5113-Texto Do Artigo-22025-1-10-20220214

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Resumo: O presente artigo tem como corpus a obra

O SAGRADO FEMININO E O Herland 1915), de Charlotte Perkins Gilman. Tem como


objetivo compreender a presença e o domínio do
EQUILÍBRIO DAS CIÊNCIAS NA Sagrado Feminino. O embasamento teórico norteou-se
SOCIEDADE UTÓPICA DE HERLAND pelos estudos de Sartre (2004), Eagleton (2006), Todorov
(2006), Ginzburg (2012) e Jouve (2012) acerca de
(1915), DE CHARLOTTE PERKINS definições literárias; os estudos de Jung (2000), Legros
(2007) e Birman (2016) sobre o Inconsciente Coletivo;
GILMAN os apontamentos de Federici (2017) e Hooks (2019)
sobre feminismo; e os posicionamentos de Calegari e
Fontanella (2009) e Cordovil (2015) sobre o Sagrado
Feminino. A metodologia é baseada nos critérios
analíticos orientados por Bakhtin (1989) a partir do
Plurivocalismo Linguístico. Quanto aos resultados,
THE FEMALE SACRED AND THE apresenta-se como o principal a narrativa esforça-se
em construir uma sociedade equilibrada conforme os
SCIENTIFIC EQULIBRY AS FOUND IN preceitos do Sagrado Feminino, onde os recursos naturais
THE UTOPIC SOCIETY OF HERLAND são preservados e nada é destruído, mas reaproveitado.
As considerações finais apontam que os homens que
(1915) BY CHARLOTTE PERKINS sonhavam em desbravar Herland (1915) quedaram-
se embasbacados com a harmonia e a fluidez de uma
GILMAN sociedade totalmente controlada por mulheres, pois,
diferentemente das sociedades patriarcais, o objetivo
das anciãs do referido país consiste em congregar, não
em segregar.
Palavras-chave: Herland. Sagrado Feminino.
Inconsciente Coletivo. Feminismo.
Yasmine Louro 1
Diana Barreto Costa 2 Abstract: This article has as its corpus the work
Herland (1915), by Charlotte Perkins Gilman. It aims to
understand the presence and dominion of the Sacred
Feminine. As a theoretical foundation, the article will be
guided by the studies of Sartre (2004), Eagleton (2006),
Todorov (2006), Ginzburg (2012) and Jouve (2012)
about literary definitions; the studies by Legros (2007)
and Birman (2016) on the Collective Unconscious; the
notes of Federici (2017) and Hooks (2019) on feminism;
and the positions of Calegari and Fontanella (2009)
and Cordovil (2015) on the Sacred Feminine. The
methodology is based on analytical criteria guided by
Bakhtin (1989) from Linguistic Plurivocalism. As for the
results, the main narrative is presented as an effort
to build a balanced society according to the precepts
of the Sacred Feminine, where natural resources are
preserved and nothing is destroyed, but reused. As
final considerations, it is pointed out that the men who
dreamed of exploring Herland (1915) were astounded by
the harmony and fluidity of a society totally controlled
Mestra em Letras pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). 1 by women, because, unlike patriarchal societies, the
Pós-graduanda Lato Sensu em Literaturas de Língua Inglesa pela Faculdade objective of the country’s elders is to congregate, not to
de Educação São Luís (FESL). Graduada em Letras Licenciatura em Língua to segregate
Portuguesa, Língua Inglesa e Literaturas pela Universidade Estadual da Região Keywords: Herland. Sacred Feminine. Collective
Tocantina do Maranhão (UEMASUL). Integra o Grupo de Estudos e Pesquisa unconscious. Feminism.
em Linguística Aplicada e Literaturas Anglófonas (GEPLALA,UFT/UEMASUL).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7417466504142267.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4951-3339.
E-mail: [email protected]

Doutora em Ciências da Educação. Diretora dos Cursos de 2


Letras Licenciatura em Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Literaturas da
Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL). Integra
os seguintes grupos de pesquisa: Grupo de Estudos e Pesquisa em Linguística
Aplicada e Literaturas Anglófonas (GEPLALA) e o Grupo de Estudos em Práticas
Educativas e Formação de Professores (GEPEFP/UEMASUL).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8323976550904898.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7499-1631.
E-mail: [email protected]
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Introdução
O século XX, espaço de transformações indeléveis para o código moral e simbólico do
Ocidente, observou com assombro os desdobramentos políticos que acarretaram em sofri-
mento e tragédia, tais como: a Grande Guerra (1917), a Revolução Russa (1917), a Grande
Depressão (1929) e a Segunda Guerra Mundial (1939). A Revolução Russa, no entanto, foi res-
ponsável por alterar o olhar político de inúmeros escritores, estimulando o desenvolvimento
de um subgênero da ficção científica: a distopia1.
Os desencontros de informações desse período, que configuravam as decisões do Par-
tido Bolchevique como ditatoriais, afetaram o inconsciente coletivo daqueles que se acredita-
vam muito livres, o que suscitou críticas ferrenhas aos seus líderes por meio de livros (agora)
consagrados, tais como Nós (1927), de Yevgeny Zamyatin; 1984 (1949) e A revolução dos bichos
(1945), de George Orwell; Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley; e posteriormente
gerou uma série de livros autobiográficos de Alexander Soljenítsin, preso político no governo
de Stalin, entre eles Arquipélago Gulag (1973).
Em meio a essas obras que exploram a grande insatisfação de um grupo seleto de indiví-
duos, a intelligensia de cada um desses locais, surge a ideia oposta, de Utopia2, que resolveria
o problema daquele autor. Desde a primeira publicação do primeiro texto do gênero, Utopia
(1516), de Thomas More, a humanidade flerta com a possibilidade de solucionar os seus maio-
res problemas, mas pende a subtrair as liberdades individuais em nome de um bem maior.
Contrariando as expectativas, Toni Morrison publicou Paradise (1998), romance no qual
o status quo é revertido e os pretos representam a etnia dominante. Porém, oitenta anos an-
tes, Charlotte Perkins Gilman imaginou como seria um país sem nem mesmo a mínima influên-
cia e participação masculina: Herland (1915) ou Terra das Mulheres.
A narrativa é conduzida por um narrador masculino, um explorador estadunidense que
se encontra em missão em um local x, com inúmeros outros homens e dois companheiros,
Terry e John. A partir de informações dadas por um nativo, os três descobrem a existência de
um suposto país de mulheres, aninhado entre os vales montanhosos, vivendo placidamente,
autônomo e autossuficiente.
Nos primeiros capítulos, os exploradores fantasiam com a grande oferta sexual que te-
rão em mãos: mulheres maduras e prontas para o coito, sem nenhuma defesa ou conhecimen-
to dos rituais ocidentais de acasalamento e compromisso. É relevante destacar que quando se
fala ocidental, não se contrapõe ao temo oriental, assim como o binarismo de branco/preto. O
binarismo em Herland (1915) é paternidade vs. maternidade.
O presente artigo tem como objetivo compreender como a presença e domínio do Sa-
grado Feminino na sociedade utópica de Herland (1915) auxiliou tanto no equilíbrio das ci-
ências, tais como a agricultura e o melhoramento humano, como também contribuiu para a
harmonia e o bem-estar social.
Para tanto, a presente pesquisa utilizar-se-á dos conceitos de Bakhtin (1988) acerca do
discurso plurivocálico, termo este agregado apenas para representar as estruturas e ferramen-
tas de análise neste aplicadas. Pretende-se investigar, também, o contraste das sociedades,
tanto patriarcais quanto matriarcais, e os pontos negativos e positivos ressaltados pelo narra-
dor.
O presente trabalho contribuirá com as pesquisas referentes ao Inconsciente Coletivo
junguiano, ao investigar, a partir do corpus, quais as supostas expectativas para as mulheres
no início do século XX, por meio dos posicionamentos apresentados pelas figuras masculinas
presentes no romance.

