelho de som de seu


carro, quando este se encontra do lado de fora de sua residência,
deixando o volume alto, o que atrapalha o sossego e a tranquili-
dade da vizinhança, dentre os quais, a ré (fato este comprovado
pelo depoimento de testemunhas e por documentos).

Consoante o disposto no artigo 1277, caput, do Novo Códi-


go Civil, possui a ré, portanto, o direito à cessação das inter-
ferências prejudiciais ao seu sossego e à sua saúde, não tendo
o autor, por outro lado, logrado comprovar tivesse a reclama-
da se excedido, ao fazer as reclamações, tanto pessoalmente,
quanto junto ao síndico.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
107

Verifica-se, ainda, que eventuais injúrias proferidas o foram


no calor da discussão, encontrando-se acobertada pela legíti-
ma defesa (artigo 188, I do Novo Código Civil, não se con-
figurando a hipótese descrita no parágrafo único da mesma
norma) e pelo fato de, posteriormente, ter a outra parte revi-
dado as ofensas.

Conclui-se, assim, ter o autor praticado ato ilícito, nos termos do


disposto no artigo 187 do Novo Código Civil, combinado com
o artigo 1228 do mesmo diploma legal, ao exceder os limites da
utilização razoável de direitos, principalmente o de propriedade.

Os danos morais decorrem in re ipsa, da conduta ilícita do autor


antes exposta, a qual causou para a ré transtornos, aborrecimen-
tos e angústias passíveis de indenização, principalmente diante da
evidente violação de sua tranquilidade e de seu sossego.

Para a fixação dos danos extrapatrimoniais, de seu turno,


deve-se levar em consideração, segundo o escólio do ilustre
jurista e Desembargador, Sergio Cavalieri Filho, “a reprova-
bilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do sofri-
mento experimentado pela vítima, a capacidade econômica
do causador do dano, as condições sociais do ofendido, e
outras circunstâncias mais que se fizerem presentes.” (Filho,
Sergio Cavalieri. In Programa de Responsabilidade Civil.
Ed. Malheiros. 5ª edição, p. 108).

Com base nos parâmetros acima, entendo razoável fixar os


danos morais em R$ 2.000,00 (dois mil reais).

A litigância de má-fé não se delineou na espécie.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido


principal e JULGO PROCEDENTE O PEDIDO CON-
TRAPOSTO, para condenar o autor a pagar à ré R$ 2.000,00,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
108

montante este acrescido de juros de mora a contar da citação e


correção monetária a partir desta data.
Sem custas e honorários advocatícios, nos termos do disposto
no artigo 55 da Lei nº 9.099/95.”

b) Sentença proferida nos autos do processo nº


2004.807.010216-7:

“Inicialmente, cumpre salientar ser dispensado o relatório,


nos termos do disposto no artigo 38 da Lei nº 9.099/1995.
Versa a hipótese sobre ação movida por xxx em face de xxx,
objetivando a condenação da ré a comprovar a realização de
serviço de desratização e controle de vetores e zoonoses, além
de indenização por danos morais.

Constata-se, do exame das provas constantes dos autos, em


especial as fotografias de fls.19-20, o documento de fls. 17-18
e o depoimento pessoal da autora, que há, efetivamente, uma
infestação de ratos no galpão de propriedade do réu.

Por outro lado, não logrou o réu comprovar – ônus que lhe
incumbia, a teor do disposto no artigo 333, II do Código de
Processo Civil Pátrio – tivesse tomado as providências neces-
sárias para conter a infestação dos animais, não tendo trazido
aos autos qualquer prova acerca da contratação de serviço de
desratização ou afim.
Ora, faz parte do substrato das regras de experiência comum
que a existência de ratos na vizinhança de prédios residenciais
pode gerar a proliferação de doenças graves.

À luz da Constituição Federal e do Código Civil, o direito de


propriedade (e de posse) de bens deve ser exercido em conso-
nância com suas finalidades econômicas e sociais, ou seja, de
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
109

forma a não prejudicar ou restringir os direitos de outrem, em


clara ponderação dos interesses em jogo.
No caso em tela, a utilização do galpão pela ré está pondo em
risco a saúde e o bem estar da população vizinha, caracteri-
zando o uso nocivo da propriedade, vedado por nosso orde-
namento jurídico.

Consoante o disposto no artigo 1277, caput, do Novo Códi-


go Civil, faz jus a autora, portanto, à cessação das interferên-
cias prejudiciais à sua saúde.

Deve a ré, destarte, comprovar a realização de serviço de des-


ratização e de controle de vetores e zoonoses.

Note-se que os ratos se alojaram dentro do galpão, pelo que,


a par de eventual responsabilidade do Poder Público, é a ré
parte legítima para figurar no polo passivo da presente de-
manda, diante dos deveres legais do proprietário/possuidor,
acima referidos.

Violado o dever jurídico, exsurge o dever de indenizar.

Os danos morais decorrem in re ipsa, da conduta ilícita da ré


antes exposta, a qual causou para a autora transtornos, aborre-
cimentos e angústias passiveis de indenização, principalmente
diante do evidente risco à sua saúde.
Para a fixação dos danos extrapatrimoniais, de seu turno, deve-
se levar em consideração, segundo o escólio do ilustre jurista e
Desembargador, Sergio Cavalieri Filho, “a reprovabilidade da
conduta ilícita, a intensidade e duração do sofrimento experi-
mentado pela vítima, a capacidade econômica do causador do
dano, as condições sociais do ofendido, e outras circunstân-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
110

cias mais que se fizerem presentes.” (Filho, Sergio Cavalieri.


In Programa de Responsabilidade Civil. Ed. Malheiros. 5ª
edição, p. 108).

Com base nos parâmetros acima, entendo razoável fixar os


danos morais em R$ 1.000,00 (mil reais).
Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCE-
DENTE O PEDIDO, para condenar a ré a comprovar, em
trinta dias a contar desta data, a contratação de serviço de des-
ratização, controle de vetores e zoonoses, no endereço apon-
tado na petição inicial, sob pena de multa diária de R$ 50,00.
Condeno a ré, ainda, a pagar à autora R$ 1.000,00, montante
este acrescido de juros de 1% ao mês a contar da citação e
correção monetária a partir desta data.

Sem custas e honorários advocatícios, nos termos do disposto


no artigo 55 da Lei nº 9.099/95.”

CONCLUSÃO

As hipóteses acima demonstram que o direito de propriedade não


mais é absoluto, e deve ser exercido de modo a não prejudicar os interesses
alheios, principalmente os da coletividade.
Eventuais sacrifícios devem ser aceitos, e, até, impostos pelo Estado
Juiz caso o particular se recuse a agir dentro da normalidade. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
111

BIBLIOGRAFIA

JUNIOR, Aldemiro Rezende Dantas, O Direito de Vizinhança –


1ª edição – 2007 – 2ª tiragem. Ed. Forense;
VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil –
Dos Direitos Reais – volume XVI, Ed. Forense, 2003;
LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo,
Abuso de Direito, Ed. Atlas – 2007;
Palestras e Jurisprudência.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
112

A RESPONSABILIDADE
CIVIL NOS DEZ ANOS DA
CODIFICAÇÃO CIVIL, NA
CONSTRUÇÃO DA DOUTRINA
E DA JURISPRUDÊNCIA
Danielle Rapoport¹
O “Seminário 10 anos do Código Civil”, realizado pela Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro nos dias 29 e 30 de março de
2012, foi dividido em temas, dentre eles o da responsabilidade civil nos dez
anos da codificação civil, na construção da doutrina e da jurisprudência, ao
que passo à análise neste momento.
Em primeiro lugar deve ser dito que, diferentemente do Código
Civil de 1916, que consagrou na cláusula geral do seu artigo 159 apenas a
responsabilidade subjetiva, o Código Civil de 2002 contém cláusulas ge-
rais tanto para a responsabilidade subjetiva - fulcrada no ato ilícito stricto
sensu, em que a culpa é um dos seus elementos - como para a responsabi-
lidade objetiva – cujo campo de incidência é mais amplo, e diz respeito à
contrariedade entre a conduta do agente e a ordem jurídica, decorrente de
violação de dever jurídico preexistente.
As cláusulas gerais que consagram a responsabilidade objetiva estão
dispersas pelo Código Civil, como nos seus artigos 187 (abuso do direito),
927, parágrafo único (exercício de atividade de risco ou perigosa) e 931
(danos causados por produtos).
A primeira cláusula geral de responsabilidade objetiva, e que será
objeto de análise neste trabalho, é disciplinada pelo artigo 187 c/c artigo
927 do Código Civil, in verbis:

¹ Juíza de Direito Titular do Juizado Especial Cível da Comarca de Araruama.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
113

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que,


ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Assim, o abuso de direito é configurado pelo Código Civil como ato ilí-
cito, em que a culpa não figura como elemento integrante, mas sim os limites
impostos pela boa-fé, bons costumes e o fim econômico ou social do direito.
Sobre o abuso de direito, escreveu Sergio Cavalieri Filho² :
“O fundamento principal do abuso de direito é impedir que o di-
reito sirva como forma de opressão, evitar que o titular do direito
utilize seu poder com finalidade distinta daquela a que se destina.
O ato é formalmente legal, mas o titular do direito se desvia da
finalidade da norma, transformando-o em ato em ato substancial-
mente ilícito. E a realidade demonstra ser isso perfeitamente possí-
vel: a conduta está em harmonia com a letra da lei, mas em rota de
colisão com os seus valores éticos, sociais e econômicos – enfim, em
confronto com o conteúdo axiológico da norma legal”.

Julgados do nosso Tribunal de Justiça reconhecem, em inúmeros ca-


sos, a responsabilidade civil decorrente da prática de atos que evidenciam o
exercício anormal do direito, como exemplifica a ementa abaixo transcrita:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. PUBLICAÇÃO DE


FOTO EM JORNAL DE GRANDE CIRCULAÇÃO,
COM COMENTÁRIO JOCOSO. LIBERDADE DE IM-
PRENSA. INOBSERVÂNCIA DOS LIMITES CONSTI-
TUCIONAIS. ABUSO DE DIREITO. ATO ILÍCITO.
CARACTERIZAÇÃO DE OFENSA À IMAGEM DA AU-
TORA. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM

² CAVALIERI FILHO, Sergio, Programa de Responsabilidade Civil, 6ª Edição. Rio de Janeiro: Malheiros
Editores, 2005, p. 170.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
114

FIXADO DENTRO DOS LIMITES DA RAZOABILIDA-


DE E DA PROPORCIONALIDADE. RECURSOS AOS
QUAIS SE NEGA SEGUIMENTO.- A publicação de foto
da autora, com comentário sarcástico e irônico sobre sua apa-
rência não teve nenhum cunho informativo, mostrando-se
capaz de causar mácula a sua dignidade”³.

As razões do voto destacam, com precisão, o alcance da norma. É


certo que a Constituição Federal assegura a livre manifestação do pen-
samento e informação, e, consequentemente, o exercício da liberdade de
imprensa. Contudo, o exercício de tal direito esbarra nos direitos da perso-
nalidade, igualmente constitucionais.
Logo, havendo conflito entre esses direitos fundamentais, cabe o con-
fronto no caso concreto, para sopesar a ocorrência da abusividade da liberda-
de de informação e, por conseguinte, a configuração de dano a imagem.
No caso em comento, é certo que a publicação da foto de um in-
divíduo, com comentário sarcástico e irônico sobre sua aparência, certa-
mente não possui nenhum cunho meramente informativo, ao contrário,
tem escopo de macular a dignidade da pessoa humana. Uma publicação
nesse sentido, certamente, vai além da liberdade de imprensa, caracterizan-
do abuso de direito e, portanto, ato ilícito, passível de compensação por
danos morais, como reconhecido no julgado.
No direito de vizinhança tem sido comum a aplicação do abuso do di-
reito para resolver conflitos, como se verifica pelos julgados abaixo arrolados:

“CONFLITO DECORRENTE DE RELAÇÃO DE VIZI-


NHANÇA. Condomínio. Implementação de benfeitorias em
área comum que gera transtornos a condômino. Ponderação
necessária entre o interesse social dos demais condôminos e a
suportabilidade ou não do incômodo, para quem se diz preju-
dicado com o uso anormal da propriedade por outrem. Prova

³ Apelação Cível, Processo nº 0206891-36.2009.8.19.0001 - 1ª Ementa; Des. Vera Maria Soares Van Hombeeck;
Julgamento: 06/12/2011, Primeira Câmara Cível.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
115

pericial que confirma o desconforto suportado pela morado-


ra, o qual ultrapassa o limite do tolerável. Abuso do direito.
Dano moral não configurado, por se cuidar de hipótese de
mero aborrecimento. Inexistência de abalo psicológico ou
ofensa à dignidade da parte. Sucumbência recíproca reconhe-
cida. Recurso provido em parte”.
4

“APELAÇÃO. AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA


NOVA. JULGAMENTO PREMATURO. CERCEAMEN-
TO DE DEFESA MANIFESTO. ANULAÇÃO DA SEN-
TENÇA. A ação de nunciação de obra, prevista no art. 934,
do CPC, tem por fim evitar o abuso do direito de construir,
tutelando relações jurídicas de vizinhança, condomínio ou ad-
ministrativas, através da qual se pleiteia a paralisação de obra
nova e a restituição das coisas ao estado anterior. Objetiva-se
com a ação criar limites, com o escopo de conter os abusos no
direito de construir, pois se de alguma forma, a obra em pré-
dio vizinho, vier a interferir no uso normal da propriedade,
terá o proprietário do imóvel prejudicado direito de embargar
a construção de prédio vizinho. [...]”.5
6
O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de Recurso Especial
oriundo do Rio de Janeiro, ao apreciar questão que envolvia servidão con-
vencional em imóveis situados em encosta no Alto Leblon, reconheceu o
exercício abusivo do direito de plantio de árvore pelo proprietário lindeiro.
No caso submetido à análise, o proprietário do prédio inferior ha-
via construído muro divisório, prejudicando a aeração, ensolação e visão
panorâmica do prédio superior, razão por que foi proposta ação, com fun-
damento no abuso do direito de tapagem, que terminou por acordo, no

4 Apelação Cível, processo nº 2008.001.23198; Des. Carlos Eduardo Passos - Julgamento: 21/05/2008 – Segunda

Câmara Cível.

5 Apelação Cível, processo nº 0010468-25.2006.8.19.0061; Des. Renata Cotta - Julgamento: 09/11/2011 – Terceira

Câmara Cível.

6 Resp 935474/RJ, Recurso Especial 2004/0102491-0, Relator Ministro Ari Pargendler; Relator para Acórdão,

Ministra Nancy Andrighi. T3 Terceira Turma, Data do Julgamento: 19/08/2008; Data da Publicação/Fonte:
16/09/2008, RDR vol. 43, p. 266.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
116

sentido de que o muro seria cego (cheio) até a altura de 02 metros, e daí em
diante seria composto por elementos vazados no sentido vertical, enviesa-
dos e com espaçamento que possibilitassem a aeração, ensolação e vista da
paisagem a partir do prédio superior.
Posteriormente, surgiu novo conflito, no qual o proprietário do pré-
dio superior alegou que o plantio deliberado de árvores ao longo do muro
divisório acabou por gerar os mesmos efeitos anteriores.
Após realizada perícia, foi verificada a inexistência de prejuízos quan-
to à aeração e ensolação, cingindo-se a controvérsia à alegação de limitação
da vista panorâmica de que desfrutava o imóvel superior, tendo em vista
a instalação de armações em arame e colocação de trepadeiras acima do
muro divisório, impedindo a vista da Lagoa.
Efetivamente, conforme reconhecido no julgado, o ato do proprie-
tário do prédio inferior, que substituiu o muro de alvenaria por “muro
verde”, que, de igual forma, impedia a vista panorâmica, configurou abuso
do direito de plantio de árvores, desrespeitando o dever de boa-fé objetiva,
conforme previsto no artigo 187 do Código Civil.

Conclusão

Após essa breve exposição, deve ser dito que o nosso ordenamento
coíbe o abuso de direito, sendo que o Código Civil de 2002 elevou tal
proibição ao nível de princípio geral, válido para todas as áreas do direito,
cabendo ao julgador apontar, em cada caso, os fatos que tornam evidente o
desvio no exercício do direito de modo a causar danos a outrem. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
117

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA


E SUA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA
E JURISPRUDENCIAL AO LONGO
DOS 10 ANOS DE EDIÇÃO DO
NOVO CÓDIGO CIVIL

Denise de Araújo Capiberibe¹

INTRODUÇÃO

No Código Civil editado em 1916, portanto, no início do século


XX, não havia referência expressa ao princípio da boa-fé objetiva, visto que
este nasceu sob à égide do liberalismo em que ainda reinavam soberanos os
princípios da autonomia da vontade e da força vinculante dos contratos.
Em tal época, acreditava-se que todas as pessoas eram livres para
contratar, razão pela qual tais princípios bastavam por si só na interpreta-
ção dos contratos e, assim, serviram de base para a formação de sua con-
cepção tradicional.
Com o decorrer do tempo, verificou-se que tais princípios eram in-
suficientes e não mais retratavam as necessidades da civilização moderna,
baseada na sociedade de consumo e em contratos de massa, nos quais nem
sempre a vontade da parte, mormente da parte mais fraca, conseguia se in-
serir em formulários redigidos previamente pelos contratantes de massa.
Com tais mudanças significativas, o Direito Civil Clássico, positiva-
do no Código de 1916, começou a ruir diante das significativas alterações

¹ Juíza de Direito da 4ª Vara de Família de Madureira.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
118

sociais e da necessidade de leis especiais que as regulassem, uma vez que


esse diploma não previa respostas a todos os problemas que emergiam.
Assim, surgiram microssistemas voltados a diferentes matérias como, por
exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, dentre outros.
A partir de tal percepção, verificou-se a necessidade de criar novos
mecanismos e princípios, mormente no que diz respeito à interpretação
dos contratos, visando a atender às novas exigências de tal realidade. Esta
profunda transformação alterou a perspectiva sob a qual se entende o Di-
reito Civil, agora considerado sob o ponto de vista constitucional.
Ressurgiu então o princípio da boa-fé objetiva que, ao lado do prin-
cípio da função social do contrato, se erigiu como principal norte na exe-
gese das relações contratuais.
A normatização do princípio da boa-fé objetiva foi formalizada com a
edição do Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 4º, inciso III, como
linha de interpretação, e também no art. 51, inciso IV, como cláusula geral.
Uma década após a edição da Lei 8.078/90, é sancionado o Código
Civil de 2002, que igualmente positivou o princípio da boa-fé objetiva em
seu texto, criando um novo parâmetro de conduta a ser observada pelos
contratantes nas relações comuns.

A POSITIVAÇÃO DO PRINCÍPIO NO CÓDIGO CIVIL

A boa-fé objetiva veio permear a nova teoria contratual, impondo às partes


que se portem de forma honesta, leal e proba, durante todas as fases do contrato.
A importância outorgada ao princípio da boa-fé objetiva é facilmen-
te notada a partir da constatação de que tal princípio é mencionado diver-
sas vezes ao longo do Código Civil, reconhecendo a doutrina que apenas
em três casos a referência se faz à sua vertente objetiva.
Inicialmente, há referência expressa a tal princípio no artigo 113
que estabelece ser necessária, na interpretação dos negócios jurídicos,
observar a boa-fé.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
119

Posteriormente, na normatização do ato ilícito, o princípio da boa-


fé objetiva é mencionado no artigo 187, ao conceituar o abuso do direito
do titular do direito que, ao exercê-lo, excede, dentre outros, os limites
impostos pela boa-fé.
O princípio da boa-fé objetiva aparece também no Código Civil
como cláusula geral no artigo 422, exigindo dos contratantes que obser-
vem, seja na fase pré-contratual, seja durante sua execução, o dever de
probidade e de lealdade.
Como cláusula geral, tal dispositivo, dentre outros espalhados no
diploma civil, evidenciam que o atual Código constitui um sistema aberto,
conferindo ao magistrado, como intérprete da norma, resolver o caso con-
trato verificando se os partícipes da relação jurídica em debate se portaram
como exige tal regra. Para tanto, deve ser feita pelo magistrado uma análi-
se, visando, verificar se a conduta em debate pode ser considerada padrão,
ou seja, aquela que qualquer homem médio tomaria no caso concreto.
O princípio da boa-fé objetiva se distingue do princípio da boa-fé
subjetiva exatamente porque neste é necessário fazer uma análise da per-
cepção individual do agente cuja conduta está sendo analisada, visando a
verificar se este acreditava que tal agir era correto, mesmo que esse não seja
o padrão de conduta normal do homem médio naquela situação.
Já a boa-fé objetiva estipula regras de conduta que prescrevem um
comportamento fundado na lealdade, a ser observado por todos, que de-
vem considerar as expectativas geradas por terceiros.
Tais regras atuam como verdadeiros paradigmas de condutas ob-
jetivas, as quais são traçadas tendo como parâmetro a figura do homem
médio. Exige-se, assim, que as partes se portem de forma plausível, com a
devida prudência, alinhando sua conduta a comportamentos de cuidados
suficientes e razoáveis.
Verifica-se que o princípio da boa-fé exerce três funções distintas, a
saber: i) função interpretativa, diante do disposto no artigo 113; ii) fun-
ção corretiva e de controle de exercício de um direito, face o disposto no
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
120

artigo 187; e por fim, iii) função de integração do negócio jurídico, como
lançado no art. 422.
Na primeira função, a boa-fé significa um critério hermenêutico obje-
tivo de que o juiz deve se valer na busca da supressão das lacunas da relação
contratual, de forma a preservar as justas expectativas das partes contratantes.
Sob a ótica da segunda função, a boa-fé assume função semelhante
à figura do abuso de direito, não admitindo condutas que contrariem o
dever de agir com lealdade e probidade, pois somente assim o contrato
alcançará a função social dele esperada.
Por fim, a terceira função visa a criar deveres anexos que devem ser
observados pelos contratantes em todas as fases do contrato, inclusive, na
fase pré-contratual e pós-contratual, porquanto os efeitos do contrato se
protraem no tempo.

APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO PRINCÍPIO DA BOA-


FÉ OBJETIVA

Enquanto nas relações de consumo observa-se que o princípio da


boa-fé objetiva tem larga aplicação, nota-se que ainda é discreta na juris-
prudência sua utilização nas relações regidas pelo Direito Comum.
Com efeito, nas relações regidas pelo Código de Defesa do Con-
sumidor, a aplicação jurisprudencial do princípio da boa-fé objetiva se
apresenta de forma recorrente, porém ainda há poucos exemplos de sua
aplicação nas relações de Direito Comum.
Trago, assim, à colação três decisões em que houve aplicação do
princípio da boa-fé objetiva no deslinde das questões postas judicialmente:

“EMBARGOS DE TERCEIRO - PENHORA INCIDENTE


SOBRE IMÓVEL DO EXECUTADO - COMPANHEIRA
QUE INVOCA A PROTEÇÃO LEGAL CONFERIDA AO
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
121

BEM DE FAMÍLIA COMPORTAMENTO CONTRADI-


TÓRIO DA EMBARGANTE NO CURSO DO FEITO -
VEDAÇÃO AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
- MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA. Embargos de terceiro
opostos pela companheira do executado, pelo qual preten-
deu afastar a penhora incidente sobre o imóvel em que reside
juntamente com o filho de ambos. Ciência inequívoca e au-
sência de oposição da embargante a que o imóvel penhorado
seja alienado a terceiros, com o objetivo de por fim à exe-
cução. Conduta da embargante incompatível com a preten-
são de invocar a proteção legal conferida ao bem de família.
Aplicação dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé
objetiva, apoiados pela teoria de proibição do comportamen-
to contraditório (venire contra factum proprium). Recurso
a que se nega seguimento na forma do caput do artigo 557
do Código de Processo Civil por manifesta improcedência.”
(TJRJ - 7ª Câmara Cível – Apelação Cível nº0142993-49
.2009.8.19.0001 julgada em 09.04.2012 – Rel. Des. Maria
Henriqueta Lobo)

“Agravo Inominado. Art. 557 do C.P.C. Apelação que teve o seu


seguimento negado por R. Decisão Monocrática deste Relator.
Ação Cautelar, visando à exibição de documentos relativos à
comprovação de despesas concernentes a obrigações que as-
sumiram as Requeridas ao realizar a construção do edifício
no qual se situa o Condomínio Demandante. I - Alegação
da ilegitimidade passiva da segunda Ré não merece acolhi-
da, pois seu nome consta no memorial do empreendimento
como responsável (juntamente com a primeira Demandada)
pela incorporação do edifício.II - Tese de inexistência do in-
teresse de agir. Não prospera. O interesse autoral resta de-
monstrado diante dos pagamentos realizados pelo Agravado
às Recorrentes para implementação das benfeitorias na área
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
122

comum aos condôminos, consoante comprovado pela docu-


mentação acostada aos autos. Via eleita adequada. III - Pedi-
do autoral amparado pela disposição constante no art. 844,
II, do Digesto Processual Civil. Sustentam as Agravantes não
terem o dever legal ou contratual de exibirem os documen-
tos requeridos. IV - Obrigação legal existente. É dever dos
Contratantes o respeito aos postulados da Boa- Fé Objeti-
va, conforme disposto no art. 422 do Código Civil, sendo
tal princípio também aplicável na seara processual. Dever
de cooperação entre as Partes litigantes. V - Em se tratando
da exibição de documentos comprobatórios de despesas efeti-
vadas pelos Réus à custa de recursos financeiros dos integran-
tes do Condomínio Autor, nada mais justo e devido do que
a devida exibição com o fulcro de sanar quaisquer dúvidas
quanto à utilização dos valores. Pedido genérico não caracteri-
zado.VI Pontuou o Recorrido qual seria a documentação a ser
apresentada (referente ao despendido com a implantação do
memorial descritivo do Condomínio), bem como apresentou
a relação pormenorizada das obrigações assumidas pelas Rés.
Jurisprudência deste Colendo Sodalício. VII - Manifesta im-
procedência do Recurso que autorizou a aplicação do caput
do art. 557 do C.P.C. c.c. art. 31, inciso VIII do Regimento
Interno deste Tribunal. Negado Provimento” (TJRJ – 4ª Câ-
mara Cível – Apelação Cível nº 0005738-41.2008.8.19.0209
julgada em 28.03.2012 – Rel. Des. Reinaldo P. Alberto Filho)

“AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE PROMES-


SA DE COMPRA E VENDA COM OBRIGAÇÃO DE FA-
ZER. RÉUS QUE SE COMPROMETERAM A ENTRE-
GAR AO AUTOR LOTES PRONTOS E URBANIZADOS
QUE IRIAM INTEGRAR O FUTURO LOTEAMENTO
DE PROPRIEDADE COMUM DAS PARTES. SERVI-
ÇO PARCIALMENTE EXECUTADO. EXCEÇÃO DO
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
123

CONTRATO NÃO CUMPRIDO. INTELIGÊNCIA DO


ARTIGO 476 DO CÓDIGO CIVIL. OS RÉUS ALEGAM
QUE FOI O PRÓPRIO AUTOR QUE DEU CAUSA À
PARALISAÇÃO DO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁ-
RIO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. PROVA PE-
RICIAL DE ENGENHARIA QUE DEMOSTROU QUE
OS RÉUS INVESTIRAM QUANTIA SUBSTANCIAL
PARA ADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER.
LAUDO TÉCNICO APUROU OS SEGUINTES SERVI-
ÇOS PRESTADOS PELOS RÉUS: IMPLANTAÇÃO DO
LOTEAMENTO, ARRUAMENTO, MEIOS FIOS, PAVI-
MENTAÇÃO EM PARALELO, INSTALAÇÃO DE GA-
LERIA DE ÁGUAS PLUVIAIS. CONJUNTO PROBATÓ-
RIO QUE CORROBORA A TESE DOS APELADOS DE
QUE O ATRASO DA OBRA SE DEU EM VIRTUDE DO
DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES POR PAR-
TE DO AUTOR, DENTRE ELAS A REGULARIZAÇÃO
DO FORNECIMENTO DO SERVIÇO DE ÁGUA, QUE
FOI CORTADA EM VIRTUDE DE DÉBITO JUNTO À
CEDAE E PAGAMENTO DE IPTU. APLICAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
E DA BOA-FÉ OBJETIVA. ARTIGOS 421 E 422 DO CÓ-
DIGO CIVIL. COMO PRIMORDIAL INSTRUMENTO
DA CIRCULAÇÃO DE RIQUEZAS É INEGÁVEL QUE
O CONTRATO TENHA UMA FUNÇÃO SOCIAL A DE-
SEMPENHAR, QUE SOMENTE PODE SER ALCANÇA-
DA QUANDO O INTERESSE COLETIVO SE SOBRE-
PONHA AO INDIVIDUAL. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
OBJETIVA VEDAR A CONDUTA DO CONTRATANTE
QUE DIFICULTA O ADIMPLEMENTO CONTRATU-
AL. DEVER DE COLABORAÇÃO. INOBSERVÂNCIA
DO AUTOR. ACOLHIMENTO DA EXCEÇÃO DO
CONTRATO NÃO CUMPRIDO. IMPROCEDÊNCIA
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
124

DOS PEDIDOS AUTORAIS. NEGADO PROVIMENTO


AO RECURSO.” (TJRJ – 5ª Câmara Cível – Apelação Cível
nº 009676-27.2006.8.19.0205 julgada em 20.03.2012 – Rel.
Desembargador Antônio Saldanha Palheiro)

Nas três decisões colacionadas, há expressa menção ao princípio da


boa-fé objetiva, ressaltando que, na segunda, inclusive é feita referência à
existência de tal princípio nas regras processuais visando a coibir a desleal-
dade processual.

CONCLUSÃO

O princípio da boa-fé objetiva sofreu, ao longo do tempo, constan-


tes mutações decorrentes da modernização da sociedade, tendo tal princí-
pio ressurgido revitalizado e enriquecido. O Direito Civil Brasileiro atual
incorporou, a partir de valores éticos e morais, a tríplice função de tal
princípio, visando a adotar um olhar contemporâneo do contrato e dos
princípios constitucionais da dignidade humana e da solidariedade social
que são a este correlatos e essenciais.
Com efeito, a noção de boa-fé objetiva no contexto atual do Direito
Civil está profundamente ligada ao valor ético, o qual se alinha com os
conceitos de lealdade, correção, veracidade e justa expectativa, que com-
põem o seu substrato e lhe dão suporte.
A boa-fé objetiva, portanto, é um dos princípios contemporâneos
da Teoria Contratual. Sob tal prisma, age de forma a realizar os valores do
Estado Democrático de Direito.
Já como cláusula geral adentra o sistema jurídico pátrio com os ob-
jetivos de, no plano constitucional, realizar a justiça e a solidariedade social
e, na esfera privada, dar realce à lisura e à transparência nas relações. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
125

DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL


– APLICAÇÃO, ACERTOS,
DESACERTOS E NOVOS RUMOS

Eduarda Monteiro de Castro Souza Campos¹

Foi realizado na EMERJ seminário sobre os dez anos do Código Civil


nos dias 29 e 30 de março, com participação de várias ilustres autoridades.
No início, a Diretora-geral da EMERJ, Des. Leila Mariano, apresen-
tou um vídeo sobre as palestras realizadas dez anos atrás, quando o diretor da
EMERJ era o Des. Sergio Cavalieri Filho, presente no evento deste ano, em
que foram apresentadas as dúvidas sobre o Código a ser editado à época.
Posteriormente palestraram o Des. Sylvio Capanema de Souza so-
bre a legalidade e eficácia constitucional na aplicação do Código Civil.
Após tal palestra, falaram o Des. Sidney Hartung e o Des. Marco
Aurélio Bezerra de Melo sobre a posse dos imóveis, como instrumento de
garantias fundamentais e limitações ambientais.
O dia seguinte se iniciou com a palestra do Des. Marcos Alcino e
da Defensora Pública Ana Rita Vieira de Albuquerque sobre aplicação dos
princípios e cláusulas gerais nas relações negociais e reais imobiliárias.
Sobre o direito de família , especificamente sobre as famílias con-
temporâneas na legalidade civil-constitucional, palestraram o Procurador
de Justiça José Maria Leoni Lopes de Oliveira e o Des. Federal Guilherme
Calmon Nogueira da Gama.
Na parte da tarde foram ouvidos sobre as consequências do inadim-
plemento das obrigações o desembargador Carlos Santos de Oliveira e o
Dr. Fabio Oliveira Azevedo.

¹ Juíza de Direito Titular do III Juizado Especial Cível da Comarca da Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
126

Sobre a empresa individual de responsabilidade limitada se mani-


festaram o promotor de justiça Leonardo Araújo Marques e a professora
Monica Gusmão. Por fim, sobre a responsabilidade civil nos dez anos da
codificação civil falou brilhantemente o Des. Sergio Cavalieri Filho.

“LEGALIDADE E EFICÁCIA CONSTITUCIONAL NA


APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL”
DES. SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA

Inicialmente o palestrante falou sobre o direito e a sociedade no


século XVIII, pois explica que, para entendermos como surgiram as novas
regras do Código Civil de 2002, temos que entender como foi elaborado
o Código de 1916.
Foi nessa época que eclodiu a Revolução Francesa. E diante da si-
tuação social existente à época, tal revolução surgiu em razão dos abusos
realizados pela monarquia. O lema liberdade, igualdade e fraternidade nos
conduz ao individualismo.
À época se entendia que os indivíduos deveriam ter liberdade ga-
rantida e também igualdade para evitar a volta da exploração que sofriam
pelos monarcas. Por fim, podemos dizer que a fraternidade é o início do
que hoje se chama igualdade social.
Outra situação a ser destacada era a imutabilidade dos contratos.
O nosso Código Civil de 1916 foi influenciado pelo Código Napo-
leônico. O nosso antigo Código tinha três grandes personagens importan-
te, segundo o palestrante: em primeiro lugar o marido, na área do direito
de família; em segundo lugar o proprietário e por último o contratante,
todos voltados para os direitos individuais.
O marido era o representante legal da família, se encastelava no alto
da pirâmide, curvando-se com subserviência a mulher e os filhos. A mu-
lher era relativamente incapaz, assim como os silvícolas. Somente existia a
família legítima, ou seja, aquela advinda do casamento.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
127

No que diz respeito à figura do proprietário, este, como na Revolu-


ção Francesa, era sacralizado, com a concessão de inúmeros poderes e com
nenhuma limitação.
Por fim, os contratos eram submetidos à autonomia da vontade,
tornando-se a supremacia do mais forte perante o mais fraco.
Prevalecia o positivismo, não existindo liberdade para os juízes que
examinavam os fatos e proferiam sentenças legais, alicerçadas somente
nos textos de lei.
Foi então que o Estado Liberal começou a sua decadência, mostran-
do, por exemplo, que o contrato não era sempre justo para ambas as partes.
Percebeu-se que era necessário proteger o economicamente mais fraco.
Daí surge o Estado Social, com a Constituição de 1988, conhecida
como a Constituição Cidadã.
À época, precisava-se de uma carta de princípios, em que se inclu-
íram valores fundamentais. Assim, verificamos que não é por acaso que no
artigo 1° está incluída entre os fundamentos da República, ou seja, como
um alicerce, a preservação da dignidade humana, assim como no artigo
3°, a igualdade social .
Podemos ainda verificar que foram incluídos os princípios da igualdade
reais e de garantia dos direitos fundamentais.
Um dos principais princípios da Constituição Federal é o princípio da
unidade da constituição, que significa que a Lei Maior deve ser interpretada
como um todo e não separadamente.
Outro princípio importante é o da harmonização, onde valores aparente-
mente conflitantes devem ser interpretados com harmonia.
Também muito importante é o princípio da unidade dos princípios éti-
cos, com aplicação da Constituição acima de seus limites formais.
O princípio da interpretação segundo a Constituição Federal das leis in-
fraconstitucionais tem como fundamento ter a Constituição Federal de 1988 in-
troduzido uma nova ordem jurídica, influenciando as leis infraconstitucionais.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
128

Com isso, houve a erosão da dicotomia do direito publico e do direi-


to privado. Esta diferença não mais existe. Atualmente a divisão entre estas
duas áreas é como uma linha de giz, que facilmente se apaga. Em conseqü-
ência se iniciou uma publicização ou constitucionalização do direito civil,
com o surgimento do direito civil constitucional, denominação impossível
de acontecer nos idos do Código civil de 1916.
Mas o que é o direito civil constitucional? Trata-se de uma releitura
do direito privado à luz da Constituição Federal.
O palestrante entende que o Código Civil de 2002 poderia ter feito
avanças maiores, como por exemplo, no direito de família.
Entende que o valor do novo Código está nas suas entrelinhas, con-
firmando os princípios constitucionais, como por exemplo, a função social
do direito, a equidade e principalmente na boa fé objetiva.
Para o palestrante a maior mudança é o princípio da boa-fé objetiva,
saindo da idéia da subjetividade, assim como a adoção das clausulas abertas.
A mudança foi tão radical que inicialmente se falou que os juízes
teriam tanta liberdade que se tornariam “ditadores”. Mas este não é um
Código de Juízes, mas sim da sociedade.
Partindo do princípio da eficácia da Constituição Federal, o código
Civil reflete estas mudanças. O palestrante apresentou exemplos concretos
de tais mudanças:
Na parte geral, especificamente no Capítulo II, refere-se aos direitos
da personalidade, enquanto ao antigo Código somente falava do início e
do fim da personalidade.
Código Civil de 1916, artigo 4° - a personalidade civil do homem
começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção
os direitos do nascituro.
Já no novo Código: Parte Geral - Livro I - Das Pessoas - Título
I - Das Pessoas Naturais - Capítulo II - Dos Direitos da Personalidade
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
129

Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da


personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo
o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito
da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de
outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação
para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobre-
vivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o
quarto grau.
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição
do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da
integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para
fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a dis-
posição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para
depois da morte.
Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revo-
gado a qualquer tempo.
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco
de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o
prenome e o sobrenome.
Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem
em publicações ou representações que a exponham ao desprezo
público, ainda quando não haja intenção difamatória.
Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em
propaganda comercial.
Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da
proteção que se dá ao nome.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração
da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
130

escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição


ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas,
a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se
lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se
destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são par-
tes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes
ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz,
a requerimento do interessado, adotará as providências necessá-
rias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Criou-se um super direito, irrenunciável, imprescritível, irrevogável .


