184-Manuscrito de Capítulo-1750-1-10-20210211 - 240 - 240314 - 100601

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Subsídios linguístico-discursivos para a avaliação de

linguagem
Lourenço Chacon

Como citar:​ CHACON, Lourenço. Subsídios linguístico-discursivos para a


avaliação de linguagem. ​In​: GIACHETI, Célia Maria (org.). ​Avaliação da fala e da
linguagem​: perspectivas interdisciplinares em Fonoaudiologia. Marília: Oficina
Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p.83-104.
DOI: https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-87-3.p83-104

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons
Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 (CC BY-NC-ND 4.0).
Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 (CC BY-NC-ND 4.0).
Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons
Reconocimiento-No comercial-Sin derivados 4.0 (CC BY-NC-ND 4.0).
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Subsídios linguístico-
discursivos para a avaliação
de linguagem

Lourenço CHACON

Introdução
Implícita, ou explicitamente, as teorias sobre a linguagem
trazem, dentre seus fundamentos, uma ideia de diálogo. Essa ideia pode
ser detectada já em pensadores hoje clássicos do campo dos estudos
linguísticos, como Saussure1, Jakobson2 e Benveniste3. Vejam-se situações
em que ela, de algum modo, comparece em suas reflexões.
Em Saussure1, a ideia de diálogo se mostra ao descrever as
características do que ele define como circuito da fala: “Este ato supõe
pelo menos dois indivíduos: é o mínimo exigível para que o circuito seja
completo.”1(p. 19). Em Jakobson2, a ideia está subjacente ao que ele chama
de ato de comunicação verbal: “O REMETENTE envia uma MENSAGEM

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ao DESTINATÁRIO.”2 (p. 123 – destaques do autor). Em Benveniste3, ela


está na base de sua descrição, hoje clássica, do conceito de enunciação:
Mas imediatamente, desde que [o locutor] se declara locutor e
assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja
o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação
é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um
alocutário.” 3 (p. 84).

Foi feita uma circunscrição aos pensadores clássicos dos estudos


linguísticos. No entanto, suas ideias, desdobradas ou ressignificadas,
continuam a servir de suporte para concepções mais recentes sobre a
linguagem. Também pensadores de outros campos de conhecimento que
não o da Linguística supõem (dentre outras ideias sobre o funcionamento
da linguagem) uma ideia de diálogo. É o que se vê em filósofos e filósofos
da linguagem como Austin4, cujas ideias (além das de outros filósofos)
inspiram a área dos estudos linguísticos que se conhece como pragmática.
Por sua vez, ideias mais complexas de Bakhtin5 e de Pêcheux6 sobre a
dialogia interna ao discurso sustentam boa parte dos estudos chamados
de discursivos.
Não parece, pois, ser gratuita a ideia (implícita ou explícita)
de diálogo em pensadores (linguistas ou não) que se voltaram sobre os
fundamentos da linguagem. Afinal, a razão central de existir da linguagem
é justamente a comunicação, processo que, empiricamente, se caracteriza,
prioritariamente, como “diálogo” orientado pela produção e atribuição do
sentido. Essa busca pelo sentido na interação verbal necessariamente supõe
a presença de uma língua – a qual, em si mesma, não é a fonte do sentido,
mas certamente é um de seus motores. É, então, o sentido que orienta a
ação pela linguagem no processo chamado de comunicação linguística.
Todo ato de comunicação (e não só os linguísticos) tem, portanto, como
orientação fundamental, a produção e a atribuição de sentidos.
Resulta do que precede que muito do fazer fonoaudiológico
com a linguagem pode ser entendido como um ato (comunicativo) de
produção e de atribuição de sentidos sustentado por uma língua. Para
tanto, basta pensar em como crianças apresentam características de seu
desempenho de linguagem em função dos sentidos que ela atribui à ação
de seu/sua terapeuta sobre ela – que, numa visão linguística, corresponde

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perspectivas interdisciplinares em Fonoaudiologia

a seu interlocutor. Basta pensar, ainda, em como esse desempenho se


altera conforme mudem seus/suas terapeutas. O mesmo pode ser dito a
propósito de uma situação de avaliação: avalia-se, nessa perspectiva, não a
linguagem em si da criança, mas, sim, o que a criança mostra de linguagem
em função de como o avaliador se constitui, para ela, como interlocutor
– mesmo quando se trata de casos em que a fala não comparece, mas
em que comparecem, como retorno à ação do avaliador, reações não
linguísticas como gestos, expressões faciais... Avalia-se, em outras palavras,
não a linguagem da criança, mas o produto linguístico (e mesmo o não
linguístico) da interação criança/avaliador. O que significa dizer que o
avaliador está diretamente envolvido nos sentidos que resultarão de sua
interação com essa criança em avaliação.
Dado esse ponto (primordial) de partida, para o que se pode
e como se pode olhar para a linguagem em situações de avaliação de
linguagem? Obviamente, a resposta a essa complexa questão dependerá,
acima de tudo, da concepção de linguagem que orientará o olhar para a
avaliação. Dependerá também da concepção de relação dialógica subjacente
à concepção de linguagem adotada. Serão dadas, aqui, sugestões de como se
construir esse olhar. Ressalte-se, porém, que, dados os limites do presente
capítulo, nem todos os aspectos dessa construção serão exemplificados. No
entanto, serão apontadas referências de trabalhos desenvolvidos com base
no olhar aqui descrito.

