O Sistema de Estabelecimento Da Filiaã Ã o 2024

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 23

O SISTEMA DE ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO

Bibliografia: MIRANDA, Jorge, e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa


Anotada, Tomo I Coimbra, Coimbra Editora, 2005, OLIVEIRA, Guilherme de,
Estabelecimento da Filiação, Petrony Editora, Lisboa, 2019; Manual de Direito da
Família, 2.ª Edição, 2021; COELHO, Francisco Pereira e OLIVEIRA, Guilherme de,
Curso de Direito da Família, Vol. I, Introdução – Direito Matrimonial, 5.ª Edição.
Imprensa da Universidade de Coimbra. 2016.

1. O sistema de constituição e prova da relação de filiação


1.1. Enquadramento geral
O sistema relativo ao estabelecimento da filiação diz respeito relevância dos
factos biológicos da paternidade e da maternidade em termos jurídicos. O nascimento,
a maternidade e a paternidade constituem factos obrigatoriamente sujeitos a registo,
sob pena de inatendibilidade (arts. 1.º, a), b) e 2.º do Código de Registo Civil (CRC)).
A declaração de nascimento no registo civil é um momento importante neste sistema
por ser ocasião de identificação do pai e da mãe (arts. 96.º e 97.º CRC).
1.2. Princípios
1.2.1. Além dos princípios constitucionais de Direito da Família já
estudados - direito de constituir família (art. 36.º, n.º 1 CRP), não discriminação dos
filhos nascidos do casamento e fora do casamento (art. 36.º, n.º 4 CRP), proteção da
família (art. 67.º CRP), proteção da paternidade e da maternidade, proteção da
infância (arts. 68.º e 69.º CRP) -, têm também interesse nesta matéria os direitos à
identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º, n.º 1 CRP).
1.2.2. A partir da Reforma de 77, o sistema de estabelecimento da
filiação do Código Civil de 1966 passou a estar orientado no sentido de não haver
registos de nascimento omissos quanto à paternidade e à maternidade, no suposto de
que esse é o interesse da criança e de que é esse que deve prevalecer, no confronto de
outros interesses em presença. Também a partir dessa época, o princípio estruturante
do sistema de estabelecimento da filiação passou a ser o princípio da verdade
biológica, que aponta para que os vínculos jurídicos traduzam os vínculos biológicos,
no pressuposto de que tal corresponde ao interesse privado e ao interesse público, e,
mais concretamente, ao “interesse superior da criança”, princípio que rege hoje todas
as normas e é critério para todas as decisões relativas às crianças. Com efeito, nos
termos do artigo 3.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela
Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por
Portugal em 21 de setembro de 1990, «todas as decisões relativas a crianças, adotadas

RITA LOBO XAVIER 2024


por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse
superior da criança».
1.2.3. Contudo, a “verdade social ou afetiva” releva no que diz respeito
aos efeitos da constituição da relação de adoção1: o adotado adquire a situação de
filho do adotante e integra-se com os seus descendentes na família deste, extinguindo-
se as relações com a sua família biológica, com as exceções do disposto quanto a
impedimentos matrimoniais e do caso de adoção de filho do outro cônjuge (art.
1986.º, n.ºs 1 e 2, do CC). Além disso, existem outros desvios à verdade biológica na
chamada “procriação medicamente assistida” com intervenção de dador e também no
caso da gestação de substituição2.
1.2.4. Os vínculos da filiação só podem ser constituídos através dos
meios previstos na lei, sendo de excluir outros vínculos e outros modos de
constituição. É importante salientar este aspeto, num tempo em que, por vezes, se
ouve repetir a frase «mãe/pai é quem cria», para legitimar a preponderância de
«vínculos de facto afetivos» contra legem. Neste âmbito, também não vale o princípio
da autonomia da vontade, nem a contratualização das relações de filiação ou de
adoção. O que não exclui que a lei possa dar relevância, em maior ou menor medida,
à vontade dos candidatos à adoção, ou ao consentimento para a adoção, ao contrato de
gestação de substituição, ao consentimento para a procriação medicamente assistida,
por exemplo.
1.2.5. No sistema do Código Civil português, o art. 1796.º constitui o
preceito sinóptico escolhido para o estabelecimento da filiação. O n.º 1 diz respeito ao
estabelecimento da maternidade: a filiação resulta do facto do nascimento e
estabelece-se nos termos dos artigos 1803.º a 1825.º (o regime comum resulta da
declaração de nascimento, identificação da mãe, menção no registo, cfr., também os
arts. 112.º e 113.º do CRC). O estabelecimento da paternidade está previsto no n.º 2.
Em relação ao filho de mãe casada existe uma presunção de paternidade: presume-se
que o filho nascido ou concebido na constância do casamento tem como pai o marido
da mãe (art. 1826.º); supõe-se a correspondência com a verdade biológica pelo que
pode ser impugnada com fundamento em que é manifestamente improvável (art.

1
Muito embora a relação de adoção não seja, em rigor, uma relação de filiação, pode dizer-se que hoje
a lei as equipara para quase todos os efeitos.
2
Veremos que neste caso se tratará de uma filiação legal/contratual e, em tal medida, formal.

RITA LOBO XAVIER 2024


1839.º, n.º 2). Quanto ao filho de mãe não casada tem de haver reconhecimento (art.
1847.º - voluntário, isto é, por perfilhação – 1849.º e ss – ou judicial – 1869.º e ss). A
diferença de regimes decorre das circunstâncias particulares dos progenitores, mais
concretamente, da existência, ou não, de um vínculo conjugal entre ambos, vínculo
que, a existir, torna mais provável a paternidade do marido da mãe, em virtude dos
deveres conjugais recíprocos que assumiram.
1.2.6. O sistema previsto no CC parece um pouco desatualizado face
aos avanços da biotecnologia e da ciência que ocorreram após 1966 e mesmo depois
da Reforma de 1977. A utilização crescente dos meios de prova científica (cfr. art.
1801.º CC), como as provas hematológicas e os testes de ADN, e a fiabilidade dos
seus resultados poderiam fazer pensar ser hoje possível prescindir dos tribunais para
verificação dos vínculos biológicos para estabelecer a filiação. Na verdade, os
resultados do estudo dos perfis do filho e do pretenso pai apenas apontam para uma
probabilidade, maior ou menor, de este ser o progenitor em comparação com qualquer
outro indivíduo. Trata-se de um meio de prova pericial (art. 388.º CC) que é de livre
apreciação pelo juiz (art. 389.º CC), devendo respetivo resultado probatório ser
conjugado e compatibilizado com outros factos assentes no processo, chegando
algumas vezes a ser desvalorizado no confronto com outros factos adquiridos (cfr. art.
607.º, n.º 4 CPC). Por vezes, pensa-se que deveria ser atribuída força probatória fixa
aos testes de ADN nas ações de investigação de filiação. Contudo, mesmo que as
ações de investigação venham a ser simplificadas, a intervenção dos tribunais será
sempre muito importante para verificar, por exemplo, a idoneidade dos laboratórios, a
concretização do princípio da igualdade de acesso aos meios científicos e o respeito
pelos direitos fundamentais.
1.3. Regras gerais do sistema previsto no Código Civil
Para o estabelecimento da filiação são importantes algumas regras gerais: a
taxatividade dos meios para o estabelecimento da filiação, a obrigatoriedade do
registo (arts. 1.º, 2.º e 4.º do CRC), o período legal de conceção (arts. 1798.º, 1799.º),
a fixação judicial da data provável da conceção (art. 1800.º), a admissibilidade da
prova dos factos constitutivos da filiação através de exames de sangue e de quaisquer
outros métodos cientificamente comprovados (art. 1801.º, introduzido em 1977),
sendo a prova de livre apreciação pelo tribunal (cfr. os artigos 388.º e 389.º do CC,
para o conceito de prova pericial e respetivo valor probatório); o exame de ADN é
admitido, ainda que mais dispendioso, e, por isso, menos utilizado).

