Aberracao Serie Deuses Da Mafi Casillas, Taliba 231228 102057

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O PLÁGIO É CRIME.

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ajudando de forma alguma, pelo contrário, está prejudicando ao
meu trabalho e a mim como escritora.
Eu vivo inteiramente da renda dos meus livros, o que já é um
trabalho mau-remunerado e desvalorizado, então se você quer me
prestigiar, compre o meu livro por meios legais.

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comercializa sem minha autorização, primeiramente, VÁ SE
FODER, pois isso é um crime. Você está cometendo pirataria e eu
não vou medir esforços para processá-lo e fazê-lo responder por
cada pessoa que teve meu livro em mãos através de você.

Os personagens e eventos retratados neste livro são frutos da


imaginação da autora. Qualquer semelhança com pessoas reais é
coincidência e não é intencional por parte do autor.

Design da capa: Ellen Ferreira.


Leitura sensível: Ana Flor.
Diagramação por: Amorim Editorial
Revisão por: Talibah Casillas e Sarah Cristina.
Criado no Brasil.
SUMÁRIO
SUMÁRIO
AVISO DE CONTEÚDO
SINOPSE
SOBRE A OBRA
PLAYLIST
DEDICATÓRIA
INTRODUÇÃO DEUSES DA MÁFIA
ATO 1
PRELÚDIO
01. IRMANDADE
02. FAMÍLIA SOMÁLI
03. ERA UMA VEZ, UM PRÍNCIPE
04. MANÍACO LOUCO
05. UM FANTASMA
06. UM MONSTRO NO JARDIM
07. UM HOMEM AMALDIÇOADO
08. CASAMENTO
09. AGAPI MOU
10. PAPAI É UM MONSTRO
ATO 2
11. UM ENCONTRO
12. EU FIZ UMA COISA HORRÍVEL
13. O MELHOR DE VOCÊ
14. MINHA PROPRIEDADE
15. UMA LINDA MULHER
16. ACHO QUE SUA CASA É ASSOMBRADA
17. PARTY MONSTER
18. UM PRESENTE AOS NOIVOS
19. NÃO CHORE, MEU AMOR
20. TÃO SOZINHO EU VEJO VOCÊ
21. PELOS DEUSES, ME BEIJE
22. EU ODEIO E QUERO TANTO VOCÊ
23. BEIJO DE JUDAS, LÁGRIMAS DE ANJO
24. EU QUERO O MEU FIM
25. VOLTA, JERUSALÉM
26. MEU AMOR?
27. BODAS DE SANGUE
ATO 3
28. PORQUE TODOS OS MEUS INIMIGOS
29. COMEÇARAM COM AMIGOS
30. QUEM PODERIA ME DEIXAR, AMOR?
31. MAS QUEM PODERIA FICAR?
32. O LEÃO NA GAIOLA
33. REFÉM
34. ONDE VOCÊ ESTEVE?
35. AMOR DESESPERADO
36. ESTE É O SEU MUNDO DE JUSTIÇA?
37. ADEUS
38. UM MILAGRE OU MALDIÇÃO?
39. QUEBRANDO O SILÊNCIO
40. FÁBULAS
41. NASCIDOS PARA MORRER
EPÍLOGO
TRÊS ANOS DEPOIS
AGRADECIMENTOS
AVISO DE CONTEÚDO
Este é um Romance Sombrio, seu conteúdo é adulto e
gráfico que não é adequado para todos os públicos. Os avisos de
gatilho incluem: cenas explícitas sexuais, agressão física, tentativa
de agressão sexual, assassinatos, cadáveres, sangue, dissociação,
desrealização, despersonalização, abandono emocional, estupro,
incesto, luto, morte. Se você é sensível a esse tipo de leitura, por
favor, esteja ciente do aviso.
SINOPSE

Não há amor puro e perfeito entre nós. Todo esse sentimento


é um jogo de mentiras, vingança e remorso. Estamos queimando
nesse fogo cruzado que só trará paz quando um de nós estiver
morto. Ela sempre vai me odiar, e cada vez que insisto em manter
minha obsessão por ela, mais eu a perco para sempre. A morte é a
única forma de acabar com esse monstro em meu peito que chama
pelo nome dela.

Estou presa em um lugar onde não posso escapar, nem ficar.


Estou entre desistir e resistir. Este é o limite de uma nova vida. Se
eu ficar, ele vai queimar minha alma. Se eu o deixar, minha vida terá
acabado. Essa é a minha história, e eu tenho certeza que nunca,
nem em mil anos, irei me esquecer dela. Eu também vou garantir
que os outros não se esqueçam de como fui aprisionada, torturada e
quebrada. Eles me silenciaram, me transformaram em uma
Aberração, mas eu serei livre novamente.
SOBRE A OBRA
Inspirado nos verdadeiros eventos de sua história familiar,
esse é o primeiro romance sombrio de estreia de Talibah Casillas,
um livro sobre encontrar uma família, saudades, amor, crescimento,
segredos, amizades e até onde uma pessoa é capaz de ir por amor
e liberdade. Esse livro também pode ser visto como um manuscrito
de como a autora virou um fantasma preso no tempo, como nada e
nem ninguém ainda existe da forma que ela conheceu e se
apaixonou de primeira. É isso, aqui ela colocou um ponto final na
sua adolescência assustadora. Seja bem-vindo, caro leitor, ao
latíbulo da autora.
PLAYLIST
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DEDICATÓRIA
Já sentiu seu peito apertar ao ponto de não conseguir falar?
E quando isso acontece, não tem ninguém do seu lado,
certo?
Para você que já se sentiu no escuro como eu.
Que não tinha amigos para onde correr, mesmo com todos
eles ao seu redor.
Pois bem, agora temos esse livro.
INTRODUÇÃO DEUSES DA
MÁFIA

Somos milhões de pequenos deuses causando tempestades,


transformando tudo que tocamos em pó, inclusive nós mesmos.
Somos imersos em mistérios.
Somos criminosos endurecidos e pregamos nossa religião e
nossa fé sacando uma arma e atirando.
Esse é o nosso templo. Essa é a nossa alma.
O crime é o nosso deus. Consegue ver?
Águas subindo acima para afogar a inocência com doces
mentiras. O lento veneno do pecado apodrecendo cadáveres vivos
como oxigênio inalado, sem pensar duas vezes.
A raiva e o desgosto adornados por portões brancos e
perolados, atraindo fiéis para um céu pagão decorados com sangue
enegrecido pelo caos.
Vísceras de glória espancadas.
Mentiras vingativas. Desejos sublimes.
Ajoelhe-se diante da beleza da Alkyóna, como uma jovem
nua banhada pelo desejo, gerada com as fantasias da Medusa
estrangulando sua garganta com suas serpentes e palavras
sedutoras.
Sinta-se livre para viver,
Mas nunca viva para ser livre.
Somos juízes absolutos e também nossos próprios deuses.
Fazemos da dor e do caos a nossa arte. Dançamos nas
chamas como se estivéssemos no paraíso.
Corrompemos nossas almas pela Alkyóna.
Fomos contra os deuses e contra o destino.
Sangue. Pecado. Mentiras. Vingança.
Beijamos a morte todos os dias e ela nos ama como se
fôssemos seu próprio ego. Somos a fúria e a repulsa divina dos
deuses.
Então corra! Se quiser vencer, se quiser sobreviver.
Pois nada há que nos impeça.
Olhe nos meus olhos e veja o inferno gritar enquanto
queimamos sua alma. Uma vida recompensada com ira.
Somos chamados de Deuses. Nossos corações são beijados
e tragados por Medusa. Transformados em pedra.
Somos os Deuses Da Máfia.
PRELÚDIO
“Por que você permanece na prisão quando a porta está
completamente aberta?”
— RUMI.

Na minha cultura nos ensinaram desde criança a


acreditarmos nos deuses. Divindades imortais e belas capazes de
fazer qualquer ser vivo suspirar em deleite. Entre nós, eles dizem
que os deuses não são onipotentes, pois eles são obrigados a
obedecer e curvar-se diante as forças do destino, apenas esse está
acima deles mesmos. O destino une e também separa. Ele
corrompe, ele destrói, ele faz sangrar, ele arranca um coração fora
por pura diversão. Ele é cruel assim como os deuses são.
Os deuses são divindades com vícios e sentimentos
humanos, que andam entre os mortais e até desenvolvem
relacionamentos com eles, são criaturas cheias de façanhas e
rebeldia calçando seus pés.
Mas, na minha concepção, os deuses sempre foram maus,
egoístas, mesquinhos e invejosos. Eles são homens hipócritas e
ambiciosos. Eu convivia todos os dias entre eles. Os Deuses Da
Máfia.
Alkyóna, assim somos chamados. A Irmandade Dos Deuses.
Temos muitos nomes, aliados, sangue em nossas mãos, e acima de
tudo, muitos inimigos.
Acordo com minha visão turva e embaçada. Rapidamente
meus olhos tentam se acostumar com o ambiente claro à medida
que pisco em busca de conforto. É como se gotas ácidas
estivessem derramadas sobre minhas pupilas, fazendo meus olhos
arderem. Resmungo desconfortável e arqueio as costas sentindo
uma pontada de dor no meio delas. Sinto vontade de praguejar em
bom tom, mas a minha língua está dormente.
À medida que meus olhos buscam focar em alguma coisa em
minha frente, eu percorro vagamente com o olhar os traços das
minhas tatuagens pelos braços, isso me faz respirar fundo. Estou
completamente suja e fedida, céus, como me deixaram chegar a
esse ponto?
ㅡ Arcane, agapi mou. ㅡ Uma voz velha e grave me
chama. Concentro minha atenção mais uma vez. Meus lábios se
repuxam em um sorriso hostil. Conheço o dono dessa voz.
Consigo reconhecer a sua voz mesmo gritando no inferno, eu
conheço muito bem esse homem mesmo debaixo da terra, com
minha carne sendo devorada por necrófagos e vermes.
Dentro do meu peito um vazio doloroso se repuxa e se
expande. Quero rosnar para ele, mas não faço, pois já não sinto
nada. Tudo dentro de mim é vazio demais, e isso causa um
embrulho doloroso em meu estômago, como se eu estivesse sendo
socada vezes sem conta. Reconheço esse sentimento com clareza,
é angústia, ela vive dentro de mim desde que eu era uma criança.
Há quanto tempo estou nessas condições? Há quanto tempo
eu não tenho uma refeição decente e não me satisfaço com a
pureza da água fresca em minha garganta?
A necessidade disso me fez engasgar fracamente. Estou
faminta e sedenta. Minha garganta dói como se cacos de vidro
rasgassem minha boca.
— Veja bem, você está viva. Isso é bom, porque preciso de
você bem viva. — Ele diz gravemente.
E eu precisava que você cuidasse da sua garotinha. Você
prometeu ser o meu primeiro amor, mas apenas me quebrou.
Gemo em protesto, meus olhos se reviram em agonia quando
a dor faz minha cabeça latejar, ouço uma risada ríspida e cheia
desprezo. Ele está se divertindo ao apreciar minhas condições. Os
tempos mudam, mas o diabo é o mesmo. A minha audição é
preenchida por esse som rouco e grave. Quero silenciar sua boca.
Eu poderia esmurrar ele.
Olho para frente com meus lábios repuxados em raiva
fervente, minha visão é tomada pelo semblante do meu pai — ou
pelo menos era o que ele deveria ser.
Sua barba grisalha lhe causa uma expressão de
superioridade corrompida. Tenho tanto nojo disso. Ele é bonito para
caralho, mas não vale o que sua beleza causa. Os seus ombros são
largos e fortes, a prepotência pesa em cada lado de seus braços,
assim como o caos do submundo. Ele tem tanta culpa em seus
ombros que a única opção é manter a postura ereta.
Ele é parecido comigo, infelizmente. Ninguém recebe o que
merece e eu não mereço essa coincidência da biologia. Todo o seu
corpo possui tatuagens que contam suas próprias histórias de
matança e crueldade. Sua expressão é sempre tão séria e superior
que eu não preciso encarar seus olhos para saber exatamente como
está me olhando.
Tudo de belo e amável que há nesse homem, são seus olhos
verdes, enganadores como os sussurros de Medusa. Seus olhos
possuem um brilho único de maldade que faz com que nada lhe
passe imperceptível. Ele vê tudo.
Yuri Planard, para alguns ele é como um anjo, mas para
outros ele não difere do diabo. Ou alguém realmente o ama, ou
alguém realmente o odeia. Não existe meio-termo.
Ainda sem falar nada, e ainda com um sorriso repuxando
meus lábios, nós nos encaramos em uma batalha que poderia durar
anos. Se eu não estivesse tão fraca, teria rosnado ou até mesmo
reagido com agressividade, mas apenas o encaro.
Depois de cinco anos estou pondo meus olhos nessa criatura
que tanto detesto. Eu o amaldiçoo com o meu silêncio, queimo-o
com minha raiva, o devoro com meu desprezo. Ele não passa de um
rato debaixo da minha bota, um rato que eu não posso ter o prazer
de esmagar, porque ele é poderoso demais dentro da Alkyóna.
— O que você quer de mim, afinal? — Questiono. Minha voz
soa tão fraca que eu me assusto e aperto os olhos. Meu corpo
estremece em cansaço. Não aguento a dor das mãos algemadas.
ㅡ Está na hora de sair desse lugar asqueroso, não acha?
ㅡ Seu olhar é sério e firme. Seu tom de voz nunca demonstra
nada.
Observo em volta, apreciando a pequena sala vazia que
agora está tomada pela claridade do dia. Essa é a minha prisão, o
meu templo, o meu inferno. As janelas estão abertas me dando um
pequeno vislumbre de como a cidade lá fora é. Faz tanto tempo que
não ando por aí livremente que eu até poderia me considerar uma
aleijada. Pois tudo que eles fazem é me acorrentar em algum lugar,
me prender detrás de uma grade, e recomeçar a tortura diária.
Meus pés estão muito bem algemados nos pés da cadeira.
Minhas mãos estão presas atrás de minhas costas. Mas ainda
assim eu poderia matar um homem, em específico, esse diante dos
meus olhos, mas não posso, porra eu não posso, isso causaria uma
guerra.
Há manchas de sangue em minhas roupas, o sangue é da
última pessoa que matei, e sua morte trouxe a minha expulsão
desse lugar. Eles decidiram que antes de eu ir embora para sempre,
teria que pagar pelo homicídio. Entrei por causa de uma morte,
estou saindo por causa de outra. E eu peguei as duas. Todo o meu
corpo está coberto de hematomas e sangue seco, assim como
minhas tatuagens. Os cinco anos em que passei aqui dentro eles
chamam de lapidação. Fui experimentada, assistida e usada como
cobaia. Cinco anos da minha vida foram perdidos nessa fria
submissão. A mesma tortura sendo repetida dia após dia. O mesmo
treinamento fatal semana após semana.
Tudo por um erro cometido no passado. Um mísero erro que
eu repetiria sem pensar duas vezes. Que eu faria até pior, pensando
bem.
Eu quero sentir a esperança de finalmente sair desse lugar,
mas foram tantos anos desacreditada que agora, que finalmente
estou diante da minha liberdade, eu não sinto nada.
Talvez isso nem seja liberdade, talvez algo pior me aguarde
lá fora, então por qual motivo eu sentiria esperança?
Nenhuma fagulha transpassa meu olhar. Estou dura como
uma rocha. E ele, esse homem na minha frente, me fez assim.
Qualquer sentimento bom é facilmente dissolvido pela raiva. Foram
cinco anos presa nesse lugar treinada contra a minha vontade para
ser uma máquina de guerra, vai por mim, o embrutecimento é uma
benção.
Mas eu nunca, eu nunca, imaginei que iria embora dessa
forma. Tive apenas que matar uma pessoa para sair. Foi mais fácil
que entrar, mas meu coração foi partido no processo.
— Tive um longo debate com os chefes para saber o que
seria feito com você. — Yuri fala. — Porra, ninguém queria decidir.
Alguns queriam sua morte, mas Arcane, meu bebê, se alguém
destruir uma máquina de guerra tão boa… Isso é desperdício.
Ele ri apertando minhas bochechas com força, seu polegar
desliza por meus lábios quando ele abre minha boca e analisa meus
dentes perfeitamente alinhados. Ele parece estar orgulhoso da
minha arcada dentária, todos os dentes no lugar, não perdi nenhum
enquanto torturada.
Luto contra a vontade de arrancar sua mão apenas com uma
única mordida feroz. Ergo o queixo, afastando lentamente o meu
rosto da sua mão. Mesmo com uma certa confusão em minha
cabeça, eu não falo nada, não pergunto nada sobre o que
decidiram. Pouco me importa suas decisões de merda. Da minha
boca não sai nenhum som.
Tomo uma respiração prolongada quando Yuri aproxima sua
mão para tocar minha bochecha mais uma vez. Porra, ele não
consegue ficar longe, precisa se comportar como um macho alfa
para provar sua superioridade doentia?
— Diga alguma coisa, porra! — Ordena quase cuspindo as
palavras em meus olhos.
Em um rosnado descontente, umedeço meus lábios e limpo a
garganta procurando a minha voz.
— No entanto, manter essa máquina de guerra respirando, é
genocídio. — Respondo por fim. Meus olhos se encontram com os
seus e ele está sorrindo completamente orgulhoso da assassina que
eu sou.
— Não, minha filha. — Ele ri. — Você não é uma genocida,
você é uma supremacista.
Eu ri, achando graça. Desvio meus olhos e balanço os
ombros em um gesto humorado.
— Muitos nomes podem me definir. — Respondo com
indiferença. — Fique à vontade.
ㅡ Você não sente falta das suas irmãs? — Sibila
astutamente. Um rosnado baixo escapa do meu interior. Ele está me
testando.
Minhas irmãs... Todos os dias. Todas as horas. Sempre que o
silêncio perturba a minha mente. É apenas nelas que eu penso.
Apenas nas minhas irmãs mais velhas. Tudo é por elas, cada
respiração, cada batida deste duro coração.
Melissa é a mais velha, ela é uma mulher tão incrível, porra.
Eu me lembro bem do seu corpo escultural que sempre chamou a
atenção por onde ela passava. Minha irmã poderia facilmente
manipular um homem com sua beleza avassaladora. Ah, como sinto
falta de vê-la pentear seus cabelos loiros caídos em mechas lisas.
Ela sempre teve um cabelo longo e era muito vaidosa com ele.
Seus lábios sempre tinham um sorriso astuto repuxado para
o lado, ele dava ferocidade aos seus pensamentos críticos e
afiados. Mas seus olhos verdes, eles sempre arrebatavam uma
alma como se fosse uma flechada certeira, era como ouvir os
sussurros dos deuses naquela cor clara. Essa era a lembrança mais
viva que tenho de Melissa.
Melissa é como o nosso maldito pai: impulsiva, possui uma
personalidade fria, cruel e vingativa.
Será que ela mudou? Que ela conseguiu ser uma pessoa
melhor que ele? Espero que sim, não é vantagem nenhuma se
parecer com esse verme diante de mim.
Sorri de lado com esse pensamento, Yuri ainda mantém o
seu olhar firme sobre o meu, acho que todas temos essa parte
víbora herdada dele.
Nimue é a do meio, mas ela é tão frágil que parece ser a
caçula. Suas palavras sempre são dadas com um sorriso amável e
cativante. Ela é extremamente pensativa antes de qualquer ação.
Seus olhos selvagens são em uma tonalidade castanho escuro, e
seus cabelos sempre foram cortados acima dos ombros. Seu corpo
desde adolescente sempre foi perfeito, magro e sensual. Ela é dona
de um sorriso perfeito, quem os recebe, recebe o mundo.
Essa é a minha última lembrança sobre ela. Sinto tanta
saudade que dói.
Nimue possui a bondade da nossa mãe, é o tipo encantadora
com praticamente todos, sendo bem-educada e meiga. Simpática,
doce, mas é teimosa e respondona. Ou ao menos ela era assim
antes de tudo que nos aconteceu cinco anos atrás.
Franzo o cenho. Faz cinco anos que eu não as vejo. Hoje é
meu aniversário de vinte e um anos e eu quase fui assassinada.
Que grande merda! Mas isso não me importa.
— Eu sequer lembro a porra do nome delas. — Digo para
Yuri o que ele está esperando ouvir.
— Isso é ótimo. — Ele ri com diversão.
Dou de ombros e encaro meu genitor esperando que ele
finalize isso de uma vez, não quero mais lhe dirigir uma única
palavra e soar tão cruel quanto já sou. Eu não tenho nada para falar
com essa criatura tão baixa e nojenta.
Vou voltar para casa depois de cinco anos. Esse pensamento
pulsa em minha cabeça e faz meu coração latejar. Uma onda de
sentimentos percorre meu interior e eu procuro desesperadamente
silenciá-los.
Não sei como irei reagir quando estiver de volta, como viver,
o que fazer. Tudo isso me soa estranho e fácil demais.
Tudo que sei é que nossa casa não importa de nada sem a
nossa família. Desde que a minha maldita mãe se foi, nunca fomos
uma família de verdade. Tudo passou a dar errado quando aquela
mulher covarde resolveu fugir.
Yuri está citando algumas instruções que eu não dou ouvidos.
Ele me desamarra, e me puxa com força total para que eu comece a
andar. Estou completamente aérea e pensativa.
— Você voltará para a Alkyóna. — Brada. — Seja
eternamente grata por essa segunda chance, assassina.
Crescer na Alkyóna nunca foi um mar de rosas. Desde que
aprendi os meus primeiros passos, e as minhas primeiras palavras,
me ensinaram a ser grata por essa vida infeliz.
Pois eu não terei a liberdade de escolher outra, de fazer o
que quero, ou ser uma pessoa normal. Essa é a minha maldição e a
minha imortalidade.
Agora que voltei, sei que o meu tormento eterno apenas
começou no meio desse povo sanguinário e descontrolado. É isso,
estou queimando na porra do inferno desde que dei os meus
primeiros suspiros de vida.
01. IRMANDADE
“Estou preso em um lugar de onde não posso
fugir e nem ficar.”
— RUMI.

Depois de uma semana eu estou no meio deles novamente.


Esse lugar parece o inferno. O evento é extremamente agitado e
cheio de pessoas rindo. Isso faz com que eu olhe para os lados a
todo instante, tomada pelo desconforto. Eu não estou acostumada
com tanto barulho e aglomeração, eu sempre fui tão sozinha.
Minhas irmãs deixaram um vestido elegante em minha cama
horas atrás, quando vesti fiquei parecendo uma dama cheia de
modos e elegância, isso me rendeu algumas gargalhadas em frente
ao espelho. Até mesmo maquiagem e salto alto estou usando.
Merda, isso me incomoda profundamente, mas também faz com que
eu me sinta um pouco normal.
Não uma assassina sanguinária, mas uma mulher, uma dama
normal.
Meu sorriso é falso enquanto todos me olham com
superficialidade. Eu não sou completamente a atração da noite, mas
definitivamente as pessoas estão cochichando quando passo por
elas, atraindo olhares sorrateiros.
É como se eu fosse um fantasma que retornou dos mortos,
eu ando perambulando enquanto eles questionam onde deve ser o
meu lugar, aqui ou nas profundezas do inferno. — sinceramente eu
não vejo diferença entre os dois. O inferno já é aqui. Qualquer coisa
é melhor.
Tudo mudou na Alkyóna, algumas coisas não são mais como
eu me lembro, há uma multidão nova, homens com sotaques
estrangeiros, novas famílias.
Mas ainda consigo distinguir alguns rostos antigos, e eles me
reconhecem assim que batem os olhos em mim, eles sorriem ou
arregalam os olhos — e dão as costas assim como os deuses
deram.
Em algum momento eu me distraí tanto que foi como se eu
não tivesse passado cinco anos afastada. As minhas irmãs me
olham como se eu sempre estivesse aqui, dando boas risadas,
abusando da garrafa de champanhe rosé, as piadas ruins e
desavergonhadas. Elas me receberam como se sempre
esperassem meu retorno. Eu gosto disso. Me sinto uma menina
pequena.
Isso fez a angústia em meu coração adormecer, e eu posso
respirar profundamente, como se estivesse respirando a brisa que
vem do mar.
— Eita. Aquela mulher não para de olhar você. — Melissa
arqueja, incomodada. Seus lábios batem com sutileza quando ela
amaldiçoa com seu sotaque grego tão firme e sensual. Eu ri, havia
me esquecido disso, sua voz é linda.
— Deixe ela. — Digo quase pairando na dormência da leveza
que me domina. — Ela está maravilhada com as tatuagens em
meus braços. — Aponto com o queixo. — Não é qualquer pessoa
que as tem. — Pisco.
Claro que os olhares não são apenas por isso, é pelo fato de
que pela primeira vez em anos, a família Planard finalmente se
reuniu. Estamos em ascensão novamente.
Eles devem se perguntar: o que devemos esperar disso?
Outro escândalo? Outra tragédia assustadora e desprezível? Pelos
Deuses!
Tive que rir quando ouvi que alguns acreditam que eu estava
na Oceania estudando, isso soa tão engraçado quando associado a
minha personalidade. Já outros tinham a audácia de dizer que eu
estava enclausurada em casa porque não suportava a traição da
minha mãe. Eles me chamam de fraca demais, e torcem o nariz
como se eu não fosse um ser humano.
E no meio de tantas especulações, ninguém dos mais antigos
ousava dizer o verdadeiro motivo, ou o lugar exato em que eu
estava.
Olho em volta do salão encarando as pessoas que conheço a
minha vida inteira. Mulheres fofoqueiras, socialites clássicas,
esposas de associados importantes que se acham deusas. A ilusão
delas é tão doce que eu poderia me deleitar.
— Não vejo a hora de ir embora. — Nimue reclama
deslizando os dedos ágeis pelos fios de seus cabelos. — Estou
começando a sentir uma enxaqueca forte com tanto barulho de
música e risadas.
— E cheiro de maconha. — Acrescento sutilmente. — Doce
demais. — Balbucio.
Elas dão gargalhadas. Minhas irmãs nada mudaram, ao
menos em aparência, elas estão ótimas. Até parece que nos vemos
frequentemente, elas conversam sobre tudo para evitar o assunto
sombrio que ninguém ousa tocar, e apenas isso parece estranho,
pois eu só consigo pensar no maldito passado.
Será muito difícil me acostumar a viver na Alkyóna
novamente, mas eu não deixo transparecer o meu
descontentamento gritante, não posso desmontar fraqueza ou Yuri
acaba comigo.
Nas próximas horas, como um grande banquete servido para
nós a mando de Yuri. Faz tempo que não aprecio uma refeição tão
deliciosa, a bebida adoça a minha garganta, refinando o meu
paladar escasso.
Há tantos pratos que eu sequer consigo os nomear. Eu
apenas devoro tudo ouvindo as risadas dela, ela está me
admirando, seus olhos brilham de felicidade por estarmos unidas
novamente. Devolvo o sorriso um pouco tímido com tanto afeto
genuíno.
— Você está linda. — Melissa diz, me observando.
— Você costuma usar essas roupas elegantes? — Nimue
pergunta.
— Hmm. — Resmungo olhando para elas, procurando as
palavras certas e amáveis. — Obrigada. — Lambo o polegar
recheado de carne. — Na verdade, prefiro jaquetas de couro e
alguma bota que não deixe pegadas.
Melissa me observa com um sorriso largo.
— Interessante. — Ela sorri. — Gosto de roupas ousadas. —
Pisca.
Meus lábios se repuxam em um sorriso que põem fim a essa
breve conversa. Nenhuma das minhas irmãs parecem demonstrar
interesse em saber o que aconteceu nos últimos anos na prisão,
elas me olham sem saber muito bem como agir, mas reconheço
seus esforços. Gosto da conversa leve. Elas me tratam com
normalidade.
Por agora elas estão me poupando dos detalhes de tudo que
aconteceu em minha ausência, sou bombardeada apenas por
informações triviais, que não têm importância. Como alguma fofoca
escandalosa de traição ou briga feia.
— E dançar, você sabe? — Nimue quer saber.
— Sei rebolar. — Ri, balançando os ombros. — Isto é, eu sei
dançar. — Acrescento rapidamente, voltando a comer distraída. —
Algo sexy e sedutor, eu acho. Faz parte do que recebi como
treinamento.
— Odeio dançar. — Nimue diz. — Prefiro ficar na minha.
Distante e observando. — Ela suspira
— Bom, eu adoro dançar. — Melissa fala. — Constantemente
arrasto Nimue comigo, então não acredite no que ela disse. Ela
dança sim.
— Por livre e espontânea pressão. — Nimue resmunga
carrancuda. Ela ainda continua rabugenta, eu ri alto.
Então, enquanto o evento segue, eu paro de me importar e
desejo apenas que elas não falem sobre o motivo de eu ter ido parar
na prisão, ou sobre o motivo de eu ter retornado. Eu quero que elas
continuem fingindo normalidade. Mesmo que todos os sentimentos
ainda estejam dentro de mim há anos, a culpa ensurdecedora e o
medo avassalador, o silêncio continua mais confortável do que falar
sobre isso. Algumas coisas devem ficar no passado.
Mergulho profundamente em minhas lembranças quando o
silêncio paira entre mim e minhas irmãs pela primeira vez nessa
noite.
Então minha mente me prega peças apenas para me
relembrar de quem sou, das coisas que fiz e passei. Consigo ouvir
claramente os gritos, o crepitar das chamas ardentes. Minha
audição chia quando as lembranças mudam drasticamente.
As vozes alteradas da prisão entram em minha cabeça com
toda força. Posso ouvir com clareza, como se eu ainda estivesse lá,
o som incessante dos socos, os grunhidos agudos e desesperados
de dor. Meus olhos queimam de raiva e eu aperto-os com força. Um
tremor percorre meu braço e eu o acaricio com a mão livre.
Quão letal eu sou? Nunca explorei minha destreza em luta,
mas a minha vontade de fazer isso aperta meu âmago, assim como
a sede que deixa minha garganta seca.
Eu os odeio com tudo o que posso.
Cada um deles. Mas principalmente Yuri.
Ele esqueceu de proteger sua garotinha.
Os barulhos de soco ecoam por minha mente novamente,
cada vez mais próximo e real, até que minha visão é tomada pelas
memórias daquele lugar, e eu me rendo a elas.

Golpes são desferidos em minha direção e eu os recebo com


destreza ouvindo os grunhidos baixos de cansaço e raiva da minha
companheira. Ela é boa para caralho e sabe muito bem disso, ao
ponto de abusar e exagerar de suas investidas de ataque.
Minha risada aumenta quando invisto sem deixar que ela
facilite. Sou mais determinada e posso fazer isso o dia inteiro, nunca
deixarei que me derrubem.
— Vai precisar bem mais que isso para me derrubar, Nikoleta.
— Debocho fortemente na intenção de amenizar sua tensão.
Ela está focada em algum lugar da sua mente que a deixa
cega, às vezes isso me assusta, parece até que ela não consegue
me reconhecer.
Em quem ela pensa para sentir tanta raiva assim? Ela
queima como um pavio fácil de sucumbir.
— Pega leve, não estamos em guerra. — Inclino minha
cabeça para o lado.
Ela ri um pouco ofegante, não a culpo, também me perco
dentro da minha própria cabeça quando a raiva acende.
— Se essa fosse a minha intenção, você estaria no chão e
sabe disso. — Ela responde entre dentes. — Está com medo?
Venha. Dê tudo de si. — Abre os braços me desafiando. — Venha
com tudo, Arcane.
Esquivo para baixo quando um soco rápido foi desferido.
Engasgo em meio a uma gargalhada alegre, me entregando ao seu
desafio e me esquivando como se estivesse brincando.
Uso minha perna como impulso para lhe dar uma rasteira,
mas ela consegue desviar facilmente, dou risada ao lhe dar um
gancho alto de direita no queixo. Ela arqueja. Eu sorri. Eu sorri
muito, porra.
— Joguei água no seu fogo. — Debocho. — Fuja de mim
como o diabo foge da cruz, Nikoleta. — Ela não tem sobrenome.
Aqui dentro ninguém sabe o sobrenome de ninguém. — Vamos.
— Combinamos de não subestimar uma à outra, lembra? —
Ela fala suspirando. Eu ri mais uma vez, me divertindo.
— Você melhorou. — Elogio em reconhecimento.
Balanço as mãos quando a luta finalmente acaba e ela bebe
água. Afundo no chão arrumando alguns fios úmidos para trás. Meu
peito sobe e desce com selvageria.
— Posso matar você de olhos fechados, Arcane. —
Resmunga por cima do ombro.
— Tente. Eu te desafio. — Sibilo inclinando meu queixo. —
Posso me defender até mesmo que meus olhos sejam arrancados e
eu seja jogada nas profundezas do tártaro.
Foi uma provocação ingênua e cheia de diversão. Nada sério,
mas é verdadeira.

Sou arrancada dos meus pensamentos pela voz calma de


Melissa. Nimue está ao seu lado esperando, igualmente, alguma
reação minha.
Pisco algumas vezes olhando para as duas diante de mim
naquela mesa. Ainda estamos nesse evento irritante. Suspiro.
— Por um momento a sua mente foi para outro lugar, Ane. —
Melissa sussurra. Sua mão está acariciando a minha com tanto
amor que fico assustada. — Volte para nós.
— Perdão, o que diziam? — Resmungo, balançando os
ombros.
A conversa é interrompida quando um garçom nos serve
champanhe e vinho, eu sorri de lado agarrando a garrafa de vinho
para experimentar.
Nimue finge uma tosse seca e eu a encaro sem entender. Ela
parece tensa por breves segundos.
— O que tem na sua garganta? — Questiono inclinando o
rosto. Ela conserta sua postura em um gesto elegante.
— Apenas um maldito Somáli que passou por nós. —
Responde com desinteresse.
Ergo as sobrancelhas em questionamento, mas antes que eu
diga alguma coisa, Melissa se inclina.
— Dizíamos que, tem um cara, ele mora em um distrito em
Santorini. Eu o conheci quando estava viajando com Yuri. Ele está
me mandando mensagem desde que nos beijamos. — Ela ergue o
celular. — O que acha dele? Devo dar uma chance? — Melissa fala
em um sussurro depois que ficamos sozinhas novamente, sem a
presença do garçom.
Então minha atenção é roubada apenas para isso. Uno as
sobrancelhas.
Ela me mostra a foto do cara. Ele é forte e um pouco tatuado.
Seus cabelos são loiros e ele é sorridente. Muito gostoso e atraente,
tenho que admitir.
Ergo o olhar para as duas e sorri maliciosa.
— Ele tem cara de quem fode bem, vai em frente. —
Resmungo, dando um gole na minha bebida deliciosa. Minha
garganta está seca. — O que acha de me apresentar a ele depois?
— Zombo, tentando me reconectar com elas.
Melissa ri quebrando o clima com uma piscadela.
— Está querendo se juntar? Porque aposto que ele não
aguentaria. — Melissa ri de novo. — E se ele tiver um pau
pequeno?
Gargalho muito alto e isso chama a atenção de algumas
pessoas.
— Então vou precisar saber o que ele faz com os dedos. —
Entro na brincadeira com um sorriso cínico.
Elas riem alto, mais atenções são voltadas para nós, mas
foda-se.
— Ou com a boca. Acho que Nimue também está
interessada, ela ficou corada. Cada uma fica com um, o que acham?
— Melissa diz de uma forma tão engraçada que tive que dar mais
um gole em minha bebida para não berrar de tanto rir.
— Acho que papai acaba com a nossa vida se continuarmos
com esse assunto depravado aqui. — Nimue resmunga baixo
enquanto finge discrição.
Balanço a cabeça em negação. Medrosa.
— Não chame ele de papai quando ele não está vendo. —
Melissa repreende. No entanto, não chamar Yuri assim seria motivo
de punição. — Nós não temos pai.
O medo e receio de Nimue é compreensível, afinal.
Gosto de como para os outros não existe diferença de idade
entre nós, apenas a nossa beleza e nosso corpo chama a atenção
nosso meio, nós valemos dinheiro. Muito dinheiro.
Foi para isso que Yuri nos criou, a sua ganância cresce
conforme ficamos mais belas, como ninfas sedutoras. Ele nos
mantém em um pedestal, ele é o rei dos negócios e acordos que
envolvem mulheres belas, o nosso dote é perfeito e não é qualquer
um que pode nos tocar.
Somos uma marionete. Não podemos fazer nada que
manche essa posição de mercadoria.
Eu já fui corrompida há muito tempo, designada ao crime e
assassinato, não ao casamento. Mas minhas irmãs, e
principalmente Nimue, foram criadas apenas para isso. O
casamento arranjado.
Ela é o exemplo perfeito disso e eu não a culpo. Suponho
que para ela seja melhor a obediência do que sangrar todos os dias
por sua rebeldia.
O casamento espera todas nós. É o nosso destino. Ele tem
planos para todas. Até mesmo para mim que passei cinco anos da
vida presa em uma prisão sendo adestrada como uma máquina de
guerra.
É tudo negociação. Somos negócios. Nada no nosso meio é
movido por um sentimento maior ou bondade e desejos profundos.
Apenas negociação, dinheiro, posição, poder, ganância. Yuri
Planard está no centro disso.
— E você, irmã? Sua vida na Alkyóna difere da nossa desde
que… — As palavras de Melissa morrem em sua boca ao perceber
o comentário que ia fazer. Balanço a cabeça para que ela prossiga,
ignorando o outro assunto. — Você já transou?
Nimue se engasga com sua bebida e eu ri baixinho
encarando as duas. Aperto os lábios enquanto minha gargalhada
aumenta e chama a atenção dos mais próximos.
— Que horror, Mel. Minha vida sexual não é da sua conta. Eu
não tenho audácia em expor detalhes sobre isso. — Brinco, em um
tom mordaz.
— Você pode soltar pistas se for tímida demais. — Porra. Ela
me faz rir muito. — Tipo… Nem se tocando? — Pergunta, ignorando
minha fala. Inclino o rosto para o lado e suspiro sentindo as
bochechas vermelhas. — Ah, vamos lá! Me fale se você é rebelde,
Ane! — Ela está louca por alguma fofoca indecente. — Álcool?
Drogas?
Pergunta, simplesmente, e sorri. Balanço a cabeça em
negação.
— Você precisa de um filtro, Mel. — Falo, dando mais um
gole na bebida. A taça já está pela metade. — Às vezes álcool. Mas
eu só saía em missões para pessoas que eu não conheço. Fora isso
é apenas treino e coisas… Sombrias. Nada de festas ou indícios de
uma vida normal. — Respondo em um suspiro.
— Ah, merda. — Ela ri. Sua risada é fofa. — Eu não queria
encher seu saco com isso. — Se desculpou.
Balanço a cabeça em negação novamente. É a primeira vez
que me sinto em casa e um pouco normal desde que voltei.
— Eu também quero saber. — Nimue se inclina. — Você
ainda é virgem?
— Eu não vou responder isso. — Ela já esperava essa
resposta, pois sua expressão não muda.
— Bom, isso é uma resposta. Você não é. — Mordo o canto
dos lábios suplantando um xingamento. Elas riem e eu acompanho
baixinho.
— Ora. — Estalo a língua. — E qual é o nome do cara das
férias?
— Pavlos Koustenis. Ele é um ano mais novo que eu. —
Melissa diz, deixando o celular de lado e fazendo uma careta.
Esse sobrenome é muito familiar, tento lembrar de onde o
conheço, mas milhares de famílias na Grécia também o tem.
— Ele é gentil? — Nimue pergunta confortavelmente.
— Ele é normal. — Minha irmã sorri largo. — Sabe? Parece
ser rico, tem boas amizades, um sotaque forte e educado. —
Continua e eu faço uma careta. — Mas ele é um pouco reservado,
não gosta de falar com detalhes sobre a família. Eles trabalham com
pesca e vinhedo. — Aparentemente ele é o modelo perfeito para um
noivo.
— Isso parece saudável. — Olho dela para Nimue que
concorda em um aceno. — Eu acho que você vai ser pedida em
casamento.
— Pois eu gostaria de sair com ele novamente, não quero
viver como uma marionete. — Melissa sussurra. — Ao menos uma
vez na vida quero fazer algo por conta própria. Sorrir e me divertir.
Conhecer um mundo longe das correntes da Alkyóna.
Dou de ombros voltando a beber, agora com uma expressão
séria encarando ela. Para ela, ele deve ser apenas mais uma
diversão momentânea, um Passatempo. Mas é arriscado,
considerando a vida que temos e quem somos.
— Você pode, quem disse que não? — Inclino o rosto. —
Apenas tome cuidado com isso aí. Não queremos problemas, certo?
— Falo com a voz baixa e calma em advertência.
Respiro fundo voltando minha atenção para esse ambiente
movimentando.
Nimue e Melissa conversam entre si sobre algum assunto do
momento, elas mudam de assunto tão rápido que é difícil
acompanhar, enquanto eu observo as pessoas desse lugar.
Depois de um tempo de treinamento, você aprende a
observar as pessoas. Para mim, todos aqui são suspeitos. Estão
sempre sujeitos a algo bárbaro. Sempre a um passo do caos.
ㅡ Olhe para eles… ㅡ Resmungo. Minha voz é arrastada e
carregada de insatisfação. Trago a bebida de volta aos meus lábios.
Suspiro apreciando o gosto do vinho. ㅡ Tão interessados em falar.
— Completo.
Nimue e Melissa olham para a direção que estou olhando.
Adiante, no centro do grande salão onde esse patético baile
acontece, está Yuri Planard e seus amigos.
Dá para ver pela maneira como movimentam os lábios que
eles todos são homens sujos e corrompidos.
— Para a felicidade das mulheres do nosso meio, alguns
homens são solteiros e em breve irão escolher uma das famílias
mais bem vistas do nosso meio para se unir às suas. — Melissa
comenta distraída, sem dar importância a isso, ao casamento.
Yuri e seus amigos estão fumando e bebendo, eles riem alto
rodeados de algumas mulheres que enchem seus sacos com
elogios superficiais. E as risadas não têm fim, o som reverbera sob
a música clássica, provavelmente estão rindo de algum comentário
maldoso.
ㅡ Olhando assim, por um momento esquecemos de quem
eles são. ㅡ Melissa fala mais uma vez, parecendo sair do encanto
que a envolvia e volta sua atenção para nós.
Monstros. É isso que eles são. Eu não me confundo em
nenhum milissegundo. Está impregnado no ar que eles respiram.
— Então olhe novamente, irmã. Pois aparentemente você
não está enxergando direito. — Respondo.
E no meio desse fatídico evento, eu estou faminta para matar
todos que me fizeram mal, eu quero apenas ter a minha vingança.
Quero me vingar de Yuri por ele não ter nos protegido. Quero
destruir essa Irmandade corrompida e ir para bem longe daqui.
02. FAMÍLIA SOMÁLI
“Quando o mundo empurra-o de joelhos, você está na
posição perfeita para orar.”
— RUMI.

A prisão onde eu estive é uma propriedade particular da


Alkyóna. Dentro daquele lugar nós conhecemos o pior lado do ser
humano. O lugar ensina a manter seu código moral enquanto jovens
sobrevivem a um currículo implacável. Lá somos treinados com o
principal objetivo de sermos assassinos. Todos os tipos de pessoas
vivem naquele lugar. Éramos vigiados o tempo inteiro pelo exército
grego. Homens do governo totalmente corrompidos e desviados
para dentro da Alkyóna.
Eles fizeram um bom trabalho me destruindo. Ninguém nunca
sai do mesmo jeito que entra. Aquele lugar foi a pior prisão que Os
Deuses Da Máfia já criaram. Sua localização ou informações de
como funciona é altamente restrita, caso alguém abra a boca para
falar das coisas que acontecem lá dentro, é condenado à morte.
A maior regra é nunca dizer o que viu ou ouviu. E a pior parte
é que ficar em silêncio diante das atrocidades que acontecem
naquele lugar é assinar uma sentença eterna com o tormento.
Nunca conseguimos nos livrar das lembranças. Há um
demônio implantado em minha cabeça, que sussurra cada
acontecimento dentro daquele lugar. Essa é a minha morte lenta e
cruel.
Conheci muitas pessoas naquele inferno. Desde filhos de
máfias aliadas, de gangues americanas, herdeiros de cartéis de
droga, malditos neonazistas que eu tive o prazer de matar, filhos de
assassinos russos e muitas outras figuras violentas e excêntricas
que de alguma forma caíram nas mãos da Alkyóna.
Repasso as informações sobre o lugar para Yuri conforme ele
me questiona. Eu lhe informo apenas o que é permitido, e como ele
já andou dentro daqueles corredores, o homem não se surpreende
ao ouvir cada detalhe pesado.
Estou em seu escritório. O lugar é rústico e fechado. Não há
nenhuma fresta de luz. Apenas escuridão. A madeira é em uma cor
preta que brilha no meio da pouca luz, no canto da parede escura
há uma prateleira com bebidas de todos os tipos.
Eu lembro muito bem de sempre evitar esse cômodo da casa.
Na minha cabeça, era aqui que todos os monstros se escondiam.
Pisco algumas vezes voltando a minha atenção para Yuri. Agora
ouvindo o que ele diz.
— É impressão minha ou suas tatuagens estão aumentando?
— Seu olhar percorre minha pele. Há dureza em sua expressão.
Meus lábios se repuxaram no que seria um sorriso, mas é o
meu genitor quem está na minha frente, então fico séria antes que
ele arranque o sorriso com um murro.
Dou de ombros para ele. As minhas tatuagens são referentes
a cada livro que eu lia durante meu tempo livre na prisão. Eles, de
alguma forma, me deixaram mais próxima do meu lado humano, a
parte minha que ainda é boa.
Respiro fundo e aperto meus lábios buscando o que falar.
— Eu estou falando com você, agapi mou. — Rosna.
As tatuagens também lembram a minha mãe. Cada desenho
é um lembrete que eu devo continuar lutando e nunca, de maneira
alguma, me tornar igual a ela. Uma covarde.
— Eu gosto, papai. — É tudo que respondo para Yuri.
Ele resmunga em concordância analisando os desenhos mais
um pouco. Quero arrancar seus olhos de mim. Ele provavelmente
está pensando se minhas tatuagens implicam na busca por um
pretendente.
— Aposto que seu esposo irá querer arrancar sua pele. —
Ele diz. Quase gargalhei ao perceber como estou certa. Casar suas
filhas e ficar mais poderoso é tudo que ele pensa.
— Não se antes eu arrancar a dele. — Respondo friamente.
Esposo... A palavra parece estranha. Me causa um embrulho
no estômago que me deixa agressiva.
Eu não me vejo casada e com filhos, nunca sonhei com isso,
não desejo isso nem em um milhão de anos. A ideia é estúpida e
me deixa enjoada. Eu não nasci para ser uma esposa. Nasci para
ser uma assassina.
— E você fez amigos por lá? — Yuri pergunta novamente
mesmo que não se importe com a resposta. — Se entregou para
alguém? — Seu olhar é duro. — Ou seja, trepou com alguém, Ane?
Tudo que ele está fazendo é se certificar que fizeram uma
boa lavagem cerebral em mim.
— Eu não trepei com ninguém. — Minto, em um resmungo.
Claro que eu saí com alguns caras. Beijei a boca deles. Perdi a
minha virgindade com um homem que eu fui enviada para matar.
Enquanto ele estava dentro de mim eu cortava a sua garganta.
Nunca mais consegui fazer sexo, e nem tentei.
Eu não tive escolha em tornar a minha primeira vez em algo
especial como as garotas sonham. Eu sou uma assassina, matar é
mais importante que me sentir humana e livre.
— E amigos, você fez? — Yuri inclina a cabeça para o lado.
Eu não tenho uma resposta para sua pergunta. A raiva faz
minha veia do pescoço latejar.
Meus pensamentos voltam para uma das minhas lembranças
daquele lugar.

Essa foi a tarde mais cansativa do mês, disso eu tenho


certeza. Estou exausta, afundo diante da mesa do meu quarto.
Finalmente terei tempo para respirar e descansar depois de tanto
treino. Minhas pernas doem pelo esforço físico. Eu estou
completamente suja de sangue depois de tanto matar os meus
oponentes. Era isso, ou eles me matarem.
A gaveta está aberta e retiro dela um quite de primeiros
socorros que eu uso para cuidar dos meus ferimentos. Grunho de
dor quando começo a costurar minha carne.
A porta do quarto é aberta, me surpreendendo.
— Ya, Arcane.
Balanço a cabeça em negação, arqueando as costas e olho
em sua direção.
— O que você quer agora, Nikoleta? — Reclamo firmemente.
Eu simplesmente estou sem paciência para falar com alguém depois
de todas as coisas que fui obrigada a fazer.
— Você é tão suave, criança. — Ela sorri, entrando no quarto.
— Vai ter uma festa hoje, soube que cancelaram aquela missão de
transportar drogas pelo mar, então você devia se divertir.
Grunho em frustração. Os Deuses sabem o quanto eu estava
desejando essa missão, era a chance de conseguir sair desse lugar
mais cedo, de provar que eu já fui lapidada e me tornei uma
assassina imbatível. Eu simplesmente poderei ir embora e fazer
mais do que eu vivo fazendo todos esses anos aqui dentro.
Finalmente poderia conhecer o mundo além das muralhas bem
protegidas com tecnologia.
— Não gosto de aglomerações. — Respondo lhe dando as
costas. Aperto os lábios forçando minha mente a pensar o que eu
farei agora.
— Nem eu, mas devia sair e não ficar socando coisas. — Ela
caminha até mim e segura meus pulsos de leve.
— É sério, criança. Você está estranha, mais quieta que o
normal e parece estar tensa pra caralho. — Seus olhos procuram os
meus.
Olho em seus olhos. Ela se preocupa comigo, e nesse
momento eu vi que tenho uma amiga com quem contar.
— E vai ter tequila. Klelia conseguiu contrabandear umas
garrafas. — gargalhamos.

— Porra, Arcane! Eu estou falando! Onde está a sua cabeça?


— Saio dos meus pensamentos novamente quando Yuri chama o
meu nome com firmeza. Percebo que ele ainda está esperando uma
resposta.
— Não fiz amigos, pai. — Balanço a cabeça em negação,
engolindo essa raiva que parece arranhar minha garganta e me
devorar de dentro para fora.
Encaro ele com o olhar mais frio e sério. Espero que ele diga
que já posso sair dessa sala sombria. Ele apenas me encara
buscando algum resquício de mentira ou falsidade. Mas meu olhar é
um abismo sombrio. Ele não consegue ver nada, porque tudo que
eu sou é nada.
Yuri vira de costas, levanta da cadeira e vai até a estante de
bebidas. Ele serve-se preguiçosamente de bourbon. Observo seu
corpo inclinando em minha direção.
— Aceita uma bebida, agapi mou? — Questiona com um
sorriso cruel nos lábios.
Toda noite antes de dormir eu crio uma imagem perfeita do
diabo em minha cabeça, e ele se parece com Yuri, fumando um
charuto e bebendo bourbon.
— Não, pai. — Ergo o queixo. Eu me pergunto quando ele se
tornou tão amargo.
Encaro suas tatuagens, são belas e bem desenhadas,
estendidas em seu braço por completo, por seu pescoço e por
outras partes que não são visíveis. Mas a que sempre me chama
atenção é aquela da deusa Atena bem em cima do seu peito. Um
desenho rodeado de rosas espinhentas. Parece triste e poético.
— Foda-se. — Dá de ombros em resposta a minha aversão
pela bebida. Ele caminha de volta a sua cadeira e desliza um
documento por minha mesa.
— Os chefes entraram em um acordo ontem durante o
evento. — Yuri comenta abrindo os papéis com uma mão e bebendo
com a outra. — Essa é a sua primeira missão para a Alkyóna. — Ele
fala com o olhar severo.
— Minha primeira missão? — Uno as sobrancelhas em
confusão.
— Abra e leia. — Ordena friamente.
Encaro os documentos lacrados. Minhas mãos vão até o
meio da mesa e então o pego. Abro o envelope e leio o que está
escrito.
É um contrato. Os papéis dizem que eu devo trabalhar para a
família Somáli como guarda costas da mulher mais intocável da
Alkyóna, Atena Somáli, esposa e mãe de grandes homens. Homens
corrompidos.
— Eu não passei cinco anos da minha vida sendo treinada
para ser uma babá. — Argumento encarando Yuri. Na verdade, eu
me submeti a essa tortura apenas para ganhar liberdade em algum
momento. — Deve haver alguma outra coisa para mim, papai,
pense bem.
Yuri gargalha alto e então larga sua bebida para falar sem
distração.
— Você foi expulsa porque matou uma companheira de
equipe. — Ele me encara. Sinto uma pedra em meu peito. Minha
garganta dói. — Deve ser grata por trabalhar diretamente para a
família Somáli, agapi mou, e não como uma prostituta barata.
— Você, Ane, deve ser grata a mim por eu manter a nossa
honra e ter conseguido uma segunda chance para você. —
Argumenta, doentio. — Atena está sendo ameaçada por inimigos
ainda desconhecidos. As ameaças são brandas, por agora, mas são
ameaças. Proteja-a.
— O que temos a ver com Atena e sua família? — Inclino a
cabeça para o lado.
— Você sabe que Ivan é meu melhor amigo. — Ele fala do
marido dela. — Trabalhamos juntos desde adolescentes, mostre sua
lealdade àquela família assim como eu mostrei.
Eu ergo o queixo para encarar o homem na minha frente.
Claro que estou sendo punida, sendo colocada debaixo dos olhos
dos Somáli, sendo vigiada pelos donos de tudo. Meus lábios se
apertam para suplantar um palavrão.
Eu era a melhor prisioneira que aquele inferno já teve. Me
destacava nas lutas, no treino, na resistência, na força e nas
habilidades. E dentro da Alkyóna, eu sou a única mulher com
tamanho desenvolvimento, a única mulher que é mais do que uma
futura esposa para algum mafioso, que a pode estuprar e tratar mal.
Eu sou uma soldado. Uma assassina. Eu sei lutar, me defender,
matar. E isso é mais do que qualquer vida miserável e mesquinha
das socialites do nosso meio.
— Certo, papai. — Resmungo com impaciência.
Encaro os papéis me atualizando do que eu perdi nesses
cinco anos. O chefe da Alkyóna se chama Ivan Somáli, pai de
quatro filhos homens e esposo de Atena Somáli. Eles são a família
mais invejada, desejada e respeitada da Alkyóna.
Yuri mantém o olhar no meu enquanto eu leio tudo
silenciosamente. Ele está esperando alguma resposta, como se eu
tivesse o direito de escolher o que fazer.
Eu sei que não posso recusar esse contrato, mesmo tendo a
certeza que eu me destaco com minhas habilidades e treinamento,
eu ainda continuo sendo uma ninguém. Uma assassina. Não posso
ser alguém diferente do que eu sou, por mais que eu deseje isso em
momentos de fraqueza. Eu não posso nunca ser apenas uma
mulher normal. Estou quebrada demais para isso.
Yuri sempre tratou de me ensinar o básico sobre treinamento
de defesa conforme eu crescia, e então, ele viu a oportunidade
perfeita de me aperfeiçoar depois do que eu fiz naquela noite. Ele
contratou os melhores professores daquela prisão.
— E então, Arcane? — Ele fala pausadamente. — Está
pronta para o que seu papai pede? — É notável o desprezo em seu
tom de voz.
— Sim, senhor. Eu estou pronta para isso. — Respondo em
um balançar de cabeça positivo. — Quando quiser pode me enviar
até eles.
Volto o meu olhar para os documentos, analisando o perfil
deles, cada ficha os descreve e diz qual a minha função para cada
um.
Na primeira ficha estava o filho do chefe da Alkyóna e,
futuramente, o dono disso tudo. Um homem jovem e atraente. Rajá
Somáli. Desse homem eu devo apenas manter distância, ou ele
pode acabar comigo.
Nas outras fichas estão seus irmãos, todos igualmente belos
e sexys, pisquei algumas vezes. Isso é uma grande bobagem. Largo
os papéis de lado.
No entanto, um dos homens me chama a atenção. Eu
conheço ele de vista, o vi bebendo no evento passado. Ele roubou
toda a atenção por onde passava. Minhas irmãs fizeram questão de
me falar tudo sobre ele.
Aperto os olhos procurando lembrar o nome dele enquanto
deslizo o indicador por seu rosto na fotografia.
— Kalon Somáli. — Yuri diz o nome dele, percebendo o meu
interesse silencioso. — Já ouviu falar desse psicopata
desequilibrado?
É isso, Kalon Somáli. Eu já ouvi coisas ruins sobre ele na
prisão. Nunca pensei que o Psicopata fosse um Somáli. Minhas
irmãs dizem que ele arranca suspiros por onde passa. Apenas a sua
presença potente cativa a atenção das mulheres enquanto elas
desejam e imaginam as coisas mais insanas ao lado dele. Ele é o
segundo filho da família Somáli. Isso justifica seu descontrole e
passe livre para a desordem.
E os Somáli são a família mais importante e conhecida, não
só em Atenas, mas por toda a Grécia e vários outros países do
mundo. O mundo do crime se ajoelha diante dessa família.
Atena e Ivan são um casal invejado e exemplar, seus filhos
são vistos como deuses, e a eles é dado todo o poder e autoridade.
— Interessante. — Resmungo com desinteresse.
— Gostou dele? — Yuri questiona, seus olhos brilham de
algo que eu não consigo decifrar.
— Nem um pouco. — Faço questão de responder e acabar
com essa fagulha em seus olhos.
— Para a felicidade das mulheres, eles são todos solteiros,
há boatos de que estão escolhendo uma das famílias mais bem
vistas do nosso meio para se unir a sua em casamento. — Ele diz
cruzando os braços diante do peito. Interessante, foram exatamente
as mesmas palavras que Melissa usou na noite passada. —
Consegue imaginar a grandeza disso? A grandeza do pai dessas
mulheres?
Tudo um monte de bobagem. Balanço a cabeça em negação.
Eu só consigo pensar no sofrimento dessas pobres mulheres.
— Eu já posso ir? — Faço menção de me erguer da cadeira.
Encaro Yuri esperando a sua permissão.
— Não falhe miseravelmente, Arcane. Não deixe ninguém
quebrar você. — Ele fala como uma ordem. Eu vejo autoridade em
seu tom de voz. — Não envergonhe o nome da nossa família e,
principalmente, proteja a mulher do nosso chefe. — Ele fala mais
firme e inclina um pouco o seu corpo para frente.
Eu não sei muito bem qual a situação de ameaça, quem são,
ou o que fizeram. Eu definitivamente estou mergulhada de cabeça
em um lugar que eu preciso me acostumar a conviver. E acima
disso, cumprir a minha primeira missão, dada como penitência pelo
meu crime.
Eu preciso cumprir isso. Não posso me dar ao luxo de ser
uma fracassada. Eu tenho que me submeter ao crime, ao caos e ao
inferno. Para que nenhum dedo encoste as minhas irmãs. Para que
ninguém ouse olhar para elas. Para que ninguém as corrompa como
eu fui corrompida.
Enquanto eu estiver aqui e for útil, ninguém vai encostar
nelas. Então sim, eu tenho que aguentar as ordens do meu genitor.
Tudo para que minhas irmãs não cheguem a viver como eu.
— Eu sou uma assassina. — Respondo para Yuri. — Falhar
não é uma opção.
Dou as costas, indo embora do seu escritório. Sorri por
dentro, eu sou a assassina, não minhas irmãs. Melhor do que ser
uma assassina, é ser uma esposa, então elas serão uma esposa.
Mesmo que nenhuma das opções sejam boas, se for para
escolher uma vida para elas, que seja a mais fácil. Elas não
nasceram para ter sangue nas mãos.
Procuro por meu quarto, ele continua o mesmo depois de
tantos anos, completamente arrumado. Se eu fechar os olhos,
posso até mesmo sentir o cheiro de antigamente.
— Olá, inferno. — Meus lábios se repuxam em um sorriso
duro quando eu me deito na cama macia.
A dúvida que atormentava a minha mente ainda é a mesma:
como crescer em um mundo com o qual você não se identifica?
Como me desenvolver em um lugar com valores corrompidos? Até
quando vou continuar engolindo e concordando com tudo que eles
fizeram comigo?
03. ERA UMA VEZ, UM
PRÍNCIPE
“Em tua luz aprendo a amar. Em tua beleza, a escrever
poemas. Porém, às vezes te vejo e essa visão se transforma em
minha arte.”
— RUMI.

Cresci ouvindo os lábios mentirosos da minha mãe nos


colocando para dormir com romances e canções. A maior mentira
que ela nos contou? Que temos poder e liberdade para fazer a
nossa própria história. Não era verdade. Por muito tempo eu estive
pensando em como reescrever a minha, mesmo tendo certeza que
nunca, nem em mil anos, vou me esquecer do que me causaram.
Sou uma assassina que foi aprisionada e quebrada quando ainda
era pequena, eles me silenciaram, me transformaram em uma
Aberração, mas eu quero ser livre novamente.
Estou treinando no subsolo da mansão, mas os meus
pensamentos correm de uma forma desenfreada. A minha alma
constantemente é fortalecida pela fúria. Porra, tudo seria tão mais
fácil se eu conseguisse sair daqui. Se eu tivesse a chance, por
menor que seja, eu faria. Viveria no mundo como Melissa comentou
naquele evento: livre da coleira que a Alkyóna tem ao nosso redor.
Mas há uma parte dentro de mim que pensa em minhas
irmãs e isso me segura aqui. Eu não posso simplesmente deixá-las,
desde que mamãe foi embora tudo que restou foi uma à outra, não
temos mais ninguém. Yuri não é um homem bom e muito menos
confiável. Ele não é o nosso pai, é o nosso carcereiro.
Saio dos meus pensamentos vendo que agora Nimue está
diante de mim. Eu levo um susto grande. Em que momento ela
entrou aqui? Como eu não percebi a presença dela? Só posso estar
ficando ruim! Puta merda!
Enxugo o rosto rapidamente e recobro todo o fôlego que eu
perdi na luta contra o saco de pancadas. Observo ela de cima a
baixo com cautela. Suas roupas são simples, parece algo habitual
para ficar em casa, mas eu estou impressionada com sua beleza.
Ela é tão selvagem e natural. Como uma deusa que aparece
quando você mais precisa.
— Não me viu chegando, Ane? — Ela afunda as mãos no
bolso do seu vestidinho.
Uma risada em forma de rosnado escapa do meu interior.
— Acredite, eu vi sim! — Sorri receptiva.
— Não. Você tomou um susto. — Ela insiste em uma
gargalhada divertida.
Eu ergo uma sobrancelha e dou um passo à frente.
— Aposto que não me assusta agora. — Resmungo. Nimue
me encara e recua dois passos para trás.
— Ei. ei. — Ela gagueja. — Está tudo bem, não fale assim. —
Pede erguendo as mãos. — Está tudo bem se assustar um pouco.
Pisco algumas vezes. O que eu estou fazendo para avançar
para cima dela assim? Eu não posso perder o controle e atacar
cruelmente a minha própria irmã.
— Desculpe. — Sussurro recuando dois passos.
Seus olhos brilham, ela me observa com carinho, então ela
sorri cruzando os braços diante do peito.
— O que você quer? — Questiono olhando em volta,
enquanto retorno ao meu posto e volto a socar o saco de pancadas,
sem tirar realmente a minha atenção dela.
Nimue parece confusa e tenta falar algo, seus lábios apenas
se abrem e ela gagueja, uni as sobrancelhas. Parece haver um
abismo entre nós quando ela tenta se comunicar comigo assim,
buscando a nossa conexão quebrada.
— Como... — Ela suspira. Seus olhos brilham mais forte. —
Como foram seus dias na prisão? — Ela limpa os lábios. — Depois
de tudo...
Suas palavras são atropeladas e trêmulas. Minha expressão
muda completamente e eu paro de esmurrar o saco de pancadas.
Eu esperava qualquer coisa menos essa pergunta.
— Você quer mesmo saber? — Questiono lhe olhando. —
Não parece tão segura de sua pergunta, Nimue. — Indico suas
palavras atropeladas.
— Sim. Eu quero saber. — Ela responde mais firme.
Eu olho em seus olhos por mais um tempo. Minha garganta
está seca e eu estou exausta, mas não deixei de sorrir para ela com
gentileza.
— Foram um inferno. — Falo recuperando a garrafa de água
do chão, dou goles sedentos na água. Seu olhar permanece em
mim. Encaro ela de relance. — Não sinta pena de mim.—
resmungo, me sentando no banco de madeira do outro lado da
grande sala, no canto da parede. Ela me segue com lentidão.
— Eu não estou com pena. — Respondeu. Então seus olhos
se apertam porque ela deveria sentir pena, eu acho. Deveria sentir
alguma coisa. Uma pessoa normal sentiria.
— Eu consigo ler a expressão em seus olhos. — Aponto com
a garrafa. — É pena. — Digo. Então suspiro encarando-a de cima a
baixo. — Ou o que?
Ela arqueja, afundando ao meu lado rapidamente, pois se
continuasse em pé, iria desmoronar de nervosismo. Ela está tão
inquieta que lhe sirvo um copo de água gelada.
— É só que... — Ela me olha. — Eu sinto muito que tenha
sido assim. — Ela se aproxima de mim. Sua voz é carregada de
culpa. — Você tomou uma culpa que não era sua, Ane. Desde que
você foi embora eu não consigo parar de pensar no que aconteceu
naquela noite. — Seus olhos são tão tristes que eu desvio a atenção
rapidamente. — Você passou cinco anos naquele lugar por causa
de um erro que não foi seu, mas meu. Eu sei que a culpa foi minha.
Ela aponta para o seu peito em uma respiração profunda.
Sua voz é trêmula. Minha irmã está tão quebrada assim? Eu aperto
os olhos fingindo que não vejo. Que não está doendo presenciar
toda sua vulnerabilidade. Essa é a primeira vez que converso
abertamente com minha família sobre o que aconteceu há cinco
anos. Esse sentimento dói e leva tudo de mim para não chorar.
— Meu, Arcane. — Diz com mais firmeza e trêmula. Porra.
Meus olhos ficam marejados. — Meu.
Ela fala as últimas palavras me olhando com os olhos cheios
de culpa. Mordi o canto dos lábios. Pode não ter sido minha culpa,
mas Nimue é minha irmã, eu jamais vou me arrepender da decisão
que tomei de assumir isso.
ㅡ Só relaxa, Nimue. Está tudo bem. ㅡ digo calma, e isso
soa insensível considerando a maneira como ela está me olhando,
como está respirando. Meu coração dói pelas lágrimas que
escorrem por suas bochechas. Eu gostaria de poder puxar ela para
um abraço e chorar por tudo que passamos juntas.
— Já passou, Nimue. Eu fui e voltei. Já passou. — Estendo a
mão esperando que ela segure a minha de volta. Encaro seus
dedos que se entrelaçam aos meus. Meus lábios até se repuxam
quando eu balanço delicadamente.
ㅡ Eu sei. Eu sei. — Ela aperta os olhos agarrando a minha
mão com mais firmeza. Seu aperto é tão confortável. Um som
amável escapa dos meus lábios. — Mas é tão difícil... Todo esse
peso. ㅡ Gesticula com as mãos.
— Livre-se dele. — Sussurro baixinho. Meu indicador desliza
por sua bochecha cuidadosamente. Minha mão treme pelo contato
tão afetuoso e normal. — Deixe tudo ir. — Limpo a garganta me
afastando.
Ela me olha receosa. Eu sei, apenas falar é fácil demais.
ㅡ Desde quando mamãe foi embora, uma sobrecarga
constante está em meus ombros e eu não paro de me culpar ou... —
Merda. Não quero ouvir sobre nossa mãe, eu me esquivo como se
tivesse sido apunhalada.
ㅡ Ah, qual é, Nimue! ㅡ A interrompo em um tom de
reclamação, reprimindo meu desconforto com esse assunto, não
gosto de falar sobre a mulher que atormenta minhas memórias. ㅡ
Pode ir parando com isso. — Ela me encara chocada e confusa. —
Nós não falamos da mamãe. Não toque no nome dela.
Peço firmemente. Nimue desvia os olhos encarando a parede
do lado oposto. Ela está envergonhada e trêmula. Minha irmã
respira profundamente enquanto ainda segura a minha mão. Eu
aperto de volta em um pedido silencioso de desculpa.
— Não é como se você fosse culpada pelo livre arbítrio de
alguém. — Sussurro bem baixinho para confortá-la. — A mamãe foi
embora porque ela quis. — Digo rapidamente. Seus olhos voltam
para os meus. — Eu fui para a prisão porque eu quis tomar a culpa.
Eu quis. — Aponto para meu próprio peito. — Eu quis isso, Nimue.
Por você e pela Melissa. Eu quis.
Deixo bem claro repetidas vezes. Nimue pisca rapidamente.
— Não. — Ela balança a cabeça em negação. — Eu não sou
culpada pelos erros que a mamãe cometeu, e eu não sou culpada
por ela ter ido embora. — Arfa pelo peso das palavras. — Mas eu
sou culpada pelo que fiz com você. Você não é a mesma, Arcane.
— Ela me analisa com tristeza. — Eu não reconheço mais a minha
irmãzinha. O que eu devo fazer? Não me culpar? É claro que eu me
culpo. Você é minha irmã caçula.
Encaro ela sem transparecer nada. Apenas encaro. Meu
olhar é vago enquanto recordo dos meus dias de tortura naquele
lugar.
— Já passou. A culpa não é sua, nem da Melissa. Eu era
pequena mas lembro claramente do que fizemos naquela noite. Não
condene a sua alma por isso, Nimue. Eu amo tanto você. —
Respondo. Meu tom de voz sai grave e arrastado por causa do nó
que eu sustento e engulo. — Não pense nunca nisso. — Sussurro
com convicção. — Nem por um momento.
Afago suas costas com um sorriso brando, depois beijo seu
ombro com carinho e puxo-a para um abraço apertado. Porra. Isso
foi tão bom que meu corpo balança contra o seu. Ela suspirou
apertando os lábios e fechando os olhos. Sua cabeça balança
rapidamente em concordância.
— Você disse que me ama. É tão bom ouvir isso da sua
boca. — Ela ri e eu fico chocada.
— Eu disse isso? Que coisa mais horrorosa! — Empurro ela
pela cintura amassando o seu vestido curtinho. — Agora, o que
acha de sairmos mais tarde para nos divertir um pouco, hum? Eu
vou ensinar você a rebolar tão bem, Nimue, que todos os homens
da Grécia vão fazer fila no portão de casa, que nem a tradição
manda, e Yuri vai chorar de desgosto.— Sugiro, ela sorri para mim
erguendo os ombros.
— Yuri não vai gostar nada disso, mas, por outro lado,
Melissa vai adorar. — Rimos alto.
— Melissa precisa saber, Yuri não, só no outro dia caso
algum homem seja realmente louco de aparecer na mansão
Planard. — Lhe lanço uma piscadela em confidência. Me ergo
deixando um beijo estalado em sua bochecha.
Eu caminho até onde minhas coisas estão e começo a me
organizar. Volto a minha atenção para ela que permanece sentada
me observando.
— Nos encontramos às nove, tá bom? — Procuro seu olhar.
Ela está sorrindo me observando com um brilho enorme nos olhos.
— Eu tenho que trabalhar agora, acredita?
— Trabalho? — Ela questiona surpresa. — Como assim?
Para onde você vai?
Eu ri levando a garrafa de água aos lábios. Dou de ombros
em um comportamento misterioso.
— Ah, você não vai acreditar. — Debocho. — Consegui um
emprego de babá. — Pisco.
— Por que eu não acredito nisso? — Ela ri balançando a
cabeça em negação.
— Você vai saber em breve. — Lhe lanço uma piscadela.
Então eu rapidamente caminho para fora, pois estou atrasada.
— E nada de comer a pizza que está no forno. Fui eu quem
fiz. Acho que um dia vou fazer faculdade de gastronomia porque
descobri que adoro cozinhar. — Grito subindo as escadas.
Agora, tudo que ocupa os meus pensamentos é a maldita
família Somáli que eu ainda não conheço. Yuri disse que o meu
serviço para eles começa hoje, isso já está me irritando, eu poderia
estar perdendo tempo com as minhas irmãs.
Eu não sei como aquele homem conseguiu me colocar nessa
situação, trabalhando com uma família daquele nível, Yuri nunca
envolveu suas filhas na sua convivência com os Somali. Nós nunca
ouvimos sobre os filhos de Atena porque foram criados
restritamente como príncipes gregos. Pouco se falava sobre eles na
época em que eu vivia em casa, eles nunca foram exibidos para a
Alkyóna até o dia em que Ivan anunciou que cada filho iria governar
lado a lado.
Eu fui presa antes desse acontecimento, então sei apenas
porque li no arquivo que Yuri me entregou. Eu e minhas irmãs
sempre ficamos em casa quando Yuri saía para seus serviços com
Ivan. Agora, inesperadamente, estamos todas envolvidas com os
negócios dessa família sombria?
Eles são o principal motivo para Yuri ser tão corrompido e
diabólico. É um fato consumado que toda pessoa que tem uma
relação profunda com Ivan Somali, se torna tão abominável e sujo
quanto ele.
Guardo tudo que preciso em uma bolsa e depois de um
banho, visto o que seria meu uniforme, calça jeans e um sobretudo
peludo que aquece o meu corpo. É inverno em Atenas. A época
mais fria do ano para trabalhar como guarda-costas. Eu odeio o frio.
Pego o arquivo que foi me dado, e repasso as informações
novamente. Eu sequer conheço todo o quadro de ameaças que
essa mulher vem sofrendo. Por que estão tentando alcançar essa
família quando se está bem claro que eles são poderosos?
Toda a orientação que eu tenho é para atender as exigências
de cada membro dessa família. Não basta apenas acompanhar
Atena em seus eventos de madame rica, seus encontros casuais
com outras mulheres, se um Somáli pedir para que eu roube um
banco então eu vou ter que roubar um banco. É isso ou ser
destruída e vendida para algum bordel. Palavras de Yuri.
Para completar, a mulher é cheia de horários em sua agenda,
ela é uma criatura muito requisitada. Eu tenho que administrar a
segurança da casa e garantir que tudo esteja sob vigilância. Eu
tenho que manter uma supervisão completa das câmeras. E
resumidamente, fazer favores como uma empregadinha.
Balanço a cabeça em negação jogando os papéis fora, eu
realmente sou uma maldita faz tudo, e pensar que já participei de
missões importantes para o governo.

O carro para dentro do estacionamento da mansão, o


motorista sai e abre a porta para mim, eu ri como uma boba
achando graça disso.
— Sabe, homem. É a primeira vez que alguém abre a porta
para mim. — Bato em seu ombro, e começo a andar.
— Ordens do seu pai, senhorita. O homem disse que você
deve ser tratada como uma princesa. — Ele diz respeitosamente.
Olho para ele por cima do ombro e lhe lanço uma piscadela. Até
parece que eu sou a princesinha do papai dentro daquelas paredes.
— Ele não é meu pai. — Aponto para ele. O homem une as
sobrancelhas. — E as ordens dele podem ir se foder junto com ele.
Diga isso quando for vê-lo.
O homem se recolhe como se tivesse levado um tapa.
Suspiro pesadamente. Tudo bem, não é culpa dele. Ele está apenas
fazendo o seu trabalho.
Respiro o ar puro quando caminho pelo jardim espaçoso e
cheio de plantas e rosas. Observo tudo em volta. A mansão parece
uma fortaleza inabalável. Como se estivesse protegendo um líder
mundial.
Cada canto desses muros parece ter cinco a seis soldados
de prontidão. Observo cada homem e começo a contar cada um
deles. Isso é um costume que desenvolvi depois de tanto
treinamento; sempre ficar contando para não me perder em
pensamentos aventureiros.
A mansão tem uma aparência moderna e luxuosa. Janelas de
vidro, piscina, luzes, grama. Essa sem dúvidas é a casa dos sonhos.
Meus olhos não sabem para onde olhar.
A mansão onde eu moro é perfeita, mas essa daqui parece
ser a morada dos deuses, bom, literalmente.
Um dos seguranças me acompanha para dentro da mansão,
depois de me revistar e passar a mão em mim de um jeito que eu
não gostei, mas me segurei para não esmurrar sua cara e causar
problemas.
Quando estou no interior da mansão, um resmungo trêmulo
escapa do meu interior, se eu não fosse treinada para manter a
discrição e a decência, meu queixo estaria agora caído ao chão. É
tudo tão lindo que meus olhos estão marejados de brilhantes. Cada
canto dessa casa se derrama em luxo. Cada lugar que eu olho é
minimamente decorado por um artefato que vale a minha vida.
O ar parece ter saído dos meus pulmões por alguns
segundos. Como pode um lugar ser tão perfeito assim?
Sou tirada da minha análise embasbacada quando ouço um
limpar de garganta. Puta merda. Isso não é bom.
Viro meu rosto para encarar, arrumo o meu comportamento
tolo e anti-profissional. Meus olhos se arregalam quando dou de
cara com Kol Somáli, um dos filhos de Atena. Certo. Eu não estava
pronta para sua beleza.
Observo quando ele se aproxima, sua postura prepotente e
seus ombros largos e fortes, ele está vestindo uma jaqueta de couro
preto, sua expressão é fria e rude. Um homem completamente
impenetrável está diante de mim.
Não há nenhum traço de empatia ou gentileza nele. Todos
falam a mesma coisa. Ele é um destruidor. A mais dura expressão
está estampada em seu rosto e eu me perco em seus olhos azuis. É
como encarar o mar se revirando diante dos meus olhos. Ele é uma
tempestade sem fim. Como se Poseidon tivesse depositado toda
sua grandeza na existência desse homem.
Eu tenho certeza que essa sua expressão é natural, ele não é
capaz de ter outra, se eu tentar imaginar alguma emoção em seu
rosto, sou tomada pelo vazio frio e sem forma.
ㅡ O que você quer, garota? Vai ficar aí me encarando o dia
todo? ㅡ Ele pergunta firme e autoritário. Sua cabeça até se inclina
para o lado encarando descaradamente o meu corpo.
— Eu ouvi muitas histórias sobre você. — Meus lábios se
repuxam. Eu encaro ele de cima a baixo. As pessoas comentam
sobre ele na prisão. Kol, o Selvagem. Eu devia saber que existem
poucos com esse nome e definição. — Eu não sabia que você é um
Somáli.
— Interessante. — Ele resmunga. — Meu sobrenome
precede a minha reputação. — Desfere com hostilidade. — Acho
que a bonequinha passou muito tempo em uma caverna. — Ele me
encara profundamente. — Como devo chamá-la, baby?
Eu afundo as mãos em meu bolso e ergo o queixo. Ele não
consegue me intimidar. Eu adoraria lutar com esse homem, seria
uma honra dizer por aí que derrotei Kol Somáli, a tempestade do
mundo inteiro. Eu até mesmo sorri imaginando minha faca em seu
peito.
Pensei que ele estivesse fora de Atenas. Há votos de que ele
é um homem muito ocupado, que ele anda por aí destruindo
gangues e grupo pois é um caçador desenfreado.
Bom, as minhas irmãs definitivamente não sabem de tudo
que acontece dentro da Alkyóna. Elas erraram feio ao dizer que Kol
Somáli não aparece em casa há meses.
Ele está bem diante de mim, isso sim! Ele não vacila seu tom
firme ao dizer:
— Eu estou sem tempo. — Resmunga. — E fiz uma
pergunta, garota bonitinha.
Tudo bem, a minha primeira impressão sobre ele tão rápido
veio, e tão rápido foi.
— Meu nome é Arcane. — Balanço os ombros quando ele
avança casualmente em minha direção.
— Claro que é você. — Ele ri. Sua mão quase toca meu
cabelo, mas no último instante, eu agarro seu pulso.
Ninguém, muito menos um homem, vai me intimidar. Mesmo
se ele for o próprio diabo na terra. Kol me observa sombriamente.
— Fui chamada. — Respondo de forma breve. Eu não sou de
muitas palavras. — Se está sem tempo, então deixe que outro com
tempo venha e me receba.
Achei ter visto um sorrisinho em seus lábios. Observo ele
com atenção. Kol é belo e muito forte, o mais selvagem dos seus
irmãos.
Ele é um soldado, assim como eu, treinado desde pequeno
como se fosse um guerreiro imbatível da época de Aquiles. Em
outras palavras, ele é uma máquina de guerra, e não um ser
humano normal.
Sua força e corpo perfeito são resultado de muitos anos de
treinamento, assim como sua personalidade, ele é como o próprio
deus da guerra. Kol é muito admirado, e muito temido, por todos do
nosso meio.
Mas não por mim. Nunca por mim.
— Você é a filha caçula do amigo do meu pai? — Ele inclina
a cabeça. — Claro que é. Eu reconheço o olhar dele em você. —
Ele acaricia minha mão até que eu solto seu pulso. — Pensei que
estivesse desaparecida.
— Desaparecida? — Eu ri cheia de humor. Os olhos de Kol
se apertam. — Eu esperava tudo, menos isso.
— Adorável. — Ele estala a língua. — Eu esperava tudo,
menos essa bonequinha.
Seu corpo é coberto por tatuagens. Se ele é um deus, como
muitos o consideram, suas tatuagens são o seu templo. É isso que
me chama a atenção, os desenhos em seu corpo.
Esse é o primeiro Somáli com quem converso na vida. Eu já
posso dizer que não vou com sua cara, e não desejo nenhum pouco
voltar a falar com ele. Esse homem é detestável por natureza.
ㅡ Agora quem está encarando? — Pergunto quando ele
permanece no seu lugar, me estudando, me observando
profundamente.
Eu balanço os ombros com um pouco de impaciência. Ele
pisca algumas vezes, mantendo sua expressão severa, parece estar
sempre com raiva de tudo. O que faria um homem ser assim?
— Kol, amor. Eu assumo daqui. — Ouço a voz melodiosa e
feminina vinda da mulher no topo da escada.
Eu ergo o queixo sutilmente e meus lábios se repuxam ao
contemplar Atena Somáli. Balanço os ombros desejando gritar:
finalmente, porra.
Minha atenção é voltada para Kol, ele solta alguns palavrões,
mas foi baixo demais para conseguir ouvir.
Ele dá as costas sem se importar em me olhar nos olhos ou
responder a sua mãe. Ele some da nossa presença como uma alma
silenciosa e astuta. Seus passos são imperceptíveis.
— Deixa eu adivinhar. — Aponto por cima do ombro. — Esse
não puxou a você. — Brinquei sutilmente.
Vejo os lábios se Atena se repuxar, então ela ri
carinhosamente e balança a cabeça.
— Acertou em cheio. — Confirma. — Mas isso foi fácil de
descobrir. — Ela morde o canto dos lábios.
Balanço a mão em um gesto que a dispensa. Eu começo a
andar até onde ela está parada em todo o seu esplendor e
elegância.
— Você está atrasada para o meu primeiro dia de trabalho. —
Provoco, apontando o dedo em sua direção.
Ela desce o restante das escadas com uma elegância e
empoderamento tão perfeitos que eu me sinto uma criança boba
querendo ser igual a ela.
Cada passo é perfeitamente calculado, essa visão elegante e
bela arrancaria suspiros de inveja até de um santo.
— Uma dama nunca está atrasada, Arcane. — Ela arruma
seus cabelos loiros para trás.
Seus lábios se curvam em um sorriso quando sua mão é
estendida em minha direção. Uni as sobrancelhas. O que eu devo
fazer? Beijar? Me curvar?
Eu não faço nada. Mantenho as mãos em meu bolso.
— Eu sou Atena Somáli, e você deve ser a nova guarda-
costas. — Ela fala com sua voz gentil e na altura certa. Uma
verdadeira dama. — Arcane, filha de Yuri.
Ela veste um conjunto branco e está cheia de jóias.
— Sim, sou eu. — Respondo automaticamente. — E eu não
vou beijar sua mão. — Resmungo.
— Seja muito bem-vinda à mansão Somáli. — Ela mantém a
mão estendida e a encara em uma ordem silenciosa para que eu
aperte.
Meus lábios se repuxam em um sorriso cínico e eu aperto
seus dedos nos meus, balanço em um movimento brusco, então
solto com rispidez antes que ela conserte o meu gesto proposital.
— Eu já me sinto em casa. — Suspiro em um tom mordaz.
04. MANÍACO LOUCO

“Quando você não quer que aconteça, acontece.


Quando você não quer cair, você cai.
Você quer morrer, mas você ainda vive.”
— HZ. MEVLANA.

Durante o dia, passei grandes horas andando pelos


corredores e cômodos dessa mansão. Porra, são muitos. E a
maioria são completamente desocupados. Ouvi por alto as
instruções de Atena enquanto ela fazia um tour apressado, mas os
meus pensamentos estavam em outro lugar.
Quanto mais eu conhecia dessa casa, mais a minha
curiosidade era fomentada. Que segredos essa família esconde?
Eles parecem ter muitos. Se tem uma coisa que aprendi muito cedo
é que uma casa sempre tem fantasmas escondidos em algum lugar.
Essa casa é tão antiga quanto os meus ossos, é uma
mansão passada por gerações e linhagens, os fantasmas que
habitam aqui poderiam facilmente formar um exército de almas
atormentadas. Pelas fotografias na parede essa família parece estar
condenada.
Claro que eles são lindos, perfeitos ao ponto dos deuses
suspirarem, mas que segredos um coração é capaz de esconder? O
quão sombrios eles são?
O modo superficial como Atena fala da casa ainda pulsa em
minha cabeça. Ela não entrou em detalhes ao apresentar os
cômodos, apenas me deu instruções de como instalar câmeras de
segurança e trancas nas janelas.
Atena é uma mulher simples, suas palavras são travestidas
de humildade, cada palavra é calculada e amável. Eu ainda não
tenho uma opinião formada sobre ela, nem sou obrigada a isso, mas
algo nessa família desperta a minha curiosidade.
Esfrego o rosto suspirando ao ponto dos meus pulmões
vibrarem. Eu estou exausta. A noite já caiu faz tempo, todo o tour
está girando na minha cabeça e eu só preciso de descanso para os
meus pés. Eu tive que ligar para as minhas irmãs informando que
chegaria atrasada para a nossa noite. Passa das nove horas
quando eu finalizo de instalar segurança em algumas janelas.
Depois, fui até um dos escritórios onde havia outros
funcionários e comecei a preencher documentos. Li informações
importantes no notebook sobre o trabalho de Atena. Ela é uma
mulher de grandes projetos. Foi divertido passar os próximos
minutos lendo as coisas que ela planeja, ela seria uma ótima rainha.
Quando minhas costas começam a doer, resolvo andar pelo
jardim e conhecer a área externa. Esse é o lugar mais silencioso da
mansão. Avisto um banco de pedra e me aproximo para sentar.
Volto a abrir o notebook me sentindo confortável estando ao ar livre
depois de tanto tempo vivendo enjaulada. Meu corpo treme ao
receber a brisa noturna.
— Bem melhor. — Relaxo fechando os olhos. Minha mente
está tão silenciosa que posso ouvir as batidas do meu coração.
O som noturno faz todo o meu corpo relaxar. Eu poderia
dormir debaixo dessas estrelas. Essa sensação é tão boa que meu
coração explode e sinto meus olhos marejados. Sinto como se o
universo estivesse conectado comigo.
Eu sinto tudo, vindo de todos os lugares. Eu ri extasiada.
Porra, finalmente eu estou sentindo alguma coisa leve e normal.
Costumo pensar que com a escuridão da noite os segredos
mais sombrios são revelados. No escuro é quando uma pessoa se
permite ser ela mesma. Tudo é exposto e vulnerável dentro do
escuro. Tudo é cego. Às vezes, tudo também sangra e dói.
Eu nunca temi o escuro, gosto de como tudo é calmo quando
meu quarto não tem nenhuma fagulha de luz, eu me sinto livre
quando sinto o beijo das trevas. Mas há algo nessa mansão que me
deixa incomodada, e isso me faz desejar permanecer aqui apenas o
necessário, eu quero ir embora o quanto antes.
Suspiro pesadamente e volto a trabalhar para não perder
mais tempo. Eu preciso terminar as anotações e ir para algum bar
da cidade beber com minhas irmãs. Eu quero beber como se porra
nenhuma importasse no mundo além delas duas.
Ouço passos pelo cascalho e ergo os ombros ajeitando a
minha postura no banco de pedra. Todo o meu corpo entra em alerta
quando um assobio precede a presença de um dos Somáli.
— Olá, você é um anjo? — Uma voz masculina e calma me
chama entre as árvores. Aperto os olhos com força desejando que
ele não me perceba e vá embora.
Mas eu sinto seu olhar em minhas costas e seus passos
ficarem mais perto. Puta merda, eu odeio companhia.
— Quem está aí? — Questiono autoritária. Olho por cima do
ombro procurando a face do homem.
Minha expressão muda ao notar os olhos do homem que se
mistura na escuridão como se fossem um só. Seus cabelos estão
caídos pela testa. Seu olhar é penetrante e seu corpo é intimidador.
Um homem muito alto e forte. Nós dois devemos ter a mesma idade,
então ele é muito jovem.
— Eu poderia fazer a mesma pergunta. — Ele diz
novamente. Sua voz é grave e misteriosamente calma.
As sombras da árvore estão sobre seu rosto, me impedindo
de lhe visualizar com clareza, mas ele veste roupas pretas e
simples.
— Sou Arcane. — Falo por fim. Volto a minha atenção para o
notebook desejando que ele vá embora depois dessas palavras.
Eu não sou educada com frequência, fui criada para matar e
não para sorrir com cordialidade, quando eu tento ser gentil eu falho
como nunca falhei em nada.
— Me disseram que uma bonequinha bateu de frente com
Kol Somáli e ele adorou. — O homem ri. — Suponho que era você.
Não vai perguntar quem eu sou?
Sem nenhum convite ele senta ao meu lado. Agora ele está
tão perto que posso saber com clareza quem ele é.
— Ajax Somáli. — Sussurro seu nome com um sotaque
grego enfático. — Eu li sobre você no arquivo que Yuri me deu, ele
falou muito bem de você e suas habilidades.
Eu poderia reconhecer esses olhos observadores em
qualquer lugar, sua quietude é notável, ele é calmo como uma tarde
de verão. Não me admira ele estar segurando um livro em mãos.
Yuri disse que ele é muito inteligente. Um prodígio desde que era
um moleque.
— Claro. — Ele ri, friamente. — Eu ainda sonho com o dia
em que alguém não irá me reconhecer, e então eu poderei dizer
com propriedade quem eu sou.
Ele suspira apertando os lábios como se estivesse
lamentando profundamente. Eu ri. Já eu desejo que todos me
reconheçam para que eu não tenha que perder meu tempo me
apresentando.
— Ajax Somáli. — Repito seu nome. — Sua inteligência para
estratégias, e seu bom desenvolvimento nos negócios é admirado
por toda a Alkyóna. — Digo com uma sobrancelha erguida. — Todos
reconhecem você. Até mesmo os russos, os israelenses, os turcos e
os... — Aperto os olhos para saber se estou certa. — Os franceses?
Ele ri e balança a cabeça em concordância. Seus lábios
formam um sorriso de tirar o fôlego. Seus dentes estão
perfeitamente alinhados.
— Você é como um conselheiro. — Aperto meus olhos. —
Até mesmo o chefe da Alkyóna recorre desesperadamente à você.
— Quem? Rajá? — Ele leva a mão ao peito segurando uma
gargalhada sufocada e profundamente atraente. Todo meu corpo
vibra com esse som tão familiar e ao mesmo tempo tão diferente de
tudo. — Meu irmão não recorre a ninguém. Ele é um maldito louco.
— Você é amigo de Yuri? — Pergunto curiosa. Meu genitor
falou tão bem desse rapaz, quase como se tivesse orgulho dele.
— Todo mundo é amigo de Yuri, moça bonita. — Ele entorta
os lábios. — Seu pai é quase como a alma do meu. Ele é o meu
padrinho de batismo.
Uni as sobrancelhas. Nunca imaginei que Yuri fosse ortodoxo
ou que essa família também fosse. Fico em silêncio encarando Ajax.
Sua presença ao meu lado, por mais que silenciosa e calma, tem o
poder de intimidar.
Eu sinto ele, o sinto no ambiente e no ar que respiro, e isso
me faz querer recuar e procurar por um lugar só meu.
— Meu irmão disse que você é a nova faz tudo da família. E
pelo visto fez a lição de casa direitinho. — Ele me encara de cima a
baixo. Suas palavras são humoradas e fazem meus lábios se
repuxarem.
— Prefiro que me chame de Arcane. — Respondo,
empilhando alguns papéis. — Ou...
— Assassina? — Ele corta as minhas palavras. Eu pisco
algumas vezes. Ele me conhece? Sabe o que eu fiz? — A sua
reputação também a precede. — Ele responde ao meu
questionamento silencioso. — Mas eu ainda prefiro ouvir da sua
própria boca sobre quem você realmente é.
Pisco algumas vezes. Merda. Ele é muito bom. Sua
personalidade é cativante.
— Você não deveria estar em um escritório? — Eu não olho
para seu rosto, mas pelo seu tom de voz, sei que sua sobrancelha
está arqueada.
— Eu não quero um. — Resmungo. — Passei tempo demais
dentro de quatro paredes. — Falo mais baixo.
— Entendo. — Ele conclui. Eu ergo meus olhos para lhe
encarar, percebo que sua mão está estendida em minha direção.
Foi a minha vez de arquear uma sobrancelha, então ele é o
filho que se parece com Atena, gosta até de estender a mão com
elegância e superioridade.
— Eu não vou beijar a sua mão. — Provoco. Um sorriso
rápido e humorado escapa dos seus lábios.
— Não é a mão que quero que beije. — Ele ergue o queixo.
— Vamos. Aperte.
Encaro sua mão, ele parece uma divindade, com a
sobrancelha ainda erguida eu volto a encarar seus olhos.
— E por que eu apertaria sua mão, Ajax? — Quis saber.
— Mamãe não falou quando apertou a sua? — Ele pisca. —
É o que as pessoas fazem quando viram amigas.
Amigos. Isso me faz sorrir pensativa. Eu tenho sérios
problemas com amizades.
— Tudo bem. — Me rendo apertando sua mão. — É um
prazer. — Falo com calma. — Mas tenho certeza que você pode
encontrar amigos melhores que eu.
Lhe lanço uma piscadela sugestiva, e começo a guardar
minhas coisas. Finalmente posso ir embora dessa casa de loucos.
Seu cheiro agradável e masculino invade meus pulmões toda
vez que eu respiro profundamente. Ele tem um cheiro muito bom e
penetrante. Meus pulmões chiam cheios desse perfume agradável.
— Eu também não sou uma pessoa muito amigável. — Ele
diz rapidamente. — Mas eu gosto de apertar a mão dos meus
iguais.
Ele me encara sugerindo que somos iguais. Meus olhos
brilham em desafio.
— Eu já ouvi a sua história. — Sibila. — A criança
incendiária. Você destruiu a Páscoa de Corfu. — Sua garganta
produz um som suave que eu identifico como uma risada ríspida. A
ironia dança em seus lábios fartos. — De acordo com os boatos, eu
esperava que você fosse mais alta.
Então, pelo visto, todos já ouviram falar sobre a filha mais
nova de Yuri Planard, que junto com suas irmãs foram abandonadas
pela mãe, e enlouqueceram na Páscoa.
Meus anos na prisão pode não ser conhecido por todos os
membros da Alkyóna, mas sem dúvidas a família Somáli conhece o
que eu fiz, o que aconteceu comigo lá dentro. Ajax me olha
deixando claro que sabe de tudo.
Ele me encara de cima a baixo. Eu permaneço séria e agarro
o notebook com as duas mãos. Imediatamente me sinto exposta e
nervosa.
— Não me subestime. — Eu ri controlando a situação com
meu senso de humor. — Posso derrubar você apenas com uma
cabeçada. — Sorri com cinismo. — Não procure amizade em mim.
Se você me conhece deve saber que eu adoro arrancar a cabeça
dos meus amigos.
Mas isso é verdade, se eu ficar de pé agora posso dar um
soco em seu belo rosto antes que ele agarre sua arma na cintura.
Eu percebi ela desde que ele sentou ao meu lado. Então eu posso
desferir outro golpe o deixando desorientado antes que ele se
prepare para a defesa.
— Você me olha como se estivesse fazendo isso agora? —
Ele resmunga, apertando os olhos.
Eu sorrio silenciosamente.
— Ou eu poderia fazer da forma mais simples, Ajax. —
Relaxo meus ombros. — Posso apenas arrancar essa sua arma
antes que você perceba, e usar ela para atirar em você.
— Você é muito perspicaz. — Ele suspira cruzando os braços
diante do peito. Ele está completamente relaxado mesmo quando
digo que posso matá-lo. — O que mais você tem para mim?
— Eu posso retirar a lâmina da minha bota e cortar a sua
garganta em um movimento rápido e certeiro. — Sussurro, me
inclinando em sua direção como se fosse fazer isso agora.
— Tente. — Ele sorri. — Apenas tente. — Diz risonho,
completamente pleno na confiança de que é mais letal que eu.
Eu não sei que tipo de humor há entre nós dois, que nos faz
trocar farpas, mas a diversão não deixa seus olhos, nem os meus.
Sem dúvidas foi bem melhor conhecer ele do que o seu outro
irmão. Disso eu tenho certeza.
— Eu não sou seu inimigo, querida. — Isso fez meu coração
bater mais rápido. — Mas definitivamente não é uma boa ideia ser o
meu.
— Claro que eu não vou fazer isso. — Ri. — Estou aqui para
proteger sua linda bunda dos inimigos da sua mãe.
Ele gargalhou serenamente como se eu tivesse lhe contado
uma piada.
— Me alegra saber que você acredita nisso. — Ele cruza as
pernas estiradas. Seu peito sobe e desce como se ele estivesse
lutando contra o sono.
— Eu não entendi, o que você quis dizer com isso? —
Questiono de sobrancelha erguida.
— Eu não quis dizer nada. — Ele dá de ombros. — Mas é
bom saber que você está preparada para qualquer situação que
envolva luta.
— Sim. Eu nasci pra isso. — Cuspo as palavras que fui
treinada a dizer.
— O que significam suas tatuagens? — Ele pergunta olhando
minhas mãos. Seu olhar desceu por meu corpo como se estivesse
imaginando o que há tatuado na pele por baixo das roupas. Eles
brilham na expectativa de encontrar algo que lhe satisfaça.
Mas eu estou bem vestida com roupas de inverno. Dou de
ombros para ele.
Seus olhos são negros como o céu noturno sem nenhum
brilho de estrelas. É como se a escuridão e as trevas tivesse
encarnado nesse homem na minha frente.
Ajax é elegantemente sombrio. Eu poderia mergulhar no
abismo dos seus olhos e só me dar conta quando estiver
engasgando em sangue. Isso me assusta. Ele é um encantador.
— Eu apenas gosto, não preciso de um motivo específico e
convincente para tê-las. — Falo calma erguendo o queixo.
Agora meus olhos vão para livro em suas mãos. Observo
seus braços fortes. Algumas veias se destacam em seus dedos.
Sorrio de lado ao ler o título sutilmente, e guardar mentalmente para
ler mais tarde. Depois eu encaro seus olhos.
— Bom... Eu já terminei o que eu tinha para fazer aqui. — Me
ergo e ele se ergue junto por puro reflexo. — Eu preciso ir embora.
— Resmungo, com um meio sorriso.
— Foi bom falar com você, moça bonita. — Ele me olha de
cima a baixo e se curva em uma reverência educada. — E para sua
informação, isso não foi um flerte. Não se apaixone por mim. Eu sou
altamente proibido. — Suas mãos estão atrás das costas como se
ele fosse um soldado.
Eu ri muito alto. Imediatamente cobri minha boca percebendo
o som espontâneo que deixei escapar. Respiro fundo balançando a
cabeça em negação e encaro Ajax. Ele realmente é do tipo que faz
a pessoa rir, e quando percebe, já está nua em sua cama.
— Nos vemos — Eu sussurro. — E vai precisar bem mais do
que isso para me conquistar.
Começo a andar, dando as costas para ele. Não ouso olhar
para trás. Agora, mais do que nunca, tudo que eu preciso é sair para
beber com minhas irmãs.
05. UM FANTASMA
“Aquilo que Deus disse à rosa e a fez rir em plena beleza,
Ele disse ao meu coração, e o tornou cem vezes mais
bonito.”
— RUMI.

Minha mãe fugiu quando eu era uma criancinha. Ela foi


embora com um homem que não pertencia à Alkyóna. Katerina
escolheu ele e nos abandonou. Tudo que ela pensou foi em si
mesma e em como se livrar de Yuri depois que ele matou meu
irmão.
Os pecados dos nossos pais mancham a nossa existência.
Eles nos envergonham. Então, que exemplo de bondade e amor
pela família devemos seguir?
Tudo que eu e minhas irmãs temos é a necessidade
incondicional de proteger uma à outra. Esse instinto selvagem
nasceu em uma noite sangrenta. Naquele dia, nossa capacidade de
sobrevivência foi posta à prova, e nós mostramos que nada pode
nos tornar igual a eles, que somos capazes de tudo para proteger
uma à outra.
Sobrevivemos esse tempo inteiro da nossa maneira.
Construímos nosso templo erguido sob as cinzas daquela Páscoa
Sombria.
Meu corpo está em colapso em meio aos movimentos
sensuais. Ergo as mãos para o alto dançando cheia de diversão e
ouvindo a música estourar por todos os lugares.
Eu nunca estive em uma balada para me divertir antes, era
sempre para matar alguém e vigiada por um exército de soldados
gregos. Mas agora, tudo que faço é gargalhar alto. A bebida queima
meu estômago pesado e eu não penso em mais nada. Tudo que eu
preciso é dançar como se não houvesse amanhã, como se minha
vida não fosse um inferno desde os cinco últimos anos.
— Você tem que experimentar essa! — Pavlos grita em meu
ouvido. Eu gargalho recebendo o copo de tequila.
Melissa realmente nos apresentou o homem com quem ficou
nas férias. Ele é gentil e me proporcionou as melhores gargalhadas
da minha vida. Estamos dançando faz meia hora até que ele trouxe
mais bebida.
— Essa realmente é melhor que a outra. — Bato palmas
largando o copo na bandeja que ele roubou.
— Eu te disse. — Pavlos infla o peito. — Bebida é a minha
especialidade.
Eu me encolho quando ele se inclina para deixar um beijo em
minha bochecha. Meus dedos apertam sua camisa quando ele me
puxa para mais perto.
— Precisamos de uma foto para o Instagram, Arcane! — Ele
abre a câmera revelando a minha aparência. Meus olhos brilhantes
e meu sorriso mais ainda.
— Eu adoro tanto você, Pavlos! — Estou sorrindo
genuinamente.
Fico na ponta dos pés na intenção de sobressair a minha
altura. Pavlos gargalhou contornando minha cintura com seu braço
forte e fazendo inúmeras fotos ao ponto das minhas bochechas
doerem. Rapidamente Melissa e Nimue se juntam a nós fazendo
várias outras.
Quando eu procuro por um lugar para sentar depois de sentir
minhas pernas bambas, um homem acena em minha direção, ele
tem um sorriso interesseiro quando empurra um copo em minha
direção.
— Kaliníhta, princesa! — O homem me cumprimenta
lançando uma piscadela cativante. — Qual o seu nome?
Porra. Ele é atraente demais para eu dispensar sua atenção
que me faz queimar. Talvez eu possa beijá-lo. Eu daria tudo para me
sentir como uma jovem normal nesse momento.
— Ya! — Eu falo informalmente, pegando o copo que ele me
ofereceu e dando alguns goles. A bebida queima minha garganta. —
Me chamo Arcane, e você? — Eu avanço em sua direção para
deixar beijinhos nos dois lados da sua bochecha.
— Vamos dançar? — Ele sussurra em meu ouvido.
— Sim, por favor. Está quente aqui. — Eu dou uma risadinha.
Ele toma a iniciativa para me abraçar pela cintura. Ele me
puxa e começamos a balançar de um lado para o outro. Suspiro,
sentindo meu corpo doer de tanta exaustão, mas eu não recuso
essa dança. Ele é muito lindo e não para de encarar minha boca.
— Você não me disse seu nome, querido. — Eu acaricio sua
barba rala.
— Ah, verdade! — Ele ri. — Meu nome…
No entanto, se ele responde seu nome, eu não ouço, porque
imediatamente todo o meu corpo começa a girar e eu cambaleio
para longe.
— Minha cabeça está doendo. — Largo o copo em sua mão,
como se estivesse envenenado.
Eu empurro as pessoas, querendo espaço para respirar
melhor. Levo as mãos à cabeça quando desmorono em um sofá no
canto da parede.
Mesmo que tenha algumas pessoas se beijando, eu não me
importo, pois um calafrio sobe por minha coluna me deixando
trêmula e imóvel. Faço uma careta incomodada. A diversão acabou.
Nesse momento, eu quero apenas ir para casa me esconder em
minha cama.
Quando eu penso que estou bem, outra onda de calafrios me
invade. Eu não devia ter me soltado tão rápido e bebido toda. Ainda
estou desacostumada a viver como uma pessoa normal.
— Eu não me sinto bem. — Ninguém está me ouvindo. As
lembranças daquele lugar atormentam a minha cabeça como um
animal feroz rugindo na escuridão de uma jaula. Eu acho que nunca
vou conseguir me livrar de todas as merdas que me aconteceram.
Mesmo com todo o barulho, risadas e pessoas bêbadas, a
minha mente insiste em lembrar da única amiga que eu tive em toda
a minha vida. Nesse momento Nikoleta me chama como um
fantasma inconformado com seu fim. Ela grita em minha cabeça
fervorosamente.
Eu me rendo às lembranças da última vez em que estivemos
juntas, e choramingo com o peso do que fiz com ela.

— Como você está, Arcane? — Ela sussurra ao pé da porta


como um fantasma que vem me vigiando há anos.
Sua voz é baixa e exausta, mas eu ainda me surpreendi.
Quando eu ergo meu olhar, ela silenciosamente caminha em minha
direção.
— Se você não estivesse trepando com qualquer cretino que
aparece, não precisaria fazer essa pergunta. —Sussurro.
Eu fui ignorada e abandonada sozinha nessa prisão, fui
forçada a matar pessoas que ela deveria matar para cumprir sua
penitência, eu fui quebrada em seu lugar. Tudo porque ela preferiu
seu novo amante do que trabalhar ao lado de sua única amiga que
fez. Eu simplesmente perdi meu braço direito, ela virou as costas
sem sequer me dar uma explicação.
Me ergo para tomar um banho, já não suporto o cheiro de
sangue seco que está impregnado em minhas roupas. Hoje foi o dia
em que mais fui torturada.
— Eles me machucaram. — Encaro ela. Aponto meu dedo
em sua direção. — Eles me torturaram porque eu falhei na missão.
— Minha voz se torna mais ríspida à medida que a raiva queima
dentro de mim.
— Eu esqueci... — Ela começou a falar mas eu ergo a mão a
silenciando.
— VOCÊ ME ABANDONOU. — Grito. — Você me deixou
sozinha na porra da missão que deveríamos fazer. Você
simplesmente esqueceu da nossa obrigação. Eu fiquei sozinha e eu
falhei. Você sabe que eles não suportam falhas. E eu fui torturada
por isso. — Aponto para o meu peito. — Como você pode ter
esquecido, Nikoleta?
Eu ainda posso ouvir meus ossos rangendo de dor com cada
chibatada que ganhei. Minha pele arde e está completamente
esfolada. O sangue está por toda parte. Eu mal consigo andar
direito.
— O mundo não gira em torno de você e dessas missões
idiotas. — Ela fala alto me encarando.
Eu ri sem humor algum. Balanço a cabeça em descrença ao
que ouço.
— Somos obrigados a fazer isso. — Caminho em sua
direção. — Nós não temos escolhas. Você me deixou sozinha
porque perdeu a cabeça trepando com um cara? Tudo bem, você
pode fazer isso, mas e quanto a nossa amizade e os
compromissos?
— Por isso eu estou aqui, quero saber se você está bem. —
Ela caminha em minha direção. O seu olhar brilha com frieza. Não é
uma pergunta sincera.
Eu me afasto dela porque aparentemente estou sendo
enganada esse tempo inteiro. Dou as costas abrindo a porta do
banheiro.
— Eu também poderia fazer a mesma pergunta, caso eu me
importasse com você. A nossa amizade acaba aqui. Preciso garantir
a minha saída desse inferno. — Terminei de falar desejando que ela
entenda o recado e me deixe sozinha.
— Trepando com qualquer um que aparece? Você ficou
neurótica? — Ela anda atrás de mim. Tão patética que eu trinco os
dentes contendo a raiva. — Quer dizer que você pode ter uma vida
relativamente normal enquanto eu apodreço na porra de um quarto?
Primeiramente que nada nessa merda é normal, nada faz eu
me sentir normal ou estável.
Eu balanço a cabeça em negação, rindo incrédula. Não
acredito que agora vamos iniciar uma discussão boba a esse nível.
Eu aperto os olhos em cansaço.
Minhas costas estão rígidas pela tensão. Ela grita
caminhando atrás de mim. Fecho meus punhos temendo acertar
seu rosto. A raiva me corrói.
— Não! Eu quem apodreço na porra de um quarto enquanto
você vive sua vidinha medíocre e de merda! — Viro em sua direção.
Abro os braços explodindo com ela. — Se é que você considera
essa porra uma vida! — Aponto ao redor. — Eu quem sou
espancada e torturada todos os dias em motivo de um treinamento
sádico e psicótico! Eu que sou obrigada a matar dez pessoas por
dia! Dez! — Conto nos dedos — Por causa do que eu fiz! Eu sou
obrigada a ser uma assassina! Obrigada! Porque eu queimei uma
mulher! Não você!
Volto-me para ela. Meu coração está martelando dentro de
mim. Eu joguei isso para fora em meio a raiva e não posso mais
pegar de volta. Suspiro pesadamente enquanto as palavras correm
desenfreadas por minha cabeça.
— Queimou uma mulher, Arcane? — Ela ri completamente
sádica. — Você tem algum problema, criança?
— Sabe qual é o meu problema? — Caminho em sua direção
falando mais baixo. — Meu problema é você!
Empurro seu corpo para longe do meu campo de visão. Ela
me empurra fazendo meu corpo voltar ao lugar em que estava. A
raiva faz minha audição estremecer. Meus ossos ficam rígidos
enquanto grito as palavras.
— Essa amizade foi um erro. — Aponto. — Dedicar o meu
tempo a você, achando que viria algo bom daqui, foi um erro!
Assassinos não tem amigos!
Dou as costas para ela voltando a andar, agora para fora do
quarto, não pretendo voltar para esse lugar tão cedo.
— Não é culpa minha se sua vida é tão merda quanto a de
qualquer um aqui dentro! — Ela sussurra me seguindo
assustadoramente. Meu fôlego some quando percebo uma barra de
ferro que ela arrasta pelo chão.
Isso me assusta. Arquejo encarando ela por cima do ombro.
Engulo meu instinto selvagem. Eu não preciso bater nela. Não vale
a pena. Ela não é uma ameaça. É apenas uma briguinha de
garotas. Aperto os olhos buscando por controle.
— Vai se foder, porra! Me deixe em paz! — Vocifero.
Ela suspira, seus olhos queimando de raiva. Ela ergue o
queixo em orgulho, um sorriso satisfeito brilhando em seus lábios.
Eu não entendo o motivo dele. Mas ela parece contente com essa
discussão.
— Você é uma Aberração que merece ser punida, criança. —
Suas palavras me assustam. Ergui as mãos na defensiva quando
ela ergue a barra de ferro para me acertar.