1 Para o que se olhar na linguagem


Há na linguagem dois planos que podem ser considerados como
centrais na construção da resposta a para o que se olhar nela: (1) o da
organização linguística do dito; e (2) o das condições do dizer. Em função
desses planos é que se localizam as unidades linguísticas e se observa
seu funcionamento no interior da língua e/ou em seu uso concreto.
Metodologicamente serão feitas, aqui, separações entre eles para melhor se
conduzir a descrição do olhar. Entretanto, em situações reais de linguagem
(tanto nas de avaliação quanto nas de uso cotidiano), eles se mostram
empiricamente indissociáveis.
Antecipam-se as características fundamentais desses planos.
O plano da organização linguística do dito diz respeito às camadas da

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língua e às unidades que se têm como típicas de cada uma dessas camadas.
Tradicionalmente, trata-se das camadas fonológica, morfológica, lexical,
sintática e semântica. Já o plano das condições do dizer diz respeito às
características contextuais – em sentido estrito, as pragmáticas; em sentido
amplo, as discursivas – da comunicação verbal. No contexto de avaliação,
as características pragmáticas estão relacionadas aos aspectos convencionais
da avaliação, bem como àqueles que provêm da situação concreta em que
ela se dá. Por sua vez, as características discursivas concernem aos aspectos
sócio-históricos mais amplos que estabelecem (ou constituem) os papeis
de avaliador/avaliado e orientam tanto a concepção quanto o fazer da
avaliação, sem que muitas vezes o próprio avaliador e o avaliado se deem
conta da presença e da força desses aspectos na situação de avaliação.

1.1 O plano da organização linguística do dito


Antecipadas as características fundamentais desses dois planos,
passa-se à descrição de suas principais características específicas. Conforme
antecipado, tradicionalmente, o plano aqui chamado de organização
linguística do dito é descrito sob forma de camadas, vistas ainda, na teoria
linguística, como estratos, níveis ou componentes.
Na camada fonológica, detectam-se dois principais componentes:
o segmental e o prosódico. O componente segmental é aquele em que é
estabelecido, pela língua, seu sistema fonológico. Desse sistema, destacam-se
os fonemas e a combinação dos traços distintivos que constitui os fonemas
como unidades fonológicas. Fonemas têm papel fundamental na língua, na
medida em que introduzem, nela, a diferenciação de significados das palavras,
como, por exemplo, a diferenciação entre os conceitos das palavras faca e vaca.
São, portanto, unidades distintivas da língua, já que não têm significado em
si mesmas, mas permitem a distinção de significados7. Os fonemas não se
combinam aleatoriamente; sua combinação se dá em função das posições
que podem ocupar nas diferentes partes da sílaba. No sistema fonológico,
portanto, a sílaba tem a importante função de presidir a organização de
fonemas. Mas a sílaba é, também, a unidade mínima sobre a qual o plano
prosódico vai se estabelecer. Pode-se, pois, dizer que a sílaba estabelece a
ligação entre as características segmentais e as prosódicas do componente
fonológico da linguagem. O componente prosódico é organizado, na língua,

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em níveis sobrepostos. Respectivamente do mais básico ao mais estendido,


são sete os constituintes prosódicos que operam em cada um desses níveis8: a
sílaba; o pé métrico; a palavra fonológica; o grupo clítico; a frase fonológica;
a frase entonacional; e o enunciado fonológico. Cada um desses níveis é
responsável pela organização de grupos cada vez maiores de unidades
linguísticas, cada um deles identificado por algum relevo prosódico, que
estabelecerá alguma forma de alternância entre uma porção proeminente
(mais forte) e outra(s) não proeminente(s) (mais fracas). É por meio do
componente prosódico que, por exemplo, no nível da palavra fonológica,
se identificam suas partes fracas e fortes9. Veja-se a organização prosódica da
palavra bicicleta. Ela é composta por quatro sílabas (nível prosódico basilar)
que, no nível imediatamente superior, o do pé métrico, se organizarão em dois
pés, cada um deles com uma unidade proeminente e uma não proeminente:
BI-ci e CLE-ta. Esses dois pés, por sua vez, se agruparão no plano da palavra
fonológica de tal modo que o primeiro deles será o não proeminente e, o
segundo, o proeminente – aquele que receberá o relevo (na sílaba CLE) que
identificará o acento dessa palavra.
Na camada morfológica, as unidades básicas que constam dela
são os morfemas. Essas unidades são entendidas, tradicionalmente, como
as menores unidades de significado de uma palavra. Na palavra “garotas”,
por exemplo, detectam-se três morfemas: (1) garot-, que corresponde à raiz
da palavra; (2) -a-, que corresponde à desinência de gênero gramatical da
palavra; e (3) -s, que corresponde à sua desinência de número gramatical.
Nessa camada da língua, a palavra é vista, portanto, em seus aspectos
formais. Desse modo, do ponto de vista morfológico, cantamos e cantaremos
são duas palavras diferentes na língua, já que, embora apresentem a mesma
raiz, diferentes morfemas entram em sua estrutura.
Já na camada lexical, a palavra é vista como uma unidade do
acervo da língua. Nesse acervo, cantamos e cantaremos serão vistos não
como distintas palavras, como na camada morfológica, mas como uma
mesma unidade da língua. Distinguem-se, ainda, nesse acervo, as unidades
lexicais das unidades funcionais (ou gramaticais). As primeiras compõem
o rol de palavras que têm função, por assim dizer, extralinguística, já que
formam o conjunto de representações semânticas do mundo real ou do
mundo imaginário. São palavras como árvore, bruxa, amarelo e quarta-
feira, por exemplo. As segundas, por sua vez, têm sua atuação restrita ao

