Florestan Fernandes. Poder e Contrapoder Na América Latina

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NOTAS SOBRE O FASCISMO

NA AMÉRICA LATINA1

O fascismo não perdeu, como realidade histórica, nem seu


significado político nem sua influência ativa. Tendo-se em vista a
evolução das “democracias ocidentais”, pode-se dizer que Hitler e
Mussolini, com seus regimes satélites, foram derrotados no campo
de batalha. O fascismo, porém, como ideologia e utopia, persistiu
até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma poderosa força
política organizada. Não só ainda existem regimes explicitamente
fascistas em vários países; uma nova manifestação do fascismo
tende a tomar corpo: através de traços e mesmo de tendências
mais ou menos abertas ou dissimuladas, a versão industrialista
“forte” da democracia pluralista contém estruturas e dinamismos
fascistas. Na verdade, a chamada “defesa da democracia” somente
modificou o caráter e a orientação do fascismo, evidentes na
rigidez política do padrão de hegemonia burguesa, no uso do
poder político estatal para evitar ou impedir a transição para o
socialismo, na tecnocratização e militarização das “funções nor-
mais” do Estado capitalista, em uma era na qual ele se converte

1
Notas da exposição apresentada na mesa redonda sobre “A Natureza do Fascismo
e a Relevância do Conceito na Ciência Política Contemporânea” (Departamento
de Sociologia, Harvard University, de 10 a 11 de março de 1971). As poucas
alterações feitas não afetaram a essência do texto original. Além disso, as ideias
expostas se mantiveram presas à última metade da década de 1960 e ao início
da década de 1970.

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no “braço político armado” da grande empresa corporativa e na


retaguarda de um sistema mundial de poder burguês.
Os países da América Latina não são – nem poderiam ser
– uma exceção nesse vasto quadro. Nesses países, propensões
internas para o autoritarismo e o fascismo foram largamente
intensificadas e recicladas pela crescente rigidez política das
“democracias ocidentais” diante do socialismo e do comunis-
mo. Como a revolução socialista eclodiu em Cuba, a “ameaça
do comunismo” deixou de ser um espectro remoto e nebuloso.
Ela se apresenta como uma realidade histórica continental e um
desafio político direto.
Infelizmente, o estudo do fascismo sofreu dois impactos.
Um foi e continua a ser a má aplicação de conceitos como “au-
toritarismo”, “totalitarismo”, “autocracias modernas” etc., para
esconder identificações ideológicas (ou certos compromissos
intelectuais). Regimes claramente fascistas podem ser descritos
como “autoritários” ou mesmo como “ditaduras funcionais”
desde que se postule que eles “são frequentemente instituídos
a fim de impedir a ameaça de um golpe por um movimento
totalitário”, e tenham “uma feição essencialmente técnica”.2 De
outro lado, tem-se dado maior atenção sistemática à análise de
tipos de fascismo de “alcance” e “significado” históricos. Espanha
e Portugal, por exemplo, foram relativamente negligenciados.”3 A
consequência disso é que uma forma de fascismo de menor refi-
namento ideológico, que envolve menor “orquestração de massa”

2
C. J. Friedrich e Z. K. Brzezinski, Totalitarian dictatorship and autocracy.
Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2ª ed., 1965, p. 8-9.
3
Parece-me que a delimitação empírica do fascismo, introduzida por E. Nolte
(Three faces of fascism. Action Française, Italian Fascism. National Socialism,
Londres, Weidenfeld & Nicolson, 1966), é bastante frutífera e corrobora a
análise feita (ver especialmente p. 460). Com referência à Espanha, sua carac-
terização é acurada, mostrando a vantagem do conceito, tão evitado por vários
cientistas sociais.

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e um aparato de propaganda mais rudimentar, mas que se baseia


fundamentalmente na monopolização de classe do poder estatal
e em uma modalidade de “totalitarismo de classe”4 não seja bem
conhecido sociologicamente.
O fascismo na América Latina tem sido, até o presente,
uma versão complexa dessa espécie de fascismo.5 Como tal, ele
pressupõe mais uma exacerbação do uso autoritário e totalitário
da luta de classes, da opressão social e da represssão política pelo
Estado, do que doutrinação de massa e movimentos de massa.
Ele é substancialmente contrarrevolucionário e emprega a guerra
civil (potencial ou real; e “a quente” ou “a frio”) em dois níveis di-
ferentes (e por vezes concomitantes): 1°) contra a democratização
como um processo social de mudança estrutural (por exemplo,
quando ela ameaça a superconcentração da riqueza, do prestígio
e do poder), ou seja, ele se ergue, de modo consciente, contra a
“revolução dentro da ordem”; 2°) contra todos os movimentos
socialistas, qualificados como revolucionários – portanto, ele tam-
bém procura barrar a “revolução contra a ordem existente” (a qual
foi, aliás, a função histórica do fascismo na Alemanha e na Itália).
Alguns observadores encaram essa forma de “subfascismo” – ou
de “pré-fascismo” como uma herança colonial, localizando o seu

4
O “totalitarismo de classe” só é possível em sociedades estratificadas nas quais
a cultura especial da classe dominante (ou setores de classe dominante) opera
e é imposta como se fosse a cultura universal de toda a sociedade (ou a “civi-
lização”). Às vezes, a cultura especial da classe baixa é contraposta a ela como
“folclore” ou “cultura popular”. Quando os membros da classe baixa “saem de
seu mundo” e desempenham papéis que se vinculam às esferas econômica, social
e política da sociedade global, eles compartilham, de uma forma ou de outra,
traços ou complexos institucionais da “civilização” (ou, em outras palavras, da
cultura oficial e dominante).
5
Esse tipo de fascismo corresponde às duas funções de autodefesa e de autopri-
vilegiamento que ele alcança nas mãos de classes ameaçadas, descritas por F.
Neumann (The democratic and the authoritarian State – Essays in political and
legal theory. Glencoe, IlIinois, The Free Press, 1957, p. 250-251). (Ed. bras.:
Estado democrático e Estado autoritário. Rio, Zahar, 1969.)