Tal direito chegou a mudar o relacionamento entre médico e pacien-
te, onde há necessidade de informação adequada do profissional a todos os
procedimentos que irá efetuar.
Encontramos a mudança também no artigo 187:
“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exer-
cê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim eco-
nômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Aqui encontramos o abuso de direito como ato ilícito.


Também no artigo 156 encontramos a inovação do estado de perigo:
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, pre-
mido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de
grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessi-
vamente onerosa.

Verifica-se aqui que os contratos devem ser justos e equilibrados,


inspirados na boa-fé objetiva.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
131

Falando-se do direito de propriedade encontramos inúmeras mu-


danças, uma vez que esta era sacralizada na edição do Código anterior,
enquanto hoje sofre alterações diante da sua função social.
O artigo 1228 § 1° submete a propriedade a preservação da flora,
fauna e da cultura:
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonân-
cia com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que
sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei
especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio eco-
lógico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas.

Já o § 2° veda todos atos do proprietário que não traga utilidade ao


uso da propriedade.
E que tragam prejuízos a terceiros:
§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer
comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de
prejudicar outrem.

Já os parágrafos 4° e 5° são exemplos das chamadas clausulas aber-


tas. O parágrafo quarto fala, por exemplo, em extensa área. Cabe ao Juiz
interpretar o que entende por extensa área. O que é extenso no Estado do
Amazonas é diferente do conceito para o Estado do Rio de Janeiro. Assim
como o número de pessoas mencionado no referido parágrafo vai depen-
der do local para ser caracterizado pelo Juiz.
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imó-
vel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta
e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de
pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separa-
damente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social
e econômico relevante.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
132

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa in-


denização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença
como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

O artigo 2035 das disposições Finais menciona que as convenções


terão que ser submetidas aos princípios do Código mesmo se efetuadas
antes de sua vigência:
Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos,
constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao
disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus
efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele
se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determi-
nada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar
preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Códi-
go para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Quanto ao direito das obrigações, a autonomia da vontade está


limitada e só pode ser exercida no limite da função social do contrato. O
contrato ultrapassa os contratantes para atingir toda a sociedade. Os juízes
são os equilibradores éticos dos contratos, interpretando-se sempre através
do princípio da boa-fé objetiva.
No direito de família há absoluta igualdade jurídica entre homem
e mulher. O antigo pátrio poder, exercido somente pelo homem, hoje se
chama poder familiar e é exercido por marido e mulher. O interesse do
menor prevalece nem o Estado ou nenhuma entidade privada podem in-
terferir no planejamento familiar.
No direito das sucessões há o fortalecimento da posição do cônjuge
em concorrência com os herdeiros necessários.
O Desembargador Sylvio Capanema apresentou a sua visão de
como deve ser o magistrado na sociedade contemporânea. “As responsabi-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
133

lidades dos juízes cresceram muito. Eles não são mais tão somente a “Boca
da Lei”, nas palavras de Montesquieu. O juiz moderno tem que sangrar
junto com as feridas de sua comunidade, chorar as mesmas lágrimas. Não
temos que ficar comprometidos somente com o texto da lei, mas também
com justiça social. Temos que nos transformar em “Quixotes brasileiros”,
vestir as nossas armaduras e lutar por um novo Brasil. Eu acredito que
esta nova ordem jurídica, da qual vocês fazem parte, pode construir um
novo país. Não podemos nos acomodar com essa realidade. Temos que ser
permanentemente inconformados com o nosso tempo, sermos agentes da
mudança”, sublinhou. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
134

FUNDAMENTOS DO NOVO
CÓDIGO CIVIL
Elizabeth Maria Saad¹

INTRODUÇÃO

Decorridos dez anos da vigência do novo Código Civil, a reflexão


sobre as modificações por ele trazidas, sua repercussão na esfera jurídica,
sua aplicabilidade e dúvidas geradas foram temas deste seminário.
O novo Código, que não teve um único idealizador, como o de
1916, foi resultado do trabalho de uma comissão de juristas, nomeada
pelo governo, sendo a parte geral redigida pelo Ministro Moreira Alves, a
parte do Direito de Empresa coube ao prof. Sylvio Marcondes, a parte das
obrigações ao prof. Arruda Alvim, a parte do Direito das Coisas ao desem-
bargador aposentado do RJ Dr. Ebert Chamorim, a parte de Direito de
Família ao gaúcho Clóvis Couto e Silva e a parte do Direito da Sucessões
ao pernambucano Torquato de Castro.
Apesar de feita a inúmeras mãos, não perdeu o sentido ou a unidade
filosófico-doutrinária, posto que o prof. Miguel Reale conseguiu unificar os es-
tilos e doutrinas e a linguagem dando ao Código a sua indispensável unidade.
O prof. Miguel Reale resume o novo Código em três palavras má-
gicas: efetividade ou operabilidade, socialidade e eticidade, sendo essas
as vertentes que a comissão trilhou para fazer o projeto, conforme palestra
proferida na EMERJ por ocasião do ciclo de debates sobre o novo Código,
com artigo “Visão Geral do Novo Código Civil”, publicado na Revista da
EMERJ – on-line, Edição especial parte 1, páginas 38-44.

¹ Juíza de Direito da 5ª Vara Criminal de Itaboraí.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
135

São essas as diretrizes traçadas pelo diploma de 2002, que abordare-


mos neste trabalho.

EFETIVIDADE ou OPERABILIDADE

A efetividade no novo Código Civil surgiu a partir da ideia da Co-


missão de estabelecer soluções normativas que permitem que o magistrado
efetive a aplicação da justiça, concretizando-a em razão da criação de téc-
nica das cláusulas abertas, aumentando-se extraordinariamente a discri-
cionariedade dos juízes, libertando-os para que possam adotar as medidas
necessárias para realizar o direito.
Segundo o prof. Miguel Reale, a respeito da efetividade:
“São previstas, em suma, as hipóteses, por assim dizer, de ‘in-
determinação do preceito’, cuja aplicação in concreto caberá
ao juiz decidir, em cada caso ocorrente, à luz das circunstâncias
correntes,tal como se dá, por exemplo,quando for indetermina-
do o prazo de duração do contrato de agência, e uma das partes
decidir resolvê-lo mediante aviso prévio de noventa dias, fixan-
do tempo de duração incompatível com a natureza e o vulto
do investimento exigido do contratante, cabendo ao juiz decidir
sobre sua razoabilidade e o valor devido, em havendo divergên-
cia entre as partes, consoante dispõe o Art. 720 e seu parágrafo
único. Somente assim se realiza o direito em sua concretude,
sendo oportuno lembrar que a teoria do Direito concreto, e não
puramente abstrato, encontra apoio de jurisconsultos do porte
de Engisch, Betti, Larenz. Esse e muitos outros, implicando
maior participação decisória conferida aos magistrados.
Como se vê, o que se objetiva alcançar é o Direito em sua
concreção, ou seja,em razão dos elementos de fato e de valor
que devem ser sempre levados em conta na enunciação
e na aplicação da norma. Nessa ordem de ideias, merece
menção o 1º do Art. 1.240, o qual estatui que, no caso de
usucapião de terreno urbano:
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
136

‘O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos


ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do
estado civil.’

Atende-se, assim, à existência da união estável,considerada


nova entidade familiar.

Observo, finalmente, que a Comissão optou por uma lin-


guagem, precisa e atual, menos apegada a modelos clássicos
superados, mas fiel aos valores de correção e de beleza que
distinguem o Código Civil vigente.” (Revista da EMERJ –
on-line, Edição especial parte 1, páginas 38-44.)

Optou-se assim em lançar mão, sempre que necessário, de cláu-


sulas gerais, como acontece nos casos em que se exige conceito inde-
terminado como “probidade”, “boa-fé” ou “correção” por parte do titular
do direito, ou quando é impossível determinar com precisão o alcance
da regra jurídica.
Como exemplo, temos a hipótese do “Art. 575, parágrafo único -
Se o aluguel arbitrado for manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-
lo, mas tendo sempre em conta o seu caráter de penalidade”; na hipótese
de fixação de aluguel manifestamente excessivo, arbitrado pelo locador e
a ser pago pelo locatário, podendo o juiz, a seu critério, reduzi-lo após
verificar ser o aluguel “manifestamente excessivo”, hipótese de “indetermi-
nação do preceito”, cuja aplicação in concreto caberá ao juiz decidir
em cada caso concreto.
Dá-se ao julgador, com a técnica dos princípios indefinidos, maior
liberdade de atuação, transformando-o em verdadeiro equilibrador das re-
lações jurídicas, para além da tipicidade estrita, pois, em vários dispositivos
do novo Código, há previsão para que o juiz adote as medidas necessárias a
fazer cessar a violação do direito adequadas ao caso concreto. Impõe-se as-
sim ao Magistrado o ônus de julgar, e julgar de forma “justa”, e não apenas
dentro da letra da lei, mas com sensibilidade social e consciência.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
137

Permite-se assim que a jurisprudência aos poucos defina esses con-


ceitos indefinidos, permitindo a formação do que se chama jurisprudên-
cia principiológica, terminando ao longo dos anos com a consolidação
dessa jurisprudência.
Havia e ainda há evidentes críticas a essa nova técnica de cláusulas
abertas, de maior discricionariedade dos juízes, com temor de que tal dis-
cricionariedade confunda-se com arbitrariedade.
Tais críticas e temores iniciais não se mantiveram, posto que a técnica
de cláusulas abertas não permite ao Magistrado criar lei nova, mas apenas
que extraia do preceito interpretação que lhe permita aplicar a norma ao caso
concreto com maior liberdade, dando-lhe efetividade a fim de alcançar justi-
ça social, havendo inúmeros mecanismos, de controle em nosso ordenamen-
to para evitar eventuais abusos ou arbitrariedades á disposição das partes.

SOCIALIDADE

Segundo o coordenador do Código Civil de 2002, prof. Miguel Reale:


“É constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o
manifesto caráter individualista da lei vigente, feita para um País ainda
eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo.
Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção
de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na mentalidade
reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação, como o rádio
e a televisão. Daí o predomínio do social sobre o individual.” (Revista da
EMERJ – on-line, Edição especial parte 1, páginas 38-44.)
Vê-se então a mudança de paradigma : de normas baseadas no Es-
tado Liberal, vigentes à época da elaboração do código de Clóvis Bevilác-
qua, posto que sua elaboração se deu ainda no século XIX, apesar de vigir
apenas no século XX, em que se valorizava o individualismo, os contratos
indissolúveis, obrigatórios e a propriedade privada, passou-se a exigir com-
promisso com a sociedade, com a função social dos contratos, da proprie-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
138

dade e com a dignidade da pessoa humana, tudo já em consonância com


a Constituição Federal de 88, que busca também que o estado promova o
bem-estar social.
Vê-se portanto uma socialização do direito privado, até então impreg-
nado por aquelas ideias individualistas que caracterizaram o Século XIX.
Nos contratos, há mudanças notáveis como as do artigo 421, que
prevê que a autonomia e a liberdade de contratar será exercida nos limites
da função social dos contratos.
“Art. 421 – A liberdade de contratar será exercida em razão e
nos limites da função social do contrato”.

Ou seja, há agora uma transformação socializante do Direito, tanto


na parte de contratos como na propriedade.
Trata-se de norma com cláusula aberta, meta-jurídica, pois não há
definição do que seja a função social do contrato, mas, ainda assim, a norma
determina que a função social dos contratos é uma clausula implícita em
todo e qualquer contrato. Sua função social passa a ser um dever jurídico das
partes, e o Judiciário poderá ser compelido por uma das partes a mergulhar
no contrato para verificar se ele está cumprindo uma função social.
Na propriedade privada, um dos bastiões do Código Bevilácqua, há
avanços expressivos com a propriedade, mais do que nunca vinculada à
sua função social.
Há uma evidente valorização da posse, como instrumento de justiça
social, posto que permite que a propriedade cumpra sua função social.
Foi a posse um dos exemplos dados sobre socialidade pelo prof
Miguel Reale:
“No caso de posse, superando as disposições até agora univer-
salmente seguidas, que distinguem apenas entre a posse de
boa e a de má-fé, o Código leva em conta a natureza social da
posse da coisa para reduzir o prazo de usucapião, o que constitui
novidade relevante na tela do Direito Civil.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
139

Assim é que, conforme o Art. 1.238,é fixado o prazo de 15 anos


para a aquisição da propriedade imóvel, independentemente de
título e boa-fé, sendo esse prazo reduzido a dez anos “se o possui-
dor houver estabelecido no imóvel a sua moradia, ou nele reali-
zado obras ou serviços de caráter produtivo.”

Por outro lado, pelo Art. 1.239, bastam cinco anos ininterrup-
tos para o possuidor, que não seja proprietário de imóvel rural
ou urbano, adquirir o domínio de área em zona rural não
superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu
trabalho ou de sua família, tendo nele sua moradia. Para tanto
basta que não tenha havido oposição.

O mesmo sentido social caracteriza o Art. 1.240, segundo


o qual, se alguém “possuir, como sua, área urbana até
duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos
ininterruptos, e sem oposição, utilizando-a para sua moradia
e de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não
seja proprietário de outro imóvel.”

Um magnífico exemplo da preponderância do princípio de


socialidade é dado pelo Art. 1.242, segundo o qual “adquire
também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incon-
testavelmente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos”.

Esse prazo é, porém, reduzido a cinco anos “se o imóvel houver


sido adquirido onerosamente, com base em transcrição constante
do registro próprio, cancelada posteriormente, desde que os pos-
suidores nele tiverem estabelecido sua moradia, ou realizado in-
vestimento de interesse social e econômico.”

Não vacilo em dizer que tem caráter revolucionário o disposto nos


parágrafos 4° e 5° do Art. 1.228, determinando o seguinte:
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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“§ 4ª - O proprietário também pode ser privado da coisa se o


imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse inin-
terrupta e de boa- fé, por mais de cinco anos, de considerável
número de pessoas, e estas nela tiverem realizado, em conjunto
ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de
interesse social e econômico relevante.

§ 5º - No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa inde-


nização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como
título para a transcrição do imóvel em nome dos possuidores.”

Como se vê, é conferido ao juiz poder expropriatório, o que não


é consagrado em nenhuma legislação.” (Revista da EMERJ – on-line,
Edição especial parte 1, páginas 38-44.)

ETICIDADE

A Eticidade figura como um dos fundamentos do Código Civil de


2002 devido à preocupação dos juristas que o compilaram de que, ao lado
da técnica jurídica, também fosse o código permeado de valores éticos.
A respeito do tema esclarece Miguel Reale, coordenador do
novo Código:
“Não obstante os méritos desses valores técnicos, não era possí-
vel deixar de reconhecer, em nossos dias, a indeclinável partici-
pação dos valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono,
é claro, das conquistas da técnica jurídica, que com aqueles
deve se compatibilizar.

Daí a opção, muitas vezes, por normas genéricas ou cláusulas


gerais, sem a preocupação de excessivo rigorismo conceitual,
a fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos herme-
nêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua
atualização dos preceitos legais.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, o Art.113 na Parte


Geral, segundo o qual “Os negócios jurídicos devem ser interpre-
tados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

E mais este:

“Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao


exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Lembro como outro exemplo o Artigo n° 422 que dispõe quase


como um prolegômeno à toda a teoria dos contratos, a saber:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na


conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.”
Frequente é no Projeto a referência à probidade e à boa-fé,
assim como à correção (corretezza) ao contrário do que ocorre
no Código vigente, demasiado parcimonioso nessa matéria,
como se tudo pudesse ser regido por determinações de caráter
estritamente jurídicas.”

Há portanto uma preocupação do legislador de permear as relações


jurídicas com a moral e á boa-fé objetiva, ao contrário do Código anterior
que entendia ser esta subjetiva, um preceito moral e não jurídico, uma
verdadeira exortação aos contratantes.
As relações contratuais agora devem ser éticas, no sentido de que
os contratantes são obrigados a guardar a mais estrita boa-fé, que agora é
um dever jurídico e não um simples apelo moral; também é uma cláusula
aberta, implícita em todo e qualquer contrato.
É a boa-fé objetiva uma conduta efetiva de homem honesto e não
a mera intenção; na boa-fé subjetiva bastava a intenção de não causar
dano. O que se procura é uma conduta efetiva dos contratantes de ma-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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neira a não causar lesão ao outro contratante, o que se quer agora são re-
lações contratuais transparentes, leais e acima de tudo com suas equações
econômicas equilibradas.
O art 113 diz que os negócios jurídicos se interpretarão agora pelos
princípios da boa-fé e os usos do lugar onde se celebrou, passando a boa-fé
a ser critério de interpretação dos contratos.
Assim, a eticidade leva a que, na interpretação das normas, a socie-
dade seja a destinatária, devendo o juiz indagar o que homens de boa-fé
teriam querido atingir com esse contrato.

CONCLUSÃO

Segundo o prof Miguel Reale : “Se o Direito é, antes de tudo, fruto


da experiência, bem se pode afirmar que o nosso trabalho traz a marca
dessa orientação metodológica essencial.”
As mudanças sociais marcadas pelas conquistas da ciência e da tec-
nologia, bem como a migração da população para as cidades, tornaram os
eixos fundamentais do Código Civil de 1916 obsoletos, o que justificava
uma nova codificação.
Decorrida uma década de sua promulgação, verificou-se que o novo
Código Civil conseguiu se impor como uma legislação capaz de propor-
cionar ao juiz ferramentas para melhor aplicação do direito material, mos-
trando que a “experiência” decorrente da passagem do tempo e a jurispru-
dência foram capazes de demonstrar o acerto na escolha dos fundamentos
embasadores deste diploma legal.
Mais importante que um novo código foi a mudança de paradigmas,
com o direcionamento do Código Civil para o social, em conformidade
com a Constituição Federal, alinhado com a sociedade atual que demanda
novas ideias e com a vontade de que os julgadores apliquem justiça de for-
ma “justa”, a despeito de falhas e omissões e excessos do texto, o qual irá
naturalmente se adaptar às mudanças da sociedade. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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BIBlIOGRAFIA

CAPANEMA, Sylvio – Notas de aula do curso ministrado para os


advogados da Petrobras, de 02.04.02 até 04.06.02.
REALE, Miguel, “Visão Geral do Novo Código Civil”, Revis-
ta da EMERJ – online, Edição Especial parte 1, páginas 38-44, http://
www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/anais_onovocodigoci-
vil/anais_especial_1/Anais_Parte_I_revistaemerj_38.pdf, acessado em
03/04/2012.
REALE, Miguel, Exposição de Motivos do Supervisor da Comissão
Revisora e Elaboradora do Código Civil, Doutor Miguel Reale, datada de
16 de Janeiro de 1975, http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edi-
coes/anais_onovocodigocivil/anais_especial_1/Anais_Parte_I_revistaemerj_9.
pdf , acessado em 03/04/2012.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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LEGALIDADE E EFICÁCIA
CONSTITUCIONAL NA
APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL
Flávia de Azevedo Faria Rezende Chagas¹

O palestrante Des. Sylvio Capanema de Souza começou comentan-


do a Revolução Francesa e o Direito Liberal.
Após, afirmou que o Código Civil de 1916 tinha três personagens
importantes: o marido, o proprietário e o contratante.
O marido era a figura que representava a família da época do Códi-
go de 1916. A mulher casada era considerada relativamente capaz, junta-
mente com os silvícolas e os pródigos. A mulher dependia do marido para
exercer os atos da vida civil.
O juiz, por sua vez, não tinha compromisso com a justiça social,
havia a necessidade de sentenças positivistas
A Constituição de 1988 incluiu valores fundamentais no seu artigo
1º, incluindo entre eles a dignidade da pessoa humana.
Princípio da unidade da Constituição: Consoante o princípio da
unidade da Constituição, as normas constitucionais devem ser analisadas
de forma integrada e não isoladamente, de forma a evitar as contradições
aparentemente existentes.
Princípio da concordância prática: Concebido por Konrad Hesse,
impõe-se que na interpretação da Constituição “os bens constitucionalmente

¹ Juíza de Direito Titular da 1ª Vara de Família, Infância, Juventude e Idoso da Comarca Itaboraí.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira


que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança
na aplicação ou na praticado texto”.
Princípio de eficácia interpretativa: a eficácia interpretativa significa
muito singelamente, que se pode exigir do Judiciário que as normas de
hierarquia inferior sejam interpretadas de acordo com as de hierarquia su-
perior a que estão vinculadas.
Princípio da interpretação conforme a Constituição: a interpretação
conforme a Constituição compreende sutilezas que se escondem por trás
da designação truística do princípio. Cuida-se, por certo, da escolha de
uma linha de interpretação de uma norma legal, em meio a outras que o
texto comportaria. Trata-se da escolha de uma interpretação da norma le-
gal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou
outras possibilidades interpretativas que o preceito admita (Luís Roberto
Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, 3ª edição, Saraiva).
O palestrante discorreu sobre os princípios da razoabilidade e pro-
porcionalidade.
Assim, a fim de ilustrar o conteúdo, acrescento os ensinamentos de
Luís Roberto Barroso, prestigiado autor sobre a matéria.
“O princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da
discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao
Judiciário invalidar atos legislativos ou atos administrativos
quando: a) não haja relação de adequação entre o fim visado e
o meio empregado; b) a medida não seja exigível ou necessária,
havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com
menor ônus a um direito individual; c) não haja proporcionali-
dade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de
maior relevo do que aquilo que se ganha.”

Em seguida, o Des. Sylvio Capanema trouxe noções da eficácia ho-


rizontal dos direitos da personalidade. Nesta linha de raciocínio, Sarlet
expõe com vasta propriedade:
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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“Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos


direitos fundamentais na esfera das relações privadas é a consta-
tação de que. Ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito,
no qual os direitos fundamentais, nas condições de direitos de
defesa, tinham por escopo proteger o indivíduo de ingerências
por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em
virtude de uma preconizada separação entre Estado e sociedade,
entre público e o privado, os direitos fundamentais alcançam sen-
tido apenas nas relações entre os indivíduos e o Estado, no Estado
social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades e
funções, mas também a sociedade cada vez mais participa ati-
vamente do exercício do poder, de tal sorte que a liberdade indi-
vidual não apenas carece de proteção contra os poderes públicos,
mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é,
os detentores de poder social e econômico, já que é nesta esfera que
as liberdades se encontram particularmente ameaçadas”.

Nesse ponto, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins dissertam:

“O reconhecimento do efeito horizontal parece ser necessário quan-


do encontramos, entre os particulares em conflito, uma evidente
desproporção de poder social. Uma grande empresa é juridicamente
um sujeito de direito igual a qualquer um de seus empregados.
Enquanto sujeito de direito, a empresa tem a liberdade de deci-
dir unilateralmente sobre a rescisão contratual. Na realidade, a
diferença em termos de poder social, ou seja, o desequilíbrio estru-
tural de forças entre as partes juridicamente iguais é tão grande
que poderíamos tratar a parte forte como detentora de um poder
semelhante ao do Estado.
O grau elevado de desigualdade entre os particulares (abuso de
poder) autoriza e firma o entendimento da incidência imediata
dos direitos fundamentais nas relações extra-estatais, já que quanto
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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mais o direito a ser tutelado for essencial à vida da pessoa humana


(carga valorativa alta) maior deverá ser a subsunção das normas de
direitos fundamentais nas relações entre particulares...”

Portanto, a partir da Constituição de 1988 operou-se a erosão da


divisão entre direito público e direito privado. Hoje há uma intercalação
entre os dois direitos, trazendo à tona o Direito Civil Constitucional.
O palestrante criticou o livro do Direito de Família do Código Civil, pelo
tratamento inferior dado à união estável e a companheira no direito sucessório.
Comentou sobre as “cláusulas abertas”, que tiveram inspiração no
Código Civil alemão. Com elementos no art. 187. Também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor
da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente
a possua ou detenha.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam pre-
servados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a
fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer como-
didade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desa-
propriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem
como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel
reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé,
por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela
houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços con-
siderados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
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§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indeni-


zação devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título
para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
No parágrafo 3º do artigo 1.228 temos exemplo de abuso de direito
aplicado ao patrimônio e nos parágrafos 4º e 5º temos exemplos de cláu-
sulas abertas. Isso, porque, extensa área depende do local e considerável
número de pessoas depende do local também.
A propriedade, hoje, visa a um interesse social, até mesmo por força
de comando constitucional caracterizador de direito fundamental (art. 5º,
XXIII, da CR/88).
Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, cons-
tituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas
leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após
a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver
sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar
preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código
para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Na conclusão, trago como forma de ilustrar mais o tema debatido
brilhantemente pelo palestrante, trecho do livro do constitucionalista Da-
niel Sarmento (Direitos Fundamentais e Relações Privadas).

“(...) O Código Civil (1916) representava o centro do sistema do


Direito Privado. O Código, que deveria cristalizar normas racionais
e imutáveis, assentava-se na garantia da propriedade e da liberdade
contratual, protegendo os interesses da burguesia ascendente.

Contudo, com o advento do Estado Social, tornou-se crista-


lino que a desigualdade brutal entre os atores privados enseja a
opressão do mais forte sobre o mais fraco.

O Estado e o Direito assumem novas funções promocionais,


e se consolida o entendimento de que os direitos fundamentais
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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não devem limitar o seu raio de ação às relações políticas, entre


governantes e governados, as relações de trabalho e família.
Assiste-se à edição de uma profusão de normas jurídicas, numa
verdadeira inflação legislativa, com o rompimento do monopólio
quase absoluto do Código Civil. Estas normas, de duração muitas
vezes efêmera, se imiscuem na esfera das relações entre particu-
lares, consagrando uma intervenção estatal cada vez mais ampla
no cenário privado. Fala-se numa “Era da Descodificação”.

As Constituições, dentro deste novo marco, tornam-se mais


ambiciosas e passam a disciplinar também as relações econômi-
cas e privadas, abandonando o arquétipo pré-weimariano, em
que cuidavam apenas da organização estatal e das relações entre
governantes e governados. A expansão e o fortalecimento da ju-
risdição constitucional, por outro lado, acarretam com o tempo, a
cristalização da idéia de que a Constituição é antes de tudo nor-
ma jurídica, e não apenas uma diretriz política para o legislador,
desvestida de força vinculante.” 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
150

OBSERVAÇÕES PANORÂMICAS
SOBRE O CÓDIGO CIVIL APÓS
DEZ ANOS DE SUA EDIÇÃO
Gustavo Quintanilha Telles de Menezes¹

introdução

Em boa hora a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro


- EMERJ elaborou seminário de palestras sobre os Dez Anos do Código
Civil, instituído pela Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para entrar
em vigor um ano após sua sanção.
Como ensinou o Professor Miguel Reale, em palestra conferida
na própria EMERJ, por ocasião da edição do Código Civil, este é a
“constituição do homem comum estabelecendo as regras de conduta
de todos os seres humanos, mesmo antes de nascer, dada a atenção
dispensada aos direitos do nascituro, até depois de sua morte, ao fixar
o destino a ser dado aos bens deixados pelo falecido, sendo assim, a lei
por excelência da sociedade civil”.
Após longa tramitação no Congresso Nacional, do projeto deflagra-
do no ano de 1975 pelo Presidente Costa e Silva, finalmente foi publicado
o trabalho a que se pode imputar, passados dez anos, relevante influência
no afastamento da patrimonialização do Direito Civil, estabelecida no Có-
digo de 1916 e uma aproximação aos valores constitucionais da ordem
instituída em 1988, que vinham sendo, até então, adotados apenas em
legislações especiais.

¹ Juíz de Direito da 15ª Vara Cível - Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
151

O código não foi uma obra redigida por um legislador solitário,


sendo seu projeto elaborado por uma comissão, submetido a sucessivas
revisões e, mesmo depois de publicado, sofreu diversas alterações, tan-
to de ajuste, quanto de evolução legislativa, embora seu núcleo seja o
mesmo desde sua edição.
Assim, veio co Código Civil balizar na legislação ordinária as
profundas alterações que a Constituição de 1988 introduziu em maté-
ria de Direito de Família, entre outras.
Não há como enumerar todas mudanças operadas pela nova co-
dificação em todos os setores da vida civil, haja vista o estreito objeto
deste trabalho, porém é interessante abordar os princípios que presi-
diram a sua elaboração, pois as mais relevantes conquistas científicas
dependem sempre dos novos paradigmas que as condicionaram.

Breve notas sobre as diretrizes

A semente do Código Civil foi criada em 1969: uma “Comis-


são Revisora e Elaboradora do Código Civil”, que tinha a esperança
de aproveitar a maior parte do Código Civil de 1916. Todavia, logo
notou-se a inviabilidade dessa meta, não podendo deixar de prevalecer
a reelaboração, uma vez que a jurisprudência e a análise progressiva da
matéria revelaram novos princípios ou diretrizes que deveriam nortear
a codificação. Por outro lado, em se tratando de um trabalho sistemáti-
co, a alteração feita em um artigo ou capítulo repercute necessariamen-
te em outros pontos do Projeto.
Como se observa em boa doutrina e até pela comparação entre o
sistema anterior e o sistema vigente – cuja aplicação hoje já está mais
amadurecida – destacam-se as seguintes diretrizes:
a) Preservou-se dispositivos do Código anterior sempre que pos-
sível, não só pelos seus méritos intrínsecos, mas também pelo acervo de
doutrina e de jurisprudência que em razão dele se constituiu.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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b) Adaptação à sociedade contemporânea e as mais significativas


conquistas da Ciência do Direito;
c) Toda a estrutura do código é norteada por certos valores considera-
dos essenciais, tais como o de eticidade, de socialidade e de operabilidade;
d) Aproveitou-se dos trabalhos de reforma da Lei Civil, nas duas
meritórias tentativas feitas, anteriormente, por ilustres jurisconsultos, pri-
meiro por Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de
Azevedo, com o anteprojeto do “Código das Obrigações”; e, depois, por
Orlando Gomes e Caio Mario da Silva Pereira, com a proposta de ela-
boração separada de um Código Civil e de um Código das Obrigações,
contando com a colaboração, neste caso, de Silvio Marcondes, Theóphilo
de Azevedo Santos e Nehemias Gueiros.
e) Inseriu-se no Código matéria já consolidada ou com relevante
grau de experiência crítica, transferindo-se para a legislação especial adi-
tiva o regramento de questões ainda em processo de estudo, ou, que, por
sua natureza complexa, envolvem problemas e soluções que extrapolam do
Código Civil;
f ) Elaborou-se nova estrutura ao Código, mantendo-se a Parte Ge-
ral - conquista preciosa do Direito brasileiro, desde Teixeira de Freitas - mas
com nova ordenação da matéria, a exemplo das mais recentes codificações;
g) Não se efetivou a unificação do Direito Privado, mas sim do Di-
reito das Obrigações - de resto já uma realidade operacional no País - em
virtude do obsoletismo do Código Comercial de 1850 - com a consequente
inclusão de mais um Livro na Parte Especial, que, de início, se denominou
“Atividades Negociais”, e, posteriormente, “Direito de Empresa”.

Os princípios fundamentais

O primeiro princípio a ser destacado é a ETICIDADE. O Código


buscou superar o apego do Código anterior ao formalismo jurídico, fruto, a
um só tempo, da influência recebida a cavaleiro dos séculos 19 e 20, do Di-
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reito tradicional português e da Escola germânica, esta dominada pelo tecni-


cismo institucional haurido na admirável experiência do Direito Romano.
Não obstante o mérito desses valores técnicos, não era possível dei-
xar de reconhecer, em nossos dias, a indeclinável participação dos valores
éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das conquistas da
técnica jurídica, que com aqueles deve se compatibilizar.
O diploma utiliza normas genéricas ou cláusulas gerais, sem a preo-
cupação de excessivo rigorismo conceitual, a fim de possibilitar a criação de
modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes,
para contínua atualização dos preceitos legais.
Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, o art. 113 na Parte Geral,
segundo o qual
“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé
e os usos do lugar de sua celebração”.
E mais este:
“Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-
lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômi-
co ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O Código dispõe em diversos artigos sobre a probidade e a boa-fé,


ao contrário do que ocorria no Código anterior.
Outro valor essencial que informa o Código Civil e base de sua
aplicação, desde sua vigência, consiste na SOCIALIDADE. Esmera-se o
Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei
anterior, feita para um país ainda com enorme parcela agrícola.
O brasileiro de hoje vive nas cidades na proporção de 80%, o que
representa uma alteração significativa da mentalidade hegemônica, inclu-
sive em razão dos meios de comunicação, como o rádio e a televisão. Daí o
predomínio do social sobre o individual.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Alguns dos exemplos dados já consagram, além da exigência ética,


o imperativo da socialidade, como quando se declara a função social do
contrato na seguinte forma:

“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos


limites da função social do contrato”.

Por essa razão, em se tratando de contrato de adesão, estatui o Art.


422 o seguinte:

“Art. 422. Quando houver no contrato de adesão cláusulas am-


bíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais
favorável ao aderente”.

No que tange a posse, superando as disposições anteriormente vi-


gentes, que distinguiam apenas entre a posse de boa e a de má-fé, o Código
e sua interpretação nestes dez anos leva em conta a natureza social da posse
da coisa para reduzir o prazo de usucapião, o que constitui novidade rele-
vante na tela do Direito Civil.
Assim é que foi fixado o prazo de quinze anos para a aquisição da
propriedade imóvel, independentemente de título e boa-fé, sendo esse pra-
zo reduzido a dez anos “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a
sua moradia, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.” E,
seguindo essa tendência, mais recentemente foi estabelecido o usucapião
da mulher, de matiz familiar.
Por outro lado, pelo art. 1.239, bastam cinco anos ininterruptos
para o possuidor, que não seja proprietário de imóvel rural ou urbano,
adquirir o domínio de área em zona rural não superior a cinquenta hecta-
res, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nele
sua moradia. Para tanto, basta que não tenha havido oposição, seguindo,
assim, a Constituição da República.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
155

Observando esse princípio e a realidade social, trouxe o Código o


disposto nos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228, determinando o seguinte:

“§ 4º - O proprietário também pode ser privado da coisa se o


imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininter-
rupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número
de pessoas, e estas nela tiverem realizado, em conjunto ou separa-
damente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social
e econômico relevante.”

§ 5º - No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa


indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a
sentença como título para a transcrição do imóvel em nome
dos possuidores.”

Por fim, destaca-se o princípio da OPERABILIDADE, sendo esta-


belecidas soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e apli-
cação pelo operador do Direito.
Exemplo disso é o relativo à distinção entre prescrição e decadência,
tendo sido baldados os esforços no sentido de se verificar quais eram os
casos de uma ou de outra, com graves consequências de ordem prática.
O Código enumera, na Parte Geral, os casos de prescrição, em nu-
merus clausus, sendo as hipóteses de decadência previstas em imediata co-
nexão com a disposição normativa que a estabelece. Assim é, por exemplo,
que após o artigo declarar qual é a responsabilidade do construtor de edifícios
pela higidez da obra, é estabelecido o prazo de decadência para ser ela exigida.
Por outro lado, pôs-se termo a sinonímias que possam dar lugar a
dúvidas, fazendo-se, por exemplo, distinção entre associação e sociedade.
Destinando-se aquela para indicar as entidades de fins não econômicos, e
esta para designar as de objetivos econômicos.
Adota, ainda, o Código, a técnica de cláusulas gerais, como acontece
nos casos em que se exige probidade, boa-fé ou correção (corretezza) por
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
156

parte do titular do direito, ou quando é impossível determinar com pre-


cisão o alcance da regra jurídica. É o que se dá, por exemplo, na hipótese
de fixação de aluguel manifestamente excessivo, arbitrado pelo locador e a
ser pago pelo locatário que, findo o prazo de locação, deixar de restituir a
coisa, podendo o juiz, a seu critério, reduzi-lo, ou verbis:

Art. 575, parágrafo único - “Se o aluguel arbitrado for manifes-


tamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo, mas tendo sempre em
conta o seu caráter de penalidade”.

A toda evidência, são previstas hipóteses cuja aplicação in concreto


caberá ao juiz decidir, em cada caso ocorrente, à luz das circunstâncias ocor-
rentes, tal como se dá, por exemplo, quando for indeterminado o prazo de
duração do contrato de agência, e uma das partes decidir resolvê-lo mediante
aviso prévio de noventa dias, fixando tempo de duração incompatível com a
natureza e o vulto do investimento exigido do contratante, cabendo ao juiz
decidir sobre sua razoabilidade e o valor devido, em havendo divergência
entre as partes, consoante dispõe o art. 720 e seu parágrafo único.
Como se vê, o que objetivou o Código foi alcançar o Direito em sua
concreção, ou seja, em razão dos elementos de fato e de valor, que devem
ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma.
Nessa ordem de ideias, merece menção o § 1º do art. 1240, o qual
estatui que, no caso de usucapião de terreno urbano,
“O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem
ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil”.