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que se pode entender como funcionamento intralinguístico, uma vez que


organizam formalmente, ou seja, relacionam as partes dos enunciados.
Trata-se de palavras como de, mas e que, por exemplo.
Na camada sintática, sua unidade fundamental é a oração. Em
função da unidade sintática de uma oração é que (1) serão observadas as
partes de que ela se compõe e (2) serão entendidas suas combinações sob
forma de períodos mais, e menos, complexos.
Por fim, na camada semântica, o significado é a unidade essencial.
Nessa camada, observa-se, portanto, como a significação se organiza no
interior da língua. Antecipou-se, por exemplo, que o significado já se
mostra presente no plano morfológico, uma vez que, por princípio, por
menor que seja um morfema (uma desinência, por exemplo), ele é uma
unidade dotada de significado. Também no léxico da língua o significado
está presente, sob a forma de conceitos das palavras. Por fim, na sintaxe ele
também se mostra presente, especialmente na combinação entre orações,
já que, ao mesmo tempo em que sintaticamente elas se combinam, sua
combinação é estabelecida por meio de relações semânticas como causa,
tempo, finalidade, ressalva dentre muitas outras. Destaque-se, por fim,
que as unidades da língua podem formar redes associativas em função
de propriedades semânticas em comum. É o que se vê, por exemplo, na
organização das palavras em campos semânticos como vestuário, meios de
transporte, animais marinhos etc.
Deve-se, no entanto, observar que a significação não se resume
às unidades da língua e/ou às suas relações internas. Ela resulta (também e
principalmente) de como a língua é colocada em uso nos atos comunicativos
verbais. Nesse plano, seria mais adequado se falar em sentido, e não em
significação, já que o sentido, num ato de comunicação verbal, resultará,
além das unidades linguísticas, também das condições pragmáticas e
discursivas da produção desse ato.
Resumidamente, na descrição de cada camada da língua, foram
apresentadas suas unidades típicas, bem como características de seu
funcionamento interno à língua.
Há, porém, que se fazer uma importante observação. Embora
descritas em função de cada camada, as unidades da língua mostram-se
interligadas em mais de um plano. No léxico, por exemplo, uma palavra

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como “sudanesas”, ao mesmo tempo, apresenta camadas fonológica,


morfológica, sintática e semântica. A camada fonológica se mostra nessa
palavra, já que, prosodicamente, ela é composta de quatro sílabas (su-
da-ne-sas), que se combinam em dois pés rítmicos cada um com sua
proeminência (SU-da / NE-sas) e dentre os quais se verifica nova relação
de proeminência (NEsas destaca-se em relação a SUda), que identificará o
acento tônico da palavra. Além dessas características prosódicas, ainda na
camada fonológica, em cada uma das quatro sílabas da palavra, os fonemas
se dispõem e se combinam de acordo com padrões fonológicos estabelecidos
universalmente (na linguagem) ou especificamente (na língua portuguesa).
A palavra “sudanesas” mostra, ainda, sua camada morfológica, já que é
composta por quatro morfemas, que se referem a seu radical (sudan-), ao
sufixo -es-, que indica procedência, origem, à desinência -a-, que indica seu
gênero morfológico de feminino na língua, e à desinência -s, que indica seu
número plural. Quanto à camada sintática, a palavra sudanesas mostra que
é suscetível à sua posição na oração para poder ser interpretada sua classe.
Por exemplo: ela será considerada como um substantivo na oração. As
sudanesas visitaram o Brasil. Será considerada como um adjetivo na oração
As peças sudanesas chegaram ontem ao museu.
Analogamente, níveis prosódicos como a frase fonológica, a
frase entonacional e o enunciado fonológico mantêm fortes relações com
características sintáticas da língua. Observe-se a estrutura um outro animal
cansado. Prosodicamente, ela se organiza como uma única frase fonológica,
com proeminência na sílaba tônica da palavra cansado, se corresponder
a um único bloco sintático. Mas ela pode corresponder a duas frases
entonacionais um outro animal e cansado, caso, sintaticamente, a palavra
cansado se deslocar das anteriores. Esse deslocamento provocará, então,
na mesma sequência, duas unidades prosódicas, já que cada uma terá seu
próprio contorno entonacional. Basta ver que, numa escrita formal, essa
distinção prosódica dependente da organização sintática será registrada,
respectivamente, pela ausência e pela presença de vírgulas: um outro animal
cansado; um outro animal, cansado.
Em síntese, embora se possam fazer separações metodológicas
quando se pensa em para o que se olhar no plano linguístico, suas unidades
se apresentam, em muitos momentos, em interfaces diversas entre as várias
camadas desse plano.

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1.2 O plano das condições do dizer


E para o que se olha quando se pensa no plano das condições do
dizer? Conforme antecipado, nesse plano é que se detectam os aspectos
pragmáticos, bem como os discursivos, que estão na base da produção do
dizer. Passa-se à descrição de suas características fundamentais.
A dimensão pragmática frequentemente é confundida com
ou reduzida à funcionalidade. Obviamente, a funcionalidade é um dos
aspectos dessa dimensão. Mas há muito mais a se dizer da dimensão
pragmática do que essa confusão/redução permite enxergar acerca de para
o que se olhar na linguagem.
Em primeiro lugar, pode-se pensar que a dimensão pragmática diz
respeito às características convencionais do uso cotidiano da linguagem. É
nesse sentido que se pode, então, olhar para essa dimensão vendo os papeis
que as pessoas ocupam em qualquer situação real, concreta, de comunicação
verbal. Fala-se, nessa perspectiva, a partir de papeis sociais como os de
vendedor/comprador, professor/aluno, pai/filho. No contexto de avaliação
de linguagem, fala-se, portanto, como fonoaudiólogo avaliador/criança ou
adulto avaliado. São papeis de antemão já situados, no sentido de que são
convencionalmente assumidos pelo avaliador, pelo avaliado – e, mesmo,
pelos familiares da criança ou do adulto em avaliação. Mas não apenas
os papeis são definidos convencionalmente. É convencional também a
própria situação de avaliação, já que se espera, convencionalmente, que
ela ocorra em lugares específicos, e não em qualquer lugar. Entenda-se,
porém, essa situação não apenas como o ambiente físico em que se dá
a avaliação, mas, também, como um conjunto de procedimentos que,
convencionalmente, se espera por parte de avaliador e avaliado. Espera-
se, ainda, que os aspectos linguísticos sejam também convencionais, uma
vez que, por exemplo, não é sobre qualquer assunto que se trata numa
situação de avaliação, não é qualquer organização sintática nem qualquer
distribuição lexical que é, convencionalmente, esperada nessa situação.
Termos excessivamente técnicos, elaboração sintática muito formal
podem, ao invés de aproximar, distanciar avaliador e avaliado. Espera-
se, finalmente, sobretudo do avaliador, aspectos éticos, por assim dizer,
também convencionalmente supostos numa sessão de avaliação. Espera-se,
por exemplo, que o avaliador tenha formação e, se possível, experiência
para o desempenho de seu papel convencional. Espera-se que ele seja, do