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componente central na manipulação autocrática das estruturas


de poder e da maquinaria do Estado. Não é necessário negar
certas continuidades culturais para se fazer a crítica de semelhante
interpretação. Seria errado supor que as manifestações do fascis-
mo na América Latina constituam um mero produto (ou um
subproduto) de estruturas de poder arcaicas. O fascismo, em si
mesmo, é uma força muito moderna e seus objetivos mais recentes
estão relacionados com o “desenvolvimento com segurança”, um
desdobramento da interferência das potências capitalistas hege-
mônicas e das empresas multinacionais com vistas a garantir a
estabilidade política na periferia. Essa evolução coincide com os
interesses conservadores, reacionários e contrarrevolucionários de
burguesias relativamente impotentes, que preferem a capitulação
política ao imperialismo a lutar pelas bandeiras tradicionais (ou
“clássicas”) de um nacionalismo burguês revolucionário. De outro
lado, se adotarmos conceitos derrisórios (como “subfascismo” ou
“pré-fascismo”), com isso não modificaremos a realidade. Esses
e outros nomes mal se aplicam à contrarrevolução organizada
política e militarmente e às suas implicações políticas tão com-
plexas e destrutivas, que consolidam o poder da reação e excluem
da cena histórica todas as formas de mudança política estrutural
(anticapitalistas ou não), que escapem ao controle direto ou indi-
reto das classes possuidoras e de suas elites dirigentes.

A delimitação empírica do fascismo, no contexto histórico dos


países latino-americanos, é em si mesma uma tarefa muito com-
plicada. O baixo nível de autonomia da ordem política impede,
em toda a parte, a eclosão das formas extremas do fascismo. No
entanto, nessa mesma condição se acha a raiz da extrema difusão
de traços e tendências fascistoides e especificamente fascistas,
em diferentes tipos de composições do poder (embora, com
frequência, o elemento propriamente fascista apareça como uma

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conexão política seja de uma dominação autocrática de classe,


seja do Estado burguês autocrático).
Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que condições e processos
externos à ordem política possuem uma relação funcional e causal
com a proliferação tanto de manifestações embrionárias, quanto
de variedades “maduras” de fascismo. Considerando-se os 20
países latino-americanos em conjunto, a contemporaneidade de
situações históricas não coetâneas revela um fenômeno chocan-
te. Alguns países estão enfrentando situações estruturalmente
similares àquelas em que emergiram os Estados-nações ou, ainda,
àquelas em que uma limitada integração nacional foi alcançada
sob a dominação oligárquica-tradicional. Outros países estão en-
frentando os dilemas presentes do capitalismo dependente em um
período de “avanço industrial”, de reincorporação às economias
capitalistas centrais e de tensão, com burguesias incapazes de
preencher todos os seus papéis históricos como agentes de uma
revolução nacional. Como casos típicos de cada uma dessas três
instâncias seria possível mencionar o Haiti, o Paraguai e o Brasil
(ou a Argentina). No primeiro caso, a maximização de interesses,
valores e estilo de vida dos setores dominantes prevalece de acordo
com uma orientação extremamente particularista e tradicionalista
(a despeito do aparato moderno de uma ditadura totalitária).
Esses setores se opõem, a um tempo, seja a uma comunidade
de poder político entre iguais (o que poderia conduzir a uma
transição para uma forma de dominação oligárquica), seja à par-
ticipação social das massas (a qual poderia implicar algum grau
de democratização política). Em consequência, a persistência do
status quo depende de uma forma específica de despotismo, pela
qual um caudilho (ou um déspota) se torna instrumental para
o controle de estruturas de poder políticas e do governo pelos
setores sociais dominantes. No segundo caso, os setores domi-
nantes são organizados como uma oligarquia tradicional, capaz

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de proteger seus interesses, valores e estilo de vida através de um


controle rígido do poder político e do governo. Eles restringem
a participação social e se opõem à emergência de uma democra-
cia de participação ampliada (vista como uma ameaça ao status
quo). O terceiro caso é mais complexo. Os setores dominantes
são diversificados e enfrentam clivagens internas, vinculadas a
polarizações de conflitos nacionais e à dominação imperialista
externa. Mas eles dispõem de condições para estabelecer, graças a
composições civil-militares, uma política conservadora-reacioná-
ria e para impô-la como uma articulação da hegemonia burguesa
(abrangendo agentes internos e externos, com seus respectivos
interesses e orientações de valores). Isso quer dizer: controle plu-
tocrático do Estado e do governo, acima ou mediante processos
politicamente legítimos, e a preservação do status quo através da
violência institucionalizada e organizada (para manter a distorção
permanente da democracia com participação ampliada e para
impedir qualquer transição mais ou menos rápida mesmo para
uma “democracia competitiva”).
Nesses três casos, condições e processos externos à ordem
política determinam a reorganização do espaço político, com
as funções correlatas e os usos livres que lhe são atribuídos.
Entretanto, nos três casos é evidente que a ordem política
predominante subsiste sob intensa e permanente compressão
(“legítima”, segundo a concepção dominante, para a qual os
privilégios são “naturais”, “úteis” e “necessários”; e dinamizada
por uma compulsão totalitária dos próprios setores privilegiados).
A natureza desse processo político tem diferentes significados e
implicações estruturais variáveis em cada caso. Não obstante, ele
envolve um dinamismo político que é universal e fundamental.
Em todos os três casos a ordem política é adaptada às condições
demográficas, econômicas, culturais e políticas em mudança e a
adaptação sempre possui a mesma função básica: a reconfigura-

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ção da ordem política para estabelecer novas posições de força,


bastante fortes para garantir a continuidade ou o aperfeiçoamento
dos privilégios e o controle estável do poder (em todas as suas
formas) a partir de cima.
Se considerarmos apenas o que ocorre com a ordem política,
dois processos políticos concomitantes poderiam ser identificados
empiricamente. Primeiro, o enfraquecimento da ordem política
como uma fonte de dinamismos comunitários e societários de
“integração nacional” e de “revolução nacional”. Segundo, o uso
estratégico do espaço político para ajustar o Estado e o governo
a uma concepção nitidamente totalitária de utilização do poder.
Na medida em que a ordem política é enfraquecida, ela não pode
gerar as forças políticas requeridas quer pelos usos do poder su-
postos “normais” na ordem legal existente, quer para ser a fonte
de mudanças econômicas, socioculturais e políticas “progressivas”.
O que significa que o que é pressuposto ou implícito transcende
à preservação do status quo. A ordem política, estabelecida ins-
titucionalmente (em todos os casos) como sendo “democrática”,
“republicana” e “constitucional” é permanentemente distorcida
por e através de objetivos totalitários dos setores sociais dominan-
tes. E as transições políticas, do “despotismo” para a “democracia
restrita”, da “democracia restrita” para a “democracia ampliada”,
ou da “democracia ampliada” para a “democracia competitiva”,
são sempre solapadas, bloqueadas e postergadas. Em consequên­
cia, “integração nacional” e “revolução nacional” (em termos da
ordem legal existente) tornam-se impossíveis. Na medida em
que o uso estratégico do espaço político é organizado e dirigido
conforme uma concepção totalitária da utilização do poder, o
Estado e o governo, na prática, são projetados em uma tendência
intensa e permanente de fascistização (em todos os níveis das
funções e dos processos de decisão em que o Estado e o governo
se achem envolvidos). Portanto, um totalitarismo de classe produz