1 “Termo geralmente interpretável como sinónimo de ‘anti-utopia’ e aplicado a uma obra que põe em causa ou
satiriza alguma utopia ou que desmitifica tentativas de apropriação totalitária de um cenário utópico.” NUNES, J.
M. S. Distopia. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/distopia/. Acesso em: 04 set 2021.
2 “Palavra dúbia quanto à sua morfologia, vacilando entre o conhecimento substantivo e a vontade adjectiva, o
neologismo utopia é um vocábulo formado por derivação a cujo tema nominal de origem grega topos (lugar) se
antepôs o prefixo de negação u e se pospôs o sufixo nominal ia para designar simultaneamente uma impossibilidade
lógica-formal e uma possibilidade retórica-imaginária: literalmente, um não-lugar, ou melhor, um não lugar (físico)
que é lugar (literário)” REIS, J. E. Utopia. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/utopia/. Acesso em:
04 set 2021.
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Para isso, o artigo dividir-se-á em quatro seções: a seção 1, Literatura e Representação:


o imaginário popular como condutor de ideias, serão apresentadas as definições para repre-
sentação e como aparecem em textos literários; na subseção 1.1, O Sagrado Feminino como
equilíbrio entre Humanidade e Natureza, na qual será apresentada uma contextualização do
que é o Sagrado Feminino e como as representações baseadas neste são inseridas em tex-
tos literários; a seção 2, Metodologia, exploraremos concisamente a teoria do Plurivocalismo
Linguístico e como a abordaremos na presente pesquisa; na seção 3, O Sagrado Feminino e o
Equilíbrio Científico em Herland (1915), explorará o conceito de Sagrado Feminino, suas carac-
terísticas e apontará a sua presença no corpus; a seção 4, Considerações Finais, indicará se há
ou não distinção entre as sociedades patriarcais e matriarcais, esta última, levando em consi-
deração a proposta do corpus.
Concluída a introdução segue-se para a primeira seção, na qual será contextualizada o
Sagrado Feminino.

