Entrevista - Paulo Henriques Britto

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Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1952), além de poeta, é contista, tradutor e

professor da PUC-Rio. Sua obra poética, desde a estreia em Liturgia da matéria (1982),
apresenta interesse pelas formas fixas, cujos limites instigam o autor também pelo
desafio no instante da criação. Poeta que discute a contenção dos versos e das emoções,
Paulo recebeu os prêmios Alphonsus de Guimarães, por seu Trovar claro (1997), e
Portugal Telecom por Macau (2004).

A epígrafe de Emily Dickinson, que abre seu mais novo livro, Nenhuma arte, em
tradução do próprio autor diz: “Não tivesse eu visto o Sol/ Sofrível a sombra seria/ Mas
a Luz fez de meu Deserto/ Terra ainda mais baldia”. Tais versos sugerem a discussão
sobre a iluminação interior, mas também sobre a luminosidade do processo criativo do
poeta — temas que percorrem o livro. Outro tema importante, a perda, aparece já nas
primeiras páginas — propondo um diálogo com Bishop — e se mantém como questão
norteadora atravessando a obra como um todo.

A escrita como tentativa de domar o caos é um dos pontos que vemos nesta entrevista
para o Pernambuco, na qual Paulo também fala sobre os procedimentos de elaboração
de Nenhuma arte, sobre sua poética e sobre poesia em geral. Vamos a ela.

Como você vê Nenhuma arte em relação à sua obra? Há continuidade do projeto de


Formas do nada que, por sua vez, valoriza o vazio, o menor (como anteriormente
sugerido em Mínima lírica)?

Creio que sim. A valorização do menor, do mínimo, é, para um


poeta do nosso tempo, uma simples constatação do óbvio. Sim, a
minha produção dos últimos dez anos, ou mais, parece ter uma
temática em comum. E, como é inevitável, a temática de quem se
aproxima da barreira dos sessenta anos e depois a ultrapassa, é
cada vez mais a perda. Assim como, no início da trajetória, os
temas mais comuns são as descobertas do amor, da maturidade, do
potencial da palavra.

A vida na sua literatura não se romantiza, tampouco se mitifica. Ao contrário, por vezes
passa a sensação de resignação com o que nos é dado neste mundo. Na sua poesia, como
diria Drummond, a vida é uma ordem?

A meu ver, o acaso é o grande motor da realidade. A vida, como


parte da realidade, é essencialmente caótica, sempre regida pela
entropia. Nós, seres humanos, é que ficamos o tempo todo
tentando impor ordem, conectar eventos através de nexos causais.
Essas tentativas só podem obter êxito em caráter parcial e
provisório, necessariamente, porque elas atuam no sentido
contrário à própria natureza do real. A poesia é, entre outras
coisas, uma tentativa de ordenar o caos das sensações e dos
sentimentos, de criar uma ordem que possa ser utilizada pela
própria pessoa que escreve, e também — espera-se — pelas que
vierem a ler. Essas tentativas dão prazer, ou ao menos atuam no
sentido de reduzir o pavor causado pela constatação de que tudo
tende à desorganização, à morte. Mas é claro que, para a grande
maioria da humanidade, a poesia, a arte em geral, é
desnecessária. Para essas pessoas, existe um texto sagrado já
pronto, o qual prova que na verdade a realidade é perfeitamente
organizada e caminha para um final feliz; todas as evidências em
sentido contrário são taxadas de ilusões. Como na verdade esse
texto sagrado não prova nada, é uma ficção como outra qualquer,
passa-se a criminalizar aquele que não acredita nele — o castigo
é a perdição eterna, e em tempos passados no Ocidente podia ser
a fogueira, como aliás ainda é em alguns países do Oriente Médio
— e a condenar a inteligência e a vontade de saber. Não é à-toa
que o pecado de Adão e Eva foi comer o fruto do conhecimento.
Não é à-toa que os líderes religiosos e políticos, de modo
geral, com raras exceções, odeiam a inteligência e o
conhecimento, e desprezam a arte.