Atende-se, assim, à existência da união estável, considerada nova


entidade familiar.
A opção do legislador por uma linguagem precisa e atual, menos
apegada a modelos clássicos superados, mas fiel aos valores de correção, em
muito auxiliou a fixação dos conceitos, nestes dez anos de sua existência.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
157

Pontos relevantes

A parte geral estabelece as normas sobre as pessoas e os “direitos da


personalidade” que estão na base das soluções normativas depois objeto da
Parte Especial. Merece encômios essa providência de incluir disposições
sobre os direitos da personalidade, uma vez que a pessoa é o valor-fonte de
todos os valores jurídicos.
Outra iniciativa louvável e que viabilizou a utilização do Código
consistiu na disciplina específica dos negócios jurídicos que são os atos
jurídicos de mais frequente ocorrência, expressão por excelência da fonte
negocial, ao lado das três outras fontes do direito: as leis, os usos e costu-
mes e a jurisprudência.
No que tange à Parte Especial, o Código tem uma sequência lógica,
situando o Direito das Obrigações como consequência imediata do antes
estabelecido para os atos e negócios jurídicos, não sendo demais acentuar
que há disciplina conjunta das obrigações civis e mercantis, o que, repito,
já constitui orientação dominante em nossa experiência jurídica, em virtu-
de do superamento do vetusto Código Comercial de 1850. Com efeito, já
o Direito Comercial se baseia no Código Civil.
Do Direito das Obrigações se passa ao Livro que trata do Direito de
Empresa, o qual, a bem ver, se refere a toda a vida societária, com remissão
à legislação especial sobre sociedades anônimas e sobre cooperativas, por
abrangerem questões que extrapolam da Lei Civil.
A prática chancelou a adoção do termo Direito de Empresa, bem
como sociedade empresária, andando bem o Código por estabelecer ape-
nas os requisitos gerais da sociedade simples, objeto da diversificada legis-
lação relativa aos múltiplos tipos das sociedades não empresariais.
No que se refere ao Direito de Família, merece realce a distinção
feita entre o Direito Pessoal e o Patrimonial de Família. O regramento da
união estável ficou para o final, para ser apreciada sob os dois mencionados
aspectos, obedecido rigorosamente o disposto na Constituição.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
158

Sobre direito de família

Com a Constituição da República, ocorreram mudanças substan-


ciais tão somente no Direito de Família, instaurando a igualdade absoluta
dos cônjuges e dos filhos, com a supressão do pátrio poder, que, por suges-
tão minha, passou a denominar-se “poder familiar”.
É claro que essas alterações vieram no texto do Código Civil, por
emendas, pois não constavam de seu projeto, que era anterior. A utilização
do termo “ser humano” e as novas regras que vieram estabelecer efetiva
igualdade entre os cônjuges e os filhos, inclusive no pertinente ao Direito
das Sucessões, marcaram enorme diferença nestes primeiros anos após a
mudança do sistema.
Nesse sentido, o cônjuge passou a ser também herdeiro, em virtude
da adoção de novo regime geral de bens no casamento, o da comunhão
parcial, corrigindo-se omissão existente no Direito das Sucessões.
Por outro lado, o Código disciplinou melhor a união estável como
nova entidade familiar, que, de conformidade com o § 3º do art. 226 da
Constituição, só podia ser entre o homem e a mulher. Não houve, ainda,
tempo nem momento político para o legislativo incorporar ao texto a re-
cente interpretação que o Supremo Tribunal Federal deu à matéria, esten-
dendo o regramento da união estável às relações homoafetivas.
Há ainda muito o que aprimorar, mas esses primeiros dez anos
apontam o êxito da alteração legislativa e permitem uma perspectiva de
sua evolução. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
159

DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL


EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E INCIDÊNCIAS.
HIPERJUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Ivone Ferreira Caetano¹

INTRODUÇÃO

Dentre as problemáticas enfrentadas pelo novo Código Civil, des-


tacam-se as que concernem ao Direito Familiar. O Código de 2002, em
que pese suas inovações, é diploma em clara dissonância com as inovações
doutrinárias e fáticas. O lapso entre o texto normativo e a realidade, por
sua vez, convida o estudioso e o aplicador do Direito a reflexões de ordem
jurídica, social e filosófica.
Tanto por questões conjunturais, referentes a sua elaboração, como
por características estruturais da sociedade e do Estado contemporâneos,
a aplicação do novo Código constitui um crescente exercício de adap-
tação dos dispositivos à luz da enormidade de novas situações, oriundas
da revolução tecnológica e da globalização. A Doutrina, atenta à nova
realidade, tem se dedicado sobremaneira à modernização dos robustos
institutos do Direito Civil.
Exemplo maior desses novos ares é a Escola Civil-Constitucionalista,
vanguarda da produção acadêmica dentre os civilistas na atualidade. Preo-
cupada com a preservação do texto positivado, mas atenta às inovações do
ordenamento, busca conciliar forma e princípio, adaptando os dispositivos
infraconstitucionais à luz dos preceitos fundamentais do ordenamento.

¹ Juíza Titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Comarca da Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
160

Um esforço que não se restringe à academia, devendo perpassar


também o trabalho do aplicador da ciência jurídica.
Nesse novo contexto, relevantes e complexas questões se defrontam
com o Direito. Se por um lado a interpretação funcional e valorativa dos
dispositivos permite uma aproximação material do primado da Justiça, por
outro, a constante relativização das normas gera insegurança jurídica, dele-
gando cada vez mais poder aos agentes do Direito. Fato que, assomado às
crises estruturais do Estado e da sociedade – enraizados na crise da cultura
ocidental –, profetizam um futuro sombrio para o homem contemporâneo.
O presente trabalho, portanto, visa a abordar a problemática do Di-
reito de Família dentro do Novo Código Civil, inserindo-a dentro de um
contexto mais amplo, qual seja, a crise do Estado e a hiperjudicialização
do direito de família. Num primeiro momento, abordaremos de forma
abrangente e crítica a crise do Estado e do Direito na atualidade. Em segui-
da, procederemos à análise das diversas inflexões incidentais no âmbito do
direito de família, por meio de exemplos do dia a dia jurídico.

A CRISE DO ESTADO E O DIREITO DE FAMÍLIA

Para que se entenda o conjunto de inovações do direito familiar e


sua problemática normativa, é necessário observar a matéria de uma pers-
pectiva mais ampla. A hiperjudicialização do Direito de Família, a bem da
verdade, é mera inflexão de um fenômeno maior, que perpassa o próprio
Estado e a cultura ocidentais. Nesse sentido, importante é que se tenha em
mente o processo geral em toda sua abrangência, para então destrinchar
sua relação com o fenômeno incidental.
Segundo Ricardo Campa, a crise do Estado se funda na própria crise
da cultura ocidental, à qual se refere como a ‘época das incertezas’. Em seu
breve artigo² , Campa demonstra como essa crise convulsiona a sociedade
e o próprio Estado, que se veem presos a uma contínua reformulação qua-
litativa dos valores e estruturas, tendo como finalidade última a operacio-

² CAMPA, Riccardo, A época das incertezas e as transformações no Estado Contemporâneo, 1ª Edição. São
Paulo, Difel: Instituto Italiano di Cultura, 1985.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
161

nalidade de ambos os sistemas – estatal e social. O Direito, nesse contexto,


defronta-se com problemas de ordem teórica e prática.
No plano teórico, destaca-se a inconstância e instabilidade na defi-
nição dos valores merecedores de tutela jurídica. Seja por questões próprias
à ciência jurídica, seja pelo florescimento contínuo de postulados e prin-
cípios oriundos do crescente número de preocupações do Estado –, fato é
que o Direito apenas logra evoluir, mas não consegue promover transfor-
mações paradigmáticas de caráter revolucionário. Nesse sentido, em não
podendo reconstruir seus pilares epistemológicos, só lhe resta inchar-se,
criando novas ramificações e reformulações valorativas.
A título exemplificativo, seria possível refletir acerca das transforma-
ções principiológicas no ordenamento desde o surgimento do Estado de
Direito. A autonomia privada não deixou de existir, nem perdeu seu lugar
na constitutio. Teve, simplesmente, que dividi-lo com outras preocupações
do novo Estado de Direito Material. A constante reformulação e derivação
de postulados, por sua vez, impedem a consolidação morfológica. Alargan-
do-se de forma desconexa, desestruturada e contraditória, o Direito acaba
por render-se a uma indefinição semântica que abre espaço para o arbítrio
do aplicador e do próprio estudioso da ciência jurídica.
A relativização dos valores universais, por sua vez, implica uma nor-
matividade específica, funcional, que tenta responder às particularidades
que a abstração formalista não consegue. No entanto, tal normatividade
é um dado a posteriori, seja pela imprevisibilidade da ação humana e suas
consequências, seja pela falência do sistema representativo enquanto espa-
ço de reflexão dos valores da sociedade.
Adentramos a faceta prática do problema. Se a normatividade é sub-
sequente à ação e aos fatos, cabe ao Direito a resposta imediata a toda
sorte de questões da sociedade. Entretanto, se os valores dos instrumen-
tos jurídicos são constantemente relativizados, como garantir a tutela dos
princípios do ordenamento frente ao arbítrio das instituições e operadores
do Direito? Num mundo de hermeneutas, toda argumentação é possível
de ser utilizada. A desconexidade morfológica gera a desconexidade das
decisões jurídicas que, em última análise, são decisões do Estado.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
162

As instituições do sistema de justiça, sujeitas ao corporativismo e à


lógica de atuação das organizações, utilizam-se da fragilidade dos valores
para reformulá-los à conta própria. Buscando representação política – po-
der, ainda que adstrito à esfera judiciária – atuam com irresponsabilidade
para com os princípios que visam a proteger, promovendo, na via prática, o
esfacelamento de qualquer possibilidade de consolidação dos fundamentos
e preceitos do Estado e da sociedade.
A atuação dos Operadores de Direito são exemplos claros da fragmen-
tariedade de visões dentro do próprio Direito: a jurisdicionalização do Poder
Familiar, a perseguição às Instituições de Permanência, a banalização dos
princípios fundamentais são apenas exemplos da excessiva jurisdicionalização
do Direito Familiar e Infanto-juvenil. Tudo se faz, se requer e se defere em
nome de princípios e valores abstratos que cada vez mais se revelam vazios. A
incidência dos fatos ora apontados, seja no que concerne à definição dos va-
lores, seja para com os instrumentos normativos – muitas vezes deixados de
lado em nome dos próprios princípios – gera instabilidade: o jogo dentro do
sistema de justiça leva todos os envolvidos a buscarem, na via argumentativa,
a reformulação dos conceitos e definições do ordenamento.
Os Operadores do Direito envaidecem-se desta nova missão, tendo
em vista que o Direito revela-se como um grande espaço de representação
política, por meio do qual a comunicação entre sociedade e Estado se dá.
Movidos por uma fé interna em suas próprias instituições – fé que em nada
difere da religiosa – transportam para o Poder judiciário, ultima ratio de
um Estado incapaz de garantir eficazmente direitos a toda a população,
relegam o poder decisório do Estado a convicções individuais, incidentais,
sujeitas a juízos subjetivos.
A jurisdicionalização do Poder Familiar, com a crescente imposição
por parte do Estado dos direitos e deveres que incumbem aos pais, é claro
exemplo de uma atuação indevida destes Operadores – aliada, por sua vez,
de uma interpretação, muitas vezes equivocada do Poder Judiciário. Se, por
um lado, o Estado se preocupa com as questões sociais, acaba por assumir
um papel cada vez mais paternalista diante da inércia do corpo social.
Entregue a uma “irracionalidade de forma tamanha que só pode
atuar e girar o mecanismo econômico e social se controlada pelo Estado”, a
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
163

sociedade responde à ingerência estatal por meio de uma crescente depen-


dência. A réplica do Estado vem então ainda mais forte e incisiva, criando
um ciclo vicioso que acaba por corromper ambos os sistemas: o social, que
perde paulatinamente a autonomia, e o estatal que, na persecução inces-
sante dos valores, acaba por dissolvê-los em seus múltiplos sentidos.
Se Estado e sociedade se confundem na era contemporânea, logo,
ambos estão sujeitos às incertezas, à irracionalidade, para a qual a única
resposta é a agudização das convicções. As convicções, no entanto, pro-
duzem novos juízos indagatórios, impedindo toda e qualquer forma de
homogeneidade sistêmica.
À conduta dos atores sociais corresponde àquela dos agentes estatais.
A inexplicabilidade do mundo produz respostas em todas as classes e níveis
sociais. A disposição da ordem, em constantes tentativas de abandono,
encontra-se presente em todos os estratos da comunidade: as drogas; a
situação de rua; o crime; a irresponsabilidade administrativa; a corrupção;
são todas formas de dispor da ordem vigente que se diferenciam apenas
quanto ao grau destrutivo que possuem.
A atuação dos operadores do Direito dentro da nova visão em que
se investiram, levando para o Judiciário as questões que, em princípio,
caberiam ao próprio corpo social funcionar em nada difere daquela da mãe
narcótica e negligente. No entanto, enquanto esta possui consequência in-
cidental, aquela se apresenta muito mais destrutiva, na medida em que se
reflete estruturalmente sobre a sociedade e o estado.
As instituições da Justiça, nesse contexto, revelam-se progressiva-
mente incapazes de proceder à efetivação dos princípios e valores consti-
tucionais. Dotadas de um ‘poder dissolvente’, materializam-se nos agentes
humanos, que veiculam, em meio ao emaranhado de definições possíveis,
aquelas que sejam de seu interesse.
A tecnicidade, a prática e o hábito substituíram-se à reflexão valora-
tiva, fato notório no mundo jurídico. A linguagem e o ensino do Direito,
num crescente abandono das reflexões de ordem social e filosófica em detri-
mento do conhecimento técnico e prático, vedam ao operador a consciência
efetiva dos conteúdos que visa a aplicar. O sentido conferido à actio jurídica
é dado pela convicção, que juntamente com o hábito cria a presunção. A
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
164

experiência prática ‘muda e altera o tom do texto constitucional conforme


as transformações sociais’. O hábito, por sua vez, desconstrói o necessário: o
supérfluo passa a ser essencial, a prioridade cede lugar ao efêmero.
A noção da normatividade e do controle jurisdicional necessários
perde-se no hábito da ação displicente. É assim que o Direito infla, o
Estado assume novas preocupações como necessárias à manutenção da
ordem. Destinada a fins cada vez mais específicos, a atuação normativa
demonstra a irracionalidade do Estado: a Lei da Palmadinha é exemplo
claro do excesso normativo que, se aprovada, no meu entender, irá se
constituir em grande e indevida ingerência do Estado na esfera privada
da família. Ingerência que, por responder à operacionalidade do sistema,
poderá se manter e se legitimar.

AS NOVAS MODALIDADES DE FAMÍLIA E O NOVO


CÓDIGO CIVIL

A expansão das ‘modalidades da realidade fática’ no Direito de Família


leva a um crescente apelo à práxis, às convicções individuais que modulam
os juízos de valor e deturpam o tom dos dispositivos normativos. O caos é
instaurado por meio de um conjunto de decisões que, reportando-se à mes-
ma instituição, possuem resultados e conteúdos completamente distintos. As
diversas concepções acerca da instituição familiar, bem como os novos tipos
de famílias que surgem todos os dias, impõem toda uma sorte de temas aos
quais o Direito é incapaz de fornecer uma resposta una e conjunta.
No direito familiar, a totalidade normativa não logra abarcar as
transformações sociais oriundas da tecnoestrutura. Seja pelas novas tec-
nologias, seja pelas mudanças adaptativas da sociedade às necessidades do
sistema, os diversos modelos de família que surgiram nas últimas décadas
estão fora do âmbito protetivo previsto na legislação infraconstitucional.
No caso brasileiro, o Código Civil de 2002, em que pese sua
recente implementação, é incapaz de responder de maneira eficaz à
flexibilidade da instituição familiar na atualidade. Seja por questões
inerentes à elaboração do próprio Código, seja pela contínua refor-
mulação dos valores diante da imprevisibilidade do homem de ação, a
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
165

lei em questão é incapaz de responder a situações que urram por uma


solução – ou ao menos um parecer – do Estado.
O novo Código, muito embora recente, é anterior à Constituição
Federal, tendo em vista que seu anteprojeto data da década de 1973.
Sua elaboração, portanto, se deu no regime militar, período no qual as
declarações de direitos humanos – e, dentre elas, as que fazem menção à
família – eram muitas das vezes desprezadas pelo Estado brasileiro, impe-
dindo que os ideais nelas constantes fossem internalizados pela legislação
infraconstitucional.
Por outro lado, a prevalência de uma mentalidade conservadora nos
diversos poderes e instituições do Estado vedava o acesso de questões como
gênero, homoafetividade, infância e juventude – todas pertinentes à temá-
tica familiar - ao Poder Legislativo. A evolução tecnológica e científica,
que viria a possibilitar novas formas de família oriundas das técnicas de
reprodução assistida, seria um dado a posteriori.
Nesse contexto, a Constituição de 1988 e os novos paradigmas que
trouxe ao Estado brasileiro permitiram a expressão de uma diversidade de te-
mas até então considerados irrelevantes pelo Estado. Entretanto, tanto a inép-
cia do legislador nacional, como o próprio andar do homem de ação impedem
que o lapso seja recuperado. Os dispositivos legislativos criados posteriormente
à Constituição restringiram-se a abordar matérias que dialogam com o direito
familiar – infantojuventude, gênero, alienação parental, estatuto do idoso –,
mas os pilares jurídicos da família ainda restam por serem revistos.
Alguns exemplos oriundos da práxis permitem aclarar a dimen-
são que a instituição familiar tem tomado no século XXI. As formas
de família renovada; as famílias homoafetivas; a expansão do direito à
convivência familiar entre idosos e netos; as soluções judiciais para os
antigos ‘filhos de criação’; as formas de reprodução assistida são todos
modelos familiares que, muito embora distintos da família tradicional,
se legitimam enquanto garantidores do direito à convivência familiar.
Abordemos, a título ilustrativo, cada uma dessas hipóteses.
A família renovada, mais comum – mas não menos importante
– dentre todas as hipóteses, constitui a família oriunda de uma sepa-
ração. A princípio já comumente tratada pelo Código Civil, por meio
das hipóteses de guarda compartilhada ou unilateral, as implicações
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
166

jurídicas dizem respeito sobretudo a fatores supervenientes à separação,


por exemplo, o surgimento de novo vínculo com o companheiro de um
ou ambos os cônjuges.
Ainda que o Código preveja a adoção unilateral pelo companheiro
de um dos cônjuges, não fornece instrumentos aptos a esclarecer como se
daria o vínculo entre o adotado e seu pai ou mãe biológico. Em outros ter-
mos, seria possível manter os vínculos com pai ou mãe biológico, criando-
se novos vínculos com seus respectivos companheiros?
Os casais homoafetivos, por sua vez, constituem temática mais re-
cente e polêmica. A possibilidade de união estável entre pares do mesmo
sexo, embora tenha dirimido a clara ausência de previsão legal para tais
situações, é ainda insipiente e incapaz de abarcar a série de direitos que, sob
o instituto do casamento, estariam garantidos. Desde a filiação até o direi-
to sucessório, famílias homoafetivas encontram-se mal e insipientemente
amparadas pelo Direito.
A falta de regulamentação veda uma vinculação do Poder Judiciário,
impedindo que atitudes pioneiras – como a adoção homoafetiva – se refli-
tam de forma isonômica no território nacional. O esforço normativo, ao
menos no que tange à temática da filiação, deverá ser capaz de conciliar a
situação desses casais às novas técnicas de fertilização in vitro, de forma a
possibilitar uma tutela protetiva eficaz.
O problema da guarda de fato – ou dos ‘filhos de criação’ – é tão
ou mais relevante, na medida em que possui clara inflexão nas camadas
mais desfavorecidas da sociedade. Muitas vezes, uma mesma família acaba
por exercer o poder familiar sobre indivíduos que não são, sequer, paren-
tes distantes. Em outros casos, um membro da família extensa assume a
responsabilidade de determinada criança, quando seus pais ou familiares
diretos não puderam assumi-la.
Muito embora a previsão legislativa constante do Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente, a carência de instrumentos jurídicos no Direito de
Família é ainda assim um aspecto negativo. O direito infantojuvenil, por
sua perspectiva específica, não pode tratar da totalidade de situações en-
frentadas por um núcleo familiar que se estruture sob tais condições.
As instituições e órgãos do Poder Judiciário atuantes nessa área, logo,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
167

desprovidos de uma noção do ‘todo’ familiar, não conseguem responder à raiz


do problema. Famílias falidas, em alto grau de vulnerabilidade, e que não con-
seguem uma tutela eficaz dentro do próprio direito familiar, acabam tendo de
recorrer ao direito da criança e do adolescente para ter alguma chance de me-
lhoria social objetiva. Por outro lado, caberia questionar se a Justiça, ao impor
o exercício do poder parental pelos guardiões de fato – mas ausente na hora
de propor soluções eficazes para todo o núcleo familiar – não estaria apenas
deteriorando o sentimento de solidariedade presente nessas famílias.

CONCLUSÃO

A solução para todos esses problemas – se houver – deverá passar


pela capacidade de negociação de um grau de racionalidade que permita
alguma consolidação morfológica dos preceitos do sistema estatal. No en-
tanto, se o Estado é ‘referente administrativo de um conjunto de decisões
e interesses que se manifesta como irrenunciável e inadiável num deter-
minado momento conotativo da comunidade social’, é mais provável que
a certeza/incerteza valorativa responda aos desígnios da operacionalidade,
que a preceitos racionais cada vez mais relativizados.
O retorno a um entendimento conjunto – que possibilitará uma
normatização que acompanhe o andar do homem contemporâneo –, de-
verá passar pelo retorno da capacidade de representação política do Estado,
conciliada ao rompimento da inércia da sociedade. Contudo, enquanto o
mesmo não ocorrer, caberá ao Magistrado reportar-se aos princípios do
ordenamento, procedendo à aplicação dos institutos de forma a consolidar,
em meio à ‘metamorfose ambulante’ da sociedade, algum sentido possível
aos valores e fundamentos do Estado.

REFERÊNCIAS

CAMPA, Riccardo, A época das incertezas e as transforma-


ções no Estado Contemporâneo, 1ª Edição. São Paulo, Difel: Insti-
tuto Italiano di Cultura, 1985.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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RESPONSABILIDADE CIVIL DAS


PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO
PRIVADO PRESTADORAS DE
SERVIÇO PÚBLICO

Joana Cardia Jardim Côrtes¹

INTRODUÇÃO

O Código Civil de 2002 acabou de completar 10 anos e, em


homenagem ao seu décimo aniversário, realizou-se na Escola da Ma-
gistratura do Estado do Rio de Janeiro seminário abordando diversos
temas que compõem o universo do sistema civil, com a participação de
grandes juristas.
Da exposição dos ilustres palestrantes, extrai-se o quão dinâmica
é a legislação civil, principalmente nesse novo milênio, quando veio per-
meada por princípios e cláusulas abertas que permitem interpretações,
adaptações e flexibilizações várias.
Como salientado pelo querido professor Desembargador Sylvio
Capanema no curso em questão, após esses 10 anos, as dúvidas em torno
do Código se transformaram em perplexidades, e é nesse cenário abran-
gente e construtivo que os personagens do Direito interagem, com des-
taque para os magistrados, que, na qualidade de aplicadores do Direito,
têm que estar preparados para esse grandioso e diário desafio.

¹ Juíza de Direito da 23ª Vara Cível - Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Todos os temas abordados propiciam debates calorosos e são de inte-


resse dos aplicadores do Direito. Diante dessa gama de assuntos recorrentes
em nossa prática diária, destaco a responsabilidade civil, que foi objeto de
brilhante palestra do mestre Desembargador Sergio Cavalieri Filho.
Dentro desse amplo e extenso tópico, passo a seguir a tecer algumas
considerações a respeito da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de
direito privado prestadoras de serviço público, tais como empresas de trans-
porte coletivo, por ser tema de grande recorrência no Poder Judiciário.

DESENVOLVIMENTO

A responsabilidade civil das empresas de transportes coletivos, pessoas


jurídicas prestadoras de serviço público, pode ser encarada sob duas vertentes.
A primeira trata da responsabilidade contratual da pessoa jurídica de
direito privado prestadora de serviço público, como, por exemplo, no caso
das empresas de transporte coletivo em relação aos seus passageiros.
Nessa hipótese, tendo em vista que o transporte coletivo é espécie de
serviço público concedido, a responsabilidade da pessoa jurídica de direito
privado prestadora de serviço público fundamenta-se tanto no artigo 37,
§6º da Constituição da República, como no artigo 14 da Lei 8.078/90,
Código de Defesa do Consumidor.
Nos termos do referido artigo 14, a responsabilidade civil do forne-
cedor de serviços é objetiva, fundada na Teoria do Risco do Empreendi-
mento, configurando-se apenas com a presença do fato, do dano e do nexo
causal entre ambos, não sendo necessária a prova da culpa.
Sob esse prisma, o fornecedor de serviços somente se exonera da res-
ponsabilidade civil se provar a ausência de qualquer um desses elementos,
ou seja, ausência da conduta, do dano ou do nexo causal, sendo que este se
afasta se demonstrada uma das causas elencadas no § 3º do artigo 14 do Có-
digo de Defesa do Consumidor, a saber: inexistência de defeito no serviço,
caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou de terceiro.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
170

Neste sentido, cumpre trazer à colação o entendimento do Professor


Sergio Cavalieri Filho, em sua obra “Programa de Responsabilidade Civil”:

“Assentado que a responsabilidade do transportador é objetiva
e que, em face da cláusula de incolumidade, tem uma obrigação
de resultado, qual seja, levar o transportado são e salvo ao seu
destino, o passageiro, para fazer jus à indenização, terá apenas
que provar que essa incolumidade não foi assegurada; que o aci-
dente se deu no curso do transporte e que dele lhe adveio dano”.
(in Programa de Responsabilidade Civil, 5ª edição, pág. 299).

Sob tal espécie de responsabilidade não pairam dúvidas, sendo a


jurisprudência e doutrina assentes quanto à responsabilidade objetiva das
empresas de transporte público em relação aos passageiros.
Nesse sentido:
“APELAÇÃO. Ação indenizatória. Serviço público de transpor-
te ferroviário de passageiros. Responsabilidade objetiva da concessio-
nária (CF/88, art. 37, § 6º e CDC, art. 14). Queda de usuária na
estação ferroviária em razão de precariedade das instalações. Fratura
da perna esquerda. Dano material caracterizado. Lesão a direitos da
personalidade, gerando direito compensatório de dano moral. Ver-
ba arbitrada com razoabilidade e proporcionalidade. Dano estético
autônomo: condenação extra petita. Apreciação de ofício dos consec-
tários da condenação (verbete 161, da Súmula deste TJRJ). Recurso
a que se dá parcial provimento”. (0001589-11.2008.8.19.0206 -
APELAÇÃO - 1ª Ementa - DES. JESSE TORRES - Julgamento:
30/03/2012 - SEGUNDA CÂMARA CÍVEL) .

Alguma controvérsia surge, entretanto, quando se trata da análise da


responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito privado prestadora de ser-
viço público em relação a terceiros, não usuários dos serviços prestados.
Para muitos, e a eles me filio, a hipótese se subsume ao artigo 37,
§ 6º da Constituição da República de 1988, que prevê a responsabilidade
objetiva dos entes públicos e das concessionárias de serviço público por
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
171

danos praticados contra terceiros, baseada na teoria do risco do empreen-


dimento, que dispensa a análise da conduta culposa.
No entanto, as empresas de transporte coletivo sustentam que sua
responsabilidade é subjetiva, ao argumento de que o artigo 37, § 6º da
Constituição da República somente se aplica aos usuários do serviço, o
que, a toda evidência, não merece prosperar.
A uma, pois o artigo é claro ao referir-se a terceiro, não fazendo
qualquer distinção se a vítima é usuária ou não do serviço prestado. A duas,
porque, ainda que o artigo 37, § 6º da Constituição não se lhes aplicasse
sua responsabilidade, mesmo assim ela seria objetiva, seja com base no
artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor, diante da caracterização
de consumidor por equiparação da vítima, seja com base no artigo 927,
parágrafo único do Código Civil, que prevê a responsabilidade objetiva
daqueles que exercem atividades que, por sua natureza, acarretam riscos a
terceiros, como ocorre no presente caso.

Nesse sentido a jurisprudência se manifesta


“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DA-
NOS EM RAZÃO DE ATROPELAMENTO POR COLETI-
VO. PERMISSIONÁRIA DE SERVIÇO DE UTILIDADE
PÚBLICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TEORIA
DO RISCO. HÁ PROVA DO NEXO CAUSAL E DO DANO.
DEVER DE INDENIZAR. SENTENÇA DE PROCEDÊN-
CIA PARCIAL DO PEDIDO, CONDENANDO O RÉU AO
PAGAMENTO DE COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA NO
VALOR DE R$ 8.000,00 PELOS DANOS MORAIS. RE-
CURSO DO RÉU. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETI-
VA, TANTO POR FORÇA DO ARTIGO 14, § 1º DO CDC,
POR SE TRATAR DE CONSUMIDOR POR EQUIPARA-
ÇÃO, QUANTO DO ART. 37, § 6º DA CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA, POR SER A RÉ CONCESSIONÁRIA DE
SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO. EX-
CLUI-SE A RESPONSABILIDADE DA RÉ SOMENTE SE
PROVADA ALGUMA CIRCUNSTÂNCIA QUE ROMPA O
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
172

NEXO DE CAUSALIDADE, TAIS COMO FORÇA MAIOR,


FATO EXCLUSIVO DA VÍTIMA OU FATO EXCLUSIVO E
DOLOSO DE TERCEIRO. OS DOCUMENTOS ADUNA-
DOS AOS AUTOS, BEM COMO AS PROVAS NELE PRO-
DUZIDAS, COMPROVAM O NEXO DE CAUSALIDADE
ENTRE A OCORRÊNCIA DO ACIDENTE E AS LESÕES
SUPORTADAS PELO DEMANDANTE, O QUE FAZ EX-
SURGIR O DEVER REPARATÓRIO DA RÉ PELOS DANOS
SUPORTADOS PELO AUTOR. VERBA DE DANO MORAL
QUE DEVE CUMPRIR SUA FUNÇÃO PUNITIVO-PEDA-
GÓGICA, ARBITRADA COM RAZOABILIDADE E MO-
DERAÇÃO, DIANTE DO GRAU DAS LESÕES SOFRIDAS
PELO AUTOR A JUSTIFICAR O VALOR DE R$ 8.000,00.
CORREÇÃO DO DANO MORAL A PARTIR DA DATA
DE SUA FIXAÇÃO (SÚMULA 97, DO TJRJ). JUROS DE
MORA DEVEM CORRER A PARTIR DO EVENTO DANO-
SO, POR SE TRATAR DE RELAÇÃO EXTRACONTRATUAL
(SÚMULA 54, STJ), EIS QUE NÃO FOI FIRMADO ENTRE
O AUTOR E O RÉU O CONTRATO DE TRANSPORTE.
(...)”. (0002221-90.2006.8.19.0211 - APELAÇÃO - 1ª Ementa
- DES. MARCO AURELIO BEZERRA DE MELO - Julgamento:
24/02/2012 - DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL)

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂN-


SITO. EMPRESA DE ÔNIBUS. CONCESSIONÁRIA DE
SERVIÇO PÚBLICO. DESEMPENHO DE ATIVIDADE
PERIGOSA. RISCO DO EMPREENDIMENTO. RESPON-
SABILIDADE OBJETIVA. NÃO EXCLUSÃO DO NEXO
CAUSAL. CULPA CONCORRENTE. DANO MORAL. DE-
VER DE COMPENSAR. ATO ILÍCITO. JUROS DE MORA.
EVENTO LESIVO. INTELIGÊNCIA DO ART. 945 DO
C.C.-02. As concessionárias que prestam o serviço público de
transporte respondem objetivamente pelos danos causados pelos
seus prepostos a terceiros, apenas se liberando de referida obri-
gação quando cabalmente comprovado o rompimento do nexo
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
173

causal, através da prova da culpa exclusiva da vítima, ou de ter-


ceiro, ou ainda na demonstração de caso fortuito ou força maior.
Com relação às concessionárias de transportes de passageiros, por
exercerem atividade de risco, devem cercar-se de maiores cuidados
para evitar a ocorrência de acidentes, treinando seus prepostos
a efetuarem a denominada direção defensiva, em especial nas
situações em que se apresentam um potencial maior de ocorrência
de acidente, como nos casos envolvendo menores dirigindo bici-
cletas nas ruas. Tratando-se de compensação por danos morais,
decorrente de responsabilidade extracontratual, a incidência dos
juros ocorrerá da data do evento lesivo (Súm. 54 S.T.J.) e a cor-
reção monetária deve ser contada a partir da fixação do quantum
indenizatório. Dano moral que não representa adequadamen-
te o sofrimento decorrente da perda de um filho, devendo haver
sua majoração, a fim de permitir uma compensação satisfatória
àquele que teve ceifado o convívio de um ente querido. Demons-
tração de culpa concorrente entre a vítima e o autor do fato que
limita o valor da indenização, a teor do disposto no art. 945
do C.P.C. Conhecimento dos recursos para dar provimento ao
primeiro, majorando o valor do dano moral para R$ 50.000,00
e dar parcial provimento ao segundo, de modo a incidir a cor-
reção monetária a partir da decisão que a fixou”. (0025611-
43.2007.8.19.0021 – APELAÇÃO - 1ª Ementa -DES. LUCIA
MIGUEL S. LIMA - Julgamento: 31/01/2012 - DÉCIMA SE-
GUNDA CÂMARA CÍVEL)

CONCLUSÃO

Por tudo quanto foi dito, conclui-se que a responsabilidade civil no


sistema jurídico brasileiro é complexa, pois lastreada em diversos diplomas
legais, desde a Constituição da República até o Código Civil, perpassando
pelo Código de Defesa do Consumidor, o que torna ainda mais instigante
e desafiadora a função do aplicador do Direito. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
174

EMPRESA INDIVIDUAL DE
RESPONSABILIDADE LIMITADA

Katylene Collyer Pires de Figueiredo¹

Inspirada na Palestra dos Professores Leonardo Marques e


Monica Gusmão.
Está em vigor desde janeiro a Lei nº 12.441, de 2011, que permite
a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) -
cujo patrimônio não se confunde com o próprio negócio.
A EIRELI é uma nova espécie de pessoa jurídica, a qual permite que
apenas uma pessoa constitua a pessoa jurídica e mesmo assim, a respon-
sabilidade do titular e a da pessoa jurídica não se confundem. Antes da
mencionada lei, pelos menos dois sócios eram obrigatórios para criação de
qualquer pessoa jurídica, regra que muitas vezes incentivava as fraudes.
Nesse sentido, cabe de imediato destacar dois enunciados da V Jor-
nada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizado no fim de
2011, do qual participou a i. professora palestrante. A seguir:

Enunciado 72 - Arts. 980-A e 44: A Empresa Individual de


Responsabilidade Limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo
ente jurídico personificado.

Enunciado 73 - Art. 980-A: O patrimônio da empresa indivi-


dual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da

¹ Juíza Titular da Comarca de Paty do Alferes.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
175

pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa


natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica.

Ressalte-se, que a conceituação do empresário individual continua


vigente, pois não houve, nem mesmo haverá a extinção deste.
Quanto à empresa individual de responsabilidade limitada, esta não
se confunde, nem substitui o clássico empresário individual.
Assim poder-se-á analisar o empresário (sujeito responsável pela ati-
vidade de empresa) em três modalidades: 1. Empresário individual, com
natureza de pessoa física, com responsabilidade ilimitada e pessoal sobre
as obrigações da atividade; 2. As sociedades empresárias, tratando-se de
pessoas jurídicas com pluralidade de titulares, cujas responsabilidades se
verificam a cada espécie (sociedade anônima, sociedade limitada, socie-
dade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade em
comandita por ações); e 3. A Empresa individual de responsabilidade li-
mitada, pessoa jurídica com titularidade unipessoal, com responsabilida-
de limitada ao patrimônio constituído, quanto as obrigações advindas do
exercício da atividade.

A EIRELI está disciplinada em apenas um artigo do Código


Civil, in verbis:

Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada


será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do
capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a
100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
§ 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da
expressão “EIRELI” após a firma ou a denominação social da
empresa individual de responsabilidade limitada.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
176

§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de res-


ponsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única
empresa dessa modalidade.

§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também


poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade
societária num único sócio, independentemente das razões que
motivaram tal concentração.

§ 4º ( VETADO).

§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabili-


dade limitada constituída para a prestação de serviços de qual-
quer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos pa-
trimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que
seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade
profissional.

§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limita-


da, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.

Considerando a pouca regulamentação deste tipo empresarial especí-


fico, muitas dúvidas já se colocam em debate na doutrina e jurisprudência.
A primeira grande questão que surge é no sentido da possibilidade
ou não de o titular da EIRELI ser pessoa jurídica.
Uma liminar da Justiça do Rio de Janeiro garantiu a uma con-
sultoria americana, que pretende iniciar suas atividades no Brasil, dar
continuidade ao processo de transformação da sua empresa limitada
em Empresa Individual de Responsabilidade Individual (EIRELI). A
decisão é a primeira do país nesse sentido. A Lei nº 12.441, de 2011,
permitiu a constituição de empresas com apenas um proprietário, o
que era vedado até então. O Departamento Nacional de Registro do
Comércio (DNRC), porém, limitou essa possibilidade a pessoas físi-
cas, por meio da Instrução Normativa nº 117, de 2011.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
177

Não obstante, a questão está longe de ser pacífica, porquanto, o


enunciado da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal,
em sentido diametralmente oposto, a seguir:

Enunciado 71 (Art. 980-A): A Empresa Individual de Responsabili-


dade Limitada só poderá ser constituída por pessoa natural.

