Artigo - Leosmar Aparecido Da Silva (Unidade 2)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 22

Re vi st a d e Li n g uí st i c a e T e oria Lit erá ria • I SS N 2 17 6 - 6 80 0

Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação no


processo de conceptualização
Rationalism and Empiricism: the role of the imagination on
conceptualization process

Leosmar Aparecido da Silva*


*Universidade Federal de Goiás (UFG)

Resumo: Este artigo tem o objetivo de problematizar, do ponto de vista filosófico, o papel da
imaginação na formação de conceitos abstratos nas línguas. Partindo da proposta experiencialista de
Lakoff e Johnson ([1980]2002), propõe-se, num primeiro momento, verificar como os filósofos de
orientação racionalista e empirista enxergam o lugar do corpo-matéria, da razão e da imaginação na
possibilidade de conhecimento e nomeação das coisas do mundo. Num segundo momento, tomando
por base teórica principal o livro The body in the mind: the bodily bases of meaning, imagination, and
reason, de Mark Johnson (1987), a noção de imaginação em Kant é abordada com o objetivo de
encontrar em tal noção a explicação filosófica para a gênese dos conceitos metafóricos abstratos.

Palavras-chave: Racionalismo. Empirismo. Corpo. Imaginação. Conceptualização.

Abstract: This paper aims to discuss the role of imagination in the formation of abstract concepts in
the languages. Lakoff and Johnson ([1980] 2002) have the experientialist proposal. This proposal
conceives a imaginative rationality. The paper studies how the philosophers of empiricist and
rationalist orientation to see the place of the body, reason and imagination in the possibility of
knowledge and naming of things in the world. Based on the book The body in the mind: the bodily
bases of meaning, imagination, and reason, by Mark Johnson (1987), the notion of imagination in
Kant is addressed in order to examine the philosophical explanation for the genesis of abstract
metaphorical concepts.

Keywords: Rationalism. Empiricism. Body. Imagination. Conceptualization..

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


54 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

Introdução

Na linguística cognitiva, existe a hipótese de que a experiência do usuário da


língua com o mundo físico contribui para que conceitos abstratos como amor, felicidade,
morte, amizade sejam construídos. Para estudiosos como Lakoff e Johnson ([1980]2002),
Johnson (1987), Lakoff (1987), Casasanto (2011), Kövecses (1992, 2005, 2009), a mente é
corporificada (embodied mind), ou seja, o corpo humano fornece à cognição material
suficiente para conceptualizar o mundo. Segundo a hipótese da embodied mind, todos os
seres humanos têm estrutura corporal semelhante e realizam basicamente as mesmas
atividades com seus corpos: movimentos, percepção etc. Logo, algumas metáforas que
emergem das diferentes culturas têm uma tendência de serem semelhantes nas diversas
línguas. Para Kövecses (2009), o corpo fornece o material básico para que haja certo
universalismo de algumas metáforas e a cultura contribui para que haja variação entre elas.
Para se chegar a essa hipótese, porém, os estudiosos partilham a consideração de que a
racionalidade é imaginativa ou que a imaginação é racional, e não simplesmente um
produto de devaneios e elocubrações. Em vista dessas considerações, este artigo está
dividido em duas grandes partes: o lugar do corpo, da matéria no racionalismo e no
empirismo e; a concepção de imaginação em Kant.

O lugar do corpo e da imaginação no racionalismo e no


empirismo

O racionalismo é uma corrente filosófica que concebe a razão como a principal


fonte do conhecimento. Apesar de considerar que existe uma interação entre o sujeito
cognoscente e o mundo sensível, a experiência sensorial/corporal é secundária e, por vezes,
prejudicial ao conhecimento. Assim, no racionalismo, o corpo ocupa um lugar secundário
ou é desconsiderado na compreensão dos fenômenos e na apreensão dos significados nas
línguas.
Racionalista, Platão considerava a existência de dois mundos: i) o mundo sensível,
percebido pelos sentidos e ii) o mundo inteligível, onde está o raciocínio e a intuição. Para
ele, quando o homem observa a realidade, ideias inatas, anteriores ao contato cultural, vêm
à tona. As coisas do mundo sensível são apenas cópias imperfeitas do mundo das ideias.
Diz o filósofo que a alma participou do mundo das ideias antes de integrar-se a um corpo.
Depois de integrada e encarnada ao mundo terreno, traz consigo ideias inatas daquele

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 55

mundo, que se configuram como princípios gerais para a apreensão do conhecimento.


Assim, para Platão, nada no mundo físico oferece ao homem o conhecimento real, uma vez
que os objetos perceptíveis estão sempre mudando, enquanto suas essências são fixadas.
Para conhecer, é preciso ir além do sentido. Tudo aquilo que está ligado à matéria, ao corpo
e, portanto, à subjetividade impede a intelecção perfeita. É por isso que o poeta, que
trabalha com a imaginação, e consequentemente com a metáfora, deveria ser banido da
República. Por meio da poesia, o poeta faz imitação inferior e, por meio da imaginação, o
poeta transborda em paixão, o que seria prejudicial para o conhecimento das formas
perfeitas.
Considerado o pai do racionalismo moderno, Descartes acredita que a razão pode
chegar ao conhecimento da realidade de forma parecida com o conhecimento matemático,
em que se verificam princípios gerais desligados do mundo físico e que podem ser
deduzidos quando se analisa um objeto ou fenômeno particular. Para Descartes (1979), o
que a mente sabe são suas próprias representações ou ideias. O que o ser humano sabe mais
intimamente não está em seus corpos, mas na estrutura de suas mentes, na natureza da
racionalidade (JOHNSON, 1987, p. xxvi). Esse modelo de pensamento exclui, então, o
corpo de suas considerações, visto que ele – o corpo – introduz elementos subjetivos no
estudo da razão, vistos como irrelevantes para a natureza objetiva do conhecimento e do
significado. O próprio Descartes afirma

minha existência como coisa que pensa está doravante garantida e vejo
claramente que esta coisa pensante é mais fácil, enquanto tal, de
conhecer do que o corpo, a cujo respeito até agora nada me certifica.
Este Cogito, este "eu penso", modelo de pensamento claro e distinto,
dá-me a garantia subjetiva de toda ideia clara e distinta no tempo em
que a percebo. Ele funda já a possibilidade da ciência. (DESCARTES,
1979, p. 14. Grifo do autor).