O novo livro se inicia com a palavra nenhum e termina com nada. São quase 110
ocorrências do vocábulo não ao longo dos poemas — além de tantos outros do campo
semântico das negativas. O que tanto precisa ser negado, Paulo?

As crenças irreais a que nos apegamos. A tentação de tomar uma


ficção como realidade última é muito forte: afinal, ela promete
o fim de todos os temores. As religiões, os sistemas ideológicos
que explicam tudo, são formas de lobotomia voluntária. A negação
é uma afirmação da natureza dura desse real, que se tenta
disfarçar com ficções edulcoradas.

É influência de Cabral e Kafka esse uso da emoção contida? Aliás, há contemporâneos


seus que te influenciem — mesmo você sendo poeta de obra inquestionavelmente
consolidada?

Sim, Cabral e Kafka são dois dos meus autores prediletos, dos
que mais leio e releio. Tenho a maior admiração pela secura, a
linguagem que diz o mínimo e sugere o máximo. Também admiro o
excesso, mas os artistas do excesso não são os que eu tento
emular. Quanto à questão da influência, acho que depois de uma
certa idade você já não é mais muito influenciável. Mas leio
muita poesia contemporânea, e é possível que eu ainda pegue
alguma coisa aqui e ali.

“Nenhuma arte” também nomeia a série de poemas iniciais que, junto a “Nenhum
mistério” promovem diálogo com Elizabeth Bishop. A perda, que não está nos títulos,
claramente é o tema central. Como você pensa o uso do perder para a elaboração desses
poemas?

É o tema que se impõe, como já comentei, a uma altura da vida em


que o que mais acontece com a gente é sofrer perdas. E todo
escritor — talvez principalmente o poeta lírico — trabalha
basicamente com a sua vivência do momento em que escreve, além
do repertório da memória. Bishop foi uma poeta que descobri
relativamente tarde, quando eu já havia mais ou menos decidido o
quê e como eu queria escrever, e que mesmo assim teve um certo
impacto sobre a minha escrita, creio eu. Eu diria que a poesia
dela reforçou uma tendência que já existia no meu trabalho, e me
apresentou algumas sugestões novas.

Podemos observar uma mistura de grande erudição sintática a expressões populares,


gírias, palavras chulas. Isso faz parte dos movimentos de ir e vir de proposições ao
pensamento (se aplicando à linguagem) muito comum nos seus poemas?

Não entendo bem o sentido de “erudição sintática” — eu tento


utilizar a sintaxe mais direta, mais próxima à coloquialidade.
Evito ao máximo recorrer a inversões sintáticas por motivos de
metro ou rima (o que não quer dizer que isso não aconteça muito
de vez em quando). Quanto ao vocabulário, também uso uma
linguagem bem coloquial, mas se preciso de um termo mais
técnico, mais literário, também posso utilizá-lo, sem nenhum
problema. Creio que o que você chama de “movimentos de ir e vir
de proposições” é uma referência à estrutura discursiva lógica,
ou paralógica, ou mesmo pseudológica, que eu quase sempre adoto.
Nunca consegui trabalhar com imagens surreais, com non sequitur,
essas coisas que eu admiro tanto na poesia dos outros. Isso
porque, como já foi explicado, minha poesia é sempre uma
tentativa de pôr ordem no caos.
Certa vez, em entrevista, você disse que quando se pega uma forma, você nunca
compra o pacote completo. A sua poesia faz uso de formas presas (que poderia sugerir
uma ideia de ordem) com uma linguagem próxima do coloquial. Quais desafios você se
impõe na hora de escrever?

A forma fixa, para mim, é uma espécie de disciplina, sem dúvida,


mas é também, e principalmente, uma fonte de “inspiração”.
Alguns dos meus poemas partem de ideias abstratas, mas são uma
minoria; no mais de vezes o ponto de partida é uma palavra, ou
um sintagma, ou simplesmente um padrão formal, um esquema
métrico ou estrófico. Há no meu livro novo um poema que partiu
de uma rima, uma rima que me pareceu interessante, entre duas
palavras que eu nunca havia percebido que rimavam entre si. Esse
é o ponto de partida. O desafio é chegar ao fim, em primeiro
lugar, conseguir chegar àquele ponto em que, como disse Cabral,
faz clique; mas é também chegar ao fim, a algum tipo de fim, e
constatar que o poema não é inteiramente redundante, não
funciona de modo muito semelhante a outro ou outros que já li,
ou mesmo que já escrevi.