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seu próprio tipo de fascismo, que é difuso (e não sistemático),


que é fluido (e não concentrado), em suma, um fascismo que tem
seu nexo especificamente político dentro do Estado e do governo,
mas que impregna socialmente todas as estruturas de poder no
seio da sociedade.
A falta de elaboração ideológica e de uma tecnologia organi-
zatória (como movimentos de massas; mobilização dos “setores
baixos” – ou pelo menos dos Lumpen e da pequena burguesia;
um partido; associações controladas pelo partido e reguladas
pelo Estado – com exceção dos sindicatos; símbolos comparti-
lhados; liderança carismática definida em termos “nacionalistas”
e do “caráter sagrado do patriotismo” etc.) não indica ausência
de fascismo. Mas constitui uma evidência histórico-cultural de
uma forma particular de fascismo (não somente potencial), no
qual esses requisitos da fascistização das estruturas de poder, do
Estado e do governo não necessitam seja uma intensa elaboração
ideológica, seja uma tecnologia organizatória própria. O caráter
fascista das ações e processos políticos não se funda somente
na contradição entre o uso institucionalizado da violência para
negar os direitos e garantias sociais estabelecidos e as imposições
“universais” da ordem legal; mas na existência de uma ordem
constitucional que é menos que simbólica ou ritual, pois só tem
validade para a autodefesa, o fortalecimento e a predominância
dos “mais iguais” (ou os privilegiados). Por conseguinte, ele
se corporifica e atualiza cotidianamente na conexão política,
reproduzida constantemente, entre o totalitarismo de classe, a
“salvação nacional” (ou “defesa da ordem”) por meios autocrá-
ticos, reacionários e violentos, e a “revolução institucional” (ou
seja, a dupla ação contrarrevolucionária, que se desdobra simul-
taneamente, de fato contra a democracia, nominalmente, contra
o comunismo). Nesse sentido, o elemento essencial das ações e
processos políticos parece ser a contrarrevolução, que afirma a

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totalidade por sua negação, isto é, uma “unidade” e uma “segu-


rança” da Nação que não passam de uma unidade e segurança
dos interesses, valores e estilo de vida das classes dominantes, bem
como do seu reflexo na concepção totalitária da onipotência de
tais classes. Por isso, numa situação-limite, de crise e de tensão
extremas, a hegemonia social das grandes famílias, ou da oligar-
quia, ou da burguesia é imposta pelo reverso da sua normalidade
(o que inverte a relação das grandes famílias, da oligarquia e da
burguesia com a ordem legal que elas apoiam). Aqui se acha uma
combinação ultracontraditória de extremos, uma racionalidade
que é irracional, uma defesa que é uma destruição, uma solução
que elimina as transições normais e intensifica as potencialidades
revolucionárias de crise.6
De outro lado, a falta de elaboração ideológica e de técnicas
organizatórias específicas é um produto da espécie de controle
das forças econômicas, socioculturais e políticas conseguido pela
minoria privilegiada, poderosa e atuante através do totalitarismo
de classe, pois aquela minoria pode, graças à extrema concentra-
ção da riqueza e do poder, usar de modo direto e permanente
a violência institucional objetivada, legitimada e monopolizada
pelo Estado. Se a ordem civil é fraca, como acontece por motivos
diferentes nos países tomados como ponto de referência, a ausên-
cia de oposição organizada ou de oposição organizada bastante
eficiente, o caráter ocasional e a impotência relativa da resistência
cívica permitem quer fascistizar certas funções essenciais e es-
tratégicas do Estado (sem tocar em outras condições, estruturas
e funções), quer atingir uma rápida fascistização de tais funções
do Estado (e mesmo de todo o Estado) se as circunstâncias o
exigirem. As “aparências” são mantidas; a relação entre meios e

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Se consideramos a queda de Batista e o colapso do capitalismo em Cuba, esta
não vem a ser uma simples suposição.

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fins políticos é que se altera, para dar lugar a controles políticos


que colocam a mudança, a “defesa da ordem” e o esmagamento
de toda e qualquer oposição sob o arbítrio das minorias domi-
nantes e privilegiadas. A constituição e os códigos se mantêm,
porém eles só permanecem funcionais para aquelas minorias e, se
for imperativo, recebem inovações que neutralizam suas garantias
políticas e legais, de acordo com algum modelo da “democracia
autoritária”, “corporativa” e “nacional” (usualmente, a influência
dos regimes franquista e salazarista é mais forte que a do nazismo
alemão ou do fascismo italiano). A liberdade é preservada, nesses
termos, como identificação ideal, consentimento e apatia. Outros
traços do fascismo são evidentes em diferentes níveis da mente
humana e do comportamento individual ou coletivo. Em todos
os três países (ou quatro, incluindo-se a Argentina), a persuasão
direta, a violência organizada e institucional, o terror ocasional ou
sistemático são aplicados através de vários meios. O controle da
comunicação de massa, eleições rituais, parlamentos simbólicos,
opressão e neutralização da oposição, extinção dos dissidentes etc.
constituem uma rotina supervisionada pelo aparato repressivo do
Estado. Também o controle central da economia, da educação,
do movimento operário e dos sindicatos, das greves operárias e
estudantis, da desobediência civil etc., com a aplicação calculada
da polícia, das forças armadas e do aparelho judiciário, são feitos
nos limites necessários –, e com notável flexibilidade – com vistas
à reprodução das orientações totalitárias das classes dominantes
e à capitulação ou à submissão dos opositores renitentes às impo-
sições fascistas do governo. Supõe-se que existe uma separação
entre Estado e sociedade, porém ela é pouco clara na prática,
em consequência da rígida combinação de monopólio econô-
mico, social e político do controle do Estado e de suas funções
estratégicas pelas classes dominantes e suas elites dirigentes. Não
obstante, no Haiti, Duvalier poderia dizer: “l’Etat c’est moi”. Isso