Em oposição a Descartes, Sartre (1978, p. 49) diz que “a ideia cartesiana de um


pensamento puro, isto é, de uma atividade da alma que se exerceria sem o concurso do
corpo, é uma heresia orgulhosa”.
As considerações de Descartes (1979) apresentam uma dificuldade: se o que nós
sabemos são nossas próprias ideias, então, como podemos ter a certeza de que elas, de fato,
representam exatamente o que existe na realidade externa? Para Descartes, a dúvida
metódica conduz às descobertas da mente sobre o mundo. O filósofo responde a esta
questão, dizendo que tais ideias só podem ser verdadeiras porque Deus não concederia ao

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


56 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

homem uma racionalidade enganadora. O próprio Deus garante a conexão entre nossas
ideias e o mundo externo. Vejamos:

Ora, posso estar certo de que o corpo e a alma — ou seja, aquilo que
pensa — são realmente distintos, posto que posso concebê-los clara e
distintamente como separados, e de que a onipotência de Deus pode,
por conseguinte, separá-los. De outro lado, Deus me dá, por intermédio
do sentimento, que é em mim uma certa faculdade passiva de conhecer
as coisas sensíveis, a ideia de corpos existentes. Não poderia enganar-
me nisto, a não ser que me desse ao mesmo tempo a faculdade de
conhecer a causa verdadeira, eminente, dessas ideias [...]
(DESCARTES, 1979, p. 15).

Conforme afirma Johnson (1987), o racionalismo trata o significado e a


racionalidade como puramente conceptuais, proposicionais, algoritmos. Os conceitos são
entendidos como representações mentais gerais, como entidades lógicas. O conceito de
“cadeira”, por exemplo, aplica-se a todas as cadeiras, já que há especificação das
propriedades que as cadeiras têm em comum. Além disso, para o racionalismo, dar o
significado de um enunciado particular é dar as condições sobre as quais ele será
verdadeiro, ou as condições sobre as quais ele estaria “satisfeito” para representar algum
estado-de-coisas no mundo.
A corrente racionalista, que via a mente como dotada de um conhecimento não
aprendido culturalmente, mas dado a priori, antes do nascimento, influenciou um
importante paradigma linguístico, iniciado no final da década de 1950: o Gerativismo, para
o qual todos os seres humanos possuem um dispositivo inato para aprender uma língua,
conhecido como Gramática Universal, dado pela Faculdade de Linguagem (CHOMSKY,
1986; MIOTO et al., 2007).
O empirismo é a corrente filosófica que, por outro lado, concebe o conhecimento e
a apreensão do significado possíveis porque o homem é dotado de cinco sentidos por meio
dos quais ele percebe a realidade e a conceptualiza conforme essa percepção.
Aristóteles (apud MASIP, 2001, p. 23-24), como representante clássico do
empirismo, dizia que a visão, a audição, o tato, o olfato e o paladar permitem ao homem
captar dados da realidade. Depois de feita essa captação, há uma abstração mental cujo
resultado é a produção de ideias substanciais. “Casa”, por exemplo, seria uma ideia
substancial abstraída pela mente por meio dos sentidos. Os conceitos seriam formados
logo em seguida, quando às ideias substanciais, é acrescentada uma qualificação. Assim,
“casa grande” seria um conceito formulado com base na ideia substancial. Formulados os

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 57

conceitos, a próxima etapa é a formulação de juízos que se caracterizam por sentenças


inteiras contendo tanto a ideia substancial quanto o conceito. Uma sentença como, por
exemplo, “esta casa é grande” expressa um juízo. Os raciocínios, mais complexos em sua
natureza, seriam formulados na base dos juízos, dos conceitos e das ideias substanciais.
Neles, existe a formulação de um juízo acrescido de proposição posterior que o explica,
mostra-lhe a causa, a consequência ou qualquer outra relação. Dizer, por exemplo, que “as
casas grandes são as melhores porque nelas cabe toda a família” seria a formulação de um
raciocínio.
Neste texto, as estruturas de imaginação são fundamentais para se entender como
ocorre a construção de conceitos abstratos, via projeções metafóricas. Em filosofia, a
imaginação é definida, de maneira geral, como “a possibilidade de evocar ou produzir
imagens, independentemente da presença do objeto a que se referem” (ABBAGNANO,
1999, p. 537). Os pensadores modernos reconhecem que

a imaginação é uma faculdade (ou, em geral, atividade mental) distinta


da representação e da memória, embora de alguma maneira ligada às
duas: à primeira, porque a imaginação costuma combinar elementos
que previamente foram representações sensíveis; à segunda, porque
sem recordar essas representações, ou as relações estabelecidas entre
elas, não se poderia imaginar nada. (MORA, 2001, p. 1445).

Segundo Johnson (1987, p. 144), para Aristóteles, a imaginação é a faculdade que


media sensação e pensamento. É dependente da sensação e faz o pensamento possível.
Assim, para Aristóteles, a imaginação seria um tipo de poder do homem para formar
imagens do presente ou das percepções sensoriais primeiras. Não se confunde, porém, com
a percepção sensorial, visto que a dotação desse poder permite formar imagens na ausência
de sensações, tal como ocorre nos sonhos. O pensamento discursivo, ou a produção de atos
de fala, conduz o homem ao conhecimento, contudo, requer operação anterior da
imaginação para fornecer o conteúdo empírico. Enfim, ainda segundo Johnson (op. cit. p.
144), a imaginação é uma operação indispensável e penetrante pela qual as percepções
sensoriais, por sua natureza corporal, são recordadas como imagens e estão disponibilizadas
no pensamento discursivo como os conteúdos de nosso conhecimento do mundo físico.
Aristóteles influenciou vários outros pensadores, que viam na experiência sensorial
do sujeito com o mundo sensível um modo de conhecer. Dentre eles, destacam-se Tomás
de Aquino, na Idade Média; Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke e David Hume,
na Idade Moderna. Hume (2005, p. 22), por exemplo, considera que

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


58 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa
ultrapassar o estoque primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos
externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar,
separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da
fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de
eventos com toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo
e um lugar particulares, concebê-los como existentes e descrevê-los
com todos os pormenores que correspondem a um fato histórico, no
qual ela acredita com a máxima certeza.

