Ensaio Sobre Os Zoes

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ENSAIO – SOBRE OS ZO'È Rosa Cartagenes

Zo' é: os Tupi da f r ont eir a do mundo

Eles já foram chamados de "Poturús" (uma referência ao tembetá de madeira


"poturú", que todos utilizam a partir de determinada idade) e como "os amáveis
selvagens redescobertos", numa alusão crítica a divulgação na mídia internacional de
sua docilidade e espontânea sociabilidade diante das câmeras globais. Cá entre eles, são
apenas "Z o'é", ou simplesmente "N ós", a primeira pessoa pronominal. N ão
arriscaríamos dizer tratar-se de uma "autodenominação", como a antropologia política
costuma rotular, mas, indubitavelmente, uma expressão identificadora que dimensiona
uma sociedade centrada em si mesmo (como tantas outras sociedades indígenas já o
foram, hoje extintas ou em acentuado esfacelamento populacional e cultural) e em
crescente processo de descoberta e espanto diante do "outro" - a gente que vem de
além da fronteira do mundo, os "kirahí".

LOCALIZAÇÃO & H IST ÓRICO:

O s Z o'é habitam seu território "tradicional", ou de usufruto imemorial para as


gerações mais recentes, situado entre os rios Cuminapanema, Erepecuru e Urucuriana
– municípios de Ó bidos e Alenquer, noroeste do Estado do Pará, Amazônia Brasileira.
Falantes monolíngües de idioma da família Tupi-Guarani, foram conhecidos no final dos
anos 80 como um dos últimos povos Tupi a entrar em contato efetivo com a
sociedade ocidental. A população atual é de 224 indivíduos (julho/2005), e verifica-se
franco crescimento demográfico, graças principalmente à estabilização do quadro de
saúde proporcionado por uma ação contínua e atenciosa por parte da Frente de
Proteção Etnoambiental Cuminapanema, instância local da CGII-Coordenação Geral de
Índios Isolados-FUN AI.
O histórico de sua presença nesta região reporta a contatos esporádicos, por
vezes conflituosos, com elementos eventuais da população envolvente: mateiros,
caçadores, castanheiros, bem como movimentos de interiorização estimulados por
atritos com povos indígenas rivais - talvez grupos Karib que atualmente ocupam a área
onde se situa o Parque do Tumucumaque, ou povos diversos extintos antes que a
Etnografia ou o Estado os tenham registrado a contento.
D esde a década de 70 a FUN AI dispunha de informações referentes a grupos
isolados na região, constatados por sobrevôos realizados pela SUD AM/D N PM
(Superintendência de D esenvolvimento da Amazônia/D epartamento N acional de
Pesquisa Mineral) e o órgão indigenista oficial chegou a editar Portaria e designar
sertanistas para acompanhamento da questão (Portaria CO AMA 25-06-76, criando o
"Posto de Atração Cuminapanema"). Mas o ocaso da então planejada Rodovia
Perimetral N orte levou o órgão indigenista oficial ao adiamento de uma atuação direta,
provavelmente partindo do princípio que, em não havendo ameaça iminente ao(s)
referido(s) povo(s), o "contato" regular não era prioritário ou desejável. N a esteira
desta ausência, no início dos anos 80 a missão evangélica MN TB - Missões N ovas
Tribos do Brasil, braço nacional da N ew Tribes M ission americana, de caráter
fundamentalista e proselitista, lançou-se à empreitada de localizar, atrair e contatar os
índios do Cuminapanema, através de expedições sistemáticas e da construção de uma
base local na faixa sul do território indígena. Após muitas tentativas de aproximação