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seria menos aceitável por parte da entourage e dos partidários


de Stroessner; é impossível no Brasil ou na Argentina. Pois nos
últimos casos o poder está investido ou em uma oligarquia ou
em uma plutocracia, prevalecendo condições que reduzem ou
anulam o despotismo pessoal (inclusive, que excluem a vinculação
entre fascismo, manipulação demagógica das massas e absorção
dos proventos políticos pelo “líder carismático”). Outra variável
importante está ligada à polícia e aos controles militares ou “le-
gais”. Um terror paroxísmico, como o que prevalece no Haiti,
dispensa uma efetiva militarização institucional das estruturas
e funções do Estado. O mesmo ocorre quando o totalitarismo
de classe surge em combinação com os mecanismos políticos da
oligarquia tradicional, pois basta o velho tipo de ditadura militar
para desencadear o grau necessário de fascismo através do poder
político estatal. Entretanto, a articulação do totalitarismo de
classe com a plutocracia moderna (na qual entram burguesias
locais pró-imperialistas e dominação externa imperialista) requer
um alto nível não só de militarização, mas também de tecnocra-
tização das estruturas e funções do Estado. Não importa quem
seja o “presidente” – um civil, como no Equador; ou um militar,
como no Brasil e na Argentina –, o essencial é como controlar
uma “sociedade de massas” (seria melhor dizer: uma sociedade
de classes em expansão e muito desequilibrada) relativamente
diferenciada e politicizada. Aquilo que Friedrich e Brzezinski
chamam, graças a um eufemismo grosseiro, de “visão técnica”
da ditadura moderna, dominada e gerida por uma plutocracia,
pressupõe um “mínimo de fascismo”, numa escala que suplanta
o que existiu e se fez necessário na Espanha de Franco e em
Portugal de Salazar.
Esta descrição é demasiado sucinta. No entanto, ela parte de
e desemboca em “acontecimentos quentes”, no presente em pro-
cesso. Por isso, pelo menos a “natureza empírica” das principais

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tendências da manifestação típica (e específica) do fascismo na


América Latina de hoje foi posta em relevo. Agora, seria preciso
considerar outras questões, que se colocam a partir do passado
ou do futuro.
Com referência ao passado, três questões merecem atenção,
neste resumo. Os traços e as tendências realmente pré-fascistas
(e não de um mero fascismo potencial, noção muito vaga e que
não leva a nada) do totalitarismo de classe. A manifestação de
movimentos fascistas moldados por paradigmas europeus plena-
mente desenvolvidos e seu malogro. As potencialidades fascistas
da demagogia, do populismo, do sistema de partido único (ou
de partido oficial). Como um componente persistente, também
seria necessário apontar a contribuição estrutural e dinâmica da
nova tendência de incorporação de países da América Latina ao
espaço econômico, sociocultural e político das nações capitalistas
hegemônicas e, principalmente, de sua superpotência, os EUA.
Seria aconselhável começar por uma digressão sobre este
último tema. O despotismo como a oligarquia sempre foram
vistos como facilmente acessíveis à manipulação externa. Toda-
via, os regimes de despotismo e de oligarquia (através da dita-
dura pessoal ou da democracia restrita) possuíam estabilidade
econômica, social e política ou dispunham de um “excedente
automático de poder arbitrário” para controlar a mudança na
direção de novos regimes políticos, o que os equipava com
recursos policial-militares, “legais” e políticos para atender aos
interesses estrangeiros sem precisarem recorrer a uma extrema
rigidez política ou à fascistização saliente de certas estruturas
e funções do Estado. Portanto, a segurança de tais interesses,
em termos econômicos tanto quanto políticos, podia ser ga-
rantida de modo espontâneo mas eficiente dentro dos marcos
“normais” de exacerbação dos elementos autoritários inerentes
à ordem estabelecida. Por isso, a influência externa só se torna

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intrínseca e crescentemente fascistoide e fascista por volta dos


anos 1930 e depois, época em que aqueles regimes políticos
começam a falhar seja na preservação e na reprodução do status
quo, seja na seleção e no controle indireto da mudança política,
seja no fornecimento do “volume de segurança” exigido pelos
parceiros externos e pela dominação imperialista. Então, de
maneira generalizada, ocorrem fraturas no equilíbrio político,
o qual deixa de ser “automático”, já que a “reserva de poder
arbitrário” disponível defrontou-se com pressões definidas (não
importa quão “fracas” ou “fortes” elas chegaram a ser) no sen-
tido da democratização. Nesse contexto, em contraste com os
países “mais subdesenvolvidos”, os países que já dispunham de
um mercado nacional (ou em integração nacional) e tentavam
industrializar-se mais ou menos rapidamente descobriram a
impotência relativa de suas burguesias e a impossibilidade de
fundar na hegemonia burguesa qualquer controle viável do status
quo. A implantação de uma democracia burguesa de participa-
ção ampliada (com a “ordem legal democrática” correspondente)
ou não passava de uma miragem (o que ocorreu no Brasil) ou
acarretava crises convulsivas, sem perspectivas de solução a curto
e a médio prazos (o que arruinou a dianteira que a Argentina
logrou obter no funcionamento de instituições democráticas).
É claro que a importância relativa de componentes externos no
padrão de hegemonia burguesa variou de país a país. Em toda
a parte, contudo, a presença estrangeira foi física, volumosa e
direta: pessoas e grupos de pessoas ativas, em todos os planos da
vida econômica, social, cultural e política, com papéis comple-
xos nos processos vitais de tomada de decisões na organização
da hegemonia burguesa e na própria atuação do Estado. E em
toda a parte tais componentes alargavam ou aprofundavam a
participação direta de pessoas, grupos de pessoas, empresas
ou organizações estrangeiras no espaço político interno, o que

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“transferiu para fora” muitos centros de poder aparentemente