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ponto de vista do senso comum, confiável em relação ao que diz e ao que


avalia. Espera-se, por fim, do avaliado sua confiança no avaliador, para
estabelecer com ele uma interlocução.
Passa-se, por fim, à dimensão discursiva. Também o discurso
frequentemente é confundido com / reduzido à fala ou à escrita,
especificamente ao seu fluxo verbal, à sua continuidade linguística. Esse
fluxo é simplesmente a superfície do discurso, o local onde se mostra
sua materialidade linguística; mas não é, nem corresponde, ao todo do
discurso. O que é o discurso, afinal?
A resposta a essa questão dependerá especialmente da concepção
que se tem do discurso, ou seja, de como ele é definido conceitualmente a
partir de determinada perspectiva de investigação da linguagem.
Aqui será assumida a concepção de que o discurso é um
mecanismo, de natureza sócio-histórica, de regulação do dizer10. Não só
no dia-a-dia, mas também em situações institucionais como as de avaliação
de linguagem, frequentemente as pessoas se dão conta de que a língua é
um mecanismo de regulação do dizer, no que se refere à sua organização
linguística. Também às vezes as pessoas se dão conta de que seu dizer se
ajusta à determinadas convenções pragmáticas. Mas, na maioria das vezes,
as pessoas não se dão conta, ou se esquecem, de que seu dizer é regulado
também por complexos mecanismos sócio-históricos de diferentes
naturezas. Em função desses mecanismos, o dizer assume diferentes
configurações, já que necessariamente é sustentado em múltiplos tipos de
discursos que possibilitam sua existência e permitem que ele seja organizado
de determinada maneira, e não de qualquer maneira. No entanto, com
muitíssima frequência, as pessoas não se dão conta de que, apesar de se
reconhecerem em certos tipos de discursos, desconhecem os mecanismos
de sua constituição. Mas eles estão o tempo todo presentes em qualquer
situação de dizer, desde as mais cotidianas às mais institucionais, com uma
força de atuação que frequentemente passa despercebida nas situações de
comunicação verbal.
Dar-se conta da força dos mecanismos discursivos na constituição
de um papel como o de avaliador de linguagem deveria ser, portanto, uma
preocupação central por parte daqueles que exercem, socialmente, esse
papel. A avaliação de linguagem pode ser feita de diferentes perspectivas,
sustentadas em diferentes recortes do que se quer avaliar nela. No entanto,

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Célia Maria Giacheti (Org.)

seja qual perspectiva for, ela é sempre, e constitutivamente, sustentada por


vários tipos de discurso, e sempre em relação de aliança ou de conflito,
sendo um desses tipos aquele que ocupará papel central, dominante, em
relação não só aos dizeres que circularão no processo de avaliação, mas,
também, em relação aos saberes e às práticas que orientam esse processo.
Encerram-se, aqui, as considerações sobre para o que se olhar
na linguagem. Em síntese, olha-se para unidades e para características
da linguagem que, de modo amplo, se situam em dois planos: (1) o da
organização linguística do dito; e (2) o das condições do dizer. No primeiro
plano, olha-se para os diferentes tipos de unidades que orientam, por meio
de regras da própria língua, a organização linguística do que é dito, ou
seja, da materialidade linguística do dizer. Como se viu, elas integram
o que, metodologicamente, se pode definir como as diferentes camadas
da constituição da língua. No segundo plano, olha-se para dois tipos de
mecanismos que, “de fora” da língua, organizam o dizer. O primeiro deles,
o pragmático, diz respeito aos aspectos convencionais que regulam o dizer
na situação concreta de comunicação verbal. Já o segundo, o discursivo,
diz respeito aos mecanismos sócio-históricos mais amplos que regulam o
dizer, mas que, costumeiramente, passam despercebidos numa situação de
comunicação verbal.
No entanto, não se trata, de modo algum, de planos justapostos.
Em outras palavras, o aspecto pragmático e o aspecto discursivo não são
apenas mais duas camadas da língua.
É frequente, em práticas de avaliação, o aspecto pragmático ser
considerado como mais um nível ou mais um plano da língua. Quanto
ao aspecto discursivo, frequentemente ele é totalmente apagado/ignorado
nessas práticas. No entanto, eles não estão lado a lado com níveis
como o fonológico, o morfológico, o lexical, o sintático e o semântico.
Principalmente porque ajustes entre unidades desses níveis não funcionam
em si mesmos numa situação real de comunicação, já que são determinados,
nessa situação, por suas características pragmáticas. E são também, e
principalmente, organizados em função de mecanismos discursivos mais
amplos. Em outras palavras, os aspectos pragmáticos e discursivos são
muito mais do que apenas níveis do dizer: eles são, na verdade, os planos
que estão na base da organização do dizer, os “pilares” do dizer.

