O Direito em Busca de Sua Identidade em Simone Goyard-Fabre: Resenha
O Direito em Busca de Sua Identidade em Simone Goyard-Fabre: Resenha
O Direito em Busca de Sua Identidade em Simone Goyard-Fabre: Resenha
Resenha
GOYARD-FABRE, S. 2002. Os fundamentos da ordem Jurídica. 1ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 376 p.
1
Pós-Doutora e Doutora em Direito pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg. Mestre em Direito Público e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Professora Adjunta de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Moncorvo Filho, 8, 20211-340,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Barbosa-Fohrmann | O Direito em busca de sua identidade em Simone Goyard-Fabre
à forma da lei determinada pela única autoridade legife- as teorias de F. Gény, L. Duguit, M. Hauriou, G. Gurvitch,
rante do poder público definir o direito e conferir-lhe Marx e E. Bloch, assim como de Nietzsche e Foucault
força obrigatória” (p. 50). Três séculos depois, acentua (p. 145-199). Conclui, a partir da reflexão desse arca-
Goyard-Fabre, tal poder de legiferação, conferido à au- bouço teórico criticista, que “o realismo de tais teorias
toridade do Estado-Leviatã, juntamente com o formalis- impõe o ‘relativismo’”, “o temor do normativo”, “uma
mo legalista da mesma, serão denominados de “positi- revolta contra os valores”, enfim, que “culmina com a
vismo jurídico” (p. 50). Com Hobbes, continua ela, “fica dissolução de todas as normas” (p. 197), e finaliza sua
plenamente estabelecido que o direito nada deve ao reflexão com a seguinte consideração: “É por isso que
Céu, nem à experiência, nem à história: ele se insere no o universo jurídico se revela hoje composto de cortes,
âmbito do legicentrismo estatal, que é obra da razão, e descontinuidades, falhas, hiatos, mudanças de direção,
seu valor provém apenas do poder de decisão do poder redistribuições evidenciados pelas incessantes reformas
público” (p. 50 s.). das reformas” (p. 197).
O mesmo prelúdio positivista, a autora, acerta- Diante do impasse criado pelo idealismo racio-
damente, vislumbra nos filósofos do Idealismo alemão: nal e o realismo do criticismo pragmático, Goyard-Fabre
Kant e Hegel. Em Kant, o germe positivista se encontra esclarece que o Direito, no século XX, foi buscar, então,
na parte dedicada à Doutrina do Direito, em sua Metafísica a sua identidade na ontologia, que teve no pensamento
dos costumes, com base na separação (e consequente au- de Heidegger sua base primária e que se desenvolveu
tonomia do Direito) entre Direito e Moral (p. XXV s.), em ontologia jurídica, com, por exemplo, P. Amselek,
assim como em Hegel, com seus Princípios da Teoria do E. Pattaro. Com suporte em Pattaro, a autora nos apre-
Direito, na questão da positividade e absolutização do senta uma classificação esclarecedora sobre os autores
Direito e do Estado (p. 91 ss.). que possuem uma “tendência dita ‘objetivista’: o direito
No início do século XX, assevera Goyard-Fabre, ‘existe’” (p. 204). Entre eles, apesar das variações teóri-
o edifício positivista e normativista é definitivamente cas, encontram-se M. Villey, R. Dworkin e H. Willke. Es-
construído com as teses, entre outros, de H. Kelsen pecificamente sobre Dworkin, Goyard-Fabre reconhece
(p. 131 ss.). Kelsen, ao defender a cientificidade do Di- a complexidade de sua posição e esclarece: “o direito
reito, considera que o Direito nada mais é do que um é mesmo, segundo ele, uma realidade independente da
ordenamento (sistema) de normas, segundo o qual a obra humana, mas o importante é interpretá-lo para po-
norma inferior hierarquicamente se subordina a uma der, como o juiz Hércules, aplicá-lo. Portanto, o Direito
norma superior e assim por diante até se chegar à é construído, objetivamente, de proposições de Direito
norma origem (Urnorm) ou norma fundamental (Grund- cuja significação é preciso captar” (p. 204). Neste ca-
norm). Influenciado por Kant, afirma que se deve su- pítulo, a autora trabalha ainda os posicionamentos de
por a Grundnorm para se determinar a ordem jurídica “Michel Tropper e a concepção expressiva do último
(p. 137). Não se trata, aqui, como bem acertadamente Kelsen” (p. 229-231) e a denominada “definição esti-
Goyard-Fabre nos esclarece com base em Kelsen, de pulativa do direito” defendida por André-Jean Arnaud
uma “norma material caracterizada pela evidência ou (p. 231-236). Nesta paleta extremamente variada de
pela força de seu conteúdo: ela traduz a exigência ra- teóricos, ela abre espaço, a partir da página 236, para
cional de acordo com a qual se dá a ‘instituição do H. Hart, o qual, a seu ver, tem um posicionamento in-
elemento fundamental das operações de criação do termediário, nem subjetivista, nem objetivista do Direi-
direito’” (p. 137). Não se trata, enfim, de uma norma to. Segundo Goyard-Fabre, ele concilia “a textualidade
fundamental no sentido da Constituição como norma aberta das regras e a necessidade de uma interpretação
básica, positivada e determinada formal e materialmen- de seu conteúdo” (p. 236). Essa interpretação da teoria
te, mas, sim, de uma metanorma transcendental, hipo- hartiana, em oposição ao pensamento de Dworkin, tem
tética e racionalmente pensada para se criar a ordem como pilar o “fato institucional” e foi defendida por seus
jurídica como um sistema de normas. discípulos N. MacCormick e O. Weinberger.