“nacionais” ou “controlados pelas burguesias nacionais”.
Dessa perspectiva, o desenvolvimento capitalista associado
e dependente criou o seu próprio padrão de articulação política
aos níveis continental e mundial: a capacidade adquirida pela
dominação externa imperialista de deprimir e distorcer a ordem
política tornou-se única, permitindo às nações capitalistas hege-
mônicas e à sua superpotência, graças a e através de vários tipos
de instituições (além da diplomacia), maximizar interesses eco-
nômicos ou objetivos políticos e militares, bem como controlar à
distância um amplo processo de modernização acelerada. O que
importa assinalar são dois fatos mais conhecidos. De um lado,
nos períodos de crises e tensões, nos quais os diferentes sistemas
políticos mencionados exigiam mudanças políticas estruturais,
os “interesses estrangeiros” inclinaram-se para a direita e a con-
trarrevolução, reforçando as tendências naturais das elites no
poder a sufocarem as “ameaças de anarquia” com mão de ferro
(o anseio de “combate ao comunismo” fazia com que qualquer
preço fosse aceitável e com que várias ondas de fascistização do
poder estatal recebessem acolhida simpática ou calorosa). A
natureza política de semelhante articulação pode ser analisada
convenientemente seja através de regimes títeres, como o de Ba-
tista, em Cuba, seja através das ditaduras militares “salvadoras”,
“institucionalizadas”, como as que chegaram ao poder no Brasil
e na Argentina. De outro lado, o contexto histórico da guerra
fria consolidava e generalizava essas tendências. O essencial
consistia em impedir que as fases críticas da modernização ofere-
cessem alternativas a grupos nacionalistas revolucionários ou ao
“movimento comunista mundial”. “Evitar novas Cubas”, mas, na
verdade, tornar a periferia “segura” e “estável” para o capitalismo
monopolista vinha a ser o alvo central desse padrão compósito
(internacionalizado e imperializado) de dominação burguesa e de

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poder político burguês. A confluência desses processos imprimia


às burguesias dependentes e impotentes da América Latina um
papel ativo e considerável na contrarrevolução capitalista e no
“cerco ao comunismo”, ambos de âmbito mundial, e acarretava,
como contrapartida, uma clara intensificação das tendências à
fascistização do Estado, apoiadas em assessoria policial-militar
e política, em recursos materiais ou humanos e em estratégias
vindas de fora (como parte da “modernização global”). Tudo isso
indica que esse “curso negro da história” não é de curta duração.
Ele se vincula a um padrão de articulação política necessária entre
o centro e a periferia do mundo capitalista. A probabilidade (ou a
improbabilidade) de eliminá-lo passa pelo “nacionalismo revolu-
cionário” ou pelo “socialismo revolucionário”, duas realidades que
escasseiam em um cenário histórico esclerosado por burguesias
nacionais fortemente pró-imperialistas e esterilizado direta ou
indiretamente pelas próprias pressões imperialistas.
As tendências e processos pré-fascistas estavam naturalmente
ligados ao que M. Weber caracterizou como ética dual: sob uma
dominação autocrática (ao mesmo tempo “tradicional” e “racio-
nal” ou burocrática), os setores sociais dominantes tiraram um
proveito devastador da dualidade ética (já que os outros eram a
gentinha sem valia). Por causa disso, há uma longa tradição de
fascismo potencial na América Latina. Quando o fascismo apa-
rece como realidade histórica, ele já encontra dentro da ordem
constitucional e legal, sancionado pelos “costumes” e pelas “leis”,
um quase-fascismo operando como força social (e portanto como
uma força política indireta). Esse quase-fascismo se ocultava
por trás da monopolização do poder (em geral) e da monopoli-
zação do poder político estatal (em particular), pelas minorias
possuidoras, privilegiadas e dirigentes. E foi ele que barrou as
tentativas mais definidas de absorver o fascismo diferenciado,
organizado e específico, porque o tornava um fator de reforço

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N o t a s s o b r e o F a s c i s m o n a A m é r i c a L a t i n a

ou meramente suplementar. Muitos observadores puseram em


relevo a peculiaridade do presidencialismo em países da América
Latina, que faz do “Senhor Presidente” um ditador despótico,
com traços mandonistas e autoritários próprios. Aqui, não seria
demais lembrar outros aspectos do mesmo contexto que têm
significação análoga. O nível extremo de centralização dos pro-
cessos de tomada de decisões, a preponderância fatal do executivo
e a vigência na prática de uma “ditadura legal” (ou legitimada
apenas pela minoria que compõe a sociedade civil) alimentam
uma enorme facilidade de usar o aparato normal da democracia
burguesa como se ele fosse um Estado de exceção ou de passar-se
rapidamente, através de “leis de emergência”, para o estado de
sítio, a ditadura redentora e o Estado de exceção caracterizado
como tal. É óbvio que semelhantes medidas só aparecem na
crista de crises – mas qualquer crise parece o “fim do mundo”
para quem usa uma ótica autocrática e obscurantista. De qual-
quer modo, a orientação pré-fascista restringia a necessidade e o
recurso às “medidas de exceção” às situações nas quais a violência
armazenada institucionalmente se revelasse demasiado débil para
“as exigências da situação”. Além disso, mesmo os países menos
diferenciados possuem uma sociedade civil em que interesses
ou valores antagônicos da estratificação em classes atingem os
setores dominantes. Daí resultam duas coisas. Primeiro, grupos
completamente (ou apenas parcialmente) integrados à sociedade
civil (e portanto à ordem legal) são capazes de usar o espaço polí-
tico tanto para apoiarem quanto para se oporem à continuidade
do status quo. Segundo, esses grupos podem canalizar as forças
políticas existentes, fazer alianças “para baixo” e mesmo polarizar
certas tensões perigosas seja para preservar ou fortalecer seja para
transformar ou subverter a ordem política e legal. Os traços e
tendências pré-fascistas somente se convertem em forças políticas
efetivas quando esse tipo de polarização não pode ser resolvido por

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F l o r e s t a n F e r n a n d e s

“acordos entre cavalheiros” e “dentro da ordem”, civilizadamente!