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rechaçadas e contatos rápidos, enfim os missionários proclamaram o ano de 1987
(novembro) como o ano do "contato" com os Z o'é. N este mesmo ano, a recém criada
CII-Coordenadoria de Índios Isolados (FUN AI-BSB) interdita a "Área Indígena
Cuminapanema-Urucuriana" (Portaria PP- 4098-30/12/87), mas limitações de recursos
financeiros adiam a ação do órgão indigenista na área.
Em 1988 a MN TB alerta à FUN AI o crítico estado de saúde dos Z o'é, o que
deflagra uma batalha institucional que culmina com a expulsão dos missionários em
1991. A disseminação de doenças infecto-contagiosas entre os Z o'é, principalmente
respiratórias, originadas a partir dos contatos esporádicos e sem uma imprescindível
visão sanitária e epidemiológica por parte dos agentes religiosos, que até então
controlavam o processo de aproximação e relacionamento interétnico com os Z o'é,
havia exterminado cerca de ¼ da população indígena de então. As acusações de parte
a parte entre as duas agências persistem até os dias de hoje, dando origem a processo
junto ao Ministério Público e Polícia Federal- encerrado por falta de provas- e gerando
farto material difamatório na imprensa. O s Z o'é são capazes de listar ainda atualmente
os nomes e parentesco de mais de 40 indivíduos que teriam morrido em virtude de
contágio, entre os primeiros contatos com os missionários e o ano de 1989, ano no
qual a FUN AI passou a registrar regularmente nascimentos e óbitos.
Em 1991 a FUN AI assume presença exclusiva entre os Z o'é, em meio ao caos
de um grave quadro de morbi-mortalidade, sedentarização da população em torno dos
postos das duas agências de contato, que coexistiram e se confrontaram dentro do
território indígena entre 1989-1991, crescente dependência alimentar e de bens
supérfluos e, sobretudo, progressiva desestruturação sócio-cultural dos Z o'é. A partir
de1989, apoiados pela FUN AI, antropólogos do N HII/USP- D ominique T. Gallois, Luís
D .B. Grupioni e N adja H . Bindá - realizaram levantamentos etnográficos diversos e
trabalhos de campo no território indígena, o que permitiu consubstanciar todo o
processo identificador e delimitatório da Terra Indígena Z o'é (Portaria 309/Pres.
FUN AI-04/04/97 e posteriormente P.D .365 de 23/04/2001). A partir de 1992 a
lingüista tupinóloga Ana Suelly Arruda Câmara Cabral tem desenvolvido em campo
estudos classificatórios da língua Z o'é, apoiada pelo Prof.Aryon D all"Igna Rodrigues,
dando origem ao primeiro dicionário da língua Z o'é, em processamento.

ASPECT O S CULT U RAIS:

N ão beligerantes por opção, os Z o'é parecem muito distantes da famosa verve


guerreira dos Tupi históricos de outrora: ao contrário, são eminentemente
negociadores e avessos ao confronto. Sua coesão social traduz-se por constantes
movimentos de concentração e dispersão de grupos familiares e aliados por todo seu
território, em constantes transações de bens materiais, prestações de serviços,
negociações matrimoniais e trocas cerimoniais. O casamento poligâmico, tanto
masculino quanto feminino, é um dos pilares fundamentais da extensa rede de alianças
entre os diversos grupos familiares, com relevância para a poliandria, que entre os
Z o'é é altamente estimulada e desejável socialmente como esteio das relações
familiares e políticas. Ressalte-se que entre os Zo'é a poliandria não é eventual nem
apenas "tolerada" como mecanismo de equilíbrio demográfico, como ocorre entre
alguns povos Tupi da atualidade (a pirâmide populacional Z o'é mantém notável
equilíbrio numérico por gênero), mas assume o caráter pleno descrito por Cooper
(J.M.Cooper, citado por R.B. Laraia, 1963), ou seja, "formas de matrimônio que são
sancionadas socialmente e padronizadas culturalmente, envolvendo cooperação
econômica e coabitação residencial, bem como todos os privilégios sexuais." N a