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Feitas essas considerações, passa-se a uma proposta descritiva de


como se pode olhar para a linguagem.

2 Como se olhar para a linguagem


Na perspectiva aqui em exposição, parte-se do princípio de que
qualquer ato de avaliação é um processo de comunicação verbal. Pode-se
pensar nesse processo como um ato de enunciação3, na medida em que
aquele que toma a língua na enunciação, ao mesmo tempo, “implanta o
outro diante de si”3 e se marca no (seu) dizer. Outro aspecto de um processo
de comunicação que pode ser aproximado de ideias de Benveniste3 sobre
a enunciação é o de que, nesse processo, necessariamente se fala/se trata
de algo. Em síntese, avaliador e avaliado serão os interlocutores do ato
enunciativo e o que se avalia (da linguagem) será o objeto, ou a referência,
dessa interlocução.
Há, no entanto, duas condições fundamentais para o
desenvolvimento desse ato enunciativo. A primeira delas é a de que
avaliador e avaliado devem se marcar, na enunciação, pela reversibilidade
de papeis enunciativos. Essa reversibilidade quer dizer que, ora o avaliador
se marca como eu no ato enunciativo ao constituir o avaliado como seu
outro, ora o avaliador se marca, inversamente, como o outro do avaliado,
que se assumirá como novo eu. Ou seja, numa pergunta, por exemplo,
o avaliador assume-se como o eu do ato enunciativo ao implantar o
avaliado como o outro desse ato. Na possível resposta, invertem-se esses
papeis enunciativos, já que o avaliado é que se assumirá como eu no ato ao
implantar o avaliador como o seu outro. Portanto, assumir-se nesses dois
papeis enunciativos é uma das condições fundamentais para o êxito do ato
enunciativo que norteará uma avaliação. É, também, um primeiro sinal
de que ambos, avaliador e avaliado, estão engajados na tarefa de avaliação.
Caso não se observe (por exemplo, no avaliado) essa reversibilidade de
papeis, ela terá que ser garantida antes mesmo de qualquer continuidade
do processo. Ressalte-se que, em situações que envolvem crianças muito
pequenas ou com sérios comprometimentos de linguagem – e também
adultos com sérios desses comprometimentos –, não necessariamente essa
reversibilidade por parte do avaliado se dará por meios verbais. De qualquer

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forma, por marcas linguísticas ou por sinais não verbais, a reversibilidade


deve ser buscada e garantida.
A segunda condição fundamental de um ato enunciativo diz
respeito à referência. Trata-se, como antecipado, de se falar sobre algo – no
caso, da própria linguagem. No entanto, a referência é algo construído (e
a dois) no ato de enunciação3. Há, pois, que se garantir que avaliador e
avaliado estejam construindo uma co-referência3 no processo de avaliação,
no sentido de que estão se encaminhando para uma construção conjunta
dos sentidos que serão mobilizados por essa referência. Suponha-se que,
numa situação de avaliação, um objeto como sabonete venha a se tornar
uma referência enunciativa nessa situação. Antes mesmo de o avaliador
se basear em sentidos pré-construídos socialmente sobre esse objeto, ele
deve buscar saber se a distribuição desses sentidos é próxima entre ele e
seu avaliado. Isso porque, numa sociedade bastante desigual como a
brasileira, também é bastante desigual a distribuição de sentidos. Para o
avaliador, por exemplo, os sentidos de sabonete podem ser os de um objeto
corriqueiro, de uso diário, na higiene pessoal. Mas, para o avaliado, os
sentidos podem ser outros, por exemplo, de objeto de difícil acesso por
limitações financeiras, de objeto que remete a situações muito especiais.
Desse modo, numa situação de avaliação como essa simulada, pode haver
muita diferença na produção e atribuição de sentidos à referência. Antes
de qualquer outra atitude, cabe ao avaliador investigar, no avaliado, que
sentidos circulam para este último acerca daquilo que se busca avaliar no
ato enunciativo de avaliação.

2.1 Como se olhar para a organização linguística do dito


Garantidas as condições enunciativas fundamentais de uma
avaliação, pode-se partir para a busca dos aspectos característicos do plano
da organização linguística do dito na linguagem. Mas há que se lembrar
que a língua circula em atos enunciativos que podem se dar sob a base
de distintas semioses: a acústico-auditiva, na fala; ou a gráfico-visual, na
escrita. Assim, a avaliação será de como as unidades das diferentes camadas
do plano linguístico se mostram na fala ou na escrita do avaliado a partir
de como o avaliador o constituiu como seu interlocutor.

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Na camada fonológica, um primeiro olhar deve se voltar para