Nessa elaboração peculiar é que se prende a forte predisposição
elitista de localizar a fascistização dentro do Estado, ou, melhor,
nas estruturas e funções do Estado que podem servir com maior
rapidez, especificidade e eficácia quer para controlar a “revolução
pelos costumes” e a “transformação da ordem”, quer para impedir
ou congelar a “revolução contra a ordem”.
Alguns movimentos fascistas emergiram na América Latina
e são por demais conhecidos para ser necessário redescrevê-los
aqui. Eles estão vinculados à irrupção e à evolução do fascismo
na Europa, bem como à influência que ele exerceu sobre ten-
dências direitistas e ultradireitistas latino-americanas. Alguns
movimentos também chegaram a adquirir suporte de massa e
tentaram seguir os modelos da Itália ou da Alemanha no que
concerne à ideologia, à organização, à liderança, à propaganda,
à propensão para o golpe de Estado etc. Em poucas instâncias,
como ocorreu na Bolívia, assumiram o caráter de um nacio-
nalismo revolucionário direitista: em outras como sucedeu na
Argentina e no Brasil, penetraram a fundo a atuação de líderes
demagógicos, deram origem a falsos pactos sociais de “grupos
progressistas” da burguesia com as massas populares e serviram
para produzir seja a domesticação dos sindicatos e a deturpação
do movimento sindical, seja a fragmentação política da classe
operária. Não obstante, dada a situação latino-americana, esses
movimentos fascistas não contavam com espaço econômico,
ideológico e político para crescerem e difundirem-se. De fato,
o fascismo tinha de competir com o totalitarismo de classe,
um equivalente rudimentar mas eficaz e menos arriscado. Ele
permitia atingir os mesmos fins de autoproteção das classes
dominantes e de fortalecimento da resistência à democracia de
participação ampliada ou à revolução socialista, sem que fosse
preciso ceder às pressões das massas populares ou aos arranjos

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N o t a s s o b r e o F a s c i s m o n a A m é r i c a L a t i n a

de setores das elites mais ou menos progressistas e radicais. O


próprio presidencialismo e a forma tradicional de ditadura
simples continham um potencial de fascistização limitada da
“ação do governo” na defesa da ordem existente tido como
suficiente pelas classes privilegiadas e suas elites econômicas
ou políticas. O principal vinha a ser manter os pobres e as
“pressões de baixo para cima” sufocados, inertes, impotentes.
A doutrinação ideológica e a mobilização de massas de um
movimento fascista real poderia quebrar essa acomodação tão
cultivada. O pseudossocialismo e o pseudossindicalismo dos
movimentos fascistas surgiam como ameaças explosivas em um
contexto histórico onde o nacionalismo poderia converter-se,
facilmente, em um barril de pólvora e em fator revolucionário.
Além disso, o polo radical de um movimento fascista central não
pode ser contido facilmente e pode transformar-se, na própria
oscilação dos contrários, no seu oposto (o que se exemplifica:
na Bolívia, a ala esquerdista do MNR logrou impor sua pre-
ponderância). Todas essas ressalvas não escondem um ganho
líquido dos setores mais conservadores e reacionários das classes
dominantes. Foi graças aos movimentos fascistas que falharam
e foram absorvidos ou superados que se deu a socialização
política de várias figuras e grupos “inquietos”, “radicais” ou
“rebeldes”. No presente, essas figuras e grupos voltam à cena
política, preparados para guiar a guinada contrarrevolucionária
da burguesia. Como militares ou civis eles sabiam como e onde
preparar e reforçar a fascistização das estruturas e funções do
Estado, utilizando a “revolução institucional” como expediente
para montar o máximo de fascismo que é compatível com as cir-
cunstâncias. Além disso, muitas distorções introduzidas graças
às influências diretas daqueles movimentos fascistas ficaram.
Exemplificando-se através do Brasil: as várias medidas legais,
que submetem os sindicatos à tutela governamental e, através

50
F l o r e s t a n F e r n a n d e s

desta, aos interesses empresariais e ao padrão de paz social da


burguesia. A pressão corretiva do movimento sindical e operário
nunca foi capaz, a esse e a outros respeitos, de reverter a situação
histórica. O que confere às classes dominantes uma vantagem
estratégica adicional, especificamente política e legal, na con-
frontação com as massas populares e na debilitação sistemática
(ou mesmo na corrupção) da principal força motriz de qualquer
transição democrática.
Um viés elitista, reforçado por um ponto de vista “liberal”
de procedência externa, impôs uma avaliação negativa da
dema­gogia, do populismo, do sistema de partido único (ou de
partido oficial), realidades sempre descritas como possuindo um
caráter ou uma orientação fascista. Isso é verdadeiro em vários
casos e poderia ser compreendido à luz das potencialidades do
pré-fascismo mencionado acima. No entanto, existem outros
casos nos quais o demagogo, o populismo, o sistema de partido
único (ou de partido oficial) desempenharam uma função bem
distinta: 1°) canalizando ou tentando criar condições favoráveis
a uma “revolução dentro da ordem”; 2°) convertendo-se em uma
fonte de mobilização social e semipolítica dos pobres, das massas
destituídas de garantias civis e políticas, dos setores rebeldes
das classes baixas, médias e altas. Como as massas populares e
os radicais não dispõem de um espaço político para ser usado
por uma verdadeira oposição contra a ordem, não existe uma
situação objetiva favorável para que eles desencadeiem uma re-
volução democrática (qualquer que seja o seu teor). Ainda assim,
a passagem de controles repressivos conservadores e reacionários
(inerentes à ordem pré-existente e ao Estado presidencialista)
para controles que derivam de estruturas e funções do Estado
que foram submetidas a uma fascistização localizada demonstra
que houve uma oscilacão na história. Esses fatos sugerem algo
claro para o sociólogo. A revolução democrática difícil acabou

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N o t a s s o b r e o F a s c i s m o n a A m é r i c a L a t i n a

despontando e assumindo os contornos de uma ameaça real.


