Da Curadoria Ao Algoritmo

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Geórgia Cynara Coelho de Da curadoria ao algoritmo:

Souza
Criação de trilhas por Inteligência
Universidade Estadual de
Goiás – UEG Artificial e bibliotecas digitais
Universidade Federal de
Goiás – UFG
Universidade de São Paulo –
USP From curatorship to algorithm:
ORCID: https://orcid.org/
0000-0003-4682-3769 Creation of music tracks by Artificial
Email: [email protected] Intelligence and digital libraries

SOUZA, G. C C. Da curadoria ao algoritmo: criação de trilhas por


Inteligência Artificial e bibliotecas digitais. Revista Eco-Pós,
Este trabalho está licenciado sob v.25, n.1, 301 - 319, 2022. DOI: 10.29146/ecops.v25i1.27869.
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ISSN: 2175-8689

Dossiê Audiovisualidades contemporâneas e interfaces sonoras – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/


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RESUMO
Reflexão sobre o uso de Inteligência Artificial (IA) e bibliotecas musicais digitais na composição
musical para audiovisual. Amparados em pesquisas bibliográficas sobre som e música no
audiovisual, reportagens e entrevistas com compositores que lidam com IA e/ou bibliotecas em
seu cotidiano (Abdalla, 2021; Pierrobom, 2021; Ludwig, 2018; Domene, 2018), refletimos
sobre a composição musical menos como resultado de um “ímpeto criativo de autor” e mais
como uma complexa curadoria de sonoridades disponíveis.
PALAVRAS-CHAVE: Trilha musical; Inteligência Artificial; Bibliotecas digitais; Composição;
Curadoria.

ABSTRACT
Thoughts about the use of Artificial Intelligence (AI) and digital music libraries in audiovisual
music composition. Supported by bibliographic research on sound and music in audiovisual,
reports and interviews with composers who deal with AI and/or libraries in their dailywork
(Abdalla, 2021; Pierrobom, 2021; Ludwig, 2018; Domene, 2018), we reflect on musical
composition less as a result of an “author's creative impetus” and more like a complex
curatorship of available sounds.
KEYWORDS: Music score; Artificial Intelligence; Digital libraries; Composition; Curatorship.

RESUMEN
Reflexión sobre el uso de la Inteligencia Artificial (IA) y las bibliotecas musicales digitales en la
composición musical audiovisual. Apoyados en investigaciones bibliográficas sobre sonido y
música en audiovisuales, reportajes y entrevistas a compositores que tratancon IA y/o
bibliotecas en su trabajo diario (Abdalla, 2021; Pierrobom, 2021; Ludwig, 2018; Domene,
2018), reflexionamos sobre la composición musical menos como un resultado de un “ímpetu
creativo de autor” y más bien como una curaduría compleja de los sonidos disponibles.
PALABRAS CLAVE: Partitura musical; Inteligencia Artificial; Bibliotecas digitales; Composición;
Curaduría.

Submetido em 21 de março de 2022


Aceito em 26 de maio de 2022

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Introdução
Por meio de Inteligência Artificial (IA), e em instantes, é possível criar trilhas musicais
para audiovisual em aplicativos online. A aparente simplicidade dos processos comunicada ao
usuário – “selecione o gênero e a duração; IA faz sua música; ajuste; baixe e use no seu projeto”
(Amper Music)1– esconde uma complexa rede de combinações de mais de um milhão de
samples individuais e milhares de instrumentos únicos gravados em alta qualidade, realizada
por softwares após o aprendizado de padrões e disponível para qualquer pessoa com acesso à
internet e a um cartão de crédito.
Uma trilha composta por IA geraria, então, uma considerável economia de tempo e
recursos. Mais de 20 anos após as DAWs (Digital Audio Workstations), instrumentos virtuais e
MIDI (Musical Instrumental Digital Interface) se tornarem alternativas à contratação de
músicos, equipamentos e estúdios, e após as bibliotecas musicais digitais on-line permitirem,
via licenciamento, o uso de uma trilha musical não endereçada a uma obra audiovisual
específica –library music, stock music, production music (Adams et al, 2017), música de catálogo
(Durand, 2018) ou “trilha branca”–, para se realizar uma trilha musical hoje, basta estar
conectado. O custo estético desta facilidade, a ser investigado em etapas posteriores deste
estudo, parece ser o reforço de convenções musicais, gravadas em determinado padrão,
naturalizadas em gêneros mais ou menos arbitrários, disponíveis nessas plataformas sob
diferentes tags.
Assim, propomos que a Inteligência Artificial, ao ser utilizada em trilhas para
audiovisual, configura-se como um processo de curadoria de sons disponíveis a partir da
leitura/aprendizado das escolhas do usuário, a serviço da conveniência de uma estrutura de
produção cuja velocidade se aproxima do "tempo real", em relaçãoao uso de bibliotecas
musicais ou com a encomenda de uma trilha musical a um compositor.
Ampliando a ideia de curadoria na composição de trilhas, a IA seria o processo
curatorial com menos intervenção humana especificamente durante o momento de
combinação de sonoridades – mas não no que tange à criação e atualização dos algoritmos que
a permitem, ou às escolhas prévias que precisam ser feitas pelo usuário. Nick Seaver (2017)