RITA LOBO XAVIER 2024


1.4. Assento de nascimento
O estabelecimento da filiação ocorre paradigmaticamente por ocasião do
registo de nascimento (cfr. os artigos 96.º e ss do CRC). No n.º2 do art. 96. º do CRC
prevê-se que nascimento possa ser declarado presencialmente, em qualquer
conservatória do registo civil, no prazo de 20 dias contados da data do nascimento (b)
e, depois das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 126/2023 de 26 de
dezembro, o nascimento ocorrido em território português também pode ser declarado
por via eletrónica, nos termos a regulamentar por portaria do membro do Governo
responsável pela área da justiça (a) e na unidade de saúde onde o nascimento ocorra
ou para onde a parturiente seja transferida, quando nela seja possível declarar o
nascimento, até ao momento em que a parturiente receba alta, nos termos a
regulamentar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da
justiça e da saúde (c) 3. O artigo 102.º, n.º 1, do CRC prevê os elementos que o
assento de nascimento deve conter, sendo de salientar, o nome próprio e os apelidos
do registando (a)), o sexo (b)), a data de nascimento (c)), a freguesia e o conselho da
naturalidade (d)), o nome completo, a idade, o estado, a naturalidade e residência
habitual dos pais (e)), o nome completo dos avós (f)). Existem algumas regras
relativas à composição do nome, devendo sublinhar-se que os nomes próprios devem
ser portugueses e não devem suscitar dúvidas sobre o sexo do registando (art. 103.º,
n.º 2, a)). A obrigatoriedade de indicação do sexo (feminino ou masculino) no assento
de nascimento de cada cidadão e a exigência de que o nome próprio não suscite
dúvidas sobre o sexo do registando representam o reconhecimento do ordenamento
jurídico da identidade sexual de cada indivíduo. A Lei n.º 7/2011, de 7 de março,
criou o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no Registo Civil
(anteriormente, apenas mediante ação judicial seria possível obter o reconhecimento
jurídico da mudança de sexo). O pedido tinha de ser instruído com um relatório que
comprovasse o diagnóstico de perturbação de identidade de género, também
designada como transsexualidade, elaborado por equipa clínica multidisciplinar de
sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou
estrangeiro. A Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto (direito à autodeterminação da
identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de

3 Artigo 96.º-A, 1 - A declaração de nascimento efetuada perante funcionário da unidade de saúde


equivale, para todos os efeitos legais, à declaração diretamente prestada perante funcionário do registo
civil, sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, todas as disposições que regulam o registo
do nascimento e o estabelecimento de filiação.

RITA LOBO XAVIER 2024


cada pessoa) trouxe uma mudança profunda nesta matéria. O processo legislativo que
levou à lei vigente, iniciou-se com um projeto do Bloco de Esquerda e prosseguiu
com um projeto de Proposta de Lei e uma proposta de Lei, diplomas que foram todos
alvo de críticas por parte de Pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências
da Vida (CNECV), fundamentando a sua rejeição no plano ético (Parecer N.º
91/CNECV/2017 sobre o Projeto de Lei N.º 242/XIII/2ª (BE): Reconhece o Direito à
Autodeterminação de Género; Parecer N.º 94/CNECV/2017 sobre o projeto de
Proposta de Lei que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e
expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa;
Parecer N.º 97/CNECV/2017 sobre a Proposta de Lei N.º 75/XIII/2.ª (GOV)
“estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de
género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa”). O
Presidente da República, em 9.05.2018, devolveu à Assembleia da República, sem
promulgação, o Decreto n.º 203/XIII, solicitando a ponderação das inovações
propostas sobre a mudança de menção de sexo independentemente de qualquer
avaliação clínica e a inclusão de menores acima dos dezasseis anos de idade,
lembrando a posição crítica do CNECV. Sublinhou ainda o facto de o próprio diploma
em apreço prever uma decisão judicial para uma eventual segunda alteração da
menção de sexo e alteração do nome próprio.
No que diz respeito ao reconhecimento jurídico da identidade de género e
procedimento da mudança de sexo no registo civil e da consequente alteração do
nome próprio (arts. 6.º- 9.º), permite-se o acesso universal ao procedimento (qualquer
pessoa de nacionalidade portuguesa maiores de idade, com capacidade, ou, se tiverem
idade compreendida entre os 16 e os 18 anos, através dos seus representantes legais)
(art.7.º). Diferentemente do que acontecia no domínio da lei anterior, basta agora a
simples manifestação de vontade individual (o conservador deve apenas apurar o
consentimento expresso, livre e esclarecido). Faculta-se um mecanismo
corretivo/reversivo mediante autorização judicial (art. 6.º, n.º 3). Não exige a prova de
que a pessoa «foi submetida a procedimentos médicos, incluindo cirurgia de
reatribuição de sexo» (art. 9.º, n.º 2).
A Lei n.º 38/2018 de 7 de agosto reduz o «reconhecimento da identidade e/ou
expressão de género» à «livre autodeterminação do género», autonomizando tal
conceito do conceito de sexo, atribuindo a essa conceção restrita, sem fundamento
científico nem jurídico-constitucional suficiente, o valor de «direito humano

RITA LOBO XAVIER 2024


fundamental». Em consequência, muitas das suas disposições têm um conteúdo
marcadamente ideológico e que merecem a maior reprovação, desde logo, na medida
em que transformam o ato de identificação pessoal no registo civil num mero
exercício de vontade individual, com desconsideração pela sua natureza pública, em
prejuízo da certeza e da segurança jurídicas4. O mesmo ocorre quando, alegadamente
de modo a proteger o exercício do direito à autodeterminação de género e expressão
de género, permite a criação e uso de «perfil» ou «avatar» de identificação com
indicação de dados diferentes dos que constam do documento de identificação
comum. Na verdade, a identidade sexual não resulta do gosto ou da preferência
subjetiva e a diversidade sexual não é uma construção cultural. O conceito de sexo
deve ser preservado como elemento diferenciador entre homens e mulheres, não
devendo ser desconsiderado e substituído pelo conceito de género, tal como opina a
«ideologia do género», abordagem que tenta desconstruir a diferenciação sexual
binária homem-mulher e a sua ligação à reprodução humana, visando edificar diversa
distinção no âmbito sexual, esta sim totalmente artificial e culturalmente justificada,
que se refere ao género como opção individual e às preferências e comportamentos
sexuais como fenómenos identitários5. Com efeito, o sexo refere-se a um conjunto de
características biológicas, fisiológicas e psicológicas (genéticas, cromatínicas,
gonadais, genitais, morfológicas e hormonais) que distinguem homens de mulheres.
A designação género é útil para indicar os aspetos que correspondem efetivamente a
construções sociais e culturais, sobre o que é ser homem ou ser mulher nas diferentes
sociedades e épocas.
Estará ainda em causa a violação dos direitos dos pais e das mães e os próprios
direitos das crianças quanto à solução encontrada para a situação das crianças que, ao
nascer, apresentam características sexuais ambíguas ou indefinidas, designadas na lei
como «pessoa intersexo» ou quanto à referência à «autodeterminação» e identidade de
género de crianças.