Uma mão firme aperta meu ombro e eu suspiro, voltando à


mim. Estou engasgando e sufocando em seco. O gesto brusco me
assusta e eu me preparo para atacar em um rosnado feroz.
— Fique longe de mim, porra! — Eu grito com firmeza,
erguendo o rosto e apertando os olhos para conseguir enxergar
melhor quem está aqui.
— Arcane? Você está bem? — O barulho alto agora me
incomoda como o inferno. — Eu estava procurando você, meu amor.
— Meus ouvidos estão chiando e meu estômago se aperta em ânsia
de vômito. Eu arquejo com firmeza quando me inclino para baixo,
vomitando tudo.
Eu choramingo me contorcendo para longe. Mãos cuidadosas
acariciam meus cabelos e me erguem firmemente para o alto.
— Eu não sei o que está acontecendo. — Suspiro
pesadamente.
Ergo o olhar completamente aérea. Meu campo de visão está
trêmulo e turvo. Os olhos verdes da minha irmã parecem uma luz
ofuscante que dói e me deixa dormente.
— Melissa. — Eu agarro sua cintura e deito minha cabeça em
seu ombro. — O que tinha na minha bebida?
— Eu não sei. — Ela olha ao redor, vendo um dos copos que
eu estava bebendo. Pavlos está atrás dela, afastando algumas
pessoas para dançarem longe de nós.
— Acho que é metanfetamina, como eu não percebi? —
Melissa fala trêmula, entregando o copo para Pavlos analisar. — No
copo não tem nada, eu acho. Mas consigo perceber pela forma que
você está reagindo à droga.
— Isso pode causar crise de ansiedade, Ane. — Pavlos diz,
caminhando em minha direção e ajudando a prender meus cabelos.
— Você está em crise agora, criança?
Encaro seu rosto ficando perturbada com a palavra carinhosa
que usou. Balanço a cabeça em negação, sentindo meu estômago
embrulhar.
— Vamos embora. — Melissa diz rapidamente. —
Precisamos deixar você sóbria. — Ela segura meu rosto fazendo
minha cabeça encostar em seu peito.
— Aqui, bebe água. — Pavlos sussurra, ele enxuga meu
corpo suado com um lenço. O mundo parece estar voltando ao eixo
conforme eles me estimulam, falando comigo e me tirando dessa
aglomeração irritante.
— Onde está Nimue? — Meu estômago se revira mais uma
vez. É só ignorar, digo para mim mesma. — Precisamos ficar de
olho nela... Eu preciso... — Me inclino, vomitando novamente. —
Merda.
Tento me recompor me agarrando em Melissa. Ela está
falando comigo, mas não consigo ouvir. Minhas mãos buscam apoio
na parede quando sinto mais ânsia.
— Isso não foi legal. — Respiro. — Se eu descobrir o canalha
que me drogou... — Limpo os lábios. — Se eu sequer sonhar...
— Pare de falar. Você está um porre. — Melissa me puxa
com cuidado quando eu tropeço até a saída. — Nimue está do outro
lado da rua, foi pegar o carro de Pavlos para nos levar.
— Você devia casar com ele. — Balanço a cabeça, dando
uma risadinha. — Ele é cuidadoso e me fez rir como louca.
— Yuri não pode sequer sonhar com o que aconteceu aqui.
— Ela sussurra me ajudando a lavar minha boca e beber água. —
Ele vai acabar com você se aparecer assim. — Ela me puxa com
delicadeza. — Não se esqueça que você já está bem encrencada.
— Tudo sempre tem que dar errado mesmo. — Eu pisco
algumas vezes em meio a uma gargalhada fraca. — Ele é um
miserável mesmo. — Balanço a cabeça em negação. Melissa ri,
mas seu olhar ainda é preocupado.
— Eu vou cuidar de você, minha caçulinha. — Ela me dá
apoio novamente quando eu começo a andar.
Eu resolvo baixar a guarda por alguns minutos, já que estou
vendo tudo trocado e multiplicado. Maldita metanfetamina.
— Ei! Por aqui! — Nimue vem correndo até nós.
Seu salto faz barulho no asfalto seco, eu fecho meus olhos
incomodada com o barulho. Aperto os dentes.
— Ahrrg! — Minha cabeça está doendo. — Eu juro que vou
arrancar essa porra e enfiar no...
— Que merda, Ane! Que merda! — Nimue reclama às
pressas. — Você sente dor?
Ela vem pelo outro lado me ajudando a andar. Respiro fundo
voltando ao controle das minhas pernas.
— Minha cabeça está latejando e você tem um olho na testa.
— Eu não estou vendo um olho em sua testa, mas essa ideia me faz
gargalhar como uma palhaça. — Eu vou acabar com o filho da puta
que me drogou. Eu juro que vou.
Pavlos está nos esperando apoiado no carro. Encaro sua
jaqueta de couro preto, ele está sorrindo enquanto me encara, como
se eu fosse uma piada. Seus olhos brilham.
— Você disse que ela tem três olhos. — Ele ri apontando
para Nimue. — Você fica muito engraçadinha com essa merda em
seu sistema, eu tenho que admitir. — Melissa também está rindo
disso.
— Você também tem três olhos. — Provoco, apontando o
dedo em sua direção. — Palhaço.
— Aqui. Vai se sentir melhor. — Ele retira sua jaqueta
colocando em meu ombro. — Vamos ao hospital.
— Não, Pavlos. — Melissa balança a cabeça em negação. —
Nosso pai não pode saber disso. Nos deixe em casa e lidamos com
o resto, você já ajudou tanto.
— Tudo bem, amor. — Ele sorri amavelmente se inclinando
para beijar seus lábios.
— A próxima que vai vomitar sou eu. — Nimue diz
empurrando os dois antes que encostem os lábios.
Pavlos me carrega nos braços até que fico acomodada no
banco de trás. Ele afaga meus cabelos e abre a porta para Melissa
e Nimue.
— Nimue, coloque a melhor playlist que você tiver no celular.
— Ele diz, segurando a mão de Melissa e beijando antes de
começar a dirigir.
Rapidamente os três estão conversando entre si, eu não
consigo prestar atenção, estou drogada demais. Algumas palavras
passam por meu sentido, mas é um diálogo agitado demais e cheio
de gargalhadas.
O mundo parece estar em chamas dentro da minha cabeça,
mas ao menos, a maldita droga fez a angústia em meu peito
desaparecer. Entre gargalhadas anestesiadas, eu adormeci no
ombro de Nimue.
06. UM MONSTRO NO JARDIM

“Alguém virá por você, alguém virá e te levará.”


— ŞEMSI TEBRIZI.

Com todas as minhas fraquezas, raiva e remorso, e também


toda essa ira que se revira dentro de mim como um furacão, como
vou reconhecer o verdadeiro momento em que devo me sacrificar?
Eu sinto que todo esse caos me cegou. Então, como posso saber o
momento em que darei minha vida por quem amo?
Eu preciso procurar formas de lavar meus pecados, eu nunca
gostei de ter sangue em minhas mãos e quero limpá-lo. Nunca foi
minha intenção ter uma vida tão suja e corrompida. Quero ser livre
dos meus erros.
Desde que mamãe foi embora, eu nunca me senti segura
dentro da minha própria casa. Katerina e Yuri discutiam
constantemente porque Theo nasceu. Ele era o nosso irmão caçula
que foi concebido através de uma traição.
Quando Yuri descobriu a traição, é claro que tudo mudou. Foi
como se os deuses tivessem nos abandonado. Toda noite Yuri e
Katerina discutiam constantemente, mas de alguma forma ele não
queria puni-la de acordo com as leis da Alkyóna. Não, ele fez pior
que isso.
Theo era a alegria da casa, sempre que penso nele, eu sinto
que ele nasceu no mundo errado. Um garotinho forte que exibia
risadas escandalosas para qualquer um. Eu tenho certeza que os
deuses estavam sorrindo quando ele veio ao mundo.
Aquele menino é o fantasma mais antigo dessa casa. Por um
momento, é como se ele estivesse aqui, correndo aos tropeços com
Nimue tentando lhe alcançar. Sinto sua presença entre os cômodos
como um trovão forte que ilumina tudo, chamando a atenção de
qualquer um.
— Você não me pega, Arcane! — Sua voz ecoa. Largo o que
estou fazendo na intenção de persegui-lo.
—Theo? Venha aqui! — Abro os braços tentando agarrar ele.
— Quero abraçar você, Theo. — Ele me olha dando uma risadinha
traquina. — Venha. Rápido. Estou com tanta saudade.
Começo a andar pelos corredores da mansão escura e fria.
Em algumas horas teremos visitas, então devemos manter toda a
casa em ordem para recebê-los.
— Venha aqui me pegar. — Ele estende a mão. — Vamos
brincar no jardim, vamos.
— Não, o jardim não, Theo. — Meus pulmões apertam e eu
corro em sua direção. — Tem um monstro lá. — Sussurro
assustada.
— Não é verdade, papai louquinho está lá bebendo aquela
coisa fedida. — Ele aponta, me puxando pela mão.
— Papai? — Olho as cortinas balançando revelando a figura
de Yuri. Nesse momento, um disparo silencia toda a casa.
Eu sufoco como se alguém tivesse arrancado meu coração.
Esse é o momento mais curto e mais longo da minha vida. Sua
risada deu lugar a um choramingo angustiado e engasgado.
— Theo… — Sussurro baixinho. — Theo? — Eu ajoelho ao
lado do seu corpinho.
Ele está piscando e tremendo. Seus olhos azuis me procuram
com tanta inocência que eu me debato desesperadamente.
— Eu estou morrendo, Arcane? — Sua voz é trêmula.
Quando se dispara em uma criança, mata-se sua inocência.
— Ane? Agapi mou?— Yuri caminha lentamente em minha
direção. Tem uma arma em seus dedos.
— FOI VOCÊ. VOCÊ É O MONSTRO QUE TEM NO
JARDIM. — Eu grito alto, me contorcendo. Ele tenta me tocar, mas
eu chuto suas mãos. — POR QUE FEZ ISSO?
— Arcane, você está em choque, porra. — Ele segura os dois
lados do meu rosto. Nesse momento eu compreendo que Deus não
é justo com pessoas como nós.
— Me perdoe, vamos conversar… — Ele segura meu braço.
Suas mãos estão sujas de sangue. Eu grito mais alto e empurro sua
barriga. Eu esmurro seu corpo e cravo minhas unhas em sua pele
quando ele tenta me afastar pra longe de Theo.
— Arcane! — Ele segura meu queixo quando eu não paro de
gritar. — Consegue ouvir? Você está em colapso!
— Você matou ele, papai! — Choramingo. — Eu odeio você!
Não toque em mim! — Eu estou gritando mais alto.
De repente sua expressão muda e ele começa a gargalhar
alto, ele está balançando os ombros e inclinando a cabeça para trás,
o som forte e feliz ecoando por toda a casa. Eu me assuntos e pisco
algumas vezes, lágrimas escorrem por minha bochecha e tenho um
sobressalto quando Atena acena em minha direção. Não é a risada
de Yuri que eu ouço agora, é a dela.
Encaro a mesa espaçosa de mármore repleta de comida. Eu
me pergunto como acabei de chegar aqui. Eu estava dissociando,
Atena Somáli está jantando conosco em nossa casa, tudo que eu
acabei de vivenciar foi uma ilusão da minha cabeça.
Sinto o cheiro de cigarro e maconha chegar até nós, pisco
algumas vezes olhando para a área externa onde Yuri está
conversando com Ivan. As cortinas balançam com o vento frio, até
que cuidadosamente eu consigo visualizar seu rosto, ele está
olhando para dentro da sala.
Nossos olhos se encontram, ele me analisa profundamente
por longos segundos. Agapi mou. Eu me assusto quando seus
lábios se repuxam para o lado, mas então, Yuri desvia quando Ivan
chama sua atenção.
— E você, Arcane, querida? — Atena toca minha mão
percebendo que estou trêmula. Eu pisco algumas vezes olhando
para seus olhos verdes. — Você não deu nenhuma palavra desde
que nos reunimos, não está gostando do jantar?
Eu limpo a garganta. Ainda sinto os olhos sombrios de Yuri
sob mim. Balanço os ombros para tirar essa impressão da minha
cabeça e me forço a responder Atena.
— Acho que eu não tenho muito o que falar. — Sussurro. —
Eu não tenho muitas experiências sobre o mundo, entende?
— Ora, então me diga qual a desculpa que você diz para as
pessoas que perguntam por onde você esteve nesses últimos anos?
— Não consigo perceber malícia ou cinismo em seu tom de voz,
parece uma pergunta genuína, eu encaro minhas mãos por alguns
segundos.
— Eu não digo nada, senhora. — Sorri de lado. — Eles ficam
ocupados demais falando pelos cotovelos e esquecem de me ouvir.
— Comento risonha. — Mas eu com certeza diria a verdade para
ver o medo nos olhos deles.
— Arcane! — Melissa reclama me encarando de olhos
arregalados. Nimue ri engasgando com sua bebida.
— Desculpa. — Fico envergonhada olhando para elas. Atena
gargalhou suavemente. — Não era para falar assim? — Encaro o
rosto de cada uma esperando alguma resposta.
— Está tudo bem. — Atena sorri afagando meu ombro. Então
Melissa não resiste e começa a gargalhar. — Eu me lembro de você
quando mais nova, você era tão linda e tímida. — Atena fala em um
gole prolongado em sua taça de vinho.
— Eu não sou agora? — Provoquei sutilmente na tentativa de
manter o bom humor entre nós. Melissa ri se inclinando para
sussurrar com Nimue.
— Você é sim, mas de um jeito que assusta muito. — Melissa
comenta beliscando sua comida.
Aperto os olhos para minhas irmãs que estão debochando de
mim. As duas estão gargalhando porque sabem que de tímida eu
não tinha nada.
— Eu acho fofo. — Nimue comenta. Eu encaro a minha irmã
com um meio sorriso. — Você vivia em meu colo querendo que eu
colocasse comida em sua boca, com uma cara muito rabugenta. —
Ela me lança uma piscadela e me joga um beijinho.
— Panoúkla. — Resmungo baixinho.
Sorri nostálgica, relembrando de bons momentos travessos
ao lado das minhas irmãs.
— Mas as coisas mudaram muito. — Eu comento mais baixo,
engolindo em seco. Sinto o olhar pesado de Nimue e Melissa
dirigidos a mim. Eles brilham em culpa.
Balanço a cabeça em negação lhes lançando um sorriso
brando. Apoio a mão no queixo voltando a minha atenção para
Atena.
— Atena, no primeiro evento que estive desde que retornei,
eu disse para uma senhora irritante que eu estava morando com
uma tia distante. — Comento baixinho. As minhas irmãs começam a
dar risada relembrando como eu fiz a mulher ficar vermelha, eu
definitivamente enchi a porra do saco dela. — Disse que estava nas
praias da América sendo uma burguesa muito ousada. — Jogo os
cabelos para trás fazendo uma encenação ridícula.
O vinho faz com que eu fique mais solta e divertida. Observo
elas rindo, as bochechas vermelhas, os sorrisos brilhantes. Isso faz
meu coração bater mais forte.
Sinto que ainda estou sendo observada por Yuri, quando
percebo, ele está caminhando em nossa direção seguindo Ivan.
Suas mãos estão em seu bolso, ele encara cada uma de nós com
um brilho indecifrável em seu rosto.
Há maldade em seus olhos, mas também há vazio e uma
fagulha mais pura, porém, ainda insuficiente ao ponto de eu não
conseguir compreender esse homem e muito menos amá-lo.
— Isso me faz pensar. — Voltei a falar conquistando a
atenção delas. — As mentiras e os segredos são tão fáceis de
serem mascarados, eu posso dizer qualquer coisa para esse povo,
eles vão aceitar como a verdade. — Dou mais um gole em meu
vinho.
— Nunca estão interessados de fato, apenas cumprindo com
o disfarce. — Deslizo os dedos por meus cabelos e sorrio de lado
observando elas. — Fico surpresa como consigo mentir para todos
eles como se eu fosse uma deusa.
— Eu concordo, Arcane. — Atena comenta educadamente.
— Uma mulher precisa ser bastante esperta para conseguir
sobreviver intacta.
Somos interrompidas quando Ivan beija a lateral do rosto de
Atena, a surpreendendo. Minhas irmãs e eu estamos em silêncio.
Yuri está parado bem atrás deles assistindo tudo com indiferença.
— Chamei Yuri para jogar sinuca. — O velho fala. — Depois
vamos para casa. — Atena balança a cabeça em concordância.
Yuri lança um último olhar para todas nós, então vira as
costas como se fôssemos um fardo que não pode dar fim.
— Ei, mas conte o final da história, é muito bom. — Nimue
pede quando ficamos sozinhas. Eu ri e então volto a falar.
— Então eu contei detalhes falsos sobre como era a minha
vida com a suposta tia. — Disse olhando para Atena. — Eu falei que
em uma noite flagrei ela fazendo sexo com um homem que não era
o seu marido. Que fiz um escândalo ao descobrir sobre ocaso e por
isso estou de volta.
O som de gargalhadas transborda pela sala de jantar, esse
momento chega a ser escandaloso, dou risada da gargalhada rouca
da mulher ao meu lado. Então minhas irmãs não se aguentam ao
explodirem também. Os sons são sufocados e leves.
— Acho que bebemos demais. — Atena resmunga com seu
rosto vermelho, ela respira sôfrega de tanto rir, a voz arrastada.
— Concordo. — Melissa suspira e enxuga uma lágrima no
canto do olho.
— Isso foi bobo. Não sei por que estou rindo. — Nimue
reclama se inclinando para beber mais.
— Todas nós somos bobas. — Aponto para Nimue, e lhe
lanço uma piscadela. — Não é tão engraçado. O álcool está nos
quebrando ao meio.
— Mas faz tanto tempo que eu não me divirto assim. —
Nimue comenta com sinceridade limpando a garganta.
Meu peito aquece em contentamento. Eu também, minha
irmã. Eu também. Sinto que finalmente estamos conectadas
novamente, como nunca deveríamos ter deixado de ser.
Fecho os olhos por breves segundos lembrando-me das
promessas que eu fazia para Nikoleta. Todos os dias, em meio ao
treino, eu dizia algo para motivar meus ossos a se moverem. “Um
dia, minha amiga. Nós duas vamos conseguir sair desse lugar
assustador. Nós seremos livres".
Cada respiração foi dada por isso, assim como cada batida
do meu coração, mas ela me traiu. Agora que eu estou aqui e
consigo enxergar a felicidade nos olhos das minhas irmãs, eu quero
cumprir essa promessa mais do que nunca. Quero mudar o mundo
delas. Quero poder conseguir a nossa liberdade.
Elas são tudo o que me importa, eu posso fazer isso, talvez
eu esteja mais perto do que nunca de sacrificar tudo por elas.
Alguns dias se passaram desde que Atena e Ivan Somáli
jantaram conosco em nossa casa, não sei quais assuntos os dois
homens trataram no escritório, mas no momento em que saíram, o
casal foi embora rapidamente.
A noite serviu para fortalecer nossa amizade com Atena, e
depois disso, ela convidou minhas irmãs para chás e compras
enquanto eu a acompanhava fazendo a maldita segurança. Tenho
minhas dúvidas de que elas fizeram isso apenas para me mostrar
um pouco do mundo onde vivemos.
Descobri que odeio fazer compras, foi muito tedioso ter que
aguentar elas conversando por horas sobre o mesmo assunto; qual
roupa fica melhor, qual a fofoca escandalosa do dia, porra, esse
povo vive falando de alguma coisa. Reviro os olhos quando elas
começaram a falar sobre modelos e viagens. Eu quero sair correndo
daqui caso não tenha que ficar protegendo-as.
— Sobre o que Ivan e Yuri estavam conversando naquela
noite? — Pergunto para Atena quando finalmente retornamos à
mansão. O céu já está escuro, eu deixei Melissa e Nimue em casa
faz poucos minutos.
A noite está fria, fazendo eu me encolher dentro do
sobretudo.
Encaro as poças de lama onde eu afundo minhas botas sem
nenhuma delicadeza. Praguejo baixinho quando percebo a sujeira
que ficou. Balanço o pé para tirar o excesso.
— Que coisa monstruosa. — Reclamo.
Eu não esperava que Atena fosse me responder, mas ela
reduz a velocidade para ficar lado a lado comigo, eu conserto minha
postura quando ela enlaça seu braço ao meu.
— Eles estavam falando sobre as ameaças de uma gangue
de rua. — Ela comenta baixinho. — São rivais dos dois. Há anos
eles querem tomar o poder da nossa família. — Seus olhos piscam,
como se isso a deixasse uma pilha de nervos. — Apesar das ruas
de Atenas serem muito turísticas e atrativas, quando a noite cai,
tudo se torna uma guerra.
Pisco algumas vezes, estou completamente alheia a esse
fato, é incrível o que cinco anos dentro da prisão pode fazer com
você.
— E como vocês fazem para controlar a situação? —
Pergunto mais baixo, desejando que ninguém flagre duas mulheres
conversando de assuntos que não nos diz respeito.
— Os meus filhos são encarregados dessa parte. — Ela
comenta mais baixo. — Rajá e Ajax são os que vão a fundo nas
brigas, eliminando vários inimigos, armando emboscadas. E agora,
os inimigos estão revidando.
Suspiro, sentindo meu fôlego sufocar meus pulmões. Encaro
toda a mansão ao redor, um trovão brame nos céus com firmeza,
vários pingos de chuva começam a nos molhar.
— Então, nesse caso, é melhor entrarmos. — Comento,
apontando para a grande mansão iluminada. — Já é noite, Atena.
Balbucio com firmeza para dispersar os meus pensamentos e
curiosidade sobre essas brigas. Não é da minha conta, certo? A
minha única função é manter Atena em segurança.
Depois de me despedir dela, e ajudar com suas sacolas de
compras, eu saio para fora da casa em meio a chuva que começa a
aumentar. Encolho meus ombros quando um trovão explode nos
céus, foi forte ao ponto de toda a escuridão ser iluminada com
tremores de luz.
Começo a organizar a guarda, contando cada homem e
dividindo a munição entre eles. Meus lábios tremem de frio e minhas
roupas estão empapadas de água. Começo a dar ordens de qual
posição eles devem tomar para fazer uma boa vigília, então separo
quem irá trocar de turno quando a madrugada cair.
— Arcane! Senhorita! — Minha postura fica rígida quando um
dos homens vem correndo até mim. Encaro ele de cima a baixo, ele
parece tão perturbado que meus olhos engrandecem, seu corpo
estremece entre respirações eufóricas.
Eu já estava reunindo minhas coisas para ir embora, mas
largo a bolsa dentro do carro, cruzo os braços esperando que ele
diga o motivo da correria.
— Diga, homem! — Mando em irritação.
Aperto os olhos analisando seu comportamento instável, ele
parece estar prestes a gritar ou ajoelhar implorando por ajuda, seu
coração parece sair pela garganta quando ele se inclina em seus
joelhos engasgando o fôlego.
— Há um cadáver jogado nas portas do fundo... — Seu rosto
está pálido, então amarelado, ele leva as mãos aos lábios como se
fosse vomitar a qualquer momento. Me afasto por reflexo.
Eu reviro os olhos arrancando a arma do meu coldre a
destravando. Ergo meu queixo, agarrando o homem pelo colarinho e
fazendo-o andar ao meu lado.
— Onde está sua arma? — Questiono, analisando o rapaz de
cima a baixo. Ele é só um garoto, deve ser estar iniciando agora.
— Meu pai ainda não me deu uma, eu estou apenas cobrindo
ele, pois teve que acompanhar o descarregamento de hoje. — Se
explicou em meio aos passos apressados.
— Tudo bem. Fique atrás de mim. — Mandei em um balançar
de cabeça. Caminhamos em direção aos fundos, onde ele apontou
que havia o tal cadáver.
Quando nos aproximamos, eu vejo alguns homens dando
ordens, suas bocas batem com firmeza em meio aos trovões
horripilantes, eles respiram ofegantes em meio a chuva pesada e
correm de um lado para o outro.
Empurro alguns homens, deixando o garoto para trás e
avançando até enxergar o mesmo que eles. Minha expressão fica
fria imediatamente, e meu coração parece ter sido apunhalado por
um pedaço de gelo.
Há um cadáver destroçado sob as barras de ferro, sua carne
foi penetrada pelas grades do portão alto, o corpo sangra como se
estivesse chovendo. O sangue desliza junto com a chuva e mesmo
assim ainda consigo ver a tonalidade vermelha. Ele está
completamente perfurado pelas barras.
— Vamos precisar cortar ele em pedacinhos para retirá-lo
dali. — Um dos homens fala ao meu lado. Encaro ele com uma
expressão sombria.
Dou passos para trás sentindo meu estômago embrulhar
quando um dos homens pega um pedaço de madeira e empurra
contra o corpo, a barriga do homem está completamente aberta,
com seus membros esfarelando para fora do corpo.
— Deixe isso. — Resmungo, afastando o homem e o
interrompendo, olho para os lados erguendo uma mão para
enxergar melhor através da chuva.
— Não é apenas isso. — O rapaz me puxa apontando para o
outro lado. Ali a chuva não consegue molhar, e na parede branca
está escrito em letras grandes e manchadas de sangue intenso.
Sangue do cadáver.
“Eu estou de volta. Não haverá paz.” É o que está escrito em
vermelho.
Olho para a casa, procurando saber se toda essa confusão já
atingiu os ouvidos de quem está lá dentro, não há ninguém da
família aqui fora, talvez isso nos dê tempo para limpar tudo e
acalmar os mais impressionáveis.
— O homem era um dos nossos. — O outro confirma o que
vejo.
— Como isso aconteceu? Era para ter homens aqui! —
Aponto para o garoto.
— Foi durante a divisão, senhora. — Um homem
rechonchudo fala, defendendo o garoto que não tem culpa de nada.
Eu avanço na direção desse homem e ele arqueja quando
agarro seu pescoço, rosnando com firmeza.
— Você é o responsável pela segurança, homem? —
Questiono firmemente. Em toda a minha vida um erro desse nunca
aconteceu. Foi por completa irresponsabilidade desses homens. —
Você é dormente, por acaso?
— Eu pensei que a senhora fosse a responsável pela
segurança agora que está aqui. — Ele gagueja, tentando se livrar do
meu aperto em meu pescoço.
— Senhora é o caralho. — Vocifero, encaro seus olhos
quando inclino meu queixo, e sibilo. — O meu nome é Arcane. — O
homem engasga sem som. — Eu sou responsável pela segurança
apenas de Atena Somáli. — Aponto o dedo para sua cabeça, bem
em cima da sua testa.
— E você é o chefe de segurança dessa mansão desde que
eu entrei aqui. A responsabilidade é sua. — Estalo a língua em
reprovação. — Ivan Somáli irá arrancar sua cabeça quando souber
o que aconteceu aqui. — Aponto. — Bem debaixo do teto dele.
Os outros estão completamente tensos enquanto assistem.
Meus olhos estão cegos quando percebo o homem ficando
vermelho à medida que aperto mais firme.
Quando seus olhos começam a pesar eu percebo que estou
matando ele, porra, isso deve estar doendo. Estou completamente
cega e quase tirei a vida desse pobre coitado. Largo seu corpo com
firmeza, ele cai aos meus pés, engasgando alto e procurando se
recompor no chão.
Dou passos para trás encarando toda a confusão, meus
olhos brilham em culpa, encaro minhas mãos quando minha
respiração acelera. Resmungo algumas palavras, mas elas saem
trêmulas demais. Respiro fundo para retomar o controle.
— Limpe tudo isso antes que alguém veja. Façam de conta
que nada aconteceu. — Arquejo. — Dobrem a segurança
imediatamente. Coloquem um homem em cada canto dessa
mansão. Agora. — Sibilo, caminhando com firmeza para dentro da
casa. Ouço todos voltando a falar em meio a agitação da chuva.
Começo a andar por entre o jardim, minhas mãos ainda estão
trêmulas, meu corpo respinga água da chuva acumulada em minhas
roupas. Eu estou ensopada. Se eu pudesse, sairia correndo agora e
me trancaria em algum banheiro até isso passar.
— Eu não sou assim. — Sussurro baixinho. — Eu tenho o
controle. Eu não estou desenfreada. — Engasgo em meio a
respiração agitada.
Meus punhos estão cerrados, encaro o relógio na parede
percebendo que já passa da meia noite, abro algumas portas
procurando algum sinal da família Somáli, mas tudo que encontro é
uma sala vazia e escura.
Paro abruptamente quando ouço gemidos muito alto vindo do
lado oposto. Suspiro, apertando os olhos. Retiro a arma do coldre
mais uma vez e caminho em passos calculados, a cada momento,
os gemidos se tornam mais altos e ferozes, percebo que são mais
de um.
O que está acontecendo? Eu devia dar meia volta e deixar
que as pessoas daqui lidem com isso, mas sou empurrada com
firmeza pela minha curiosidade, e quando estou perto o suficiente,
percebo que o som é de prazer.
Antes que eu possa dar as costas, tenho o vislumbre de dois
homens fortes com duas mulheres em cima deles. Puta merda. Eles
estão tão envolvidos nesse sentimento de prazer, que esqueceram
de fechar a porta. Os sons parecem balançar as paredes em meio a
tanta intensidade.
Minhas bochechas ficam vermelhas ao deduzir quem são
eles, caminho para trás completamente constrangida. Eles são
Kalon e Rajá Somáli, dois irmãos entre um emaranhado de corpos
nus, gemidos e arquejos prazerosos.
Sinto meu coração batendo desenfreado, no momento em
que avanço para ir embora, esbarro em um grande jarro com flores
dentro. A escultura enfeita o corredor. Em um movimento brusco, eu
seguro o jarro antes que ele se parta no chão. Arquejo de alívio e
aperto os olhos, balançando a cabeça minimamente em negação.
Se eles me flagrarem aqui, eu estou acabada.
Ouço um suspiro contido vindo do outro lado, encaro o quarto
entreaberto, temendo que eles tenham me descoberto. Um par de
olhos verdes penetram tão fundo que me deixa zonza, minha
garganta fica seca, meu coração estremece prestes a sair para fora.
Eu não movimento nenhum músculo quando os olhos selvagens de
Kalon Somáli vasculham o meu rosto com atenção. Sua respiração
está irregular. Sua expressão de prazer aumenta quando ele retira
seu pau de dentro da mulher e tem um orgasmo na minha frente,
fazendo meu corpo queimar ao ponto de arder.
Observo a maneira como sua pele nua e tatuada brilha em
união com o quarto escuro. Ele é atraente, e isso é demais para eu
admitir em voz alta.
— Porra. Porra. — Sua voz selvagem agride meu corpo. Eu
rapidamente desvio meus olhos quando sinto meu corpo esquentar
em lugares que não devia. Começo a andar, mas ouço ele falar
algo, fico paralisada quando o homem segura sua arma e atira na
cabeça da mulher. A outra, que está com Rajá, grita alto vendo sua
amiga caída no chão.
— Porra, Kalon. — Rajá reclama, empurrando a mulher viva
e escandalosa para longe. — Por que fez isso?
— Ela não me fez gozar. — O homem resmunga encarando o
chão onde a prostituta está sangrando. — Outra pessoa fez.
Nesse momento, quando seus olhos me procuram, eu
apresso os passos ao ponto de correr. Virando o outro corredor,
aperto os olhos para me livrar do que está em minha cabeça, os
olhos dele me analisando firme e potente, a forma como ele gozou
olhando para meu rosto.
De repente, tudo que ouço é a minha respiração embargada,
guardo a arma no coldre novamente. Volto a caminhar e percebo
que estou no escritório de Ivan Somáli.
Abaixo o olhar para meus pés, respiro fundo para avisar
sobre o cadáver e esquecer o que acabei de presenciar. Encaro a
festa de luz se arrastando por baixo da porta, a frieza assume o
calor do meu corpo, engulo em seco e empurro a porta.
— Ivan Somáli. — Falei o nome dele, erguendo meu queixo e
sorrindo minimamente.
Afundo as mãos no bolso do meu sobretudo, quando ele me
encara com uma sobrancelha erguida. Ele está fumando cigarro e
lendo um livro. Bom, pelo menos ele não está nu. Isso já é grande
coisa.
— Arcane? Você está pálida. — Ele fecha o livro e apoia os
cotovelos na mesa ao se aproximar. Seus dedos deslizam por sua
barba quando ele engole um bocejo demorado. — O que deseja?
Está tudo bem? — Aponta para que eu me sente na sua frente. O
velho se inclina pegando um copo de whisky pela metade e dando
goles demorados.
— Não. — Eu respondo firmemente. Meus olhos não se
desviam dos dele.
— Não? — O homem me lança um olhar raivoso.
— Eu não vim aqui pra isso. Preciso que veja uma coisa. —
Conserto minha postura sem permitir que sua prepotência me afete.
— Então que seja algo realmente importante. — Sua voz
velha e rouca fala em um tom grotesco.
Meus lábios se repuxaram em um sorriso cínico. Então eu
dou de ombros.
— Há uma espécie de recado para você e sua família nos
portões dos fundos. — Falei sem muita cerimônia e indico que ele
me siga. O homem se ergue com agressividade.
Ele me encara de cima a baixo com uma expressão furiosa
nos olhos. Seus lábios até mesmo se repuxam em desprezo.
Mantenho minha expressão de tranquilidade como se ele não fosse
nada.
Ele parece estar prestes a dizer algo, mas apenas caminha
por mim como um raio. Suspiro, encarando o escrito vazio. Me
remexo girando em meus pés para acompanhar o velho irritante.
— Víbora. — Resmungo com rispidez.
Volto a afundar as mãos em meus bolsos quando finalmente
o acompanho, entramos na área em que os homens estão agitados
procurando uma maneira de arrancar o cadáver das grades. O aviso
de sangue está sendo limpado, Ivan encara tudo com
superficialidade, eu me posiciono ao seu lado levando as mãos
atrás das costas.
Aperto meus lábios me deliciando com a insatisfação
fumegante de Ivan Somáli. Ele começa a gritar dando ordens
enfáticas. Em nenhum momento o homem se importou em me
encarar ou dar algumas instruções, ele agarra seu telefone fazendo
uma série de ligações, aperto os olhos sacudindo os cabelos
molhados. Não vejo a hora de poder ir embora.
— Ivan... — Resmungo seu nome. Seus ombros largos se
voltam em minha direção. Ele me encara de cima a baixo.
— Vá para casa. Você já fez o suficiente por hoje. — Seu tom
de voz é firme e indiferente.
Eu balanço a cabeça em concordância, então começo a
andar antes que ele mude de ideia. Não questiono absolutamente
nada quando atravesso o jardim procurando pelo meu carro.
Arranco o sobretudo do meu corpo e o atiro no banco de trás.
A curiosidade aperta a minha garganta quando assumo o volante.
Que tipo de ameaça essa família vem recebendo? Isso tudo parece
algo pessoal demais. Por que o chefe de uma maldita gangue seria
louco ao ponto de fazer um assassinato nas portas dessa mansão?
Talvez não hoje, mas amanhã eu irei descobrir o que está
acontecendo aqui. Uma hora a verdade virá aos meus ouvidos.

Quando chego em casa, todas as luzes estão apagadas.


Começo a arrancar minhas roupas molhadas para me livrar dessa
sensação ruim que sobe por meu corpo. Deslizo as mãos pela
parede procurando me acostumar com o escuro e encontrar meu
quarto.
Meus pensamentos vagam aos olhos verdes que eu vi mais
cedo. Meu coração se dilata em uma fisgada forte. Deslizo as mãos
pelos cabelos desejando que essa lembrança suma da minha
cabeça.
— Aqueles olhos... — Sussurro baixinho. Eram tão profundos
que toda a minha mente desligou por alguns segundos. E dentro de
cinco anos, aquela foi a primeira vez que tudo ficou quieto.
— Arcane? — Ouço a voz baixa de Nimue. Encaro de onde o
som vem e percebo a porta do seu quarto aberta. Eu pisco algumas
vezes me aproximando.
— Sim, sou eu. — Respondo de volta. — O que está fazendo
acordada a essa hora? — Questiono, com uma sobrancelha
erguida.
O quarto está iluminado pela luz agitada da TV. Nimue cruza
os braços diante do peito. Vejo a silhueta de Melissa com o rosto
afundando em um livro. Ela está de headfone, completamente alheia
à minha presença.
— Parece que as duas estão. — Comento, risonha.
— Entra aí. — Ela acena com a cabeça. — Estávamos
esperando você. — Ela me puxa, mas faz uma careta ao sentir o
quanto estou molhada e fria. — Merda. Vai pegar um resfriado.
Antes que eu diga alguma coisa sinto uma toalha me
envolver e ela começa a secar meus cabelos. Melissa se remexe
saindo do seu livro. Ela me observa com atenção e então sorri.
— Você chegou tarde. — Comente me oferecendo batata
frita.
— Não precisava me esperar. — Resmungo, fechando os
olhos ao sentir Nimue penteando meus cabelos com tanto carinho
que o sono me invade.
Encaro a TV por um tempo, está passando um filme de
comédia em p&b. Percebo nesses breves segundos, o quanto os
meus dias na prisão foram solitários. Era disso que eu estava
sentindo falta toda noite antes de dormir. Saudades delas.
Quando Nimue me ajuda a trocar minhas roupas, eu deito na
cama ficando no meio delas duas. Agarro a minha irmã pela cintura,
aproveitando a leveza da presença delas. Parece que eu nunca fui
embora, que sempre estivemos aqui. Nada consegue me consumir
agora, nem raiva, dor ou medo. Apenas elas.
Todo o peso dos meus ombros desapareceram. Tudo que
sinto é apenas eu, Arcane. Não uma assassina que precisa ser
cruel. Tudo que sinto é a garotinha que eu fui, desejando
desesperadamente o afeto das minhas irmãs. Isso me fortalece.
Isso me cura.
— Sabe do que eu tava lembrando? — Melissa fala por cima
do som baixo da TV. Nimue tira seus olhos brilhantes da mesma e
encara Melissa com suavidade.
Eu ergui o olhar do travesseiro para ouvir o que ela tem a
dizer.
— Quando Arcane tinha cinco anos, vocês duas viviam
correndo nos eventos, atrapalhando a plenitude elegante de todos, e
ela esbarrou em um dos garçons. — Melissa ri alto. Eu aperto meus
olhos lembrando de cada detalhe daquele dia. — O homem
derrubou bebida por todo lado. Aquilo foi horrível. — Melissa me
encara. — Você conseguiu acabar com um evento da Alkyóna com
todo esse furacão. — Me dá um tapinha. — E claro, Nimue ajudou
bastante. — Estremece ainda rindo.
— Ah, não fala disso. — Imploro, tentando esconder uma
risada. Mas então, os meus olhos se apertam em humor. As risadas
reverberam pelo quarto, e isso é tão leve.
— Yuri ficou furioso. Essa foi a melhor parte. — Nimue diz,
ainda rindo.
— Tá bom, mas você me empurrou. — Me defendo, e elas
riem mais ainda.
— Na verdade, eu perdi o equilíbrio porque Nimue me
assustou. Então eu caí por cima de vocês duas. — Melissa fala em
meio às risadas de Nimue.
— Aquilo foi um inferno. — Reclamo.
— Mas ninguém mandou você correr como louca. — Nimue
se defende.
As horas que se passaram, nós ficamos relembrando
momentos divertidos e constrangedores da nossa infância. Até que
não aguentamos tantas risadas. Aquela época, mesmo com tanto
caos, foram bons tempos.
Fico feliz que mesmo agora, depois de tudo que passamos,
ainda estamos ao lado uma da outra. Eu amo isso porque é tudo
que me importa para mim, eu também odeio isso porque é tudo que
sobrou. Não temos mais nada.
07. UM HOMEM AMALDIÇOADO
“Na verdade, somos uma só alma, você e eu. Nos
mostramos, e nos escondemos. Você em mim, eu em você. Eis aqui
o sentido profundo da minha relação contigo, Porque não existe,
entre você e eu, nem eu, nem você.”
— RUMI.

— Desde que chegaste ao mundo do ser, uma escada foi


posta diante de ti, para que pudesse escapar. — O som da minha
voz reverbera pela sala espaçosa e vazia. Encaro as janelas do
outro lado, ainda está chovendo lá fora, o dia parece que vai
começar cansativo demais.
Volto a minha atenção para o livro e continuo lendo em voz
alta.
— Primeiro, foste mineral; depois, te tornaste planta, e mais
tarde, animal. — Sussurro, com um sorriso astuto. — Como pode
isto ser segredo para ti? — Minha voz grave chicoteia a grande sala.
Afundo meu corpo contra a poltrona e cruzo as pernas com
firmeza. Meu peito sobe e desce em uma respiração pesada e
relaxada.
— Finalmente, foste feito homem, com conhecimento, razão
e fé.— A porta é aberta em um gesto brusco e eu vejo Kol entrar.
Ele está completamente molhado da chuva intensa, seus ombros
balançam com firmeza quando ele joga um saco no chão,
rapidamente a mancha de sangue se espalha pelo tapete branco e
peludo.
— Esse aí é o favorito de mamãe. — Comento casualmente,
voltando a encarar o meu livro.
— É sério? O mundo está desabando em chuva e... — Ele
chuta com firmeza o saco preto. O som é oco e eu trinco os dentes
sentindo meu estômago se virar. Porra, logo cedo? — E em sangue!
— Ele completa, em um rosnado. Kol é sempre tão ranzinza. Ele
aponta em minha direção. — E você está aí sentado, lendo a porra
de um livro?
Levo o dedo indicador aos lábios fazendo o sinal universal do
shh. Então, volto a encarar as últimas palavras do poema. Suspiro
profundamente, voltando a sentir a mesma tranquilidade de minutos
atrás, quando eu estava sozinho.
— Contempla teu corpo, um punhado de pó, vê quão perfeito
se tornou! Quando tiveres cumprido tua jornada, decerto hás de
regressar como anjo; depois disso, terás terminado de vez com a
terra, e tua estação há de ser o céu. — Finalizo, com um sorriso
divertido entre os lábios. Fecho o livro e dou total atenção para Kol.
— Bom dia, Kol. — Encaro o saco preto no chão. — Por que
você trouxe uma cabeça para a nossa sala? E por que ela ainda
está sangrando no maldito tapete?
— Bom dia, Kalon. — Meu irmão fala entre dentes, em um
resmungo completamente selvagem. — Eu não sabia que você era
tão doméstico ao ponto de se preocupar com um tapete. — Sibilou,
esfregando as botas sujas de propósito. Encaro toda a sujeira e faço
uma careta de desprezo. — O que eu deveria fazer? Pegar um
balde?
Ergo o queixo para ele com prepotência e sorri de lado. Ele é
sempre tão gentil e carinhoso, na medida do possível.
— Não seja tão sombrio! Hoje é um ótimo dia, veja só... —
Aponto para a janela. — Está chovendo. — Suspiro pesadamente,
hoje eu estou de bom humor.
— O que há de bom na chuva? — Ele caminha, arrancando
seu sobretudo molhado e atira do outro lado. — Você por acaso é
dono de alguma plantação e eu não estou sabendo? — Ergue uma
sobrancelha.
Meu irmão suspira pesadamente, revirando uma bandeja de
bebida até encontrar a que quer. Então, ele se apressa em fechar as
cortinas vermelhas.
— Qual é, irmão. — Abri os braços em rendição. — Pega
leve, qual é o seu problema?
Kol gira seus pés até estar me encarando. Primeiro ele vira a
bebida em goles ardentes, então atira o copo na bandeja que
produz um barulho alto.
— O meu problema é que eu tive que perseguir o miserável
até debaixo de uma ponte completamente suja e podre. — Ele
aponta para a cabeça ainda sangrando no tapete. Seus dedos ágeis
deslizam pelos fios dos seus cabelos. — Quer ouvir a parte em que
eu tive que arrancar a cabeça dele? Garanto que você vai dispensar
o seu café da manhã ao saber. — Ele sibila, com seu humor
sombrio.
— Pelos deuses. Eu não quero ouvir isso. — Aperto os olhos
deslizando os dedos sob a têmpora. — Posso até imaginar o quanto
foi sangrento.
— Que bom. — Ele cruza os braços diante do peito. —
Porque foi difícil pra caralho.
Ele respira fundo apoiando sua perna na mesa que está do
outro lado, inclina a cabeça para trás e suspirar pesadamente. Junto
às sobrancelhas, observando seu humor abrasivo e estressante
logo cedo.
— Quem mandou você matar o homem? — Pergunto em um
tom de voz mais baixo. Kol suspira pesadamente e então me encara
com frieza, como se seus pensamentos não estivessem
desenfreados segundos atrás.
— Foi papai. — Ele balança os ombros. — Esse não foi o
único que eu andei matando desde às cinco da manhã. — Kol sorri
sombriamente. — Mas papai pediu a cabeça, e a mão direita, desse
aí. — Kol começa a beber mais whisky. — Foi muito difícil conseguir
desmembrar cada um deles, queimar, me livrar do sangue o quanto
podia e arrastar esse saco sangrento até em casa.
Essa cidade é o nosso lar, somos os reis dela e temos total
autoridade, cada rua de Atenas está sobre o nosso poder. O
governo não tem voz alguma, os Somáli têm. Minha sede de
vingança me deixa calmamente pacífico, pois é uma garantia de que
a ameaça de ontem à noite terá retaliação.
Eu soube do que aconteceu por ligação, nosso pai resolveu
informar depois de uma longa noite investigando o atentado. Mas ao
que vejo, ele também está dando ordens para Kol agir.
Bastou apenas uma noite para que o terror dançasse pelas
ruas de Atenas como se fosse o diabo encarnado. Por isso dizem
que com o escuro e o silêncio da noite, ficamos expostos ao que
realmente somos, e diante de coisas sombrias que escondemos e
tentamos manter no passado.
O passado, entre tudo, é algo que eu estou pouco me
fodendo nesse momento.
— Sabe o que eu acho engraçado? Que nossos inimigos
resolveram ficar tão agitados e agressivos logo quando Rajá
retornou da Turquia. — Kol aponta o dedo indicador em minha
direção.
Nós temos grandes negócios com a máfia turca, eles são os
nossos amigos mais próximos, nossa lealdade vem de uma grande
linhagem anterior. Nossos laços são inquebráveis. Confiamos um no
outro mesmo dentro de um buraco, mesmo condenados à morte.
— O que Rajá ou os turcos têm a ver com isso? —
Questiono, sem compreender a acusação de Kol. — Ele foi enviado
para aprender com eles, para se tornar melhor do que já é. Apenas
isso. — Comento com um meio sorriso.
— Não sei, me diga você. — Kol questiona. — Normalmente,
eu sou o filho desgarrado, a ovelha negra da família, aquele que não
compartilham nada. — Seus lábios se repuxam em desprezo. —
Então me diga o motivo de Rajá ter retornado da Turquia tão de
repente, porque eu não sei.
— Porque papai quis que ele viesse. — Respondo, como se
fosse óbvio. — Rajá não iria foder com isso logo quando acabou de
voltar. Ele não é louco. — Dou de ombros sem me preocupar. —
Salih é um grande amigo nosso, ele sempre nos informou de cada
passo de Rajá, ele não fez nada de mais nos últimos dias. —
Balanço a cabeça. — E quando chegou em casa, sequer teve tempo
para isso.
Respondo a última parte em um tom de voz mais baixo. Claro
que me surpreende o fato dele ter retornado de maneira tão
misteriosa e sem levantar rumores do povo. Faz tempo que toda a
família não está reunida.
Mas Rajá sequer teve tempo para fazer alguma atrocidade
desse nível. A noite toda, nós passamos nos divertindo com
prostitutas e bebidas.
— Uhum. — Kol resmunga com frieza, balançando a cabeça
em concordância. — Já entendi o que está acontecendo aqui. — Ele
comenta sem dar muita importância. — Vocês estavam juntos,
certo?
— Sim. Digamos que sim. — Respondo com calma.
Sempre soubemos que uma hora ou outra Rajá voltaria para
casa, a minha ocupação como chefe da Alkyóna é apenas por
alguns meses até ele estar pronto para assumir. Essa posição é
dele, não minha. Os tempos estão mudando, e com ele, o nosso
poder apenas aumenta. Esse é o motivo para haver tantos ataques,
e que tenhamos tantas mortes sob nossos ombros.
Mas o fato é que, assim como eu, meus irmãos não se
importam com nada além de si mesmos. Tudo que temos em
comum é a fome por poder, essa ambição formigante para nos
mantermos os melhores. E para manter isso, faremos qualquer
coisa, mesmo as piores insanidades.
Ao longo da minha vida, isso é tudo o que eu busco. Quero
que eles me temam. Quero que eles reconheçam que o poder e
jurisdição são dos Somáli.
— Você gosta de poesia, não é? — Ele pergunta deslizando
o dedo pela borda do seu copo de whisky. — Tenho duas, uma
sobre você e outra sobre mim.
Encaro o livro em meu colo e balanço a cabeça em
concordância.
— Mas não é qualquer poeta que me agrada ou preenche o
meu coração. — Inclino o queixo em sua direção. — Máquina de
guerra. — Sussurro seu apelido.
— Eu vou recitar uma para você. — Meu irmão sorri
largamente.
Não sentir, é tudo o que eu faço. O tempo inteiro. Eu transfiro
qualquer sentimento, por menor que seja, para que ele não se torne
algo letal. Eu me reduzo à uma pedra fria e dura, e eu gosto disso.
Posso usar essa dureza para esmagar quem ousar me destruir.
— Faça isso, querido. — Encaro seus olhos.
— Essa cidade tem medo de mim. Eu vi a sua face. — Kol
sussurra com sua voz grave e insensível. Seus olhos me observam
com atenção enquanto seus lábios enganadores proferem as
palavras como se ele fosse um deus.
— As ruas são sarjetas dilatadas e estão cheias de sangue. E
quando os bueiros finalmente transbordarem... — Kol faz uma
pausa caminhando até o saco preto onde está a cabeça sangrando.
Ele exibe o rosto para que eu veja. Não reconheço o homem, mas
há um T de traidor em sua testa. — Todos os vermes vão se afogar.
Lá embaixo, esta cidade horrível, grita como um matadouro cheio de
crianças retardadas.
Ele joga a cabeça no chão e começa a girar fazendo um
barulho pegajoso. Interrompo seu percurso apertando-a com a sola
do meu sapato, como se fosse uma bola de futebol. Encaro os olhos
esbugalhados do homem, a boca aberta exibindo dentes de ouro e
sangue escuro.
— E a noite fede à fornicação e consciências imundas. —
Meu irmão continua resmungando, com sua voz grave e rouca,
como se fosse um Ceifador. Seus olhos azuis não se desviam dos
meus. Eu vejo trovões e um mar revolto em seus olhos profundos.
Meus lábios de repuxam em um sorriso complacente, eu
chuto a cabeça de volta para ele, como se estivéssemos brincando.
Ele recebe com o pé, encaro seu rosto com atenção quando ele pisa
firme, ao ponto de esmagar e quase dividir a cabeça em dois,
causando uma enorme sujeira sangrenta.
— Kol Somáli, meu amor. — Sibilo seu nome. — Tempestade
do mundo inteiro. — Analiso ele de cima a baixo, afundando a mão
em meus bolsos. — Que bom que nós somos irmãos, querido. —
Sorri de lado. — Eu acho que já vi esse filme antes. — Aponto para
ele, me referindo a poesia.
— É bom que tenha visto. — Ele sorri, balançando os ombros
e esfregando os pés no tapete branco que mamãe tanto adora. —
Agora, sua poesia. — Ele me joga um beijinho ousado. — Alguém
entrou no quarto de um poeta e perguntou: "por que ficas aqui
sozinho, o dia inteiro?" O poeta respondeu…
— Agora, que entraste, eu realmente estou só, porque me
separaste de Deus. — Eu completo, sorrindo largo. — É exatamente
isso. — Balanço a cabeça em concordância. — Bom, eu adorei a
conversa, mas preciso sair, tenho negócios. — Encaro ele com
diversão. — É a minha vez de ir brincar. — Lhe lanço uma
piscadela. — Você esqueceu de citar a melhor parte sobre a sua
poesia diabólica e imoral; eu não estou preso com vocês, vocês
estão presos comigo.
Dou as costas para ele, saindo dali calmamente, ajeito a
jaqueta preta em meu ombro e continuo andando. Então meus
passos se cruzam com outros e sinto um corpo esbarrar no meu.
Praguejo rispidamente.
— Cuidado por onde anda! — Brado com rispidez. — Merda.
Nem parece que é a porra de uma mansão e sim uma rua
movimentada.
Paro de falar quando encaro quem está diante de mim. Ela
me encara com seu queixo erguido e os olhos brilhando com raiva,
talvez até algo a mais que isso, e eu não consigo decifrar.
— Arcane Planard. — Sibilo seu nome, ele soa doce e
malicioso, isso me faz sorrir. — Eu não consigo lembrar de onde
conheço você... — Aperto os olhos em uma expressão fingida,
relembrando de ontem a noite quando percebi que ela estava me
observando em um momento muito inapropriado.
Ela mantém seu queixo erguido, eu gosto disso, ela sempre
encara todos diretamente nos olhos. A raiva que brilha em seus
olhos é como sentir duas lâminas afiadas contra meu peito.
Analiso seu condicionamento físico com lentidão e de
maneira descarada, ela parece exausta, ou pelas gotas de suor em
sua têmpora, suponho que ela tenha acabado de sair do treino.
— Não vai falar nada? — Pergunto, afundando as mãos em
meu bolso e relaxando a postura. Respiro seu cheiro selvagem e
atraente.
Arcane é uma mulher forte apesar da baixa estatura e do
corpo esguio. Aperto meus olhos quando o desejo causa uma
pontada firme em meu peito. Eu adoraria empurrar seu corpo contra
a parede e sentir cada pedaço de sua pele.
Minha expressão fica mais fria e impenetrável quando eu
desvio meus olhos do seu corpo, encarando seu rosto novamente.
— Você está no meu caminho. — Eu balanço o dedo
indicador, apontando para que ela continue andando.
— E você está no meu. — Ela rebate.
Porra, essa mulher é, definitivamente, o meu tipo. Eu quase
gargalhei em apreciação à sua dureza. Encaro Arcane de cima a
baixo, ela faz o mesmo, como se isso fosse um desafio. Suas
narinas dilatam quando seus lábios se apertam. Porra. Até mesmo
isso é atraente nela.
Eu inclino meu rosto em sua direção, minhas mãos ainda
estão nos bolsos, ela faz o mesmo e isso me arranca um sorriso.
Ela definitivamente não se curva diante de ninguém.
— Isso é uma ameaça? Você está tentando me intimidar com
esse olhar de macho alfa? — Ela ergue o queixo. Seus olhos
brilham com uma fúria que quero beijar.
— Talvez seja. — Inclino a cabeça para o lado, recuando. —
Ou talvez seja um flerte. — Provoco sutilmente.
Ela ri com diversão, então balança a cabeça em negação
como se tivesse perdido a paciência comigo.
— Querido, eu lamento, isso não funciona comigo. — Ela
sorri.
Isso é divertido, todo esse joguinho de quem é mais durão,
eu adoraria brincar com ela o dia inteiro.
— Você sabe quem eu sou, sabe que eu vi você na noite
passada, não se sente ameaçada? — Pergunto, analisando ela com
mais calma. — Talvez eu esteja aqui para silenciar você.
— Lamento, você não tem o poder de me intimidar. — Ela dá
de ombros com indiferença. — Não tenho medo de suas ameaças.
Eu sorri fechado, produzindo um resmungo.
— Devia ter. — Faço uma pausa, observando suas feições,
ela parece um problema fácil e prazeroso de lidar. Uma mulher tão
hostil e insubordinada está diante dos meus olhos. Eu amo
problemas.
Levanto o olhar e passo por ela, continuando meu caminho e
ignorando nossa pequena conversinha. Olho por cima do ombro. Ela
está me observando risonha.
Mesmo que ela pareça ter sido esculpida pelos deuses, e ter
esse olhar de fúria e poder direcionando a qualquer um que esbarra,
eu sei muito bem que Arcane é uma criminosa. Ou melhor, uma
assassina.
Um prodígio na arte de matar. Ela foi treinada pelo melhor
capitão daquela prisão, com apenas dezesseis anos ela foi jogada
naquele lugar e conseguiu sobreviver. O lugar não passa de um
campo de morte, tortura e destruição, e ainda assim ela conseguiu
retornar. Essa mulher é um furacão.
Alguns têm medo dela e das suas irmãs. Mas eu sei que
enquanto ela estiver debaixo desse teto, Arcane não será um
problema ou ameaça, mesmo que seja letal com armas afiadas,
mesmo que saiba atirar mais do que qualquer outra mulher da
Alkyóna. Ela está aqui para servir a minha família. Apenas isso.
Começo a dirigir até o lugar onde eu havia marcado com um
dos nossos aliados turcos. Altan é um advogado respeitoso do
nosso meio, além de ser um ótimo investigador particular. Seu nome
sempre é citado em reuniões de negócios importantes, porque os
serviços do homem são extraordinários.
— Merhaba, como vão as coisas, abicim? — Questiono, com
um largo sorriso, ao me sentar ao seu lado. Ele sorri em
entusiasmo, me entregando um copo de whisky.
— Günaydın, eu tenho algumas novidades que vai gostar,
patron. — Altan abre sua maleta e desliza algumas fotos pela mesa.
— Eu estive investigando o líder da gangue e descobri mais coisas
do que estava esperando. — Ele confessa e não poupa esforços ao
revelar.
— Em tão pouco tempo? — Encaro ele, surpreso. — Não
brinca comigo! — Aperto seu ombro em um sorriso largo.
— Aynen! Aynen! — Ele gesticula, completamente orgulhoso
do seu feito. Seu copo de whisky se junta ao meu em um brinde.
Viramos tudo em um apenas um gole, antes dele voltar a falar. —
Em primeiro, eu descobri que eles são os principais suspeitos de
estarem por trás de todas as ameaças e os atentados anteriores.
Altan coça sua barba, deslizando mais fotos sobre a mesa.
Encaro um garoto tatuado e com uma aparência desleixada. Então
observo imagens de câmera de segurança e outras fotos do dia do
atentado em um shopping onde mamãe estava fazendo compras
antes de Arcane sair da prisão. Talvez os dois atentados tenham
sido feitos pela mesma pessoa. Algumas filmagens ele até aparece
de maneira desleixada, como se quisesse que soubéssemos.
— Buna bir bak, esse é o filho do homem, conseguimos
reconhecê-lo mas não sabemos por onde anda atualmente. Essa
foto é de dois anos atrás. — Altan fala. — Herdeiro do chefe da
gangue. Filho do velho inimigo do seu pai.
— Bak, Altan. — Sorri. — Parece que pai e filho são uns
animais. — Respiro pesadamente, depois solto um palavrão.
Meu dia acaba de ficar péssimo, a raiva se revira dentro de
mim ao reconhecer o rapaz, eu já o vi circulando em bares e boates
que nós gerenciamos. Ele está sempre nas sombras como uma
raposa astuta.
— Há uma frase na sua língua que eu gosto muito, abicim. —
Aponto para Altan, me servindo de mais bebida. — Kusursuz
değilim, olmamda gerekmiyor. — Sibilo as palavras com meu turco
arrastado e enfático, misturado com meu grego nativo.
Altan sorri e se serve de mais bebida. Ele é um homem
amistoso e sorridente. Adoro sua personalidade.
— Isso significa: eu não sou perfeito, e não preciso ser. —
Ele comenta, fazendo uma pausa em seus goles de bebida
necessitados.
Eu balanço a cabeça em concordância.
— Eu gostaria de acrescentar mais algumas palavras à essa
frase. — Sorri. — Eu não sou perfeito, e não preciso ser. Tudo que
eu preciso é de uma arma e um bom motivo para me vingar do meu
passado. — Encaro ele. — Eu devo lembrar a eles que eu sou um
Deus Da Máfia, certo? E que as coisas acabam muito ruim para
quem ousa nos desafiar.
— Inshallar, patron. — Altan sorri abertamente, então
brindamos mais uma vez. Abraço seu ombro com firmeza.
— Fique de olho nesse rapaz, tente encontrá-lo o quanto
antes. Vidas dependem disso. — Ordeno. — Me avise sobre
qualquer novidade.
08. CASAMENTO
“Para além das ideias de certo e errado, existe um campo. Eu
me encontrarei com você lá.”
— RUMI.

— O que você entende sobre família, Arcane? — Atena


pergunta, encarando os meus olhos através do espelho.
Até então, eu estava perdida em meus pensamentos, presa
em um batalha interna entre meus pecados e a minha fome por
redenção e uma vida melhor. Em algum momento, enquanto
esperava Atena se arrumar, eu apenas passei a cogitar isso; como
seria se fosse diferente?
— Perdão? — Pisco algumas vezes e finalmente encaro seus
olhos claros. Ela está sorrindo para mim.
— Família. — Ele repete. — Que definição você daria para a
família?
— Por que você está me perguntando isso? — Questiono,
encolhendo os ombros. Meus olhos varrem o lugar em busca de
alguma escapatória, odeio assuntos complexos.
— Eu penso que você sabe sobre isso melhor do que
ninguém. — Seus olhos me encaram por milissegundos. — A família
é tudo, certo? — Seus lábios se repuxam. Eu sorri de volta. E
pensar que ela entrou nesse assunto ao falar sobre os filhos.
Eu suspiro, meu peito vibra, meus pulmões bombeiam com
força. Eu aperto os lábios buscando as palavras certas, já que ela
insiste tanto em perguntar sobre isso.
— Na minha concepção, família é tudo. — Gaguejo um
pouco. Ninguém nunca me pediu a opinião sobre algo tão... Normal.
Algo fora do que estou acostumada. — Bom, eu penso que se você
não tem uma família ao seu redor, você não é nada. Você não
existe.
Meus olhos se encontram com os de Atena. Ela está
sorrindo, claramente apreciando e compreendendo minhas palavras.
— Você não é nada se você não tem uma família atrás de
você. Eles são como suas mãos, braços e pernas. — Caminho com
calma, me apoiando contra a mesa perto de sua cabeceira. Encaro
o teto e toda a decoração do quarto espaçoso. — Eles lutam por
você, brigam e disparam. A família protege. — Sorri de lado. — E
você também protege sua família.
Mas a minha concepção está quebrada, a minha família foi
dividida de um jeito tão injusto que na minha cabeça há mais
dúvidas do que certezas. Eu não sei como deveria ser uma família
de verdade. Matar qualquer ameaça? Lutar com todas as forças
para proteger cada membro?
Ora, é isso o que eu faço, e só meu trouxe dor. E foi isso o
que Yuri nunca fez por mim.
— Viu só? Eu estou falando com a pessoa certa. — Ela
sussurra, finalizando o assunto. — Família é tudo.
As palavras de Atena ecoam em minha mente, mas elas são
expressadas na voz da minha mãe, são as mesmas palavras que eu
a ouvia dizendo para as minhas irmãs:
“A família é tudo. Esse laço é a nossa maior força, meninas.
É o nosso templo. A nossa eternidade.”
Mentir é tão fácil. As palavras só precisam ser ditas com
muito afinco. Katerina era apenas uma mulher falsa e covarde, uma
grande traidora do seu próprio propósito, não há vergonha maior
que essa. Que os deuses a amaldiçoe junto com o seu conceito
ridículo de família.
— Por que essa expressão tão dura, Arcane? Não consegue
relaxar? — A voz de Atena me chama a atenção. Eu pisco algumas
vezes e resmungo limpando a garganta.
— Eu estava pensando. — Sibilo, forçando um sorriso. Ela
percebeu que é falso, seus ombros murcham imediatamente.
Já se passaram algumas semanas desde que me envolvi em
tudo isso, eu ainda estou tentando me adaptar à vida fora da prisão.
Durante a noite, quando deito para dormir, é como se eu ainda
estivesse dentro daquele quarto apertado e as paredes gritassem
como bruxas na fogueira. Eu ainda preciso me acostumar com tudo
ao meu redor. O som dos pássaros, a chuva que não antecede uma
noite de tortura, e a escuridão do meu quarto que não significa que
eu estou naquele lugar.
Atena se tornou uma boa amiga, no entanto. As minhas irmãs
adoram ela. Essa mulher não é igual as outras, ela é uma dama — a
mais famosa e invejada delas, mas ainda assim, não tem uma
conduta prepotente. Atena é uma mulher humilde e gentil.
Encaro-a com atenção, ela está arrumando seus cabelos
diante do espelho, seus lábios fartos estão pintados em vermelho.
Eu me pergunto, que segredos essa mulher pode esconder? Ela
não é diferente dos seus filhos e do seu marido.
Desde que cheguei para trabalhar hoje cedo, eu não ouvi
nada sobre o cadáver estripado nos portões da mansão, ou sobre
prostituta que aquele homem matou. Foi como um acontecimento
fantasma que passou rapidamente. Todos estão agindo como se
nada tivesse acontecido, sem nenhum interesse em investigar
abertamente esse atentado.
Em algumas noites atrás eu vi um grande descarregamento
de armas, elas não foram deixadas no depósito principal como deve
ser feito, e isso é intrigante. Parece que eles estão trabalhando em
silêncio, às escondidas para que mais ninguém saiba.
Durante o dia, eu continuo acompanhando Atena em seus
compromissos e eventos sociais, e puta merda, são muitos. Ela se
comporta como se nada fosse sombrio ao nosso redor, como se sua
vida não estivesse sob ameaça, nem um mínimo comportamento
que entregue seu medo ou receio. Ela está tranquila. Isso me
incomoda, mas eu certamente gostaria de ser indiferente dessa
maneira.
— Arcane! — Ela fala meu nome de maneira insistente e se
volta em minha direção. Seus olhos varrem minha expressão por
breves segundos, então sua expressão amolece. — Em que mundo
você está, querida?
— Perdão? — Eu respiro, descruzando os meus braços.
Porra, eu estou submersa demais em meus pensamentos
aborrecidos. Como eu consigo me perder tão facilmente?
— Conversar comigo é tão tedioso assim? — Ela pergunta
com seus lábios tortos em um meio sorriso.
— Claro que não, querida. — Balanço a cabeça repetidas
vezes em negação. — O que você estava dizendo? — Aponto com
delicadeza para que continue a falar.
— Eu estava perguntando se o vermelho cai bem para o
evento de hoje a noite. — Ela ergue o cabide onde o belo vestido
está montado. Observo o tecido sedoso, ele tem um decote
chamativo e com certeza aperta em suas curvas.
— Nossa. Você gosta mesmo de vermelho. — Volto meus
olhos para o rosto de Atena e arqueio uma sobrancelha. Encaro
seus lábios indicando a cor neles. — Eu não entendo de moda,
mas... — Suspiro, procurando as palavras certas. — O que acha de
uma cor diferente em seus lábios?
Para mim, basta uma calça jeans e uma jaqueta de couro
para ir aonde for necessário. Esse é definitivamente o meu
uniforme. Claro que essa ideia não se aplica aos eventos
daAlkyóna, eu tenho que parecer feminina e inofensiva para atrair
algum pretendente, por esse motivo não coloco meus pés em
nenhum maldito evento.
— Você está falando sério? — Ela arqueja, então se encara
no espelho. — Eu preciso causar uma boa impressão.
Eu tenho certeza que ela está aí faz duas horas. Minha
expressão muda para angústia. Eu só quero ir embora mais cedo.
— Vermelho é perfeito. — Respondo, apenas. — Vai chamar
muita atenção.
Ela estala a língua em negação, mas rapidamente já está
perdida em pensamentos apreciando o vestido encostado em seu
corpo, ela analisa cada parte do corpo com atenção se imaginando
usando. Eu quero revirar meus olhos de tédio, ou chorar como um
bebê infeliz.
Trinco os dentes desejando com todas as minhas forças que
ela decida qual vestimenta usar hoje.
— Você está praticamente subindo pelas paredes com tanto
tédio, Arcane. — Ela fala, me olhando através do espelho, e eu
esboço um sorriso ao colocar as mãos no bolso.
— É porque a senhora está atrasada. — Minha voz soa tão
doce e meiga que ela faz uma careta.
— Bom, definitivamente você é péssima em fingir. —
Comenta risonha. Eu sorri genuinamente. Essa mulher se comporta
como uma adolescente ou é impressão minha? — Eles podem
esperar. Uma mulher só é elegante e poderosa usando uma bela
roupa. — Fala, se voltando para mim. Ela pega lenços umedecidos
e inicia uma batalha demorada para limpar o batom vermelho.
Aperto os olhos sonolentos e afundo de volta contra a
parede. Vez ou outra encaro Atena, seus olhos verdes muito bem
atentos a roupa elegante, então ela larga o cabide no chão e veste
um preto. Eu ri em um suspiro e balanço as mãos em desdém.
— Muito vaidosa. — Reviro meus olhos. — Eu tenho certeza
que ninguém vai se imp...
— Acredite, eles se importam até com um alface no dente. —
Ela me corta rapidamente.
Inclino a cabeça para o lado, dando uma breve risada. Ela me
acompanha, mas logo fica séria.
— Bom, eu também me importaria com um alface no dente.
— Debocho sutilmente. — Você está atrasada, Atena. — Agarro sua
bolsa em punhos firmes. — E eu garanto, não tem um alface no seu
dente, essa roupa é perfeita, então vamos logo?
— Uma mulher nunca está atrasada, Arcane. — Ela me
encara. — Não concorda?
— Bom, no meu caso. — Suspirei com calma. Sendo sincera.
— Minha elegância se resume a essa arma que vai proteger sua
vida. — Levanto minha blusa preta, mostrando a minha arma
guardada. Meus lábios se repuxam em um sorriso cínico. — Somos
duas mulheres diferentes, Atena. Ainda não percebeu isso?
— Você é igualzinha ao seu pai, menina. — Fala, voltando
para o espelho.
— Ah, obrigada! Isso com certeza fez o meu dia! — Desvio
meus olhos dela, piscando algumas vezes. Balanço a cabeça em
negação me reprimindo.
Não consigo definir se isso é algo bom ou ruim, mas Yuri com
certeza abriria um largo sorriso e diria que fez um bom trabalho me
criando, já eu não quero pensar muito nessa comparação infernal.
Depois de mais um tempo observando-se diante do espelho e
refazendo a maquiagem, ela fica pronta. Eu quase lavo as mãos
para o alto agradecendo com fervor. Atena caminha elegantemente,
eu sigo atrás dela com as mãos afundadas no bolso da minha
jaqueta de couro preto. Observo tudo ao meu redor, sempre atenta a
cada movimento. Depois de algum tempo dirigindo pelas ruas da
cidade, chegamos em um dos restaurantes da Alkyóna.
Me posiciono perto da porta, para ficar esperando por ela do
meu lugar, onde eu posso ver qualquer pessoa suspeita e chegar
até Atena a tempo de protegê-la, mas ela me puxa decidindo que eu
vou ficar ao seu lado.
— Você tem certeza? — Resmungo, jogando meus cabelos
para trás. Ela está de queixo erguido me puxando pelo braço. Atena
sequer faz esforço para encarar.
— Claro que sim. — Comenta, sem perder a postura. Porra.
Ela chama atenção por onde passa.
— Com essas roupas? — Encaro meu corpo e balanço os
bolsos dando ênfase, querendo usar isso como pretexto para não
ter que falar com outros seres humanos irritantes. São todas
mulheres de nariz empinado.
— Você mesma disse que somos mulheres diferentes. — Ela
argumenta, sorridente.
— Engraçadinha. — Quase reviso os olhos, mas rapidamente
algumas mulheres acenam em nossa direção. Observo cada um
com atenção, elas se vestem como Atena, completamente
elegantes e adequadas para esse evento. Ergo uma sobrancelha
recuando alguns passos para longe do afeto de Atena, ela me toca
na frente dessas mulheres como se eu fosse sua filha.
Faço de conta que não estou vendo quando as expressões
de algumas mudam, deixando claro que eu pareço uma ovelhinha
perdida do rebanho.
Balanço os ombros e suspiro pesadamente, inflando o peito.
Bom, mal sabem elas que eu sei rosnar como uma besta faminta.
— Essa é Arcane. — Atena apresenta com um sorriso feliz.
— Kalispera! — Aceno com o queixo e caminho até a mesa
espaçosa.
Eu reconheço alguns rostos das esposas de associados
importantes, algumas modelos, e noivas de homens sujos. Elas me
encaram de cima a baixo como se estivessem prontas para
defender seu habitat, a indiferença brilha em seus olhos deixando
claro que eu não sou uma delas, que eu não passo de uma intrusa.
— Que noite agradável. — Sibilo baixinho. Ergo meu queixo
firmemente, sem permitir que esses olhares me afetem. Eu tenho
apenas uma única função, e isso não é sobre elas.
Nos meus lábios se forma um sorriso cínico quando mudo de
lugar de propósito, sentando agora ao lado de Atena, elas ficam
incomodadas com minha indecisão proposital. Eu me inclino
confortavelmente para trás, diferente de Atena, que se comporta
graciosa e elegante fazendo qualquer pessoa se perder em
admiração. Mas, encarando as mulheres diante dela, eu vejo inveja
e cobiça. Observo o quanto são falsas, parecem vampiras sugando
qualquer movimento natural dessa mulher ao meu lado.
— Essa é a filha de Katerina, a traidora? — Ouço uma
cochichar, encaro ela com frieza. Sim, porra, eu sou. — Pensei que
ela estivesse na prisão. — Observo seus lábios batendo. — É uma
assassina, soube que enlouqueceu, assim como todo mundo
daquela família Planard.
Aperto a minha taça, desejando arremessar no rosto dessa
mulher. Ela é linda, puta merda, todas são muito perfeitas. Mas são
apenas uma casca vazia, afinal, todas são podres por dentro.
Consigo perceber a podridão emanando dela como se fosse uma
maldição cruel. Eu abomino cada uma dessas mulheres superficiais.
Desvio meus olhos procurando controle, eu não sou uma
assassina desenfreada. Elas não me fizeram nenhum mal, por que
eu deveria atacar elas? Eu não estou desenfreada.
Sinto a mão de Atena repousar sob a minha em um gesto
reconfortante, eu me esquivo com rapidez e volto a beber
champanhe. Concentro minha atenção apenas nessa bebida ruim.
— Eu consigo ver claramente a semelhança entre mãe e
filha. — A outra cochicha. — Isso é um desrespeito para nós e
nossos maridos. — Faz uma pausa. — Estou envergonhada.
Todo meu corpo congela. Encaro a toalha branca que cobre a
mesa, minha pulsação quente agride meus ouvidos. Enfio a mão no
bolso da minha jaqueta em um gesto brusco procurando meu cantil
com whisky. Essa bebida é a única que pode me torturar, mais
ninguém.
— Arcane mou? — Atena agarra meu braço com um sorriso
afetuoso. Encaro seu rosto, absorvendo a forma carinhosa que ela
falou meu nome. Torço os lábios em resposta, largando o cantil de
volta ao meu bolso interno e juntando as mãos em meu colo.
— Eu vou querer apenas um pão pita. — Limpo a garganta
quando um dos homens vem com um prato cheio de comida.
— Você vai comer apenas um pão? — Atena sussurra.
— Desculpe. — Cochicho de volta. — Eu estou acostumada
apenas com uma refeição por dia.
— Pensei que adorasse cozinhar. — Ela insiste.
— Eu adoro cozinhar, mas não comer. — Balanço a cabeça.
— Quando eu tentei comer mais do que estou acostumada, acabei
passando mal. Melhor não insistir.
— Certo, apenas uma refeição por dia. — Ela balança a
cabeça. Eu sorri gentilmente, mas isso morre quando o burburinho
reinicia.
— Ela parece um peixinho fora do mar. — Pisco algumas
vezes, encarando o pão em meu prato, estou sem a menor vontade
de comer. — Ela não sabe nada sobre regras de etiqueta, ou como
ser feminina.
Respiro pesadamente, considerando a melhor forma de ser
torturada até o final desse evento. Sem dúvidas vou continuar
bebendo whisky. Eu me esquivo da mão de Atena em meu ombro e
puxo o cantil, me apoiando na parede mais próxima, já que nossas
cadeiras estão posicionadas perto das janelas de vidro. Viro a
bebida de uma vez, sem me importar com a atenção das pessoas
ao meu redor.
— Não acredito que essa sem vergonha está fazendo isso.
Ela está bebendo como um homem descontrolado e sem nenhum
respeito. — Uma delas dá risada. — Deve ser tão vadia quanto a
mãe, uma existência tão covarde e desnecessária… Mãe louca, pai
louco. Ela não passa de um rato. — Ergo meus olhos para a mulher
loira, ela me encara diretamente nos olhos.
Um rosnado feroz escapa do meu interior, eu estou apertando
a faca de cortar pão com força, giro em sua direção, enquanto
minha cabeça libera uma adrenalina tão deliciosa que eu só penso
em cortar sua garganta.
— Você é uma prostituta de atenção? — Questiono. Meus
lábios se repuxam no meu melhor sorriso cínico, elas me encaram
chocadas, como se eu fosse louca.
A loira ergue o queixo em desafio, estando confiante que sua
vida é mais importante que a minha, e que por esse motivo eu não
posso fazer nada além de me submeter as suas palavras baixas.
Vejo quando a outra, a morena, desvia os olhos como se não
tivesse dito absolutamente. Ela me ignora como se eu não estivesse
aqui. Tão medrosa.
— Não dê ouvidos, Arcane mou. — Ouço Atena falar próximo
ao meu ouvido. —Você é muito mais que um rato. — Ela sussurra,
meu corpo imediatamente relaxa.
A raiva ainda faz meu coração pulsar, porém, eu solto a faca
cuidadosamente no prato. Encaro minha comida intocada.
— Como você consegue ser amiga de víboras? — Olho para
Atena. Estamos sussurrando, assim como as outras. — Elas são
todas mulheres tolas e convencidas.
Uma pena que eu não posso matá-las. Respiro fundo,
encarando o meu prato de comida novamente. Sinto meus dedos
trêmulos, assim como minhas pernas. Meu estômago aperta e eu
sinto vontade de vomitar.
— Eu não sou amiga delas, e estou aqui para que não tratem
você assim. — Atena sorri sutilmente. Ela conserta sua postura,
como se fosse a própria deusa que ela porta o nome. — Senhoras,
vocês não sabem ainda? — Ela olha para o rosto de cada uma.
— Arcane é a pretendente de um dos meus filhos mais
velhos. — Eu engasgo ao ouvir suas palavras. Simplesmente não
sinto o chão debaixo dos meus pés. Meu sangue congela
agressivamente.
— Quem? Que filho? — Questiono, minha voz trêmula pela
respiração pesada.
— Ela vai se casar com Kalon Somáli. — Atena fala. —
Fizemos um acordo inquebrável com Yuri Planard. — Tenho que me
inclinar minimamente em sua direção para ouvir e enxergar melhor.
Isso saiu mesmo da sua boca?
Minha vista escurece quando eu me afasto com lentidão, eu
não ouço mais nada, percebo apenas as mulheres falando com
firmeza. Algumas estão chocadas me encarando. Nada penetra
meus sentidos, minha expressão é de puro espanto e horror.
— Então, quero que saibam que ao estarem falando dela,
estarão falando da minha pessoa e do nome da minha família. —
Ela disse cada palavra com firmeza e autoridade. Encaro Atena
como se estivesse prestes a vomitar em seus pés. Porra, eu
realmente estou.
— Está brincando, Atena? — Sussurro baixinho, minha língua
atropelando as palavras.
Sinto a mão de Atena apertar a minha em um conforto frio,
minha cabeça está completamente atordoada com suas palavras
que queimam como o diabo em seu inferno. Eu não sou pretendente
de ninguém. Eu estou nesse maldito lugar apenas para salvar a pele
de Atena. Que merda está acontecendo?
Encaro Atena querendo gritar em seu rosto, aperto meus
lábios engolindo toda a minha insatisfação. Ela disse Yuri. Engulo
cada sentimento, tornando minha expressão fria. Toda a minha
postura fica tensa e de repente eu me sinto mais alta, esboço o meu
melhor sorriso para todas elas e me ergo com rapidez.
— Para onde vai? — Atena pergunta. — Fique conosco.
— Eu preciso encontrar Yuri Planard. — Sibilo por cima do
ombro.
— Aposto que ela ficou com vergonha. — A mulher loira fala.
Porra, tinha que ser tão irritante?
— Eu juro arrancar sua língua e comer, já que é uma cadela
tão louca por atenção. — Chuto a cadeira em que eu estava
sentada, as outras mulheres gritam alto, em espanto.
Eu avanço em sua direção pegando a faca que eu estava
usando e firmando com força em seu prato, ao ponto de dividir a
louça em dois.
— Pense nisso na próxima vez em que destilar seu veneno.
— Sussurro. Um suspiro medroso escapa da sua boca, isso me faz
gargalhar em satisfação. É bom que elas tenham medo de mim. Isso
é muito bom. Pois eu nunca serei uma vadia abominável como elas
são.
Vou embora ignorando tudo ao meu redor, meus passos são
firmes quando eu caminho em direção ao maldito diabo encarnado.
Não acredito que Yuri fez isso comigo.
09. AGAPI MOU
“Bata, e ele vai abrir a porta. Desapareça, e ele vai fazer você
brilhar como o sol. Caia, e ele vai levantá-la para os céus. Torne-se
nada, e ele vai transformá-la em tudo.”
— RUMI.

Cada passo ríspido que ecoa pela casa escura demonstra o


tamanho da minha insatisfação. Meu ódio parece ranger como uma
porta empenada, ecoando ruidosamente de dentro do meu peito.
Eu seguro um rosnado quando paro diante da porta do
escritório de Yuri, aperto os punhos quando sinto um impulso
incontrolável de chutar a porta. Toda essa raiva parece uma tortura,
isso é o que me faz sorri, pois eu sou boa em resistir a tortura. Eu
tenho a resistência dos deuses.
Engulo em seco, me inclinando para abrir a porta em uma
calma fingida. Caminho pelo cômodo, Yuri está em pé, de costas
para mim, o cheiro do seu charuto invade o lugar. A fumaça é
liberada lentamente enquanto ele encara a propriedade através de
sua janela. — Yuri! — Sibilo seu nome cheio de superficialidade.
Espero que ele tenha uma boa explicação para as coisas que
eu ouvi de Atena. Ele sabe que eu estou aqui, mas ainda assim
prefere se comportar como se tivesse todo o tempo do mundo,
deixando claro que tudo gira em torno apenas de si mesmo. Ele gira
em seu calcanhar e arqueia sua sobrancelha.
— Agapi mou. — Yuri libera as palavras no mesmo tom de
voz que eu usei.
Ele gesticula para que eu diga alguma coisa, meus dentes
trincam ao observar como ele faz isso, como se estivesse
expulsando um cachorro pulguento. Yuri descansa a palma da mão
sob a mesa. Encaro seu anel de obsidiana por um bom tempo
enquanto organizo meus pensamentos.
— Pensei que você não ia vir. — Ele aperta os olhos. —
Demorou tanto. — Ele resmunga de um jeito velho e ruidoso.
Então ele já sabe que eu descobri. Cerro os dentes antes de
qualquer palavra pronunciada, eu encaro seus olhos me controlando
para não avançar em seu pescoço.— Eu quero saber o motivo de
Atena estar falando por aí, para suas companheiras, que eu irei me
casar com o filho dela.
As palavras parecem uma piada saindo da minha boca, eu
reconheço isso desde que ouvi aquela mulher falando com tanta
convicção. Yuri ri muito alto como se compartilhasse do mesmo
humor negro.
— Porra. Foi muito bom ouvir isso. — Ele continua rindo. Meu
coração se expande em raiva, apoio a palma aberta sob a madeira
fria e escura da mesa, tomando um impulso silencioso até ficar com
meu rosto próximo ao de Yuri.
— Todos nós sabemos, papai. Que essa não é a verdade. —
Sussurro. — Eu não vou me casar com ninguém.
Eu estive pensando nisso por muito tempo, meu objetivo é
apenas cumprir essa maldita missão que ele me deu, e então
conseguir a minha liberdade e a das minhas irmãs. Isso é um preço
justo considerando todos os meus anos de servidão sangrenta.
— Pois é, mas as coisas mudam tão depressa. — Ele bate a
ponta do charuto no cinzeiro e volta a sugar como a porra de um
viciado. — Eu entrei em um acordo melhor com o chefe, agapi mou.
— Ele fala com descaso e irrelevância. Sua voz soa metálica pela
fumaça que sai de sua boca.
Tenho asco da forma submissa que ele fala sobre Ivan, como
se o homem tivesse lhe feito uma lavagem cerebral e sua vida
sempre será em honra desse verme irreverente e cruel.
— Eu vi a oportunidade de casar seu filho, um dos herdeiros
mais desejados da Alkyóna... — Ele balança os dedos como se
estivesse tocando piano. — Com uma das minhas filhas. A que tem
menos valor, a que deve ficar calada e não ser um incômodo,
porque ela é suja demais para dar qualquer palpite. Está claro que
você é uma criatura incapaz de tomar conta da própria vida, então
eu estou tomando as melhores decisões por você.
Ele me observa esperando para ver qual será minha reação
diante de suas palavras humilhantes, eu mantenho a respiração
estável e sequer pisco, enquanto o observo tão perto que consigo
sentir o cheiro de fumo. No entanto, o meu coração explode e ruge
como um animal enjaulado.
— Você sabe... — Ele continua falando quando eu não
esboço nada. — Uma filha que já tem conhecimento completo sobre
como as coisas funcionam por aqui. — Ele aponta em minha
direção. — Você, minha filha... Infelizmente mostrou muito cedo que
é inútil e um fardo para qualquer desígnio, que você é uma pedra no
sapato que eu não consigo me livrar. — Ele sorri com humor ácido.
— Então, eu achei a posição perfeita para limpar a sua
existência insignificante, devia me agradecer, isso é um favor
imenso que eu espero que me retribua com eterna gratidão. — Seu
polegar desliza por minha bochecha até que ele aperta meu rosto
com força e autoridade. — Prove que você é mais que isso.
Suas palavras trovejam para dentro da minha cabeça, ele me
larga e gesticula preguiçoso. Minha garganta fica seca e eu preciso
fazer um esforço doloroso para engolir em seco. Eu sinto um nojo
profundo por Yuri que não consigo me livrar sem que eu vomite.
— Eu sou uma assassina, papai. — Sussurro baixinho. Odeio
chamá-lo assim, mas preciso demonstrar respeito ou perco a língua.
— Sou quebrada demais para ser uma noiva.
Doeu pra caralho conseguir falar com tanta calma. Meus
ombros tremem e eu continuo falando para que ele não perceba.
— Faz cinco anos que eu matei alguém. — Conto nos dedos.
— E sim, eu fui o principal motivo para a sua queda e vergonha
dentro da Alkyóna. — Suspiro pesadamente antes que um gemido
choroso escape. — Mas eu refiz a sua reputação aceitando todos os
tipos de punições e treinamento dentro da prisão, eu mostrei
arrependimento e aprendi com meu miserável erro, papai. — Aponto
para meu peito. — Eu fui lapidada, não há mais nada para provar,
me deixe ser livre. — Sussurro.
Fico em silêncio encarando o homem que deveria ser meu
pai e me amar. Uma risada ríspida sai da sua boca. O som grave
chicoteia as paredes, uma risada igual a que ouvi quando Theo
morreu, leva tudo de mim para me controlar e não reagir com
agressividade ao seu descaso.
— Por favor, agapi mou. — Ele arqueja, balançando os
ombros em espasmos. — Não se humilhe tanto assim, senão vou
começar a acreditar que todos esses anos não serviram de nada. —
Ele pede em um suspiro, seu dedo aponta em minha direção.
— Veja só, com você se casando com Kalon os negócios
ficarão mais fáceis para mim. — Ele aponta para si mesmo com
tanto orgulho que seu peito infla. — Não se preocupe com o resto,
você vai poder continuar com sua vidinha medíocre de assassina. —
Ele me encara.
Controlo minhas reações para não dar mais munição contra
mim.
— É só isso que preocupa você? Não seja por isso, eu sei o
quanto você ama matar e se satisfaz com isso. Eu sei como você é
desenfreada e suja. — Sua boca se enche de desprezo. Odeio a
forma como ele distorceu minhas palavras e usou contra mim. Ele
sorri com tanta gentileza que meu estômago se revira. — Não se
preocupe, meu bem. Ele não vai impedir a sua dependência. Ele
não vai parar a besta que você é. No mínimo, ele é o único homem
no mundo que vai tolerar você.
Minhas narinas se dilatam, meu corpo estremece com tanta
raiva e dor. A incredulidade brilha em meus olhos, e ele sorri
apreciando o seu efeito sobre mim. Eu sinto um nojo profundo me
dissolver como ácido, Yuri fala como se eu fosse uma assassina
compulsiva por escolha minha, ele me trata como se eu fosse
doente e depravada. Porra, e ele faz isso tão bem que começo a me
questionar se realmente não sou.
— Isso não é justo. — Inclino a cabeça para o lado quando
as palavras saem embargadas. Arquejo baixinho sem desviar meus
olhos dos seus.
Eu quero gritar na cara de Yuri que foi ele quem me tornou
essa criatura, foi ele quem me obrigou a matar e destruir. Eu nunca
pedi por isso. Tudo que eu sempre quis foi ser livre.
— Vai choramingar, Arcane? — Ele rosna, se inclinando
prestes a me atacar. — Você foi criada para choramingar? — Sibila,
ameaçador.
— Eu não quero me casar com ele. — Sussurro de forma
cuidadosa, de uma forma tão casual e limpa de qualquer resquício
de emoção, que fico assustada com meu controle.
Ele relaxa contra o assento, me observando de cima abaixo
com atenção, sua expressão é sombria e cautelosa.
— O bom, Arcane mou, é que você não tem querer. — Ele
une as mãos. — E que nada nesse mundo é justo. — Completa
cuidadosamente. — Você ainda não aprendeu?
— A minha função é matar. — Sussurro. — Você me deu só
uma função. Apenas uma. — Minha insistência faz meu estômago
embrulhar.
— E agora eu estou dizendo outra coisa. Porque eu posso
mandar. O poder é meu. — Ele dá de ombros em reclamação. Eu
estremeço sentindo meu coração se encolher. — É a sua obrigação
me servir e obedecer. — Ele sibilou fortemente apontando o dedo na
minha cara. — Você me deve isso. — Acusou. — Pelo que você fez.
Você vai se casar pelo que você me deve, pelo que tirou de mim. —
Seu tom de voz soa mais duro e firme. Por breves segundos, eu
estremeço de medo.
— Ouça uma coisa, você deveria ser grata por estar tendo
essa oportunidade estando na sua posição miserável! — Vocifera.
— É uma bênção dos deuses, pois a única coisa que você merece é
passar o resto da sua vida jogada em alguma cela sendo torturada
lentamente como um animal no matadouro para pagar por tudo que
fez!
Eu engulo suas palavras como se fossem cacos de vidro, me
cortando de dentro para fora. O asco me sufoca. Mas eu não serei
fraca, não diante desse homem, ele não merece a minha fraqueza e
minhas lágrimas.
— Eu vou encontrar um jeito. — Sibilo. Ele me encara de
sobrancelha arqueada. — Eu vou encontrar uma forma de me livrar
desse casamento, Yuri. — Sussurro seu nome em tom de ameaça.
— Você vai voltar atrás.
Ele ri com diversão e começa a sugar seu charuto
novamente.
— Você devia beijar os meus pés. — Reclama. — Olhe só
pra isso. Ainda está reclamando. Sua insistência me dá nojo. — Ele
engasga com a fumaça. — Que desperdício. — Balança a cabeça
em negação e aponta para a porta sem me dar muita importância.
— Agora por favor, saia daqui. Está atrapalhando o meu trabalho. —
Ele balança as mãos para me expulsar do cômodo.
Eu tomo um fôlego profundo, reunindo forças para caminhar.
Cada passo faz a minha mente pulsar e estremecer. Fecho a porta
em um gesto automático e caminho pelo corredor com um olhar
vago e transtornado. Eu não presto atenção a nada. Um grande
vazio se revira dentro do meu peito e eu quero vomitá-lo antes que
me mate. Eu sinto como se minha vida tivesse acabado. Eu me
sinto sem saída e soterrada pela crueldade do meu próprio pai. Não
há como fugir disso.
Fecho os punhos e a revolta me atinge como uma adaga,
quando estou prestes a chutar a parede, uma voz me chama do
outro lado.
— Arcane? — Melissa está falando comigo. — Que
expressão é essa? Parece que viu o deus do submundo. — Eu
pisco algumas vezes, sentindo uma dor sufocante quando a frieza
abandona a minha mente.
— Me-melissa? — Gaguejo. Agora estou quebrada diante
dos seus olhos, como se tivesse voltado a ser sua irmãzinha caçula
com medo de ficar sozinha.
— Ei, o que foi? — Suas mãos me puxam com força. Tenho
um sobressalto e viro o rosto para encarar melhor os seus olhos. —
Vamos fazer aquele exercício de respirar fundo? — Eu faço com ela,
com o tempo tudo em meu campo de visão volta ao foco, deixando
de estar embaçado, os sons silenciosos da noite preenchem os
meus sentidos.
— Não consigo. — Eu choramingo de um jeito feio e
engasgado.
— Consegue. — Ela aperta minhas bochechas. — Vai. Você
está tremendo. — Respiro fundo quase ofegante e morrendo por
não conseguir controlar meus pulmões.
Me afasto para longe dela, choramingando alto e quase
gritando. Cambaleio algumas vezes quando percebo que na
verdade estou indo em direção ao jardim, eu sequer percebi quando
meus pés me trouxeram até aqui.
Eu tropeço até sentar em um banco, preciso da liberdade que
o ar livre me proporciona para eu enxergar que não estou na prisão.
Todo o meu corpo esquenta em uma dormência dolorosa, o fogo
lentamente consome a minha mente e me deixa perplexa quando eu
recobro a consciência.
— Eu preciso de ar. — Resmungo para Melissa, percebendo
que ela ainda está aqui, sinto minha pele formigando e trêmula.
— Tudo bem. Respire. Continue e não pare. — Ela avança
em minha direção, colocando as mãos em meu ombro como se
pudesse aplacar o meu coração partido, como se pudesse segurar o
meu colapso.
— Não me toque. — Todo meu corpo encolhe e eu grito
deitando pesadamente no banco de pedra. Meu corpo balança em
um choro feio.
— Meu amor, você está me deixando tão preocupada. —
Ouço Melissa suspirar trêmula. — Eu estou nervosa. — Ela toca
meu ombro, acariciando de um jeito tão agradável que eu resmungo
procurando por conforto em duas pernas. Ela me ajuda a deitar a
cabeça em seu colo e começa a fazer carinho em meus cabelos.
— Eu estou com medo. — Minha voz é áspera e dói pelo
entrave na garganta. — Você conhece alguém que vive com tanto
medo quanto eu?
— Não conheço. — Ela balança os ombros, respirando de um
jeito trêmulo. — Mas também não conheço ninguém mais corajosa
que você.
Giro meu rosto, que estava escondido entre sua barriga, para
o alto. Observo seu rosto e o brilho das estrelas acima da sua
cabeça. É uma noite fria e linda, apesar de tudo. Meu peito está tão
inchado com esse sentimento que eu penso que vou explodir.
Ergui meus dedos até estar acariciando o rosto de Melissa,
ela faz o mesmo e beija minha mão.
— Eu juro que nunca vi uma loirinha tão linda e inteligente
quanto essa. — Faço piada quando sinto vontade de chorar. Porra,
suas palavras anteriores me afetaram. Meu coração aquece com
seu conforto. — Você é o meu fim. — Acrescento.
— Bobinha. — Melissa ri, então se inclina esfregando a ponta
do seu nariz no meu. — Você é tudo na minha vida. Você e Nimue.
Então por isso, me diga o que Yuri falou pra você ficar tão abalada.
— Seus olhos não escondem a preocupação. Eu me ergo para ficar
sentada.
— Melissa… — Meus olhos se enchem de lágrimas. Eu
procuro falar, mas um gemido choroso escapa. Meus ombros
balançam e eu escondo o rosto com a palma da mão. — Ele disse
que eu tenho que me casar, e eu não quero isso… — Um soluço
escapa junto com as palavras cheias de angústia e desespero.
Aperto minhas bochechas desejando que tudo isso seja apenas um
sonho.
Melissa me puxa e todo meu corpo é aquecido pelo seu, ela
faz isso como se pudesse me sustentar para sempre. Eu fecho
meus olhos, vibrando em um gemido sufocado por ainda segurar o
choro. Eu não posso chorar. Eu me agarro com força ao redor de
Melissa e sussurro baixinho:
— Ele disse que eu vou me casar com Kalon Somáli. —
Gaguejo procurando os olhos de Melissa. — Desde quando
assassinos podem se casar? Eu não fui quebrada o suficiente? —
Soluço. — Até quando vou continuar passando por isso? Eu estou
com medo... Aquele homem vai destruir a minha vida.— Aperto sua
roupa como se isso pudesse me salvar do meu destino.
Ela me olha em choque, a ponta do seu nariz está vermelho,
assim como seus olhos. Melissa está ofegante e tão surpresa
quanto eu fiquei.
— Ai, meu amor. — Ela geme chorosa. — Eu sinto muito,
Ane. Eu sinto muito. — Ela beija minha testa enquanto chora junto
comigo. Melissa acaricia meus cabelos, adentrando seus dedos por
minha nuca e me apertando contra seus braços.
— Certo, me ouça, Arcane. — Ela procura por meu rosto e
afasta meus cabelos bagunçados. — Você é a mulher mais forte e
audaz que eu conheço. E eu ainda digo mais, você é mais forte do
que qualquer pessoa da Alkyóna. — Uma lágrima escorre por sua
bochecha. — Mais forte do que eu e Nimue, entende? Você é a
minha irmãzinha caçula que sempre vivia me desafiando e rasgando
minhas coisas. — Aponta para meu peito. — Você não está sozinha,
não deve ter medo desse casamento, Arcane. Eu prometo que essa
é a última coisa que pode aprisionar você.
Ela desliza seu polegar por minha bochecha, então, sua testa
se encontra com a minha e ela me beija mais uma vez.
— Um casamento não chega nem perto de enjaular você. —
Ela sussurra com convicção. — Você também não precisa fingir ser
forte o tempo inteiro, está tudo bem sentir medo e chorar por isso.
Chore o quanto quiser, meu amor.
Suas palavras me deixam mais forte e consolada, o amor de
Melissa faz eu sentir esperança e meu coração bate por isso de
uma maneira visceral.
— Eu preciso dar um jeito nisso, Melissa. — Sussurro.
— Ouça, Arcane. — Ela pede, segurando meu rosto. — Você
sobreviveu à prisão. Com dezesseis anos você passou pelo pior,
nem os deuses te dariam o castigo que você teve. — Ela me
encara. — Você foi transformada injustamente nessa assassina que
está em meus braços. — Eu fecho meus olhos e Melissa me aperta
com força. — Eu não sei que glória traz esse fato colocado em seus
ombros. Nem para que serve. — Completou. — Mas eu enxergo
isso como a demonstração de sua força e resistência. Você não se
rende. Você é uma guerreira. — Sussurrou mais baixo. — Um
casamento não é nada em comparação a tudo que você já passou,
e eu prometo ser capaz de matar todo mundo para salvar você caso
não exista outra saída.
Sua voz calma preenche os meus sentidos assim como o
farfalhar pesado das árvores do jardim. Eu ainda observo Melissa
em silêncio. Não sei o que dizer ou como agradecer por suas
palavras, mas isso me conforta tanto.
— Você me ouviu? — Ela beija minhas pálpebras. Eu balanço
a cabeça repetidas vezes em concordância.
Eu também não sei se estou preparada para tudo que vem
com essa mudança, pronta para me casar e ser uma Somáli. Porra.
Essa é a pior parte. Eu não quero ser um deles.
— Eu vou dar um jeito. — Eu preciso fazer algo para não ser
amaldiçoada e quebrada por aquela família. Desvio meus olhos. —
Eu posso dar um jeito nisso também, nem que eu faça um pacto
com o maldito Hades.
10. PAPAI É UM MONSTRO
“Abra a sua mão se quiser que o outro a segure.”
— RUMI.

Eu quero escapar desse casamento, mas não vejo saída.


Estou condenada. Como alguém vence uma luta feroz e agressiva
contra as montanhas? Como alguém enterra o mar Egeu com suas
próprias mãos? Pois bem, é impossível. Você se torna tão impotente
que a rendição parece um alívio. É assim que eu me sinto toda vez
que lembro da decisão que Yuri fez. Se ele não pode me amar como
filha, então eu quero matá-lo.
Eu e minhas irmãs passamos semanas procurando uma
maneira de escapar desse casamento, mas apenas quebramos a
cabeça com uma coisa impossível. No entanto, a sorte sorriu para
mim quando eu consegui rastrear um dos inimigos mais antigos de
Yuri. O homem que destruiu sua vida, matou sua mãe e ele nunca
conseguiu vingança. Sim, eu encontrei a porra do meu avô para
barganhar por minha liberdade.
Faz uma semana que estou perseguindo seus passos e
tentando descobrir onde ele se esconde. Eu descobri tudo isso
sozinha e ainda não compartilhei com minhas irmãs. Nosso avô se
chama Anton, um ucraniano que fugiu da prisão e criou um império
sujo desse lado do oceano. Ele vive esse tempo inteiro em Kas,
uma pequena vila piscatória na Província de Antália na Turquia. O
homem está vivendo com um sultão, a cidade está localizada no
mar mediterrâneo e leva apenas meia hora de barco até chegar na
ilha grega de Castillo Rojo. Ou seja, ele esteve esse tempo inteiro
bem debaixo do nariz de Yuri e nunca foi encontrado. Mas eu estou
fazendo essa loucura.
Consegui um informante depois de ameaçar sua família e de
entregar seus crimes para a polícia, foi através dessa ameaça que
ele me contou que o velho Anton está em solo ateniense para
monitorar um descarregamento grande de lotes roubados da
Alkyóna. O homem é como um sanguessuga procurando o ponto
fraco de Yuri a fim de derrubá-lo com uma estratégia perfeita.
Minha respiração está pesada ao ponto do meu corpo tremer,
eu estou completamente ensopada e isso arranca alguns palavrões
da minha boca. Está chovendo desde às seis da manhã.
— Porra. Tão pegajoso. — Faço uma careta ao sentir a
quantidade de água que está dentro das minhas botas. Vou precisar
de novas.
O ponto de encontro fica em um dos templos de Atenas. Isso
é muita ousadia da parte deles. O lugar é a céu aberto, e tudo que
me esconde são as inúmeras colunas espalhadas pela montanha.
Bom, tudo um dia desaba e é corrompido, não seria diferente com
esses lugares sagrados.
Tenho duas armas em mãos, estou pronta para matar esses
homens e conquistar minha liberdade. Quando eu dei a notícia para
Yuri, ele sorriu e até mesmo beijou meu rosto prometendo fazer a
sua parte. Ele pediu pela cabeça do meu velho avô, então ele vai
ter. Essa é a vez dele ser eternamente grato a mim.
O lugar fica há quilômetros da cidade, e eu tenho que admitir,
esse é o ponto perfeito para uma grande transação de mercadorias
ilegais. Toda a estrutura é tão alta que quando ergo meus olhos para
o alto, vejo apenas as colunas em continuidade dentro da escuridão
chuvosa.
Olho ao redor, sentindo meu coração batendo forte quando
vejo as luzes da cidade tão distante e em expansão. Fico admirada
com essa vista, as luzes brilham mostrando como há milhares de
pessoas com suas vidas e histórias lá embaixo. Enxergo-os como
deuses de suas próprias vidas, mesmo que alguns sejam
desacreditados da capacidade que tem para desbravar o mundo e
conquistar suas paixões. Somos milhares de pequenos deuses
causando tempestades, transformando tudo que tocamos em pó,
inclusive nós mesmos.
Estamos em Partenon, o templo que domina toda a colina da
Acrópole. Esse templo é considerado o mais antigo do mundo, e o
mais perfeito. Sua estrutura está quase toda intacta como na época
em que foi construído. Dedicado à deusa Atena, esse é o centro da
vida religiosa, ele era o maior e mais luxuoso templo que o
continente grego já viu. Até mesmo o chão em que eu piso é
revestido de mármore. Claro que em sua época, esse monumento
era decorado em ouro, agora é apenas uma marca no tempo. Um
lembrete de que até os deuses podem cair e virar pó. Partenon
resistiu a terremotos, incêndios, guerras, explosões e saques, mas
ainda permanece, embora danificado, um poderoso símbolo da
Grécia antiga e da cultura ateniense. Ele possui noventa e duas
métopas esculpidas. As métopas são blocos quadrados colocados
entre blocos de tríglifos de três canais que adornam as paredes
externas do Partenon.
As métopas do lado oeste retratam a Amazonomaquia, uma
batalha mítica entre as Amazonas e os gregos antigos. Mulheres
fortes encarregadas de aplacar a fúria dos homens e trazer a paz,
guiando nossos corações para um único propósito: o amor. O grito
de guerra delas, cheio de liberdade e bravura, é capaz de derrubar
qualquer frágil coração. Elas nasceram para serem reverenciadas.
As métopas do lado leste mostram Gigantomaquia, batalhas
míticas entre deuses e gigantes. Todas as lendas, poemas e
canções falam sobre o dia em que todos ajoelharam diante das
façanhas dos deuses, beijando o solo como se estivesse beijando
as mãos deles. É um fato consumado que todo coração que bate no
mundo sempre reverenciou a existência de algum deus, pois essa é
a nossa natureza. Mas pouco se fala sobre essa batalha.
A maioria das métopas do lado sul mostra Centauromaquia, a
batalha dos centauros míticos com os lapiths; um grupo de pessoas
que viveram na Tessália. Os centauros sempre foram criaturas
superdotadas, com a sabedoria dos deuses calçando até mesmo
seus pés firmes. Eles sempre foram criaturas civilizadas que
amavam os deuses acima de todas as coisas. Nenhum humano
chega aos pés daqueles guerreiros inteligentes.
E as métopas do lado norte retratam a Guerra de Tróia, onde
o lendário Aquiles derramou sangue e gritou como um herói que
nunca conseguiu ser feliz, pois o fardo é doloroso demais. Até
mesmo depois de anos eu poderia ouvir como uma canção os seus
gemidos de lamúria e batalha, o seu nome glorioso que vibra como
lanças arremessadas ao vento.
Isso é genial. Nenhuma autoridade desconfia que uma
transação criminosa está acontecendo aqui, em um lugar histórico e
até sagrado para outros. As luzes fortes instaladas sob o chão me
permitem observar tudo ao redor, e assim eu encontro um bom lugar
para me esconder quando ouço homens conversando há alguns
passos à frente, acompanhado do som ruidoso de caixotes sendo
abertos.
— Veja, chefe. Roubamos essa carga ontem que alguns
homens de Yuri estavam transportando. — Sua voz parece distante
quando a chuva aumenta.
— Maravilha, irmão! — O outro cara fala alegremente.
— Podemos empilhar. Vai render muita grana quando a gente
misturar com as da semana passada. — O homem cujo o nome é
Kemal também é um dos alvos.
Ele é o braço direito do meu avô, e segundo Yuri, manteve
sua mãe em uma gaiola desde que ele veio ao mundo. Eu me
pergunto se meu pai não me ama por causa das coisas que passou
na infância, ou pelas coisas que eu fiz. Agora que conheço esse
fragmento do seu passado, fico me perguntando onde ele se tornou
tão monstruoso e indigno de amor, ou se ele sempre foi assim.
Respiro, sentindo fisgadas gélidas em meu coração
palpitante. Me escondo atrás de uma outra coluna e fecho os olhos
desejando que não tenham me percebido, quero que seja fácil matar
cada um deles. Coloco em minha cabeça que estou fazendo um
favor não apenas para Yuri, mas para todas as pessoas que
passaram e foram quebradas pelas mãos desse homem. Eu não
costumo sentir nada por meus alvos, nem pena, nem medo ou
receio, mas isso tem potencial para se tornar pessoal já que se trata
do avô que vou conhecer pela primeira vez para fazer seus olhos
fecharem eternamente.
Começo a contar até três, então me inclino dando o primeiro
disparo. Rapidamente o corpo de Kemal tombou para trás
manchando o chão com seu sangue. Antes que os outros consigam
me ver, eu já estou misturada com o escuro tendo a coluna como
proteção. Os homens, em pleno desespero, começam a gritar
ordens e atirar para todos os lados.
— Malditas botas encharcadas! — Resmungo entre dentes
incomodada com o peso delas, eu acabo escorrendo quando tento
alcançar a próxima coluna.
Um homem cai por cima de mim, entramos em uma batalha
desajeitada, um rosnado agressivo escapa da minha boca quando
mordo sua orelha só ponto de arrancar um pedaço. Sangue espirra
por minha face, o gosto quente e metálico me causa ânsia. O
homem está gritando como uma criancinha, mas o som é silenciado
quando eu finalizo sua vida atirando em sua cara.
Pulo, abandonando minhas botas malditas. Alguns homens
começam a atirar em minha direção.
— Vocês são tão barulhentos quando estão com medo! —
Reviro os olhos. — Venham aqui, venham.
Com minha faca eu finalizo os que se aproximaram, estou
poupando munição caso apareçam reforços. A chuva fica cada vez
mais forte e minha respiração acelera, pois estou cheia de raiva.
Avanço com firmeza, desviando no último segundo de um tiro que
passa de raspão por meu ombro. Quando ouço o som de mais
corpos se colidindo no chão, eu começo a correr derrubando um
cara, usando uma das armas do chão. Ele grita de horror quando
vou para cima, na satisfeita com sua morte lenta, e abrindo sua
garganta com minha faca.
O sangue molha o chão e é levado pela água da chuva.
Caminho na ponta dos pés até os lotes roubados. Nessa altura eu
nem devia estar me importando com todo esse roubo, mas gosto de
fazer um bom trabalho. Todo esse armamento devia estar no porto
em direção aos aliados turcos.
— Muito bem, velho. — Falo sozinha tentando juntar tudo em
uma única caixa. —Estou salvando sua pele mais uma vez. —
Cuspo as palavras, esfrego os pés no chão para tirar o excesso de
sangue. — Deveria beijar meus pés. — Imito seu tom de voz
grotesco e balanço a cabeça com diversão.
Eu escorrego para trás quando um tiro acerta meu ombro. O
impacto me faz chacoalhar e gritar raivosa. Eu me apoio no caixote
e ergo minha arma.
— Ei!! — Vocifero. Os olhos de Anton estão arregalados
enquanto me encara.
— Quem é você? — Ele fala e eu pisco algumas vezes. Sua
voz é quase idêntica à de Yuri.
— Você atirou em mim? — É tudo o que eu digo. — Agora
isso virou pessoal. — Um chiado escapa da minha boca. Eu avanço
em sua direção quando sua munição acaba, o homem cambaleia e
larga a arma como se fosse brasas.
— Eu acho que você já está velho demais para ser um
grande filho da puta. — Eu aponto minha arma para seu joelho e
efetuo dois disparos. Ele cai de bunda gritando tão alto que quase
fico com pena.
— Você é parecida com ele. — Sua voz sai engasgada e
chorosa. — O maldito diabo colocou uma filha no mundo. Que
grande pecado contra os filhos de Deus é a sua existência, criança.
— Ele cospe quando eu fico de cócoras na sua frente. — Você devia
atirar na própria cabeça para se livrar dessa maldição.
— Ah, então você me reconhece? — Eu ri, erguendo uma
sobrancelha. — Isso está começando a ficar divertido.
— O mundo seria um lugar melhor sem o seu pai e essa raça
de demônios. — Ele me encara com nojo.
— Que estranho. — Inclino a cabeça. — Você faz parte da
raça que tanto abomina, vovô.
— Nunca. — Ele engrandece os olhos e engasga. — Meu
maior erro foi não conseguir matar o merdinha do seu pai quando
tive a chance. Se eu tivesse… Sua maldita raça de demônios não
teria proliferado. — Ele aponta com o nariz para mim.
Certo. A conversa acabou. Me levanto, estanco meu ombro
com a mão livre, e a outra eu uso para atirar em seu peito até que
seu corpo se revira no chão. O silêncio da morte dança pelo templo.
Está feito.
Mudo o ângulo do seu pescoço quando deslizo a ponta da
faca por sua garganta, sinto arrepios com o som de nervos e ossos
se desfazendo até que sua cabeça bate no chão em um barulho
molhado e oco. Sangue escorre por minhas bochechas. Vou até
Kemal, o braço direito de Anton, e arranco sua mão.
A pior parte é que eu preciso me livrar da minha jaqueta pra
empacotar os membros. Porra, eu amo essa jaqueta e agora ela
está pingando sangue enquanto caminho. Coloco o caixote sob o
ombro machucado. Estou voltando para casa a pé, mas antes que
eu alcance as primeiras ruas, um carro preto estaciona e a porta se
abre.
Os pés de Yuri surgem, então seu corpo por completo, ele me
encara sem nenhuma expressão quando abre o guarda chuvas e
me cobre com ele.
— Você cheira a morte e pecado, agapi mou. — Seu olhar
corre por meus ombros descobertos. Sua boca aperta minimamente
ao ver o machucado em meu ombro.
— Então eu estou com seu perfume. — Devolvo o insulto.
— Não fique aí me olhando como um cachorrinho que caiu da
mudança. — Em um gesto despreocupado, Yuri retira seu sobretudo
e coloca sob os meus ombros. Tenho um sobressalto com seu gesto
rápido e um pouco afetuoso. — Não quero você sujando o meu
carro. Agora entre. — Ele muda sua expressão e rapidamente mata
essa fagulha que acendeu.
Com cuidado eu me acomodo no banco de trás, em um
movimento elegante e rápido, Yuri já está sentado ao meu lado e me
encarando com uma expressão fria.
— O que é isso em seu ombro, agapi mou? — Ele ergue uma
sobrancelha. Seu julgamento me causa náuseas.
— Foi de raspão. — Limpo a garganta. — Eu estava distraída
e…
— Ah, que cabecinha de vento. — Ele ergue o dedo
indicador, me silenciando. Fico horrorizada quando pensei ter visto a
sombra de um sorriso em sua boca, mas ele está me olhando tão
feio que eu só posso estar delirando. — Poderia ter sido fatal, já
pensou? Eu escrevendo na sua lápide “morta por uma grande
besteira”. — Ele estala a língua, me desaprovando.
Fico em silêncio encarando minhas mãos sujas de sangue.
Eu realmente estou cheirando a morte e pecado, isso deixa minha
perna tremendo. O carro se movimenta debaixo da chuva intensa e
parece uma eternidade até que estacionamos na mansão Somáli.
— O que estamos fazendo aqui? — Pergunto, olhando para
Yuri.
Ele me encara atenciosamente, meus ombros e meus
cabelos pingando. O homem aperta os lábios e me puxa pelo braço,
apertando o sobretudo até que saímos fora do carro.
— Mantenha sua postura e esconda essa vergonha em seu
ombro. — Ele aponta para o ferimento. Pisco algumas vezes.
Quando seu segurança me espreita por trás, eu não tenho
outra escolha senão caminhar atrás de Yuri. Minha confusão apenas
aumenta quando ele entra comigo pelas portas do fundo, usando
um tipo de passagem que eu nunca imaginei que existia. Não
demorou muito para abandonarmos a grande escadaria e entrarmos
em um escritório escuro.
— Entre, Yuri. — Uma voz ordena. Eu reconheço Ivan Somáli
do outro lado. Quando minha presença é revelada, o homem se
inclina com entusiasmo. — Trouxe Arcane? Que surpresa.
A única visão que eu tenho de Yuri são suas costas largas,
mas ele acena com os dedos atrás das costas para eu me
aproximar.
— Como prova da nossa lealdade a sua família, meu amigo.
— Yuri fala cheio de devoção. — Ela matou o homem que roubou e
prejudicou nosso trabalho com o tráfico de armas durante todo o
mês. — Fico inquieta, ele está realmente barganhando por minha
liberdade?
O segurança de Yuri colocou o caixote no chão, eu tomo
espaço para abrir minha jaqueta. Sangue pinga no chão quando
exibo a cabeça e a mão.
— Anton e Kemal! — Yuri encara a cabeça de Anton com
uma expressão neutra, então pisca olhando para Ivan. O homem
está encarando os dois membros em completo silêncio.
— Seu pai, meu amigo? — Ivan aponta para a cabeça de
Anton.
— Certamente. — Yuri balança os ombros com desinteresse.
Minha mão molhada ergue até meu rosto, retirando algumas
mechas de cabelo do meu campo de visão. Arquejo pesadamente
podendo respirar sem meu cabelo grudando no rosto. Observo tudo
ao redor, inclusive Yuri. Esse homem é tão sombrio que me causa
arrepios.
— Você fez tudo isso sozinha, Arcane mou? — Ivan
questiona. Eu uni as sobrancelhas sem compreender.
— Sim, fizemos um acordo e eu cumpri minha parte. —
Balanço a cabeça em concordância.
Ele me observa em silêncio, seus olhos varrem meu corpo
completamente molhado e sangrento, a jaqueta empapada, o chão
vermelho, o cheiro pesado e forte.
— Está feito. — Eu repito, erguendo o queixo e sentindo
algumas gotas de água e sangue pingar dele. — Agora quero a
minha parte.
Yuri ergue seu olhar severo, como uma besta vê sua caçada.
Ivan ri muito alto e meu pai pisca. Estamos em silêncio assistindo o
chefe dar risada da minha cara.
— Você é engraçadinha igual seu pai... — Ele toma fôlego. —
Cumprir o quê, exatamente? — Sua risada continua. Alta, firme e
insistente, penetrando meus ouvidos. Minha expressão muda para
desprezo.
Aperto meus dentes com ódio. Yuri me enganou, inferno.
Usou meus feitos para alimentar seu ego. Eu devia ter adivinhado
que ele não iria tão longe por mim. Eu aperto os punhos enquanto
ouço a risada de Ivan diminuir até cessar.
— A sua parte já foi cumprida, Arcane mou. — Ivan sibila,
unindo as mãos uma na outra. — Entenda, meu bem. Você vai se
casar com meu filho, vai ter uma vida tranquila, me dar netinhos…
— Ele aponta para toda a bagunça que eu fiz. Para toda a matança.
— Isso aqui… Hoje foi a última vez. Você provou que não precisa
continuar matando. — Ele encara Yuri balançando a cabeça em
concordância. — Também provou que nossos laços de lealdade são
inquebráveis.
Ele sorri tão amável que meu estômago se revira. Eu suspiro
pesadamente, minha garganta está queimando e eu preciso gritar
toda a minha raiva.
— Agora você é da família. — Ele acena orgulhoso.
— Eu não quero me casar. – Minha voz está trêmula e
ofegante. — Ninguém vai me obrigar a isso.
Ivan gira a cabeça, um silêncio perturbador dançando no
escritório, ele me observa como se tivesse nascido uma segunda
cabeça em mim.
— O que disse? – O homem sibila.
— Eu disse… — Yuri limpa a garganta em algum lugar. Ivan
rosna mais alto e desfere um tapa em meu rosto. Minha cabeça gira
e estremece. Minha visão fica turva por alguns segundos, mas me
recupero no momento em que Yuri respira pesadamente tendo a
realização do que Ivan fez.
– EI! — Ele grita tão assustador e grande que eu me encolho.
O homem avança para cima de Ivan como se uma força
sobrenatural o dominasse. Todo o seu corpo está inclinado na
intenção de estrangular Ivan Somáli. — Ninguém machuca a minha
menina, está entendendo? Não se atreva a tocar em Arcane, não se
atreva! — Seu dedo em riste está apontado para o rosto do velho.
Foi necessário seu segurança particular e outros dois para
segurar Yuri, impedindo-o de pisotear Ivan com sua fúria implacável.
— Está bem. — A expressão de Ivan fica sombriamente
quieta. Ele me encara como se estivesse enxergando tudo
claramente, então gira seu rosto para Yuri e balança a cabeça em
concordância.
— Sugiro que controle a língua da sua filha, ou eu mesmo
arranco-a fora. — Ivan aponta o dedo para Yuri.
— Sugiro que mantenha sua mão longe da minha criança, ou
eu mesmo arranco-a fora. — Yuri aponta o dedo para Ivan.
Os dois travam uma batalha silenciosa e cheia de fúria.
Minha bochecha queima e uma lágrima escorre lentamente,
fazendo-me engolir um soluço.
— Ela vai casar com Kalon. Agora que Anton está morto, nós
dois temos um acordo, meu amigo. Você me dá parte do poder e
território, Arcane ajuda Kalon na investigação para encontrar o
homem que ameaça Atena e os dois lados saem ganhando. — Yuri
abre os braços e sorri. — Mas ouça bem, nessa vida Deus me deu
apenas três meninas. – Ele balança os dedos. — Três. Eu criei cada
uma sozinho e ensinei muitas coisas, e eu estou dando uma delas
para seu filho. — Ele aponta o dedo. — Uma coisa sou eu machucá-
la, outra coisa é algum homem miserável ousar quebrar a minha
criança. — Ele aponta para seu próprio peito. – Dá trabalho fazer
uma Planard, e ela não foi feita para sofrer nas mãos de um homem.
– Debocha.
Yuri caminha em minha direção, suas mãos atrás das costas,
meu olhar se ergue conforme seu rosto fica próximo ao meu.
— Kalon Somáli é o único homem capaz de tolerar a sua
existência. — Ele aponta o dedo para meu rosto. Sinto seus dedos
frios raspar minha bochecha e arrancar uma lágrimas que escorreu.
— Coitadinha. — Ele sibila. — Aceite esse casamento de uma vez e
pare de me dar dor de cabeça. — Ele desliza o polegar
agressivamente, apertando outra lágrima que escorre.
— Ótimo. — Ivan paira atrás de nós, ele sorri tão satisfeito
que eu aperto os lábios desejando segurar o vômito. — Fez um bom
trabalho criando suas filhas, meu amigo. Isso me alegra muito.
Como o assunto está resolvido e encerrado, podem ir. Nos
encontramos em breve. — Os dois são víboras, um completa o
outro. Estão no mesmo nível de imoralidade e crueldade. Eu os
odeio.
— Até mais, velho amigo. — Os lábios de Yuri se repuxam
em um sorriso cínico.
Ele me empurra, apertando meu ombro machucado, eu
sufoco um gemido quando começamos a caminhar lado a lado. Sua
raiva agride minha pele. Depois de três minutos dirigindo para longe
da mansão Somáli, Yuri gira seu rosto em minha direção com uma
expressão ameaçadora.
— O que eu disse pra você, porra? — Vocifera. — Isso é jeito
de tratar seu futuro sogro? Você é louca? — Ele agarra meus
cabelos e eu aperto os olhos. — Você só pode ser doente. — Cospe
as palavras em um ruído ameaçador.
Eu balanço a cabeça de um lado para o outro quando ele
sufoca meu pescoço. A expressão assassina em seu rosto me
assusta.
— Você me decepcionou demais, chorona. — Ele sibila, me
olhando de cima a baixo. Seu rancor brilha em seus olhos.
— Você me usou e me enganou. — Eu resmungo, reunindo
tudo que tenho de coragem para enfrentá-lo. — Impressionante
como você me entristece, Yuri.
Seus olhos brilham, ele inclina a cabeça para o lado e repuxa
sua boca em uma expressão fria e fingida de choro. Ele está
debochando de mim, fazendo uma careta e choramingando.
— Eu não me importo. — Ele balança os ombros olhando
para a janela. — Você tirou uma coisa de mim no passado, agora
estou fazendo o mesmo com você, agapi mou.
Eu engulo suas palavras. Ele está tentando me culpar pelo
que aconteceu naquela Páscoa Sombria. Eu ainda lembro da
maneira furiosa com que ele correu dentro do fogo para nos salvar.
Lembro do sentimento de desamparo que me dominou quando
decidiram me jogar naquela prisão.
O restante da viagem até em casa foi feita em silêncio. Yuri
foi o primeiro a sair depressa quando o carro estacionou. Faço o
mesmo, caminhando até meu quarto.
— Arcane? — Tenho um sobressalto quando ouço Nimue me
chamando. Elas estão do outro lado do corredor usando roupas de
dormir. — Estávamos esperando você voltar. — Nimue torce o nariz
vendo o sangue por toda parte.
— De que inferno você veio? — Melissa pergunta tão
assustada quanto Nimue. — Você está machucada?
Meus lábios se repuxam em um sorriso ríspido.
— Ah, você nem imagina... — Balanço as mãos, espirrando
sangue no chão.
11. UM ENCONTRO
“A antiga história de amor entre a alma e o coração regressa
sempre em vestes renovadas.”
— RUMI.