Silveira (2002), citando Hume, afirma que existem dois tipos de conhecimento: 1)
aquele que concebe as matérias de fato e 2) aquele que concebe relação de ideias. As
matérias de fato relacionam-se com a percepção imediata e seriam a única forma
verdadeira de conhecimento. A relação de ideias, por sua vez, é uma inferência de outras,
de modo que, ao se relacionar na mente duas ideias provenientes da experiência, conclui-se
uma terceira. Apesar de essa ideia ser nova, ela não acrescenta nada de novo, porque é
apenas uma relação de ideias dadas anteriormente.
Também o empirismo influenciou importantes teorias linguísticas, dentre elas o
paradigma funcional, que vê nos dados da experiência, na cultura, na interação
falante/ouvinte, no uso linguístico a chave para explicar a estrutura gramatical das línguas
naturais. Ressalva-se, porém, que o paradigma funcional não é exclusivamente empirista,
uma vez que é influenciado por outras correntes de pensamento.
Para Lakoff e Johnson (2002, p. 298), tanto o racionalismo quanto o empirismo1
precisam um do outro para existir. O racionalismo alia-se à verdade científica, à
racionalidade, à precisão, à justiça e à imparcialidade. O empirismo, por sua vez, alia-se às
emoções, ao conhecimento intuitivo, à imaginação, aos sentimentos humanos, à arte.
Destacam que, mesmo aliando-se a esses elementos, a apreensão lógico-racional se faz
presente no empirismo.
Essas duas correntes filosóficas não constituem a única alternativa para se explicar
o conhecimento. Lakoff e Johnson (2002) propõem, então, uma síntese experiencialista,
em que a metáfora seria o elemento que liga razão e imaginação. Para os autores, a razão,
no mínimo, envolve a categorização, a implicação, a inferência. A imaginação, por seu
turno, implica ver um tipo de coisa em termos de outro tipo de coisa. Sendo assim, a
metáfora se define como uma racionalidade imaginativa, uma vez que o pensamento
cotidiano é amplamente metafórico e os raciocínios diários envolvem implicações e

1
Os autores preferem a nomenclatura “Objetivismo” e “Subjetivismo” para se referirem a essas correntes de
pensamento filosófico.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 59

inferências metafóricas. Sendo a metáfora o exemplo de racionalidade imaginativa por


natureza,

é um dos mais importantes instrumentos para tentar compreender


parcialmente o que não pode ser compreendido em sua totalidade:
nossos sentimentos, nossas experiências estéticas, nossas práticas
morais e nossa consciência espiritual. Esses esforços de imaginação
não são destituídos de racionalidade; como se utilizam da metáfora,
empregam uma racionalidade imaginativa. (LAKOFF; JOHNSON,
2002, p. 303).

Como forma de entender a relação entre os dados da experiência e racionalidade


imaginativa realizada na cognição, na próxima seção, será descrita, em muitos momentos
por meio das considerações de Johnson (1987), a tentativa de Kant de aproximar
racionalismo e empirismo, fazendo-se para tal, uma síntese desses dois modelos de
pensamento filosófico.

Aproximação entre racionalismo e empirismo: a síntese


kantiana

Vários filósofos tentaram unir racionalismo e empirismo, mas é em Kant que essa
síntese se vê mais produtiva. Kant (1980) postulava que quase todo o conhecimento
apreendido pelo homem inicia-se com a experiência. Na introdução da Crítica da razão
pura, ele afirma:

não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a


experiência; do contrário, por meio de que a faculdade de
conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através de
objetos que toquem nossos sentidos e em parte produzem por si só suas
próprias representações, em parte põem em movimento a atividade de
nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las e,
desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um
conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o
tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós precede a experiência,
e todo o conhecimento começa com ela (KANT, 1980, I, 2, p. 23. Grifo
do autor).

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


60 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

Em suas postulações, contudo, Kant (1980) considera que existem representações a


priori para que as impressões da realidade transformem-se em conhecimento. A sensação e
a matéria em si são dadas a posteriori. Assim, se existem as representações a priori, elas só
podem ser puras porque nelas não há nada que pertença à sensação:

mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência,


nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. Pois
poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de
experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e
daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento (apenas
provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma, cujo
aditamento não se distingue daquela / matéria-prima antes que um
longo exercício nos tenha chamado a atenção para ele e nos tenha
tornado aptos a abstraí-lo. [...] Tais conhecimentos denominam-se a
priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a
posteriori, ou seja, na experiência. (KANT, 1980, I, 2, p. 23. Grifo do
autor).