4 Cfr. RITA LOBO XAVIER, «Ideologia e violação de direitos na lei sobre o «direito à autodeterminação
da identidade de género (Lei n.º 38/2018 de 7 de agosto) in Revista Ação Médica, Ano LXXXII, n.º 1,
Abril 2019 (17-22), Porto (https://indd.adobe.com/view/cbaafe45-7ed1-4ea0-b96d-65eb8beab858).
5
Cfr. ELÓSEGUI ITXASO, Mª, «Diez Temas de Género, Hombre y Mujer ante los derechos
productivos y reproductivos», Ediciones Internacionales Universitarias, Madrid, 2002); XAVIER, Rita
Lobo, «Questões atuais de Direito da Família, in PINTO, Helena Rebelo; SARDICA, José Miguel
(coords.) - Família Essência e Multidisciplinaridade. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2016. Cap.
5 (103-119), p. 114. Não se podem desconhecer os casos - anómalos e felizmente pouco frequentes -
de pessoas que nascem com o sexo não especificado ou ambíguo, pessoas que passaram a ser
designadas pela expressão intersexuais que substituiu a palavra hermafroditas, mais comum até ao
momento atual.

RITA LOBO XAVIER 2024


2. O estabelecimento da maternidade
2.1. Menção da maternidade no assento de nascimento
O estabelecimento da maternidade parte da verificação de que a relação entre a
mulher-mãe e o filho é ostensiva: “mãe é aquela que dá à luz” (mater semper certa
est).
O art. 1796.º, n.º 1, remete-nos para o caso comum do registo do nascimento
há menos de um ano: o art. 1803.º: declaração de nascimento, identificação e menção
da mãe e registo. Vide, também, art. 1804.º, e arts. 96.º, 96.º-A, 97.º CRC.
2.2. Averiguação oficiosa da maternidade
Se o registo for omisso quanto à maternidade, haverá lugar a uma averiguação
oficiosa da maternidade, cfr. art. 1808.º; ainda que a própria mãe possa declarar a
maternidade (tratando-se de uma declaração de ciência e não de vontade, cfr., art.
1806.º, n.º 1), apenas não o podendo fazer quando, sendo casada, houver perfilhação
por homem diferente do marido.
2.3. Ação de investigação da maternidade
À averiguação oficiosa poderá seguir-se uma ação de investigação de
maternidade (que também pode ser proposta autonomamente), havendo presunções
legais que facilitam a prova dos factos constitutivos do direito invocado.
2.4. Ação de impugnação da maternidade
A maternidade registada pode ser impugnada (art. 1807.º).
3. O estabelecimento da paternidade
3.1. Presunção de paternidade do marido da mãe (pater is est)
Para o estabelecimento da paternidade, em regra, será preciso saber, em
primeiro lugar, quem é a mãe. Se a mãe é casada, funciona a presunção de
paternidade do art. 1826º (vide também art. 1798º): pater is est quem nuptias
demonstrant. É necessário que o filho tenha nascido ou sido concebido na constância
do casamento: o pai é marido da mãe, porque o casamento gera deveres de fidelidade
e coabitação – há uma probabilidade qualificada de o marido ser o pai. “Ter nascido”
não deixa dúvidas; “ser concebido” remete-nos para o período legal de conceção do
art. 1798.º. Por ex., Leonor nasce a 31 de outubro. Os 300 dias anteriores são os 10
meses anteriores, isto é, o período legal de conceção é o que vai de 1 de janeiro ao
final de abril (primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento) estando este
período submetido ao princípio da indivisibilidade do prazo (presunção omne meliore
momento: foi concebida num destes dias, qualquer um deles tem igual valor). A lei

RITA LOBO XAVIER 2024


supõe que o período máximo de gestação é de 10 meses, e o mais curto de 6 meses –
180 dias; mas sabe-se que há crianças que são viáveis com 5 meses de gestação. No
entanto, pode ser fixada judicialmente uma data - dentro deste período legal de
conceção -, ou ilididas a presunções relativas ao período de gestação: art. 1800.º, n.º
1).
3.2. Impugnação da paternidade presumida
A paternidade presumida do marido da mãe poderá ser impugnada com
fundamento em ser “manifestamente improvável: art. 1839.º n.ºs 1 e 2). A
impugnação é judicial e destina-se a eliminar uma presunção que funcionou,
constando já o nome do marido como pai no assento de nascimento.
3.3. Cessação da presunção de paternidade
Além de impugnável, a presunção de paternidade pode cessar. Os casos de
cessação permitem a paralisação da presunção na própria conservatória do Registo
Civil, impedindo que esta funcione. Casos de cessação da presunção de paternidade:
arts. 1828.º, 1829.º, 1832.º (neste caso, haverá, por via de regra, perfilhação – art.
1832.º, n. º 3; a não ser assim o registo será omisso e a lei não pretende esse resultado.
Daí que a anterior versão do artigo 119.º do CRC admitisse que o marido fosse
notificado de que a mulher teria feito cessar a presunção e previsse a possibilidade de
o marido perfilhar, o que era estranho (a presunção de paternidade do marido deveria
renascer, tout court, embora contra a declaração da mãe? O Dec-Lei 324/2007, de 28
de setembro eliminou tal possibilidade e a solução legal aponta agora para o
renascimento nos termos do n.º 6) e 1834.º).
3.4. Reconhecimento voluntário da paternidade - perfilhação
Nos casos de mães não casadas, a paternidade estabelece-se através do
reconhecimento. Este pode ser voluntário ou judicial – art. 1847.º. O reconhecimento
voluntário é a perfilhação (ato pessoal, livre, unilateral, formal, incondicional,
inaprazável e irrevogável). Cfr. o art. 1849.º (“livre”, considera-se um ato “quase
negocial”). Cfr. também o art. 1860.º: o facto de poder ser anulada por erro ou coação
também indica que a perfilhação é um ato de vontade. Contudo, deve corresponder à
verdade biológica: o art. 1859.º prevê a sua impugnação por não corresponder à
verdade. Quanto à capacidade do perfilhante, vide art.1850.º, n.º 1 e 1861.º, e 1853.º
quanto à forma.
3.5. Averiguação oficiosa da paternidade