Literatura e Representação: o imaginário popular como condutor de


ideias
Quando o indivíduo se propõe a discutir literatura, os argumentos expostos refletem
como ocorreu o primeiro contato entre as partes, sendo estas o leitor ou ouvinte e o texto
verbal ou escrito. Muitos dos aficionados consideram a literatura uma força motriz que não
apenas narra a movimentação da humanidade, mas também analisa, até nos menores deta-
lhes, os responsáveis pelo restabelecimento ou manutenção do status quo; nos séculos XIX e
XX, o povo ganhou destaque, e suas histórias passaram a ser consideradas um retrato mais
expressivo da evolução ou (retrocesso) das relações humanas.
Essa conclusão, segundo Todorov (2006), é um reflexo da inerente utilização de códigos
socioculturais na literatura. A humanidade, extremamente dependente das relações interpes-
soais para compreender a si mesma e ao outro, busca na literatura a resolução de seus proble-
mas e questionamentos, afinal, para Eagleton (2006, p. 140), “a literatura não era uma forma
de conhecer a realidade, mas uma espécie de sonho utópico coletivo que existiu durante toda
a história, a expressão dos desejos humanos”.
Além do mais, conforme Sartre (2004, p.49), “o mundo real só se revela na ação, como
ninguém pode sentir-se nele senão superando-o para transformá-lo”; afinal, ainda de acordo
com o autor, o ato de escrever é um exercício de desvendar o mundo e de desafiar o leitor.
Como um reflexo da necessidade humana de se observar por meio desse véu tênue que
é a literatura, a arte ultrapassou o âmbito do belo e foi alçada ao posto de ferramenta pois
“pode emocionar e fazer pensar”, conforme aponta Jouve (2012, p. 18).
Portanto, quando Todorov (2006, p. 21) indica que “a literatura é um sistema de signo”,
pode-se compreender que a transmutação da literatura em “códigos sociais cuja análise não
compete a um estudo literário”, como pontuou Jakobson (1921); o ser humano passou a se
analisar como, além de criatura, também ocupava a posição de criador.
No ato de analisar os signos, o indivíduo descobriu que a literatura “é uma instituição
trans-histórica, ficando a história religiosa à mesmice” (EAGLETON, 2006, p. 139). Os signos
foram ressignificados à medida que a humanidade foi dominando o ofício de escrever; às vezes
descrevendo os políticos ou figuras ilustres em suas características comuns, criaram o este-
reótipo e a ironia. Segundo Sartre (2014, p. 53), “escrever é uma certa maneira de desejar a
liberdade” e, com isso, os pioneiros na arte da escrita concentraram-se em denunciar compor-
tamentos considerados amorais, a corrupção espiritual dos indivíduos em um período de falsas
modéstias.
Graças aos recorrentes artifícios criados pelos pioneiros da arte de escrever, como Pla-
tão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.), Homero (928 a.C. – 898 a.C.), Dante Alighieri (1265 – 1321),
William Shakespeare (1564 – 1616), a imaginação social foi cimentada a partir das imagens su-
geridas pelos artistas. Seja por eternizar relações adúlteras, sejam elas verdadeiras ou não, seja
para ressignificar todo um povo com a enorme batalha entre um continente e uma pequena
ilha. Como afirma Legros (2007, p. 58), “uma representação não é um simples reflexo do real,
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uma cópia ou uma imagem oportuna”, mas o resultado da dinâmica de fenômenos orgânicos
e psíquicos.
Mais do que isso, a imaginação interliga o agir com o pensar, forçando o homem a enxer-
gar o que a natureza oculta (LEGROS, 2007). Conforme Sartre (2004), esse impulso, que parte
do espectador, de explorar a significação da obra é negado ao criador. Quem produz literatura
não se atém aos signos que utiliza em sua obra, pois no ato de produzir o homem utiliza-se da
consciência para “resgatar e interiorizar isso que é o não-eu por excelência” (SARTRE, 2004, p.
49).
Com isso, essas representações tornam-se imagens comuns no imaginário sociocultural
que, conforme Legros (2007, p. 36), é “definido como a única potência determinante e ativa
apta a impulsionar e a dominar a prática dos indivíduos”. Conhecidos como arquétipos3, pelos
especialistas, e estereótipo, popular entre os leigos, as representações entraram na vida e no
inconsciente coletivo4 como clichês.
Por meio desses arquétipos, tem-se figuras comuns às mídias, principalmente na litera-
tura; a Mãe, como a matriarca de As vinhas da Ira (1939), de John Steinbeck; o animus5, per-
sonagem homônimo na peça Rei Lear (1606), de William Shapeskeare; o Pai, como o Grande
Irmão em 1984 (1949), de George Orwell; o sábio, como Melquíades em Cem anos de solidão
(1982), de Gabriel García Marquez; o herói, como Andrei Bolkonsky, em Guerra e Paz (1867); e
muitos outras, figuras popularizadas por livros ou filmes, imortalizando-as.
O imaginário religioso, responsável pela cristalização de alguns dos arquétipos (a Mãe
pelo movimento católico Coração de Maria, surgido no século XII, por exemplo) determina
como o ser humano passou a interpretar alguns signos conforme estabeleceu quando se po-
pularizou; graças a Bram Stoker (1847), lendas do leste europeu tornaram-se globalizadas, ins-
tituindo signos como vampiro, metamorfo e alterando os signos estaca, caixão, presas, alho,
que quando acompanhadas do novo signo, passam a ter um novo significado.
Provavelmente é Carmilla, a duquesa de Karnstein (1872) a primeira dos muitos mons-
tros que ajudaram a compor o arquétipo da sombra, um terrível mal que persegue continua-
mente o herói. No caso de O senhor dos anéis (1937), o terrível Sauron (representado por uma
armadura preenchida por fumaça preta) é o mal encarnado; Frodo, com todos os seus defeitos,
é o herói (representado por uma compleição clara e baixa). Em As Crônicas de Gelo e Fogo
(1991), os Outros, os Caminhantes Brancos, vagam por aí aguardando um cadáver para possuí-
-lo; Azor Ahai, o suposto herói da mitológica lenda dos Primeiros Homens, usa a sua enorme e
fálica espada, Luminífera, para destruir a escuridão. A dualidade luz/claro, preto/branco, bom/
mau, sobrevive até o presente e é utilizada para representar os pré-conceitos da nossa socie-
dade (COSTA E LOURO, 2019).
Não à toa, uma nova série do canal pago HBO, Lovecraft County, estreou em agosto
de 2020. A série, a adaptação televisiva do livro homônimo de 2016, explora a obra de H. P.
Lovecraft, seja por seus monstros sanguinários, seja por sua crença na raça ariana e, portanto,
na inferioridade dos não-brancos. Protagonizada por negros, a série não usa mais o tom de im-
potência e sofrimento que outras obras que abordam o mesmo tema, racismo; pelo contrário,
os seus protagonistas representam o arquétipo do herói lutando contra a sombra, o racismo.
Além do mais, os protagonistas se distanciam do padrão religioso do período, o Protestantismo
Metodista, fugindo assim dos estereótipos.
Aqui no Brasil, quando da publicação de uma das obras de Jorge Amado, Dona Flor e
seus dois maridos, em 1966, o povo brasileiro permitiu à sua casa a entrada dos orixás, das
entidades, do outrizado panteão africano, e a resistência e a ressignificação de signos da Um-
banda. O autor tornou popular uma cultura afro-brasileira marginalizada, nunca querida.