Pode-se dizer que, para Kant, todo conhecimento da experiência objetiva deve
envolver dois componentes:
1) um conteúdo perceptual acessado por nossos sentidos e, por isso, tratado como
conteúdos materiais. É dado a posteriori, ou seja, em contato com o mundo natural. O
componente material envolve os processos corporais, dentre eles a percepção e a
sensibilidade.
2) estruturas mentais para organizar e conferir sentido ao conteúdo perceptual.
Tais estruturas são tratadas como elementos formais (conceitos, estruturas de organização
espacial e temporal dos dados da experiência). Esses elementos formais estão ligados à
mente porque são conceptuais, intelectuais e as atividades de organização são espontâneas.
São dados a priori, ou seja, não são aprendidos culturalmente.
Para Kant (1980), razão e experiência estão inter-relacionadas: sem a forma, os
dados da experiência não têm sentido algum; sem a matéria a forma não se manifesta.
Embora essa síntese tenha sido feita, ainda existe na filosofia kantiana a separação entre
mente e corpo, visto que os conteúdos formais se sobrepõem aos materiais. Dessa forma,
para Kant, qualquer unidade experienciada na percepção sensorial deve ser o resultado da
síntese do trabalho da imaginação. Cabe, portanto, descrever as estruturas de imaginação
apontadas por Kant.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 61

Imaginação em Kant
A tradição aristotélica, segundo Masip (2001), concebe que os conceitos,
formulados em forma de proposições, geram juízos ou sentenças: João é feliz. Os juízos,
por sua vez, produzem raciocínios do tipo João é brasileiro porque nasceu na Bahia.
Seguindo essa tradição, Kant (1974) considera que o conhecimento objetivo é construído
pela combinação de conceitos por meio de juízos2. Para ele,

todas aquelas fórmulas em voga: a natureza toma o caminho mais curto


– ela não faz nada em vão – ela não dá nenhum salto na diversidade
de suas formas (continuum formarum) – é rica em espécies, mas
parcimoniosa em gêneros, e assim por diante, nada mais são do que
essa mesma manifestação transcendental do Juízo, de fixar para a
experiência como sistema e, portanto, para sua própria necessidade, um
princípio. (KANT, 1974, p. 269. Grifo do autor).

Os conceitos estão atados às percepções sensíveis em algum ponto da experiência


humana. Ao se afirmar, por exemplo, que “as baleias são mamíferos” existe uma relação
específica entre o conceito de “baleia” e o conceito de “mamífero”. A proposição como um
todo constitui o juízo. Desse modo, todo conhecimento envolve juízos, por meio dos quais
as representações mentais são unificadas e ordenadas sob representações mais gerais. Nesse
processo, a imaginação assume uma função fundamental, já que é a faculdade usada para
alcançar a união entre as representações mentais, advindas da experiência material
(corpórea, sensível) e as representações mais gerais, relacionadas aos princípios formais
(mentais, puros).
Kant (1980) apresenta quatro estágios do desenvolvimento da imaginação: 1) a
imaginação reprodutiva; 2) a imaginação produtiva; 3) o esquematismo; 4) a operação
criativa da imaginação no juízo reflexivo.

A função reprodutiva da imaginação

Na filosofia, síntese é entendida de maneira geral como: 1) método cognitivo


oposto à análise; 2) atividade intelectual; 3) unidade dialética dos opostos; 4) unificação
2
Os juízos seriam conceitos formulados em forma de proposições, como em "Sócrates é mortal".

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


62 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

dos resultados das ciências na filosofia (cf. ABBAGNANO, 1999, p. 905). Apesar de a
noção de síntese compor a filosofia aristotélica e cartesiana, foi Kant (1974, 1980) quem
mais utilizou esse conceito, considerando toda atividade intelectual como síntese. Para ele,
“a síntese é a ação de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber a
sua multiplicidade num conhecimento.” (KANT, 1980, p. 72, § 10).
Dada a função reprodutiva da imaginação em Kant (1980), ela é definida como “o
ato de colocar diferentes representações juntas e agarrar (grasping) o que é múltiplo nelas
em um ato de conhecimento” (KANT apud JOHNSON, 1987, p. 148). Como se vê, a
função reprodutiva da imaginação conforma-se semelhantemente à noção de síntese dada
pelo autor.
Três tipos de síntese estão na base da unidade experiencial, segundo Kant (1980):
1) a síntese da apreensão na intuição; 2) a síntese da reprodução na imaginação e 3) a
síntese de reconhecimento de um conceito. Segue a descrição de cada uma delas:
1) síntese da apreensão na intuição:
Para conhecer um objeto como uma série de representações separadas, deve-se
primeiro compreendê-las como imagem unificada de um ponto singular no tempo. Não se
pode, por exemplo, experienciar um “cachorro” sem se obter uma imagem unificada de um
cachorro como distinto de outras possíveis unidades disponíveis no campo perceptual do
indivíduo. Segundo Kant (1980, 96, § 26), a síntese da apreensão “é aquela composição do
múltiplo numa intuição empírica mediante a qual torna possível a percepção, isto é, a
consciência empírica de tal intuição (como fenômeno)” (Grifo do autor).
2) síntese da reprodução na imaginação:
A imagem unificada não é suficiente, já que os objetos persistem através do tempo.
Então, para a apreensão de objetos unificados, deve-se manter uma imagem prévia dada
num tempo a priori. A imaginação, com seu poder de representar o que não está presente,
performa essa síntese.
3) síntese do reconhecimento de um conceito:
A síntese da reprodução ainda não é suficiente para compreender objetos via
percepção. Deve-se, então, reconhecer o que se está experimentando. Seria, nos termos de
Kant, o reconhecimento automático de uma regra (ou conceito) que assegura que o objeto
presente é de certo tipo. Seria a síntese que viabilizaria a capacidade de distinguir uma
unidade de outra, uma vez que uma unidade tem propriedades e relações que lhe são
específicas. Um cachorro, por exemplo, se distingue de uma baleia porque late, tem quatro
patas, é peludo etc.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 63

Como se vê, a imaginação reprodutiva tem o poder de formar imagens unificadas


(síntese 1), recordar na memória imagens passadas (síntese 2) e constituir uma experiência
unificada e coerente (síntese 3). Tudo isso de forma subjetiva, porque se leva em
consideração a experiência particular do indivíduo. A imaginação reprodutiva, porém, não
garante a estruturação prévia da realidade, por meio da formulação de conceitos. Assim,
segundo Kant, deve haver outra função sintetizadora da imaginação que não seja
reprodutiva, mas transcendental e produtiva.
Considerado o raciocínio kantiano, a gênese de um conceito está no topo do
processo de aquisição do conhecimento. Para o filósofo, a escala seria a seguinte: por meio
dos sentidos, os indivíduos percebem um objeto na realidade. Posteriormente, cria-se uma
imagem desse objeto no pensamento. Essa imagem contribui para a formação de um
esquema, que seria a representação de uma regra de acordo com as propriedades do objeto.
Por fim, tem-se o conceito. Considerando o conceito de “cachorro”, esse percurso pode ser
sintetizado no Quadro 1, a seguir:

CONCEITO “Cachorro”
ESQUEMA Representação de uma regra de acordo com a
imaginação, que delineia a figura de um animal
de quatro patas, peludo, que late, mamífero,
animal.
IMAGEM Representação do cachorro no pensamento.