RITA LOBO XAVIER 2024


No caso de não haver reconhecimento voluntário, poderá haver
reconhecimento efetuado por decisão judicial em ação de investigação – art.1847.º, in
fine. Normalmente, esta ação de investigação é precedida de uma averiguação oficiosa
(impulso do funcionário da conservatória e diligências efetuadas pelo Tribunal). A
averiguação oficiosa desencadeia-se sempre que o registo fica omisso quanto à
paternidade (cfr. art. 1864.º, seguido pelo art. 1865.º) tal como acontece com a
averiguação oficiosa da maternidade, exceto nas situações previstas no art. 1866.º. O
sistema baseia-se na ideia de que não deve haver filhos de mãe ou pai “incógnitos”
porque é do interesse do filho ter as respetivas relações de maternidade e paternidade
estabelecidas, em atenção aos direitos fundamentais à identidade pessoal e de
constituir família. No entanto, como se verá mais à frente, as recentes alterações
introduzidas na Lei da PMA permitem o acesso de todas as mulheres a estas técnicas,
individualmente, isto é, independentemente de um projeto bi-parental, o que, para
além de todos os casos em que a própria mãe não saiba ou não queira indicar quem é
o pai do seu filho, têm contribuído para o aumento do número de filhos nascidos de
pais incógnitos (segundo as estatísticas oficiais, o número quase duplicou entre 2015 e
2016). No contexto da averiguação oficiosa, pode o pretenso pai confirmar a
paternidade e perfilhar: art. 1865.º, n.º 3. Não havendo confirmação, o tribunal
procederá às diligências necessárias para averiguar da viabilidade da ação – art.
1865.º, n.ºs 4 e 5: o MP iniciará a ação de investigação, prevista no art. 1869.º.
3.5.1. A ação de investigação da paternidade, além de poder ser
desencadeada pelo MP, na sequência de uma averiguação oficiosa, pode também ser
intentada pelo filho (se for incapaz, pelo seu representante legal, em regra, a mãe) (art.
1869.º).
3.5.2. A causa de pedir nesta ação são os factos constitutivos do
vínculo biológico que liga o filho-autor ao pretenso pai-réu. Objeto da prova são
assim os factos de onde decorra a existência do vínculo biológico entre o pretenso pai
e o filho. Quanto aos meios de prova, refira-se que durante muito tempo foi
preferencialmente testemunhal, e destinada a provar os factos do relacionamento
sexual entre o pretenso pai e a mãe durante o período legal de conceção, e de que a
mãe nesse período não teve relações sexuais com outros homens.
Há ainda presunções que facilitam a prova. O art. 1871.º contempla
presunções legais (de factos conhecidos a lei retira um facto desconhecido, cfr. o art.
349.º do CC). A al. e) do art. 1871.º foi introduzida em 1998 (até aí entendia-se que

RITA LOBO XAVIER 2024


quando não fossem provados factos de onde resultasse uma presunção ou se esta fosse
ilidida, a paternidade só poderia ser reconhecida, apesar de se ter feito prova de
relação sexual entre a mãe e o pretenso pai, se se provasse que esta durante o período
legal de conceção não tinha tido relações sexuais com nenhum outro homem, o que
além de se tratar de uma presunção de facto negativo, partia do princípio da
promiscuidade da mulher; houve mesmo um Assento nesse sentido - Assento 4/83;
havia no entanto quem o interpretasse restritamente).
Trata-se de presunções ilidíveis, embora híbridas: vide art.1871.º, n.º 2: podem
ser ilididas através da criação de dúvidas sérias no espírito do julgador quanto à
paternidade.
Como foi referido, a prova pode também resultar de exames hematológicos ou
outros, que processualmente constituem perícias medico-legais, podendo ser
requeridas pelas partes ou pelo Tribunal. Importante neste contexto é também o art.
417.º CPC (dever de cooperação para a descoberta da verdade): “todas as pessoas …
têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade…” (n.º 1). A
recusa de fazer uma análise de sangue pode ser entendida como legítima por implicar
uma violação do direito de integridade física (n.º 3, a)), não aceitando a lei a
compulsão ao exame mediante do uso da força). Contudo, “… se o recusante for
parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem
prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo
344.º do CC” (n.º 2) (só se aplica se a falta de cooperação for culposa). Além disso,
pode haver condenação em multa por recusa de cooperação. Existem já decisões
judiciais que passaram pela inversão do ónus da prova (“quem não deve não teme”: a
recusa da cooperação do réu numa investigação de paternidade acaba por onerá-lo
com ónus de provar que não é o pai).
Pode não haver ação de investigação imediatamente após o nascimento, daí
que haja prazos de caducidade (arts. 1817.º, ex vi 1873.º e 1869.º) e regras relativas à
legitimidade. Os prazos de caducidade dos artigos 1817.º e 1873.º no que respeita à
ação de investigação proposta pelo próprio filho foram considerados inconstitucionais
pelo Tribunal Constitucional, sobretudo perante o direito à identidade pessoal - art.
26.º CRP, designadamente, foi declarado inconstitucional, com força obrigatória
geral, o artigo 1817.º, n.º 1 (Ac. n.º 23/2006, de 10 de janeiro). A Lei n.º 14/2009, de
1 de abril, na sequência dos referidos juízos de inconstitucionalidade, alterou
sensivelmente o regime dos prazos legais de caducidade das ações de investigação de

RITA LOBO XAVIER 2024


maternidade e paternidade. O prazo-regra passou a ser de 10 anos, contado a partir da
maioridade ou emancipação do investigante, e os prazos especiais passaram a ser de 3
anos a partir do momento em que o investigante tenha conhecimento dos factos que
justificam a investigação. O legislador optou por não consagrar a
“imprescritibilidade” do direito de investigação de paternidade, continuando a
considerar como necessária a existência de limites temporais ao exercício desse
direito, tais limites temporais tivessem sido alargados e fosse fixado o início da
contagem dos prazos de caducidade a partir do conhecimento pelo investigado das
circunstâncias que o motivam a requerer a investigação judicial da paternidade.
No entanto, a constitucionalidade destes novos prazos também foi questionada
por várias decisões dos tribunais judiciais, tendo obrigado a novas ponderações por
parte do Tribunal Constitucional, que considerou que o direito ao estabelecimento do
vínculo da filiação não é um direito absoluto, devendo ser harmonizado com outros
valores em conflito, incumbindo ao legislador a escolha das suas formas de
concretização, dentro das que se apresentem como respeitadoras da Constituição, se
afigure mais adequada ao seu programa legislativo. Daí que, admitindo-se a
consagração de prazos de caducidade neste domínio, apenas se considerou ser
exigível ao legislador ordinário que esses prazos, pelas suas características, não
impossibilitem ou dificultem excessivamente o exercício maduro e ponderado do
direito ao estabelecimento da paternidade biológica, tendo-se entendido que o referido
prazo-regra de 10 anos após a maioridade (Acórdão TC n.º 401/2011 de 22 de
setembro), e o prazo de 3 anos após o conhecimento pelo investigado das
circunstâncias que o motivam a solicitar a investigação judicial da paternidade
reuniam essas exigências (Acórdão TC n.º 247/12, de 22 de maio).
A questão foi reaberta e o Acórdão do TC n.º 488/2018, de 4 de outubro
(relatora: Conselheira Maria Clara Sottomayor) julgou inconstitucional a norma do
artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na
parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do
artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da
ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição
da República Portuguesa. Na respetiva fundamentação pronunciou-se no sentido de
que «as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o
tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o

RITA LOBO XAVIER 2024


exercício destes direitos», na medida em que a norma que estipula um prazo de
caducidade constitui «uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a
constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade,
bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os
correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições
conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP, e do princípio da
proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP».
A questão sofreu um volte-face quando o Tribunal Constitucional proferiu
Acórdão n.º 394/2019 que revogou o Acórdão n.º 488/2018, decidindo «Não julgar
inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei
n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte
em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo
1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação,
contado da maioridade ou emancipação do investigante»6. Na respetiva
fundamentação considera-se não haver razão para entender que as finalidades
prosseguidas através do estabelecimento de prazos de caducidade para o exercício do
direito de ação de investigação da paternidade são atingidas à custa de bens que, na
perspetiva da Constituição, valem muito mais do que aqueles que, direta ou
reflexamente, são tutelados por esses mesmos prazos, reconhecendo-se que os bens
jurídicos do filho concretamente atingidos pelo prazo de caducidade não assumem, na
«hierarquia axiológica da Constituição», um valor (quase) absoluto quando
confrontados com a esfera jurídico-constitucional do pai. Conclui-se assim que o
prazo de caducidade estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do CC é apto a assegurar a
tutela jurisdicional efetiva, quer dos direitos fundamentais do investigante a saber
quem é o seu pai e a estabelecer com ele o respetivo vínculo jurídico, quer dos
direitos fundamentais do investigado a saber quem é o seu filho e a estabelecer com
ele a correspondente relação jurídico-familiar.