3 “A visão da psique e do inconsciente se modifica, pois ela passa a não ser “uma página em branco” no nascimento e
o inconsciente amplia-se incluindo uma camada constituída de estruturas e imagens comuns a toda a humanidade
(os arquétipos) que se manifestam nos sonhos, mitos, religiões e contos de fada”. (SERBENA, 2010, p. 76-77).
4 “O inconsciente possui uma amplitude muito maior que a consciência, sendo o ego apenas uma pequena
parte da psique. Considera que a psique é constituída por elementos inconscientes originados de várias fontes,
inicialmente do indivíduo até esferas mais coletivas e impessoais, pois o indivíduo está inserido em uma família,
que faz parte de uma cultura ou etnia, que por sua vez é da espécie humana.” (SERBENA, 2010, p. 77).
5 Segundo Jung, animus é a parte masculina na psique feminina (1987).
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Isso porque “a literatura nasce do sujeito coletivo da raça humana” (EAGLETON, 2006,
p. 140) e o imaginário social racista e intolerante associa a obra de Jorge Amado a uma ode ao
sensual, perpetrado por Sônia Braga mostrando a calcinha em horário nobre. Apenas a cultura
branca (ou embranquecida) recebe atenção, como no dramático O nome da Rosa, de Umberto
Eco; como indica Ginzburg (2012, p. 212), “a tradição brasileira corresponde aos valores da
cultura patriarcal, [que] prioriza homens brancos adeptos de uma religião legitimada”, então
há um julgamento, sempre negativo, das obras que exploram o mundo o Outro, como o Outro
expressa a sua religiosidade.
De acordo com Eagleton (2006, p. 139), “quando analisamos a literatura, falamos de li-
teratura; quando a avaliamos, estamos falando de nós mesmos”. A literatura é uma ferramenta
de observar, sim, o transcorrer da história; mas, ainda mais revelador, é redescobrir as imagens
que foram paulatinamente mudadas ou fortificadas, afinal, a literatura é um espaço plural de
participação popular.
Tendo-se apresentado o diálogo entre a literatura e a representação, e como os arqué-
tipos residem no discurso das narrativas como um mecanismo de expressão social da humani-
dade ao longo dos séculos, poder-se-á prosseguir para a próxima subseção.

O Sagrado Feminino como equilíbrio entre Humanidade e Natureza


Desde tempos remotos a humanidade é atraída pela dádiva central do nascimento e
suas peculiaridades. Inicialmente uma prática plenamente feminina, os nascimentos no mun-
do pós-contemporâneo ocorrem independente de gênero, podendo o genitor ser um homem
com útero, por exemplo. O conceito do nascimento, entretanto, permanece o mesmo, assim
como a definição do Sagrado Feminino.
O Sagrado Feminino é usado aqui como um termo chave para toda e qualquer expres-
são religiosa que baseia-se no arquétipo feminino, seja o arquétipo da deusa jovem e vigorosa
da criança, como Diana no panteão romano, ou o arquétipo da anciã sábia, como Maria para
o cristianismo. Dentre as manifestações religiosas que envolvem o Sagrado Feminino estão os
cultos à Freya, do panteão nórdico; à Bastet e à Sekhmet, do panteão egípcio; à Deusa Tríplice,
wiccana; à Ártemis e à Afrodite, do panteão grego; à Babalon, enoquiana; à Ishtar, suméria; e
à Brigit, deusa tríplice neopagã.
Calegari e Fontanella (2009) apontam as progressivas mudanças no cenário íntimo do
ser humano em relação ao meio ambiente, à ecologia ao transformar o culto à Mãe Terra ou
Gaia, em um mecanismo de defesa e reconstrução do patrimônio natural da humanidade,
para preservar as reservas naturais, a diversidade de espécies enfim, a natureza em toda a
sua pluralidade. O culto à Gaia exige uma proteção aos recursos naturais como uma forma de
continuidade da humanidade, compreendendo que precisa-se viver em equilíbrio para viver
em plenitude, similar ao culto à Pachamama ou a Mãe Terra, deidade dos Andes boliviano e
peruano.
Os autores corroboram o seu ponto quando afirmam sobre a ancestralidade energética,
que chamam de Deusa, dividir-se em duas correntes. Para Calegari e Fontanella (2009, p. 11), a
primeira vertente concentra-se no ciclo da viva, que rege a “concepção, o nascimento, a nutri-
ção, o crescimento, a evolução, a morte e a imortalidade”; na segunda vertente, a Deusa apa-
rece sob diferentes aspectos, dependendo do local onde aparece, com novas aplicabilidades,
sendo uma donzela no século XVI, nas canções trovadorescas europeias, ou uma guerreira, sob
o nome de Shiva, na cultura indiana.
Os autores discorrem sobre a relevância do culto à Mãe Terra para as mulheres con-
temporâneas, ao explicar que é a energia emitida pelo culto e suas fiéis que altera o arquétipo
primal da Mulher ocidental, tendo-se ciência de que essa nova energia é capaz de modificar e
modelar as características ideológicas que regem a ordem e atitudes sociais responsáveis pela
“formação da estrutura de caráter” (CALEGARI ; FONTANELLA, 2009, p. 13).
Segundo Cordovil (2015), o Sagrado Feminino pode ser compreendido como uma des-
sas características ideológicas as estatuetas de Vênus do Paleolítico e no culto das deusas da
fertilidade dos povos agrícolas, datadas de um período conhecido como uma suposta Era de
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Ouro das mulheres.


De acordo com a autora, esse período inicial da agricultura foi harmonioso e de valores
predominantemente maternais, em que os povos voltavam as suas orações para a terra e a
fertilidade, desde o início compreendendo a necessidade do equilíbrio entre humanidade e
natureza para que haja uma longevidade e continuidade da espécie humana. Cordovil (2015,
p. 431) acrescenta que “a vida era compreendida como uma dádiva da terra, cujo ventre bro-
tavam as plantas, nutridas pelas águas que jorravam do céu ou de suas próprias entranhas”.
A autora aponta que, às adeptas do Sagrado Feminino, houve também a influência do
movimento feminista ocidental, instaurando uma consciência pelo “equilíbrio e conexão com
seu corpo, utilizando-o como um veículo de ligação com sua espiritualidade” (CORDOVIL, 2015,
p. 432).
O reconhecimento do equilíbrio entre humanidade e natureza é vital para que haja
equilíbrio, também, entre nações e pares. É a partir dessa mudança de paradigma, do reencon-
tro do masculino com o feminino, que haverá progresso e significativas alterações de conduta
e preceitos morais. A próxima seção tratará da metodologia utilizada na presente pesquisa.

