Artigo - Leosmar Aparecido Da Silva (Unidade 2)
Artigo - Leosmar Aparecido Da Silva (Unidade 2)
Artigo - Leosmar Aparecido Da Silva (Unidade 2)
Resumo: Este artigo tem o objetivo de problematizar, do ponto de vista filosófico, o papel da
imaginação na formação de conceitos abstratos nas línguas. Partindo da proposta experiencialista de
Lakoff e Johnson ([1980]2002), propõe-se, num primeiro momento, verificar como os filósofos de
orientação racionalista e empirista enxergam o lugar do corpo-matéria, da razão e da imaginação na
possibilidade de conhecimento e nomeação das coisas do mundo. Num segundo momento, tomando
por base teórica principal o livro The body in the mind: the bodily bases of meaning, imagination, and
reason, de Mark Johnson (1987), a noção de imaginação em Kant é abordada com o objetivo de
encontrar em tal noção a explicação filosófica para a gênese dos conceitos metafóricos abstratos.
Abstract: This paper aims to discuss the role of imagination in the formation of abstract concepts in
the languages. Lakoff and Johnson ([1980] 2002) have the experientialist proposal. This proposal
conceives a imaginative rationality. The paper studies how the philosophers of empiricist and
rationalist orientation to see the place of the body, reason and imagination in the possibility of
knowledge and naming of things in the world. Based on the book The body in the mind: the bodily
bases of meaning, imagination, and reason, by Mark Johnson (1987), the notion of imagination in
Kant is addressed in order to examine the philosophical explanation for the genesis of abstract
metaphorical concepts.
Introdução
minha existência como coisa que pensa está doravante garantida e vejo
claramente que esta coisa pensante é mais fácil, enquanto tal, de
conhecer do que o corpo, a cujo respeito até agora nada me certifica.
Este Cogito, este "eu penso", modelo de pensamento claro e distinto,
dá-me a garantia subjetiva de toda ideia clara e distinta no tempo em
que a percebo. Ele funda já a possibilidade da ciência. (DESCARTES,
1979, p. 14. Grifo do autor).
homem uma racionalidade enganadora. O próprio Deus garante a conexão entre nossas
ideias e o mundo externo. Vejamos:
Ora, posso estar certo de que o corpo e a alma — ou seja, aquilo que
pensa — são realmente distintos, posto que posso concebê-los clara e
distintamente como separados, e de que a onipotência de Deus pode,
por conseguinte, separá-los. De outro lado, Deus me dá, por intermédio
do sentimento, que é em mim uma certa faculdade passiva de conhecer
as coisas sensíveis, a ideia de corpos existentes. Não poderia enganar-
me nisto, a não ser que me desse ao mesmo tempo a faculdade de
conhecer a causa verdadeira, eminente, dessas ideias [...]
(DESCARTES, 1979, p. 15).
não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa
ultrapassar o estoque primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos
externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar,
separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da
fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de
eventos com toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo
e um lugar particulares, concebê-los como existentes e descrevê-los
com todos os pormenores que correspondem a um fato histórico, no
qual ela acredita com a máxima certeza.
Silveira (2002), citando Hume, afirma que existem dois tipos de conhecimento: 1)
aquele que concebe as matérias de fato e 2) aquele que concebe relação de ideias. As
matérias de fato relacionam-se com a percepção imediata e seriam a única forma
verdadeira de conhecimento. A relação de ideias, por sua vez, é uma inferência de outras,
de modo que, ao se relacionar na mente duas ideias provenientes da experiência, conclui-se
uma terceira. Apesar de essa ideia ser nova, ela não acrescenta nada de novo, porque é
apenas uma relação de ideias dadas anteriormente.
Também o empirismo influenciou importantes teorias linguísticas, dentre elas o
paradigma funcional, que vê nos dados da experiência, na cultura, na interação
falante/ouvinte, no uso linguístico a chave para explicar a estrutura gramatical das línguas
naturais. Ressalva-se, porém, que o paradigma funcional não é exclusivamente empirista,
uma vez que é influenciado por outras correntes de pensamento.