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sociedade Z o'é, é comum que uma mulher, particularmente quando tem várias filhas
(mas não necessariamente), case-se com vários parceiros, alguns dos quais poderão
futuramente desposar suas filhas. N este sistema, a tendência à uxorilocalidade é
marcante, ressalvando-se o fato de que a mãe da esposa de um indivíduo
freqüentemente ser igualmente sua esposa, o que virtualmente eliminaria a categoria
"sogra". Aliás, os casamentos múltiplos e sucessivos entre os Z o'é parecem ser um dos
motivos para a limitada utilização dos "termos de parentesco" enquanto vocativos, pois
as múltiplas possibilidades de matrimônios diversos através do tempo, que basicamente
divide os outros em cônjuges virtuais ou interditados, imprime aos Z o'é a
peculiaridade de ser uma sociedade Tupi onde a maioria das vezes as pessoas são
chamadas por seus nomes próprios - cite-se ainda que o indivíduo assume diversos
nomes próprios ao longo da vida.
Aspectos de cooperação econômica e aliança política também são
preponderantes na definição dos matrimônios múltiplos, pois ocorrem casamentos
poligâmicos mesmo quando não existem descendentes imediatos disponíveis para um
casamento posterior. E muitos casamentos se consubstanciam como uma espécie de
"compensação" relativa a um matrimônio anterior entre duas famílias, numa
permanente busca de reciprocidade e proporcionalidade que sedimenta as relações
políticas e econômicas de grupos aliados através do tempo.
Em geral, as negociações matrimoniais são conduzidas por homens maduros
dos núcleos familiares, alguns homens influentes que os Z o'é eventualmente (e apenas
contextualmente) referem-se como "yü", palavra que significa suporte, esteio: é a
mesma palavra aplicada à viga mestra da casa, à coluna vertebral em relação ao corpo,
ao cilindro central de uma lanterna. É uma condução sutil, pois todos os parentes
imediatos findam opinando, inclusive rememorando eventos passados ou conjeturando
futuros. D iríamos que os "yü" são homens vividos e empreendedores, que ao longo da
vida notabilizaram-se pela iniciativa na abertura de novos caminhos e "lugares"
(roçados, construção de casas, estruturação ou reativação de "aldeias"), bem como nas
negociações e manutenção de alianças políticas. A cultura Z o'é não reconhece chefes
nem xamãs, e os "yü" poderiam ser vistos apenas como diluídas lideranças nucleares;
de qualquer forma, sustentáculos do modo de ser cultural dos Z o'é, e de seu difuso
modelo de poder coletivamente pulverizado.
Tais aspectos intergeracionais dos casamentos poligâmicos entre os Z o'é
asseguram extensas redes de alianças familiares ao longo de várias gerações. É comum,
ou mesmo ideal, que um homem se case com uma mulher de uma ou duas gerações
anteriores, e durante este casamento conviva por vários anos com uma filha de um
outro matrimônio desta mulher (ou mesmo uma neta), a qual, futuramente, após a
puberdade da mesma, será sua esposa. Homens maduros ou mesmo idosos casam-se
com meninas que serão ensinadas e treinadas por suas outras esposas adultas, e ao
atingirem a puberdade poderão ser cedidas (ou não) em casamento a algum dos
descendentes jovens de seu marido. E homens muito jovens, pré-adolescentes ou
adolescentes, se casam com mulheres maduras ou idosas que, de certa forma, se
tornam "condutoras" de seu aprendizado social até que surja a oportunidade de um
casamento com uma mulher de sua geração. As mulheres mais velhas desempenham
importante papel pedagógico e político, visto que são as responsáveis pela iniciação
sexual e transmissão prática aos homens jovens de inúmeros aspectos culturais e de
subsistência relativos ao viver Z o'é. Enfim, o casamento entre os Z o'é – e não apenas
o casamento em si, mas também relações sexuais eventuais negociadas como troca de
favores ou de prestação de serviços – permeiam e delimitam um grande número de
relações políticas e econômicas que se expressam em alianças ou evitações formais

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observáveis cotidianamente. A intensa mobilidade geográfica de núcleos e famílias, em
constantes deslocamentos por caminhos múltiplos e localidades de usufruto sazonal,
promove relacionamentos sociais altamente dinâmicos, alimentados por eventos e
aproximações gerados pelas atividades econômicas e cerimoniais.