4. O estabelecimento da filiação no caso de filho nascido com recurso às técnicas


de Procriação Medicamente Assistida
4.1. A lei portuguesa reguladora da procriação medicamente assistida

6
Cfr. Diário da República n.º 190/2019, Série II de 2019-10-03.

RITA LOBO XAVIER 2024


Embora a lei não o diga expressamente, a disciplina do estabelecimento da
filiação prevista no Código Civil pressupõe que a reprodução humana se realizou sem
o recurso às técnicas de reprodução, ou seja mediante o ato unitivo sexual. No
entanto, as técnicas de reprodução medicamente assistida foram aplicadas em
Portugal durante duas décadas, inclusive nos hospitais públicos, sem enquadramento
legislativo adequado. Muito embora a Constituição impusesse ao Estado a tarefa de
“regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da
pessoa humana” (artigo 67.º, n.º 2, e)), apenas no ano de 2006 foi aprovada uma lei
reguladora das respetivas técnicas, até esse momento usadas sem quaisquer restrições
para além das impostas pelos códigos deontológicos e pela consciência ética dos
profissionais envolvidos (Lei n.º 32/2006, de 26 de julho – Lei da PMA). A Lei da
PMA foi modificada recentemente pela Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, no sentido de
garantir o acesso de todas as mulheres à procriação medicamente assistida, sendo
passível de algumas críticas, sobretudo por fazer prevalecer totalmente o interesse da
mulher beneficiária das técnicas de PMA sobre os direitos do/a filho/a que virá a
nascer, designadamente, no caso da possibilidade de inseminação post mortem. A Lei
n.º 25/2016 de 22 de agosto, veio regular o acesso à gestação de substituição, nos
casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma
absoluta e definitiva a gravidez. A gestação de substituição, enquanto supõe a
realização de um projeto parental que dissocia a gravidez do parto, pressupondo que
uma mulher suporte a gravidez por conta de outrem e se obrigue antecipadamente a
renunciar à maternidade do filho que vier a dar à luz, desconsiderando totalmente o
vínculo biológico e afetivo construído ao longo do desenvolvimento intrauterino e
cuja manutenção e aperfeiçoamento a ciência demonstra ser benéfica para o recém-
nascido, no seu processo de crescimento e de afirmação bio-psico-social) suscita
muitas preocupações relativamente à defesa dos direitos da mulher gestante e do filho,
como se verá mais adiante.
4.2. Enquadramento geral das técnicas
Na Lei da PMA, as técnicas de PMA são apresentadas como soluções para a
infertilidade dos casais que pretendam ter filhos: nos termos do n.º 1 do artigo 4.º, as
técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação. «A
utilização de técnicas de PMA só pode verificar-se mediante diagnóstico de
infertilidade ou ainda, sendo caso disso, para tratamento de doença grave ou do risco
de transmissão de doenças de origem genética, infeciosa ou outras» (n.º 2). Pode até

RITA LOBO XAVIER 2024


acontecer que a única solução “eficiente”, neste contexto, seja o recurso ao
fornecimento dos gâmetas (óvulo ou espermatozoide) com que um dos autores do
projecto parental está impedido de contribuir. Se não existem praticamente objeções
éticas à procriação medicamente assistida in vivo e com utilização dos gâmetas do
casal autor do projeto parental, são de partilhar as objeções éticas formuladas pelos
pareceres iniciais do CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida)
relativamente às modalidades in vitro e com intervenção de dador, tendo sobretudo
em consideração a dignidade da pessoa do filho. As recentes alterações legislativas
vieram alargar o âmbito de tais objeções éticas, designadamente, ao permitir o acesso
às técnicas de PMA a todas as mulheres independentemente do diagnóstico de
infertilidade (art. 4.º, n.º 3) e a eliminação de embriões por determinação do diretor do
centro (art. 25.º, n.º 7)7.
4.3. Princípios gerais, condições de acesso e beneficiários
Na Lei da PMA estabelecem-se os seguintes princípios:
- respeito pela dignidade humana e não discriminação (art. 3.º)
- confidencialidade (art. 15.º)
- proibição da crioconservação de embriões com o objetivo de utilização na
investigação científica (art. 9.º)
- proibição da “clonagem reprodutiva”, da produção de quimeras ou de híbridos (art.
7.º, n.ºs 1 e 4)
- proibição de utilização das técnicas de PMA para melhorar características não
médicas do nascituro ou para escolha do sexo (art. 7.º, n.º 2, com a exceção prevista
no n.º 3).

7
Se se tratar da aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida in vitro, é preciso fazer
notar que delas têm resultado embriões humanos que não foram transferidos e se encontram “excluídos
de qualquer projeto parental”. Há muito que se reclama um “estatuto específico” para o embrião
crioconservado. Os embriões in vitro necessitam de ser acolhidos por uma mulher-mãe para chegar a
nascer: a tutela da sua vida terá de envolver não apenas o direito a não ser destruído, mas também o
direito a não ser mantido indefinidamente naquela situação e, por isso, o direito a ser transferido. Esta
consideração pode tornar preferível a substituição da designação mais corrente de “vida extrauterina”
por “vida pré-uterina”, reforçando-se pela linguagem a vinculação absoluta à finalidade inicial da sua
“produção”. A Lei da PMA proíbe a criação de embriões com a finalidade deliberada da sua utilização
na investigação científica, embora permita a utilização dos chamados “embriões excedentários”
(artigos 25.º, n.º 5, e 9.º, n.ºs 1 e 2). Na verdade, embora na fertilização in vitro, apenas deva haver
lugar à criação de embriões em número considerado necessário para o êxito do processo (art. 24.º,
n.º1), e os beneficiários se comprometam a utilizar os embriões não transferidos em novo processo no
prazo máximo de 3 anos (art. 25.º, n.º 1), o certo é que, decorrido esse prazo, os embriões “sobrantes”
“viáveis” que não forem doados (art. 25.º, n.ºs 3, 4 e 5), poderão ser utilizados em investigação. A Lei
da PMA permite hoje a eliminação dos embriões não utilizados nos seis anos subsequentes ao
momento da sua crioconservação por determinação do diretor do centro.