OBJETO PERCEBIDO Um ente da realidade física.

Quadro 13: Formação de conceitos empíricos para Kant. Fonte: Dados de Johnson (1987, p. 154).

3
O quadro deve ser lido de baixo para cima.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


64 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

A função produtiva da imaginação

Na concepção experiencialista, não se pode negar que os seres humanos organizam


suas experiências com os objetos de maneira diferente uns dos outros, associando-os e
unificando-os de modo distinto. Ou seja, categoriza-se o mundo de acordo com a percepção
que se tem dele por meio da representação linguística, filtrada pela subjetividade, pela
cultura, pela história e pela ideologia.
Os estudiosos da Ecolinguística, por exemplo, que investigam as relações entre
língua e meio ambiente, afirmam que a língua (L) surge como uma projeção da terra (T)
sobre o povo (P) (cf. COUTO, 2007, p. 127). Essas relações podem ser verificadas na
figura 1, a seguir, transcrita de Couto (2007, p. 128):

Figura 1: Esquema do processo de codificação linguística. Fonte: Couto (2007)

A seguir, tem-se a explicação do esquema, que muito se alinha à consideração


kantiana de formulação dos conceitos, com a diferença de que a língua (L) se inclui no
modelo da Ecolinguística e está no topo do processo:

todo processo começa pela percepção, que compreende um primeiro


momento de contato direto com o fenômeno do MA4, que poderíamos
chamar de momento da sensação (1). Esse momento é individual e
apenas sensorial. Ainda no próprio indivíduo, o contato sensorial com
o objeto pode se repetir, com o que o indivíduo pode passar a

4
MA: Meio Ambiente.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 65

reconhecê-lo. Trata-se do momento da identificação (2). O resultado do


processo de percepção individual é a formação do percepto. Quando a
experiência com o dado do MA se intensifica, inicia-se o processo
indicado pela seta descendente. Ele começa pelo compartilhamento da
experiência com outros membros de P, que é o momento 3. Se a
interação entre membros da Comunidade se intensificar, acaba
surgindo um nome para o dado da experiência, momento 4, que é o da
lexicalização. Compartilhamento e lexicalização constituem o processo
de conceptualização5, cujo resultado é o conceito. (COUTO, 2007, p.
128).

Segundo Kant (1980), um fato do qual não se pode fugir é que os seres humanos
partilham um mundo comum de objetos físicos. Não estão, portanto, fechados em suas
experiências subjetivas. Diante disso, cabe a questão: o que há além da imaginação
reprodutiva (subjetiva) que daria esta estrutura objetiva, partilhada do mundo? Segundo
Johnson (1987, p. 151), citando Kant, “apenas na medida em que busco unir uma
pluralidade de representações dadas em uma consciência única, é possível representar para
mim mesmo a identidade da consciência nessas representações.” Segundo o filósofo, é
possível ter experiências objetivas, públicas, partilhadas porque há uma estrutura objetiva,
chamada “unidade transcendental de consciência”. É transcendental porque é dada pela
estrutura de consciência e não é derivada da experiência empírica.
Essa estrutura é considerada por Kant como uma operação de imaginação, porque
ela é uma atividade sintetizadora que fornece a estrutura geral da experiência objetiva. Ele a
chama também de produtiva e figurativa porque gera e produz a figura ou estrutura que
qualquer conjunto de representações deve ter se esse conjunto é experienciado de forma
geral no mundo.
Em síntese, a função produtiva da imaginação torna possível a experimentação de
objetos públicos, ou seja, objetos que são comuns a todos os seres humanos, já que fazem
parte do mesmo mundo; constitui uma estrutura unificada de consciência capaz de oferecer
aos seres as condições necessárias para experienciar qualquer objeto; constitui um modelo
categorial imposto pela estrutura transcendental da consciência humana.

5
A nomenclatura “lexicalização”, em Ecolinguística, diz respeito à criação de uma palavra ou morfema na
língua. Tem o sentido de “codificação linguística”. Essa observação é importante porque, na teoria da
gramaticalização, o termo “lexicalização” é um tipo de processo de mudança na língua.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


66 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

Sendo reprodutiva, a imaginação fornece as conexões necessárias para fazer da


experiência e do entendimento elementos coerentes, unificados e significativos. Sendo
produtiva, a imaginação fornece a própria estrutura da objetividade.

A função esquematizadora da imaginação

Kant (1980) distingue os conceitos empíricos, fornecidos pela experiência e


percebidos por meio dos sentidos, dos conceitos puros, regras não empíricas que dão a
estrutura para os objetos tal como se apresentam na experiência. Esses conceitos puros,
também chamados categorias puras, são independentes da experiência e da própria
intuição. As categorias kantianas reúnem-se em quatro grupos. Cada grupo apresenta uma
relação com três outras categorias: 1) da quantidade: unidade, pluralidade, totalidade; 2)
da qualidade: realidade, negação, limitação; 3) da relação: inerência e substância,
causalidade e dependência, comunidade; 4) da modalidade: possibilidade e
impossibilidade, existência e não ser, necessidade e contingência. Essas quatro categorias
se manifestam nas línguas por diferentes meios. A categoria modalidade, por exemplo,
pode ser expressa por meio de verbos e expressões modais como no português brasileiro
poder, dever, ser necessário, ser preciso etc.
Feita a distinção entre conceitos empíricos e conceitos puros, cabe uma questão:
como as categorias puras podem se relacionar a priori às intuições empíricas ou percepções
sensoriais? Como as categorias, consideradas formas puras para Kant, podem se conectar
com a experiência, que tem conteúdo empírico?
Para o filósofo, existe um terceiro tipo de categoria, chamada por ele de “esquema
transcendental” e definida como a estrutura de uma atividade esquematizante de
imaginação no tempo. Para Kant, a imaginação sempre envolve um ordenamento temporal
de representações, que podem estar ou não num ordenamento espacial. Certas
características do tempo permitem conectar os conceitos puros (as categorias) aos conceitos
sensoriais. Segundo Kant (1980, p. 44),

o tempo é uma representação necessária subjacente a todas as


intuições. Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir
o próprio tempo, não obstante se possa do tempo muito bem eliminar
os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Os fenômenos
podem cair todos fora, mas o próprio tempo (como a condição
universal de sua possibilidade) não pode ser supresso.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 67