N a cultura material, os Z o'é compartilham vários elementos culturais do que


chamaríamos de "tradição Tupi": são caçadores por excelência (caçam exclusivamente
com arco e flecha), dominam a minuciosa tecnologia da produção da mandioca
( M anihot utilissima) e seus derivados e seu principal produto de coleta é a castanha-do-
pará ( Bertolletia excelsa) , importante complemento protéico armazenável praticamente
durante todo o ano. O s roçados são familiares, e além da mandioca cultivam
tubérculos diversos ( ipomoea e dioscorea) , pimentas (capsicium), vários tipos de bananas
(musáceas) , bem como o algodão ( Gossypium sp.), utilizado para a confecção de
adereços, amarrações de flechas e as indispensáveis tipóias, onde as crianças pequenas
são carregadas. As redes tradicionais, bastante duráveis e pesadas, são confeccionadas
com a entrecasca da castanheira, e apenas recentemente alguns Z o'é elaboraram
modelos similares com o algodão nativo, bem mais leves, e a um custo ecológico mais
razoável. O urucum ( Bixa orellana) é indispensável como tintura das peças de algodão, e
como adorno corporal na pintura feminina – a pintura extensa do corpo com o
vermelho do urucum, para as mulheres, é elemento estético imprescindível para
denotar embelezamento e asseio, assim como a tiara de penugem de urubu-rei, as
muitas pulseiras de ouriço da castanha e a pulseira mais larga, incrustada com
fragmentos da carapaça do sowe'hú, um tipo de caramujo da floresta, e ainda brincos de
sementes com acabamento de fios torcidos de algodão. O s homens utilizam estojo
peniano confeccionado com tiras da palha da palmeira sakuri’ruãm, adornam-se com
colares de dentes, sementes e fragmentos de tucumã (apreciam também incluir
pequenos objetos ocidentais, como partes coloridas de plásticos, de metais ou zíperes,
numa reinvenção estética de design reciclado...), amarrações de algodão e
eventualmente com pinturas escuras de jenipapo (Genipa americana) .
O adorno labial dos Z o´é, o m'berpót, é o distintivo étnico por excelência, e a
referência visual coletiva do ser Z o'é. Confeccionado com a madeira clara e macia de
uma árvore nativa, o poturú, chega a medir 08 cm de diâmetro e 20 cm de
comprimento, nos adornos de adultos, e caracteriza a face Z o'é. É ostentado com
orgulho como distintivo de beleza e identidade social , e segundo a cosmologia Z o'é,
sua utilização foi ensinada pelo antepassado Sihié'abyr (o falecido Sihiét) , uma espécie de
"herói cultural" quase onipresente na tradição oral no que se refere ao saber Z o'é. A
cerimônia de furação da área inferior do lábio (feita com um osso apontado da perna
de macaco coatá - gênero Ateles) e implante do primeiro e pequenino m'berpót é um
dos ritos de passagem mais importantes de inclusão e vínculo social coletivo, e tem
ocorrido por volta dos 07 anos nas meninas e 09 anos nos meninos, após o que será
substituído periodicamente por adornos maiores, até atingir o tamanho adulto.
Utensílios em cestaria são confeccionados pelas mulheres (abanos, tipitis,
peneiras, pequenos cestos para guardar penas e pontas de flechas), mas ambos os
sexos confeccionam a mochila vegetal descartável, o pehít, trançado com as folhas da
palmeira sakuri e extremamente útil para transportar qualquer carga eventual que surja
em meio aos muitos trajetos pela floresta. A arte plumária exemplifica-se na cuidadosa
confecção das flechas e da tiara feminina, feita da alva penugem do peito do urubu-rei
( Sarcoramphus papa) , bem como os elaborados adornos (cocares e braceletes)
utilizados exclusivamente durante os seh'py, as festas rituais promovidas entre os
diversos núcleos como trocas cerimoniais.