Metodologia
Mikhail Bakhtin (1895-1975), formalista russo responsável pelo desenvolvimento das
bases da Análise do Discurso, apresentou a teoria das vozes sociais dialogizadas presentes no
discurso. Conforme Bakhtin, a língua do romance nunca é única, mas, sim, é o resultado da
estratificação da linguagem que condiciona o texto à contradições e intenções diferentes, que
lutam entre si.
Para Bakhtin (1998), o rasnorítchie, ou o pluridiscurso presente no romance, resulta
da palavra bivocal especial, que serve à dois locutores e exprime duas intenções diferentes,
simultaneamente: tanto a intenção direta do personagem que verbaliza quanto a intenção
refratada do próprio autor. Logo, no discurso do romance sempre há duas vozes, dois sentidos
e duas expressões. O dialogismo está diretamente ligado ao fato das vozes se conhecerem e
conversarem entre si.
No contexto desse debate, Bakhtin (2010) desenvolve o conceito de heteroglossia (plu-
rilinguismo ou pluridiscurso). O autor enfatiza que o verdadeiro meio da enunciação é o con-
fronto entre as diversas vozes sociais, é a heteroglossia, que se efetiva no universo das relações
dialógicas. Segundo Faraco (2009 apud SIPRIANO ; GONÇALVES, 2017), o termo heteroglossia
se refere à realidade heterogênea da linguagem, que é permeada por confrontos, por meio de
múltiplas vozes sociais. Dentro da heteroglossia, consideramos a pluralidade discursiva, que
é definida como uma “coexistência de uma multiplicidade de várias formas linguísticas que
competem entre si, associados a certos pontos de vista ideológicos” (LAHTEENMÄKI, 2005, p.
43 apud SIPRIANO ; GONÇALVES, 2017, p. 68).
Para isso, é relevante salientar o caráter múltiplo das línguas, que é estratificada pe-
los índices sociais de valor, provindos da “diversificada experiência sócio-histórica dos grupos
sociais” (FARACO, 2009, p. 57 apud SIPRIANO ; GONÇALVES, 2017, p. 69), sendo a língua um
conjunto de perspectivas ideológicas que estão em constante competição.
De acordo com Sipriano e Gonçalves (2017, p. 71), “a heteroglossia diz respeito à mul-
tiplicidade de vozes sociais conflitantes, em disputa por posições de controle e hegemonia”.
É dentro da heteroglossia que o dialogismo se manifesta, possibilitando um jogo dialógico de
valores antagônicos.
Para Bakhtin (2016, p. 49), “a representação literária respectiva, a imagem do objeto,
pode ser penetrada por esse jogo dialógico de intenções verbalizadas que nele se encontram e
se entrelaçam, pode não abafá-las, mas ativá-las e organizá-las”, tornando o discurso um espa-
ço estratificado de forças contraditórias que se intensificam e se destacam no ato de responder
umas às outras.
Ainda conforme Bakhtin (2015, p. 51), “o artista da prosa exige esse heterodiscurso so-
cial em torno do objeto até atingir a imagem acabada, penetrada pela plenitude dos ecos
dialógicos”, ou seja, em todo romance há a presença intrínseca da heteroglossia, em razão dos
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múltiplos discursos emitidos pelas personagens, que dialogam entre si e com o leitor.
A respeito do conceito de “plurivocalismo”, conforme Bakhtin (1988, p. 100), “a língua
é um sistema abstrato de formas normativas, porém uma opinião concreta sobre o mundo”.
A partir de seus estudos sobre Dostoievski, o autor conseguiu observar que as diversas vozes,
ou seja, as inúmeras representações em uma narrativa, não são submetidas a uma exposição
homogênea por meio da supressão pela voz do narrador; pelo contrário, cada voz apresenta
a qualidade de equipolente, tendo estas o caráter de unicidade, formando um discurso hete-
rogêneo, portanto, sendo expostas de forma unitária e interdependente. Isso porque, “cada
palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas
as palavras e formas são povoadas de intenções” (BAKHTIN, 1988, p. 100), sendo esse o meca-
nismo apropriado para a composição da narrativa, pois os discursos, tanto do autor quanto dos
personagens, são apenas unidades básicas de inserção do plurivocalismo na obra.
De acordo com Sipriano e Gonçalves (2017, p. 65), “as vozes sociais se materializam
através da interação verbal entre indivíduos socialmente organizados”. A linguagem por si só
sempre foi pluridiscursiva, graças às contradições socioideológicas entre presente e passado,
entre grupos socioideológicos diversos, entre correntes e escolas. Essas vozes sociais se entre-
cruzam de maneira multiforme, formando novas vozes socialmente típicas.
Conforme Bahktin (2010, p. 96 apud SIPRIANO; GONÇALVES, 2017, p. 66), “a língua,
enquanto meio vivo e concreto onde vive a consciência do artista da palavra, nunca é única”. O
discurso no romance serve para refratar a expressão das intenções do autor. Logo, a linguagem
serve a dois locutores, exprimindo, simultaneamente, duas intenções diferentes, sendo estas a
intenção direta do personagem que fala e a intenção refratada do autor, compondo um discur-
so com duas vozes, dois sentidos e duas expressões.
Para Bahktin (1998), “no romance o plurilinguismo é sempre personificado, encarnado
nas imagens individuais das pessoas com as dissonâncias e as discordâncias individuais”, es-
tando essas contradições imersas no plurilinguismo social e sendo reinterpretadas por ele. Na
presente pesquisa, utilizaremos o plurivocalismo para determinar quais as vozes do discurso
presentes para defender a feminilidade saudável acima da masculinidade tóxica. A partir da
imanência, ou seja, da interpretação do texto pelo texto, apontaremos a presença do discurso
feminista em Herland (1915), assim como o seu contraponto, o machismo, comparando o equi-
líbrio entre sociedades geridas pelo matriarcado e pelo patriarcado.
Apresentada a metodologia da presente pesquisa, poderemos prosseguir para a análise
da obra.