1Start up de propriedade da Shutter Stock, empresa estadunidense provedora de banco de imagens, vídeos,
música e editorial. Disponível em https://www.ampermusic.com/ , o sistema cria músicas customizadas por meio
de Inteligência Artificial.

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define os algoritmos como “objetos múltiplos e instáveis, ativados e atualizados a partir das
variadas práticas das pessoas que com eles se relacionam”2, demonstrando a intervenção
humana como a “professora-ativadora” da Inteligência Artificial, ao desenvolver uma
etnografia de um sistema de recomendação de música.
A intervenção humana durante o momento da composição musical para audiovisual
aumenta, juntamente com a necessidade de tempo e recursos, quando se opta pelas “trilhas
brancas”, criadas por compositores anônimos para bibliotecas musicais (stock music). O ápice
da ação humana na composição de uma trilha – a música original – parece, então, um pouco
mais distante em conteúdos de internet e televisão, e continua mais evidente no cinema, em
que um compositor segue sendo convidado a criar uma música para um filme, graças à sua
notoriedade artística, versatilidade, facilidade de negociação e provável parceria longeva com o
diretor - o que, por sua vez, sugere uma ideia de autoria datada do século XIX e cuja
romantização parece ruir quando estes três níveis de curadoria musical– IA, bibliotecas
musicais e música original – começam a se misturar.
Inauguramos, neste artigo, uma reflexãosobre Inteligência Artificial (IA) e bibliotecas
musicais digitais, especificamente quanto ao seu uso em trilhas musicais para audiovisual.
Tendo como principais parâmetros a acessibilidade tecnológica, orçamento, prazo, demandas
narrativas e fluxos de trabalho e, como fundamentação, pesquisas bibliográficas sobre som e
música no audiovisual, reportagens e entrevistas com compositores que lidam com IA e/ou
bibliotecas em seu cotidiano (Abdalla, 2021; Pierrobom, 2021; Ludwig, 2018; Domene, 2018),
refletimos sobre a composição musical menos como resultado de um “ímpeto criativo de autor”
e mais como uma complexa curadoria de sonoridades disponíveis ao longo da história da
música para audiovisual - seja por meio da aprendizagem e reforço de padrões, seja por
recombinações e possibilidades de ruptura ou “deformação” via ação humana –, sujeitas a
adquirir significados que transitam entre o clichê e o inesperado.

1. Música de catálogo: primórdios, indexação musical e “library music (king)”

2 “(...) multiples” –unstable objects that are enacted through the varied practices that people use to engage with
them” (tradução nossa). Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2053951717738104 . Acesso
em: 8 de maio de 2022.

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Propomos, nesta seção, um retrospecto histórico que conecta os catálogos de partitura
utilizados para acompanhamentos musicais durante as projeções cinematográficas do início do
século XX às principais características da library music, para, em seguida, conectá-la
historicamente à IA, com o objetivo de perceber, ao longo do tempo, as possíveis relações entre
esses processos curatoriais de associação entre música e imagem audiovisual.
Ainda no final da década de 1990, com a popularização da internet doméstica no Brasil e
o gradativo barateamento dos equipamentos necessários, “compositores anônimos”, à parte de
grandes repercussões midiáticas, passaram a desenvolver seus projetos (próprios ou
encomendados) em infraestrutura própria, responsabilizando-se, muitas vezes, por todos os
processos, da composição à masterização de fonogramas. “Com a banda larga, você passou a ter
acesso ao catálogo desses caras e poder comprar e baixar pela internet. Não só comprar e
baixar, como também você ser um fornecedor deles”, afirma o premiado compositor e produtor
musical Maurício Domene (2018)3. Sua experiência a partir da internet corrobora a afirmação
de Durand sobre a irrelevância das fronteiras geográficas nacionais para a produção musical:
“Assim, a música de um compositor poderá ser categorizada e intitulada por um consultor
musical, utilizada por um youtuber, e ouvida pelo espectador de um vídeo, sem que nenhum
desses agentes se encontre necessariamente no mesmo país ou continente” (Durand, 2018, p.
121).
Percebendo a baixa oferta do serviço de licenciamento musical digital por tempo
determinado por parte de empresas brasileiras, a alta procura das produtoras audiovisuais
nacionais por músicas em plataformas estrangeiras e o crescente interesse de compositores e
músicos fora dos catálogos de grandes gravadoras em atender esse mercado, o também
compositor e produtor musical Julian Ludwig criou a Jacarandá Licensing4, braço de
licenciamento da produtora Jacarandá Áudio (SP), em 2011. Segundo ele (2018), na
publicidade, por exemplo, a busca por trilhas está mais relacionada a uma busca de identidade
sonora com o público-alvo de uma marca e menos a uma preocupação narrativa, o que tende ao
reforço de valores por meio de sonoridades estereotipadas.