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A cerâmica é utilitária e fundamental na produção alimentar, pois os caldos,
farinhas e beijús dos Z o'é são cozidos ou assados nas grandes panelas de cerâmica,
escuras e lustrosas, que assumem diversos formatos e tamanhos e são confeccionadas
através de minucioso processo tradicional dominado pelas mulheres e repassado de
geração a geração. Alguns indivíduos adquiriram panelas de alumínio nos primeiros
anos de relacionamento interétnico, e ainda é um item cobiçado pela leveza de seu
transporte, mas é de praxe que nas localidades de usufruto constante sempre
permaneça certo número de panelas tradicionais básicas, que embora tenham uma
"dona" (a mulher que as confeccionou) torna-se de uso coletivo, pois todos os
eventuais passantes podem dispor da utilização das mesmas, desde que mantidas no
local.
A pesca foi incrementada com a aquisição de anzóis metálicos e linhas de nylon,
mas foi mantida a pesca tradicional com flechas-arpões artesanais e com o timbó
( Lonchocarpus sp), que retira o oxigênio de pequenos trechos represados, estonteando
os peixes. As caçadas costumam ser individuais, mas determinadas épocas do ano são
marcadas pela abundância de determinado animal em certas áreas do território (como,
por exemplo, o "tempo macaco-gordo" ou o" tempo do urubu-rei"), o que movimenta
contingentes para acampamentos estratégicos, onde pequenos ou grandes núcleos se
estabelecerão durante uma temporada, dando continuidade ao viver Z o'é com todas as
suas minúcias e dinâmica social. A abundância de porcos-do-mato (queixada, Tayassu
pecari pecari, em Z o'é: tadza'hú), que se deslocam em grandes bandos em certas
épocas, promovem o excitante espetáculo da caçada coletiva aos mesmos, onde
enquanto os homens correm velozmente ao encalço dos porcos, tentando abater à
flechadas o maior número possível, as mulheres se acotovelam para a captura dos
filhotes assustados, que serão levados como xerimbabos (em Z o'é, 'raimbé) e criados
com muito zelo. O s Z o'é criam uma infinidade de animais silvestres, quando têm a
oportunidade de capturá-los ainda infantes, mas mantém uma relação especial com os
porcos-do-mato, que se tornam como cães familiares, avisando com seu trincar de
dentes característico a aproximação de estranhos ao espaço doméstico. Aliás, os Z o'é
relatam que num tempo anterior à recriação da humanidade pelo demiurgo N inpuhãn
(destruída num cataclismo onde são citados um grande dilúvio e uma saraivada de fogo
caído dos céus), alguns tadza'hú foram transformados em Z o'é, o que lhes reporta
miticamente alguma afinidade genealógica com os queixadas.
D iversos ritos de passagem marcam períodos simbólicos do desenrolar da vida
Z o'é: há cerimônias associadas ao nascimento, ao pós-parto, à furação do queixo para
inserção do primeiro mber'pót, à primeira menstruação das meninas e ao primeiro
queixada caçado pelo menino, à primeira anta caçada pelo adolescente, aos
matrimônios formais e aos ritos fúnebres. Atração de sortilégio utilizando partes dos
animais cobiçados (para o sucesso na caça), bem como banhos e outros
procedimentos de "purificação" (o conceito de saúde entre os Z oe é construído a
partir da ausência de impurezas e corpos ou entes estranhos em seu próprio corpo)
são rituais mais cotidianos, alimentados no seio familiar e sem alarde, quase sempre
orquestrados com a cadência de cânticos milenares que se situam entre a música e o
diálogo ou monólogo ritual. O s Z o'é são de intensa musicalidade, e é muito comum
que as mulheres desempenhem a maior parte das tarefas domésticas murmurando
seus cantos rituais, como é freqüente depararmos com os homens andando pelos
caminhos da mata com uma das mãos em concha sobre o ouvido, entoando baixinho
sua música e acompanhando seu tonal em ensimesmado exercício acústico.
O ritual coletivo mais marcante, que alimenta a dinâmica social entre os
diversos núcleos Z o´é sem dúvida é o "Seh'py", que é o nome da festa e também o