O capital da empresa individual deverá ser antecipadamente in-


tegralizado para sua constituição na Junta Comercial, determinando a
nova legislação que o capital social não poderá ser inferior a 100 (cem)
vezes o maior salário-mínimo vigente no país, atualmente corresponden-
te a R$ 62.200,00 (sessenta e dois mil e duzentos reais).
Ainda em sua criação, é interessante apontar que a EIRELI poderá
ser resultante de transformação de pessoa jurídica anterior, empresário
individual anterior ou mesmo de concentração de quotas de outra mo-
dalidade societária em um único sócio, independentemente das razões
que motivaram tal concentração (art.980-A, §3º.). Constata-se que a
iniciativa do novo instituto é estimular a organização e reestruturação de
empresários individuais informais. Visa também ao afastamento de so-
ciedades limitadas simuladas constituídas com sócios que emprestam seu
nome para a pluralidade de titulares; e ainda busca impedir a extinção
da sociedade (após os 180 dias concedidos legalmente) que incorra em
unipessoalidade de sócios.
Determina ainda a nova lei que o nome empresarial da EIRELI po-
derá figurar como firma, conforme o nome do empresário individual, ou
denominação, permitindo-se a utilização de termo fantasioso que infira
a atividade a ser realizada, desde que ambos sejam acompanhados pela
expressão “EIRELI”.
Indicada a aplicação supletiva das normas de sociedades limitadas
à EIRELI, caberá a norma de responsabilidade do art.1.052 do Código
Civil. Ou seja, a responsabilidade pelas obrigações decorrentes da atividade
de empresa se limitará ao patrimônio constituído à própria pessoa jurídica.
Razão para tanto foi a limitação da EIRELI a um patrimônio mínimo de
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
178

100 (cem) salários mínimos. Buscou o legislador a futura proteção aos


credores por um patrimônio minimamente garantido.
Outro aspecto, quanto à constituição do patrimônio, é que
prevalece o entendimento de que o nome, a imagem e a voz não po-
dem ser utilizados para integralizar o capital social. In verbis, mais um
enunciado da V Jornada:

76 (Art. 980-A, § 5º): A imagem, o nome ou a voz não podem


ser utilizados para a integralização do capital da EIRELI.

Considerando a responsabilidade limitada ao patrimônio da pessoa


jurídica, não caberá a responsabilização do patrimônio pessoal do titular,
tampouco a responsabilidade subsidiária prevista nos artigos 1.023 e 1.024
do Código Civil, aplicável às sociedades simples. Sendo a EIRELI verda-
deira pessoa jurídica, finalmente se permitiu a fração do universo patrimo-
nial do titular entre patrimônio empresarial e patrimônio real.
No entanto, será possível a atribuição de responsabilidade à pessoa
natural titular da EIRELI, dada a sujeição legal às medidas excepcionais de
desconsideração da personalidade jurídica, seja nos termos do art. 50 do
Código Civil, seja pelas demais previsões legais em situações especiais.
Nesse ponto, cabe salientar que o § 4° foi vetado justamente por
conter disposição que poderia dar margem à interpretação de que não seria
cabível a desconsideração da personalidade jurídica neste tipo societário.
Consagrou-se, portanto, a sonhada previsão de limitação de res-
ponsabilidade pelos débitos advindos do exercício da atividade prevista
no objeto de constituição, sendo uma opção ao empresário individual que
possua o numerário mínimo previsto em lei para constituição da EIRELI.
Não sendo caso de abuso de personalidade que justifique a desconsideração
da personalidade jurídica, restringir-se-á a execução de crédito por credor
da EIRELI somente ao esgotamento dos bens constantes do patrimônio
empresarial, cabendo em caso de insolvência, o pedido de decretação de
falência, em processo especial de concorrência de credores. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
179

O CÓDIGO CIVIL DE 2002:


PRINCÍPIOS BÁSICOS E
CLÁUSULAS GERAIS

Lisia Carla Vieira Rodrigues¹

Introdução

O Código Civil de 1916, obra idealizada por Clóvis Bevilácqua,


refletia os ideais do século XIX, em que os princípios da autonomia da
vontade, da liberdade de contratar e do pacta sunt servanda estavam no
seu apogeu; possuindo tal diploma caráter extremamente individualista e
conservador, além de privilegiar o sujeito de direito como titular de um
patrimônio imobiliário.
Deixou, pois, a anciã codificação civil de ressaltar a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais ao abordar a questão patrimonial, mostrando-se
compatível com as legislações erigidas no século XIX, tais como os códigos
napoleônico e alemão; os quais vivenciavam o Estado Liberal de Direito, ao
defender os interesses da burguesia, que passava a ter força econômica.
Saliente-se que o antigo código esperava ser a verdadeira “constitui-
ção” do direito privado, disciplinando as relações jurídicas civis de forma
casuística, com a pretensão de solucionar as diversas situações que pode-
riam envolver os sujeitos de direito.
A evolução por que passou o mundo, no entanto, exigiu profundas
modificações no ancião diploma civil e na legislação privada extravagante.

¹ Juíza de Direito da 4ª Vara Cível - Regional de Jacarepaguá.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
180

Operou-se a revolução industrial, que acarretou o desenvolvimento


dos meios de produção, das instituições financeiras e do mundo dos negó-
cios. A indústria, de artesanal que era, passou a lançar em massa produtos
no mercado, cuja distribuição coube a empresas diversas do fabricante, que
igualmente trabalhavam em massa, visando a atender às necessidades de
milhões de habitantes.
Dessa forma, as relações contratuais tiveram que se adequar à veloci-
dade da vida moderna, mostrando-se raras as avenças cujas cláusulas eram
amplamente discutidas entre as partes.
A velha fórmula adotada pelo Código Civil de 1916 não mais aten-
dia aos reclamos da sociedade.
Da concepção individualista das relações contratuais e de propriedade,
necessitava-se da finalidade social e ética na administração do patrimônio e na
celebração do contrato; exigia-se, pois, uma lei civil que atentasse mais para a
realidade do que para categorias ideais e abstratas, que tudo abarcavam.
O presente artigo objetiva, em apertada síntese, abordar os prin-
cípios básicos norteadores do Código Civil de 2002, além da técnica le-
gislativa aplicada em diversos dos seus dispositivos, consubstanciada nas
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

Princípios norteadores do
Código Civil de 2002

Em janeiro de 2003, passou a vigorar a Lei 10.406, de 10 de janeiro


de 2002, que instituiu o Novo Código Civil Brasileiro, cujo anteprojeto
de lei foi encaminhado pelo Ministro da Justiça Armando Falcão ao Presi-
dente da República, através da mensagem número 160, de junho de 1975,
sendo remetido ao Congresso Nacional no mesmo ano. Na Câmara dos
Deputados, recebeu 1063 emendas, logrando aprovação em 1984; e no
Senado Federal, outras 332 lhe foram feitas, figurando como Relator Geral
o Senador Josaphat Marinho.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
181

O anteprojeto de lei resultou do trabalho de comissão nomeada pelo


Governo em 1969, da qual faziam parte juristas de escol: foi presidida por Mi-
guel Reale e composta por José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio
Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro.
Na verdade, formou-se a comissão supra no sentido de serem revis-
tos anteprojetos anteriores de mudança do Código Civil de 1916, elabo-
rados por Orlando Gomes, o qual regularia as relações de família, direitos
reais e sucessões; e Caio Mário da Silva Pereira, que, juntamente com Syl-
vio Marcondes e Theóphilo de Azeredo Santos, redigiu o Anteprojeto do
Código das Obrigações.
Note-se que desde 1969 já era patente a necessidade de reforma
do diploma civil, o qual, promulgado no início do século XX, não mais
traduzia a vontade social brasileira, passando por sensíveis mudanças ao
longo dos anos.
Deve ser destacado que o Código Civil de 1916 espelhava os valores
do século XIX e funcionava como um sistema fechado, totalmente avesso
às intervenções da jurisprudência, da doutrina e da realidade da população
para o qual era destinado.
Cite-se, na oportunidade, a lição da Prof. Judith Martins Costa:
“O Código afinal vigorante em 1916 aliou a tradição sistemá-
tica moderna recebida intelectualmente pelos seus autores ao
espírito centralizador de centenária tradição lusitana. Traduz,
no seu conteúdo – liberal no que diz respeito às manifesta-
ções de autonomia individuais, conservador no que concerne
à questão social e às relações de família -, a antinomia verificada
no tecido social entre a burguesia mercantil em ascensão e o es-
tamento burocrático urbano, de um lado, e, por outro, o atraso
o mais absolutamente rudimentar no campo, onde as relações
de produção beiravam o modelo feudal.”²

² MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
182

Dessa forma, era o Código Civil de 1916 fiel à diretriz oitocentista,


na medida em que a autonomia da vontade apresentava-se como a prin-
cipal orientação em sede contratual; privilegiando a lei a concepção de
sujeito de direito enquanto titular de um patrimônio. Despia-se o código
de qualquer intervenção em prol da sociedade, e em prejuízo do indivíduo;
como hoje faz o novel regime, no qual estão assentados os princípios da
função social do contrato e da propriedade.
Digna de nota é a observação de que no vetusto regime civil inexistia
qualquer referência aos direitos da personalidade e à dignidade da pessoa
humana, hoje constitucionalmente consagrados.
Disciplinava a velha codificação civil as relações que julgava interes-
santes para o direito, via de regra, as de natureza patrimonial, arvorando-se
na pretensão de regulamentar minuciosamente todas, já que assegurava
direitos ao nascituro e estabelecia disposições para depois da morte do su-
jeito, tais como, o inventário e a partilha de bens. Saliente-se que estas
previsões legislativas eram absolutamente inflexíveis à ação dos operadores
do direito, peculiaridade do sistema fechado abraçado pelo código. A rigi-
dez desse sistema e a insuficiência do diploma civil para disciplinar as novas
relações da vida em sociedade determinaram o aparecimento de diversas
leis extravagantes, como, por exemplo, a do divórcio e separação judicial,
dos registros públicos, do loteamento e da locação de imóveis urbanos.
Presidida por Miguel Reale, que acabou por redigir integralmente
a parte relativa ao Direito das Obrigações e Direito da Empresa em razão
do falecimento de Agostinho Alvim e Sylvio Marcondes, a comissão ela-
boradora do anteprojeto do código percebeu que tal distância da realidade
brasileira não mais poderia ser mantida.
O entendimento de que a legislação civil deveria estar em harmonia
com a experiência social para, a partir dos fatos, agir sobre eles, demonstra,
segundo a melhor doutrina, a concepção culturalista de Miguel Reale, que
pretendeu elaborar um anteprojeto para o futuro.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
183

O próprio Miguel Reale afirma:


“Concretude, que é? É a obrigação que tem o legislador de
não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estra-
tosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situa-
do: legislar para o homem enquanto marido; para a mulher
enquanto esposa; para o filho enquanto um ser subordinado
ao poder familiar. Quer dizer, atender às situações sociais,
à vivência plena do Código, do direito subjetivo como uma
situação individual; não um direito subjetivo abstrato, mas
uma situação subjetiva concreta. Em mais de uma oportuni-
dade ter-se-á ocasião de verificar que o Código preferiu, sem-
pre, essa concreção, para a disciplina da matéria.”³

Em que pese a perspectiva de mudança, foi a Lei 10406/02 tímida


ao positivar soluções já consagradas pela doutrina e jurisprudência, como,
por exemplo, a resolução do contrato por onerosidade excessiva; insistindo
em manter institutos como a anticrese e a retrovenda, em franco desuso.
As observações supra são confirmadas pela redação da Mensagem 160,
de 1975, da lavra do Ministro da Justiça Armando Falcão, que encaminhou
o Projeto de Código Civil ao Presidente da República Ernesto Geisel, citada
pelo Prof. Clayton Reis em sua obra “Inovações ao Novo Código Civil”, que
teve por objeto traçar as diretrizes básicas da novel legislação:
“............................................................................................
e) Preservar, sempre que possível, a redação da atual Lei Civil, por
se não justificar a mudança de seu texto, a não ser como decorrên-
cia de alterações de fundo, ou em virtude das variações semânticas
ocorridas no decorrer de mais de meio século de vigência;

........................................................................................

³ REALE, Miguel et al. O Novo Código Civil discutido por juristas brasileiros. 1ª. Ed. Campinas. Book-
seller Editora LTDA., 2003.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
184

i) Não dar guarida no Código senão aos institutos e soluções


normativas já dotados de certa sedimentação e estabilidade,
deixando para a legislação aditiva a disciplina de questões
ainda objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude de
mutações sociais em curso, ou na dependência de mais claras
colocações doutrinárias, ou ainda quando fossem previsíveis
alterações sucessivas para adaptações da lei à experiência social
e econômica;

.............................................................................................
m) Acolher os modelos jurídicos validamente elaborados pela
jurisprudência construtiva de nossos tribunais, mas fixar nor-
mas para superar certas situações conflitivas, que de longa data
comprometem a unidade e a coerência de nossa vida jurídica.” 4

O presidente da comissão elaboradora do Anteprojeto, Prof. Miguel


Reale, elucidou em palestra proferida na Academia Paulista de Letras os
princípios incorporados ao Código Civil de 2002:
“(...) a eticidade, implicante a substituição do formalismo ve-
rificado no código de 1916 por modelos hermenêuticos, de
modo a permitir a contínua atualização dos preceitos legais,
(...) e valores éticos como a boa-fé, os costumes e a função
social dos direitos subjetivos; a socialidade, que marca o o ob-
jetivo de superação do individualismo jurídico, temperando
a liberdade contratual com a função social do contrato, esta-
tuindo o princípio da interpretação mais favorável ao aderen-
te nos contratos de adesão, reduzindo os prazos de usucapião,
valorizando a natureza social da posse e submetendo o direito
de propriedade à sua função econômica e social; a operabili-
dade, estabelecendo soluções normativas facilitadoras da in-

4 REIS, Clayton. Inovações ao Novo Código Civil. 1ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
185

terpretação e aplicação do código, tais como, a clareza de dis-


tinção entre prescrição e decadência, a disciplina apartada das
associações e das sociedades, a utilização de cláusulas gerais
(boa-fé, probidade) e de preceitos de conteúdo indetermina-
5
do (onerosidade excessiva).”

Eticidade, socialidade e operabilidade são as marcas do Código


Civil de 2002.
A eticidade está presente no novo diploma civil e, aliada aos princí-
pios da boa-fé objetiva e da lealdade, pretende que a conduta dos sujeitos
de direito seja pautada por atitudes corretas (corretezza), leais e honestas,
não se contentando apenas com a intenção dos agentes em praticar o ato
segundo os ditames do Direito.
Com efeito, a eticidade impõe aos participantes do comércio jurídi-
co o dever geral de colaboração, operando defensiva e ativamente; isto é,
impedindo o exercício de pretensões e criando deveres específicos. 6
O princípio da boa-fé contratual, expresso no art. 422, é dirigido a
todo tipo de avença e aplicado desde a fase pré-contratual até a sua conclu-
são e ao momento pós-contratual.
A título de exemplo, merecem ser citados o art. 113, que determina
que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar da sua celebração; o art. 187, que diz cometer ato ilícito o
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons cos-
tumes, e o art. 128, que trata da eficácia da condição resolutiva.
O princípio da socialidade manifesta-se como exigência da vida con-
temporânea nos grandes centros urbanos, onde várias pessoas dividem a
mesma habitação, refletindo no todo a conduta de uma só.
5 Palestra proferida pelo Prof. Miguel Reale na Academia Paulista de Letras, em 29/11/2001.

6 COSTA, Judith Martins, BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Bra-

sileiro. 1ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2002.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
186

A visão individualista do Código Civil de 1916 já não era mais su-


ficiente aos novos reclamos da sociedade brasileira, que necessitava de um
diploma inibidor das ações contrárias aos seus interesses e que valorizasse
a solidariedade social.
A socialidade encontra-se especialmente expressa nos arts. 421 (fun-
ção social do contrato); 422 (interpretação mais favorável ao aderente nos
contratos de adesão), assim como na função social da propriedade (art.
1228, parágrafo 1º) e nas normas referentes à usucapião, reduzindo os pra-
zos estabelecidos pela anciã legislação (art. 1.238, 1.240 e 1.242).
Por fim, há a operabilidade. Manifesta-se tal princípio no cuidado
da comissão em estabelecer, já na norma, soluções facilitadoras da sua in-
terpretação e aplicação, notadamente quanto à precisão dos conceitos.
A hipótese mais marcante é, sem dúvida alguma, a distinção entre
prescrição e decadência. O Código Civil de 1916 elencava em um só dis-
positivo prazos prescricionais e decadenciais.
O art. 206 do novo Código enumera os prazos prescricionais, sendo
os decadenciais expressamente citados após a hipótese normativa prevista,
como no art. 618.

As cláusulas gerais e os conceitos jurídicos


indeterminados

A fim de adequar a novel legislação civil aos ditames da vida moderna,


valeu-se o legislador, em diversos momentos, das cláusulas gerais e conceitos
jurídicos indeterminados, eis que se mostrava ineficiente o modelo casuístico
ou técnica da regulamentação por fattispecie anteriormente adotado.
Há de ser mencionado o entendimento dos Profs. Nelson Nery Jú-
nior e Rosa Maria de Andrade Nery a respeito do conceito de cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados:
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
187

“17. Cláusulas gerais. Definição. Com significação para-


lela aos conceitos legais indeterminados, as cláusulas gerais
(Generalklauseln) são normas orientadoras sob forma de dire-
trizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mes-
mo tempo em que lhe dão liberdade para decidir (Wieacker,
Privatrechtsgeschichte, par. 25, III, 3). As cláusulas gerais são
formulações contidas em lei, de caráter significativamente
genérico e abstrato (Engisch, Einführung, Cap. VI, p. 120-
121)., cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz, autoriza-
do para assim agir em decorrência da formulação legal da pró-
pria cláusula geral, que tem natureza de diretriz (Larenz-Wolf,
Allg. Teil, par. 3º, IV, n. 94, p. 82-83). Distinguem- se dos
conceitos legais indeterminados pela finalidade e eficácia, pois
aqueles, uma vez diagnosticados pelo juiz no caso concreto, já
têm sua solução preestabelecida na lei, cabendo ao juiz aplicar
referida solução. Estas, ao contrário, se diagnosticadas pelo
juiz, permitem-lhe preencher os claros com os valores desig-
nados para aquele caso, para que se lhe dê a solução que ao
juiz parecer mais correta, ou seja, concretizando os princípios
gerais de direito e dando aos conceitos legais indeterminados
uma determinalidade pela função que têm de exercer naquele
caso concreto.”
7

Muito em comum possuem as cláusulas gerais e os conceitos


jurídicos indeterminados.
Em ambas as hipóteses estará o magistrado diante de normas va-
gas, ou seja, as constituídas por valores objetivamente assentados pela mo-
ral social, aos quais o juiz é reenviado.8
Segundo a Prof. Judith Martins-Costa:

7 NERY JÚNIOR, Nelson, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante
Anotados, 1ª. Edição; São Paulo: RT, 2002.

8 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-
nais, 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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“ Não se trata, aqui, de utilizar as “regras comuns de expe-


riência” (CPC, art. 335), mas de utilizar as valorações ti-
picizantes das regras sociais, porque o legislador renunciou
a determinar diretamente os critérios (ainda que parciais)
para a qualificação dos fatos, fazendo implícito ou explícito
reenvio a parâmetros variáveis no tempo e no espaço (regras
morais, sociais e de costume).”
9

Citem-se como exemplo os arts. 421 e 422 do Código Civil:


“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato”.
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclu-
são do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Percebe-se que a própria norma encaminha o juiz para a função
social do contratos e os princípios da probidade e boa-fé que a integrarão,
os quais possuirão diferentes significados, considerando-se à época, o local,
os costumes e a moral social da sua incidência.
Está o intérprete, pois, diante de uma cláusula geral que será
aplicada em variadas hipóteses e por longo período, sem que se modifi-
que a sua redação.
Com efeito, na medida em que mudam as noções de função social
do contrato, probidade e boa-fé com o decurso do tempo, os costumes e
a moral social, pode o magistrado se reportar a valores do próprio sistema
jurídico, ou a outros que lhe são exteriores, para chegar ao real significado
desses princípios.
Os conceitos jurídicos indeterminados em muito se assemelham
às cláusulas gerais, notadamente quanto às vantagens do seu emprego pelo
legislador ao editar novas regras. Apresentam, no entanto, diferenças, pois
nestas a atividade criadora do juiz é muito maior, já que deverá analisar axio-

9
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-
nais, 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
189

logicamente a norma, verificar a sua aplicação à espécie, imprimir efeitos ao


ato praticado, ou, ainda, graduá-los, no caso de existir previsão legal.
Nos conceitos jurídicos indeterminados, corre a subsunção do fato
à hipótese normativa, ou seja, os conceitos formados por termos indeter-
minados integram sempre a descrição do fato em exame com vistas à apli-
cação do direito, havendo, via de regra, expressa manifestação do legislador
quanto às conseqüências do ato.10
Um exemplo aclarará a hipótese.
O parágrafo único do art. 944 do Código Civil é redigido da
seguinte forma:
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gra-
vidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamen-
te, a indenização.”

No caso, deverá o julgador avaliar se ocorreu a excessiva despro-


porção aludida no dispositivo; e, em havendo a tipificação, reduzirá a verba
reparatória. Nesta oportunidade, o artigo remete a outro critério valora-
tivo, qual seja, a diminuição será feita equitativamente; obedecida a
proporção entre a gravidade da culpa e o dano.
O magistrado avaliará a desproporção entre a culpa e o prejuízo e
atenderá ao comando normativo, reduzindo equitativamente a indenização.
Diversamente ocorre nos arts. 421 e 422, em que o julgador deverá,
inclusive, atribuir efeitos aos atos praticados em discordância com a norma,
não se tratando apenas de adequação da hipótese fática à hipótese normativa.
O Prof. Menezes Cordeiro, citado pela Prof. Judith Martins-Cos-
ta, identifica três tipos de cláusulas gerais:

“ (...) de tipo restritivo, aí operando contra uma série de per-


missões singulares, delimitando-as, como nos casos da restri-
ção à liberdade contratual, inclusive a liberdade de se retirar
10
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
190

injustificadamente da fase das tratativas negociais; de tipo re-


gulativo, regulando, através de um princípio, todo um vasto
domínio de casos, como corre com a regulação da responsa-
bilidade por culpa; e de tipo extensivo, por forma a ampliar
uma determinada regulação através da possibilidade, expres-
sa, de aí serem introduzidos princípios e regras dispersos em
outros textos, como é o caso das disposições do Código do
Consumidor e da Constituição Federal, que asseguram, aos
seus destinatários a tutela prevista em acordos e tratados in-
11
ternacionais e na legislação ordinária.”

A jurisprudência percebeu a importância da introdução do sistema


das cláusulas gerais pela nova legislação civil, o que se pode observar pelos
seguintes acórdãos, todos do E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

0032046-57.2011.8.19.0000 - PROCESSO ADMINISTRATIVO

1ª Ementa

DES. LUIZ FELIPE HADDAD - Julgamento: 07/11/2011 -


ORGAO ESPECIAL

Administrativo. Civil. Comunicação efetivada pelo CEDES, da


aprovação de quatro enunciados pelo II Encontro de Desembar-
gadores Cíveis, realizado em junho do corrente ano. Formali-
dades obedecidas. Insurgência, por associação e por instituto de
registradores, e correlatos, a propósito do quarto verbete. Posição
do Ministério Público no desabono dos dois primeiros, e no abono
dos dois últimos. Concordância parcial. Quanto ao primeiro ver-
bete, a “cláusula geral” dos contratos, concernente à função social,
pode e deve ser aplicada de ofício pelo julgador, independente
de provocação de litigante. Tal função decorre de evolução jurí-
dica nacional e forânea, com referência na Constituição Alemã
11
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
191

de Weimar, que orientou no Brasil a Carta de 1934, no escopo


da mitigação da sistemática capitalista e proprietista, cujas in-
justiças deram azo aos movimentos socialistas, de tipo radical ou
moderado; este último, na denominada social democracia; sendo
que o enfoque da propriedade se ampliou, nos últimos tempos,
e na eficácia das Constituições ulteriores, de modo a abranger
diversos institutos inerentes ao Direito Privado. Atenção que se
deve ter para com o ideário da dignidade da pessoa humana,
conjugada aos valores do trabalho e da iniciativa livre; do que
cuida o artigo 1º, incisos III e IV, do Pacto Político. Inexistência
do perigo, alegado pelo “Parquet”, de vagueza na exegese do dito
verbete, ou conturbação de conceitos, porque eventual erronia, na
instância de piso, será escoimada no segundo grau, sem falar-se
das preciosas atribuições constitucionais das Cortes Maiores do
País. Quanto ao segundo enunciado, não se vê adequado o repute
da presunção de pagamento das despesas de funeral, pelas pesso-
as credoras de alimentos em face do falecido devedor, uma vez
que as empresas funerárias quase sempre emitem notas fiscais, e;
sendo certo que ninguém faleça insepulto; fora hipóteses excepcio-
nais terríveis; muitas vezes os enterros são custeados por entida-
des governamentais ou não governamentais de proteção a pessoas
carentes de recursos; ainda se sabendo que, em vários casos, a
cobertura de tais custos se dá por outras pessoas credoras ou su-
postas credoras. Proposição que impende ser melhorada em novo
estudo, devendo, pois, ser rejeitada. Acerca do terceiro enunciado,
também não merece prestígio, uma vez que a verba reparatória
do dano moral, na chamada mitigação da dor por dinheiro que
proporcione alegria, deve atender às circunstâncias do caso con-
creto, não sendo recomendável que os princípios da razoabilidade
e da proporcionalidade prevaleçam de modo genérico. Quanto
ao quarto verbete, jurisprudência altamente dominante, nesta
Corte Fluminense, em suas congêneres, e nos Egrégios STF e STJ,
no sentido de que a ausência do registro de alienação de coisa
móvel fungível, de específico, veículo motorizado, no cartório de
registro de títulos e documentos, só acarreta ineficácia perante ter-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
192

ceiros, não entre as próprias partes do negócio jurídico. Redação


que se continha no artigo 66 da Lei 4728/1965, conjugada ao
Decreto-Lei 911/1969, alterado pela Lei 10.932/2004, que era
expressa a respeito. Primeiro parágrafo do artigo 1361 do Código
Civil/2002, eficaz desde janeiro/2003, determinando tal registro
cartorial, cuja leitura não deve ser diferente da que já existia, por
boa hermenêutica; e mais ainda, na correlação ao que se reputa
no cumprimento judicial das obrigações de fazer, derivadas de
contratos de promessa de compra e venda acerca de bens imóveis,
não levados aos registros gerais competentes. Aresto deste Órgão
Especial, datado do ano de 2008, sob relatoria da Desembar-
gadora Valéria Maron, com dois votos vencidos, reputando, por
suscitação de órgão fracionário, a inconstitucionalidade da parte
final do citado dispositivo, acerca do rigor do registro de tais con-
tratos de alienação de autos nas ditas autarquias; não alcançando
a parte inicial; pelo que não se acha suspenso por “repercussão
geral”, que foi decretada pelo Excelso Pretório, cautelarmente, em
sede de recurso extraordinário, sob relatoria do Ministro Marco
Aurélio. Enunciados propostos sob os números I e IV, que são
aprovados, para inserção na Súmula deste Tribunal. Rejeição dos
Enunciados proposto sob os números II e III. Votos vencidos acer-
ca do Enunciado II e do Enunciado IV.

0052076-81.2009.8.19.0001 - APELAÇÃO

1ª Ementa

DES. HELENO RIBEIRO P NUNES - Julgamento: 30/06/2010


- SEGUNDA CÂMARA CÍVEL

CONTRATO DE SEGURO
ROUBO EM CASA LOTÉRICA
RECUSA DE COBERTURA
NULIDADE DE CLÁUSULA
NOVO CÓDIGO CIVIL
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA PROBIDADE
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
193

CONTRATO DE SEGURO. ROUBO EM CASA LOTÉRI-


CA. CLÁUSULA EXCLUDENTE DE COBERTURA. IN-
TERPRETAÇÃO RESTRITIVA. APLICAÇÃO DAS CLÁU-
SULAS GERAIS DE BOA-FÉ OBJETIVA, ETICIDADE E
LEALDADE CONTRATUAL. ART. 422 DO NOVO CÓ-
DIGO CIVIL. 1) Sendo o seguro um contrato de adesão, onde
as cláusulas já estão preestabelecidas, inclusive as limitativas,
impõe-se a sua análise à luz dos dispositivos do Código Civil de
2002 que consagram uma série de princípios vetores da segurança
jurídica que deve permear a formação dos contratos em geral,
exigindo comportamento leal e ético pelos contratantes na conse-
cução dos negócios jurídicos. 2) Incoerente se mostra o julgamento
proferido no sentido da improcedência do pedido com assento na
inexistência de vinculação entre as condições da permissão confe-
rida à autora para exercer a atividade lotérica e a cláusula ex-
cludente de cobertura, quando, em contrapartida, admite como
regular tal vinculação para se reconhecer da eficácia da referida
cláusula de exclusão da obrigação, que remete justamente ao re-
gramento da relação estabelecida entre à CEF e as permissio-
nárias do serviço lotérico. 3) Trata-se, neste caso, de se conferir
tratamento diverso às partes integrantes de uma relação jurídica
subjetiva, o que é repudiado pelo Direito. 4) Além disso, ao se re-
portar de forma lacônica à circular nº 342 da CEF, a seguradora
não estabeleceu de forma clara a sua intenção de exigir do con-
tratante a existência de equipamento de segurança no estabeleci-
mento lotérico, de forma que, à luz do novel Código Civil, em
se tratando de cláusula limitativa, é de se conferir interpretação
mais benéfica ao segurado, reconhecendo o seu direito ao recebi-
mento da indenização. 6) Ademais, há prova irrefutável de que a
seguradora se comprometeu a manter a cobertura securitária até
o termo final do prazo estipulado para que o autor procedesse à
instalação dos mencionados equipamentos, não podendo, poste-
riormente, volver-se contra seus próprios atos, em comportamento
contraditório, gerando insegurança, instabilidade e intranquili-
dade, recusando-se a efetuar o pagamento do seguro. 7) Não são
devidos juros compensatórios, uma vez que não há previsão, seja
contratual seja legal neste sentido. 8) Provimento parcial do re-
curso para julgar parcialmente procedente o pedido.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
194

Registre-se que, recentemente, foi editada a Súmula 281 do TJ/RJ, que as-
sim dispôs: “a cláusula geral pode ser aplicada de ofício pelo magistrado.”
Conclusão

A novel legislação civil de 2002 introduziu importantes mudanças, a


fim de adequá-la aos novos ditames da sociedade pós-moderna.
Adotou os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade; além da
técnica legislativa das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
O Código Civil de 2002 é o diploma da mudança. Pode não ser a
legislação ideal, face à demora na sua edição e à velocidade das transformações
sociais, mas é a de que se dispõe, com excelentes ferramentas para adequá-la
às vicissitudes da atualidade, notadamente pela liberdade que é conferida ao
magistrado, de maneira a fazer valer a melhor solução para o caso no momento
em que é julgado. 

Bibliografia

COSTA, Judith Martins, BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Te-


óricas do Novo Código Civil Brasileiro. 1ª. Edição. São Paulo: saraiva, 2002.
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
NERY JÚNIOR, Nelson, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Ci-
vil e Legislação Extravagante Anotados, 1ª. Edição; São Paulo: RT, 2002.
Palestra proferida pelo Prof. Miguel Reale na Academia Paulista de
Letras, em 29/11/2001.
REALE, Miguel et al. O Novo Código Civil discutido por juris-
tas brasileiros. 1ª. Ed. Campinas. Bookseller Editora LTDA., 2003.
REIS, Clayton. Inovações ao Novo Código Civil. 1ª. Edição. Rio
de Janeiro: Editora Forense, 2002.
Os acórdãos constantes do trabalho foram retirados do sítio eletrô-
nico do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, por consulta realizada em 19 de abril de 2012.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
195

10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL


A EVOLUÇÃO CIVIL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO

Lúcia Regina Esteves de Magalhães¹

INTRODUÇÃO

O escopo do presente trabalho consiste em analisar o primórdio


e a evolução do Direito Civil, mormente a partir do Código Civil de
2002 até os dias atuais, principalmente frente aos avanços trazidos com a
Constituição Federal de 1988.

ESBOÇO HISTÓRICO

Com efeito, na doutrina afirma-se que sempre houve uma dicoto-


mia entre direito público e direito privado. Entretanto, uma nova visão
sobre o direito aflora hodiernamente diante do pós-positivismo, levando-
nos a superar essa distinção, entendendo para tal que todos os ramos do
direito infraconstitucional hão de ser interpretados à luz da Constituição
de 1988, inclusive o Direito Civil, no que se convencionou denominar de
constitucionalização do Direito Civil.
Essa mudança de paradigma deu-se em face da inserção de valores
inerentes à pessoa humana, que passaram a orientar a interpretação dos
institutos do Direito Civil, precipuamente por meio da observância aos
ditames do princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no artigo
1º, inciso III da Constituição da República de 1988.

¹ Juíza de Direito Titular da 19ª Vara Criminal da Comarca da Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
196

Como ensinam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON


ROSENVALD² :

“A expressão Direito Civil Constitucional quer apenas realçar


a necessária releitura do Direito Civil, redefinindo as catego-
rias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principioló-
gicos constitucionais, da nova tábua axiológica fundada na
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), solidariedade social
(art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º). Ou seja,
a Constituição promoveu uma alteração interna, modifican-
do a estrutura, o conteúdo, das categorias jurídicas civis e não
apenas impondo limites externos”.

Pois bem, nossa Constituição, no que tange à esfera privada do di-


reito, passa a abarcar institutos que outrora se reduziam ao Código Civil,
tais como família, propriedade e atividade econômica.
Na doutrina do professor gaúcho Ingo Sarlet, e seguida por outros
grandes mestres como, por exemplo, o professor Gustavo Tepedino, em
um sentido mais moderno, pode-se encarar o fenômeno da constitucio-
nalização do direito privado sob dois enfoques. O primeiro deles trata da
descrição do fato de que vários institutos, que tipicamente eram tratados
apenas nos códigos privados (família, propriedade, etc.), passaram a ser
disciplinados também nas Constituições contemporâneas, além de outros
institutos que costumavam ser confinados a diplomas penais ou processu-
ais. Uma segunda acepção, que costuma ser indicada com a expressão cons-
titucionalização do Direito Civil, é o que nos interessa por ser mais ampla
do que a primeira, pois implica analisar as consequências, no âmbito do
direito privado, de determinados princípios constitucionais, especialmente
na área dos direitos fundamentais, individuais e sociais.

² FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 6.ed., Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 27
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
197

Imprescindível ressaltar, como já assinalado, que uma das principais


características do Direito Constitucional contemporâneo é a importância
central atribuída aos princípios. Sua força normativa foi reconhecida na
doutrina do ilustre doutrinador alemão Robert Alexy³ que afirma que os
princípios são normas dotadas de uma estrutura aberta, ou seja, mandados
de otimização que ordenam que se realize algo na maior medida possí-
vel, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, limitadas pelos
princípios opostos e, assim, exigem a ponderação dos pesos relativos dos
princípios em colisão, segundo as circunstâncias do caso concreto.
Destaque-se ainda que de acordo com o disposto no artigo 5º, §
1º, da Constituição Federal de 1988, os direitos e garantias fundamentais
têm aplicabilidade imediata, vinculando os poderes públicos independen-
temente do reconhecimento expresso por lei infraconstitucional, estando
protegidos não apenas diante do legislador ordinário, mas também da ação
do poder constituinte reformador, por integrarem o rol das denominadas
cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º, inciso IV, CF/88).
Pois bem, a inserção no Código Civil brasileiro de 2002 de cláusulas
gerais e princípios jurídicos indeterminados faz com que o Direito Civil se
apresente como um sistema aberto, no sentido de uma ordem axiológica
ou teleológica de princípios jurídicos gerais, o que lhe permite superar o
formalismo do sistema de 1916, promovendo de tal modo uma verdadeira
“principialização” do modelo interpretativo. As referidas cláusulas gerais
vêm previstas esparsamente no Código Civil, sendo de grande interesse
neste momento a análise daquelas previstas nos artigos 12 e 21, que se re-
ferem aos direitos da personalidade, bem como daquelas outras constantes
dos artigos 113 e 442, referentes aos negócios jurídicos.
Nesse sentido, vejamos como os principais institutos do direito pri-
vado passam a ter uma leitura civil-constitucional.

³ ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estu-
dios Constitucionales, p. 87-90. (tradução livre).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
198

DA POSSE

No campo possessório, conquanto o artigo 1.196 do CC/02 tenha


adotado a teoria objetiva de Inhering no conceito de posse, o que interessa
ao presente estudo é o fato de que a teoria fora cunhada sob a égide do
ideário liberal e individualista, no qual o fundamental era o acúmulo de
riquezas sob a lógica do ter em prejuízo do ser.
Com efeito, a referida teoria não é mais capaz de explicar o fenô-
meno possessório à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito,
além de estar completamente separada da realidade do Brasil, como nação
de escassos recursos e enormes conflitos fundiários.
Nesse prisma, a densidade dos princípios e direitos fundamentais na
vida privada do homem passou a direcioná-lo, enquanto parte de um todo,
na busca incessante pela solidariedade e pelo bem comum (artigo 3º, inciso
I, da CF/88). E, em sendo a posse um direito subjetivo, como fato social
de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades
básicas do ser humano, haverá de atender à sua função social, tal qual o
fazem a propriedade, a família, os contratos etc.
Pois bem, a tutela da posse reside, em verdade, no direito social primá-
rio à moradia (artigo 6º da CF/88) e no acesso aos bens vitais mínimos há-
beis a conceder dignidade à pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF/88).
A função social da posse está implícita nos artigos 5°, caput, XXII,
XXIII, XXIV, 170, 173, 182, 183, 184, 185, 186, 191 da CF/88, mas é
certo que haverá casos de tensão entre o direito fundamental de proprieda-
de, do artigo 5º, inciso XXII, da CF/88, e o direito subjetivo metaindivi-
dual do inciso XXIII, pelos quais o proprietário é ineficiente na missão de
outorgar uma destinação útil àquilo que lhe pertence, o que será resolvido
pela lei, no caso de usucapião, ou pelo magistrado, na vertente do princípio
da proporcionalidade em três passagens do Código Civil: a) artigo 1.228,
§ 4º, ao cuidar da desapropriação indireta em favor de uma coletividade
que dê função social à posse; b) nos parágrafos únicos dos artigos 1.238
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
199

e 1.242, ao premiar com a redução do prazo aquisitivo de usucapião os


possuidores que concedem função social à posse; c) artigo 1.210, § 2º, ao
extirpar do nosso ordenamento o vetusto instituto da exceptio proprietatis.
Assim, a teoria social da posse, fulcrada na perspectiva civil consti-
tucional, confere tutela a quem adquire a posse de um bem e se preocupa
com a saúde, a alimentação, a educação, o trabalho, os direitos de vizi-
nhança, a integridade psicofísica, o acesso igualitário aos bens materiais e
imateriais, inclusive à proteção ao meio ambiente (artigo 225 da CF/88),
efetiva o artigo 1.205 do CC/02 e realiza as variadas dimensões do Estado
Democrático de Direito.