O Sagrado Feminino e o Equilíbrio Científico em Herland (1915)


Narrado em primeira pessoa, o romance utópico de Charlotte Perkins Gilman, Herland
(1915) retrata a expedição malfadada de três cientistas estadunidenses ao desconhecido país
das mulheres. O narrador, Vandyck Jennings, e seus dois companheiros, Jeff Margrave e Terry
O. Nicholson, são convidados a integrarem a expedição que os levaria a comunidades de códi-
gos linguístico não documentados; porém, ao chegarem ao continente, por meio de conversas
com o nativo que lhes serviu de guia, são introduzidos a essa suposta sociedade incivilizada e
composta apenas por mulheres.
A proposta de conhecer esse país, inicialmente, pareceu-lhes extremamente tentadora,
afinal, “pensávamos que, se houvesse homens, poderíamos enfrentá-los, e que se houves-
se apenas mulheres... bem, não haveria obstáculo algum” (GILMAN, 2018, p. 48). Ou seja,
um país essencialmente feminino os traria prazeres inigualáveis, desde que seria muito fácil
conquistá-lo com mesquinharias e penduricalhos, como ocorreu no processo de exploração
das Américas e da África. Tal conclusão é um reflexo do inconsciente coletivo dos países impe-
rialistas, já acostumados a dominar e explorar.
Para grande surpresa dos personagens, o país realmente não tinha figuras masculinas,
mas também não contava com a representação feminina ocidental. Para o narrador, as mulhe-
res de Herland “não eram jovens. Não eram velhas. Não eram, no sentido feminino, belas. Não
eram nada ferozes. Olhei em cada rosto, calmos, graves, sábios, sem medo algum, evidente-
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mente seguros e determinados” (GILMAN, 2018, p. 46, grifo nosso). O estranhamento sentido
pelo narrador ao encontrar mulheres que fogem do estereótipo estabelecido pelo Ocidente
pode ser explicado por Birman (2016), quando o autor estabelece que, entre os polos natureza
e civilização, há a cartografia moral da natureza biológica diferenciada entre sexos. Portanto,
nessa ordem diferencial, homens e mulheres devem agir de forma diferente em aspectos di-
ferentes. Em uma sociedade supostamente intocada pela civilização ─ supostamente, pois, ao
seu modo, Herland é um país civilizado ─, os desbravadores encontraram uma comunidade
organizada e socialmente distinta.
A quebra de expectativas dos personagens acontece, primeiramente, quando a defini-
ção ocidental de mulheridade é quebrada; para o narrador, “‘mulher’, no abstrato, é jovem,
e, pensamos, graciosa. Conforme envelhecem, elas passam a tocha para alguém da própria
família ou para outrem. Mas essas boas senhoras estavam segurando a tocha bem firme e, no
entanto, qualquer uma poderia ser avó” (GILMAN, 2018, p. 47). O estranhamento de ver tan-
tos rostos femininos viçosos, ainda que já não tão jovens, segundo Federici (2017, p.347), vai
de encontro ao conhecimento arraigado no imaginário popular de que “a vitalidade sexual da
mulher velha era uma afirmação da vida contra a morte”. É, logo, considerado antinatural que
mulheres de meia idade aparentem e demonstrem tantas provas de vigor físico, igualando-as
às mulheres jovens da comunidade, em razão do inconsciente coletivo que permeia o pensa-
mento ocidentalizado.
A segunda mostra de que esse compacto e bem estruturado grupo foge das expectativas
estabelecidas pelos personagens é de que os três tornam-se prisioneiros, ainda que muito bem
tratados ─ o que contrasta fortemente com a recepção dos europeus com a diversidade étnica
e cultural das Américas e da África. Paulatinamente alfabetizados no idioma de Herland, en-
quanto ensinam o inglês para as suas instrutoras e carcereiras, os homens são tratados como
emissários benquistos das terras distantes e são constantemente consultados com perguntas
sobre seu país natal, os Estados Unidos.
As mulheres de Herland são descritas como fortes, altas e de cabelos curtos que o olhar
ocidental costuma caracterizar, como de homem. Essa caracterização é compreendida por Bir-
man (2016) como uma repartição social em que aos homens foi atribuído o registro dos direi-
tos e, às mulheres, o registro dos costumes. Porém, como em Herland as mulheres represen-
tam o status quo, o corte de cabelo nada mais significa do que uma necessidade prática, para
auxiliar nas atividades laborais realizadas por elas.
De acordo com o narrador, Herland é um “país [com] mais ou menos o tamanho da
Holanda, algo entre dezesseis e dezenove quilômetros quadrados. Sua população era de cerca
de três milhões ─ não era grande, mas tinha qualidade” (GILMAN, 2018, p. 136). Inicialmente
uma sociedade binária, Herland foi alvo de um ataque brutal de um país vizinho, que dizimou
todos os homens e até mesmo as crianças de sexo masculino, restando apenas as mulheres,
traumatizadas e vulneráveis.
A mudança vital ocorreu entre cinco e dez anos após o terrível ataque. O narrador des-
creve uma união inquestionável, por parte das mulheres, para reestruturar Herland, até que
uma delas deu à luz. Em um primeiro momento, as compatriotas acreditaram haver ali a pre-
sença de um homem; entretanto, após infindáveis buscas, compreenderam que aquele nasci-
mento era um presente dos deuses, e em muito louvaram Maaia, a Deusa da Maternidade. A
parturiente deu à luz a cinco filhas, nos anos posteriores.
A partir dessa benção inicial, as mulheres em Herland decidiram idolatrar e louvar as
cinco Filhas de Maaia, tratando-as como divindades. O narrador ainda afirma que, aos vinte e
cinco anos, essas cinco mulheres também começaram a dar à luz, tornando-se mães de outras
cinco filhas, chamadas de 25 Novas Mulheres.
Paulatinamente, a geração que ainda se lembrava dos homens morreu, sobrando ape-
nas as 125 mulheres nascidas da partenogênese6. Essas mulheres eram muito dedicadas a
manter o país em atividade equilibrada, com os registros organizados e as fazendas em pleno