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nome da bebida servida abundantemente a partir de determinado momento da festa. A
bebida, naturalmente fermentada, pode ser feita de qualquer fruto ou tubérculo que
esteja sazonalmente disponível: bacaba, cará, patauá ou outros, desde que seja em
grande quantidade. A festa, assim chamada pelo nome genérico da bebida, pode ser
uma comemoração de aliança matrimonial, uma retribuição cerimonial a uma
homenagem anterior ou o palco para a furação sublabial de uma criança da família. Mas
é sempre pensada e planejada com alguma antecedência (mesmo porque envolve a
disponibilidade ecológica de alguns elementos rituais, como a matéria prima para a
bebida e as fibras para a confecção da longa saia de dança utilizada pelos homens, o
"sy'pi", que é um elemento de purificação ambiental), sendo precedida por muitos
convites rituais e preparações simbólicas.
O "seh'py" expressa profundamente tanto a aproximação coletiva dos diversos
núcleos familiares quanto os distanciamentos rituais que permeiam a cultura Z o'é. É o
momento mágico e único onde todos os homens podem dançar com todas as
mulheres, embora durante esta dança os gestos sejam marcadamente cerimoniais e
milimetricamente observados, e as mulheres mantenham o olhar ritualmente afastado
de seu momentâneo parceiro de dança. H á um caminho delimitado a se percorrer,
uma forma de se chegar, um lugar para se aguardar e um momento específico de se
adentrar na festa, conforme a origem e a relação do grupo que chega com o anfitrião
da festa. H á cantos específicos, danças específicas e todo um desenrolar coletivo de
memórias das tradições orais de eventos e mitos do passado. H á uma atualização de
toda a cosmologia Z o'é, que no seh'py se ressocializa e exerce seu poder de coerção
às novas gerações. D epois de uma noite inteira de danças e cantos, os homens Z o'é
rompem a manhã bebendo e expelindo ritualmente toda a bebida que possam ingerir,
pois o fim da bebida ritual não é alimentar nem enlevar ao transe o indivíduo. Ela será
toda e coletivamente vomitada, como se esta emissão gástrica voluntária e coletiva
fosse a epifania em que a sociedade desarraigasse seus males numa grande celebração
purificadora da vida. É assim a catarse coletiva dos Z o'é: celebrar seu modus vivendi
purificando cada um e todos os homens, extirpando coletivamente do âmago de seus
corpos qualquer traço que os afaste da consciência pública de pertinência a uma e
única sociedade humana, a sociedade onde todos são "N ós", por mais que exista os que
são imediatos e aliados, e os que não compartilham os mesmos caminhos (os Z o'é de
outras aldeias e núcleos), que devam ser ritualmente evitados, mas que são parte
imprescindível de um todo.

POLÍT ICA IN DIGEN IST A E FRICÇÂO IN T ERÉTN ICA - RUMOS:

Toda esta vitalidade cultural em tempos de globalização e de visível e frustrante


descontrole das políticas sociais e ambientais para a conservação da floresta amazônica
e dos povos da floresta não são, de forma alguma, fortuitas ou meramente fruto do
isolamento geográfico dos Z o'é. Após o malfadado contato com fins proselitistas e de
perdas demográficas que poderiam tê-los levado à extinção, os Z o'é pareciam
condenados à triste trajetória palmilhada por inúmeros povos indígenas no Brasil:
desagregação social, dependência econômica, perda de identidade cultural e
progressiva incorporação aos padrões de miséria social dos índios genéricos. Mesmo
nos primeiros anos de atuação do órgão indigenista oficial, em que pesem os maciços e
imprescindíveis investimentos na recuperação da saúde coletiva, bem como os
encaminhamentos jurídicos para o reconhecimento do território indígena, as práticas
locais de relacionamento entre a agência de "contato" e os Z o'é repetia o mesmo e
desencantado modelo paternalista de doações e trocas materiais e de serviços