O tempo é uma estrutura pura, formal de consciência ao qual todas as


representações humanas estão sujeitas. Por ser universal e puro, o tempo pode conectar-se
com conceitos puros (as categorias); e, por organizar todas as representações, está
conectado também às percepções. Ele pode servir, portanto, como o link mediador entre o
conceptus e o perceptus.
A função esquematizadora é, assim, outra função da imaginação. “A imaginação é
a atividade esquematizante para representações ordenadas no tempo.” (JOHNSON, 1987, p.
153). A operação esquemática da imaginação mostra-se como: 1) uma determinação
transcendental (conecta as categorias aos conceitos empíricos); 2) uma determinação
empírica (conecta os conceitos empíricos às propriedades características dos objetos. Por
exemplo: a ideia de “cachorro” conecta-se a um animal que late, de quatro patas, com pelo
etc.).
Todas essas considerações contribuem para que se faça uma distinção entre três
elementos: imagem, conceito e esquema. Johnson (1987, p. 155) afirma que imagem é uma
pintura mental que pode ser rastreada de volta para a experiência sensorial. O conceito é
uma regra abstrata que especifica as características que uma coisa deve ter para satisfazer
aquele conceito. O conceito de cachorro, por exemplo, é dado pelas regras que o
determinam: tem quatro patas, é peludo, domesticável, mamífero, carnívoro, da família dos
caninos. Já o esquema é o procedimento de imaginação acionado para produzir imagens e
ordenar representações. Por um lado, é abstrato e intelectual, por outro, é uma estrutura de
sensação. É a ponte entre o conceito, a imagem e o percepto.
Johnson (1987) aplica esses três elementos ao conceito de triângulo. Em termos
kantianos, essa aplicação revelaria que:
1º) um indivíduo particular tem um conceito de triângulo: figura de plano fechado
e que possui três lados;
2º) existem objetos físicos em forma de triângulo (o telhado das casas, desenhos no
papel, triângulos em pedaços de cartão etc.);
3º) é possível que o indivíduo forme imagens de triângulos específicos, apesar de
nenhum triângulo real estar presente em seus sentidos;
4º) há um esquema particular de triângulo. Ele não é o mesmo da imagem criada
inicialmente, mas é veículo importante para que figuras triangulares no espaço sejam
sintetizadas na mente – como imagem ou como realidade física palpável. O esquema de um
triângulo é o que permite ao indivíduo generalizar imagens de triângulos, mas ele deve ser
distinto da imagem em si.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


68 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

A atividade de esquematização da imaginação media, na visão kantiana, a relação


entre imagens e objetos da sensação, por um lado, e conceitos abstratos, por outro. Kant
percebeu que a habilidade humana de habitar no mundo interagindo com seres e objetos
está diretamente atrelada a estruturas esquemáticas de imaginação. A noção de esquema
imagético de que trata a linguística cognitiva e, mais especificamente Johnson (1987), está
diretamente influenciada – com pouca variação – pelo conceito kantiano de esquema.
Apesar de não estar claro em Kant se o esquema é um processo ou produto da
atividade imaginativa, o filósofo insiste na existência de estruturas de imaginação que
mediam os conceitos puros e os perceptos. Tanto Kant quanto Johnson (1987) reconhecem
que o esquematismo está escondido nas profundezas da mente humana. Daí a dificuldade
de descrevê-lo em detalhes. Chegam a metaforizá-lo como um monograma6. Essa metáfora
sugere que o esquema é uma figura ou esboço na imaginação que pode ser “preenchida”
por imagens particulares ou perceptos.
Todas as considerações de Kant alinham-se à tese de Johnson (1987) de que as
experiências significativas e o entendimento envolvem a atividade de imaginação que
ordena as representações humanas (a função reprodutiva) e constitui a unidade temporal da
consciência (a função produtiva). Se a imaginação não trabalhasse, não haveria experiência
ou entendimento coerente das coisas do mundo. Isso explica o postulado de que a razão e o
significado emergem de operações de imaginação.

A função criativa da imaginação

Conforme Kant (apud JOHNSON, 1987, p. 157), a mente não trabalha apenas com
estoque fixado de conceitos sobre os quais ela organiza e recebe por meio dos sentidos. Ela
se engaja também no ato criativo de refletir sobre representações em busca de novos
ordenamentos, que geram novos significados. Entra em cena o juízo reflexivo, que não
constitui em si ato de conhecimento, visto que ele não envolve a estrutura determinada de
um campo de representações de acordo com um conceito definido. A reflexão é uma
atividade imaginativa por meio da qual a mente “desempenha” várias representações
(perceptos, imagens, conceitos) em busca de possíveis caminhos pelos quais tais
representações podem ser organizadas, embora esse processo seja livre de controle do
entendimento.
Dito isso, dois tipos de juízos se distinguem: o reflexivo, em que não há um
conceito pré-dado, aplicado automaticamente à experiência; e o determinante, em que se

6
Desenho artístico das letras iniciais do nome de alguém.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 69

tem um conceito definido, uma representação já dada. Kant (1974, p. 270) assim os
distingue:

o Juízo pode ser considerado, seja como mera faculdade de refletir,


segundo certo princípio, sobre uma representação dada, em função de
um conceito tornado possível através disso, ou como uma faculdade de
determinar um conceito, que está no fundamento, por uma
representação empírica dada. No primeiro caso ele é o Juízo
reflexionante, no segundo, o determinante. Refletir (Überlegen),
porém, é: comparar e manter-juntas dadas representações, seja com
outras, seja com sua faculdade-de-conhecimento, em referência a um
conceito tornado possível através disso. O Juízo reflexionante é aquele
que também se denomina a faculdade-de-julgamento (facultas
dijudicandi). (Grifo do autor)7.