RITA LOBO XAVIER 2024


- aceitação em termos excecionais da gestação de substituição (art. 8.º).
- proibição da compra ou venda de óvulos, sémen ou embriões (art. 18.º).
Quanto às condições de acesso às técnicas e beneficiários:
- as técnicas de PMA são um método subsidiário, não alternativo, de procriação (art.
4.º). Exceção: recurso a PMA (seleção de embriões) para evitar uma doença grave ou
genética ao nascituro (arts. 4.º, n.º 2, in fine, e 7.º, n.º 3); exceção: recurso a PMA por
toda as mulheres, independentemente de diagnóstico de infertilidade.
- Podem recorrer às técnicas de PMA os casais de sexo diferente ou os casais de
mulheres, respetivamente casados ou casadas ou que vivam em condições análogas às
dos cônjuges, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil e da
respetiva orientação sexual (art. 6.º n.º 1); as técnicas só podem ser utilizadas em
benefício de quem tenha, pelo menos, 18 anos de idade 18 anos de idade e não exista
uma sentença de acompanhamento que vede o recurso a tais técnicas (n.º 2).
- ilicitude da inseminação post mortem (art. 22.º, n.ºs 1 e 2) e requisitos da licitude da
transferência de embrião post-mortem (art. 22.º, n.º 3).
4.4. Enquadramento ético-jurídico
As técnicas de PMA deveriam estar, em geral, submetidas a alguns limites
éticos. O enquadramento jurídico da sua utilização e o regime jurídico do
estabelecimento da filiação deveria ter em conta o interesse do filho mesmo antes da
sua conceção (o interesse superior da “criança-que-há-de-ser”), não fazendo surgir
novas situações de desigualdade entre homens e mulheres e entre filhos nascidos
através de procriação natural e filhos nascidos de procriação medicamente assistida.
Para conseguir tal objetivo, o referido regime deveria impor uma total
responsabilização dos intervenientes no processo de procriação medicamente
assistida, de acordo com a respetiva posição no mesmo. Assim o marido/companheiro
que consente na técnica deveria ser sempre havido como pai para que o registo de
nascimento nunca fique omisso quanto à paternidade, respeitando-se dessa forma o
direito do filho a ter um pai e os direitos da mulher coautora do projeto. O dador,
embora em caso algum seja havido como pai, deveria aceitar fornecer a sua
identificação – embora tal informação deva ser confidencial - para que se respeite o
direito do filho à sua identidade pessoal (pelo menos, no que se refere ao direito a
receber informação identificativa). Para garantir este direito, seria indispensável o
registo completo da origem biológica do nascido de procriação medicamente assistida
com dador, o que levantaria a questão da eventual menção no registo civil dessa

RITA LOBO XAVIER 2024


circunstância, por forma a permitir o exercício do direito a obter informações sobre a
sua identidade pessoal por parte das pessoas nascidas e possibilitar a prova do
impedimento do parentesco em processo preliminar de casamento, evitando os
casamentos incestuosos. Por último, os estabelecimentos autorizados e as pessoas
qualificadas para realizarem as técnicas de reprodução medicamente assistida com
dador deveriam ser civilmente responsáveis pelos danos causados pela utilização
indevida das técnicas de procriação medicamente assistida, devendo eventualmente
prever-se uma situação de responsabilidade objetiva8. Estas considerações não
dispensam um juízo ético-jurídico sobre as técnicas em causa. O direito a ter um pai e
uma mãe e a estabelecer as respetivas relações jurídicas de paternidade e de
maternidade nestas situações pode iniciar-se a montante, repensando o “objetivo
meritório” de tais técnicas à luz dos direitos das crianças e das mulheres. O suposto
“direito a ter filhos” dos casais inférteis não pode ser mais valorizado do que o das
crianças assim geradas9.
4.5. PMA com intervenção de dador e filiação jurídica
Relativamente ao acesso à PMA com intervenção de dador de gâmetas
masculinos, a lei permite o recurso a técnicas de PMA com dador quando, face aos
conhecimentos médico-científicos objetivamente disponíveis, não possa obter-se
gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos
beneficiários (arts. 10.º, n.º 1, 19.º, n.º 1, 27.º). Os dadores não podem ser havidos
como progenitores da criança que vai nascer (arts. 10.º, n.º 2, e 21.º). O artigo 15.º
estabelece a confidencialidade sobre a identidade do dador, mas consagra o direito das
pessoas nascidas por processos com intervenção de dador a obter informações de

8
Cfr. XAVIER, Rita Lobo, «O respeito pela vida humana não nascida e respectiva tradução no
ordenamento jurídico português» in Do início ao fim da vida, Actas do Colóquio de Bioética, Funchal,
18 e 19 Março de 2005, Publicações da Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa,
Braga 2005 (139-162), p. 156.158.
9
Na verdade, antes de responder à pergunta “que fazer dos embriões excluídos de um projeto
parental?”, haveria que questionar esta mesma pergunta, uma vez que ela parte de um pressuposto que
pode ser afastado: “é inevitável a existência de embriões crioconservados excluídos de um projeto
parental, eles são inerentes às técnicas de Reprodução Medicamente Assistida?”. E se resposta for
afirmativa, não será ainda de perguntar se os “tratamentos” de infertilidade não deverão limitar-se às
técnicas de transferência intratubar de gâmetas (GIFT)? Antes de responder à pergunta “como
estabelecer a paternidade das crianças geradas através de PMA com intervenção de dador?” não haverá
que questionar esta mesma pergunta, uma vez que ela parte de um pressuposto que pode ser afastado:
“as técnicas de Reprodução Medicamente Assistida com intervenção do dador podem ser aplicadas sem
violação dos direitos das crianças?”. No que diz respeito às mulheres que querem ter um filho sem pai,
ou que necessitam de uma gestante de substituição a pergunta será até que ponto este meu desejo, por
muito legítimo que seja, só poderá ser satisfeito à custa da compressão dos direitos de outros,
designadamente dos direitos do filho que vai nascer a ter um pai e uma mãe? Ou será que esse direito,
consagrado na Convenção dos direitos das crianças, é só garantido para algumas crianças?

RITA LOBO XAVIER 2024


natureza genética (n.º 2), sobre eventual impedimento legal a projetado casamento (n.º
3)10, ou mesmo informações sobre a identidade do dador, neste caso, “por razões
ponderosas reconhecidas por sentença judicial (n.º 4). Devem ser sublinhadas as
contradições do sistema, tendo em conta o que foi referido quanto às decisões do TC
sobre os prazos de caducidade das ações de investigação de paternidade com
fundamento no direito fundamental à identidade pessoal11.
Quanto à maternidade, a mãe é sempre a mulher que dá à luz, exceto no caso
de gestação de substituição lícita, estabelecendo a lei que «a criança que nascer
através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos
beneficiários» (art. 8.º, n.º 7). O consentimento prestado para a PMA nos termos do
artigo 14.º será, contudo, relevante nas hipóteses de registo omisso quanto à
maternidade e impugnação da maternidade com recurso a PMA com intervenção de
dador. No caso dos contratos de gestação de substituição nulos, por não respeitarem
as exigências do artigo 8.º, a lei não prevê expressamente quais as consequências
quanto à filiação.
A lei acaba por introduzir uma distinção quanto à determinação da filiação dos
filhos/filhas nascidos/as por aplicação de técnicas de PMA, relativamente aos
concebidos por ato unitivo sexual entre o pai e a mãe e, também, consoante existe ou
não intervenção de dador.
Na verdade, quando as técnicas não envolvem o recurso a terceiro dador, a
paternidade pode estabelecer-se nos termos gerais (presunção de paternidade a favor
do marido da mãe, perfilhação ou reconhecimento judicial), muito embora tenha
importância a existência de consentimento válido nos termos do artigo 14.º.
No que diz respeito, mais concretamente, à PMA dita com intervenção de
doador de sémen, que se pratica no nosso país, note-se que as normas do Código Civil
relativas ao estabelecimento da paternidade não foram pensadas para esta situação.