Para Lakoff e Johnson (2002, p. 298), tanto o racionalismo quanto o empirismo1
precisam um do outro para existir. O racionalismo alia-se à verdade científica, à
racionalidade, à precisão, à justiça e à imparcialidade. O empirismo, por sua vez, alia-se às
emoções, ao conhecimento intuitivo, à imaginação, aos sentimentos humanos, à arte.
Destacam que, mesmo aliando-se a esses elementos, a apreensão lógico-racional se faz
presente no empirismo.
Essas duas correntes filosóficas não constituem a única alternativa para se explicar
o conhecimento. Lakoff e Johnson (2002) propõem, então, uma síntese experiencialista,
em que a metáfora seria o elemento que liga razão e imaginação. Para os autores, a razão,
no mínimo, envolve a categorização, a implicação, a inferência. A imaginação, por seu
turno, implica ver um tipo de coisa em termos de outro tipo de coisa. Sendo assim, a
metáfora se define como uma racionalidade imaginativa, uma vez que o pensamento
cotidiano é amplamente metafórico e os raciocínios diários envolvem implicações e
1
Os autores preferem a nomenclatura “Objetivismo” e “Subjetivismo” para se referirem a essas correntes de
pensamento filosófico.
Vários filósofos tentaram unir racionalismo e empirismo, mas é em Kant que essa
síntese se vê mais produtiva. Kant (1980) postulava que quase todo o conhecimento
apreendido pelo homem inicia-se com a experiência. Na introdução da Crítica da razão
pura, ele afirma:
Pode-se dizer que, para Kant, todo conhecimento da experiência objetiva deve
envolver dois componentes:
1) um conteúdo perceptual acessado por nossos sentidos e, por isso, tratado como
conteúdos materiais. É dado a posteriori, ou seja, em contato com o mundo natural. O
componente material envolve os processos corporais, dentre eles a percepção e a
sensibilidade.
2) estruturas mentais para organizar e conferir sentido ao conteúdo perceptual.
Tais estruturas são tratadas como elementos formais (conceitos, estruturas de organização
espacial e temporal dos dados da experiência). Esses elementos formais estão ligados à
mente porque são conceptuais, intelectuais e as atividades de organização são espontâneas.
São dados a priori, ou seja, não são aprendidos culturalmente.
Para Kant (1980), razão e experiência estão inter-relacionadas: sem a forma, os
dados da experiência não têm sentido algum; sem a matéria a forma não se manifesta.
Embora essa síntese tenha sido feita, ainda existe na filosofia kantiana a separação entre
mente e corpo, visto que os conteúdos formais se sobrepõem aos materiais. Dessa forma,
para Kant, qualquer unidade experienciada na percepção sensorial deve ser o resultado da
síntese do trabalho da imaginação. Cabe, portanto, descrever as estruturas de imaginação
apontadas por Kant.
Imaginação em Kant
A tradição aristotélica, segundo Masip (2001), concebe que os conceitos,
formulados em forma de proposições, geram juízos ou sentenças: João é feliz. Os juízos,
por sua vez, produzem raciocínios do tipo João é brasileiro porque nasceu na Bahia.
Seguindo essa tradição, Kant (1974) considera que o conhecimento objetivo é construído
pela combinação de conceitos por meio de juízos2. Para ele,
dos resultados das ciências na filosofia (cf. ABBAGNANO, 1999, p. 905). Apesar de a
noção de síntese compor a filosofia aristotélica e cartesiana, foi Kant (1974, 1980) quem
mais utilizou esse conceito, considerando toda atividade intelectual como síntese. Para ele,
“a síntese é a ação de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber a
sua multiplicidade num conhecimento.” (KANT, 1980, p. 72, § 10).
Dada a função reprodutiva da imaginação em Kant (1980), ela é definida como “o
ato de colocar diferentes representações juntas e agarrar (grasping) o que é múltiplo nelas
em um ato de conhecimento” (KANT apud JOHNSON, 1987, p. 148). Como se vê, a
função reprodutiva da imaginação conforma-se semelhantemente à noção de síntese dada
pelo autor.