Goyard-Fabre reflete ainda, nos capítulos se- Na última parte do livro, Goyard-Fabre se de-
guintes, sobre a resposta sociológica, historicista, ma- bruça sobre as “raízes do Direito” e retorna ao Idealis-
terialista, vitalista e, acima de tudo, criticista dada ao mo alemão, sobretudo, representado por Kant e Hegel.
racionalismo exacerbado do idealismo, individualismo O retorno a esses autores ocorre, seja com base na
e positivismo-normativista. No capítulo II da Parte II, crítica a Hegel, empreendida pela Escola de Frankfurt
sob o título “As vias redutoras: o pragmatismo ético- (p. 271 ss.), seja com base numa revisão do kantismo e
social”, a autora se debruça, então e entre outras, sobre de suas Críticas (p. 297).
Com suporte na Crítica da faculdade de julgar, siva de K.O. Apel e J. Habermas e “são as condições
K.O. Apel se reporta ao fato de que Kant nela eviden- de idealidade da ética; sua universalidade exclui todos
ciou o “princípio da fundação autorreflexiva da filoso- os particularismos e todas as discriminações” (p. 313).
fia crítica”, embora não tenha dado a devida atenção O caráter de imperativo categórico também está pre-
nesta Crítica à “mediação da linguagem na comunicação”, sente na teoria de Rawls. Ele está vinculado aos prin-
o que o próprio Apel, segundo a autora, denomina de cípios de justiça, que são escolhidos sob um véu da
teoria do sentido dos enunciados com base em uma ignorância e têm função metaética, ou seja, eles são
“pragmática transcendental da linguagem” ou “retrans- impostos universalmente, em qualquer sociedade mo-
cendentalização” (p. 299 s.). Além de reabilitar Kant com ral e em qualquer sistema jurídico (p. 314).
fundamento na vocação do sujeito na intersubjetividade Por último, Goyard-Fabre recorre à Crítica da
ética com base na linguagem, Apel reabilita o acordo de razão pura de Kant para defender, a nosso ver, seu posi-
vontade, ou seja, a convenção das doutrinas contratu- cionamento. Esta Crítica, afirma a autora, é um “‘tratado
alistas como fundadora de todas as normas que têm do método’ [...] [e] tem, no corpus kantiano, um caráter
força de obrigação intersubjetiva na vida pública (p. 301). definitivo: estabelece que a crítica é necessária para a
Já J. Habermas, ex-aluno de Apel, visa a recons- doutrina (Lehre). Assim, a Metafísica dos Costumes, que
truir racionalmente também o Direito, com base em engloba a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude, é
sua teoria do agir comunicativo intersubjetivo e em sua o sistema que deve seguir o passo crítico da razão” (p.
respectiva função ideal reguladora (p. 307). Para tanto, 323 s.). Assim é que só se pode pensar a Doutrina do
realiza, de acordo com Goyard-Fabre, uma releitura da Direito com base na Crítica. O Direito é, assim, na visão
segunda Crítica à luz da terceira Crítica (p. 304). de Goyard-Fabre, “uma doutrina transcendental, isto é,
Nos Estados Unidos, J. Rawls vai se apoiar, para uma ‘ciência’ no sentido filosófico do termo, à qual a ar-
fundar a sua Teoria da justiça, na Crítica da razão prática quitetônica da razão pura confere a priori uma unidade
de Kant. Kant se baseia na “justificação do imperativo sob o ‘conceito racional da forma de um todo’” (p. 324).
categórico nos conceitos de autonomia e de vontade Esses foram alguns pontos de relevo desta publi-
livre, que são conceitos com um conteúdo normati- cação tão rica e extensa de Goyard-Fabre. Uma leitura
vo” (p. 308). Essa colocação feita por J. Habermas é, paciente e atenta deste clássico é, sem dúvida, aconse-
de acordo com Goyard-Fabre, o ponto de partida do lhável a todos os estudantes que desejam ser introdu-
projeto teórico de J. Rawls, que “é tirar a noção de zidos didaticamente e sem perder a profundidade no
justiça do impasse em que ela ficou acuada. Sua inten- universo da Teoria e Filosofia do Direito.
ção é decerto política e moral; mas é inseparável da
maneira, que é fundamental, de conceber o direito”
(p. 309). A sua teoria do justo fundada na ideia de uma
Referências
sociedade de cooperação e de reciprocidade, isto é, GOYARD-FABRE, S. 2002. Princípios filosóficos do Direito Público moder-
de uma sociedade como espaço da intersubjetividade no. São Paulo, Martins Fontes.
é, na opinião da autora, sem dúvida uma teoria que GOYARD-FABRE, S. 2003. O que é a democracia? São Paulo, Martins
retorna a Kant (p. 313). Acrescenta Goyard-Fabre que Fontes.
GOYARD-FABRE, S. 2006. Filosofia crítica e razão jurídica. São Paulo,
seus princípios de justiça escolhidos sob um “véu da Martins Fontes.
ignorância” ou do desconhecimento têm a mesma fun- GOYARD-FABRE, S 2007. Os fundamentos da ordem jurídica. 2ª ed., São
ção que a comunicação das normas na ética discur- Paulo, Martins Fontes.