10
Note-se que não tendo o conservador do Registo Civil acesso aos dados relativos à PMA (Decreto
regulamentar n.º5/2008, de 11 de Fevereiro),a eventual deteção do impedimento dirimente relativo
depende do pedido de informação da pessoa nascida por PMA com intervenção de dador.
11
Estas contradições foram realçadas no Ac. do TC sobre a gestação de substituição que levantou
objeções quanto à «confidencialidade» do dador e da gestante. Assim, foram declaradas
inconstitucionais as normas « (…) do n.º 1, na parte em que impõe uma obrigação de sigilo absoluto
relativamente às pessoas nascidas em consequência de processo de procriação medicamente assistida
com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição,
sobre o recurso a tais processos ou à gestação de substituição e sobre a identidade dos participantes nos
mesmos como dadores ou enquanto gestante de substituição, e do n.º 4 do artigo 15.º (…)» (cfr.
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018, cit. pp. 1945-1946).

RITA LOBO XAVIER 2024


Como vimos, o sistema tem, no essencial, o objetivo de fazer coincidir o vínculo
biológico com o vínculo jurídico. Ora, neste caso, o objetivo é que o vínculo jurídico
não coincida com o biológico. Uma alteração ocorrida em 1977, que excluiu a
possibilidade de impugnação da paternidade presumida do marido da mãe ao cônjuge
que consentiu na inseminação artificial (artigo 1839.º, n.º 3), limitou-se a lançar a
confusão sobre a sua interpretação e os pressupostos da sua aplicação. O art. 1839.º,
n.º 3, foi muito criticado por ter sido inserido no Código Civil numa altura em que a
PMA não estava regulada, e acaba por até estar desatualizado do ponto de vista
terminológico. Uma vez que se aplica o art. 1826.º (presunção pater is est…), seria
sempre permitida a impugnação judicial da paternidade nos casos de PMA heteróloga
nos termos do art. 1839.º, n.º 2, o que não seria desejável. O n.º 3 deste artigo
representaria, no fundo, um afloramento do princípio da proibição de venire contra
factum proprium, de duvidosa relevância neste contexto de estabelecimento da
paternidade, vindo contrariar a ideia de que a paternidade presumida deve coincidir
com a paternidade biológica. O art. 1839.º, n.º 3, parte da ideia de que, no caso de
PMA heteróloga, em que o marido sabe não ser o pai biológico da criança, não deve
poder impugnar a presunção da paternidade.
Existe um regime especial para esta situação, determinando um vínculo de
paternidade que prescinde da derivação biológica. Não é suficiente o reconhecimento
voluntário do vínculo ou a presunção “nupcialista”: a paternidade será antes uma
paternidade “legal” ou “formal” ligada ao consentimento do marido ou do membro
masculino da união de facto para o recurso à PMA (art. 20.º, n.ºs 1 a 3). Com as
alterações ocorridas em 2016, a epígrafe do artigo 20.º passou a ser «Determinação da
parentalidade», estatuindo que se do recurso às técnicas de procriação medicamente
assistida vier a resultar o nascimento de uma criança, «é esta também havida como
filha de quem, com a pessoa beneficiária, tiver consentido no recurso à técnica em
causa, nos termos do artigo 14.º, nomeadamente a pessoa que com ela esteja casada
ou unida de facto, sendo estabelecida a respetiva parentalidade no ato de registo»
(n.º1). No caso de apenas ter tido lugar o consentimento da pessoa submetida a
técnica de PMA, o registo de nascimento da criança é lavrado somente com a
parentalidade desta, sem necessidade de ulterior processo oficioso de averiguação (n.º
3). Parece resultar assim a possibilidade de se estabelecer a «parentalidade» de duas
mulheres beneficiárias, ou de apenas uma, prescindindo-se assim de qualquer
paternidade. O n.º 4 permite a impugnação da parentalidade «pela pessoa casada ou

RITA LOBO XAVIER 2024


que viva em união de facto com a pessoa submetida a técnica de PMA, se for provado
que não houve consentimento ou que a criança não nasceu da inseminação para que o
consentimento foi prestado». A possibilidade de impugnação desta parentalidade
formalmente imposta com fundamento em que não houve “consentimento” reporta-se
ao consentimento prestado nos termos do artigo 14.º.
4.6. Gestação de substituição

A Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, veio permitir, a título excecional, a


celebração de contratos de gestação de substituição, com natureza gratuita, nos casos
de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta
e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem (cfr. a
redação introduzida no art. 8.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho – Lei da
PMA). Entende-se por gestação de substituição «qualquer situação em que a mulher
se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o
parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade» (art. 8, n.º 1, da
Lei da PMA). A gestação de substituição só pode ser autorizada através de uma
técnica de procriação medicamente assistida com recurso aos gâmetas de, pelo menos,
um dos autores do projeto parental, não podendo a gestante de substituição, em caso
algum, ser a dadora de qualquer ovócito usado no concreto procedimento em que é
participante (art. 8.º, n.º 3).
Antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, a Lei
da PMA referia-se inicialmente à “maternidade de substituição” e esta era proibida em
qualquer caso (cfr. arts. 8.º, n.º 1, e 39.º da Lei da PMA, na redação originária).Uma
primeira versão do projeto que esteve na origem da lei que permitiu o acesso à
gestação de substituição foi objeto de veto do Presidente da República, nos termos do
artigo 136.º, n.º 1, da Constituição, considerando que o decreto enviado para
promulgação não acolhia as condições cumulativas enunciadas pelo Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) em duas deliberações com
quatro anos de diferença, e com composições diversas do Conselho, as quais
«traduziram sempre a perspetiva mais aberta a uma iniciativa legislativa neste
domínio» . Subsequentemente, o projeto foi reformulado e objeto de reapreciação pela
Assembleia da República. Após a nova aprovação, o Presidente da República
entendeu proceder à promulgação da lei, em 30 de julho de 2016, que foi publicada