3 Maurício Domene é proprietário do Estúdio Next (SP), formado pela Berklee em Music Composition for Film and
TV e trabalha há mais de 20 anos no mercado brasileiro de trilhas musicais para audiovisual.
4 Disponível em: https://jacarandalicensing.com.br/ . Acesso em: 8 mai 2022.

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Conhecidas como stock music, production music ou, na linguagem corrente, “trilha
branca” (Adam et al, 2017), as músicas organizadas em coleções digitais (bibliotecas)
disponíveis para licenciamento possuem como características desejáveis, além da qualidade
técnica e da média ou longa duração em relação à peça audiovisual de destino, a rejeição de
melodias marcantes, a constância do andamento e da tonalidade, a divisão em stems – famílias
de instrumentos mixados de forma independente – e inícios e finais bem demarcados, sem
fades, para facilitar a edição com a imagem (Domene; Ludwig, 2018).
Velocidade, conveniência, liberação instantânea e preço são as principais vantagens da
também chamada “música de catálogo” (Durand, 2018), em detrimento de uma trilha musical
original ou de uma canção preexistente consagrada na mídia, segundo o produtor musical
estadunidense Ron Goldberg (Adams et al, 2017), não necessariamente acompanhadas de um
alto potencial narrativo, mas sim de lucros com direitos de sincronização.

A designação library music, um termo de circulação internacional, diz respeito a peças


musicais pré-existentes catalogadas segundo diversas categorias (por exemplo, por
géneros, emoções, instrumentação) e actualmente disponibilizadas em plataformas
online, tendo em vista a venda dos seus direitos para serem posteriormente incluídas em
todo o tipo de produções audiovisuais (Durand, 2018, p. 118)

O compositor, técnico de som, finalizador, produtor e artista experimental Sérgio


Abdalla (Confraria de Sons & Charutos, São Paulo-SP)5 conta, em entrevista para esta pesquisa
(2021), que utilizou música de catálogo quando foi editor musical para reality shows e no
contexto de uma série que demandava conhecimento estilístico específico (rock/heavy metal):

A produção pôs à disposição um banco que tinha muitas entradas separadas por tags,
nomes de banda fictícia e até capas de álbum e que eram extremamente funcionais em
termos de indicar o tipo de conteúdo musical (por alusão a parâmetros não-musicais,
como atmosfera, pegada, sentimento, ambiência, tipos de cena e gêneros
cinematográficos – entre outras coisas). O que acontece nesse caso, eu diria, é que a
tradução da terminologia não-especializada e extremamente imprecisa materialmente
que às vezes é utilizada por quem encomenda a música – produção, direção, montagem –
é feita por quem concebeu, compôs, organizou, nomeou e pôs à venda o banco de trilhas
em questão. Onde a produção diz precisar de uma entrada "que tenha uma pegada de
rock setentista mas com um som moderno, porém sem perder a alegria", quem está do
lado do banco de som já fez o trabalho de disponibilizar uma faixa ou álbum ou grupo de

5 Sérgio Abdalla cursou Composição e Regência com especialização em Composição Eletroacústica na


Universidade Estadual Paulista (Unesp), é Mestre em Sonologia pela Universidade de São Paulo (USP), co-
fundador do grupo Nova Música Eletroacústica (NME) e da revista linda e supervisor musical em uma empresa de
games de São Paulo-SP.