Três tipos de síntese estão na base da unidade experiencial, segundo Kant (1980):
1) a síntese da apreensão na intuição; 2) a síntese da reprodução na imaginação e 3) a
síntese de reconhecimento de um conceito. Segue a descrição de cada uma delas:
1) síntese da apreensão na intuição:
Para conhecer um objeto como uma série de representações separadas, deve-se
primeiro compreendê-las como imagem unificada de um ponto singular no tempo. Não se
pode, por exemplo, experienciar um “cachorro” sem se obter uma imagem unificada de um
cachorro como distinto de outras possíveis unidades disponíveis no campo perceptual do
indivíduo. Segundo Kant (1980, 96, § 26), a síntese da apreensão “é aquela composição do
múltiplo numa intuição empírica mediante a qual torna possível a percepção, isto é, a
consciência empírica de tal intuição (como fenômeno)” (Grifo do autor).
2) síntese da reprodução na imaginação:
A imagem unificada não é suficiente, já que os objetos persistem através do tempo.
Então, para a apreensão de objetos unificados, deve-se manter uma imagem prévia dada
num tempo a priori. A imaginação, com seu poder de representar o que não está presente,
performa essa síntese.
3) síntese do reconhecimento de um conceito:
A síntese da reprodução ainda não é suficiente para compreender objetos via
percepção. Deve-se, então, reconhecer o que se está experimentando. Seria, nos termos de
Kant, o reconhecimento automático de uma regra (ou conceito) que assegura que o objeto
presente é de certo tipo. Seria a síntese que viabilizaria a capacidade de distinguir uma
unidade de outra, uma vez que uma unidade tem propriedades e relações que lhe são
específicas. Um cachorro, por exemplo, se distingue de uma baleia porque late, tem quatro
patas, é peludo etc.
CONCEITO “Cachorro”
ESQUEMA Representação de uma regra de acordo com a
imaginação, que delineia a figura de um animal
de quatro patas, peludo, que late, mamífero,
animal.
IMAGEM Representação do cachorro no pensamento.
Quadro 13: Formação de conceitos empíricos para Kant. Fonte: Dados de Johnson (1987, p. 154).
3
O quadro deve ser lido de baixo para cima.
4
MA: Meio Ambiente.
Segundo Kant (1980), um fato do qual não se pode fugir é que os seres humanos
partilham um mundo comum de objetos físicos. Não estão, portanto, fechados em suas
experiências subjetivas. Diante disso, cabe a questão: o que há além da imaginação
reprodutiva (subjetiva) que daria esta estrutura objetiva, partilhada do mundo? Segundo
Johnson (1987, p. 151), citando Kant, “apenas na medida em que busco unir uma
pluralidade de representações dadas em uma consciência única, é possível representar para
mim mesmo a identidade da consciência nessas representações.” Segundo o filósofo, é
possível ter experiências objetivas, públicas, partilhadas porque há uma estrutura objetiva,
chamada “unidade transcendental de consciência”. É transcendental porque é dada pela
estrutura de consciência e não é derivada da experiência empírica.
Essa estrutura é considerada por Kant como uma operação de imaginação, porque
ela é uma atividade sintetizadora que fornece a estrutura geral da experiência objetiva. Ele a
chama também de produtiva e figurativa porque gera e produz a figura ou estrutura que
qualquer conjunto de representações deve ter se esse conjunto é experienciado de forma
geral no mundo.
Em síntese, a função produtiva da imaginação torna possível a experimentação de
objetos públicos, ou seja, objetos que são comuns a todos os seres humanos, já que fazem
parte do mesmo mundo; constitui uma estrutura unificada de consciência capaz de oferecer
aos seres as condições necessárias para experienciar qualquer objeto; constitui um modelo
categorial imposto pela estrutura transcendental da consciência humana.