Estou caminhando com as mãos no bolso da minha nova


jaqueta. O cheiro novinho de couro me alegra profundamente, é
viciante como uma droga. Mas a raiva pesa meu estômago ao saber
quem está me esperando. Eu tenho algum tipo de encontro com
Kalon Somáli.
Esbarro em alguém quando dobro a esquina, mãos fortes me
equilibram cuidadosamente.
— Você caiu do céu? — Um sorriso preenche meu rosto ao
reconhecer sua voz.
– Ai meu Deus! Pavlos! — Não pensei muito, eu apenas pulo
em seus braços. Estamos gargalhando no meio da rua enquanto as
pessoas caminham.
— Para onde você está indo com tanta pressa? – Ele
pergunta, imediatamente olhando ao redor. — Onde está a loirinha?
Claro que ele não consegue ficar sem pensar em Melissa.
Meu sorriso se alarga e eu faço graça.
— Não sei, talvez com outro? — Coloco uma mecha atrás da
orelha. — Eu estou indo comer alguma coisa, estou no meio de um
expediente.
– Não brinque com isso. — Seu rosto muda para choque. Ele
fica vermelho e eu gargalhei mais alto.
— Estou brincando. Melissa começou a trabalhar em um
abrigo de animais durante a tarde, agora que terminou a residência.
Foi o papai quem encontrou esse emprego com o veterinário
Andriolatou. — Eu escondo a parte em que Yuri quer convertê-lo a
Alkyóna. — Eu te passo o endereço, caso queira fazer uma
surpresa. — Sussurro para Pavlos.
Estamos na porta do restaurante chique. Nós nos afastamos
de perto da porta, ficando agora perto das vidraças, na intenção de
não atrapalhar as pessoas.
— Ah, minha querida! — Pavlos segura meu rosto com tanta
felicidade que foi impossível não gargalhar. — Você está salvando
minha pele, porque estou pensando em pedir ela em namoro hoje.
— Ai meu Deus! Eu quero estar lá e ver tudo! — Eu pulo em
seus braços. Minhas mãos apertam seu ombro e foi necessário eu
ficar na ponta dos pés. Esse homem é um gigante.
— Podemos passear de iate depois. — Ele beija minha
bochecha. — Quero apresentar a vocês minha vinícola e família,
então combine com Nimue para nos encontrarmos.
— Você tem um iate? — Pergunto chocada.
— Claro que sim. Eu sou grego. — Ele pisca. — E trabalho
em uma empresa de pesca, lembra?
— Engraçadinho. — Eu escondo meu rosto, envergonhada.
Seu telefone toca, nos afastamos para ele atender.
— Oi, meu amor. — Eu reviro os olhos sabendo que é
Melissa do outro lado. — Você não vai acreditar em quem encontrei
perto do parque.
Não ouço o que ela está dizendo, mas meu sorriso aumenta
imaginando sua expressão. Pavlos me puxa, abrindo a câmera e
fazendo uma selfie de nós dois. Eu coloco a língua pra fora e mostro
o dedo do meio. Descobri que adoro selfies.
— Achei você, sua pestinha! — Melissa grita do outro lado.
Nós não tivemos tempo de conversar durante a manhã, eu saí de
casa primeiro que todo mundo.
Eu ri mais alto, escondendo meu rosto no ombro de Pavlos.
Estamos em uma chamada de vídeo agora.
— Ah, não sou eu não! — Pavlos está rindo comigo.
Mas meu sorriso morre ao me sentir observada. Todo meu
corpo fica frio como a porra de um iceberg quando vejo os olhos de
Kalon nos assistindo dentro do restaurante. Ele está sentado em
uma mesa com vista para fora, seus olhos estão focados na mão
que tenho ao redor da cintura de Pavlos. Ele tem uma expressão
assassina ao encarar meu rosto de volta. Puta merda, Kalon não
pode saber sobre esse relacionamento de forma alguma. Se Yuri
descobrir, seremos mortos.
Eu desvio o rosto, fingindo que seu olhar não me afetou. Meu
coração bate desenfreado e minhas mãos trêmulas soltam Pavlos.
— Pavlos, precisamos ir ou vamos nos atrasar. — Eu
sussurro, segurando sua mão e puxando-o para longe da calçada
onde quem está no restaurante consegue nos ver.
Ele me olha unindo as sobrancelhas em confusão, Melissa
ainda está do outro lado. Mudo minha expressão para que ela não
perceba meu pânico.
— Tudo bem. — Ele concorda olhando ao redor com
desconfiança. — Eu te ligo mais tarde, Mel. — Ele joga beijos para
minha irmã e desliga. — Algum problema, Arcane?
— Sim, um grande problema. — Eu falo apavorada. — Minha
chefe vai me demitir se eu não chegar com seu almoço logo. —
Aponto para o restaurante.
O olhar de Pavlos suaviza, isso indica que ele acredita em
minhas palavras. Estamos mentindo para ele sobre quem realmente
somos, mas é a única forma de ninguém se machucar dentro desse
relacionamento. Pavlos é um bom amigo e namorando para Melissa,
eu nunca vi minha irmã tão feliz e sonhadora. E na verdade, ele é a
única pessoa que eu consegui virar amiga depois do que fiz naquela
prisão. Ele se tornou importante, seu estilo de vida faz eu me sentir
uma garota normal, e a forma como ele me trata faz eu me
desconectar do meu lado assassino e sombrio.
— Depois eu te ligo para dizer como foi o pedido. — Ele
sussurra. Um sorriso dança em meus lábios e eu beijo sua
bochecha.
Fico parada assistindo Pavlos atravessar a rua e entrar no
seu carro. Aceno quando ele buzina em despedida. Minhas pernas
travam quando eu vejo Kalon parado do outro lado da rua. Seus
lábios estão apertados como se estivesse formigando para me
agarrar e me arrancar alguma informação. Mudo minha expressão
para indiferença e vou ao seu encontro.
— Suas bochechas estão vermelhas. — Minha respiração é
roubada por alguns segundos quando seus olhos furiosos se
encontram com os meus. Ele inspeciona meu rosto.
— Bom dia para você também, Sr. Somáli. — Eu falo
educada.
Kalon abre a porta do restaurante para eu entrar, passo por
ele, que me assiste como se eu estivesse nua ou como se quisesse
me bater até desmaiar. Eu juro, ele está explodindo ao meu lado.
— Você demorou. — Ele fala gravemente e aponta para que
eu me sente ao seu lado.
— Sim. Eu sei. — Isso é tudo o que eu digo. — Eu tenho uma
ótima notícia para você. — O encaro de cima a baixo. — O mundo
não gira ao seu redor.
— Infelizmente não. — Ele suspira profundamente, cruzando
os braços diante do peito e estalando a língua em reprovação. Seu
dedo gira até a entrada. — Quem era o homem que você estava
praticamente subindo em cima?
Certo, claro que ele iria perguntar, mas não vou esboçar
medo ou insegurança. Eu posso facilmente controlar essa situação
e não falar sobre Pavlos.
— Um homem. — Sussurro. — Muito bonito, por sinal. Que
responde ao meu bom dia como um verdadeiro cavalheiro.
A expressão de Kalon se fecha como se eu fosse matá-lo
bem aqui, mas uma ideia melhor surge na minha cabeça; eu posso
fingir que já tenho alguém e dessa forma ele pode esquecer esse
casamento e me deixar em paz. É loucura, mas preciso usar
qualquer coisa a meu favor. Essa guerra ainda não acabou.
— Pelo visto você gosta de brincar com o perigo. — Ele me
analisa profundamente. Ainda há raiva em seus olhos, mas também
outra coisa que não consigo decifrar.
— Você também. — Repito, em um tom baixo. Memórias
invadem minha cabeça da noite em que o vi naquele quarto.
Ficou gravado em mim os traços do seu corpo, sua
expressão raivosa quando alcançou seu ápice e a maneira como
seu abdômen contraiu quando ele apertou seu pau e ficou
manchado com as evidências do que estava pensando ao me
encarar. Aperto minhas pernas. Minha garganta está seca.
— O que você está encarando? Pare com isso, a não ser que
queira fazer alguma coisa a respeito. — Kalon balança uma perna,
percebo que em meio aos pensamentos o meu olhar caiu para seu
colo. Pisco algumas vezes, desviando o rosto com rapidez.
— O tamanho do seu ego. — Meus lábios se repuxam em um
sorriso agressivo.
— Meu ego? — Seu dedo indicador bate contra sua coxa
duas vezes.
— Seu ego é grande demais para caber em um lugar
pequeno. — Aponto para seu colo. — Então suponho que esteja
acumulado na sua cabeça, e isso está enlouquecendo você. —
Respiro fundo. — Fazendo você delirar e blefar na minha frente.
Eu me surpreendo com o que acontece em seguida. Kalon
Somáli simplesmente inclinou a cabeça para trás e gargalhou. Um
som que pulsa por minhas veias e agride meu peito. Seus ombros
balançam graciosamente. Seus olhos estão apertados e ele está
relaxado enquanto sufoca cheio de animação. As pessoas até
mesmo param para ver o que está acontecendo aqui. Algumas
mulheres se animam enquanto salivam por sua atenção.
— Porra, você é boa. — Ele me observa como se eu fosse
arte. — Espero que você não dê motivos para isso, então. – Ele
aponta para a porta. — Não é uma boa ideia me deixar louco.
Eu não digo nada. Eu aceno para alguém trazer minha
comida, como eu estou acostumada a comer aqui não foi necessário
que viessem até minha mesa. Kalon já tinha pedido o seu.
— Eu quero o de sempre. — Falo.
Volto meus olhos para Kalon, ele está me observando com
uma sobrancelha arqueada, a profundidade no seu olhar me deixa
incomodada. Ele parece faminto de alguma coisa que a comida não
é capaz de satisfazer. Meu olhar viaja para seu corpo, seus
músculos estão perfeitamente apertados em uma jaqueta de couro
parecida com a minha, encaro suas mãos sob a mesa e analiso os
traços de algumas tatuagens em seus dedos. Ele também tem
algumas perdidas por baixo da roupa. Muitas delas, até o pescoço.
Seus olhos verdes não param de me encarar. Meu coração
erra as batidas toda vez que nos encaramos acidentalmente.
— Você é minha, então termine com ele. — Porra, ele
consegue me irritar na mesma proporção em que rouba meu fôlego.
Percebo que ele está bebendo whisky em grandes goles, como se
estivesse transtornado.
— Eu não sou sua. — Reclamo, incomodada.
— Eu vou colocar uma aliança em seu dedo. — Ele insiste.
— Então você é minha, sim.
Controlo minha língua quando minha comida chega. Uma
enorme porção de batatas fritas, com um pouco de carne e salada
grega. Essa é a minha primeira refeição do dia.
— Então esse é o pedido de sempre? — Seus olhos brilham
de curiosidade. Uno as sobrancelhas quando seu corpo se inclina
em minha direção. — E o homem? Também é o de sempre? Me
diga o nome dele.
—Fique longe dele. — Minha ameaça sai mais raivosa do
que eu esperava. Meu sangue está fervendo e Kalon mantém um
sorriso satisfeito.
— Você nutre afeto por ele. — Não foi uma pergunta, e sua
voz saiu zangada. — Está decidido, vou matá-lo ainda hoje.
— Você vai continuar com isso? — Ergo meus olhos.
— Estou esperando você me oferecer um pouco. — Sua voz
muda para um tom carinhoso. Eu odeio como isso causa reações ao
meu estômago. Com certeza é a fome.
Empurro o prato para o centro da mesa, ele experimenta com
curiosidade e rapidamente a sua atenção se perde na comida. Se
eu soubesse que seria tão fácil calar sua boca teria pedido uma
porção maior.
— Isso é bom. É aquele estilo de comida americana. — Ele
está surpreso. Seus olhos me encaram rapidamente, mas logo ele
volta a comer.
— Sim. Muito bom. — Eu sorri de lado.
Me inclino para comer, ignorando sua presença. Meu
entusiasmo murcha dentro do meu peito apenas por saber quem ele
é. Eu não quero pensar no fato de que daqui alguns meses estarei
casada com esse homem, isso me parece uma maldição. Eu sequer
sinto alguma coisa por ele.
Não o conheço de verdade, sei apenas dos boatos sombrios
que me fazem rejeitá-lo mais ainda.
— O que você acha desse casamento? — Pergunto, tomada
pela curiosidade.
— Muito sexy. — Ele responde encarando meus seios, seu
olhar sobe lentamente para meu rosto. — E feroz.
Eu largo a comida perdendo o meu apetite. Pelo visto é
impossível ter algum diálogo sério com esse homem.
— Quando você está pensando… as suas sobrancelhas
ficam levemente franzidas. — Kalon me arranca dos meus
pensamentos. Eu pisco algumas vezes. Ele está me observando
esse tempo todo? — Isso deixa a sua expressão mais rígida. — Ele
suspira, me apreciando. Seus olhos verdes causam fisgadas em
meu peito. — Tão cheia de raiva, Arcane. A raiva deixa você mais
linda. — Ele acrescenta.
Seu olhar é preguiçoso. Eu balanço a cabeça em negação,
rindo fraco.
— Acredite, você não é a primeira pessoa que me diz isso. —
Essa foi a forma que encontrei de bloquear seu elogio descarado.
Imediatamente sua expressão fica sombria.
— Já pensou no que Yuri pode fazer se descobrir que você
tem um amante? — Merda do caralho.
— Você vai contar? — Pergunto, interessada em uma
resposta.
— Não, porque se ele souber, o acordo é quebrado e você
está morta. — Ele balança a cabeça. — Então termine com ele ou
eu o mato.
Desvio o rosto quando ele se inclina até sua face ficar muito
próxima da minha, ao ponto do seu cheiro me possuir. Ele cheira a
pecado e perigo.
— Você é mais cafajeste e abominável do que eu pensava.
— Sibilo.
— Então eu estou em seus pensamentos, meu amor? — Ele
infla o peito e me lança um sorriso desavergonhado. Cerro os
dentes quando percebo o que ele está fazendo. Que flerte idiota.
— Estou apenas cumprindo o maldito trabalho escravo. E
isso inclui prosseguir com a maldita investigação ao seu lado. — Eu
me levanto, adotando um tom profissional. A visão de Kalon fica
desfocada quando ele me acompanha como um telespectador
viciado em seu programa favorito. — Precisamos ir agora.
Eu preciso ficar longe dele o máximo possível, essa conversa
apenas prova que não vamos funcionar juntos.
— Você não vai se livrar de mim tão fácil, meu amor. — Todo
meu corpo dói de um jeito estranho quando suas palavras
manhosas me atingem. Ele pode até foder com a minha
concentração por ter esses olhos tão verdes, mas ele
definitivamente não será meu dono.
— Apresse-se, Kalon Somáli. — Cruzo os braços,
escondendo a visão que ele tem dos meus seios. Estou tão
transtornada que vou queimar essa maldita regata quando chegar
em casa.
— O que acha de começar a me chamar apenas de Kalon?
— Ele se ergue e encara minha bunda de um jeito tão profundo que
minhas pernas ficam pesadas. Me afasto quando sinto ele tão perto,
e isso é ameaçador.
— Certo, Kalon Somáli. — Sibilo humorada, começando a
andar na frente. — No inferno eu serei sua esposa.
Ele me alcança rápido e aponta para seu carro. Eu tenho que
admitir, é uma boa máquina. Ele abre a minha porta e eu deslizo
para o lado do passageiro. Faço de conta que ele não está no
volante e observo as ruas da cidade, aprecio o vento em meu rosto.
Foram cinco anos longe de casa e vivendo como uma máquina de
guerra, eu nunca pude respirar profundamente e descansar, mas
essa é a primeira vez que eu consigo fazer isso enquanto aprecio a
cidade.
— Os tempos mudam mas Atenas continua a mesma. —
Ouço a voz de Kalon do outro lado. — As ruas dessa cidade sempre
estão cheias de movimento. É fascinante quando a pessoa certa
consegue enxergar isso. A beleza. — Ele me encara. — Você gosta
do que vê? — Ele parece surpreso com a minha trégua. Meus olhos
procuram pelos seus.
— Um pouco. — Resmungo. — O que você quer dizer com
“pessoa certa”? — Mantenho meu olhar em seu rosto esperando
uma resposta. — Que tipo de pessoa seria essa?
— Uma amante. — Ele responde, seus olhos se voltam em
minha direção.
— Amantes são dormentes e embriagados pela paixão. —
Balanço a cabeça em negação. — O que eles enxergam não é a
verdade.
— E o que você consegue ver? — Ele pergunta baixinho. —
Quando você encara as ruas da cidade e de repente, por
milissegundos, seus olhos não esboçam raiva e sua postura não
está tensa. — Eu sei que ele está me olhando sem que eu esteja
olhando para ele.
— Quando seus muros baixam por breves momentos que
você nem percebe. Quando não há nenhuma defesa revestindo
você... Apenas o seu coração batendo, Arcane. — Meu coração
bate forte dentro do peito ao ouvir a maneira como ele está me
analisando. — O que você enxerga?
Eu vejo a liberdade me chamando. Penso em dizer, e as
palavras estão na ponta da minha língua, mas eu as seguro
temendo que se quebrem quando eu falar. Eu aperto os olhos e
balanço a cabeça em negação.
— Eu não consigo ver nada, como você me explica isso? —
Eu sussurro. — Eu não tenho olhos para essas coisas. — Falo por
fim, desejando encerrar essa conversa.
— Você vê alguma coisa, meu amor. — Ouço ele falar depois
de um tempo. Eu ergo meus olhos sem compreender o que ele está
dizendo. — Todos têm olhos, mas alguns de nós, em alguns
momentos da vida, temos nossos olhos mergulhados nas trevas. E
não conseguimos ver a luz do sol e a liberdade.
Liberdade. Será que é isso que ele vê também?
Suas palavras ficam em minha cabeça pelo restante do
caminho, meus olhos se fecham, ele já não me observa mais.
Tempo depois, nós chegamos em um beco mais afastado da cidade.
Todo o lugar tem uma aparência escassa, e aquela sensação de
relaxamento rapidamente deixa o meu corpo.
— O que vamos fazer exatamente? Você me espera e eu
vou? — Questiono para Kalon, esperando que ele diga ao menos
que tem um plano.
Estamos aqui porque eu consegui um informante, ele não
revelou muita coisa sobre sua vida, mas estava disposto a
compartilhar o motivo principal para a família somali estar sendo
ameaçada.
Saio do carro começando a andar pela rua de pedra, Kalon
segue atrás de mim em silêncio. Eu afundo as mãos no bolso da
minha jaqueta e o observo por cima do ombro, porra ele está
fazendo o mesmo. Seus olhos se encontram com os meus e suas
sobrancelhas se unem de surpresa. Meu corpo balança e eu encaro
o chão, não suportando a intensidade do seu olhar e o que isso me
causa.
— Seu informante que Yuri comentou, ele sabe que você
trouxe seu homem? — Eu engasgo e encaro seu rosto. Kalon
sequer pisca.
— O que você está dizendo? — Minhas bochechas ficam
vermelhas.
— Se você vai casar comigo, significa que… — Eu não deixo
ele terminar suas palavras, estou queimando o suficiente.
— Ele não sabe e você não é o meu homem. — Falo firme.
Ele ri friamente, balançando os ombros em um gesto
relaxado. Seus olhos se erguem para o alto como se ele estivesse
se segurando para não resmungar alguma outra coisa.
— Por mais que eu adore o seu charme, nosso tempo de
flerte acabou. — Ele avança na minha frente. — Se você veio
acompanhada, seu precioso informante não vai chegar por se sentir
ameaçado e podemos ser emboscados a qualquer momento.
Ele se aproxima de alguns homens mais a frente, são
moradores comuns desse bairro, eu caminho atrás dele sem
compreender o que está fazendo. Kalon pergunta pelo nome que o
informante me deu, ele porta tranquilidade e elegância enquanto fala
com pessoas normais e inocentes. Pelo ambiente e semblante das
pessoas assustadas, e pela maneira como alguns se escondem
atrás de suas janelas, é notável que essa parte da cidade é
dominada por alguma gangue agressiva. Essas pessoas estão com
medo e não é de nós. Todo o lugar está silencioso e emana perigo.
Vez ou outra Kalon me procura por cima do seu ombro, como
se para ter certeza que eu não vou desaparecer. Caminhamos em
direção ao lugar que o homem orientou e fica perceptível que
estamos perto do eixo onde toda essa bagunça é controlada, cada
passo astuto é como o deslizar de uma serpente. Kalon parece estar
preparado para qualquer coisa, ele não tem medo, e sempre
mantém a tranquilidade.
Ele está concentrado em tudo, inclusive em mim, tomo
certeza disso quando eu me distraio com alguns desenhos na
parede e ele me chama em um tom carinhoso.
— Fique perto de mim, Arcane. — Ele estende sua mão em
minha direção. — Venha, os cachorros estão agitados, eles podem
atacar. Não sabemos o que pode surgir nesse lugar. — Ele não está
me olhando, está concentrado no caminho de pedra que estamos
percorrendo nessa rua estreita.
Eu aceito sua mão porque estou nervosa. Seus dedos
rapidamente entrelaçam aos meus como se fosse comum me
segurar. Sua mão é muito maior que a minha. Algo dentro do meu
peito grita pra eu ir embora daqui imediatamente.
— Esse lugar me incomoda muito, Kalon. — Sussurro,
deslizando minha mão por suas costas até que estou protegida
atrás dele. Minha preocupação apenas aumenta quando as pessoas
fecham as janelas como se o diabo estivesse entre nós. — Meu
estômago está pesado. — Aperto sua camisa.
— Venha aqui. — Kalon suspira pesadamente e volta em
minha direção. Seus olhos varrem os meus e quando ele se
aproxima para falar algo, um disparo explode pelo lugar.
Ele me empurra com força até que estou contra a parede,
minha cabeça bate no concreto e minha visão fica turva, um gemido
de dor escapa dos meus lábios.
— Porra, amor. Fique quieta e não faça nada. A gente vai sair
daqui. — Todo o seu corpo está me protegendo, seus dedos
deslizam por meus cabelos acariciando a região onde eu bati a
cabeça. Minha respiração está pesada.
Eu sou uma assassina mas ainda tenho medo daquilo que
não consigo prever. Estamos enfrentando um inimigo que eu não
esperava encontrar aqui, e isso me assusta porque não tive tempo
de estudá-lo antes. Ainda existe o fato que estamos em minoria e
desprevenidos, sem reforços e sem uma área de proteção em meio
ao tiroteio. Tudo que me protege é o corpo de Kalon me
pressionando contra a parede como se minha vida dependesse
disso. Espalmo seu peito e sinto seu coração batendo desenfreado.
— Eu posso ajudar. — Insisto, tentando alcançar minha arma.
— Puta merda. — Ele pragueja firmemente contra meu
ouvido. Sua respiração está trêmula contra meu pescoço. — Você
só precisa ficar aqui, Arcane. — Ele sussurra, atirando com a mão
livre.
— Vamos acabar morrendo. — Levanto meu rosto. Quando
eu encontro minha arma, me afasto dele com cuidado, mas ainda
estando abrigada pela parede que recebe a maior parte dos tiros.
Começo a devolver com intensidade e Kalon contorna minha cintura
com uma mão.
— Eu vou ficar mais tranquilo se eu for na frente. — Ele
aponta por cima do ombro me devolvendo a retaguarda.
— Não tem como sair daqui a não ser matando eles. —
Observo o beco estreito e sem saída.
Afundo contra a parede quando percebo que eles podem nos
cercar. Foi uma péssima ideia vir apenas em dois, estamos em
desvantagem.
— Fique aqui e não faça barulho. — Meu peito sobe e desce
em respirações profundas, o barulho aumenta e Kalon dá dois
passos para longe de mim, atraindo eles apenas para si. Ele parece
dar conta sozinho, cada tiro é certeiro, vejo corpos caindo de seus
lugares calculados, vejo sangue e gritos.
— Deus do céu... — Murmuro, agoniada com a enrascada
que nos envolvemos. Eu ignoro as ordens de Kalon e começo a
atirar agora que estamos derrubando os mais letais. — Precisamos
encontrar uma maneira de avançar.
Três homens avançam atirando com armas mais fortes que a
minha, a adrenalina domina o meu corpo em tremores quando uma
série de tiros vem em minha direção.
— Arcane, saia daí. — Kalon rosna, ocupado com um homem
atirando em sua direção. Eu sou mais rápida e certeira com as
minhas facas, e sempre prefiro usar elas, mas agora não dá pra
fazer isso com tiros vindo de todas as direções.
Quando um único homem está de pé, eu avanço em sua
direção derrubando seu corpo e usando a faca em minha bota.
Meus golpes fazem o sangue espirrar em meu rosto. Um barulho de
tiro me faz cambalear para longe do homem engasgando com seu
próprio sangue.
Kalon está apoiado contra a parede e recobrando o fôlego,
seu rosto brilha em choque quando me vê ajoelhada no chão.
— Porra! — Ele corre me segurando pela cintura. Tudo em
mim queima como o inferno, eu ainda nem melhorei do meu ombro
e já estou com outro tiro para aguentar.
— Segure em mim e abra os olhos. — Kalon não deixa sua
arma de lado quando me dá apoio com a lateral do seu corpo. A dor
me faz gemer e sentir dor ao ponto de querer desmaiar. —
Precisamos sair daqui antes que mais deles apareçam, você precisa
se esforçar. — Ele rosna.
— Eu vou sobreviver. — Sussurro quando ele tenta
pressionar minha coxa. — Deixe isso. — Kalon me ignora, ele retira
sua jaqueta e aperta minha perna.
— Não precisa disso. — Eu rejeito com firmeza. Procuro uma
forma de ficar em pé sozinha. — Eu ainda sei andar.
Não consegui dar um único passo, Kalon me ergue em seus
braços antes de qualquer movimento. Porra, ele é muito alto e forte.
Meu estômago embrulha.
— Teimosa. — Sibila, caminhando até o carro. Eu respiro
aliviada quando conseguimos sair da parte difícil. Quando um grupo
de homens surge do outro lado da rua, Kalon toma o seu assento
com rapidez e começa a ligar o carro.
Eu não observo o que ele faz, encaro minha perna, meu
ferimento que espirra sangue. Eu estou vendo a bala, não está
muito funda, em um grito doloroso consigo retirar a bala com a
ponta dos dedos. Kalon me encara incrédulo, seus lábios se abrem
como se ele buscasse palavras para dizer algo, mas desiste,
voltando a dirigir. Fecho meus olhos, gemendo baixinho.
— Eu tenho quase certeza que não era para você ter feito
isso. — Ele resmunga, encarando a minha perna e a maneira como
eu estou cuidando do ferimento sozinha.
— Cale a boca. — Minha voz está fraca. — Apenas dirija.
Vejo que estamos seguindo por um caminho completamente
diferente.
— Para onde estamos indo, Kalon? — Ele não responde,
apenas sorri de um jeito presunçoso. Meu coração bate forte em
alerta.
12. EU FIZ UMA COISA
HORRÍVEL
“De verdade, o que é amar? Ser o fogo de uma vela
ou tocar o fogo ardente?”
— ŞEMSI TEBRIZI.

— Para onde está me levando? — Arcane pergunta pela


terceira vez, e apenas nessa vez que eu abro a boca para
responder sua pergunta. Encaro seus olhos cheios de raiva. Sinto
uma fisgada em meu peito que ignoro com afinco.
Minha cabeça lateja tentando compreender quem é o homem
que ela estava abraçando e conversando na entrada do restaurante.
A memória de como ela estava rindo para ele me sufoca. Porra, eu
a odeio por ter outro. Como vou me casar tendo um infeliz maldito
entre nós? Se alguém souber desse caso, minha reputação será
manchada.
— Você está com a perna machucada, não vai dar tempo de
chegar até sua casa, e eu também não quero ir até lá. — Olho em
sua direção apenas para ter algum controle de como está a
situação.
Porra, eu olho para seu rosto e só consigo ver como agiu nos
braços do seu amante. Mesmo que estejamos longe, meus dedos
ainda apertam o volante com força, suplantando a minha ira
descontrolada. Eu quero descobrir quem é esse homem e matá-lo.
Simples assim.
Você não devia estar levando tão a sério esse acordo de
casamento, Kalon. Uma voz sensata grita em minha cabeça fazendo
eu recobrar os sentidos. Por mais que ela seja terrivelmente sexy e
ataque meus nervos, eu preciso me controlar e tratar esse
casamento como negócios.
Sinto o olhar de Arcane sob mim, e essa deliciosa raiva em
seus olhos faz com que eu esqueça qualquer ideia de apenas
negócios. Eu mantenho meus olhos na estrada.
— Miserável. — Ouço ela praguejar. Meus lábios se repuxam
para o lado. Vou considerar isso como um flerte.
— Diaba. — Sibilo, lembrando que ela tem um maldito
amante.
Chegamos em minha mansão. Esse é o melhor lugar para
cuidar do seu ferimento e não sermos incomodados por ninguém.
Arcane aperta os lábios, revelando que está controlando a dor. Ela
costurou sua perna sozinha usando um kit que guardo no painel do
carro. Reviro os olhos quando sua teimosia a faz caminhar sozinha
para fora do carro, não vi seguindo ir muito longe.
— Por que tão teimosa? — Estalo minha língua, envolvendo
sua cintura e puxando seu corpo contra o meu. Rapidamente eu a
seguro no estilo noiva. Seu corpo é quente e leve.
— Eu não suporto seu falso cavalheirismo. — Ela resmunga
em um protesto insatisfeito.
— Você reclama demais. — Debocho. Seu rosto volta em
minha direção para me refutar. — E você tem o nariz muito
arrebitado.
— Você fala demais, cara. — Ela sibila. Porra. Cara? Eu
acabo de ser empurrado para a posição de brother. — Como se
tivesse um rei na barriga. — Ela continua me insultando.
Eu reviro os olhos. Ah, Arcane! Só porque você
definitivamente é o meu tipo não quer dizer que precisa ficar
enchendo o meu saco. Eu quero rir da sua provocação, mas estou
furioso com o fato dela ter um amante e ainda exibi-lo na minha
frente como se esse casamento não significasse nada.
Dentro da mansão, eu começo a subir as escadas
procurando por algum quarto que não seja o meu.
— Só porque está me carregando no colo, não quer dizer que
eu não possa chutar sua cara, mesmo que a porra da minha perna
esteja fodida. — Arcane reclama quando eu escolho meu fodido
quarto. Meu olhar pesa vendo-a deitada em minha cama.
Suas mãos frias estão envolvidas em meu ombro enquanto
eu puxo almofadas para ajudar a ficar confortável.
— De nada, amor. Só um beijinho será suficiente. —
Debocho, inclinando o rosto em sua direção. Faço um biquinho. Seu
corpo estremece, Arcane grunhe e desvia como se eu estivesse
prestes a reivindicar sua boca. E leva tudo de mim para não fazê-lo.
Começo a limpar o sangue da sua perna, ela morde o lábio
para segurar um gemido. Porra, que situação. Minha respiração fica
pesada e eu me concentro apenas no meu maldito serviço.
— Não foi tão fundo, daqui a pouco você vai estar pronta
para outra. — Eu lanço uma piscadela.
— Deixe isso. — Ela pede tentando se afastar do meu toque.
— Espere um pouco, eu ainda não estou seguro que está
limpo. — Eu sussurro, pegando bandagens, limpando sua perna
novamente e entregando remédios para dor. Depois que ela bebe
eu me concentro em fazer um curativo.
Estamos em silêncio por longos minutos e quando eu ergo
meu rosto para observá-la, percebo que está perdida em
pensamentos. Seus cabelos estão espalhados pela almofada, seus
olhos encaram o teto e pesam em sonolência. Meu peito se aperta
pelo desejo de tocá-la.
Sua mão está descansando em seu seio. Eu observo os
traços de sua tatuagem, uma rosa vermelha. Seu ombro desnudo
revela uma grande parte delas. Procuro por sua jaqueta de couro e
encontro no chão.
— Arcane? — Chamo-a baixinho. Limpo minhas mãos sem
desviar meus olhos do seu rosto. Ela está respirando pesadamente.
— Droga. Você está mesmo dormindo.
Acaricio sua mão e ela abre os olhos com calma. Há
tranquilidade em seus olhos, que se dispersa rapidamente. Meu
peito aperta em uma batida forte. Observo seus traços procurando
alguma semelhança com outra mulher, algum indício de que
também vou arruiná-la para sempre.
— Está anoitecendo. — Arcane pisca. — Eu preciso voltar,
tenho um compromisso. — Seus olhos se desviam dos meus.
Aperto os lábios. Um compromisso com aquele homem?
Quero perguntar.
— Espere um pouco, Arcane. — Seguro seu braço quando
ela tropeça de volta para a cama. — Está claro que você não está
em condições de ir para esse compromisso. Você acabou de levar
um tiro. — Porque, em primeiro lugar, você é minha. Seu
compromisso é comigo. Cruzo os braços.
Raiva brilha em seus olhos. Sua expressão não me assusta,
apenas fomenta o meu fogo. Concentro minha atenção em seu
corpo buscando algum ferimento despercebido. A confusão me
consome quando vejo um hematoma em sua bochecha e seu braço
esquerdo.
— Isso dói? — A ponta do meu dedo desliza por sua
bochecha. Arcane estremece e vira o rosto, tentando se esquivar.
— Não encoste em mim. — Ela está nervosa.
Quero socar alguma coisa. Inúmeros pensamentos passam
pela minha cabeça e eu preciso socar alguma coisa para conseguir
controlar esse monstro que cresce dentro de mim.
— O que aconteceu com você, Arcane? — Pergunto
novamente, voltando a tocar sua pele e ignorando seus protestos.
— Eu falei para não encostar, Kalon Somáli. — Rosnou cada
sílaba.
— Mas eu quero saber como você se machucou. — Porra.
Definitivamente alguém bateu nela.
— Isso não é da sua conta. — Ela empurra minha m
Eu ri, então balanço a cabeça em negação. Meu peito libera o
ar com facilidade quando a frieza volta a me dominar. Deslizo as
mãos por meus joelhos ainda observando seu rosto.
— Tem razão. — Balanço a cabeça em confirmação, isso
realmente não é da minha conta.
Arcane levanta da cama novamente e eu não faço nada. Ela
arruma seus cabelos e recolhe a jaqueta do chão.
— Tenha uma ótima noite. — Ela me lança um olhar profundo
por cima do ombro, antes de abrir a porta do quarto.
Não há espaço para uma ótima noite quando você vive com
demônios ao seu lado. Eles repudiam a paz e torturam sua alma até
que ela pede socorro. Afundo na cama que parece muito mais fria
agora Arcane se foi. Deus do céu, eu preciso apenas dormir e
procurar formas dessa mulher não se tornar a minha ruína.

Eu sempre ouvi boatos sobre o amor ter uma força


estrondosa que supera qualquer ordem, que nenhuma lei se aplica a
ele e que nenhum infortúnio é capaz de esmorece-lo. O amor é
como um velho rebelde que precisa de cuidados, de alimento e
cura. Agora? Minhas mãos estão manchadas pelo sangue do amor.
Eu tirei sua vida. O amor me olhou com um brilho cheio de traição
quando seu sangue se espalhou por toda parte e tudo acabou.
— Kalon! O que aconteceu, arní mou? — Minha mãe
pergunta quando eu entro em casa aos tropeços. Estou gritando e
tremendo.
Assim como minhas mãos, as minhas roupas estão
completamente ensanguentadas e o meu rosto está manchado de
lágrimas. Ajoelho no chão e agarro sua cintura como se minha vida
dependesse disso.
— Mamãe… — Eu afundo o rosto em seu ombro. Seguro
suas costas em desespero, o sangue mancha suas roupas eu
aperto os olhos desejando desaparecer contra seu corpo. — Eu…
Eu fiz algo muito errado… — Minha voz está trêmula. — Eu fiz uma
coisa horrível.
Ao relembrar, a angústia se revira dentro de mim como um
animal raivoso e faminto. Jesus Cristo, o desespero me rasga aos
pedaços. Quando tento abrir a boca para falar novamente, as
palavras me fazem engasgar fortemente. Eu arquejo em busca de
ar.
Eu já sou um homem. Se o meu pai me ver nessa situação,
ele vai acabar comigo. Isso é inapropriado e covarde. Papi me criou
pra ser como uma racha, um homem incapaz de ser consumido por
esse sentimento amargo. Eu nunca me senti tão fraco quanto agora.
Completamente sozinho.
— Kalon, eu não estou entendendo. — Mamãe sussurra. —
O que você fez, meu filho?
— Eu vou pro inferno. — Aperto os olhos e isso espreme
algumas lágrimas que pingam do meu rosto.
Com preocupação, minha mãe desliza suas mãos por meu
rosto.
— Não vai, arní mou! Mamãe não vai deixar. — Ela me
abraça como se eu estivesse me partindo em milhões de
pedacinhos. Seus lábios quentes beijam minha testa.
— Panagía mou, fróntise to agoráki mou gia ména… — Sua
voz ecoa por meus ouvidos, sei que ela está rezando a virgem Maria
por minha alma, mas estou perdido demais para compreender tudo
que ela pede.
Mamãe começa a chorar comigo. Ela é tão boa que isso me
parte o coração. Não quero causar tanta dor a ela.
—O que foi, meu filho? Fale comigo! — Ela implora bem
baixinho. — Fale com a mamãe, ti boreí na kánei i mamá gia séna?
— Encaro seus olhos cheios de lágrimas.
— Eu… Eu…

— Acorde, Kalon! — Tenho um sobressalto do caralho. —


Você está atrasado. Vamos, vamos. — Um travesseiro bate em meu
rosto.
— Porra. — Eu sento e afasto as cobertas. — Como você
entrou na minha casa? — Kol está do outro lado. Meu coração
parece sair pela boca. — Quanto tempo eu dormi? — Massageio o
rosto.
— Você está chapado? — Ele aperta os olhos, inclinando o
rosto em minha direção como se eu fosse uma aberração que não
sabe o seu lugar no mundo. — Ora, ora. — Seus braços estão
cruzados diante do peito.
— Talvez eu esteja. — Dou alguns tapas em minhas
bochechas. O maldito pesadelo acabou de sugar minhas energias.
—O que você quer de mim, zoí mou? — Seus lábios formam um
sorriso fofo.
— Eu disse que você está atrasado, idiota.
Eu estalo a língua em um resmungo impaciente. Ele é tão
rabugento que me dá nos nervos.
— Veja como esse bastardo fala comigo! — Repreendo
firmemente. — Atrasado para o que? — Encaro seu rosto. — Que
seja um motivo plausível para você invadir minha casa.
Kol balança os ombros. Suas mãos mudam para os bolsos e
ele respira fundo.
— Hoje é sábado, Kalon. — Ele fala como se fosse óbvio.
Suas sobrancelhas se unem.
— E daí? — Arqueio uma sobrancelha. — Semana passada
também foi sábado.
— Aos sábados mamãe quer todos os filhos reunidos,
lembra? — Ele aponta o dedo em minha direção.
— Ah. Qual é? — Resmungo.
— Escuta, eu tenho que rebobinar a nossa rotina? — Ele me
encara de cima a baixo como se eu fosse uma vagabunda
ocupando o seu espaço. — O que aconteceu com você? Esqueceu
seu cérebro dentro do útero de alguma puta que você fodeu ontem?
Ontem. Porra. Ontem eu estava com Arcane. Estalo a língua
em um chiado agressivo e aponto o dedo em sua direção. Eu atiro
um travesseiro em seu rosto e ele se esquiva com um reflexo do
caralho.
— Tenta a sorte, Tony Montana! — Vocifera muito humorado
e devolve o travesseiro para a cama. — Vai precisar usar bem mais
que um travesseiro se quiser derrubar esse homem. — Aponta para
o peito vibrando em orgulho.
— Não fode, Kol. — Falo por cima do ombro, entrando no
banheiro para um banho. Minha cabeça ainda está perturbada com
as lembranças do meu pesadelo, parece que está tudo voltando
para mim, me condenando mais uma vez.
— Nada de bater punheta enquanto eu estou aqui. — Kol
bate na porta. Solto um palavrão e afundo na banheira cheia de
água quente. — Ou eu vou cortar o seu...
Antes que ele termine sua ameaça, a minha cabeça mergulha
completamente. O silêncio envolve a minha mente e eu não sinto
nada além da pressão da água. Meu coração bate tão forte contra
meu peito que eu temo que ele exploda. Depois de alguns minutos
no banho, finalmente saio de casa ao lado do imbecil.
Ele tinha razão, todos já estavam na mansão dos nossos
pais. Menos papai, é claro. Ele nunca é presente. Coloco as mãos
no bolso quando Atena caminha para me receber.
— Kalon! Eu estava preocupada, aní mou! — Foi inevitável
esconder as mãos, ainda assim ela me abraça e deixa inúmeros
beijos em minhas bochechas.
— Tudo bem, mamá... — Reclamo, abraçando sua cintura
quando ela não para. Ouço Kol resmungar algo infeliz quando passa
por nós dois.
— Bom dia pra você também, Senhorita Atena. Nem tente
usar esse charme comigo. — Ele some de vista.
— Ah, kardiá mou. — Mamãe suspira pesadamente, olhando
na direção que ele foi.
— Como você está, hum? — Eu sussurro.
— Eu quem devo perguntar! — Ela ri. — Você tem se cuidado
direitinho? Por que mal anda aqui?
— Tudo bem, mamá. Eu estou ótimo. — Eu ri, revirando os
olhos. — Eu vim hoje, me solte agora e vamos conversar lá dentro.
— Peço, coçando a garganta.
Atena se afasta com esse tipo de olhar protetor que nunca
morre. Ela enlaça meu braço e me puxa para o café da manhã. A
última vez que estive aqui foi para provocar o meu pai fazendo uma
orgia com Rajá, aquela bagunça não terminou como eu esperava,
mas foi divertido. E por pensar no primogênito, ele aparece ao lado
do infeliz Ajax.
— Bem-vindo. — Ajax fala tão sério e educado que fica difícil
acreditar que parte da sua criação foi feita por Rajá. Eu também fui
criado por ele, assim como Kol. Na falta de um pai, nosso irmão
mais velho foi a melhor referência que tivemos. Ele cuidou de nós
como se estivesse limpando seus pecados. Mas existe uma grande
diferença entre todos nós e o intocável Ajax.
— Veja se não é o caçula imprestável e sanguinário. — A
melhor parte é que posso encher seu saco à vontade. — Está
limpinho, meu bebê fofinho. — Lhe jogo um beijinho debochado.
— Vê se não fode, seu arrom... — Arregalo os olhos de
maneira fingida. Levo as mãos aos lábios em uma expressão de
choque.
— Deus tenha misericórdia! Isso saiu mesmo da sua boca?
— Me inclino em sua direção. Ele encara nossa mãe que estala a
língua em reprovação.
— Por que os pombinhos não param de flertar e vão comer?
— Ela ordena. Ajax ri alto. — A comida já está na mesa, lá no
jardim. — Mamãe aponta para a porta da cozinha.
— Beleza. — Eu balanço os ombros em rendição. — Uma
trégua antes que eu quebre essa sua cara de fresco. Eu não
esqueci que temos uma luta pendente. — Puxo Ajax para debaixo
do meu braço. Eu não aceito que na última vez ele me derrotou
usando um golpe de jiu-jitsu, preciso de um segundo round para me
sentir digno novamente.
Kol está no celular e Raja está assobiando para os pássaros
na árvore. Depois de anos, é fácil se acostumar com tanta presença
masculina espalhada pela casa e tantas personalidades diferentes.
Mas dói, porque em algum lugar do passado já fomos mais unidos
do que hoje.
— Dispensou os empregados, Atena? — Olho para os lados,
não vejo nenhum sinal da minha assassina favorita.
— Sim. — Mamãe fala sentada à mesa. Ao menos hoje o
clima está agradável. Na última vez, mamãe falou algo que fez Rajá
quebrar seu prato e se retirar fumaçando.
— Vamos rezar o terço? Faz bem para a alma. — Ajax
pergunta. Eu sei que ele está brincando, ele adora ser travesso.
— Não, eu sou mulçumano. — Rajá balança a mão.
— Sério? Está mais para alguma seita satânica que faz ritual
de animais. — Kol ri, mas sua risada morre quando Rajá aperta os
olhos em sua direção.
— Que grande insulto, Kol Insuportável Somáli. Eu adoro
animais. — O mais velho responde.
— Isso é mentira, vejo que você está prestes a avançar em
um. — Aponto de Kol para Rajá. Estou em choque. É a minha
primeira refeição do dia e uma faca acabou de acertar minha
bochecha ao ponto de tirar sangue.
— Porra, Kol! Eu vou precisar de uns dez pontos! — Eu
aperto minha bochecha. Mamãe está nos assistindo como se
estivesse no lugar mais imoral da face da terra.
— Você aproveita e dá pregas na língua também. — Ajax
sufoca uma gargalhada.
— Venha aqui, filho. Deixa eu ver. — Rajá acena. Eu levanto
para sentar ao seu lado, ele limpa minha bochecha com um lenço e
depois deixa um beijo rápido. — Idiota. Não vai precisar de pontos.
— Ele abre a carteira e retira um band-aid.
Eu reviro os olhos. Os outros dois estão rindo e Atena nos
observa maravilhada. Somos o caos perfeito, eu presumo.
— Ouvi dizer que você vai se casar com uma Planard.
Espero que não seja a loirinha. — Raja ergue uma sobrancelha.
— Por que citou Melissa? — Ergo uma sobrancelha. Sua
expressão continua a mesma.
— Acho ela inteligente demais para passar a vida com um pé
no saco como você. — Rajá responde.
— Que tipo de inteligência? Você anda prestando atenção
nas meninas Planard? — Ajax cruza os braços, seu olhar é raivoso
encarando o irmão mais velho.
— Ué, vocês não sabem? — Rajá une as sobrancelhas. —
Não conseguem reconhecer que ela é tipo Einstein?
— O que Rajá quer dizer, é que Melissa fez um programa de
tecnologia para Yuri e Ivan na noite em que fomos jantar na casa
deles. — Atena balança a mão. — Ela é muito inteligente e ele
percebeu isso porque é igual.
— Apenas isso. — Rajá balança a cabeça em concordância e
sorri cheio de ego.
— Deixe Melissa fora do assunto. — Kol chia, apontando sua
faca para Rajá. Seu olhar é sombrio. — Ou Nimue. — Acrescenta.
— Kalon vai casar com Arcane, isso significa que Jesus Cristo está
voltando. — Ele estala a língua. — O que seu profeta tem a dizer
sobre isso? Certamente tem alguma coisa escrita sobre esse
acontecimento sobrenatural. — Kol aponta para Rajá.
— Dor melhora com dor, amor melhora com um amor maior.
— Rajá cita uma frase de Mevlana. — No caso de Kalon? Mulher
raivosa mata um Somáli. — Todos caem na gargalhada. Meu peito
aperta.
— Vocês são tudo farinha do mesmo saco. — Mastigo um
pedaço de pão.
Terminamos de comer trocando insultos e piadas, e julgando
a expressão de Atena, vejo que ela está feliz com todos juntos. Esse
sábado foi melhor que os outros, eu admito. Quando terminamos de
comer, Ajax e Kol foram os primeiros a se retirar, ouço os dois
comentando baixinho sobre jogar basquete na área de treinamento.
Rajá permanece sentado assobiando para os passarinhos até que
um pousa em seu ombro e ele se distrai cantando para a ave.
Eu vou até a rede armada perto da grama baixa, ela balança
de acordo com o vento. Aprecio por longos minutos os pássaros
cantando, o som do mar invade meus ouvidos e eu quase me rendo
à sonolência. Abro meus olhos quando Atena cobre a luz do dia.
Pela sua expressão, sei que quer conversar.
— Fala de uma vez. — Peço, estalando a língua e desviando
meus olhos. — É estranho ficar encarando as pessoas e não dizer
nada, mamá.
Ela ri. Nesse momento eu encaro seu rosto. Atena é tão
linda. Seus cabelos voam com o vento calmo, ela encara seus pés
pensativa, suas mãos balançam de um jeito nervoso.
— Ai meu Deus. Está me deixando nervoso. — Falo
desconfiado. As mães nem sempre tem as palavras na ponta da
língua e não sabem como resolver situações complicadas. Nossa
relação é a prova disso.
— Aconteceu algo com você. — Sua voz é suave. — Você
não é mais o mesmo, filho.
Uma risada arrastada e sem humor ecoa da minha garganta.
Eu me concentro nos movimentos da rede para não pensar em
outra coisa.
— Não brinca. — Sim. Eu estou debochando dela e isso é
amargo. — Alguma coisa aconteceu comigo quando eu tinha vinte
anos, Atena mou. Não espere que eu permaneça sendo o mesmo
depois daquilo. — Balanço a cabeça em negação. — Nenhum
homem é assim.
Ninguém tem o poder de continuar o mesmo depois de tanto
tormento, depois de experimentar a dor em doses gigantes e ter um
pedaço seu arrancado. Eu mudei porque tenho pecados e agora
eles me acompanham.
— Você está errado. — Ela resmunga. — Você pode voltar a
ser quem era antes.
Seu olhar é sereno, eu amo e odeio esse carinho que sempre
me deixa desprovido de qualquer defesa.
— Você quem está, mamá. — Argumento. — E tudo bem as
mães estarem erradas algumas vezes.
— Eu não errei com você, então não diga isso. — Ela aponta
em minha direção. — O que você acha do seu casamento com
Arcane?
Dessa vez eu quis rir. É só negócios do papai. Apenas isso.
— São negócios, mamá. Não um casamento. — Isso está
longe de significar uma união.
— Ora, Kalon. — Ela estala a língua, risonha. Sinto sua mão
apertar meu ombro. — Você não vai apenas assinar documentos,
vai ter uma história ao lado de Arcane. Nada pode mudar esse fato,
nem a sua forma de pensar.
Eu ri baixinho. Se uma relação sexual ativa com aquela
garota vai ser uma história, então eu estou bastante ansioso por
isso.
— Espero que você enxergue o óbvio. — Mamãe volta a
falar. — Por que veio hoje, afinal?
Cruzo as pernas na rede.
— É sábado. — Fecho os olhos. — Como Kol diz "a mamãe
quer todos os filhos dela reunidos nos sábados". — Falo no mesmo
tom de voz que Kol usou mais cedo. — Não é como se eu tivesse a
opção de faltar.
— Hoje você tinha. Uma vez no ano você tem essa opção,
porque é o aniversário de morte de Azra. Você devia estar no
cemitério deixando flores para a mulher que tanto evita pensar. —
Suas palavras me atormentam. Porra, como eu posso ter esquecido
do que estou evitando pensar desde que acordei.
Eu fico de pé como se tivesse levado um tapa. Atena me olha
com surpresa. Calço meus sapatos odiando como meu coração
quase explode.
— Olha, filho, não foi sua…
— Não fale disso. — Eu grito.
Atena me olha com mágoa. Arrependimento me corrói, mas
eu não volto atrás. Ela sabe o quanto eu não gosto de falar sobre
isso.
— Ei, isso é jeito de falar com Atena? — Rajá caminha em
minha direção. Ele está furioso.
— Fique fora disso. — Aponto o dedo em seu rosto.
— Tudo bem. Já chega. — Atena coloca a mão em meu
peito. — Você não precisa se culpar por ter esquecido, amor. Tudo
bem seguir em frente.
Sua mão desliza por meus cabelos trazendo algum tipo de
alívio. Infelicidade brilha em meu rosto. Foi por isso que ela me
chamou aqui, então? Para me deixar louco? Para despejar esse
monte de merda sobre mim como se soubesse de tudo sobre a
minha vida? Eu não suporto ouvir! Eu não quero ouvir!
— Eu estou indo agora. Me deixe. — Sibilo, me esquivando
dela.
— Você é um idiota. — Rajá resmunga quando eu passo por
ele.
A culpa que eu tento silenciar por anos vem à superfície
como o bote de uma serpente. — Hoje não, Kalon. Hoje não. —
Sibilo. Um dia vou precisar falar sobre isso. Mas hoje não.
13. O MELHOR DE VOCÊ
“O coração diz a alma: “eu amo, me apaixonei, mas sempre
sofro por algum motivo.”
A alma responde: “contanto que você ame...”
— ŞEMSI TEBRIZI.

Faz dois dias que eu estive com Kalon. Eu odeio a forma


como esse homem tem o meu destino em mãos e parece adorar a
ideia. No entanto, não consigo esquecer a forma como ele ficou
sombrio e protetor quando viu a marca em minha bochecha do tapa
que Ivan me deu.
Saio dos meus pensamentos quando a sombra de Yuri surge
bem diante do meu corpo. Eu e minhas irmãs estamos assistindo
TV.
— Posso saber onde as três estavam? — Seus braços estão
cruzados diante do peito. —Ainda ontem, durante a noite, eu
procurei por vocês e não encontrei.
Foi quando nós três saímos de casa para comemorar com
Pavlos em seu iate. Melissa aceitou o seu pedido de namoro e eu
nunca a vi tão radiante. Nós conhecemos a fazenda onde ele mora,
eu descobri que sou apaixonada por animais, inclusive por um
Golden Retriever que me fez brincar como uma criança. Seus pais
na verdade são seus avós. Ele nos contou que sua família morreu
em um acidente de carro quando tinha dez anos, e desde então ele
cuida dos negócios da família ao lado do seu avô. Eu juro que
nunca me senti tão amada e livre quanto naquela fazenda.
Nimue e eu andamos a cavalo e nadamos. Fizemos inúmeras
fotos quando fomos nadar no iate, até que ele nos deixou no porto
de Atenas perto da meia noite. Fizemos de tudo para despistar Yuri,
mas ainda assim ele sentiu nossa falta.
— Estávamos no trabalho e depois aqui. — Melissa
responde, sua voz é tão suave e humilde que até mesmo eu
acredito em suas palavras.
— As três no seu trabalho, Mel? — Yuri aponta.
— Sim. — Melissa balança a cabeça em concordância.
— Agora está claro. Arcane mou? — Yuri me observa de um
jeito sombrio. Meu coração aperta contra meu peito, eu sei que ele
consegue farejar a mentira impregnada em nós.
— Sim, papai? — Limpo a garganta.
— Eu recebi uma mensagem em meu sistema de segurança.
— Ele afunda as mãos em seu bolso. — Avisando sobre passagens
compradas para Costa Rica.
Isso é impossível. Melissa e eu tivemos todos os tipos de
cuidados, desativamos seu sistema por minutos suficientes para
seguir com esse plano. Como ele descobriu?
— Ótimo. Você demorou trinta segundos em silêncio. — Ele
estala a língua. — Me diga sobre isso.
— Deve haver algum engano, papai. Nós não sabemos… —
Ele ergue o dedo indicador na direção de Melissa.
— Não minta para mim, ouranós mou. Vai partir meu coração.
— O olhar de Yuri é ameaçador. — Você acha que eu não tenho
meus métodos para vigiar vocês? Que apenas suas habilidades de
hacker são suficientes para passar a perna no seu papai?
— Eu não quero me casar com Kalon, então é claro que eu ia
dar um jeito de fugir com minhas irmãs. — Confesso, percebendo
que foi por água abaixo a nossa ideia de fugir quando ele estiver em
sua próxima viagem de negócios.
Estava tudo planejado. Ele vai viajar com Ivan nos próximos
dias, então as passagens já estariam compradas e teríamos a
chance de escapar sem que ninguém veja.
— Papai, não faça isso. – Nimue implora.
Sinto um tapa em meu rosto antes de ter consciência que ele
está perto. Um gemido de dor sai dos meus lábios.
— Quieta, prinkípissa mou. Ou você será a próxima. — Yuri
repreende Nimue que agarra seu braço na intenção de impedi-lo.
Engasgo fraco quando ele fecha sua mão ao redor do meu
pescoço, me sufocando diante das minhas irmãs, me causando um
desespero horrível.
— Por que você insiste tanto em ir embora? — Ele inclina a
cabeça para o lado. — O casamento é melhor que a prisão, mas
ainda assim você procura formas de me irritar e voltar para lá.
— Porque você é um monstro. — Eu cuspo as palavras
quando ele afrouxa a mão. — Porque eu não consigo esquecer a
forma como você matou Theo.
Yuri pisca, largando meu pescoço até que eu ajoelho no chão
em busca de oxigênio. Todo meu corpo está tremendo. Minhas
irmãs tentam me levantar mas eu me esquivo como se doesse mais
ainda o toque delas.
— Eu lembro que você estava com uma arma. — Ergo meus
olhos para visualizar o rosto de Yuri. Sua expressão é fria como a
porra de um iceberg. — Você matou Theo e pode muito bem fazer o
mesmo com nós.
— Acho que vou fazer isso agora. — Ele avança como a
porra de um diabo. Suas mãos agarram meus cabelos e minhas
irmãs gritam. Nimue tenta afastá-lo mas ele a empurra com força,
desferindo um tapa em seu rosto.
Meu corpo bateu contra a parede, sua mão livre aperta meu
queixo e minha boca, me fazendo engasgar e sufocar com seu
aperto doloroso. Me impedindo de gritar e até mesmo respirar.
Quando tento, tudo que sai são sons feios e sufocados.
— Acho que você anseia pela morte se adora tanto me
provocar como a porra de uma filha rebelde. — Eu vejo o
descontrole em seus olhos. Vejo um demônio faminto devorando
todo o seu controle.
Ele bate minha nuca contra a parede, toda minha audição
explode e a dor faz minha vista escurecer. Sinto a região úmida e
quente. Ele empurra Melissa para longe sem ao menos olhar em
sua direção.
— Você é um desperdício, Arcane! — Ele rosna com firmeza.
Sua mão aperta minha garganta com mais força. — Me diga, ainda
vai tentar escapar desse casamento? — Vocifera.
Eu tento falar, mas não consigo fazer nada além de engasgar
por fôlego. Sufocando, minha garganta fechando, sons feios e
trêmulos.
— Pare com isso! — Yuri congela, seu rosto vira lentamente
na direção onde Melissa tem uma arma apontada para sua cabeça.
— Vai me matar, meu amor? — Sua mágoa é quase
verdadeira. — Vai matar o papai, Mel?
— Você está matando Arcane, então eu vou. — Ela respira
furiosa. Os olhos de Yuri escurecem. Suas unhas cravam em meu
pescoço até que ele me empurra aos pés de Melissa.
— Veja o que você está se tornando, meu céu. — Ele ri
gravemente. — Devolva a minha arma, agora. — Yuri sibila. — Ou
eu mato você, Melissa. Eu juro que mato.
Melissa se ajoelha envolvendo uma mão por minhas costas.
Eu estou tossindo ao ponto de vomitar. Nesse momento, Yuri agarra
sua arma nas mãos de Melissa e atira para o alto. Nimue grita,
cobrindo os ouvidos. Ela está encolhida no sofá. Melissa esconde o
rosto em meus cabelos enquanto sussurra palavras
tranquilizadoras. Novamente eu me vejo há cinco anos atrás quando
ela fez a mesma coisa para impedir que eu fosse pra prisão.
— Eu acho que já vi esse filme. — Yuri assobia. — Você
esqueceu que gritar e ameaçar nunca resolve nada? — Ele analisa
Melissa profundamente.
Estremeço quando ele fica de cócoras e segura o ombro de
Melissa exatamente como aquele dia. Eu fecho meus olhos sentindo
agonia.
— Ouça-me com atenção. — Eu choramingando odiando sua
voz e o que vem a seguir. — Pois a mamãe nunca mais estará aqui
para fazer sua cabeça e colocá-la debaixo de sua saia. —
Exatamente as mesmas palavras. Eu quero gritar. Ele está nos
torturando novamente.
— Ela não vai te dizer isso... — Ele afunda suas mãos no
chão. — Mel, a vida é impiedosa, as pessoas são más e egoístas.
— Suas palavras trovejam para dentro da minha cabeça. Eu agarro
o corpo de Melissa implorando para que ele cale a boca. — Você
quer ficar viva? — Sussurra baixinho. — Você vai aprender como
lucrar, ser peculiar e não deixar ninguém arrancar um pedaço do
que é seu.
Eu quero gritar alto. Tudo que ele fez foi nos corromper. Eu
me pergunto o que minhas irmãs viveram em suas mãos durante
esses cinco anos.
— Você sabe por que? — Papai continua. — Mesmo que
este seja o seu ente querido, o homem é um lobo para outro
homem.
O homem é um lobo para outro homem. As mesmas palavras
de cinco anos atrás. Sua filosofia barata para destruir suas filhas e
transformá-las em um monstro.
— Nos deixe em paz. — Melissa grita com ele, me apertando
com tanta força que fico sem ar. Ela está rosnando como uma leoa.
— Vocês me insultaram demais. Iam fugir, ficaram
desaparecidas durante o dia inteiro. Está na hora de voltar com as
nossas lições. — Ele puxa o cinco da sua calça e balança de um
jeito ameaçador.
Eu atiro a cabeça para todos os lados quando compreendo o
que ela vai fazer. Meu coração martela contra meu peito.
— Tirem a roupa. — Ele ergue a arma em nossa direção. —
As três.
— Não. — Eu sufoco.
— Tirem a roupa ou eu atiro em Nimue. — Seu olhar é
sombrio, Yuri faz isso como se não estivesse em plena consciência.
Eu o odeio por isso. Estou tremendo no colo de Melissa quando ele
atira em um vaso perto de Nimue. Minha irmã se debate no sofá,
gritando alto enquanto cobre os ouvidos.
— Calem a boca, por favor. Calem a boca. – Ela engasga e
perde o fôlego enquanto implora.
— Tudo bem. Tudo bem. — Melissa ergue as mãos em
rendição. — Deixe Nimue em paz! — Ela soluça. — Deixe minhas
irmãs!
Melissa se afasta de mim e começa a tirar suas roupas,
ficando apenas de peças íntimas. Yuri não encara nosso corpo, ele
nunca faz. O homem visualiza apenas a expressão em nossos
rostos. O medo que alimenta seu narcisismo.
— Arcane e Nimue. — Ele balança a arma em nossa direção.
— Façam o mesmo que sua irmã.
Eu me ajoelho, me livrando de cada peça. O lugar onde ele
me machucou anteriormente começa a queimar em contato com o
frio da sala. Estamos ao entardecer, mas o vento que vem do mar é
o suficiente para me deixar trêmula e pesada.
— Certo. — Ele ergue o queixo quando ficamos ajoelhadas
perto dos seus pés.
— Pensei que eu já tinha disciplinado vocês o suficiente na
infância. — Ele estala o cinto fazendo Nimue encolher. — Mas vejo
que vou começar tudo de novo. Queimar a pele de vocês até que
aprendam a forma certa de falar e se comportar.
Fecho os olhos quando a primeira chibatada contorna minhas
costas e me faz gritar. Minhas irmãs gritam em seguida, tremendo
enquanto o som ecoa contra nossa pele. Tento não cair para não
custar mais chibatadas. Cada estalo rouba o meu fôlego.
Eu soluço quando vejo a vermelhidão nas costas delas. Yuri
me puxa pelo braço, fazendo eu me erguer, até que seu sinto bate
contra minhas pernas e eu me contorço para me manter em pé. A
dor é sufocante, meu choro é engasgado e fraco.
Fecho os olhos quando ele faz o mesmo com minhas irmãs.
Os gritos, o choro, tudo me deixa enjoada e fora de mim. Mas as
chibatadas cessam quando alguém aplaude na entrada da casa.
— Bravo! Bravo! — Ouço Ivan. — É isso que eu chamo de
um bom pai. — Choque paira em meu rosto quando ele vem do
jardim, com as mãos enluvadas.
Yuri leva as mãos atrás das costas como a porra de um
soldado fiel. Ele arruma seus cabelos para trás e respira fundo. Não
consigo decidir quem é mais narcisista dos dois. Sinto vontade de
vomitar e leva tudo de mim para não fazer. Estou soluçando e
tremendo. Ivan não se dá ao trabalho de nós analisar
profundamente, mas eu tenho medo do arrependimento doentio que
vejo estampado na face de Yuri quando Ivan acena em direção ao
escritório no andar de cima.
— Agora precisamos trabalhar, velho amigo. Tenho notícias
maravilhosas. — Yuri balança a cabeça em concordância deixando
Ivan seguir em frente como se fosse o dono da casa. Ele retira seu
sobretudo e coloca sob os ombros de Nimue, que está com as
costas sangrando, antes de desaparecer nas escadas.
— Essa é a demonstração de narcisismo mais nojenta que eu
já vi. — Sussurro com a voz fraca. Um soluço escapa dos meus
lábios enquanto procuro vestir minhas roupas e esconder cada
pedaço da minha pele.
Nimue se ergue, gemendo e apertando as pernas, então
corre pela sala até encontrar seu quarto e bater a porta.
— Eu sinto muito. — Melissa deixa escapar um gemido
choroso. Culpa brilha em seus olhos.
Eu me sinto quebrada e suja. Me sinto como uma filha que
acabou de fazer uma coisa horrível e não merece respirar. Essa é
forma que um pai narcisista encontra para colocar sua filha em uma
coleira, impedindo-a de ir muito longe.
— Estou sufocando. — Agarro meu coldre, apertando entre
os dedos, eu cambaleio para longe de casa.
Não consigo respirar, a dor é tão intensa que sinto não
conseguir prender o xixi. Mesmo machucada, Melissa faz tudo que
pode para me ajudar a caminhar até o jardim. Ela sabe que preciso
tomar fôlego, essa é a única forma de dizer ao meu cérebro que não
estou atrás das grades e posso sentir o vento contra minha pele.
— Eu sinto muito. Eu sinto muito. — Ela sussurra.
Eu engasgo procurando ar, engolindo suas palavras e
balançando a cabeça em concordância. As lágrimas quentes e
gordas rolam pelo meu rosto. Com uma tapa firme em minhas
bochechas eu me forço a encontrar forças. Ajeito minha jaqueta em
um movimento ríspido.
— Vá para o quarto, Melissa. — Sussurro chorosa. — Vocês
devem ficar lá até ele sair. Eu não quero continuar aqui, eu vou dar
uma volta. Estou com nojo da minha existência.
— Desculpa. — Melissa implora. — Eu não pude impedir. —
Eu balanço a cabeça repetidas vezes em negação. Não é culpa
dela. Nada disso é nossa culpa.
— Vai, Melissa. — Acaricio seu braço e empurro-a
gentilmente para dentro de casa.— Não foi sua culpa. — Melissa
recolhe suas roupas e as que Nimue deixou para trás. Então ela
corre para dentro do seu quarto. O silêncio envolve o jardim.
Caminho contando meus passos, encarando cada um deles,
enquanto tropeço e paro abruptamente por não suportar os
protestos do meu corpo. Tudo queima e arde. Eu estou com minhas
costas sangrando, mas procuro manter a postura. Lágrimas
escorrem por minhas bochechas quando eu chego na praia e sinto a
areia do mar. Preciso lavar meu corpo e me recuperar até todo esse
sentimento repulsivo ir embora.
Eu me pergunto se Kalon vai fazer o mesmo que Yuri, se Ivan
criou seu filho para ser tão imoral e cruel quanto ele. Eu nunca serei
capaz de me submeter a isso. Eu não suporto tanta miserabilidade e
inferno. Estou implorando pela loucura quando me atiro dentro da
água gelada e grito chorosa. O mar está agitado fazendo de tudo
para me expulsar de volta a areia. Minhas roupas estão molhadas e
meus machucados ardem.
Nesse momento eu quero morrer. Esse desejo corre como
fogo em minhas veias, me fazendo entrar em pânico. A voz de Yuri
está gritando em minha cabeça.
— Você ainda vai fugir, agapi mou? — Estou paralisada
quando vejo seu corpo parado ao meu lado. Eu grito.
Ele está rindo sombriamente e puxa meus cabelos,
empurrando minha cabeça dentro d'água. Eu grito mais alto e luto.
Ele ri alto e chuta minhas pernas.
Eu sufoco e engasgo. Sua mão aperta meu pescoço e eu
vacilo afundando na água mais pesada que minha própria
existência.
— Arcane? — Estremeço completamente. Pisco algumas
vezes, meu sangue está fervendo. Eu estava dissociando esse
tempo inteiro? Me agito quando a água lambe meus pés e queima
minhas feridas.
Quando uma mão segura meu ombro, eu grito alto ouvindo a
risada de Yuri repuxar minha alma. Seguro minha arma com as duas
mãos e giro, atirando.
— Me deixe em paz. — Eu sufoco tropeçando com o peso da
água. — Por favor, me deixe em paz. — Estou ensopada. As ondas
batem em minhas costas e eu tropeço choramingando.
— Arcane, calma! — Meu coração para de bater quando
visualizo o rosto de Kalon Somáli. — Venha aqui. — Eu choramingo
quando vejo que atirei em seu peito. Cambaleio para longe do mar e
espalmo seu ferimento. Ele está ajoelhado e com os braços abertos
para mim.
— O que você quer de mim? — Imploro aos soluços. — Eu
fiz isso? — Se não fosse a quantidade de sangue que sai do seu
peito, eu poderia jurar que estou inventando.
— Você está há vinte minutos encarando o mar. — Kalon me
aperta com força. — Eu chamei você, eu tentei tirar você da água e
você esperneou e gritou para eu sair. — Ele está ofegante. Eu
balanço a cabeça repetidas vezes em negação.
— Eu não queria machucar você. — Aperto seu peito. Ele
enxuga minhas lágrimas com o polegar. Nesse momento eu me
sinto salva e mais perdida do que nunca.
— Tudo bem, eu estou de colete. Não foi fundo. — Ele abre
os botões da sua camisa manchada, revelando que não entrou
profundamente. Mas há tanto sangue que não consigo parar de
chorar. Estamos deitados na areia e o som do mar é como uma
melodia para o meu desespero.
Eu odeio tanto esse homem, mas mesmo assim estou
chorando porque pensei que tinha matado-o. Nada disso estaria
acontecendo se eu não estivesse prometida em casamento, mas
ainda assim, a ideia dele morto por minhas mãos me deixa doente
culpa.
— Arcane... — Sua voz soa como um lamento cheio de
preocupação. — O que aconteceu com você? Está me deixando
preocupado. Por que está chorando tanto?
— Merda. — Reclamo tentando limpar minhas lágrimas,
meus dedos encostam minha bochecha e eu gemi com a ardência
do tapa marcado.
— Arcane. — Sua voz é calorosa e me salva de outro
colapso choroso, ou pior, de outra crise dissociativa quando a voz
de Yuri ameaça me consumir em pensamentos. Percebo que ele me
agarrou em seus braços.
— Eu não me sinto bem…— Minha visão está turva. Minha
cabeça explode em dor, assim como minhas costas, eu grito quando
a palma de Kalon descansa no meio delas. — Isso dói. Me deixe. —
Eu sufoco, me esquivando para longe dele.
Fecho meus olhos e sinto ânsia quando ele ergue meu
vestido e tem a realização do que aconteceu. As marcas do cinto
contra minha carne, minhas coxas vermelhas. Kalon desliza o dedo
por cada hematoma feio.
— Puta merda. — Ele esbraveja voltando a me cobrir, dessa
vez me segurando com tanto cuidado que sinto medo de quebrar.
— Vai passar. — Há carinho em seus olhos verdes. Isso me
deixa amedrontada. O que eu fiz para merecer essa pequena
fagulha de carinho e conforto?
Eu quero gritar com ele, desferir uma porra de palavrões que
o deixe bruto e cruel, que o faça matar esse carinho. Quero deixá-lo
tão quebrado quanto eu por prosseguir com esse casamento. Mas
tudo que eu faço é deitar a cabeça em seu ombro. Eu fecho meus
olhos quando ele acaricia meus cabelos.
— Estou com frio. — Soluço.
Kalon me segura e levanta como uma rocha firme, como um
escudo inquebrável e imperturbável. Essa leveza é tão assustadora
que me faz suspirar. Há preocupação e curiosidade brilhando em
seus olhos, assim como uma raiva sombria.
— O que mais você sente? — Algo quente cobre meus
ombros. — Mantenha os olhos abertos e fale comigo, estamos
chegando.
Chegando onde? Um protesto escapa dos meus lábios.
— Fale comigo, vamos! — Sua voz é insistente.
— Eu estou em pedaços. — Resmungo, minhas palavras são
distantes.
— Tudo bem. Eu adoro juntar pedacinhos. — Ele responde
firme. — Eu tenho você comigo, amor. — Sua voz derrota tudo que
perturba minha mente, ele é tão forte que afugenta os meus
demônios. — Está me ouvindo? Você é minha! — Sua voz é
insistente contra meu ouvido, como se ele estivesse me jogando
uma âncora e implorando para que eu me agarre nela. Ele está me
dando goles de consciência. Me dando paz. — Eu tenho você,
Arcane mou. Pode descansar agora.
Com sua ordem, a calmaria me percorre de imediato. Eu não
penso, apenas me rendo a isso e descanso. Amanhã eu procuro um
jeito de me livrar, mas hoje eu estou dormindo nos braços do meu
inimigo.
14. MINHA PROPRIEDADE
“Você não está sozinha.
Você sou eu, você é minha.”
— MEVLANA.

Porra. Por que eu estou fazendo isso? Estou carregando ela


comigo quando é evidente que eu não devo sentir nada por ela, e
que acima de tudo, ela tem um amante escondido em algum lugar.
Mas a forma como ela estava na praia prestes a se afogar,
aquilo quebrou meus ossos e me deixou irracional. Estou segurando
seu corpo contra o meu mesmo cansado e com a porra de um
ferimento em meu peito. Em tempo recorde eu chego na minha
casa, em uma situação muito pior que a última vez. Mas quando
esse silêncio a recebe, é como se ela estivesse sempre aqui.
Depois de avançar as escadas, chuto a porta do meu quarto
deitando-a na cama. Seu vestido branco está completamente
molhado e sujo de areia. O que me aterroriza são as marcas em sua
pele.
— Meu amor, Arcane. — Minhas sobrancelhas se separam
em uma expressão angustiada. Conserto o travesseiro para que
isso ajude suas condições de alguma forma. — O que fizeram com
você, linda?
Ela parece tão vulnerável e quebrada que um monstro ruge
em meu peito. Arrumo alguns fios do seu cabelo lisos para trás, um
fato que gosto nela é o tamanho do seu cabelo, ele vai até o
começo da sua bunda mas ela quase nunca o deixa solto. Até hoje.
Retiro o meu coldre quando chego no banheiro e cuido do
ferimento em meu peito. Enrolo uma faixa no meu tronco depois de
costurar o ferimento. Arcane ainda está dormindo quando eu retorno
para o quarto. Aperto os dentes odiando a raiva que faz minha
audição chiar. Saio dos meus pensamentos embrutecidos ao ouvir
meu telefone tocar.
— Aqui é o segundo Somáli. — Minha voz é arrastada e meu
olhar ainda está sob Arcane.
— Onde você está, patron? Aconteceu alguma coisa? — A
voz do detetive Altan é cheia de preocupação. Eu nunca me atraso.
— Nós marcamos de nos encontrarmos na praia, unuttum?
Ele disse que tem informações importantes sobre o filho do
nosso inimigo, mas ainda não tive tempo de ouvi-las. Balanço a
cabeça repetidas vezes em negação e começo a esfregar o rosto,
como eu pude me esquecer disso, porra?
— Não vou poder ir, abicim. — Lamento fortemente. —
Vamos precisar remarcar.
— Merda. Como assim? — Ele questiona, completamente
espantado. — O senhor nunca desmarcou um compromisso. Eu
estou correndo risco de vida.
— Depois nós falamos, abicim. — Falo mais baixo quando
Arcane se remexe, eu simplesmente não presto atenção ao que ele
está tentando me falar, então desligo rapidamente.
Me aproximo da cama mantendo a calma até deitar ao lado
de Arcane. Céus, ela é linda pra caralho. Sua perna gira até que
está entrelaçada sob minha cintura. Eu me amaldiçoo por meu pau
inchar em um momento tão inapropriado.
— Amor, se afaste. — Sussurro quando choques de prazer
sobem por meu abdômen. Deslizo a mão por sua perna macia, mas
então sinto marcas avermelhadas de cinto.
Afasto minha mão não confiando na agressividade dos meus
pensamentos. A porta é aberta depois de duas batidas. Ergo meus
olhos quando uma empregada entra, ela me olha medrosa, então
seus olhos se engrandecem ao ver Arcane. Ela arqueja como se eu
tivesse feito isso.
— Tire as roupas dela e cuide dos ferimentos. — Eu
sussurro, a mulher balança a cabeça e aproxima sua mão, eu a
seguro em advertência. — Se você machucá-la ao menos um
pouquinho… Eu arranco sua mão e jogo para os porcos.
Seu rosto fica vermelho. Ela balança a cabeça um pouco
trêmula e retira alguns remédios e curativos. Observo em silêncio, e
de perto, cada movimento que ela faz para cuidar dos machucados
de Arcane.
Me sento em uma poltrona do outro lado do quarto,
observando Arcane dormir, sua respiração tranquila é tudo que me
segura aqui. Eu não vou exigir uma explicação agora, quero apenas
que ela fique bem. Ela se movimenta manhosa na cama e um
sorriso entorta meus lábios. Porra, sua bunda é a melhor visão do
mundo. Meu pau aperta contra a calça me torturando. Penso em
coisas que me façam murchar e mudar os pensamentos, tipo a cara
feia do meu irmão mais velho, ou quando Ajax era um bebê chorão
e chato.
Seus olhos se abrem, eu sorri de lado quando ela me encara
profundamente.
— Kalon? — Sua voz rouca acaba com toda a minha
tentativa de manter meu pau quieto.
— Boa noite, bela adormecida. — Falo cheio de humor. —
Você parece ótima.
Arcane olha ao redor, então para a bandeja cheia de comida
que está ao seu lado, mas sua expressão não se anima. Nenhum
sinal de fome, isso não é bom. Basta Arcane encarar o seu corpo
para soltar um palavrão baixo e irritante.
— Eu estou nua? Como isso aconteceu? — Seu olhar é cheio
de raiva.
— Eu tirei. — Sua rebeldia me excita. Ergo meu queixo e
respondo prontamente. — Foi uma visão dos céus.
O golpe veio certeiro. Ela arremessa a garrafa de água
mineral com toda força em meu rosto. Arquejo de dor e cambaleio
para trás.
— Cacete, Arcane! — Seguro a garrafa e massageio meu
queixo. Meu peito dói pelo movimento repentino, mordi o canto dos
lábios segurando um gemido. Arcane tapa os lábios me olhando
com os olhos brilhando. — Você não sabe brincar? — Continuo.
— Você tirou minha roupa enquanto eu estava inconsciente,
seu babaca desprezível! — Reclama firmemente, mas me observa
de um jeito diferente. — Que tipo de pervertido você é? — Diz mais
baixo.
— Pervertido por você. — Agora ela joga o travesseiro. Largo
a garrafa e reviro os olhos. Definitivamente estamos em guerra.
Atravesso a bagunça que ela causou até sentar ao seu lado.
— Tudo bem, calma! — Ergo as mãos em rendição. — Suas
roupas estavam sujas e suas costas precisavam de cuidados. —
Falo com calma.
— Isso não é uma justificativa, pervertido. — Arcane tenta
ficar em pé, mas geme e cai de bunda na cama.
— Mas que coisinha selvagem e rebelde. — Resmungo,
segurando sua cintura para ela não cair. Seu olhar me fuzila em
silêncio.
— O que pensa que está fazendo? — Questiona firmemente
quando eu me inclino para tocar seu rosto. Ela está na defensiva.
— Quieta. — Ordeno. Ela encolhe as pernas para esconder
suas partes íntimas, leva tudo de mim para não olhar seu corpo.
Seu olhar cai para seu colo, ela está nervosa e suas sobrancelhas
estão separadas em uma expressão triste. Puxo o lençol
cuidadosamente para cobrir seus seios.
— Dói muito? — Pergunto, deslizando o indicador por sua
bochecha. Ela não responde. Raiva brilha em seus olhos.
— A pomada está aliviando. — Seus ombros balançam em
indiferença.
— Está com fome? — Aponto para a comida. — Está com
uma cara ótima.
— Não. — Ela faz uma careta enjoada. — Eu não consigo
comer agora.
Suspiro pesadamente. Percebo que não vou conseguir
segurar a minha língua, eu preciso saber quem fez isso com ela.
Deve existir um grande motivo para algum filho da puta tocar em
minha propriedade.
— Quem fez isso e porquê, Arcane? — Eu realmente quero
saber isso. Quero conhecer a justificativa para ela ser machucada
de uma maneira tão severa.
Meus lábios se apertam em uma linha fina ao reconhecer que
nada justifica uma agressão. Absolutamente nada.
— Fale. — Peço em um sussurro trêmulo. — Converse
comigo. Me dê alguma abertura. — Meu coração fraqueja contra
meu peito. Minha mão quase toca a sua quando me inclino em sua
direção.
Seus olhos se erguem para me analisar, existe
vulnerabilidade e desconfiança em seu olhar. Céus. Esse brilho faz
eu me sentir culpado por todos os erros que eu já cometi na vida.
Essa mulher é apenas uma menina que foi obrigada a crescer cedo
demais, que foi vítima de muita violência e brutalidade. Quero
abraçá-la, mas me seguro.
— Você vai me ouvir a noite toda? — Sua voz está
embargada. Seu olhar me queima.
Eu sou incapaz de formar palavras quando estou tão
concentrado em lhe apreciar, mas balanço a cabeça em
concordância, esperando que ela fale. Mesmo que dure noites,
madrugadas e anos, eu estarei aqui ouvindo-a.
— Esqueça isso, por favor. — Arcane suspira. Eu gostaria de
saber seus pensamentos.
Quando ela se ergue da cama, puxando o lençol para se
cobrir, eu faço o mesmo por puro reflexo. Estendo minhas mãos por
precaução para amparar sua queda, ela encara meu gesto como se
fosse a primeira vez que alguém lhe estende a mão. Tristeza brilha
em seus olhos.
— Eu não posso estar aqui. — Sibila. — Preciso voltar para
casa, faz muito tempo que estou fora e preciso ver minhas irmãs. —
Arcane se inclina para pegar suas botas, observo suas pernas, há
marcas avermelhadas. Ela cambaleia para frente.
Porra. Abraço sua cintura mantendo seu corpo contra o meu.
Seu cheiro me domina e me desestabiliza. Suas mãos deslizam por
minha pele buscando apoio, eu puxo sua cintura ao ponto de deixá-
la na ponta dos pés.
— Não, amor. — Sussurro baixinho. — Você precisa
descansar, apenas isso. — Estou economizando palavras porque
sinto que se minha boca se abrir mais uma vez, eu serei capaz de
devorar seus lábios e não parar até que ela o faça.
Eu empurro cuidadosamente o seu corpo até a cama até que
ela deita. Seus cabelos deslizam pelos travesseiros, seus olhos
assustados estão me encarando e eu vejo demônios e deuses
brilhando na cor deles. Arcane encolhe as pernas quando eu me
aproximo para deitar também.
— Eu não vou machucar você. — Sussurro, observando sua
pele macia. Nossos corpos estão tão próximos que eu me sinto
terrivelmente fraco por meu pau estar tão duro. Maldita hora para
atrapalhar, garoto. Ela balança a cabeça em negação quando
envolvo sua cintura em um abraço apertado. — Arcane, eu prometo
a você.
Eu jamais faria alguma coisa com ela, nesse momento tudo
que eu preciso é que ela fique bem. Seus dedos raspam a lateral do
meu tronco sem camisa e eu estremeço. Meus olhos se apertam em
sua direção, minha respiração fica pesada.
— O que é isso? — Ela sussurra, ainda deslizando a ponta
dos dedos sob minha tatuagem na costela.
— Deus disse uma vez que todo homem tem a parte da sua
costela esperando em algum lugar no mundo, porque não é bom
que alguém viva sozinho. Eu penso que são como almas gêmeas.
— Acaricio sua silhueta quase como se estivesse a tocando, mas
minha mão apenas vaga no espaço entre nós. — Eu acreditava que
algo viria e mudaria toda a minha vida. Que acima de tudo, eu seria
pego de surpresa bem na porta durante essas voltas forçadas para
casa. Esse sentimento ainda permanece no limiar, e meus olhos
ainda são de uma criancinha que espera que algo milagroso
aconteça. — Limpo a garganta, gostando que ela tenha perguntado
sobre a tatuagem. — Então, eu tatuei minha costela com essas
palavras. — Aponto. — “Venha e me encontre, porque você é a
minha alma.” — Balanço os ombros. — É exatamente isso que está
escrito aí.
— Muito lindo. — Ela responde depois de um tempo
encarando as palavras em minha pele. — Mas eu não entendo. —
Seu rosto se ergue, limpo de toda raiva e tristeza. — Não entendo
como alguém consegue manter a esperança durante anos. — Então
ela fecha os olhos, suspirando de um jeito sonolento e adorável.
Ela está acordada. Sua mão permanece ao meu redor, os
dedos desenhando sob as letras em minha costela. Meu peito
aperta profundamente. Também fecho meus olhos quando sua
perna se ergue por cima da minha cintura. Ela parece tão
confortável que eu não ouso me mexer.
— Não durma. Você precisa comer. — Resmungo depois de
um tempo, me movimentando para ficar sentado.
Arcane está me observando. Pego uma fatia da torta de
massa de filó recheada com queijo. O cheiro é muito bom e ainda
está quentinho. Uso a ponta dos dedos para separar os pedaços,
Arcane não deixa de me observar até que levo um pouco para sua
boca.
— Abra e coma. — Sussurro.
— Eu posso fazer isso sozinha. — Ela resmunga.
— Assim como eu posso fazer isso por você. — Ela separa
os lábios e recebe o pedaço de torta. Seus olhos se fecham como
se o gosto fosse a melhor coisa que já provou. Um suspiro pesado
escapa dos seus lábios, eu pego outro pedaço e levo a sua boca,
suas bochechas ficam vermelhas conforme vou alimentando-a em
silêncio.
— Isso está melhor do que eu imaginei. — Ela respira fundo.
— O gosto é delicioso.
— Sim, eu sei, mesmo que eu nunca tenha provado. —
Provoco. Suas bochechas ficam vermelhas ao entender minhas
palavras. Sua expressão muda para choque e algo a mais. Quero
desvendar isso com a ponta da minha língua.
— Não diga essas coisas, seu idiota. — Ela reclama antes de
receber outro pedaço. Porra, não é em sua boca que eu quero
colocar esses dedos depois de ouvir seu insulto.
— Último pedaço. — Aponto. — E se você está flertando
comigo, então já está bem melhor, hein? — Ela morde o último
pedaço. Sua língua, de um jeito tímido, desliza por meus dedos para
sugar o sal. Sua respiração está pesada.
Eu sorri de lado me sentindo satisfeito com a visão de Arcane
alimentada.
— Você quer mais, amor? — Ergo uma sobrancelha. — Ou
quer fazer o mesmo comigo? — Ela aperta as pernas e se remexe
na cama.
— Não seja inconveniente, Kalon. — Arcane balança a
cabeça em negação. — Você é insuportável. Eu acho incrível como
não gosto de você.
— E você é linda. — Minha palma desliza por seu joelho,
puxando-a minimamente para mais perto.
Foi impossível não ficar de pau duro quando ela abre as
pernas minimamente ao mudar de posição, mesmo que esteja de
peça íntima, essa visão me deixa desorientado. Está decidido, ela
deve ficar bem longe de mim para não correr perigo.
— Deite, Arcane. — Sussurro. — Durma, para seu próprio
bem. — Acrescento.
Ela o faz, me ignorando completamente quando deito ao seu
lado e mudo a iluminação do quarto para meia luz.
— Estou com frio. — Ela reclama depois de um tempo.
— Eu esqueci disso. — Puxo o edredom, me certificando de
que seu corpo está completamente coberto, então me movimento
para mais perto até sentir seu calor.
— Eu não queria atirar em você. — Arcane sussurra.
— Eu sei. — Abro meus olhos. Ela está encarando meu peito
enfaixado. Culpa brilha em seus olhos. — Você estava perdida em
alguma coisa na sua cabeça, sei que você não quis atirar. — Minha
voz é distante quando encaro o teto.
— Foi Yuri. — Arcane diz tão baixo que pensei ter escutado
errado. Isso é tudo o que ela me entrega e meu peito aperta cheio
de raiva. Qualquer conforto que eu sentia acabou de desaparecer.
Eu vou fazê-lo pagar. É o que eu digo em silêncio. De alguma
forma Yuri vai pagar por isso. Eu vou fazer da sua vida um inferno
por tocar no que é meu.
— Você é minha. — Olho para Arcane. — Ninguém pode
tocar em você. Não vou deixar que façam. — Analiso seu rosto.
— Eu não quero ser sua. — Ela balança a cabeça em
negação. — Eu não sou.
Porra. Tudo que invade meus pensamentos é o rosto do
homem que ela estava abraçando na porta daquele restaurante.
Tentei encontrá-lo de todas as formas, mas é como se o fodido
fosse um fantasma. Minha expressão muda para raiva quando
encaro Arcane novamente, quero saber o que ela fez para escondê-
lo.
— Você é minha, Arcane. — Meu tom está cheio de posse. —
Você será.
15. UMA LINDA MULHER
“Tudo espera pelo seu tempo. A rosa não se abre antes do
sol nascer. Espere, o que é seu virá até você.”
— MEVLANA.

Acordo em um sobressalto, meu peito apertando e


sufocando. Consigo ouvir Yuri com clareza jurando destruir eu e
minhas irmãs. Eu choramingo e puxo minhas pernas para abraçar
meus joelhos.
— Arcane mou? — Ouço a voz de Kalon, procuro por seu
corpo ao meu lado, mas ele não está aqui. Vejo sua sombra na
poltrona, sua cabeça está inclinada para trás e os braços cruzados.
Seu olhar é pesado, como se estivesse lutando contra o sono.
— Foi um pesadelo. — Nunca imaginei ser tão lindo alguém
sussurrar de maneira tão calma e carinhosa. — Você pode relaxar,
eu estava aqui o tempo inteiro… Ninguém pode machucar você.
Uma promessa em meio a tanta que ele insiste em fazer.
Observo seus olhos verdes e expressivos, a veracidade que me
consome é como uma tempestade devastadora. Esse homem é
fodidamente bonito,mas nunca vou dizer em voz alta.
Meu peito murcha ao relembrar o que ele está tirando de
mim. Liberdade é uma coisa tão valiosa, e a minha foi colocada na
palma da sua mão. Eu sinto tanta raiva disso que um rosnado
escapa dos meus lábios.
—Não me olhe assim, miserável. — Resmungo entre dentes.
Suas sobrancelhas se unem em completa confusão ao ouvir minhas
palavras.
— Sério? — Ele ri. — Você acorda e a primeira coisa que faz
é me chamar de...
— Babaca. — Interrompo suas palavras, no próximo segundo
estou tentando me erguer da cama. Não suporto ficar perto dele e
encarar meu destino estampado em sua presença.
— Tudo bem. — Ele ergue as mãos em rendição. — Pelo
visto, nada de trégua por aqui. — Gargalha. — Já será suficiente se
você disser um: "Obrigada, meu maravilhoso e gostoso futuro
esposo. Você realmente é uma delícia de homem. Obrigada por me
ajudar." — Sua voz me irrita profundamente, aperto meus olhos em
sua direção esperando que ele feche essa matraca.
— Você está muito convencido, devia ir se foder. — Reviro
meus olhos.
Kalon ri, mas não fala uma única palavra. Enrolada no
edredom, eu me concentro em procurar por minha roupa. Preciso
voltar pra casa e ver minhas irmãs.
— Estão na lavanderia, Arcane mou. — Estremeço,
assustada, quando Kalon fala atrás de mim. Minhas pernas estão
trêmulas.
— Você está louco? — Bato as mãos com força no móvel,
produzindo um ruído feio.
— Pelo visto você está melhor. — Suas mãos acariciam
minha cintura, me causando calafrios. Meu coração aperta e eu
fecho os olhos. Eu odeio seu toque ao mesmo tempo em que anseio
por mais.
Suas mãos me viram com lentidão até que estamos de frente
para o outro. Seus olhos apreciam cada maldita curva.
Enfraquecimento me consome quando seus dedos afundam entre
os fios do meu cabelo. Porra. Minha mente está perdida.
— Fica. — Seus lábios formam palavras de um jeito sensual.
— Por que você não fica? — Ele está encarando minha boca, eu
sinto tudo dentro de mim esquentar ao ponto de me fazer suspirar.
— Eu já fiquei. — Respondo ao erguer meu queixo, a frieza
rapidamente dança por meus olhos. Eu não vou me render ao
homem que está destruindo minha vida com esse casamento
arranjado.
— Fique mais tempo, podemos tomar café da manhã juntos
daqui a pouco, já está amanhecendo. — Kalon inclina a cabeça para
frente. Seu rosto está tão próximo que meu útero dói.
Fico sem reação quando a ponta do seu nariz desliza por
meu pescoço e ele suspira meu cheiro. Seus lábios tocam minha
clavícula e eu me sinto febril.
— Você está cheirosa. — Suas palavras me partem ao meio.
— Seu cabelo é tão maravilhoso.
— Pare com isso, eu não quero você perto de mim. — Falho
em soar firme.
Seu olhar se encontra com o meu, Kalon parece transtornado
ao sair dos seus pensamentos obscenos, suas sobrancelhas se
separam e ele balança a cabeça em concordância. Encaro suas
roupas, menos seu rosto. Os músculos sempre apertados no tecido
que pare sensível apenas por envolvê-lo.
— Eu já estou indo. — Sibilo, agarrando meus sapatos.
— Certo. — Kalon pisca e engole em seco. — Eu posso
acompanhar você.
— Eu não quero. — Mantenho meu olhar raivoso. Saio do
quarto procurando pela lavanderia, e quando encontro meu vestido,
visto-o mesmo que esteja molhado.
Não ouço Kalon atrás de mim, nem sinto sua presença
conforme caminho por sua casa até encontrar a saída. Aceno para
um táxi quando estou fora do condomínio.
Trinta minutos depois, estou em casa. Meu estômago
embrulha ao relembrar o que aconteceu horas atrás, eu gostaria de
estar em qualquer lugar menos nessa mansão sombria.
Sussurros ecoam da cozinha, seguido por risadas suaves.
— Kalimera. — Aceno quando vejo Melissa e Nimue.
— Arcane mou? — As duas me chamam ao mesmo tempo.
Isso me faz rir. — Ah, Jesus! Você chegou! — Melissa corre em
minha direção. Preocupação brilha em seus olhos, assim como nos
de Nimue.
Sinto cheiro de comida e imediatamente eu volto a me sentir
em casa. Aperto Melissa com tanta força que ela respira fundo.
Nimue me abraça pela cintura e beija meus cabelos.
— Não está com frio? — Ela pergunta retirando seu moletom
e colocando sob os meus ombros. — Não devia ter saído apenas de
vestido, Arcane. Está muito frio lá fora.
— Não se preocupe. — Balanço a cabeça. — O que vocês
estão aprontando? — Mudo de assunto na intenção de fortalecer a
ideia de que estou bem. Quero apenas fingir que nada aconteceu.
— Culpa dela. — Nimue se defende como uma criança
rechonchuda, apontando em direção a Melissa. Minha irmã mais
velha estremece de um jeito dramático. Eu ri fraco, me apoio contra
a parede assistindo as duas.
— Eu estou morrendo de sono. — Forço um bocejo. — Não
comam tudo. — Peço baixinho. — Deixem um pouco para quando
eu acordar mais tarde.
— Combinado. — Melissa sorri. — Você quer chá?
— Agora não. — Balanço a cabeça. — Quero apenas deitar.
— Aponto por cima do ombro.
— Tudo bem, você deve descansar um pouco. — Nimue
sorri. — Daqui a pouco vamos deitar ao seu lado.
Eu balanço a cabeça e dou as costas. Abandono minhas
roupas no momento em que fecho a porta e me escondo debaixo
das cobertas. Tudo consome minha mente com agressividade,
relembro de cada acontecimento até Kalon me encontrar na praia.
Não consigo esquecer o formato dos seus lábios e a cor dos seus
olhos. Acho que estou doente de raiva.
A impotência faz um estrago maior que o medo. Estou tão
farta que um grito escapa dos meus lábios, o som é sufocado pelo
travesseiro. Sinto culpa pela morte de Nikoleta, ela era a única
amiga que eu tinha e me tratou.
Ainda me lembro de todo o sangue espalhado pelo chão
quando eu tirei sua vida para me defender do seu ataque com
aquela barra de ferro. Sua morte está em meus ombros e seu
fantasma não me deixa esquecer disso.
Talvez eu tenha nascido para viver como um animal
enjaulado pagando por meus pecados. A morte daquela mulher
também está em meus ombros. O fogo daquela Páscoa Sombria
ainda invade meus sonhos. Eu me lembro das pessoas
comemorando nas ruas, dos gritos e de Yuri entrando pela porta da
frente.
Nós gregos temos o costume de jogar vasos de barro da
janela para comemorar a Páscoa, mas aquela mulher tentou jogar
minhas irmãs. Nós lutamos com ela e em um momento de
descontrole a casa começou a queimar. Ela estava grávida e
morreu. Ela sempre fez de tudo para se livrar de nós e estava
esperando o momento perfeito para fazer isso.
Enxugo o rosto molhado pelas lágrimas, saindo dos meus
pensamentos. Queria que Yuri também estivesse morto.
Sinto minhas irmãs debaixo das cobertas para dormir comigo,
um choro feio escapa dos meus lábios e elas me abraçam com
força. Estou chorando porque está claro que nunca serei livre. Estou
condenada a esse inferno, mas pelo menos tenho minhas meninas.
No dia seguinte, chego cedo à mansão Somáli para investigar
as câmeras de segurança. Quero descobrir quem está por trás do
ataque daquela noite. Estou horas de frente aos monitores revendo
as filmagens de todos os ângulos.
Tenho um sobressalto quando alguém bate na porta.
— Arcane mou? — Atena está do outro lado me observando.
— Sim? — Arrumo meus cabelos.
— Pelo amor de Deus, o que faz aqui? Vamos almoçar juntas
e fazer compras. — Ela acena. — Você não precisa continuar
trabalhando para Yuri e Ivan, eu tenho certeza que eles vão
encontrar outro guarda-costas para mim.
— Ah, não. — Eu estalo a língua. — O contrato ainda não
expirou. Eu tenho um mês.
— Deixa disso, Arcane. — Ela caminha em minha direção.
Um resmungo insatisfeito escapa da minha boca quando ela me
puxa para levantar. — Vamos comer alguma coisa.
Eu fecho o computador quando percebo que não tenho outra
alternativa. Atena segura o meu braço, me guiando pelos corredores
da mansão e conversando sobre alguma coisa que eu não consigo
me concentrar. Uma comoção na cozinha chama a nossa atenção.
São as vozes alteradas e palavrões ríspidos de Kalon e Kol.
— Eu juro que atiro em você, porra! — Kol amassa a camisa
de Kalon. Seu olhar é sombrio e ameaçador.
— O que está acontecendo aqui? — A voz de Atena faz os
dois irmãos saírem da névoa assassina que os consome.
O olhar de Kalon inspeciona cada pedaço do meu corpo, e
ele pisca, como se estivesse processando que sou real. Um
resmungo grave ecoa da sua garganta quando ele aponta para Kol
com a cabeça.
— Diga para Atena, querido. — Sua voz é ríspida.
— Certo, recebemos a notícia de que Altan está morto,
Senhorita. — Kol observa sua mãe com atenção, sua expressão
muda de confusão para choque e tristeza.
— Não me diga isso. — Ela arqueja. — Ah, meu Deus. —
Sua mão está trêmula. Eu acho que ela está prestes a chorar, então
seguro sua mão para confortar.
Atena suspira e eu a ajudo a sentar. Altan é um amigo íntimo
da família, ele esteve aqui várias vezes enquanto eu trabalhava e
sempre foi gentil com Atena e comigo. Ele sempre mandava
presentes e interrompia seus negócios com os homens dessa
família para perguntar como ela estava.
— Como isso aconteceu? — Eu entro na conversa. Essa
notícia também me deixa em choque. — Quem pode ter feito isso?
— É o que estamos tentando descobrir. — Kol balança os
ombros em resposta. Seu olhar é rápido para Kalon, como se
soubessem de mais alguma coisa. — A última vez que Kalon teve
notícia do rapaz, ele estava tentando dizer alguma coisa mas o filho
da mãe desligou em sua cara.
Kol aperta os lábios, ficando de frente para Kalon que não
muda sua expressão.
— Eu estava ocupado, já falei disso. Não ia adivinhar que
isso aconteceria. — Kalon balança os ombros como se a acusação
do irmão não o afetasse.
— Os outros sabem disso? — Atena está visivelmente
nervosa. Entrego um copo d'água para ela tomar, eu acaricio suas
costas.
— Estamos tentando ligar para Rajá, mas ele não atende. —
Kalon dá atenção para sua mãe. — Precisamos de um funeral
dentro da tradição islâmica.
— Eu vou ligar para Ajax, eles devem estar juntos. — Atena
retira seu celular da bolsa. Ela funga.
— Por favor, me deixe cuidar disso. — Tento fazer com que
ela se sente na cadeira, mas Atena se esquiva. — Você está
tremendo.
— Eu vou ficar melhor quando falar com meus outros filhos.
— Ela insiste.
— Então eu acompanho você. Me deixe cuidar disso. —
Seguro sua bolsa.
— Não, fique aqui. Você não precisa se envolver em um
problema tão grande. — Ela umedece os lábios. — Não quero isso
pra você, querida. Quero que tenha uma vida normal.
— Atena, é a morte do seu amigo. — Eu protesto, sem
compreender. Se eu me movimentar vou conseguir investigar
alguma coisa sobre seu assassinato maisrápido que os outros.
Ela balança a cabeça e apenas ergue a mão, desaparecendo
pelo lugar que entramos. Faço uma careta olhando para os dois
irmãos.
— Você deixou ela nervosa, podia ser um pouco mais
sensível, não acha? — Kalon repreende Kol.
— Ela ia ficar nervosa de qualquer jeito, estamos falando
sobre a morte de alguém. — Kol retira um cigarro da sua carteira e
acende, começando a caminhar pelo cômodo. — Além disso, o
homem era turco. Não há razão para nos envolvermos.
— Ele era nosso amigo, e se ele estiver morto por nossa
causa? — Kalon rosna, exibindo os dentes.
— Eu não tenho nada a ver com isso. — Ele ergue as mãos.
— Sempre trabalhei por conta própria.
Junto minhas sobrancelhas em reprovação a sua frieza.
Encaro os dois tentando descobrir mais coisas sobre esse
assassinato. O que Altan estava tentando dizer a Kalon?
Kol percebe meu olhar curioso e sorri, apontando o cigarro
em minha direção.
— Quer um trago, bonequinha? — Ele pisca de um jeito
cínico. Minha resposta é abafada por um resmungo impaciente de
Kalon Somáli, o qual está me encarando como se quisesse me
agarrar ou bater. Que grande imbecil, eu não fiz nada.
— Arcane e eu vamos conversar lá fora. — Seu queixo indica
a saída da cozinha.
— Não, não vamos. — De forma alguma vou ficar sozinha
com esse homem. Não quero olhar em seu rosto e lembrar como ele
estava disposto a me salvar, como ele me segurou nos braços e me
carregou para longe. Essa lembrança é demais pra mim.
— E eu quero um trago, Kol. — Respondo apenas para
provocar meu futuro ex-noivo. Meu sorriso é traiçoeiro quando
caminho até a janela aberta onde Kol está apoiado. — Eu nunca
fumei antes.
— Fico feliz em ser o seu primeiro. — Ele ri. — Não tem erro,
basta colocar na boca e relaxar. Diante dessa situação… — Aponta
ao redor. — Estamos precisando. — Faço uma careta quando ele
me entrega o cigarro e eu sugo.
Porra. Imediatamente tudo dentro de mim está ardendo.
Meus olhos estão lacrimejados e meu pulmão cheio de fumaça. Me
distraio quando uma gargalhada cheia de diversão escapa de Kol
quando eu começo a tossir.
— Você é determinada. — Kol balança a mão ainda rindo. —
Fumou com tudo. — Seu olhar corre para Kalon como se essa fosse
uma piada que não pode rir sozinho.
No entanto, o homem está sombriamente quieto enquanto
encara nós dois. Suas mãos pesadas deslizam sob a bancada como
se ele estivesse buscando algum controle.
— Você é louca. — Kalon sibila. — E isso é coisa de
vagabundo. — Ele aponta o dedo para Kol como se o cara fosse o
símbolo da sua definição.
— Não é legal um cavalheiro falar assim com uma mulher. —
Aponto o dedo em sua direção.
— Fico até tímido em saber que você me considera um
cavalheiro. — Ele rosna, me fazendo beber um copo de água
quando voltei a tossir
— O que é isso que deixou Kalon tão bravo? — Minha voz
está pesada.
— Maconha. — Kol ainda está rindo. — Não consegue sentir
como é doce? Alguns até chamam de melzinho.
— Isso é horrível, como os filhinhos de papai adoram essa
porra? — Mais um copo de água é entregue em minhas mãos por
Kalon. Ele está sibilando palavrões para as gargalhadas de Kol.
— Céus, eu apenas dei as costas e você colocou a boca
nisso aí. — Ele cruza os braços. Porra, o homem realmente ficou
nervoso. — Está querendo chamar minha atenção? Não faça nada,
você só precisa existir para isso. — Seu olhar é severo, suas
bochechas estão vermelhas com tanto descontentamento.
— Ah, fala sério. Eu não fumei tanto. — Eu reviro os olhos.
Ele realmente não se cansa de falar essas coisas que me deixam
constrangida. — Não estou interessada em você. — Na verdade,
quero chamar a atenção de Kol e ganhar sua intimidade para
conseguir informações sobre a morte de Altan.
Quero saber quem matou o advogado da família, pois isso
me parece suspeito. Eu sei que se eu buscar por pistas através de
Kalon e Atena eles vão perceber minhas intenções e me proibirão
de continuar trabalhando para essa família, eles podem usar a
desculpa de que já fui dispensada da função de guarda-costas. Mas
nem fodendo que vou me submeter ao pedido de Atena para me
comportar apenas como uma noiva. Então, Kol Somáli chapado de
maconha é a melhor forma de investigar secretamente a morte de
Altan. Sinto que eles estão deixando passar alguma coisa.
Eu aprendi com meu pai que só se ganha a confiança de um
homem, ao ponto de passar a perna nele, se você amaciar seu ego
e idolatrar seus costumes. Ignoro completamente a carranca que
Kalon está me direcionando e apoio a lateral do meu corpo na
parede.
— Então, o que você estava dizendo? — Encaro o cigarro
entre seus dedos.
— Que as pessoas fumam por estilo de vida, vício,
ostentação… — Kol suspira, não terminando suas palavras quando
Kalon limpa a garganta. Seu irmão faz uma carranca e volta a fumar.
— Como vocês receberam a notícia de que Altan está morto?
— Eu pergunto quando o olhar de Kol cruza com o meu.
— Eu encontrei o corpo dele em uma fábrica abandonada
aqui perto. — Ele limpa a garganta, soprando fumaça em meu rosto.
Ótimo, agora eu já tenho uma pista de onde começar a investigar.
Balanço a mão pra dissipar a nuvem de fumaça.
— Me dê o endereço, será reconfortante se eu enviar flores
em nome de Atena. — Quando uma pessoa querida é brutalmente
assassinada, nós temos o costume de enviar flores para o local do
crime não ficar tão sombrio.
— A fábrica já está fechada pelas autoridades, não podemos
interferir. — Kalon interrompe, avançando minimamente entre eu e
Kol como se não gostasse da nossa proximidade. Foi necessário
seu irmão recuar alguns passos para não ser atropelado. — De
acordo com os costumes da Alkyóna, nós só podemos fazer alguma
coisa quando os quatro Somáli estiverem reunidos para o funeral
que dura até o amanhecer e o corpo ser enterrado. — Ele finaliza,
encarando seu relógio.
Para alguns é angustiante, mas precisamos esperar o corpo
da pessoa morta ser completamente purificado enquanto é realizado
cinco orações para que a alma encontre descanso. Depois de um
tempo é que o corpo pode ser enterrado e seu túmulo regado.
Eu estou pouco me fodendo para as regras da Alkyóna, então
tenho tempo suficiente para investigar a morte de Altan. Satisfação
brilha em meu rosto quando lembro de quem pode me ajudar com
isso.
— Tudo bem, então como vamos precisar esperar até o
momento do enterro, tenho que voltar para casa e me preparar para
acompanhar Atena. — Aponto para a cabeça, indicando que vou
precisar de um hijab.
— Está certo, eu não sabia que você era tão religiosa. —
Kalon aperta os olhos em minha direção, mas balança a cabeça
profundamente em concordância.
— Deixe nossa garota respirar um pouco, seu grande
possessivo. — Kol começa a tossir e puxa seu irmão para caminhar
até o quintal da casa.
Nossa garota? Eu reviro os olhos. Aparentemente a raça
masculina mantém todos eles como farinha do mesmo saco.
— Tomara que engasguem com essa maconha horrível. —
Bebo mais um copo de água para afastar o gosto dormente que
ficou em minha boca.
Agarro meu telefone e ligo para a única pessoa nesse mundo
que pode me ajudar nesse momento. No primeiro toque minha irmã
atende.
— Você ainda está na clínica veterinária? — Eu sussurro,
olhando para o lado.
Melissa é uma garota muito inteligente, pena que ela esconde
seu potencial atrás de uma beleza sufocante. Minha irmã gosta de
causar a impressão que é superficial, que não passa de um rostinho
bonito, mas o fato é que os homens da Alkyóna atirariam na própria
cabeça ao descobrirem como ela é mais inteligente que todo
mundo. Não há ninguém como Melissa. Ela consegue hackear
qualquer coisa sem nenhum esforço.
— Arcane mou? Você lembra que eu existo? — Ela debocha
e isso me faz gargalhar.
—Não seja palhaça, meu amor! — O problema é que para ir
embora vou precisar passar por Kalon e Kol que estão bebendo no
quintal. Afundo um punho na minha jaqueta de couro e começo a
andar ignorando suas vozes. — Você não está com saudades da
sua garota? Hoje eu estou saindo mais cedo e adoraria encontrar
você, Sherlock Holmes.
Melissa detesta esse apelido e seu gemido foi o suficiente
para me arrancar uma risadinha satisfeita. Imediatamente sinto
minhas costas queimando, e por reflexo, meu rosto gira encarando o
olhar sombrio dos dois irmãos. No entanto, o olhar de Kalon é
equivalente ao dobro da carranca que Kol mantém. Minha
sobrancelha se ergue em questionamento. Há algo de errado?
— Sherlock Holmes, certo? Por acaso esse apelido está se
tornando popular? — É Kol quem resmunga. Dependendo da
frequência em que você escuta por aí, penso em dizer, mas eu
apenas balanço os ombros em resposta.
— Leve um guarda-chuva. — A voz de Kalon é raivosa
enquanto encara meu celular como se fosse um monstro. Sua
expressão é tão quente que não consigo ouvir as coisas que
Melissa está resmungando do outro lado da linha. Meu sangue está
fervendo com o olhar desse homem.
Caminho para trás, quase tropeçando, quando ele avança em
minha direção segurando o maldito guarda-chuva. Kalon abre, sem
desviar os olhos de mim, então coloca acima da minha cabeça e
puxa a minha mão que estava no bolso. Eu aperto com força e ele
faz o mesmo quando cobre a minha mão com a sua.
— Kalon, realmente não preci…
— Aposto que o seu maldito amante está pouco se fodendo
caso você pegue um resfriado e morra. — Frieza domina seu tom de
voz quando ele me interrompe. — Melhor tomar mais cuidado,
querida. — A última palavra sai em um tom amargo.
Com isso, ele dá as costas desaparecendo dentro da
mansão. Puta merda. Essa mentira sobre Pavlos ser o meu amante
ainda pode acabar com a minha vida. Faço uma nota mental para
acabar com essa história antes que seja tarde demais.
16. ACHO QUE SUA CASA É
ASSOMBRADA
“Palavras não são verdades, são sons que saem da boca.
Para descobrir a verdade, você precisa viver, não falar.”
— MEVLANA.