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álbuns com essas etiquetas, tentando por aproximação materializar as possibilidades
sonoras de palavras como essas, usadas nesse contexto (Abdalla, 2021, s/p)

Para Abdalla, o processo curatorial de library music para audiovisual, por meio da
criação de categorias/tagueamento, usa referências extramusicais para “descrever” ou
contextualizar a linguagem musical para um público usuário não especializado, facilitando a
tomada de decisões sobre sua articulação com a imagem tanto em relação à função, quanto no
que tange à forma musical global (canção, instrumental, concerto, peça de câmara),
instrumentação, forma musical específica (duração, estrutura), sonoridade, estilos de
performance, edição e mixagem.
Em entrevista para Durand (2018), o fundador das empresas de library music Koka-
Média e Cézame, Frédéric Leibovitz, compara esse tipo de classificação àquela feita para as
antologias musicais em partituras durante o período pré-sincronizado do cinema. Kassabian
(2001) já fizera tal associação, ao mencionar que a indexação de production music por humor,
geografia, tempo, gênero, função estrutural (introduções, ligações) e ação (viagens, crime,
esporte) é muito similar à oferecida pela Erno Rapee’s Encyclopaedia of Music for Pictures
(1925), “com a vantagem de serem pré-gravadas e indexadas em um banco de dados”
(Kassabian, 2001, p.17).
Detalhamos esta comparação entre a música de catálogo digital e on-line do século XXI e
as coletâneas de partituras da segunda fase do acompanhamento musical no cinema pré-som
sincronizado, como a Sam Fox Moving Picture Music (J. S. Samecnik, 1913) e a Kinothek Neue
Filmmusik (Giuseppe Becce, 1919). Conforme Carrasco (1993), esta etapa é posterior à
improvisação musical sem grande preocupação narrativa e à ênfase no repertório tradicional
romântico do século XIX (primeira fase); e “anterior ao momento em que os filmes contam com
uma planilha de indicação de seu acompanhamento, logo substituída por partituras originais
(parcial ou integralmente) compostas para um filme (terceira fase)” (Souza, 2019).
Se, no início do século XX, o exibidor era o responsável pelo fornecimento das partituras
e pela contratação do músico, e a execução ao vivo variava conforme a sala, a capacidade de
leitura e improvisação do músico e a instrumentação disponível, as bibliotecas de música de
catálogo do século XXI dispõem de fonogramas já gravados, editados e finalizados conforme
padrões praticados no mercado, articuladas à imagem pela equipe de montagem, com a

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mediação facultativa de um supervisor musical. O músico das salas de exibição de cem anos
atrás perseguia a melhor performance ao vivo de peças de compositores consagrados,
enquanto o compositor anônimo de hoje que vende seus fonogramas de características
estéticas “genéricas” em sites de licenciamento não sabe o destino de sua música e busca
oferecê-la em ambientes nos quais ela possa ser vendida por valores mais competitivos e, ao
mesmo tempo, estar “mais visível” (melhor indexada) em catálogos digitais.
Além de chamar a atenção para o esfacelamento das ideias de originalidade,
autenticidade, genialidade e inspiração – que geram a canonização de compositores como John
Williams e Hans Zimmer e o apagamento daqueles fornecedores de stock music–, Durand
(2018) ressalta a necessidade pragmática de facilitar a busca por música nesses vastos
catálogos – em geral, feita por pessoas sem grande ou nenhum conhecimento musical formal –,
antes que se critique um suposto caráter “estereotipado” das tags ou categorizações.

Adicionalmente, como foi possível discernir em entrevistas realizadas a membros de


duas empresas europeias de destaque, Cézame e Audio Network (DURAND 2017) [sic],
as descrições, títulos e palavras-chave com que as faixas são apresentadas no site são
habitualmente escolhidas por uma equipa de consultores musicais e não pelos
compositores, sendo o resultado de um vocabulário pré-definido cuidadosamente
ponderado. Os processos de produção e comercialização da library music são portanto
orientados por um campo semântico determinado por uma equipa da empresa que é,
por sua vez, influenciada pelas tendências correntes das indústrias audiovisuais: é em
grande parte a preocupação de responder e até mesmo antever a procura dessas
indústrias que orienta os tipos de categorias e elementos textuais das faixas (Durand,
2018, p. 122).

Elaboradas a partir de convenções composicionais para o cinema e televisão, as


descrições das faixas carregam, segundo a autora, a ideia de associações instantâneas entre
música e narrativa, o que vincula a música de catálogo aos clichês – o “automatismo
associativo” condenado por Adorno e Eisler (1947) por sua “banalidade” e falta de
“originalidade”, que levariam a “respostas automáticas” dos espectadores. Durand questiona
tal posição, relacionando-a à tradicional abordagem utilitarista da música de cinema:

Este hábito de teorizar e pensar a música no audiovisual segundo as suas funções


encontra-se tão enraizado e normalizado que origina perspectivas como a de Kalinak,
que atribui a essa «funcionalidade» um papel central na definição da música de filme:
«film music is [...] defined by its function within a cinematic field of reference» (KALINAK
2010, 9) [sic]. Tendo isto em conta, não é surpreendente que as categorias e palavras-
chave associadas às faixas de library music estejam tão estreitamente ligadas a essas

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funções de indicação, fazendo referência não só a emoções como também a locais,
épocas históricas, possíveis utilizações em diferentes produções, e adjectivos que se
poderiam perfeitamente aplicar a personagens numa narrativa (Durand, 2018, pp. 124-
125).