5
A nomenclatura “lexicalização”, em Ecolinguística, diz respeito à criação de uma palavra ou morfema na
língua. Tem o sentido de “codificação linguística”. Essa observação é importante porque, na teoria da
gramaticalização, o termo “lexicalização” é um tipo de processo de mudança na língua.
Conforme Kant (apud JOHNSON, 1987, p. 157), a mente não trabalha apenas com
estoque fixado de conceitos sobre os quais ela organiza e recebe por meio dos sentidos. Ela
se engaja também no ato criativo de refletir sobre representações em busca de novos
ordenamentos, que geram novos significados. Entra em cena o juízo reflexivo, que não
constitui em si ato de conhecimento, visto que ele não envolve a estrutura determinada de
um campo de representações de acordo com um conceito definido. A reflexão é uma
atividade imaginativa por meio da qual a mente “desempenha” várias representações
(perceptos, imagens, conceitos) em busca de possíveis caminhos pelos quais tais
representações podem ser organizadas, embora esse processo seja livre de controle do
entendimento.
Dito isso, dois tipos de juízos se distinguem: o reflexivo, em que não há um
conceito pré-dado, aplicado automaticamente à experiência; e o determinante, em que se
6
Desenho artístico das letras iniciais do nome de alguém.
tem um conceito definido, uma representação já dada. Kant (1974, p. 270) assim os
distingue:
7
Apesar de a tradução de Kant (1974) utilizar reflexionante, preferimos a utilização de reflexivo por ser mais
produtivo no Português Brasileiro.
Considerações finais
FUNÇÕES DA
IMAGINAÇÃO
EM KANT
produtiva e esquematizante, por outro. O que conecta essas funções é que elas envolvem o
ordenamento estrutural de representações mentais dentro de unidades significativas com a
experiência.
Ainda segundo Johnson (1987), existem dois problemas na visão de Kant sobre
imaginação: o primeiro diz respeito à falta de clareza da natureza dual da imaginação, que
se constitui como ponto intermediário entre a conceptualização e a sensação; o segundo é
que existe em Kant uma lacuna entre a explicação do aspecto intelectual/racional e o
sensível/material.
Outros problemas estão relacionados ao fato de que: 1) a separação rígida do
entendimento e da sensação afasta a imaginação para uma classe de segundo status; 2) os
Juízos-de-gosto nunca podem ser determinantes ou constitutivos da experiência, nem
podem ser cognitivos; 3) aos Juízos reflexivos é conferido o status de racionalidade
inferior; 4) Kant foi forçado, por sua divisão metafísica, a considerar a atividade
imaginativa da representação simbólica (indireta) um impedimento para a cognição teórica.
Kant (1974) afirma que os indivíduos se voltam para a representação simbólica (ou
projeção metafórica) apenas quando eles têm uma “pobreza de conceitos” no entendimento
de algum aspecto da experiência.
Diante desses problemas, Johnson (1987, p. 167) propõe a negação da lacuna entre
ENTENDIMENTO, IMAGINAÇÃO e SENSAÇÃO. Nega também a separação entre o
analítico e o sintético, o conhecimento a priori e o conhecimento a posteriori, o formal e o
material, com base no consenso da filosofia contemporânea. Segundo o autor, se se
considerar esses polos num continuum, então, não haverá necessidade de excluir a
imaginação de algum suposto domínio primitivo do conteúdo cognitivo ou da estrutura
objetiva. Propõe, assim, que a imaginação pode ser entendida como uma atividade de
estruturação por meio da qual se conseguem representações coerentes, padronizadas e
unificadas. Ela é indispensável para a habilidade humana de dar sentido à experiência,
sendo, portanto, central para a racionalidade, que procura encontrar conexões significativas
para fazer inferências e resolver problemas.
Em oposição a Kant, Johnson (1987) afirma que a criatividade ocorre em todos os
níveis da organização experiencial humana e não apenas em raros momentos, quando novas
ideias são descobertas. É modesta e passa despercebida, por um lado, e está na base dos
mais notáveis atos de inovação, por outro.
Referências
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