— Me diga se o que eu acabei de ouvir não foi a maior


demonstração de macho alfa? — Melissa fala pausadamente do
outro lado da linha. Aperto os olhos em completo constrangimento
quando estou fora dos limites da mansão.
— Nenhuma palavra sobre isso. — Um gemido horrorizado
escapa da minha boca.
— Já assistiu Todo Mundo Odeia o Chris? Porque existe uma
frase icônica que combina muito com esse momento. — Ela
continua falando. Está decidido, ainda hoje eu vou atirar em minha
cabeça e me livrar dessa humilhação.
— Não se atreva a continuar falando sobre isso, Melissa. —
Aperto os olhos.
— Cara, ele está tão na sua! — Ela dá uma gargalhada
amável.
— Engraçadinha. — Não consigo conter meu sorriso diante
da sua risada maravilhosa. — Eu odeio estragar o seu evento
canônico em reconhecer que Kalon Somáli é insuportável, mas
preciso da sua ajuda com algo mais importante. — Sussurro,
olhando ao redor quando entro em um beco. — Há algo de errado
nessa família, Mel.
— Sempre há algo de errado com a porra de um Somáli. —
Ela sussurra de volta. — Isso não é novidade. — Sua voz possui um
tom mordaz e trêmulo.
Ela suspira. Eu faço o mesmo.
— Eu estou fazendo as minhas unhas agora, mas posso
ouvir você reclamar sobre Kalon o dia inteiro. — Sua risada amável
continua a invadir meus ouvidos. Meus lábios se repuxam em um
sorriso bobo. É isso, eu amo ouvir esse som. — Isso me diverte.
— Também me diverte. — Chuto uma pedrinha, me referindo
a sua risada queme deixa leve. — Você é a melhor vigarista
imprestável que eu conheço, larga a porra do esmalte e tente me
ajudar, Melzinha. — Arrumo meus cabelos em um coque
bagunçado.
— Preciso mudar minha aparência. — Reviro minha bolsa até
que encontro um lenço para usar como hijab. — Não vai demorar.
— Fique a vontade. — Ela está cantarolando. — Vou sair
com Pavlos mais tarde, agora ele está comprando comida com
Nimue. Você tem vinte minutos. — Pelo visto eles estão tendo um
dia melhor que o meu. — Queria que você estivesse aqui. Nós
vamos comer Moussaka.
— Se tem Moussaka então eu posso fazer um esforço para
fugir. — Brinco.
— Por favor, venha mesmo. Podemos fazer uma fogueira e
dançar, beber vinho e cantar algumas músicas. — Ela se anima. —
O que você acha de amarelo para minhas unhas?
— Para suas unhas? — Dou risada. — Eu acho que combina
melhor com as pontas duplas do seu cabelo.
— Sua ridícula, eu estava testando você. Nunca se fala para
uma mulher sobre o cabelo dela, Arcane. — Um som repulsivo
escapa da sua boca ao sentir a minha provocação. Ela é tão
dramática às vezes. — Você não sabe nada sobre moda, não pode
opinar. — Eu dou risada. Isso é mentira, meu gosto é apenas
diferente do dela.
— Eu preciso de informações sobre o assassinato de alguém,
isso te anima? — Falo mais baixo. — Preciso descobrir quem matou
Altan.
— Me conte os detalhes. — Ela fala. — Eu vou abrir meu
notebook, tenho um programa instalado nele. — Em menos de cinco
minutos eu conto tudo que aconteceu para Melissa.
Desde o nervosismo de Atena até a parte em que fumei
maconha, e principalmente sobre o clima tenso que estava entre os
irmãos antes de perceberem que a gente estava na cozinha.
— Isso é uma loucura. — Melissa suspira. — Também é
muito perigoso. Você está mexendo com gente grande, Ane. Se
você descobrir demais pode acabar machucada.
— Não se preocupe, eu tenho tudo sob controle. — Paro na
frente de um carro pra ver como o hijab improvisado ficou.
Eu sou uma mulher preparada, sempre guardo um lenço em
minha bolsa para ocasiões onde preciso me misturar, afinal, na
Grécia é mais comum as mulheres usarem a cabeça coberta por um
hijab. Faz parte da tradição islâmica que mantém fiel metade da
população grega, a outra metade é ortodoxa.
— Acho que estou pronta. — Giro o rosto, analisando todos
os ângulos. Meu próximo passo é amassar minha jaqueta na bolsa e
cobrir meus ombros com o que sobrou do hijab.
— E então? Não vai me explicar o motivo para Kalon achar
que você tem um amante? — Ela ri. — Eu queria fingir que não ouvi
essa parte da conversa, mas estou curiosa.
Minha expressão murcha ao sentir suas palavras, eu
resmungo, sentindo culpa. Aí, droga. Massageio o rosto quando
confesso:
— Lembra quando eu encontrei Pavlos na rua e ele ligou
para você? — Começo a falar.
— Na verdade, fui eu quem liguei para ele. — Ela estala a
língua.
— Acontece que Kalon estava me vendo de dentro do
restaurante e agora pensa que Pavlos é meu namorado, e eu meio
que estive fazendo ele acreditar que é isso mesmo.
Aperto os olhos imaginando que isso pode deixá-la furiosa,
mas o contrário acontece quando minha irmã explode em uma
gargalhada tão humorada que faz meus ossos doerem de
satisfação.
— Não acredito nisso! — Ela toma fôlego. — Merda, como eu
gostaria de ter visto, Ane! — Ela ainda está sufocando em
gargalhadas.
— Então você não está furiosa por eu supostamente estar
usando o seu namorado para contar uma mentira? — Me sinto
péssima quando as palavras são ditas em voz alta. Parece patético
e desesperado.
— Claro que não, se essa ideia servir para você ficar livre
desse casamento, então eu estou dentro. — Sua voz é firme. —
Pode contar comigo, Ane. Podemos até mesmo bolar um plano para
afastar Kalon de você.
— Pelo visto você é mais perigosa que eu. — Dou risada. —
Ser filha de Yuri traz algumas vantagens, eu admito. A gente não
tem medo de se foder.
Solto uma risada alta e desvio de algumas pessoas quando
pego uma rua mais movimentada.
— Por falar em Yuri, eu acabei de hackear conversas entre
ele e Ivan. — Ela sussurra. — Pensei que ia ter alguma troca de
fotos em um ritual satânico, mas encontrei pior.
— Tipo o que? — Meus lábios entortam. — Nudes?
— Arrgh! Estou toda arrepiada! — Melissa grunhe. — Acho
que os dois não têm esse tipo de vida animada, infelizmente. Está
mais para várias fotos de pessoas mortas. — Ela geme em
desgosto. — Sério, é literalmente fotos macabras de pessoas que
eles mataram.
— Que coisa doentia. — Aperto os olhos, sentindo repulsa.
— Me poupe dos detalhes, por favor.
— Acontece que eu estou poupando os detalhes, Arcane
mou. Isso aqui é coisa de maníaco. — Ela limpa a garganta. — O
ponto é que eu também encontrei coisas sobre a vida de Altan.
— O que você descobriu? — Paro de andar quando todo o
meu sangue congela. Estou nervosa e ansiosa pars solucionar esse
assassinato.
— Meses atrás Altan teve uma discussão com Raja Somali.
— Melissa sussurra. — Acho que era por causa de animais, não
consigo entender. — Sua voz está confusa. — Algo sobre
legalização, mas eles não entraram muito no assunto através do
chat. — Ela faz uma pausa demorada. — É isso, eles terminaram
essa conversa por ligação.
— Merda. — Minha frustração me faz chutar um balde de
lixo. O barulho fez uma porta da vizinhança se abrir e eu dou as
costas começando a andar mais rápido.
— No entanto, eu descobri o endereço da casa onde ele
morava. — Ela fala mais baixo, como se fosse um segredo. — Por
questão de segurança, poucas pessoas sabiam do seu endereço e
de sua esposa. Coitadinha, tão nova e viúva. Acho que ela não sabe
do seu trabalho sujo que Altan fazia para a família Somáli.
Agora temos um problema. Eu não posso simplesmente
chegar em sua casa falando que sou da Alkyóna.
— Porra. Isso vai ser um pouco difícil. — Suspiro.
— Então é o fim da linha? — Ouço Melissa resmungar do
outro lado. — Você vai voltar para casa?
— Não mesmo. — Limpo a garganta quando começo a olhar
ao redor. A rua está vazia. — Eu vou improvisar.
Caminho pela rua, procurando por alguma coisa que me
ajude a quebrar uma janela. Meu rosto se ilumina quando encontro
uma barra de ferro separada de uma grade enferrujada. Seguro
firme e me posiciono, apertando o telefone contra o ombro para
mantê-lo ao pé do ouvido.
— Tape os ouvidos. — Sussurro. — Eu estou prestes a
roubar um carro.
— Que feio, Arcane! — No entanto, sua voz está super
animada como se estivesse assistindo a um filme de ação. — Você
está sem dinheiro para comprar um carro?
— Idiota. Eu preciso me despistar. Sinto que eles podem me
rastrear. — Resmungo, arremessando a barra de ferro contra o
vidro, e só depois da segunda tentativa o vidro se rompe e cai aos
pedaços.
— Olha, você é uma ótima assassina, mas não sabe roubar
carros. — Melissa reclama do outro lado. Sua língua estala. — Sério
que você quebrou? Não sabe usar a porra de um grampo ou alguma
gambiarra que destrave o carro sem causar alarde?
— Meu amor, você quem é o gênio da família. — Um
resmungo exausto escapa da minha boca quando abandono o ferro
pesado. — Tudo que me restou foi a agressividade. — Chuto alguns
cacos de vidro que estão espalhados pela rua. — Além disso,
Nimue é a verdadeira dama dessa família.
— Ai, Arcane. — Melissa sufoca uma gargalhada. — Não
deixe ninguém pegar você, por favor. — Ela está impaciente e
nervosa. — Eu devia estar aí e ajudar você com isso, agora vou
ficar olhando a tela a cada segundo enquanto você se mete em
encrenca.
— Não se preocupe comigo. — Estalo a língua. — Já que
Yuri está viajando com Ivan, você devia organizar uma ótima festa e
convidar Pavlos.
Ele realmente se tornou um amigo muito importante para
mim. E as poucas horas que tenho ao seu lado são muito valiosas.
Ele me faz rir como louca. Com Pavlos eu me sinto uma humana
normal. Sem a existência da Alkyóna respirando em meu pescoço.
— Tenho medo que Kalon descubra quem é ele, Melissa. —
Sussurro depois de um tempo em silêncio. Pela primeira vez minha
irmã está feliz com alguém e eu não quero que isso seja tirado dela.
— Não se preocupe, eu escondo todos os rastros dele. — Ela
suspira. — Essa é a vantagem de namorar uma hacker. Ninguém
vai conseguir encostar em um fio do cabelo de Pavlos.
— Uau. — Eu dou risada. — Vocês são bonitinhos.
Uma de minhas mãos está no volante enquanto dirijo pelas
ruas de Atenas. Por alguns minutos, o receio dança em meu
estômago. Estou com medo. Preciso encontrar qualquer coisa que
me faça ficar livre desse casamento. Não é certo usar meu único
amigo que consegui me conectar depois de Nikoleta. Fecho meus
olhos em uma tentativa falha de acalmar os meus pensamentos.
— Arcane mou? Ainda está aí? — A voz de Melissa é suave.
— Eu vou desligar agora.
— Está bem, querida. — Eu giro o volante para entrar em um
beco. — Nos vemos, bye-bye. — Jogo beijinhos para ela,
encerrando a ligação.
Depois de estacionar, eu fico dois minutos me encarando no
espelho para ter certeza que pareço uma mulher normal e que
ninguém vai me reconhecer. Saio do carro, olhando para os dois
lados. A casa tem uma escultura antiga, com paredes brancas e um
jardim florido na entrada.
— Salaam Aleikum. — Eu estou parada em frente a porta que
está aberta. Retiro meus sapatos, deixando-o no primeiro degrau.
Uma mulher jovem e turca, com aparência cansada, vem me
receber.
— Aleikum Essalam. — Ela usa o mesmo véu que eu. Me
aproximo, envolvendo-a em um abraço apertado e reconfortante.
— Eu vim em nome do meu marido e da minha família. Eles
eram amigos. — Minto, já que essa é a única forma de conseguir
informações. — Eu sinto muito pela sua perda. — Meu tom de voz é
triste. — Que Deus cure o seu coração, ablam. — Eu falo mais
baixo quando começo a entrar na casa.
— Venha, sente-se. — Ela está enxugando o rosto. — Minha
mãe ainda não chegou, estou sozinha.
— Para onde eles foram? — Eu olho ao redor antes de sentar
e segurar minha bolsa em meu colo.
— Estão com o corpo de Altan fazendo as últimas orações.
Que Deus me perdoe, mas eu não tive coragem de ir. — Ela aperta
os lábios como se estivesse segurando um gemido de angústia.
Meu coração dói por ela. Essa mulher é tão jovem, não
consigo me imaginar sobrevivendo a uma perda desse tamanho.
— O meu nome é Pelin. — Minto. — Meu marido passou um
tempo no exército com o seu. — Eu me baseio nas informações que
sei sobre Altan.
— Prazer em conhecer, Pelin. — Ela funga. — O meu nome é
Leyla.
Eu balanço a cabeça em concordância e começo a observar
as fotografias em sua mesa. Agora tudo que resta do amor deles
são lembranças e fotos de viagens. Eles são um casal jovem e
sorridente. Altan é o tipo protetor, que abraça Leyla como se o
mundo inteiro estivesse entre seus dedos.
— Você sabe o que aconteceu com Altan, Leyla? — Minha
pergunta é arriscada, mas considerando a forma como ela encara
as mesmas fotografias que eu, sinto que ela precisa desabafar
sobre a morte do seu marido. Mantenho uma postura profissional,
mas não resisto em sorrir maliciosamente ao notar como eu fui bem
pra caralho fazendo isso. — Onde você estava quando tudo
aconteceu? — Se eu conseguir qualquer informação vou poder
ajudar essa mulher a vingar a morte do seu marido.
Suas mãos estão trêmulas. Ela encara seu colo como se
estivesse sendo atormentada por fantasmas.
— Ai, meu Deus! — Seus ombros balançam e ela esfrega o
rosto. — Eu acho que meu marido estava envolvido com alguma
coisa muito ruim. — Ela soluça, tremendo.
Meu peito enche de compaixão e tristeza. Deve ser
desesperador perceber que o amor da sua vida não é quem você
pensa. E pior ainda, perceber isso logo depois que ele já está morto
e não pode contar sua versão. Percebo que meus olhos estão
marejados.
— Eu sinto muito… — Eu balanço os ombros, arrumando
meu véu. — Por que você acha isso, Leyla?
— Porque eu estava com ele quando tudo aconteceu. — Ela
suspira. — Ele me obrigou a ficar escondida. Estávamos
passeando, levaram ele pra uma fábrica e eu vi tudo diante dos
meus olhos. — Ela está tremendo compulsivamente. — E eu nem
tive a chance de escapar e chamar ajuda.
Eu me aproximo, murmurando sons tranquilizadores. Minhas
mãos envolvem seu corpo que está encolhido e eu tento confortar
sua dor. Ela agarra meu tronco como se estivesse buscando
exatamente por conforto.
— O homem estava encapuzado. — Ela fala depois de um
tempo. — Ele era alto e forte. — Leyla funga e ergue o rosto pra me
encarar nos olhos. — Ele disse um nome antes de matar o meu
marido…
— Que nome, Leyla? — Seguro os dois lados do seu rosto,
começando a secar suas lágrimas com a manga da minha blusa.
Suas bochechas estão vermelhas e seus olhos castanhos estão
cheios de medo e tristeza. — Coloque tudo para fora, querida.
Quem sabe podemos fazer justiça. — Um ato de justiça é o mínimo
que essa mulher merece depois de ver o seu marido ser morto
brutalmente.
— Cortesia da família Somáli. Foi isso que ele disse. —
Porra. São essas palavras que me deixam chocada. Frieza sobe por
minha coluna, repuxando minhas bochechas e me deixando pálida.
Eu torço para ter escutado errado, mas Leyla mantém a
mesma expressão enquanto me encara com esses olhos grandes.
Um Somáli não pode ter apunhalado a família de Altan dessa forma.
Isso é cruel demais contra um homem que sempre foi leal a
Alkyóna.
— Eu acho que mataram meu marido por ele saber demais.
— Ela geme, um tipo de choro espremido de arrepiar até os ossos.
O luto está sufocando essa mulher em meus braços. A impotência e
o medo. — Eu não quero acreditar nisso.
Eu fico sem reação. Não tenho ideia de como acalmar uma
pessoa que teve seu espírito estraçalhado. Acho que a forma mais
respeitosa de tratar isso é ouvindo todo o seu choro.
— Eu não quero acreditar que o meu homem se envolveu
com coisas erradas. Isso custou tudo que tínhamos. — Ela balança
a cabeça com o rosto entre minhas mãos. — Agora eu estou
sozinha.
— Eu entendo. Eu sinto muito, minha querida. — Sussurro,
minha voz está falhando pelo choque da sua confissão. Eu não
quero acreditar que um Somáli destruiu a vida desse casal.
— Se ele tivesse conversado comigo... — Ela soluça.
— Olha, todos nós temos pecados, eu sinto muito por você
ter enxergado os de Altan logo no dia da sua morte. — Eu faço uma
pausa para enxugar suas lágrimas. — Eu sei que você está
quebrada e se sentindo traída, mas se agarre ao fato de que ele
amou você até o último momento. Se ele escondeu isso, foi
exatamente por amar você e não suportar a ideia de ser enxergando
da forma como você o enxerga agora. — Eu não tenho ideia do que
fazer além de tentar confortá-la com minhas palavras. — Somos
humanos, Leyla. Significa que às vezes fazemos coisas horríveis. —
Eu acaricio seus cabelos. — Se você quiser, eu posso fazer com
que você vá embora para seu país e recomece sua vida bem longe
de tudo isso.
Seus olhos brilham de espanto. Suas bochechas ainda estão
vermelhas e ela balança a cabeça em confusão.
— Eu… Eu não sei… — Ela tenta arrumar os cabelos
bagunçados. — Eu realmente não sei. — Soluça. — Eu não quero
deixar ele aqui, mas também não quero continuar minha vida no
lugar em que perdi um pedaço de mim. Eu só quero que tudo isso
pare
— Me dói dizer isso, mas a partir do momento que você
enterrar ele mais tarde… Ele não vai mais estar aqui. — Eu
sussurro. — Ele já está morto, Leyla. Procure uma forma de salvar
sua vida e viver bem, eu acho que Altan ia querer isso.
Um último soluço fraco escapa dos seus lábios antes dela
deitar a cabeça em meu ombro. Então nós nos mantemos
abraçadas por um bom tempo, com seu corpo paralisado e ela
perdida em pensamentos enquanto respira pesadamente, como se
essa fosse a maior batalha da sua vida.
— Tudo bem. — Leyla balança a cabeça em concordância. —
Por favor, me coloque em um novo lugar onde eu possa viver. — Ela
leva minha mão até sua barriga onde existe uma pequena
protuberância. Horror brilha em meu rosto. Ela está grávida. Nesse
momento o meu coração se despedaça.
Horas depois, eu vou embora da casa de Leyla com a ideia
que ela me encontre no porto depois do enterro de Altan. Eu tenho
tudo planejado, vou precisar apenas convencer minhas irmãs a me
ajudarem com isso.
— Eu cheguei. — Grito quando finalmente entro em casa. Já
está tarde e muito frio. Não ouço nenhum sinal das minhas irmãs, no
entanto, todas as luzes estão acesas.
Yuri vai passar uma semana em sua viagem, então não
duvido que elas estejam fazendo algo proibido por nosso pai como
uma forma de se rebelar temporariamente.
— Meninas? — Eu grito quando entro na cozinha, mas paro
quando ouço risadas e música. Elas estão no jardim. Retiro minhas
botas e o lenço, ficando com minhas meias e o cabelo bagunçado.
— Arcane mou? — A voz de Pavlos é acompanhada por uma
gargalhada suave. Seus olhos brilham, ele usa uma camisa branca
com alguns botões abertos e uma bermuda da mesma cor. — Essa
é a minha primeira vez na sua casa, mas você não estava aqui pra
me receber.
— Eu sei, me desculpe por isso. Minha chefe não me dá um
descanso. — Ele abre os braços me recebendo em um abraço forte.
Eu dou risada ao sentir como ele está molhado. — Por acaso
jogaram você na piscina?
— Como você descobriu? — Ele leva uma mão aos lábios,
completamente chocado. Eu aperto os olhos, é típico das minhas
irmãs fazerem isso.
— Vamos considerar que eu tenho um sexto sentido
aguçado. — Coloco as mãos no quadril encarando Nimue e Melissa
nos assistindo com uma expressão travessa. Seus cabelos estão
molhados e elas estão envolvidas em toalhas.
— Festa na piscina? Eu pensei que o combinado fosse uma
fogueira. — Pavlos segue atrás de mim e me entrega um espetinho
de carne com tomate e queijo.
— Essa era a ideia, até Nimue me jogar com tudo por eu ter
apertado a deliciosa bunda da sua irmã. — Pavlos tem uma
expressão safada. Certo, ele não é tão cavalheiro quanto eu
pensava.
— A propósito, estamos em um relacionamento aberto. —
Melissa ergue as mãos em rendição. — Porque eu acabei de
compartilhar com Pavlos a ideia dele fingir ser seu namorado para
se livrar daquele seu pretendente que é empresário.
— Urgh! — Eu faço uma careta, desviando o rosto. — Nem
fodendo que eu vou dar para o seu namorado.
— Eu não falei em foder. — Melissa está rindo. — Quem
sabe beijar? Vocês precisam ser um casal que faça as pessoas
acreditarem. — Ela balança os ombros de Pavlos como se ele fosse
o homem mais atraente da nossa espécie, e até mesmo empurra
seu corpo em minha direção, quase me fazendo cair em cima dele.
— Acho que não vamos precisar entrar em uma fase tão
sombria. — Eu aperto os olhos, encarando Pavlos. — Você está de
acordo com essa ideia, senhor Pavlos?
— Sinceramente? — Suas sobrancelhas se unem. — Acho
difícil superar o que essa gatinha aqui me faz sentir. — Ele aponta
para Melissa. — E eu também nem tenho interesse. Estou
apaixonado por ela. — Ele aponta em minha direção. — Mas se for
para acabar com as ideias grotescas de um pai bilionário super
conservador, eu estou dentro. Mas não espere muito, meu pau tem
algumas limitações caso você não seja loira e se chame Melissa.
Ele ergue a palma e minha irmã bate, dando uma risadinha e
pulando em suas costas. Eu reviro os olhos decidindo que os dois
são um acontecimento inexplicável da natureza. É melhor eu ficar
quieta em meu canto tentando acompanhar.
Nimue está lendo um livro, mas para quando eu sento ao seu
lado para acariciar seus cabelos molhados. Ela sorri e me lança
uma piscadela.
— Eles estão nesse grude o dia inteiro. — Ela revira os olhos.
— Melhor eu ficar aqui com o meu Rhys Larsen. — Ela suspira, me
mostrando a capa branca com detalhes em amarelo. — Quer saber
a história?
— Sim, por favor. Preciso distrair a cabeça. — Eu me deito ao
lado dela, encarando o céu estrelado enquanto Melissa e Pavlos
dançam em algum lugar. Suas risadas tornam a noite mais
agradável.
— Fala sobre uma princesa que se apaixona por seu guarda-
costas. Eles vivem um romance proibido e muito, muito quente. —
Ela pisca. — Não tem nada dramático que faça você entrar em um
coma emocional, mas ainda assim, é tão viciante e atraente. — Ela
vira as páginas. Eu gargalho alto, decidindo acompanhar as
palavras junto com ela.
— Eu acho que tive uma ideia. — Meus lábios entortam. —
Quero fazer tatuagens com referências aos seus livros favoritos,
vamos lá, quais são eles?
— Você está falando sério? — Ela quase grita.
— Eu quero fazer agora mesmo. — Eu balanço a cabeça em
concordância. Yuri tem um estúdio de tatuagem no último andar da
mansão. Ele também é obcecado por essas coisas. — Vou fazer
dos outros também.
Dou uma risadinha olhando para onde Melissa e Pavlos estão
dançando. Ele está com ela nos braços.
— Ei, gente. — Eu chamo a atenção deles. — Qual é o livro
favorito de vocês? Decidi que vou fazer uma tatuagem em
homenagem. — Bato os cílios, animação queima meu peito.
— Quando Te Vejo da Holly Miller e Lonely Souls da Ester
Feitosa. — Melissa responde sem pensar duas vezes. Ela puxa
Pavlos pela mão, suas bochechas estão vermelhas. — Quando Te
Vejo fala sobre um homem que consegue sonhar com a morte das
pessoas que ama, ele será adaptado para os cinemas em breve. Eu
gosto como esse livro mostra como somos afetados por
determinados encontros em nossas vidas.
Eu pego meu celular pra ver a capa do livro. Uma árvore
verde com um pássaro sobrevoando a copa. Está decidido, eu
quero tatuar esse desenho.
— E quanto ao outro livro? — Eu pergunto.
— Lonely Souls fala sobre Serena Campbell e Ethan Wells.
Imagine que as casas de Game of Thrones fossem na verdade
atléticos da universidade. — Ela faz uma pausa, abrindo seu
Instagram para mostrar o perfil da autora. Não acredito que elas se
seguem. — Mas acima disso, pense na forma como Daenerys se
sentiu apunhalada quando o Rei Do Norte a traiu. Entre ódio,
rivalidade e disputa, Serena e Ethan realmente se amam. Nunca
deixaram.
— Está decidido, eu vou tatuar em minhas costas um dragão
cuspindo fogo e envolto por flocos de neve. — Aponto por cima do
ombro. — Vai ser um desenho grande, vou precisar de ajuda com
isso. — Eu pisco, apreciando o sorriso no rosto da minha irmã mais
velha. — Em homenagem a Melissa e seu bom gosto para livros.
— E você, Nimue? — Olho para minha outra irmã.
— Senhor Dos Anéis. — Ela responde rapidamente. — Você
deve tatuar a frase: “uma estrela brilha na hora do nosso encontro”.
— Meu sorriso se alarga. Vou tatuar isso em meu peito.
Eu tenho algumas tatuagens espalhadas pelo meu corpo,
elas são referentes a cada livro que eu já li e virou meu favorito. Em
meu corpo tem marcas sobre tudo que amo. As estrelas de Addie
LaRue, Uma Vida Pequena, A Canção De Aquiles, Happy Place,
Archer 's Voice.
— Pavlos? — Olho em sua direção. Ele está comendo outro
espetinho. — Você não disse um livro.
— Jantar Secreto do Raphael Montes. — Ele pisca. — Você
deve ficar marcada com sangue, Arcane mou. — Pavlos se
aproxima de mim exibindo a ponta do espeto como se fosse me
atacar.
— Pare de ser idiota. — Eu dou uma gargalhada quando
Melissa dá um tapa em seu braço.
— Ela sabe que eu estou brincando. — Ele pisca, me
olhando sorridente, agora suas bochechas estão vermelhas de
constrangimento. Ele é tão fofo e carinhoso. — Na verdade, minha
querida, meu livro favorito é um clássico grego muito antigo. Prefiro
guardar essa preciosidade a sete chaves. — Ele acaricia meus
cabelos. — Mas eu posso ajudar a fazer os desenhos.
— Eu realmente vou precisar de ajuda. — Eu fico em pé e
puxo minhas irmãs para começarmos com isso.
— Então vamos logo, eu tenho negócios em Mykonos ainda
amanhã. — Ele puxa Melissa pela cintura. — Daqui a pouco vou
precisar ir para casa.
De repente, uma ideia cruza minha mente. Vou precisar de
ajuda para fazer Leyla ir embora do país ao amanhecer, eu e
minhas irmãs não vamos conseguir cobrir todos os seus rastros a
tempo, mas se Pavlos levá-la pra fora de Atenas em seu iate, já
será uma vantagem.
— Pavlos, eu tenho uma amiga que precisa ir para Mykonos
com urgência, mas ela acabou perdendo a passagem. — Melissa
me encara compreendendo de quem estou falando.
— Eu saio cedo, e normalmente levo outras pessoas. — Ele
me olha. — Se não for um incômodo para ela.
— Que tipo de pessoa? — Eu ergo uma sobrancelha.
— Do tipo que viaja de maneira clandestina porque são
pobres demais para viajar de acordo com as leis do país.
Convenhamos, o capitalismo é uma merda na Grécia. O nível de
desemprego é preocupante. — Ele faz uma pausa e olha para nós
três. — Eu trabalho ao lado de um membro da família real para tirar
pessoas do país. Sua amiga deve fingir que nunca navegou em um
iate ao lado do Príncipe Constantino Dmitri da Grécia e Dinamarca.
Eu fico chocada, realmente é difícil compreender que existe
um mundo completamente diferente do qual fui criada. Tudo isso é
novo e encantador para mim.
Eu não vejo de que forma Leyla estaria mais segura para ir
embora da Grécia senão essa.
17. PARTY MONSTER
"Se o coração encontra a pessoa amada,
até o galho seco floresce".
— MEVLANA.

— Por acaso você pensa que Kalon é idiota? — Melissa está


nervosa ao ouvir os detalhes sobre tudo que Leyla me contou
quando eu estava em sua casa.
— Na verdade, eu acho ele um pouco idiota, sim. — Um
sorriso travesso cruza meus lábios.
Melissa estala a língua, me reprovando. Então ela aponta o
dedo em minha direção quando suas bochechas ficam vermelhas.
— Você é muito engraçadinha para uma pessoa que acabou
de entrar em encrenca. — Ela acusa.
— Eu juro que ninguém me viu, Melissa. — Eu estou exausta
de tentar acalmar seus nervos. — Ele não sabe que eu estive lá e
que ajudei Leyla a fugir. Ela está grávida, Melissa. Acabou de
ganhar a chance de criar seu bebê longe deste pesadelo.
— E se ele descobrir? — Ela cruza os braços. — Vamos ter
que aceitar a ideia de você morrer por ter feito isso? Ela disse que a
morte de Altan foi causada por um Somáli, então estamos ferradas.
Meus olhos engrandecem. Eu não tinha reparado que ela
está levando isso de um jeito tão inseguro e magoado. Isso é o seu
medo falando. Medo que eu volte para a cadeia ou pior.
— Porra de drama. — Nimue protesta. — Falem baixo, pelo
amor de Deus. Kalon pode ser o último dos nossos problemas caso
alguém ouça seus gritos.
Ela está deslizando os dedos sobre as minhas novas
tatuagens. Um suspiro nervoso ecoa da minha boca quando o
quarto fica em silêncio.
— Você conseguiu sabotar as câmeras de segurança? —
Nimue pergunta para Melissa.
— Eu fiz a checagem vinte e duas vezes. — Melissa arruma
seus cabelos para trás. — Se Yuri tiver acesso às filmagens daqui
de casa quando está viajando, não vai ver quando Pavlos estava
aqui, apenas uma filmagem antiga que eu usei pra encobrir os
rastros. — Ela morde o canto dos lábios e afunda no sofá.
— Não vamos falar de Pavlos, ele é uma pessoa normal,
então é fácil escondê-lo. Sua rotina é sempre a mesma. — Ela
balança as mãos. — Mas não posso dizer o mesmo de Arcane e
sua ida até a casa daquela mulher. E se alguém estivesse vigiando
a casa? Ou pior! — Ela aponta em minha direção. — E se o
assassino tivesse voltado pra ver como a sobrevivente estava e viu
você?
— Isso não aconteceu, Melissa. — Eu estou começando a
ficar nervosa.
— Você está paranóica. — Nimue argumenta. — Você tem
um senso de proteção muito grande e adora controlar essas coisas,
mas vamos apenas relaxar e pensar no que está ao nosso alcance.
— Por exemplo? — Melissa bebe um copo de água e balança
os pés cobertos por meias azuis.
— Precisamos encontrar uma forma de Kalon confessar que
foi um dos Somáli que matou Altan. — Nimue continua. — Se ele
confessar, Yuri pode desistir desse acordo de casamento, já que
tinha uma amizade muito grande com o pai de Altan e foi através
dele que o homem entrou na Alkyóna.
— Então eu devo simplesmente ameaçar ele? — Eu balanço
os ombros, ainda sem compreender até onde ela quer chegar com
essa ideia.
— Não, Arcane mou. — Nimue dá uma gargalhada tão
amável que meu coração dói implorando para ouvi-la novamente. —
Você deve simplesmente conquistar ele.
— Você tinha tudo para me oferecer uma boa ideia, Nimue
mou. — Estalo a língua. — Mas nem fodendo que eu vou conquistar
aquele homem. — Sinto arrepios ao imaginar a forma como ele
pode ficar obcecado por mim se desenvolver algum sentimento, e
pior ainda, ele nunca vai me deixar escapar caso isso aconteça.
Kalon é um psicopata. Talvez ele até consiga convencer
algumas pessoas com seu charme exagerado e seu humor irritante,
mas ele é fodidamente louco.
— Eu não quero passar o resto da minha vida casada com
aquele... — Procuro alguma palavra desprezível. — Aquele velho.
— Sibilo.
— Mas a melhor forma de destruir um homem é quebrando
seu coração impenetrável. — Nimue argumenta. — E a melhor
forma de arrancar a verdade de algum homem é conquistando ele.
— Nossa, quem ensinou você a ser uma bruxa rabugenta?—
Melissa atira um travesseiro em sua direção.
— Minhas duas irmãs com síndrome de putas apocalípticas.
— Ela mostra o dedo do meio.
Pronto. Isso foi o suficiente para eu cair na gargalhada.
Nimue agora seus pés por cima dos meus, conseguindo derrubar
meu corpo por cima do seu.
— Que risada gostosa, Arcane mou. — Ela está falando
como uma pervertida. Eu grito alto, me esperneando quando ela
aperta minha cintura. — Eu acho que vou devorar você, minha
caçulinha deliciosa.
— Melissa! Me ajude! — Eu sufoco quando Nimue morde
meu pescoço. — Pelo amor de Deus, pare com isso! Eu ainda estou
sensível pelas tatuagens! — Eu grito e me engasgo de tanto rir. —
Melissa, faça alguma coisa!
— Eu vou fazer alguma coisa! Pode deixar comigo! — Sua
voz é travessa quando ela me puxa pelos pés e as duas me jogam
em cima da cama. — Vou fazer um sanduíche de você!
— Eu juro por Deus, vocês são muito perturbadas! — Eu
tento escapar. — Puxaram a raça do pai de vocês!
— Então agora que concordamos que você vai seduzir
aquele homem... — Melissa tenta arrumar meus cabelos, mas eu
puxo ela com força, apertando seu pescoço em um golpe de jiu-jitsu.
Suas costas estão contra meu peito.
— Eu não vou seduzir ninguém. — Falo contra seu ouvido
enquanto tento decidir se vou morder ou vou beijar sua pele. Talvez
os dois.
— Veja pelo lado bom, você vai poder fazer sexo com ele. —
Nimue salva Melissa quando empurra um travesseiro em meu rosto.
— Pense nos benefícios, Arcane. Vamos ter muitas histórias para
contar aos nossos filhos. — Eu grito e rio, me debatendo de um jeito
tão fraco que faz ela explodir em gargalhadas.
— Eu aposto que ele tem um pau pequeno. — Tomo fôlego.
— Apostado. — Melissa joga outro travesseiro em minha
cabeça. — Se você aparecer mancando eu acabo com você.
— Você tem uma boca muito suja. — Eu cruzo os braços. —
Por que eu sempre sou a que acaba sendo massacrada em nossas
brincadeiras? — Chuto seu peito com a ponta dos dedos, foi leve,
mas o suficiente para ela cair por cima de Nimue. O som estalado
me fez gargalhar como louca.
— É exatamente por isso. — Nimue balança a mão para
apontar em minha direção. Ela empurra Melissa para longe do seu
corpo. — Você tem uma tropa de demônios te ajudando a vencer
em nossas brincadeiras.
— Quanto tempo nós temos até Yuri voltar de viagem? — Eu
encaro o calendário na parede.
— Uns três dias. — Nimue se ergue, revirando toda a cama
para deixar do jeito que ela acha confortável. Minha irmã é muito
exigente com o lugar que dorme.
Melissa acaricia meus cabelos. Fecho meus olhos, relaxando
com esse carinho inesperado. Um som satisfeito escapa da minha
boca.
— Queria que ele estivesse morto. — Confesso, um nó fecha
minha garganta. Nimue dá uma risadinha sarcástica como se
estivesse pensando a mesma coisa.
— Vamos lá, Ane. — Melissa pede baixinho. — Venha deitar
pertinho das suas irmãs e esqueça essas ideias malucas.
— Eu fico no meio. — Eu começo a engatinhar na cama
cheia de travesseiros. Nimue me puxa contra seu corpo e suas
mãos me apertam.
— Você pode dar um pouquinho de espaço? — Imploro com
a voz embargada.
— Não! — Ela me aperta mais forte. — Estamos aqui.
Estamos bem. Você é tipo a minha pelúcia de apoio emocional.
— Nimue! — Seu aperto me faz engasgar. — Você é
grudenta demais. Devia arranjar um namorado e...
— Cale a boca! — Eu não consigo falar absolutamente nada
quando ela me aperta mais forte e enche o topo da minha cabeça
de beijos. — Minha caçulinha deliciosa!
— Precisamos organizar uma festa de noivado para pôr
nosso plano em ação. — Melissa sussurra. — Tem que ser um
evento grande e aberto. — Ela senta na cama. — Também precisa
estar livre de câmeras para Pavlos poder ir, ele gostaria de estar lá.
Vou convencer Atena para que eles abram a mansão Alkyóna para
esse evento.
— Você enlouqueceu? — Tomo fôlego quando Nimue afrouxa
seu aperto. — Qual a parte em que eu quero me livrar dele, você
não entendeu? Eu ainda prefiro a parte em que Pavlos me ajuda a
terminar com ele através de uma suposta traição. — Eu tomo
impulso para afundar o travesseiro contra o rosto de Nimue.
— Acorda, Arcane. Para isso funcionar nós precisamos ter
todos os acontecimentos elaborados. — Ela estala os dedos na
frente do meu rosto. — Primeiro você descobre as informações
sobre a morte de Altan, depois encontramos uma forma de incluir
Pavlos em um plano perfeito onde Kalon sai com o coração partido
e esse contrato de casamento é desfeito.
— Eu odeio sua ideia. Na minha cabeça não faz sentido
nenhum. — Eu balanço a cabeça em negação. — Precisamos de
outra coisa. — Nimue esperneia procurando por fôlego.
— Você está matando ela! — Melissa arranca o travesseiro
de nós. Minha irmã do meio volta aos vivos enquanto tenta me
empurrar para longe.
— Por enquanto isso é tudo que nós temos. — Nimue respira
fundo. Seu corpo treme. — Minhas costas estão doendo. — Ela faz
uma careta e começa a tossir. — Acho que você me sufocou
demais.
— Desculpa. — Eu deixo um beijo estalado em sua
bochecha. Meu olhar é cheio de arrependimento.
— Ai, minha linda criança. — Ela ri e me dá um selinho.
Temos esse costume desde que éramos bebês, aprendemos
quando Yuri não era um monstro. Esse gesto sempre nos trouxe
segurança e conforto. Meus olhos estão marejados, eu não pensei
que poderia sentir seus beijos novamente.
— Eu amo você. — Nimue sussurra. Eu dou risada e deixo
outro beijo estalado em sua pele.
— Vocês são umas pestes. — Eu bato os cílios e encaro
Melissa que nos observa como uma leoa orgulhosa dos seus
filhotes. — Acho que vamos ter que acrescentar roupas mais
sensuais ao seu guarda roupa.
Ela me empurra para também conseguir deitar na cama.
Esfrego a ponta do meu nariz contra o seu quando ela se inclina
para me dar um beijinho.
— Qual o problema das minhas roupas? — Eu sussurro.
— Não mostra muitas curvas. — Ela explica. — Mas não se
preocupe, nós vamos manter as jaquetas de couro. É o seu charme.
— Estou morrendo de sono. — Eu fungo. — Acho melhor
fazer vários planos caso algum deles dê errado.
— Vai dar tudo certo. — Melissa sussurra. — Vamos pensar
em alguma forma de salvar você. Não vou desistir. — Ela segura
meu queixo deixando outro beijinho carinhoso. — Agora durma. —
Nimue já está cochilando com uma mão ao redor da minha cintura.
Eu me encolho quando Melissa passa seu braço por nós
duas e puxa o edredom peludo. Eu me permito dormir e esquecer
toda essa bola de neve em que nos metemos.

Eu tenho certeza que essa é a primeira vez em minha vida


que estou tão bem vestida. Meu corpo tem curvas que eu nunca
prestei atenção. Meus quadris são largos e tenho uma bunda farta,
porém, meus seios não são tão grandes e cheios. Gosto do formato
da minha cintura nesse vestido branco, há uma fenda na lateral que
mostra parte da minha coxa tatuada com pássaros voando. Essa é
uma referência ao livro Reminds Of Him da Colleen Hoover. O meu
favorito da autora. O vestido é aberto nas costas, e dessa forma é
possível ver a enorme tatuagem de um dragão cuspindo fogo e
envolto por flocos de neve. Uma referência a Lonely Souls, o livro
favorito de Melissa.
— Céus, como você sabia qual roupa escolher para mim,
Melissa? Combinou tão bem. — Porra. Eu estou linda pra caralho.
Suspiro extasiada, não consigo desviar os olhos do espelho.
— Simples. — Ela está trancada no banheiro faz horas. — Eu
apenas estudei sua linguagem corporal. Você tem essa expressão
de garota perigosa e séria, mas sua personalidade é amável quando
está com alguém que ama. Logo, roupas claras e sensuais se
tornam um equilíbrio perfeito para fazê-la se destacar.
— Além disso, hoje é sua festa de noivado. — Nimue se
aproxima por trás. — Nem fodendo que vamos deixar você aparecer
de jaqueta de couro e uma carranca capaz de colocar o diabo pra
correr.
— Você é uma pessoa horrível, Nimue. — Eu empurro seu
corpo com minha bunda, já que ela está posicionada bem atrás de
mim. Eu suspiro voltando a me admirar no espelho.
— Cuidado. — Nimue ri. — Disso aí morreu Narciso.
— Como? — Eu junto as sobrancelhas sem compreender
suas palavras.
— Há relatos que Narciso morreu de desgosto por admirar
tanto sua própria imagem e não conseguir possuí-la. — Ela acaricia
meus cabelos. — Eu conheço uma raça de homens… — Ela faz
uma pausa e ergue a sobrancelha para acrescentar. — Que se
consideram deuses e que vão morrer de desgosto por não
possuírem você. Marque minhas palavras, Arcane mou.
— Veja quem fala. — Eu observo Nimue completamente
embasbacada com sua beleza. — Eu penso que um dos principais
motivos para Yuri esconder você dos eventos da Alkyóna é porque
ele sabe como funciona a cabeça dos homens e teme perder você
cedo demais para um casamento arranjado.
— Até parece. — Ela balança a cabeça em negação e se
concentra em arrumar seu cabelo no espelho.
Nimue está usando um conjunto azul claro de saia longa com
abertura em sua perna direita, a parte superior cobre apenas seus
seios e deixa suas costas nuas, presa apenas por um laço com
tirinhas finas. Ao contrário do meu corpo, ela é mais magra e tem
seios muito fartos. Sua pele bronzeada é limpa de qualquer
tatuagem. Saio do meu torpor quando ela termina de prender seu
cabelo em um coque e me olha feio.
— Você ainda está sem nada nos pés?
— Botas látex? — Eu aponto para o par preto aos pés da
cama.
— Até parece que eu vou permitir você usar essa atrocidade
junto com o seu vestido. — Suas bochechas ficam vermelhas
apenas por imaginar a cena.
Eu dou uma gargalhada sincera, mas ela morre quando
minha irmã me entrega um par de salto alto que tem um laço
brilhante em cada ponta.
— Eu odeio salto alto. — Reclamo em um gemido.
— Todo mundo odeia. — Melissa finalmente sai do banheiro.
— Mas acho que você consegue matar alguém com essa ponta fina.
Eu dou uma gargalhada alta. Realmente, matar alguém com
um salto é a coisa mais fácil e sangrenta. Jogo uma mecha do meu
cabelo atrás da orelha e então caminho pelo quarto buscando
equilíbrio em cima dessa arma mortal.
— Pelo menos você sabe andar muito bem neles. — Nimue
está gargalhando. — Não corre risco de morte.
— Idiotas. — Eu resmungo. — Claro que sei andar, ainda sou
uma mulher.
Melissa pisca para mim indo para frente do espelho retocar o
batom. Ela é tão linda que chega a ser uma invenção diabólica para
distrair as pessoas. Sua presença consome meu fôlego regular.
— Nem parece que você demorou uma eternidade. — Eu
comento.
Seria ofensivo falar que é apenas um vestido curto como
qualquer outro. Não, essa peça é brilhante e valoriza suas curvas de
uma forma escandalosa. Como se fosse feito exatamente para ela.
— Essa roupa tem algum nome científico? — Eu questiono e
Melissa dá uma risadinha.
— Bodycon. É a última tendência. — Ela gira para eu
apreciar seu traseiro. — Consiste em peças super justas, quase
fechadas à vácuo no corpo.
—Deve ser alguma piadinha. — Encaro Nimue. — Eu não
estava falando sério quando fiz essa pergunta.
— Algumas peças são até de ouro maciço. — Nimue fala em
seguida, apontando para a roupa estonteante de Melissa. — Isso
que você está vendo é ouro de verdade.
— Você é uma vadia muito diabólica. — Eu estalo a língua.
— Vocês estão atrasadas. — Eu tenho um sobressalto
quando a porta do quarto se abre, revelando Yuri em toda sua altura
e arrogância. Ele retornou de sua viagem hoje de manhã. Um
calafrio desliza por minha coluna quando ele me inspeciona dos pés
à cabeça.
— Você está linda, agapi mou. Perfeita para seu noivado. —
Ele inclina a cabeça para o lado e então bate os cílios.
— Eu agradeço. — Resmungo a contragosto.
— Meninas? — Seu queixo gira para analisar Melissa e
Nimue que estão lado a lado.
— Sim, papai? — Elas falam em uníssono.
— Vocês estão lindas. — Ele resmunga. — Gostei do seu
cabelo, Nimue. — Sua voz é severa, mas seus lábios entortam em
um sorriso feio devido ao fato dele não saber como fazê-lo. —
Melissa, foi uma ótima escolha de vestido.
— Obrigada. — Ela sorri encarando suas roupas. Nimue
apenas acena com a cabeça e caminha até onde o braço de Yuri foi
estendido para ela segurar.
— Vocês estão prontas? — Ele olha para cada uma até
estender a mão em minha direção. — Pronta para o seu noivado,
amor?
Meu estômago embrulha. Por breves segundos eu tenho a
impressão de que ele pode ser um bom pai e voltar atrás com suas
decisões. Sou tomada por essa utopia e agarro seus dedos, me
aproximando para me esconder na segurança que seu corpo forte
emana.
Eu não entendo porque ainda busco abrigo no homem que
me machuca e me obriga a coisas que eu não quero, mas foi Yuri a
primeira pessoa a correr dentro do fogo para salvar nós três. Eu
ainda lembro dos gritos dele, da raiva e do desespero que o fazia
ranger os dentes ao ver toda aquela bagunça infernal, mas depois
de passar pela porta da frente, ele se tornou uma criatura fria e
silenciosa. Ele tem uma grande cicatriz em suas costas como prova
do seu esforço para nos salvar.
Yuri foi o único homem a lutar como um louco para criar nós
três, mas ele também não impediu que me levassem presa, assim
como não está impedindo esse casamento forçado que suga minha
alma toda vez que percebo o quanto se aproxima.
— Por favor, eu não quero casar. — Balanço a cabeça em
negação. — Por favor, papai. Não acabe com minha vida assim.
Você ainda pode…
— Cacete, Arcane! — Seu tom de voz me machuca mais do
que um tabefe. Suas narinas estão dilatadas em uma raiva
fumegante.
Minhas palavras são cortadas por um suspiro impotente e
trêmulo dos meus lábios. Procuro Melissa quando viro o rosto, há
um brilho furioso em seus olhos, mas ela apenas balança sua
pequena bolsa para que eu comece a andar antes que seja pior.
Minha surpresa fica maior quando vejo que Rajá e Ajax estão
esperando no final das escadas. Respiro fundo quando a sombra do
mais velho suga o meu fôlego quando ele caminha em nossa
direção. Ele tem essa impressão perigosa pairando sob seus
ombros, provando que ele não tem medo de nada.
— E então? — Sua voz é eloquente e brutal. Ele me lembra
muito seu pai, até nas roupas que usa.
Arrepios me dominam quando sou envolvida por seu cheiro
masculino e sensual. Ele é selvagem pra caralho, e isso está claro
na forma como me analisa com desaprovação apenas por estar
impressionada com sua beleza.
— Estamos atrasados, seu velho feioso. — Ele encara Yuri
diretamente nos olhos.
— Veja como fala comigo na frente das minhas meninas,
garoto promíscuo. — Yuri resmunga, e o mais surpreendente é que
seu tom de voz não está ofendido. Ele trata Rajá quase como se o
amasse.
O homem está usando um casaco peludo que eu acredito ser
de algum animal. Ele tem um charuto entre seus dedos e se afasta
para me analisar dos pés à cabeça.
— Arcane Planard, certo? Eu imaginava que você fosse um
pouquinho mais alta. — Ele sequer desvia o rosto para observar
minhas irmãs. Eu me controlo para não revirar os olhos. — Eu
venho em nome de Kalon para levar você até sua festa de noivado,
e a propósito, seja bem-vinda a família de loucos.
Um resmungo grave escapa de Yuri, eu pisco algumas vezes
me perguntando se isso devia ser a sombra de uma risada.
— Gentileza a sua, Sr. Somáli. — Eu limpo a garganta. — E
onde Kalon está? Com alguma puta? — Primeiramente, quem ele
pensa que é para me deixar esperando e não me pegar para o
evento de noivado? Isso faz parte da tradição e eu ainda sou uma
dama que merece ser honrada. Estou impressionada com como ele
consegue me irritar mesmo sem estar na minha frente.
— Eita porra. — Ajax dá uma gargalhada seca ao ouvir a
minha pergunta. Yuri lhe lança um olhar cortante e isso é o
suficiente para azedar o meu humor.
Eles sabem de alguma coisa, certo? Meu sexto sentido nunca
falha.
— Você devia dobrar sua língua antes de falar comigo nesse
tom, menina. — Rajá rosna para mim.
— Cachorro que ladra não morde, garotinho promíscuo. —
Uso o apelido que Yuri lhe deu. Minhas irmãs dão risada em algum
lugar atrás de nós.
— Concordo. — Ele sussurra. — Os tigres apenas
estraçalham em um piscar de olho.
Se isso foi uma ameaça, ele conseguiu me deixar tensa, mas
eu nunca vou admitir isso em voz alta. Yuri para atrás de nós como
se estivesse se divertindo com as provocações venenosas.
— Primeiramente, você quem não deve falar comigo nesse
tom. — Eu tenho a audácia de apontar o dedo em sua direção. Ele
aperta os olhos de forma ameaçadora. — Eu não suporto macho
alfa, mas tenho um tratamento especial para o seu tipo.
— Bravo! — Minha névoa assassina se dissipa quando ele
bate palmas de um jeito debochado. — Eu desafio você a fazer isso,
menina.
— Qual é, Rajá. — Ajax interrompe de um jeito preguiçoso.
— Acabe logo com isso e vamos embora, eu ainda tenho que
passar na farmácia.
— Kalon está ocupado. — Rajá responde de forma rápida. —
Podemos ir agora? Estou com minhas pernas doendo.
— Já perdemos tempo demais. — Ajax encara o relógio em
seu pulso e acena para nós irmos na frente. — Senhoritas, me
concedam o prazer. Tem uma carruagem esperando lá fora.
Com isso, não demora muito para a limousine estacionar em
frente a mansão onde acontecem os eventos da Alkyóna. Eu pensei
que seria uma festa pequena e simples, mas pelo visto eles
convidaram metade da população ateniense. Há tanto movimento
que perco o fôlego.
— Quero voltar. — Reclamo. — Esse lugar não me agrada.
— Não podemos. — Melissa me interrompe, apertando meu
braço. — Preste atenção, vai ficar tudo bem. Sei que você não está
acostumada a viver com tantas pessoas ao seu redor, mas pense
em nós quando se sentir incomodada, você não está sozinha.
Eu balanço a cabeça em concordância. Meu problema é que
não sou uma pessoa sociável, eu vi toda a minha vida passar dentro
de uma cadeia onde eu saía apenas para matar alguém que eles
escolhiam. Matar não exige uma conversa normal, apenas ação.
Eles realmente escolheram a pior pessoa para esse casamento.
Me surpreendo quando vejo algumas crianças correndo em
nossa direção. Meus lábios formam um meio sorriso. Um dia eu fui
assim.
Esse lugar é como a morada dos deuses, um céu pagão para
pecadores errantes e desprezíveis, cheio de pessoas ricas e
poderosas, conhecido como o maldito Olimpo da Alkyóna.
Algumas pessoas percebem a minha presença e cochicham,
principalmente as mulheres, que logo me olham de um jeito feio e
invejoso. Minhas pernas travam e eu quero correr pra longe, mas
Yuri aperta meu braço e me lançar um olhar severo.
— Estamos quase lá, agapi mou. — Ele rosna. — Que tipo de
comportamento é esse?
Eu me sinto desconfortável no meio dessas pessoas, eles me
olham como se esperassem algo grandioso de mim. Como vou
atender a isso quando sou apenas uma assassina? Tudo que eu sei
é manchar minhas mãos de sangue cada vez mais. Eu não sei
como me comportar como uma mulher normal. Ninguém me
ensinou.
— Acena para as criancinhas, veja como eles são gordinhos.
— Me assusto quando Ajax sussurra bem perto de mim.
Não sei em que momento ele chegou, mas seu braço se
entrelaça ao meu e acalma meus pensamentos desenfreados.
Um sorriso toma conta da minha boca quando vejo dois
meninos barrigudinhos. — Kalinichta! — Eu jogo um beijinho na
direção deles e suas bochechas ficam vermelhas.
Eu não vejo Kalon em nenhum lugar e acho que vou precisar
de uma bebida amarga para aguentar toda essa atenção sufocante.
— Tudo bem, eu preciso apertar as mãos de algumas
pessoas. —Yuri se esquiva de nós como se fôssemos um pedaço
de lixo. Ele sequer olha para trás quando cruza o grande salão em
direção a um grupo de homens esquisitos que fumam como uma
chaminé.
Meia hora se passa enquanto bebemos e conversamos.
Kalon está mais atrasado do que eu pensei. Depois de um tempo
conversando, minhas irmãs se afastam quando algumas mulheres
caminham até onde eu estou. Esse é o momento onde vou ser
apresentada como uma futura Somáli, e o peso dessa informação
faz arrepios subir por minha coluna.
— Arcane, é um prazer conhecê-la. Você está linda. — Uma
mulher loira estende a mão em minha direção. Eu uso meu melhor
sorriso para apertar de volta.
— Obrigada, você também. — Eu pisco.
— Agora que você é uma Somáli, querida… — Uma morena
se aproxima. — Vai precisar fazer um regime para aparecer nas
fotografias. As pessoas criticam muito um quadril tão largo.
Minhas bochechas ficam vermelhas. Não de vergonha, mas
de raiva. Eu encaro a mulher com uma expressão profunda de nojo.
— Não há nada de errado com o corpo dela, mas sim com a
sua existência imunda. — Eu me assusto quando Rajá Somali para
bem ao meu lado. — Eu sugiro que você saia daqui correndo e lave
muito bem a porra da sua língua, vadia desgraçada, ou eu arranco
fora. — Ele aproxima seu corpo fazendo a mulher estremecer e
choramingar. — Eu vou contar até três, querida. — Ele não começa
a contar, a mulher sai correndo como se tivesse visto o demônio e
as outras foram junto.
— Você não acha que foi rude demais? — Eu giro meu rosto
até ver sua expressão indiferente.
— Eu estou pouco me fodendo e ela mereceu. — Ele balança
os ombros. — Essa é a primeira vez que eu vejo alguém sendo
criticada por ter uma bunda grande. Chama-se inveja, devia
começar a usar um olho grego no pescoço ou na calcinha. — Ele
estala a língua sem dar nenhuma importância ao assunto.
— Na calcinha? — Juro que nunca ouvi tanto absurdo em tão
pouco tempo.
— Isso. — Ele balança a cabeça como se eu fosse surda e
louca. — O olhar dela é conhecido como inveja por sua boceta
pertencer a Kalon Somáli. Veja que grande coisa. — Ele aperta os
dentes e dá as costas como se estivesse explodindo de tédio.
— Que grande desgraçado. — Eu não perco tempo em
segui-lo. — Minha boceta não pertence a ninguém.
— Dê glória a Deus por isso. — Ele ri alto, me olhando por
cima do ombro. — Ela pode até ser uma boceta milagrosa, mas é
sério que estamos falando sobre isso? Por favor, me poupe disso e
me deixe seguir meu caminho.
— Eu quero agradecer por você me defender, mesmo que
tenha sido rude. — Limpo a garganta. — Obrigada, Rajá.
— De nada, Arcane. — Sua resposta é tão humorada e
manhosa que eu estremeço.
Sua expressão muda quando ele gira o rosto até a entrada
onde algumas pessoas estão dando espaço para Kalon entrar
acompanhado por duas mulheres. Que grande filho da puta. Alguns
botões da sua camisa estão abertos e as mulheres riem de alguma
coisa que ele disse.
Rajá toma espaço para desaparecer entre as pessoas. Minha
expressão deve ser raivosa, pois Kalon percebe que estou aqui e
muda sua postura para um comportamento mais sério.
— Eu estou atrasado? — Ele olha seu relógio de pulso.
Meus lábios se apertam em desprezo. Eu não acredito que
ele demorou porque estava com essas duas ruivas.
— Meus parabéns. — Eu dou uma risada amarga olhando no
rosto de cada um. — Na verdade, você chegou bem na hora, mas
eu ficaria mais feliz se você não tivesse se dado ao trabalho de
aparecer hoje.
Cruzo os braços diante do peito e ele tem a falta de vergonha
de analisar o decote por tempo demais. Ele se afasta das garotas e
avança dois passos em minha direção.
— Ah, não. — Eu ergo a mão. — Não pense em encostar em
mim, vai saber onde você colocou esses dedos.
— Você acha que eu estava traindo você, meu amor? — Vejo
a sombra de um sorriso em seus lábios.
Normalmente os seus apelidos me deixam com o corpo
dormente de uma forma prazerosa, mas agora o meu sangue
queima e um gosto amargo domina minha boca. Não gosto desse
sentimento possessivo que se expande em meu peito. Quero matá-
lo.
— Pouco me importa. — Eu balanço os ombros. — Me
incomoda o fato de você estar atrasado para toda essa celebração
dos infernos.
— Então sim, você acha que eu estava traindo você. — Ele
tenta me tocar novamente, mas meu sangue ferve e eu o empurro
para longe.
— Você não vai tocar em mim. — Sibilo, choque brilha em
seus olhos como se a minha rejeição doesse muito em sua alma e
corpo. Não estou entendendo porque também está doendo em mim.
Eu o odeio e ele só me dá motivos para fazê-lo mais ainda.
— Arcane, não me trate assim. — Ele reclama de um jeito
fraco e transtornado. — Não fiz o que você está pensando.
— Claro que fez. — Eu dou risada, erguendo seu pulso para
ele ver a hora. — Você está claramente atrasado, seu idiota. — Me
afasto quando ele insiste em me tocar. — Me desrespeitou na frente
dessas pessoas.
— Meu filho, por que demorou tanto? Precisamos começar,
seu pai está esperando. — Nossa conversa é interrompida quando
Atena surge ao lado de Kalon. — Venha, precisamos começar.
Não tenho tempo para protestar, Atena rapidamente me puxa
pela mão e faz o mesmo com Kalon, até que estamos diante dos
convidados espalhados pelo grande salão. Alguns estão sentados
em poltronas, outros em mesas redondas, já outros estão em pé
fotografando tudo que seguem.
Todo o meu corpo estremece ao perceber os olhos de Kalon
sob mim. Sinto vontade de correr quando a intensidade em sua
expressão causa um sentimento agressivo contra minha barriga.
Com toda a calma do mundo, Kalon senta ao meu lado e retira um
cigarro da carteira. Ele acende e começa a fumar, sem deixar de me
devorar com os olhos.
— Você fica muito linda de branco, Arcane. — Ele sussurra,
olhando ao redor para ter certeza que ninguém está prestando
atenção em nós no momento.
— E você fica muito lindo com a boca fechada. — Corto seu
elogio.
— Você me acha bonito, meu amor? — Seus olhos brilham.
Minhas bochechas ficam vermelhas de raiva.
— Eu odeio suas gracinhas. — Eu encaro as outras pessoas
ignorando sua atenção em mim.
Normalmente as festas de noivado são feitas apenas com os
familiares dos noivos, mas segundo minhas irmãs, como a família
Somáli são os líderes da Alkyóna, é obrigatório que cada família
esteja presente quando um deles vai se casar. Assim como eles são
convidados para cada festa de casamento que acontece.
Meus pensamentos morrem quando a palma de Kalon desliza
por minha coxa. Eu suspiro antes de afastá-lo por reflexo. Seu toque
quente faz minha pele queimar por mais contato.
— Eu disse para você não tocar em mim. — Encaro seu
rosto.
Sua expressão insistente não muda, mas ele recua sua mão
e dá uma profunda tragada em seu cigarro. Eu desvio o rosto para
as palavras que Ivan Somáli usa ao anunciar nosso noivado para
todas essas pessoas. Ouço suspiro dos que ainda não estavam
acreditando que é real, dos que esperavam que fosse mentira, eu
ouço arquejos; considerando o passado de quem me colocou no
mundo e tudo que eu fiz naquela Páscoa Sombria. Eu mantenho
uma expressão neutra enquanto espero que isso acabe e eu possa
me esconder em algum lugar onde ninguém esteja me olhando feio.
— Com isso, aplaudam a união de Kalon e Arcane. — Ivan
aponta para a mesa onde nós dois estamos sentados bem no centro
de todo esse inferno. As pessoas se erguem e Kalon faz o mesmo,
mantendo o cigarro apertado entre seus dentes.
Procuro por minhas irmãs, mas não consigo vê-las quando o
olhar de Kalon me prende completamente.
— De hoje em diante, eu faço desse povo testemunha de que
o meu caminho será o seu caminho, e a sua alma é minha para
atormentar, Arcane. — Isso é tudo o que ele diz antes de deslizar
um anel em meu dedo. Sinto como se correntes tivessem apertado
meu pescoço. Eu quero gritar e correr, mas estou cercada por
pessoas aplaudindo e comemorando nosso noivado.
Querido Deus, se você ainda me ama, então por misericórdia,
me mate antes que o dia desse casamento chegue e eu esteja
condenada para sempre.
18. UM PRESENTE AOS
NOIVOS
"O riso está escondido no choro. Ó pessoa pura e limpa,
procure o tesouro nos lugares destruídos".
— MEVLANA.

Arcane está me olhando como se quisse correr para longe de


mim ou me matar. Essa expressão raivosa é tudo que ela estampa
em seu rosto toda vez que estamos juntos. Lágrimas brilham na
margem dos seus olhos, provando que sua alma está em agonia
toda vez que é submetida a ideia desse casamento arranjado, mas
ela é uma boa garota, ela não ousa derrubar nenhuma lágrima
enquanto está ao meu lado. Assim como eu nunca vou abrir mão
desse casamento. Arcane foi entregue a mim para possuir e cuidar
e eu farei isso do meu jeito corrompido até que um de nós esteja
morto.
Procuro Yuri no meio da multidão e rapidamente o vejo
sentado ao lado das suas outras filhas. Um sorriso mortal cruza
seus lábios e em cumplicidade eu retribuo. Espero que você esteja
satisfeito, velho.
Ver Arcane nesse vestido branco não ajuda a manter meu
plano em linha reta, agora vou precisar fazer um desvio no que
organizei para nossas vidas e alimentar todo o meu desejo
enquanto a toco e possuo inteiramente para mim.
— Arcane mou, venha dançar comigo. — Eu sussurro,
largando o cigarro em um cinzeiro em cima da mesa.
— Eu não quero dançar com você. — Ela responde sem ao
menos ter o trabalho de me olhar. Merda. Quero bater em sua
bunda para descontar toda a minha frustração com suas palavras
indiferentes, e como se ainda não bastasse, ela não deixa que eu a
toque.
— Trouxemos uma rodada de bebidas como cortesia da
família Areleous. — Um dos garçons caminha em nossa direção, ele
sorri para Arcane que o agradece pelo presente. Na tradição grega,
os presentes de casamento são entregues na festa de noivado que
sempre dura a noite inteira, e alguns convidados adoram entregar
bebida ou comida como cortesia por seus familiares terem sido
convidados.
— Por favor, sirva um pouco de dolmades para eles em
agradecimento. — Arcane acena como uma verdadeira dama,
olhando na direção onde a família Areleous está reunida. Eles são
um grupo de herdeiros com sangue real.
Fecho minha expressão, não gostando da forma como o mais
velho encara minha mulher. Certo, hoje alguém vai morrer. Arcane
ainda é uma jovem pura que não percebe a forma como esses
homens a olha com desejo, já que ela passou a vida naquela prisão.
— Olhe para mim, Arcane. — Eu sussurro, roubando sua
atenção. Ela é minha por direito, eu estou disposto a arrancar os
olhos de qualquer pessoa que ousar se aproximar dela nessa festa.
— Dance comigo, por favor.
— Não. — Ela responde com suavidade quando eu descanso
a mão em sua coxa. — Não gosto de tanta atenção e esse vestido
está me incomodando.
Meus olhos percorrem cada traço de suas curvas, é
impossível não me perder em pensamentos quando vejo seus seios,
meu pau aperta dentro da calça e eu não penso racionalmente
quando deslizo minha mão para dentro do seu vestido.
— Kalon, por favor, não faça isso. — Ela estremece no
momento em que sente meus dedos puxando sua calcinha.
— Abra suas pernas e fique calada. Agora você sabe onde
meus dedos estão, amor. Não tocar em você está me tirando a
sanidade. — Seus olhos amedrontados me encaram quando eu não
interrompo o movimento do meu dedo indicador contra a região que
está pulsando.
Meu pau dói com mais intensidade quando percebo o quanto
ela está molhada. — Me diga se você gosta disso. — Eu sussurro,
prestando atenção caso alguém veja onde meus dedos estão.
— É diferente, eu nunca senti isso antes e sinto que vou... —
Suas palavras demoram para sair. — Faça novamente. — Ela
morde o canto dos lábios e me encara. Maldita boca. Quero devorá-
la agora mesmo. Meus dedos roçam a região com tanta suavidade
que ela aperta suas coxas uma na outra.
Suas bochechas estão vermelhas, seus olhos não se
desviam dos meus enquanto ela tenta manter o vestido no lugar. Por
sorte, não é possível que as pessoas nos vejam, não há ninguém
atrás de nós e a mesa está coberta por um tecido que esconde a
visão das pessoas que estão do outro lado. Para quem está vendo a
distância, estamos apenas conversando.
— Kalon… — Ela tomba a cabeça em meu ombro. — Pare
com isso.
— Parar com isso? — Eu limpo a garganta. — Você me
impediu de tocar em você durante essa festa inteira. — Meus dedos
afundam dentro da sua boceta apertada e Arcane fica tensa. Eu
procuro por seu rosto, mas ela esconde sua expressão em meu
ombro.
— É claro que eu impedi você de me tocar, vai saber o que
estava fazendo com aquelas garotas. — Seu olhar é cheio de raiva.
Porra, essa mulher é tão difícil de domar. Vai ser um prazer para
mim.
Eu empurro meus dois dedos do meio em sua boceta, suas
costas tremem e suas unhas cravam meu antebraço apoiado perto
do seu corpo. Perco meus sentidos quando ela rebola lentamente,
buscando por contato e mais movimentado dentro do seu núcleo
pulsante. Ela está tão molhada que vai ser difícil continuar essa
festa sem alguns dedos provocando-a até o orgasmo.
— No entanto, você está amando meus dedos sujos de outra
mulher dentro da sua boceta apertada, hum? — Eu rosno contra seu
ouvido. — Minta para mim, Arcane. Diga que nunca fez isso com
seu amante também, vamos.
Ela suspira, quase deixando escapar um gemido alto, todo
meu corpo chicoteia de prazer com essa visão divina. No entanto, o
que me incomoda é que ela não responde nenhuma das minhas
palavras, mas me olha cheia de desafios e continua se deliciando
com a porra dos meus dedos fodendo-a.
— Sente em meu colo. Agora. — Eu vou descontar toda
minha frustração dentro dela até que as palavras sejam ditas.
Ela não tem forças para protestar, está tomada pela névoa de
prazer quando empurra suas pernas em meu colo de um jeito
atrapalhado. No grande salão, inúmeras luzes neon explodem
conforme uma música agitada coloca todos para dançar.
Eu e Arcane continuamos sentados, ela está tremendo em
meus dedos e eu estou indo mais rápido por todas as vezes que a
imaginei fazendo isso com aquele homem maldito, quero levá-la ao
orgasmo com a visão dele sangrando aos seus pés. Completamente
morto e ela sendo apenas minha.
— Você estava falando com ele naquele dia, certo? — Minha
mão segura sua barriga para que eu tenha mais acesso às
estocadas em sua boceta. Ela está pulsando cada vez que eu
aumento o ritmo.
Puta merda, Arcane é tão deliciosa que eu quero marcar sua
pele com mordidas. Quando a alça do seu vestido cai, eu cravo
minha boca em seu ombro, mordiscando sua pele e ouvindo outro
gemido sufocado. Seus seios estão quase caindo para fora do
tecido apertado. Em um movimento rápido, eu chupo sua pele até
ela estremecer. Isso provavelmente vai ficar marcado e a ideia me
enche de prazer.
— Isso é por você não me responder. — Minha voz está
agressiva. — Agora fale antes que eu acabe com a nossa diversão.
— Kalon, alguém pode ver. — Ela sussurra trêmula.
— Eles estão dançando, ninguém está vendo. — Faço seu
quadril rebolar para receber todo o tamanho dos meus dedos. —
Agora a minha pergunta.
A visão da sua bunda batendo contra meu pau faz choques
prazerosos subir por minha coluna. Suor escorre por sua tatuagem
de dragão e eu puxo seu corpo até bater contra meu peito, dessa
forma terei mais espaço para levá-la ao ápice. Sua calcinha
escorrega por entre suas pernas, ficando suspensa em seus
tornozelos.
— Céus, eu não estava falando com ele. — Ela mente para
protegê-lo. Garota esperta, nem mesmo sob uma tortura deliciosa
eu consigo arrancar a verdade dos seus lábios.
Isso me enfurece ao ponto de parar meus movimentos,
deixando apenas meus dedos dentro dela. Seus olhos se abrem,
brilhantes e cheios de desejo. Meu pau dói com a visão do prazer
que eu coloquei estampado em seu rosto.
— Por que você parou? —Sua voz está trêmula. — É só
isso? — Suas palavras estão cheias de inocência, como se
realmente não soubesse que existem mais coisas que ela pode
sentir com meus dedos, mas eu me sinto ofendido.
— Só isso? — Ergo uma sobrancelha, tomado pela vontade
de levar isso para outro nível, mas o problema é que estamos em
uma festa cheia de pessoas e eu preciso ser discreto em minhas
provocações. — Você ainda não viu nada, meu amor.
— Sério? — Ela engole em seco, curiosidade brilha em sua
face quando seus olhos caem em meu colo, encarando meu pau de
um jeito tão descarado que quero fazer ela engoli-lo.
— Abra a câmera do seu celular. — Aponto para o objeto em
cima da mesa, perto de algumas taças. Ela me olha de um jeito
questionador, mas eu balanço a cabeça em negação e mantenho
minha atenção no aparelho. — Depressa, Arcane. Essa é a sua
punição por me insultar.
— Eu insultei você? — Seu olhar raivoso mantém meu rosto
como foco. — Você só pode estar tirando onda da minha cara.
— Faça o que eu mando. — Eu esfrego sua boceta em
resposta, ela geme e morde o canto dos lábios, tendo choques de
prazer.
Seus dedos trêmulos esbarram no aparelho até que ela abre
a câmera. Ansiedade brilha em seu rosto, assim como nervosismo
enquanto ela olha para todos os lados tendo certeza que ninguém
está vendo. Por sorte, a área onde eles estão dançando é um pouco
mais afastada das mesas onde aconteceu nossa declaração de
noivado. Meus seguranças também estão do outro lado, impedindo
qualquer pessoa de se aproximar demais. Mas isso não impede
Arcane de ficar tensa enquanto olha para as pessoas com um olhar
de águia.
— Se eu soubesse que é arriscado, nunca estaria expondo
você dessa forma. — Meu polegar acaricia sua perna desnuda. Eu
adoro tanto esse vestido que quero parti-lo ao meio.
— Por que você pediu para abrir a câmera? — Ela está
nervosa, mas não deixa de me olhar com desejo.
— Sua função vai ser filmar esse momento para revê-lo toda
vez que pensar em dar a minha boceta para ele. — Eu rosno contra
seu ouvido.
Arcane me olha surpresa, eu posiciono o celular em um
ângulo onde é possível ver seus seios fartos e seu vestido levantado
para receber meus dedos.
Ela está molhada com a ideia de ter nosso momento íntimo
sendo gravado pela câmera do seu celular, suas bochechas estão
vermelhas e por breves segundos eu quase me esqueço que
estamos em um salão de festa. Empurro meus dedos de volta para
sua boceta apertada, fazendo movimentos delicados enquanto
Arcane procura não gemer e rebolar rápido demais.
— Por que isso é tão bom? — Ela parece estar perdida em
seus próprios pensamentos, apertando meu antebraço e rebolando
de um jeito intenso.
Porra, ela é tão inexperiente que sinto vontade de ensinar
tudo de uma vez. Ou talvez ela esteja fingindo para mim, já que tem
aquele homem em sua vida.
— Kalon, por que isso é tão bom? — Sua voz frágil agride
meus ouvidos quando ela me procura por cima do ombro. Merda,
estou começando a pensar que talvez eles ainda não tenham
chegado nessa parte.
— Porque é para você. — Eu sussurro. — Aproveite.
Quero dar tapas em sua pele, marca-la em todos os lugares
sensíveis, morder sua boceta e experimentar seu gosto. Fica cada
vez mais difícil manter minha sanidade quando ela joga os cabelos
para o lado e começa a dançar de acordo com o ritmo da música.
Cacete, como ela consegue fazer isso tão bem e ainda aguentar
meus dedos fodendo-a sem pausas?
Suas mãos apertam seus seios quando ela atira a cabeça de
um lado para o outro no ritmo da música e fica na ponta dos dedos.
Arcane arrisca uma rebolada profunda em meu colo, mas ela para
ao sentir como meu membro está duro contra essa bunda deliciosa.
Ela ergue seu quadril, retirando meus dedos de dentro da sua
boceta, um gemido cheio de protesto sai da minha boca sem que eu
me dê conta disso. Ela espalha o vestido por meu colo quando abre
meu cinto e puxa parte do meu membro para fora.
— Arcane, o que você pensa que está fazendo? — Ela faz
isso de um jeito discreto, rebolando em cima do meu pau, mas nem
fodendo que vou reivindicar sua boceta em uma festa cheia de
pessoas onde não vou ouvi-la gemer alto.
— Marcando território. — Ela pisca.
— Nem pense que nesse relacionamento você pode ser mais
possessiva que eu. — Eu sussurro, apertando seu quadril quando
meu pau sente sua boceta molhada e quente. Estamos tão perto
que mais um movimento e eu estou dentro dela por completo.
— Porra, você está muito ferrado. Acabo de ouvir isso como
um desafio. — Ela sibila no mesmo tom.
As luzes neon piscam forte. Todo o salão está brilhando
rapidamente entre vermelho e preto. Está escuro demais e o calor
consome minhas veias, mas quando Arcane começa a dançar em
meu colo, tudo dentro de mim entra em combustão.
Ela faz isso tão bem que choques de prazer sobem por minha
coluna. Seguro sua cintura, dando impulso pra ela dançar mais
livremente, guiando seus movimentos contra meu pau que sente
pouco do atrito da sua boceta, mas é o suficiente pra fritar minha
sanidade.
— Me diga o nome dele, Arcane. — Eu tento minha última
jogada quando ela geme ao sentir todo o meu tamanho esfregando
sua boceta. Foi rápido e sem penetração, mas o suficiente para
deixar suas pernas fracas. Em um movimento demorado e cheio de
formigamento, ela respira fundo, atingindo seu orgasmo que balança
seu corpo contra o meu.
— Vamos, meu amor. Me diga o nome dele. — Beijo seu
ombro. Um suspiro delicioso escapa dos seus lábios, meu sangue
bombeia mais forte com a visão dessa mulher sentindo prazer
contra meu pau encharcado por sua boceta.
— Espero que você tenha aproveitado o que nunca vai ter
novamente. — Ela gira em meu colo para beijar meu queixo de um
jeito tentador, mordiscando minha pele e rindo grave,
completamente no poder. — Foi uma péssima ideia você brincar
comigo desse jeito, agora eu não vou parar de revidar. Esteja ciente.
— Ela pega seu celular e exclui a filmagem para que eu veja.
Mordo o canto dos lábios, guardando meu pau dentro da
roupa mesmo estando ciente que sua provocação me deixa mais
duro do que nunca. Eu suspiro, observando sua expressão em meio
às explosões de cores neon.
— Tente, Arcane. — Sussurro. — Eu te desafio a vencer seu
homem, meu amor.
Ela recolhe seu salto e se ergue, caminhando para longe e
mantendo uma postura imperturbável de quem não passou os
últimos minutos com meus dedos fodendo sua boceta deliciosa.
Uma gargalhada grave escapa da minha boca, vou precisar manter
uma relação muito rotineira com o meu punho para descontar toda
essa raiva reprimida.
19. NÃO CHORE, MEU AMOR
"Na verdade, o mais doloroso não são os sonhos desfeitos.
É alguém não poder viver a felicidade, embora ela seja
possível."
— DOSTOYESVSKI.

Eu ligo a água da pia para lavar meu rosto e me recuperar


dos últimos minutos com Kalon, mas é em vão, todo meu corpo
continua em chamas e formigando de uma forma que nunca
experimentei antes. A forma como Kalon olha para mim é tão
intensa que meus ossos se partem, assim como a forma que ele me
possuiu naquela mesa, como se cada pedaço meu fosse feito pra
ele. Porra. Quero odiá-lo na mesma proporção em que gosto do que
ele fez comigo.
Eu arrumo os fios do meu cabelo atrás da orelha e observo
se minha maquiagem está borrada, mas eu paro de súbito quando
um homem entra no banheiro feminino. Meus olhos saem do
espelho e voam até onde ele está em pé com um saco em mãos,
todo seu rosto está coberto por um capuz preto.
— Quem é você? — Eu me coloco na defensiva, adotando
uma postura ereta e atenciosa. O banheiro é longe demais pra eu
conseguir chamar alguém ou correr, também acho difícil alguém me
ouvir em meio a tanto barulho lá fora. — Você entrou no banheiro
errado, irmão.
— Não, eu estive há horas esperando você ficar sozinha,
criança. — Ele avança um passo. Isso é o suficiente para me fazer
recuar, eu olho para os lados procurando alguma forma de me
defender.
Ele fecha a porta do banheiro, e com uma força absurda,
arranca uma das portas da cabine e empurra contra a porta
principal, nos deixando trancados. Pânico sobe pela minha
garganta, eu respiro fundo quando vejo que já alcancei a parede.
Estou encurralada.
— Quem é você? — Falo firme.
— Ora, para uma assassina descontrolada, você é muito
medrosa. — Uma gargalhada sombria escapa do capuz, arrepios
sobem por minha coluna. — Não consegue me reconhecer? — Ele
balança o saco em mãos que está pingando algo escuro. — O aviso
em sangue na porta da mansão Somáli, aquele homem morto sob
os portões… — Ele estala a língua, é um som calmo e assustador.
— Você. — Reconhecimento brilha em meu rosto. — Você
quem está perseguindo a família Somáli. — Eu avanço em sua
direção pronta para lutar.
— Pelo contrário, eu sou apenas um mensageiro. — Ele
ergue o queixo, puxando lentamente o capuz da sua cabeça e
revelando seu rosto, me fazendo parar de andar imediatamente.
Eu não o reconheço. Ele é um homem de aparência
desleixada, com uma barba precisando de cuidados e olhos azuis.
Seu nariz é um pouco grande e tudo que chama atenção em seu
rosto é a cicatriz que consome sua boca e bochecha.
— Um mensageiro. — Sibilo, analisando sua postura e
procurando formas de derrubá-lo sem precisar gritar por ajuda, mas
o problema é que o homem tem o dobro do meu tamanho.
Eu não penso em uma estratégia, sou tomada pelo instinto de
me defender e avançar para cima do seu corpo alto, eu chuto sua
perna e desfeito um murro pesado em sua bochecha. O impacto
duro faz meu punho latejar.
— Você devia lutar com alguém do seu tamanho, criança. —
O homem desfere uma série de palavrões obscenos, um som
exausto consome minha garganta quando ele me chuta sem
nenhum esforço.
Eu seguro seu braço, tomando impulso para saltar e derrubá-
lo no chão. Esse miserável pode até ser mais forte, porém, eu sou
mais rápida e penso mais rápido nos movimentos. Eu puxo seu
capuz, usando um golpe de jiu-jitsu para apertar sua garganta e
sufocar seu pescoço com o cotovelo, ele engasga de dor olhando
nos meus olhos.
Seus pés chutam o saco que ele tinha em mãos, meu punho
fraqueja quando manchas vermelhas e escuras se espalham por
meus pés. Choque consome meu rosto ao perceber que isso é
sangue. Um coração ainda batendo mancha o meu vestido.
— Esse é o meu presente. — O homem diz, eu me afasto,
cobrindo minha boca para sufocar um grito de horror.
— O que você fez? — Minha voz não passa de um sussurro
trêmulo. Só consigo pensar em minhas irmãs e a preocupação me
deixa desorientada. Eu me esquivo para longe do órgão que
mancha todo o chão em vermelho.
— Arranquei o coração dela enquanto a ouvia gritar por
misericórdia. — Ele sibila, ficando cada vez mais perto de mim. —
Esse é um presente do meu chefe para você. — Seus dedos sujos
de sangue seguram meu queixo. — Você não devia ter revirado a
vida de Altan. — Ele estala a língua. — Achou que seria fácil
esconder Leyla de nós? Pois bem, esse é o seu presente.
Ele aponta para o coração inerte no chão. Um grito
desesperado escapa dos meus lábios, sinto o pânico agredindo
minha pele quando ele aperta sua mão em minha boca, sufocando
minha voz.
— Quieta, querida. Nós estamos apenas começando. — Ele
sussurra contra meu rosto, seu hálito de bebida me faz revirar o
rosto para não sentir o cheiro podre.
Minhas unhas rasgam seu antebraço, procurando alguma
forma de escapar, mas lágrimas invadem meus olhos quando ele
puxa meus cabelos com força. Me esperneio, mas seu joelho aperta
minha coxa, empurrando meu quadril contra a parede ao ponto de
causar dor. Eu grito, quase desfalecendo com a intensidade do seu
aperto em minha boca.
— Os presentes ainda não acabaram, querida, o meu chefe
mandou uma lembrancinha para cada membro da família Somáli e
você deve receber todos. — Seu olhar vermelho faz lágrimas
brotarem em meus olhos, ele deve estar sob efeito de drogas, essa
deve ser a única explicação para sua força absurda.
Ele bate minha cabeça contra o espelho do banheiro, me
deixando desnorteada. Eu grito alto com a dor e tento me erguer.
Porra, eu preciso lutar. Eu preciso fazer alguma coisa. Minha visão
escurece e a dor se espalha por todo meu corpo.
O impacto foi brutal e doloroso, essa pressão na minha
cabeça me causa a sensação de inchaço, como se eu fosse explodir
caso me movimente muito rápido.
Por mais que eu odeie sujar minhas mãos de sangue, por
mais que eu me sinta uma pecadora e um monstro ao ceifar a vida
de outra pessoa, eu preciso lutar e sobreviver. Sangue escorre pela
minha testa, um gemido desesperado escapa da minha boca
quando pisco e vejo uma arma apontada em minha direção.
— Se você gritar, eu atiro. — Ele rosna.
Eu procuro por algum ferimento profundo em minha cabeça
causado pelo impacto do espelho, sinto meus dedos molhados, mas
paro quando o homem abre a porta lentamente e dá passagem para
três homens entrarem. O último deles está com uma mulher jogada
por cima do ombro, com seu vestido azul todo manchado de
sangue. Todos eles estão gargalhando e o líder deles volta a fechar
a porta. Meu estômago embrulha em horror quando o corpo é
jogado ao chão sem muito cuidado.
— Leyla? — Eu soluço ao ver seu corpo sem vida. O peito
estraçalhado mostrando o lugar onde antes estava seu coração, sua
pele está pálida e fria, os lábios sem cor e vários arranhões por suas
bochechas. Eu grito alto, chacoalhando seu corpo pesado.
— Não. Não. Não. Leyla… – Soluço, impotente.— O seu
bebê. O bebê. — Eu deito minha cabeça em sua barriga, chorando
fraco enquanto os homens riem de mim.
— Veja que fofa. — O líder fala. — Agora ela se sente
culpada, rapazes.
— Vocês vão pagar por isso. — Eu grito, minha garganta
doendo pela rouquidão. Eu me contorço no chão, avançando por
cima do corpo de Leyla até que tenho sua cabeça em meu colo.
Minhas lágrimas molham suas bochechas e olhos fundos. — Eu
sinto muito. Eu sinto muito. — Tento segurar sua mão, fecho meus
olhos como se pudesse senti-la quente e apertando de volta. — Fale
comigo, vamos. Por favor, não me torture assim… — Eu gemo,
engasgando com meu choro.
— Diga pra todos que você matou ela, Arcane. — O homem
fala, parado na minha frente com uma expressão superior e
egocêntrica. — Conte pra todos que foi culpa sua.
— Ai meu Deus. — Eu soluço repetidas vezes, a negação
aperta meus olhos e me faz gemer como se minha alma estivesse
sendo cortada em inúmeros pedacinhos. — Eu não queria isso… Eu
não queria… — Ânsia de vômito aperta meu estômago, eu engasgo
e choramingo mais alto, mais cheia de dor.
— Ela morreu por sua culpa. — O homem agarra meus
cabelos, me puxando de forma agressiva para longe do corpo sem
vida de Leyla. — Você tentou brincar com o chefe na hora errada,
Arcane. Agora você aceita as consequências. — Ele aperta minhas
bochechas, fazendo minha carne arder. — Engula o choro, sua
putinha. — Ele aperta minha garganta, fazendo eu sufocar com
meus soluços.
— Ela está fazendo barulho demais, chefe. — Um dos
homens fala, eu não consigo ver seu rosto em meio às lágrimas.
Estou tremendo, uma pressão devastadora consome meu peito toda
vez que a imagem de Leyla preenche minha mente. Ela morreu por
culpa minha. Como eu vou viver com isso?
Suas mãos agarram minhas roupas sujas de sangue, ele
rasga o tecido em meu busto com firmeza enquanto rosna, e então
despeja um líquido gelado em meus seios. É whisky, o cheiro forte
me faz querer vomitar.
— Acho que vamos queimar algumas partes preciosas do
seu corpo, o que acha? — O líder sussurra em meu ouvido. Eu grito
alto, encolhendo as pernas para conseguir cobrir a nudez dos meus
seios.
— Quieta, Arcane. — Um dos homens que está atrás do líder
começa a derramar whisky no corpo morto de Leyla. — Vamos nos
divertir com ela bem na sua frente, então cale-se.
A ideia de ver o corpo de Leyla sendo violado bem na minha
frente me causa uma dor aguda no peito. Eu fecho meus olhos, eu
procuro por qualquer refúgio em meio a esse tormento que me
tortura, mas nada me prende, nada me consola. O banheiro é longe
demais pra alguém me ouvir gritar, a música está alta demais, eu fui
deixada sozinha. Deus me abandonou. Ele me abandonou e eu nem
sei porquê.
— Abra os olhos! — O homem de olhos azuis grita alto. Estou
gemendo e soluçando de dor. Ele puxa meus cabelos para trás,
deixando meu rosto limpo de qualquer fio molhado, então empurra a
garrafa de whisky em minha boca. — Mais um presente para você,
meu bem.
Minha garganta queima ao sentir o gosto do álcool sendo
despejado sem controle, eu engasgo quando sinto o líquido se
espalhar por meu nariz, e sufoco quando tudo queima dentro de
mim. Estou sem fôlego e não consigo parar de tossir como se algo
estivesse partindo minha cabeça ao meio.
Procuro algum lugar na minha mente onde eu não esteja
sofrendo, onde eu possa anestesiar minha dor e aguentar os
próximos minutos, eu estou gemendo e me revirando no chão em
busca de qualquer coisa. Os olhos verdes de Kalon invadem minha
mente. Eu grito mais alto, tentando segurar a garrafa quando ele
empurra em minha boca novamente.
— Segurem ela. — O homem rosna, apertando meu queixo,
eu atiro a cabeça em negação. A posição em que meu rosto está
inclinado dói tanto que eu sinto que meu pescoço vai se partir.
— Por favor. Por favor. — Eu estou implorando. Porra. Essa é
a primeira vez que estou implorando por algum tipo de salvação e
eu sequer sou digna. — Pare com isso, pare com isso. — Gemo
firmemente, agonizando em resmungos dolorosos como se eu fosse
uma criancinha pequena. Bem pequenininha. Como se tudo que eu
precisasse fosse de cuidados, de um colo para me abrigar.
Qual o problema comigo? Por que eu estou pensando no
homem que pode me lançar no inferno? Por que estou me
agarrando no seu sorriso e nos seus olhos para aguentar essa
tortura interminável? Eu quero tanto acreditar que de fato nós só
precisamos de alguém que nos lembre que não somos tão ruim
quanto achamos ser, que Kalon pode fazer eu me sentir melhor.
Eu estou chorando compulsivamente, os soluços rasgam
minha garganta quando o whisky escorre por meus seios, fecho
meus olhos e procuro por Kalon como se ele estivesse do outro lado
da porta. Eu penso nesse homem como se fosse a porra de uma
oração cheia de fervor.
— Tragam outra garrafa. — Mas tudo fica sombrio quando eu
não vejo ninguém ao abrir os olhos.
Eu estou trêmula, estremeço com o som do vidro se partindo
quando ele joga a garrafa vazia ao meu lado. Eu estou sozinha. Não
há Kalon, nenhuma melhor amiga para enxugar minhas lágrimas e
fazer eu me sentir melhor, nem deuses gregos, nem papai e nem
Jesus Cristo. Ninguém está vindo me salvar. Penso em quantas
pessoas morreram porque experimentaram esse mesmo gosto
amargo que eu, o medo entalado na garganta junto com a tristeza.
Ser deixada no escuro é a minha versão assustadora do inferno.
Um buraco se abre em meu peito ao ver o corpo sem vida de
Leyla. Eu só queria ajudar. Uma dormência sobe pela minha barriga
quando encaro os cacos de vidro no chão onde eu estou jogada.
Não sei há quanto tempo estou aqui, mas foi necessário tudo de
mim pra apertar meus dedos ao redor do caco grande e pontudo.
É isso, eu vou precisar fazer isso sozinha. É com muita
angústia, me sentindo um monstro e completamente fora de mim,
que eu cravo o vidro no braço do homem que segura meus cabelos.
Foi rápido, sangue espirra em minhas bochechas quando vejo que
atingiu uma veia, o grito faz ele cambalear para trás.
Eu não paro, eu pulo em cima do seu corpo e acerto o vidro
repetidas vezes em seus olhos até que uma massa grossa e
molhada escorre pelos meus dedos. Meus membros doem pela
dificuldade de me movimentar com tanto álcool em meu sistema,
mas eu faço isso o mais rápido que consigo quando empurro um
dos homens e fecho a porta na mão de um deles. Eu solto a
maçaneta apenas quando ouço o som estalado dos dedos
quebrando.
Eu corro pelo corredor escuro e arrumo a alça do meu vestido
rasgado, escondendo meus seios conforme atravesso as luzes
piscando, o banheiro fica no último andar da mansão Alkyóna. Eles
estão correndo atrás de mim, consigo ouvir as vozes e os passos
pesados. Eu tropeço nas escadas, escorregando por cima de um
vaso decorativo, mas nada consegue me parar.
No momento em que meus pés alcançam o salão espaçoso e
as luzes neon agridem meus olhos, eu começo a andar com calma,
empurrando algumas pessoas. Eu preciso ir embora. As lágrimas
escorrem por minhas bochechas como um rio.
Minhas irmãs não podem saber sobre Leyla, como vou
confessar que aquela mulher está morta por minha culpa? Não
posso falar com Kalon, e se tiver sido ele ou algum dos irmãos dele?
Quem pode me proteger se eu não posso confiar em ninguém? Eu
estou envergonhada demais para confessar que é tudo culpa minha.
Um casal bêbado esbarra em meu quadril, me fazendo
tropeçar no último segundo e cair aos pés de alguém. Tento segurar
a alça do meu vestido rasgado para cobrir meus seios doloridos. Um
soluço fraco escapa da minha boca quando um segurança agarra
meu braço de forma brusca, me puxando para andar na ponta dos
pés até onde Kalon está sentado com algumas mulheres dançando
perto dele. No entanto, sua expressão é de tédio e nem para elas
ele está olhando.
— Meu amor? — Ele está olhando para mim como se
estivesse me procurando e me esperando esse tempo inteiro.
— Kalon… — Minha voz está rouca. — Eu acho que matei
um homem. — Minhas mãos estão trêmulas. Um nó aperta minha
garganta quando lembro do que fizeram comigo. Eu quero vomitar.
— Venha aqui. — Ele bate as mãos pra eu sentar em seu
colo. — Me diga o que aconteceu e onde ele está, eu assumo a
culpa.
Meus pés insistem para que eu corra até ele e busque abrigo
em seu colo, estou prestes a fazer isso quando o segurança me
aperta com mais força. Eu olho para os lados, os homens estão me
procurando em meio as pessoas dançando e arrepios sobem por
minha coluna.
— Me solta. Isso dói. — Eu tento escapar quando o
segurança aperta meus cabelos, os homens estão se aproximando,
lágrimas gordas escorrem por minha bochecha quando ele aperta
mais forte.
Eu só quero correr até Kalon e me esconder.
— Não. Toque. Nela. — Um rosnado furioso faz o homem me
largar como se eu estivesse em chamas. Estou livre.
Eu me esperneio quando meu corpo bate contra o abdômen
forte do meu noivo, ele é tão alto que fica insuportável me manter de
frente para seu corpo, minhas pernas tentam escalar seu corpo
quando ele rapidamente fica sentado comigo em seus braços.
Minhas mãos envolvem seu tronco forte e eu afundo meu
rosto em seu pescoço.
— Me tire daqui. — Eu quero sentir o alívio do seu conforto,
mas a angústia aperta mais ainda o meu peito quando começo a
chorar. — Eu quero sair daqui.
— Meu amor, o que você tem? — Ele esfrega as manchas de
sangue em meu rosto. Kalon fica tenso e frio como a porra de um
iceberg. — Arcane, que cheiro é esse?
— Eu quero ir para casa. — Eu imploro quando suas mãos
apertam minhas bochechas, analisando meus lábios. — Isso dói. —
Eu soluço, tentando empurrar seu corpo pra longe.
— Está doendo mais em mim quando você não diz uma única
palavra. — Ele abre minha boca para sentir meu hálito. — Você está
impregnada com esse cheiro de whisky. — Seu tom de voz é
possessivo e cruel. — Me diga, Arcane. — Sua ordem é tão sombria
que seu olhar escurece.
— Ele… — Eu olho ao redor, revirando o lugar em busca
daqueles homens. — Um homem me machucou… Ele colocou
whisky em minha boca… — Eu soluço, encarando minhas mãos
sujas de sangue. — Por que você não sentiu minha falta? — Encaro
seu rosto em um tom acusatório, estou tremendo de raiva e
angústia. — Por que não procurou por mim?
— Não diga isso, eu sinto sua falta mais do que devia. — Ele
enxuga minhas lágrimas. Sua expressão é furiosa olhando ao redor,
procurando por quem estou me escondendo. — Me desculpe, eu
prometo não tirar os olhos de você novamente.
Kalon retira um lenço do seu paletó e enxuga minha têmpora
machucada, então limpa o excesso de whisky em meu busto e
esconde meus seios com seu paletó, me puxando para ficar contra
seu corpo quente. Leyla está morta e não há como reverter isso. Ela
está jogada naquele banheiro, ela foi destruída. Seu bebê não teve
a chance de vir ao mundo. A culpa consome minhas veias, quente e
monstruosa. Eu quero gritar, quero me esconder e ser reconstruída.
O fôlego escapa dos meus pulmões, eu arrumo meus cabelos para
trás procurando respirar conforme Kalon grita com alguém.
— Foda-se se há crianças aqui! — Eu nunca o vi tão raivoso.
— Minha ordem é clara, Rajá! Não deixe ninguém sair da porra
desse lugar até que eu mude de ideia!
Eu aperto os dois lados da sua roupa com punhos fortes e
fecho meus olhos, escondendo a minha cabeça em seu ombro.
Todo meu corpo dói, meu estômago está embrulhado por todo
aquele whisky que fui forçada a engolir.
— Me diga o que você está sentindo, não feche os olhos. —
Os dedos frios de Kalon acariciam minhas bochechas. Sua voz é
exigente e sombria.
— Tem um gosto horrível na minha boca. — Eu falo firme,
apertando minha garganta como se pudesse removê-lo.
— Eu faço passar, meu amor, você aceita? — Sua respiração
está pesada, eu balanço a cabeça em concordância para sua
pergunta. — Ótimo, meu bem. — Arrepios torturam meu estômago
quando seus lábios reivindicam os meus.
Minhas veias latejam, seu beijo é exigente e faminto. O
choque me deixa atordoada, sua língua raspa a minha, devorando
meu gosto de uma forma que me deixa trêmula. Pela primeira vez
eu reconheço que faltam coisas em mim que apenas seu beijo pode
preencher.
— Melhorou? — Ele afasta sua boca, respirando tão pesado
quanto eu.
— Sim. — Eu gaguejo, ainda encarando seus lábios. — De
novo, pode ser? — Eu procuro seus olhos, roçando minha boca na
sua, ele grunhe em meus lábios e deixa selinhos delicados e
famintos. Isso foi muito bom. Meu coração está batendo
desenfreado, mas de um jeito delicioso.
Essa é a primeira vez que beijo alguém. Isso tem gosto de
lágrimas, conforto e medo. Eu pisco algumas vezes, completamente
chocada com o que acabamos de fazer, mas deslizo minha língua
para sentir o gosto do seu lábio inferior. Eu mordisco e chupo sua
boca, um som bruto e profundo sai da sua garganta, me
assustando.
Encaro Kalon sem compreender a carranca em seu rosto, ele
parece transtornado, queimando de ódio. Minhas bochechas ficam
vermelhas e meus dedos deslizam por meus lábios, acalmando o
formigamento.
— Sinto muito, isso foi ruim? — Eu gaguejo, respirando fundo
e controlando meus pensamentos. Ele encara minha boca como se
essas palavras fossem a gota d'água para aumentar sua expressão
indignada.
— Estou atrapalhando? — Alguém limpa a garganta ao
colocar a mão no ombro de Kalon.
Eu ergo meus olhos pra sentir a fúria no rosto de Rajá que
me observa como se eu tivesse acabado de arruinar toda a sua
vida. Arrepios sobem por meu corpo, não gostando da sua atenção
sobre mim.
— Sim, seu filho da puta desgraçado. — Kalon ergue o rosto,
mais furioso do que antes. Sua mão aperta minha cintura com tanta
obsessão que eu preciso segurar seus dedos para aliviar seu toque.
— Você sempre está atrapalhando.
— Ótimo, agora ligando o foda-se para sua opinião de merda
que não me define e enfatizando que eu também tenho uma vida…
— Ele aponta para seu próprio peito. — As duas filhas do senador
que você trouxe mais cedo, nosso plano de convencê-lo acaba de ir
para o lixo, vamos precisar marcar outra festa e outra abordagem
passivo-agressiva.
— Mande Ajax levá-las para casa. — Kalon responde com
tanta tranquilidade que me assusta. — Hoje eu estarei com Arcane.
— Analisando a doçura que as coisas andam por aqui. — Ele
aponta para nós dois. — Vou ser obrigado a estragar o momento e
relembrar que a tradição não permite penetração até a cerimônia,
vocês precisam cumprir os dias sagrados entre noivado até a
oficialização.
— Sério? Todo mundo sabe que você é um hipócrita quando
se trata dessas coisas, é o primeiro a não cumprir nada. — Kalon
está humorado. Ele me encara e pisca. — Mas a tradição não diz
nada sobre dedos, certo, Arcane mou? — Minhas bochechas ficam
vermelhas e eu me sinto incapaz de falar alguma coisa.
— Fala sério, parece uma criança. — Rajá dá as costas,
desaparecendo para longe de nós.
Kalon está me observando atentamente, meu rosto vibra e eu
tento segurar a alça do meu vestido, observando meus
machucados. Lágrimas inundam meus olhos ao relembrar de Leyla.
Fecho meus olhos implorando para que não seja real ou para que
Deus me ajude a viver com isso.
— Você se sente melhor para me levar até o homem? Me
diga tudo que aconteceu. — Kalon pergunta, pegando sua arma
com tanta tranquilidade que o movimento me hipnotiza.
— Vai matá-lo por mim? — Encaro seu rosto, sem acreditar.
— Não, isso é pouco demais. — Ele balança os ombros,
ficando em pé e agarrando minha mão para caminhar ao seu lado.
— Estou disposto a matar todos nessa festa e deixar apenas a
nossa família. — Ele está falando sério quando diz isso, seus olhos
são iluminados pelo caos dessa emoção. — Quero vê-los em chama
e exibir para o mundo que ninguém toca no que é meu.
— Por favor, não. — Agarro seu braço. — Não. — Falo
firmemente.
— Como? — Kalon ergue uma sobrancelha como se eu
tivesse o insultado. — Não, Arcane?
— Eles são inocentes, eu não viveria com essa culpa. —
Minha expressão angustiada parece lhe comover. Kalon resmunga
algo inaudível e me protege da multidão agitada, me puxando de
forma rude para caminhar ao seu lado.
— Devagar. — Agarro seu braço. Eu ainda estou tonta pelo
impacto da minha cabeça contra o espelho. — Eles ainda estão
atrás de mim, Kalon... — Puxo seu braço na intenção de voltar para
onde estávamos e ir para casa.
— Quantos deles? — Sua expressão é indecifrável. Ele para
de andar e entrelaça seus dedos aos meus com firmeza. — Não
tenha medo, está bem? Me diga o que aconteceu, Arcane.
Aflição corre por minhas veias. Como vou dizer que Leyla
está morta por minha culpa? Eu não quero falar. Um gemido escapa
dos meus lábios, fazendo-me recuar alguns passos para me
proteger em seus braços estendidos. Fecho os olhos, suspirando
seu cheiro, e quando os abro novamente, vejo um dos homens
caminhando em meio a multidão.
Eles ainda estão me procurando, o que me leva a acreditar
que apenas o líder sabia que eu sou, não todos. Essa é a única
explicação para não terem fugido.
— Eles estão nas escadas, no ponto mais escuro do salão.
— Falo baixinho. Kalon gira sua cabeça antes que eu termine de
falar, suas mãos apertam minha cintura tomado pela necessidade
de me proteger.
— Eu preciso que você atraia eles pra um lugar privado. —
Ele segura meus ombros. — Tem crianças aqui, precisamos de um
lugar vazio.
Eu olho ao redor, meu estômago está pesado pelo medo e
angústia de voltar para aquele banheiro onde Leyla está morta, mas
ela também precisa ser tirada dali e receber um funeral decente. A
ânsia de vômito aperta meu estômago quando o choro ameaça
voltar com mais intensidade.
— Eu prometo que depois disso nós vamos para casa. —
Seu polegar acaricia minha bochecha. Eu balanço a cabeça em
concordância e solto sua mão lentamente para fazer o que me pede.
Caminho por entre as pessoas, algumas me olhando com
expressões cheias de preocupação ao perceber como estou
machucada, mas eu apenas abaixo a cabeça e continuo andando
até o começo das escadas. Fecho meus olhos, meu estômago está
apertado pela fria senado de que estou sendo seguida, mas não
ouso olhar por cima do ombro. Minhas mãos estão tremendo de
nervosismo quando dobro o corredor e vejo a sombra de um homem
alto e furioso.
— Você matou o meu amigo e pensou que ia fugir com vida?
— Ele cospe as palavras, avançando em minha direção com um
machado. Eu grito, cambaleando para trás, mas meu corpo esbarra
contra os outros dois.
Sua mão dolorosa se fecha ao redor do meu braço e ele me
empurra contra a parede. — Me solte. — Eu rosno, erguendo meu
rosto para enfrentá-lo.
— Cale a boca, porra. — Ele aperta meu queixo com extrema
força, me obrigando a me inclinar em sua direção.
— Oliver veio até nós oferecendo esse trabalho, ele era meu
melhor amigo, como um irmão… — Meus olhos engrandecem
quando ele aperta meu pescoço. — Estou pouco me fodendo sobre
quem você é, mas saiba de uma coisa, você vai pagar.
— Tirem a roupa dela. — O mais alto fala.
— E eu digo para tirar as mãos do que é meu. — Kalon surge
atrás deles como um trovão que invade sem aviso prévio. — Agora
feche os olhos, querida. Eu assumo daqui.
— Quem é você? — Um dos homens avança na direção do
meu noivo.
— Você vai conhecer agora, não seja precipitado. — Por
reflexo, fecho meus olhos quando ele rouba o machado das mãos
do homem. Tudo que ouço é o som horroroso do seu pescoço se
partindo.
Aperto minhas mãos contra meus olhos e me mantenho
contra a parede, ouvindo rosnados e gritos, alguns ossos quebrando
e sangue espirrando em meus braços. Toda essa batalha
assustadora perdura por três minutos, depois disso, um silêncio
assustador consome o corredor.
Retiro meus dedos do rosto lentamente, ainda com medo de
ver toda essa bagunça, mas o faço. Kalon está ajoelhado aos meus
pés, completamente coberto de sangue e ofegante.
— Ai, meu Deus. — Meu estômago se revira. O cabo do
machado está quebrado em seu punho, mas nem mesmo isso foi o
suficiente para impedi-lo de estraçalhar os três homens. Os ombros
da sua camisa estão rasgados e cobertos de sangue
Quero vomitar ao ver seus membros espalhados a cinco
palmos de distância de onde estou, como se Kalon tivesse feito um
círculo onde me manteve dentro, não permitindo nenhum deles
avançar para perto de mim. Ele tenta abraçar meu tronco mas eu
caminho pra longe. Sua expressão está tão fria, assim como sua
postura, que eu me pergunto se suas gracinhas são uma forma de
mascarar seu lado selvagem e psicopata. Seus olhos estão vazios,
eu não vejo nada puro, nada reconfortante. Apenas caos
manchando sua existência por inteiro.
Kalon se ergue, largando o machado em um baque
ensurdecedor, e como se um véu deixasse seus olhos, ele olha ao
redor e dá uma gargalhada sombria e divertida. Eu paraliso. O som
reverbera por meu peito e penetra meus ossos, me causando
arrepios. Ele não interrompe o som sombrio e cheio de rouquidão.
Seus ombros balançam e ele me olha coberto por essa paixão
pecaminosa pelo que acabou de fazer.
— Qual é a graça, Kalon? — Eu sussurro, consumida pelo
medo e receio. Porra, eu acho que ele realmente é louco.
— Foi fácil matá-los, por isso estou rindo. — Ele responde,
me estendendo sua mão pingando sangue. — Me sinto renovado.
De repente, toda a sua gentileza e perversão volta a brilhar
em seus olhos, como se esse momento sombrio não tivesse
acontecido. Ele definitivamente é um maníaco psicopata, mas a pior
parte é que eu nunca me senti tão segura quanto agora, quando ele
me puxa para um abraço apertado e fedendo a morte.
— Ninguém machuca a minha mulher e sobrevive. — Ele
beija o topo da minha cabeça. — Minha. Fodidamente minha.
Certo, eu estou completamente bêbada depois de todo
aquele whisky, essa é a única explicação para eu ter gostado das
suas palavras e ter me sentido segura em seus braços como nunca
em minha vida inteira. Ele entrelaça meus dedos nos seus, não me
dando outra alternativa senão ficar perto do seu corpo e sentir sua
mão vasculhando meus cabelos em uma carícia agradável e
profunda.
— Kalon… — Sussurro trêmula. — Eu matei alguém. —
Confesso, meu peito apertado pela angústia de saber que não há
como reverter o meu pecado. Leyla morreu por minha causa.
— Eu assumo a culpa. — Ele repete, sua estabilidade me
assusta.
— Não, você não está entendendo. — Puxo sua mão
percebendo que será melhor se eu mostrar o corpo de Leyla.
Frieza me domina ao imaginar sua reação quando vê-la. Eu
estou tremendo, minhas pernas estão fracas e minha cabeça já não
está tão sóbria. Eu me sinto suja e quebrada, como se minha alma
não tivesse nenhum valor.
A porta do banheiro está arrebentada, Kalon muda sua
postura e me solta, entrando sozinho e visualizando a cena do corpo
de Leyla no chão. Porém, o que me sufoca é ver que o corpo do
homem desapareceu. Não há nada além de sangue e marcas de
luta.
— Leyla? Arcane, o que isso significa? — Kalon ajoelha
diante do corpo de Leyla. Suas mãos tocam seus cabelos e a
balança com suavidade.
Eu não consigo falar, meu corpo está pesado enquanto
observo o lugar vazio onde o homem devia estar caído. Aperto meu
vestido, sufocando com seu tecido beliscando meu corpo.
— Arcane, eu estou falando com você! — Kalon vocifera.
Meu sangue corre como fogo, latejando em minha cabeça, meus
órgãos estão pesados e minha visão escurece.
— Ele estava aqui. — Aponto para o chão. — Eu deixei ele
aqui… Eu… — Aperto meu pescoço, perdendo o controle da minha
respiração. Meu pulso está tão acelerado que me assusto ao senti-
lo contra meus dedos.
Kalon pega seu telefone, ele grita ordens conforme eu me
encolho até sentar no chão, não conseguindo desviar meus olhos do
corpo de Leyla. Por um momento, eu duvido da minha sanidade e
começo a acreditar que matei Leyla de verdade, que todos aqueles
homens eram fruto dos meus pensamentos, que nada realmente
aconteceu.
Fecho os olhos. Eu não estou perdendo o controle, eu não
sou desenfreada, eu não matei essa mulher. Um grito fraco escapa
dos meus lábios quando sinto as mãos geladas apertando minhas
bochechas.
— Abra os olhos, agapi mou. — A voz de Yuri me faz ter um
sobressalto. — Você está perdendo os sentidos, está muito
embriagada. — Ele explica, tentando afastar meus cabelos do meu
rosto.
Eu olho ao redor, Kalon está conversando com Rajá e
encarando o corpo de Leyla. Os dois começam a discutir de maneira
descontrolada, apontando o dedo em riste e empurrando um ao
outro.
— Eu não queria matá-la. — Minha cabeça está
dolorosamente cheia, Yuri me puxa para levantar, mas ele faz isso
de uma forma brusca demais e eu acabo tropeçando.
— Mas você matou. — Rajá avança em minha direção e saca
sua arma, apontando para minha cabeça, ele está nervoso e prestes
a explodir. — Ela estava grávida, porra. Como eu vou dar essa
notícia para a família dela logo depois de terem enterrado Altan? —
Eu fecho os olhos por reflexo.
— Não toque nela, garoto. — Yuri sibila. Lágrimas escorrem
por minhas bochechas, minha língua está pesada, eu revivo os
últimos acontecimentos até não aguentar e me inclino para vomitar
aos pés do homem.
— Rajá, cuide de Leyla. — Eu sou erguida do chão, cheiro de
sangue invade meu nariz quando deito a cabeça no ombro de
Kalon. — Arcane foi torturada e está exausta, vamos resolver esse
assunto amanhã.
— Para onde estamos indo? — Eu reclamo quando minutos
depois sou colocada em um assento duro.
— Para sua casa, precisamos resolver essa situação. —
Kalon fecha o cinto de segurança ao meu redor.
Sua mão se mantém em meu colo durante a viagem, meus
olhos doem com a claridade das ruas de Atenas, tudo em mim está
desconfortável e difícil de processar. Depois de mais um tempo, fui
tirada do carro e carregada pelas escadas da minha casa. Kalon
está resmungando alguma coisa quando acende a luz do meu
quarto e me coloca em pé.
— O que disse? — Abro meus olhos, ainda incomodada com
a claridade.
— Eu disse que você precisa vomitar. — Ele arruma meus
cabelos para trás. — Também precisa se livrar desse vestido e ir pra
cama.
— Onde minhas irmãs estão? — Olho ao redor. — Eu só
durmo com elas.
— Elas estão com Yuri, amor. — Ele não tem paciência em
abrir com calma e rasga o meu vestido. Eu reclamo do frio e cubro
meus seios.
— Eu não durmo sozinha. — Sussurro.
— Por qual motivo? — Ele questiona, me estimulando a
caminhar até o banheiro. Ele me coloca de joelhos em frente ao
vaso, segurando meus cabelos e acariciando minhas costas
desnudas.
— Me sinto sozinha e tenho medo de morrer durante o sono.
— Respondo, relembrando da forma como Nikoleta quase me
matou dentro daquela prisão.
Merda, apenas seu nome dentro da minha cabeça foi o
suficiente para me fazer vomitar. Uma angústia forte embrulha meu
estômago, me fazendo protestar em um resmungo choroso. Eu me
sinto péssima dentro do meu próprio corpo, será que algum dia vou
conseguir me sentir normal?
— Por que eu ainda estou viva? — Aperto os olhos. — Tudo
de ruim acontece por minha causa.
— Porque Deus fez você pra mim. — Ele responde,
acariciando meus cabelos. — Porque não é bom que alguém se
sinta sozinho desse jeito.
— Que grande besteira. — Minha voz está embargada. Eu
aperto as bordas do vaso quando meu estômago embrulha
novamente. — Por que não escolhe outra pessoa, então? Uma que
suporte você. Eu não sirvo para esse casamento, por favor, mude
de ideia enquanto ainda há tempo.
— Sem chances. — Ele ri. — Eu não quero alguém igual
você, eu quero você. — Ele me puxa para ficar em pé, então
começa a lavar meu rosto na pia do banheiro, suas mãos são
delicadas ao afastar meus cabelos. — Coisas ruins acontecem o
tempo inteiro, Arcane mou. Com todo mundo.
— Você me lembra aquele monstro da terra do nunca. —
Abraço seus ombros quando ele enxuga meu rosto com uma toalha
limpa. — O nome dele é ranzinza, você conhece?
— Não. — Uma resposta curta e sem sequer desviar os olhos
dos meus cabelos.
— Está vendo? — Aponto o dedo contra seu nariz. — Como
vamos nos casar quando você não sabe nada sobre mim, ou eu
sobre você?
— Como todo mundo casou antes de nós. — Ele gira minha
cabeça. — Meus pais, os seus. Não é uma novidade.
Eu quero batê-lo. Se eu não estivesse tão bêbada já teria
sufocado seu rosto com um travesseiro.
— Você não sabe nada sobre mim, nem mesmo minha
música favorita. — Eu insisto em manter o meu ponto. — Isso não é
um casamento, é uma prisão.
— Chame do que quiser. — Sua voz é ríspida. — Qual sua
música favorita?
— Íris, do The Goo Goo Dolls. — Fico na ponta dos pés para
entrelaçar meus braços ao redor do seu pescoço enquanto
resmungo um pedacinho da música, balançando meu quadril de um
lado para o outro. Kalon ergue uma sobrancelha cheio de
reprovação. — Porque me lembra de Daniel Ricciardo, meu piloto
favorito de Fórmula 1. — Fecho os olhos ao lembrar do seu lindo
sorriso e cabelos cacheados. — É com ele que eu realmente quero
me casar. Ele é alto… E meu Deus… O sorriso dele… — Eu
engasgo quando ele empurra a toalha no meu rosto, esfregando de
um jeito ríspido.
— Eu não dou a mínima se ele é alto e tem um sorriso de dar
inveja. — Afasto meu rosto completamente chocada. — Ou se ele é
o último gostoso do planeta.
— Você acabou de me imitar? — Faço uma careta, não
reconhecendo esse tom de voz cheio de drama e um toque que só
as patricinhas usam.
— Você precisa deitar e eu preciso dar um jeito na bagunça
que deixamos para trás. — Ele me empurra para andar pelo quarto.
— Provavelmente amanhã você não vai lembrar de nada e vai
precisar de um analgésico para sua ressaca, então vou deixar na
cabeceira, lembre-se de beber.
— Eu não durmo sozinha. — Tropeço em algumas almofadas
espalhadas pelo chão. — Escuta, você ainda vai beijar a minha
boca? — Giro meu corpo, batendo meus seios contra seu abdômen.
Ele aperta minha cintura, me empurrando até o meio do quarto.
— O que? Por acaso estava esperando os beijos do Daniel
Ricciardo ou seu amante miserável? Eu ainda não me esqueci dele.
— Ele rosna bem perto dos meus lábios. Seu tom é mordaz.
— Eu não vou negar, você me deu uma ideia maravilhosa
agora. — Ele aperta meu pescoço, causando uma formigação
deliciosa por meu corpo. Seu toque é possessivo e cheio de
controle, eu faço o mesmo com ele, encarando seus lábios.
— Eu não vou beijar você. — Ele sibila.
— Não vai? — Meu olhar cai em frustração.
— Você sabe onde fica minha boca, se quiser, faça. — Ele
mantém seu ponto, fechando o rosto em uma carranca.
— Então, dessa forma, eu também não vou beijar você. —
Cruzo os braços. Seus olhos brilham, cheios de incômodo. Ele tenta
me erguer no colo para deitar na cama, mas eu afasto suas mãos.
— Não toque em mim também, você não sabe o jeito que eu gosto
de deitar.
— Ter uma namorada jovem é um inferno. — Ele chuta uma
almofada do caminho e me segue, erguendo as mãos quando
tropeço novamente. — Teimosa pra caralho.
Eu empurro minha calcinha para baixo, tentando afastá-la
dos meus tornozelos, Kalon está segurando minha cintura para eu
não cair.
— Merda, você abusa demais da minha bondade. — Ele
reclama, desviando o rosto quando jogo minha calcinha em sua
direção. — Estou me contorcendo para não encher sua bunda de
tapas como punição por esse insulto delicioso.
Eu afundo na cama, puxando as almofadas para fingir que
estou abraçada com alguém, mas meu cérebro reconhece que
estou sozinha e isso me incomoda. Estou prestes a mudar de
posição quando a mão de Kalon se entrelaça à minha, acariciando
com cuidado.
— Se você quiser, pode ir na minha casa para assistir Tinker
Bell comigo. — Abro os olhos, ele está me observando cheio de
devoção, seus ombros balançam quando eu entendo que ele não
vai me deixar sozinha enquanto durmo. — O Monstro da terra do
nunca, não é? Como era a música do final?
— Tão sozinho eu vejo você… — Eu canto baixinho. — Mas
não quero assistir com você, vai estragar a experiência e lembrança
boa que eu guardei do filme.
— Claro, eu carrego a maldição de estragar coisas bonitas.
— Ele acaricia minha bochecha. Suas roupas ainda estão sujas de
sangue, mas eu não me importo com isso. — Sei que em meu
coração, o nosso amor não foi só ilusão… e jamais vai morrer.
Ele canta suavemente, fazendo minhas pálpebras pesarem,
eu quase saio da minha névoa sonolenta para apreciar sua voz
distante. Isso é lindo demais, ele canta no timbre perfeito e tão
reconfortante que parece magia.
— É estranho te ver… adormecer. — Sinto um beijo molhado
em meus lábios, tão avassalador que eu caio em um sono profundo
e tranquilo.
20. TÃO SOZINHO EU VEJO
VOCÊ
"Seu coração o levará ao seu amante um dia.
Sua alma o levará ao seu amante um dia.
Não se perca na sua dor.
Só para você saber, um dia você terá uma cura para o seu
sofrimento."
— MEVLANA.