Em sua abordagem sociológica da library music, Durand toma emprestado da música de


concerto o conceito de musicking (Small, 1998) para ressaltar, como ação coletiva e
descentralizada, as articulações semânticas de um mesmo fonograma em diferentes contextos,
realizadas ativamente não apenas por compositores e intérpretes da música catalogada, mas
também por outros agentes ouvintes, como os profissionais que eventualmente categorizam as
músicas – no caso da empresa dos entrevistados pela autora, os consultores musicais – e os
trabalhadores do audiovisual que, na outra ponta, vão utilizar os fonogramas em suas
produções. Estes últimos, ressalta a autora, podem subverter o direcionamento sugerido pela
categorização do catálogo, utilizando uma “música de ação” em uma sequência de romance, por
exemplo.

Independentemente do nível de educação musical formal de cada um destes agentes, a


acção da equipa e dos clientes de um site, ao inserirem as faixas musicais em
determinados enquadramentos textuais e audiovisuais, permite-lhes ganhar uma
relevância que o compositor não é o único a deter. Tendo isso em consideração, a
própria categorização de library music, bem como a sua escolha e articulação com
imagens, pode ser considerada como um acto criativo (Durand, 2018, p. 126).

A autora trata como um fenômeno próprio da música de catálogo a diversidade de


possibilidades tanto de utilização de um mesmo fonograma quanto do uso de várias faixas para
uma mesma sequência audiovisual, o que revela uma densa trama colaborativa de “sujeitos-
agentes-ouvintes-criadores” de significados. Tal fenômeno adquire outra camada de
complexidade – e, também, outra velocidade – quando se considera a teia de algoritmos
programados, atualizados e combinados em Inteligência Artificial.

2. Da library music à Inteligência Artificial

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O também compositor e produtor musical da Vila Humilde Productions, em Guarulhos-
SP, Eduardo Pierrobom (2021)6, afirma que o nicho das músicas de catálogo deve ser o
primeiro a sentir o impacto da Inteligência Artificial. Em entrevista para esta pesquisa, ele
afirma que o upload de composições próprias para bibliotecas online foi o que o motivou a
desenvolver a sua própria coleção, hoje com cerca de 200 fonogramas separados por
categorias mais ou menos específicas, como eletrônico, orquestral, étnico, ethereal, textural,
motivacional, épico, percussivo, etc. Diz ainda economizar tempo, trabalho e recursos
utilizando IA em seus processos. “A IA caiu como uma luva. Pois se preciso de um dia para criar
uma animação gráfica, eu preciso de outro dia para compor a música e finalizar o áudio”
(Pierrobom, 2021).
Baseada em padrões de bancos de dados, programação e desenvolvimento/atualização
de algoritmos pela inteligência humana, a Inteligência Artificial permite o aprendizado e a
criação por não humanos. Atribui-se ao professor John McCarthy o primeiro uso desse termo,
em 1956, definido como “a ciência e a engenharia de produzir máquinas inteligentes”. Os
sistemas baseados em AI aprendem com o tempo, tendo como referência decisões humanas, o
que, em tese, potencializa sua própria inteligência e pode auxiliar o ser humano na vida prática.
Configurando-se em uma densa área de pesquisa dentro das Ciências da Computação, os
conceitos de IA agrupam-se, segundo Russell e Norvig (2010), em pelo menos quatro
categorias básicas, envolvendo sistemas que, percebidos de modo estanque e, por isso, limitado
– o qual não detalharemos –, (1) pensam e/ou (2) agem como humanos, ou que (3) pensam
e/ou (4) agem racionalmente. Em detrimento desta, adotaremos a perspectiva de Seaver
(2017), compreendendo os sistemas algorítmicos que geram IA como culturais, no sentido de
serem permeáveis, ativados por procedimentos não apenas racionais, resultantes de um
conjunto complexo de práticas humanas variadas.
Citando Schwab e Davis (2018), De Marchi (2020) situa a utilização da IA na música
dentro da chamada “quarta revolução industrial”, termo cunhado por Schwab para designar
uma época marcada por constante desenvolvimento tecnológico concomitante à ascensão de
novos modelos de negócio, nos quais interagem os “domínios físicos, digitais e biológicos”.
Deste contexto faz parte a automação de atividades que afetam práticas de produção e

6Eduardo Pierrobom trabalha, além da composição musical, com motion design, edição de vídeo, produção de
anúncios, entre outras funções em sua empresa.