6 “Reprodução assexuada de animais em que o embrião e desenvolve de um óvulo sem a necessidade


de fecundação.” RIBEIRO, Krukemberghe Divino Kirk da Fonseca. Partenogênese. Disponível em: https://
mundoeducacao.uol.com.br/biologia/partenogenese.htm. Acesso em: 26 set. 2020.
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funcionamento. O narrador indica que “as primeiras cinco filhas cresceram em uma atmosfera
de calma sagrada, de espera de observância admirada, de prece sem fim” (GILMAN, 2018, p.
103), na expectativa do momento delas contribuírem para o aumento da taxa de natalidade
do país. A maternidade nunca foi vista como um ato obrigatório, mas, sim, como uma dádiva a
qual deveriam sempre agradecer.
Movidas por ideais como beleza, saúde, força, intelecto e bondade, as mulheres passa-
ram a construir e planejar mecanismos de ensino e aprendizado, para que cada menina tivesse
ciência de sua Tarefa Real, como é chamada a maternidade em Herland. O narrador destaca
que, inicialmente, a religião de Herland assimilava-se àquela encontrada na Grécia Antiga. Po-
rém, além de perderem o interesse em conceitos (e, subsequentemente, nas divindades) de
guerra e lucro, as mulheres concentraram-se na Deusa Mãe, que tudo lhes concedia.
As mulheres em Herland dominavam conceitos como os de astronomia, fisiologia, quí-
mica, botânica e física e com trabalhos científicos que, segundo o narrador, eram “composi-
ções nas quais a ciência se mescla à arte ou vira uma indústria” (GILMAN, 2018, p. 114), o que
muito perturbou os exploradores. A primeira razão para a perturbação deveu-se ao excelente
trabalho e precisão técnica provindos de mulheres; a segunda, por não esperarem que um país
aparentemente incivilizado (aqui o olhar ocidental ganha destaque) possuísse tamanha tecno-
logia, incomum até para países industrializados e progressistas.
Outro aspecto considerado perturbador para os exploradores foi o inexistente nível de
desigualdade em Herland. Em conversas informais com garotas das montanhas, Vandyck, o
narrador, descobre que “algumas tinham conhecimentos profundos ─ eram especializadas ─,
mas todas sabiam de tudo” (GILMAN, 2018, p. 115). Mas como existir desigualdade em um
país inteiramente voltado para o desenvolvimento pleno de seus indivíduos?
Em uma das lições sobre Herland, em que foram submetidos os exploradores, Moadine,
uma das tutoras, menciona a Maternidade Humana, uma filosofia que prega “a irmandade
literal de nossa origem, e a união profunda e nobre de nosso crescimento social” (GILMAN,
2018, p.118), o que tornam as crianças o elemento principal de esperança para o progresso.
Porém, mesmo gratas à divindade pelo dom da maternidade, as mulheres de Herland
(1915) passaram a se preocupar com o aumento populacional e, futuramente, com a inevitá-
vel falta de recursos para todas. Para isso, após um conselho, decidiram prever o período de
preparação para a gravidez (que envolve um desejo forte por uma criança) e aprenderam a
evitá-la, voluntariamente, por meio do trabalho físico e mental ativo. As mulheres de Herland
observaram que a maternidade pode ser coletiva e todas passaram a se ocupar com as filhas
umas das outras. A gravidez passou a ser uma escolha.
Outra característica da maternidade coletiva é o simples fato das bebês não possuí-
rem sobrenome, como explica Moadine, pois “o produto final não é privado” (GILMAN, 2018,
p.134). Na primeira infância, as bebês levam os nomes das mães apenas como referência.
A ideia de coletividade em Herland (1915) não se limita aos bebês. Pelo contrário, em
Herland, as mulheres têm ciência de um patriotismo saudável quando dizem que “o país era
uma unidade ─ era delas” (GILMAN, 2018, p.139), por sempre pensarem em termos de co-
munidade. Suas ideias e decisões se refletem no ato de replantar a vegetação originária do
país, substituindo-a por espécies frutíferas, como alimento para a população. Essas mulheres
desenvolveram um método sustentável de fertilização do solo, que consistia, basicamente, em
retornar para lá tudo o que dele proviesse.
Outro conceito de Herland que confundiu os exploradores foi o festival anual, organi-
zado pelas mulheres, que misturava teatro, dança, música, religião e educação e consistia na
marcha, em massa, das mulheres por todo o país. Diferente da exposição de força bélica nos
países reconhecidos por seu patriotismo exacerbado, como a Coréia do Norte, a Rússia e os
Estados Unidos, as mulheres de Herland expunham o melhor que havia em sua sociedade, a si
próprias, como uma prova do orgulho em compor um país tão bem desenvolvido.
As mulheres de Herland dedicaram grande parte de seu tempo a organizar e desenvol-
ver métodos de ensino e criação das crianças, que elas chamam de jogos. As fases de desen-
volvimento são divididas em um ano de extrema dedicação materna, por meio do aleitamento;
após os primeiros dois anos, a mãe entrega a criança para os cuidados das comães, mulheres
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responsáveis por educar as crianças por meio de atividades que se assemelham a brincadeiras,
mas são, em essência, lições de geografia, ciências, física e biologia. Essas bebês são mantidas
nas partes quentes do país e, à medida que crescem, são aclimatadas às temperaturas mais
amenas.
Todas essas decisões sobre plantio e desenvolvimento humano provém do que elas cha-
mam de o grande Espírito Mãe ou a teoria central do Poder Amoroso, o que as instigou ao
desenvolvimento de um sistema ético que tem como princípio o Amor. Tais crenças repercuti-
ram na criação de uma sociedade sem guerras, sem líderes políticos ou religiosos ou opressão,
afinal, as mulheres de Herland (1915) são e se veem como irmãs em união.
Por meio da exposição de uma realidade intensamente harmoniosa e bem construída
para favorecer a todas, os exploradores fizeram a inevitável comparação do patriotismo oci-
dental com o “patriotismo” de Herland (1915):
Elas se amaram com um afeto praticamente universal, criando
amizades esplêndidas e naturais, espalhando a devoção ao
país e ao povo de tal forma que nossa palavra “patriotismo”
não consegue abarcar. Patriotismo veemente, é compatível
com a existência de uma negligência dos interesses nacionais,
uma desonestidade, uma indiferença fria ao sofrimento
de milhões. Patriotismo é, em geral, orgulho, e muita
combatividade. Patriotismo geralmente arrasta a vingança
(GILMAN, 2018, p.167).