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absolutamente não criteriosas, perpetuando a sedentarização de grupos específicos em
torno do posto de assistência e reforçando redes de privilégios completamente
incompatíveis com a integridade da cultura Z o'é. Tais trocas, que chegaram a incluir
alimentação "de branco" cedida regularmente em contrapartida a serviços braçais e
miçangas em troca de informações antropológicas, ampliavam o continuísmo do
modelo missionário, e encaminhavam os Z o'é para a vala comum dos índios
"integrados" à sociedade (melhor seria dizer "desintegrados" por ela...).
Este quadro de previsível destino começou a modificar-se efetivamente a partir
do ano de 2000, quando num processo interno de amadurecimento autocrítico em
curso, a CGII transformou as tradicionais "Frentes de Atração" em "Frentes de
Proteção Etnoambientais", sinalizando o esforço de redimensionamento de visão e
ação deste setor específico da FUN AI junto aos povos indígenas isolados sob sua
jurisdição. Em 1996, com a designação do indigenista João Lobato como chefe-de-
posto do Cuminapanema, já se iniciara uma gestão de modificações internas que
ratificariam uma ação diferenciada na condução política e administrativa dos trabalhos
junto aos Z o'é. Apoiado pelo sertanista Sydney Possuelo, então chefe da CGII -
Lobato, cuja formação e trabalho indigenista originara-se nos meios alternativos no
início dos anos 80, trazia como bagagem uma significativa experiência de campo e
sensibilidade crítica em relação às interfaces dos processos de "contato", e neste
momento político pode enfim dispor de suporte institucional para promover um
processo inédito de "saneamento cultural", reforçando o progressivo resgate da
autonomia econômica e social dos Z o'é, aliado ao controle do acesso externo (ao
menos, do acesso oficial) à Terra Indígena. Um processo extremamente trabalhoso,
complexo, prenhe de incertezas e amplamente criticado, mas que sem dúvida tem
rendido aos Z o'é dividendos incomparáveis em termos de saúde, conservação
ambiental e plenitude cultural, possibilitando a este povo o exercício de seu modus
vivendi de forma integral e concatenando crescimento demográfico com qualidade de
vida.
N a atualidade, os Z o'é retomaram plenamente sua intensa mobilidade
geográfica, que traduz a amplitude de todas as trocas internas - econômicas, sociais e
cerimoniais - que são o cerne de sua cultura. A despeito da aquisição de certo número
de itens básicos de tecnologia externa, que beneficiaram a produção alimentar e a
segurança em relação aos acidentes na selva (facas e facões, machados, anzóis e linhas,
instrumentos agrícolas básicos, lanternas e pilhas), tais itens são cedidos
equitativamente pela Frente, que mantém controle individual das doações, eliminando
necessidade ou vontade dos Z o'é em instalarem-se no entorno da sede da Frente. O s
Z o'é têm acesso a informações diversas através de vídeo, utilizado como instrumento
de propagação de idéias e questionamentos sobre o mundo externo, outros povos
indígenas, sistemas de produção, meio-ambiente. Equipes de saúde e de documentação
acessam a área apenas quando autorizadas pela CGII/FUN AI, o que permite um
controle epidemiológico pontual importante para a estabilização do quadro
imunológico da população.
A Frente Cuminapanema dispõe de profissional de saúde em tempo integral, e a
CGII tem dotado a área de excelente infra-estrutura para o atendimento à saúde,
inclusive com consultório odontológico completo e ambulatório adequadamente
equipado, permitindo atendimento diário e rápido nas urgências solucionáveis em área,
e uma articulação externa eficiente, ainda que informal, para a agilização das urgências
que exigem evasão da área. O quadro vacinal é periodicamente atualizado, através de
equipes de saúde da FUN ASA, instituição que também promoveu na área campanhas
antimaláricas sistemáticas em conjunto com a CGII. A malária, que se tornara