No juízo determinante, pensa-se imaginativamente sobre uma série de


representações na tentativa de se chegar a um conceito ou outra representação sobre a qual
elas podem ser organizadas. Um exemplo de juízo determinante é que, quando se vê algo
peludo, que late e de quatro patas, logo se infere que é um cachorro. Ao passo que, no juízo
reflexivo, não se têm garantias de que se pode encontrar um gênero ao qual a espécie de
determinado cachorro pertence, mas é possível refletir imaginativamente sobre a natureza
da espécie do cão e de outras espécies e, às vezes, trazer um gênero unificador para eles. A
reflexão não é guiada por algum conceito que garante sucesso, mas resulta em novas
estruturas que podem fazer sentido.
A beleza natural de uma rosa, por exemplo, permite que se façam juízos. Os
indivíduos sentem prazer com seu cheiro e cor. Logo afirmam: “a rosa é cheirosa” / “A rosa
é bela”. Esses juízos são baseados na experiência, em que há o contato da química do corpo
do indivíduo com a química da rosa. Não são juízos universais porque outros podem ver a
rosa com cheiro e cor diferentes. É, portanto, o espaço da subjetividade.
O “juízo de gosto” consiste na livre representação da imaginação uma vez que
reflete sobre estruturas possíveis do objeto que está sendo experienciado. A livre
representação não é guiada ou determinada por nenhum conceito definido que estrutura
suas operações. Ser “bonita”, então, não é um modo de processamento fixado por um
conjunto de propriedades fixadas por algum conceito de beleza, mas por uma livre
representação reflexiva, com base apenas nos traços formais (da aparência) do objeto.

7
Apesar de a tradução de Kant (1974) utilizar reflexionante, preferimos a utilização de reflexivo por ser mais
produtivo no Português Brasileiro.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


70 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

Assim, não há um conceito de beleza que especifica um conjunto de propriedades


partilhadas por todas as coisas belas (JOHNSON, 1987, p. 160). É com base no
reconhecimento da atividade reflexiva da imaginação, à qual a racionalidade se integra, que
Johnson (1987) postula o conceito de “projeção metafórica”.
Segundo Johnson (1987, p. 162), para explicar a existência de uma racionalidade
não algorítmica, “Kant usa a imagem de uma águia com um relâmpago nas garras para
simbolizar o poderoso rei dos céus – Júpiter.” A imagem da águia não representa o que está
em nossos conceitos de sublimidade e majestade da criação, mas possibilita que a
imaginação atue sob um número de representações semelhantes, que despertam o
pensamento e podem ser expressas por um conjunto determinado de palavras. Nessa
representação simbólica, o símbolo aponta para a coisa simbolizada. O exemplo é, portanto,
um tipo de projeção metafórica, racional e imaginativa porque relaciona coerentemente
dois sistemas de representação.
Outro exemplo apresentado por Kant é a referência que ele faz a um poema de
Frederick, o Grande. No poema, a imaginação trabalha no pensamento por meio de um
processo projetivo em que estruturas de um domínio – dias de verão − são projetadas para
ordenar nosso entendimento de outro domínio: o fim da vida. Novamente, aliam-se
racionalidade (processo/produto lógico-objetivo da mente) e imaginação (processo/produto
perceptual/subjetivo da mente). Isso prova que a imaginação não é meramente subjetiva,
mas apresenta componentes de racionalidade, já que existe coerência na projeção de um
domínio para outro.
Para Kant, então, a apresentação de um conceito pode ser feita de dois modos:
direta e indiretamente.
A apresentação direta (ou esquemática) verifica-se no ato de fornecer um objeto
sensível correspondente ao conceito. Alguém pergunta, por exemplo, o que é um
“cachorro”. Coloca-se, por exemplo, na presença da pessoa, um cachorro chamado Zobie e
tem-se a instanciação física de um conceito (JOHNSON, 1987).
“A apresentação indireta (ou simbólica) se dá quando existe a necessidade de
ilustrar um conceito para o qual nenhuma percepção do sentido é adequada. Então, usa-se
alguma aparência física para apontar indiretamente a ideia que se quer expressar”.
(JOHNSON, 1987, p. 163-164). Para falar de imortalidade, por exemplo, que não tem uma
instanciação na natureza, precisa-se usar linguagem ou imagem simbólica para apontar
indiretamente o fenômeno.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 71

Considerações finais

O tratamento da imaginação em Kant é complexo, recheado de termos técnicos e


sujeito a certas limitações. Kant procurou mostrar por que e como não haveria experiência
significativa sem a operação da imaginação. Além disso, entendeu a imaginação como uma
capacidade de organizar representações mentais dentro de unidades significativas
compreensíveis ao ser humano. A imaginação, segundo ele, conecta estruturas pelas quais
torna possível a existência da linguagem, da cognição e das experiências coerentes. As
quatro funções da imaginação podem ser sintetizadas na figura 2, a seguir:

FUNÇÕES DA
IMAGINAÇÃO
EM KANT

REPRODUTIVA PRODUTIVA ESQUEMATIZADORA CRIATIVA


Fornece representações Constitui-se de modelos Media a relação entre os É livre. Uma atividade não
unificadas (imagens categoriais puros conceitos puros e os governada por regras.
mentais e perceptos) no impostos pela estrutura conteúdos da sensação, Remodela padrões existentes
tornando possível a para gerar novos
tempo. transcendental da
significados. Está na base do
consciência humana. conceptualização. que se conhece como
projeções metafóricas. Não é
algorítmica, nem
proposicional.