DAS OBRIGAÇÕES

Não há como negar que o direito contemporâneo não mais admite


situações como a do personagem Antônio, que na célebre obra de Shakes-
peare, O mercador de Veneza, contrata com o agiota Shylock, oferecendo
como garantia ao inadimplemento do empréstimo contraído nada menos
do que uma libra de carne de seu corpo.
Nessa trilha é a redação do artigo 391 do Código Civil: “Pelo
inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”, mas uma
interpretação do artigo 391 do Código Civil, à luz de uma hermenêutica
constitucional, demanda uma releitura nos seguintes termos: “pelo inadim-
plemento das obrigações respondem todos os bens do devedor que não alcancem
o seu patrimônio mínimo”, isto porque na visão civil-constitucional as rela-
ções obrigacionais devem ser examinadas por uma perspectiva humanista,
voltada à tutela das situações existenciais e da dignidade humana. Consa-
gra-se a tutela do patrimônio mínimo, ou seja, um mínimo de bens que
assegure a cada pessoa a sua condição existencial. Aquém desse limite, o ser
humano será instrumentalizado e alijado de sua humanidade.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
200

Neste sentido é o comentário ao artigo 944 do CC/02 constante da


obra de Gustavo Tepedino4 e outros, onde sustenta-se, com toda razão, que:

“A quantificação da indenização tomará sempre como limite


o patrimônio disponível do ofensor, sendo de se considerar
impenhorável não apenas os bens indicados em lei, como o
imóvel residencial (Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990),
mas também o patrimônio necessário à conservação de uma
existência digna, conceito que não deve ser visto de forma
reducionista. Nem mesmo a regra de reparação integral do
dano pode afastar a incidência dos princípios constitucionais.
Portanto, o valor da indenização mede-se pela extensão do
dano, mas se limita ao montante de que pode dispor o ofen-
sor sem prejuízo da sua vida digna”.

DOS CONTRATOS

No direito contratual, inicialmente, cumpre destacar que o princípio


da boa-fé objetiva contrapõe-se ao ideário patrimonialista e individualista
vigente na ordem civil de 1916. Funda-se esta preposição na nova ordem
constitucional, em que o princípio da dignidade humana ganha contornos
de norma irradiadora e delimitadora de direitos. Desse modo, a boa-fé
objetiva constitui a efetivação da proteção da dignidade da pessoa humana
nas relações obrigacionais, pois circunscreve os limites éticos das relações
patrimoniais entre os contratantes, e na atual lei civil vemos importantes
cláusulas gerais nos artigos 113 e 442 do CC/02, devendo as mesmas ser
interpretadas de acordo com os artigos 1º, inciso III, e 170, do texto cons-
titucional, este último regulador dos princípios da atividade econômica, a
ensejar o correto entendimento do que é chamado de boa-fé objetiva.

4 TEPEDINO, Heloísa Helena BARBOZA, Maria Celina Bodin de MORAES et al., Código Civil Interpreta-
do conforme a Constituição da República, v. II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 862.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
201

Nesse contexto, o dever de boa-fé objetiva nas obrigações não indica


qual a conduta adotada pelas partes de uma relação negocial, mas como
estas devem se comportar. Noutras palavras, é atendido quando as partes
desempenham suas condutas de modo honesto, leal e correto, evitando
causar danos ao outro (dever de proteção) e garantindo o conhecimento de
todas as circunstâncias relevantes para a negociação (dever de informação);
comportamento que faz florescer laços de confiança entre os contratantes.
Do dever de boa-fé objetiva derivam o dever de não agir contra os
atos próprios (venire contra factum proprium) e o dever de informar.
O venire contra factum proprium é uma vedação decorrente do prin-
cípio da confiança. Trata-se de um tipo de ato abusivo de direito (artigo
187, CC/02). Referida vedação assegura a manutenção da situação de con-
fiança legitimamente criada nas relações jurídicas contratuais, em que não
se admite a adoção de condutas contraditórias.

Neste sentido já decidiu o STJ:


“(...) 2. Uma das funções da boa-fé objetiva é impedir que o
contratante adote comportamento que contrarie o conteúdo
de manifestação anterior, cuja seriedade o outro pactuante
confiou. 3. Celebrado contrato de locação de imóvel objeto
de usufruto, fere a boa-fé objetiva a atitude da locatária que,
após exercer a posse direta do imóvel por mais de dois anos,
alega que o locador, por ser o nu-proprietário do bem, não
detém legitimidade para promover a execução dos aluguéis
não adimplidos. 4. Agravo regimental improvido.” (AgRg
no Ag 610.607/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE
ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 25/06/2009,
DJe 17/08/2009).

A despeito de tradicionalmente o dever de informação estar regulado


apenas no Código de Defesa do Consumidor, entendemos que tratamento
semelhante deve ser dispensado no campo das relações paritárias entre par-
ticulares, sobretudo após o novo Código Civil ter explicitado os deveres de
probidade e honestidade no trato negocial (artigo 422 do CC/02).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
202

Nesse contexto se insere o diálogo de fontes, que é a possibilidade de


convivência harmônica das várias normas que compõem o universo legisla-
tivo de defesa do consumidor, utilizando sempre a que for mais favorável ao
consumidor, ainda que não consagrada pela Lei nº 8.078/90, de forma que a
tutela do consumidor seja alcançada e efetivada a teor do seu artigo 7º.
Assim, é exemplo a relação entre o Código de Defesa do Consumi-
dor, a Lei de Planos de Saúde e a Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso),
tendo em vista que os diplomas supracitados permitem a solução mais
favorável e protetiva ao consumidor idoso, já que o artigo 15, § 3º, deste
último, veda a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança
de valores diferenciados em razão da idade.

DO DIREITO DE FAMÍLIA

Com efeito, o Direito de Família sofreu profunda reformulação com


os avanços constitucionais. Impossível, hoje, aplicar os mesmos institutos
reguladores das relações familiares sem a prévia consideração de princípios
como o da dignidade da pessoa humana, o da liberdade e o da igualdade.
Atualmente, as famílias não são mais como aquelas preconizadas há
alguns anos atrás em que um homem casava-se com uma mulher e desta
união advinha os filhos e assim viviam pelo resto da vida.
Diante de tal constatação, cabe-nos fazer a seguinte pergunta: A
CF/88 amplia, no seu artigo 226 e parágrafos, o rol de famílias consti-
tucionalmente previstas. Seria este artigo e seus parágrafos meramente
enunciativos ou exemplificativos? Poder-se-ia falar que existem entidades
familiares que não as expressas na Constituição?
Para responder a esta indagação, a Constituição Federal de 1988
expressamente dispõe sobre o casamento, a união estável e a família mo-
noparental. Entretanto, atualmente existe a hipótese de outros tipos de
entidades familiares como a união de parentes e pessoas que convivem em
interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de
grupos de irmãos, após o falecimento ou abandono dos pais, no caso de
uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual, no caso de uniões con-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
203

cubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos


companheiros, com ou sem filhos e no caso de comunidade afetiva forma-
da com filhos de criação segundo generosa e solidária tradição brasileira,
sem laços de filiação natural ou adotiva regular.
Neste contexto é de se destacar como marco histórico o que os Mi-
nistros do Supremo Tribunal Federal, ao julgarem a Ação Direta de Incons-
titucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 132, reconheceram a união estável para casais do
mesmo sexo, baseando-se nos princípios constitucionais da dignidade hu-
mana (artigo 1º, III, da CF), da igualdade substancial (artigos 3º e 5º, da
CF), da não discriminação – inclusive por opção sexual (artigo 5º, da CF),
e do pluralismo familiar (artigo 226, da CF), pois o desrespeito ou prejuízo
em função da orientação sexual da pessoa, significa dispensar tratamento
indigno a um ser humano e desobedecer sua honra, modificando o até en-
tão entendimento quanto ao artigo 1.723 do Código Civil de 2002.
Assim, no mundo contemporâneo, é preciso ter uma visão pluralista
da família, que considere os vários arranjos familiares existentes. Desde que
uma unidade de vivência possua afetividade, estabilidade e ostensibilidade,
a mesma configura, sim, uma entidade familiar, merecendo gozar da pro-
teção estatal consagrada constitucionalmente.

DA RESPONSABILIDADE CIVIL

O texto constitucional também impôs mudanças no tocante à respon-


sabilidade civil e, para exemplificar, basta lembrar a expressa previsão acerca
da indenizabilidade do dano moral no artigo 5º, incisos V e X. A legislação
infraconstitucional também a ele se refere, como, por exemplo, o Código de
Defesa do Consumidor, no artigo 6º, inciso VI; o Código Civil de 2002, no
artigo 186, o qual traduz a cláusula geral da responsabilidade civil culposa.
Atualmente vem se discutindo a possibilidade de indenização nos ca-
sos de bullying ocorridos nos educandários, visto que acobertados pela regra
legal (artigos 932, IV, e 933, CC/2002; artigo 14, CDC), cumpre-nos inda-
gar até que ponto devem os pais ser isentos de quaisquer responsabilidades.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
204

Podemos sustentar a responsabilidade solidária dos pais, cujas fun-


ções de educar os filhos com absoluta prioridade importam em verdadeiro
múnus público. Este é o entendimento a que se chega do estudo conjunto
dos artigos 205, 227 e 229, CF/88; artigos 4º e 22, ECA; artigos 1.566,
IV e 1.634, I, CC/2002, na medida em que asseveram ser o dever primário
dos pais a direção da criação e educação dos filhos, independentemente de
estarem casados ou não, demonstrando que nem mesmo o fato de estarem
separados ou divorciados os pais, e estando o filho menor na companhia
de um deles, em razão da guarda atribuída judicialmente ou por ambos
consentida, deve gerar a irreparabilidade quanto ao genitor que não tinha
o menor em sua companhia, posto que, sendo detentor do poder familiar,
embora não conviva com o ex-cônjuge detentor da guarda, nem por isso
seu dever de criar e educar resta diminuído.

CONCLUSÃO

Antes, portanto, na interpretação e aplicação do Direito Civil, a


Constituição era uma hóspede intrusa, cuja presença numa lide civil nin-
guém compreenderia. Hoje, cada vez mais, seja na doutrina, seja na juris-
prudência, o conteúdo normativo do Direito Civil se faz próximo das dire-
trizes constitucionais, e é bom que seja assim, é necessário que seja assim.
Neste sentido, a Carta da República está a determinar, como objeti-
vo fundamental, a igualdade substancial, com a erradicação da pobreza e a
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a solida-
riedade social, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária
(artigo 3º, inciso I, CF/88). Também assegura ao consumidor o direito à
vida, igualdade e segurança (artigo 5º, caput, CF/88), bem como garante
a indenização por dano material, moral e à imagem (artigo 5º, inciso V,
CF/88) o que reflete cada vez mais a interferência dos primados constitu-
cionais nas relações privadas. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
205

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E
LEGISLATIVA DA FAMÍLIA

Luciano Silva Barreto¹

INTRODUÇÃO

Há exatos 10 anos foi publicada a Lei nº 10.406/2002, que, um ano


após, passaria a vigorar. Nesta oportunidade, finalmente seria revogado o
Código Civil de 1916, depois de quase um século de vigência, dando lugar a
um novo diploma, que chegou em bom tempo, apesar do longo período de
tramitação do projeto no Congresso Nacional e da consequente consagração
de certas figuras e ideias um tanto ultrapassadas. Malgrado algumas imper-
feições, o novo Código Civil, em geral, representou um notável avanço para
as instituições civis e seguramente o Direito de Família, o mais dinâmico dos
ramos do Direito Civil, também passou por importantes reformas.
Neste trabalho analisaremos a evolução histórica e legislativa da fa-
mília desde os primórdios até a contemporaneidade. Em tempos longín-
quos, o sacramento matrimonial era a única alternativa de se dar início a
uma família e era indissolúvel, tornando esta entidade severa e sem vínculos
de afeto. O austero modelo, conservador e patriarcal, foi calamitoso e deu
origem a proliferações de uniões extramatrimoniais, abalando a estrutura
familiar daquela época. Assim, a família atual é caracterizada pela diversi-
dade, justificada pela incessante busca pelo afeto e felicidade. A ampliação
do seu conceito acabou por permitir o reconhecimento de outras entidades
familiares, como a união de pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento da fi-
liação socioafetiva dentre outros avanços. Essas novas relações levam à busca

¹ Juíz de Direito da 9ª Vara Criminal - Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
206

de soluções práticas no âmbito do Direito das famílias e, para tal finalidade,


mister se faz que percorramos alguns períodos históricos para que se possa
compreender a evolução histórica e legislativa da família, demonstrando-se a
evolução conceitual e transformação do seu modelo, até chegar à atualidade,
detalhando-se o progresso legislativo intrínseco ao assunto, desde o advento
do Código Civil de 1916 até a vigência do novo Código Civil brasileiro.

A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A família, primeira célula de organização social e formada por indi-


víduos com ancestrais em comum ou ligada pelos laços afetivos, surgiu há
aproximadamente 4.600 anos. Este termo nasceu do latim famulus, que
significa “escravo doméstico” e foi criado na Roma antiga para servir de
base para designação de grupos que eram submetidos à escravidão agrícola.
Essencialmente a família firmou sua organização no patriarcado, originado
no sistema de mulheres, filhos e servos sujeitos ao poder limitador e inti-
midador do pai, que assumia a direção desta entidade e dos bens e a sua
evolução, segundo Friedrick Engels,² subdivide-se em quatro etapas: famí-
lia consanguínea, família punaluana, pré-monogâmica e a monogâmica,
tendo cada uma suas características e particularidades. Esta última etapa
foi adotada como forma de manter para si uma esposa, já que eram raras;
etapa caracterizada pelo casamento e pela procriação.
Segundo este mesmo autor, somente ao homem era concedido o
direito de romper o matrimônio ou até mesmo repudiar sua mulher, caso
esta fosse estéril ou cometesse adultério.
Ainda na Antiguidade, merecia destaque a falta de afeto entre os
membros da família, que se se unia com o propósito de conservação dos
bens, a prática comum de um ofício e nos casos de crises, a preservação da
honra e das vidas.

² ENGELS, Friedrich. A origem da família da propriedade privada e do Estado: Texto integral. Traduzido por Ciro
Mioranza. 2. ed. rev. São Paulo: Escala, [S.d]. p. 31-7. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, v. 2).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
207

Quanto aos filhos, quando crianças, não viviam a infância, conside-


rando que tão logo adquirissem porte físico para trabalhar, misturavam-se
aos adultos e partilhavam os afazeres domésticos.
Fustel de Coulanges³ menciona que nessa ocasião os filhos sofriam,
ainda, o fato da diferenciação. Prova disso é de que a filha quando casava
deixava de fazer parte da família de origem, podendo seu pai amá-la, po-
rém não lhe deixar bens, que cabiam aos filhos homens.
No decorrer dos séculos, porém, essa estrutura foi abalada e passou
por transformações profundas na sua constituição.
Não podemos deixar de mencionar quão grande foi a influência do
Direito Canônico nos alicerces das famílias, que, a partir de então, formar-
se-iam apenas através de cerimônias religiosas.
O cristianismo levou o casamento a sacramento. O homem e a mulher
selariam a união sob as bênçãos do céu e se transformariam em um único ser
físico, e espiritualmente, de maneira indissociável. O sacramento do casamen-
to não poderia ser desfeito pelas partes e somente a morte poderia fazê-lo.
Insta salientar que a partir deste advento, a Igreja passou a empe-
nhar-se em atacar tudo o que pudesse desagregar o seio familiar. O aborto,
o adultério e concubinato, nestes meados, também passaram a ser abomi-
nados pelo Clero e pela sociedade, mas deve ser lembrado que este último
ato continuava por ser praticado, porém de forma discreta.
Contudo, após esse período, um novo conceito de família formou-
se, não unicamente embasada no sacramento imposto pela Igreja, mas pelo
elo do afeto, nascendo a família moderna.

A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA

Este modelo iniciou-se a partir do século XIX e foi precedido pelas


Revoluções Francesa e Industrial, quando, àquela época, o mundo vivia em
constante processo de crise e renovação.
³ COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. Traduzido por Fernando de Aguiar. 4. Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. P. 47. v. 2).
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
208

A partir de então, passou-se a valorizar a convivência entre seus mem-


bros e idealizar um lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças
e valores, permitindo, a cada um, se sentir a caminho da realização de seu
projeto pessoal de felicidade. Esse é o sentido da família na atualidade.
Vale aquilatar que o Direito de Família é o que mais avançou nos
últimos tempos, levando-se em consideração que seu foco são as relações
interpessoais e que estas acompanham os passos da evolução social.
A família contemporânea caracteriza-se pela diversidade, justifica-
da pela incessante busca pelo afeto e felicidade. Dessa forma, a filiação
também tem suas bases no afeto e na convivência, abrindo-se espaço para
a possibilidade da filiação não ser somente aquela que deriva dos laços
consanguíneos, mas também do amor e da convivência, como é o caso da
filiação socioafetiva.

EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DA FAMÍLIA E DA FILIAÇÃO

As sucessivas transformações legislativas nesta instituição iniciaram


na metade do século passado e depararam-se com o advento da Consti-
tuição Federal de 1988. A partir de então, inúmeras leis nasceram para
adequação das novas perspectivas da família e da sociedade.
Por consequência desta evolução humana, o que era aceitável anti-
gamente, hoje, passa a ser abominado pela sociedade, como por exemplo,
o poder do pai sobre a vida e a morte dos filhos, ou ainda, a possibilidade
de anular o casamento se constatada a esterilidade. Nesta caminhada evo-
lutiva do Direito é necessário acompanhar os anseios sociais, sob pena de
transformar-se em letra morta.
Em razão dessas mutações, várias foram as situações que urgiram
respaldo legal, a exemplo da união estável, a adoção, a investigação da filia-
ção, a guarda e o direito de visitas.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
209

A ORGANIZAÇÃO SISTÊMICA DA FAMÍLIA ANTES DA


CONSTITUIÇÃO DE 1988

As leis que vigoravam antes da Constituição Federal brasileira de


1988 sistematizavam o modelo da família patriarcal, excluindo da tutela
jurisdicional as demais espécies de entidades familiares e os filhos que não
fossem havidos na constância do casamento.
Nesta ambientação, o matrimônio era a única forma de constituição
da chamada família legítima, sendo, portanto, ilegítima toda e qualquer
outra forma familiar, ainda que marcada pelo afeto.
O marco histórico, no que diz respeito à legislação, foi a promulga-
ção da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 (antigo Código Civil). Este
diploma, projeto de Clóvis Beviláqua, era uma obra moldada a sua época,
e que vigorou a partir daquela mesma data do ano subsequente.
O autor Luiz Edson Fachin , frente ao mencionado Código, afir-
4

ma que ser sujeito de direito representava ser “sujeito de patrimônio”, ter


muitos bens e nesta esteira de entendimento, a legislação cível daquela
época, totalmente patrimonialista, valorizava mais o “ter” do que o “ser”
e direcionava-se aos grandes proprietários, devendo-se frisar que a massa
popular não sabia de seus direitos e tampouco que poderia invocá-los.
Àquela época, a família patriarcal posicionava-se como coluna cen-
tral da legislação e prova disso foi a indissolubilidade do casamento, como
também a capacidade relativa da mulher. O artigo 233 do Código Ci-
vil de 1916 designava o marido como único chefe da sociedade conjugal.
Além disso, à mulher era atribuída somente a função de colaboradora dos
encargos familiares, consoante artigo 240 do mesmo diploma legal.
No que concerne à filiação, havia notória distinção entre os filhos
legítimos e ilegítimos, naturais e adotivos, que era devidamente registrada
no assento de nascimento a origem da filiação.

4 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. P. 298.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
210

Quanto aos bens, conforme o artigo 377 deste Código: “quando o


adotante tiver filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de
adoção não envolve a de sucessão hereditária”.
O instituto da guarda estava atrelado à culpa na separação e não
no bem-estar da criança, como é na atualidade, sendo aquela atribuída ao
consorte não culpado pelo desquite.
Nos idos de 1949 entrou em vigor a Lei nº 883, que tratava do re-
conhecimento dos filhos ilegítimos, através de ação de reconhecimento de
filiação, os quais passariam a ter direito, inclusive, a alimentos provisionais,
em segredo de justiça, e herança, sendo reconhecida a igualdade de direi-
tos, independente da natureza da filiação. Este grande avanço foi marcado
pela proibição de qualquer menção à filiação ilegítima no registro civil,
deixando para trás a postura preconceituosa na qual o legislador se apoiou
para a elaboração da Lei nº 3.071/16.
Noutro giro, em 27 de agosto de 1962, foi publicada a Lei nº 4.121,
que versava sobre a situação jurídica da mulher casada, denominada Esta-
tuto da Mulher Casada. Revogou vários dispositivos do Código Civil de
1916 e dentre outros direitos, a mulher obteve aquele de exercer o poder
familiar, ainda que constituísse novo casamento. Contudo, essa atividade
ainda era bastante restrita, considerando que a redação do parágrafo
único do artigo 380, explanava que, caso houvesse divergência entre os
genitores, quanto ao exercício do pátrio poder, prevaleceria a decisão
do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para a solução
daquele conflito.
Mesmo assim, a posição da mulher no âmago da sociedade e da
entidade familiar foi modificada e representou uma das maiores conquis-
tas da classe feminina perante a legislação brasileira, passando, a partir de
então, a interferir na administração de seu lar.
No ano de 1977, sob a égide da CFRB de 1967, foram editadas
a EC nº 09 e a Lei nº 6.515, sendo que a 1ª possibilitou o divórcio
no Brasil, após ter sido obtida a separação judicial e a 2ª disciplinava a
matéria viabilizando a ação direta de divórcio, desde que, completados
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
211

cinco anos de separação de fato com início anterior a 28 de junho de


1977, (artigo 40). E mais. A mencionada lei foi de grande relevância, vez
que concedeu o direito à mulher de optar ou não pelo uso do nome de
família de seu cônjuge. Outra modificação foi o Regime Parcial de Bens
ser considerado regime legal e a possibilidade dos vínculos familiares se
encerrarem com o divórcio.5
Posteriormente, aprovou-se a Lei nº 6.697/79, que regulava a as-
sistência, proteção e vigilância a menores, denominada como Código de
Menores. Este foi criado com o escopo de ajustar a situação dos meninos
e meninas encontrados nas ruas dos centros urbanos, que eram ditos
como irregulares. Desta feita, a referida Lei atrelou-se a questões de segu-
rança pública e não se pautou integralmente na proteção às crianças que
se encontravam em situação de risco.

A NOVA PERSPECTIVA DA FAMÍLIA APÓS A


CONSTITUIÇÃO DE 1988

A partir da promulgação da Carta Magna de 1988, a célula familiar


foi mais uma vez remodelada; desta vez dando ênfase aos princípios e direi-
tos conquistados pela sociedade. Diante deste novo aspecto, o modelo de
família tradicional passou a ser mais uma forma de constituir um núcleo
familiar que, em consonância com o artigo 266, torna-se uma comunidade
fundada na igualdade e no afeto.
Esta nova estrutura foi propiciada pela Constituição Federal de
1988, que trouxe nova base jurídica para auferir o respeito aos princípios
constitucionais, tais como a igualdade, liberdade e dignidade da pessoa
humana. Esses princípios também foram transportados para a seara do
Direito de Família e a partir deles foi transformado o conceito de família,
que passou a ser considerada uma união pelo amor recíproco.

5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família. 2º v. 8º ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 74.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Repise-se que o enfoque da legislação mudou para priorizar a pro-


teção da família e a pessoa dos filhos de forma igualitária em detrimento
daquela proteção exacerbada ao casamento e filhos legítimos.
Neste mesmo prisma, as inovações também passaram a conceder
proteção integral às crianças e isso se deve ao fato da dificuldade social da
época, pela qual estas eram colocadas de lado e marginalizadas. O processo
de integração social surgiu da observação do constituinte de 1988, que
destinou elástico capítulo à família, à criança, ao adolescente e ao idoso.
Em 20 de novembro de 1989 foi instaurada a Convenção da ONU
(Organização das Nações Unidas) sobre os direitos da criança e do adoles-
cente, que foi aprovada em assembleia geral, ocorrida em Nova Iorque e
confirmada pelo Brasil, através do Decreto de nº 99.710/99. Dessa feita,
surgiu uma nova visão de responsabilidade e, na intenção de positivá-la,
em 1990 foi editada a Lei nº 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), que representou enorme avanço no reconhecimento dos direitos
destas pessoas em fase de desenvolvimento.
Posteriormente à vigência deste Estatuto, o reconhecimento do es-
tado de filiação passou a ser direito personalíssimo, indisponível e impres-
critível, podendo ser exercido contra os pais ou herdeiros, sem qualquer
restrição, observado o segredo de justiça.
É induvidoso que foi necessário unir esforços entre a família, a comuni-
dade e o poder público, com o objetivo de efetivar os novos direitos prescritos
pelo ECA. Atualmente, observa-se em comunidades pobres que há programas
do governo que visam a propiciar às crianças e adolescentes cursos profissiona-
lizantes, preparando-os para o futuro e dando-lhes uma oportunidade.
É importante trazer à tona a inovação contida na Lei nº 8.560, de
29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade dos
filhos havidos fora do matrimônio. A aludida lei concedeu legitimidade ao
Ministério Público para ingressar com ação de investigação de paternidade,
quando constar do registro civil apenas a filiação materna. E mais. Estas
disposições representaram a viabilidade do direito de toda criança ter um
pai e uma mãe e de incumbi-los da responsabilidade de criá-la.
Finalmente, a Lei nº 10.406/02, que instituiu o Novo Código Ci-
vil brasileiro, entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2002. Sua redação
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inicial aprovada pela casa de origem foi profundamente alterada, desde sua
apresentação até sua apreciação no Senado, que ocorreu aproximadamente
20 anos após e, dessa feita, temos um Código que apesar de novo, à época
de sua vigência já estava desgastado, em razão de a sociedade se encontrar
em constante mutação e os direitos que se diriam novos já haviam sido
contemplados pela Constituição Federal, não representando grande avan-
ço e sim, em alguns aspectos, um retrocesso.
A exemplo disso houve omissão do legislador ao deixar de incluir dis-
positivos que regulamentassem o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou
até mesmo celebração não solene do casamento, tratando-o inexistente.
Igualmente o legislador deixou de mencionar na regulamentação a
família monoparental e o respeito a esta, apesar das estatísticas mostrarem
que vinte e seis por cento dos brasileiros vivem dessa forma.
Gisele Leite6 ressalta a mais importante das alterações como sen-
do aquela que diz respeito à isonomia conjugal, abarcando que pelo casa-
mento homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes
ou companheiros, sendo responsáveis pelos encargos da família, a saber,
fidelidade recíproca, a vida em comum no domicílio conjugal, a mútua
assistência e o sustento, guarda e educação dos filhos, com o adendo do
respeito e consideração mútuos.
Por fim, malgrado tenhamos observado toda a evolução histórica das
inúmeras transformações na família e propriamente nos seus direitos, boa par-
te deste progresso é fruto de sólida construção doutrinária e jurisprudencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grande marco na conquista de direitos da família e da filiação foi a


promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir desta foi reconhe-
cida a união estável, como entidade familiar tutelada jurisdicionalmente e
também restou vedada qualquer discriminação em virtude da origem da
filiação. A família incorporou o pensamento contemporâneo, igualdade

6 LEITE, Gisele. “O Novo Direito de Família”. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, v. 9, n. 49,

p. 112-20, ago-set. 2008.


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e afeto, à luz dos princípios trazidos pela Carta Magna, sendo, cada vez
mais, imposta ao jurista essa interpretação. Hoje se reconhece a validade da
norma observando a sua conformidade com a evolução social e sobretudo
com os preceitos constitucionais, o que exige uma revisão dos institutos
que forma a espinha dorsal do Direito Civil: as obrigações, a propriedade
e, sem dúvida, a família.
A nova roupagem do Direito de Família e por que não dizer do todo
do Direito Civil transcorreram do livramento das amarras do liberalismo
e da patrimonialização das relações sociais, permitindo que os interesses
puramente individuais passassem a se submeter a outros valores.
Por tal forma, novas concepções acerca da família vêm surgindo no
ordenamento pátrio, conceitos tais que se fundam sobre a personalidade hu-
mana, devendo a entidade familiar ser entendida como grupo social fundado
em laços afetivos, promovendo a dignidade do ser humano, no que toca a
seus anseios e sentimentos, de modo a alcançar a felicidade plena. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ENGELS, Friedrich. A origem da família da propriedade priva-


da e do Estado: Texto integral. Traduzido por Ciro Mioranza. 2. ed. rev.
São Paulo: Escala, [S.d], p. 31-7. (Coleção Grandes Obras do Pensamento
Universal, v. 2).
COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. Traduzido
por Fernando de Aguiar. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 47.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2003, p. 298.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família. 2º v. 8º ed.
Atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 74.
LEITE, Gisele. “O Novo Direito de Família.” Revista Brasileira de
Direito de Família. Porto Alegre, v. 9, n. 49, p. 112-20, ago-set. 2008.
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10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL


APLICAÇÃO, ACERTOS, DESACERTOS E NOVOS RUMOS

Lúcio Durante¹

O seminário foi composto por oito palestras, abordando aplicação,


acertos, desacertos e novos rumos do Código Civil, e suas principais ino-
vações e modificações na vida da sociedade civil, sendo abordados os se-
guintes temas:
1) Legalidade e Eficácia Constitucional na Aplicação do Código Civil;
2) A Posse dos Imóveis como Instrumento de Garantias Fundamen-
tais e as Limitações Ambientais;
3) Aplicação dos Princípios e Cláusulas Gerais nas Relações Nego-
ciais e Reais Imobiliárias;
4) Famílias Contemporâneas na Legalidade Civil-Constitucional;
5) O Código Civil e a Defesa do Consumidor;
6) Consequências do Inadimplemento das Obrigações;
7) A Responsabilidade Civil nos dez Anos da Codificação Civil na
Construção da Doutrina e Jurisprudência.
O seminário teve como objetivo analisar os acertos e desacertos da
nova norma jurídica civil e fornecer aos participantes conhecimentos te-
óricos, práticos e jurisprudenciais sobre o Código Civil de 2002, o qual
foi recebido pelos operadores do direito com muita desconfiança, princi-
palmente por operar inúmeras modificações nos vários ramos do direito.
Recepcionar e consolidar todas as evoluções ocorridas na legislação e na
sociedade ao longo do século XX e no início do XXI. Passou a ser a consti-
tuição do cidadão comum, ao repaginar os valores e critérios da legalidade

¹ Juiz de Direito da 3ª Vara Cível de Campo Grande.


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e eficácia dos princípios do individualismo do Estado Liberal, tendo como


norma norteadora o Estado Social, consagrado pela Constituição Fede-
ral de 88. Deu substancial relevo às cláusulas abertas, permitindo ao juiz
interagir com suas normas, para aplicá-las no caso concreto, levando em
consideração as partes envolvidas e o direito controvertido submetido a sua
apreciação, deixando de ser um mero aplicador da norma, como ocorria
até a vigência do novo Código Civil, voltado para a realidade brasileira e
que atenda às suas necessidades fundamentais.
O Código Civil de 2002, em suas inúmeras inovações, incorporou
os princípios consagrados na Constituição Federal, como os direitos fun-
damentais elencados no art. 5º, a função social da propriedade e posse dos
bens imóveis. Na responsabilidade civil, adotou como regra a responsabili-
dade objetiva em substituição à subjetiva, a qual ficou restrita a pouquíssi-
mos casos; a boa-fé objetiva consolidou a teoria de empresa, unificando as
obrigações civis e comerciais. No Direito de Família, instaurou a igualdade
absoluta entre os cônjuges e os filhos, com a substituição do pátrio poder,
pelo poder familiar; no Direito das Obrigações, além da exigência ética na
celebração dos negócios jurídicos, impôs o imperativo da socialidade, pas-
sando a declarar a função social do contrato, como prevê o art. 421.

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos


limites da função social do contrato.

Na mesma linha, nos contratos de adesão, os arts. 422 e 423


preveem o seguinte:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas am-


bíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais
favorável ao aderente.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Das inúmeras modificações introduzidas pelo Código Civil 2002, ao


meu ver, as que mais impactaram a sociedade civil foram a relativação do
conceito de propriedade até então absoluto em benefício do proprietário,
passando a enfatizar o aspecto social, em inúmeros dispositivos, em que o
possuidor passou a dispor de maior proteção em relação ao proprietário
que não dá ao seu imóvel a função social ao qual ele se destina. No campo
da responsabilidade civil, ao passar a adotar como regra a responsabilidade
objetiva, em substituição à subjetiva, facilitou a perseguição pelo lesado
dos danos experimentados ao não mais ter que comprovar a culpa do cau-
sador. No Direito Comercial, consolidou a doutrina da teoria da empresa,
revitalizando tipos tradicionais de sociedades.
No aspecto social da propriedade imóvel, cabe destaque às regras dos
§§ 1º e 4º do art. 1228, que estabelecem, in verbis:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e
dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer
que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonân-


cia com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que
sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei
especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio eco-
lógico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas.

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o


imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse inin-
terrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável
número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjun-
to ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de
interesse social e econômico relevante.

Nesse contexto, o proprietário que não dá a sua propriedade o desti-


no social ao qual se destina, esta sujeito a tributação progressiva pelo Poder
Público, ou a perda da propriedade, facilitando sua aquisição pelo possui-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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dor, ao reduzir drasticamente os prazos de prescrição extintiva e aquisitiva,


visando a restabelecer o seu interesse social, ou pela sua desapropriação por
interesse social.
Igualmente no caso da posse, evoluiu o Código, que passou a ob-
servar, além das distinções de boa-fé e má-fé, a natureza social da posse
da coisa, com a redução dos prazos de usucapião, de conformidade com
o art. 1238, passando de 20 para 15 anos para a aquisição da propriedade
imóvel, independentemente de justo título ou boa-fé, sendo esse prazo
reduzido para dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua
moradia, ou nele tenha realizado obras ou serviços de caráter produtivo,
como estabelece o art. 1238.
O art. 1.239 reduziu para cinco anos ininterruptos para o possuidor
que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, adquira o domínio
de área em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a pro-
dutiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nele sua moradia. Bastan-
do para tanto que não haja oposição nesse lapso de tempo.

E ainda, reportando-se à regra do art. 183 da Constituição Federal,


a norma civil reproduziu a regra do usucapião urbano, no art. 1.240, mais
uma vez ressaltando o aspecto social da propriedade, visando a facilitar a
aquisição da propriedade pelo possuidor, em detrimento do proprietário
que não dá ao bem a utilização social a qual se destina.

Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até
duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininter-
ruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de
sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja pro-
prietário de outro imóvel urbano ou rural.

Nesse diapasão, pode-se ainda se extrair a referência das finalidades


econômicas e sociais do exercício da propriedade, destacando a tutela da
flora, do equilíbrio ecológico, da qualidade do ar, das águas. Pode-se dizer
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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que um conjunto de interesses sociais não patrimoniais, que ao mesmo


tempo protegem e tutelam o direito e seu respectivo exercício, há um con-
dicionamento nesse exercício ao chamado interesse social, os quais se so-
brepõem ao direito de propriedade, em benefício da coletividade.
Na responsabilidade civil, na esteira da Constituição Federal, que
estabeleceu no § 6º do art. 37 a responsabilidade objetiva para as pessoas
jurídicas de direito público e prestadores de serviços públicos, e do Código
de Defesa do Consumidor, que, em seus art. 12,13, 14 e 17, igualmente
passou a adotar como regra esta responsabilidade em substituição a subje-
tiva no parágrafo único do art. 927:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, indepen-


dentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Com a adoção da responsabilidade objetiva pelo Código Civil, des-


vinculou-se o dever de reparação do dano da ideia de culpa, calcado no
risco da atividade desenvolvida, permitindo que o lesado, ante a dificulda-
de da prova de culpa, a obtenção de meios para reparar os danos sofridos,
compelindo o causador a ressarcir o prejuízo causado, independente de
culpa, cuja responsabilidade é imposta pela lei.
Vale ressaltar, sobre a responsabilidade pelo serviço que oferece, as
sábias palavras do Desembargador Sérgio Cavalieri Filho, em sua consagra-
da obra Programa de Responsabilidade Civil.

“... todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no


mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais
vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independente-
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mente de culpa. Este dever é imanente ao dever de obediência


às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de
lealdade, quer perante os bens e serviços ofertados, quer perante
os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decorre
do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade
de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos
ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a
ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de
consumo, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos.
O consumidor não pode assumir os riscos da relação de consu-
mo, não pode arcar sozinho com os prejuízos decorrentes dos
acidentes de consumo, ou ficar sem indenização.”