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endêmica após o contato, teve sua incidência sobremaneira reduzida, alcançando índice
zero durante o biênio 2002/2003. Mesmo na ocorrência de falhas de programação,
atendimento e fornecimento de medicamentos por parte da FUN ASA, o que
infelizmente tem sido recorrente nas áreas indígenas em geral, a CGII tem
providenciado suporte eficaz em todas as questões de saúde entre os Z o'é, graças
também ao dinamismo e esforço abnegado da equipe da Frente, que vem
desenvolvendo um trabalho extremamente positivo e continuado junto aos Z o'é. Esta
equipe naturalmente ressente-se de todas as limitações que o isolamento geográfico
impõe, inclusive a carência de informações externas, de uma articulação política mais
ampla, de condições materiais e humanas para realização de vigilância territorial efetiva
e mesmo de segurança individual num contexto de interesses espúrios e cobiça
crescente sobre o território Z o'é.
A questão axial deste quadro diz respeito ao futuro imediato do desenrolar de
novas relações interétnicas, inevitáveis dentro do processo histórico de expansão do
capital global que restringe dia após dia as fronteiras dos "limites do mundo", que é
como expressam os Z o'é a respeito das franjas de seu território. A CGII espera que
uma ação pedagógica em longo prazo, utilizando o diálogo, as imagens em vídeo, as
visitas seletivas e as discussões internas em sua própria língua, produza reflexões
críticas coletivas suficientes que permitam aos Z o'é certo amadurecimento político,
deixando-os mais preparados e menos vulneráveis aos impactos dos confrontos
interétnicos que inevitavelmente virão adiante. O s Z o'é, instigados pela curiosidade e
sedução material irresistível do admirável mundo novo dos kirahí, já não temem os
vírus e bacilos dos invasores, cientes de que a presença permanente da Frente sempre
dará pronto atendimento a qualquer problema de saúde. Alguns jovens já utilizam
rudimentos da língua portuguesa aprendidos aqui e ali em anos de convívio
fragmentado, com a avidez de quem percebe que a palavra é o exercício de poder que
transpõe o limiar entre todos os mundos. E, novamente, na brecha entre a intenção e
a ação efetiva, religiosos proselitistas, entre outros, assediam os Z o'é nos limites da
Terra Indígena, acenando com roupas, panelas e quinquilharias diversas - segundo os
Z o'é, até um telefone celular já foi demonstrado, revelando o propósito de oferecer
como dádiva dos céus os objetos materiais que "a Funai não dá". A intenção, já
verbalizada por um dos "missionários" interessados, é adquirirem glebas limítrofes à
Terra Indígena e atraírem os índios para fora - já que a FUN AI não os autoriza a ação
dentro da T.I.
O virtual isolamento dos Z o'é está a cada dia mais comprometido com a
expansão da agroindústria da soja e a inexorável materialização da rodovia BR-163
(Cuiabá-Santarém), fatos econômicos que estão redesenhando aceleradamente todo o
quadro de ocupação fundiária no oeste do Pará. O setor madeireiro, um dos
segmentos mais articulados e politicamente coesos na região, precursores de primeira
hora dos campos de monocultura, já iniciaram sua expansão devastadora a partir dos
núcleos urbanos regionais (Santarém, O riximiná, Ó bidos), projetando-se sobre o limite
sul da T.I., e aproximam-se perigosamente das "fronteiras do mundo". Melhor será que
estas fronteiras se expandam para os Z o'é, do que vê-las fagocitadas pela voracidade
dos kirahí. É o momento de um olhar percuciente sobre nossas ações, e imunes a
certezas ideológicas ou convicções prévias, reunirmos atitudes sinérgicas em prol da
integridade e perpetuação da vida do povo Z o'é, os Tupi da Fronteira do Mundo.

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REFERÊN CIAS BIBLIO GRÁFICAS:

-CABRAL, A.S.A.C. - "N otas sobre a fonologia do Jo'é" – Moara:


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