Figura 2: Funções da imaginação em Kant

Embora as considerações de Kant (1974, 1980) sobre imaginação tenham


influenciado Johnson (1987) na elaboração dos conceitos de esquema imagético e de
projeção metafórica, segundo Johnson (1987), nelas não há uma filosofia unificada. Além
disso, há uma lacuna entre a função criativa, por um lado, e as funções reprodutiva,

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


72 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

produtiva e esquematizante, por outro. O que conecta essas funções é que elas envolvem o
ordenamento estrutural de representações mentais dentro de unidades significativas com a
experiência.
Ainda segundo Johnson (1987), existem dois problemas na visão de Kant sobre
imaginação: o primeiro diz respeito à falta de clareza da natureza dual da imaginação, que
se constitui como ponto intermediário entre a conceptualização e a sensação; o segundo é
que existe em Kant uma lacuna entre a explicação do aspecto intelectual/racional e o
sensível/material.
Outros problemas estão relacionados ao fato de que: 1) a separação rígida do
entendimento e da sensação afasta a imaginação para uma classe de segundo status; 2) os
Juízos-de-gosto nunca podem ser determinantes ou constitutivos da experiência, nem
podem ser cognitivos; 3) aos Juízos reflexivos é conferido o status de racionalidade
inferior; 4) Kant foi forçado, por sua divisão metafísica, a considerar a atividade
imaginativa da representação simbólica (indireta) um impedimento para a cognição teórica.
Kant (1974) afirma que os indivíduos se voltam para a representação simbólica (ou
projeção metafórica) apenas quando eles têm uma “pobreza de conceitos” no entendimento
de algum aspecto da experiência.
Diante desses problemas, Johnson (1987, p. 167) propõe a negação da lacuna entre
ENTENDIMENTO, IMAGINAÇÃO e SENSAÇÃO. Nega também a separação entre o
analítico e o sintético, o conhecimento a priori e o conhecimento a posteriori, o formal e o
material, com base no consenso da filosofia contemporânea. Segundo o autor, se se
considerar esses polos num continuum, então, não haverá necessidade de excluir a
imaginação de algum suposto domínio primitivo do conteúdo cognitivo ou da estrutura
objetiva. Propõe, assim, que a imaginação pode ser entendida como uma atividade de
estruturação por meio da qual se conseguem representações coerentes, padronizadas e
unificadas. Ela é indispensável para a habilidade humana de dar sentido à experiência,
sendo, portanto, central para a racionalidade, que procura encontrar conexões significativas
para fazer inferências e resolver problemas.
Em oposição a Kant, Johnson (1987) afirma que a criatividade ocorre em todos os
níveis da organização experiencial humana e não apenas em raros momentos, quando novas
ideias são descobertas. É modesta e passa despercebida, por um lado, e está na base dos
mais notáveis atos de inovação, por outro.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação... 73

Referências

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 2. ed. Trad. de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.

CASASANTO, D. Different Bodies, Different Minds: the body-specificity of language and thought.
Current Directions in Psychological Science. v. 20, n. 6, p. 378-383, December 2011. Doi:
http://dx.doi.org/10.1177/0963721411422058.

CHOMSKY, N. Knowledge of language: its nature, origin and use. New York: Praeger, 1986.

COUTO, H. H. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília:
Thesaurus, 2007.

DESCARTES, R. Discurso e método. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os
Pensadores).

HEBECHE, L. A imaginação em Descastes e Kant. Disponível em:


<http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/hebeche.pdf>. Acesso: 14 nov. 2011.

HOUAISS, A. et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

______. Dicionário eletrônico: língua portuguesa. [S.l.]: Objetiva, 2009.1 CD ROM.

HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar aiex. Acrópolis. Versão
para eBook. Domínio publico, 2005. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ensaio.pdf>
Acesso em: 14 nov. 2011.

JOHNSON, M. The body in the mind: the bodily bases of meaning, imagination, and reason.
London: The University of Chicago Press, 1987.

KANT, I. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. Seleção de Marilena de Souza Chauí
Berlinck. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

______. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril
Cultural, 1980. (Coleção os Pensadores).

KÖVECSES, Z. Metaphor, language, and culture. D.E.L.T.A. Documentação de Estudos em


Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 26, n. esp., p. 739-757, 2010.

______. Metaphor in culture: universality and variation. Cambrigde: Cambridge University Press,
2005.

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae


74 LEOSMAR APARECIDO DA SILVA • Racionalismo e empirismo: o papel da imaginação...

______. Universalidade versus não universalidade metafórica. Trad. Maitê Gil e Tamara Melo.
Cadernos de tradução, Porto Alegre, n. 25, p. 257-277, jul./dez. 2009.

LAKOFF, George. Women, fire, and dangerous things: what categories reveal about the mind.
Chicago and London: The University of Chicago Press, 1987.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Tradução coordenada por Mara Sophia
Zanotto. Campinas: Mercado de Letras, 2002. [Original publicado em 1980].

MASIP, V. Interpretação de textos: curso integrado de lógica e linguística. São Paulo: E.P.U.,
2001.

MIOTO, C.; SILVA, M. C. F.; LOPES, R. E. V. Novo manual de sintaxe. 3. ed. Florianópolis:
Insular, 2007.

MORA, J. F. Dicionário de filosofia. Tomo II (E-J). São Paulo: Loyola, 2001.

SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método. Trad.


Vergílio Ferreira, Luiz Roberto Salinas Fortes, Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Coleção Os Pensadores).

SILVEIRA, F. L. da. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo transcendental. Caderno


Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 19, n. esp., p. 28-51, 2002.

Recebido em 15 de junho de 2013.


Aceito em 25 junho de 2013.

LEOSMAR APARECIDO DA SILVA


Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor da Universidade
Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected].

Via Litterae • Anápolis • v. 5, n. 1 • p. 53-74 • jan./jun. 2013 • http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae

Você também pode gostar