Nesse contexto, a responsabilidade objetiva, decorrente da simples


colocação no mercado de determinado produto ou prestação de dado ser-
viço, ou exercício de atividade que coloque em risco terceiros, conferido
ao lesado, o direito de intentar as medidas contra todos os que estiverem
na cadeia de responsabilidade, independentemente de culpa, bastando
à vítima a prova do fato, seu resultado e o nexo causal, para surgir o
dever de indenizar.
Ao disciplinar as regras do Direito Comercial, o Código Civil ino-
vou ao rever tipos tradicionais de sociedades. Estabelecendo princípios e
criando a sociedade simples, disciplinou cuidadosamente as sociedades
de responsabilidade limitada, tratou das sociedades coligadas com regras
próprias, regulou as liquidações, incorporação e fusão das empresas, deu
destaque ao registro mercantil, com regras próprias, estabeleceu a noção
de empresário e sociedade empresária, e muitas outras inovações sobre as
relações comerciais e empresariais, que reduziram substancialmente os obs-
táculos interpretativos de suas regras, visando a dirimir e facilitar a sua
compreensão pelos empresários e operadores do direito.
Concluindo, posso asseverar que o seminário, pela excelência e com-
petência de seus palestrantes, me foi extremamente proveitoso, na exegese
das inúmeras inovações do Código Civil de 2002, as quais, apesar de indi-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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carem a adequada aplicação e extensão de seus dispositivos, em sua maio-


ria, demonstram os acertos e evolução de suas regras. Ainda há muito que
se evoluir na interpretação de todos os seus dispositivos, principalmente
pela iniciativa do legislador ao contemplar em seu bojo inúmeras cláusulas
abertas, para que os magistrados possam interpretá-las no caso concreto,
levando-se em consideração as condições das partes, a natureza do vín-
culo, o local do fato, a boa-fé objetiva e a função social das obrigações
controvertidas, que constitui o grande desafio dos operadores do Direito,
visando a alcançar o real objetivo e significado das regras do Código Civil.
Apesar de já estar em vigor há 10 anos, há muito que se aprender na difícil
tarefa de interpretar o real objetivo de suas normas, visando a produzir as
consequências mais justas, que estejam mais de acordo com os princípios
axiológicos que inspiraram o novo ordenamento positivo. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL


APLICAÇÃO, ACERTOS, DESACERTOS E NOVOS RUMOS

Luiz Henrique Oliveira Marques¹

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado da participação no evento promo-


vido entre os dias 29 e 30 de março, pela Escola da Magistratura do Estado
do Rio de Janeiro, tendo por tema “10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL -
APLICAÇÃO, ACERTOS, DESACERTOS E NOVOS RUMOS”.
O evento compreendeu a realização de um conjunto de palestras,
ao longo das quais foram colhidas brilhantes manifestações de renomados
palestrantes, sendo ouvidas importantes autoridades e juristas, que deba-
teram com a assistência sobre os mais diversos temas que foram objeto
de discussão, assim ordenados: LEGALIDADE E EFICÁCIA CONS-
TITUCIONAL NA APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL, A POSSSE
DOS IMÓVEIS COMO INSTRUMENTO DE GARANTIAS FUN-
DAMENTAIS E AS LIMITAÇÕES AMBIENTAIS, APLICAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS E CLÁUSULAS GERAIS NAS RELAÇÕES NEGOCIAS
E REAIS IMOBILIÁRIAS, FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS NA LE-
GALIDADE CIVIL-CONSTITUCIONAL, O CÓDIGO CIVIL E A
DEFESA DO CONSUMIDOR, CONSEQUÊNCIAS DO INADIM-
PLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES, DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS
DE RESPONSABILIDADE LIMITADA e, finalmente, A RESPONSA-
BILIDADE CIVIL NOS DEZ ANOS DA CODIFICAÇÃO CIVIL NA
CONSTRUÇÃO DA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA.

¹ Juiz de Direito de Entrância Especial - Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Assim, o presente trabalho contém uma modestíssima abordagem


sobre um dos temas enfrentados, “famílias contemporâneas na legalidade
civil-constitucional”, por envolver matéria sobre a qual o subscritor vem
atuando na presidência do Juízo da Vara de Registros Públicos da Comarca
da Capital do Estado do Rio de Janeiro.
Trata-se, pois, de relatório contendo apenas uma visão da matéria, sob
a ótica do novo ordenamento e da doutrina que discorre sobre o tema, ex-
pondo algumas impressões reputadas de relevo sobre pontos que mereceram
destaque, ao modesto juízo do subscritor, simples e despretensiosas ponde-
rações em torno da união homoafetiva e casamento entre pessoas do mesmo
sexo, assim distribuído: introdução, a união estável entre homem e mulher
na disciplina da lei, a extensão dos efeitos da união estável sobre a união ho-
moafetiva na visão do Supremo Tribunal Federal, o casamento entre homem
e mulher na disciplina da lei, e o casamento entre pessoas do mesmo sexo na
visão da doutrina e dos tribunais, e, finalmente, a conclusão.

DESENVOLVIMENTO

A União Estável entre o homem e a mulher na disciplina da lei.


Historicamente, no Brasil, a união entre o homem e a mulher, fora
do casamento civil, passou por etapas bem definidas, desde o simples re-
conhecimento dos efeitos remuneratórios atribuídos à atividade doméstica
exercida pela mulher, passando pelo reconhecimento da divisão de bens
adquiridos mediante esforço comum durante a união do casal, dando en-
sejo à edição da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal (“comprovada
a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução
judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”), até
atingir o atual estágio, no qual a própria Constituição Federal, no capítulo
VII, ao cuidar da Família, reconheceu a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar, determinando a facilitação da sua conver-
são em casamento pela Lei (art. 226, § 3º), garantindo-lhe a proteção do
Estado, dando origem à Lei 9.278/96, que, após encará-la como entidade
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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familiar, conceituou a união estável como a convivência duradoura, públi-


ca e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo
de constituição de família; previu os direitos e deveres dos conviventes,
o regime dos bens adquiridos pelos mesmos na constância da união, in-
clusive a forma de sua administração e da dissolução da união, além da
possibilidade da sua conversão em casamento.
A título de curiosidade, conforme nos informa José Afonso da Silva,
em seu “Comentário Contextual À Constituição”, a expressão união estável
veio do anteprojeto de Constituição, elaborado pela Comissão Provisória
denominada por Comissão “Afonso Arinos”, e foi criada pelo Padre Fernan-
do Bastos D’Ávilla, da área mais progressista da Igreja Católica, quando se
encontravam os seus integrantes no Plenário da Comissão, buscando uma
forma de reconhecimento constitucional das uniões familiares de fato, de
modo a distingui-la da expressão pejorativa conhecida como concubinato.
Mas a Lei 9.276/96 sucumbiria em pouquíssimo tempo, com a
edição do novo Código Civil brasileiro, que entrou em vigor com a Lei
10.406, de 10.01.2002, após o período de vacatio, passando a matéria a ser
disciplinada entre os artigos 1.723 a 1727.
A primeira disposição quase que repetiu o conceito contido no di-
ploma revogado, mantendo, inclusive, a referência à união entre o homem
e a mulher, sem a preocupação com seu aperfeiçoamento, na medida em
que manteve a expressão “estabelecida com objetivo de constituição de fa-
mília”, destoando da Constituição Federal, por assim dizer, na medida em
que, para a Constituição, a configuração da união estável depende da mera
situação de fato, independentemente da intenção dos conviventes.
O novo diploma legal prevê, então, os deveres dos companheiros,
entre si e para com os filhos comuns, e o regime de bens, impedimentos
à caracterização do instituto, além da possibilidade da conversão da união
estável em casamento. Também a distinguiu do concubinato e nada mais.
Percorreram-se décadas durante as quais foram travadas grandes
discussões no seio dos tribunais brasileiros e também na doutrina, pro-
porcionando o amadurecimento das ideias, culminando pela normati-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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zação do fenômeno social pelo legislador, sensibilizado pela realidade já


consolidada no seio social, dando origem à regulação da união estável
entre o homem e a mulher, fora do casamento civil.
Mera reprodução de antigo fenômeno sociojurídico, configurado
pela positivação das condutas já arraigadas pela coletividade e percebi-
das pelo legislador.
No entanto, em recentíssima decisão, o Supremo Tribunal Fede-
ral, numa só penada, na relatoria do Ministro Celso de Mello, no jul-
gamento do Recurso Extraordinário 477554 - Agr/MG., ao interpretar
o ordenamento jurídico, sobretudo nos seus aspectos constitucionais,
concluiu por estender à união homoafetiva, ou seja, união entre pessoas
do mesmo sexo, os efeitos legais atribuídos à união estável constituída
entre o homem e a mulher, entre pessoas de sexos opostos, portanto e,
tendo em vista o caráter erga omnes conferido pela lei, perdeu sentido
qualquer discussão em torno da licitude da denominada união homo-
afetiva, sendo certo que nenhuma referência expressa foi lançada sobre
a licitude de casamento civil entre pessoas de mesmo sexo.
Com todas as vênias, não obstante o brilhantismo e a erudição
do julgado, talvez tenha havido precipitação pela iniciativa, antecipan-
do-se ao legislador e interrompendo o processo natural de evolução das
ideias entre as diversas camadas sociais, sobre tema de intensa relevân-
cia e complexidade, gerando certa perplexidade.
Por sua vez, o casamento é instituto que se inclui entre os mais antigos
institutos da história do Direito, e, no Brasil, a Constituição Federal de 1988
dele cuidou apenas para determinar a gratuidade da sua celebração, bem
como para admitir o efeito civil ao casamento religioso e a possibilidade da
sua dissolução pelo divórcio no seu art. 226, destacando-se o correspondente
parágrafo quinto, segundo o qual os direitos e deveres referentes à sociedade
conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
Já o Código Civil, sem a preocupação de conferir-lhe um conceito,
regulou extensamente o casamento, em seu Livro IV, ao tratar “Do Direito
de Família” a partir do art. 1.511, distribuindo o tema em onze capítu-
los, iniciando pelas disposições gerais, regulamentando especificamente,
outrossim, a capacidade para o casamento, os impedimentos, as causas
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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suspensivas, o processo de habilitação para o casamento, a celebração do


casamento, as provas do casamento, a invalidade do casamento, a eficácia
do casamento, a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal e, finalmen-
te, a proteção da pessoa dos filhos, destacando as disposições do art. 1.514,
segundo as quais o casamento se realiza no momento em que o homem e
a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo
conjugal, e o juiz os declara casados.
Em recentíssima decisão proferida pelo Eg. Superior Tribunal de
Justiça, em julgamento por maioria de votos, foi autorizada a realização de
casamento entre pessoas de mesmo sexo, como igualmente se manifestou o
Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em decisão proferida
pela 8ª Câmara Cível.
Em doutrina, são verificadas posições favoráveis e desfavoráveis, e
entre os que, se posicionam contra o casamento de pessoas de mesmo sexo,
vale citar Silvio Rodrigues, Orlando Gomes e Virgílio Sá Pereira, além de
Arnaldo Rizzardo, Antonio Carlos Mathias Coltro, Sálvio de Figueiredo
Teixeira e Tereza Cristina Monteiro Mafra.
Na obra Direito de Família, Ed. Forense, p.55, 3ª Edição, o Profes-
sor Arnaldo Rizzardo, assim se pronuncia sobre o tema²:
“(...) tem relevância, neste momento, a diversidade de sexo,
aspecto que vem preocupando alguns sociólogos, humanis-
tas e psicólogos mais ávidos de novidades e sensacionalismos,
mas sem maiores ressonâncias ou efeitos práticos. Mesmo que
emasculada a pessoa de sexo masculino e passe a identificar-se
por um caráter, hábitos, comportamento, impulso sexual e
sensibilidade nitidamente femininos, jamais se retirará dela
o ser androgenóico masculino. Se afiguráveis anomalias nos
aspectos externos secundários, e acentuados ou implantados
atributos e órgãos femininos por intervenção cirúrgica, isto
não importa em introduzir no ser humano órgãos genitais
internos, como útero e ovários. Daí conceber-se como impos-
sível a união matrimonial de duas pessoas do mesmo sexo.”

² RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Familia, 3ª Edição, Ed. Forense, 2005, p.55.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
227

Já Antonio Carlos Mathias Coltro, Sálvio de Figueiredo Teixeira e


Tereza Cristina Monteiro Mafra, se posicionam favoravelmente à união
homoafetiva, opondo-se, porém, ao casamento entre pessoas de mesmo
sexo, sem prévia alteração legal.

Assim, em a obra “Comentários ao Novo Código Civil, da


Ed. Forense, edição de 2005, se manifestaram nos seguintes
termos, verbis: “(...) A proteção legal às relações entre pes-
soas do mesmo sexo já começou a ser discutida, tendo con-
tado com um projeto de lei, no Congresso, de autoria da
então deputada Marta Suplicy, que foi arquivado. Mas, à
semelhança da lei francesa (PACS – pacte civil de solidari-
té), a proteção se daria no âmbito do direito obrigacional,
não se lhes atribuindo natureza de entidade familiar, pois
no direito francês, a maior parte dos autores consultados,
fazendo menção a decisões dos tribunais, não reconhece o
concubinato homossexual. Assim, no direito brasileiro, a
diversidade de sexos é elemento essencial, situando-se, pois,
no plano da existência para configuração jurídica do casa-
mento. No entanto, com isso, não se pretende desprestigiar
ou recusar efeitos jurídicos às uniões homoafetivas. Ape-
nas, no direito brasileiro, por enquanto, não se lhes reconhece
o enquadramento jurídico como casamento. É importante
esclarecer que nos países nórdicos, precursores na regula-
mentação de uniões homoafetivas, o tratamento legal não
equivale a casamento, mas, sim, à atribuição de efeitos ju-
rídicos semelhantes a essa modalidade de relacionamento.
A Dinamarca foi o primeiro país a legislar sobre a matéria.
Em 1930, os atos homossexuais foram descriminalizados
e, em 1986, alguns direitos sucessórios passaram a ser re-
conhecidos. Em 07.06.1989, a Lei nº 372 autorizou o re-
gistro da parceria entre pessoas do mesmo sexo que, com
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
228

poucas exceções, confere-lhes os mesmos direitos do casa-


mento dinamarquês, exigindo, porém, dois requisitos: um
ou ambos terem residências permanente ou nacionalidade
dinamarquesa. A Noruega, pela Lei nº 40, de 30.04.1993,
disciplinou o Registro de Parceria de Casais Homossexuais,
conferindo aos parceiros, à semelhança dos casados, co-
titularidade do direito de propriedade dos bens adquiri-
dos durante a vida em comum. A Suécia, em 1994, pro-
mulgou lei permitindo o registro de parceria entre pessoas
do mesmo sexo, que pode ser formalizado na Prefeitura
ou Câmara Municipal. Na Finlândia, embora tenha sido
apresentado um projeto em 1996, houve rejeição pelo
Parlamento. Já nos Estados Unidos, merecem referência
a lei do Estado de Vermont, de abril de 2000, por reco-
nhecer, expressamente, caráter familiar às uniões civis, e
São Francisco que está autorizando registros das parcerias
homossexuais. A Alemanha, em 2001, promulgou lei
regulamentando as parcerias homossexuais e permitindo
seu registro. Finalmente, em uma abordagem mais liberal,
deve ser lembrada a Holanda e seu Act on the Opening up
of Marriage, que especificamente estende aos relaciona-
mentos homoafetivos a possibilidade de casamento. No
Brasil, à luz dos princípios constitucionais da igualdade e da
dignidade da pessoa humana, não se pode recusar, a priori,
às uniões homoafetivas, a possibilidade de enquadramen-
to jurídico como entidades familiares, mediante construção
civil-constitucional própria. Entretanto, o enquadramento
jurídico dessas uniões, como casamento, ainda não é possível,
pois dependeria de uma reforma constitucional e subsequente
regulamentação”. (grifo nosso)³

³ - COLTRO, Antonio Carlos Mathias, MAFRA, Tereza Cristina Monteiro, TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo,
Comentários ao Novo Código Civil, 2ª Edição, Ed. Forense, 2005, p. 215/217.
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Conforme se pode verificar pela manifestação supra, ainda que em


prestígio dos princípios da igualdade e da dignidade humanas, sob a visão
da referida doutrina, não seria jurídico, segundo a atual ordem jurídica, o
reconhecimento da licitude do casamento entre pessoas de mesmo sexo.

CONCLUSÃO

Entre acertos e desacertos na aplicação do novel ordenamento


jurídico, de ver-se que ambas as questões, que envolvem as uniões entre
pessoas de mesmo sexo, revelam-se de altíssima complexidade e, indepen-
dentemente da posição adotada, creio que mais adequado seria agir como
fizeram alguns países, como a Inglaterra e a Argentina, promovendo altera-
ções em seus ordenamentos, revelando-se precipitada e arriscada a iniciati-
va de setores importantes do Poder Judiciário. Arriscada pela possibilidade
de traduzir-se em insegurança, instabilidade jurídica e, precipitada, por
imiscuir-se em função que não lhe é própria.
Em última análise, aguardar a iniciativa legislativa seria, talvez, a ati-
tude prudente, principalmente em virtude da indispensabilidade e resguar-
do da repartição dos Poderes de Estado, sob a qual ao Poder Legislativo é
atribuída com independência a função de legislar, único ao qual o povo, em
cujo nome o poder é exercido, delegou a tarefa de criação das normas jurí-
dicas, dotando-o de capacidade de representar a vontade popular, como se
verifica na expressão de Montesquieu, verbis: “Pois que em um Estado livre
todo homem que se reconhece uma alma livre deve ser governado por si mesmo,
necessitaria que o povo em corpo possuísse o poder legislativo; mas assim como
isso é impossível nos grandes Estados e é sujeito a muita desordem nos pequenos,
ocorre que o povo faça por meio dos seus representantes tudo aquilo que não
pode fazer por si próprio. (Do Espírito das Leis, Livro XI, VI). 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
230

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Constituição da República Federativa do Brasil de 1998;


2- RIZZARDO, Arnaldo, Direito de Família, 3ª Edição, Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2005;
3- COLTRO, Antonio Carlos Mathias, MAFRA, Tereza Cristina
Monteiro, TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo, Comentários ao Novo Có-
digo Civil, 2ª Edição, Ed. Forense, 2005;
4- AMORIM, José Roberto Neves Amorim e outros, Coordenador,
PELUZO, Ministro Cezar, Código Civil Comentado, Doutrina e Juris-
prudência, 2ª Edição. São Paulo: Editora Manole Ltda., 2007;
5- Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002;
6- WALD, Arnoldo, O novo Direito de Família, 15º Edição. São
Paulo, Editora Saraiva, 2004;
7- LOUREIRO, Luiz Guilherme, Registros Públicos - Teoria e
Prática, 2ª Edição, Editora Método, São Paulo, 2011.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
231

FILHOS – EVOLUÇÃO ATÉ A


PLENA IGUALDADE JURÍDICA
MAFALDA LUCCHESE¹

O Direito Civil Constitucional importa uma interpretação simbólica


em que estes dois ramos se integram em benefício do Estado e da popula-
ção. Disso resulta uma metodologia de interpretação dessa nova composição
jurídica que procura analisar os institutos privados a partir da Constituição
e, por vezes, também os mecanismos constitucionais a partir da legislação in-
fraconstitucional, o que permite o revigoramento das instituições de Direito
Civil. O Direito de Família é um dos ramos em que mais se percebe a consti-
tucionalização do Direito Civil, exigindo toda e qualquer norma inerente ao
Direito de Família a presença de fundamento de validade constitucional.
Conforme prelecionam os Professores Cristiano Alves de Farias e
Nelson Rosenvald, em Direito Civil – Teoria Geral, 6ª. Edição, Editora
Lumen Juris, p. 25:

“A esse novo sistema de normas e princípios, reguladores da vida


privada, relativos à proteção da pessoa, nas suas mais diferentes di-
mensões fundamentais (desde os valores existenciais até os interesses
patrimoniais), integrados pela Constituição, define-se como Direito
Civil Constitucional (ou Direito Civil constitucionalizado)”.

O Direito Civil afastou-se da concepção individualista, que reconhe-


cia a necessidade de afirmar valores individualistas, permitindo o acesso a
bens de consumo, tendo a legislação privada claro aspecto patrimonialista,
tradicional e conservador da época das codificações do século passado, e,
desta forma, se constitucionalizou.

¹ Juíza de Direito da 1ª. Vara de Família de Duque de Caxias.


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Três são os princípios básicos do Direito Civil Constitucional, con-


soante lições do Prof.ºr. Gustavo Tepedino, citado pelo também Profºr.
Flávio Tartuce, in Manual de Direito Civil, volume único, 2ª Ed., Editora
Método, p. 56/57:
1) aquele que pretende a proteção da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, da Carta Magna). Valoriza-se a pessoa humana em detrimento
do patrimônio;
2) a solidariedade social (art. 3º, I, da Constituição Federal);
3) o princípio da isonomia ou igualdade lato sensu (art. 5º, caput,
da C.F.).
Assim, na questão referente à igualdade dos filhos, passa-se da necessida-
de de preservação do núcleo familiar (na realidade, preservação do patrimônio),
com expressões de discriminação (filhos legítimos, legitimados e ilegítimos,
estes últimos divididos em naturais ou espúrios, sendo que os espúrios se sub-
dividiam em incestuosos e adulterinos), para a aplicação plena dos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e a proibição de tratamento
discriminatório quanto à filiação (art. 227, § 6º, da Constituição Federal).
O Direito antigo era essencialmente severo e conservador quanto à
necessidade da preservação do núcleo familiar, prevalecendo os interesses
da instituição do matrimônio em detrimento dos filhos, colocando estes
numa situação marginalizada, se nascidos fora do casamento; a única fi-
liação que a lei tomava conhecimento real era a ocorrida no seio do casa-
mento. Puniam-se os frutos dos relacionamentos havidos por pessoas não
ligadas pelo matrimônio, por adúlteros (na época era considerado crime)
ou em relações incestuosas. Em decorrência da visão sacralizada da família
e da necessidade de sua preservação, puniam-se aqueles que culpa alguma
tinham de terem sido gerados fora das normas legais e dos princípios mo-
rais vigentes na época.
Os filhos eram classificados como: legítimos - os gerados dentro do
casamento; legitimados – eram os filhos naturais que, apenas em situações
específicas, poderiam ser reconhecidos pelo próprio pai ou mãe (o filho
jamais poderia reivindicar em juízo seu estado de filiação); ilegítimos ou
naturais – nascem de pessoas não ligadas pelo matrimônio.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
233

Os filhos ilegítimos ainda se dividiam em naturais e espúrios. Os na-


turais eram os nascidos fora do matrimônio, resultantes da união de duas
pessoas que não se casaram, mas poderiam fazê-lo, porquanto inexistente
qualquer impedimento para tal. Os espúrios, por sua vez, eram os que de-
corriam da união de duas pessoas impedidas para o matrimônio.
Os filhos espúrios se subdividiam em incestuosos (fruto do relacio-
namento entre duas pessoas para as quais há impedimento legal para o ca-
samento, decorrente de vínculo de parentesco) e, os adulterinos (resultan-
tes da união entre duas pessoas, sendo uma ou ambas legalmente casadas
com terceira pessoa). Estes filhos incestuosos ou adulterinos não poderiam
ser reconhecidos. O Código Civil de 1916, em seu art. 358, expressamente
vedava o reconhecimento, dispondo:
“Art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser
reconhecidos”.

Esta proibição prejudicava os filhos incestuosos e adulterinos e não


seus genitores. Conforme Clóvis Beviláqua: a falta é cometida pelos pais e
a desonra recai sobre os filhos. Ou num ditado italiano que diz: “L’albero
pecca e il ramo riceve” (a árvore peca e o ramo paga). Tal proibição be-
neficiava os genitores e prejudicava o filho. Era como se o fruto da relação
proibida por lei não existisse, era ignorado, e o pai beneficiado não tinha o
ônus do poder familiar. Os direitos daquele que não tinha qualquer culpa
por nascer de tais relações vedadas por lei eram excluídos, violando os hoje
consagrados princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e
da plena igualdade entre os filhos.
Fato curioso é que a investigação de paternidade ou de maternidade
teve sua origem no Direito Canônico, conforme ensinamentos do dou-
trinador San Tiago Dantas (Direitos de Família e das Sucessões, 2ª Ed.,
Editora Forense, p. 368):

“...É uma inovação do Direito Canônico que se deve à influência


do cristianismo e pode se dizer que, até mesmo no Direito Roma-
no, só apareceu o instituto depois que a influência dos costumes
cristãos se fazia sentir sobre a elaboração legislativa. É verdade
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
234

que no Direito Canônico não se falava em investigação de pater-


nidade, para o fim de se conferir o estado de filho ilegítimo. O
que preocupava o canonista era o problema alimentar. Estes filhos
ilegítimos cujos pais ou mães não se conhecem têm o problema de
sua sustentação completamente dependente do aparecimento de
seus genitores. Na Idade Média, isto ainda se sentia mais forte-
mente do que hoje, e a Igreja, que lança a obrigação alimentar
como uma das obrigações fundamentais do homem, criada pelo
Direito Natural, não hesitou permitir-se a investigação de pa-
ternidade, para descobrir quem era o obrigado à alimentação.
A Igreja, neste particular, é tão liberal que seu Direito Canônico
não hesita em conferir ação de investigação de paternidade com
fim alimentar, até mesmo aos espúrios e aos sacrílegos, e é conhe-
cida a disposição canônica que para os filhos dos clérigos manda
que as paróquias façam uma prestação alimentar, de tal modo
a prestação alimentar é uma imposição do direito natural, uma
decorrência da natureza humana”.

A legislação portuguesa, em suas Ordenações, era mais evoluída que


o regime instituído posteriormente pelo Código de Napoleão. Entretanto,
fazia distinção entre a família aristocrática e a plebeia. Enquanto para os
nobres a família é cuidadosamente defendida pelo Estado, em relação aos
plebeus, a família não é tão importante, fazendo-se mais concessões aos
direitos dos indivíduos. Nas sucessões, havia igualdade entre os filhos na-
turais e legítimos para os plebeus, entretanto, entre os nobres, só os filhos
legítimos herdavam, porquanto vigorava o costume extremamente prote-
tor da hereditariedade da família.
Em 02-09-1847, a Lei nº 463 suprimiu as diferenças existentes nas
Ordenações, sendo equiparados os filhos dos nobres aos dos plebeus; no
entanto, a redação era confusa, não se sabendo se o que vigorava era o
direito dos nobres, mais conservador ou, se dos plebeus, mais liberal.
O Decreto nº 181, de 1890, admitiu a investigação de paternidade,
porém apenas para casos determinados e só tratando do assunto a propó-
sito dos impedimentos matrimoniais, não se estendendo à postulação de
estado de filho legítimo.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
235

Como já exposto supra, o Código Civil de 1916, em seu art. 358,


proibia o reconhecimento de filhos adulterinos, bem como a respectiva
investigação de paternidade.
Posteriormente, a Lei nº 883, de 1949, passou a permitir o reco-
nhecimento do filho havido fora do matrimônio, se dissolvida a sociedade
conjugal (art. 1º), permitindo, ainda, ao filho ilegítimo pleitear alimentos
em segredo de justiça (art. 4º).
A lei 6.515, de 26-12-1977, acrescentou à Lei 883 o parágrafo úni-
co, que foi transformado em § 1º pela Lei 7.250, de 14-11-1984, sendo
que esta última também acrescentou o § 2º, dispondo:

“§ 1º. Ainda na vigência do casamento, qualquer dos cônjuges


poderá reconhecer o filho havido fora do matrimônio, em testa-
mento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho,
e, nessa parte, irrevogável.
§ 2º. Mediante sentença transitada em julgado, o filho havido
fora do matrimônio poderá ser reconhecido pelo cônjuge separado
de fato há mais de 5 (cinco) anos contínuos”.

A Lei 6.515/77 também introduziu o art. 2º à Lei 883, passando o


direito à herança a ser reconhecido, em igualdade de condições, qualquer
que fosse a natureza da filiação.
Assim, com fundamento no art. 4º da Lei 883/49, ingressava-se
com pedido de alimentos, em que a paternidade era reconhecida inciden-
talmente; entretanto, reconhecia-se apenas a obrigação alimentar, mas não
o direito de incluir-se a filiação, continuando o filho sem o nome do pai.
Em vigor desde 05-10-1988, a nova Constituição Federal inscreveu
entre os princípios básicos relativos à família e à criança um mandamento
segundo o qual os filhos havidos ou não de relação do casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer de-
signações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º). O atual Có-
digo Civil (Lei 10.406, de 10-01-2002), em seu artigo 1.596, com idêntica
redação, consagrou o princípio da igualdade entre os filhos, sendo este um
dos princípios do Direito Civil Constitucional.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
236

Isto significa que não podem subsistir as restrições ao reconheci-


mento dos filhos havidos fora do casamento, que eram consagradas no
direito anterior, bem como que está superada a discriminação que constava
no art. 332 do Código Civil de 1916, cuja redação era a seguinte:
“Art. 332. O parentesco é legítimo, ou ilegítimo, segundo proce-
de, ou não, de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de
consanguinidade, ou adoção”.
O artigo acima já havia sido revogado pelo Lei 8.560, de 1992.
A respeito já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça por oca-
sião dos julgamentos dos Recursos Especiais nºs. 6.821 e 16.827, ambos
do relato do eminente Ministro Nilson Naves, publicados do Diário de
Justiça nos dias 03-06-91 e 30-11-92, às páginas 74.224 e 22.609, respec-
tivamente, em cujas ementas se lê:
“Filho adulterino. Registro de nascimento realizado pelo pai na cons-
tância do casamento, ainda vigente o art. 358 do Código Civil. É
válido, mesmo assim, o registro, somente produzindo efeitos após a
morte do declarante, já ocorrida quando da propositura da ação.”

“Filho adulterino. Reconhecimento pelo pai na constância do ca-


samento em testemunho público. É válido o ato, uma vez dissol-
vida a sociedade conjugal com a morte do testador...”.

E, ainda, conforme art. 1º, IV, da Lei nº 8.560, de 29-12-92, o reconhe-


cimento dos filhos havidos fora do casamento passou a ser irrevogável, podendo
ser feito por manifestação expressa e direta perante o Juiz, ainda que o reconhe-
cimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
Ressalte-se que a doutrina tem sido praticamente unânime, com Roubier
e Serpa Lopes, no sentido de que todas aquelas leis que se referem ao estado das
pessoas, principalmente, às relações de família, têm aplicação imediata e geral.
Cumpre ressaltar que os filhos adulterinos reconhecidos ou declara-
dos por sentença nos autos de ação interposta com fundamento no art. 4º
da Lei nº 883, anteriormente à vigência da Constituição Federal de 1988,
não necessitam propor ação de investigação de paternidade. Há acórdão
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
237

neste sentido publicado na Revista de Direito do Tribunal de Justiça do


Estado do Rio de Janeiro, vol 10, 1992, p. 196:
“Reconhecimento de filho adulterino. Tornado regular pelo
advento da nova Constituição Federal e da Lei 7.841/89,
convalesce o registro, dispensando a propositura de ação de
investigação de paternidade”.

Na hipótese acima transcrita, o Relator Desembargador Hermano


Ducan Ferreira Pinto manifesta-se no seguinte sentido:
“Não vemos sentido prático no pretender do investigante, se sua
paternidade, embora não pudesse ser reconhecida na época, e, pela
forma com que o foi, persiste, certa e definida por força do con-
valescimento do ato, sem valia no início, mas que, por força de
legislação posterior, tornou-se válido nos seus efeitos”.

Outro princípio constitucional que também veda a discriminação


é o da dignidade da pessoa humana, que conforme Ingo Wolfgang Sarlet,
citado pelos Professores Cristiano Alves de Farias e Nelson Rosenvald, em
Direito Civil – Teoria Geral, 6ª. Edição, Editora Lumen Juris, p. 100:
“...estabelece que dignidade da pessoa humana é a “qualidade in-
trínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comuni-
dade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer
ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os de-
mais seres humanos”.

E prosseguem os Doutrinadores:
“Dignidade da pessoa humana, nessa ordem de ideias, expressa
uma gama de valores humanizadores e civilizatórios incorporados
ao sistema jurídico brasileiro, com reflexos multidisciplinares”.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
238

A situação para os filhos que não podiam ter o nome de um dos


genitores nos respectivos registros de nascimento era por demais vexatória,
constando a expressão “omitido na forma da lei” quando um dos genitores
era casado com 3ª pessoa.
Hoje não mais existem discriminações entre os filhos e, ainda, nas
ações de investigação de paternidade, aquele que se recusa a se submeter ao
exame de D.N.A. faz com que se presuma a filiação que lhe é imputada,
conforme Lei nº 12.004, de 2009, que introduziu o art. 2º-A e seu pará-
grafo único à Lei 8.560/92, que passou a dispor:
“Art. 2º-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os
meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis
para provar a verdade dos fatos.

Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de


código genético - DNA gerará a presunção da paternidade, a ser
apreciada em conjunto com o contexto probatório.”

A mesma lei acima referida revogou, em seu art. 3º, a Lei nº 883.
Assim, atualmente, toda criança tem direito à filiação completa e
sem discriminação. 

Bibliografia

DANTAS, San Tiago, Direitos de Família e das Sucessões, 2ª Edi-


ção, Editora Forense, 1991.
DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias, 6ª Edi-
ção, Editora Revista dos Tribunais, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de e NELSON Rosenvald, Direito Ci-
vil, Teoria Geral, 6ª Edição, Editora Lumen Juris, 2007.
TARTUCE, Flávio, Manual de Direito Civil, 2ª Edição, Editora
Método, 2012.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
239

PROTEÇÃO CONTRATUAL NO
DIREITO BRASILEIRO
VISÃO DO DIREITO CIVIL SOB PRISMA DE INFLUÊNCIA
CONSTITUCIONAL – PRINCÍPIOS

Magno Alves de Assunção ¹

Contrato, em uma visão simplificada, deve ser entendido como o


negócio jurídico bilateral ou plurilateral, envolvendo necessariamente pelo
menos duas pessoas, cujo fito é o de criar, modificar, resguardar, transferir
ou extinguir uma relação jurídica de natureza patrimonial, conceito aco-
lhido pela maioria da doutrina.
A concepção clássica do contrato nasceu com o liberalismo econô-
mico em contraposição às limitações oriundas do direito canônico e do
corporativismo. Surge a ideia de liberdade contratual como um dos co-
rolários básicos da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternida-
de). Ao desejar as partes unirem-se por vínculo contratual, o acordo seria
tido como lei entre elas (princípio da pacta sunt servanda), não podendo,
sequer, o Poder Judiciário interferir em seu conteúdo (intangibilidade).
Tinha, então, como resultado fundamental, o absoluto respeito pela liber-
dade e pela igualdade formal.
Com o advento da Revolução Francesa, derruba-se a vigência de um
Estado absolutista, consubstanciado no status em que o valor do indivíduo
na sociedade era representado não pelos seus atributos pessoais, mas sim
pela posição social que ocupava.
Na verdade, as premissas em que se calcava o Estado Liberal
constavam tão somente a ideologia vigente à época que, aos poucos,
observou-se equivocada.