o sistema fonológico do avaliado. No caso de crianças que já mostram
características desse sistema em sua fala, olha-se para os indícios que
elas dão de como essas crianças lidam com a distintividade promovida
pelos fonemas. Eles são produzidos, em seu total, em todos os contextos
com os fones convencionalmente esperados em sua produção? Se não,
há classes de fonemas mais prejudicadas? No interior delas, há fonemas
produzidos convencionalmente e outros não? No caso de substituições,
para quais tendências elas apontam na fala da criança? As produções não
convencionais se dão em todas as posições silábicas que os fonemas podem
ocupar? Se não, quais delas suscitam mais, e menos, os desajustes?
Ainda a respeito de características fonológicas, além das já descritas
(do componente segmental), outras mais podem ser observadas – desta
vez, no componente prosódico. Deste componente, várias informações
sobre a fala podem ser extraídas11. Uma delas diz respeito aos contornos
entonacionais, visto que tais contornos, além de se relacionarem com
aspectos sintáticos da fala (já que auxiliam na delimitação das orações,
bem como de suas partes), fornecem importantes pistas semânticas da
fala, mesmo em situações em que o aspecto segmental se mostra bastante
comprometido12. Com efeito, pelos contornos entonacionais, é possível
identificar pistas de aspectos semânticos da fala como os de concordância,
discordância, questionamento, narratividade etc.12. A atenção aos
aspectos prosódicos deve voltar-se ainda para a alternância entre porções
proeminentes e porções fracas da fala. Especialmente porque, nas porções
de maior relevo prosódico, as dificuldades tendem a minimizar ou a
desaparecer; inversamente, nas porções fracas, elas tendem a se agravar.
Se a avaliação de características fonológicas não for na fala, mas
na escrita, no que concerne aos aspectos segmentais, um primeiro olhar
deve ser para como se estabelecem, na ortografia da escrita em avaliação, as
relações entre fonemas e grafemas. A observação dessas relações deve se dar,
preferencialmente, em textos produzidos na situação de avaliação, embora
não se devam desprezar aqueles produzidos em outras situações, como
no cotidiano doméstico ou escolar. Especialmente porque, em textos, é
possível observar flutuações ortográficas que dependem não apenas das
convenções entre fonemas e grafemas, mas, ainda, da distribuição do léxico
e, mesmo, de características macroestruturais dos textos. Observar questões

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ortográficas apenas com base nas características que regulam as convenções


entre fonemas e grafemas é perder de vista a complexidade com que essas
convenções se mostram na escrita (especialmente de crianças) em função
de diferentes aspectos de outras camadas da língua – além das pragmáticas
e das discursivas que regulam o dizer. O que resulta em subnotificar ou em
superestimar uma possível fuga a essas convenções13-16.
Quanto às características fonológicas de dimensão prosódica, elas
podem ser bem observadas na escrita no que se refere a dois importantes
aspectos: o da segmentação de palavras e o da pontuação. Embora os
critérios que orientam a segmentação de palavras na escrita sejam os
morfológicos, é muito frequente que a criança (sobretudo) se deixe ancorar
em características fônicas que depreende de enunciados falados e as projetem
em sua escrita, no que diz respeito, particularmente, à segmentação de
palavras. Casos de hipossegmentação (como chutoabola, para “chutou a
bola”), de hipersegmentação (como isco dido, para “escondido”), ou, ainda,
de mesclas entre hipo e hipersegmentação (como dafo resta, para “da
floresta”) frequentemente se mostram como prosodicamente orientados
(mais do que morfologicamente orientados), já que as estruturas resultantes
de segmentações não convencionais frequentemente correspondem a
constituintes prosódicos como pé métrico, palavra fonológica e grupo
clítico (em sua maioria), ou mesmo a constituintes como frase fonológica,
frase entonacional e enunciado fonológico (em menor medida). Também
a pontuação não convencional resulta, em grande medida, da projeção que
os escreventes fazem, em grupos de palavras, de constituintes prosódicos da
língua, especialmente de frases entonacionais e de enunciados fonológicos17.
No que se refere à camada morfológica da língua, o olhar deve
se voltar prioritariamente aos morfemas que não correspondem à raiz da
palavra, ou seja, aos morfemas gramaticais. É que esses morfemas darão
importantes pistas (especialmente na fala infantil) de como categorias da
língua como as de gênero18 e de número gramatical vão sendo significadas
pelas crianças nos seus primeiros anos de vida. Dão pistas também de
aspectos enunciativos como (i) a diferenciação entre os interlocutores do ato
enunciativo, (ii) a diferenciação entre eles e pessoas e objetos que funcionam
como referentes nesse ato e, ainda, (iii) a organização temporal dos eventos
num ato enunciativo3. Na escrita, o papel dos morfemas gramaticais se

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perspectivas interdisciplinares em Fonoaudiologia

pode observar, dentre outros, em aspectos como concordância verbal e


organização temporal de eventos numa narrativa.
No que se refere à camada lexical, tanto na fala quanto na escrita,
há que se lembrar que o léxico de um indivíduo não se restringe ao que ele
mostra em seus eventos de fala ou de escrita. Há, portanto, para além desse
léxico mostrado, um léxico, por assim dizer, escondido, mas constitutivo
do léxico global desse indivíduo nesses dois modos de enunciação: a fala
e a escrita. Este é um primeiro cuidado que o avaliador deve ter ao avaliar
o léxico de uma criança ou de um adulto. Há, ainda, que se lembrar que,
embora exista um léxico amplo da língua e que ele seja social, ele não
é igualmente distribuído entre seus falantes e escreventes. Portanto, há
que se tomar bastante cuidado com o léxico que se usa numa situação
de avaliação, bem como estar atento ao léxico (mostrado ou não) que o
avaliado traz de sua vivência com a linguagem em situação enunciativas de
fala e de escrita. Especialmente porque, mesmo que formalmente se trate
de um léxico facilmente recuperável, deve-se lembrar que o léxico mantém
estreitas relações com os aspectos semânticos das palavras. O que significa
dizer que, às vezes, um mesmo item lexical pode remeter a significados
diferentes para avaliador e avaliado.
Deve-se, ainda, lembrar que o léxico se distribui em função de
diferentes situações linguísticas. Uma criança de vida urbana brasileira pode,
por exemplo, ter um léxico “pobre” a respeito de situações da vida rural
brasileira, se comparado ao léxico de uma criança que vive cotidianamente
no universo rural. E vice-versa.
No que se refere à camada sintática, na fala e na escrita, o avaliador
deve se mostrar particularmente atento às lacunas na organização sintática
dos enunciados. É que elas darão importantes pistas do que foge ou escapa
ao próprio avaliado nessa organização. Além das lacunas, a avaliação deve
estar atenta, ainda, às diferentes formas de organização sintática, a começar
da mais elementar relação entre um sujeito e um predicado19, expandindo
o olhar para os encaixes nas estruturas complexas, as relações entre orações,
a presença ou ausência de juntores (como, dentre outros, as conjunções)
ou apenas justaposições nessas relações19. Uma vez que aspectos coesivos
de um texto muitas vezes operam com base em procedimentos sintáticos,
eles também devem ser observados com atenção, especialmente nas relações