Ou seja, enquanto o patriotismo masculino é violento e deseja a desigualdade para que


alguém seja sempre beneficiado e poderoso, em Herland há o amor espontâneo por todas as
cidadãs e a preocupação em ofertar oportunidades iguais, para que se viva plenamente.
Ademais, o conceito de maternidade de Terry, pelo ponto de vista ocidental, envolve a
dedicação integral da mãe (uma mãe fraca e sem domínio de suas crias, principalmente), vai
de encontro com a prática maternal em Herland, que, sim, é totalmente voltada para o desen-
volvimento infantil, mas de uma forma pragmática. Em Herland todas são mães de todas as
crianças e, portanto, são todas responsáveis pelo bom desempenho delas.
É, logo, nessa nação de mulheres que Vandyck descobre que “a pressão da vida sobre
o ambiente desenvolve na mente humana suas reações inventivas, independentemente do
gênero” (GILMAN, 2018, p.181). Os homens, que em suas interações com as mulheres de Her-
land, descreveram as mulheres ocidentais como ineptas, frágeis, histéricas. Além de que, cla-
ramente, os homens não conseguem explicar o porquê de as mulheres não desempenharem
funções ativas fora do ambiente doméstico ou de discorrerem apropriadamente sobre os
presídios ou por quê existem pessoas pobres nos Estados Unidos, quando afirmam ser este
um país desenvolvido.
A fé das mulheres em Herland (1915) salvou-as da extinção e motivou-as a planejar
o desenvolvimento do país para glorificar o presente divino, que foi o primeiro nascimento.
Diferente dos países ocidentais, onde as decisões são tomadas, geralmente, por homens e em
benefício dos homens, em Herland (1915) todas as decisões são voltadas para realçar o conta-
to de suas cidadãs com o Sagrado Feminino existente em cada uma delas. As mulheres nunca
precisaram agredir os estrangeiros, muito pelo contrário, eles foram tratados como figuras
ilustres. Elas aproveitaram a sua presença para aprenderem com eles o que estava além das
montanhas que cercavam o pequeno país.
Herland (1915) apresenta de maneira didática e eficiente como seria um país sem a
agressividade e a ambição imperialista, notórias nos casos de exploração das Américas e da
África. Interações essas que, até o presente momento, imprimem máculas no comportamento
e na gestão dos países que decidiram apagar a ancestralidade dos povos nativos e que impos-
sibilita às mulheres o empoderamento por meio da compreensão da vitalidade e da força que
há no reconhecimento do poder, presente na gravidez, e no posterior nascimento de mais um
cidadão.
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Considerações Finais
Os homens que invadiram Herland não são muito diferentes daqueles que invadiram as
Américas e a África quando iniciadas as Grandes Navegações, iniciadas pelos portugueses no
século XV. Mesmo o intuito inicial, que era explorar Herland (1915) como um grande e perfeito
harém, se assemelha perigosamente com os desejos dos grandes navegadores, que, além de
toda matéria-prima e minérios, também passou a explorar os corpos das mulheres nativas,
sem dar muita atenção ao grave atentado aos rituais esponsalícios ou, principalmente, ao con-
senso por parte delas.
Por mais chocante que possa soar uma realidade sem homens, os estadunidenses que
acreditavam possuir vantagens sobre as mulheres de Herland ─ afinal, os Estados Unidos se
encaminhavam como o país do futuro com os ideais de exploração das riquezas naturais de
outros países e industrialização interna ─, a surpresa de se descobrirem atrasados e, acima de
tudo, de viverem uma realidade desigual, em que apenas homens brancos possuíam oportuni-
dades, foi muito mais difícil de ser assimilada.
As mulheres de Herland têm os mesmos desejos que os cidadãos estadunidenses do
século passado, mas agem de forma distinta para os garantirem. Elas desejam que as suas
filhas tenham as melhores comidas, as melhores roupas, a melhor educação, uma vida
pacata e sadia; porém, enquanto elas se esforçam para construir um ambiente saudável e
autossustentável, priorizando o meio ambiente, que tudo lhes deu, os homens que regem os
Estados Unidos exploram riquezas de países de Terceiro Mundo, sem a mínima consciência
sobre as condições do Meio Ambiente após tudo retirarem dessas terras.
A grande questão acerca da garantia dos direitos individuais em Herland (1915) de-
monstra a óbvia diferença entre a sociedade imaginada de Gilman e os Estados Unidos onde
ela viveu: enquanto em Herland a grande preocupação é o destino das crianças, afinal, repre-
sentam o futuro da nação, os estadunidenses viviam em função de aumentar as suas riquezas
individuais, sem pensar no coletivo. O Sagrado Feminino que rege Herland induz as mulheres
a respeitarem a natureza para que possam respeitar a si próprias. Quando não há o equilíbrio
entre Homem e Natureza, não há equilíbrio na Humanidade.
A sociedade de Herland (1915) é voltada para o progresso humano por meio de possibi-
lidades iguais para todos; isso porque são motivadas pelo Sagrado Feminino simbolizado pela
Deusa Maaia, pelo Grande Espírito da Mãe e pelo Amor Poderoso. As mulheres de Herland
(1915) decidiram que não iriam mais arriscar-se à extinção sabotando-se por meio de guerras
ou um poder hierarquizado, pois foi o que as colocou em uma posição de vulnerabilidade em
primeiro lugar.
O Sagrado Feminino existe para que as mulheres reais, que não têm a possibilidade de
se refugiar em Herland (1915), redescubram em si próprias as múltiplas formas de se empode-
rar e lutar contra o status quo que as invalida e continuamente recrimina os seus corpos e as
suas mentes, como também para que a humanidade consiga entender que é apenas a partir
do equilíbrioda harmonia entre Homem e Natureza que haverá equilíbrio e, logo, igualdade.

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Recebido em 01 de fevereiro de 2021.


Aceito em 22 de setembro de 2021.

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