No dia seguinte, eu acordo sem nenhum sinal de Kalon em


meu quarto, e por um segundo tenho medo que tudo tenha sido um
grande delírio da minha cabeça corrompida, mas então, o remédio
na cabeceira me convence que foi real, assim como toda a bagunça
do meu quarto que foi limpada. Ele não apenas deixou o remédio
para mim, mas também colocou minhas roupas para lavar e
organizou as almofadas no chão do quarto. Está tudo em uma
perfeita organização.
Eu me sento na cama, uma estranha sensação sobe por meu
estômago quando lembro da noite passada, a culpa me apunhala o
peito ao realizar de forma sóbria que Leyla está morta por causa do
meu plano de fazê-la fugir. Eu nunca vou me perdoar por não tê-la
acompanhado até Mykonos.
— O que é isso? — Sinto um papel sob o tecido da cama.
Afasto meus cabelos do rosto para visualizar melhor um desenho do
meu rosto feito em carvão. Um sorriso cheio de surpresa preenche
os meus lábios, eu nunca vi um desenho tão lindo. Meu rosto está
inclinado minimamente para o lado e um meio sorriso completa a
beleza dos traços tão realistas, meus cabelos estão caídos por meu
rosto e meus olhos estão pacíficos observando alguma coisa à
minha frente.
Eu acaricio o papel, apaixonada por cada detalhe e vida que
ele colocou nesses traços. Meu peito incha, preenchido por um
sentimento sombrio e devastador. Olho o verso do papel,
percebendo que tem outro desenho. Uma gargalhada explode na
minha garganta ao ver o monstro da terra do nunca. Ranzinza. Ele
foi desenhado exatamente como no filme.
“É um bom filme, mas muito triste. Já você me lembra
Hadassa bat Avihail, e se você me pedir metade do meu reino, eu
darei mais do que Assuero prometeu para ela.”
Merda, ele adora fazer joguinhos. Havia me dito que não
conhecia o filme da minha infância e agora me comparou com a
própria rainha Ester. Meu rosto está quente e eu pulo da cama,
decidindo que a melhor opção é não tentar compreender o que está
acontecendo comigo nesse momento. Eu ainda odeio Kalon por
estar tirando a minha liberdade e me obrigando a esse casamento, e
se ele desistisse dessa ideia, as coisas poderiam até mesmo ser
diferentes.
Me assusto quando a porta do meu quarto é aberta sem me
dar tempo de vestir minhas roupas direitos. Yuri adentra, parecendo
um animal fora do habitat enquanto se mistura com as cores do meu
quarto. As cortinas da sacada estão balançando suavemente,
trazendo um vento calmo para me tranquilizar da expressão que ele
me encara dos pés à cabeça.
— Oi. — Sua voz é rude e intimidadora. Ele entorta o nariz
analisando a enorme camiseta que estou usando.
— Oi, papai. — Cruzo os braços e ergo uma sobrancelha,
questionando silenciosamente o que ele quer tão cedo, ou talvez já
seja muito tarde.
Yuri caminha pelo quarto inspecionando cada detalhe, então
puxa uma cadeira e senta, cruzando suas pernas de forma elegante
e quase inofensiva.
— Preciso que você me diga com detalhes o que aconteceu
em seu noivado e quem era aquele homem. — Ele aponta para que
eu volte a sentar na cama. Eu respiro fundo, unindo as mãos em
meu colo e pensando em todos aqueles acontecimentos. Meu
estômago embrulha e eu aperto os lábios.
— Ele entrou de repente no banheiro do último andar da
mansão Alkyóna. — Yuri não muda sua expressão conforme eu
narro os detalhes, desde a forma como o homem trancou a porta,
até cada palavra e como ele me bateu quando tentei lutar.
Minha voz falha ao contar como Leyla foi jogada no chão,
como ela teve seu coração arrancado e foi machucada, e esse
homem mantém sua expressão inexpressiva em cada palavra.
— Espere um pouco. — Yuri ergue a mão para me fazer ficar
em silêncio. — Como você ajudou Leyla a fugir sem que ninguém
percebesse?
Merda. Eu encaro Yuri completamente em choque, é claro
que ele iria ligar todos os pontos. Não há como escapar do seu
controle. Fico em silêncio, procurando a forma de não envolver o
relacionamento de Melissa e Pavlos no assunto.
— Vamos, Arcene mou. Diga de uma vez. — Eu fecho os
olhos por breves segundos.
— Eu estive em sua casa para investigar o assassinato no
dia que Altan foi encontrado morto. Eu fiquei intrigada com a
discussão que Kol e Kalon tiveram na cozinha daquela casa, então
quis saber porque Altan foi assassinado, eu acho que ele sabia de
alguma coisa. — Confesso, esperando sua explosão. Nada
acontece, Yuri permanece irreverente, sua expressão não se abala
por nada.
— O que Leyla disse a você? — Ele junta as duas mãos e se
inclina em minha direção, seu olhar é sombrio de uma forma que eu
nunca vi antes.
Tenho medo das próximas palavras que vou dizer, mas me
sinto encurralada e não há outra opção senão contar tudo, ou pelo
menos, esconder algumas partes.
— Ela disse que a morte de Altan foi cortesia de um dos
Somáli, ele escondeu ela antes de morrer e ela viu tudo, me disse
que um homem encapuzado fez isso. — Sibilo, inclinando meu rosto
para reclamar de forma agressiva. — É claro que depois disso eu
iria dar um jeito de ajudá-la a fugir, porque eu estava certa, ele
voltou para finalizar o trabalho.
As narinas de Yuri dilatam em resposta ao meu insulto, mas
ele me encara como se acreditasse em minhas palavras, como se
também tivesse suas dúvidas em relação a família que ele tanto
retém fidelidade.
— Você está querendo dizer que foi o mesmo homem que
atacou você no noivado? Que inclusive não tem nenhum vestígio de
sua existência. Não faz o menor sentido, todos os Somáli estavam
na festa. Sua acusação não tem fundamento, garota. — Ele
sussurra trêmulo, não de medo, mas descrença.
— O homem que me atacou se chama Oliver, foi isso que o
amigo dele disse quando tentou me matar. — Eu interrompo suas
palavras. – Oliver disse que estava fazendo isso a mando do seu
chefe, eu matei-o para conseguir fugir, mas quando retornei ao lado
de Kalon, o homem não estava mais lá. Alguém pegou seu corpo
para impedir as investigações da Alkyóna sobre sua identidade.
Um silêncio perturbador consome o meu quarto. Yuri aperta
os lábios e me encara cheio de dúvidas e insatisfação. Sua mão
corre por seus cabelos, acariciando profundamente, enquanto me
olha perdido.
— O que mais esse Oliver disse pra você, agapi mou? —
Não consigo identificar seu tom de voz, mas ele age de forma
sombria, como se já soubesse de algo. Pisco algumas vezes,
mudando meus pensamentos.
— Ele disse que eu estava tentando descobrir sua identidade
no momento errado. — Eu aperto os olhos. Medo sobe por minha
espinha ao saber que esse homem me conhece, quanto mais tento
desenvolver meus pensamentos e compreender porque virei o seu
alvo, mais fico confusa e sinto que estou quebrando a cabeça em
algo que não me leva a lugar algum.
Realização brilha nos olhos de Yuri e ele se ergue, colocando
as mãos no bolso da sua calça escura, exibindo as pequenas
correntes que dão personalidade ao seu estilo. Suas tatuagens
cobrem seu pulso quando ele ergue o dedo em minha direção.
— Você está muito encrencada. — Ele sibila. — Não devia ter
revirado essa merda. Por pouco e estaria morta, Arcane! Já
pensou? Eu colocando na sua lápide: “morta por ser uma grande
curiosa”.
Minhas sobrancelhas se unem, ele disse a mesma coisa
outra vez, desse jeito vou acabar acreditando que ele se importa um
pouquinho comigo, ou talvez com sua própria reputação que já foi
destruída no passado.
— Você acha que ele pode voltar e tentar me matar
novamente? — Eu sussurro, observando sua linguagem corporal.
Ele está nervoso, sua raiva o faz caminhar de um lado para o outro
como se algo em sua cabeça fizesse total sentido.
— Todas as duas respostas não respondem a minha
pergunta. — Ele gira, sombras consumindo a margem dos seus
olhos. Seu silêncio a minha pergunta já é uma resposta.
Eu já estou acostumada com seu comportamento intimidador
e assassino, como se estivesse sempre à beira do descontrole, em
partes eu pareço com ele. Mas não estou acostumada com o que
vejo agora, uma raiva crua e devastadora, fazendo-o avançar em
minha direção como se estivesse cego.
Eu desvio o rosto e fecho meus olhos por reflexo, mas não
sinto nada, nenhum tapa e nenhum grito. Ele apenas respira
pesadamente.
— Como você ajudou Leyla a fugir sem que ninguém
percebesse? — Ele repete a pergunta que estou tentando fugir.
— Eu já disse, fui em sua casa e…
— Isso não é uma resposta, Arcane. Olhe para mim, porra!
Você quer fazer de mim um assassino, hum? — Ele rosna,
perdendo o controle tão facilmente que sinto tristeza. Ele é
desenfreado, não há redenção para um homem como meu pai, ele
já está condenado e corrompido até o espírito. — Comece a falar!
Eu aperto meus lábios compreendendo que Yuri funciona
apenas pelo ódio, não há outra coisa capaz de controlar sua alma.
Se você foi criado com um homem zangado em sua casa, sempre
haverá um homem zangado em sua casa.
— Está bem, está bem. — Eu ergo as mãos em rendição
quando ele ameaça apertar meu pescoço.
— Comece com isso. — Ele aperta os olhos e gira o rosto
minimamente.
— Eu conheço um pescador que trabalha com transporte
clandestino. — Confesso, abaixando a cabeça. — Quando eu
estava na prisão ouvi algumas pessoas comentando sobre esse tipo
de organização, eles não fazem parte da Alkyóna ou qualquer
gangue idiota. — Explico, para proteger Pavlos. — Não faz parte do
nosso meio, mas da família real.
Os ombros de Yuri caem em frustração, nós respeitamos a
família real apenas porque a Grécia já deixou de ser uma monarquia
e seus negócios não afetam os negócios da Alkyóna.
Não interferimos na vida deles. A família real é uma
organização parecida com os italianos, que colocam a família acima
de qualquer coisa, até mesmo do estado, mas eles trabalham de
forma limpa e religiosa, sem envolvimento com o crime e corrupção,
afinal, são muito bem vistos no país. Então não nos envolvemos
com eles, nem somos aliados fortes.
— Qual das duas famílias, Arcane? — Yuri insiste. — Os
Areleous ou os Dmitri? Porque é um fato consumado que eles são
rivais. — Porra, claro que ele iria perceber a mínima diferença entre
as duas famílias. Apenas um gênio que conhece muito bem sobre
poder e estado sabe diferenciar como as duas famílias agem.
— Não é um fato consumado. — Eu tento contornar o
assunto. — Os dois lados são pacíficos, não quebram as leis do
país.
— Querida. — Seu sorriso me assombra. — Se existem
viagens clandestinas apoiadas pela família real, alguém anda
quebrando as leis do país. — Ele empurra o queixo em minha
direção. — Areleous ou Dmitri? Qual dos dois?
— Dmitri. — Eu cuspo as palavras percebendo que estou
encurralada. — São apenas viagens para ajudar pessoas pobres, eu
investiguei. Estão querendo ganhar as próximas eleições.
— É isso que eu vou descobrir. — Ele ergue os ombros,
voltando a sua postura imperturbável. — Me diga o nome do homem
que trabalha ao lado deles e para onde Leyla foi com eles, eu vou
investigar o lugar. — Ele abre o seu celular para digitar alguma
coisa.
— Echo. — Eu minto.
— Certo. — Yuri não desconfia das minhas palavras firmes.
— Os Dimitri realmente são pacíficos, mas talvez alguém que
estava viajando junto com eles estava atrás de Leyla.
— Certo, eles estavam indo para Mykonos. — Eu respondo,
Yuri ergue uma sobrancelha pensando o mesmo que eu.
— Mykonos ainda é território da Alkyóna. — Ele limpa a
garganta. — Governado por Kol.
— Você acredita em mim agora? — Eu me ergo, sentindo
arrepios subirem por minha coluna com sua conclusão.
— Não, isso é apenas uma infeliz coincidência. — Ele
balança os ombros. Sua fidelidade me enoja. — Enfim, agora eu
preciso viajar, você e suas irmãs vão ficar sob a proteção de Atena
até eu voltar.
— Na mansão deles? — Choque cruza meu rosto. Nesse
momento eu percebo que não há nada capaz de fazer Yuri mudar
de ideia com esse casamento. — Você realmente não acredita no
que eu falei, não é? — Eu balanço a cabeça em negação, dando as
costas para ele.
— Eu acredito em muitas coisas em relação a você, agapi
mou. — Ele responde com indiferença. — Mas isso não muda e não
significa nada para mim.
Ele caminha até a porta do quarto e antes de sair, completa:
— Esteja pronta em meia hora, eu vou avisar suas irmãs.

Eu e minhas irmãs estamos há quatro dias na mansão


Somáli, não recebemos nenhuma notícia de Yuri, assim como não
vimos nenhum dos irmãos. Não consigo compreender porque existe
algo em meu estômago me torturando toda vez que ando pelos
corredores e não vejo Kalon em algum lugar, ou ouço a sua voz.
— Talvez seja o nervosismo por tudo que me aconteceu
naquele banheiro, eu ainda estou assustada. — Quando eu digo
isso para Melissa, ela dá risada.
— Eu nunca ouvi uma desculpa tão esfarrapada para tesão
reprimido. — Ela dá um tapa em minha bunda.
— Eu nunca devia ter contado o que a gente fez. — Minhas
bochechas ficam vermelhas.
— Somos suas irmãs, é sua obrigação falar essas coisas,
Ane. — Nimue gira a página de uma revista de moda masculina, ela
é viciada nessa porcaria apenas para ver os modelos turcos que são
uma delícia. — Eu faria tudo pra sentar nesse homem.
Ela vira a revista pra vermos Can Yaman. Eu reviro os olhos,
mas também faria tudo. Jogo uma almofada em sua direção, me
arrependendo de ter escolhido dividir meu quarto com as duas.
— Voltando ao assunto. — Melissa estala os dedos. — Não
viva em negação, você está experimentando o melhor lado da sua
vida, e daí que ele é um desgraçado? Pelo menos é muito gostoso e
manda bem com os dedos.
— Puta merda, eu vou matar você! — Eu agarro a almofada
para sufocar sua cara.
— Por ter chamado ele de gostoso? — Nimue dá uma
gargalhada mordaz. Eu aponto o dedo em sua direção como uma
ameaça.
— Eu disse que ele me beijou e vocês rapidamente
esquecem que eu ainda odeio a ideia desse casamento forçado. —
Eu sento em um puff almofada.
— Nós não esquecemos, Ane. — Nimue fecha a revista e
cruza a perna. — Mas parece bastante consensual daqui do meu
lugar.
Eu caio para trás, me arrependendo de ter conversado com
elas sobre esse assunto. Um incômodo doloroso sobe em meu
estômago, eu sinto que estou traindo a mim mesma quando deixo
Kalon se aproximar e me tratar dessa forma, mas ao mesmo tempo,
me sinto viciada nos prazeres que ele me oferece apenas estando
por perto.
— Eu sou estranha pra caralho. — Cubro meu rosto com as
mãos. — Podem me matar.
— Você apenas está descobrindo como é ser uma mulher
que tem um homem aos seus pés. — Melissa dá uma gargalhada.
— Relaxa, não é tão horrível.
Acho que vou vomitar se ela falar outra coisa motivacional e
horrorosa desse jeito. Eu gemo, completamente afetada por essa
perspectiva que ela me deu de Kalon aos meus pés. Eu juro que
mato ele e depois me mato.
— Acho que essa ainda é uma notícia muito forte para
Arcane digerir. — Nimue ri, voltando para sua revista. — Aliás, você
sabia que está nos jornais? Todos os sites de fofoca estão falando
sobre você dançando no colo de Kalon.
— Não brinca com isso. — Eu pulo do puff, derrubando tudo
para alcançar meu notebook. Quando vejo a primeira página, um
grito de angústia fecha minha garganta com as fotos de nós dois
dançando. — Melissa, faça alguma coisa!
Minha irmã vem até onde estou sentada no chão, e dá uma
gargalhada sincera ao ver a forma como estou sentada no colo de
Kalon e sua mão aperta minha cintura.
— Não dá para fazer nada quando meio mundo já viu. — Ela
estala a língua, arrancando o notebook de minhas mãos. — Kalon é
um homem bastante conhecido depois que se envolveu com
apostas de cavalo, mas ouvi falar que o mais velho odeia que ele
trabalhe com isso.
— Nesse caso. — Eu roubo o notebook quando ela tenta dar
zoom na imagem. — Eu devia me casar com Rajá que tem uma vida
mais discreta, e não com aquele demônio. — Sibilo, desligando o
aparelho e fingindo que as redes sociais não existem.
— Eu preciso encontrar Pavlos. — Melissa se ergue,
pegando seu celular que está tocando. — Vamos todas sair e
aproveitar o dia? Os avós dele marcaram um novo almoço para nós,
hoje é aniversário de Samia, podemos fugir já que Yuri não aparece
há dias.
— Acho difícil conseguir escapar dessa mansão, mas o dia
está tão lindo que eu faria tudo por um sorvete. — Nimue se ergue,
olhando para os muros da mansão protegidos por vários
seguranças.
— Podemos mentir que vamos encontrar Atena naquele
evento que ela organizou perto do mar. — Eu fico em pé.
Preciso encontrar Pavlos e conversar com ele sobre o que
aconteceu com Leyla, não nos vemos desde a sua viagem. Eu havia
convidado ele para minha festa de noivado, já que o lugar não tinha
câmeras de segurança e ele poderia facilmente se passar por algum
membro da Alkyóna, mas Pavlos estava com seus amigos da
faculdade.
A pior parte durante esses quatro dias foi abrir a boca para
contar às minhas irmãs tudo que aconteceu naquele banheiro, ter
que olhar no rosto delas e dizer que Leyla está morta por minha
culpa, que não há uma forma de voltar no passado e nunca ter
oferecido ajuda. Enquanto ela estava em Atenas, Yuri estava de
olho nela de alguma forma, ela estava segura mesmo que a família
Somáli ainda seja um dos principais suspeitos para mim.
Yuri pode não acreditar que a morte de Altan foi causada por
um dos Somáli, mas minhas irmãs acreditam. Melissa até mesmo
investigou qualquer câmera de segurança próximo a mansão
Alkyóna, mas não encontramos nada porque os eventos daquele
lugar são altamente secretos. Como aquela mansão é o lugar mais
protegido de Atenas, não é necessário câmeras de segurança. No
dia do noivado a mansão estava aberta para a imprensa e para
algumas famílias que não tem contato direto com o mundo do crime,
mas que fazem parte dos negócios que Kalon têm fora da Alkyóna.
Quanto mais eu tento encontrar alguma pista, mais me sinto
perdida no meio do escuro. Não consigo encontrar nada que
explique a morte de Leyla. Tudo me machuca com mais intensidade
ao saber que ela estava grávida. Duas pessoas morreram por minha
causa.
— Arcane, vamos. — Melissa bate em meu ombro, eu ergo o
rosto para elas. — Pavlos vai nos pegar na praia. — Ela balança
seu telefone, indicando que está falando com ele.
— Tudo bem. — Me ergo, pegando minha bolsa com
algumas coisas para passar o dia e a noite com eles. Não foi difícil
passar pelo chefe de segurança, como o evento de Atena vai durar
até a noite, dissemos que estaríamos com ela e um motorista já
estava nos esperando.
Pavlos está nos esperando perto da praia, com uma caixa de
cerveja em mãos e um sorriso radiante que eu facilmente acredito
que a vida pode ser normal para todo mundo.
— Eu tenho cerveja, espetinho e uma grande noite na casa
dos meus avós. — Ele acena, encurtando seu caminho até Melissa
e beijando seus lábios. Eles são tão apaixonados que um dia vão se
casar, eu tenho certeza disso.
Estamos no início da tarde, então teremos a chance de
respirar e viver como uma pessoa normal por tanto tempo que eu
corro até eles, flutuando de animação. Preciso apenas esquecer
tudo de ruim que aconteceu na minha vida, tudo que envolve Kalon
e a Alkyóna.
— Eu trouxe o seu querido namorado. — Ele aponta para sua
camionete onde um enorme Golden Retriever está latindo com
todas as suas forças.
— Páris! — Eu corro até ele, quase entrando no carro através
da janela para sentir suas lambidas. — Oi meu amor! Sentiu
saudades? — Retiro o cinto que está o protegendo e tento segurar
seu corpo agitado em meus braços. Ele me lambe de forma
desenfreada e eu não contenho minhas gargalhadas.
Desde que o vi pela primeira vez em sua fazenda, nunca
mais esquecemos um do outro, disso eu tenho certeza. Pavlos é o
melhor amigo que eu poderia encontrar no meio disso tudo. Eu
abraço a lateral do seu corpo quando ele vem ao lado de Melissa
como se também fosse o meu irmão mais velho.
— Pavlos, que saudades. — Beijo sua bochecha. Meu melhor
amigo, mesmo que ele não saiba de tudo da minha vida, esse é o
melhor faz de conta na vida de uma garota quebrada e banhada
pelo pecado.
— Arcane, também senti. — Pavlos beija minha bochecha. —
E então? Sua amiga conseguiu viajar de primeira classe? — Ele
pergunta, enquanto tenta se esquivar das lambidas de Páris.
— Como assim? Ela não foi com você? — Eu congelo,
girando meu rosto em sua direção. Até mesmo Melisa demonstra
emoção diante das suas palavras.
— Não. — Ele balança a cabeça em confusão, olhando entre
Melissa e eu. — Ela não apareceu, querida. Pensei que tivesse
conseguido um voo de última hora.
Meu coração erra as batidas e em seguida bate desenfreado.
Eu respiro fundo, afastando meus cabelos do rosto. Nimue se
aproxima de nós, com uma garrafa de cerveja em mãos.
— Talvez ela tenha mudado de ideia,não falei com ela depois
disso. — Eu limpo a garganta, tentando esconder meu choque e não
revelar que ela está morta. Mas o fato de Leyla não ter saído de
Atenas já nos dá uma pista concreta sobre a família Somáli estar
envolvida.
— Tudo bem, espero que tenha dado certo para ela. Agora
nós estamos atrasados. — Pavlos não percebe nossa tensão, ele
abre a porta do carro para eu e Nimue entrarmos atrás, então ajuda
Melissa a subir também.
— Não pense nisso agora. — Nimue afaga minha perna,
sussurrando baixinho. — Vamos aproveitar os poucos momentos de
liberdade. — Eu balanço a cabeça em concordância e me distraio,
afagando a pelagem dourada de Páris.
A fazenda onde Pavlos mora fica há poucas horas de Atenas,
com um enorme campo e árvores verdes. Seus avós são pessoas
tão humildes e gentis que eu me sinto suja em estar na casa deles
sendo dona de uma vida tão corrompida.
— Seja bem-vinda, querida. — Samia beija o rosto de
Melissa, acariciando seus cabelos loiros. — Eu estava fazendo um
bolo delicioso, podemos confeitar juntas.
— Ah, Samia! Eu estava pensando em você o dia inteiro! —
Melissa separa dela, indo até Ítalo e apertando sua mão. — O
senhor está muito cheiroso, já sei com quem Pavlos aprendeu todo
esse charme. — Ela provoca, arrancando um sorriso travesso do
seu namorado.
— Vamos entrar, meninas. — Samia puxa eu e Nimue. —
Guardei uma travessa de doces para vocês.
— Ah, eu estou morrendo de fome. — Nimue ataca, largando
sua cerveja em cima da mesa. Páris me segue fielmente, abanando
seu rabo e lambendo minhas pernas.
— Ai, garoto atrevido. — Eu me encolho, tropeçando em uma
cadeira e recolhendo minhas pernas. Ele afunda suas patas em meu
colo, procurando uma forma de subir em mim.
Pavlos surge colocando as mãos em meu ombro, há um
brilho empolgado em seu rosto, e ele beija o topo da minha cabeça.
— Meninas, já soltaram pipa? — Meus olhos brilham com
essa proposta.
— Eu nunca. — Falo apressada.
— Melissa me contou. — Ele ri, piscando para minha irmã. —
Ela disse que você era obcecada quando criança, então fiz uma de
presente, e para Nimue eu tenho vários livros esperando lá na
biblioteca.
— Sério? — Minha irmã se ergue, seus olhos brilham de
fascínio.
— Claro que sim, eu e vovó organizamos o espaço para você
ler com suas irmãs. — Ele cruza os braços.
— Pavlos mou. — Nimue segura sua bochecha, deixando
repetidos beijos. — Você é o melhor cunhado que minha irmã
poderia me dar.
— Melhor que o namorado bilionário de Arcane? — Ele ergue
uma sobrancelha. — Ouvi dizer que ele financia corridas de cavalos.
— Melhor do que ele, pode ter certeza. — Ela faz uma careta
feia, me encarando.
— Ah, isso é verdade. — Ergo as mãos em rendição.
— Samia e eu vamos confeitar o bolo, parem de bagunçar na
cozinha. — Melissa faz um coque em seu cabelo, dando risada das
nossas palhaçadas.
— Essa é a minha deixa para ver os novos livros na
biblioteca. — Nimue sai correndo pelas escadas, arrancando alguns
latidos de Páris.
—Venha, vamos ver onde tem mais vento para soltar a pipa.
— Pavlos acena com a cabeça.
— Vamos, criança. — Eu assobio para Páris me seguir.
Minha pipa é linda, com várias cores em tons de azul e uma
rabiola de dar inveja, em formato de borboletas. Ela também é
enorme, então seria necessário um lugar alto para ela pegar mais
impulso com o vento. Estamos os três correndo pelo gramado
quando Pavlos me olha cheio de diversão.
— O que você acha de ficar com Páris por uns dias? Vocês
dois parecem se dar tão bem. — Ele aponta para o cachorro
lambendo meus pés toda vez que encontra uma abertura.
— Sério mesmo? — Pergunto admirada. — Eu nunca tive um
cachorro antes. — Me abaixo 0 para sentir suas lambidas em minha
bochecha.
— Bom, agora você tem o Páris. — Pavlos pisca, balançando
a linha de um lado para o outro. O sol bate em meu rosto e eu
respiro fundo, me sentindo cheia de vida e livre. Meu peito incha
com esse sentimento.
— Eu adoro a sua fazenda, meu amigo. — Resmungo.
— Não fique aí parada, venha aproveitar o vento. — Ele me
chama, sua camisa branca balançando com a força do vento que
bate em nossos corpos.
Eu sacudo meu vestido branco e começo a puxar a linha.
Merda, é mais pesado do que eu imaginava. O vento puxa minha
mão e eu preciso fazer força para manter a pipa em equilíbrio.
— Eu sou péssima. — Reclamo quando quase deixo a pipa
cair.
— Não é, não. — Pavlos dá risada, girando minha mão. —
Você só precisa tomar mais cuidado, criança.
Encaro seu rosto, eu odeio esse apelido, me faz lembrar da
forma que Nikoleta me chamava. Meu estômago aperta em culpa,
eu tirei sua vida e agora estou aproveitando a minha como nunca fiz
antes. Isso parece um insulto, como se eu não merecesse.
— Você não gostou? — Pavlos acaricia minha bochecha —
Por que fez essa carinha?
— Nada. — Limpo a garganta, batendo os cílios e
observando a expressão amável em seu rosto. — Você só me
lembrou a minha melhor amiga. — Confesso, falando nela pela
primeira vez. — Ela também me chamava de criança. — Dou risada.
— Eu tenho esse costume por causa de Páris. — Ele ri. — É
assim que chamo ele. — Pavlos suspira, olhando para o cachorro
tirando uma soneca. — Mas o que aconteceu com sua melhor
amiga? Ela foi morar fora?
— A gente brigou, desde então, eu nunca mais a vi de novo.
— Eu abaixo a cabeça. Sua mentirosa. Você matou ela. Minha
consciência grita mais alto.
— Parece que as amizades de hoje em dia estão fadadas a
acabar. — Ele lamenta, me olhando. — Meu único amigo é
Aleksander, mas agora ele está morando fora. Sei lá, parece que
não faço parte da vida dele como antes. — Ele balança os ombros.
— Quando eu vi, ele já não me contava as coisas, não me
procurava, fui deixado de lado.
— Eu sinto muito. — Pisco algumas vezes, desde que perdi
Nikoleta, as amizades são um assunto sensível em minha vida. Eu
não tinha ninguém além dela. Meu coração sangra porque eu não
consigo esquecê-la, nem da forma que fui apunhalada. Ainda hoje
não entendo porque ela tentou me matar. — Por que não tenta
conversar com Aleksander sobre isso? Como você se sente.
— Eu tentei, não adiantou. Eu já não consigo me encaixar na
vida dele, e não sei quem culpar por isso. — Ele balança a cabeça
em negação. — Em meu livro favorito tem um trecho que diz assim:
você nunca está, não vai nem volta, não fala o que quer nem conta
o que sabe. Acostumaram-se a viver com a sua ausência, que
chega a parecer uma presença encantada. O que você faz é sempre
sumir, a cada segundo desaparecer. Ou então é um bicho arisco:
prefere que a porta permaneça entreaberta para vigiar o quarto
enquanto alguém dorme na cama. Você não sussurra, não se
manifesta, não assombra e nem assusta; você é tudo o que demora.
— Pavlos me olha. — É exatamente assim que eu defino o meu
melhor amigo, um fantasma.
Ele termina e eu pisco algumas vezes, eu nunca pensei que
precisaria ouvir essas palavras para saber exatamente como me
sinto. Nós dois fomos deixados no escuro por nossos melhores
amigos, sem nenhuma resposta, sem coordenadas, absolutamente
nada, nenhuma explicação. Apenas o fim.
— Eu sinto muito, Pavlos. — Limpo a garganta, tentando me
livrar do nó que se forma. — Sinto muito que você tenha passado
por isso.
— Eu também, mas sou muito grato por ter conhecido você
através de Melissa. — Ele abre os braços pra me envolver, eu o
agarro se pensar duas vezes, apertando a linha da pipa com força.
— Agora tenho uma melhor amiga com quem me identifico e sei que
posso contar.
— Se você não se casar com ela, pelo amor de Deus, não
deixe de ser o meu melhor amigo. — Eu espremo meu rosto em seu
peito e ele dá uma gargalhada.
— Eu vou atormentar sua vida para sempre, Arcane mou. —
Ele beija o topo da minha cabeça. Eu gargalho, não há promessa
mais deliciosa e cheia de carinho do que essa. — Vai ter que me
aguentar por um bom tempo, ainda temos muitas aventuras pela
frente.
— Estou ansiosa para todas. — Me afasto quando meu
celular começa a tocar. Ansiedade consome meu estômago, eu
esqueci de desligá-lo quando cheguei aqui, provavelmente é Yuri
para dar alguma notícia sobre a morte de Leyla. — Eu preciso
atender, é o papai.
— Está bem. — Ele me lança uma piscadela. — Vou pegar a
pipa de volta. — Ele recebe a linha e eu me afasto para atender.
— Alô? — Minha voz está doce pelos últimos momentos ao
lado de Pavlos.
— Onde você está? — Arrepios sobem por minha coluna ao
ouvir a voz raivosa de Kalon. — Eu não consigo encontrar você. —
Todo meu corpo fica tenso, e como se eu estivesse debaixo d'água,
meu coração bate tão desenfreado que preciso levar a mão ao
peito.
— Primeiramente, como você conseguiu meu número? —
Falo firme. Uma risada sádica preenche meu ouvido. Eu fecho os
olhos quando arrepios sobem por minha barriga.
— Meu amor, você é minha mulher, como eu não teria seu
número? — Raiva ferve em minhas veias, quero matá-lo por suas
palavras. Eu não sou de ninguém.
— O que você quer, Kalon? — Resmungo, impaciente.
— Eu quero ver você. — Ele sibila. — Acabei de chegar de
viagem, era para você estar na mansão dos meus pais. — Sua voz
é sombria e assustadora. — Onde você está, Arcane?
— Não é da sua conta. — Eu interrompo.
— Tudo que diz respeito a você é da minha conta. — Ele fala
mais firme.
— Então lide com isso, eu estou com alguém que não fica me
importunando com essa possessividade doentia. — Talvez eu tenha
errado ao falar isso, pois ouço um rosnado insatisfeito seguido por
algo quebrando.
— Você está com ele, não é? — Ele respira fundo. — Com
outro homem. — Algo tortura meu estômago ao ouvir a instabilidade
em seu tom de voz, como se essa ideia fosse o seu ponto fraco, a
ruína da sua existência. — Se você der a minha boceta para ele,
prepare-se para sofrer.
— Não diga essas coisas, seu idiota perturbado. — Eu falo
mais baixo, a pior coisa que pode acontecer é Pavlos presenciar o
quanto Kalon é instável e perturbado. — Não há nada seu e não é
nada respeitoso falar comigo dessa forma. Eu estou ocupada,
depois nos falamos.
— Eu estou indo buscar você, me mande a localização. —
Ele interrompe minhas palavras.
— Não, você não está fazendo isso. — Uma gargalhada
amarga e incrédula sai da minha boca. — Qual é o seu problema?
— Ane, termine logo. — Pavlos surge atrás de mim. — Tire a
roupa e vamos nadar. — Ele aponta para minhas irmãs na piscina,
conversando com Samia e Italo.
— Tirar a roupa? — Antes que eu possa responder, Kalon
fala ao telefone. — Eu não estou gostando nada do que acabei de
ouvir, se você ainda tem amor a sua bunda, venha para casa agora.
— Arcane, venha. — Pavlos me chama, Melissa acena para
eu me apressar.
— Eu estou indo, abra o vinho logo. — Sussurro, vendo a
garrafa que ela balança em mãos.
— Arcane, amor. — Kalon fala mais baixo, me atormentando
com sua voz fraca e manhosa. — Venha para casa, não vá com ele.
Por favor, eu quero ver você.
Eu aperto meus olhos, implorando para todas as divindades
me darem forças para lidar com um homem de trinta e dois anos
que parece um adolescente inconsequente, ou pior, um maníaco
sem cérebro. Páris late aos meus pés, fazendo graça para eu segui-
lo até onde as meninas estão.
— Onde você estava, aliás? Não vejo você desde aquela
noite. — Falo mais baixo, sentindo um incômodo diferente em meu
peito. Não gosto dessa sensação instável, parece saudades.
— Eu estava em um trabalho importante com o meu irmão. —
Agora sua respiração está calma, como se estivesse recebendo a
devida atenção que merece. — Que horas você volta?
— Eu estou comemorando o aniversário de uma pessoa
importante, não tenho horário. — Não que eu deva satisfação a ele,
mas preciso encerrar essa ligação sem que ele vire o próprio
demônio.
— Mais importante que eu? — Ele fala mais baixo,
resmungando cheio de sonolência.
— O que você está fazendo?— Ergo uma sobrancelha.
— Tentando dormir. — Ele fala trêmulo. — Eu acho que estou
doente, mas não dê importância, apenas me diga, por que eu não
sou importante na sua vida?
— Porque você está me obrigando a um casamento que eu
não quero. — Eu sibilo, minha voz ficando amarga. — Porque eu
odeio você por estar tirando a minha liberdade, agora podemos
desligar, ou você quer continuar ouvindo a minha opinião sobre o
quanto você está acabando com minha vida?
— Porra. — Ele responde depois de um tempo. — Você
quase conseguiu fazer eu me sentir culpado. — Sua gargalhada
fraca me afeta os nervos.
É isso, nunca haverá um diálogo sincero entre nós. Esse
homem só enxerga o que ele quer, nenhum palmo a frente do seu
rosto, nenhuma realidade que não seja suas distorções perversas.
— Eu estou desligando. — Falo por fim. Eu não dou tempo e
espaço para ele falar nada, desligo meu celular e o guardo em meu
bolso.
Arrumo meus cabelos, tentando mudar minha expressão.
Kalon acabou de estragar o meu dia, algo doloroso e insatisfeito
queima no meu peito conforme tento me divertir com minhas irmãs e
a família de Pavlos. Eu estou aérea, perdida na minha insatisfação.
Existe um monstro queimando em meu peito toda vez que lembro
das suas palavras e sua insistência. Quero matá-lo por afetar minha
vida dessa forma.
21. PELOS DEUSES, ME BEIJE
“Se você tem esperança de um lado e esperança do outro.
Então você tem duas asas.”
— MEVLANA.

Minha falta de moderação ao beber vinho na noite passada


me rendeu dormência, eu não recordo de nada desde que Pavlos
me ajudou a entrar em seu carro e nos trouxe para casa.
Provavelmente, minhas irmãs tiveram que se virar para me trazer
cochilinho pelas portas do fundo, um lugar secreto que eu descobri
graças a Yuri quando estivemos aqui naquela noite. Eu ensinei para
elas na primeira noite em que viemos dormir nessa mansão.
Acordo com minha cabeça latejando ao ouvir sons de algo
batendo no chão repetidas vezes, acompanhado por risadas
distantes e agressivas. Levanto meu rosto das almofadas,
incomodada com o barulho.
— Ah, você acordou. — Melissa se ergue, caminhando em
minha direção. — Eu lamento que essa atrocidade tenha
incomodado você.
— Onde está Nimue? — Pergunto, não vendo ela no quarto.
— Foi fazer compras com Atena. — Melissa me entrega uma xícara
de café. — Você está com ressaca? Samia se divertiu muito com
seu comportamento.
Quando vou responder, os barulhos recomeçam. Faço uma
careta, olhando para a sacada onde o som vem mais forte.
— Eles estão assim desde cedo. — Melissa aponta. Eu me
ergo, ignorando que estou apenas de peças íntimas, e me aproximo
da vista.
Abaixo há uma quadra de basquete, todos os irmãos estão
jogando contra um único homem. Espanto consome meu rosto
quando vejo sangue espalhado pelo chão.
— O que está acontecendo? — Eu sussurro.
— Você logo vai entender. — Melissa responde.
Kalon segura a bola em mãos e começa a correr pela quadra,
ele está sem camisa, seus músculos perfeitos roubam minha
atenção e eu quase não percebo os hematomas na sua pele branca.
São vários deles, espalhados principalmente por suas costas. Ajax
está gargalhando, cercando o homem mais alto que parece furioso e
desferindo uma série de palavrões, Raja assobia, chegando por trás
e erguendo as mãos para receber a bola de Kalon.
— Qual é o seu problema? Está lento demais — Kol reclama,
roubando a bola de Rajá e batendo no chão, seus olhos estão em
Kalon a quem fez a pergunta.
— Ele está velho. — Ajax está gargalhando. — Venha, Lalos.
— Ajax puxa o homem que está jogando com eles. Loiro e forte, seu
queixo está sangrando e ele tem um olhar raivoso na direção de
Kalon. — Essa é a chance perfeita para você vencê-lo. — Ele tenta
o convencer, colocando o braço sob seu ombro.
Kalon sorri de lado, lançando uma piscadela para o homem.
Nesse momento fica difícil respirar regularmente. Quando o homem
chamado Lalos vai correndo para fazer uma cesta, Kalon e Ajax
pulam ao mesmo tempo, batendo seus cotovelos contra o rosto do
homem.
O impacto foi tão forte e tão agressivo que eu quis gritar, eu
tapo minha boca quando um som fraco escapa. O homem está
desorientado e sangue escorre por entre seus dedos. Rajá e Kol se
aproximam como duas raposas astutas.
— Você está disposto a falar agora, querido? — Rajá sibila.
— Podemos continuar jogando o dia inteiro, se preferir. — Kol
fica de cócoras, entregando um lenço para o homem limpar a boca.
— Que tipo de monstro são vocês? — O homem grita.
— Do tipo que mata estuprador na porrada. — Kalon afunda
as mãos no bolso da sua bermuda preta esportiva. — Não se
assuste, nós estamos apenas começando.
— Quem mandou você machucar a filha do governador? —
Rajá pisa em sua mão, o homem grita e eu gemo ao ouvir o som
dos dedos quebrando. Puta merda, eles usam o basquete como um
jogo de tortura, levando a pessoa à exaustão até confessar seus
crimes.
— Certo, vamos tentar novamente. — Kalon pega a bola de
basquete, arremessando em seu rosto com tanta força que um som
de surpresa e humor escapa dos seus irmãos. — Eu adoro
basquete, minha ideia é estraçalhar essa bola e usar sua cabeça no
lugar.
— Por favor! Foi o irmão dele! — O homem ergue a mão,
suplicando por misericórdia. — Foi o irmão do governador, ele não
quer que ele ganhe as eleições e a melhor forma de afastá-lo é
machucando sua filha.
Silêncio reina entre os irmãos, eles se encaram, e então
voltam a olhar para o homem sangrando no chão.
— Eu achei fácil demais, posso usar uma arma? — Ajax
interrompe, os olhos brilhando de necessidade.
— Não, meu amor. — Rajá e Kalon falam ao mesmo tempo,
os dois irmãos se olham e dão uma risadinha sarcástica. — Isto é,
melhor com as mãos. — Eles giram o rosto para Ajax, falando ao
mesmo tempo novamente. Eles têm uma conexão tão sinistra que
meu estômago embrulha.
— Arranque o pau dele. — Kol sugere, dando uma risadinha.
— Você quer ajuda, bebê?
— Não. — Ajax fala de um jeito possessivo, como se fosse
um predador marcando território. Ele está sujo de sangue quando
puxa o homem pelo pescoço. — Eu mato e você enterra.
Certo, eu não suporto continuar assistindo esse tipo de jogo
doentio entre eles. Os irmãos matam por prazer, como se fosse um
hobby divertido que praticam todas as tardes. Quando estou prestes
a me afastar da sacada, os olhos de Kalon se encontram com os
meus. Sombrio e faminto.
— Bom dia, minha deusa. — Leio seus lábios, foram palavras
mudas. Ele inspeciona meu corpo seminu, adorando cada detalhe
das minhas curvas, então volta a encarar meus olhos. — Linda
demais, amor. — Ele acena a cabeça para o lado, dando vigor as
suas palavras sensuais. Kalon sorri de lado, com seu lábio
manchado de sangue.
Meu Deus. Esse homem tem a porra do demônio em seus
olhos e todo meu corpo fica pesado com essa visão. Eu cambaleio
para dentro do quarto, caindo de bunda na cama. Meu estômago
está embrulhado, mas meu coração bate forte. Todo meu corpo está
quente, sob efeito do seu olhar.
Melissa engatinha na cama, abraçando minhas costas e
apoiando seu queixo em meu ombro.
— Está acontecendo uma festa na piscina lá embaixo. — Ela
brinca com o dedo em minha coxa. — Você quer ir?
— Eu estou cansada de festas. — Argumento. — Vai você. —
Não quero descer e ver Kalon depois do que presenciei. Meu
estômago ainda está embrulhado com a visão do seu rosto cheio de
sangue e seu sorriso diabólico.
— Você não se importa em ficar sozinha? Eu queria rever
uma amiga minha. — Ela beija minha bochecha.
— Não se preocupe, acho que vou cozinhar alguma coisa,
estou morrendo de fome. — Meu sorriso se alarga, eu giro meu
rosto em sua direção e dou um selinho em seus lábios.
— Adoro você. — Ela deixa um beijo muito exagerado em
minha bochecha. — Qualquer coisa pode gritar.
Eu dou risada vendo Melissa sair pela porta. Horas depois,
eu pulo da cama, pegando um vestido curto já que está fazendo
muito calor. Arrumo a alça fina em meu ombro e saio para fora,
olhando para os dois lados antes de descer a escada, cortando
caminho pela sala principal onde uma música agitada está tocando
e várias pessoas estão conversando.
Entro na cozinha, aliviada pela tranquilidade do ambiente,
nada comparado ao cômodo principal. Está tocando Into It, do
Chase Atlantic, eu rapidamente acompanho a letra.
— Boa tarde. — Sou pega de surpresa quando alguém fala
atrás de mim. Eu demoro para reconhecer o dono dessa voz
metálica e grave.
Giro em meus pés, observando Ajax de cima a baixo, sua
elegância me impressiona. Poder paira ao seu redor como uma
sombra, arrepios me consomem ao lembrar da forma que ele estava
determinado a matar aquele homem, mas agora ele está totalmente
diferente. Sem nenhum resquício de sangue. Seus lábios se curvam
em um sorriso saudoso, esperando que eu lhe responda.
— Você está usando terno em uma festa na piscina? —
Questiono, erguendo uma sobrancelha. Suas sobrancelhas se
separam quando ele me analisa de cima a baixo, ele encara minhas
meias azuis.
— Suponho que nós dois estamos deslocados, já que essas
meias não combinam nada com seu vestido. — Ele resmunga me
analisando. — Mas você não deixa de ser linda.
Seu comentário me impressiona, me vejo sorrindo ao
perceber que ele me acha linda. Eu ainda me lembro da única vez
em que o vi, foi na noite do jardim. Assim como os outros, Ajax é um
homem muito ocupado. Atena diz que ele vive fazendo viagens de
negócios, então estou surpresa que ele esteja aqui e não
trabalhando. Mas suponho sair aquele jogo de basquete era algum
tipo de trabalho.
— Bom. Obrigada. — Resmungo, transparecendo minha
surpresa em vê-lo aqui. — Eu esqueci de tirar, me dê um minuto. —
Balanço os ombros.
Ergo minha perna, retirando um dos pres. Ele se aproxima,
deslizando seu dedo por meu tornozelo e puxando o outro.
— Eu ajudo você. — Ele pisca, acariciando meu joelho com o
polegar. — Está gostando da minha casa?
— Nem um pouco. — Meus lábios se curvam em um sorriso
que imita o seu. Largo e gentil. — Você sabe quando meu pai volta?
— Papai está muito atarefado na ilha de Antalya, ele está
tentando conquistar o território para um amigo da Alkyóna. — Ajax
cruza os braços diante do peito, analisando meu rosto.
– Então o meu pai está ajudando o seu? — Concluo,
inclinando a cabeça para o lado. Pensei que Yuri estava esse tempo
inteiro em Mykonos.
Ajax une as sobrancelhas, relembrando suas últimas palavras
com atenção, ele bate os cílios.
— Isso mesmo. — Ele limpa a garganta e balança a meia em
meu rosto. — Azul é sua cor favorita?
— Não, era a cor da minha melhor amiga. — Respondo
rápido, roubando a meia das suas mãos. — Eu gosto de usar para
lembrar dela. — Lembrar de como meu coração nunca será
reparado depois do que aconteceu entre a gente.
— Eu achei fofo. — Ajax está gargalhando. O som é rouco e
grosso, que faz suas veias saltarem em saliência quando ele se
curva em minha direção. — Senhorita Arcane. — Ele sussurra meu
nome tão gentil que não consigo desviar meus olhos. — E pessoas
como nós tem melhores amigos?
— Eu tenho um. — Balanço os ombros. — Mas o que você
quer dizer com pessoas como nós?
— Condenados. — Ele aproxima um passo, eu recuo,
batendo minha bunda na bancada. — Nascidos para morrer.
O humor brilha em seus olhos. Seu sotaque grego é enfático
e repuxado com sutileza. Eu definitivamente adoro a sua voz.
— Não é possível? — Ergo meu queixo, encarando ele.
— É impossível. — Ele estende sua mão em minha direção.
— Quer dançar comigo?
— Onde está Kalon? — Pergunto, na intenção de escapar da
sua presença insistente.
— Você quer mesmo saber, moça bonita? — Ajax sorri, cheio
de humor. Eu balanço a cabeça em negação. Até consigo imaginar
o que Kalon pode estar fazendo.
— Com outra mulher, eu suponho.
— Suposição errada. — Ajax ri. — É mais fácil ele estar
batendo punheta e pensando em você.
— Eca. — Minhas bochechas esquentam. — Espero que não
seja esse o caso.
O barulho lá fora se intensifica, eu me inclino um pouco para
assistir o que está acontecendo. No meio de tantas pessoas eu vejo
Rajá Somáli, sem camisa, ainda sujo de sangue e dançando ao som
de Gangsta 's Paradise. Eu ri, observando toda a cena. Esse
homem sabe se divertir pra caralho, ele não está nem aí para as
garotas, só quer saber de beber.
— Ele é louco. — Eu balanço a cabeça em negação.
— Eu sou mais ainda. — Ajax segura meu queixo, me
encarando feio. Mas ele desvia o rosto para olhar Rajá, seus olhos
brilham cheios de amor e admiração. Tudo isso por seu irmão. Ele
realmente não se envergonha ao demonstrar afeito.
— Mas e você, moça bonita? — Ele me analisa rapidamente.
— Você dança? — Ele pergunta estendendo a mão novamente.
— Tudo bem, vamos dançar aqui mesmo. — Eu seguro seus
dedos, ele me puxa para mais perto.
Suas duas mãos apertam minha cintura, me forçando a ficar
na ponta dos pés. Ele é assustadoramente alto e sólido. Puro
músculo. Não sei o que dizer ou como me comportar, ele apenas
guia minha cintura com calma, fazendo com que eu me adapte ao
seu corpo. Está tocando Cheap Thrills, da Sia.
— Você dança bem. — Eu elogio. Ajax gira meu corpo e eu
balanço a cintura de acordo com as batidas da música, esse homem
não fica para trás, ele guia seus passos e até faz alguns
movimentos que me deixam boquiaberta.
Suas mãos se erguem para arrumar seus cabelos
bagunçados, então ele suspira pesadamente, voltando a segurar
minha cintura e me fazendo rebolar. Movimento meu quadril contra
seu corpo quando ele me gira, guiando minha bunda com a ponta
dos dedos.
— Você também. — Ele beija a curva do meu pescoço,
encaro seus olhos e ele está me observando atencioso.
Ajax me lança uma piscadela travessa, como quem diz; não
se apaixone, eu sou perigoso.
Ele ainda está atrás de mim erguendo suas mãos junto com
as minhas, nossos movimentos se encaixam perfeitamente. Seus
dedos acariciam minha barriga quando eu encaixo minha bunda em
seu quadril.
– Agora abra os olhos. — Meus cabelos estão caídos por
meu rosto e sua mão aperta meu pescoço o suficiente para sufocar
meu fôlego de uma maneira prazerosa. — Aí está o seu homem. —
Abro meus olhos, visualizando o corpo de Kalon há poucos
centímetros do meu.
— Ela é minha, Ajax. — Seu rosto é raivoso, mas há um
brilho de prazer consumindo seu olhar.
— Eu nunca disse que a quero para mim. — Ajax me gira,
não me dando tempo de processar o que acabou de acontecer.
Meu corpo é recebido pelas mãos fortes de Kalon, ele aperta
minha bunda como se conhecesse cada pedaço muito bem. Sua
respiração é agressiva contra meu pescoço, um gemido sensível me
escapa quando ele aproxima seu rosto do meu.
— Você não vai sair daqui, moça bonita. — Seu tom de voz é
cheio de posse.
— Você estava me espionando?— Meu tom é raivoso.
— Não estava. Mas você é a minha moça bonita, ele que
procure a dele. — Kalon aperta o lado direito da minha bunda,
fazendo meu corpo sentir seu membro duro.
Minhas mãos envolvem seus ombros em busca de apoio, eu
fico na ponta dos pés, estremecendo quando seu toque rouba todo
o meu fôlego. Meu coração vai a loucura quando estou com ele, e
isso não acontece com Ajax.
Com seu irmão, há algo vazio que atormenta meu peito. Mas
com Kalon, tudo está completo e é isso que me enfurece.
Talvez eu esteja comparando os dois porque sinto o quadril
de Ajax encaixar em minha bunda, seu pau está duro. Sua mão
direita aperta minha cintura, eu afasto meu rosto do ombro de Kalon
para olhar os dois.
— O que vocês estão fazendo? — Eu tento protestar. Kalon
beija meu queixo, grunhindo em resposta.
— Meu irmão roubou a minha diversão, isso me dá o direito
de roubar a dele. — Ajax beija meu pescoço e Kalon aperta minha
bunda com mais força.
— Eu não roubei nada, Ajax. — Os olhos de Kalon estão
fixos nos meus enquanto responde seu irmão. — Você apenas
demorou a matar Lalos e eu fiz por você. — Seus dedos apertam
minha nuca. — Não toque na minha mulher.
— Você sabe como as regras funcionam, Kalon. — Ajax
mordisca minha orelha, encarando seu irmão. Talvez Kalon esteja
tão calmo por ser o seu irmão que está me tocando, não outra
pessoa.
— Kalon… — Tento protestar quando Ajax sobe meu vestido,
mas ele deixa um selinho em minha boca, me silenciando.
— Quieta, meu amor. — Sua voz é sombria.
— Eu não tenho interesse em Arcane, ela é como minha
irmã. — Ajax desliza seus dedos por minha bunda, fazendo minhas
pernas tremerem. — Mas você me deve, estou mexendo com a
única coisa que arranca um pedaço seu assim como você arrancou
de mim.
— Eu não arranquei nada seu. — Kalon agarra seu pulso. —
Você é descontrolado, Ajax. Precisa parar. — Um som mordaz
escapa da sua boca. — Você fala que Arcane é como sua irmã mas
está querendo fodê-la, até parece que eu vou permitir.
— Então eu sou o descontrolado? — Um som grave e
assustador escapa de Ajax, me deixando com tanto medo que
agarro o tronco de Kalon. — Você nunca levou para a terapia as
coisas que fez no passado?
Eu não estou gostando nem um pouco do rumo dessa
conversa, tento escapar, mas Kalon aperta minha bunda com força.
— Me soltem agora. — Tento chutar, mas Ajax segura minha
cintura com as duas mãos.
— Quieta. — Os dois rosnam ao mesmo tempo.
— Um beijo. — Ajax massageia minha barriga, me puxando
para perto do seu corpo de uma forma protetora. — Aceite que você
me deve, Kalon.
— Eu não devo nada a você. — Uma risada sádica escapa
da sua boca. — Eu juro que vou matar quem você mais ama depois
desse insulto. — As mãos de Kalon massageiam minha bunda,
brincando com a ponta dos dedos em minha calcinha.
— Me deixem livre dessa batalha de egos. — Eu esmurro o
peito de Kalon, já que estou de frente para ele. Jogo minha cabeça
para trás, acertando o nariz de Ajax. Um ronco grave escapa do seu
peito e ele aperta meus cabelos.
— Kalon, pare com isso. — Cravo minhas unhas em seu
ombro, me afastando para longe de Ajax.
— Certo, então vamos lá, querido. — Kalon solta meu corpo,
um vazio aperta meu estômago quando ele se afasta e retira sua
arma do coldre. Eu respiro fundo quando Ajax ergue meu corpo, me
deixando sentada na bancada.
— Se você fizer isso, Kalon vai matar você. — Minhas mãos
apertam seu ombro quando ele se aproxima, analisando minha
expressão.
— Ele não vive sem mim, Arcane. Ele me ama até o fim da
porra de sua alma corrompida, ele é dependente da minha
existência. — Ajax esfrega a ponta do seu nariz em minha
bochecha, deixando um beijo carinhoso.
Meus olhos se desviam para Kalon, ele nos observa com
raiva e mágoa em seu rosto, deixando claro que as palavras de Ajax
são verdadeiras.
— Eu espero que um dia você me desculpe por isso, eu não
sou assim de verdade. — Ajax diz. Não consigo entender suas
palavras, mas seus olhos brilham cheios de culpa.
Fecho meus olhos quando sua boca reivindica a minha, seu
beijo é amargo e exigente, não é como eu gosto que Kalon faça.
Sua língua dança com a minha e ele mordisca meu lábio, me
arrancando um som de angústia. Eu me esperneio, e ele aperta
minhas pernas, me puxando contra seu corpo.
Um gemido de dor escapa da boca de Ajax quando Kalon
empurra uma faca em sua mão, prendendo contra a madeira. O
sangue se espalha e eu grito, pulando no chão quando ele
finalmente me libera.
— Porra, Kalon. — Ajax está gargalhando, ignorando a dor
em sua mão. Ele morde o canto dos lábios quando joga uma
piscadela em minha direção. — Para sua informação, eu também
odiei. — Ele esclarece. — Mas regras são regras. — Eu limpo minha
boca, sentindo repulsa.
— Agora você vai aprender uma lição, seu pestinha. — Kalon
rosna, pegando outra faca e empurrando na sua outra mão.
— Kalon, não faça isso. — Eu seguro seu ombro quando ele
desfere um murro boca de Ajax, o mesmo está gargalhando como
se fosse exatamente isso que estava buscando, uma bela surra.
— Você bate fraco. — Ele cospe sangue. Kalon paralisa,
afastando seu rosto e olhando para seu irmão com sua face tomada
pela descrença.
— Você queria motivos para apanhar, não é? — Os dois se
encaram. — O que está acontecendo? — Meu estômago embrulha,
eles são doentes. Não há outra explicação.
— Problemas no paraíso. — Ajax balança os ombros e olha
em minha direção. — Me desculpe, Arcane, eu amo você de
verdade. — Me assusto com suas palavras, não entendendo porra
nenhuma. Quero apenas sair daqui, mas Kalon segura meu pulso.
— Você me ama? — Pergunto, dando uma risada agressiva.
— Você é muito doente.
— Puta merda. — Ele aperta os olhos. — Eu não amo você
desse jeito, garota. — Ele faz uma expressão cheia de nojo. —
Certo, agora eu quero vomitar. — Ele encara suas mãos sangrando
na mesa. — Eu estou morrendo pelas mãos, você pode arrancar as
facas?
Eu me aproximo depressa, ignorando os protestos de Kalon e
arrancando as duas facas do dorso da sua mão. Ele geme, se
curvando minimamente para frente, buscando fôlego.
— Está doendo muito? — Empurro sua barriga, fazendo ele
sentar em uma cadeira. Eu tento estancar o sangramento, mas ele
afasta as mãos e estala a língua, me encarando.
— Não toque nisso. — Ele me repreende como uma criança
traquina. — Kalon, você deve ligar para Rajá e dizer para ele entrar
aqui. — Ajax ergue o rosto.
Kalon respira pesadamente, jogando sua arma na bancada e
se aproximando de nós dois.
— Por que eu faria isso? — Ele balança os ombros. Eu rasgo
um pedaço da camisa de Ajax para enxugar sua boca suja de
sangue, ele chia, me olhando feio.
— Depois dessa festa Rajá está decidido em ir para Antalya.
Ele não pode ir. — Eu apenas ouço, tentando compreender o que
levou esse homem a cometer essa loucura. — Papai está em
Antalya tentando tomar o território, não sei, talvez negociar com eles
ou uma abordagem mais agressiva.
— Sim, eu sei disso. — Kalon balança os ombros. — Qual o
problema de Rajá ir ajudar?
— Rajá não sabe que papai está lá, porra. — Ele sibila. —
Apenas nós dois sabemos, você sabe porque foi punido por causa
daquela loucura no casamento, e eu sei porque Yuri me contou
antes de ir.
— Punido? — Olho para Kalon, tentando compreender que
tipo de punição. Ele aperta os lábios, mas não me encara.
— Por favor, me deixe continuar. — Ele interrompe,
totalmente impaciente. — O fato é que o dono do território é Rajá,
ele conquistou aquilo quando tinha quinze anos e apenas mamãe
sabe disso, foi nas férias de verão.
— Ah, sim. Meu irmão conseguiu tomar o maldito território
que faz fronteira com Grécia e Turquia, a região mais poderosa e
importante para os negócios. Claro que ele é o dono do lugar onde
os russos tentam tomar todo ano, mas misteriosamente aparecem
estraçalhados na praia. — Uma gargalhada incrédula escapa de
Kalon. — Conquistou Antalya com quinze anos. — Ele ri mais alto.
— Exatamente, eu sabia que você ia entender. — Ele sorri
amável, batendo os cílios de uma forma carinhosa.
— Ajax, isso é sério? — Kalon muda sua expressão. — Pelo
amor de Deus, você sabe o que papai vai fazer quando descobrir
que Rajá é o dono?
— Papai não vai descobrir porque eu machuquei minhas
mãos e Rajá não vai poder fazer essa viagem, ele vai ficar cuidando
do seu irmão caçula e Antalya vai continuar nas mãos de um líder
misterioso que ninguém consegue vencer. — Ajax assume, cheio de
convicção. — Obrigado pelo favor, a propósito. Você acabou de
salvar a nossa família da ruína.
— Você é muito louco. — Kalon rosna, apontando o dedo em
sua direção. Ele retira o seu celular do bolso, então Ajax muda sua
expressão para algo abatido e cheio de dor. — Rajá, você pode
parar de dançar e vir até a cozinha? Ajax está machucado.
Eu observo os dois. Ajax sacrificou suas mãos para salvar a
vida do seu irmão. Ele é um homem louco, que ama os outros mil
vezes pior.
— Eu não ligo se a Angelina Jolie está sentada em seu colo
ou se você tem um encontro marcado com Al Pacino, venha agora,
Ajax está chamando. — Ele sibila.
Quando a ligação é encerrada, Ajax finge um soluço e deita a
cabeça em meu ombro, tremendo de um jeito que eu começo a
acreditar que ele está péssimo. Mas ele me lança uma piscadela
travessa e fecha os olhos.
— O que aconteceu? — Rajá entra na cozinha, visualizando
todo o sangue manchando as roupas de Ajax e a expressão furiosa
de Kalon, que inclusive está fingindo um grande drama quando vê o
irmão.
— Ele está bêbado. — Kalon sibila, sendo o suficiente para
deixar Rajá sombrio quando olha para Ajax.
— O que você fez, filho? — Ele ajoelha aos pés de Ajax,
segurando os dois lados do seu rosto.
— Você já está indo? — Ajax fala fraco, olhando para seu
irmão como uma criancinha precisando de cuidados.
— Ainda não, meu amor. Eu ia tomar banho primeiro, com
duas loiras gostosas. — Ele dá risada, erguendo as mãos de Ajax
para ver o ferimento. — Puta merda, Ajax. Você precisa de um
médico.
— Você é o médico. — Ele responde. — Não fique com raiva,
está bem? Eu acabei beijando Arcane e Kalon ficou furioso.
— Rajá, você precisa impedi-lo de beber, eu tive que usar as
facas para afastar esse idiota. Ele está perdendo os sentidos, quase
fez Arcane desmaiar. — Kalon muda seu tom de voz para uma raiva
assustadora. Eu faço uma careta olhando para ele, Ajax faz a
mesma careta.
— Ele é o seu irmão caçula, Kalon. Você não machuca ele,
você protege. — Rajá aumenta seu tom de voz, ele grita como um
leão protegendo sua família. — E você é louco? Qualquer pessoa,
menos Arcane, menos a mulher do seu irmão.
— Eu realmente estou perdendo os sentidos. — Ajax inclina
sua cabeça para frente, buscando apoio em Rajá, o qual beija seu
rosto e tenta puxá-lo para ficar em pé.
— Você sabe que não pode beber, Ajax. O que deu em você?
— Rajá reclama, dando as costas pra nós e saindo da cozinha. —
Você precisa de pontos e um banho, e essa conversa ainda não
acabou, Kalon.
Os dois desaparecem, eu suspiro pesadamente, tentando
processar tudo que acabou de acontecer. Fico em pé, caminhando
até onde meu noivo está me encarando.
— Você foi punido, Kalon? — Sussurro, tentando
compreender o que Ajax contou. — Por minha causa?
— Ele estava mentindo. — Kalon desvia o rosto quando tento
trocá-lo.
— As marcas em suas costas que eu vi mais cedo. — Seguro
seu ombro, girando seu corpo até ver os hematomas vermelhos,
alguns roxos. — Foi por minha causa? — Toco a marca que está
mais perto dos meus dedos, ele estremece, afastando-se.
— Não existe isso de sua culpa. — Ele me encara, o olhar
furioso. — Eu já sou velho, Arcane mou. Sei muito bem assumir
minhas responsabilidades.
— Você disse ontem que estava doente. — Deslizo meus
dedos por sua testa, sentindo sua temperatura. — Você está com
febre, sabia disso? — Acaricio seu rosto com cuidado. — O que
posso fazer pra você melhorar?
Me sinto culpada por ele ter sido punido por causa do que fiz
naquela festa, aqueles homens estavam atrás de mim, Kalon matou
eles por minha causa.
— Tire sua calcinha. — Ele aperta meu pulso.
— O que? — Pisco.
— Você disse que quer fazer alguma coisa, tire sua calcinha.
— Ele aponta para meu corpo. Eu arrumo a alça do meu vestido
quando ele solta meu pulso.
— Não foi esse tipo de ajuda. — Eu balanço a cabeça em
negação. — Você está com febre, precisa de cuidados em suas
costas.
— Venha comigo. — Ele entrelaça seus dedos aos meus, me
arrastando para fora da cozinha e me ajudando a subir as escadas.
— Você estava dançando com Ajax, não é? Estava gostando
daquilo?
— Na verdade, sim. — Eu não minto. — Ele dança bem e eu
adoro dançar.
— Então você queria beijar ele, Arcane? — Quando entramos
no corredor, ele me empurra para dentro do meu quarto.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra, só porque eu
gostei de dançar com ele, não significa que eu queria beijar a boca
dele. — Falo amarga. — Eu não gostei nem um pouco daquele
beijo. — Sussurro quando ele se aproxima e fecha a mão em meu
pescoço. — Não me toque assim. — Ele aperta, puxando meu rosto
para perto.
— E como você gostaria de ser tocada, meu bem? — Ele
sussurra, me enfraquecendo.
— Com carinho. — Eu engulo em seco quando sua boca se
aproxima da minha. — Você vai me beijar de novo?
— Você gostou do desenho que eu deixei em seu quarto? —
Ele esfrega a ponta do seu nariz no meu.
— Não gostei. — Minhas bochechas ficam vermelhas.
— Mentirosa. — Ele mordisca meu lábio, deixando um beijo
tão faminto que minhas pernas ficam bambas.
Minhas mãos seguram sua nuca, eu fico na ponta dos pés
quando ele aperta minha bunda e levanta meu vestido, deslizando
os dedos pela borda da minha calcinha. Eu mordisco seu lábio,
gosto como ele alcança minha alma quando está me beijando, como
tudo em mim entra em combustão. Limpando qualquer resquício da
boca de Ajax.
— Tire a calcinha, amor. — Ele ordena, roçando seus lábios
nos meus. Meus lábios ficam trêmulos quando seus dedos raspam
em minha intimidade.
— Não, Kalon. — Eu falo firme, afastando meu rosto. — Eu
não tenho ideia do que você quer fazer comigo. — Ele mordisca
minha orelha, minhas pernas são erguidas e ele me segura nos
braços.
— O mesmo que naquela noite. — Ele sussurra, afundando
na cama. Eu afasto meus cabelos para trás quando volto a beijar
sua boca, perdendo o controle dos meus pensamentos.
Ele puxa meu vestido, me deixando nua. Meus seios saltam
quando ele remove o sutiã. Eles não são tão grandes, mas o
fascínio em seus olhos me deixa tonta.
— O que você está fazendo? — Eu gemo, quando ele puxa
um mamilo para sua boca. Um grito fraco sai dos meus lábios
quando ele chupa e mordisca, como se estivesse beijando minha
boca. Aperto sua nuca, inclinando a cabeça para trás e rebolando
em seu colo, procurando por mais contato.
Seus dentes se fecham ao redor do meu mamilo e ele puxa,
erguendo o rosto para me olhar. Não consigo controlar os sons que
saem da minha boca.
Kalon está usando apenas uma bermuda preta esportiva,
então consigo sentir seu pau pulsando contra minha entrada, ele é
grande e me faz formigar. Eu me remexo, descansando minha mão
em seu colo para sentir seu tamanho pulsando contra minha
calcinha. Eu aperto seu pau em meus dedos, ele geme e deixa um
tapa estalado na minha bunda, me fazendo reclamar.
— Isso dói. — Aperto o lábio inferior para engolir um gemido.
— Você disse que queria carinho. — Kalon me olha com uma
expressão raivosa. — Tapa na bunda é carinho, amor. — Encaro
seu rosto, mordiscando seu lábio quando ele deixa outro tapa
prazeroso.
— Você também quer carinho? — Sussurro, deslizando
minha mão para dentro do seu short e apertando seu pau. — Aqui.
— Completo mais baixo.
— Sim, por favor, amor. — Ele pisca, observando meu rosto.
Um sorriso safado dança em seus lábios e eu faço o mesmo.
— Espere um pouco. — Eu me ergo, saindo do seu colo para
tirar minha calcinha. Kalon observa atentamente quando eu
engatinho na cama, até que minhas pernas estão em cada lado da
sua cintura.
— Você terá carinho apenas quando eu quiser, agora vai
sentar e eu vou ver suas costas. — Mantenho meu tom de voz
exigente. — Você está queimando em febre, também precisa de
analgésicos.
— Eu odeio você, sua grande traidora. — Ele rosna contra
meus lábios, obedecendo a minha ordem.
22. EU ODEIO E QUERO TANTO
VOCÊ
"O amor às vezes quer nos fazer um grande favor:
nos segurar de cabeça para baixo e sacudir todas as
bobagens."
— RUMI.

— Você não sabe o quanto é doloroso ter uma mulher nua


em meu colo e não poder fodê-la. — Eu reclamo, encarando seus
seios empinados. Não ajuda nada que eles estejam marcados por
minha boca. Vermelhos e com marcas de mordida.
— Quer dizer que isso acontece com frequência, Kalon? —
Arcane para de abrir os algodões e me encara, suas sobrancelhas
estão unidas em uma carranca feia.
— Essa é a primeira vez, acredita? — Eu debocho, adorando
o vermelho em suas bochechas. — Normalmente as mulheres
sentam no meu colo para brincar com meu pau, não pra lamber meu
dodói.
— Você tem uma boca muito suja, sabia? — Ela dá um tapa
em meu ombro. Sua expressão severa me diverte tanto que eu
esqueço da minha vida lá fora.
— Vai ter que se acostumar, essa é a sua nova vida agora. —
Eu descanso minha mão em sua cintura. Arcane suspira, meu olhar
cai para seus seios deliciosos. Eles são pequenos, e eu adoro isso,
como encaixam perfeitamente em minha boca. — Você deu a minha
boceta para o seu amante?
Questiono, lembrando que ontem ela passou o dia em algum
lugar que eu não sei onde fica. Não saber da sua vida está me
matando. Estou começando a cogitar a ideia de colocar um
rastreador nela, mas quero evitar esse ponto gritante em nosso
relacionamento.
— Não, Kalon, eu não dei a sua boceta para ninguém. — Ela
fala em um tom exausto, revirando os olhos.
— Isso foi rendição ou você está sendo sarcástica? — Eu
esfrego meu nariz em sua bochecha, suspirando seu cheiro
delicioso.
— Isso sou eu tentando fazer você ficar parado. — Ela dá um
tapa em minha bochecha, eu respiro fundo e também dou um tapa
em sua bunda, recebendo um olhar zangado e cheio de espanto.
Ela se inclina, deslizando o algodão por meus hematomas,
minhas mãos abraçam sua cintura e eu deito a cabeça em seu
ombro, deixando um beijo estalado. Eu realmente me sinto muito
febril, naquele dia, quando sai da sua casa pela manhã, tive que
aguentar as torturas do meu pai por minha irresponsabilidade. Todos
os seus guardas bateram em mim e depois fui trancado em uma
cela. Resultado? Alguns ferimentos inflamados.
— Você sabia que tem um corte feio no seu abdômen? —
Arcane desliza o dedo, me fazendo resmungar de dor. Essa é a
primeira vez que tenho alguém cuidando das minhas feridas.
— Pare de mexer nessa porra. — Meus dentes cravam em
seu ombro, ela geme e segura minha nuca, afastando meu rosto do
seu ombro.
— Você não morde uma pessoa só porque está sentindo dor,
Kalon. — Ela deixa um selinho em minha boca. — Você fala o que
sente.
Eu pisco, encarando seu rosto com atenção. Arcane volta a
cuidar do meu hematoma no abdômen, fazendo um curativo do jeito
certo. Eu afasto seu cabelo para atrás da orelha, observando melhor
os traços do seu rosto. Ela é tão linda que eu quero passar a
eternidade nesse quarto apreciando seus detalhes e imaginando um
mundo onde não existe uma grande diferença entre nós.
— Eu soltei pipa ontem, sabia? — Ela diz, checando minha
temperatura.
— Eu ouvi um cachorro na ligação. — Aperto os olhos em
sua direção. — Suponho que seja um Golden Retriever. — Arcane
me encara, sua expressão entrega que eu acertei.
— Como você sabe? — Seus olhos brilham, tomados por
algo inocente que quero esconder do resto do mundo. Isso ela só
demonstra comigo.
— Eu sou bom com animais. — Pisco. — Tenho uma lontra,
inclusive.
— Como eu nunca vi? — Ela está chocada.
— Não sei, talvez ela não goste de você. — Debocho. —
Minha criança é muito introvertida. — Retiro meu celular do bolso,
mostrando as fotos que tenho com ela em meus braços. Os olhos
de Arcane brilham, ela larga o algodão e retira o celular de minhas
mãos.
— Não acredito que é verdade. — Ela desliza os dedos,
vendo as outras fotos. Respiro fundo, observando sua expressão
maravilhada encarando a porra de uma lontra.
— Você só tem ela? — Ela me devolve o celular.
— Também tenho você. — Pisco, ela ri.
— Nesse caso, você precisa conhecer o Páris. — Ela pega
seu celular, abrindo na galeria de fotos. — Eu adoro fotografias, não
pude resistir em tirar fotos dele. — Ansiedade dança em meu
estômago quando vejo que ela está compartilhando coisas da sua
vida.
— Então esse é o nome do Golden Retriever. — Eu afirmo,
vendo as fotos dela agarrada com ele. Arcane tem um sorriso feliz
enquanto Páris lambe sua bochecha.
— Isso, nós fizemos um acordo e acho que vou ficar
cuidando dele por um tempo. — Ela exibe as fotos da sua pipa-azul,
seus olhos brilham de carinho vendo as borboletas na rabiola.
Paro de passar as fotos quando vejo uma foto dela com
aquele homem. Minha expressão muda para raiva, Arcane está
sorrindo largo e ele está beijando sua bochecha.
— Você ama ele? — Largo o celular, perdendo o ânimo para
continuar vendo essas fotos. Algo desconfortável machuca meu
estômago, meu sangue e minha respiração. Eu não sei o que é,
mas é difícil de engolir.
— O Páris? Claro que sim, você acredita que os animais
comem frutas? Principalmente os cachorros. — Ela afasta uma
mecha do seu cabelo, ainda concentrada em meus hematomas. —
Eu nunca tive muito contato com os animais, uma vez ouvi minha
melhor amiga dizendo isso, mas quando eu vi Páris comendo pela
primeira vez, não aguentei, parecia um humano.
Ela para de falar, percebendo que essa é a primeira vez que
fala de Nikoleta como se não tivesse superado, como se elas ainda
fossem amigas. Fico em silêncio, muitas vezes penso em Azra
como se ela ainda estivesse aqui, como se eu não tivesse segurado
seu coração morto em minhas mãos.
— Eu não estava falando de Páris. — Encaro seu rosto.
— Eu também amo Pavlos, ele é o meu melhor amigo. — Ela
confessa.
Fico em silêncio, encarando seu rosto. Pavlos. Ela finalmente
disse a porra do nome dele, mas isso não faz diferença alguma, eu
não sei o seu sobrenome e não sei onde vive. A pior parte é que ela
disse que ama ele, mas de forma mais íntima, ele é o seu melhor
amigo. Isso é o suficiente para fazer algo monstruoso subir pela
minha garganta. Como ele consegue ter tantos privilégios? Que tipo
de Deus é esse cara?
Eu seguro seu rosto e beijo sua boca com possessividade.
Pelo menos, nesse momento, eu tenho isso. Sua boca na minha,
essa é a única verdade consumada entre nós.
— Por que eu não posso ser o seu melhor amigo também? —
Eu mordisco seu lábio, arrancando um gemido sensível dela. — Que
milagre ele fez na sua vida que eu não posso fazer também?
Arcane tenta me empurrar, percebendo que confessou o
nome. Eu a seguro, precisando dos seus beijos para acalmar o
monstro. Ela está irritada e tenta levantar do meu colo, mas eu
agarro seus cabelos, separando nossas bocas para encarar seu
rosto.
— Você não imagina o quanto estou exausto de não
conseguir dormir por causa de Pavlos. Eu odeio você por isso. — Eu
sibilo, desejando matar esse homem. Desejando torná-lo cego,
surdo e mudo.
— E eu estou exausta de você controlando a minha vida, seu
grande egoísta. — Ela grita em meu rosto. — Já não basta roubar a
minha liberdade? Veja ao que estou me sujeitando, nua em seu
colo, tentando convencê-lo que eu também sou humana e minhas
vontades são importantes. — Eu solto seus cabelos quando ela
desfere um tapa em meu rosto.
Arcane se ergue, mantendo uma distância dolorosa entre
nós. Eu avanço em sua direção, odiando a sensação amarga que
preenche minha alma por completo.
— Eu estou traindo a mim mesma toda vez que me aproximo
de você, me distraindo com toda essa desgraça que você me força
a engolir. — Ela sibila. — Você está me obrigando a um casamento
que eu não quero, e você ainda insiste em ser egoísta em relação a
um homem que não conhece. Deixe Pavlos em paz, ele não fez
nada contra você. Você está estragando tudo na minha vida, Kalon.
— Eu me sinto da mesma forma. — Eu avanço em sua
direção, ela recua, se sentindo encurralada. — Traindo a mim
mesmo toda vez que você aparece na minha frente, porra. Você
acha que é fácil aceitar que vou me casar com uma mulher que
prefere estar com qualquer pessoa, menos comigo? — Eu aponto
em sua direção, minha respiração está irregular, algo dói dentro do
meu peito e eu não faço ideia do que seja. — Adaptar toda a minha
vida para conseguir me encaixar no seu mundo e saber que é em
vão, Arcane, que você me odeia e eu odeio você por me odiar.
— Eu odeio você por se sentir como a única no direito de
odiar alguém nessa relação. — Eu bato minha mão na parede,
ignorando a dor que sobe por meus dedos, me torturando. Nada se
compara a essa criatura esquisita dentro de mim. Acho que estou
realmente louco. — Você tem Pavlos, você pode fugir para sua vida
de faz de conta ao lado dele, eu não tenho nada disso.
— Sabe o que tenho? — Aponto em sua direção, exausto e
confuso. — Uma mulher que me odeia e me amaldiçoa, eu estou
sendo sincero com você desde o começo, mas você está me
escondendo todas as coisas que vive ao lado desse homem,
dificultando a porra desse casamento arranjado. — Ela arqueia,
inclinando a cabeça para o lado como se fosse o maior absurdo que
já ouviu. — Você pode escondê-lo o quanto quiser, mas isso não
muda o fato que é comigo que você vai ficar.
— Veja o quanto você é egoísta e imaturo, Kalon. Nada do
que está dizendo faz sentido, você está perdido na sua própria
obsessão. — Ela aponta em minha direção, dando uma risada
amarga que incomoda meu peito. — Você está apenas encontrando
motivos para me fazer odiá-lo mais ainda.
— E você está apenas enganando a si mesma, Arcane. — Eu
interrompo suas palavras. — Sabe o que a minha maturidade me
faz desejar? Um dia eu vou matá-lo bem na sua frente e estragar
toda essa fantasia que você criou para se esconder.
Ela respira fundo, raiva e lágrimas manchando seus olhos
lindos. Arcane desfere um murro em meu rosto, me fazendo
tropeçar para trás.
— Você está arruinando a minha existência. — Ela enfatiza,
gesticulando enquanto avança em minha direção. — Não consegue
ver? Eu não quero esse casamento.
Eu seguro seu punho quando ela tenta acertar um segundo
soco. Estamos ofegantes, fumegando de raiva e algo a mais que
não consigo decifrar.
— Você me quer. — Encaro seu rosto próximo do meu, a dor
machuca meu queixo. Ela está trêmula e tomada por uma névoa
raivosa e frágil. — Por que está lutando contra isso?
— Porque você só enxerga a si mesmo, porque você quer
satisfazer o seu ego e ficar no controle de tudo. — Ela bate em meu
peito, me empurrando com força para longe. — Acabe com esse
casamento e me deixe em paz, eu não quero nada disso. — Suas
mãos agarram minha cintura, afundando a cabeça em meu peito e
chorando fraco. — Para você é um casamento, Kalon, mas pra mim
é um funeral.
Ela ergue seu rosto para me encarar, totalmente quebrada e
vulnerável. Eu odeio cada palavra fria que sai da sua boca, odeio as
lágrimas salgadas molhando seu rosto, odeio ser o motivo do seu
desespero e ódio. Estamos fadados ao caos. Não há como
interromper isso que nasceu entre nós dois. Fizemos um monstro
juntos, agora precisamos alimentá-lo também.
— Eu não posso. Não é nada fácil. — Eu sussurro,
segurando os dois lados do seu rosto. — Sinto muito, essa é a
última coisa que eu farei. — Enxugo suas lágrimas.
— Eu odeio você por isso. — Arcane fica na ponta dos pés.
— Deixe Pavlos em paz, por acaso ele te fez alguma coisa? Não,
ele não fez. — Odeio a forma como ela o defende. Um resmungo
insatisfeito machuca meu peito, eu balanço a cabeça em
concordância para suas palavras.
Eu gostaria de um motivo justo para destruí-lo
completamente. Aparentemente, eu sou o intruso. Mas Arcane foi
entregue para mim, ela foi prometida para Kalon Somáli, ninguém
no céu e inferno pode mudar isso.
Ela bate sua cabeça contra meu rosto, causando um
estremecimento doloroso, mas que envia choques de prazer ao meu
pau. Seguro seu pulso, mas ela pega um jarro, atirando aos meus
pés. Minha mulher está trêmula e furiosa como a porra de Lilith,
como a rainha do submundo, a dona desse inferno em meu peito.
— Pare de me bater, Arcane. — Eu seguro sua perna quando
ela tenta me chutar.
— Essa é a única linguagem que você entende. — Ela grita
em meu rosto, empurrando meu peito com força. — Eu não quero
viver minha vida do seu jeito, eu quero ser livre.
Eu seguro sua nuca, paralisando seus movimentos. Estamos
respirando fundo, com o rosto próximo um do outro. Quero devorar
sua boca, ouvir se a sua alma diz a mesma coisa que sua boca.
Quero desvendar sua mente até que ela me enxergue de verdade.
— Você é cruel. — Eu esfrego meus lábios nos seus, sinto
arrepios tortuosos subindo por minha coluna, me fazendo perder as
forças.
— Você é um monstro, Kalon. — Ela segura os dois lados do
meu rosto, ficando na ponta dos pés para alimentar essa criatura
sombria dentro de nós. — Marque minhas palavras, um dia eu vou
destruir você exatamente como você faz agora.
— Se isso é tudo que você pode me oferecer, que assim seja,
Arcane. Que Deus cumpra suas palavras. Amém para isso. — Eu
puxo suas pernas, carregando seu corpo até que suas costas batem
contra a parede.
Essa é a batalha mais difícil que eu enfrento em segundos,
eu devoro sua língua, ela geme, me deixando louco com tanta coisa
que nos atormenta e tenta nos destruir. Não somos bons um para o
outro, estamos em guerra e isso nunca vai acabar. Apenas com a
morte.
— Você pode ter o meu corpo, mas nunca a minha alma. —
Ela sussurra, segurando os dois lados do meu rosto. — Nunca o
meu coração.
Arcane é minha, eu a quero com tanta profundidade que
meus ossos doem. Eu sei que ela também me quer, não há outra
explicação para a maneira que ela afunda seus dedos em meus
cabelos e mordisca meus lábios, me possuindo.
— Porra, amor. Eu quero tudo. — Meu rosto se perde na
curva do seu pescoço e arrepios sobem por minha coluna quando
suas unhas cravam em meu ombro. Ela é pequena em meus
braços, mas nos encaixamos da forma perfeita.
Meus dedos deslizam por sua entrada, acariciando devagar,
fazendo ela tremer em meus braços. Seus cabelos estão caídos
para o lado, tudo que nos sustenta é a parede em que ela está
apoiada. Ela morde meu queixo, deslizando sua língua até sentir
meu lábio. Meus dedos afundam com mais força, fazendo ela tremer
e suspirar de um jeito que abala minha existência.
— Kalon… — Ela sussurra, sua voz está trêmula quando me
encara. — Pare de me tocar assim.
— Vamos continuar brigando, sua grande filha da puta, mas
de outro jeito. — Eu rosno, esfregando meu pau entre suas pernas.
Arcane estremece, inclinando a cabeça para trás e fazendo esforço
para não gemer alto.
Suas unhas marcam minha pele, eu a beijo e nossas línguas
batalham por controle, até que a falta de fôlego nos interrompe,
apenas para começar tudo de novo.
— Você quer isso? — Sussurro, sentindo náuseas quando
meu pau lateja para entrar completamente dentro dela. Eu juro que
nunca estive tão duro, tão necessitado e doente até os ossos por
uma única mulher.
— Isso vai doer? — Arcane me encara com lágrimas nos
olhos. Eu afasto meu rosto, tentando compreender sua pergunta.
— Você nunca fez sexo?
Porra, o que eu estou fazendo com ela? Vou destruí-la.
— Eu só fiz isso uma vez porque precisava matar um
homem. — Ela explica, afastando suas pernas para longe da minha
cintura. — Eu lembro que doeu muito, mas em nenhum momento eu
me senti assim...
Ela faz um movimento demorado e me encara. Porra, não é
certo que sua primeira vez seja desse jeito.
— Me desculpe, amor. — Eu gemo, apertando minha testa
contra a sua. — Não posso fazer isso assim. — Estou febril e ela
está ofegante, me apertando para não escapar.
— Por que? — Ela arruma seus cabelos para trás, me
observando com atenção. — Não vamos continuar brigando de
outro jeito?
— Vamos conversar primeiro. — Eu beijo sua boca, tentando
pensar em uma forma de não machucá-la mais ainda. Nós dois não
somos corretos de forma alguma, somos difíceis, cruéis e
condenados. Nosso beijo tem um gosto amargo e doloroso.
Eu empurro Arcane para sentar na cama, então sento aos
seus pés, cruzando as pernas e encarando seu rosto. Seus lábios
estão vermelhos, ela arruma os cabelos bagunçados e me observa
com atenção.
— Quantos anos você tinha? — Ergo uma sobrancelha.
— Eu tinha dezoito, eles estavam avançando com o
treinamento. — Ela coloca uma almofada em seu colo. — Era para
eu ter matado ele antes, mas fiquei nervosa, só consegui cortar a
garganta dele depois que ele entrou em mim. — Ela fecha os olhos,
mantendo a calma. — Por que você está me perguntando essas
coisas? Por acaso isso me faz ter algum defeito, Kalon? — Ela me
encara, raiva brilha em seus olhos.
— Não é nada disso, Arcane mou. — Eu me aproximo,
tocando sua perna e acariciando. Ela estremece, relaxando seu
corpo quando me sente a tocando novamente.
Eu sinto raiva do homem que a machucou, Se ele não
estivesse morto, eu estaria matando-o agora mesmo. Odeio a ideia
de alguém tocando Arcane pra machucá-la. Ela foi entregue a mim
para me proteger, para cuidar e esconder.
— Agora você tem vinte e um, se você não se sente
confortável em fazer isso comigo, podemos parar. — Eu continuo
olhando para seu rosto. — Então diga que eu preciso engolir meu
egoísmo e aceitar que eu não sou o homem certo para possuí-la.
— Você é tudo isso, Kalon. Ruim para mim, irritante e
monstruoso. Mas eu entendo que você não é o homem que me
machucou, eu me sinto pronta para fazer sexo novamente e saber
como realmente deve ser. Quero que seja com você, que você me
ensine. — Ela responde, ainda me observando cheia de raiva e
mágoa. É isso, porra, eu vou para o inferno.
— Se você escolher fazer isso comigo, não há mais volta. —
Eu aproximo meu rosto do seu, beijando sua boca marcada pela
minha. — Daqui eu só saio morto, Arcane mou.
Suas coxas se apertam quando eu tiro a almofada do seu
colo, eu puxo seus joelhos, fazendo-a abrir as pernas e se inclinar
para trás. Seus lábios estão trêmulos quando eu aproximo minha
boca da sua boceta e deixo um beijo, ela geme, movimentando o
quadril para sentir mais contato. Eu esfrego meus lábios,
mordiscando e arrancando um gemido alto quando deslizo minha
língua, devorando seu gosto.
Arcane se encolhe e seus dedos se perdem em minha nuca.
Seus olhos estão fechados, quando eu empurro meus dedos para
acompanhar o movimento da minha língua, um rápido tremor
balança seu corpo.
— Abra os olhos, amor. — Eu sussurro, ela me observava
com os olhos marejados de prazer. — Olhe para mim. — Ela se
contorce na cama quando eu afasto minha boca, pairando acima do
seu corpo.
— Você gosta disso? — Eu mordisco seu seio, mas meus
dedos continuam dentro da sua boceta, mantendo estocadas
regulares.
— Ah, sim. — Arcane geme quando dou atenção aos dois, eu
mordo devagar, ouvindo um grito de prazer.
— Muito? — Visualizo seus mamilos molhados e marcados
por meus dentes.
— Muito. — Ela concorda. Arcane está ofegante e rebolando
contra meus dedos. Eu beijo sua boca para marcar seu gosto em
minhas entranhas.
— Você provavelmente ainda vai me odiar depois disso,
certo? — Eu ergo uma sobrancelha quando ela me ajuda a abaixar
meu short, suas mãos abraçam meu ombro quando eu levanto sua
perna para envolver meu quadril.
— Sim, eu vou. — Ela balança a cabeça em concordância,
aproximando sua boca para outro beijo.
Suas pálpebras estão pesadas de desejo, meu coração bate
desenfreado, todo meu corpo formiga para estar dentro dela,
sentindo sua carne, possuindo-a para mim, reivindicando tudo isso
para sempre.
Uma brisa suave invade o quarto, vindo da sacada aberta. Os
cabelos de Arcane balançam com o vento em seu rosto, eu beijo
sua bochecha, gostando dessa visão. Ela é tão linda que algo
quebra dentro de mim. Eu não a mereço de forma alguma, estou
condenando minha alma toda vez que a toco, mas não consigo
parar.
Eu empurro meu membro para dentro da sua intimidade, um
gemido de satisfação escapa de nós dois e arrepios sobem por
minha coluna quando eu começo a me movimentar devagar. Ela
morde o lábio inferior, segurando seus gemidos. Suas unhas
marcam minha pele e eu fico parado, olhando para seu rosto cheio
de lágrimas.
— Está doendo muito, amor? — Culpa machuca meu peito,
mas eu não consigo me afastar dela. Nunca mais vou conseguir.
— Um pouco. — Ela descansa a mão em meu peito. Meu
braço fecha ao redor da sua cintura, tomando impulso para controlar
meus movimentos exagerados.
— Quieta, minha alma. — Sussurro contra sua boca. —
Assim não vai doer, está bem? — Beijo seu seio, mordendo e
aumentando minhas estocadas, indo mais fundo. Arcane suspira,
mordiscando meu lábio inferior.
Eu me embriago com os sons que sai da sua boca, suas
unhas marcam minhas costas quando vou mais rápido, colocando
uma almofada em suas costas para não machucá-la com minha
força. Eu tento me controlar, não quero causar um estrago na sua
primeira vez.
— Porra, meu amor. — Meus gemidos fazem meu corpo
estremecer. — Tão apertada. — Suas costas arqueiam de prazer
quando eu a preencho com todo o meu tamanho, ficando estático
dentro dela enquanto a sinto pulsar.
Eu aperto sua bunda, trazendo seu quadril para mais perto do
meu. Minha cabeça mergulha em seus seios quando eu volto a
estocar mais rápido ao ponto de produzir um barulho obsceno e tão
delicioso que minha visão escurece.
— Kalon, não pare. — Arcane geme, esfregando sua
bochecha contra minha barba rala. Eu grunho, mordiscando sua
pele. Eu chupo seu mamilo, adorando como eles estão rijos de
prazer e marcados por minha boca.
— Você é minha, Arcane. — Provavelmente vai ficar marcado
por alguns dias, e como se não fosse o suficiente, faço a mesma
coisa em seu pescoço. — Você está me ouvindo? Diga que é minha!
— Nem fodendo. — Ela ri fraco, imitando meu tom
debochado.
— Que grande diaba. — Arcane choraminga quando eu
estapeio sua bunda, fazendo barulho junto com os sons das minhas
estocadas.
— Um dia eu vou foder sua bunda, amor. — Aperto sua carne
ao ponto de ficar a marca dos meus dedos. — Guarde minhas
palavras. — Deixo um selinho em seus lábios, removendo meu pau
de dentro dela.
— É só isso que você aguenta? — Arcane protesta,
apertando meu traseiro para eu não parar os movimentos.
— Na verdade, eu estou poupando você. — Satisfação brilha
em meu rosto quando vejo meu pau marcado com seu sangue, uma
mancha pequena como prova de que ela é minha. Eu fecho meus
olhos odiando como esse monstro possessivo ameaça tomar o
controle da situação.
— Você gosta de fotografia, não é? — Eu sussurro,
acariciando sua coxa e trazendo-a para sentar em meu colo.
— Sim, eu gosto de registrar os momentos. — Arcane
engatinha, mantendo suas pernas ao meu redor e rebolando
lentamente, enquanto sente meu pau contra sua entrada.
— Certo, esse momento precisa ser registrado. — Eu dou
uma risada divertida, me inclinando e pegando seu celular jogado na
cama.
— Você não faria isso. — Os olhos de Arcane brilham de
espanto, mas há algo a mais quando eu abro a câmera e a
posiciono acima das nossas cabeças, pegando todo o seu corpo.
— Fique perto de mim, vamos. Precisamos registrar a sua
primeira vez. — Minha mão está apertando sua bunda farta, seus
seios estão escondidos em meu abdômen e suas mãos estão
abraçando meu ombro. — Mais perto, Arcane, até parece que você
não gosta de dar para mim. — Eu reclamo, ela me olha feio e meus
lábios se repuxam para o lado.
— Assim está melhor, senhor exigente? — Ela reclama,
encostando seu rosto no meu.
— Assim está melhor. — Eu sussurro, puxando seu quadril e
empurrando meu pau em sua boceta. — Eu e minha Arcane. — Ela
prende a respiração e eu faço a foto.
— Agora você quer carinho? — Ela beija minha boca,
segurando meu rosto com as duas mãos.
— Sim, por favor. — Estapeio sua bunda, puxando para ela
rebolar em cima de mim. — Devemos registrar esse momento, não
acha? Você está tão linda fodendo o homem que odeia. — Eu abro
a câmera do celular, deitando contra as almofadas e filmando seus
seios deliciosos.
Seus cabelos estão caídos em seus ombros, ela me olha de
um jeito safado e aperta meu pau entre seus dedos, rebolando do
seu jeito enquanto me tortura ao ponto da minha mão tremer.
Um gemido grave sai da minha boca quando ela aumenta os
movimentos, observo o celular capturando a forma deliciosa que seu
corpo bate contra o meu, fazendo um barulho tão delicioso que meu
pau incha implorando por um orgasmo. Arcane geme, rebolando de
uma forma tão profunda que eu me pergunto como é possível ser a
sua primeira vez.
— Você está gostando, Kalon mou? — Sua boceta aperta
meu pau, eu giro o celular para não perder o momento em que ela
se dedica em uma deliciosa rebolada.
— Diga isso novamente, minha vida. — Minha mão aperta
sua bunda marcada por meus tapa, suas mãos estão apoiadas em
minha barriga.
— Kalon mou. — Ela repete. Um rosnado possessivo sai da
minha boca, eu aperto sua carne, conduzindo seu quadril para ela
ficar preenchida por todo o meu tamanho.
— Isso mesmo, seu Kalon. Apenas seu. — Eu sussurro as
palavras no momento em que o orgasmo me faz perder os sentidos.
Arcane aperta as pernas ao meu redor, indo mais rápido e
cheia de necessidade. Estamos queimando, estamos condenados.
Ela inclina a cabeça para trás e eu ergo o celular no momento em
que meu sêmen escorre pela sua boceta.
— Arcane mou, nós gozamos ao mesmo tempo. — Sussurro,
empurrando meus dedos dentro dela para que não escape nenhuma
gota da minha porra. — Como você se sente? — Eu pergunto,
largando o celular.
— Eu me sinto uma grande gostosa. — Ela cai ao meu lado,
encolhendo suas pernas. Eu dou risada, girando meu corpo de uma
forma preguiçosa até estar deitado com a cabeça em seus seios. —
Você ainda está com febre? Se sente doente? — Ela acaricia minha
testa. — Você quer que eu saia?
— Um pouco. — Entrelaco meus pés aos seus, não dando
espaço para ela fugir do meu abraço. — Quando uma pessoa faz
sexo, ela normalmente gosta de ficar abraçada, sabia disso?
— Eu não gosto disso, seu pau fica espetando minha barriga,
fique quieto com isso. — Ela tenta escapar, balançando seu quadril
e mudando a posição do meu pau com sua mão.
— Então, por favor, pare de tocar nele. — Eu mordisco sua
orelha, fazendo-a encolher contra meu corpo.
— Eu gosto de ver você gozando. — Certo, ela não solta a
porra do meu pau. Um gemido fraco sai da minha boca e eu afundo
o rosto em seu pescoço quando ela inicia movimentos deliciosos. —
Eu acho que vou me divertir muito com isso, acabei de descobrir o
seu ponto fraco. — Não demorou muito para um segundo orgasmo
me atingir, molhando sua mão e sua barriga.
Eu afasto meu rosto do seu pescoço e deixo um beijo calmo
em seus lábios, acariciando sua barriga e me encaixando ao redor
das suas pernas. Arcane me envolve com os braços, então puxa o
edredom para cobrir nossos corpos.
Eu devo ter adormecido por muito tempo, porque quando
acordo, a cama está vazia e não há nenhum sinal de Arcane. A
sacada ainda está aberta e um vento frio envolve meu corpo. Já de
noite, eu afasto as cobertas, caminhando pelo quarto banhado pelo
breu noturno.
— Meu amor? — Olho ao redor, não vendo nenhum traço da
sua presença. Nossa roupas estão espalhadas pelo chão, junto com
uma enorme bagunça causada pela nossa briga.
Alívio libera meu peito quando ouço a água caindo no
banheiro, ela está tomando banho. Eu entro, vendo que a porta está
aberta, mas antes de dar o primeiro passo, algo duro acerta meu
queixo seguido por um grito fino.
Puta merda, ela acabou de me dar um murro pior do que os
outros. Minhas costas batem na parede, me deixando desorientado.
— O que você acabou de fazer? Seu grande sem vergonha!
— Ela bate em meu ombro ao mesmo tempo que me puxa para
perto.
— Você já sentiu o peso da sua mão? Isso foi um soco do
caralho. — Eu massageio meu queixo, minha voz está aflita.
— Ai meu Deus, você está morrendo? — Ela abraça meu
corpo, me levando para debaixo da água quente.
— Acho que dá pra fazer respiração boca a boca, sua idiota.
— Eu dou risada, apertando sua bunda e procurando sua boca. —
Por que você toma banho de luz apagada? Isso faz parte de algum
ritual diabólico? — Sussurro contra seus lábios.
— Eu só não queria acordar você, agora sua febre passou. —
Ela faz carinho em minha bochecha. — Olha, quando eu não estiver
aqui, você deve tomar cuidado com os pontos que eu fiz em seu
abdômen.
— E para onde você está indo? — Incômodo agride meu
peito.
— Papai já chegou, significa que eu já posso ir para casa. —
Ela abaixa minha cabeça, começando a massagear meus cabelos
de um jeito rápido.
Espuma cai em meus pés e em minha barriga. Eu dou risada
ao perceber que ela realmente está me dando um banho como se
fosse obcecada por limpeza.
— Quando eu vou ver você novamente? — Abraço sua
cintura, trazendo seu corpo molhado para se unir ao meu.
— Eu espero que nunca. — Ela lava atrás da minha orelha.
— Eu não tenho a menor vontade que isso se repita, seu pau não é
tão interessante quanto eu imaginava. — Eu calo sua boca com um
beijo estalado, Arcane dá um tapa em meu braço. — Me deixe
banhar você, pare de me provocar.
— Você está me humilhando depois do sexo? — Aperto seus
cabelos. — É isso mesmo?
— Exatamente. — Ela respira fundo, empurrando meu peito
para manter espaço entre nós dois.
Em nenhum momento eu imaginei que simplesmente ficaria
satisfeito depois de tê-la, pois bem, na verdade eu estou assustado
com a forma que quero fodê-la novamente. Eu quero ela para
sempre, quero a porra dos seus sorrisos e até mesmo os tapa em
minha cara. Eu quero cada pedaço desse imenso furacão em forma
de mulher, mesmo que isso me mate. Eu não ligo, meu único
objetivo é mantê-la perto de mim, torturando esse monstro em meu
peito, alimentando minha obsessão. Não me importa se eu sou a
porra do seu Nemêsis, para mim não há nada que se encaixe tão
bem quanto nós, porque ela é a própria deusa da guerra. Nós
estamos fadados ao caos.
Eu sempre fui um homem insaciável em relação a muitas
coisas na minha vida; poder, fama, negócios e guerra. Mas quando
se trata de Arcane, algo poderoso atormenta meu peito, provando
mais uma vez que daqui eu só saio morto, que nada se compara ao
que eu quero com ela.
— Por que você está me afastando? — Eu sussurro, não
gostando da forma que ela me impede de beijar sua boca.
— Você tem que me dar a sua palavra que não vai sair daqui
e procurar por Pavlos. — Ela segura meu queixo, me fazendo olhar
em sua direção através da pouca iluminação. — Se me possuir essa
noite significou alguma coisa para você, então deixe Pavlos em paz,
esqueça que ele existe.
— Por que você ainda protege ele, Arcane? — Eu aperto
minha testa contra a sua, questionando que tipo de fidelidade é
capaz de tornar essa mulher tão irredutível.
— Porque ele é importante. — Sinto ódio por Arcane ser tão
perfeita, por ela ser tão boa que eu me sinto sujo, como se estivesse
me alimentando de algo proibido. — Que mal te fez Pavlos? — Ela
sussurra.
Porra. Nenhum.
Eu desvio o rosto, não gostando da sua insistência em
proteger aquele homem. A pior parte é que todo o meu corpo se
aperta, doendo em milhões de pedaços e me obrigando a querer
atender seus pedidos. Quando eu fiz aquele maldito acordo com
Yuri, eu não estava considerando que ficaria tão atraído por essa
mulher, mas tudo mudou naquela maldita noite em que matei a
prostituta.
— Vamos para o quarto. — Eu ignoro sua pergunta, focando
apenas no que quero. Tateio o escuro até encontrar um roupão para
ela usar, eu puxo uma toalha para cobrir minha nudez e empurro
sua bunda até o quarto.
— Você é religioso? — Ela pergunta quando finalmente senta
na cama, eu me abaixo para enxugar seus pés. Porra, eu adoro que
todo o meu corpo esteja cheirando a ela. Beijo seu calcanhar,
fazendo seu pé encolher quando minha boca desliza para seu
tornozelo.
— Muito. — Sussurro, distraído com sua pele macia.
— Qual sua música favorita? Você já sabe a minha. — Ela
me pergunta enquanto o vento que vem da sacada aberta bate em
seu rosto.
— Soy esclavo de tus besos, aceleran mis latidos. — Eu
sussurro em seu ouvido, quando me aproximo para beijar sua boca.
— Eu gosto de você falando espanhol. — Ela estremece,
dando uma risadinha.
— Eu sei falar sacanagem também. — Eu mordisco seu
queixo e Arcane grita, colocando a mão em meu peito para manter
uma distância segura.
— Você não está preocupado que a gente tenha quebrado as
regras religiosas? — Ela comenta, se inclinando para trás quando
eu a forço a deitar. — Veja bem, só nos casamos uma vez na vida…
— Eu conheço uma mulher que já se casou sete vezes. —
Interrompo suas palavras. — O que te incomoda?
— Eu tenho paciência apenas para um único casamento,
então me deixe terminar. — Ela me ignora, validando seu ponto de
vista. — Não está preocupado em ser castigado por ignorar as
regras que Rajá enfatizou no dia do noivado?
— Eu estou mais preocupado em repetir tudo de novo. — Eu
dou uma risada amável, erguendo seus joelhos e colocando meu
rosto entre suas pernas. — Não se preocupe, eu sou cristão. As
crenças de Rajá não se aplicam à forma que eu devo foder você. —
Beijo sua boceta, causando estremecimento ao seu corpo.
— Mas eu sou a noiva e tenho o direito de escolher um
casamento dentro das tradições, então se afaste. — Ela tenta
empurrar meu ombro com o pé. Eu mordisco sua boceta em
resposta, fazendo-a rebolar contra minha boca por pura
necessidade.
— Não há como voltar atrás, Arcane. — Seus dedos apertam
minha nuca, buscando equilíbrio. — Eu disse para você.
— Nós vamos para o inferno, Kalon. — Ela geme, quase
perdendo o fôlego. Sua voz é tão doce quando fala meu nome
enquanto a fodo que eu não resisto em deslizar minha língua por
sua entrada, chupando como se fosse a sua boca.
— Não por causa disso, amor. — Eu aperto sua bunda,
sentindo sua carne entre meus dedos me levando a foder sua
boceta com mais necessidade.
Seus dedos seguram meus cabelos com mais força, Arcane
geme meu nome e eu me convenço que não há tortura mais
deliciosa do que essa. Alguém bate na porta, me impedindo de
reivindicar sua boceta novamente.
— Arcane mou? Nós precisamos ir para casa. — Porra, como
eu odeio Nimue nesse momento. — Melissa já está esperando no
carro.
— Diga que está ocupada fodendo comigo. — Eu seguro a
perna de Arcane quando ela empurra meu rosto para longe da
minha boceta.
— Saia daqui, Kalon. — Ela sussurra, reunindo forças para
me empurrar até a sacada.
— Mas eu estou na minha casa, por que está me tratando
como um fugitivo? — Inclino a cabeça para o lado. Ela não me
responde, apenas joga a toalha para eu me cobrir.
— Saia rápido. — Ela tenta se afastar mas eu puxo sua
bunda, roubando outro beijo da sua boca. Arcane geme quando
Nimue bate na porta novamente, eu reviro os olhos, me afastando
com relutância.
— Eu estou indo, Nimue. — Ela me ajuda a atravessar a
grade de proteção. — Estava no banho.
— Sua safada mentirosa. — Deixo um tapa em sua bunda,
fazendo Arcane suspirar.
— Vai depressa, Kalon. — Ela empurra meu peito. — Eu
preciso abrir a porta.
— Outro beijo. — Inclino meu rosto em sua direção, Arcane
grunhe em negação.
— Não. — Ela rosna quando eu mordisco sua bochecha, sou
empurrado novamente, quase perdendo o equilíbrio. — Vá embora.
— Eu reviro os olhos, me afastando para descer a sacada. Tenho a
visão da sua deliciosa bunda marcada por meus tapas quando ela
volta para o quarto, cobrindo seu corpo com o roupão.
Eu pulo no chão, consertando minha postura e pouco me
fodendo se estou apenas com uma toalha cobrindo meu pau.
Caminho pela porta da frente, ignorando o olhar furioso dos meus
irmãos que estão todos em fileira para receber Yuri e suas notícias.
— Cara, isso é jeito de aparecer na frente do seu padrinho?
— Kol torce o nariz, reprovando toda a minha existência.
— Que marcas são essas em suas costas? — Rajá ergue
uma sobrancelha, se inclinando para ver melhor quando eu me
aproximo. — Você vai precisar de band-aid.
— Você quer parar de olhar para meu corpo? — Eu rosno,
erguendo uma sobrancelha em questionamento. — Que
homenzinho inconveniente.
— Tomara que tenha sido uma surra. — Kol resmunga,
defendendo Rajá. — Devia ter perdido a língua no caminho até aqui.
— Silêncio. — Yuri resmunga, girando os pés até me encarar
de frente. — O que isso significa, Kalon?
— Significa que precisamos conversar no meu escritório. —
Aponto para o caminho. — Agora mesmo.
23. BEIJO DE JUDAS,
LÁGRIMAS DE ANJO
“Tudo o que você fez se transformará no que você merece."
— RUMI.