¹ Juiz de Direito Titular da 28ª Vara Cível da Comarca da Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
240

Com a influência da Revolução Industrial e dos abusos cometi-


dos pelos particulares, incentivado pelo advento das doutrinas socialis-
tas, o Estado obrigou-se a intervir na economia. Tal intervenção acabou
por atingir os contratos.
Assim é que o intervencionismo estatal alterou em muito a con-
cepção clássica contratual derivada do liberalismo econômico. No direito
brasileiro, sem prejuízo da doutrina anterior, o próprio Código de Defesa
do Consumidor muito contribuiu para esta alteração, e, agora, mais ainda,
podemos afirmar que o Novo Código Civil Brasileiro, Lei-nº 10.406, de
10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor em 10 de janeiro de 2003, veio
reforçar em definitivo a alteração da concepção clássica contratual, embora
não seja o Novo Código Civil um código de rupturas, apesar de inovar e
atualizar alguns pontos regulados no Código Civil de 1916. Ressalta-se
que, no sensível campo dos contratos, promoverá a purificação ética, na
medida em que os coloca a serviço da sociedade, e não apenas dos con-
tratantes, rompendo-se, assim, o individualismo liberal, característico do
século XIX, que tanto influenciou o vigente Código Civil. O tema é vasto
e altamente interessante. A doutrina tem-se interessado pelo assunto, ha-
vendo diversas obras de qualidade e que merecem destaque.
Surge assim um Estado Social em que o interesse coletivo passa a
preponderar e, posteriormente, após a releitura do direito privado em face
da nova ordem constitucional, passa a haver uma maior preocupação com
o ser humano e sua dignidade social. Conclui-se que o suporte fático do
contrato se torna mais complexo, cheio de elementos necessários à sua
complementação, chegando mesmo a permitir a substituição da vontade
pela conduta do particular, sendo indiferente se é voluntária ou não.
Os princípios fundamentais do contrato não conseguem ter mais
uma aplicação generalizada. O Estado Social desconsidera noções como
consentimento, intangibilidade do contrato, força obrigatória do contrato.
O esquema contratual clássico que se configura na oferta e na aceitação
também não se aplica na maioria das novas categorias contratuais.
Por outro lado, a liberdade contratual nascida do princípio da autono-
mia da vontade é tida, modernamente, mais como uma ficção do que pro-
priamente como uma realidade incontestável. Em face das colocações acima
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
241

expostas, observa-se que “operou a distinção entre liberdade para contratar


e liberdade contratual. A primeira diz respeito à faculdade que assiste a cada
um de decidir vincular-se juridicamente. De outra sorte, a segunda refere-se
à possibilidade de negociar livremente as cláusulas contratuais”.
Percebe-se que as modificações na concepção liberal decorreram da
necessidade de que a autonomia da vontade não fosse utilizada como for-
ma disfarçada de consagrar o poder do forte sobre o fraco, possibilitando
preservar a igualdade das partes, bem como o real querer delas, função ina-
fastável do Estado legislador, considerando que “o interesse fundamental
da questão da função social está no despertar a atenção para o fato de que a
liberdade contratual não se justifica, devendo cessar quando conduzir à ini-
quidade, atentatória a valores de justiça, que igualmente têm peso social.
A Constituição Federal do Brasil, seguindo a cosmovisão mundial
contemporânea, pôs em relevo os direitos fundamentais da pessoa huma-
na, de maneira a lhe garantir, essencialmente, a dignidade e a igualdade.
Desta preocupação decorre a conclusão de que a lei fundamental
não se limitou a regular somente a Organização do Estado. Ela também
regulamentou direitos da personalidade, da propriedade, da família,
questões de direito privado. Em razão da previsão constitucional sobre
estas questões, houve necessidade de revisão do Código Civil como
enfocado por inúmeros doutrinadores já citados, destacando PIETRO
PERLINGIERI que afirma que “o papel unificador do sistema, tanto
nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de
relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisi-
va pelo texto Constitucional”.
Verificamos que o Código Civil deve ser relido à luz da Constituição
Federal por representar a mais alta manifestação da soberania popular, em
que os direitos fundamentais constitucionalmente previstos têm grande in-
fluência no direito privado e aplicação imediata. Dentro dessa abordagem,
observamos que os direitos fundamentais da igualdade e da dignidade foram
concebidos para assegurar a liberdade jurídica da pessoa frente à prepotência
do Estado ou de grupos econômicos poderosos. Os direitos fundamentais
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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são o instrumento jurídico através do qual se mantém a distinção entre Esta-


do e sociedade, bem como se garante a autonomia privada.
Devemos destacar a importância dos princípios da liberdade e da
igualdade, procurando encontrar o equilíbrio de modo a garantir aos cida-
dãos um tratamento isonômico nas relações privadas, respeitando a igual
dignidade social e igual liberdade para todos, de modo que o contrato seja
utilizado na sociedade e visto pela sua “função social”. Daí a necessidade
do conceito e das características da Função Social. A função social, lato
sensu, consiste na proteção conferida pelo ordenamento jurídico aos pobres
e aos desamparados, “mediante adoção de critérios que favoreçam uma
repartição mais equilibrada das riquezas”. É a aplicação do princípio da
igualdade substancial.
O Estado, nas sociedades contemporâneas, tem o dever de zelar pela
liberdade e pela igualdade dos indivíduos. Deve haver uma “real e substancial
liberdade e uma verdadeira igualdade, através da eliminação da miséria, da
ignorância, da excessiva desigualdade entre os indivíduos, classes e regiões”.
O conceito de função social do contrato, neste sentido, corresponde
à finalidade pela qual visa o ordenamento jurídico a conferir aos contratan-
tes medidas ou mecanismos jurídicos capazes de coibir qualquer desigual-
dade dentro da relação contratual. Não significa limitar a liberdade contra-
tual; garante-se a liberdade de contratar, preservando, legalmente, valores
fundamentais ligados à dignidade humana. Assim como a propriedade é
vista como um “direito-função”, no sentido de ser garantida a propriedade
natural, condicionado o seu exercício ao fim coletivo, também o contrato
deve perquirir este sentido: o bem-estar social.
A função social do contrato repousa na harmonia entre a autono-
mia privada e a solidariedade social. Fala-se na transformação da moral
individualista em moral social, dos códigos de puros direitos privados em
códigos de direito privado social.
Partindo-se da noção de função social, é evidente que o Estado deve
criar mecanismos de defesa que possam impedir que o mais fraco seja es-
poliado pelo mais forte. Nesse sentido o Novo Código Civil Brasileiro,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Lei-nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor em 10 de


janeiro de 2003, deu um grande avanço jurídico, ao estabelecer no artigo
421 que “:A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato”.
A previsão expressa e a aplicação concreta da teoria da imprevisão
também revelam a ideia do fim social do contrato. A onerosidade excessiva,
ou a lesão enorme, não esperada, não desejada, traz uma intranquilidade
social muito grande, notadamente nos contratos de massa ou de adesão.
Todas as hipóteses legais ditadas pelo artigo 51 do Código de Defe-
sa do Consumidor, que, se previstas num contrato levam à sua nulidade,
revelam algumas das situações em que o contrato deixa de atingir sua fina-
lidade social. Justamente por não atingir sua função social nessas hipóteses,
o contrato é nulo de pleno direito, e não pode ter validade, pois fere o
princípio da igualdade substancial.
Verifica-se um trabalho constante de abrandamento da relação
contratual pela aplicação das teorias humanizadoras do direito, como as
cláusulas protetivas, a imprevisão e a lesão. Os princípios contratuais tra-
dicionais, de cunho individualista e severo, sofrem restrições, sempre em
proveito da justiça contratual.
Aproveitamos a oportunidade para analisar a posição acolhida
pelo novo Código Civil, especialmente, no que pertine ao Negócio Ju-
rídico, salientando que recepcionou a teoria objetiva do direito alemão,
fruto do trabalho dos pandectistas, seguindo os passos de entendimentos
doutrinários já enfeixados sobre o tema, o aludido Código substitui a ex-
pressão “ato jurídico”, que sobreviveu nesses longos anos no Código Civil
em vigor, por “negócio jurídico”, referindo-se aos contratos e estabelecendo
requisitos essenciais para a sua celebração, apontando, ao mesmo tempo,
defeitos e causas de invalidade. E, ainda nesse rumo, em visão antecipada,
acena para a existência de “atos jurídicos lícitos”, não concebidos como
“negócios jurídicos”, mas sob a aplicação subsidiária das mesmas regras.
Quanto aos chamados “atos ilícitos”, supera os limites da repara-
ção do dano, prevista no art. 159, do Código Civil vigente até 10 de ja-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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neiro de 2003, cuja verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade


regulavam-se pelo disposto em os arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553,
daquele diploma legal. Assim, o Código Civil aprovado em 10 de janei-
ro de 2002 e vigente a partir de 11 de janeiro de 2003, inova para fixar
definitivamente que a indenização cabe no caso do dano moral puro ou
dano exclusivamente moral. E, mais adiante, admite a responsabiliza-
ção pelo “abuso de direito” na prática de ato ilícito do titular do direito
que excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes.
Destarte, orientando-se em igual linha normativa, responsabiliza os
sócios pelas obrigações decorrentes de atos abusivos em nome da socieda-
de, cuja matéria já vinha sendo aplicada pela jurisprudência e em plena
vigência no Código de Defesa do Consumidor (art. 28, Lei-nº 8.078/90).
Nesse caso, o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da socie-
dade quando ocorrer desvio de finalidade, confusão patrimonial, ou seja,
a famigerada má administração, decidindo que os efeitos de certas obriga-
ções se estendam aos bens particulares dos administradores ou sócios da
pessoa jurídica, após a devida apuração de responsabilidades visando-se
à reparação dos danos causados ao patrimônio dessas entidades jurídicas,
como bastante divulgado pelos recentes escândalos financeiros.
Face à entrada em vigor no novo Código Civil Lei 10.406/2002,
conveniente comentar quanto às alterações introduzidas no campo dos
Direitos Reais: é de se reconhecer que o discutido Código rebuscou do
trabalho de Orlando Gomes o chamado “direito de superfície”, para es-
tabelecer na parte respectiva que o proprietário pode conceder a outrem,
para construir ou plantar, a título gratuito ou oneroso, somente a super-
fície de sua propriedade. Mas, como sói acontecer em face de atos jurídi-
cos dessa natureza, exige-se escritura pública (Lei-nº 6.015/73) contendo,
além das cláusulas gerais de direitos e deveres das partes, a permissão para
efetuar transferência a terceiro e transmissão do produto desse trabalho a
herdeiros. Ainda sobre o “direito de superfície” impõe o Código apro-
vado a previsão de que, na hipótese de venda do imóvel, o superficiário
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
245

terá direito de preferência na sua compra e, da mesma forma, no caso de


alienação da construção ou da plantação, o superficiário dará preferência
ao proprietário para a sua aquisição.
Anote-se, em idêntico conteúdo, que esse Código absorve em seu
texto várias normas da Lei-nº 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio
em edificações e as incorporações imobiliárias, tratando do chamado “con-
domínio horizontal” sobre questões não previstas no atual Código Civil,
principalmente da redução da multa por atraso no pagamento das taxas e
penalidade ao condômino ou possuidor que, por reiterado comportamen-
to antissocial, provoque um clima de incompatibilidade de convivência
junto aos demais comunheiros. Neste último caso, o infrator poderá ser
punido com multa correspondente ao décuplo das suas contribuições até
ulterior deliberação da assembleia. Aqui, ou o condômino muda de com-
portamento ou muda de prédio.
A par desses elementos, soma-se o novo posicionamento adotado no
novo Código Civil, na verdade já nos seus 10 anos de vigência,que pontifica
em relação à “enfiteuse” (art. 678, C.C.), forma superada de constituição de
direito real sobre coisa alheia, pois relegada para o capítulo das disposições
transitórias. Logo, surge daí a proibição da cobrança da taxa de transferência
do contrato, denominada de “laudêmio” e, no contexto em foco, será vedada
a “subenfiteuse”, como meio de desestimular o contrato de enfiteuse.
Relevante analisar a questão relativa quanto às limitações dos con-
tratos no que pertine a regulamentação contida no atual Código Civil,
confortando-nos toda a evidência de que o Código aprovado admite como
certa a liberdade de contratar, porém condiciona a sua prática pela “razão e
nos limites da função social do contrato”, submetendo os contraentes aos
princípios de probidade e de boa-fé. Quanto à antiga norma “pacta sunt
servanda” (princípio que prescreve a obrigatoriedade dos pactos, os quais de-
vem ser considerados lei para as partes), esta é substituída por um princípio
mais moderno e justo, compatível com a dinâmica do Direito, conhecido
por “rebus sic standibus” (o contrato se cumpre se as coisas se conservarem
da mesma maneira, no estado preexistente, quando de sua estipulação, desde
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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que essas coisas não tenham sofrido modificações essenciais, que designa a
cláusula tida como um pressuposto contratual, resultante da teoria da impre-
visão, para evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes e obrigando a
outra à restituição do montante auferido indevidamente.
É óbvio que o atual Código Civil buscou na Teoria da Imprevisão o
equilíbrio econômico-financeiro do contrato, fundado na ideia moral de
que o credor comete uma suprema injustiça quando usa de seu direito com
absoluto rigor pretendendo enriquecer-se à custa de seu devedor, seguindo
a opinião do civilista francês Georges Ripert (1880/1959), considerado o
maior defensor do controle do direito pela moral, pois este entendia inexis-
tir diferença de domínio, de conteúdo, de natureza ou de finalidade entre
o direito e a moral, mas só diferença de forma.
Importante comentar a matéria pertinente à Sucessão Heredi-
tária no atual Código Civil, em que na ordem de vocação hereditária–
tomando-se, ainda, o disposto no Código Civil de 1916/1917 – observa-se
que se deferia a sucessão legítima em terceiro lugar ao cônjuge sobreviven-
te, conforme o previsto no art. 1.603, inciso III (daquele Código), isto é,
o cônjuge era o terceiro a ser chamado na linha da vocação hereditária.
Vale dizer que, somente à falta de descendentes, é que se poderia receber
herança se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade
conjugal (art. 1.611).
Do que conta o Código julgado bom, o cônjuge supérstite passa a
concorrer de igual para igual com os descendentes do de cujus, a não ser
que já apresente direito à meação, consoante o regime de bens adotado no
casamento e, faltando os descendentes, concorre com os ascendentes. No-
te-se que o cônjuge, além de meeiro, será posicionado, também, como
herdeiro necessário, ao lado dos descendentes e dos ascendentes do faleci-
do, salvo nos casos devidamente comprovados de indignidade ou de deser-
ção. É bom lembrar que o mesmo ocorrerá, por força da Lei-nº 8.971/94,
com o “companheiro” ou “companheira” sobrevivente de união estável.
Cumpre realçar, finalmente, que o comentado Código Civil torna
mais simples a elaboração dos testamentos, quando reduz o número de
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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testemunhas para duas, nas formas públicas e cerrada, e três, na forma


particular, este com sua criação bem mais fácil, podendo ser datilografado
ou digitado pelo testador e, admitida a sua elaboração sem a presença de
testemunhas, desde que confirmado todo o seu texto em juízo e, enfim,
acrescenta o testamento especial “aeronáutico”.

PRINCÍPIOS CONTRATUAIS MODERNOS

Doutrinariamente, levando-se em consideração o papel social do


contrato, costumava-se genericamente classificar os princípios contratuais
em obrigatoriedade da convenção, autonomia da vontade, relatividade dos
efeitos, boa-fé e consensualismo.
Atualmente, afirma-se que dentro da ideia de autonomia da vontade
enquadram-se a liberdade de contratar, o consensualismo e a relatividade
dos efeitos, chamados de subprincípios. A obrigatoriedade da convenção
deixa de ser considerada como princípio em si mesmo, mas em justificativa
para a importância da boa-fé nas relações negociais, porém, a obrigação
de cumprir o contrato continua associada ao dever, de raiz essencialmente
ética, de respeitar a palavra dada, sendo mais importante do que este, do
ponto de vista social, a necessidade de assegurar a observância de certos
compromissos, ligada à tutela da confiança e ao princípio da boa-fé.
Além disso, nasce um novo princípio, ou seja, o da justiça contra-
tual. Justifica-se a ideia de princípio contratual mais moderno decorrente
da necessidade de equidade contratual, ou seja, de equivalência das obriga-
ções assumidas, em que “justiça contratual será uma modalidade de justiça
comutativa. Se a justiça costuma ser representada pela balança de braços
equilibrados, a justiça contratual traduz precisamente a ideia de equilíbrio
que deve haver entre direitos e obrigações das partes contrapostas numa
relação contratual”. Ressalte-se que o princípio da justiça contratual não
diz respeito tão somente ao equilíbrio contratual no sentido estrito da ex-
pressão, mas visa a uma melhor distribuição dos ônus e riscos pactuados
para as partes celebrantes.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Acrescente-se aos princípios contratuais genéricos retrorreferidos,


aplicáveis a todas as figuras convencionais, ou seja, a autonomia privada,
a boa-fé e a justiça contratual, aqueles destacáveis em uma relação con-
tratual de consumo.
Deste modo, são princípios próprios desta espécie de relação a trans-
parência, a equidade – equilíbrio contratual e a confiança. Aliado a estes
presente também está o princípio da boa-fé.
O princípio da transparência, segundo Cláudia Lima Marques, “sig-
nifica informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o con-
trato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor
e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, ou seja, na fase negocial dos
contratos de consumo”, bem assim na fase negocial de qualquer contrato.
Este princípio tem seu ponto de enfoque básico no momento da
formação do contrato e tem sua relevância, especificamente, na ideia de
eficácia do termo contratual. Tal dever de informação das características
e condições do contrato a ser firmado resta evidente na redação do artigo
52 do Código de Defesa do Consumidor que expressamente prevê que
“no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito
ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre
outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:
I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II – montante dos juros de mora e taxa efetiva anual de juros;
III – acréscimos igualmente previstos;
IV – número e periodicidade das prestações;
V – soma total a pagar, com e sem financiamento (...)”.
Esta idéia de transparência está presente na nova redação de oferta
(art. 30 do CDC); no dever de informar sobre as condições e características
do produto (art. 31 do CDC); no dever de explicar o conteúdo do con-
trato (art. 46 do CDC); bem como na necessidade de que a redação dos
pactos seja clara e precisa.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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O equilíbrio contratual visa a aplicar na prática a ideia de igual-


dade substancial, a fim de impedir abusos e vantagens indevidas do for-
necedor em relação ao consumidor. Ademais, conforme esclarece Cláudia
Lima Marques na obra acima citada, “a vontade das partes manifestada
livremente no contrato não é mais o fator decisivo para o Direito, pois as
normas do Código instituem novos valores superiores como o equilíbrio e
a boa-fé nas relações de consumo”, também adotado no novo Código Civil
Brasileiro que entrou em vigor em janeiro de 2003.
Pelo menos em três pontos é realçada a importância deste princípio
contratual: na interpretação dos contratos pró-consumidor; na proibição
genérica e exemplificativa das cláusulas abusivas (ver artigo 51 e incisos
do CDC), bem como por intermédio do controle judicial dos contratos,
colocando termo à ideia absoluta de intangibilidade das convenções.
Analisando o princípio da confiança, observamos que ele é justificado
pelo fato de que “a manifestação de vontade do consumidor é dada almejando
alcançar determinados fins, determinados interesses legítimos. A ação dos for-
necedores, a publicidade, a oferta, o contrato firmado criam no consumidor
expectativas legítimas de poder alcançar estes efeitos contratuais”.
A proteção do consumidor decorrente da aplicação do princípio da
confiança advém do novo regime contra os vícios do produto e serviços, seja
em razão da qualidade, da falha de informação ou por vícios de adequação.
Esta proteção à confiança também é vislumbrada naquelas hipóteses
de inadimplência do consumidor, protegendo-o contra cobranças abusivas,
em aplicação da regra contida no artigo 42 do CDC que prevê: “Na co-
brança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo,
nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça”.
Por outro lado, sendo a inexecução de parte do fornecedor, o sistema
protetivo é eficaz, quer através das garantias processuais (tutela antecipa-
tória nas obrigações de fazer ou não fazer – art. 84 do CDC; garantia dos
mais diversos tipos de ação para a defesa dos seus interesses), quer me-
diante a alteração da sistemática de aplicabilidade da desconsideração da
personalidade jurídica, prevista no artigo 28 do CDC.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Análise do princípio da boa-fé: A boa-fé apresenta-se sob dois en-


foques: o subjetivo e o objetivo. A boa-fé subjetiva é a consciência ou a
convicção de se ter um comportamento conforme ao direito ou conforme
à ignorância do sujeito acerca da existência do direito do outro. Já a boa-fé
objetiva permite a concreção de normas impondo que os sujeitos de uma
relação se conduzam de forma honesta, leal e correta.
O nosso sistema codificado privado comportava expressamente
apenas o sentido subjetivo da boa-fé. Por esta razão, sempre que a lei co-
dificada do início do século, com exceção do Código Comercial, utiliza-se
do conceito de boa-fé, este tem o significado subjetivo.
Mais recentemente o Código de Defesa do Consumidor intro-
duziu no sistema jurídico brasileiro o sentido objetivo da boa-fé, ma-
terializando a interpretação objetiva da boa-fé que já existia, mesmo que
timidamente, na doutrina e na jurisprudência. Ressalta-se que a posição do
Código de Defesa do Consumidor veio a ser reforçada através do NOVO
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO, Lei-nº 10.406, de 10/01/2002, que
entrou em vigor em 10/01/2003, introduzindo expressamente a apli-
cação do princípio da boa-fé como pode ser visto a teor dos artigos 113,
187 e 422 do novo Código Civil.
O Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em 1917, foi elabo-
rado imediatamente após a proclamação da República, não tendo CLÓVIS
BEVILÁQUA se apercebido, segundo REALE, da mentalidade patriarcal
circunscrita a uma sociedade pré-industrial, de uma civilização e de uma
cultura já ultrapassada, e, por esta razão, legou-nos um código marcada-
mente individualista.
Por este motivo, nosso Código Civil de 1916 foi dominado por alguns
princípios, como o da autonomia da vontade, compreendida como fonte
soberana dos laços obrigacionais. Entretanto, o princípio da boa-fé aparece
como limitador do princípio da autonomia da vontade que, a despeito de
sua relevância e atualidade, proporcionou grandes injustiças sociais.
O Código Civil Brasileiro de 1916 não continha um artigo expresso
que consagrasse o princípio da boa-fé objetiva como regra geral. O Código
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
251

Comercial de 1850, sim, no artigo 131, inciso I, em que pese pouca im-
portância tenha este dispositivo legal frente à doutrina e à jurisprudência
pátria. Contudo, com o advento do Código de Defesa do Consumidor,
Lei-nº 8.078/90, que trata dos direitos dos consumidores, introduziu-se
expressamente o princípio da boa-fé objetiva, inclusive como norma ex-
pressa reguladora das relações de consumo. Por outro lado, mais recen-
temente, com a promulgação do Novo Código Civil Brasileiro, Lei-nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor em 10 de janeiro
de 2003, consta expressamente previsão legal de aplicação objetiva do
princípio da boa-fé. Aproveitamos a oportunidade para transcrever os
artigos que entraram em vigor, regulando definitivamente a aplicação de
relevante princípio:
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados confor-
me a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao


exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na


conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constitu-


ídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece no disposto nas
leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos
após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo
se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar


preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Códi-
go para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Mas a doutrina é pródiga em sustentar que o princípio da boa-fé


objetiva, independentemente de sua positivação, pode e deve ser aplicado,
porquanto constitui o resultado de necessidades éticas essenciais, sem as
quais inexiste qualquer sistema jurídico.
Todavia, foi o Código de Defesa do Consumidor a primeira lei a tra-
tar da boa-fé objetiva, encontrando repercussão concreta no ordenamento
contemporâneo brasileiro, não se limitando à introdução do princípio no
artigo 4º, inciso III (cláusula geral da boa-fé). Visando a controlar o abuso
contratual, no artigo 51, inciso IV, introduziu uma trajetória mais ampla,
tipificando várias hipóteses legais de deveres que, se não tivessem sido pre-
vistos na lei, incluir-se-iam no âmbito de concreção da boa-fé objetiva.
Com o objetivo de facilitar a atividade jurisdicional, muitos deve-
res decorrentes da boa-fé objetiva mereceram previsão legal específica no
Código de Defesa do Consumidor, permitindo que a fundamentação das
decisões judiciais se baseie diretamente na lei.
Por estas razões as decisões tomadas em primeiro grau e por nos-
sos tribunais podem ser formuladas não apenas em face da doutrina, mas
em aplicação de norma jurídica positivada no ordenamento, permitindo a
discussão de abusos constantes dos contratos, como exemplo, as hipóteses
constantes dos artigos 6º, 46, 51, 54 e parágrafos ou mesmo a hipótese do
artigo 49, todas do Código de Defesa do Consumidor. Isto evidencia, que
a tutela dos interesses dos consumidores restringiu os limites de autonomia
privada quando possibilitou a intervenção judicial no contrato, seja por
meio da inserção de cláusulas obrigatórias ou da proibição de cláusulas
abusivas, em cuja função revela-se grande parte da utilidade da aplicação
do princípio da boa-fé objetiva.
A boa-fé é incontestavelmente tratada como princípio fundamental que
embasa todo o ordenamento civilista, como a necessidade de pautar condutas,
inclusive acrescido atualmente em dispositivos expressos do Código de Defesa
do Consumidor, artigos 4º, III e 51, IV, no novo Código Civil em vigor a partir
de janeiro de 2003, artigos 113, 187 e 422, ocorrendo, no dizer de MENEZES
CORDEIRO (Da Boa-Fé no Direito Civil), uma verdadeira “universalização da
boa-fé”. Há duas acepções da boa-fé, uma subjetiva e outra objetiva, cabendo
restringir o princípio da boa-fé à objetiva, pois só esta é dever de agir.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
253

No âmbito da boa-fé objetiva, a atuação deste princípio é circunscri-


ta ao Direito das Obrigações, embora não se possa negar sua importância
na maioria dos institutos, como na chamada responsabilidade pré-contra-
tual, passando pela teoria do abuso de direito até à tutela da aparência jurí-
dica. Mesmo se for dada uma noção ampla de boa-fé que abranja a justiça
contratual, ainda assim estará presente na resolução por onerosidade exces-
siva, nas teorias da imprevisão e da base negocial, na tutela do aderente em
contratos padronizados e de adesão.
A relação entre a boa-fé e justiça contratual é tão estreita que a dou-
trina entende que o princípio da boa-fé é corolário da justiça contratual,
aparecendo como o complemento do princípio da justiça.
O preceito legal que remete para a boa-fé não produz, por si só, um
critério de decisão, uma vez que a interpretação nos moldes tradicionais
não apresenta uma solução plausível. Desta forma, a boa-fé objetiva sur-
ge como princípio orientador da interpretação e não como cláusula geral
para a definição de normas de conduta. O princípio da boa-fé serve como
critério auxiliar para a viabilização do artigo 170 da Constituição Federal
e os ditames constitucionais sobre a ordem econômica. Por isso, a boa-fé
comporta a defesa do consumidor economicamente débil e também serve
como fundamento para orientar a interpretação integradora da ordem
econômica.
Pode, eventualmente, abarcar interesses antagônicos, prevalecendo,
por vezes, interesses contrários ao consumidor (mas neste caso somente na
hipótese de conflito entre os princípios do interesse privado versus o princí-
pio do interesse público, face à prevalência da supremacia do interesse públi-
co sobre o interesse privado), mesmo que possa pesar sacrifício autorizado,
desde que o interesse social assim o determine ( ou seja, interesse público),
ressaltado na forma acima explicitada, em razão de o que se pretende com o
princípio da boa-fé objetiva é garantir a defesa do interesse do consumidor.
Funciona a boa-fé objetiva como válvula do sistema jurídico por
onde adentram elementos externos ainda não positivados na lei, ou mesmo
já positivados pela jurisprudência, o que possibilita que a decisão ultrapas-
se a lei ou vá de encontro a ela, em razão da prevalência do princípio.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Aqui, a boa-fé objetiva servirá para a interpretação integradora das


cláusulas contratuais e também para o reconhecimento dos deveres secun-
dários, derivados diretamente da boa-fé objetiva, independente da vontade
manifestada pelas partes, para serem observados antes, durante a fase de
formação e no cumprimento da obrigação, bem como após a execução,
assim como nas obrigações decorrentes da lei.
As partes ao contratarem, têm um objetivo nítido e é este, via de re-
gra, que caracteriza a obrigação principal do avençado. Entretanto, existem
os chamados direitos secundários, fruto da concreção da boa-fé objetiva,
que ganharam cada vez maior importância.
O dever de esclarecimento é um deles, a partir do qual a parte con-
tratante deve prestar informações sobre o uso do bem alienado, tais como
sua capacidade e limites. O dever de conservação é outro que, se não for
bem observado, pode causar o perecimento do bem. Existem, ainda, os
deveres de lealdade, custódia, previdência, segurança, aviso, informação,
notificação, cooperação, proteção, etc.
A incidência do princípio da boa-fé objetiva sobre o vínculo obri-
gacional também permite ao juízo controle do conteúdo do contrato e do
comportamento dos participantes da relação.
Concluindo este item, de acordo com a doutrina predominante,
consideram-se princípios de direito contratual moderno: a boa-fé, a au-
tonomia privada e a justiça contratual. Estes princípios contratuais devem
ser obrigatoriamente conjugados com os preceitos constitucionais que re-
gulam a matéria, sobretudo com os princípios da livre iniciativa e da dig-
nidade da pessoa humana.

Síntese Conclusiva

Encerramos o trabalho verificando claramente que o chamado Di-


reito Civil Constitucional está a atingir todo o sistema jurídico, frutificado
com a redemocratização do sistema contratual.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
255

Esta tendência tem origem à medida que o homem volta a ocupar o


seu real papel na sociedade, como centro gravitacional, quer seja no campo
interior, quer sob o ângulo exterior, face à tendência de mudança da socie-
dade para melhor.
Tanto é assim, que elevada à categoria de um princípio geral do Di-
reito, todos os membros de uma comunidade jurídica devem comportar-se
de acordo com a boa-fé objetiva em suas relações recíprocas que se projeta
em duas direções, criando direitos e deveres para todos os envolvidos.
O princípio da boa-fé objetiva faz parte do ordenamento jurídico,
agora expresso nas leis, serve como um instrumento para permitir maior
aproximação do texto geral e abstrato, característico das leis, com as neces-
sidades impostas pelos casos concretos.
Esta noção é uma importante descoberta para o pensamento jurí-
dico contemporâneo, ao permitir que os juristas não se limitem à simples
recitação de soluções consagradas em lei, mas exige deles a compreensão
do significado das normas jurídicas, o que permite chegar às soluções mais
adequadas sem necessidade de recorrer a artifícios retóricos para atingir o
resultado demarcado pelo princípio da boa-fé objetiva, já aplicado pela
jurisprudência mesmo antes da entrada em vigor do Código de Defesa do
Consumidor e, do novo Código Civil que passou a viger, após a “vacatio
legis” de um ano, a partir de janeiro de 2003, significando que o princípio
da boa-fé deve ser aplicado a todos os setores do ordenamento jurídico.
Esta tendência de influência do Direito Constitucional sobre os de-
mais ramos do direito, identificada ao longo dos temas abordados, está dire-
tamente relacionada ao atual estágio de desenvolvimento da sociedade, dos
povos e dos Estados, que por intermédio de um Estado cada vez mais inter-
vencionista, passou a inserir no corpo das Cartas Políticas, princípios e regras
de direito privado e público, constitucionalizando-os como necessidade de
garantia e preservação da dignidade humana, e até mesmo para dar maior
segurança e paz social, tendo em vista que, em regra, a alteração do texto
constitucional requer processo legislativo complexo e quorum qualificado,
comparado ao processo de elaboração das normas infraconstitucionais.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
256

Todas estas mutações no Sistema Jurídico estão diretamente relacio-


nadas à complexidade no relacionamento da sociedade contemporânea, do
sistema financeiro capitalista mundial, da metodologia introduzida por
meio da chamada Revolução Industrial, ancorando os meios de produção
em tecnologia altamente desenvolvida e economia de escala, sustentado e
influenciado pelo processo de globalização introduzido desde o início do
Século XX, facilitado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação
social. O Código Civil é a “Constituição do ser humano comum”, ou
seja, do que há de comum entre todas as pessoas.

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261

LEGALIDADE E EFICÁCIA
CONSTITUCIONAL NA APLICAÇÃO
DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Marcia de Andrade Pumar¹

Introdução

A Constituição Federal de 1988 adotou o paradigma do Estado Demo-


crático de Direito, tendo como um de seus pilares a emancipação do cidadão
e o ideal de democracia social, pressupondo a vinculação dos atos estatais e
do legislador ao texto constitucional. Trata-se de Constituição principiológica
que introduziu valores fundamentais que passaram a influenciar o legislador
ordinário no processo de constitucionalização do Direito Civil Brasileiro.
Pode-se dizer que, com o advento da chamada “Constituição Cida-
dã”, tornou-se obrigatória a interpretação da legislação infraconstitucional
em consonância com a principiologia por ela tratada, o que exige um juízo
de ponderação entre os interesses em conflito no caso concreto, com preva-
lência para o interesse constitucionalmente protegido.
Dentre os vários princípios enunciados pelo texto constitucional des-
tacam-se três principais que são o da preservação da dignidade da pessoa hu-
mana; o da cidadania e os dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
(art. 3º, II, III e IV), que irão influenciar todos os outros.
Nesse sistema de ponderação de interesses não se pode conferir a qual-
quer direito de cunho patrimonial ou econômico maior relevância do que
o princípio da dignidade da pessoa humana, que contempla e dá unidade a
todos os demais princípios basilares da Constituição Federal.
Nesse sentido, identifica-se uma série de princípios ou métodos de
interpretação constitucional que não podem ser esquecidos pelo aplicador
¹ Juíza de Direito em exercício na Quinta Turma Recursal Cível.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
262

do direito quando se utiliza do novo Código Civil, elaborado sob a coorde-


nação de Miguel Reale. A nova codificação, quebrando o individualismo
e patrimonialismo que regia as relações jurídicas de direito privado à luz
do Código Civil de 1916, traz a prevalência dos valores coletivos em
detrimento dos individuais, oferecendo novos enfoques, por exemplo,
aos conceitos de proprietário, de contratante, do empresário e do pai de
família, com mudanças profundas para a sociedade.

Desenvolvimento

Os princípios de interpretação constitucional têm como finalidade


possibilitar ao intérprete o entendimento e o significado das normas cons-
titucionais, podendo-se enumerar seis destes princípios, também chama-
dos de técnicas de interpretação constitucional.

Princípio da Unidade da Constituição

A Constituição é o documento hierarquicamente superior a todos


os outros existentes, no que diz respeito a um determinado ordenamento
jurídico. Assim, as disposições constitucionais não devem ser interpretadas
isoladamente, mas de forma integrada, levando-se em conta todo o conjun-
to, toda a unidade, a fim de que sejam evitadas eventuais superposições de
normas conflitantes. Tal princípío, idealizado por Konrad Hesse, prega a não
superposição, ou prevalência de uma norma constitucional sobre outra.

Princípio da Harmonização ou Concordância Prática

Intrinsicamente ligado ao princípio anterior, este princípio impõe


àquele encarregado de interpretar a Constituição a tarefa de harmonizar as
proposições aparentemente conflitantes entre as normas constitucionais,
mas sem ignorar completamente quaisquer normas constitucionais para
que não seja desrespeitado o princípio da unidade da Constituição. Por
afastar a tese de hierarquia entre os dispositivos da Constituição, esse prin-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
263

cípio impede a declaração de inconstitucionalidade de uma norma consti-


tucional originária. Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal não admite a tese das normas constitucionais inconstitucionais, ou
seja, de normas contraditórias advindas do poder constituinte originário.

Princípio da Eficácia Integrativa

O princípio do efeito integrador, também originário do princípio da


unidade da Constituição, indica que, sendo a Constituição Federal o principal
elemento de integração comunitária, a sua interpretação deve ter como escopo
a unidade política. Com isso, nas resoluções de problemas jurídicos constitu-
cionais deve ser concebida primazia à interpretação que favoreça a integração
política e social, criando um efeito conservador desta unidade. Em resumo,
significa encontrar a melhor solução que integre a unidade jurídica.

Princípio da Interpretação segundo a Constituição Federal

A interpretação conforme a Constituição estabelece ao aplicador do


direito positivado que, quando se deparar com normas de caráter polissê-
mico ou plurissignificativo, deve priorizar a interpretação que possua um
sentido em conformidade com a Constituição. Existindo duas ou mais
interpretações possíveis de uma norma, deve-se sempre adotar aquela in-
terpretação que esteja em conformidade com o texto constitucional. Dessa
forma, possuindo uma lei duas interpretações, uma em conformidade com a
Constituição e outra desconforme, não poderá ela ser declarada nula quando
puder ser interpretada em consonância com o texto constitucional.

Princípio da Eficácia ou Força Normativa da Constituição

Este princípio estabelece que, na interpretação constitucional, deve-


se dar primazia às soluções que possibilitem a atualização de suas normas,
garantindo-lhes eficácia e permanência. Também idealizado por Konrad
Hesse, o princípio traduz a ideia de que a constituição não configura apenas
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
264

a expressão de um ser, mas também de um dever ser. Assim, a Constituição


para ser aplicável deve ser conexa à realidade jurídica, social e política.

Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

Embora não seja fácil se estabelecer uma definição exata deste prin-
cípio, pode-se dizer que é um reconhecimento dos direitos fundamentais,
ou seja, aqueles tratados no art. 5º da Constituição Federal, no âmbito do
direito privado. Como no Brasil os direitos fundamentais são de aplicação
imediata, a eficácia horizontal se processa na aplicação dos direitos funda-
mentais independentemente da existência de lei.
Esses princípios acabaram por erodir a velha dicotomia entre direito
privado e direito privado, fazendo com que hoje esta divisão seja bem tê-
nue, com interpenetração e complementação entre os dois ramos.
Em decorrência da publicização do Direito Civil, que nada mais é
do que uma releitura dos institutos do direito privado à luz dos preceitos
constitucionais que se espraiaram por toda a sociedade, hoje já existem ins-
tituições de ensino oferecendo aos alunos do curso de direito matéria de-
nominada “Direito Civil Constitucional”. Podemos dizer que chegamos
a uma integração simbiótica entre os dois ramos do direito, com perfeita
integração sem que cada um deixe de perder sua essência.

O novo Código Civil Brasileiro de 2002

Enquanto o Código Civil de 1916 privilegiava a autonomia individual


e o conservadorismo no que tange às questões sociais e às relações de família,
tendo como seus três pilares fundamentais o contrato, a família e a proprie-
dade, o Código Civil de 2002, nascido sob grandes resistências doutrinárias,
tem como fonte de inspiração três grandes paradigmas, a saber: o princípio da
efetividade ou operabilidade; o da função social da propriedade e o da boa-fé
objetiva, este último, talvez a maior contribuição para o direito.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Os elaboradores do novo Código, instituído pela Lei 10.406 de


10/01/2002, que entrou em vigor em 11/01/2003, percebendo que as
relações civis exclusivamente patrimoniais e formais eram incompatíveis
com os valores baseados na socialidade e na dignidade da pessoa humana
adotados pelo Estado Social, adotaram no novo texto jurídico a técnica
legislativa das cláusulas abertas que deixam ao operador do direito a tarefa
de preencher as lacunas aplicando os princípios constitucionais. Dessa
forma, o Código Civil deixou de ser o pilar máximo da regulação da ordem
privada, para propiciar ao intérprete do direito a possibilidade de se valer
dos princípios constitucionais para reunificar o sistema jurídico.
Adotando a técnica das cláusulas gerais, o novo ordenamento
jurídico codificado admitiu certa margem de interpretação ao julgador, per-
mitindo a criação de solução para novos problemas, seja por meio de juris-
prudência ou por meio de uma atividade de complementação legislativa.
Com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, o novel
Código Civil criou o instituto do consentimento informado que mudou
radicalmente a relação médico e paciente. Atualmente, é dever de o médico
explicar ao paciente todo o tratamento e procedimento que será realizado
para a recuperação de sua saúde.
O direito de propriedade, por exemplo, hoje sofre grandes limita-
ções em prol da coletividade, impensáveis sob a égide do antigo Código
Civil de 1916. O art. 1228 e seus parágrafos estabelecem limitações
em prol da fauna, flora, ecossistema; veda os atos do proprietário que
visem a prejudicar terceiros, os chamados atos emulativos, que não lhe
trazem qualquer proveito.
O princípio da autonomia da vontade está hoje flexibilizado, só po-
dendo ser exercido legitimamente nos limites da função social dos contratos,
princípio que impede que o contrato produza efeitos negativos. O contrato
hoje desborda das partes contratantes para repercutir na sociedade.
Dessa forma, no julgamento das lides, o juiz se colocar na posição de
um equilibrador ético e econômico do contrato. O magistrado, ao se de-
parar com um caso concreto de interpretação de um negócio jurídico, deve
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
266

ter sempre em mente a proteção da boa-fé, da ética, da moral e dos bons


costumes. É a aplicação do princípio da eticidade que pode ser percebido em
vários dispositivos do código: no art. 187 que, pela primeira vez assemelha
o abuso de direito ao ato ilícito, com previsão de sanções, exatamente por
tratar-se de ato que contraria a boa-fé; no art. 113, que dispõe que os negó-
cios jurídicos devem ser interpretados conforme a bo-fé e os usos do lugar.
No Livro do Direito de Família alguns avanços também foram in-
troduzidos por força dos princípios constitucionais. O novo ordenamen-
to abandona a visão patriarcalista que inspirou a elaboração do Código
Civil de 1916, quando o casamento era a única forma de constituição
da família, passando a ampliar as formas de constituição da entidade fa-
miliar, consagrando ainda o princípio da igualdade de tratamento entre
marido e mulher. Grandes inovações foram também entranhadas no
capítulo referente à filiação, extinguindo-se as distinções entre filhos le-
gítimos, legitimados e ilegítimos, vigentes no código anterior. O Estado
hoje não pode interferir na família, por se tratar de consectário lógico do
princípio da dignidade da pessoa humana.
No que tange ao Capítulo relativo à Responsabilidade Civil, o novo
diploma legal trouxe notáveis mudanças, mormente com a introdução de
claúsulas gerais no que diz respeito aos elementos que fundamentam ou
caracterizam o dever de reparar o dano causado. A responsabilidade civil
proveniente de ato ilícito ou do abuso de direito está hoje positivada no
art. 927 combinado com os art. 186 e 187, todos do Código, que não
adotou a teoria subjetiva do abuso de direito, mas a objetiva, pois não exige
intenção de prejudicar, sendo suficiente para sua caracterização o excesso
objetivamente constatável. O direito subjetivo, se exercido de forma a con-
trariar a ética e o fim social e se causar dano, tem como consequência o
dever de indenizar. A responsabilidade civil decorrente do abuso do direi-
to, de acordo com o NCC, independe de culpa, e fundamenta-se somente
no critério objetivo-finalístico. Hoje, aquele que exerce uma atividade com
habitualidade, ou seja, aquele que presta um serviço de risco inerente à ati-
vidade e violar o dever se segurança, responde pelo dano causado a terceiro,
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
267

independentemente de culpa. O art. 931, que trata da responsabilidade


objetiva pelo fato do produto, é aplicado quando não se tratar de relação
de consumo, posto que neste último caso há norma especial no Código de
Defesa do Consumidor. Por este artigo, para que haja o dever de indenizar,
exige-se que o produto seja perigoso, que venha a causar dano e que tenha
defeito, ou seja, que não ofereça a segurança que dele se esperava.
Em resumo, antes do novo Código Civil de 2002 tínhamos um
sistema simples de responsabilidade civil. Hoje, temos um sistema de res-
ponsabilidade civil complexo que se origina na Constituição Federal, passa
por leis especiais e termina no Código Civil, que reflete a complexidade da
sociedade moderna.