Nos seus zigue-zagues, a revolução burguesa em atraso bateu
em várias portas, algumas certas, outras erradas. Até que a
burguesia nacional, o Estado e as multinacionais formassem
um tripé, esses zigue-zagues abriram caminhos confusos. O
certo é que o novo patamar procura eliminar toda a demagogia,
todo o populismo e todo o compromisso do sistema de partido
único (ou de partido oficial) com a revolução nacional. Esta
precisa ser abafada no altar da “aceleração do desenvolvimento”
e da “estabilidade política”. Tudo isso sublinha que algumas
manifestações populares, radicais e de integração nacional são
incômodas em si mesmas, independentemente da vinculação
ocasional de certas tendências ou dados movimentos com traços
ou propensões fascistas. E, em segundo lugar, demonstra que a
fascistização localizada de certas áreas do aparelho do Estado
tem a sua própria lógica política. Ela repele qualquer “transição
democrática” e é incompatível com uma “revolução democrática
efetiva”. Sua função política real consiste em manter viva a con-
trarrevolução por todo e qualquer meio possível. O que mostra que
essa fascistização sem fascismo é muito perigosa. E isso não porque
ela dá margem à dissimulação e à ambiguidade. Mas porque
esse fascismo oculto e mascarado fomenta a guerra civil a frio
e é capaz de passar do Estado de exceção para a “normalidade
constitucional” sem permitir que se destrua o elemento auto-
crático que converte o Estado no bastião da contrarrevolução.
Ele não só bloqueia a “transformação democrática da ordem”.
Ele impede a revolução democrática, prendendo a história da
América Latina a um passado que deveria estar morto e que
foi ressuscitado pelas forças da modernização dependente e
controlada à distância.
Em suma, não alimentamos a ilusão de que o fascismo é um
fenômeno extinto. No presente, não só as sociedades industriais

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F l o r e s t a n F e r n a n d e s

avançadas do “mundo ocidental” estão prontas para ele, como vão


além. Destituíram o fascismo dos elementos rituais, ideológicos
e orgiásticos que punham lado a lado o “heroico” e o “vulgar”,
a “elite” e a “massa”. Uma extrema racionalização conduziu-o a
uma metamorfose: hoje, ele é parte das tecno­estruturas civis e
militares da sociedade capitalista. Ele perdeu saliência, mas não
perdeu seu caráter instrumental para a defesa do capitalismo e
da crise da civilização industrial capitalista. A América Latina
foi toda ela envolvida nessa tendência, porém como “periferia”.
Não que a tragédia do centro venha a ser a comédia da perife-
ria. Ao contrário, a realidade melancólica do centro se converte
numa realidade suja da periferia. É aí que nos encontramos com
o sentido histórico de uma “defesa da ordem” e com uma “defesa
da estabilidade política” que obscurece, ignora ou sufoca pela
violência institucional a única via de liberação e redenção que se
abre para a grande maioria silenciosa na América Latina.
Não obstante, seria aconselhável distinguir as possibilidades
que essa cena histórica condiciona. Uma, liga-se à persistência
do tipo de fascismo descrito neste trabalho. As crises políticas
com que se defrontam os países latino-americanos são crises
estruturais. Por causa disso, na medida em que os setores sociais
dominantes se mostrarem capazes de preservar o monopólio
social do poder e do poder político estatal, o totalitarismo de
classe (com suas implicações políticas) continuará a ser um
processo histórico-social repetitivo. De outro lado, onde quer
que o estágio da revolução industrial seja atingido como uma
modernização e uma transição controladas de fora (isto é, sob o
capitalismo associado e dependente), a militarização e a tecno-
cratização das estruturas e funções do Estado terão de crescer e,
com elas, surgirão novas tendências de fascistização generalizada
(em outras palavras, a fascistização localizada cederá lugar a uma
fascistização global: o que ocorre hoje com o Estado e começa

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N o t a s s o b r e o F a s c i s m o n a A m é r i c a L a t i n a

a acontecer com a grande empresa corporativa irá suceder com


todas as instituições-chaves, em todos os níveis de organização
da sociedade). De acordo com o padrão recebido dos centros
externos de irradiação do processo, porém, essa fascistização
global terá pouca saliência. Na era atual, sob o capitalismo
monopolista já se aprendeu “o que era útil sob o fascismo”, os
riscos que se devem evitar e como operar uma fascistização si-
lenciosa e dissimulada, mas altamente “racional” e “eficaz”, além
de compatibilizável com a democracia forte. Finalmente, como
reação de autodefesa contra a democratização, as variedades
radical-populares de democracia e a revolução socialista – ainda
o fantasma da “ameaça comunista”, de “novas Cubas” etc. – é
possível que essa tendência adquira, muito mais cedo do que
se pensa, dimensões mais ostensivas, agressivas e “dinâmicas”,
com uma nova reelaboração do elemento ideológico ou orga-
nizatório e da manipulação das massas. Essas perspectivas são
sombrias. Nas condições em que realizam a transição para o
capitalismo industrial, sob o famoso tripé – burguesia nacio-
nal, Estado e multinacionais, com imperialização total de seus
centros de poder e de decisões – os países latino-americanos
não estão apenas diante da opção: ou “ democracia pluralista”
ou “socialismo”. Na verdade, tendo-se em vista o pano de fundo
descrito, a emergência de um novo tipo de fascismo poderá
estar articulada à transformação da “democracia pluralista”
na cidadela da contrarrevolução mundial. Estaríamos diante
de uma recuperação do “modelo extremo” ou “radical” her-
dado do fascismo europeu (isto é da Alemanha e da Itália)?
Mesmo que isso ocorresse, o ponto fundamental seria outro.
O fascismo central e específico apareceria modificado pelas
novas potencialidades da terceira revolução tecnológica. Ele
seria muito mais perigoso e destrutivo. E o único caminho para
salvar-se a autêntica revolução democrática seria o oferecido

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F l o r e s t a n F e r n a n d e s

pelo socialismo puro e convicto – o socialismo que pretende


eliminar o Estado através da democracia de toda a população
para toda a população.
Em resumo, o conceito de fascismo continua a ser relevante
nas ciências sociais e, em particular, é importante para o estudo da
América Latina contemporânea. Ele é útil para caracterizar, empi-
ricamente, um tipo de fascismo que tem sido negligenciado pelos
cientistas políticos. E é necessário para uma melhor compreen­são
dos limites entre um padrão normal de governo autoritário, sob o
presidencialismo, e a extrema distorção que está afetando a presente
ordem política. Ele também é frutífero para qualificar fatores e for-
ças que operam em favor ou contra a “integração nacional”, a “revo-
lução nacional”, a “democracia” e o “socialismo”. Ele é estimulante
para a análise prospectiva, pois permite situar a provável atividade
de fatores e forças que estão por trás da luta que se trava em nossos
dias pelo controle do futuro dos países latino-americanos. Porém,
como essas realidades estão em movimento, em transformação,
corremos o risco de combater uma forma de fascismo enquanto
outra pior está tomando corpo e se expandindo. O que mostra que
o conceito não importa apenas aos cientistas sociais. Ele é essencial
para todos os seres humanos que estão engajados no combate sem
tréguas pela supressão das realidades conceituadas como fascismo,
em suas modalidades do passado, do presente e possivelmente do
futuro. A questão não se reduz à “sobrevivência com liberdade”.
Trata-se de saber se o homem será senhor ou escravo da civilização
industrial moderna, com todas as perspectivas que ela abre ou para
a destruição da humanidade ou para a igualdade e a fraternidade
entre todos os seres humanos.