Enquanto leitor e professor da poesia que é feita hoje no Brasil, como você vê a opção
majoritária pelo verso livre também aliada à coloquialidade?

O verso livre é uma forma traiçoeira. Na verdade, não é uma


forma, e sim uma pluralidade imensa de formas, que abre um leque
infinito de possibilidades. Por isso mesmo, como costumo dizer,
usar verso livre é a maneira mais fácil de escrever poesia ruim,
e a mais difícil, ou uma das mais difíceis, de escrever poesia
boa. Boa parte do verso livre publicado nos últimos cento e
poucos anos só é poesia porque é dividida em versos; no mais,
não há nenhum trabalho de linguagem que seja remotamente
poético. Mas nas mãos de um grande mestre — e, no nosso idioma,
os maiores mestres do verso livre são, a meu ver, Pessoa e
Bandeira — o verso livre rende resultados que não seriam
possíveis em nenhuma forma tradicional. Quanto à coloquialidade,
eu diria que é a única conquista do modernismo em relação à qual
me parece impossível voltar atrás. É perfeitamente possível
escrever hoje em dia poemas bons e relevantes usando o
decassílabo, o soneto, a sextina, o diabo — mas não consigo
imaginar um poema escrito hoje em dia, utilizando o vocabulário
precioso, a dicção nobre e a sintaxe arrevesada dos parnasianos,
que possa me interessar. Essas coisas, tal como a epopeia, a
máquina de escrever e o bonde puxado por burro, pertencem a um
passado que não volta mais.

Em determinado poema, está dito que, se não é sempre possível amar a vida, temos
sempre o direito de editá-la. Escrever é se editar?

Sem dúvida. A escrita em geral, e a poesia em particular, é mais


uma oportunidade de se impor, ou tentar impor, uma ordem causal
ao caos aleatório da realidade. Editar a vida é tentar ver uma
lógica nela, construir cadeias de causalidade, elaborar
explicações para as coisas que aconteceram, justificativas para
as decisões que foram tomadas (muitas vezes por motivos
inteiramente aleatórios).

O que tem no Paulo-vivo que se perde (ou se ganha) no Paulo-livro?

Você está me pedindo para comparar a realidade vivida com a


escrita? Bom, não dá para comparar. A experiência viva é a base
de tudo, e o que ela tem de mais maravilhoso é também o que ela
tem de mais terrível — o fato de ser regida pelo acaso, de
frustrar toda e qualquer tentativa de controle, de imposição de
uma ordem. E é esta a grande vantagem da criação artística: ela
pode ser, em boa parte (ainda que não de todo), controlada,
construída de modo calculado e racional, com princípio, meio e
fim. As pessoas que têm fé identificam uma coisa com a outra, o
vivido com o lido (ou ouvido, ou decorado), acreditam na ficção
que elas criam (ou compram pronta), a qual sempre prova por a
mais b que tudo que aconteceu tinha que acontecer. Creio que foi
Hume que disse que todas as superstições se resumem à crença na
causalidade. Ele tem razão, mas além de causalidade há também a
crença na teleologia — ficções como destino e providência
divina.

Da série “Caderno” lemos: o fracasso se tornou/ a própria textura da vida (...) Assistir
à própria queda/ agora é todo o espetáculo. Seus eu-líricos encarnam esse movimento
de menos valia ou da própria sensação de fracasso em relação à escrita ou à vida. Esse é
um procedimento irônico diante da sua grandeza de poeta reverenciado e
superpremiado?
Não vejo ironia nenhuma nessa afirmação. A experiência vivida é
sempre um fracasso, na medida em que inevitavelmente se
constitui em um acúmulo de perdas, culminando na morte.

Que luz é essa que, ao nos perpassar, amplifica a sensação de perda e abandono?

A lucidez?

E o mundo vale a nossa lucidez?

Boa pergunta.

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