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consumo de bens e serviços, colocando em dúvida a permanência de certos profissionais no
mercado, a possibilidade do tão sonhado equilíbrio entre os agentes envolvidos nesta indústria
e a diversidade de bens culturais acessíveis ao público.

Há algoritmos que recomendam música, há os que produzem música, além de


tecnologias de segurança que permitem a total descentralização das relações
econômicas, entre outras novidades que começam a estar disponíveis no mercado. A
promessa de disjunção desse pacote de inovações é concreta, afetando o mercado de
trabalho assim como os níveis de diversidade cultural no mercado de música. Talvez seja
o caso de rotular esse momento que se inicia de pós-streaming (De Marchi, 2020, pp-
225-226)

De Marchi denomina “pós-streaming” o período de automação da produção musical


gravada, já tornada possível por meio de serviços como Flow Machines, Watson Beat (IBM),
NSynth Super (Google Magenta), Jukedeck, Endel, Melodrive, Spotify e o aplicativo já citado na
apresentação deste artigo, Amper Music. Conforme informações do site especializado The
Verge7, a maior parte desses sistemas adotam redes de deeplearning – uma espécie de software
para aprendizado maquínico baseado em análise de dados sobre práticas humanas para a
identificação de padrões. Assim, para a criação de música por IA, são considerados os
intervalos entre as notas, os acordes, ritmos, andamentos e outras informações previamente
armazenadas para que os aplicativos as aprendam e “gerem sua própria composição”. Entre as
diferenças entre os sistemas citados, o site elenca a entrega do arquivo em MIDI (projetos da
Google e da IBM) ou em áudio (Amper), além do aprendizado baseado em dados ou em códigos
originados a partir de teoria musical.
De acordo com Eduardo Pierrobom, em termos práticos, a IA pode ajudar o compositor
a resolver uma trilha musical com prazo exíguo de entrega, situação corriqueira no mundo
corporativo e da publicidade: se um compositor sente dificuldades para direcionar suas ideias
no início de uma nova trilha, a IA pode sugerir algum caminho a ser lapidado e “melhorado”
pelo compositor.

Atualmente a grande demanda é por “música de fundo”, ou “música corporativa”, ou


“motivacional”, e tantas outras coisas 2.0, e não mais aquelas composições bem
elaboradas como aqueles jingles que marcaram a minha infância. (...) Mas não consigo

7 Disponível em: https://www.theverge.com/2018/8/31/17777008/artificial-intelligence-taryn-southern-


amper-music . Acesso em: 9 mai 2022.

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sequer ter o menor vislumbre de como usar a IA para compor a trilha de um filme bem
produzido, por exemplo. Não por enquanto (Pierrobom, 2021).

O equívoco contido na ideia de que a IA possa substituir completamente o trabalho


humano é evidenciado por Deahl, que testa os aplicativos citados na matéria do The Verge
(2018): “numa escala micro, a música é convincente; mas quanto mais você escuta, menos
sentido ela faz. Nenhum desses sistemas é bom o bastante para ganhar um Grammy Award de
melhor canção… ainda”8.
Aproveitando o provável impacto da IA sobre as bibliotecas musicais digitais
mencionado por Pierrobom, estabelecemos uma reflexão sobre essas duas possibilidades, com
vistas a um aprofundamento tanto sobre as implicações profissionais e logísticas sobre o fluxo
de trabalho do compositor, quanto sobre as possíveis consequências estéticas e narrativas
sobre a obra audiovisual a que a música se destina.
Tendo como referência o funcionamento da Amper Music, citada na introdução deste
texto como um sistema de IA de fácil manuseio, nota-se, conforme anunciado no próprio site e
antecipado no início deste texto, que a trilha gerada por aquela plataforma e comprada pelo
usuário é “royalty free”, não precisando, portanto, passar por nenhum processo de
desobstrução jurídica além do pagamento pelo uso da faixa criada. “Os usuários nos pagam
pelo acesso à plataforma e, com isso, têm a possibilidade de criar uma quantidade infinita de
músicas para baixaram e utilizarem em uma licença global, perpétua e livre de royalties”,
afirma o CEO e cofundador da Amper Music, Drew Silverstein, em entrevista para o jornal O
Estadão (Gonzaga e Fernandes, 2019)9. O mesmo ocorre quando se adquire uma biblioteca
musical digital, com a diferença de que esta gera dividendos para o compositor fornecedor de
fonogramas, a depender das condições aceitas nos “termos de uso” ou firmadas em contrato,
em cada plataforma.
Assim, a opção pela IA poderia ampliar as quatro vantagens atribuídas por Goldberg (in
Adams et al, 2017) à production music – velocidade, conveniência, liberação instantânea e

8However, they all have one thing in common: on a micro scale, the music is convincing, but the longer you listen, the
less sense it makes. None of them are good enough to craft a Grammy Award-winning song on their own... yet
(tradução nossa). Disponível em: https://www.theverge.com/2018/8/31/17777008/artificial-intelligence-taryn-
southern-amper-music . Acesso em: 9 mai 2022.
9 Disponível em: https://arte.estadao.com.br/focas/estadaoqr/materia/inteligencia-artificial-musica-startup-

amper . Acesso em: 8 mai 2022.