— O que é tão importante para você falar comigo coberto por


uma toalha? — Yuri aponta para o tecido que eu aperto contra meu
quadril, prendendo os lábios em desaprovação. — Não pode
esperar até amanhã? Eu acabei de chegar da viagem mais
estressante da minha vida.
— Sinto muito, padrinho, mas precisa ser agora. — Eu falo
em desdém, porque de forma alguma o considero como meu
padrinho de batismo, o único que ainda o faz é Ajax. Kol mantém o
apelido apenas por respeito e Rajá não liga para isso desde que se
declarou como mulçumano aos quatorze anos.
— Fale de uma vez, Kalon. Eu estou exausto. — Yuri senta,
cruzando suas pernas e acendendo um cigarro. Eu faço uma careta,
avançando para sentar à sua frente.
— Você sabia que Arcane tem um amante? — Ergo uma
sobrancelha quando a frieza domina a minha expressão. Ela
provavelmente vai me pedir por isso quando descobrir que eu a
entreguei, mas eu não ligo. — Eu acabei de descobrir o nome dele,
ele se chama Pavlos, acredita? — Eu giro preguiçosamente na
cadeira.
Yuri para de fumar e me encara como se tivesse visto o diabo
encarnado. Fúria repuxam sua expressão, seus ombros ficam
maiores quando ele conserta sua postura, então avança lentamente
por cima da mesa.
— O que você acabou de falar? — Ele sibila, como um
demônio.
— Isso mesmo que você ouviu. — Eu sussurro no mesmo
tom, mostrando que não vou me curvar a sua arrogância. — Você
foi um pai incompetente, Yuri. Pelo visto não cumpriu nada do nosso
acordo.
Esse casamento só existe por causa do acordo que fizemos
meses atrás, ele está devendo a minha parte ainda por cima. Aperto
meus punhos quando Yuri se ergue como uma besta prestes a
atacar o vácuo.
— Minha filha não tem ninguém, que grande besteira você
está dizendo? — Ele caminha em minha direção. Um sorriso
zombeteiro dança em meus lábios, desafiando-o a encostar um
dedo em mim.
— No nosso primeiro encontro eu vi Arcane abraçada com
esse homem. — Eu aponto em sua direção. — Eu tentei descobrir
quem ele é, mas sem um nome eu não consegui achar seu rosto em
nenhum banco de dados. Agora eu sei que ele se chama Pavlos,
vive em uma fazenda, e que Arcane se encontra com ele
regularmente. — Eu dou risada, reprovando a sua falta de controle e
segurança sob suas filhas. — Sem você saber, Yuri. O que me leva
a pensar que se Arcane morresse, seria muito fácil matá-la.
— Veja como você fala comigo, Kalon. — Yuri sibila. — Eu
estava ocupado com Ivan, você sabe bem disso. — Eu dou risada
da forma como esse homem medíocre é tão leal ao meu pai ao
ponto de deixar suas filhas sem supervisão. — Arcane não tem
ninguém, isso eu posso afirmar. — Ele inclina a cabeça para o lado.
— E mesmo que ela tenha, isso não muda o nosso acordo. — Ele
segura meu ombro para falar mais perto. — Cumpra sua palavra e
eu cumpro a minha.
Se não fosse o nosso pequeno pacto, eu já teria acabado
com a sua vida sem levantar suspeitas.
— Como eu vou me casar com uma garota que está
apaixonada por outra pessoa, Yuri? — Eu me ergo, ficando mais
alto que ele e apontando o dedo em sua direção.
Eu fui envenenado pelo pensamento amargo de Arcane
apaixonada por aquele homem, isso me tortura profundamente, todo
meu corpo dói porque estou diante da realização de que não posso
fazer nada em relação a isso, não posso mudar os sentimentos
dela. Não posso forçá-la a nada.
— Vamos rebobinar a fita, Yuri. — Eu estalo os dedos,
deixando-o furioso com minha indiferença à sua autoridade doentia.
— A Cúpula Demoníaca ia matar Arcane por ela ter matado
Nikoleta, mas você veio até mim pedindo para fazer um acordo com
Minerva, o braço direito do chefe deles. — Yuri se afasta, ficando
sentado em seu lugar, mas eu permaneço de pé enquanto continuo
falando.
— Eu consegui tirar Arcane da cadeia quando planejamos
esse casamento, e em troca, você me dava informações sobre
quem matou a minha ex-namorada. — Sussurro.
— Você é tão doente que não consegue se lembrar, Kalon?
— Ele dá risada, servindo-se de whisky. — Você matou a pobre
coitada, não há outra pessoa por trás disso. — Suas palavras
invadem minha cabeça, mas eu mantenho a indiferença.
— Isso não é verdade, Yuri. — Eu aponto o dedo em sua
direção.
— Eu disse que ia ajudá-lo a lembrar do que aconteceu
naquela noite, não que existe outra pessoa por trás deste crime. —
Ele pontua. — Você é um assassino desenfreado, e mesmo assim
eu confiei a vida da minha filha a você para que a Cúpula não
tirasse a vida dela.
O ponto é que existe alguém querendo matar Arcane. A
ameaça de sangue nos portões de casa nunca foi para minha
família ou minha mãe, foi para Arcane. O fato de Yuri envolvê-la na
segurança da minha mãe foi apenas um pretexto para mantê-la por
perto e se acostumar com o mundo fora da prisão, para em seguida
revelarmos a notícia do casamento. Nós decidimos esse casamento
da forma mais confortável para Arcane assimilar os acontecimentos,
mas ainda assim, ela se recusa e existe outro homem em sua vida.
Fico em silêncio, encarando minhas mãos como se pudesse
ver o sangue nelas. Minha parte racional tenta me convencer que a
melhor forma de manter Arcane segura é deixando-a viver com esse
Pavlos, porque eu sou tão insano e perturbado que não consigo
lembrar da noite em que matei Azra. Esse evento foi apagado da
minha cabeça, existe um vazio perturbador onde o seu rosto
ensanguentado me visita, provando que eu sou o único culpado por
sua morte.
— Tudo que eu lembro é de estar chorando nos braços de
mamãe, com meu corpo todo sujo de sangue depois de segurar o
coração de Azra em minhas mãos. — Eu falo baixo, perdido no
vermelho que acredito estar pingando dos meus dedos.
— Você tinha vinte e três anos, Kalon. — Yuri sibila, me
fazendo piscar até a cor desaparecer dos meus dedos. — Você
matou ela e estava em choque. — Ele continua, abrindo outro
charuto para fumar.
Eu balanço a cabeça me negando a acreditar em suas
palavras. Um grande vazio consome meu peito pois não consigo me
lembrar de nada, e por mais que eu tente, esse vazio em minha
mente não desaparece. Tudo que eu preciso é lembrar do que
aconteceu, para que assim essa culpa afrouxe meu peito e me
permita respirar em paz. Minhas mãos começam a tremer, um
resmungo insatisfeito escapa dos meus lábios quando começo a
cogitar os motivos para Arcane estar sendo ameaçada de morte.
— Padrinho… — Minha voz está instável.
— Só agora eu sou seu padrinho? — Ele engasga em uma
gargalhada sufocada pela fumaça. O cheiro doce se espalha pelo
escritório e eu desvio o rosto. Sinto meu sangue gelado e minhas
mãos tremendo com mais itensidade. Sua gargalhada morre ao ver
como estou. — Fale, Kalon. O que você tem?
— Você sabe se há alguma chance de Nikoleta ter
sobrevivido ao ataque de Arcane e estar por trás dessas tentativa de
assassinato? — Minha voz sai rápida e trêmula, conforme meus
pensamentos se alimentam do único resquício de estabilidade que
eu estou mantendo.
— Até onde eu sei, Nikoleta está realmente morta. — Ele
declara, fazendo meu corpo amolecer tomado pela negação e culpa.
Se alguma coisa acontecer com Arcane por minha causa, eu nunca
vou sobreviver a isso. — Por que? No que você está pensando?
— Isso me leva a pensar que Arcane está sendo ameaçada
de morte porque de alguma forma nosso acordo de casamento foi
revelado antes do tempo, e se alguém estiver perseguindo minha
mulher para me fazer pagar pela morte de Azra? — Eu coloco para
fora o que está em minha cabeça, fazendo-a doer com tanta tensão.
— Mas a Cúpula deu esse assunto como encerrado anos
atrás, Kalon. Eles nunca voltam atrás com uma decisão, a menos
que você repita seu erro. — Yuri larga seu charuto no cinzeiro,
ficando tão tenso e ereto quanto eu.
— Então descarte a Cúpula. — Eu balanço os ombros, nunca
mais entrei em nenhum relacionamento desde que Azra morreu.
Arcane é a única exceção, e eu prefiro cortar meus pulsos do que
machucá-la de alguma forma. — Os pais de Azra, quem sabe? Eles
podem saber da verdade e colocar alguém para se vingar. — Um
palavrão feio sai da sua boca, enquanto ele inclina a cabeça para o
lado.
— Se esse for o caso… Se a pessoa que está ameaçando
Arcane for alguém do seu passado… — Eu levanto o olhar quando
ele caminha em minha direção. — Então nós vamos encerrar este
acordo de casamento, porque meu objetivo é salvar a minha menina
da punição da Cúpula e não encaminhá-la para outro tipo de morte.
— Ele aponta em minha direção, cheio de desdém.
— Nosso acordo não pode ser desfeito, Yuri. — Eu sibilo, não
gostando do rumo que ele está tomando.
— Eu prefiro mil vezes que Arcane se case com esse tal de
Pavlos, que ela me envergonhe pelo homem não pertencer a
Alkyóna, do que vê-la casada com você e pagando com a vida pelo
seu pecado sombrio. — Ele fala pausadamente.
— Que grande hipócrita você é, Yuri. — Eu me ergo, falando
no mesmo tom venenoso que ele. — Você não tem lugar para me
julgar em relação a Arcane quando foi você quem matou aquela
mulher queimada. — Eu grito as palavras, me satisfazendo com o
choque em seu rosto. — Arcane foi presa e destruída por um crime
que você cometeu, não ela.
Vai ser um prazer tirar minha garota do poder desse homem,
não apenas porque eu a desejo profundamente, mas porque alguém
nesse mundo precisa fazer justiça por ela. De forma alguma esse
homem sujo vai sair impune por ter permitido e contribuído para que
sua filha caçula fosse quebrada dentro daquela prisão. Arcane era
apenas uma criança, ela não merecia ser punida, mas sim
protegida.
— Como diabos voce sabe isso, porra? — Ele segura meu
pescoço, apertando com tanta força que por reflexo eu agarro seu
pulso. — QUEM DISSE A VOCÊ?
— Você pensou que eu não ia investigar junto com meus
irmãos antes de aceitar esse acordo? — Eu vejo o diabo queimando
em seus olhos, se fosse um dos meus irmãos em meu lugar, o
assunto seria encerrado e por amor à vida um deles iria embora.
Mas o fogo queima em minhas veias e eu continuo desafiando esse
homem louco.
— Você é tão hipócrita que ainda ousa encostar seus dedos
imundos nela. — Continuo falando. — Você acha que eu não sei
que anda batendo nela e em suas irmãs? Você lembra do que eu
disse? — Aproximo meu rosto, ignorando o aperto em minha
garganta. — Arcane se tornou minha no momento em que
apertamos as mãos. Isso significa que ninguém machuca ela,
ninguém encosta um dedo em seu fio de cabelo. — Avanço meu
rosto em sua direção. — Não ouse falar dos meus pecados quando
os seus são maiores que os meus. Nós dois vamos pro inferno
juntos, Yuri, e eu terei o prazer de arrastar sua cabeça na descida
até lá.
— Você ousa me desafiar, seu filho da puta?! — Eu caio por
cima da cadeira quando o primeiro soco me acerta.
Um rosnado escapa da minha boca quando eu empurro
minhas pernas contra as suas, derrubando-o no chão e causando
um estrondo.
— Kalon, o que está acontecendo aí? — Rajá está batendo
contra a porta, tentando abrir sem cessar.
— Alguém precisa ensinar a esse filho da puta onde é o seu
lugar. — Eu cuspo sangue, me arrastando no chão de forma pesada
apenas para devolver o murro na mesma intensidade. — Bateu na
minha mulher, agora tenho a chance de revidar como estava
desejando. — Yuri rosna, tentando revidar.
Eu desconto com satisfação, colocando para fora toda a raiva
que eu estava guardando desde que encontrei Arcane naquela
praia. Hoje posso me vingar daquele dia. O impacto do meu soco foi
tão forte que me fez desabar no chão, com os dedos queimando
pela força que usei.
— Kalon, pare com isso! — Rajá consegue invadir o
escritório, me afastando para longe de Yuri enquanto eu empurro
meu corpo para cima do homem caído.
Minha mão está tremendo, ainda se recuperando do impacto.
Yuri está gritando todos os palavrões que consegue lembrar e eu
aperto a toalha ao redor da minha cintura, percebendo que o nó se
desmanchou com a queda.
— Você perdeu o juízo? — Respiro fundo quando Kol segura
meu braço e me puxa para fora do escritório, praticamente me
arrastando. — Foi um bom soco, mas agora você está fodido. — Ele
cochicha, cruzando seu braço em meu ombro e usando um pouco
mais de força para me afastar. Meus lábios se repuxam com sua
falsidade, aposto que ele também estava louco para esmurrar Yuri.
— Se você não estivesse me segurando, veria muito mais. —
Debocho, minha voz está grave.
— Você é louco, por isso que eu te amo. — Ele dá uma
gargalhada, desviando de Ajax que caminha em nossa direção
como um raio.
— Que porra aconteceu aqui? — Ele inspeciona meu rosto
ferido. — Você estava brigando com o padrinho?
— Não pergunte, apenas continue andando e você vai ver. —
Kol aponta por cima do ombro onde Rajá esta conversa no com
Yuri, segurando seu ombro enquanto o homem tenta me perseguir.
Eu lhe encaro, sangue escorre por seu queixo e ele está tão
descontrolado quanto eu.
— Eu ouvi a discussão, quero que saiba que se você tocar
em Arcane, Nimue e Melissa novamente… Eu vou mostrar formas
de acabar com a sua vida sem precisar derramar sangue. — Rajá
está surrando para Yuri, com o rosto próximo do seu ouvido.
Essa é uma ameaça tão calma e baixa que o rosto de Yuri
fica frio, sendo atingido pela veracidade da sua fúria. Eu não
consigo ouvir o que eles continuam sussurrando porque Kol me
arrasta de volta para a sala, tentando me fazer sentar em uma
cadeira para ver o sangue que escorre por minha bochecha.
— O que aconteceu? – Eu paro de andar quando Atena
aparece ao lado de Nimue e Arcane, a preocupação brilha em seu
rosto e eu desvio minha face para o outro lado.
— Kalon, o que está havendo? — Arcane fala mais baixo, ela
permanece parada nas escadas. Eu mantenho meu olhar distante,
apertando meus lábios. Não quero que ela me veja assim, não
queria abrir a boca para falar o motivo.
– O seu filho é um grande incompetente, Atena. — Yuri
surge, totalmente livre das mãos de Rajá. — Foi exatamente isso o
que aconteceu, você e seu marido criaram esse merdinha muito
mal.
— Veja como você fala com a minha mãe, seu grande filho da
puta. — Eu praguejo, virando meu corpo para observá-lo de perto.
— A menos que esteja pronto para o segundo round, essa conversa
ainda não acabou.
— Eu não acho que será uma conversa, já que vocês só
batem como dois galos de briga. — Ajax intervém, ele está ao lado
de Rajá.
— Ouça minhas palavras, Kalon. Eu não vou mover um dedo
para ajudar você com isso. — Ele bate as mãos uma na outra, como
se estivesse tirando a poeira. — Foda-se seus problemas, foda-se
suas paranóias, eu não me importo. Minha ajuda você não terá.
Eu permaneço em silêncio. Minha mãe se aproxima junto
com Nimue, ainda sem compreender toda a comoção. Arcane
permanece nos últimos degraus como se estivesse em choque, sem
conseguir assimilar o que acontece na sua frente.
— Eu tentei ajudar mesmo, Kalon. — Ele balança os ombros,
fazendo uma careta amarga. — Agora você não tem mais um
amigo, não sou mais responsável pelo que acontece a seguir. — Ele
desvia o rosto, arrumando seu cabelo grisalho que caiu pela testa,
saindo do coque apertado. — Vou deixar que seu pai tome conta da
sua situação. — Ele ri, me olhando como se eu estivesse doente.
— Você vai dizer ao meu pai sobre a nossa conversa no
escritório? — Eu ergo uma sobrancelha, deixando escapar uma
gargalhada grave e cheia de mágoa. — Logo ao meu pai? — Abro
os braços, olhando ao redor. — E onde ele está agora, hein? Me
diga onde o meu pai está, Yuri! — Eu avanço em sua direção,
empurrando as mãos de Kol e Rajá que tentam me impedir. — Já
que você é tão amigo dele, então me diga por que ele não cuida de
mim? Ele não tem filhos? Por que minha família está tão dividida e
ele nunca fez nada para salvá-la? Onde ele está neste exato
momento? Vivendo algo mais feliz, é isso? — Empurro minhas
mãos em sua direção, minha voz ficando cada vez mais trêmula.
Estou furioso, estou tremendo de raiva e algo doloroso
escorre em meu peito. Sinto indignação, sinto remorso por esse
homem ser a única pessoa nessa vida que meu pai enxerga. Não
seus filhos, não sua esposa, mas apenas seu melhor amigo que é
tão corrompido quanto ele.
— Você é filho do meu pai por acaso? Ou está aqui
assumindo o lugar dele? — Eu abro os braços, olhando ao redor. —
Onde está meu pai para finalmente conversar comigo sobre todas
as coisas que eu precisava ouvir dele, mas ele nunca estava
presente? — Empurro Kol para longe, ficando cada vez mais perto
de Yuri. — Eu gostaria de jogar meus pecados sob os ombros dele,
para que assim aquele homem aprenda a ser um bom pai. — Sibilo
baixinho. — Então vamos, chame por ele, Yuri. Faça esse milagre
acontecer, já que ele só tem olhos para você, ele só ama você, ele
só tem tempo para você. Estou ansioso para finalmente discutir a
porra do assunto que ele fez vista grossa a vida inteira, para discutir
o fato do seu filho ser um monstro. — Estalo a língua, sentindo
meus olhos queimar. — Quero esfregar na cara dele como ele
nunca protegeu o filho amaldiçoado. — Fico em silêncio por um
tempo, apenas encarando seu rosto. — Pelo visto você aprendeu
com ele, não é?
Yuri rosna, erguendo o queixo com uma expressão tão
egoísta e furiosa que faz meus irmãos avançarem em protesto.
— Pelo visto eu vou precisar calar a sua boca de outra forma.
— Ele arranca sua arma da cintura, apontando para meu rosto, sua
mão treme quando seu dedo pressiona o gatilho.
Ele está furioso por eu saber seu segredinho sujo, por eu
saber a verdade sobre a noite daquele incêndio. Ele está com medo
de ser punido por um crime que foi jogado para cima da sua filha.
— Eu te desafio. — Eu mantenho meus olhos abertos,
sorrindo de lado.
Meus ouvidos chiam quando meus irmãos gritam ordens e
tentam se aproximar, mas o que realmente rouba a minha atenção é
o corpo de Arcane, a forma como ela pula em meus braços e me
abraça com força. Seu corpo está gelado e ela está tremendo. Seu
rosto mergulha contra meu peito e ela balança a cabeça repetidas
vezes em negação.
Eu não consigo entender. Essa mulher que adora me
enfrentar está tremendo e chorando fraco, como se estivesse diante
do maior medo da sua vida.
— Por que você está me abraçando? — Eu a encaro, sem
conseguir sentir meus membros, sem sentir forças para fazer
qualquer coisa a não ser colocar esse monstro para fora do meu
peito.
Eu não preciso de um abraço, porque Arcane está fazendo
isso comigo? Eu preciso apenas do meu pai, da raiva e desprezo
em seus olhos. Eu preciso que ele me enxergue, mesmo que seja
do seu jeito distorcido.
— Por favor, pare com isso, eu estou com medo. — Ela
soluça. Suas mãos me apertam ao ponto da minha coluna
estremecer. — Kalon, pare com isso! — Sua voz está fraca e
trêmula. — Não atire nele, papai! Parem os dois com isso!
— Agapi mou, o que você está fazendo? — Yuri sibila. —
Afaste-se. — Ele grita tão autoritário que ela treme, apertando meu
corpo com mais força. Eu encaro Yuri, odiando a forma como ele
está deixando ela nervosa, comendo seus nervos e a transformando
numa garotinha traumatizada.
— Por que você está com medo? — Eu sussurro baixo. Ela
ergue o rosto pálido para encarar a arma contra minha testa.
— Pare com isso! Faça isso parar! — Ela está olhando para
Yuri, um olhar raivoso e cheio de medo.
Seu olhar está fixo na arma entre os dedos de Yuri, o homem
inclina a cabeça para o lado como se reconhecesse a expressão no
rosto dela, sendo tomado pelos mesmos pensamentos.
— Arcane mou... — Yuri abaixa a arma lentamente. — Vamos
para casa. — Ele estende a mão em sua direção, mas antes que o
homem agarre seu braço, Rajá avança em sua direção.
— Você perdeu a cabeça, Yuri? — Ele grita muito alto. —
Seja qual for a porra do problema, vamos resolver conversando.
— Não há nada para conversar. — Yuri empurra as mãos de
Rajá. — Eu estou indo embora, por que não discute essa merda
com o seu irmão?
Eu desvio meu rosto deles quando os dedos de Arcane
acariciam minhas bochechas. Seu toque é frio, ela está pálida
enquanto me observa com lágrimas nos olhos.
— Você está bem? — Ela sussurra, esfregando o polegar
pelo traço de sangue em minha bochecha. — O que aconteceu?
— Pare de chorar, vai ficar tudo bem. — Eu aproximo meu
rosto do seu, unindo minha testa contra a sua apenas para acalmar
a forma como ela está soluçando.
Suas mãos apertam minha pele, me puxando para mais perto
do seu corpo. Seus lábios deslizam por meu peito quando ela
esfrega sua bochecha em mim.
— Você vai me dizer o que está acontecendo? — Ela pede.
— Você deve ir com o seu pai, ele está furioso. — Falo mais
baixo. — Eu prometo que vamos nos ver em breve. — Coloco uma
mecha do seu cabelo atrás da orelha, podendo ver melhor o seu
rosto marcado pelas lágrimas e medo. — Você não vai gostar das
minhas palavras, então apenas vá com ele, meu amor.
Arcane inclina a cabeça para o lado, me observando melhor.
Uma lágrima desce por sua bochecha quando Yuri segura sua mão
de forma brusca, puxando seu corpo para longe do meu. Arcane
resmunga, me dando as costas e permitindo ser arrastada por ele.
Eu acompanho com o olhar até que eles chegam na porta, e quando
tento avançar, Rajá segura meu ombro.
— Você está muito fodido. — Ele sibila, me analisando de
forma ríspida.
— Você não precisa agir como um pai comigo. — Inclino o
rosto em sua direção, falando de forma pesada. — Nós temos
quase a mesma idade, pessoas como nós não são consolada, nós
consolamos os mais novos. — Eu giro de lado, dando espaço para
ele ver Ajax e Kol nos observando com os braços cruzados. — Seja
bonzinho com eles, não comigo.
Dou as costas, subindo as escadas e procurando por meu
quarto para vestir algumas roupas. Quando entro, toda a raiva volta
a queimar minhas veias. Eu levo as mãos até minha cabeça,
respirando pesadamente e me controlando para não quebrar os
móveis.
Eu me sento na cama, pegando meu telefone e discando o
número que decorei como uma oração. Essa é a única que pode me
ajudar, mesmo que eu tenha que pagar um preço por isso. Ela
atende no segundo toque.
— Ora, ora... Alguém está desesperado. — Minerva sibila,
debochando de mim. Sua risada causa arrepios em minhas costas.
— Eu lembro de ter deixado claro que você não podia me procurar
novamente.
— Eu preciso de ajuda. — Limpo a garganta, mantendo a
frieza em minha voz.
— Assim como todo mundo. — Ela dá risada.
— Minha noiva pode morrer por minha causa. — Eu
confesso, jogando as palavras de uma vez. — Me ajude, não quero
que se repita. — Eu odeio a forma como a humilhação dança em
meu tom de voz.
— Esse é um preço muito alto, Kalon Somáli. — Ela sibila,
como a porra de uma bruxa.
— Eu faço qualquer coisa. — Balanço a cabeça. — Estou
disposto a qualquer coisa para proteger ela.
— Eu me pergunto porquê. — Ela provoca, dando uma
risadinha mais atrevida.
— Minerva... — Eu aperto os dentes, falando seu nome em
um rosnado.
— Você está pronto para vender sua alma à Cúpula? — Eu
odeio a forma como suas palavras parecem um pacto com o diabo,
mas se for para manter Arcane segura, eu estou disposto a ir para o
inferno em busca disso.
24. EU QUERO O MEU FIM
“Eu escolho te amar em silêncio,
porque em silêncio eu não encontro rejeição.”
— MEVLANA.

Os dias se passaram com tranquilidade, eu ainda não sei o


que aconteceu na mansão Somali noites atrás, qual o motivo para
Kalon e Yuri terem discutido de forma tão assustadora. Apenas duas
vezes na vida eu vi meu pai com aquela expressão descontrolada e
sombria; quando Theo morreu e quando eu fui presa. Eu vi a hora e
o instante em que ele iria matar Kalon no meio daquela discussão,
eu não pensei duas vezes quando agarrei seu corpo e implorei para
tudo parar. Estava apenas com medo de reviver o dia em que Theo
morreu, medo de ver o monstro nos olhos do meu pai. O monstro
que tem no jardim.
Quando voltamos para casa, Yuri se distanciou de nós e
passou a maior parte das horas fazendo de conta que não existimos
no mesmo ambiente que ele. Isso serviu para que eu pudesse
processar em silêncio o que fiz com Kalon naquele quarto. Eu nunca
me senti dessa forma, com todo meu corpo queimando e doloroso
de prazer apenas por ele estar me tocando, me beijando e me
fodendo. Foi uma experiência maravilhosa, e isso me deixa
assustada.
Não era para isso ter acontecido, todos os comandos do meu
cérebro me atormentam provado que Kalon é o meu destruidor, que
eu não devia ceder. Mas eu fui tentada pelo desejo de me sentir
como uma mulher normal, uma mulher que causa interesse em um
homem e leva ele para a cama. Foi a primeira vez que passei tanto
tempo desconectada dos problemas ao meu redor. Não existia
pecado, não existia o fantasma de Nikoleta, apenas nós dois.
Meus pensamentos constantemente giram em torno daquela
tarde em seus braços e meu corpo dói implorando para sentir tudo
novamente. Cada grama daqueles sentimentos foram tão reais e
crus que sinto vontade de me esconder quando conto tudo para
minhas irmãs.
— De qualquer forma, eu estou feliz por você ter
experimentado esse lado da vida. — Nimue dá uma gargalhada fofa,
comendo morangos. — Agora, eu quero realmente saber o que
deixou Yuri tão furioso. Kalon acertou seu calcanhar de aquiles. —
Estamos sentadas perto da piscina, apreciando as palmeiras e a
vista deliciosa do céu azul. Faz muito tempo que não recebemos
notícias sobre o que aconteceu naquela noite.
— Eu acho que os dois são farinha do mesmo saco. —
Melissa larga seu suco e remove seu óculos de sol para me encarar.
— Eu acho que você já tem o Kalon em suas mãos para arrancar as
informações que precisamos.
Eu reviro meus olhos, tinha me esquecido desse plano
maluco de conquista Kalon para obter informações que possam
acabar com esse casamento. Eu ainda não tenho ideia de como me
aproximar e arrancar pistas sobre quem matou Altan, mas eu tenho
certeza que Kalon esconde alguma coisa, o teor daquela discussão
prova isso.
— A discussão entre Yuri e Kalon é uma prova que pode ser
fácil desfazer esse acordo. Eles não são tão amigos. — Nimue
resmunga, voltando a ler seu livro. Eu gosto como sempre
pensamos a mesma coisa. Meus lábios se repuxam para o lado e eu
engatinho até deitar meu corpo contra o seu. — Uma pena que
Arcane vai perder o privilégio de continuar sentando nele depois
disso.
— Pare de ser tão chata e bocuda. — Eu dou um tapa em
sua mão. — Por que não coça minhas costas e para de falar
naquele homem?
Melissa está nos observando com atenção, como se tivesse
algo muito importante consumindo seus pensamentos. Ela respira
fundo e vira uma página da sua revista sobre biologia. Eu não
entendo como ela tem todos os traços de uma patricinha, mas está
devorando um livro com figuras de animais e plantas como se fosse
a coisa mais fascinante da terra.
— Um dia todas as suas revistas vão aparecer queimadas. —
Dou um tapa na capa, fazendo a revista cair em sua barriga. Eu
pego seu suco de maracujá para experimentar um pouco, sugando
o canudinho enquanto puxo outra revista sobre relacionamento de
famosos. Eu juro, é uma droga muito viciante stalkear sobre a vida
das celebridades.
— Me diga uma coisa, o pau do Kalon é grande? — Minha
mão treme quando eu engasgo e suco se espalha por minha
barriga, manchando meu biquíni rosa. Nimue dá uma gargalhada
maléfica sem tirar os olhos da sua revista. — Ande, eu não quero
apenas os detalhes sobre como sua florzinha estava passando bem.
— Florzinha? — Eu faço uma expressão de angústia. — Você
chama sua pussy de florzinha, por acaso? — Ela abre a boca cheia
de choque, se inclinando para frente.
— Você chamou minha florzinha de pussy? Estou me
sentindo uma vadia descarada. — Ela larga sua revista para me
olhar com as bochechas vermelhas. Nimue está se contorcendo de
tanto dar risada, ao ponto de balançar seus pés.
— Mas o pau dele é grande? — Nimue ergue o rosto para
perguntar, engolindo uma gargalhada.
Minhas bochechas ficam vermelhas, se elas soubessem da
parte em que ele filmou tudo, provavelmente iriam fazer um
escândalo. Eu me sinto uma grande vadia por ter visto aquele vídeo
algumas vezes, mas nunca vou admitir em voz alta.
— Horrivelmente grande. — Eu falo com indiferença, as duas
se olham por alguns segundos e começam a gritar como loucas.
— Vocês querem calar a boca? o condomínio inteiro vai ouvir!
— Eu me atormento com tanta vergonha que sobe por meu corpo,
estou prestes a jogar as duas na piscina, mas paro quando a visão
do inferno está bem diante dos meus olhos.
O carro de Yuri estaciona no jardim depois dele passar o dia
fora, o choque cruza meu rosto quando ele desce ao lado de
ninguém menos do que Kalon e Pavlos. Choque sobe por minha
coluna, eu rapidamente sinto vontade de vomitar todas as palavras
que contei sobre ele junto com o suco. Minhas irmãs devem ter
percebido, pois pararam de rir. O frio machuca minhas bochechas
quando vejo os dois cada vez mais perto de onde estamos.
Yuri está gesticulando e gargalhando ao lado de Pavlos, o
mundo está prestes a acabar, essa é a única explicação para Kalon
estar no mesmo ambiente que meu amigo, e ainda por cima com
uma expressão tão tranquila. Eu quero morrer exatamente agora,
não me importa se vai doer, minha única vontade é pular nessa
piscina até engasgar com a morte.
— Boa tarde, meninas. — Yuri está sorrindo vitorioso,
enquanto acena para Pavlos e Kalon se aproximarem. — Querida,
por que não me contou que virou amiga de Pavlos? — Isso só pode
ser um pesadelo.
Minha garganta está seca e meu corpo mole. O sol bate tão
forte contra meu rosto que minhas pernas enfraquecem, eu só não
caio porque Melissa e Nimue ficam ao meu lado de forma protetora.
O gosto da decepção e mágoa é tão forte em minha boca que
quero cuspir. Meus olhos se voltam para Kalon, estou tomada pela
descrença. Não acredito que esse homem contou para o meu pai
sobre Pavlos, ele não deixou a porra do momento sequer esfriar,
mal saiu da minha cama e já me apunhalou. Agora entendo o que
aconteceu naquela noite, e seu olhar entrega exatamente isso.
— Arcane mou? — Pavlos bate os cílios em minha direção,
ele tem uma expressão tão amável e inocente que meu peito dói
pela culpa. Eu acabei de destruir sua vida quando falei seu nome
para Kalon.
Não foi por querer, eu estava apenas empolgada com os
últimos momentos que vivi naquela fazenda que me tornei a porra
de uma jovem burra, eu trrouxe ele para esse abismo venenoso e a
minha lista de condenações apenas aumenta.
— Pavlos mou, o que está fazendo aqui? — Eu tomo uma
respiração trêmula, me forçando para me aproximar dele e beijar
seu rosto como estamos acostumados tradicionalmente. Estou
nervosa e ele percebe isso, Pavlos me abraça forte, tomado pela
crença que somos apenas uma família normal.
— Eu e seu pai acabamos nos encontrando recentemente. —
Ele afaga meus cabelos e sorri de lado, agora desviando o rosto
para Melissa e Nimue. — Venham aqui, meninas. — Ele desvia o
olhar intenso que tem sob Melissa. — Yuri soube que viramos
amigos quando levei Paris para uma consulta na clínica onde
Melissa trabalha, inclusive, ele já está bem melhor, obrigada. — Ele
abraça Melissa apertado, seus olhos brilhando com o pequeno
segredo que se espalha sobre nossas cabeças.
Pavlos não conheceu Melissa na clínica. Na verdade, eles se
conheceram em uma viagem que Melissa fez com Yuri. Um grande
alívio libera meu peito ao reconhecer que nosso pai não sabe de
toda a verdade, senão, a abordagem seria totalmente diferente. O
fato deles serem namorados ainda é um segredo, então podemos
fingir até encontrar uma saída para essa teia de aranha.
Eu encaro Kalon, ele é o único que parece reconhecer a
pequena mentira espalhada entre nós. Isso me incomoda e me
deixa confusa. Quero um momento a sós com ele apenas para
estraçalhar seu rosto e ouvir o que ele tem a dizer sobre isso, para
depois estraçalha-lo novamente por ter feito isso.
Kalon me encara tomado por uma inocência carregada de
cinismo, eu desvio o rosto, agora encarando a última pessoa a sair
do carro como uma majestade.
— Kalon, por que não me esperou? — Ela fala, arrumando
seus cabelos escuros. Eu uno minhas sobrancelhas voltando minha
atenção para Kalon, ele está inspecionando meu corpo dos pés a
cabeça.
— Eu estava esperando você terminar a ligação. — Kalon
fala de um jeito doce. — Por isso eu não estava esperando, a
mulher alta e morena caminha em nossa direção, passando sua
mão ao redor do braço de Kalon, segurando seu bíceps.
Um sorriso dança em meus lábios quando eu encaro os dois
de frente. Não acredito que ele também arranjou uma puta depois
de foder comigo. A mulher me encara como se eu fosse uma
assombração.
— Qual o seu nome? — Ela pergunta, abaixando seu óculos
de sol e revelando seus traços perfeitos. Ela com certeza é muito
mais velha que eu.
— Ah, que falta de educação a minha. — Eu dou uma
risadinha debochada, me divertindo muito com seu comportamento
de madame. — Meu nome é Arcane, é um prazer estar na minha
própria casa, obrigada.
Arrumo minha franja para trás, levantando as sobrancelhas
de um jeito engraçado quando a mulher ri suavemente, ainda ao
lado de Kalon.
— Meu nome é Minerva. — Ela pisca. — Pensei que os
rapazes tivessem comentado sobre mim.
— Não que eu lembre. — Meus lábios se repuxam para
baixo, totalmente indiferente à impressão de excelência que ela quer
causar.
— Kalon me falou muito bem de você, Arcane. — Minerva
sorri, olhando para Kalon como se fossem amiguinhos do jardim de
infância. — Eu pensei que você fosse mais velha, ela é uma criança,
Kalon.
— É mesmo? — Eu dou uma gargalhada mais alta, ainda me
divertindo como a boca dele é um túmulo. — Já não posso falar o
mesmo dele. — Kalon apenas me observa como um santo.
— O que aconteceu com seu biquíni? — Merda, essa mulher
tinha que reparar que eu derramei suco?
— Foi um acidente. — Eu encaro seu olhar por meus seios,
então por minha cintura, até voltar para meu rosto. Para quem me
acha uma criança, ela está se comparando muito com meu corpo.
Kalon mantém sua expressão indiferente enquanto analisa
toda a minha existência, eu quero bater em seu rosto e expulsá-lo
da minha vida como uma louca. Primeiro ele entrega a existência de
Pavlos para meu pai e agora trás sua amante pra minha casa?
— Pavlos veio ajudar com os preparativos para o casamento.
— Kalon fala, descobrindo o que está em meus pensamentos. —
Yuri encontrou com ele no porto e contratou sua empresa para
cuidar das bebidas da festa, como são muitos convidados...
Eu dou as costas para ele. Posso estar parecendo uma louca
imatura, mas de forma alguma vou ficar ouvindo as desculpas que
esse homem está usando para manter Pavlos em sua vista. Tudo
isso não passa de um teatro para alimentar sua obsessão doentia.
— Ela é selvagem. — Ouço uma gargalhada vinda de
Minerva.
Eu pego um roupão jogado na espreguiçadeira e caminho até
Nimue e Melissa que estão assistindo papai mostrar a casa para
Pavlos.
— Que porra está acontecendo? — Nimue cochicha, ela está
visivelmente nervosa. — Se papai descobrir, nós estamos mortas.
— Kalon contou para Yuri, não tem outra explicação. — Eu
falo mais baixo, tentando compreender o olhar tenso de Melissa.
Elas sabem que eu deixei escapar o nome dele, mas Melissa
me tranquilizou dizendo que nada iria acontecer. Minha irmã sorri e
acaricia meu ombro.
— Não se preocupe, vamos apenas fingir até descobrirmos
cada detalhe. — Melissa sussurra. — Não vai acontecer nada,
Pavlos e eu combinamos de inventar uma desculpa caso meu pai
descobrisse, aquela desculpa que ele contou. — Ela balança a
cabeça. — Porque eu disse como nosso pai é muito conservador e
bruto, e como não me sentia segura para falar do relacionamento
ainda. — Ela fala mais baixo, percebendo que Kalon e Minerva
estão se aproximando de nós.
Eu abaixo a cabeça, encarando meus pés. Se Pavlos souber
sobre a Alkyóna é como nossa vida gira em torno disso, ele vai nos
odiar para sempre. Não estou preparada para ter o meu melhor
amigo me olhando como o resto das pessoas olham; com nojo e
como se soubessem que meu lugar é no inferno.
— Bem-vinda. — Melissa coloca o seu melhor sorriso e
acena para Minerva. — É um prazer tê-la na nossa casa, meu nome
é Melissa e essa é Nimue. — Ela se apresenta como uma
verdadeira dama, com uma postura e graça que eu nunca vou
possuir.
Eu fui criada em uma prisão, nem falar sem rosnar eu sei.
Kalon devia ter escolhido uma das minhas irmãs para casamento,
ou melhor, essa mulher que ele trouxe. Eu os observo de canto,
analisando a postura feminina e elegante que ela tem, e a forma
como abraça o bíceps de Kalon.
Desvio meu rosto quando sinto os olhos dele em mim,
apenas dou as costas novamente, entrando na casa para trocar de
roupa e saber o que toda essa gente quer aqui.
Quando estou quase dobrando para meu quarto, Yuri surge
com Pavlos, saindo do escritório.
— Foi um prazer, Pavlos. Eu conto com você para uma festa
perfeita.
Meu pai fala de uma forma tão gentil que eu quase me
convenço da sua bondade, que ele é apenas um bilionário influente
e de coração puro, como os jornais comentam sobre seus atos de
caridade à instituições públicas.
Os olhos dos dois se voltam para a figura parada na escada
observando-os.
— E aí está a noiva. — Pavlos entorta os lábios, sorrindo de
um jeito adorável. — Eu tenho que admitir, você tem muita sorte de
entrar na família Somáli. — Ele se aproxima ao lado de Yuri. — Vai
ser tipo da realeza, minha amiga. Muitas mulheres matariam para
estar no seu lugar.
Eu pisco algumas vezes, controlando uma resposta
sarcástica. Mas apenas caminho até eles, mantendo a fachada que
iniciamos. Yuri estende a mão para me abraçar pela lateral
enquanto olhamos para Pavlos.
— Eu já conversei com seu pai sobre todos os detalhes, mas
vamos precisar marcar um dia para a degustação dos vinhos que
vamos servir. — Ele explica sorridente.
— Vai ser um prazer, Pavlos. — Eu aceno com a cabeça.
— Agora eu preciso conversar com o Sr. Somáli sobre a parte
financeira. — Ele faz uma continência com os dois dedos, se
afastando de nós e me deixando sozinha com Yuri.
Meu pai rapidamente afasta seu braço do meu ombro e me
olha de forma arrogante. Ele inspeciona cada traço do meu rosto.
— Kalon me contou sobre você e Pavlos. — Ele diz
pausadamente.
— O que exatamente? — Ergo o rosto, mantendo a
indiferença.
— Que vocês são amantes. — Ele aperta os olhos, em busca
de qualquer fio que me entregue.
Meus lábios se repuxam e eu dou uma gargalhada, penso na
coisa mais engraçada da minha vida para entregar veracidade em
meu tom de voz, meus ombros balançam enquanto Yuri me analisa,
sorrindo torto.
— Como eu poderia ser amante daquele homem? — Eu
aponto por cima do ombro, para a direção que Pavlos saiu. — Eu vi
ele apenas na clínica veterinária, quando levou seu cachorro para
acompanhamento. — Balanço os ombros. — Ele é um cliente de
Melissa.
– Sim, eu sei disso. — Ele avança um passo em minha
direção. — E eu não acredito que ele é o seu amante. — Meu pai
balança a cabeça em concordância, me analisando de uma forma
assustadora. — Você sabe que eu mataria ele, se fosse o caso... —
Diz mais baixo. — Como ele é um simples homem, ninguém vai
sentir falta.
Eu recuo, odiando sua proximidade ameaçadora.
— Ele não é meu amante. — Eu repito. — Deixe o rapaz em
paz, Kalon está apenas obcecado com qualquer homem depois de
ter tirado a minha virgindade. — Eu me sujeito a esse tipo de
humilhação para proteger a vida de Pavlos.
Choque brilha nos olhos de Yuri, ele balança a cabeça como
se tivesse compreendido toda a construção de como a cabeça
masculina funciona, então qualquer resquício de dúvidas sumiu dos
seus olhos.
— Então me explique uma coisa. — Ele cruza os braços. —
Por que você mentiu o nome do homem que ia ajudar Leyla a fugir?
— Yuri inclina a cabeça para o lado.
— Como? — Minha expressão confiante quebra.
– Foi Pavlos quem ia ajudar Leyla a fugir, não alguém
chamado Echo. — Ele sibila. — Você pensou que eu não ia
descobrir que o nome que você me deu era falso? — Meu pai dá
uma gargalhada ríspida, exibindo seu sorriso perfeito e tão parecido
com o meu. — Ah, meu amor... — Ele estala a língua, ainda rindo.
Yuri nunca sorri e agora entendo o porquê; as pessoas o
amariam mesmo ele sendo um monstro. Seu sorriso é a coisa mais
linda que ele já me deu. Eu desvio meu rosto imediatamente, não
gostando de como ele consegue mexer com meu emocional. Quero
amá-lo como pai, mas ele não me dá motivos para isso. Eu sei que
existe tanta coisa em mim que ele entenderia, que ele seria incrível
se deixasse sua brutalidade e demônios de lado, mas ele apenas
não quer.
Às vezes eu tento me lembrar de como ele era comigo na
infância, como me tratava diferente e era carinhoso, mas esses
momentos parecem um fantasma, uma invenção da minha cabeça.
Tudo em mim endurece quando lembro do que ele fez com Theo,
como ele odiou meu irmãozinho e matou ele no jardim.
Um gemido sensível escapa dos meus lábios e Yuri recua
dois passos, como se finalmente estivesse enxergando claramente.
Seu bom humor morreu, qualquer traço de animação e leveza
desapareceu do seu rosto, como se nunca tivesse vindo à tona.
— Agora me diga se estou certo. — Ele arruma seu
sobretudo com tanta vaidade que eu sinto asco. — Pavlos trabalha
secretamente para a família real, ajudando pessoas a fugirem do
mais clandestinamente.
Não há como negar, minha surpresa por ele ter descoberto
tudo isso está estampada em meu rosto.
— Sim, ele faz essas coisas. — Eu sussurro, preocupada que
mais alguém ouça.
— Certo. — Ele balança a cabeça em concordância. — Eu
estive investigando, a ficha dele é totalmente limpa. — Ele balança
as mãos. — Pais mortos, criado pelos avós em uma fazenda, com
uma moral política muito correta e vigorosa, levando-o sempre ao
caminho certo. — Ele inclina a cabeça para o lado. — Um ótimo
patriota grego, eu respeito isso. — Seu dedo gira em minha direção.
— Mas você será castigada por esconder isso de mim, Arcane.
Eu balanço a cabeça em negação, tentando respirar
conforme tento alcança-lo quando começa a subir as escadas
depressa.
— O que você está fazendo? — Eu seguro seu braço quando
ele empurra a porta do meu quarto.
— Me diga. — Ele gira em minha direção, me fazendo parar
de andar. — Por que você mentiu sobre o nome dele se não são
amantes?
— Porque eu estava com medo de você matar um homem
inocente. — Eu balanço a cabeça repetidas vezes em negação. —
Porque quando conheci Pavlos na clínica veterinária, nós viramos
amigos, ele é um rapaz legal. — Sussurro, erguendo minhas mãos
para segurar seu braço.
— Sim, ele é legal. — Yuri rosna, empurrando minhas mãos e
pegando todos os meus livros da pequena estante. Eu congelo, não
compreendendo o que ele está fazendo. — Mas você escondeu
essas informações de mim, merece ser punida. — Ele balança a
cabeça em negação. — Punida para reconhecer que não vai a lugar
algum enquanto age por minhas costas.
— Se você fosse um bom pai, isso não seria necessário. —
Eu tento remover os livros das suas mãos, mas ele se esquiva com
seu corpo grande. — Solte meus livros. — Eu agarro seu ombro.
— Você me deve obediência, você é minha filha. — Ele fala
por cima do ombro.
— Eu não devo nada a você. — Eu esmurro suas costas,
tentando fazê-lo parar. — Você nunca foi um bom pai para mim,
você quem me deve muitas coisas. — Eu falo ofegante, tentando
recuperar a única coisa que posso chamar inteiramente de meu.
Ele para abruptamente nas escadas, girando para me
encarar dos pés à cabeça.
— Nunca, Arcane mou? — Seu olhar é sombrio, cheio de
raiva.
— Nunca. — Eu aponto ao redor, mostrando para toda a casa
em que vivemos. — Não há nenhum resquício do seu amor
espalhado por essa casa. Tudo está no passado, perdido e morto.
— Ótimo. — Ele caminha para trás, balançando a cabeça
com firmeza. — Então aprenda essa lição de uma vez por todas...
— Yuri chuta a porta do seu escritório, jogando todos os meus livros
dentro de uma lata de lixo. — Onde o amor falhou, a disciplina vai
servir.
Isso é tudo que ele diz no momento em que derrama uma
garrafa de whisky dentro da lata, eu observo paralisada quando meu
pai acende um isqueiro e as páginas são decoradas pelas chamas.
— Não... — Um sussurro trêmulo escapa dos meus lábios.
Tem coisas que eu não nasci para compreender, e aparentemente,
tem coisas que ninguém se importa em me contar; como a razão
para esse homem ser tão horrível. — A minha vida inteira...
Queimou tudo... — Eu olho para a lata de lixo sendo consumida,
estalando e virando fumaça dentro do seu escritório.
Eu passei toda a minha vida perdida no escuro, os livros
foram a única fagulha de luz capaz de alimentar essa criança
escondida em meu peito. Foram os livros que me acalentaram, tudo
que eu tinha para me consolar, os únicos amigos e namorados
verdadeiros que entraram em minha vida sem a pretensão de ir
embora. Essa era a minha eternidade, o meu verdadeiro felizes para
sempre. Uma chance de ser eterna e jovem. Agora está tudo
queimando bem diante dos meus olhos, não apenas páginas, mas
cada gargalhada sincera que eu já dei, cada lágrima que eu
derramei, cada suspiro e momentos em que me senti como uma
garota de verdade.
Tudo está virando cinzas diante dos meus olhos. Não deveria
estar doendo tanto, mas está. Essa é uma dor inconsolável, como
se eu tivesse perdido parte da minha identidade, como se eu
estivesse perdida no escuro novamente, mas dessa vez, meus
olhos foram arrancados para garantir que nunca mais vou enxergar.
— Pare com isso, pare! — Eu avanço para a lata de lixo,
apertando as bordas, um gemido choroso sai da minha boca quando
o metal quente queima minha mão.
Yuri apenas assiste com as mãos em seu bolso, como se sua
mente estivesse em outro lugar. Isso é desolador e está me
sufocando. Ninguém no mundo me compreendeu tanto quanto
essas páginas, ninguém no mundo me amou tanto quanto esses
livros, quanto os personagens nessas histórias. Eu me senti sozinha
a vida inteira e só tive eles, sem nenhuma melhor amiga, ninguém
que se importasse em saber o que eu sinto, apenas os livros. Agora
está tudo acabado, tudo morto por causa de uma pessoa
insignificante. Eu enxugo minhas bochechas, olhando para Yuri com
uma raiva soterradora.
Eu quero gritar como uma criança que perdeu o seu
brinquedo favorito, eu quero desaparecer do mundo e encontrar um
lugar só meu, mas continuo paralisada vendo minha vida se tornar
cinzas novamente. O fogo é o principal destruidor de tudo que
envolve a minha existência.
Eu dou as costas para tudo isso, não suportando ver todos os
meus livros queimando lentamente. Saio correndo para fora do
escritório, desejando vomitar toda a minha angústia e gritar a plenos
pulmões toda a minha tristeza. Eu perdi a única coisa que podia
chamar de meu, perdi tudo de mais lindo no meio do meu mundo
cinza.
Eu estou sob susto quando meu corpo esbarra contra algo
sólido e quente.
— O que aconteceu? — É Kalon, suas mãos seguram meu
rosto, me fazendo encará-lo. Seu polegar desliza por minhas
lágrimas com tanto carinho que quero bater nele por isso. — Eu
estava procurando você, o que aconteceu?
— Fique longe de mim. — Eu empurro seu abdômen,
falhando em ser forte.
Eu gemo, tudo isso aconteceu por sua culpa, eu quero fazê-lo
em pedaços e depois fazer o mesmo comigo.
— Arcane. — Ele segura meu pulso com força, não me
deixando escapar. — O que está acontecendo?
— Você estraga tudo o que toca. — Eu aponto o dedo em
sua direção, empurrando seu rosto para longe do meu, assim como
todo seu corpo. — Isso é exatamente o que está acontecendo, você
destruiu mais uma coisa importante para mim, seu egoísta de
merda.
Seu olhar vacila por breves segundos e seus dedos afrouxam
meu pulso, ele está me deixando ir porque sabe que é verdade. Eu
me afasto de forma brusca, olhando para a sombra de Yuri atrás de
mim.
— Deixe-a. — Ele fala suavemente. — É apenas stress,
venha beber whisky comigo e falar sobre Minerva.
Kalon me inspeciona, seu olhar está cheio de preocupação e
algo que machuca meu peito, é saudades e culpa. Eu desvio o
rosto, voltando a subir as escadas e me trancando em meu quarto.
Sento no chão, encarando a estante vazia, não há nenhum livro e
isso me faz soluçar.
Tudo que sobrou foi o maldito papel com o desenho que
Kalon me fez. Eu quero rasgar isso, minhas mãos apertam com
força, mas meu coração dói e eu desisto, deixando o papel em meu
colo e encarando os traços do meu rosto.
— Eu sou tão estúpida. — Cubro meu rosto com as mãos,
tentando controlar meus soluços. — Tão estúpida... — Suspiro,
erguendo o rosto para encarar o teto.
Não sei quanto tempo eu passei nessa posição, chorando e
soluçando silenciosamente, mas eu tive que levantar e tomar um
banho quando Melissa apareceu informando que os outros irmãos
também estavam aqui, junto com Atena.
Minha irmã não entrou no quarto, e eu achei melhor assim,
não quero ver ninguém. Eu passo bastante tempo penteando meus
cabelos em frente ao espelho, ignorando as gargalhadas e a música
animada que toca lá embaixo.
Meu mundo acabou de ser destruído e eles estão festejando,
meu coração endurece em meu peito, me fazendo imaginar
inúmeros cenários onde faço Kalon pagar pelo que causou.
Eu saio para fora depois de meia hora, arrumo meu short e
camiseta branca, descendo as escadas para ser recebida pelo
sorriso amável de Atena.
— Aqui está você. — Eu engulo todo o meu sofrimento e
aceno para ela, beijando suas bochechas como se a minha vida
fosse incrível, como se eu estivesse radiante com todas as escolhas
que tomaram por mim.
— Seja bem-vinda, Atena mou. — Eu bato os cílios, mudando
meu olhar para Minerva que se aproxima como a porra de uma
rainha.
Ela está sorrindo para mim, eu devolvo o sorriso e dou
espaço para ela ficar ao lado de Atena.
— Agora que você será uma Somáli, deve se acostumar com
as visitas e os presentes. — Ela aponta para o sofá onde há vários
embrulhos. — Eu não tive a chance de vir para a festa de noivado,
então espero que aceite agora.
— Obrigada, Minerva. — Eu sorrio para ela, me aproximando
para beijar sua bochecha. — Não precisava se preocupar, mas eu
realmente adoro presentes, então. — Dou uma risadinha, fingindo
tão bem que até me convenço comigo mesma.
Eu olho ao redor com rapidez, vendo Kol conversando com
Rajá em um lugar afastado de todos. Os dois estão bebendo
enquanto cuidam de várias carnes para assar, a interação dos dois
é engraçada, mas fica melhor ainda quando percebo o que estão
discutindo.
— Eu estava assistindo a uma palestra nos últimos dias com
um psicólogo muito famoso. Ele explicou que existem países onde
as máfias são muito mal estabelecidas. — Kol segura em seu
ombro. — Isso porque eles não tem como base o principal princípio
da máfia que é a família. — Eu adoro a explicação dele, ele diz que
a máfia é o seguinte, eu e você somos irmãos e nós temos uma
família, em algum momento os interesses do estado, que é uma
entidade inexistente desde o ponto de vista do ser.
— Explique melhor. — Rajá cruza os braços, dando uma
risadinha.
— Ele, o estado, é uma entidade desde o ponto de vista
jurídico, geográfico. — Ele gesticula. — Mas no cotidiano o estado
não tem uma compacidade de sangue como a família tem. — De
alguma forma, o diálogo entre os dois faz muito sentido. — A família
é mais real do que o estado.
Eu procuro por Pavlos e o encontro conversando com Kalon
e Nimue, os dois estão perdidos em algum assunto profundo, eu
desisto de compreender o que essa família se tornou. Está tudo pior
cada vez que olho ao redor. Eu agradeço em um suspiro quando
Melissa vem tirar Minerva e Atena para longe de mim, minha irmã é
muito atenciosa, ela acabou percebendo que não estou com humor
para socializar com madames.
— Se por um motivo justo ou injusto, a família considerar as
regras estabelecidas por essa entidade abstrata como algo contra
os interesses da família, forma-se, então, a máfia. — Kol continua,
ele fala com tanta inteligência e eloquência que me perco em suas
conclusões. — Nós temos leis próprias que seguimos, a família vai
distribuindo proteção, carinho, apoio, recurso financeiros, conforme
a família vai ficando nos arredores. — Eu me aproximo deles,
pegando meu copo e estendendo para Rajá me servir um pouco do
que ele está bebendo. Seus olhos se desviam para mim, ele sorri e
então derrama a bebida forte para eu beber. Kol pisca para mim,
continuando seu raciocínio. — Isso é a formação da máfia, o que
muitas vezes faz as pessoas pensarem na Itália logo de cara.
— Mas existem outras máfias que se formam em torno de
interesses econômicos. — Eu falo baixinho, dando um gole
necessitado em minha bebida amarga. Eu preciso de qualquer coisa
para me distrair.
Faço uma careta, isso é puro álcool. Rajá ergue uma
sobrancelha e me entrega um papel toalha, me ajudando a limpar
meus dedos quando cuspi o líquido.
— Beba devagar, menina. — Ele estala a língua.
— Exatamente. — Kol aponta em minha direção. — É criado
uma estrutura empresarial financeira, um sistema bancário e
econômico, geração de emprego, sistema de proteção e garantias.
— Ele cita, me olhando cheio de entusiasmo para manter o assunto.
— Veja a melhor parte, analisando toda a palestra do psicólogo,
cheguei a conclusão de que nós temos os dois lados da moeda. —
Ele ergue a mão. — Um vínculo familiar forte e interesses
econômicos mais fortes ainda. Temos o melhor dos dois tipos de
máfias.
— Eu acho que a pista é que diálogos são fundamentais para
fundar todo esse tipo de coisa. — Rajá fica mais perto de nós,
colocando mais bebida no copo de cada um. — Vamos fazer uma
análise sobre as outras famílias, são elas quem dão toda uma
definição para o Estado. — Ele pontua. — Nos estados europeus é
muito mais fácil analisar isso porque existe uma coisa chamada
nobreza, todo mundo conhece as famílias nobiliárquicas.
— Já na África, existem várias tribos, e em cada uma a noção
de família é muito mais diferente do que a nossa. — Kol continua. —
Na tribo, o chefe é pai de todo mundo, às vezes literalmente. Foi
exatamente isso que debatemos com ele.
— Os estados Árabes, por exemplo, são muito semelhantes
entre si porque vivem em um sistema teocrático. — Eu continuo. —
Onde são todos filhos do profeta Maomé, quando você olha para
alguém, vai perceber de cara essa característica. — Eu explico com
mais clareza, observando os dois. — A Alkyóna tem um pouco
dessa doutrina religiosa, então são três coisas que nos definem;
família, interesses econômicos e religião.
De qualquer forma, também temos relações com a realeza e
algumas tribos. Uma grande família, com vários fundamentos e uma
estabilidade inquebrável. Esse assunto apenas prova que a Alkyóna
é uma coisa difícil de destruir, de vencer e fazer com que
desapareça. Eles estão enraizados em tudo.
Rajá me olha cheio de entusiasmo e ergue sua mão para eu
bater, como se tivéssemos acabado de vencer a melhor partida de
nossas vidas. Eu dou risada, batendo em sua mão e bebendo um
gole demorado da minha bebida.
— Kol é ateu. — Rajá responde tranquilamente. — Mas eu
gosto como chegamos na mesma conclusão, nós conseguimos
mascarar muito bem a Alkyóna, tendo como fundamento todas
essas coisas que são importantes para os outros países.
Eu balanço a cabeça em concordância, olhando ao redor
para ver onde minhas irmãs estão, mas me surpreendo ao sentir os
olhos de Kalon em mim. Ele está sentado sozinho, sem ninguém por
perto, e toda a sua atenção está voltada para mim.
Eu me pergunto por quanto tempo ele estava ali, o tormento
sobe por minha coluna e eu desvio os olhos, focando minha atenção
em qualquer outra coisa.
— Vamos comer, meninos? — Eu pergunto, vendo que
algumas carnes já estão no ponto e tem muita comida na mesa, do
outro lado da varanda.
— Eu estou morrendo de fome. — Kol resmunga, voltando
para sua quietude sombria e caminhando até um prato de salada
grega. Eu sigo atrás dele, terminando de beber o restante da minha
bebida e sentando em uma cadeira.
— Você quer cerveja? — Eu ofereço, buscando razões para
me embriagar e não precisar lidar com a realidade ao meu redor.
— Apenas um pouco, bonequinha. — Kol sorri, fazendo seu
prato. — Eu não bebo muito.
Está tocando a música El Efecto do Rauw Alejandro, eu me
divirto vendo Nimue tentando ensinar Ajax a dançar, ele gira seu
corpo e os dois rapidamente ficam lado a lado, imitando um ao
outro. Eu suspiro, ainda sentindo os olhos de Kalon sob mim, mas
ignoro essa queimação que sobe por minhas veias.
Eu abro minha cerveja, bebendo longos goles e me
inclinando para trás, me espreguiçando em minha cadeira. Quando
estou prestes a abrir uma segunda, uma sombra alta e assustadora
para bem ao meu lado, ofuscando os raios de sol.
Kalon está de braços cruzados, eu encaro seus pés, vendo
que ele está usando all-star, meias altas e uma bermuda preta, sua
camisa branca é frouxa. Droga, eu adoro seu estilo atraente quando
não está usando ternos claros.
— O que você quer? — Pergunto, desviando meu rosto para
bebericar a borda da minha latinha.
— Você precisa comer alguma coisa. — Ele inclina a cabeça
para o lado, tentando me observar melhor. — Você já bebeu demais,
o que acha de comer um pouco de arroz e salada grega?
— Você pode apenas me deixar em paz? — Eu encaro seu
rosto com indiferença. — Faça de conta que eu não estou aqui.
Kalon aperta os lábios, ele me observa com profundidade e
coloca as mãos na cintura, olhando ao redor com atenção.
— Levante-se. — Ele ordena.
— Como é? — Eu encaro seu rosto.
— Levante-se, eu quero sentar aí. — Só o que faltava era ele
roubar o lugar em que estou sentada.
— Fala sério. — Reviro os olhos, levantando para sair até a
cozinha onde Melissa está com as outras, mas Kalon puxa minha
cintura, me fazendo cair de bunda em seu colo. — Kalon, o que
você está fazendo? — Eu tento retirar sua mão que está abraçada
ao redor da minha barriga.
Ele me ignora, eu me contorço, quase escapando, mas sua
mão firme aperta minha coxa e me mantém em seu colo.
— Fique quietinha, Arcane. — Eu afundo, fumegando de
raiva. — Você só vai sair daqui quando comer, meu amor. — Ele
beija meu ombro, eu me esquivo como se ele estivesse me
machucando. Não quero falar com ele, não quero seus beijos e seu
tratamento falso. Não quero nada disso depois do que ele fez.
— Me deixe ir, Kalon. — Eu sibilo, virando meu rosto para
encarar o seu. — Você fodeu comigo apenas para me usar, você me
manipulou para descobrir sobre Pavlos e veja onde estamos agora.
— Nada disso. — Ele balança a cabeça, me olhando como se
estivesse ofendido com minhas palavras. — Eu não usei você, meu
amor.
— Pois eu me sinto exatamente assim. — Rosno contra seu
rosto. — Se você queria apenas brincar comigo, prepare-se, vai ter
volta.
Kalon esmorece quando eu cruzo meus braços, ele parece
exausto fisicamente e apenas vira seu rosto para encarar qualquer
coisa.
— Eu pedi para você deixar Pavlos em paz, eu pedi para
você me prometer que não iria atrás dele. — Eu continuo falando,
dessa vez mais baixo. — Veja a situação que você causou.
— Pavlos está seguro. — Ele sussurra. — Eu não fiz nada
disso, Arcane. Eu não pedi para Yuri fazer nada disso, ele fez
porque quis. — Pena que eu não acredito em nenhuma palavra que
esse homem diz.
— Ele fez porque você disse a ele sobre Pavlos. — Eu
encaro seu rosto. — Toda aquela discussão na sua casa, tudo
aquilo foi por causa dele, não foi?
— Não. — Ele desvia o rosto, olhando para seus irmãos
jogando sinuca. — Aquela discussão não foi por causa de Pavlos, e
de qualquer forma, seu pai iria descobrir sobre quem foi a pessoa
que você pediu para tirar Leyla do país. — Ele bate os cílios, me
observando. — Você deu um nome falso para ele, esse foi o seu
erro.
Eu fico em silêncio, me odiando por toda essa situação em
que me envolvi. Isso tudo aconteceu porque eu decidi fazer sexo
com ele, ele traiu minha confiança quando eu estava disposta a dá-
la.
— E aquela mulher? — Eu olho na direção da cozinha. — Ela
é sua amante?
— Você acha que eu consigo foder com alguém quando só
penso em você? — Seus dedos brincam com minha coxa, fazendo
desenhos demorados enquanto me olha. — Você sentiu minha
falta? Como está se sentindo? — Eu aperto minhas pernas,
tentando afastar sua mão de me tocar lá.
— Você é mentiroso, Kalon. — Eu sussurro. — Você pensa
apenas em si mesmo, me enganou porque ficou cego com a porra
da sua obsessão doentia. Eu não acredito em nenhuma palavra que
você diz. — Eu aproximo meu rosto para sussurrar contra sua boca.
— Se meu pai machucar Pavlos, eu acabo com você duas vezes.
Ele me olha com mágoa, sua atenção consumindo meu rosto
até que seus olhos se voltam para Pavlos conversando com meu
pai.
— Eu jamais machucaria Pavlos. — Ele sussurra, me
arrancando uma gargalhada amarga. — Eu estou falando sério,
jamais machucaria alguém que você se importa. Eu não quero você
triste.
— Então, por que você disse ao meu pai sobre ele? — Eu
sibilo, tentando me controlar para não gritar.
— Porque eu precisava que seu pai fizesse uma coisa por
mim, mas ele não fez. — Ele acaricia minha barriga lentamente.
— Então você estava me usando. — Eu balanço a cabeça
em negação. — Isso está ficando cada vez pior, então é melhor
você calar a boca antes que eu faça um escândalo. — Ameaço,
deixando claro que sou capaz de tudo para sair do seu colo e ir para
bem longe da sua presença.
— Tudo bem, teremos tempo para conversar sobre isso
depois. Eu prometo. — Ele beija minha bochecha de forma
demorada, suspirando contra minha pele. — Agora você precisa
comer. — Eu o ignoro, tentando voltar a beber.
Kalon retira a lata de cerveja da minha mão e muda sua
expressão para uma carranca autoritária. Eu sinto raiva do seu
olhar, da forma como ele tenta me manter por perto depois do que
fez, eu perdi todos os meus livros por sua causa. Perdi a minha vida
inteira que estava guardada naquelas páginas. Tudo por culpa do
seu ego.
Meu olhar muda para uma fatia de bolo que ele desliza em
minha direção, completamente recheado de chocolate, ele lambe o
dedo indicador e me entrega o garfo.
— Coma ao menos isso. — Ele mantém sua voz carinhosa.
— Não é bom passar o dia bebendo apenas álcool. — Ele aponta
para a latinha pela metade.
— Álcool é a única forma que vou conseguir tolerar você. —
Sibilo, pegando o garfo para comer o maldito bolo.
Pelo menos ele está delicioso e eu passo os próximos
minutos ignorando o olhar que Kalon têm sobre mim. Minha atenção
se volta para Nimue e Ajax ainda dançando reggaeton, uma risada
animada sai da minha boca e eu olho para onde Kol está assistindo
com imenso interesse na dança.
— Kalon, você quer whisky? — Olho para onde Minerva
surge com uma garrafa.
Faço uma careta para o copo que ela coloca bem na minha
frente, meu estômago embrulha ao lembrar da noite em que me
forçaram a beber isso.
— Não, querida. — Ele balança a mão de forma gentil. — Por
favor, coloque em outro lugar. — Ele continua falando, como se
conhecesse a minha aversão. — Aproveite e leve toda a cerveja e
tequila.
— Está bem, depois venha jogar sinuca comigo. — Minerva
me observa enquanto retira as latas de cerveja para o outro lado da
mesa.
— Claro que sim, estou apenas esperando Arcane terminar
seu bolo. — Kalon responde, lhe entregando um sorriso lindo.
Eu abandono meu bolo pela metade e foco minha atenção na
minha irmã dançando. Não entendo porque isso me incomodou, já
que eu deveria estar feliz por finalmente poder me livrar dele.
— Acho que sua amante quer sua atenção. — Eu cochicho,
girando meu corpo para ficar de frente para Kalon. — Por que não
me deixa em paz e vai logo com ela?
— Minha amante é você, então você quer minha atenção? —
Ele esfrega a ponta do seu nariz no meu, quase beijando minha
boca. — Podemos fugir para o seu quarto e brincar um pouco.
Seus dedos deslizam pela minha barriga, acariciando minha
pele por baixo da camiseta. Eu estremeço, empurrando sua mão
para longe.
— Meu pai queimou todos os meus livros por sua causa,
você trouxe Pavlos para o meio disso tudo e eu nunca vou perdoá-lo
por isso. — Sibilo, tentando desviar meu rosto quando ele segura
meu queixo.
— Pavlos. — Ele sibila, raiva brilhando em seus olhos. —
Esse homem ainda consegue ser o assunto entre nós, não é? — Ele
ergue uma sobrancelha.
— Não seja por isso. — Eu coloco um sorriso travesso nos
lábios. — Vamos falar de Minerva, então. — Aproximo meu rosto
para mais perto do seu. — Se você der o meu pau para ela,
considere-se um homem morto.
Imito seu tom de voz autoritário ao falar com propriedade
sobre a minha boceta. Kalon dá uma gargalhada amável e rouca, ao
ponto dos seus olhos se apartarem.
— Você quis dizer nosso pau. — Ele fala mais baixo, ainda
rindo de um jeito amável. — Não se preocupe, eu não vou usar
nosso pau com ela, meu amor. — Ele pisca, deixando um beijo
estalado em minha bochecha.
— Eu não me importo, estava apenas usando suas palavras
para mostrar como você soa ridículo o tempo inteiro. — Resmungo,
tentando me esquivar do aperto dos seus dedos em minha
bochecha.
— Eu entendo. — Ele grunhe, ainda beijando minha pele
como se fosse a melhor coisa da sua vida. — Sua boca está suja de
chocolate. — Ele sussurra, deslizando sua língua lentamente,
apenas a ponta dela, para lamber as marcas de chocolate em meus
lábios.
Eu estremeço, gostando da sua boca tão perto da minha, ao
mesmo tempo em que ainda sinto uma raiva fumegante por ele.
— Se você colocar chocolate na sua boceta, eu também vou
lamber. — Kalon afasta seu rosto, eu o observo com atenção,
piscando algumas vezes.
— Saiu? — Pergunto baixo, ignorando suas últimas palavras
que me causaram um formigamento por todo o meu corpo.
— Sim, docinho. — Ele entorta os lábios.
— Eu quero dançar. — Afasto meu rosto, me erguendo
quando ele finalmente libera minha cintura do seu toque. — Vá jogar
sinuca com sua amiga. — Encaro seu colo, analisando o volume
contra sua bermuda preta. — Eu vou me divertir com um dos seus
irmãos.
Eu caminho para longe dele, ainda sentindo seu olhar
queimar em minhas costas quando chego perto de Kol.
— Você quer mais cerveja? — Ele oferece assim que
percebe minha presença.
— Não quero. Acho que você está muito deslocado, vamos
dançar. — Eu balanço a cabeça em negação, segurando sua mão e
puxando para o espaço onde Nimue está dançando com Ajax.
— Acontece que eu não sei dançar. — Ele fala indiferente,
com uma carranca tomando seu rosto. — Não como esse imbecil
faz. — Ele aponta com o queixo para Ajax que está fazendo a
melhor performance da sua vida ao lado de Nimue.
Eu dou risada, balançando meu quadril e rebolando ao som
de El Efecto, já que essa música se repetiu. Ergo minhas mãos,
invadindo um pouco do espaço de Kol para lhe ajudar com seus
movimentos.
— Desse jeito, está vendo? — Falo por cima do ombro,
recebendo seu olhar cheio de surpresa.
— Que bela malemolência. — Ele fala da forma mais
descarada, me arrancando uma gargalhada alta.
— Sua vez. — Eu atiro a cabeça em negação, entrelaçando
meus braços em seu ombro, mas ele é muito mais alto do que Kalon
e isso se tornou uma missão impossível.
— Ah, essa eu sei dançar muito bem. — Suas mãos agarram
minha cintura e ele me puxa para ficar em cima dos seus pés,
balançando de um jeito animado quando começa a tocar Hit The
Road Jack.
— Isso é tão legal. — Eu dou risada, tentando levantar
minhas pernas quando ele gira muito rápido, me deixando tonta. —
Hit the road, Jack. And don’t come back no more. — Eu balanço o
quadril, Kol balança sua perna como se estivesse preso nos anos
90, fazendo uma performance tão exagerada que eu dou um
gritinho.
Ele me gira, fingindo estar balançando um guarda-chuva
enquanto balança seus braços e suas pernas.
Eu tenho quase certeza que essa dança é chamada de “The
Jack and Jill” onde o homem é o líder e a mulher segue seus
passos. Essa é uma dança muito popular nos Estados Unidos,
particularmente no estado do Texas.
Eu dou um pulinho animado, batendo minhas mãos para o
seu show. Ele sorri, girando e estendendo a mão para mim.
— Venha, sua vez de fazer igual. — Ele me puxa, me
fazendo balançar o quadril e alguns passos com os pés.
— Onde você aprendeu a dançar essa música tão bem? —
Eu pergunto ofegante, sendo apoiada por seu braço forte quando o
álcool faz um pouco de efeito em meu corpo.
— Com Kalon. — Ele responde, dividindo seu copo de
cerveja comigo. — Ele adorava dançar essa música quando
pequeno, principalmente em todos os seus aniversários.
— Sério? Que legal! — Eu sorri largo, procurando por Kalon
que está jogando sinuca.
Eu me surpreendo quando sinto seus olhos em mim. Ele tem
um sorriso torto nos lábios, como se estivesse se divertindo muito
vendo o que eu acabei de fazer ao lado do seu irmão. Seus olhos
estão brilhando com tanta intensidade que eu perco o fôlego.
— Por que não vai dançar com ele agora? — Kol questiona,
retirando o copo das minhas mãos para mais um gole.
— Não, eu não gosto dele. — Balanço a cabeça em negação.
— E além disso, ele está dando atenção para ela.
— Você só pode gostar de alguém se conviver com essa
pessoa por pelo menos alguns dias. – Kol me olha cheio de graça.
— Além disso, Minerva é casada. — Ele dá risada. — Ela é uma
amiga da família, ajudou Kalon em um momento difícil, apenas isso.
Seu esposo está trabalhando com papai, ele cresceu com Kalon na
escola para membros da Alkyóna, e agora ele e Minerva têm um
bebê de um ano.
Kol explica, com as mãos em seu bolso enquanto esclarece
cada dúvida que eu tinha cogitado. Alívio libera meu peito, subindo
por minha coluna, eu não entendo porque estava tão incomodada
com isso. Mas existe outra parte em mim que está furiosa por ser
apenas isso, porque eu gostaria de motivos concretos para odiar
esse homem, e também encontrar uma escapatória para esse
casamento arranjado.
Kalon se surpreende quando sua mãe surge atrás dele,
cantando parabéns com um enorme bolo em mãos cheio de velas
acesas. Eu olho para Kol e todo mundo que começou a bater
palmas, cantando parabéns para Kalon. Eu dou risada, por isso
estava tocando a música, hoje é o seu aniversário.
Eu apenas assisto todos os seus irmãos se aproximando e
beijando sua bochecha, cantando para ele e segurando o bolo para
que ele sopre as velas.
— Faça um pedido grande. — Rajá diz com animação. —
Algo que venha não apenas para você, mas para todos os seus
irmãos.
— Deixe de ser egoísta, o pedido é só dele. — Kol balança a
cabeça, dando uma risadinha amável.
— Eu já tenho tudo o que preciso. — Kalon arruma seu
óculos de sol para trás, olhando para sua mãe e em seguida me
procurando ao lado das meninas. Ele me lança uma piscadela antes
de puxar Ajax para um abraço. — Eu acho que o meu querido
irmãozinho pode fazer o meu pedido esse ano também, o que acha?
— Ele oferece, fazendo Ajax revirar os olhos.
— Todo ano eu faço o pedido por você, tente outra pessoa.
— Ele dá risada. — Estou começando a acreditar que nada se
realiza.
— Claro que se realiza, daquela vez você ganhou um iate. —
Kol cruza os braços.
— Não conta, eu contei para vocês e Rajá comprou. — Ele
entorta os lábios. Rajá limpa a garganta, fazendo de conta que não
ouviu nada.
— Meu amor. — Kalon estende a mão em minha direção. —
Venha aqui, acho que você pode fazer por mim. — Eu fico tensa e
caminho para trás, mas Melissa me empurra para ir até onde ele
está.
— Você tem certeza? — Eu pergunto quando ele me abraça
pela cintura.
— Totalmente. — Kalon responde, me ajudando a ficar de
frente para o bolo. — Pense em um bom pedido para realizarmos
mais tarde. — Ele sussurra mais baixo, eu me inclino para frente,
pensando em inúmeras coisas e ao mesmo tempo em nada.
Eu só não quero me sentir sozinha como me sinto agora,
mesmo rodeada por tantas pessoas. O aniversário não é meu, mas
para Kalon o dia parece ser da mesma forma que para mim, um
pouco triste e estranho, como se os eventos não fizessem tanto
sentido, como se estivesse faltando alguma coisa que jamais pode
ser preenchido, e caso aconteça, será um insulto contra esse vazio
que passou tanto tempo aqui que já faz parte da minha identidade.
Eu gostaria que a vida fosse mais fácil e leve, mas está
sendo sombria e pavorosa.
Todos estão me olhando cheios de expectativa para soprar
logo as velas. Eu fecho meus olhos, desejando que fique tudo bem,
e derramo todo o meu fôlego para apagar as velas. Observo uma
por uma se apagando, até que todos batem palmas e eu recebo um
grande beijo em minha bochecha. Um sorriso tímido dança em
meus lábios e eu viro meu corpo de frente para Kalon quando Atena
decide distribuir os pedaços de bolo.
— Então primeiro de agosto é o seu aniversário? — Eu dou
risada, agora compreendendo porque todo mundo está reunido. —
Se você tivesse me dito com antecedência, eu deixaria a raiva e a
mágoa de lado para te dar um presente.
— Eu já estou velho, presentes são para os mais novos. —
Ele sorri. — Isso é para os entusiastas, os que enxergam os
aniversários como um ano a mais e não a menos.
— O que posso fazer para ser um feliz aniversário? —
Seguro seu rosto. — Trinta e três anos, não é? Já consigo ver os
fios brancos. — Provoco, arrancando um grunhido dele.
— Dance comigo, eu peço isso desde a noite do nosso
noivado. Ainda te espero. — Ele fala mais baixo, aproximando seu
rosto do meu. Algo amolece meu peito ao ouvir seu pedido, eu
balanço a cabeça em concordância, puxando seu corpo para um
lugar mais espaçoso e entrelaçando minhas mãos ao redor do seu
ombro.
Começo a balançar meu quadril, estremecendo com seu
toque profundo por minhas costas, me puxando para tão perto que
meu peito explode, sendo consumido por tantas emoções que não
consigo encontrar as palavras certas para descrever.
Seu cheiro me deixa trêmula, eu pisco algumas vezes,
sentindo sua bochecha contra a minha enquanto ele guia meus
passos pelo gramado confortável.
— Você está feliz? — Eu sussurro. — Você costuma ter
aniversários felizes?
— Não, nenhum aniversário foi totalmente feliz. — Ele
balança a cabeça em negação. — Acho que os filmes romantizam
muito essas coisas, eu compreendo que existem pessoas que
realmente tem um aniversário feliz, planejam, chamam todos os
amigos, cada um está lá para comemorar de todo o coração esse
momento. — Ele olha ao redor, observando as pessoas comendo
bolo enquanto falamos. — Mas isso é para pessoas perfeitas, que
se amam, que estão felizes consigo mesmas.
— E como são os aniversários para você? — Eu aproximo
meu rosto, esfregando meu nariz no seu enquanto ouço cada
palavra.
— Solitário, mesmo estando rodeado de pessoas. — Ele
balança os ombros. — Solitário porque eu não tenho o luxo de olhar
para dentro do meu peito e sentir que estou no caminho certo,
porque já tenho trinta e três e ainda não me conheço totalmente. —
Seus olhos me observam. — Para o que eu fui feito, o que mereço e
se poderia ter feito algo diferente. Ainda estou tentando lidar com a
minha existência e os aniversários me trazem uma profunda
reflexão sobre isso.
— Você não recebe presentes? — Eu inclino a cabeça para o
lado.
— Não muito. — Ele balança os ombros. — Não faço muita
questão disso, eu já tenho tudo que preciso. — Seus cílios piscam
rapidamente, e seus olhos estão brilhando de uma forma
melancólica. Ele engole em seco e olha ao redor mais uma vez. —
Meus irmãos são os únicos que aparecem, meu pai nunca esteve
presente em minha vida, e todos os anos eu continuo me sentindo
da mesma forma. — Seu olhar é pesado quando descansa em meu
rosto. — Mas eu fiquei muito feliz vendo você dançar com Kol.
Eu dou risada, mas paro de repente quando o som da sua se
mistura à minha. É uma junção boa, me causa arrepios e surpresa.
Nossas risadas se encaixam tão bem que eu fico nervosa.
— Eu sinto muito por seus livros. — Ele sussurra, encostando
sua testa na minha. Seus olhos se fecham e ele balança a cabeça
devagar. — Sinto muito mesmo, amor. — Meus olhos ficam
marejados, ninguém nunca disse que sente muito por algo que me
fez, e isso me deixa sensível.
— Eu também sinto muito. — Falo baixo. Eu sinto muito por
tanta coisa que seria um desastre universal abrir a boca para citar
cada um deles. — Me diga seu livro favorito para eu ler. — Peço
quando ele me gira, trazendo meu corpo de volta para se encaixar
ao seu.
— Não é um livro. — Ele estala a língua. — É uma poesia
que eu li quando estava explorando a biblioteca da escola, desde
então eu guardei na mente. — Ele limpa a garganta. — Que ouvir?
— Sim, como começa? — Eu acaricio sua nuca, trazendo seu
rosto para mais perto na intenção de ouvir seus sussurros poéticos.
— Se fosses louca por mim? — Ele começa, me olhando
como se estivesse contando um segredo. — Ah, eu corria na praia,
subia na pedra mais alta. Altivo e parado vendo o mundo pousado
aos meus pés. — Ele esfrega seu nariz no meu, me causando
arrepios. — Porque não me dizes, morena, que é louca varrida por
mim? — Ela fala com um sotaque maravilhoso que me arranca uma
gargalhada sincera. Kalon grunhe, deixando um beijo em meu
queixo. — Eu te conto um segredo, eu te levo a boate, eu dou vodka
pra você beber… — Seguro os dois lados do seu rosto. — Teu amor
é tão grande, parece um luar, mas lhe falta a loucura do meu.
Eu fico parada quando ele segura os dois lados do meu rosto,
acariciando minhas bochechas com o polegar, sem desviar sua
atenção para nada além dos meus olhos e meus lábios.
— Olhos doces os teus. — Ele sussurra mais baixo,
controlando toda a minha respiração. — Mas por que tão distantes
de mim? — Sua mão desliza por meus braços, por cada traço do
meu ombro e por minhas costas. — Lindos braços e um colo macio,
mas por que tão ausentes dos meus? — Seus olhos se voltam para
o meu rosto.
— Ah, se fosses louca por mim, Arcane... — Ele aponta o
dedo em minha direção, me fazendo rir alto. Eu balanço a cabeça,
tentando controlar minhas bochechas vermelhas por ele ter
colocado meu nome na poesia. — Eu comprava pipoca, saía
correndo e de repente me colocava a cantar, dançaria convosco um
bailado nervoso e sutil. — Ele ergue minha mão, me girando quando
me puxa para dançar novamente. — Se você fosse louca por mim, a
gente ia ao mercado ao nascer do dia, ia ver o avião levantar… —
Ele suspira, parando de dançar. — Tanta coisa eu fazia se você
fosse louca por mim.
— Com quem você aprendeu a declamar poesias de um jeito
tão lindo? — Eu questiono, estou totalmente hipnotizada com seus
olhos brilhantes e as palavras que saíram da sua boca.
— Foi com Rajá. — Ele balança os ombros. — Desde garoto
eu apenas lia, passava os olhos, mas foi vendo ele declamando que
tive um pouco de coragem para fazer também, mas apenas quando
estou sozinho na biblioteca.
— Rajá não parece esse tipo de pessoa. — Eu balanço a
cabeça, ficando mais impressionada que antes.
— Fique perto dele e verá. — Kalon deixa um beijo estalado
em minha bochecha. — Meu irmão sempre tem uma poesia
guardada para declamar em ocasiões como essa.
Eu sorri largo, olhando na direção onde Rajá está
conversando com seus outros irmãos e Pavlos. Um suspiro sai da
minha boca quando meus olhos se encontram com os de Pavlos e
ele me lança uma piscadela, procurando por Melissa antes de se
virar completamente para conversar com Yuri que se aproxima com
uma garrafa em mãos.
— Está com fome? — Kalon pergunta, olhando na mesma
direção que eu. Sua expressão permanece indiferente enquanto me
analisa com atenção. — Você comeu apenas aquela fatia de bolo,
essa tem framboesa, ou talvez seja melhor alguma coisa salgada.
— Ele aponta para a travessa.
— Você não vai beijar a minha boca? — Eu encaro seu rosto.
— Como? — Ele ergue uma sobrancelha, lambendo o
polegar sujo de açúcar.
— Era para você ter me beijado depois de ter declamado
aquela poesia. — Eu cruzo os braços, escondendo um sorriso.
— Não era, não. — Ele balança a cabeça, sorrindo ao se
aproximar. — Era para você ter feito isso, além disso, é o meu
aniversário. — Ele aponta em minha direção com a colher. — A
iniciativa tem que ser sua, você sabe onde minha boca está.
— De qualquer forma, eu não vou beijar você. — Eu sento
em seu colo quando ele toma o seu lugar na mesa. — Eu estava
apenas te testando, quero mesmo é comer isso aqui. — Coloco uma
framboesa na boca, me deliciando com o sabor.
— Você me dá nos nervos. — Kalon suspira, totalmente
enraivecido. — Sem beijos, então. — Ele revira os olhos, abraçando
minha cintura e concentrando sua atenção na conversa que seus
irmãos conduzem.
Vez ou outra ele abre a boca para que eu coloque um pouco
de bolo, então comemos duas travessas enquanto prestava atenção
nas pessoas. Sua mão o tempo inteiro não para de fazer círculos
demorados em minha cintura, como se isso o deixasse relaxado.
— O que significa essa sua tatuagem, Arcane? — Minerva
pergunta, eu não sabia que ela estava prestando atenção em mim.
Todo meu corpo vibra diante da sua pergunta e eu gaguejo
olhando em sua direção, todos estão me observando agora.
Eu endireito minha postura, ela me encara e sorri como se
estivesse implorando para que eu quebre esse silêncio, eu limpo a
garganta me perguntando como falar com tanta atenção voltada
para mim.
Os dedos de Kalon acariciam meu ombro, cobrindo o
desenho exato que estamos falando. Eu olho para ele, que sorri
cheio de confiança.
— Bom... — Suspiro. — Essa daqui? — Eu aponto para meu
ombro, onde seus olhos estavam.
— Sim, eu achei linda. — Minerva balança a cabeça em
concordância, sorrindo de forma amável.
— Esse é Ícaro. — Começo a falar, deslizando o dedo
indicador pelo traço fino em meu ombro. — Ele era o filho de Dédalo
e é comumente conhecido pela sua tentativa de deixar Creta
voando, tentativa frustrada em uma queda que culminou na sua
morte nas águas do mar Egeu, mais propriamente na parte
conhecida como mar Icário. — Respondo, erguendo os olhos do
meu ombro desnudo para encarar Minerva.
— Eu sei quem é Ícaro, querida. Somos da Grécia. — Ela ri,
ouço minhas irmãs acompanharem Minerva em uma onda de
risadas graciosas. — Quero saber o que significa para você, se não
for muito pessoal. — Aperto os lábios, balançando a cabeça em
repreensão.
— Minha mãe costumava me ensinar histórias sobre
mitologia, e a história de Ícaro foi a que eu mais gostei. — Olho para
o rosto de cada um deles, que me ouvem com profundidade.
No entanto, o único que não me observa é Yuri, ele desviou o
rosto no momento em que mencionei minha mãe. Seu olhar está
perdido em alguma coisa, consumido por pensamentos.
— Eu gostaria de pensar, que enquanto Ícaro caiu, e o quão
longe ele caiu, que ele despencou para as maiores profundezas. —
Volto a falar. — Que o oceano o envolveu não para mantê-lo longe
do céu e de seu pai, mas para arrastá-lo para fundos arenosos.
Para que Ícaro pudesse dizer que voou mais alto e viajou mais
fundo do que qualquer mortal jamais poderia sonhar. — Faço uma
pausa, ainda sorrindo.
— Ninguém fala de Ícaro depois da queda, sua jornada
termina quando seu pai o perde de vista, quando seu corpo bate na
água e abafa seus gritos. — Suspiro. — Mas e se Ícaro não tivesse
morrido? Por que a queda mataria Ícaro quando ele voou tão alto
para tocar a carruagem de um deus? Eu gosto, porque Ícaro voou
para ser livre, voou porque por muito tempo esteve enjaulado no
subsolo, sem sol, sem ar salgado. Havia apenas escuridão no
labirinto e, finalmente, Ícaro estava livre. E então ele voou, e voou,
diferente de qualquer mortal antes.
Encaro os olhos de Minerva, ela sorri enquanto me ouve,
depois balança a cabeça com delicadeza.
— Então é isso que significa para mim, a liberdade. — Ou a
falta dela, penso comigo mesma.
Volto a atenção para a minha comida, mas tenho a amarga
necessidade de encarar Kalon, ele está me observando com
atenção como se tivesse minha alma em sua boca para ser beijada.
Sua expressão é a mais tranquila, eu nunca o vi dessa maneira.
Aperto os olhos quando sinto a intensidade disso me agredir, esse
homem é selvagem e perfeito ao ponto de doer em mim.
No momento em que eu vou desviar meus olhos, como fiz
nas últimas vezes, eu encaro seus lábios, bem quando seu sussurro
ultrapassa a conversa animada dos outros e eu não ouço sequer a
batalha aqui dentro do peito. Tudo se faz silêncio quando ele diz;
— Ou a falta de liberdade. — Como se me conhecesse,
exatamente as palavras que pensei, e eu quero beijá-lo por
conseguir me ler tão fácil.
Eu sinto como se pela primeira vez eu estivesse sendo vista
de verdade. Suas palavras soam como se ele tivesse despido não
só meu corpo, não apenas por atração e desejo ardente, mas como
se quisesse cavar até minha alma e encontrar meus segredos.
— Quero ir para meu quarto. — Sussurro, me sentindo
estranha com isso dentro de mim.
Não quero me sentir confortável com ele, eu não mereço o
conforto e não posso me render a esse homem, mas meu Deus,
como é difícil resistir. Eu posso estar pecando bem agora, indo
contra tudo que me forço a acreditar, sendo contraditória pra caralho
comigo mesma, mas guardo suas palavras em meu íntimo porque
preciso delas, mesmo sabendo que posso me arrepender depois.
25. VOLTA, JERUSALÉM
“Eu escolho te amar em solidão,
porque em solidão, mais ninguém te tem senão eu. ”
— MEVLANA.