RITA LOBO XAVIER 2024


como Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, entrando em vigor no dia 1 de setembro de
2016.
No processo legislativo que permitiu o acesso à gestação de substituição, a
título excecional, verificados determinados pressupostos, optou-se por discutir a
questão com uma relativa autonomia e fazer aprovar o respetivo regime em diploma
próprio, que o inseriu na Lei da PMA, uma vez que apenas poderá ser autorizada
através da realização de uma técnica de procriação medicamente assistida. Nessa
medida, embora apenas a epígrafe do artigo 8.º desta lei se refira expressamente à
“gestação de substituição”, o seu regime convoca a aplicação de muitas outras das
suas disposições, designadamente, as que constam do artigo 14.º relativas à prestação
do consentimento e do artigo 15.º, respeitantes à confidencialidade.
As alterações legislativas que tinham sido muito recentemente introduzidas na
Lei da PMA pela Lei 17/2016, de 20 de junho de 2016, procederam ao alargamento
dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida, supondo uma
mudança do paradigma na utilização das mesmas centrado na realidade de que a sua
beneficiária é a mulher. Nesta linha estão os artigos 6.º, 12.º e 13.º que se refere
sempre aos beneficiários como aqueles que são submetidos às técnicas. No caso da
gestação de substituição, a lei passou a referir-se aos autores do projeto parental como
“beneficiários”. Da conjugação do disposto nos n.ºs 3, 5, 7 e 9 do artigo 8.º e dos nºs 5
e 6 do artigo 14.º, resulta que, muito embora a gestante seja a mulher a quem vão ser a
aplicadas as técnicas de PMA, não será considerada como “beneficiária”, em sentido
próprio, somente por extensão legal.
Em 24 de abril de 2018, no âmbito de processo de fiscalização sucessiva
abstrata da constitucionalidade, na sequência de pedido formulado por um grupo de
30 deputados à Assembleia da República, o Tribunal Constitucional proferiu o
Acórdão n.º 225/2018, pelo qual declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, de algumas das normas integradas nos artigos da Lei da PMA.
O Tribunal Constitucional concluiu que o “modelo português de gestação de
substituição”, tal como foi designado ao longo de todo o texto de enquadramento e
fundamentação da decisão, tem uma relevância constitucional positiva, enquanto
modo de realização de interesses jurídicos fundamentais dos “beneficiários”, estando
em causa, nomeadamente, o seu direito de constituir família e o seu direito de
procriar, que, por razões de saúde, tenham ficado prejudicados. Tal relevância
constitucional positiva advém ainda do facto de, embora o projeto parental seja dos

RITA LOBO XAVIER 2024


“beneficiários”, a intervenção da gestante em tal projeto ser «co-constitutiva»,
expressão da sua vontade e exercício dos seus direitos e liberdades fundamentais, na
medida em que aceita colaborar, submetendo-se a técnicas de PMA, partilhando, de
algum modo aquele projeto parental, apesar de não o assumir como próprio.
A partir da definição do artigo 8.º, n.º 1, da Lei da PMA, e demais disposições
relevantes, o Tribunal Constitucional encontrou os traços essenciais do regime
jurídico-positivo da gestação de substituição que considerou na sua ponderação : o
caráter subsidiário e excecional; a natureza meramente gestacional da intervenção da
gestante; a ligação genética com pelo menos um dos autores do projeto parental; as
especiais exigências relativas ao consentimento autónomo dos interessados,
destinadas a garantir a sua voluntariedade; a formalização por via de um contrato a
título gratuito, previamente autorizado, encontrando-se tal competência autorizativa
atribuída ao CNPMA. No âmbito do referido contrato, devidamente autorizado, válido
e eficaz, a gestante assume as seguintes obrigações essenciais: a de se submeter a uma
técnica de PMA; a de suportar a gravidez por conta dos autores do projeto parental; a
de dar à luz a criança e, depois de esta ter nascido, a de a entregar aos autores do
projeto parental.
No entanto, foram declaradas inconstitucionais as normas “dos n.ºs 4, 10 e 11
do artigo 8.º, e, consequentemente, das normas dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, na
parte em que admitem a celebração de negócios de gestação de substituição a título
excecional e mediante autorização prévia” (…) do n.º 8 do artigo 8.º, em conjugação
com o n.º 5 do artigo 14.º da mesma Lei, na parte em que não admite a revogação do
consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários
(…) do n.º 7 do artigo 8.º (…) do n.º 12 do artigo 8.º (…) das normas do n.º 1, na
parte em que impõe uma obrigação de sigilo absoluto relativamente às pessoas
nascidas em consequência de processo de procriação medicamente assistida com
recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de
substituição, sobre o recurso a tais processos ou à gestação de substituição e sobre a
identidade dos participantes nos mesmos como dadores ou enquanto gestante de
substituição, e do n.º 4 do artigo 15.º (…)” 12.

12
Sobre o ponto, cfr. o parecer do CNECV (104/CNECV/2019 PARECER SOBRE A ALTERAÇÃO
AO REGIME JURÍDICO DA GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO); cfr. RITA LOBO XAVIER, «A
constitucionalização do contrato de gestação de substituição e a traição das imagens: “isto não é uma
gestação de substituição”» in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa

RITA LOBO XAVIER 2024


Ulteriormente, a Lei n.º 90/2021, de 16 de dezembro introduziu alterações na
Lei da PMA, designadamente no n.º 10 do art. 8.º e n.º 5 do art. 14.º, passando o
consentimento da gestante a ser livremente revogável até ao registo da criança
nascida13.
O projeto de Decreto-Lei n.º 126/XXIII/2023, que regulamentaria esta lei não
foi promulgado pelo Presidente da República, tendo sido devolvido à Assembleia da
República, em 13.01.2024, tendo em conta, sobretudo, a oposição do CNECV e do
CNPMA. O Parecer nº 126/CNECV/2023 em matéria de gestação de substituição
tinha chamado a atenção nomeadamente para o facto de terem sido deixadas por
regulamentar algumas situações de ocorrência possível entre as partes envolvidas, no
contexto da atual Lei da PMA, quando urgia fazê-lo, por exemplo, quanto ao
estabelecimento de um prazo razoável para o exercício do «direito ao
arrependimento», ou revogação unilateral do contrato por parte da gestante, no
respeito pela vontade livre da gestante, em defesa dos interesses da criança nascida e
atendendo às legítimas expetativas dos potenciais beneficiários; e à determinação das
relações familiares, designadamente de parentesco, da criança face aos beneficiários
no caso de revogação do consentimento por parte da gestante de substituição (que
assim assumiria a condição de mãe), bem como, neste contexto, a determinação, por
lei, dos direitos e deveres dos beneficiários, e, em todos os casos, o modo de assegurar
o respeito pelo direito da criança nascida de gestação de substituição a conhecer a
identidade da gestante
4.8. PMA post mortem
A Lei n.º 72/2021 de 12 de novembro alterou os artigos 22.º e 23.º da Lei n.º
32/2006, de 26 de julho (Lei da PMA), passando a considerar-se lícito, de forma a
concretizar um projeto parental claramente estabelecido e consentido, e decorrido o
prazo considerado ajustado à adequada ponderação da decisão, após a morte do
marido ou do unido de facto, proceder-se à transferência post mortem de embrião ou à
realização de uma inseminação com sémen da pessoa falecida. O prazo de ponderação
não deve ser inferior a seis meses, salvo razões clínicas ponderosas devidamente
atestadas pelo médico que acompanha o procedimento (art. n.º 4 da Lei da PMA, na

Ribeiro, Vol. I, Direito Constitucional, Tribunal Constitucional (autor), Edições Almedina S A,


Coimbra, 2019 (345-362).
13 Art. 8.º, n.º 10: «No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes é aplicável à gestação

de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14.º, com exceção do previsto no seu
n.º 4 sobre o consentimento livremente revogável, sendo que nos casos de gestação de substituição o
mesmo pode acontecer, por vontade da gestante, até ao registo da criança nascida».

RITA LOBO XAVIER 2024


atual redação). Os procedimentos devem iniciar-se no prazo máximo de três anos
contados da morte do marido ou unido de facto, podendo realizar -se um número
máximo de tentativas idêntico ao que está fixado para os centros públicos (art. 22.º,
n.º 5 da Lei da PMA).
«Se, em virtude da inseminação realizada nos termos previstos nos artigos
anteriores, resultar gravidez da mulher inseminada, a criança que vier a nascer é
havida como filha do falecido (art. 23.º, n.º1).

RITA LOBO XAVIER 2024

Você também pode gostar