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preço –, uma vez que mantém as características formais genéricas (Domene; Ludwig, 2018),
mas com mais liberdade, a depender dos gêneros e subgêneros disponíveis na plataforma, e
instantaneamente. O andamento e a tonalidade que se querem imutáveis num fonograma de
um banco musical organizado em stems e por gêneros podem ser alterados automaticamente
no sistema Amper Music (IA), quando se define graficamente o lugar do clímax narrativo, por
exemplo – processo após o qual a música, já configurada segundo as preferências do usuário e
mixada em alta qualidade, está pronta para download.
No sistema de IA em questão, a duração exata da música completa é programada antes
da escolha do gênero musical, conforme a duração do vídeo que o usuário (qualquer pessoa
conectada) sobe para o site. Nas “trilhas brancas”, por outro lado, os inícios e finais são bem
demarcados (sem fades) nos fonogramas ofertados em todos os gêneros disponíveis no banco a
ser acessado pelo realizador, produtor, editor de som ou supervisor musical, sofrendo variação
na montagem.
Após a configuração da duração da música e/ou do vídeo nas primeiras telas da Amper
Music, menus e submenus descrevem a música em gêneros, emoções e estilos, gerando
combinações sonoras que criam uma música a partir das escolhas do usuário (Figura 1). O uso
da biblioteca de samples para transformar tais escolhas em áudio gera, no intervalo de
segundos e sem a necessidade de formação musical ou em programação, “uma performance
que soa como se tivesse saído de um estúdio”, afirma Silverstein (in Gonzaga e Fernandes,
2019)10.

Figura 1 – Captura de tela da estrutura do aplicativo Amper Music: gêneros, emoções e estilos

10Disponível em: https://arte.estadao.com.br/focas/estadaoqr/materia/inteligencia-artificial-musica-startup-


amper . Acesso em: 8 mai 2022.

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Fonte: www.ampermusic.com

O controle de ritmo, instrumentação, dinâmica, clímax e duração (Figura 2), bem como a
facilidade de uma trilha livre de royalties, licenciada global e eternamente para o uso do
consumidor e manipulável em pistas separadas softwares de edição de áudio, são vendidos a
produtores audiovisuais sob o argumento da customização em um prazo mínimo, em que
poucas decisões fazem emergir uma música livre de disputas e desgastes relacionais e, em tese,
adequada (funcional) a determinado produto.

Figura 2 – Captura de tela da estrutura do aplicativo Amper Music: ritmo, instrumentação e outros
controles

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Fonte: www.ampermusic.com

Os valores, em maio de 2022, variam de cinco dólares – pagos por licenças pessoais e
projetos escolares – a 499 dólares – pagos por licenças profissionais com uso publicitário
irrestrito (Figura 3).

Figura 3 – Captura de tela da estrutura do aplicativo Amper Music: valores conforme categoria

Fonte: www.ampermusic.com

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Finalmente, enquanto o usuário deve conhecer o destino da trilha – mais específica em
relação à narratividade – gerada por IA e comprada para uso infinito (conforme a categoria e o
pagamento efetuado), o compositor anônimo não sabe o destino de sua trilha genérica
disponível em catálogos de música – a ser usada por tempo determinado, via licenciamento
(Oliveira, 2017) –: esta, então, pode aparecer associada a diferentes produtos audiovisuais, sem
que seu criador saiba de qualquer de seus paradeiros.

Considerações finais

Inéditas ou não, “trilhas brancas” disponíveis em plataformas digitais de licenciamento


geram oportunidades de comercialização e divulgação para seus compositores – os quais vêm
cultivando, desde a década de 1990, um perfil empreendedor. Tal prática, porém, parece gerar
um abismo de endereçamento entre esses profissionais e as obras audiovisuais às quais suas
trilhas são acopladas – já que, via de regra, tais compositores sequer sabem que destino terão
suas músicas, uma vez disponíveis nesses catálogos.
No entanto, Abdalla pondera que as bibliotecas de música para licenciamento podem
cobrir a necessidade que uma composição original cobriria. “Alguém do ofício da composição
esteve nessa outra ponta compondo essas músicas, de qualquer maneira. A adequação à cena
pode ser pensada pela mesma pessoa ou por outra”, analisa o compositor, que, também como
mixador, já esteve em posição de decidir de última hora junto à direção ou produção se uma
música específica estava ou não servindo ao propósito. Para ele, a implicação estética do uso de
stock music tende a ser a de haver menor especificidade no produto final, o que também pode
ser percebido no tradicional processo de encomendar uma trilha musical a um compositor,
enviando-lhe referências muito específicas.