Conclusões

A dicotomia entre o Direito Público e o Direito Civil está hoje su-


perada. O Direito Civil está hoje umbilicalmente ligado a outros ramos
do direito, com aplicação interdisciplinar dos instititutos. O Código Civil
de 2002, acompanhando as mudanças sociais, trouxe inovações jurídicas
a atender aos anseios da sociedade. Seu sistema de aplicação de normas foi
criado de modo propositadamente aberto, de forma a permitir adaptações
a futuras interpretações, evoluções sociais e novas teorias doutrinárias.
O Código Civil não é mais a única fonte do Direito Civil, mas a sua
lei básica, que está aberta à utilização de outras fontes, oriundas ou não do
poder legislativo, que atuem em cumplicidade com o Código Civil, de for-
ma a alcançar o objetivo máximo que é a satisfação dos anseios sociais em
conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana de assento
constitucional, e que traduz o núcleo essencial do sistema jurídico.
Pode-se dizer que o Código Civil é a lei do século XXI, mas para
isso é necessário talento para se aplicá-la de forma ética, concretizando com
adequação e correção a grandiosa missão de julgar. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
268

PONDERAÇÕES SOBRE OS
10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL

Márcia Paixão Guimarães Léo¹

Este trabalho visa a abordar as inovações ocorridas com o adven-


to do Código Civil de 2002 no que diz respeito a introdução em nosso
ordenamento jurídico de novos princípios, bem como sua aplicação nos
direitos reais de posse e propriedade.
O Código Civil de 1916 foi formulado com base em paradigmas de
sua época, quando a sociedade vivia em um Estado Liberal Clássico. Os
princípios que sustentavam esse Estado eram o da autonomia da vontade,
da força obrigatória dos contratos e de sua imutabilidade. O Código Bevi-
láqua era baseado no individualismo e patrimonialismo, com três persona-
gens principais, o marido, o proprietário e o contratante.
O antigo Código Civil não permitia ao magistrado o exame da si-
tuação do caso concreto, já que ele não tinha compromisso com a justiça
social: cabia a ele somente o cumprimento da lei.
Entendia-se, naquele tempo, que o que advinha do contrato era jus-
to porque ninguém era obrigado a contratar. Por exemplo, partindo-se da
premissa (que posteriormente verificou-se equivocada) de que ocorreram as
tratativas na busca das cláusulas para o atendimento de um bem que ambos
os contratantes buscavam, não podia, após estabelecido o contrato, uma das
partes se socorrer do Judiciário para discutir uma cláusula ali inserida.
Foi percebido que, em verdade, a liberdade das partes não assegu-
rava o equilíbrio e a justiça do contrato, já que a parte economicamente
mais forte acabava por impor sua vontade em detrimento da outra, que
necessitava daquele bem da vida.

¹ Juíza de Direito da 3ª Vara Cível de Duque de Caxias.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
269

Assim, aos poucos, ruiu o Estado Liberal Clássico para o surgimento


do Estado Social, o qual deveria passar a intervir nas relações sociais com o
intuito de assegurar um mínimo de igualdade real.
Nessa nova visão, foi construída a Constituição Federal de 1988,
com a inclusão de valores e princípios fundamentais, que já podem ser
percebidos nos artigos iniciais da nova Carta (artigos 1º e 3º, III).
Os dispositivos antes mencionados trazem como fundamento da
República a preservação da dignidade da pessoa humana, e como objeti-
vo fundamental a solidariedade social. Incluiu-se, assim, os princípios da
igualdade real e a garantia dos direito fundamentais.
Essa postura social é extremamente importante ao se levar em conta
as regras e métodos de hermenêutica da Constituição. Quais sejam:
1- a unidade da Constituição – as normas não podem ser interpre-
tadas isoladamente;
2- harmonização ou concordância prática – existem bens constitu-
cionalmente protegidos, mas isso gera uma difícil harmonização tendo-se
em conta valores aparentemente conflitantes;
3- eficácia integrativa – na interpretação, deve-se buscar a melhor
integração das normas constitucionais;
4- força normativa – as suas previsões devem ser observadas e respei-
tadas por todos. No caso da nova Constituição, isto é de extrema impor-
tância, pois a CR trouxe uma nova ordem jurídica, com fulcro em valores
diferentes daqueles em que a sociedade estava baseada;
5- interpretação conforme a Constituição – as leis infraconstitucio-
nais devem ser aplicadas consoante a Constituição Federal. Ou seja, com o
advento da CRFB/88, toda a legislação deve ter como base a justiça social,
a solidariedade social, a igualdade real;
6- proporcionalidade e razoabilidade na interpretação da regra
restritiva de direito;
7- eficácia horizontal dos direitos fundamentais que suportam essa
igualdade jurídica.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
270

Insta salientar ainda que, com o advento da Constituição Federal de


1988, iniciou-se a supressão da separação total existente entre o direito pú-
blico e o direito privado, já que ambos se complementam, devendo ser feita
uma releitura dos institutos deste último à luz dos preceitos constitucionais.
Nessa nova ordem constitucional, com fulcro no Estado Social e
publicização do direito civil, nasceu a nossa nova Lei Civil Material.
O Código Civil de 2002 se baseou em três paradigmas:
1- função social do direito – o direito é uma ferramenta para a
construção de uma sociedade mais justa;
2- operacionalidade ou efetividade – criar justiça concreta com
equidade e solidariedade;
3- boa-fé objetiva.
Este último paradigma foi de suma importância, já que transformou
a boa-fé subjetiva, que era somente uma exortação ética, em objetiva, ou
seja, em uma regra de conduta, um dever jurídico, e que, por isso, pode ser
sancionado em caso de violação.
Adotou-se a técnica das cláusulas abertas, cabendo ao magistrado o pre-
enchimento destas com a utilização de valores e princípios constitucionais.
Vários exemplos de cláusulas abertas constantes no CC/2002 po-
dem ser citados, entre eles, o artigo 187, que conceituou o abuso de di-
reito, caracterizando-o como ato ilícito, e, por consequência, gerador de
responsabilidade civil aferida de forma objetiva. Cabe ao juiz verificar se
houve ou não o excesso aos limites.
No atual Código Civil, ainda foram reconhecidas a garantia da igual-
dade no momento de contratar e a possibilidade de existência da lesão nas
relações contratuais. Busca-se, desse modo, a garantia de que os contratos
nasçam realmente justos, e, não somente formalmente.
Os parágrafos do artigo 1.228 do Código Civil são de extrema im-
portância, pois aqui há a nítida influência já mencionada dos princípios do
Estado Social, já que há uma limitação do uso do direito real maior que é a
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
271

propriedade em razão do direito ambiental e da preservação da dignidade


da pessoa humana e garantia da solidariedade social. O parágrafo 1º limita
o direito de propriedade em prol de toda a coletividade, que tem o direito a
um meio ambiente saudável. O parágrafo 2º traz o abuso do direito, já que
proíbe atos do proprietário que não lhe tragam utilidade e ainda prejudi-
quem terceira pessoa. Os parágrafos 4º e 5º, que trazem cláusulas abertas,
demonstram a preocupação social do legislador.
No Código revogado, a autonomia da vontade era quase absoluta,
mas atualmente ela é limitada pela função social do contrato. Os efeitos e
consequências das relações contratuais transbordam os limites dos contra-
tantes, e, por isto, hoje em dia, pode-se impedir que o contrato produza
efeitos prejudiciais à sociedade. O mesmo se diga em relação à proprie-
dade, que deve atingir, como já dito, sua função social (artigo 5º, XXIII,
CRFB/88). Esse pensamento foi positivado no artigo 2.035 e seu parágra-
fo único do atual Código Civil, que, por ser cláusula geral, está implícita
em todos os contratos.
Adentrando na questão propriamente dita da limitação ao direito de
propriedade, a Constituição Federal no artigo 225 elevou, à garantia de direito
fundamental, o direito ambiental. Assim, possui as características básicas dos
direitos fundamentais, que são o imediatismo (não há necessidade de lei infra-
constitucional), a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a indivisibilidade.
Conforme já mencionado, a propriedade deve atender sua função
social; este requisito, em verdade, não é um limite ao direito de proprie-
dade: ele constitui um de seus elementos. Há tão somente uma aparente
dificuldade de harmonização do direito de propriedade com o direito am-
biental. Este último por ser bem comum, pode ser protegido por todos.
No que se refere à posse, o primeiro entendimento foi no sentido
de que havia a necessidade de sua apreensão física (Savigny). Mas, poste-
riormente, adotou-se a teoria formulada por Ihering, que afirmava estar a
posse atrelada à propriedade, pois se cuida de sua exteriorização. O possui-
dor trazia consigo a aparência de proprietário. Essa teoria foi acolhida pelo
atual Código Civil no artigo 1.196.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
272

Contudo, como já por diversas vezes assinalado, há de ser efetuada


uma interpretação conforme a Constituição, e, nesta visão, a posse não é
somente a defesa do direito de propriedade, é, na verdade, um instrumen-
to que afirma o direito fundamental da dignidade da pessoa humana, da
isonomia e da igualdade social (artigo 6º, CRFB).
Podemos dividir a posse em posse moradia, que ocorre nas cidades,
e a posse trabalho (no campo).
O parágrafo 2º do artigo 1.210 do atual Código Civil foi um avan-
ço, pois revogou a segunda parte do antigo artigo 505 (C.C./16). Hoje em
dia, é pacífico que não se discute a propriedade em ações possessórias.
Outra grande inovação nesse campo foi o parágrafo único do artigo
1.255 do C.C., que traz a acessão invertida. Trata-se de uma expropriação
do construtor/trabalhador em relação ao dono da terra. A teoria da prin-
cipalidade do solo (tudo que nele se encontra, a ele se adere, pertence ao
dono do terreno), começou a ruir.
O artigo 1.228, em seu parágrafo 2º, traduz essa função social da
propriedade, e, por ser direito fundamental, tal como o direito a pró-
pria propriedade, está no mesmo patamar desta, e, igualmente como
esta deve ser respeitado.
Toda essa nova vista constitucional pode ser verificada no artigo 170
da Lei Maior, que está no título DA ORDEM ECONÔMICA E FINAN-
CEIRA, já que há a defesa da propriedade, da livre iniciativa, mas igual-
mente incluiu-se a proteção ao meio ambiente, ao consumidor e a função
social da propriedade.
Verifica-se, assim, que o atual Código Civil andou bem nos temas
em questão, pois elaborado consoante os ditames Constitucionais, sen-
do que eventuais falhas são supridas através da interpretação conforme a
Constituição. 
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
273

FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS
NA LEGALIDADE CIVIL-
CONSTITUCIONAL

Maria da Penha Nobre Mauro¹

A instituição do novo Código Civil (Lei nº 10.046, de 10 de janeiro


de 2002), que teve sua vigência a partir de 11 de janeiro de 2003, trouxe
consideráveis mudanças para todos os temas abrangidos pelo nosso orde-
namento civil, principalmente no Direito de Família.
Pode-se dizer que a família regulada pelo Código Civil de 1916 era
aquela constituída unicamente pelo casamento, possuía modelo patriarcal
e era baseada na hierarquia, devido à forte influência do direito canônico
em nosso ordenamento jurídico.
Com o advento do Código Civil de 2002, é possível identificar no-
vos elementos a compor essas relações familiares, priorizando-se, antes de
qualquer outro valor, a dignidade da pessoa humana.
O consagrado autor Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra Direi-
to Civil Brasileiro (São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33), citando Rodrigo da
Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, explica, a seguir, algumas das trans-
formações ocorridas no Direito de Família:
“A Constituição Federal de 1988 ‘absorveu essa transformação
e adotou uma nova ordem de valores, privilegiando a dignidade
da pessoa humana, realizando verdadeira revolução no Direito
de Família, a partir de três eixos básicos’. Assim, o art. 226 afir-
ma que ‘a entidade familiar é plural e não mais singular, tendo

¹ Juíza de Direito da 5ª Vara Empresarial - Capital.


Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
274

várias formas de constituição’. O segundo eixo transformador


‘encontra-se no § 6º do art. 277. É a alteração do sistema de
filiação, de sorte a proibir designações discriminatórias decor-
rentes do fato de ter a concepção ocorrido dentro ou fora do
casamento.’ A terceira grande evolução situa-se ‘nos artigos
5º, inciso I, e 226, § 5º. Ao consagrar o princípio da igualdade
entre homens e mulheres, derrogou mais de uma centena de
artigos do Código Civil de 1916.”

Mas nem todas essas mudanças surgiram quando da elaboração do


Novo Código Civil, e muito menos se pode dizer que aí se encerraram. Na
verdade, essa evolução vem ocorrendo em etapas, na medida em que a lei,
como forma de acompanhar as mudanças que influenciam a sociedade na
marcha do tempo, incorpora gradativamente ao seu texto alterações surgi-
das com a edição de leis especiais.
Antes mesmo do novo ordenamento civil já havia uma crescente ne-
cessidade de abandonar os modelos ultrapassados e a urgência em alcançar
uma conformidade entre o texto legal e a realidade fática.
É o caso da Lei nº 4.121/1962, conhecida como “Estatuto da Mu-
lher Casada”, que baniu de nosso ordenamento jurídico as discriminações
praticadas contra a mulher por esta simples condição.
Já o texto da Emenda Constitucional nº 09, de 1977, excluiu o cará-
ter indissolúvel do casamento, instituindo o divórcio, que veio em seguida
a ser regulamentado pela Lei nº 6.515/1977.
Contudo, nenhuma alteração pode ser considerada mais relevante
para o Direito de Família brasileiro do que a promulgação da Constituição
da República Federativa do Brasil, em 1988, tendo em vista as profundas
mudanças que introduziu no conceito de família e o tratamento que pas-
sou a dispensar a esta instituição, considerada pelos artigos 226 e seguintes
do texto constitucional como base da sociedade.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
275

Criava-se, a partir de então, um novo Direito de Família no Brasil,


com fundamento constitucional e foco em um novo conceito de entidade fa-
miliar, o qual ampliou as formas de constituição da família, que antes se dava
apenas com o casamento, acrescendo-se como entidades familiares a união
estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
A par da ampliação do modelo tradicional de família, surgiram tam-
bém os mecanismos de facilitação da dissolução do casamento, destacan-
do-se a possibilidade de divórcio direto após dois anos de separação de
fato, bem como a possibilidade de a separação judicial ser convertida em
divórcio após o decurso de um ano.
Pela primeira vez, os direitos e deveres do homem e da mulher na
sociedade conjugal foram equiparados.
Pela primeira vez, acabou-se com a desigualdade entre os filhos, ha-
vidos ou não do casamento, ou por adoção, que passaram a ter assegurados
os mesmos direitos e deveres, sendo vedada qualquer discriminação decor-
rente de sua origem.
Nesse ponto, impende destacar a lição de Alexandre de Moraes,
em sua obra Direito Constitucional (São Paulo: Editora Atlas, 2011, p.
875), na qual o autor enfatiza essas e outras mudanças implementadas pela
Constituição da República Federativa de 1988:
“A partir da fixação do conceito de entidade familiar, a Constitui-
ção estabeleceu algumas regras de regência das relações familiares:

• cabeça do casal: os direitos e deveres referentes à sociedade con-


jugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher;

• dissolução do casamento: o casamento civil pode ser dissolvi-


do pelo divórcio, sem necessidade, após aprovação da EC nº 66,
de 13 de julho de 2012, de prévia separação judicial por mais
de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação
de fato por mais de dois anos. A Constituição Federal de 1988
previu a possibilidade do divórcio direto, sem qualquer limitação
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
276

de vezes, em norma constitucional autoaplicável, tendo exigido


um único requisito para sua ocorrência, o prazo de dois anos de
separação de fato, sendo absolutamente desnecessária qualquer
imputação de culpa para a efetivação do divórcio;

• planejamento familiar: fundado nos princípios da dignidade


de pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamen-
to familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado pro-
piciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse
direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de institui-
ções oficiais ou privadas;

• adoção: a adoção será assistida pelo poder público, na forma da


lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte
de estrangeiros;

• filiação: os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou


por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Essa
norma constitucional tem aplicabilidade imediata, garantindo-
se imediata igualdade, sem que possa resistir qualquer prejuízo
ao filho adotivo ou adulterino, que poderá, inclusive, ajuizar
ação de investigação de paternidade e ter sua filiação reconheci-
da, além de ter o direito de utilização do nome do pai casado;

• assistência mútua: os pais têm o dever de assistir, criar e educar


os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e am-
parar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

Percebe-se claramente que o novo ordenamento abandona a visão


patriarcal que inspirou a elaboração do Código revogado, com a consa-
gração da igualdade de tratamento entre marido e mulher, respeitando-se
sempre, e acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.
Mas, além da incorporação de alterações surgidas com a edição de
leis especiais e das profundas e diretas modificações operadas pela Carta
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
277

Magna de 1988, o Código Civil brasileiro, buscando acompanhar as novas


e constantes demandas da sociedade em razão do fator tempo, trouxe as
suas próprias mudanças no Direito de Família.
E uma das mudanças mais significativas se deu no plano do regime
de bens entre os cônjuges, que antes começava a vigorar desde a data do ca-
samento, sendo certo que, como a edição do novo diploma legal, passou-se
a conferir ao casal a possibilidade de, a qualquer tempo, optar pelo regime
de comunhão total, parcial ou separação de bens, e, ainda, de modificar a
escolha no curso do casamento (art. 1.639, § 2º).
Além disso, o Código Civil de 2002 passa a utilizar a expressão “po-
der familiar” no lugar de “pátrio poder”, para designar a posição ocupada,
na mesma medida, pela mãe e pelo pai. Estabelece, nesses termos, que a
obrigação de sustento da família é de ambos os cônjuges, na proporção de
seus bens e rendimentos (art. 1568), obrigação esta que, na lei revogada,
recaía apenas sobre o marido.
Também com profundo viés no princípio da igualdade, verdadei-
ro dogma constitucional, operaram-se outras modificações, como, por
exemplo, a guarda dos filhos, antes normalmente atribuída à mãe, mas que
agora passava a ser fixada pelos próprios pais, e, no caso de inexistência
de acordo, atribuída a quem dos dois apresentar melhores condições para
exercê-la (art. 1.584).
Da mesma forma, foi extinta a causa de anulação do matrimônio
que se justificava na percepção pelo homem, na noite de núpcias, de que
a esposa não é virgem, assim como o foi a determinação de que só possuía
direito à pensão a mulher casada legalmente, sendo certo que, atualmente,
o art. 1.694 do Código Civil confere legitimidade ativa não só aos parentes,
mas também ao cônjuge e ao companheiro, ou seja, constatada a união está-
vel, tanto o homem como a mulher podem requerer pensão alimentícia.
Todavia, o direito, tal como as relações sociais, não é e não pode ser
estático, e, por conta dessa volatilidade, nem sempre as mudanças consa-
gradas na legislação serão suficientes, tamanha a complexidade das rela-
ções inerentes ao Direito de Família hodiernamente. Por isso, o operador
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
278

do direito precisa estar atento às mudanças que continuam a se operar, e,


neste ponto, conta, sobretudo, com a preciosa contribuição fornecida pela
jurisprudência, verdadeiro termômetro das relações entre o Estado-juiz e
seus jurisdicionados.
Questões das mais atuais tratam, por exemplo, da responsabilidade
civil na perda do poder familiar por abandono afetivo; da doutrina do
terceiro cúmplice nas relações matrimoniais; da alienação parental e seus
reflexos na guarda compartilhada e, mais recentemente, do reconhecimen-
to do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Destaca-se, sobre esse último tema, o recente julgado do Egrégio
Superior Tribunal de Justiça:
“DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE
PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). IN-
TERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535
e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊN-
CIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM
PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO.
VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE
INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA
CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF
N. 132⁄RJ E DA ADI N. 4.277⁄DF.

1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do


direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a
evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da consti-
tucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as
celeumas que lhe aportam “de costas” para a Constituição Fede-
ral, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desa-
tualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tri-
bunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito
infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação
que não seja constitucionalmente aceita.

2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da


ADPF n. 132⁄RJ e da ADI n. 4.277⁄DF, conferiu ao art. 1.723 do
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para


dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como en
tidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.

3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova


fase do direito de família e, consequentemente, do casamento,
baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em
que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse
núcleo doméstico chamado “família”, recebendo todos eles a “espe-
cial proteção do Estado”. Assim, é bem de ver que, em 1988, não
houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casa-
mento, sempre considerado como via única para a constituição de
família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagra-
dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente
do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessaria-
mente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais,
não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado,
mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a pro-
teção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explici-


tamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do
STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por
pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se
comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por
casais heteroafetivos.

5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que es-


sas famílias multiformes recebam efetivamente a “especial prote-
ção do Estado”, e é tão somente em razão desse desígnio de especial
proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em
casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado
melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
280

6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela


qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os “ar-
ranjos” familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser
negada essa via a nenhuma família que por ela optar, indepen-
dentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as
famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos
núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos,
quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.

7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser


diferente, o direito à autoafirmação e a um projeto de vida in
dependente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à
igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito
à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea
com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre
planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar,
nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo
haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir
família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla
liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.

8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Có-


digo Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação
implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princí-
pios constitucionais, como o da igualdade, o da não discrimina-
ção, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre
planejamento familiar.

9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria,


mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo “demo-
craticamente” decretar a perda de direitos civis da minoria pela
qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra
é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel
contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exa-
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
281

tamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas


apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção
dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam
das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos,
a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma
de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.

10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não as-


sume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitu-
cional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode
o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação
tácita de um Estado que somente é “democrático” formalmente,
sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca
da universalização dos direitos civis.

11. Recurso especial provido.”

(REsp 1183378/RS; Min. Relator: LUIS FELIPE SALO-


MÃO, 4ª T.; Julg. em 25/10/2011; Data de Publicação no DJe:
01/02/2012)

Todas as alterações no direito de família demonstram e ressaltam a


relevante função social da família em nosso ordenamento jurídico, con-
sagrada, mais do que nunca, pela Carta de 1988, como sustentáculo da
vida em sociedade.
Os novos e constantes anseios da sociedade legitimam as profun-
das mudanças que vêm sendo operadas no Direito de Família brasileiro,
pugnando por um olhar cada vez mais atento aos paradigmas que acom-
panham a marcha evolutiva, sem jamais distanciar da igualdade, expressão
maior do princípio da dignidade da pessoa humana. 
1
Anexo 1
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
284

Programação do Curso

10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL


APLICAÇÃO, ACERTOS, DESACERTOS E NOVOS RUMOS

REALIZAÇÃO: EMERJ, ESAJ E CEDES.


Coordenação: Des. Carlos Santos de Oliveira, Des. Marco
Aurélio Bezerra de Mello, Prof. Fábio de Oliveira Azevedo, Profª.
Mônica Gusmão.
Carga horária: 20 horas

Transmissão por videoconferência

Dia 29/03/2012

18 horas
MESA DE ABERTURA:
Des Manoel Alberto Rebêlo dos Santos - Presidente do TJ/RJ
Des. Antônio José Azevedo Pinto – Corregedor-Geral da Justiça
Des. Nametala Machado Jorge – 1º Vice-Presidente
Des. Nascimento Antonio Povoas Vaz – 2º Vice-Presidente
Des. Antonio Eduardo Ferreira Duarte – 3º Vice-Presidente
Des. Leila Mariano – Diretora-Geral da EMERJ
Des. Edson de Aguiar Vasconcelos – Vice-Diretor da EMERJ
Des. Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho – Presidente
da Comissão Acadêmica da EMERJ
Dr. Cláudio Soares Lopes - Procurador Geral de Justiça/RJ
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
285

Dr. Nilson Bruno Filho - Defensor Público Geral do Estado/RJ


Des. Luiz Zveiter – Presidente do TRE/RJ
Dr. Wadih Damous - Presidente da OAB/RJ
Dra. Lúcia Léa Guimarães Tavares - Procurador Geral do Estado/RJ
Dr. Fernando dos Santos Dionísio - Procurador Geral do Município/RJ
Des. Sidney Hartung Buarque – Presidente da ESAJ
Des. Carlos Eduardo da Rosa da Fonseca Passos - Diretor Geral do CEDES

19 horas
- Conferência de Abertura e Homenagem ao Desembargador Sylvio
Capanema de Souza.
Legalidade e Eficácia Constitucional na Aplicação do Código Civil.
Palestrante: Desembargador Sylvio Capanema de Souza

20h15min
A Posse dos Imóveis como Instrumento de Garantias Fundamentais e as
Limitações Ambientais.
Palestrantes: Desembargadores Sidney Hartung Buarque e Marco
Aurélio Bezerra de Melo

21h30min
Encerramento das Atividades.

Dia 30/03/2012

09h30min
Aplicação dos Princípios e Cláusulas Gerais nas Relações Nego-
ciais e Reais Imobiliárias.
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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Palestrantes: Desembargador Marcos Alcino e Defensora Pública


Ana Rita Vieira de Albuquerque
10h45min
Famílias Contemporâneas na Legalidade Civil-Constitucional.
Palestrantes: Procurador de Justiça José Maria Leoni Lopes de Oli-
veira e Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama

12 horas
Intervalo

13h30min
O Código Civil e a Defesa do Consumidor.
Palestrantes: Desembargador José Carlos Maldonado de Carvalho
e Procurador do Estado Leonardo Mattietto

14h45min
Consequências do Inadimplemento das Obrigações.
Palestrantes: Desembargador Carlos Santos de Oliveira e Advogado
Fábio Oliveira Azevedo

16 horas
Coffee-Break

16h30min
Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei 12411/2011)
Palestrantes: Promotor de Justiça Leonardo de Araújo Marques e
Professora Mônica Gusmão
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17h45min
- Conferência de Encerramento e Homenagem ao Desembargador
Sergio Cavalieri Filho.
Palestrante: Desembargador Sergio Cavalieri Filho
A Responsabilidade Civil nos Dez Anos da Codificação Civil na Cons-
trução da Doutrina e Jurisprudência.

19h30min
Encerramento das atividades.
2
Anexo 2
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 • 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I
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PROCESSO Nº 2012062
PARECER Nº 2012062–0012012
INTERESSADA: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ
CURSO: Os 10 anos do Código Civil

Senhora Coordenadora de Ensino,

I – Relatório

A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ encaminha à


Enfam, em 29 de fevereiro de 2012, para fins de credenciamento, o projeto do curso
denominado “Os 10 anos do Código Civil”, na modalidade presencial, com oferta de 400
(quatrocentas) vagas e carga horária de 20 (vinte) horas-aula.

O curso realizar-se-á nos dias 29 e 30 de março de 2012.

Justificando a necessidade do curso, a Escola afirma que: “Por ocasião dos 10


anos de aplicação do Código Civil de 2002, é fundamental que os magistrados tomem
conhecimento da doutrina e jurisprudência que se consolidou, mormente com relação às
cláusulas gerais e os princípios. Acresça-se que o curso também objetivará a reflexão
sobre os novos rumos do direito civil”.
A EMERJ informa que o curso objetiva, de uma forma geral, levar à
compreensão dos magistrados a dinâmica relativa a temas de Direitos Civis, relevantes para
atuação dos referidos profissionais, atualizando-os quanto à reflexão dos 10 anos de
experiência e aplicação do Código Civil.
Quanto à abordagem pedagógica, o Curso 10 anos do Código Civil
desenvolver-se-á por meio de aulas interativas, voltado para o desenvolvimento de
habilidades e competências atinentes à profissão da clientela-alvo, no âmbito do cotidiano
forense. Nesse viés, o trabalho pedagógico assumirá, com o foco escolhido, uma formação
baseada na interação entre teoria e prática, desde o início do curso, com vistas ao
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aprimoramento de magistrados, buscando desta forma, instrumentalizá-los para as decisões


adequadas e pertinentes ao tema proposto.
A avaliação dos cursistas está condicionada aos seguintes critérios:
relacionamento interpessoal, pontualidade, interesse, postura, efetiva participação nas
atividades presenciais em classe, além da frequência mínima a 75% das aulas do curso,
aferida mediante lista de presença. Findo o curso, no prazo de 10 (dez) dias, os
participantes deverão entregar texto de 5 a 8 laudas em que aplicarão a um caso concreto o
conhecimento ministrado no curso; a esse trabalho será atribuído conceito muito bom, bom,
regular ou insuficiente, segundo avaliação a cargo do coordenador do curso.
A avaliação do curso será feita pelos cursistas, através do preenchimento de
folha própria de avaliação, conforme escala de valores para cada quesito, alinhada às
diretrizes da ENFAM, tais como: avaliação dos professores, avaliação dos temas
apresentados, carga horária, qualidade do material de apoio e integração dos participantes
durante o curso.
O conteúdo programático está assim esquematizado:

TEMA 1
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: 10 ANOS DE CÓDIGO CIVIL
EMENTA
Legalidade e eficácia constitucional na aplicação do Código Civil.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Abordagem do Direito Civil Constitucional.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Refletir no papel da Constituição para o aprimoramento do Direito Civil.

TEMA 2
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: 10 ANOS DE CÓDIGO CIVIL
EMENTA
10 anos de Código Civil. Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Código Civil e a Lei n. 8078/90.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Análise do diálogo das fontes normativas do Código Civil e do Código de Defesa do
Consumidor.
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TEMA 3
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL
EMENTA
Cláusulas gerais e conceito jurídico indeterminado: método e legitimidade democrática nas
relações negociais.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Auxiliar o magistrado a decidir em consonância com as regras e princípios que norteiam o
Direito Civil na contemporaneidade.

TEMA 4
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: POSSE
EMENTA
A posse dos imóveis como instrumento de garantias fundamentais e as limitações
ambientais.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Posse, Propriedade e Limites.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Análise da função social da posse como garantia individual e a tutela do meio ambiente.

TEMA 5
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: DAS OBRIGAÇÕES
EMENTA
Consequências do inadimplemento das obrigações.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Adimplemento e inadimplemento das obrigações.
OBJETIVO ESPECÍFICO
O estudo aprofundado dos efeitos do inadimplemento passando à análise das regras e
princípios.

TEMA 6
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: DIREITO DE FAMÍLIA
EMENTA
Famílias contemporâneas na legalidade civil-constitucional.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Evolução do Direito de Família e a Constituição da República.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Trazer à discussão e reflexão as recentes inovações legais, doutrinárias e jurisprudenciais
no Direito de Família.
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TEMA 7
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: RESPONSABILIDADE CIVIL
EMENTA
A responsabilidade civil nos dez anos da codificação civil na construção da doutrina e da
jurisprudência.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Da Responsabilidade Civil.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Análise da evolução doutrinária e jurisprudencial da objetivação da Responsabilidade Civil.

TEMA 8
DIREITO CIVIL
DISCIPLINA: DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE
LIMITADA
EMENTA
Condição do empresário individual.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Empresa individual de Responsabilidade Limitada. Conceito. Formação. Capital.
Responsabilidade do titular. Distinção entre empresa, empresário, estabelecimento,
sociedade e pessoa jurídica. Fraude. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Críticas.
Inovações da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.
OBJETIVO ESPECÍFICO
Análise das atualizações advindas com a Lei n. 12.441/11, de 11/07/11.

A indicação dos ministrantes veio acompanhada da síntese de seus currículos.

Foi apresentada a bibliografia que foi sugerida aos cursistas, assim como seus
meios de acesso.

É o Relatório.

II – Fundamentação

Trata-se de curso de aperfeiçoamento de magistrado para fins de promoção


por merecimento. A matéria encontra-se disciplinada na Enfam através da Resolução nº 1,
de 6 de junho de 2011; a Instrução Normativa nº 2, de 6 de fevereiro de 2008; e Resolução
nº 2, de 16 de março de 2009.
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De acordo com o inciso II do art. 13 da Resolução nº 1, de 6 de junho de 2011,


“O pedido de credenciamento para a execução do curso de aperfeiçoamento deverá ser
feito, impreterivelmente, até 30 (trinta) dias antes de seu início”.

O curso em exame iniciar-se-á no dia 29 de março de 2012. O pedido foi


recebido na ENFAM no dia 29 de fevereiro passado. Tempestivo, portanto, o pedido de
credenciamento.

O tema “Os 10 ano do Código Civil” insere-se no conteúdo previsto no inciso


III do art. 8º da Resolução nº 1, de 6 de junho de 2011:

Art. 8º O conteúdo programático dos cursos de aperfeiçoamento para fins de


vitaliciamento e promoção incluirá, no mínimo, estudos relacionados com os
itens seguintes:

I – (...);

II – (...); e

III – temas teóricos relativos a matérias jurídicas e disciplinas afins como


filosofia, sociologia e psicologia.

Ademais, o § 1º do art. 2º da Instrução Normativa nº 2, de 6 de fevereiro de


2008, autoriza às escolas a possibilidade de ampliação do conteúdo programático elencado
no art. 8 da Resolução nº 2/2007. Tal possibilidade ficou explícita no anexo 2 da Resolução
nº 2, de 16 de março de 2009, verbis:

“.................. os tribunais têm liberdade de conformar o processo de formação


permanente e continuada de seus juízes a partir de demandas mais pontuais.”

O conteúdo programático e a carga horária se mostram compatíveis entre si,


porquanto o tema “Os 10 anos do Código Civil” - com ênfase na legalidade e eficácia
constitucional na aplicação do Código Civil; no Código Civil e a Defesa do Consumidor;
nas cláusulas gerais e conceitos jurídico indeterminado; na empresa individual de
responsabilidade limitada; nas posses dos imóveis como instrumento de garantias
fundamentais e as limitações ambientais; nas famílias contemporâneas; e na
responsabilidade civil nos dez anos da Codificação Civil na Construção da Doutrina e
Jurisprudência - será estudado em 20 (vinte) horas-aula.
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Pela análise dos currículos, vê-se que os docentes são devidamente


qualificados para ministrar o curso.

Quanto à avaliação do cursista, convém lembrar o disposto no anexo 2 da


Resolução nº 2/2009: “torna-se importante que haja, para qualquer evento de formação e
aperfeiçoamento, instrumento de avaliação uniforme e adequado, observadas as
diretrizes estabelecidas pela Enfam para toda a ação formativa, ou seja, esta deverá
contar, no mínimo, com processo e instrumentos de avaliação, entre os quais,
obrigatoriamente, um estudo de caso em que possam ser aplicados os conteúdos
programáticos”.

No presente caso, além da exigência de frequência mínima a 75% das aulas


oferecidas, os alunos deverão apresentar, findo o curso, no prazo de 10 (dez) dias, um texto
de 5 a 8 laudas, em que aplicará a um caso concreto o conhecimento ministrado no curso.

O curso será avaliado pelos participantes.

III – Conclusão

Diante do exposto, preenchidos os requisitos dos atos normativos que regem a


matéria (Resolução nº 1, de 6 de junho de 2011; Instrução Normativa nº 2, de 6 de fevereiro
de 2008; e Resolução nº 2, de 16 de março de 2009), opino pelo deferimento do pedido de
credenciamento do “Os 10 anos do Código Civil”, a ser realizado pela Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ.
À superior consideração.
Brasília, 05 de março de 2012.

Rodrigo L. D. Campos
Analista Judiciário - Enfam
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ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS

PORTARIA Nº 89 DE 06 DE MARÇO DE 2012.

Credencia o curso de aperfeiçoamento


denominado Os 10 anos do Código Civil,
ministrado pela Escola da Magistratura do
Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

O DIRETOR-GERAL DA ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E


APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS, usando de suas atribuições e tendo em
vista o disposto na Resolução nº 1 da Enfam, de 6 de junho de 2011,

RESOLVE

Credenciar, para efeitos do disposto na mencionada resolução, o curso de


aperfeiçoamento denominado Os 10 anos do Código Civil, com carga horária total de
20 (vinte) horas-aula, ministrado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
(EMERJ), nos termos do Processo nº 201262 - Credenciamento.

Ministro Cesar Asfor Rocha


Diretor-Geral

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