Nota Suplementar
Elaborado há tempo, este ensaio não apanha evoluções pos-
teriores da forma política do fascismo na América Latina. Em

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N o t a s s o b r e o F a s c i s m o n a A m é r i c a L a t i n a

outras condições, o pinochetismo seria o ponto de referência


pacífico de ilustração de sua manifestação mais complexa e, ao
mesmo tempo, mais forte e rica, que ocorreu no Chile depois da
derrocada do Governo Allende.
No entanto, quando o livro já se encontrava em avançado
estágio de produção editorial, deparei com um excelente artigo de
Newton Carlos, publicado pela Folha de S.Paulo.7 Nele, Newton
Carlos salienta o temor que uma das correntes do regime implan-
tado no Chile e “aprimorado” graças ao ardil de um plebiscito
ritual sente diante das perspectivas de uma ampla “mobilização
popular”. Trata-se de uma questão essencial para a caracterização
que desenvolvi do fascismo, em sua irradiação latino-americana;
essa parte do artigo de Newton Carlos traz, é claro, uma compro-
vação decisiva para um dos pontos centrais daquele trabalho. Por
isso, tomei a liberdade de transcrever o artigo na íntegra, poupando
assim ao leitor a necessidade de uma busca própria.

As ditaduras tentam criar “bases civis”


Newton Carlos
Além de “institucionalizar-se”, como no Chile, as ditaduras do
Cone Sul pensam em modelos de “participação”, tipo “Movi-
mento de Opinião Nacional”, por meio do qual o general Viola
sonha criar as “bases civis” do regime militar argentino. Mas é
no Chile que anda mais rápido e com mais eficiência o desenvol-
vimento de modelos. A montagem de um “Movimento Cívico-
-Militar”, anunciada pelo general Pinochet em setembro do ano
passado, é acelerada com o início do período “constitucional” de
oito anos, definido como etapa de transição a uma democracia
protegida, tecnificada, conduzida por técnicos e não políticos.
Essa aceleração não é ostensiva, não se fala em movimentos ou
mobilização de caráter político. Aparentemente se trata de uma
operação municipalista, do fortalecimento da “célula municipal”

7 Folha de S.Paulo, 14 de abril de 1981.

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F l o r e s t a n F e r n a n d e s

sob controle direto do poder central. A ideia é colocar as Prefeitu-


ras à frente de ampla engrenagem “participacionista”, cujas peças
se juntariam num movimento cívico-militar de apoio ao regime.
Essa operação foi lançada logo depois da posse de Pinochet como
presidente “constitucional”.

Operação
Embora se diga investido “constitucionalmente”, na Presidên-
cia, por força da nova Constituição “aprovada” em plebiscito
no ano passado, Pinochet prorrogou o estado de emergência;
estão funcionando no Chile tribunais de guerra, continuam as
prisões “ilegais”, o desterro e a tortura. Um conhecido ator e
diretor, com peça em cartaz, Fernando Gallardo, foi preso pela
CNI, Central Nacional de Informações, que vai alcançando os
mesmos níveis de brutalidade repressiva de sua antecessora, a
Dina. Será este o tipo de regime “moderadamente repressivo”,
dito como tolerável, desde que amigo, por Jeane Kirkpatrick,
um dos latino-americanistas de Reagan? Pinochet foi convidado
por Reagan a visitar Washington, onde já esteve o general Viola,
da Argentina. Reagan suspendeu as sanções econômicas contra
o Chile, decretadas por Carter em represália à impunidade dos
mandatos e executantes do assassinato em Washington de um
ex-ministro chileno, Orlando Letelier.
Relaxadas as pressões externas e apertados os controles internos,
Pinochet parte para a grande operação “cívica”. Observem com
atenção o que acontece nos municípios chilenos, é o recado da
oposição. O mapa municipal do Chile foi alterado por decreto,
com a criação de novas “células” que ajudarão a dar vida ao
“movimento cívico-militar” de Pinochet. Os prefeitos estão en-
carregados de criar e desenvolver grupos comunais, organizações
de bairros, de mães, de “pobladores”, favelados. O pinochetis-
mo investe sobre setores urbanos, no passado em grande parte
responsáveis pela força da Democracia-Cristã, do ex-presidente
Eduardo Frei. Para enfrentar a esquerda com o controle dos
sindicatos, o PDC tratou de organizar as populações margina-
lizadas das cidades. Pinochet vai mais a fundo nessa estratégia,
transformando as prefeituras em cabeças da montagem de um
amplo movimento “cívico” de apoio ao regime militar.

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Luta
A oposição chilena, toda fragmentada, empunhando diferentes
opções, se vê ainda mais acuada. O próprio regime, no entanto,
não está isento de consequências dessa operação. A ideia de
uma ditadura com “base social” é defendida pelos setores mais
duros do pinochetismo, que querem uma ditadura populista
e combatem o atual modelo econômico. Os “moderados” ou
“aberturistas”, partidários do modelo econômico, vinculados às
grandes empresas, querem um governo “autoritário submetido
a limitações de poderes, “constitucional”, “institucionalizado”.
Têm medo de que um movimento de massas, estilo franquista,
termine se voltando contra eles. Até agora Pinochet tem conse-
guido manejar as duas facções, mas os “moderados” já estão de
olho para ver o alcance da revolução municipalista.
Quanto à oposição, passa por seus piores momentos. A própria
esquerda “histórica”, tradicionalmente ajustada ao jogo polí-
tico, começa a optar pela violência. Outros setores se rendem
à sensação de impotência total. O ex-presidente Frei passou a
escrever uma coluna de política internacional.

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