Se é de imitação que se trata, por que uma música de biblioteca não poderia ser muito
similar à referência? (...) Meu ponto é que se estamos falando de corte e costura (e não
há problema pré-determinado nisso), não vejo porque montar com retalhos pré-prontos
(música de biblioteca) seja menos adequado (Abdalla, 2021)

Numa escala de economia de tempo e recursos, indicação de caminhos criativos e uso


em projetos de baixo orçamento e/ou curto prazo geralmente associados à televisão e internet,
a Inteligência Artificial aplicada a trilhas musicais para audiovisual parece realmente ter vindo

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para suplantar os bancos digitais de música, conforme prevê Pierrobom (2021). Afinal, torna-
se possível para qualquer usuário com cartão de crédito, mesmo sem domínio da linguagem
musical ou de programação, baixar um fonograma com sonoridades em alta qualidade,
previamente combinadas e mixadas conforme opções de gênero musical ou “clima” (mood),
com a possibilidade de, graficamente e no tempo do vídeo, ter indicado o clímax narrativo –
processo menos trabalhoso que abrir pastas e subpastas de coleções de fonogramas para
procurar fragmentos desejados para uma trilha, a serem articulados posteriormente entre si e
com a imagem, na edição.
Por essa lógica, a IA pode concorrer com o artista e comprometer sua rentabilidade (De
Marchi, 2020), ao mesmo tempo constantemente aprendendo/reforçando células musicais cuja
referência é uma composição humana pré-existente (Seaver, 2017). Mas o compositor pode,
por outro lado, incorporá-la como ferramenta em seu fluxo de trabalho, reduzindo tempo e
custos, e ao mesmo tempo considerando caminhos musicais sugeridos por algoritmos.
“Estamos numa ‘era aumentada’ (...), a IA serve para expandir a nossa consciência e a nossa
criatividade. Não é o tipo de coisa que possa competir com a nossa criatividade, mas sem
dúvida é o tipo de coisa que pode nos ajudar a criar coisas melhores” (Pierrobom, 2021).
Certamente, o otimismo desta perspectiva esbarra na complexidade de um cenário em que se
encontra o compositor de música para audiovisual, marcado, entre outros aspectos, pela
diversidade de valores praticados, baixa articulação política da categoria e precarização do
trabalho em relação a outras funções do audiovisual.
Sérgio Abdalla (2021), por sua vez, pensa na relação entre bibliotecas digitais e
Inteligência Artificial – nos sentidos curatorial e estético, de exigência de certos padrões na
estrutura da música para que sirva a diferentes audiovisuais – como um movimento
interessante e inevitável. “Se temos uma certa padronização dos usos e funções de música nos
produtos audiovisuais, como supor que as instruções para ligar música e filme não sejam
passíveis de formalização (algoritmização)?”, indaga o compositor, constatando a fragilidade de
sua própria função neste horizonte já distante de um fazer artesanal e a necessidade da
programação no repertório de composição musical para audiovisual.
De todo modo, uma confluência entre IA, bibliotecas digitais e composição original que
amplie as possibilidades estéticas e técnicas do compositor pode se tornar um híbrido capaz de
alargar o próprio conceito de composição musical para cinema, no sentido de abranger uma

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complexa curadoria dentre fragmentos musicais previamente disponíveis, além de assumir o
compartilhamento do sentido da musicalidade e da narratividade, muitas vezes, como mais
importante que o domínio teórico e técnico da composição musical. No entanto, a mistura
dessas diferentes formas de criar demanda relações mais econômica e politicamente
articuladas entre os compositores e entre estes e os demais elos do audiovisual, em nome da
busca por condições saudáveis de trabalho e existência.

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Geórgia Cynara Coelho de Souza


Universidade Estadual de Goiás – UEG/Universidade Federal de Goiás – UFG/Universidade de
São Paulo – USP

Doutora e pós-doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP. Mestre em


Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em Cinema e Educação
pelo Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás e graduada em Comunicação Social/Jornalismo
pela UFG. É jornalista, musicista, compositora e docente titular do curso de Bacharelado em
Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e do Programa de Pós-
Graduação em Performances Culturais da UFG.
Email: [email protected]

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