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Célia Maria Giacheti (Org.)

entre partes sintáticas dos enunciados e os referentes a que remetem essas


partes, já que muitas ambiguidades sintáticas podem resultar dessas relações.
Por fim, no que se refere à camada semântica, considerando-
se o caráter de ato enunciativo da situação de avaliação, e conforme
antecipado, deve-se estar atento aos significados dos itens lexicais que
comparecem nesse ato, tanto por parte do avaliador quanto por parte
do avaliado. Especialmente porque esses significados darão importantes
pistas de como estão sendo construídos, a dois, os referentes (ou objetos)
nesse processo. Deve-se estar atento, ainda, às relações semânticas entre
as orações, estabelecidas, ou não, por meio de juntores. Também se deve
estar atento às relações semânticas entre os enunciados do avaliador e
do avaliado, especialmente na circularidade semântica entre perguntas e
respostas20-22. Deve-se, por fim, estar atento a lacunas de sentidos deixadas
no encadeamento do dizer, principalmente porque, em algumas situações
elas não resultarão em um dizer sem coerência se o lacunar puder ser
recuperado, por exemplo, do contexto pragmático. Na ausência dessa
possibilidade, porém, as lacunas podem dar importantes pistas de como o
dizer está submetido à deriva.
Passa-se, a seguir, a como se olhar para as condições do dizer.

2.2 Como se olhar para as condições do dizer


Quando se pensa nas condições do dizer, pensa-se, acima de tudo,
em como o sentido, a busca de qualquer ato comunicativo verbal, depende
não propriamente ou exclusivamente da organização linguística do dito,
mas, antes, da relação entre essa organização e as condições em que ela foi
produzida. Portanto, ao se falar dessas condições, entram, aqui, em ação as
dimensões pragmática e discursiva do dizer.
No que diz respeito à dimensão pragmática, o ponto de
partida para como se olhar para as condições do dizer é o dar-se conta de
que qualquer produção linguística resultante de um ato de avaliação deve
ser avaliada pela relação que ela mantém com as condições de avaliação
que a tornaram possível. A produção linguística resultou, por exemplo,
da aplicação de testes padronizados e/ou de outros procedimentos de
coleta de dados? Por que a opção por um teste padronizado e/ou por outro
tipo de procedimento? Quais respostas linguísticas podem ser esperadas

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desses testes e/ou desses procedimentos? Por que se buscam essas respostas
linguísticas, e não outras?
Além desse ponto de partida, central e organizador do olhar
para a dimensão pragmática do dizer, outro aspecto fundamental para
esse olhar é a lembrança de que, empiricamente, qualquer produção
linguística, mesmo em contexto de avaliação de linguagem, deve muito
de sua organização aos aspectos convencionais de sua produção. A título
de exemplo, se se espera de uma pessoa em avaliação, em simulação de
uma situação cotidiana de linguagem, que ela produza o enunciado Feche
a porta., a organização sintática desse enunciado pode, e deve, variar
em função dos papeis convencionais assumidos por quem produz e por
quem recebe esse enunciado. Numa assimetria de papeis, a expressão por
favor pode, por exemplo, se mostrar necessária. Já numa relação simétrica
poderia ser dispensável. Ou seja, não basta a organização sintática do dito
para se ver a “eficácia sintática” de quem é avaliado. Principalmente porque
faz parte da chamada competência pragmática o ajuste sintático (e mesmo
o lexical) dos enunciados em função das situações convencionais.
Cabe ao avaliador, no entanto, lembrar que papeis convencionais
podem não mobilizar os mesmos sentidos para ele e para o avaliado. O
que significa, por exemplo, desempenhar papeis de pai e de filho (numa
simulação de conversa entre ambos) para o avaliador e o avaliado?
Certamente há estereótipos sobre esses papeis, mas – antecipa-se aqui o
que será desenvolvido adiante – esses estereótipos podem não se mostrar
presentes numa situação de avaliação, já que avaliador e avaliado trazem
para essa atividade suas diferentes histórias de sentidos para o mundo e
para os papeis convencionais.
Por fim, uma questão já abordada, mas importante de ser
relembrada, é a de que o referencial teórico que sustenta um ato de
avaliação é que fornecerá a lente de observação de como se olhar para
os aspectos pragmáticos que regulam o dizer num ato de avaliação. Em
termos convencionais, supõe-se, pois, que certos conhecimentos e certas
posturas estejam na base de como se olhar para as condições do dizer num
ato de avaliação.
Mas não só para os aspectos pragmáticos.