Agora eu me sinto completamente nua diante dos seus olhos


prestativos e não sei como reagir, levo a mão ao peito com lentidão
quando sinto meu coração bater forte demais, eu tenho medo que
meu peito se rasgue bem aqui.
— Não se sente bem? — Kalon sussurra, checando minha
temperatura ao perceber que estou mole. — O que foi?
— Eu me sinto bêbada, minha cabeça está girando. —
Balanço a cabeça em negação, tentando me esquivar da névoa
profunda e vulnerável que dança ao nosso redor. – Me deixe sair do
seu colo.
— Tudo bem, acho que você precisa de um banho para
melhorar. — Kalon beija minha testa, fazendo minha cabeça deitar
em seu ombro quando se ergue, me impedindo de sair por conta
própria.
— Eu levo você comigo. — Ele caminha com cuidado para
dentro de casa. — Me diga no que você está pensando, está com
uma expressão tão distante.
— Você quer sexo como presente de aniversário? — Eu
sussurro, envolvendo seu pescoço e ficando mais perto do seu
rosto. — É nisso que estou pensando.
— Porra, então você está muito bêbada. — Ele ri, me
observando enquanto sobe as escadas. — Eu quero apenas você
bem como presente de aniversário.
— Mas não quer sexo comigo? — Minha expressão murcha.
— Eu até me preparei para uma segunda vez, mas isso foi antes de
descobrir que você é um babaca.
— Eu não sou um babaca. — Ele faz uma careta. — Já
percebeu que sua língua fica muito solta quando está bêbada?
— Sim, e eu estranhamente começo a achar você mais
gostoso do que deveria. — Aperto seu bíceps, olhando para seu
rosto. — Você deixou Minerva ficar agarrada com isso aqui. — Eu
resmungo. — Você acharia legal um homem apalpando minha
bunda?
— Nem fodendo. — Ele rosna contra meu rosto, apertando
sua testa na minha. — Pare com suas metáforas mortais.
— Mas foi exatamente assim que eu me senti quando vi
aquela mulher tocando no que é meu. — Eu resmungo no mesmo
tom, achando muito divertido a forma como ele fica tão zangado
quando se trata de ciúmes.
— Então você assume que sou seu? — Ele ergue uma
sobrancelha.
— Óbvio. — Eu balanço a cabeça. — Não lembra que eu
marquei meu território no dia do nosso noivado? Pois então,
ninguém toca no que é meu, mesmo que seja provisório. — Falo
pausadamente.
— Provisório? — Kalon me coloca no chão com tanta rapidez
que eu me assusto, tentando me segurar em meus pés. — Você
acha que pode virar minha dona e um belo dia vai acordar e decidir
que não quer continuar? — Ele aperta os lábios. — Eu lamento,
meu bem, mas na minha terra não funciona assim.
— É isso que os donos fazem, sabia? Na minha terra as
coisas não giram ao seu redor. — Eu balanço os ombros. — É um
fato triste o que vou falar agora, mas você já viu quantos
cachorrinhos são abandonados?
— Você está me comparando com um cachorro, é isso
mesmo que eu estou ouvindo? — Ele aperta meu queixo, quase
explodindo.
— Talvez um gatinho? — Eu falo mais baixo, achando
engraçado como ele ficou tão furioso. Nota mental; eu nunca mais
vou beber quando ele estiver comigo.
— Pra sua cama. — Ele aponta para o meu quarto. — Agora
mesmo.
— Tudo bem, você conhece o Batman e a Mulher-Gato? —
Ele me empurra pelo traseiro, resmungando totalmente impaciente
com todas as minhas perguntas. — Eles são um casal muito
parec…
— Nem pense em completar suas palavras. — Ele me coloca
sentada, jogando vários travesseiros em minha cara enquanto
começa a arrumar a cama em que vou deitar.
— Mas e o banho? — Eu olho na direção do banheiro. —
Você não vai tomar banho comigo?
— Só quando meu pau não estiver duro. — Ele me dá as
costas, ficando concentrado apenas em trocar as cobertas da cama.
— Mas eu prefiro ele duro. — Falo em um sussurro.
— Arcane mou! — Kalon me olha feio. — Que grande
absurdo, eu sou um homem de família, sabia disso?
— Eu aposto que homens de família também fazem muito
sexo. — Me inclino para trás, procurando uma forma de deitar no
tapete fofinho. — Por que não me quer? Eu tive apenas uma vez e
você já se cansou?
— Claro que eu quero você, quero pra caralho. — Sua
expressão pesa quando ele me encara, eu vejo algo cheio de
conflito e desejo. — Eu jamais vou me cansar de ti, e esse é o
problema, estou viciado demais em você e não posso machucá-la.
— Ele se aproxima, ficando de cócoras enquanto me olha deitada.
— Você é muito fofa quando está bêbada, mas também é muito
safada. — Sua mão esfrega minha bochecha.
— Todo mundo tem um pouco de safadeza em seu sistema,
Kalon. — Eu dou uma gargalhada animada. — Basta encontrar o
objeto de seus desejos para que isso seja expressado.
— Não acredito no que ouvi. — Ele explode em uma
gargalhada, inclinando a cabeça para trás enquanto seus ombros
balançam de uma forma adorável. — Ai, meu amor, isso foi muito
esclarecedor. — Ele toma fôlego.
Kalon é puro músculo, e quando está rindo por minha causa,
eu fico totalmente enfraquecida.
— Pelo menos aquela mulher não faz você rir assim. —
Aponto o dedo em sua direção.
— Eu adoro seu ciúmes, sua possessividade e sua
dominância… — Ele debocha, levantando meus braços para tirar
minha camiseta. — Mas Minerva é casada, tem um bebê e eu sou o
seu homem.
— Eu ouvi falar. — Balanço a cabeça em concordância. —
Sinto muito que você seja obrigado a lidar com minha embriaguez
ao ponto de tirar minhas roupas. — Arrumo meus cabelos para trás,
agarrando seu ombro quando ele me coloca em pé para abaixar
meu short.
— Ninguém te contou? — Ele beija meus lábios, foi rápido,
mas o suficiente para me deixar tonta. — A maioria dos casamentos
são assim.
— Não somos casados e nunca seremos. — Eu falo rápido,
desviando meu rosto do seu. — Se você desistir dessa ideia, eu
prometo pensar em ser sua namorada. — Sussurro mais baixo.
— Essa é uma proposta tentadora, mas não vai rolar. — Ele
estala a língua, erguendo minhas pernas e me carregando até a
cama. — Você já é minha, Arcane. — Seu olhar sério deixa claro
que não existe nenhum acordo válido entre nós dois. — A porra da
minha mulher, minha amante, esposa e meu tudo. — Minhas pernas
estão em cada lado da sua cintura. — Aceite de uma vez. — Kalon
arruma todos os travesseiros na cama e se afasta. — Você deve
dormir agora. – Ele acaricia minha bochecha, eu estremeço,
agarrando seus dedos com rapidez.
— Não, não vá. — Balanço a cabeça repetidas vezes. — Eu
não durmo sozinha, chame alguém para deitar comigo.
— Eu posso ficar até você dormir. — Ele para, girando todo o
seu corpo para me observar melhor. — Mas vou precisar sair para
fazer a segurança da casa agora que Yuri vai viajar com Rajá e eu
preciso ficar de olho em vocês.
Meu pai nunca colocou seguranças perseguindo eu e minhas
irmãs, ele nunca se importou com isso porque nos ensinou todas as
formas de nos defender, desde lutas até chamar por sua ajuda caso
seja necessário. Mas agora que ele percebeu que essa liberdade
me levou a conhecer Pavlos, é claro que ele iria pensar em colocar
a porra do meu noivo para ficar de olho em mim.
Kalon deita ao meu lado na cama, eu giro com cuidado até
ficar de frente para ele, ambos lado a lado. Eu encaro seus lábios,
seus olhos verdes e alguns fios de cabelo caídos por sua testa. Ele
é muito lindo, isso é um fato, mas fico cada vez mais surpresa
quando ele está perto de mim e eu posso ver cada detalhe.
— Feche os olhos. — Ele sussurra, aproximando sua testa
para se unir a minha. Eu faço o que ele pede e sinto sua palma
deslizando por minhas costas nuas, acariciando com cuidado cada
traço das minhas tatuagens.
Eu aproximo minha boca até sentir onde a sua está, então
deslizo minha língua contra seus lábios, arrancando um gemido
profundo da sua garganta.
— Foi isso que a Mulher-Gato fez. — Eu dou risada, abrindo
os olhos para absorver sua expressão. Um sorriso travesso dança
em seus lábios e ele segura meu queixo para sussurrar.
— Faça em meu pau e eu não respondo por mim. — Ele
sibila, suas palavras queimam como fogo e eu imediatamente
começo a imaginar como seria maravilhoso ouvir seus gemidos
enquanto o chupo.
Eu deslizo meus dedos por sua barriga desnuda, sentindo
cada músculo e agradecendo mentalmente por ele ter tirado a
camisa antes de deitar. Meus dedos esbarram na sua bermuda, seu
volume está apertado contra o tecido e sua pele está tão quente que
eu me surpreendo. Kalon está profundamente quieto, seu olhar não
abandona meu rosto enquanto acompanha tudo que eu faço.
Antes que eu consiga colocar minha mão para dentro, ele faz
som de shh e aproxima seu dedos da minha calcinha, puxando o
tecido para baixo o suficiente para acariciar minha boceta. O calor
sobe por minha coluna, me fazendo apertar os olhos e deixar
escapar um gemido trêmulo ao sentir dois dedos dentro de mim.
— Kalon. — Meus dedos apertam seu ombro, ele ronrona,
esfregando seus lábios nos meus e mordiscando.
— Quietinha, Mulher-Gato. — Ele sorri, apertando suas
sobrancelhas de um jeito provocador ao usar esse apelido dos
infernos. — Não vamos querer dar notícias aos outros, certo? — Eu
reviro os olhos, desejando encontrar palavras para o colocar em seu
lugar, mas seus dedos roubam minha voz quando ele me fode mais
rápido.
Sua outra mão desliza por minha cintura, até que ele aperta
minha bunda e me puxa para mais perto dos seus dedos. Eu rebolo,
buscando por mais contato quando ele me tortura estocando tão
devagar.
— Eu respeito muito as horas em que estou trabalhando, mas
posso abrir uma exceção apenas porque é o meu aniversário, então
não faça barulho. — Ele rosna contra minha boca, usando toda sua
energia para me dar prazer.
Seus dedos me atingem de uma forma tão sensível que fica
difícil controlar meus gemidos, eu aperto minha testa contra a sua,
sentindo meus olhos marejados quando ele vai mais fundo e
exigente.
— Shhh! — Ele sussurra contra meus lábios. — Amor, seja
uma boa garota! — Seus olhos verdes me observam de uma forma
severa. — Alguém pode ouvir…
A sacada está aberta e eles estão festejando perto dela,
então alguém pode ouvir o que estamos fazendo se eu não tomar
cuidado. Kalon acaricia minha bochecha e deixa um selinho em
meus lábios, sem interromper seus movimentos para dentro de mim.
— Desculpa… — Eu mordisco seu queixo quando ele coloca
seu pau para fora e desliza por minha entrada, foi um movimento
tão devagar que eu cravo minhas unhas em suas costas, desejando
que ele me reivindique de uma vez.
Eu abaixo minha calcinha até os tornozelos, me livrando dela
com os pés quando ele puxa minha perna para ter mais espaço ao
se posicionar dentro de mim. Meus lábios se encaixam nos seus
quando ele empurra, uma dor prazerosa se espalha por meu núcleo
quando ele começa a se movimentar de forma necessitada.
— Porra, amor. — Ele treme, apertando minha bunda e
deixando um tapa estalado.
— Eu tinha me esquecido que dói um pouco. — Lágrimas
invadem meus olhos quando afasto minha boca da sua,
interrompendo nosso beijo.
— A dor já vai passar, meu amor. — Kalon grunhe e mordisca
meu queixo, aprofundando suas estocadas. Minhas mãos envolvem
seu ombro, empurrando meu quadril contra seu pau. Um gemido
prazeroso sai da minha boca quando alcançamos um ritmo gostoso,
que deixa minhas pernas bambas conforme o atrito faz barulho.
— Porra, Arcane, eu caí em tentação por sua causa. — Kalon
estapeia minha bunda e crava seus dentes em meus seios, uma
explosão de prazer dança por meu corpo ao sentir suas mordidas.
— Eu preciso trabalhar, mas veja o que estamos fazendo.
Ele sufoca um gemido quando eu mordisco sua boca,
segurando seu rosto com cuidado e inclinando a cabeça para trás
ao senti-lo mudar nossas posições na cama, agora ficando
completamente em cima de mim e com minhas pernas ao seu redor.
— Foda-se, porra, não vou me controlar. — Ele geme,
causando espanto ao meu resto. Se ele estava se controlando até
agora, eu estou muito fodida quando ele der tudo de si.
— Kalon… — Seus ombros estão marcados com minhas
unhas, ele beija meu pescoço e estoca completamente, roubando
todo o meu fôlego. Eu aperto seu traseiro, me saciando com seu
corpo forte em cima de mim.
— Você se sente bem? — Seu colar de crucifixo balança
entre nós quando ele ergue o rosto para me encarar nos olhos.
— Muito bem. — Eu balanço a cabeça em concordância.
— Ótimo. — Ele ri fraco, então esfrega seus lábios contra os
meus e volta a estocar.
Nós somos consumidos pela necessidade do momento, seus
movimentos aumentam a velocidade, se tornando cada vez mais
selvagem e profundo. Eu mordo meus lábios tentando controlar
meus gemidos, mas se torna em vão quando ele geme na mesma
intensidade que eu. Nossos corpos fazem um barulho prazeroso,
suas duas mãos buscam apoio em meu quadril, tomando impulso
para ir mais fundo.
— Ah, meu Deus… — Minha vista escurece de prazer,
arrepios se espalham até minha nuca e eu mordo o seu pescoço
quando fica difícil segurar um grito de satisfação.
Porra, ele está me fazendo querer gritar de prazer. Minhas
mãos deslizam por suas costas, sentindo seus músculos se
movimentando.
— Puta merda, Arcane mou. — Kalon geme e deixa um tapa
em minha bunda. — Tão gostosa, porra. — Seu grego se torna
atrapalhado e trêmulo, as palavras possuem uma entonação poética
quando ele sussurra elogios para mim.
— Merda, que Deus abençoe o seu pau. — Eu tomo fôlego,
erguendo o rosto para beijar seus lábios. Uma risada fraca e
ofegante sai das nossas bocas quando percebemos o que eu acabei
de falar.
— Eu digo o mesmo sobre a sua boceta. — Kalon me lança
uma piscadela. Eu ri mais alto, respirando fundo quando calor sobe
pela minha barriga.
Uma batida na porta interrompe seus movimentos, a
insatisfação dança por minhas juntas, me fazendo tremer e agarrar
seu braço.
— Amor… Eu estava quase gozando. — Meus olhos estão
fechados, eu estou delirando em busca das sensações que me
consumiam até agora a pouco.
— Amor? — Ele ri grave, eu abro meus olhos rápido,
percebendo o que deixei escapar. Antes que eu fale, alguém bate na
porta novamente.
— Kalon, você está aí? — É Kol quem está chamando por
ele. — Porra, cara, você nunca se atrasa. — Ele reclama, sua voz
tem um toque de preocupação e raiva.
— Porra, porra, porra. — Kalon gira seu pulso, olhando a
hora em seu relógio. — Eu não posso atrasar, Arcane. — Ele
balança a cabeça em negação e retira seu pau de dentro de mim.
— Que grande empata foda. — Eu esmoreço, afastando
minhas pernas e girando na cama. — Tudo bem, vá antes que ele
invada o quarto.
— Eu prometo voltar. — Kalon me observa enquanto veste
suas roupas. — Tipo, voltar muito rápido. — Ele joga um beijo em
minha direção.
— Eu entendo que você precisa proteger a casa, Batman. —
Eu sorrio torto, balançando a cabeça em concordância para ele. O
apelido lhe arranca uma gargalhada travessa e ele aponta o dedo
em minha direção, mostrando que entendeu que eu estava me
vingando por ele ter me chamado de Mulher-Gato.
Eu puxo a coberta para cobrir meu corpo quando Kalon abre
a porta.
— Pelo visto você está inteiro. — Ouço a voz de Kol. —
Ouça, os outros estão indo embora e você precisa ficar de guarda
até Yuri voltar, eu poderia cobrir você, mas recebi uma ligação
importante.
— Que tipo de ligação? — Kalon olha para dentro do quarto
antes de fechar a porta, ele me lança uma piscadela tranquila como
se não estivesse fodendo comigo há poucos segundos. O homem
está totalmente intacto.
— Não é da sua conta. — Isso é tudo que eu ouço quando
eles desaparecem.
Eu pulo da cama, correndo até o banheiro para tomar um
banho e tentar me recuperar dos últimos minutos. Não sei quanto
tempo eu passo debaixo do chuveiro, revivendo os últimos
momentos e controlando a ardência do meu corpo, mas finalmente
saio e troco as cobertas da cama.
Eu visto um vestido confortável e pulo debaixo das cobertas,
tentando encontrar uma forma de adormecer sem entrar em pânico,
sem ter visões do fantasma de Nikoleta parado bem ao meu lado.
Eu encolho minhas pernas quando calafrios sobem por minha
coluna, pois sinto que ela está parada bem ao meu lado. Fecho
meus olhos, tapando meus ouvidos com força quando o som da sua
voz começa a me atormentar. Em algumas noites eu me rendo a
esse pesadelo porque sinto saudades dela, porque isso é tudo que
nos conecta e eu gostaria que tudo estivesse bem entre nós.
Existem alguns programas de TV onde as pessoas se
inscrevem para reencontrar pessoas que não vêem a muito tempo,
ou para pedir perdão e fazer uma declaração de amor profunda. Eu
sempre assistia quando era pequena toda aquela história sendo
contada, desde o momento que se conheceram até o momento
onde tudo desabou e eles se separaram, até que entra aquele
suspense tortuoso para saber se a pessoa está do outro lado da
porta, prontos para perdoar, se encontrar e dar uma segunda
chance. Eu era consumida por aquela narrativa, espantada com
todas as formas que um ser humano é capaz de estragar tudo, mas
que nunca desiste de tentar consertar.
Quando eu durmo sozinha, é como se eu fosse transportada
para um lugar onde revivo todos os meus momentos ao lado da
minha melhor amiga, todas as risadas e segredos compartilhados,
mas então, no lugar do alívio que a reconciliação traz, vem apenas o
terror total quando seu fantasma me assombra na penumbra. Ela
apenas me condena e me tortura, não há conversa entre nós, nunca
mais existiu isso depois daquele domingo em que agosto começou.
Ela arruinou tudo dentro de mim, agora eu não passo de uma
pessoa confusa e quebrada. Eu me tornei um fantasma atormentado
igual a ela, e eu gostaria tanto de voltar para a noite em que nos
conhecemos. Eu juro que mudaria tudo. Absolutamente tudo.
Mesmo com todo esse peso que sinto ao saber que é o fim,
eu não me canso de desejar ouvir da sua boca os motivos para ela
ter tentado me matar. Eu quero tanto compreender porque ela
estava tão determinada a fazer isso comigo, éramos tão felizes
juntas, como se nada pudesse nos separar.
Além de todas as coisas que quero ouvir dela, mas não
posso mais, eu também quero implorar pelo seu perdão ao ter
ceifado sua vida. Não há nada mais doloroso do que você ser uma
pessoa que precisa de perdão para continuar vivendo, mas nunca
recebe.
— Você está mesmo aqui? — Sussurro baixinho, meu peito
está apertado e me sinto desconectada da realidade. Tudo está tão
distante e frio, tão solitário e cinza. Como se eu estivesse presa em
um filme de terror.
— Estou, criança. — Sua voz é assustadora, eu até consigo
sentir a ponta dos seus dedos raspando por cima do edredom,
tentando me desenrolar.
— Você veio para ficar ou apenas para partir meu coração
novamente? — Sussurro mais baixo, abrindo os olhos, mas ainda
com tanto medo de olhar por cima do ombro e ver o seu fantasma.
— Eu vou fazer você pagar por tudo que me fez. — Ela
responde. — Eu vou atormentar você até o fim dos tempos.
— Eu sinto sua falta. — Minha voz está trêmula. — Queria
entender porque parece que você desistiu de mim naquela noite. –
Tento engolir o choro preso na garganta.
— Eu nunca estive ao seu lado de verdade. — Ela dá uma
risadinha assustadora, como se fosse divertido sentir pena de mim.
— Ninguém consegue amar uma pessoa como você, criança. — Eu
sufoco, tapando minha boca quando sinto seus lábios contra meu
ouvido, cuspindo as palavras para dentro da minha cabeça. —
Pessoas como você não tem melhores amigas.
— Por que eu não tenho? — Balanço a cabeça em negação,
tentando me livrar do sentimento que ela está tocando meus
cabelos.
— Porque você é quebrada demais, confusa demais… —
Seus sussurros ecoam pelo quarto. — Cansativa demais. Sua vida
não tem continuidade, você é o mesmo disco arranhando de
sempre, uma estátua, você não consegue evoluir. — Eu choro fraco,
implorando para que Deus silencie seu fantasma. — As garotas da
sua idade não gostam de fazer amizade com uma menininha
danificada como você, que não se encaixa em porra nenhuma, que
faz tudo errado, que está presa e amarrada. Até o jeito que você
fala, criança, é vazio e quebrado. — Outra risada sai dela, outro
soluço sai da minha boca. — É isso, é por isso que as pessoas
apenas fingem, assim como eu passei a vida fingindo.
Eu soluço, fechando os olhos e rezando fervorosamente para
que Deus tire esse fantasma daqui. Eu balanço a cabeça em
negação, perdendo o fôlego quando esse medo profundo faz a
minha vista escurecer. Eu odeio que a única forma que ainda tenho
Nikoleta comigo seja através do seu fantasma. Essa é a única
maneira de matar a saudades que sinto.
Eu me sento na cama, erguendo o rosto e tomando coragem
para vê-la entre a escuridão. Ela está parada, as mãos sangrando
enquanto segura a mesma barra de ferro que usou anos atrás para
me atacar, seus olhos estão vazios. Sua pele está tão pálida que eu
sinto medo de continuar olhando. Sangue escorre da sua cabeça,
pingando no seu vestido branco. Essa é a visão do meu inferno, os
traços da minha maldição, o momento em que eu morri de verdade
e ninguém me enterrou. Eu estou presa para sempre no dia em que
matei a minha melhor amiga, no dia em que ela não me deu
nenhuma palavra que me fizesse compreender o que nos tornamos.
Ela apenas virou um fantasma.
— Eu não queria matar você. — Lágrimas escorrem por
minha bochecha. — Eu queria tanto ser sua amiga para sempre…
— Mentirosa! — Ela ataca, erguendo a barra de ferro.
Meu corpo balança de susto e eu cubro meu rosto com as
mãos, não querendo ver ela dessa forma. Talvez eu tenha
desmaiado, de exaustão ou medo, pois acordo com alguém
acariciando meus cabelos. Um vento frio vem da sacada aberta,
onde as cortinas balançam suavemente.
— Arcane? — Ouço um sussurro distante, tão distante que
fico com medo. — Arcane, fale comigo. — Eu pisco, como se um
véu tivesse saído dos meus olhos.
— Melissa? — Minha voz está cheia de medo, eu aperto os
dedos implorando mentalmente para que seja ela. — Você está
aqui?
– Sim, estou bem aqui. — Seu corpo quente entra debaixo do
edredom, eu respiro aliviada, pulando com tudo em seus braços e
agarrando seu corpo.
— Eu tive um pesadelo horrível. — Fecho meus olhos,
chorando baixinho.
— Talvez você ainda esteja tendo um pesadelo. — A voz
sussurra atrás de mim, agora mais alta, sua sombra tapando todo o
espaço da sacada aberta. — Vamos brincar, Arcane… — Ela arrasta
a barra de ferro no chão. — Vamos brincar de matar, criança.
Eu olho por cima do ombro no exato momento em que vejo a
figura ensanguentada correndo em minha direção. Eu grito alto,
cheia de angústia e culpa, eu me esperneio na cama e esfrego meu
rosto repetidas vezes.
— Por favor, não! Não! — Grito. — Acorde! Acorde!
— Arcane? — Mãos agarram meu corpo, afastando minhas
mãos do meu rosto e me impedindo de cair no chão. — Arcane… —
Eu engasgo alto quando os lábios de Melissa beija minha testa.
— Melissa, eu estou sonhando? — Estou ofegante,
completamente suada e tremendo. — Eu acho que estou
enlouquecendo. — Desespero consome minha expressão.
— Não, você não está mais. — Ela acaricia meus cabelos. Eu
ergo meu rosto, procurando por qualquer fantasma no quarto, mas
não encontro ninguém.
Eu aproximo meu rosto para mais perto do dela e acaricio
suas bochechas, sentindo sua pele macia e um pouco fria.
— Por favor, eu estou presa em um sonho? — Uma lágrima
escorre pela minha bochecha. — Me sinto tão desamparada.
— Você estava, mas agora não está mais. — Ela sussurra
cheia de paciência. — Já passou, ouviu? Passou.
— Como você sabe? — Eu fungo, agarrando sua cintura com
mais força. — E se eu ainda estiver sonhando e isso é apenas um
jeito de me maltratar?
— Venha aqui. — Ela me puxa para sair da cama, eu
caminho com calma, agarrando seu vestido. Melissa me coloca para
ver o jardim lá fora. — Está chovendo, consegue ouvir? Em seus
pesadelos nunca está chovendo, você mesma disse. — Meus olhos
vasculham em meio aos pingos de chuva. Realmente está
chovendo, eu estremeço quando uma brisa fria varre meu corpo.
Eu respiro aliviada, balançando a cabeça em concordância,
mas ainda me sentindo insegura para soltar seu corpo.
— Veja, Kalon está ali desde que saiu do seu quarto. — Ela
aponta para uma figura entre as árvores, quase imperceptível, mas
assustadora.
Ele mudou suas roupas, agora está usando um sobretudo e
luvas, a chuva cai por seus ombros e ele mantém sua postura de
guarda.
— É altamente impossível que alguma coisa machuque você
enquanto esse homem estiver por perto. — Ele dá uma risadinha,
beijando minha bochecha. — Você se sente melhor?
— Um pouco. — Deito a cabeça em seu ombro quando puxo
seu corpo para um abraço apertado, tão apertado que um som fraco
sai da minha boca. — Eu fiquei com tanto medo.
— Eu sinto muito. — Ela beija meus olhos. — Não vai ser
assim para sempre, um dia você vai melhorar e ser livre.
— O que você faz em meu quarto? — Sussurro mais baixo.
— Eu vim pedir sua ajuda. — Ela responde no mesmo tom
tranquilo. — Eu preciso que você tire Kalon dali para que eu consiga
sair e encontrar Pavlos, eu preciso conversar com ele sobre tudo
que aconteceu hoje, preciso entender melhor e proteger todos nós
da fúria do nosso pai.
— Você vai sair na chuva? — Encaro seu rosto. — Ninguém
sai na chuva, isso é assustador.
— Eu vou arriscar, mesmo que eu esteja morrendo de medo.
— Ela fala baixinho. — Eu preciso tentar.
— Mas está chovendo. — Eu seguro sua mão, ficando
totalmente apavorada por ela.
— Pavlos vai me pegar na esquina, eu prometo que vou para
um teto seguro. — Ela segura os dois lados do meu rosto. — Você
sabe que a chuva é apenas uma superstição, não é?
— Mas ainda assim, é assustador. — Eu balanço a cabeça
em negação.
— Kalon não está com medo. — Ela aponta para onde o
homem está em pé, quieto e silencioso como se todo esse temporal
não significasse nada para ele. — Eu acho que ele não tem medo
de nada.
A única vez em que eu não tive medo da chuva foi quando eu
estava caçando o pai de Yuri dentro daquele templo, eu estava tão
movida por meu instinto que consegui deixar o meu medo de lado.
Eu acho que Kalon é movido por uma motivação profunda igual a
que eu senti naquela noite, algo forte o suficiente para ignorar o
medo da chuva e mantê-lo no caminho até que tudo esteja
consumado.
— Você quer me ajudar? — Melissa me arranca dos meus
pensamentos. — Apenas se você se sentir confortável para isso.
— Tudo bem, eu posso tentar. — Sussurro, eu realmente
quero sair desse quarto e me abrigar em um lugar onde eu não sinta
o fantasma de Nikoleta por perto.
Dez minutos depois, eu e Melissa descemos as escadas em
um completo silêncio. Agora que estamos perto da varanda, a
sensação é de que a chuva está muito mais forte.
— Eu vou me esconder em algum cômodo enquanto você
tenta trazer ele para dentro. — Ela sussurra, largando minha mão e
me deixando sozinha para caminhar até o gramado.
Eu faço isso com pressa, meus pés descalços afundam no
chão molhado e a chuva faz o meu vestido grudar em meu corpo.
Eu arrumo meus cabelos para trás, me encolhendo como o som fica
mais forte.
— Arcane? O que você está fazendo aqui? — Kalon me
avista, sua postura rapidamente muda e ele se movimenta para me
alcançar.
Um trovão explode nos céus, clareando tudo ao redor. Eu
grito alto, começando a correr até que meu corpo é levantado por
seus braços.
— Meu Deus! Isso foi tão assustador! — Eu estremeço,
agarrando seu ombro e evitando olhar para cima. Meu rosto se
esconde na curva do seu pescoço.
— Você está bem? — Ele me observa cheio de preocupação,
acariciando minhas costas. — Você não deve ficar na chuva, o clima
está péssimo.
— O mês de Agosto é realmente muito sombrio. — Eu
levanto meu rosto, ajudando ele a afastar os fios molhados da
minha testa. – Você não está com frio? Eu vim te convidar para
comer alguma coisa, vai ser rápido.
Falo com tranquilidade quando minhas pernas encostam no
chão, Kalon mantém uma mão em minha cintura, provavelmente
temendo que eu escorregue.
— Eu não posso. — Ele aperta os lábios, olhando ao redor
como uma atalaia insistente e imperturbável.
— Não pode? — Eu não compreendo sua rejeição, mas seus
olhos brilham como se ele quisesse exatamente o mesmo que eu.
— Eu nunca deixo o meu posto até o amanhecer. – Ele
explica, balançando a cabeça para se livrar das gotas de chuva que
escorrem por seu nariz.
— Mas e se um raio cair na sua cabeça? — Eu falo mais
baixo quando outro trovão brame. — Ou pior, e se você congelar até
a morte como em Titanic?
— Titanic? — Ele solta uma gargalhada que sobrepõe os
sons da chuva, eu me perco completamente, erguendo a cabeça
para apreciar melhor os sons que ele deixa escapar sem vergonha
alguma.
— Você nunca viu o filme? — Deslizo meu dedo por seu
nariz, brincando. — Eu poderia jurar que ele é da sua época. —
Provoco.
— Claro que eu vi, e eu odeio. — Ele balança os ombros. —
Odeio mais ainda quando as pessoas clichês vem com aquele papo
de “cabia os dois em cima da porta”. — Ele fala como uma pessoa
que está realmente cansada desse filme, eu seguro uma gargalhada
quando vejo o traço carrancudo se formando na sua testa.
— E o que você estava esperando? — Eu cruzo os braços.
— É uma história real.
— Por isso mesmo, a realidade é decepcionante, eu queria
mesmo era que os dois tivessem morrido no final, simples. — Ele
pontua, me olhando de forma pesada.
— Você é uma pessoa muito amarga, eu gosto disso. — Eu
estalo a língua. — Esse é um convite formal para assistirmos uma
comédia romântica agora mesmo? — Eu reforço a minha tentativa
de tirá-lo daqui.
— Esse é um pedido para ter um romance como os de
cinema? — Ele ergue uma sobrancelha, mantendo uma expressão
tão engraçada que eu não seguro o riso.
— Como nos filmes de Jennifer Aniston e Adam Sandler, por
favor. — Eu seguro os dois lados do seu rosto. — Já que você
insiste tanto em me dar um relacionamento como os de cinema,
correto?
— Talvez. — Ele estala a língua. — Você pode ficar doente
debaixo de tanta chuva e ainda por cima está descalça, por que não
entra e espera amanhecer?
— Você só vai entrar ao amanhecer? — Eu balanço a cabeça
em negação, não gostando de como meu plano está indo pelo ralo.
— Sim. — Ele balança a cabeça em concordância, se
afastando para ficar em sua posição de antes. Pelo visto o nosso
flerte não foi o suficiente para fazê-lo sair daqui.
— Eu estou com medo de ficar sozinha. — Sussurro.
— Suas irmãs? — Ele aponta para a casa.
— Elas acabaram dormindo longe de mim. — Eu olho por
entre as árvores, desejando que Melissa esteja me ouvindo. —
Nimue deve ter passado algumas horas lendo e não quis me
incomodar com a luz acesa em meu quarto, então Melissa acabou
dormindo com ela. — Eu balanço a cabeça.
Ele gira seu pulso, olhando que horas são.
— Vamos entrar… — Meus lábios tremem de frio.
— Merda. — Ele ofega, segurando minha mão e caminhando
para dentro de casa. — Eu vou checar elas. — Ele avisa, me
fazendo correr atrás e agarrar seu braço.
— Tudo bem, eu posso abraçar você? Estou congelando. —
Deslizo minha mão para dentro do seu sobretudo e me coloco
debaixo do seu braço, retardando a forma como ele caminha rápido.
— Vamos passar na cozinha primeiro e preparar alguma coisa. —
Olho ao redor, procurando por Melissa entre as árvores.
— Você precisa beber algo quente. — Ele desliza sua mão
por meus cabelos molhados. — Vamos, eu preparo um chocolate e
nós subimos para ver suas irmãs.
Eu concordo, entrando na cozinha e ajudando ele a remover
seu sobretudo molhado. Kalon treme de alívio quando finalmente
fica livre dele, eu me aproximo, abrindo os botões da sua camisa
molhada que está grudada em seus músculos. — Você sabe
quando meu pai volta? — Eu pergunto.
— Talvez amanhã. — Suas mãos apertam meu vestido. —
Por que? — Eu levanto os braços no momento em que ele puxa o
tecido pela minha cabeça, secando meus cabelos em seguida.
— Apenas fiquei preocupada caso você passe dias do lado
de fora. — Eu balanço a cabeça.
— Não é impossível. — Ele balança os ombros. — Farei com
o maior prazer caso ele demore.
— Vocês não tinham brigado? — Eu me sento quando ele
caminha até o fogão para preparar algo quente.
— Mas por um bem maior houve uma reconciliação. — Eu
observo suas costas, há pequenas marcas das minhas unhas que
me fazem lembrar imediatamente do que estávamos fazendo horas
atrás.
Eu olho para o rumo das escadas onde vejo Melissa subindo
silenciosamente, eu suspiro de alívio, agradecida por ela ter ouvido
que ele vai subir para ver como as duas estão.
— Venha aqui, você ainda está com frio? — Eu me ergo,
caminhando até Kalon e o abraçando pelas costas.
— Sim, muito. — Minhas mãos vasculham seu abdômen,
fazendo uma carícia tão relaxante que eu sinto seu corpo amolecer.
— Você está tão quente… — Esfrego minha bochecha em sua pele
macia, apertando sua cintura com mais força. No entanto, ele é tão
alto que meu rosto não consegue alcançar a curva do seu ombro.
— Você está fria como um cadáver, Arcane. — Kalon segura
meus dedos, me puxando para ficar de frente. Suas mãos me
envolvem como um casulo. Quando meu rosto está contra seu peito,
eu me assusto com seus batimentos rápidos.
Está batendo tão desenfreado que eu levanto meu rosto para
encarar seus olhos verdes, no entanto, sua expressão permanece
fria e inabalável. Ele se comporta como se nada estivesse
acontecendo do lado de dentro, ou talvez, realmente não esteja.
— Eu preciso olhar suas irmãs antes de voltar a me
concentrar em você. — Ele murmura, mantendo uma distância
segura entre nós.
— Por que? — Eu o sigo, permitindo que ele suba as
escadas rápido agora que Melissa está lá.
— Porque quando estou com você, minha mente e o meu
mundo gira totalmente ao seu redor. — Ele responde sem me olhar
por cima do ombro. — Essa é uma arma muito perigosa quando eu
preciso observar o restante do mundo também.
Ele completa, abrindo a porta do quarto de Melissa e
visualizando as duas deitadas na cama. Apenas a luz do abajur está
acesa, proporcionando uma visão preguiçosa dos seus rostos
amassados no travesseiro.
— Certo, elas vão sobreviver. — Ele sussurra.
— Pode apostar. — Eu cubro meus braços, sentindo um
pouco de frio.
— Agora podemos voltar. — Eu ainda estou nua e Kalon me
puxa para abraçar a lateral do seu corpo. — Me espere aqui. —
Kalon caminha pelo corredor e abre a porta do meu quarto.
Eu fico estática no corredor, realmente não quero voltar para
meu quarto sozinha. Eu sei que não passa de uma projeção da
minha cabeça doente, que isso são efeitos dos meus episódios de
dissociação, mas eu não quero olhar ao redor e ver que o fantasma
está me esperando.
Kalon retorna com um roupão limpo e muito cheiroso, eu
visto, agradecendo por estar aquecida novamente.
— Agora vamos beber chocolate. — Ele me puxa para
caminhar de volta à cozinha. — Embora eu não goste muito de
bombas de doces.
Kalon não me deixa de lado quando voltamos para a cozinha,
ele abraça meu corpo contra a bancada e permanece assim
enquanto encosta sua bochecha contra meu rosto.
Ele consegue ser grudento sem sequer perceber, mas eu não
vou reclamar disso agora, estou curiosa e preciso fazer perguntas.
— Você está sempre usando esse colar. — Aponto,
deslizando meus dedos por entre a corrente de prata. — Você
realmente é tão religioso assim?
— Eu preciso ser. — Ele limpa a garganta, seu olhar é
pesado agora, mas ele não deixa de me abraçar com força.
— Por que você precisa ser? — Eu sussurro, não
movimentando meu rosto para não quebrar o encaixe que seu rosto
tem contra o meu.
— Em meu momento mais difícil… Não era mamãe, papai,
meus irmãos ou algum melhor amigo que estava ao meu lado. —
Ele responde depois de um tempo. — Foi um senhorzinho que me
encontrou bêbado na rua um dia depois de coisas horríveis terem
acontecido. — Seu rosto se afasta para me observar melhor. — Ele
me falou que Deus era o único capaz de entregar salvação para
uma pessoa como eu, e eu realmente acreditei nisso.
— Você acredita que pode ser salvo? — Eu pisco. — Mesmo
com tanto sangue em suas mãos e toda essa vida sombria que você
idolatra? — Minha pergunta é feita da forma mais amável que eu
consegui expressar.
— Não. — Ele balança a cabeça em negação. — Eu não
tenho certeza da minha salvação, mas tenho a certeza de que Deus
é o único que pode salvar alguém. — Meus dedos deslizam pela
cruz em seu pescoço, analisando o formato. — Eu acredito que ele
pode salvar as pessoas inocentes que eu matei, que de alguma
forma elas estão com ele, entende?
— Sim, eu entendo. — Balanço a cabeça em concordância.
— Você acredita que Deus é bom com você? Que ele é justo?
— Acredito. — Ele pisca. — Deus é bom o tempo inteiro,
mesmo eu estando errado, e bem, por mais que eu esqueça disso
às vezes… — Seu dedo indicador desliza por meu nariz. — Ele me
enviou uma mulher para que eu lembre todos os dias da sua
bondade e misericórdia.
— Você acha que Deus me enviou? — Eu dou risada, ficando
animada. — É mais fácil que tenha sido o diabo, Kalon!
— Bom, esse assunto é negociável. — Ele aperta os olhos,
esfregando o nariz em minha bochecha. — Você é mesmo muito
endemoniada.
— Agora eu fiquei curiosa. — Afasto meu rosto. — Se você
tem tanta convicção, você acha que Deus fala com você através de
alguma coisa? Como naquelas histórias bíblicas? — Eu dou risada,
balançando a cabeça em repreensão.
— Você é muito boba. — Ele revira os olhos. — Na verdade,
existe uma coisa que eu me identifico muito. — Ele limpa a
garganta. — Está escrito; diga a Jerusalém que o Senhor Deus lhe
diz o seguinte: Você nasceu na terra de Canaã. O seu pai era
amorreu e sua mãe era hetéia.
— Quando você nasceu, ninguém cortou o cordão do seu
umbigo, nem lhe deu banho, nem esfregou sal em você, nem a
enrolou em panos. Ninguém teve dó suficiente para lhe fazer
qualquer uma dessas coisas. Quando você nasceu, ninguém
gostava de você, e até a jogaram no mato. Então passei por perto e
vi você rolando no seu próprio sangue. Embora você estivesse
coberta de sangue, eu não deixei que morresse. Eu a fiz crescer
como uma planta sadia. Você cresceu forte e alta e ficou moça. Os
seus seios se formaram, e os seus cabelos ficaram compridos, mas
você estava nua.
— Quando passei de novo, vi que havia chegado o tempo de
você amar. Então cobri o seu corpo nu com a minha capa e prometi
amar você. Sim! Fiz um contato de casamento com você, e você se
tornou minha. Sou eu, o Senhor Deus, quem está falando. Eu a lavei
com água e limpei o sangue que a cobria. Passei azeite na sua pele.
Eu a vesti com roupas bordadas e lhe dei sapatos do melhor couro,
um turbante de linho e uma capa de seda. Eu a enfeitei com jóias,
pulseiras e colares. Dei uma argola para o seu nariz, brinco para as
suas orelhas e uma linda coroa para a sua cabeça.
— As suas jóias eram de ouro e prata, e você sempre usou
vestidos bordados, de linho e de seda. Você comeu pão feito da
melhor farinha e tinha mel e azeite à vontade. Você era muito bonita
e chegou a ser rainha. Em todas as nações falavam da sua beleza
perfeita porque fui eu que a fiz assim tão linda. Sou eu, o Senhor
Deus, quem está falando.

Eu nunca imaginei que acharia tão romântico e profundo uma


citação bíblica como essa. Sem dúvidas, essa é a melhor coisa que
uma mulher como eu poderia ouvir depois de passar uma vida na
cadeia. São palavras profundas, que rasgam o peito e deixam os
olhos brilhando. Meus olhos não se desviam da expressão que
Kalon têm ao sussurrar com tanto respeito e carinho cada
palavrinha.
— Você quer ouvir o final? — Ele limpa a garganta.
— Sim, por favor. — Eu poderia passar uma eternidade
ouvindo sobre isso, tirando minhas conclusões e interpretando como
algo da minha vida, como algo que estava escondido em meu peito
e só veio à tona agora; Deus realmente existe. Isso é tão simples de
perceber que eu sinto Ele nessas palavras. — Eu nunca ouvi algo
tão lindo. — Eu comento, deslizando meus dedos por sua pele para
que o encanto não morra.
— Na verdade, acho tão triste. — Ele ri torto. — Ouça o
restante.

— Mas você se aproveitou da sua beleza e da sua fama para


dormir com qualquer um que passava. Usou os seus vestidos para
enfeitar os seus lugares de adoração e ali você se entregava a
qualquer um, como uma prostituta. Você pegou as jóias de prata e
de ouro que eu lhe tinha dado e com elas fez imagens de seres
humanos; você foi infiel a mim, adorando essas imagens. Você
pegou os vestidos bordados que eu lhe dei e com eles vestiu as
imagens e ofereceu a elas o azeite e o incenso que eu lhe tinha
dado. Eu lhe dei comida: a melhor farinha, azeite e mel, mas você
ofereceu tudo isso como sacrifício para agradar os ídolos. Sou eu, o
Senhor Deus, quem está falando.
— Depois, você pegou os nossos filhos e as nossas filhas e
os ofereceu como sacrifício aos ídolos. Será que não bastou que
você tivesse sido infiel a mim? Será que foi tão pouca a tua
prostituição para ofetecê-los em sacrifícios aos ídolos? Durante a
sua vida miserável de prostituta, nem uma vez você lembrou da sua
juventude, quando estava nua, rolando no seu próprio sangue.

Minha expressão muda para surpresa quando ele finaliza o


capítulo que estava recitando, eu não imaginava ouvir um final tão
triste, como um apelo de saudades e mágoa pela forma que foi
traído, esquecido e deixado de lado. Eu imagino o texto como a
carta de um Noivo que foi abandonado no altar no dia do seu
casamento. — sozinho no evento que ele esteve se preparando por
tanto tempo e com tanto amor, onde ele ainda a espera mesmo
sabendo que ela pode NUNCA cair em si e voltar. Ele continua cheio
de saudades e esperança, desejando que sua noiva se lembre dos
dias da sua mocidade e retorne para casa, para onde nunca devia
ter saído.
— Isso é tão triste. — Eu balanço a cabeça, enxugando o
canto dos olhos. — Mas também foi a coisa mais romântica que eu
já ouvi.
— Você está emocionada? — Kalon inclina a cabeça para o
lado, me observando como se eu fosse uma criatura de outro
planeta.
— Eu realmente nunca ouvi uma declaração de amor e de
mágoa tão linda. — Mantenho meu ponto, observando sua
expressão cheia de humor. — Acho que nada no mundo vai
conseguir ser comparado a isso.
— Pior que isso é verdade, mas eu posso tentar ser o
primeiro. — Ele sorri de lado, me lançando uma piscadela cheia de
charme.
— O problema é que você não sabe o que é amar, você é
incapaz disso. — Aponto o dedo em sua direção, falando sério. —
Você conhece apenas a obsessão e as palavras certas para
conseguir o que quer das pessoas.
— Então agora estamos discutindo? — Ele me larga,
caminhando para servir minha bebida quente.
— Não, estou apenas relembrando um fato. — Eu limpo a
garganta. — Eu fiquei com vontade de conhecer Israel. — Eu
resmungo, recebendo minha caneca.
— Eu já estive lá. — Kalon me dá as costas novamente,
servindo-se de chá. — Foram as melhores férias da minha vida.
— Sério? O que você mais gostou de conhecer? — Eu me
inclino para perto dele, necessitando de cada detalhe sobre os
lugares do mundo que eu nunca conheci, mas adoraria. Penso que
se ele contar, vou conseguir sentir o gosto da liberdade em minha
boca.
— O muro das lamentações. — Ele sorri largo, nem pensou
duas vezes ao responder isso. — Acho que foi tudo que sobrou do
templo de Salomão, esse lugar é considerado o mais sagrado de
Jerusalém. Sabe por que? — Eu balanço a cabeça que não. —
Naquelas paredes, empurrado entre os blocos, existem tantos
bilhetes pedindo por alguma coisa... — Seus olhos brilham quando
ele inclina a cabeça para o lado, como se estivesse revivendo sua
viagem. — Pedindo por amor, perdão, reconciliação, cura e até
mesmo um filho. As pessoas fazem suas orações ao ar livre mesmo,
não é incrível? Eles nunca param.
— Isso é realmente incrível. — Eu tento formar todos os
cenários na minha cabeça.
— Eu considero Jerusalém como o lugar mais religioso do
mundo. — Ele completa.
— Sua família não se incomoda que você seja cristão? — Eu
limpo a garganta. — A maioria dos gregos são islâmicos, mas você,
uma pessoa influente e herdeiro do chefe da Alkyóna, não é como
eles.
— Isso já trouxe alguns conflitos com outras organizações
aliadas, eu assumo. — Ele balança a cabeça. — Mas minha mãe
sempre respeitou a escolha de cada um, Rajá foi o principal
enfrentante para me dar essa liberdade e me proteger da
reprovação do papai.
Eu penso que Rajá deve ser o único a manter essa família
como Ivan não faz. Nem mesmo ao aniversário do filho ele
compareceu, não que a ausência seja surpreendente vindo de um
homem como ele, que só se importa com o poder e triunfo, mas no
fundo, um filho sempre espera pelo seu pai.
— Você já terminou? — Ele aponta para o chocolate.
Eu pisco algumas vezes ao perceber que passei tanto tempo
submersa no assunto que nem percebi que já havia bebido tudo.
— Sim. — Eu respiro fundo e entrego a caneca em suas
mãos.
Eu me pergunto se todos os meus dias serão assim, na sua
companhia e recebendo um pouco dos seus cuidados, se isso de
alguma forma é normal e certo para pessoas como nós. Kalon
inclina a cabeça para o lado quando percebe que eu não o segui
para fora da cozinha.
— Você não vem? — Ele une as sobrancelhas, estendendo a
mão em sua direção. — Você precisa de um banho quente. — Ele
aponta para minha cabeça, meus fios estão molhados pela chuva e
não podem secar sem cuidados.
— Todos os casais vivem esse tipo de rotina? — Eu caminho
em sua direção, não controlando meus pensamentos.
— Os que se gostam, sim. — Sua voz é risonha. — Por que?
Eu nunca vou dizer em voz alta, mas a verdade é que não
estou acostumada com essa calmaria profunda. Eu não consigo me
alimentar corretamente dessa normalidade, dessa sensação pacífica
e comum que se expande por meu peito. Para uma pessoa que
passou a vida se alimentando apenas do caos e instabilidade, acho
que leva tempo até se acostumar com essa nova realidade.
Leva bastante tempo e esforço até ter seus olhos
acostumados com a luz e não com as trevas. Muitas lágrimas caem
nesse processo, pois é incandescente e assustador. Eu tenho a
sensação que existe algo à espreita esperando o momento certo
para tirar isso de mim e me jogar em outro inferno. Como se fosse
apenas uma questão de tempo até tudo voltar a ser cinza.
Eu olho para Kalon, aceitando sua mão estendida e essa
falsa ilusão de que estou vivendo uma vida normal dentro de um
mundo que está destinado à condenação. É só questão de tempo
até a bolha explodir e tudo vir à tona, pois eu sei que ele esconde
coisas de mim e que não vai explicá-las, como o fato dele e Yuri
terem trazido Pavlos para a nossa casa e nossos negócios, talvez
tenha sido uma ameaça pacífica para mostrar que estou presa em
suas mãos, ou talvez seja apenas uma manipulação doentia.
— Kalon. — Eu chamo seu nome quando entramos em meu
quarto.
— Arcane? — Ele responde quando caminha até a sacada
para fechá-la.
— Qual foi o bem maior que fez você se reconciliar com meu
pai? — Eu pergunto, ao me desfazer do roupão e caminhar até o
banheiro. Ele me segue em silêncio, analisando minhas costas nuas
e minha bunda.
— Você é o bem maior. — Ele responde.
— Porque eu sinto que você existe apenas para me distrair e
não esclarecer nenhuma das minhas dúvidas? — Eu cruzo os
braços, odiando a sua resposta superficial.
— Porque esse não é o momento para falar sobre todas
essas coisas. — Ele inclina a cabeça para o lado, entrando na
banheira comigo e puxando minhas pernas para se entrelaçar no
seu quadril.
Eu odeio me sentir no escuro desse jeito, como se não
merecesse nenhuma explicação e resposta transparente. Eu
também me odeio e odeio estar fodendo com esse homem, que
ironicamente eu também odeio por tudo que faz e causa.
— No que você está pensando? — Kalon pergunta enquanto
esfrega meus cabelos da mesma forma que fiz com ele na nossa
primeira vez. Eu limpo a garganta para esconder uma risadinha.
— Você acredita que eu me casei com a minha melhor amiga
quando vimos a neve pela primeira vez depois de anos sem ver o
mundo fora das grades? — Eu dou risada, olhando para seu rosto.
— Foi um evento bobo, tínhamos dezessete anos, estávamos tão
empolgadas com nossas pegadas na neve, com nossa primeira
oportunidade de sair um pouco, que decidimos que essa amizade
seria para sempre. — Eu dou outra gargalhada alta, mas ela sai um
pouco triste.
— Um casamento, certo? — Ele sorri torto.
— Isso, uma aliança para ficarmos juntas até o fim. — Eu falo
mais baixo. — Normalmente, apenas nos casamentos existe aquele
ditado sobre “até que a morte nos separe”, eu não vejo ninguém
fazendo o mesmo com as amizades inconsoláveis, mas eu e
Nikoleta fizemos.
— Isso com certeza é algo que eu faria com meus irmãos, se
o sangue e a vida não nos unisse. — Ele balança a cabeça.
— Era uma proposta para contar todos os segredos,
compartilhar cada pensamento e participar dos momentos
importantes na vida uma da outra. — Eu analiso seu rosto. — O que
eu estou pensando é que não posso me casar com uma pessoa
sem escolher por isso. — Falo baixo. — Não quero que essa
decisão seja tomada por mim, que esteja nas mãos de outra
pessoa.
Kalon estala a língua, ele desvia o rosto como se minhas
palavras fossem a última coisa que ele deseja ouvir agora.
— Arcane, todos os casamentos dentro da Alkyóna
acontecem dessa forma. — Ele aponta para nós dois, indicando a
situação em que estamos. O limiar entre o que eu realmente desejo
e o que estou sendo forçada a ter. Eu quero a liberdade de escolher,
mas isso já foi decidido por mim. Eu me sinto acorrentada, mas com
espaço para caminhar e apreciar a vista que nunca vou ter a chance
de desfrutar bem pertinho.
— Eu nunca pedi por isso. — Eu encaro seu rosto. — Uma
coisa é gostar de fazer sexo com você, gostar de conversar com
você, outra coisa é engolir o fato de eu estar sendo forçada a um
casamento que não me deram escolha.
— Realmente é tão ruim assim? — Ele afasta suas mãos da
minha cintura.
— Sim, porque eu quero ser livre. — Isso é tudo que eu falo
ao me levantar e puxar uma toalha para cobrir meu corpo.
Kalon não vem atrás de mim e eu realmente não quero vê-lo
por perto. Quero que ele volte atrás com essa decisão e me deixe
ser livre, me deixe escolher o que quero viver e como vai ser. Quero
construir minha vida com as minhas próprias mãos, e não pelas
mãos do meu pai, não através das decisões gananciosas dele.
Eu penteio meus cabelos e visto roupas confortáveis, faço
tudo com um pouco de pressa para deitar logo na cama. Kalon sai
do banheiro depois de um tempo, ele está usando um roupão limpo
e caminha até a poltrona, se inclinando para trás e dando total
atenção para o meu corpo deitado na cama.
— Não importa o que eu diga, você sempre vai me odiar. —
Suas palavras são tão baixas que eu penso estar delirando.
Eu desvio meus olhos dos seus e giro meu corpo na cama,
dando as costas para a sua presença que rouba todos os detalhes
do quarto, eu cubro meu corpo e procuro uma forma de adormecer
sem ter outro pesadelo.
Fico estática o máximo que consigo, tentando imaginar um
mundo feliz onde não existe um maldito fantasma me perseguindo e
falando o quanto sou um monstro. Um telefone toca em algum lugar
do quarto, eu permaneço quieta.
— Sim, Minerva? — Kalon atende no segundo toque.
O que essa mulher quer com ele nessa hora da noite? Eu
não me mexo, temendo entregar que ainda estou acordada.
Mantenho minha respiração em uma frequência sonolenta quando
sinto o corpo de Kalon se aproximar do meu, então seus dedos
deslizam por minha bochecha, me causando arrepios.
— Eu não posso sair agora, estou com Arcane. — Ele
sussurra. O silêncio se espalha por muito tempo até que ele volta a
falar novamente. — Não foi assim que nós combinamos, Minerva.
Meu peito aperta ao perceber que esse é o momento em que
tudo volta a ficar cinza novamente. O que ele anda combinando com
ela para sua voz ter tanto imediatismo e exigência? Todos
escondem coisas de mim, não seria estranho se Kalon fosse o
primeiro deles.
— Tudo bem, eu vou pedir para Kol ficar na mansão e vou
até você. — Ele continua sussurrando. — Por favor, não me diga
nada por ligação, espere que estejamos de frente um para o outro,
você pode estar enganada. — Pausa, então uma gargalhada suave
se espalha pelo quarto. — Certo, Minerva, até mais.
Ele desliga e o mundo volta a girar da mesma forma, o quarto
permanece em silêncio, até que sinto o corpo de Kalon sentar bem
ao lado do meu. Sua mão acaricia minha coluna, então meu braço
tatuado e meus cabelos úmidos.
— A sua alma é minha para atormentar, eu te disse. — Ele
sussurra, deixando um beijo estalado em meu ombro. Eu resmungo,
afastando meu corpo para longe do seu, como se meu sono fosse
incomodado.
Ouço ele vestindo suas roupas, então, minutos depois, ele
fecha a porta e o quarto fica completamente em silêncio. Eu me
sento, respiro fundo e olho ao redor. Ele deixou uma meia luz acesa,
eu pulo da cama e me aproximo da cortina para enxergar o jardim.
Parou de chover, está apenas pingando fraco. Sua figura alta e
tranquila caminha entre as árvores e plantas, até que ele abre a
porta do seu carro e entra.
Eu me afasto da janela e olho ao redor, um pensamento
cruza em minha cabeça quando corro para vestir roupas de sair; se
Kalon não pode me dizer todas as coisas que eu preciso saber,
então eu mesma vou descobrir por conta própria.
26. MEU AMOR?

“Eu escolho te adorar á distância,


porque a distância me protegerá da dor.
— MEVLANA.

Eu odeio ter que abandonar Arcane no meio da noite, mas


Minerva não me deu outra escolha ao ligar para mim. Tudo que ela
me disse foi que precisamos nos encontrar com urgência no Museu
da Acrópole, um lugar distante da mansão Planard, mas por essa
hora da madrugada tudo está vazio.
Eu caminho pelo lugar buscando algum sinal dela, todas as
luzes estão acesas, assim como as fontes de águas automáticas.
— Está atrasado. — Ela surge, seu salto fazendo barulho e
seu vestido elegante esvoaçando com o vento.
— Eu dei o meu melhor para chegar a tempo. — Aponto ao
redor. — Um lugar muito conhecido, não acha? E se você tivesse
sido seguida?
— Não tenho motivos para que me sigam, meu marido é o
meu guardião. — Ela cruza os braços.
— Sorte a sua. — Eu limpo a garganta, afundando as mãos
em meu bolso e encarando o solo branco molhado pela chuva.
— Obrigada por me dar a chance de conhecer Arcane hoje.
— Ela fica mais perto, eu ergo meu queixo para analisar seu rosto.
— Você tem razão, ela é inocente e muito preciosa.
Eu contenho um sorriso em meus lábios, trazer Minerva para
comemorar meu aniversário na casa de Arcane foi apenas um
pretexto para convencê-la a me ajudar com o que eu preciso da
Cúpula.
— Isso significa que ela tem oficialmente uma segunda
chance para viver em paz? — Eu inclino a cabeça para o lado.
— Casada com você, ela terá isso. — Minerva balança a
cabeça. — Você sabe que em relação ao casamento não há
reversão. — Ela estala a língua. — Foi uma coisa decidida
diretamente entre Yuri Planard, Ivan Somáli e a Cúpula Demoníaca.
— Seu dedo gira em minha direção. — Você estava lá no dia, como
parte do acordo. O contrato de casamento não vai ser revogado.
Eu balanço a cabeça em concordância, compreendendo que
não há uma forma de cancelar esse casamento e deixar que ela
viva em liberdade, e eu realmente não quero viver em um mundo
onde ela não é a minha esposa. Arcane é minha muito antes de eu
estar dentro dela. Ninguém pode tirar a minha mulher de mim, mas
eu posso tornar sua vida mais fácil expandindo o acordo, porque
minha função como seu marido é mantê-la bem.
— Então eles concordam que ela estará melhor se casar
comigo? — Eu ergo uma sobrancelha. — Parece que a visão da
Cúpula sobre mim mudou muito desde os últimos anos.
— Não, na verdade eles esperam que os dois morram no
final. — Ela dá uma risadinha amarga. — Duas pessoas
condenadas e cheias de pecados, essa é a união perfeita para
resolver dois problemas com um golpe só. — Eu aperto os olhos em
sua direção, odiando sua piada infeliz. — Eles acreditam que vocês
dois vão acabar se matando, pulando de uma ponte, ou sei lá.
— Suposição errada. — Eu estalo a língua. — Vou fazer ela
viver bem comigo.
— O que eu não tenho tanta confiança, pois você é
desenfreado e condenado. — Ela cruza os braços. — Tenho pena
daquela garota por estar amarrada a uma pessoa como você, Kalon.
— Sua mão se ergue para acariciar minha bochecha.
Eu desvio meus olhos para os arbustos atrás dela, não
gostando como suas palavras me ferem sutilmente.
— Ande logo com isso, Minerva. — Eu balanço meus
ombros. — Me diga a decisão deles, me dê minhas respostas e
deixe o destino da minha garota fora dos seus lábios.
— Não foi uma coisa fácil, sabe? — Ela me ignora. —
Conseguir convencer a Cúpula de proteger uma assassina como
Arcane, não foi fácil. Depois daquele incêndio, ela foi considerada
como uma máquina mortal por muito tempo, como uma psicopata
doente. — Minerva afasta sua mão. — Fala sério, a primeira garota
com quinze anos que conseguiu entrar naquela prisão para pessoas
loucas que ameaçam a sociedade e as leis do nosso mundo. —
Minerva ri, achando graça. — Eu jurava que ela era louca igual ao
pai, que pelo menos o homem ainda tem um pouco de neurônio,
mas ela? Uma ameaça prestes a ser eliminada.
Minerva não sabe que foi Yuri quem matou queimada a
madrasta de Arcane. Todos acham que foi Arcane, que aconteceu
em um surto de raiva e descontrole depois que sua mãe biológica
fugiu, mas a verdade é que Yuri matou Cíntia queimada como uma
punição por ela ter machucado suas filhas. Aquela mulher torturou e
quase conseguiu matá-las na Páscoa, tudo porque era obcecada
por Yuri, porque queria controlar ele. Naquela época do ano todas
as pessoas costumam jogar vasos de barro na calçada, naquela
noite aconteceu uma discussão descontrolada e a mulher tentou
jogar as três meninas pela sacada. Melissa, como era mais forte e
mais velha entre as irmãs, conseguiu lutar com a mulher por um
bom tempo. Uma verdadeira leoa, a quem eu respeito muito por sua
atitude.
Mas em algum momento a casa pegou fogo e Yuri salvou
apenas as três meninas, deixando a mulher para trás e vários
traumas na vida dessas garotas. Traumas irreparáveis que
perduram até hoje.
— A minha mulher não é louca. — Eu sibilo, tomado pela
veracidade das minhas palavras.
— O que? Vai dizer que você também não é louco? — Ela dá
risada. — Os boatos são que os dois são muito loucos. Contra fatos
não há... — Seu deboche faz meu sangue ferver, eu a interrompo.
— Cale a porra da boca, dobre a sua língua ao falar que
Arcane é louca, ou eu queimo você e entrego as cinzas para seu
maridinho. — Ela dá uma gargalhada amarga, recuando dois passos
para trás.
— Certo, nada do que eu falei faz sentido mesmo. — Ela me
encara de cima a baixo, como se eu estivesse alimentando os
boatos agora mesmo.
— Eu trouxe você aqui para provar exatamente isso, que ela
não é louca. — Pontuo.
— Você provou, Kalon. Nós já vamos chegar nessa parte,
calminha aí. Eu estava apenas acalmando os ânimos. — Ela ergue
as mãos em rendição. — Hoje eu pude vê-la não como uma garota
louca, mas como uma pessoa que passou anos da sua vida sem
conhecer a normalidade e a paz, sem conhecer as coisas que as
garotas da idade dela tem. Segurança, conforto, paixão e amor. —
Ela limpa a garganta. — A prisão arrancou muita coisa dela, mudou
muitas também, mas eu ainda consigo ver um brilho inocente em
seus olhos e uma vontade imensa de ser normal.
— Como uma mulher, eu acredito completamente que Arcane
merece uma chance de viver sem a Cúpula respirando em seu
pescoço. — Ela pisca. — Sem eles controlando até onde ela deve ir
e o que ela pode fazer, mesmo que ela seja uma assassina. — Ela
balança os ombros. — Quantas pessoas já mataram outras pessoas
inocentes, não é mesmo? Você mesmo matou. Acho injusto que
apenas Arcane tenha sido brutalmente punida ao ponto de ir parar
naquela prisão, mas você? Você apenas continuou sua vida, teve
alguns caras de preto vigiando seus passos, mas só isso.
— Isso é porque não fui eu quem matou Azra. — Eu falo
cheio de pausas e com minha respiração pesada.
— Como você sabe? — Ela ri, acariciando meus ombros. —
Até onde sabemos, você teve sua memória apagada porque perdeu
o controle, você não consegue lembrar do que aconteceu. — Ela
estala a língua. — Pode muito bem ter sido você, quem mais seria e
por que? Já pensou nisso?
— Sim, eu penso nisso o tempo inteiro. — Meu estômago
embrulha com a culpa que sobe pela minha garganta,
enfraquecendo minhas juntas e me deixando exposto a um veneno
que me embebeda durante anos, mas que nunca me mata.
– Certo, então você pode parar de pensar nisso a partir de
hoje, porque eu descobri coisas sobre a morte de Azra que estavam
escondidas e que Yuri não queria te contar. — Suas palavras foram
o suficiente para fazer o meu sangue esfriar, meu coração para de
bater e sinto uma dor lancinante subindo por minha coluna até
atingir meu peito.
— Eu finalmente vou saber toda a verdade? — Minha
incredulidade se torna palpável em meu tom de voz.
— Você vai. — Ela balança a cabeça em concordância. —
Mas você vai precisar pagar um preço por todas essas informações,
e por tudo que pediu para Arcane.
— Eu estou disposto a sacrificar minha vida por isso, se for
necessário. — Eu balanço a cabeça, mantendo uma postura ereta.
— Eu sei que está, mas não é sua vida que queremos como
sacrifício. — Ela dá uma risada enigmática. — Senão, tudo isso não
faria sentido algum.
— Fale de uma vez. — Eu rosno.
— Primeiro… — Ela ergue o dedo. — Ficou decidido com a
Cúpula que Arcane vai poder ter uma vida normal como suas irmãs
vivem. — Minerva balança a cabeça. – Isso significa que os
pecados dela foram finalmente lavados, Kalon. Arcane vai poder
viajar para onde quiser, com quem quiser. — Alívio afrouxa meu
peito, dando paz ao meu espírito por saber que algumas coisas
podem mudar para ela. — Arcane vai poder gerar filhos, eles não
serão considerados uma ameaça por causa da sua suposta loucura.
— Ela continua falando. — Ela pode fazer quantos amigos quiser,
porque relutantemente a Cúpula vai considerar a morte de Nikoleta
como um acidente, e não como uma prova da sua loucura. – Ela fala
mais baixo. — Essa parte foi mais difícil de convencê-los, já que era
a munição que estavam usando para tentar matá-la em algum
momento.
— Então? — Eu pisco algumas vezes, analisando seu rosto.
— Ela vai simplesmente poder continuar sua vida de onde parou?
— Sim, ela vai. — Minerva concorda. — Yuri foi muito
precipitado e apenas trocou a punição de morte pela punição de
casamento. — Ela aponta para meu peito. — Mas eu gosto como
você enxerga as coisas por outro ângulo e foi capaz de mudar o
acordo. – Ela bate palmas, me reverenciando. — Você é muito
corajoso para atirar tão longe e no escuro, eu admito, mas tudo que
segura a liberdade dela é esse casamento, Kalon, não se esqueça
disso. — Ela sibila. — A partir de hoje Arcane está livre para viajar,
para ir a qualquer lugar de Atenas e com quem quiser, para ir morar
do outro lado do mundo ou até mesmo em Marte. — Ela balança as
mãos, cheia de animação. — Ela está livre para construir uma vida
sem limitações. Agora ela pode escolher criar um filho, pois é capaz
disso.
— Ela pode escolher fazer quantos amigos quiser, pois
também é capaz disso. Pode viajar com as irmãs sem ninguém em
sua sombra, pode fazer ballet, faculdade, teatro, música, realizar
sonhos de infância, qualquer coisa. — Ela suspira. — Enfim,
qualquer coisa que ela quiser, contanto que o casamento não
acabe.
Meus lábios se repuxam para baixo. Esse é um bom truque, a
liberdade para Arcane realizar todas as coisas que ama, mas
apenas se continuar presa ao que odeia profundamente. Eu balanço
a cabeça, agora compreendendo porque eles se chamam
demoníacos.
— Agora você vai me dizer quem matou Azra? — Eu levanto
uma sobrancelha, meu coração falhando ao lembrar dessa outra
parte importante do nosso acordo; a verdade.
— Apenas depois que você cumprir a sua parte. — Seu tom
de voz muda para algo sombrio e quase assustador. Eu permaneço
indiferente, esperando que ela fale de uma vez. — Kalon, você vai
precisar destruir a prisão em que Arcane viveu. — Ela confessa,
trazendo choque aos meus olhos. — Você terá que matar todos lá
dentro, não pode deixar que ninguém sobreviva.
— Isso é suicídio. — Eu dou uma gargalhada amarga. —
Você conhece o tipo de gente que vive lá dentro? Todo o tipo de
criatura desenfreada e mortal.
— Você vai sobreviver. — Ela inclina a cabeça. — Até mesmo
Arcane sobreviveu.
Maldita. Arcane sobreviveu apenas porque Yuri tentou aliviar
sua vida lá dentro, o que não foi suficiente, pois ela tem sequelas
em sua vida até hoje. Como a dissociação, a forma como ela se
desliga e quase perde o controle. Eles roubaram muito da sua
identidade, foi por pouco que Arcane sobreviveu.
— Também existe um detalhe. — Ela me arranca dos meus
pensamentos.
— Claro que tem, a Cúpula nunca joga limpo. — Eu debocho.
— Garoto esperto. — Ela sorri. — Aqui vai o ponto; você vai
fazer isso agora mesmo, então espero que tenha se despedido da
sua família, caso não consiga voltar.
— Então esse é o plano, não é? – Eu cruzo os braços. —
Você me entrega algo grande, algo que pode dar muito certo, que
me deixa louco querendo. — Sibilo, me referindo a possibilidade de
uma vida normal para Arcane, e acima disso, de ficar em paz com
minha consciência. — Mas eu tenho muitas chances de morrer
tentando, e aí Arcane vai voltar exatamente para a posição inicial. —
Aponto o dedo em seu rosto. — Sem um casamento a protegendo,
pois vou estar morto, e dessa forma ela vai estar prestes a ser
condenada à morte como queriam desde o começo.
— É pegar ou largar, Kalon. — Minerva mantém sua
expressão indiferente. – Essa é a sua única chance de descobrir
quem matou Azra, pense nisso.
Eu respiro fundo, apertando meus punhos e desejando
esmurrar qualquer coisa. Aperto meus olhos quando enxergo tudo
vermelho pela raiva ofuscante.
— Se você recusar, Arcane vai acabar se matando, pois vai
viver infeliz em um casamento onde não pode ter filhos, onde não
pode sair na porta de casa, ou ver suas irmãs, ou viajar para outros
lugares. Vai ser sempre a mesma coisa, e ela vai sofrer até a morte.
— Ela estala a língua. — Todas as saídas apontam para a morte,
meu amigo, todas que você imaginar. Então pegue a mais fácil, não
custa nada tentar mais um pouco, certo?
Ela avança em minha direção, segurando os dois lados do
meu rosto e me forçando a olhar para seu rosto.
— Não importa as saídas que você procura, tudo aponta para
a morte. — Ela fala como o encanto de uma maldição. — Matar a
Cúpula para que não exista nada disso? Vai trazer não apenas a
sua morte, mas a de toda a Alkyóna. Continuar como está? Arcane
morta e infeliz, sem poder ir para nenhum lugar, presa em um
casamento infeliz que vai a destruir, e mesmo que ela desenvolva
amor por você, ainda vai estar incapacitada de ter filhos, viajar, ser
alguma coisa além da esposa de Kalon Somáli. — Ela balança a
cabeça. — E você consegue ver nos olhos dela que ela não nasceu
para viver tão miserável assim, certo? Ela quer ser algo a mais, os
olhos dela imploram por liberdade.
— Mas se eu conseguir sobreviver na prisão? — Eu
pergunto, afastando meu rosto das suas mãos.
— Então, teremos um casamento para fazer. — Ela sorri de
lado, acariciando meu rosto como se fosse a coisa mais fácil do
mundo. — Mas ela ainda vai odiar você, ela ainda vai estar sem
saber todas as coisas que você fez por suas costas, e quando ela
souber? Mais possibilidades de morrer. — Ela balança os ombros.
Porra, ela está me manipulando. Ela está tentando entrar na
minha cabeça e enfraquecer meu psicológico. Minerva está me
fazendo enxergar apenas o lado ruim para que no momento que eu
fizer esse massacre na prisão, eu falhe.
Eu ergo minhas mãos na tentativa de colocar algum escudo
ao redor do meu cérebro, de ofuscar qualquer coisa que faça as
dúvidas irem embora, e principalmente de afastá-la para longe do
meu corpo.
— Tudo bem, mas eu vou precisar de muita munição. — Eu
limpo qualquer resquício de emoção em meu rosto. Minerva fica em
silêncio, seu olhar me analisando como se isso fosse uma surpresa.
— E quanto as pessoas inocentes que estão lá dentro?
— Não existe ninguém inocente lá dentro. — Ela balança a
cabeça em negação. — Para você ter uma ideia do lugar onde vai
entrar… — Ela limpa a garganta, me fazendo segui-la até seu carro
e abrindo um tablet com várias imagens. — Veja isso, os homens
invadiram a ala feminina semana passada. — Ela mostra. — Todas
as mulheres foram mortas e estupradas, nenhuma mulher sobrevive
naquele lugar por muito tempo, por mais letal e perigosa que ela
seja. — Minerva passa várias imagens de corpos destroçados,
sangue espalhado e vídeos das câmeras de segurança onde eles
atacam uns aos outros e lutam até morrer. — Você estará fazendo
um favor para muita gente quando acabar com esse lugar, pense
que estará vingando até mesmo a sua mulher que viveu lá dentro.
Ela me olha com tranquilidade após guardar seu tablet de
volta no carro.
— E quanto as pessoas que vão parar lá dentro todo ano? —
Eu balanço os ombros.
— Isso vai deixar de existir. — Minerva sussurra. — A nova
regra da Cúpula é matar qualquer pessoa que faça a sociedade
correr riscos e que afete as nossas ordens. — Ela me analisa. —
Não há nenhuma razão para manter essas pessoas presas, eles
causam apenas complicações, eles não tem salvação. O novo
método é muito melhor e eficaz.
— Certo, vamos nos preparar. — Eu caminho até onde meu
carro está estacionado há poucos metros do seu. Abro o porta
malas e começo a me desfazer do meu sobretudo, abrindo a minha
camisa para colocar um colete e armas em todos os lugares
cabíveis.
— Espera. — Minerva se aproxima. — Primeiro você precisa
matar o chefe deles. — Ela insiste. — Esse homem não pode fugir
de forma alguma, mate ele que todos os outros cairão.
— Com prazer. — Eu resmungo.
— Eu coloquei alguém infiltrado lá dentro para deixar pistas
na parede de onde fica o caminho até a cela do chefão, matando
ele, você pode destruir todo o lugar até virar poeira. — Ela sorri de
lado. — Venha, vamos pegar mais munição no meu carro e ver
como é o rosto do homem.
O frio agride minhas costas, eu respiro fundo, deixando o
carro aberto e caminhando até onde Minerva está. Eu entro na porta
do passageiro, ainda sem camisa, o colete está entre meus dedos.
Ela ocupa o lugar do motorista e fecha as portas, ficando apenas
nós dois dentro do carro e seu notebook aberto.
— O nome dele é Drago, ele é russo e cego de um olho. —
Minerva desliza fotos do rosto dele, o homem tem uma enorme
cicatriz desde o olho direito até o queixo. — Ele foi parar na cadeia
depois de matar a esposa e os filhos.
— Não quero saber muito sobre ele. — Abaixo a tela do
notebook. — Isso é suficiente.
Não costumo ter muita familiaridade com minhas vítimas,
meu pai me criou para matar sem precisar de todas as informações
sobre a vítima, tudo que me basta é saber que ele é uma pessoa
ruim. Não gosto de saber sobre seus crimes porque acabo
desenvolvendo curiosidade em conhecer suas vítimas, ficando
empático ao imaginar como podem ter sofrido, principalmente
quando são crianças. Isso afeta a minha precisão e foco na hora da
vingança.
Minerva provavelmente sabe disso, pois está sorrindo de
lado, como se tivesse encontrado uma forma de me abalar durante
essa missão. Mas eu tenho motivos maiores para vencer. Eu quero
Arcane livre, então não ligo para o que vou precisar destruir.
— Abra essa carta quando tiver feito tudo. — Ela me entrega
o papel. — Guarde com cuidado e abra apenas depois, não antes.
Aí dentro estão as respostas que você procura sobre a morte de
Azra.
Eu encaro o envelope como se fosse um monstro. Meus
dedos se fecham ao redor do papel e eu o guardo dentro do meu
bolso sem muita emoção. Saio do carro, batendo a porta e
acenando para Minerva.
— Eu espero não vê-la novamente, sabe? Pega mal manter
uma relação quando estou prestes a me casar com Arcane. Ela é
muito ciumenta. — Provoco, lhe lançando uma piscadela e
caminhando para meu carro.
Minerva apenas solta uma risadinha e dá perdida, saindo do
estacionamento e seguindo pela avenida vazia. Eu vou até meu
carro, unindo as sobrancelhas ao perceber que fechei o porta malas
e não percebi. Porra, não posso ficar sempre inconsciente quando
mato algumas pessoas, eu preciso me lembrar de cada detalhe para
reconhecer tudo que fiz, para ter tudo guardado na minha cabeça e
reconhecer do que sou verdadeiramente culpado.
Fecho o colete ao redor do meu corpo, agora deixando-o do
jeito certo. Eu aperto com força e visto os armamentos que ela me
deu, em seguida, puxo minha camisa para vestir e entro no carro,
dando a partida em direção a prisão onde posso sequer voltar com
vida.
No meio do caminho eu ligo para Kol, informando para ele
tudo que estou prestes a fazer, claro que ele me desferiu inúmeros
palavrões, até que aceitou o meu pedido de ficar de olho na mansão
onde Arcane está com suas irmãs.
Eu saio para fora do carro depois de encontrar um lugar
seguro para estacionar, a noite fria consome os céus. Agora que a
chuva parou completamente, nenhuma estrela brilha no céu e todo o
ambiente está úmido, desconfortável e frio. Eu caminho com
cuidado, observando a região e preparando uma arma ao lado do
corpo.
Meu plano é matar um dos guardas noturnos e vestir as
roupas dele, dessa forma vou conseguir entrar sem levantar
suspeitas. Tem três deles espalhados pelas muralhas altas, em uma
posição onde é possível ver todo o perímetro e a cidade aos fundos,
iluminada pelas luzes que nunca se apagam.
Eu vou até a parte de trás do carro para pegar algumas facas
e colocar no bolso porque tenho a impressão que minhas munições
não são suficientes para lidar com um presídio de segurança
máxima.
— Puta merda. — Quando abro, tenho um sobressalto ao ver
o corpo de Arcane escondido entre meu sobretudo. — Que porra
você está fazendo aqui?
Eu não dou tempo para ela processar que foi flagrada, todo o
meu sistema está alerta com o fato dela estar aqui. Na porra da
prisão, nolugar onde fui enviado para destruir. Porra. Puta merda.
Puxo seu braço, fazendo ela tropeçar quando mantenho seu corpo
contra o meu, como se fosse possível ela entrar dentro de mim.
— Fale de uma vez, porra! O que está fazendo aqui?! — Eu
rosno em sussurros pesados. — Como você fez isso?
— Você está me machucando, Kalon. — Ela toma fôlego,
tentando retirar seu braço. Seus cabelos estão bagunçados até que
seu rosto se ergue para me encarar de frente. — Eu peguei um táxi
e segui você até o Museu da Acrópole, foi onde vi você com Minerva
e me escondi em seu carro para conseguir voltar para casa. — Seu
rosto está avermelhado. — Da sua casa eu conseguiria voltar
sozinha.
— Você ouviu minha conversa com ela? — Puxo seu corpo
para mais perto do meu.
— Não. — Seus olhos brilham cheios de confusão. —
Apenas a parte em que você disse que não iria manter esse
relacionamento porque vai se casar comigo. — Ela fala mais baixo.
— Ou seja, considerando o tempo que passou dentro do carro com
ela… Você estava me traindo? Foi pra isso que saiu da minha casa
às pressas?
Porra, eu odeio que ela pense assim de mim, mas manter
essa versão é bem melhor do que contar toda a verdade.
— Esse não é o momento para conversar sobre tudo isso. —
Eu seguro seu queixo. — Você não devia ter feito nada disso,
merda.
— Você esconde coisas de mim, Kalon. — Ela tenta me
empurrar, mas eu sou mais forte. — Você tenta me distrair com sexo
e momentos triviais, mas eu quero saber da verdade. — Ela respira
fundo, raspando seus dedos nos meus para tentar remover minha
mão. — Olha, se você não pode me dizer o que quero saber, então
eu não me arrependo de procurar por formas de descobrir sozinha.
Eu admiro sua coragem de gritar isso na minha cara, de
provar que não importa o que eu faça, ela ainda se mantém fiel ao
que tanto deseja: o fim desse casamento.
— Eu não estava traindo você. — Eu balanço a mão para
apaziguar a sua raiva, principalmente a forma como ela desfere
tapas em meu ombro para que eu a deixe sair. — Agora você
precisa ficar em silêncio e fazer tudo o que eu mandar, meu amor.
Arcane pisca, então levanta a guarda ao manter o ambiente
ao redor, as muralhas atrás dela e os homens lá em cima. Todo seu
corpo treme em reconhecimento, suas mãos me agarram, tomada
pelo choque.
— Por que estamos aqui? — Sua voz não passa de um
sussurro quebrado. Medo e desconfiança consome sua expressão
quando eu puxo seu corpo para um ângulo seguro atrás do carro,
cobrindo-a completamente.
— Concentre-se em mim. — Eu abro minha camisa e tiro o
colete. — Vista isso, agora. — Coloco na frente do seu vestido,
ajudando ela a vestir, já que suas mãos estão trêmulas e seus olhos
brilham de medo.
— Kalon… — Sua voz se quebra. — O que estamos fazendo
na prisão?
Eu não dou tempo para ela se acalmar, puxo seu pulso com
força, forçando-a a caminhar atrás de mim e ficar levemente
inclinada para baixo.
— Você está me devolvendo para esse lugar? — Suas mãos
apertam meus dedos, ela tenta soltar seu pulso enquanto se
contorce e quase grita. Seus tapas não me machucam tanto quanto
seu choro amedrontado. — Por favor, não faça isso! — Ela aperta
os olhos e soluça. Seu rosto está pálido pra caralho. — Por favor!
Eu não quero voltar! Eu aceito qualquer coisa, eu aceito a merda
desse casamento e que você tenha sua amante, mas por favor…
Não me faça… Ai meu Deus, eu não quero voltar para cá. — Suas
pernas enfraquecem e seu corpo bate contra o meu, ela está em
choque, prestes a desmaiar com tanto medo e desgosto no seu
sistema.
— Shhh!! — Empurro seu corpo contra a parede, ela amolece
e esconde seu rosto em meu peito.
— Kalon, por favor! Não me separe das minhas irmãs! —
Seus olhos estão fechados quando suas mãos se fecham ao redor
do meu corpo, me agarrando com força e implorando baixinho.
— Preste atenção, meu amor. — Eu acaricio seu rosto. —
Não é nada disso, eu estou aqui para matar alguém e você precisa
ir para algum lugar seguro. — Ela respira fundo, balançando a
cabeça e tentando se livrar das lágrimas. — Você não vai ser
deixada aqui, apenas segure-se em mim e não solte por nada.
Suas mãos trêmulas agarram a barra da minha camisa,
quando eu começo a andar, ela mal consegue me acompanhar sem
travar ou gemer de angústia. Eu aperto meus olhos, olhando em sua
direção e pensando em desistir de tudo apenas para protegê-la da
sua própria mente, mas também quero destruir este lugar para que
ela nunca mais pense que pode voltar.
— ¿Hablas español conmigo, cariño? — Eu sussurro,
ganhando sua atenção.
— Como? — Ela pisca, limpando uma lágrima que escorre
por sua bochecha.
— Você entende espanhol, certo? — Ela balança a cabeça
em concordância.
— Eu aprendi quando tinha doze anos. — Seus olhos ainda
tem fagulhas de medo.
— Ótimo, fale comigo em espanhol para não sentir medo,
essa vai ser a língua que vamos usar apenas em nosso mundo. —
Eu sussurro. — E se você não quiser continuar com espanhol,
vamos para o inglês, o turco e o russo. — Eu seguro seus dedos.
— ¿De qué tengo que hablar? — Ela me olha triste, tentando
ignorar as paredes altas ao nosso redor. Estamos bem perto da
entrada principal.
— Mi nutria se llama Pinar. — Ela ri fraco ao ouvir sobre
minha lontra, beijo seus dedos antes de guiá-los até o meu cinto.
Ela segura com força. — No me sueltes por nada, nena.
Arcane balança a cabeça em concordância e eu giro nossos
corpos, avançando até estarmos perto dos portões em formato de
grades.
Esse lugar parece a porra do castelo do conde Drácula. Eu
respiro fundo, puxando seu braço e tocando sua cintura.
— Vou empurrar você primeiro. — Eu sussurro, apontando
para a parte da grade que vamos escalar até ficarmos no topo da
muralha. Arcane treme, olhando para cima como se esse lugar
fosse o inferno. Ela balança a cabeça em concordância, fechando
os olhos brevemente e erguendo as mãos para alcançar a barra
mais próxima.
Seu corpo se movimenta com dificuldade, e quando ela está
na metade das grades, ela paralisa. Eu me aproximo, subindo logo
atrás dela e ajudando seu vestido a não balançar com o vento forte.
— Tienes que seguir adelante, mi amor. Malditas horas
decidiste seguirme, ahora estamos jodidos juntos. — Eu aperto sua
perna, fazendo ela jogar para o outro lado da muralha e girar.
Arcane é muito flexível, ela faz isso tão facilmente que rapidamente
fica em pé, estendendo as mãos para me ajudar.
Ela me olha como se quisesse gritar inúmeros palavrões, me
esbofetear e fugir, mas apenas respira fundo e me ajuda a subir,
olhando ao redor enquanto fica mais perto do meu corpo. Eu mudo
nossas posições, agora tomando a frente quando o guarda mais
perto percebe nossa presença. Arcane segura o meu cinto como eu
havia mandando, caminhando abaixada atrás de mim no momento
em que seguro a arma que ele aponta em minha direção, eu bato
minha cabeça contra seu nariz e ele fica desorientado. Bato em sua
boca com o cotovelo repetidas vezes, até que ele cai para trás e eu
seguro a arma com as duas mãos. Eu respiro fundo e empurrando o
cano bem em sua cabeça e não penso duas vezes ao puxar o
gatilho.
— Fácil pra caralho. — Cuspo, chutando suas botas. Arcane
está ofegante atrás de mim, tentando acompanhar com o olhar tudo
que eu estou fazendo. — Você deve ficar aqui até eu voltar.
Eu me abaixo para remover as roupas dele e vestir, Arcane
me observa um pouco desorientada e trêmula, até que ajoelha ao
lado do homem e segura sua mão. Ela desliza seus dedos,
fechando os olhos dele, então me olha profundamente.
— Você vai entrar lá dentro sozinho? — Ela sussurra. — Não
vá, Kalon. Eles podem te matar. — Ela balança a cabeça repetidas
vezes, largando a mão do homem morto para segurar as minhas. —
Por favor, você não sabe o quanto é assustador.
— Contanto que você esteja aqui fora, eu não me importo. —
Eu me separo dela e tiro minhas roupas para vestir as do cadáver.
Ficaram um pouco apertadas, já que sou mais alto que o homem,
mas encaixam perfeitamente para eu me misturar. Visto suas botas
e olho para Arcane, entregando uma das minhas adagas em suas
mãos.
— Na primeira oportunidade de salvar a sua vida, seja
egoísta e salve, não pense em outra coisa. — Sussurro. — Está me
ouvindo? Você deve ficar aqui e fugir se sentir que eu não vou
voltar.
— Mas você precisa voltar. — Ela fica em pé, segurando
meus dedos novamente. Sua expressão apavorada me acerta em
cheio contra o peito. — Por que você veio aqui? Por favor, vamos
apenas voltar! — Seu olhar fica mais triste a cada segundo que
passa dentro desse lugar.
— Não posso voltar. Não agora. — Porra. Eu aperto minha
testa contra a sua e respiro seu cheiro. Seus dedos se fecham ao
redor do meu colete e ela treme, me segurando com força. — Você
nunca mais vai me seguir de novo, merda. — Aperto seu queixo,
fazendo seu olhar se igualar ao meu. — Veja onde se meteu.
— Eu queria apenas respostas. — Ela balança a cabeça em
negação, sua voz ficando mais firme ao defender suas intenções. —
Não imaginei que você viria para cá. — Seus lábios tremem.
— Minerva me deu a missão de matar todas as pessoas aqui
dentro. — Eu balanço a cabeça. Choque brilha em seu rosto. —
Esse lugar está ficando cada vez pior com o passar dos anos,
chegou a hora de acabar com tudo e essa função é minha. —
Aponto para meu peito, sem soltar a arma.
— Esse lugar vai acabar pra sempre? — O alívio no seu rosto
me faz sorrir torto. Eu balanço a cabeça em concordância, Arcane
suspira firme, abaixando seus ombros.
— Era isso que eu estava fazendo com Minerva. — Eu
acaricio sua bochecha, usando meu polegar para lhe dar um pouco
de conforto. — Agora você precisa me esperar aqui até eu voltar,
então respondo todas as suas dúvidas.
Fecho seus dedos ao redor da adaga que coloquei em suas
mãos.
— Eu não quero matar ninguém. — Arcane me olha
apavorada.
— Se for para ficar viva, você vai matar sim. — Eu aponto
para a arma do segurança no chão. — Use isso e não gaste muita
munição. — Ela acompanha tudo com o olhar, balançando a cabeça
para cada palavra. — Você vai sobreviver, entendeu? Nada de se
machucar ou morrer, senão eu bato na sua bunda e reviro a porra
do inferno para trazer você de volta. — Seguro seu braço, trazendo
seu corpo contra o meu e roçando meus lábios nos seus.
— Você vai me beijar agora? — Arcane resmunga,
aproximando sua boca para mais perto. — Tecnicamente não tem
como me ressuscitar, então sua ameaça é apenas um reflexo da
sua preocupação, correto?
— Correto. — Eu rosno, deixando um selinho rápido.
— Eu vou me proteger, quero viver mais do que qualquer
pessoa. — Ela balança a cabeça em concordância, se afastando
para me olhar suavemente. — Você também está proibido de morrer
e me deixar sozinha nesse lugar. — Ela aponta ao nosso redor.
Eu dou uma risada fraca, me afastando e começando a me
preparar para todo esse massacre. Desço os degraus e corro pelo
ponto mais escuro onde as muralhas fazem sombra. Os outros dois
homens que estão vigiando o perímetro são derrubados com tiros
silenciosos. Eu respiro fundo, me sentindo tranquilo para entrar no
prédio ao saber que Arcane está sozinha aqui fora e ninguém pode
machucá-la.
De acordo com as orientações que recebi, o chefe de toda
essa bagunça está no último andar, em um lugar mais agitado onde
apenas os pais perigosos ficam. Toda a prisão está silenciosa e as
luzes estão acesas.
Eu subo os degraus sem fazer barulho, me precavendo ao
dobrar cada corredor vazio. Mas quando estou no último andar,
percebo que a cela está aberta. Algo bate contra minhas costas e eu
me abaixo com o impacto.
— Eu vi você da janela. — Uma voz grave fala atrás de mim.
Eu dou risada, levantando devagar e olhando para a figura alta e
careca. — Alguém está muito perdido, não acha?
— Na verdade, eu estou no lugar certo. Salam Aleikum,
querido. — Respiro fundo, erguendo os punhos no momento em que
ele chuta minha arma para longe.
Porra, por que não me disseram que essa ala tem as celas
abertas? Fala sério, um bando de loucos e a única porta fechada é a
passagem principal que eu abri. Minha cabeça estremece quando
ele acerta minha testa.
— Meus amigos de fora avisaram sobre as novas leis da
Cúpula. – O homem cospe sangue quando eu acerto um murro em
sua boca. — Eu só não imaginava que eles mandariam um único
homem para finalizar o serviço, que desperdício, estão ficando
fracos!
Ele empurra meu corpo contra a parede, eu dou risada,
segurando seu pescoço e impulsionando minha testa contra seu
nariz. Ele grita alto, eu não dou tempo para sua reação, eu apenas
chuto seu rosto e avanço para cima do seu corpo em uma luta
pesada, cheia de socos e rosnados. O homem grita quando me ergo
e piso em seus dedos, espremendo cada osso contra o chão até ver
o sangue e pedaços de pele.
Eu pego uma das minhas facas e bato contra seu peito,
rasgando superficialmente, para que ele se recorde de todos os
seus crimes enquanto morre. Seu grito é embriagado e fraco, meus
dedos perfuram seus olhos quando ele tenta me agarrar pelo pulso.
— Eles mandaram apenas um homem porque eu sou muito
melhor torturando com facas do que atirando. — Eu puxo seus
ombros, colocando ele sentado no momento em que empurro minha
faca em sua perna, impedindo qualquer movimento do seu corpo
sem que o sangue espirre como suco. — Isso significa que você vai
sentir como se fossem vários homens, mas sou apenas eu… —
Aproximo meu rosto para que ele veja meus olhos. — Kalon Somáli.
Eu uso facas para cortar sua mão, arrancando cada dedo
enquanto ouço ele gritar e chamar por pessoas que eu desconheço.
Mas seus gemidos de agonia não vão muito longe, já que ele está
quase desmaiando e sufocando.
Eu grunho, empurrando a faca em seu pescoço e retirando,
sangue espirra no meu rosto e eu esfrego com o dorso da mão,
sentindo nojo. O homem atira a cabeça de um lado para o outro, até
que o sangue escorre dos seus lábios e ele fica em silêncio. Ele
está morto. Afasto meu rosto para observar com atenção.
— Mas que porra, eu não devia ter feito tão rápido. — Eu dou
um murro no cadáver para descontar minha frustração.
Me levanto, pegando minha arma no chão e caminhando pelo
corredor. Observando melhor eu percebo que não são todas as
celas que estão abertas, eu caminho mais devagar, olhando o
interior de cada uma. Algumas estão vazias e outras tem homens no
fundo, assustados, ou prontos para lutar. Eu assobio, acenando com
a ponta dos dedos sujos de sangue.
— Salam Aleikum… — Eu canto baixinho, abrindo a primeira
cela. — Aleikum-essalam…
Dou risada quando o homem forte e barrigudo corre em
minha direção. Esse foi mais difícil de matar, eu tive que pendura-lo
contra a cama e quebrar seu pescoço enquanto esfaqueava seu
peito. Passaram-se horas onde eu abria cela por cela e matava
cada um deles, ignorando seus gritos e tentativas de fugir. Em cada
uma eu perguntei o nome deles, o chão já estava escorregadio e
coberto de sangue com pedaços desmembrados. Meus dedos
pingam conforme abro duas granadas e tento segurá-las. Eu desço
as escadas e jogo as duas dentro das celas cheias de cadáver, meu
corpo balança quando a explosão derruba tijolos e o incêndio
começa, consumindo os corpos e as camas.
Eu seguro minha arma, atirando para os policiais que sobem
para me impedir, disparo contra eles enquanto dobro o corredor e
chuto alguns deles das escadas altas. Algumas celas estão abertas
e os presos começam a correr, o barulho da explosão fez com que
os policiais soltassem eles.
— Merda. Porra do caralho. — Eu atiro contra uma janela e
bato meu cotovelo, derrubando os estilhaços e me preparando para
pular do terceiro andar e encontrar Arcane a tempo. Ela não pode
ficar sozinha lá fora enquanto eles tentam fugir.
Jogo três granadas contra a fila de homens que empurram
uns aos outros e tentam fugir do prédio coberto por chamas. Eu
atravesso a janela, amortecendo minha queda contra o telhado e
dobrando os joelhos. Toda a explosão faz minha audição sucumbir,
me deixando surdo por alguns segundos de choque. Eu engasgo,
gemendo com a dor em meus tímpanos.
Deslizo com cuidado e pulo no chão, rolando pelo gramado
até sentir o solo estável para me erguer. Meus dedos cheios de
sangue mancham a grama esverdeada, eu levanto depressa para
atirar contra o primeiro grupo de homens que vem correndo em
minha direção, parece a porra de uma missão suicida olhando a
quantidade descontrolada que tenta lutar comigo e fugir da prisão,
mas as portas principais estão bem fechadas, a muralha é muito alta
para alguém escalar do lado de dentro.
Uma tropa de policiais luta para controlar a comoção de
homens armados com pás e pedaços de madeira. Eu me aproximo,
correndo para o meio do gramado que antes era uma área para
tomar sol e jogar basquete, mas agora está tudo tomado pelo fogo e
escombros. Eu disparo contra a fileira de homens que vem correndo
em minha direção, alguns deles caem, outros avançam com
determinação. Uma sombra se posiciona na minha lateral, ela
aparece tão rápido e agressiva que eu tenho que piscar algumas
vezes.
— Arcane mou. — Eu rosno, sentindo suas costas contra a
minha. — Saia imediatamente daqui, o que eu disse a você?
— Eu não lembro do que você disse, me dê uma faca, eu não
gosto de usar armas de fogo.
Ela respira fundo, esmurrando o rosto deles sem nenhum
medo de se machucar, pelo contrário, eles caem machucados. Seus
golpes são fatais, ela sabe o lugar exato de imobilizar e até mesmo
quebrar o pescoço. Porra, como eu vou conseguir me concentrar
quando essa mulher está ao meu lado fazendo essa coisa sexy com
as mãos?
Eu puxo minha lâmina da cintura, entregando para ela que
agora usa duas ao mesmo tempo, uma em cada mão. Seus golpes
são em lugares específicos do rosto, onde os homens caem
gritando e se contorcendo, assim como o sangue molha seus
ombros e bochechas. Os olhos de Arcane estão cheios de desgosto,
como se ela não gostasse de estar fazendo isso, como se doesse
mil vezes em sua alma, mas que está sendo obrigada a isso.
Seus olhos agressivos me observam, eu ergo a mão para me
defender quando ela joga o braço, cortando a garganta de um
homem que estava atrás de mim com um machado. Porra, que
mulher. Um sorriso safado dança em meus lábios ao admirar seu
ótimo reflexo. Isso é o que eu chamo de um ótimo gancho de…
— Você está bem? Por que não viu ele? Presta atenção na
vida, Kalon! — Ela me observa ofegante, quase histérica enquanto
analisa o sangue dele escorrendo em meu pescoço.
— Desculpe, amor. Eu estava pensando. — Eu limpo a
garganta.
— Isso não é hora de pensar! — Ela cospe as palavras. —
Onde você pensa que está? Em uma apresentação de teatro?
Bebendo vinho com Shakespeare?
— Você está nervosa? — Eu giro os pés, encarando seu
rosto vermelho.
— Sim, eu estou! — Ela balança as facas em minha direção.
— Vamos sair logo daqui, eu odeio esse lugar.
— Tudo bem. — Eu respiro fundo, pegando a arma de um
dos policiais mortos e atirando contra um grupo de homens que
estão tentando derrubar as grades que protegem a área de lazer da
parte principal que leva até a saída.
— Você não costuma seguir um plano na hora de matar? —
Arcane segue meu sinto, seus dedos são firmes enquanto me
acompanha curvada.
— Meu único plano é matar da forma mais tortuosa e
demorada possível. — Eu derrubo vários corpos e ela finaliza com
os que conseguem passar por mim.
— Fala sério, meu namorado é um maníaco. — Ela
resmunga.
Vários cadáveres estão espalhados pelo chão, o grupo de
policiais com escudos tenta controlar os outros, atirando neles
também. Eu puxo o pino de um nova granada e jogo na direção
onde os homens estão amontoados para derrubar as grades. O
corpo de Arcane está debaixo do meu, seguro seus ouvidos para
proteger do barulho e deito meu corpo por cima do seu. Ela grita
quando tudo explode e alguns pedaços batem contra nós. O chão
gira debaixo dos meus pés, minha cabeça está girando também,
mas eu me mantenho em pé para continuar atirando.
— Comece a correr, eu vou atirar granadas e explodir a porta
principal para você correr até o carro. — Aponto, segurando seu
braço com mais força do que o necessário. Arcane geme, sem
tempo de falar alguma coisa.
Eu mantenho seu corpo protegido atrás das minhas costas, já
que sou mais alto que ela e dessa forma tenho mais segurança para
sair atirando no grupo de homens que lutam contra os policiais. Eu
paro quando um tiro acerta minha barriga, mas o que mais me
atormenta é o grito de desespero que sai atrás de mim.
— Me ajuda! Me ajuda! — Meus ouvidos zumbem, as mãos
de Arcane agarram meus ombros enquanto ela grita e se esperneia.
Ela está chorando e balançando as mãos sujas de sangue em
minha direção, eu giro, ajoelhando pesadamente no chão. — Kalon!
Me ajuda! — Dois homens estão puxando ela pelos braços,
nenhuma das sua tentativas são suficientes para sair do aperto
deles.
Meu corpo cai para frente, a dor se espalha por minha coluna
e eu me sinto incapaz de fazer qualquer movimento. Eles levaram
Arcane para o outro lado das grades, onde não tem muitas pessoas
e apenas alguns caixotes. Ela está gritando alto, ela está se
debatendo e gritando tão forte que meu peito se fecha em angústia.
— Eu lembro de você, garota! — Um dos homens fala. — Foi
você quem matou nossa amiga Nikoleta, não é? Você mesma! —
Ouço o som inconfundível do seu vestido se rasgando, Arcane grita
mais alto, seu choro é rouco e tão desesperado que meus ossos
doem.
— Deixem ela… — Eu gemo, ainda sentindo a dor pelo tiro
que conseguiu atravessar meu colete. Eu engasgo, minha cabeça
girando com o som intenso dela implorando por socorro. Porra. Não.
Eles não podem estar fazendo isso com ela.
Eu empurro meu corpo para o alto, empurrando meus punhos
e tentando engolir toda a dor que me preenche, apertando a lateral
do meu corpo e toda a minha coluna. Meu peso está mais intenso,
mas eu não interrompo meus passos para dentro do lugar onde
Arcane está deitada, esperneando e gritando firme.
— Seu grande filho da puta! Tire as mãos dela! — Eu rosno,
pulando nas costas do homem no momento em que ele tenta abrir
seu cinto e os outros seguram ela. Eu enxergo tudo em vermelho,
uma raiva soterradora se apossa do meu peito. Eu juro que posso
matá-lo sem precisar de armas. Eu farei. Meus dedos se fecham ao
redor do seu pescoço, o homem engasga e tenta me bater, eu
seguro seu queixo, abrindo sua boca dos dois lados e puxando sua
língua para fora com a ponta dos dedos.
Ele engasga, ele tenta me derrubar, mas minha força ao
redor do seu queixo é mais forte que qualquer tentativa. Foi rápido e
certeiro, eu puxo sua língua e empurro a minha faca dentro da sua
garganta, abrindo sua garganta de dentro para fora. Sangue se
espalha por seu peito quando eu recuo, minhas bochechas também
estão manchadas. O homem cai para o lado de um jeito pesado e
tão miserável que eu sinto nojo. Eu avanço em sua direção,
aproveitando que seus amigos estão em choque ao assistir tudo.
– Eu não queria… Eu não queria matar ela… — Arcane está
encolhida perto dos caixotes, ainda chorando e tentando se cobrir.
Ela está em choque, perdida em sua própria cabeça.
– Todos vocês vão pagar por isso. — Uma raiva dolorosa me
faz fumegar.
Eu puxo a faca caída no chão e a empurro entre as pernas do
homem, rasgando suas bolas e pau no primeiro movimento. Meus
punhos batem com firmeza contra sua virilha, ele grita, o sangue
forma uma poça grande, eu não interrompo meus movimentos
frenéticos. Arcane está gritando mais alto enquanto ouve os sons
inconfundíveis dos testículos se rompendo, até que um estalo ecoa,
indicando que eu quebrei o osso da sua pelve. Eu não paro até que
o homem está totalmente destroçado, com suas pernas separadas e
o sangue escorrendo como um rio.
— Ainda não estou satisfeito… — Avanço, empurrando a
faca em seu peito, fazendo um enorme rasgo na sua carne. Ele está
completamente morto, mas seu maldito coração ainda bate
momento em que o puxo. — Vocês vão comê-lo. — Eu me ergo,
olhando para os homens paralisados, eles estão com medo de
passar por mim para conseguir fugir daqui.
Cheiro de urina preenche minhas narinas, eu percebo que
isso está saindo deles e uma gargalhada animada sai da minha
boca. O meu sangue esfria e meus ombros balançam, eu atiro a
cabeça não conseguindo me consolar da visão deles urinando nas
calças.
— Quantos anos vocês tem? — Eu debocho. — Tiveram a
audácia de machucar o que é meu, mas não conseguem encarar as
consequências disso? — Eu avanço na direção dos dois. — Vai ser
um prazer matá-los lentamente.
Eu não olho na direção de Arcane quando empurro o coração
inerte contra a boca do primeiro, o homem geme e sente ânsia de
vômito. Eu espremo o órgão, deslizando meus dedos em sua
garganta enquanto ele engasga, mas finalmente engole. O outro
pedaço, eu encaro o homem caído ao seu lado, tremendo e
implorando com as mãos em preces.
— Por favor… Queríamos apenas nos vingar… Ela matou
nossa…
Eu corto suas palavras, atirando na perna do outro homem
que está se arrastando no chão, tentando fugir enquanto engasga
com os pedaços do coração cru que engoliu. Eu estalo a língua em
negação, balançando o dedo e olhando para o homem que implora
ao ponto de quase desmaiar.
— Eu vou ser gentil com você. — Balanço o coração em sua
direção. — Coma com as suas próprias mãos. — Vocifero.
— Meu senhor… — Eu gargalho alto, quase caindo de bunda
no chão, já que estou de cócoras.
— Meu senhor? — Sufoco, tentando cobrir meu queixo, mas
desisto ao sentir o cheiro salgado de sangue quente. O outro
homem está agonizando e chorando no chão, tentando segurar sua
perna destroçada. — Coma essa porra, agora! — Eu grito alto,
apontando o dedo em sua direção. Ele o faz, engasgando de um
jeito feito e quase vomitando ao sentir o cheiro. — Filho da puta
desprezível! — Eu estapeio seu rosto. — Isso é a prova do quanto
são animais, comem qualquer resto, basta alguém mandar. —
Estalo a língua, empurrando a ponta da faca contra sua virilha
molhada de urina e terra.
— Por favor, eu imploro! — Ele une as mãos, ainda falando
como se merecesse alguma coisa.
— Implore para o diabo! — Eu cuspo em seu rosto. —
Misericórdia é dada para os filhos de Deus, não para animais
endemoniados como vocês… — Aproximo meu rosto para sussurrar
contra sua pele. — Estupradores merecem isso aqui. — Empurro a
faca com força, arrancando seu pau e testículos. O sangue se
espalha e eu vou até o homem desmaiado por causa do tiro. —
Você é tão fraco, eu espero que sinta isso até na alma. — Rasgo
seus testículos com força, arrancando um grito da sua boca, seus
olhos estão arregalados e permanecem assim quando empurro seu
tronco para o lado.
Eu me ergo, encarando todos os cadáveres com um profundo
tédio varrendo a minha alma. Eles morreram rápido demais, tão fácil
que meus lábios repuxam em desprezo. Eu devia ter feito melhor,
com mais criatividade, devia passar a noite brincando com seus
corpos até ficar exausto. Minha expressão está fechada pela raiva e
insatisfação, eu puxo os dois homens pelos braços e faço uma pilha
com os corpos.
Vou até o outro lado, onde vários outros corpos estão
queimando. Eu pego um pedaço de madeira em chamas e jogo em
cima deles, assistindo com indiferença quando são consumidos e
começam a estalar.
— Meu amor? — Eu viro para encarar Arcane, fazendo uma
careta ao sentir uma pontada forte na lateral do meu corpo.
Caminho em sua direção, minhas pernas estão pesadas.
— Não! Não! Não! — Ela grita, esperneando ao me encarar
dos pés à cabeça. — Por favor! Não!
Eu estou paralisado, ela está com medo de mim. Seus olhos
estão cheios de lágrimas e ela treme como se o diabo em pessoa
estivesse na sua frente.
— Meu amor… Você está com medo? — Eu inclino a cabeça
para o lado, isso me machuca mais do que imaginei. — Eu não vou
machucar você, minha alma. — Levo a mão ao peito como se
pudesse sentir a dor lá dentro.
— Não! Por favor! — Ela soluça, seu rosto está inclinado para
o céu estrelado. Suas bochechas estão vermelhas e há tantas
lágrimas que eu ajoelho ao lado do seu corpo, completamente
enfraquecido.
— Eu não vou machucar você, minha vida. — Minha mão
descansa em sua barriga, tentando ganhar sua atenção. Ela
encolhe as pernas, o choque sobe por minha coluna e eu fico
completamente estático. — Por favor, não me trate assim… —
Minha voz está trêmula de uma forma que nunca esteve antes.
Minha garganta parece quebrada quando um resmungo ecoa do
meu peito e eu deito a cabeça em seu tronco. Arcane está
chorando, totalmente paralisada, perdida em algum lugar da sua
cabeça enquanto soluça de forma inconsolável.
— Por favor… — Ela engasga, ainda encarando o espaço
vazio acima do seu rosto.
— Eu quem peço por favor… — Eu balanço seu corpo como
se a minha coisa favorita do mundo, aquilo que temos total apego
emocional na infância, estivesse quebrada e isso doesse muito em
mim. — Arcane mou… Olhe para mim. — Me concentro nos
batimentos do seu coração, ele está tão acelerado que desejo
segurá-lo em minhas mãos para que não exploda. — Você está
machucada? — Entrelaço meus dedos nos seus. — Vamos… Fale
comigo…
— Ela está tentando me matar! — Arcane soluça, começando
a atirar sua cabeça de um lado para o outro. Eu ergo minha cabeça
para visualizar melhor o seu rosto, os cadáveres continuam
queimando atrás de nós e as pessoas continuam lutando do outro
lado.
— Eu já venho, amor. — Eu me levanto, respirando
pesadamente e fechando a mão ao redor do meu ferimento aberto.
Começo a caminhar, segurando minha arma carregada em mãos e
finalizando com cada pessoa que encontro na minha frente.
Eu puxo minhas últimas granadas, jogando em lugares
estratégicos, até que as últimas pessoas são mortas e tudo se
desfaz em fogo e gemidos de dor. Eu avanço, olhando para os
sobreviventes em meio aos escombros. As granadas explodiram ao
mesmo tempo e meus ouvidos ainda estão se recuperando, chiando
sem parar. Eu atiro na cabeça dos últimos que estavam vivos e
inclino minha cabeça para o alto, respirando pesadamente quando
todo mundo dessa prisão está finalmente morto. O silêncio perdura
e o fogo se espalha por entre os corpos e os escombros de algumas
celas.
Eu caminho até onde Arcane está, me arrastando quando a
dor faz minha coluna curvar. Ela continua na mesma posição,
tremendo e encarando o céu. Puxo seu corpo, Arcane choraminga,
não mudando sua posição enquanto eu atravesso a bagunça de
corpos.
— Fale comigo, meu amor. — Encosto meu rosto em sua
testa. Ela está fria e pálida.
— Ela tentou me matar! — Arcane soluça, sua voz sai
sufocada e ofegante.
— Ninguém pode matar você enquanto eu estiver aqui. —
Sussurro, apertando seu corpo com força. — Você está me
ouvindo? — Ela balança a cabeça em concordância, ainda sem me
olhar. — Tudo bem, então ouça o que vai acontecer. Nós vamos
viajar para um lugar maravilhoso onde ninguém vai machucar você.
— Falo baixinho, tentando absorver qualquer resquício de calmaria.
— Nós vamos dançar ao redor de uma fogueira, beber vinho e fazer
inúmeras fotos. Vamos nadar e conhecer pessoas normais. — Eu
beijo sua bochecha, Arcane geme baixinho, seus dedos estão
tremendo. — Eu prometo, está bem?
Ela balança a cabeça em concordância, eu puxo as grades
com força até que consigo abrir metade do portão, já que ele é
pesado demais. Caminho até onde o meu carro está e deito Arcane
no banco de trás, cobrindo seu corpo com um lenço um pouco
grande que ficou aqui dentro. Acaricio seu rosto quando ela
finalmente fecha os olhos, agora confortável. Eu caminho para
dirigir, apertando os dentes ao sentir meu ferimento no momento em
que sentei de frente ao volante.
— Puta merda. — Olho para o lugar explodindo em chamas
onde agora não existe nenhuma alma viva. Todos estão queimando.
Meus dedos esbarram em meu bolso, puxando o papel sujo
de sangue que Minerva me deu. Sinto uma necessidade absurda de
abri-lo agora, mas apenas dou a partida, ligando para meus irmãos
e dirigindo até a mansão Somáli. Precisamos cuidar de Arcane
primeiro e eu estou quase desmaiando com a porra desse ferimento
em minha barriga.
27. BODAS DE SANGUE
“Eu escolho te beijar no vento, porque o vento
é mais gentil do que os meus lábios.”
— MEVLANA.