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No que diz respeito à dimensão discursiva, o referencial teórico


comparece, já de saída, na própria concepção de sujeito com que o
avaliador conduz o ato de avaliação. Em outras palavras, trata-se de definir
com qual concepção de sujeito o avaliador se vê, vê o avaliado e vê a relação
intersubjetiva que se constituirá entre ambos nesse ato. O referencial teórico
comparece, ainda, na visão que o avaliador terá do processo de avaliação.
É importante observar, porém, que não se trata da “sua” visão,
no sentido subjetivo desse termo, uma vez que, seja qual for, uma visão é
sempre, e por princípio, embasada numa complexa construção discursiva
no interior de um campo de saber. Nesse sentido, a visão assumida
necessariamente se sustenta sobre a exclusão de outras visões igualmente
constitutivas desse campo. Portanto, saber como se dá, em termos sócio-
históricos, a constituição do campo de saber que sustentará seu olhar, faz
parte de como o avaliador vai olhar para as condições discursivas do dizer
que avaliará. Reconhecer-se em algum discurso no interior desse campo,
mas desconhecer os processos de sua constituição, poderá levar o avaliador
a entender apenas funcionalmente a perspectiva que orienta seu fazer, ter
dela apenas uma visão interna, por vezes somente técnica.
A visão discursiva está na base, também, de como se olhar para
os aspectos pragmáticos do dizer na avaliação. A título de exemplo, como
já dito, as pessoas assumem papeis convencionais em qualquer situação de
dizer. No entanto, há que se olhar para além do aspecto convencional dos
papeis (como o faz o recorte pragmático), já que sua construção é sócio-
historicamente determinada. Não há uma única visão de um papel – de
um pai, de um médico, de um professor, de um mecânico, por exemplo.
Há, pois, que se “sondar” como esses papeis circulam convencionalmente
para avaliador e avaliado, já que podem resultar (na visão de ambos para
um mesmo papel) de diferentes processos de constituição sócio-histórica.
A visão discursiva, por fim, está na base de como se olhar para os
aspectos da organização linguística do dito.
Em termos fonológicos, por exemplo, dificuldades na produção
de fonemas podem ser diminuídas ou aumentadas em função de situações
reais de produção de fala? Elas podem ser pontuais em algum fonema e/
ou contexto fonológico? Se sim, por que persistem nesse fonema e/ou
nesse contexto? Vê-se que possíveis respostas a essas questões dependerão,

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Avaliação da fala e da linguagem:
perspectivas interdisciplinares em Fonoaudiologia

essencialmente, de uma visão discursiva dos fatos fonológicos da língua e


de uma visão de sujeito que não se reduz a suas competências cognitivas.
Em termos sintáticos, o olhar discursivo para as lacunas na
organização do dito poderá levantar questões sobre o que não é dito, ou
é silenciado, nessas lacunas. É apenas de uma desestruturação sintática de
que se trata?
Observação análoga pode ser feita a propósito de relações
semânticas que mostram desestruturas na organização do dito. Seriam
apenas “incoerências” ou não estariam, elas, mostrando vínculos semânticos
entre fatos não mostrados linguisticamente nesse dizer? Se sim, trata-se de
recuperar esses fatos – que, pode-se esperar, dizem respeito à constituição
da subjetividade de quem é avaliado e/ou à sua inscrição histórica. O
avaliador é, pois, um perscrutador, ou investigador de pistas; a linguagem,
o veículo no qual essas pistas se mostram.

Palavras finais
Partiu-se do princípio de que o diálogo (ou as relações dialógicas)
é uma ideia (explicitada ou subjacente) às diferentes teorias linguísticas.
Empiricamente, o diálogo se mostra sob a forma de atos de comunicação
verbal. Teoricamente, neste capítulo, foram interpretados como atos
enunciativos.
Um ato enunciativo, no entanto, não se inicia em si mesmo, na
medida em que constitutivamente se desenvolve sob certas condições –
aqui interpretadas como pragmáticas e como discursivas. Ou seja, é um
ato que, embora único, reproduz e/ou se assenta na história de outros atos
que, em dadas condições, compõem uma tradição – ou como se preferiu
interpretar, um tipo de discurso no interior de um campo de saber.
Nessa perspectiva, portanto, qualquer ato de avaliação de linguagem
é, por princípio, um ato intersubjetivo. Não há, assim, possibilidade de
uma avaliação ser dita ou tida como isenta, neutra, porque o avaliador é
sempre parte desse processo, e o resultado do material linguístico que virá
do avaliado é, também, de responsabilidade do avaliador. A postura dita
isenta, ou neutra, pode, pois, significar para o avaliado algo inibidor ao
mostrar sua potencialidade de linguagem, na medida em que pode “soar”,

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para ele, como falta de envolvimento na relação intersubjetiva que o ato de


avaliação estabelece.
Mas isso não significa que qualquer forma de envolvimento é
legítima nesse ato. Trata-se, na verdade, especialmente da acolhida, por
parte do avaliador, à demanda e/ou ao possível sofrimento do outro.
Trata-se de exercer a reversibilidade de papeis, ou seja, de tentar se ver no
lugar do outro, apreender, desse lugar, suas demandas e os sentidos que
elas têm para o avaliado. Trata-se, pois, de vê-lo, antes e acima de tudo,
como sujeito.
Ressalte-se, contudo, que, na perspectiva aqui assumida, o
sujeito não se reduz a sua esfera cognitiva, já que a constituição da
(sua) subjetividade é sócio-historicamente conduzida – incluída, nessa
constituição, sua cognição. Analogamente, ele não é senhor do seu dizer, já
que a materialidade linguística do (seu) dizer é somente a parte mostrada de
uma complexidade enunciativa atravessada por fatos não apenas da esfera
consciente ou semiconsciente do sujeito, mas, também e principalmente,
de sua esfera inconsciente.
Uma última, mas não menos importante, questão: entender a
avaliação como um ato intersubjetivo não significa entendê-lo como não
objetivo. Apenas não se trata aqui da objetividade confundida com a
neutralidade, com a isenção. Mesmo porque, na visão aqui defendida, essa
intersubjetividade deve necessariamente ser teórica e metodologicamente
orientada – assim como alguma teoria e método estão na base da suposta
ideia de neutralidade, de isenção. Ou seja, ela deve assentar sua objetividade
no tipo de discurso que a estabelece, que a sustenta, que a torna possível.

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