Eu abro os olhos ao sentir dedos desconhecidos acariciando


meu rosto. Choque me consome quando vejo o rosto
ensanguentado de Nikoleta. Eu abro a boca para gritar, mas sua
mão se fecha ao redor da minha garganta. Meu corpo se debate
quando sua boca sussurra contra meu ouvido.
— Você precisa abrir os olhos, criança. Ele está vindo para te
matar. — Ela sussurra profundamente.
— O que? — Eu paraliso.
— Você está me ouvindo, Arcane mou? — Ela continua
sussurrando, seus dedos raspam meus lábios e eu sinto arrepios. —
Você precisa acordar, ele está vindo para te matar…
Eu acordo tremendo, mas não consigo me movimentar
quando sinto meu corpo pesado e soterrado pela exaustão. Abro
meus olhos devagar, sentindo um tubo de soro contra minha veia,
gotejando lentamente. Eu gemo, tentando me levantar, mas eu
paraliso ao ver Ajax sentado ao meu lado na cama. Era ele que
estava sussurrando em meu ouvido?
— Você acordou. — Ele pisca. — Podemos considerar um
milagre? — Ele ergue o rosto, confusão sufoca meu peito quando
vejo todos os outros irmãos Somáli em meu quarto.
Porra. Todos me olham com imenso interesse e o medo corre
por minhas veias. Quem deles estava surrando em meu ouvido? Eu
tenho plena certeza que a voz de Nikoleta estava um pouco
masculina e…
— Você quer água? — Rajá se aproxima com as mãos no
bolso.
— Onde está Kalon? — Eu falo e logo me assusto com a
rouquidão em minha garganta.
— Kalon? — Kol separa suas sobrancelhas. — Por que você
quer saber? — O desdém está estampado em seu rosto.
— Ele estava comigo e… — Eu fecho os olhos, odiando as
lembranças do que aqueles homens quase fizeram comigo. Meus
gritos mesclados com os deles ainda estão ecoando na minha
cabeça.
Eu nunca vi Kalon tão descontrolado e assustador. Eles
quase me estupraram, o que mais me causou medo foi ver o
fantasma de Nikoleta com eles. Eu acho que estou ficando louca de
verdade, voltando a ficar doente como na época em que mamãe me
abandonou.
— Beba água. — Rajá sugere novamente.
— Eu preciso ver Kalon. — Eu pulo da cama e todos
avançam para me segurar. As mãos de Ajax estão em minhas
costas, me dando apoio. Assim como o punho de Rajá está fechado
ao redor do meu braço de forma brusca, mas protetora, e Kol está
na minha frente, tentando me segurar.
— Você não deve sair tão depressa, pode desmaiar. — Ele
fala, analisando minhas condições.
— Eu estou bem. — Arranco os tubos de soro.
— Arcane. — A voz de Rajá corta minhas palavras. — Você
está dormindo por três dias, estava com febre e fraca. — Ele inclina
a cabeça para o lado. — Você não anda se alimentando direito,
suponho que apenas uma refeição por dia. — Ele desliza os dos
dedos de forma lenta por minha pele, como um médico faria. —
Você está fraca. — Ele acrescenta. — E também anda tendo
problemas para dormir.
— Como você sabe de tudo isso? — Eu resmungo,
incomoda.
Realmente venho tendo problemas para dormir e faço apenas
uma refeição por dia, isso era tudo que eles me davam na prisão.
— Eu fiz exames. — Ele pega alguns papéis na cabeceira e
balança em minha direção. Seus lábios se repuxam de forma
impaciente. — Eu sugiro que fique sentada até que alguém da sua
família venha ver você.
— Onde estão minhas irmãs? — Eu limpo a garganta.
— Não sabemos. — Kol responde tranquilo, afundando as
mãos no bolso e caminhando até uma poltrona do outro lado do
quarto.
— Elas estão com Yuri. — Ajax responde depois de um
tempo, até então ele estava apenas encarando o dia através da
janela do quarto. — Lá em baixo. — Ele ainda está sentado bem ao
lado da minha cama.
Eu olho ao redor para o quarto parecido com uma clínica,
mas que fica dentro da mansão deles. Eu respiro fundo quando Rajá
desliza um lenço por meu braço, onde arranquei os tubos de soro,
então coloca um curativo em meu braço.
— Água? — Ele balança o copo em minha direção.
— Onde está Kalon? — Eu repito, aceitando a água. Os dois
irmãos suspiram ao mesmo tempo, Rajá apenas sorri de forma
amável.
— Ele está bem. — Ele bate os cílios. — O ferimento de bala
foi muito bem fechado, ele estava se recuperando por um tempo,
mas você sabe como meu irmão é louco… — Ele recebe o copo
vazio e me dá as costas para guardar na cabeceira. Eu suspiro,
alívio me preenche ao saber que ele está bem.
— Eu posso ver minhas irmãs? — Pergunto.
— Daqui a pouco, vamos conversar primeiro. — Rajá olha
seu relógio de pulso antes de afundar as mãos em seu bolso. Meu
olhar se perde em suas roupas brancas, ele é muito lindo com cores
claras e calmas.
— Por que estão os três aqui? — Eu olho para Kol e Ajax.
— Porque eu estava preocupado com você. — Ajax responde
sem me olhar.
— Não, porque estava chato lá embaixo. — Kol interrompe.
— Eu odeio pessoas, prefiro ficar aqui com os doentes. — Ele me
encara fixamente, então sorri largo, me lançando uma piscadela que
me deixa tensa.
— Eu não estou doente. — Falo baixinho.
— Isso é o que os doentes dizem quando querem ganhar
alta. — Kol sorri torto, Ajax limpa a garganta para não rir alto.
— Você já pensou em procurar um terapeuta? — Rajá chama
minha atenção, afundando as mãos em seus bolsos de forma mais
tranquila. — Você dorme de forma muito perturbadora.
— Como assim? — Eu pisco, sentindo vergonha e medo
deles terem presenciado alguma coisa ruim.
— Seu sono é instável. — Ele continua. — Você chora
constantemente e também chama por sua amiga, eu suponho que
ela está morta, já que pede para ela não ser um fantasma. — Seus
dedos se erguem, checando minha temperatura. — Não é a noite
inteira, mas é uma coisa que provavelmente acontece sempre que
você dorme. — Rajá balança a cabeça com uma expressão cheia
de pena. — Não é bom que alguém seja tão triste assim, Arcane.
— Já que você é um médico tão bom, você vai me
recomendar algo para a tristeza? Porque não me deram nada disso
no presídio psiquiátrico. — Eu sussurro, inclinando meu rosto em
sua direção. — Para culpa e mágoa, para o desgosto profundo. —
Falo mais baixo, minha voz dormente. — Existe cura para isso?
Porque eu acho que estou muito, muito doente.
Minha pergunta é totalmente genuína. Se colocarem uma
cura na minha frente, eu não vou pensar duas vezes em tomá-la.
Tudo que eu quero é esquecer esse monstro em meu peito.
— Dessa forma, olhando por esse ponto, nós vivemos em um
mundo doente. — Ele sorri, ainda mantendo seu olhar compreensivo
que me deixa enraivecida. — Onde todas as pessoas estão com as
mesmas doenças. — Ele aponta em minha direção. — Você só não
consegue dizer que está com saudades dela, Arcane. Apenas isso.
Eu abaixo a cabeça, encarando minhas mãos em meu colo.
Apenas isso. Como posso sentir saudades de uma pessoa que já
não existe mais? Que talvez nunca tenha existido, que foi apenas
uma ilusão da minha cabeça. Ela apenas fingia me amar, ser minha
melhor amiga e todo o apoio que eu precisava dentro daquela
prisão.
Me dói muito não saber porque ela tentou me matar, por que
ela estava tão determinada a acabar com tudo naquele momento. A
pior parte é que eu fui forçada a matá-la para sobreviver, agora eu
estou jogada em outra prisão, mas e se eu tivesse apenas deixado
ela fazer o que queria?
— Beber ajuda. – Ajax fala baixinho, ele ainda está sentado
ao meu lado da cama e encarando as janelas, sentindo os raios de
sol contra seu rosto.
— Fumar maconha também. — Kol acrescenta. — Mas tudo
com moderação, é claro, senão você vai precisar lutar contra outra
doença difícil. — Ele aperta os dentes. — O vício.
— A melhor forma é colocando isso para fora. — Rajá
balança a cabeça em negação, segurando meu queixo. — Você é
jovem, ainda tem muito o que viver. — Seu indicador desliza pela
ponta do meu nariz. — Amaldiçoe essa merda para sempre, até que
esteja cicatrizado. — Seus irmãos ouvem tudo como se Rajá fosse a
fonte de todos os seus goles de consciência. — Mas, falando como
um médico de verdade, você está apenas em choque por ter voltado
para aquele lugar. — Ele aperta os lábios. — É normal ficar emotiva
e tudo que guarda vir a tona.
— De qualquer forma… — Minha voz sai apertada, meus
olhos molhados se erguem para encarar o rosto de Rajá. Eu acaricio
minha sobrancelha com o polegar, buscando uma forma de controlar
a minha vontade de chorar. — Obrigada por pensar nisso, no meu
bem estar, mas eu estou bem. — Desvio meu rosto, balançando os
ombros ao respirar profundamente.
— Sim, você está. — Kol fala do outro lado. — Se sente bem
para falar o que aconteceu lá? O que sentiu?
— Eu senti medo. — Falo no mesmo instante. — Me senti
enjoada e muito, muito assustada.
— Não se preocupe, aquele lugar não existe mais. — Ajax
sussurra. — Kalon destruiu tudo, o monstro foi embora e não vai
voltar novamente.
— Sério? — Eu olho para Ajax. — Aquele inferno acabou?
— Exatamente. — Kol e Rajá falam ao mesmo tempo, cheios
de suavidade.
Meu coração bate depressa, desesperado pela vida, como
um passarinho implorando para sair da gaiola. Eu fecho meus olhos
e respiro todo o alívio eletrizante que sobe pela minha coluna. Eu
preciso agradecer muito a Kalon por isso, mesmo que eu não
entenda seus motivos para ter feito algo tão grande e perigoso.
Sinto o olhar de todos os irmãos sob mim, eles são silenciosos e
compreensivos, o que torna a situação um pouco mais confortável
do que eu imaginei. Ficamos em silêncio por bastante tempo, cada
um encarando um ponto fixo enquanto a melancolia do momento se
dissipa.
— Nesse caso, você também vai precisar de um
ginecologista. — Meus olhos engrandecem com suas palavras.
— O que? — Eu quase grito, os dois irmãos engasgam em
seco.
— Rajá… Eu acho que não é hora… — Kol tenta falar, mas
seu irmão o interrompe.
— Um ginecologista, Arcane. — Ele separa as sobrancelhas.
— Você precisa de duas consultas antes do casamento.
— Ai meu Deus. — Eu balanço a cabeça. — É sério que nós
estamos falando disso?
— Bom, eu estou falando sério. — Ele fala com tanta
seriedade e calma que fico cada vez mais constrangida. — Vou
deixar uma lista com alguns que são bons médicos e de confiança,
você pode escolher o que se sentir mais segura e eu marco um
horário.
— Tudo bem. — Falo depressa quando ele me entrega um
iPad com várias fotos de ginecologistas homens e mulheres, ao lado
tem uma longa lista falando sobre a segurança deles e outras coisas
que não dou importância. — Por que você está marcando isso? —
Eu ergo meu rosto.
— Essa é a forma profissional dele tentar informar que o seu
casamento acontece daqui uns dias. — Ajax dá risada, olhando para
Rajá de um jeito animado.
— O que? Que porra é essa? — Eu pulo da cama
novamente. Eu estou tão nervosa que minha vista escurece quando
meus pés tocam o chão.
— Eu falei que seria melhor com calmante. — Kol suspira,
me assistindo cheio de tédio.
— Qual é o problema de vocês? — Eu balanço as mãos,
quase gritando. — Por que o casamento vai acontecer daqui alguns
dias? Não era daqui há alguns meses?
— Kalon e Yuri tiveram uma reunião hoje de manhã para
mudar a data. — Rajá fala tranquilamente, trocando a bolsa de soro.
— Arcane, eu disse que você está muito fraca, volte a deitar na
cama, por favor.
— Isso só pode ser um pesadelo. — Eu balanço a cabeça em
negação, apertando meus cabelos. Faço uma careta ao ver o
roupão branco ridículo que estou usando. — Por favor, chame o
meu pai ou minhas irmãs. — Eu tento andar, mas minhas pernas
enfraquecem e eu tropeço por cima da mesa.
— Arcane. — Os três falam ao mesmo tempo, em um tom de
voz cheio de reclamação.
— Eu não quero me casar. — Eu tento me afastar do toque
de Rajá. — Eu quero apenas ir para casa.
Volto a andar, dessa vez mais firme e ignorando a exaustão
do meu corpo. Ajax e Kol tentam vir atrás de mim, mas Rajá estende
a mão, impedindo eles de continuar.
— Deixem ela ir, não é da nossa conta. — Ele balança a
cabeça.
Eu apenas continuo andando pelo corredor até encontrar o
primeiro lance de escadas. Eu agarro o apoio, pulando devagar e
respirando fundo. Sinto meu corpo bater contra outro muito maior e
forte no momento em que alcanço o final.
— Ora, ora… — Eu paro, erguendo meu rosto para encarar
um homem de terno. Ele é tão alto e bonito que minha vista dói,
parece que ele roubou todo o brilho do sol para si. — Então essa é a
sua noiva?
Eu tenho que me afastar para perceber que Kalon está logo
atrás dele. Meu fôlego desaparece ao visualizar seu estado físico,
ele parece bem, mas está apoiado em uma bengala para conseguir
se recuperar do ferimento em sua barriga. Seu olhar frio e
indiferente me acerta em cheio quando encaro seus olhos verdes.
— Sim, essa é Arcane, filha de Yuri. — Ele responde, virando
seu rosto para encarar o homem que me estende a mão.
— O prazer é todo meu. — Ele sorri. — Sou Evren, amigo da
família.
— Seja bem-vindo. — Eu balanço a cabeça, ficando
incomoda com seu olhar atencioso enquanto aperta minha mão com
firmeza. Caminho para o lado quando Yuri surge ao lado de Ivan,
minhas irmãs seguem logo atrás deles e com elas está Minerva.
Eu ignoro a presença medíocre da mulher e respiro fundo ao
ver minhas irmãs, por um momento, quando entrei naquele lugar, eu
pensei que nunca mais veria ela novamente. As duas sorriem para
mim, mas rapidamente eu preciso encarar o homem de volta.
— Eu vim com Minerva tratar alguns assuntos importantes na
vida do seu futuro marido. — Ele ergue uma sobrancelha de forma
sugestiva.
— Isso não é da conta dela, Evren. — Kalon o repreende,
fazendo a confusão consumir minha cabeça.
— O que, exatamente? — Eu inclino a cabeça. — Já que o
senhor iniciou o assunto, eu penso que seja mais educado explicar.
— Gostei dela. — O homem junta as duas mãos na frente do
corpo e olha para Kalon cheio de animação. — Mas por que ela não
sabe de nada?
No entanto, o homem que costuma me olhar de forma
ardente que parece o inferno, agora está frio como a porra de um
iceberg e sequer se dá ao trabalho de virar o rosto para me olhar.
— O que eu deveria saber? — Eu olho para o rosto de cada
um, até que encontro Melissa. Ela balança a cabeça em negação,
indicando que não sabe de nada.
— Ah, que clima fúnebre. — Eu respiro fundo, começando a
ficar nervosa quando os outros irmãos descem as escadas e ficam
ao meu lado. — Pensei que você estivesse de saída, Evren. — Kol
continua, sorrindo de forma hostil para o homem.
— Eu estava. — Ele cruza os braços. — Kalon e eu já
terminamos nossa conversa no escritório. — Ele pisca e encara
Rajá com tanta indiferença que sinto frio. — Como vai, Rajá? Faz
tempo que você não aparece na Eclésia.
— Estou ocupado. — Rajá balança a cabeça de forma
indiferente e encara seu pai ao lado de Yuri, os dois se olham de
forma sombria e eu não compreendo porra nenhuma quando Kalon
avança em sua direção.
— Então é verdade, não é? — Meu novo sibila, agarrando
seu pescoço.
— Kalon! — Ivan tenta intervir, mas Rajá ergue a mão,
fazendo-o parar.
— Qual é o seu problema, Kalon? — Rajá afasta suas mãos
de forma agressiva. — Me atacando na frente dos nossos amigos?
Você esqueceu sua racionalidade naquele presídio para loucos?
— Naquela noite, foi você quem matou Azra! — Kalon rosna
totalmente cego para perceber todas as pessoas que estão ao seu
redor. — No começo eu não acreditei quando abri o envelope, mas
agora que Minerva e Evren estão aqui para confirmar
detalhadamente…
— Que porra é essa, Kalon? — Rajá o interrompe, segurando
seu rosto de forma agressiva e assustadora. — Foi você quem
matou ela! Você!
Eu caminho para trás até sentir as mãos de Yuri em meus
ombros, estou desnorteada com seu gesto protetor, mas afetada
demais com essa discussão para conseguir assimilar alguma coisa
vinda do meu pai.
— Você é o bem mais precioso da minha vida, mas está tão
irreconhecível que o meu coração não sente outra coisa além de
dor. — Kalon esmurra seu rosto, fazendo seu irmão mais velho
cambalear para trás e ser apoiado por Ajax e Kol. — Veja como eu
estava sofrendo por anos para descobrir que você fez isso, você
pegou desconforto e preocupação e despejou sobre minha alma. —
Ele aponta o dedo contra o rosto ensanguentado de Rajá. — Sua
vida estava perfeita esse tempo inteiro e no momento em que
descubro você ainda tem a coragem de mentir olhando nos meus
olhos? Que tipo de irmão é você? — Ele grita.
— O que está acontecendo? — Eu sussurro para Yuri que
coloca o seu sobretudo sob os meus ombros, escondendo meu
corpo.
— Não é da nossa conta, agapi mou. — Ele aperta os lábios,
apontando para minhas irmãs ao seu lado.
Melissa está com o braço ao redor do dele e Nimue está
segurando seus dedos, enquanto se esconde um pouco atrás do
seu corpo. Aparentemente, todos nós estamos com medo da
mesma briga que acontece bem diante dos nossos olhos. Os dois
irmãos estão em um tipo de luta cheia de socos e rosnados
agressivos.
— Parem agora com isso! — Atena tenta intervir, mas Ivan
segura seu braço e puxa ela para trás. Alguns móveis se quebram,
os cacos estão se espalhando pelo chão enquanto os dois lutam
ferozmente.
— Façam alguma coisa! — Kol olha para seus pais.
— Não se envolva! — Ivan aponta o dedo na direção do
homem que o encara como se fosse um pedaço de lixo.
— Como você pode fazer isso com seu próprio irmão? — Os
dois estão exaustos no chão. Eu olho com pena para o nariz
sangrando de Rajá. — Como você pode me fazer mal desse jeito?
— Kalon sobe em seu tronco e volta a desferir murros contra seu
rosto.
— Foda-se, eu não me importo! Eu não me importo com você
e não me importo com a vida de Azra! — Rajá empurra ele para fora
do seu corpo. — Eu amo você, Kalon. Mas eu nunca vou mudar por
você. — Rajá sussurra. — Eu nunca vou mudar por ninguém.
— Então saiba que o seu amor é veneno. — Kalon agarra
seu rosto. — Seu amor é pecaminoso, ele machuca e não me
preenche. Nós acabamos aqui, Rajá. Parabéns, conseguiu partir o
coração do seu irmão.
— Eu não me importo, você não sabe nada sobre mim. — Os
dois se erguem ao mesmo tempo. Eu não entendo porque os olhos
de Rajá estão vermelhos se ele diz palavras tão indiferentes. Talvez
ele seja tão falso quanto o próprio diabo. — Você é cego, você não
me enxerga. Não sabe nada sobre mim, nunca tentou saber. Então
acabamos sim, bem dessa forma. — Ele aponta ao redor, indicando
todos nós assistindo essa grande confusão.
— Kalon, pare agora com isso! Você está completamente
louco! — Ivan avança em sua direção, eu cubro meu rosto quando o
homem desfere um soco impactante no rosto do seu filho.
— Quieta. — As mãos de Yuri aperta meu ombro até que
minhas costas batem contra seu abdômen. — Acho melhor a gente
ir embora, meninas. — Ele fala mais baixo, olhando para Melissa e
Nimue.
De alguma forma ele consegue segurar as mãos de nós três
e nós puxarmos para caminhar logo atrás dele, mas Yuri para
quando ouve as próximas palavras de Ivan.
— Parar com isso? – Kalon avança em sua direção. — Que
tipo de autoridade você tem para mandar em mim? Foi você quem
estragou essa família, papai! — Meu noivo aponta o dedo em seu
rosto. — Você estragou Rajá ao ponto dele se tornar um psicopata
mentiroso! Não me mande calar a boca, seu covarde! — Kalon ri
gravemente. — Ou eu também vou precisar te ensinar algumas
coisas!
— Como ousa… — Ivan ergue a mão, nesse momento, todos
estamos tomados por um choque e silêncio ensurdecedor.
Como alguém pode ser tão descontrolado e furioso ao ponto
de causar uma briga descontrolada em questão de minutos? Como
um homem pode ser tão desgraçado ao ponto de revirar toda a sua
família desse jeito? E a pior parte, como meu pai ainda permite que
eu me case com ele? Ele quer o meu fim de forma lenta e
depressiva, é isso?
— Ivan, acho que nossos amigos já presenciaram demais. —
Eu quase caio para trás ao perceber que Yuri não está mais atrás de
mim e sim segurando a mão do seu amigo. Os dedos abertos
permanecem estendidos no ar, sua cabeça gira na direção de
Yuri,como se ele também tivesse percebido a presença do meu pai
apenas nesse momento. Os dois se encaram por breves segundos,
presos em um diálogo que apenas ambos entendem.
— Nossa reunião terminou, Evren. — Ivan responde sem
olhar na direção que o homem está parado.
— Uma pena. — O homem sorri, retirando as mãos do bolso.
— Foi tudo tão aconchegante que queria ficar mais um pouco.
Ivan gira em seus calcanhares, olhando na direção do
homem despreocupado que apenas acena na nossa direção e
caminha até a porta, colocando um óculos de sol no rosto. Depois
que ele sai, eu volto minha atenção para Kalon que está parado,
ainda consumido por esse descontrole que o dominou.
— Os dois me esperam lá em cima. — Ivan aponta para as
escadas.
— Não. — Rajá fala, arrumando suas roupas brancas e sujas
de sangue. — Se o senhor tiver algo para me falar, sabe onde me
encontrar.
Ele dá as costas, caminhando devagar e ignorando os
protestos preocupados de Atena. Os outros dois irmãos
permanecem parados, Kol é o primeiro a sumir para o jardim como
se as discussões fossem uma coisa corriqueira em sua família.
— Você parece a porra de uma criança mimada. — Ivan
avança na direção de Kalon, o mesmo ergue o queixo. — Eu vou
quebrar você com tanta intensidade que essa marra toda vai
embora.
Ele desaparece, empurrando Kalon pelas escadas enquanto
os dois trocam palavrões agressivos. Yuri acompanha com o olhar
quando foi necessário três seguranças pegarem Kalon a força,
empurrando ele o restante das escadas.
— Ivan! — Atena grita, eu permaneço em choque. — Deixe
ele!
— Não se atreva. — Yuri rosna, agarrando o braço de Atena
com força e puxando-a para trás.
— Ele é o meu filho, Yuri. — Ela vira o rosto, agora gritando
com meu pai. — Eu não vou permitir que ele o machuque.
— Na minha opinião, eu não vejo espaço para você fazer
alguma coisa. — Ele fala com imensa indiferença, mais do que usa
comigo e minhas irmãs. Ele trata Atena como se a odiasse
profundamente, como se não suportasse sua presença.
— Ora… — O salto de Minerva ecoa, até que ela está parada
bem na minha frente, acariciando o sobretudo em meus ombros. —
Você mal acordou e já está presenciando outra briga da família
perfeita. — Ela estala a língua. — Eu admiro sua determinação e
coragem em continuar aceitando a ideia desse casamento depois de
presenciar o tipo de monstro que Kalon é.
— Eu não sei do que você está falando. — Eu me afasto,
esse é o momento em que Melissa se aproxima de forma protetora,
encarando Minerva como se pudesse rasgar sua cara.
— Você é muito inteligente para usar indiretas, Minerva. —
Minha irmã força gentileza. — Explique de uma vez o que acabou
de acontecer.
— Tudo bem. — Ela ergue as mãos em rendição. — Kalon é
completamente louco, isso que vocês presenciaram é outra crise,
uma que ele não tinha há anos… — Ela arruma seus cabelos para
trás enquanto cochicha.
— Você não pode estar falando sério. — Eu balanço a
cabeça em negação.
— Estou. — Ela insiste. — Kalon matou a ex-namorada dele,
mas por anos se recusa a aceitar isso e agora acabou de colocar a
culpa em Rajá. — Ela revela, logo sinto o choque consumindo o
meu rosto. Minhas irmãs estão tensas.
— Então era isso que vocês estavam conversando no
escritório? — Nimue pergunta, tentando compreender melhor.
— Estávamos tentando convencer Kalon da verdade, que foi
ele quem matou Azra. — Ela explica como se estivesse contando
uma história. — Você é muito corajosa, Arcane. — Ela me olha
cheia de pena. — Vai se casar com Kalon mesmo sabendo que ele
pode fazer o mesmo com você, arrancar o seu coração da mesma
forma que fez com Azra.
— Por que ele matou ela? — Questiono, meus olhos
ardendo.
— Você não consegue perceber o que ele fez aqui, e na
prisão? Ele é louco, Arcane. Ele é obcecado e doente. — Ela
balança a cabeça em negação. — Em algum momento você já deve
ter presenciado as crises dele… Rindo sem parar, perdido em
pensamentos, coberto de sangue.
Eu caminho para trás, tremendo diante das suas palavras.
Como eu não percebi a verdade? Como eu mergulhei de cabeça e
aceitei um homem desses? Ele é doente, a verdade estava
estampada na minha cara desde o começo e só agora eu percebi.
Sinto ânsia de vômito e minhas pernas enfraquecem, eu caminho
para trás até que meu corpo contra o de Yuri.
— O que você tem? — Ele é rude.
— Acho que ela está fraca, abalada com tudo que aconteceu.
— Minerva aperta sua bolsa e sorri compassivamente. — Meu
trabalho aqui terminou. — Ela me analisa profundamente e depois
acena para os que restaram na sala. — Que tudo fique no passado.
Quando a porta se fecha, eu me desligo da realidade ao meu
redor e tudo que minha mente repassa são as palavras daquela
mulher. Eu me sinto doente e pecaminosa conforme percebo que
tudo faz sentido. A forma como ele dava risada, parecia em transe
quando matava alguém, sua obsessão e raiva profunda. Eu encaro
meu pai, ele provavelmente sabe de tudo e me puxa para fora como
se eu fosse uma criança, como se apenas tirando da minha vista
fosse o suficiente para eu esquecer o que acabou de acontecer.
Novamente, todo o meu mundo fica cinza. Eu não olho para minhas
irmãs e ignoro toda a atenção que elas têm sobre mim.
Quando chegamos em casa, Yuri remove o seu sobretudo
dos meus ombros e me dá as costas como se as últimas horas não
tivessem acontecido.
— Por que? — Eu sussurro, fazendo ele parar no corredor.
Seus ombros balançam e ele gira o rosto para me encarar. — Por
que você está me forçando a me casar com aquele homem louco?
Você sabia que ele matou a namorada e mesmo assim vai me
empurrar para o mesmo destino?
Ele gira, caminhando em minha direção e me encarando
cheio de indiferença. Ele não está com pena das lágrimas
assustadas que escorrem por minhas bochechas, nem desse medo
que consome meu peito e não me permite respirar direito.
— Por que você acha que eu voltaria atrás? — Ele ergue
uma sobrancelha.
— Porque eu não quero isso. — Balanço as mãos, tentando
me expressar da melhor forma que eu consigo. — Você não
entende, pai? Isso é injusto pra caralho. — Balanço a cabeça em
negação. — Eu não quero isso. Eu não quero.
Eu quero arrancar cada pedaço de mim até não existir mais
nada, eu quero matar a mim mesma e sufocar todos esses
problemas dentro da minha cabeça. Eu estou tremendo, tentando
expressar cada sentimento doloroso.
— Mas eu quero. — Ele responde, como se apenas isso
bastasse para justificar cada atentado contra minha vida.
Eu gemo chorosa, enquanto lágrimas quentes escorrem por
minhas bochechas. Meus ombros chacoalham como se eu fosse a
porra de um bebê desamparado.
— O que eu estou fazendo de errado, papai? — Eu seguro os
dois lados do meu rosto, começando a chorar mais alto. — Você
está me punindo por que? O que vai ser suficiente para fazer você
parar de uma vez? — Minha voz está tão quebrada que não vai
muito longe.
— Pobre ser humano você é. — Ele lamenta, balançando a
cabeça em negação. — Sua vida é uma grande fraude. Você matou
sua madrasta, matou sua melhor amiga dentro daquela prisão, acho
que agora está na hora de você pagar por tudo isso. — Ele aponta
ao redor. — Acho que esse casamento será como uma morte lenta
para você repensar todos os dias sobre as coisas que fez. — Seu
dedo bate contra minha testa, apontando e empurrando com força.
— Você é uma assassina e está sendo punida, não tire isso da sua
cabeça. — Ele diz pausadamente.
— Eu não quero isso... — Imploro, segurando sua mão e
insistindo mais uma vez, tentando encontrar alguma coisa dentro
dele que tenha misericórdia de mim. — Eu só quero ser livre, é pedir
muito?
— Essa coisa que você deseja não existe. — Ele rosna,
furioso. Sua mão aperta meu rosto, puxando para mais perto do seu
enquanto ele grita a plenos pulmões. — Você acha que pessoas
como nós merecem essa merda? — Ele ri, amargo. — Fique
contente com o que você tem, Arcane. Pelo menos você não está
mais atrás das grades.
— Eu não quero me casar. — Soluço, esmurrando suas
costas quando ele começa a andar. Eu empurro seu corpo e grito,
liberando toda a minha raiva e medo que tenho guardado há meses.
— Ninguém pode me forçar a isso! — Grito, engasgando com meu
choro desesperado. — Eu não vou me casar!
— Já chega! — Ele grita mais alto, apertando meu braço e
me puxando. — Você não tem escolha, porra! Seu surto é o
suficiente, pare com isso!
— Como você pode obrigar ela a se casar com um homem
que matou a própria namorada? — Melissa surge, tentando me
proteger quando ele começa a puxar minhas roupas para me bater.
— Que tipo de pai é você que não sente pena em vender a folha
dessa forma?
— Vá para a porra do seu quarto! — Ele aponta o dedo na
direção de Melissa. — Não importa se Kalon matou a porra da
namorada dele ou se vai fazer o mesmo com Arcane, esse
casamento vai acontecer! — Ele rosna, me fazendo tremer quando
intensifica o aperto em meu braço.
— Me solta! — Eu grito, batendo contra sua mão para ele
afrouxar o aperto. — Por favor! Me deixe em paz! Eu não quero me
casar! – Me contorço, minhas pernas enfraquecem conforme ele me
empurra para caminhar.
— Deixe ela! O que você está fazendo? — Melissa grita
atrás, tão descontrolada quanto eu enquanto tenta acompanhar os
passos de Yuri. — Deixe minha irmã! O que você está fazendo! —
Ela tenta segurar minha mão quando Yuri abre a porta do quarto
escuro.
— Dando a ela algum tempo para mudar de ideia! — Ele me
empurra para dentro do lugar escuro, eu tento segurar a porta.
— Não faça isso! Ela tem medo do escuro! — Minha irmã
tenta entrar, mas Yuri agarra seus cabelos.
— Melhor ainda, hoje ela perde o medo. — Ele aperta seu
pescoço. — Já você? Eu tenho formas melhores de educar,
começando por Nimue. – Ele estala a língua.
— Por favor… Deixe minhas irmãs… — Ela soluça. — Eu
faço qualquer coisa.
— Nada que você fizer vai ser suficiente, Mel. — Minha irmã
fecha os olhos. — Se despeça da sua irmã.
— Por favor… Me deixe ficar aí dentro com ela. — Ela
estende as mãos em minha direção.
— Melissa! — Eu grito, avançando em sua direção. Yuri puxa
a porta no mesmo instante, fazendo meu corpo bater contra a
madeira gelada.
O fôlego some dos meus pulmões e eu ajoelho no chão,
gritando alto e me contorcendo ao ficar exposta a escuridão
assustadora. Eu bato incansavelmente, enquanto ouço o choro de
Melissa aumentar, seguido pelos de Nimue. Eu aperto meus
cabelos, batendo meu rosto contra a madeira quando tenho a
sensação de dedos me tocando. O desamparo me afeta como uma
faca de dois gumes. É doloroso saber que o fantasma da minha
melhor amiga aparece apenas para me assombrar, para me deixar
mais triste, quebrada, e não para ser minha amiga de verdade. Não
para fazer como as outras amizades; abraçar e consolar. Dizer que
ama e que vamos dar um jeito juntos.
— Me deixe em paz! — Eu tremo, balançando a cabeça e
encolhendo meus pés. — Por favor, não me torture assim!
Ela está rindo, eu consigo sentir seus dedos contra minha
pele. Eu me inclino para frente e volto a chorar mais alto do que
qualquer barulho monstruoso que ecoa pelas paredes dessa casa.
Até que desmaio de exaustão.

— O casamento vai ser amanhã. — Eu tenho um sobressalto


quando dois dias depois Yuri abre a porta do quarto escuro.
Primeiro, a luz ofuscante afeta minha visão.
Eu choramingo, me arrastando para trás enquanto aperto os
olhos vermelhos pelas lágrimas. Me sinto fraca e doente, me sinto
febril e como se um buraco enorme estivesse dentro do meu peito,
atravessando minhas costas e aberto para que todo mundo veja. No
entanto, meu pai deve ser cego, pois ele me encara de cima a baixo
como se não estivesse me enxergando.
— Você está sem comer e sem beber, talvez agora tenha
alcançado sua consciência. — Ele me estende a mão. — Meu
amigo sempre diz que o jejum é a melhor forma de quebrar uma
pessoa. — Eu aceito sua mão estendida porque estou desesperada
para me livrar desse quarto escuro e assustador.
— Na festa de casamento você deve dançar com todos os
homens membros da Alkyóna, deve decorar todos os nomes de
suas esposas e aceitar o convite para os próximos eventos. — Ele
me puxa com força para caminhar.
Eu choramingo, desejando me afundar de volta naquela
escuridão monstruosa, até que meus ossos virem poeira e eu não
precise passar por algo tão doloroso. Cada passo que dou é como
se um pedaço da minha existência estivesse sendo alterado pelas
mãos de outra pessoa, como se todos os tijolos que constroem as
paredes da minha vida tivessem sido colocados por várias pessoas
diferentes, então todos eles estão em posições diferentes, alguns
quebrados e outros prestes a cair e destruir toda a construção que
me mantém de pé.
— Você perdeu sua língua lá dentro, Arcane? — Yuri aperta
meu queixo, me obrigando a encarar seu rosto.
— O que você fez com minhas irmãs? — Eu sibilo.
Ele ri alto, quase engasgando. Então solta meu rosto e
balança a cabeça em negação.
— Fala sério. — Ele debocha. — Suas irmãs são bem
melhores que você, elas são casca grossa.
— Talvez eu deva cortar minha garganta e me livrar de uma
vez por todas dessa prisão que você me colocou. — Eu respiro
fundo, tentando controlar a fraqueza em minha voz.
— Faça isso, e dessa forma, nem mesmo Deus vai aceitar
você. — Ele balança a cabeça em reprovação. — Você vai estar
amaldiçoando sua vida e a de suas irmãs para sempre.
— Eu só quero ser livre. — Encaro seu rosto.
— Ouvi falar que todo mundo quer isso. — Yuri para de andar
e fica de frente para mim. — Na sua idade, eu também queria a
mesma coisa.
Lágrimas invadem meus olhos e eu desvio meu rosto para
não ter que encarar os demônios que dançam em seus olhos azuis.
— Se você tivesse lutado por isso, eu não precisaria estar
passando por isso. Eu provavelmente teria um pai melhor, um que
me entende. — Sibilo, não ficando em silêncio diante das suas
tentativas de me controlar e fazer com que sua falsa verdade
preencha meu peito. Eu não preciso desse consolo mesquinho e
derrotado, se eu me alimentar disso, vou passar a minha vida inteira
apodrecendo lentamente.
— Se eu tivesse lutado por isso, você e suas irmãs não teria
nascido. — Ele balança os ombros, cheio de indiferença. — Eu
entendo você, mas isso não faz diferença alguma, Arcane. — Ele
me puxa para continuar andando. — As pessoas dizem que
entendem e sentem muito por sua desgraça, mas é apenas isso que
eles podem fazer. — Ele balança os ombros. — Ser compreendida
não vai mudar nada na sua vida, você vai continuar sendo o que é,
e vai acabar onde deve estar.
Eu ignoro suas palavras, apenas encaro a forma como ele
me empurra até sentar no sofá da sala. Ele se abaixa, puxando uma
vasilha com água morna e começa a lavar meus pés com um pano.
— Eu sei como você se sente. — Ele continua falando. —
Como se um pedaço da sua identidade estivesse sendo arrancado
de você, tão injustiçada que seu fôlego acaba e seus ossos doem.
— Seus olhos azuis me encaram. — Você quer ser livre e dar o
mesmo para suas irmãs, você pensa tanto nisso, constantemente,
repetidas vezes, que no final do dia fica tão exausta que começa a
chorar. — Ele balança a cabeça em negação. — Você deseja tanto
por compreensão, por uma amiga para compartilhar todas essas
dores, que tem pesadelos horríveis com a melhor amiga que matou,
mas não conta isso para suas irmãs porque não quer afetar elas. –
Eu estremeço, desviando o rosto para não chorar como uma criança
bem na sua frente. — O motivo? Porque você sente tanta culpa e
saudades que às vezes é mais fácil se matar, engolir calada
eexplodir por dentro.
— Cale a boca. — Eu rosno, desejando chutar sua cara e
liberar todos esses sentimentos dentro do meu peito.
— Não, eu vou continuar falando. — Ele balança a cabeça
em negação. — Você até gosta um pouquinho de Kalon, mas isso
não significa que quer se casar com ele. — Ele estala a língua,
agora limpando meus braços de forma brusca. — Porém, agora que
você sabe que ele é um assassino desenfreado, está com medo de
passar mais um dia nas mãos dele.
Eu aperto os lábios, segurando um soluço doloroso e
insatisfeito. Ele sabe de tudo que eu sinto, eu sempre soube que ele
me observa, que faz isso com todas as suas filhas. Que ele conhece
as fraquezas e as dores de cada uma, que ele consegue nos ler
como um pai de verdade consegue, mas a única diferença é que ele
não liga, ele não faz nada além do que quer.
— Eu odeio tanto você por me destruir. — Cuspo as palavras,
finalmente colocando elas para fora depois de anos guardando isso.
— Você nunca fez esforço nenhum para me proteger.
— Sim, eu também sei que você me odeia. — Ele balança os
ombros, continuando a limpar meus braços. — Eu sei de tudo, agapi
mou. — Ele respira fundo, estremecendo de forma leve ao liberar
cada palavra. — Saber das coisas não vai mudar sua situação,
compreender você, se identificar com você, nada disso serve. — Ele
larga minhas mãos. — Nada disso vai alterar o fato de que você
está sozinha, que se você cair, deve aprender a se levantar sozinha
e enxugar suas lágrimas. — Ele segura minhas bochechas, agora
limpando meu rosto. — Milagres não acontecem nem mesmo com
os favoritos de Deus, minha filha. Na verdade, os que temem a
Deus são os que mais sofrem, os que mais definham e os que mais
aprendem.
— As pessoas também podem aprender amando. — Eu o
interrompo, encarando seu rosto. — O aprendizado pode vir de uma
coisa positiva e leve, quem disse que não?
– Ninguém está dizendo que não. — Ele balança a cabeça
em negação. — Mas isso é um luxo que nem todo mundo tem. —
Ele sorri, me olhando. — Se você acha que foi a falta de amor
paterno que acabou com a sua vida, saiba que eu nunca neguei os
meus sentimentos por você. — Ele responde, ainda limpando meu
rosto.
Eu paraliso, esperando qualquer coisa, menos isso. Pisco
algumas vezes, olhando para seu rosto que continua com a mesma
expressão.
— Você me ama? — Eu tremo, só posso estar delirando.
— Claro que amo. — Ele balança os ombros. — Eu ainda me
surpreendo que você tenha esquecido de toda a sua infância, mas
as outras lembram com clareza. Eu amei você todos os dias e você
nunca sentiu falta da sua mãe de verdade, a despersonalização
apenas apagou nossas lembranças juntos e fez você acreditar em
pequenas coisas que nunca existiram. — Ele estala a língua. — Eu
não estaria limpando seu corpo e falando essas coisas se não te
amasse? — Ele ergue uma sobrancelha.
— Então porque você continua sendo tão ruim? — Algo
amargo fecha minha garganta e machuca meu peito mil vezes pior.
— Não é o meu amor que vai sustentar a sua existência. Fala
sério, o amor de Yuri Planard seria capaz de manter todas as coisas
intactas? De forma alguma. Meu amor é tão falho quanto eu. — Ele
estala a língua. — Na verdade, não é nada disso que vai fazer você
sobreviver a nossa vida, mas sim o quanto você aprende a ser forte.
— Uma lágrima escorre pela minha bochecha e ele esfrega o tecido
com mais força. — Minha função não é falar sobre amor, é ensinar
você a lutar. Não foi o amor que manteve sua mãe conosco, que
livrou você do presídio ou salvou a vida de Theo. No mundo em que
vivemos, o amor serve apenas para acolher. Para viver, agapi mou,
vai ser necessário algo mais forte e cruel.
— Eu nunca criaria um filho da forma que você me criou. —
Eu rosno, sentindo tanta raiva e mágoa que começo a chorar
inconsolavelmente. — Toda a minha vida está perdida por sua culpa
e você ainda ousa dizer que me ama?
— É exatamente isso que estou tentando explicar. — Ele
aponta em minha direção. — Percebe como é injusto e nojento falar
que ama sua filha quando se tem essa vida? — Ele estala a língua,
cheio de desdém. — O amor não faz sentido nenhum para pessoas
como nós, nascidos para morrer, para lutar e ser mais forte que a
porra dos deuses. — Ele aperta meu queixo. — É com raiva e
coragem que se vence o mundo, não com amor.
Eu soluço de forma horrorosa, tentando me esquivar do seu
toque nada delicado enquanto limpa minha pele suja de poeira e
alguns ferimentos.
— Eu nunca vou perdoar você por tudo que fez comigo, está
ouvindo? — Eu balanço a cabeça em negação. — Nada no mundo
vai me fazer esquecer o que você me causou.
— Eu sei disso. — Ele responde no mesmo instante, sem
sequer demonstrar alguma fraqueza diante das minhas palavras, o
que faz eu me sentir patética. — Também sei que suas irmãs
pensam igual. Eu realmente não me importo, na verdade, saber
disso é o que me empurra a continuar fazendo tudo o que eu faço
com vocês. — Ele balança os ombros. — Nós somos um caso
perdido, Arcane mou. Você pode até criar seus filhos de forma
diferente, eu dou graças a Deus por isso, fiz a mesma coisa em
relação ao meu pai. — Ele balança as mãos, cheio de desinteresse.
— Mas o amor só é suficiente na infância, em algum momento o seu
filho vai crescer e alguém vai quebrar ele. A vida funciona assim.
— Melhor que ele seja quebrado pelas mãos de outra pessoa
do que pelas minhas. — Eu rosno. — Porque quando acontecer, é
para os meus braços que ele vai vir correndo e eu vou saber curá-lo.
— Sibilo, ganhando sua atenção furiosa. — Isso é algo que você
nunca me ensinou.
— Claro que ensinei. — Ele sorri, ficando de pé. — Não é
nada que já não tenha acontecido na sua infância.
Ele me puxa, me deixando atormentada e sentindo como se
faltasse algo dentro de mim. Minhas memórias nunca mais vão
voltar, e eu acho melhor, pois seria doloroso perceber que meu pai
de alguma forma já foi melhor que isso e conseguir enxergar tudo
que ele já foi. Essa é a minha forma de me vingar dele, esquecendo
de tudo sobre nós.
— Um casamento sem amor. — Eu balanço a cabeça em
negação. — Essa foi a pior prisão que você poderia ter escolhido
para me jogar.
— Suas irmãs já arrumaram suas malas. — Ele responde,
ignorando minhas palavras e o meu olhar distante, cheio de
tormento.
— O que seria o amor para você? — Eu pergunto, olhando
para Yuri, tento compreender se de alguma forma ele pensa da
mesma forma que eu.
— O amor te impede de ser você mesmo. — Ele resmunga,
encarando o pano em suas mãos. — Não é para mim.
Eu sacrifiquei muitas coisas dentro de mim até aqui, tenho
muito sangue em minhas mãos e me perdi ao longo do caminho.
Nunca conheci nenhum tipo de amor profundo e puro ao ponto de
me proporcionar uma nova vida. Agora estou condenada a viver ao
lado de um homem que matou sua namorada, essa informação foi o
suficiente para matar qualquer resquício de interesse que eu tinha
por Kalon. Tudo que sobrou foi um ódio profundo por ele estar
roubando e estragando o último pedaço que sobrou de mim.
— E isso é o mais importante para mim. — Eu sussurro,
caminhando em sua direção. — Ser eu mesma. — Empurro minha
mão contra seu peito para enfatizar o meu desgosto. — Você e
Kalon arrancaram o último pedaço, eu quero deixar claro que no dia
que eu tirar a minha vida, a culpa vai ser de vocês dois.
Os olhos de Yuri brilham, tomados por algo indecifrável. Eu
dou as costas para ele, caminhando lentamente até o meu quarto e
ignorando a tontura que abala o meu sistema nervoso.
É isso, acabou a minha esperança de liberdade.
Eu estou aprisionada.
28. PORQUE TODOS OS MEUS
INIMIGOS
“Nada mais temas, diz o coração no corpo, nada mais
temas.”
— VIRGINIA WOOLF.

O casamento vai acontecer daqui algumas horas e eu estou


passando mal. Minhas mãos estão tremendo enquanto caminho de
um lado para o outro. Eu não sei como me comportar, nem o que
falar e muito menos como agir na frente das pessoas. Eu quero
tanto me sentir em paz que começo a chorar na frente das minhas
irmãs.
— Arcane mou… — Nimue acaricia seu rosto, caminhando
em minha direção e me puxando para um abraço apertado. — Você
não pode chorar, eu vou acabar fazendo o mesmo.
— Eu li em uma revista que é normal a noiva chorar em seu
casamento. — Nimue tenta me animar, sorrindo de forma boba.
Eu tento sorrir, mas esse peso em meu peito que me deixa
angustiada. Quero tanto sumir desse mundo e viver em um lugar
onde não exista nada além de nós três. Eu respiro pesadamente,
percebendo mais uma vez que vou me casar com um homem que
me deixa tremendamente irritada e me dá nos nervos. Beijar e
transar com Kalon é uma coisa totalmente diferente de um
casamento forçado. Ninguém tem o direito de mudar a vida de outro
ser humano dessa forma. Há tantas coisas para serem ditas. Eu me
pergunto se os segredos dele deixarão de existir entre nós, se ele
será cruel como Yuri ou em alguma linha tênue entre isso. Tenho
medo de todos os pedaços que ele pode arrancar de mim, caso
ainda tenha sobrado algum.
Todos os esforços que eu fiz para conseguir escapar não
serviram de nada, foi tudo levado por água abaixo como chuva
incessante. Não restou nada além de uma casca vazia. Agora eu
estou completamente sozinha. Sem nenhuma carta na manga. Sem
nenhum pé na frente. Encurralada.

— E quanto a Pavlos? — Pergunto, sem muita animação. —


Você conseguiu falar com ele quando fugiu na tempestade? —
Meus olhos estão em Melissa.
— Ele vai estar no casamento. — Ela responde, cruzando os
braços. — Naquele dia, eu encontrei ele no porto e recebi a
explicação de que Yuri procurou apenas por seus serviços. — Ela
responde com calma. — Pavlos acha que foi apenas uma
coincidência devido a necessidade de pessoas trabalhando no
casamento, ele não contou nada sobre nós, eu disse a você. — Ela
ri, arrumando seus cabelos para trás. — Mas se quisermos saber
mais que isso, sobre como Yuri chegou nele detalhadamente,
vamos ter que perguntar ao papai do ano.
— Tudo bem, acho que essa é a menor das nossas
preocupações agora. — Nimue sussurra, entrelaçando seus dedos
aos meus.
Melissa engole em seco, abaixando a cabeça para voltar a
me ajudar com o maldito vestido de noiva. Provavelmente Atena e
ela estiveram organizando isso desde o começo, ele foi feito sob
medida, mas está muito apertado porque foi entregue às pressas.
— Eu gostaria que você fosse criança e coubesse em meu
colo mais um pouquinho, assim não ia precisar passar por isso. —
Ela grunhe, apertando minha cintura. Eu gemo em protesto.
— Eu juro que esse vestido vai acabar com a minha vida. —
Choramingo, agarrando o braço de Nimue.
— Deus deve estar me castigando... Porque... — Ela faz
força, seus braços tremem em dor. — Não vai caber. — Completa,
me soltando.
— Tem que caber. — Aperto meus lábios. — Já está tudo
uma merda, e agora isso. Eu tenho certeza que foi feito por alguém
que me odeia. — Balanço o vestido, olhando para toda sua
perfeição que não faz juz ao conforto.
Eu estou frágil e quebrada. Não consigo decidir se quero
gritar ou chorar como uma criança.
— Você pensa em se casar com ele? — Eu pergunto. —
Vocês estão apaixonados, é óbvio. Será que Yuri aceitaria?
— Seria uma humilhação para o nosso pai. — Nimue
comenta, concentrada em arrumar meu buquê. Meus olhos brilham
de curiosidade para saber como é a dinâmica de um relacionamento
recíproco, onde as duas partes escolheram viver isso e não foram
forçados a nada.
— Se você implorar, acha que Yuri aceitaria? — Eu viro para
encarar meu reflexo no espelho, minha mão desliza
cuidadosamente pelo vestido branco.
— Ele só faz o que beneficia os negócios. — Ela balança a
cabeça em negação. — Meu relacionamento com Pavlos é algo
proibido que pode resultar em morte.
Eu seguro minha respiração para que ela consiga fechar o
vestido. As camadas são simples, não é nada exagerado, assim
como não é nada feio. Eu gosto de como me pareço: uma mulher
normal realizando algo que deveria ser o seu sonho.
— É complicado, de todas as formas é complicado. —
Melissa gagueja, suas bochechas estão vermelhas, mas seu olhar
não esboça nada feliz. — Pessoas são complicadas. — Ela
completa, respira fundo e muda meu cabelo de posição para ter
acesso a minha cintura.
— Tem razão. — Eu balanço a cabeça em concordância,
analisando o vestido em meu corpo como se estivesse procurando
algum maldito defeito para desferir minha raiva. Não encontro nada.
Ele está perfeito em mim.
— Arcane, você pode ficar parada? — Melissa implora cheia
de sofrimento. — Facilite o meu trabalho, por favor. — Ela pede, se
abanando.
— Ah, que ódio! — Estalo a língua encarando o vestido. —
Por que não está fechando? Eu vou queimá-lo se isso não
funcionar!
Ela dá uma risadinha, provavelmente percebendo que acabei
de tratar o vestido como uma máquina de café que só precisa de
algumas batidinhas para funcionar.
— Fique parada, vestidos são assim mesmo. É um pequeno
defeito na costura, eles não tiveram tempo de colocar todas as
pérolas, mas eu estou quase conseguindo. — Ela continua. — Você
comeu muito chocolate, agora está terrivelmente apertada. Sua
traquina.
Eu choramingo, prestes a abrir um buraco para me jogar
dentro.
— Um casamento difícil. — Nimue fala do outro lado, se
divertindo. — Um futuro difícil. Um maldito vestido difícil. —
Cantarola.
— Você é tão positiva, Nimue mou. — Aperto os olhos em
sua direção. Ela suspira agradecida.
— Eu nunca ganhei um buquê de flores. — Ela comenta,
encarando o que tem em mãos.
— Vai em frente. — Aponto. — Ele é todinho seu. —
Dispenso.
Meu cabelo e maquiagem já estão prontos, mais cedo tinha
uma equipe inteira em meu quarto colocando as mãos em mim e
preparando meu rosto para o grande evento.
Olho por cima do ombro, percebendo que Melissa está quase
acabando. Eu glorifico, tomada pela gratidão.
— Nenhuma noiva na história deve ter se casado tão
carrancuda assim. — Melissa brinca. — Vamos, coloque um sorriso
apenas pelas suas irmãs, Ane. Finja que está tendo um dia bom.
Eu faço o que ela pede, abro um sorriso fofo quando sou
liberada das suas mãos delicadas. Eu começo a caminhar, tentando
me acostumar dentro do vestido e não cair nos primeiros passos. Eu
nunca usei algo tão pesado e diferente, preciso fazer muito esforço
para não cair no chão quando elas me ajudam a subir no salto.
— Agora a sua missão é ficar intacta e equilibrada. — Ela
segura meus dedos. Ansiedade ataca meu estômago e eu sinto
vontade de vomitar ou chorar, não sei qual a ordem.
— Vamos lá, é a primeira vez que você vai se casar. —
Nimue me incentiva. — Aproveita um pouco.
— Dê bastante trabalho para aquele bastardo. — Melissa
acrescenta, me dando um tapinha no braço. — Como vingança por
esse acontecimento, faça ele sofrer até mudar de ideia.
Eu me inclino para sentir seu beijo em meu rosto. As duas já
estão arrumadas, esse é o nosso último momento juntas antes que
eu seja levada para uma nova casa. Meus olhos ficam úmidos ao
pensar nisso. Não quero deixá-las logo agora que as tenho de volta
depois de anos separadas.
— Está tudo bem, não pense no dia de amanhã, apenas
tente aproveitar o momento. — Encaro o buquê que foi deixado em
minhas mãos. Meu coração murcha dentro do peito, implorando por
liberdade, mas a partir de hoje eu vou precisar ignorar esse
sentimento para conseguir viver.
— Tudo bem. — Respiro pesadamente, controlando minha
vontade de chorar. — Eu vou sobreviver ao dia de hoje.
— Você está tão linda. — As duas comentam ao mesmo
tempo, acariciando meu braço.
— Eu me sinto diferente. — Olho para baixo, procurando
enxergar se é verdade.
Batidas soam na porta, meu coração se parte dentro de mim
e começa a doer quando tento respirar. Quero correr e me esconder
debaixo das cobertas, fingindo que o mundo não existe, mas Yuri
entre com passos firmes. Ele me encara dos pés à cabeça, eu não
consigo distinguir se o seu olhar é de satisfação ou repulsa.
— Você está pronta, agapi mou? — Ele está com suas mãos
no bolso quando avança um passo em minha direção. Eu balanço a
cabeça, implorando para que ele volta atrás. Seus olhos não se
encontram com os meus quando ele estende a mão. — Foi para
isso que eu criei minhas filhas. — Suas palavras são dolorosas,
seus dedos acariciam meu rosto. — Coloque um sorriso bonito para
as pessoas.
Eu olho para minhas irmãs, mas Yuri me puxa, interrompendo
nosso momento de conexão. Eu não quero deixá-las com ele
quando eu for embora.
— Todos estão animados para o dia de hoje, você não
imagina quantas pessoas estão presentes. — Todo o meu corpo
para quando ele diz isso, eu quase tropeço, sentindo dor em meus
pés.
— Não seja uma besta, Arcane mou. — Ele rosna, apertando
meu braço. — Não comece tudo de novo, porra. — Eu engulo um
gemido choroso, me forçando a caminhar agarrada nele.
Ele percebe que estou tremendo e com dificuldade para
andar, então me ajuda com o vestido pesado até que entramos no
carro. Fecho meus olhos para não chorar, dessa forma, desligo
minha mente durante todo o percurso. O carro está em silêncio,
somos apenas eu e Yuri, minhas irmãs estão vindo em outro carro e
ele está comigo apenas para se certificar de que não vou fugir
desse carro.
Minhas mãos estão tremendo, o medo e angústia está me
comendo viva, me fazendo arquejar e quase choramingar quando
minha cria todos os cenários de infelicidade e tortura que posso
viver como uma esposa. Uma esposa suja, danificada,
completamente imerecida de uma vida normal. Isso se Kalon não
me matar como fez com a sua pobre namorada.
O casamento é a céu aberto, essa é a primeira coisa que
presto atenção quando o carro estaciona. Há uma multidão de
pessoas e fotógrafos.
— Chegou o momento. — Yuri fala, arrumando sua gravata.
Eu me aproximo, entrelaçando meus dedos aos seus, quero gritar
para que ele desista dessa ideia monstruosa, mas ele apenas
aperta minha mão, me fazendo encarar seu rosto.
— Por favor. — Imploro quando uma lágrima solitária escorre
por meu rosto. — Eu não quero. — Gemo, prendendo um choro feio
e desesperado.
— Meu amor… — Ele estala a língua, eu me assusto com
seu tom de voz gentil e calmo. Ele desliza o polegar, enxugando
meu rosto. — O que meu pai disse quando você estava matando
ele? — Ele pergunta, seu tom de voz parece angustiado e cheio de
tristeza.
Pela primeira vez ele me olha como se sua máscara tivesse
caído, como se ele fosse o meu pai de verdade, eu até consigo ver
o amor em seus olhos enquanto ele amassa minhas bochechas
entre suas mãos.
—Não foi nada verdadeiro, papai. — Eu imploro, balançando
a cabeça em negação, meu coração bate forte, consumido pela
esperança de que ele vai voltar atrás. — Por favor, você ainda pode
me salvar. Você ainda pode provar que tudo que ele disse é uma
grande mentira.
Eu imploro, erguendo minhas mãos para segurar o seu rosto
também, mas ele desvia o rosto no último segundo. Ele balança a
cabeça em negação, estalando a língua de forma repreensiva.
— Não, é tarde demais para isso. — Ele muda sua expressão
para indiferença, inclinando o queixo e apontando em minha
direção. — Vai ser o melhor para sua vida, você vai ver.
— Não, por favor… Eu não quero… — Minha voz se quebra
pelo choro decepcionado ao perceber que ele nunca vai mudar, não
existe nada forte o suficiente para fazer ele mudar de ideia e me
salvar.
— Mas eu quero. — Ele responde sorridente, sua mão aperta
a minha com força, eu grito quando começa a doer. — Saia agora.
— Seu aperto é abusivo, eu sinto que ele pode arrancar meu punho
ou meus dedos.
Eu começo a sair quando ele me ajuda com o véu para cobrir
meu rosto. O vestido faz eu me sentir como uma criatura perdida no
mundo, um animal fora do seu habitat. Yuri grunhe, como se tivesse
vontade de me pisotear.
— Você está tremendo, Arcane. — Brada. — Agarre meu
braço e apenas caminhe.
Eu respiro trêmula, começando a olhar para as pessoas mais
próximas. Eles tem um olhar tão vazio, como se não conseguissem
enxergar nada além de suas vidas perfeitas e corrompidas pelo
crime. Eu quero apenas correr para longe, mas Yuri intensifica seu
aperto conforme nos aproximamos do caminho de rosas vermelhas
espalhadas pelo chão. As pessoas suspiram quando me vêem, a
devoção brilha em seus olhos quando Yuri levanta o véu e deixa um
beijo demorado em minha testa. Eu agarro seu braço, me inclinando
contra seu corpo.
— Então a menininha grudenta do papai finalmente vai se
casar. — Ele pisca, acariciando minha bochecha. Meus olhos
brilham em lágrimas ao lembrar dessas palavras, é uma memória
tão vaga, mas consigo lembrar dele gritando por mim dessa forma
na casa.
— Por favor. — Imploro, esfregando a ponta do meu nariz
contra sua bochecha quando ele segura os dois lados do meu rosto.
— Faça alguma coisa. Eu imploro.
— Seja feliz, agapi mou. — Ele sussurra. — Lembre do que
eu falei, você sabe lutar como ninguém, basta ser forte.
Ele me solta, me empurrando com delicadeza até que as
mãos de Kalon se entrelaçam aos meus dedos.
— Obrigado, Yuri. — Ele balança a cabeça, ainda sem me
olhar. — Eu assumo daqui.
Eu olho para meu pai tentando segurar as lágrimas, ele não
me olha novamente, apenas dá as costas e se perde entre os
convidados. Eu não ouso olhar para o rosto de Kalon, por mais que
eu sinta sua atenção em mim. Ele acaricia minha mão com tanto
carinho que rapidamente a impressão do aperto de Yuri desaparece.
— Não tenha medo. — Fecho meus olhos quando sua boca
encosta nos meus dedos, ele suspira contra minha pele e deixa um
beijo molhado. — Eu estou com você. — Acrescenta, balançando
meus dedos para fazer com que eu olhe em sua direção.
Mordo o canto dos lábios, respirando fundo e lhe dando
minha atenção. Meus olhos se encontram com os seus e o mundo
paralisa ao nosso redor. Não consigo ouvir o som dos pássaros
misturado com o som das pessoas, eu ouço apenas as batidas do
meu coração enquanto encaro seus olhos verdes. Eu quero avançar
um passo em sua direção e implorar para que ele me segure firme,
eu quero empurrar seu corpo para longe e sair correndo desse lugar
e de qualquer possibilidade de uma vida ao seu lado.
— Está me ouvindo? — Ele questiona, meus olhos se
perdem em suas roupas brancas que são um pouco tradicionais.
— Estou. — Eu balanço a cabeça em concordância,
percebendo que ele ainda está me olhando.
Seus olhos brilham com algo forte e glorioso que não consigo
decifrar, mas quero experimentar qual o gosto, qual a sensação.
— Aí está. — Ele sorri, apontando para meu rosto. — Minha
coisinha rebelde e linda, mantenha esse brilho curioso em seu rosto.
— Fala mais baixo.
Eu quase esmoreço diante do seu elogio, mas algo se fecha
em meu peito ao lembrar que ele matou sua namorada. Tenho medo
desse homem, medo dele perder o controle e acabar com a minha
vida.
— Eu nunca me casei na vida e essa está sendo uma
experiência horrível. — Minha voz é raivosa e minha garganta
arranha.
— Eu também não. — Ele balança os ombros. — Mas acho
que nós podemos flertar enquanto o padre fala todas essas
baboseiras.
Eu não consigo compreender o que o homem religioso fala,
tentando absorver todos os detalhes ao nosso redor, as pessoas
dançando e o som dos pássaros, algumas borboletas voando e as
flores cheirosas. Kalon não deixa de me observar, seus olhos
varrem meu corpo, meu rosto, minha mão sob a sua, minha
respiração trêmula. Ele consome cada pedaço da minha existência
como se fosse um vício incontrolável.
Quero gritar com ele para que fique longe de mim, no
momento em que eu tento arrancar minha mão da sua, o padre
começa a falar com nós dois. Eu trêmula, não sabendo o que fazer.
Eu olho para Kalon buscando alguma orientação.
Seus lábios estão entreabertos, seus olhos brilham cheios de
atenção e algo calmo, ele está concentrado apenas no homem que
fala conosco. Ele balança a cabeça algumas vezes, como se
estivesse guardando cada palavra dita em seu coração.
Eu me sinto tonta. Esse vestido me sufoca e me deixa em
agonia, eu faria qualquer para abrir minhas costas e sair de dentro
dele. Procuro não prestar atenção no incômodo que sinto quando
viro o rosto para o padre.
— Agora é a hora. — Kalon me olha de relance, me lançando
uma piscadela animada.
— Vocês expressaram o desejo em casar... — O padre está
falando conosco, seus lábios se movimentam, completando a frase.
— Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza…
Todos parecem se inclinar, desejando ouvir as palavras que
vão sair de nós, uma palavra que vai mudar toda a minha vida.
— Sim. — Minha voz sai trêmula, mas rapidamente sou
coberta por uma voz mais firme e aveludada. Nós dois falamos isso
juntos, como a sombra um do outro. Costurados, sangrando em
cima um do outro. Condenados.
— Podem trocar as alianças. — O padre fala, eu encaro
Kalon, estendendo minha mão.
— Arcane mou, receba essa aliança… Como sinal da minha
devoção e da minha fidelidade. — Eu fecho meus olhos quando algo
frio desliza por meu dedo anelar. Uma aliança dourada bem fina, já
a dele é mais grossa.
— Receba essa aliança… — Minha voz falha, eu quase
engasgando e meus dedos paralisam no meio do caminho.
Ele puxa minha mão com cuidado e pressiona seus lábios
contra os meus, me livrando de falar as próximas palavras. As
pessoas aplaudem e comemoram, soltando assobios intensos. Eu
finalizo com a aliança em seu dedo e me afasto, encarando seu
rosto, assustada por ter beijado sua boca em público.
Olho para o padre; esperando ele nos dispensar. Eu tenho
certeza que vou desmaiar se não sair desse vestido agora mesmo.
— Certo, agora era a hora de beijar a noiva. — O padre
balança a mão, arrancando algumas risadas das pessoas.
— Eu faço de novo. — Kalon balança os ombros. — Para que
Deus ache graça de nós.
Eu fico tensa, olhando para seu rosto quando ele se aproxima
novamente.
— Arcane, eu vou beijar sua boca agora. — Seus olhos
encaram meus lábios, eu vejo o desejo em sua expressão e logo me
sinto quente e anestesiada. Pisco algumas vezes, dessa vez
inclinando meu rosto em sua direção e mantendo meus olhos
abertos. Sinto o gosto da sua boca contra a minha, seus lábios
dançando com os meus, eu me enfraqueço e espremo seu terno em
busca de apoio.
Eu nunca fui beijada com tanta calma e paciência como
agora. Eu poderia desmoronar em seus braços, agarrar seu ombro e
prolongar seu sabor, mas me afasto quando tenho consciência das
pessoas aplaudindo e vibrando. Minhas bochechas ficam vermelhas
de raiva e vergonha. Eu quero desaparecer. Eles estão
comemorando a minha infelicidade, aplaudindo todos os meus
pedaços quebrados, reverenciando as correntes ao redor do meu
corpo e a vida desse passarinho que jamais vai sair da gaiola. Esse
realmente é o fim da minha liberdade tão almejada.
Kalon me ajuda com o vestido quando começamos a andar,
eles jogam flores em nossas cabeças enquanto gritam palavras em
grego, nos abençoando. Passaram-se horas com pessoas vindo nos
parabenizar e se apresentar, nós fizemos algumas fotos onde eu
tive que forçar um sorriso gentil.
Na primeira oportunidade de ficar sozinha, eu começo a
beber taças de champanhe apenas para fugir da conversa e de
apresentações cansativas. Kalon conversava e apertava a mão de
várias pessoas, ele está em uma posição difícil onde precisa
conversar com vários homens importantes.
— Me concede a honra? — Alívio sobe por minha coluna ao
ouvir a voz de Pavlos.
— Ah, Pavlos! — Meu coração bate desenfreado e no mesmo
instante eu pulo em seus braços, agradecida por ter o meu melhor
amigo comigo. — Graças a Deus que você está aqui.
— Seu pai me convidou. — Ele acaricia minhas costas. —
Acho que a ideia de fingir que somos amantes não deu muito certo,
não é?
— Eu realmente não estava contando com isso. — Eu
balanço a cabeça em negação, puxando seu corpo para dançar
comigo e ignorando os olhares das pessoas. — Mas foi divertido,
pelo menos serviu para me distrair dessa realidade infernal.
— Ora, se você quiser… Podemos nos beijar agora mesmo,
mas eu preciso pedir a sua irmã, ela é ciumenta. — Ele cochicha,
me fazendo gargalhar alto. Meus olhos ficam marejados de alívio
quando a tranquilidade se espalha por todo o meu corpo.
— Pavlos! Agora todo mundo está olhando! — Eu falo
envergonhada, sentindo minhas costas queimarem com tanta
atenção.
— Não se preocupe, sua irmã disse que você precisava se
sentir um pouco melhor. — Pavlos apenas ri e balança meu corpo
de um lado para o outro, me ajudando a ficar mais leve e tranquila.
— Elas não podem vir até você porque estão impedidas por Yuri,
mas eu posso roubar a dança de todos os homens que estavam na
sua lista. — Ele cochicha, acariciando minha bochecha.
— Você é incrível, Pavlos. — Eu falo agradecida, percebendo
que alguns homens estão saindo da fila por estarem exaustos de
tanto esperar.
— Estou apenas cumprindo o meu papel de melhor cunhado,
agora que você tem mais três. — Pavlos solta uma piada divertida,
me arrancando outra gargalhada tão leve que meus olhos enchem
de lágrimas.
— Você é o meu melhor amigo, nada nunca vai se comparar
a isso. — Eu beijo suas bochechas, acariciando suas costas quando
o aperto com força.
— Você é a minha melhor amiga, Arcane. Uma pessoa tão
querida na minha vida que eu gostaria de provar isso de todas as
formas. — Ele agarra minha cintura, me girando no ar e causando
alívio ao meu corpo quando não sou puxada para baixo pelo peso
do vestido. — Você quer o seu presente agora?
— Sim, por favor! — Falo animada, quase perdendo o fôlego
quando sou devolvida ao chão. Os olhos de Pavlos brilham de
entusiasmo quando ele me puxa para um lugar mais afastado da
pista de dança, agora para debaixo de uma árvore iluminada. Ele
leva os dedos à boca e assobia suavemente, não demorou muito
para um latido ecoar no meio da multidão.
— Páris! — Eu grito, animada. O animal dourado vem
correndo a todo vapor, até que pula em meus braços e balança o
rabinho, me dando tantos beijos que fico tonta e preciso ser apoiada
por meu amigo. — Oi, meu amor! Você estava com saudades?
Estava?
— Lembra que combinamos que você ficaria com ele? —
Pavlos sussurra. — Agora chegou a hora.
— Sério? — Meus olhos brilham, procurando seu rosto.
— Sério mesmo. — Ele afaga as orelhas do animalzinho. —
Eu vou passar alguns meses trabalhando com vovô em alto mar,
Melissa vai estar ocupada tentando fugir algumas vezes para cuidar
de vovó. Nimue só quer saber de livros e mais livros. — Ele
cochicha a última parte, dando uma gargalhada. — Então fique com
Páris, você ama tanto ele que eu não pensaria em outra pessoa. —
Ele pisca.
— Ah, Pavlos! — Eu envolvo seu ombro em um abraço
apertado, rapidamente o Golden Retriever espalha sua língua por
nós dois, latindo e balançando seu rabinho. — Eu agradeço muito,
você sabe o tanto que isso significa.
— Sim, eu sei. — Ele balança a cabeça em concordância. —
Você vai ter a companhia dele e não vai estar sozinha, quando olhar
para ele vai se lembrar que suas irmãs e eu te amamos muito. —
Ele aperta minha mão com força. — Pense sempre em nós e seja
corajosa.
Eu agradeço, apertando Páris em meus braços e caminhando
para a pista de dança quando Pavlos tem que se afastar, pois
Melissa está com um imenso sorriso apaixonado chamando sua
atenção. Uma força magnética faz esse homem caminhar em sua
direção, como se não houvesse mais nada importante no mundo.
— Senhorita Melissa, dance com esse pobre homem e dê a
ele algumas horas no paraíso. — Ele estende a mão, fazendo minha
irmã rir de um jeito invejável. Isso é paixão, a mais pura e linda.
Até o cego e um louco consegue enxergar que eles se amam
de verdade, e eu sinto que Pavlos está cada vez mais disposto a
enfrentar Yuri para ficar com minha irmã. Eu procuro por Nimue
entre as pessoas e encontro ela dançando com nosso pai que não
deixa de observá-la, enquanto resmunga algumas palavras baixas.
Eu paro quando percebo Kalon, eu pensei que ele estava
distraído com seus amigos, mas seus olhos estão voltados em
minha direção, analisando o cachorro em meus braços e minhas
bochechas avermelhadas. Eu limpo a garganta, aceitando mais uma
taça de vinho para criar coragem em aceitar os pedidos para dançar.
— Fique aqui, filho. — Empurro o cachorrinho de gravata
para ficar deitado perto de onde estou dançando. Ele deixa,
escondendo suas patinhas com as orelhas. O meu vestido fica cada
vez mais pesado conforme os homens me puxam sem nenhuma
delicadeza, eu caminho para trás, sentindo tontura e dispensando o
próximo que estava vindo.
— Arcane, pegue o cachorro e venha ver os fogos de artifício.
— Kalon me chama, caminhando ao lado de um dos seus amigos.
— Eu vou te apresentar um grande amigo de papai e a esposa dele.
— Ele segura meus dedos, me fazendo andar ao seu lado.
Eu agarro seu braço, tropeçando em meu salto, sua mão
rapidamente envolve minha cintura, me apertando firme.
— Devagar. — Eu imploro, sentindo o questionamento em
seu olhar. — Eu estou tão exausta desse vestido… — Balanço a
cabeça em negação, minhas pernas estão tremendo e leva tudo de
mim para não cair. — Eu não fui treinada para isso, Kalon. Eu odeio
tanto me casar que sinto que vou desmaiar. — Eu fico na ponta dos
pés, agarrando seus ombros. — Por favor, faça alguma coisa. — Ele
é tão alto que minha vista escurece.
— Arcane… Alguém pode ouvir e interpretar errado… —
Suas sobrancelhas estão unidas, seus olhos piscam e ele começa a
inspecionar cada pedaço do meu corpo procurando por algum
machucado, hematoma, qualquer ferida exposta, mal percebendo
que ela está em meu peito, não na pele.
— Está tudo bem, minha alma. — Ele assegura, ainda me
olhando cheio de preocupação. — Você foi muito bem, meu
amorzinho. Muito bem.
Sons tranquilizadores saem dos seus lábios, até que eles se
juntam aos meus em um beijo cheio de conforto. Eu gemo, meu
interior consegue relaxar completamente quando ele me toca e me
beija desse jeito profundo. Eu me afasto, procurando por fôlego.
Kalon me encara de forma intensa, causando uma pontada deliciosa
na minha barriga, como mariposas implorando para sair.
— Eu quero outro. — Seus dedos me agarram meu rosto
com firmeza, tomando meus lábios em um beijo mais exigente e
faminto. Estamos parados um de frente para o outro, a música ainda
está tocando e as pessoas estão comemorando, aplaudindo os
fogos.
— Eu não quero continuar dançando. — Balanço a cabeça
em negação. — Eu realmente não fui feita para isso, Kalon.
Nós já dançamos com várias pessoas. Eu principalmente.
Estou cansada dos homens desferindo elogios insuportáveis e me
apertando mais do que deviam. Até com o próprio Ivan e seus
outros filhos eu dancei.
Mas não com Rajá, ele não apareceu na festa, eu já
imaginava isso depois de presenciar aquela discussão. O
rompimento dos dois irmãos parece que foi pra valer.
— Você está indo muito bem, Arcane. — Ele sussurra,
deslizando o polegar por meus lábios marcados pelos seus.
Eu fico na ponta dos pés, entrelaçando meus dedos em seus
fios de cabelo, procurando alguma sensação de segurança porque
minha visão está turva. Ele agarra minha cintura quando percebe
que estou caindo.
— Meu amor! — Ele rosna firme e atraente, como se
estivesse lutando para não me segurar em seus braços. Arrepios
sobem por minha coluna, eu rapidamente deito a cabeça em seu
peito, ouvindo seus batimentos acelerados.
— Por favor. — Eu não faço ideia do que estou implorando,
mas escondo meu rosto na curva do seu pescoço e continuo
sussurrando baixinho.
— Meu amor... Não fale comigo assim… Você me quebra. —
Ele me chama baixinho, deslizando os dedos pelo meu cabelo. Sua
outra mão está abraçando minha cintura e me mantendo em pé. —
Me diga o que há de errado e eu farei passar.
— Por favor. Está pesado. — Peço mais baixo, me remexo no
seu corpo grande, procurando qualquer forma de me aliviar. — Eu
estou exausta. Por favor.
— Eu não posso colocar você no colo. — Ele diz, beijando
meu ombro. Seus lábios são quentes e isso me faz encolher contra
seus braços. — Há muitas pessoas e eu ainda tenho fodidos
homens para apertar a mão e conversar.
— Não… Acabe logo com isso. — Eu gemo em agonia. Não
vou suportar mais nenhum segundo, meu corpo treme me protesto e
Kalon geme junto comigo, ele está impaciente.
— Foda-se. — Ele rosna. — Venha aqui, meu amor. — Eu
me assusto quando ele dispensa um grupo de homens que se
aproxima, ele foi tão rude e autoritário que fico com medo do seu
lado sombrio vir a tona no dia do nosso casamento.
As pessoas se afastam envergonhadas por terem sido
rejeitadas dessa maneira. Eles parecem de suma importância, deu
para notar pelo olhar que Ivan lançou em nossa direção,
especificamente para Kalon. O meu homem apenas me abraça com
mais força, ainda apertando minha cintura, como uma resposta para
todos que estão nos assistindo. Eu me sinto segura em seus braços,
então fecho meus olhos ao descansar na segurança de que ele vai
cuidar de tudo.
Eu pensei em abrir a boca e pedir para ele não ser tão rude,
mas não tenho forças para isso. Eu estou sobrecarregada com todo
esse evento agitado, passei os últimos dias trancada em um quarto
escuro enquanto chorava na frente do fantasma da minha melhor
amiga, eu estou a ponto de explodir.
— Você está bem? — Ele segura os dois lados do meu rosto,
me fazendo encarar seus olhos. As pontas dos seus dedos deslizam
por minha testa, checando minha temperatura. — Está febril, amor.
— Sua voz não passa de um lamento preocupado. — Faz quanto
tempo que está assim?
— Eu não sei… — Um choro fraco sai da minha boca. — Por
favor, me coloque em seu colo. — Eu gemo quando sinto sua boca
encostar na minha bochecha, onde ele deixa vários beijos
estalados.
— Amor… Eu não posso demonstrar que você me afeta, eles
podem usar isso contra nós… — Ele continua me beijando enquanto
sussurra.
— Kalon… — Eu esfrego meu rosto contra sua bochecha,
sentindo sua barba rala espetar minha pele macia. — Eu acho que
vou desmaiar.
— Porra, não vai. — Ele rosna, esse é o momento em que
minhas pernas saem do chão e eu sinto um alívio instantâneo.
Percebo então que eu parecia estar sendo empurrada para baixo a
todo instante, sendo soterrada por esse vestido que não vale sua
beleza. Eu fecho meus olhos, meu peito se abre em uma respiração
profunda de alívio, Kalon está assistindo cada movimento dos meus
seios com uma espécie de hipnose brilhando em suas pupilas
verdes.
— Talvez eu precise apenas de alguns minutos nessa
posição para reunir coragem para terminar a noite. — Minha voz
está trêmula, eu deslizo meus dedos contra sua bochecha. Ele está
tremendo diante do meu toque, como se isso fosse demais para ele
suportar.
— Porra, não vai ter uma noite para terminar aqui. — Seus
lábios úmidos se esfregam na ponta dos meus dedos, deixando
beijos estalados enquanto respira fundo comigo. Ele me segura com
tanta facilidade que eu sinto arrepios vertiginosos. Suas palavras
são ditas de forma arrogante e cheias de fôlego para seus dois
irmãos que se aproximaram, eu não consigo absorver muita coisa,
mas depois de um minuto ele começa a andar.
— Tudo certo aí? — Ele pergunta, deslizando sua barba em
minha testa. Ele respira fundo, percebendo que ele está tentando
medir minha temperatura ao fazer isso, eu gemo, inclinando minha
bochecha para que ele esfregue novamente. — Oh, certo. — Ele
parece estar sorrindo. — Acho que vamos ficar bem.
— O meu cachorro, eu preciso pegar ele. — Tento procurar
por Páris, mas Kalon me segura com mais força e assobia na
direção em que ele está deitado.
— Venha aqui, Páris. — Ele acena, apontando para mim. —
Arcane está chamando.
Os latidos dele é tudo que ouço antes de inclinar a cabeça
para o lado e adormecer, percebo que isso aconteceu porque
quando abro os olhos novamente, estou dentro de um carro em
movimento, com Páris deitado em meu colo enquanto lambe meus
dedos. Olho para o lado, tendo a visão estonteante de Kalon
dirigindo preguiçosamente. Seu paletó está ao redor dos meus
ombros, quente e com seu cheiro forte.
— Como se sente? — Sua voz grave e masculina me
assusta, ele sequer me olhou e sabe que estou acordada.
— Meu corpo está doendo. — Tento me movimentar, mas
isso apenas piora a situação.
— Fique quieta, estamos quase chegando. — Ele sussurra.
— Para onde está nos levando? — Meu corpo entra em
alerta, eu olho para as ruas de Atenas buscando alguma resposta
para minha pergunta, mas eu fecho meus olhos quando paramos
em um semáforo e a luz forte me encandeia.
— Para nossa casa, minha alma. — Ele responde com tanta
normalidade que parece que ele sempre foi casado comigo, como
se eu fosse normal e esse fosse um casamento normal, como se ele
estivesse me esperando há anos.
Ele gira a cabeça, me observando em silêncio. Eu me distraio
com as pessoas caminhando debaixo de chuva. Um resmungo
escapa de mim quando vejo um homem de meia idade caminhando
pelo acostamento com algodão doce, tem tantas cores que fico
hipnotizada, como é possível ter algo tão lindo no meio de uma
tempestade de um dia tão lindo? Meu coração frágil termina de
quebrar quando vejo o homem insistindo em vender, anunciando o
algodão doce de carro em carro, mas as pessoas não dão muita
bola.
— Fale comigo. — Kalon pede, entrelaçando nossos dedos,
ele ergue minha mão até seus lábios. Eu viro meu rosto,
percebendo que deixei escapar um som choroso muito alto.
— Eu estou triste por ele. — Aponto para o homem
caminhando entre os carros, inclinado de forma humilde para
suportar a chuva. — Ninguém quer comprar. — Lamento. — Hoje
em dia as pessoas perdem interesse por algo tão simples…
Minhas palavras desaparecem quando Kalon larga minha
mão e desaparece do carro, eu fico sozinha, encarando ele
caminhar debaixo da chuva até alcançar o homem moreno. Eu me
encolho, buscando conforto na cabeça de Páris em meu colo. O
animal faz um bom trabalho lambendo meus dedos e acalmando
meus nervos. Os dois homens estão trocando palavras rápidas,
Kalon gesticula, tirando todo o dinheiro da sua carteira e entregando
nas mãos do homem que quase ajoelha no chão em agradecimento.
Kalon guia ele até um táxi que estacionou quando ele ergueu a mão,
então recebe todos os algodões doces e caminha de volta para o
carro. Eu sou uma risada perplexa, tapando meus lábios.
— Prontinho, vida. — Ele grunhe, exausto da chuva e
empurrando as embalagens para o banco de trás. — Pegue esse.
— Ele me entrega um pacote colorido para comer.
Eu estou em silêncio observando seu rosto, eu nunca vi um
homem ser tão bondoso como agora. Tento ignorar meu coração
batendo acelerado e empurro alguns pedaços fofinhos na minha
boca. Páris tenta roubar alguns, ficando em pé e lambendo meus
lábios, eu grito, tentando controlar seus ataques de fofura. Kalon
nos assiste sem dizer nada, ele apenas estaciona o carro depois de
um tempo.
— Chegamos? — Eu olho ao redor.
Estamos na sua casa, o jardim imenso envolve a escuridão
noturna, e as luzes acesas proporcionam uma bela visão das
paredes brancas. Kalon remove o cinto do meu corpo e caminha
para fora, eu faço esforço para ficar em pé, mas tropeço no primeiro
passo para fora do carro.
Ele me ergue no colo e eu puxo Páris para deitar em minha
barriga, o animal late, se divertindo com a altura em que somos
carregados para dentro de casa. Ele aproveita a oportunidade para
lamber meu rosto e o de Kalon, que solta alguns palavrões
engraçados, aumentando a animação do cachorro.
— Bem melhor, não acha? — Sua voz é grave. — Peça para
o seu amigo ficar em paz ou ele vai acabar caindo. — Ele une as
sobrancelhas. Eu seguro o focinho de Páris, agarrando seu corpo
grande e me encostando contra Kalon, minha cabeça está deitada
em seu ombro.
Eu realmente estou aliviada por não precisar continuar
andando com essa coisa machucando meus pés e me fazendo
afundar com o peso do vestido.
— Obrigada por me ajudar. — Eu sussurro, encarando
quando Páris pula no chão para explorar a casa. Ele corre como um
louco pelas escadas.
O véu está se arrastando atrás de nós, suave e com lentidão,
até que ele entra em um quarto que parece ser o seu. Eu sei disso
porque tudo tem um pouco da sua personalidade. Gemo de alívio ao
sentir a maciez da cama em que ele me deita. As cobertas tem o
seu cheiro delicioso. Ele está liberando meus pés do salto alto e
fazendo uma massagem relaxante.
Eu grito quando uma pequena criatura se remexe no
travesseiro e pula em meu colo, eu quase caio da cama ao perceber
que é a porra de uma lontra. Ele realmente não estava mentindo. O
animal faz um barulho fofo e pula nas mãos de Kalon como se fosse
uma criança, procurando por seus beijos.
— Minha linda Pinar. — Ele dá risada, fazendo carinho em
seu tronco fofinho. — O que você está fazendo aqui? O Scar vai te
pegar! — Ele deixa inúmeros beijinhos no focinho do animal, eu
permaneço perplexa assistindo a interação dos dois. Como é
possível que esse homem tenha uma lontra?
— Quem é Scar? — Eu cochicho, tentando não chamar a
atenção do animal peludo e barulhento.
— Essa é uma pergunta perigosa. — Ele bate os cílios,
ficando de pé e colocando o bichinho em seu ombro. — Scar é a
minha cobra de estimação.
— Está brincando? — Sussurro, petrificada.
— Não. — Ele balança a cabeça em negação. — Ele é
bastante quieto, então não se preocupe.
Eu imediatamente sinto vontade de abandonar a casa. Kalon
me encara, analisando a tensão em meus ombros.
— Não se preocupe, as minhas crianças não atrapalham em
nada. — Ele assegura, observando o animal sumir debaixo da
cama.
— Eu não me importo com isso. — Balanço a cabeça.
— Ótimo. — Kalon volta a fazer uma massagem deliciosa em
meus pés, eu mordo o canto dos lábios, gemendo de alívio quando
uma sensação eletrizante sobe por meus pés. A dor está
desaparecendo lentamente, mas meu corpo ainda está exausto.
Tudo que eu quero é tirar esse maldito vestido antes que eu morra.
— Eu vou pegar água e algo para a dor. — Ele diz,
deslizando seus dedos pelo meu rosto antes de sair do quarto.
Eu estou sozinha em uma casa que não é a minha, em um
quarto assustador e tão cheio de fantasmas quanto o meu. Eu levo
as mãos ao meu rosto, finalmente liberando um choroso doloroso
que guardei a noite inteira. Sinto falta das minhas irmãs, eu sequer
pude me despedir delas. Eu estou com tanto medo de como minha
vida vai ser que eu começo a engasgar em meio ao choro
desesperado.
Os soluços atingem as paredes do quarto, eu olho ao redor,
me sentindo em uma prisão cheia de monstros. Eu pulo da cama
procurando uma forma de remover o maldito vestido, mas antes
disso, fecho a porta de chave pra não precisar ver o rosto de Kalon.
Minhas mãos se inclinam por minhas costas, mas não consigo abrir
as pérolas. Isso dói. Eu grito mais alto, desesperada e sem fôlego.
— Por que não quer sair? — Minha voz está tão frágil e
quebrada, eu afundo no chão me encolhendo.
O véu está embaçado pelo chão, parecendo um furacão
devorando qualquer controle, e eu estou bem no centro das coisas
que ele vai consumir. A maçaneta da porta gira. Consigo ver a
sombra de Kalon pela brecha do chão.
— Arcane, abra a porta, por favor. — Ele pede, sua voz está
angustiada e cheia de pressa. — Não faça isso, meu amor. — Eu
aperto os olhos, balançando a cabeça repetidas vezes para afastar
os sentimentos que controlam.
— Me deixe em paz! — Esbravejo ao ponto da minha voz
ficar rouca. — Eu não quero você! — Me remexo, tentando arrumar
a barra do vestido, mas isso fica apenas mais bagunçado. — Ah,
meu Deus! Por que não quer sair?! Por que eu?!
Todas as minhas tentativas de abrir são um fracasso
vergonhoso. Eu caio para trás, batendo a cabeça na cama quando
meus pés pisam na barra do vestido.
– Porra! — Eu esmurro as almofadas, sendo afetada pela
raiva humilhante.
— Meu amor, abra a porta, eu posso ajudar você. — Kalon
pede com urgência em seu tom de voz, ele parece cheio de
preocupação e impotência. — Eu juro que vou abrir essa porta com
minhas próprias mãos, Arcane! — Uma batida firme soa do outro
lado, me fazendo encolher.
— Me deixe em paz... — Imploro, choramingando. — Você
não acha que já fez demais? Apenas me deixe!
— Por favor. — Ele suspira como se seu rosto estivesse
contra a madeira. — Por favor. — Ele repete em um sussurro
carregado de fraqueza. — Me deixe ajudar você, Arcane mou.
Raiva queima meu peito, eu gemo, me erguendo de forma
atrapalhada e caminhando até a porta.
— O que mais você quer de mim? — Eu grito quando giro a
maçaneta. — Não é suficiente tudo que você me tirou? O que mais
você quer? O que?
Meu desejo é quebrar esse homem para que ele sinta como
eu me sinto, mas seus olhos me observam como se ele quisesse
me fazer voar. Como se estivesse fazendo promessas que vai
revirar o mundo para cumprir. Ele me observa de cima a baixo, eu
vejo culpa brilhando em seus olhos, eu vejo a verdade brilhando
através dele.
— Eu quero deixar você em paz, meu amor. — Ele diz,
abrindo os braços. — Vamos encontrar uma cura para esse
sofrimento. Eu prometo. — Ele permanece parado esperando que
eu vá até ele. — Você nunca mais vai se sentir sozinha enquanto eu
estiver aqui.
29. COMEÇARAM COM
AMIGOS
“Algumas pessoas procuram os padres;
outras a poesia; eu os meus amigos”.
— VIRGINIA WOOLF.

Os gritos de Arcane fazem meu corpo estremecer em agonia.


Jesus Cristo, eu estou sendo torturado enquanto a vejo assim, meu
coração bate de uma forma tão feroz que eu sinto vontade de
vomitá-lo. Toda a casa estremece com seus gritos. Ela está
quebrada. Muito destruída. Arruinada para sempre.
Eu sabia desde o início que todas as minhas tentativas não
iriam impedir que esse momento acontecesse. Parece que fomos
feitos para quebrar, para sangrar e morrer. Mas porra, agora eu não
sei o que devo fazer para desfazer a sua dor. Eu estou
enlouquecendo a cada segundo em que ouço seu choro angustiado.
— Arcane, já chega! —Eu imploro ofegante quando ela chora
mais alto. Seu corpo trêmulo e pequeno balança de um lado para o
outro. — Por favor. Por favor. — Sussurro ofegante.
Essa é a visão de uma noiva banhada em sangue e tristeza,
eu fecho meus olhos, pois sinto que se continuar assistindo eu vou
morrer de culpa e impotência. Seu corpo cai em meus braços
quando ela tropeça no vestido, ela se esperneia para ficar livre do
peso, mas começa a lutar agressivamente quando eu tento ajudá-la.
— Pare de rebeldia! — Sibilo em um chiado.
Ela geme, se contorcendo dentro do vestido que está
fodidamente pesado para uma pessoa que nunca esteve
acostumada a viver como as mulheres do nosso meio. Seu cabelo
longo e liso está espalhado por seu ombro, o penteado desfeito
deixou marcas selvagens em seus traços. Seu véu está rasgado,
me proporcionando a visão de uma deusa triste.
As lágrimas molham suas bochechas avermelhadas e eu
gostaria de lamber cada uma delas apenas para compartilhar sua
infelicidade comigo, apenas para engolir todo o seu sofrimento e ele
de alguma forma se torne mais leve dentro do seu peito.
— Rebeldia? — Ela tenta rir, mas tudo que sai dos seus
lábios é um soluço sofrido. Sua mão enxuga suas lágrimas em um
gesto agressivo.
— Não chore mais, amor… — Eu tento ajudá-la, mas ela
empurra minhas mãos. Arcane soluça mais alto, em colapso e fraca,
desarmada e aprisionada.
— Você tirou tudo de mim e vem falar que é rebeldia? — Seu
olhar rasga minha alma como se fossem garras. — Você tirou a
única coisa que eu poderia ter! A única coisa que poderia ser
apenas minha! — Aponta para seu peito em um movimento brusco.
— Então eu vou sentar aqui e chorar. Porque está doendo. Pra
caralho.
As últimas palavras que saem espremidas. Eu respiro fundo,
tudo dentro de mim dói e se recolhe em culpa. Sinto esse monstro
machucando minha garganta, meu coração. Afetando minha
respiração e meus pensamentos racionais. Eu não sei descrever
com clareza tudo o que sinto agora, mas me sinto fodidamente
doente e vulnerável. Minha vontade é ajoelhar aos seus pés e
implorar pra que ela me entregue cada pedaço do que sente, porque
não suporto vê-la mais nenhum segundo nesse estado sombrio.
— Arcane... Meu amor. — Minha voz sai em um lamento
grave e trêmulo. Estou tomado pela tortura e agonia. Estendo
minhas mãos em sua direção, mas ela se encolhe como se eu fosse
fogo e morte.
— Não encoste em mim! — Grita tão alto que me assusto. —
Não encoste! — Estremece, agarrando uma almofada como se ela
pudesse a proteger de mim.
— Eu não vou machucar você. — Digo rapidamente,
desejando que ela me encare e veja a verdade em meus olhos.
— Você já me machucou! — Ela grita antes que eu consiga
terminar minhas palavras.
Arcane cambaleia em minha direção, cheia de raiva e
parecendo a porra de uma tempestade devastadora. Seus punhos
fechados acertam meu peito com força. Isso dói como o inferno. Ela
é forte. Terrivelmente forte. Eu puxo seu corpo para mais perto do
meu e abraço sua cintura. Essa mulher tão pequena consegue
causar um redemoinho assustador no meu quarto. Dentro de mim
principalmente.
— Arcane... — Deslizo as mãos por suas costas e seus
cabelos. Faço sons suaves, tentando tranquilizar seus gritos.
Ela apenas continua esmurrando meu peito e produzindo
barulhos dolorosos que escapam pelo quarto. Batendo contra as
paredes e condenando minha alma a uma eternidade de culpa e
desamparo. Eu vou ficar com hematomas dos seus socos, mas não
me importo. Ela está soluçando e fazendo isso com mais força, meu
corpo balança, já trêmulo quando sinto a dor deslizando pelas
minhas veias. A ardência rasga minha pele quando os botões da
camisa se rompem e eu sinto suas unhas contra minha carne. Esse
é o pedido de socorro mais angustiante que eu já presenciei. Eu
fecho meus olhos, descansando meu queixo no topo da sua cabeça.
— Está tudo bem. — Sussurro, minha voz tão ofegante
quanto a sua que já enfraqueceu pelos gritos. — Me destrua como
você está destruída. Divida tudo isso comigo. — Ela o faz, não
tendo piedade alguma quando desliza suas mãos por minhas costas
e grita alto, tão intenso que um calor úmido sobe por sua coluna,
liberando seus últimos resquícios de força.
Minhas mãos abraçam seu corpo com mais força, impedindo
que ela caia no chão quando seus braços amolecem ao meu redor.
Percebo que ela está tremendo de exaustão, agora sob uma névoa
triste e dormente.
Quando suas mãos me libertam, eu puxo seu vestido com
força, partindo seus pedaços sem a menor delicadeza, até que suas
costas estão livres e ela engasga, respirando fundo, choramingando
de alívio e quase desmaiando. Eu faço uma massagem demorada
em sua pele, confortando-a por todo esse tempo que passou sob
tortura.
— Eu odeio tanto você. — Ela geme, o vestido caindo em
seus tornozelos e seu corpo frio sendo apertado contra o meu. —Eu
nunca vou perdoar você por tirar a minha liberdade. — Ela geme,
escondendo o rosto contra meu peito, bem em cima do meu coração
em pedaços. Um nó se forma em minha garganta e eu não ouso
falar nada. — Eu odeio tanto você. — Ela repete, eu seguro suas
bochechas molhadas e inchadas, fazendo ela me encarar.
Seu queixo está manchado de sangue em meu peito, eu
limpo com o polegar, afastando seus cabelos úmidos e apreciando
cada traço do seu rosto perfeito e tão triste. Suas palavras ainda
estão sendo processadas na minha cabeça. Ela me odeia, eu sei
que ela sempre vai me odiar, mas isso não me impede de ser
machucado por cada sílaba.
— Com todo o seu coração? — Eu pergunto, buscando essa
confirmação para me alimentar do fato consumado. Nada que eu
fizer pode reverter a nossa história, mesmo que minhas intenções
tenham sido boas, nada disso vai poupar cada pedacinho que
Arcane perdeu de si mesma. Eu sinto muito por isso. Eu sinto tanto.
Tanto. Tanto.
— Com todo o meu coração. — Ela completa, determinação
e raiva aprofundando suas palavras cheias. Foi difícil engoli-las, eu
balanço a cabeça em concordância, sentindo dor física com o gosto
ruim que se espalha pelo meu interior.
Mas eu não digo nada, sei que não estou em posição de
tentar alguma absolvição. É apenas isso que eu quero ocupar em
seu peito, o ódio abominável e profundo, eu sei que não mereço
outra coisa.
— Você é tão maravilhosa, não mude nunca. — Minha mão
livre faz um carinho demorado em seu rosto, varrendo os resquícios
molhados. Ela esmorece contra meu toque e fica na ponta dos pés,
desejando que eu a pegue nos braços.
— O que você quer agora? — Sussurro, pressionando minha
boca contra a pontinha do seu nariz. — O meu colo?
— Sim. — Ela responde, respirando fundo como quem sente
uma fome profunda. Sua voz está ofegante, ela balança o corpo
para que eu faça isso depressa. — Meu corpo ainda está tão
pesado que não consigo aguentar. — Ela geme.
Seus cabelos estão molhados de suor, assim como suas
costas nuas, seus seios fartos apertam meu abdômen e calor corre
por minhas veias. Minha mão desliza por sua cintura, apertando sua
bunda com força e trazendo suas pernas para enlaçar meu quadril.
Ela respira fundo, abraçando meu ombro e deitando a cabeça na
curva do meu pescoço.
— Você ainda está com febre. — Comento quando ela
desliza sua bochecha por meu queixo, sentindo minha barba rala,
fazendo com que nosso calor se misture.
Meu coração erra as batidas ao ponto de doer. Eu estou
doente pra caralho. Muito doente e faminto por cada pedaço dela.
— Você é tão áspero. — Ela resmunga sem abrir seus olhos.
Talvez ela esteja delirando pela frente forte. — Eu te odeio tanto. —
Ela repete, apenas para deixar isso claro, extremamente claro e
doloroso.
— Eu sei disso, meu amor, minha vida. — Eu aperto sua
cintura, caminhando com seu corpo até o banheiro. — Pare de
esfregar o rosto em minha barba e me poupe dessa tortura infernal.
— Eu beijo sua pele quente. — Eu preciso banhar você. — Peço
suavemente, Arcane ri de um jeito traquino, me assustando com a
surpresa. Sua risada embriagada é a coisa mais linda que eu já
ouvi, uma pena que seus muros abaixam assim apenas por causa
do álcool.
Arrumo seu cabelo em um coque, deixando seu rosto livre de
qualquer fio. Começo a limpar suas últimas lágrimas com o polegar
e então seus olhos se erguem para me observar. Ficamos em
silêncio por um tempo, apenas nos encarando. Há tantas coisas não
ditas se revirando no brilho desse olhar que eu perco o fôlego.
Entro na jacuzzi cheia, mantendo ela em meu colo, na
mesma posição acolhedora. Eu não tiro minhas roupas e tudo fica
terrivelmente encharcado ao ponto de fazer Arcane escorregar em
meus braços.
— Por favor… — Ela dá um gritinho sôfrego, me segurando
para não afogar. — … Não me solte.
— Jamais. — Eu sussurro.
Suas pernas se apertam ao redor do meu corpo, como se ela
soubesse a posição perfeita de ficar em mim, e minha mão
descansa em sua bunda desnuda. Eu perco o fôlego com seu corpo
delicioso desmoronando sobre mim. Sua cabeça deita em meu peito
e suas mãos apertam a minha camisa aberta, meus ferimentos
queimam em contato com a água, mas nós dois nos abraçamos
como se virar pó fosse uma coisa possível e assustadora.
— Eu acho que você ainda está bêbada, essa é a única
explicação para me abraçar de um jeito tão… — Devastador,
intenso, assustador.
Essa mulher me agarra como se tivesse reivindicado a minha
alma e esse monstro batendo em meu peito. Eu quero empurrá-la
para longe porque estou assustado com o que está acontecendo
aqui dentro, mas aceito isso como uma punição por ser horrível com
ela e aguento cada segundo em que isso se revira em meu peito. Se
eu for viver assim para sempre, acho que em algum momento vou
acabar morrendo de desgosto por não conseguir satisfazer tudo que
meu corpo implora para possuir. Tudo que envolve ela. Nós dois.
— Você está bem? — Ela ergue a cabeça, pressionando sua
palma bem em cima do meu peito, então eu consigo sentir a
intensidade com que o monstro está batendo em seus dedos. Minha
garganta fica seca e eu olho para seus olhos.
Acho que estou doente, eu penso em falar, mas ela já está
virando a cabeça para deitar no outro peito onde a intensidade não
a incomoda tanto. A jacuzzi não é funda, mas é espaçosa e muito
cheia ao ponto de bater em seu queixo quando ela se mexe demais.
Arcane me agarra, temendo se afogar caso seu corpo deslize para o
lado.
— Eu não vou deixar você cair. — Asseguro, esfregando os
dedos em suas costas. — Vou cuidar de você. — Seus olhos ainda
estão marejados, ela me aperta quando seus ombros balançam em
um choro tranquilo, agora completamente diferente do outro e isso
me deixa assustado.
— Meu amor? — Eu falo em choque. — Não chore, me diga
o que eu faço para parar… — Ela me puxa contra si como se
precisasse de conforto eterno, meu corpo balança, pois eu não
estava esperando por isso.
Ela me aperta como se eu fosse a sua âncora e ao mesmo
tempo o tridente que estraçalha seu corpo e a mantém presa
enquanto sangra até a morte.
— Eu estou com medo. — Ela sussurra, sua confissão aperta
meus ossos. Porra. Isso é amargo e doloroso.
— Eu sinto muito. — Falo com sinceridade, abraçando sua
cintura e fechando os olhos quando minha garganta dói. — O que
eu posso fazer por você? — Eu falho em soar firme, minha voz ecoa
quebrada e grave. Arcane resmunga trêmula, deslizando sua
bochecha por meu queixo mais uma vez, apertando meu rosto em
suas mãos.
Eu fico totalmente parado, não ousando movimentar nenhum
músculo e interromper o que ela está fazendo. Primeiro, porque
ambos estamos gostando. Segundo, porque isso parece ser o que
ela está precisando. Seus olhos estão fechados, prolongando o
sentimento.
Ela faz sons de satisfação enquanto brinca com minha barba,
eu nunca vi uma mulher tremer dessa forma porque está me
tocando. Arrepios sobem por minha coluna e eu me sinto como a
porra de um adolescente experimentando coisas novas.
— Arcane mou. — Minha voz é grave e raivosa por eu não
conseguir conter meu desejo desesperado em tê-la. — Não faça
isso. Eu… — Aperto meus olhos, minhas palavras são mortas por
um gemido severo ao sentir sua língua lambendo meus lábios e
meu queixo. — Puta merda, que delícia.
Ela mordisca meu lábio para em seguida chupar. Seus dentes
me enviam choques de prazer diretamente para o outro monstro,
mais agressivo e descontrolado do que o que está em meu peito. Eu
não interrompo seus movimentos quando ela continua fazendo tudo
isso. Estou transtornado demais para abrir a boca para fazer outra
coisa além de soltar gemidos. Eu aperto os dois lados da sua cintura
com mais força do que pretendia, ela arqueja sensível.
— Desculpa. — Eu imploro, culpado.
Meu pau está latejando ao ponto de me causar uma dor
prazerosa, mas eu preciso me controlar para não machucá-la. Uma
coisa foi fazer sexo quando estávamos nos divertindo juntos, ainda
sem o peso de um casamento em seus ombros e a esperança de
que poderia não acontecer. Outra coisa é estarmos aqui, prestes a
nos rendermos a essa necessidade quando todas as coisas já estão
difíceis demais, quando ela gritou aos quatro cantos o quanto me
odeia e estamos em guerra.
Eu não posso ousar tocar nela e tirar outro pedaço da sua
vontade de ser livre, ir contra todas as suas vontades de decidir sua
vida por conta própria.
— Precisamos parar. — Eu seguro seus dedos ainda em meu
rosto. Porra, ela deixa um selinho em meus lábios e isso me quebra.
— Arcane. — Minha voz é grave. Um protesto.
— Quieto. — Eu rapidamente sou silenciado por sua boca na
minha, ela morde meu lábio ao ponto de machucar, engolindo outro
gemido rouco e cheio de tesão. Certo. Ela está me punindo, fodendo
com minha consciência, me torturando duramente. E eu caí na
armadilha, porque estou em uma posição que se ela me pedir por
algo insano, eu farei apenas para ver a satisfação em seu rosto.
Eu balanço meu quadril, buscando algum alívio para o meu
pau preso na calça. Ela beija a minha boca de forma agressiva,
cheia de raiva e algo que faz meu peito estremecer. Eu quase grito
de prazer quando sua mão aperta meu pau, me causando choques
estonteantes.
— Merda, minha alma, o que você está fazendo? — Calor
marca a minha pele, me deixando ofegante e trêmulo. Ela desliza
em cima de mim para ter mais espaço entre me beijar e me morder,
minhas mãos apertam suas coxas, desejando manter ela sentada
em meu colo para aliviar o meu pau latejando.
Nossa pele gruda uma na outra e isso é uma sensação
maravilhosa. Nosso beijo tem gosto de pecado e todas as coisas
ruins que o mundo abomina. Estamos errados pra caralho, mas eu
ignoro todos os protestos da minha cabeça. Nesse momento eu
quero me enterrar entre suas pernas e sussurrar promessas
eternas, declarar que de hoje em diante ela vai ter uma vida nova e
nunca mais vai se sentir aprisionada, mas ela me odeia e esse é
todo o motivo que me mantém calado. Arcane nunca vai me perdoar
e deixar de sentir ódio por mim, então eu aceito ser o objeto da sua
vingança dolorosa.
Seguro seu rosto, acariciando sua pele molhada e fazendo o
mesmo que ela. Minha boca se abre e minha língua devora seu
queixo, sua pele quente está pulsando quando eu encontro sua
boca. Absorvo o rosto de uma lágrima, deixando um selinho
estalado que faz ela suspirar pesadamente. Quando eu tento me
afastar, ela agarra meu ombro e puxa meu rosto de volta, indicando
que eu devo continuar.
— Amanhã, durante o dia, você pode andar pela propriedade.
— Sussurro contra sua boca, a ponta do meu nariz afunda contra
seu pescoço, sentindo seu cheiro gostoso.
— Mesmo? — Ela fala, sua voz carregada pelo choro.
— Mesmo. — Imito seu tom de voz tristonho. — Esse é um
lugar seguro, mas você não pode falar com os vizinhos.
Antes que ela levante uma série de questionamentos sobre o
motivo, eu agarro sua bunda, trazendo ela para esfregar seu corpo
contra meu pau. Arcane não diz nada, ela apenas se entrega às
sensações do nosso corpo em atrito.
— Tire sua roupa, eu quero sentar em você. — Simples
assim, com muita propriedade sobre os seus desejos. Porra, ela
está acabando comigo. Seus dedos esbarram no cós da minha
calça, puxando meu cinto com força e tomando espaço para apertar
meu pau. Seus dedos se movimentam ao redor dele, fazendo
movimentos que arrancam um silvo rouco da minha boca.
— O banho já acabou? — Ela sussurra, intensificando seus
movimentos.
— Ai, porra! Que banho? — Eu uno as sobrancelhas em uma
expressão engraçada. — Acabo de vender meu banho.
Não demora muito para eu ficar em pé, colocando imenso
interesse no rosto de Arcane quando caminho com seu corpo até o
nosso quarto. Ela geme, agarrando meus ombros para não sair do
meu colo quando eu a coloco deitada na cama.
Eu fico por cima, encarando seus olhos brilhantes e prestes a
reivindicar seus lábios em outro beijo necessitado, mas os latidos de
Páris lá fora colocam um pensamento irritante em minha cabeça. Eu
rosno, afastando meu rosto quando ela tenta me beijar.
Eu odeio o fato dela ter passado horas dançando com a porra
daquele homem, mesmo que Yuri tenha contratado seus serviços
para passar um bom tempo de olho nele, eu não gosto nem um
pouco do fato dele ter tocado na minha mulher e presenteado ela
com a porra de um cachorro. Não suporto reconhecer que existe um
tipo de sentimento entre os dois que vai ser impossível quebrar.

Ela ama Pavlos e me odeia.


Ele é seu melhor amigo e não eu.
Ele é a porra do seu amante enquanto eu sou seu marido
indesejado.

Todas as coisas parecem estar desmoronando ao meu redor.


Meu relacionamento com Rajá já era, terminamos tudo que
tínhamos quando ele resolveu matar Azra. Eu sequer tive a chance
de olhar em seus olhos e compreender o motivo, mas saber que foi
meu irmão quem a matou é a mesma coisa de ter sido eu quem fiz
em dobro.
— Arrghh! Porra! — Eu aperto meu rosto contra a testa de
Arcane, respirando fundo e agora gemendo de raiva.
Todos esses sentimentos são tão intensos que sinto vontade
de atirar na minha cabeça. Sinto como se algo estivesse abrindo
meu peito em carne viva, esse é o gosto amargo da mágoa e
desamparo.
— Você está bem? — Arcane sussurra, me fazendo abrir os
olhos ao me assustar. Eu estou em cima dela, meu corpo colado ao
seu e minhas mãos apertando seus punhos. — Você parece tão…
Zangado? Quebrado? — Ela está ofegante, seus seios balançando
contra minha pele a cada respiração profunda.
— Me perdoe. — Eu solto seu punho, acariciando sua pele
para apagar meu toque bruto. — Eu machuquei você? — Meu
coração bate descontrolado. Eu preciso rasgar alguma coisa,
preciso estraçalhar e dominar esse monstro em meu peito que tenta
me torturar toda vez que me esqueço dos problemas.
— Não. — Ela toma fôlego, balançando a cabeça em
negação. Bom, não machuquei de forma física. Essas palavras
brilham em seus olhos, loucas para saírem da sua boca, mas penso
que ela não diz porque tem medo de quebrar esse momento de
trégua.
— Você vai me beijar agora? — Ela sussurra mais ofegante
que antes, como se a necessidade disso estivesse impregnado em
sua pele.
— Você gosta quando eu te beijo? — Uno as sobrancelhas,
tentando decifrá-la, desejando absorver cada palavra que sai da sua
boca e guardar na minha alma. Mesmo que me machuque. Se
palavras são tudo que ela pode me dar, então eu desejo
desesperadamente cada sílaba que sai dos seus lábios.
— Gosto muito. — Porra, é o suficiente para me arrancar um
gemido sensível. Seus olhos analisam meus lábios de forma
fascinante. — Me deixa tão tonta e… — Ela respira fundo,
estremecendo quando eu movimento meu quadril entre suas coxas.
Sem nenhuma penetração, mas o suficiente para deixar meu corpo
tão febril que acho que vamos explodir.
— Diga. — Sibilo, encarando seus lábios entreabertos. —
Complete suas palavras, amor! — Respondo exigente.
— Excitada. — Ela joga as palavras contra meus lábios, eu a
devoro, sentindo seu gosto e amarrando minha alma na sua. É isso,
porra, daqui só saio morto. Totalmente morto.
— Você tem gosto de algodão doce. — Sussurro, arrancando
uma risada fofa dos seus lábios e como uma hipnose, eu também
estou rindo junto.
Seus dedos se erguem acariciando um traço carrancudo que
não sai do meu rosto. Eu respiro fundo, analisando seu toque gentil.
Seus olhos brilham de curiosidade e desejo. Um desejo
pecaminoso, do tipo que pode nos lançar no inferno caso seja
saciado.
— Por que você está com essa expressão raivosa? — Ela
questiona, deixando claro que consegue me ler facilmente.
Eu rosno, voltando ao assunto anterior onde meus
pensamentos estavam submersos. Encaro seus lábios, desejando
mordê-la sem delicadeza alguma. Quero deixar uma marca intensa,
ficar impregnado em seu corpo até conseguir arrancar algum
resquício de afeto dela.
Ouço os latidos do maldito cachorro, provavelmente se
divertindo na minha sala. Eu aperto os lábios mais firmes,
empurrando minha testa contra a sua e fechando os olhos. Ela
parecia tão feliz quando ganhou a porra desse animal, ela olhou
para aquele homem como se ele fosse o seu universo, sendo que
eu a tirei da prisão e queimei o maldito lugar por ela. Eu até mesmo
fiz um pacto com a Cúpula por sua liberdade, e mesmo que meus
interesses próprios estejam envolvidos nesse acordo, o principal
motivo foi ela. Sua liberdade. Sua felicidade. Apenas ela. Merda.
Fodidamente ela.
— Porque você não me enxerga. — Eu respondo a sua
pergunta, sentindo um beijo delicado em minha bochecha. Arcane
está respirando fundo enquanto me observa, nossos corpos
molhados e apertados um contra o outro. — Porque você trouxe ele
para a porra do nosso casamento. — Eu rosno contra seus lábios.
— Agora vai aguentar.
Arcane grita quando eu aperto sua bunda, sentindo sua carne
entre seus dedos. O som que saiu da sua boca foi tão consensual
quanto qualquer coisa obscena que já fizemos juntos. Suas
bochechas estão vermelhas de prazer quando meu corpo paira
acima do seu, mais alto, mais forte e sombrio. Eu quero ela por
inteiro, não me importa se estamos apenas em trégua, dessa vez
nem mesmo a morte pode nos separar. Nosso casamento é para a
porra da vida eterna.
— Você não vai ser delicado? — Ela questiona, mordendo o
canto dos lábios para aliviar a ansiedade quando eu me afasto para
ficar completamente nu.
— Você não acha que eu já fui delicado demais? — Repuxo
os lábios em um beicinho fingido. — Vamos nos divertir um
pouquinho mais, elevar isso para outro nível. — Eu lanço uma
piscadela e ela simplesmente ri.
Seus olhos não se desviam quando pego uma embalagem de
preservativo na gaveta e visto na sua frente, bem devagar,
assistindo sua expressão de satisfação enquanto essa porra cobre o
meu pau.
— Isso foi muito… — Eu não dou tempo que fale, apenas
puxo suas pernas para fora da cama. — Não acredito, você vai usar
isso mesmo?
— A não ser que você queira um Somáli Júnior. — Debocho,
ar escapa das suas narinas.
— Você é tão inconveniente, Kalon, que eu nunca vou ter um
filho seu. — Ela me desafia em bom tom. Certo, eu vou descontar
isso cobrindo sua bunda de tapas.
— Você não consegue me elogiar? — Finjo decepção. —
Acho que estou tendo algum déjà-vu, mas vou afirmar que ainda
será uma menininha gostosa igual ao papai. — Jogo um beijinho em
sua direção, Arcane geme de desgosto e atira uma almofada no
meu rosto.
— Eu adoro seu flerte passivo-agressivo. — Pego a almofada
para apoiar suas costas, mantendo-a em uma posição confortável.
Ansiedade sobe por minha coluna quando ela abre as pernas
devagar, e porra, essa visão leva tantos choques de prazer ao meu
pau que eu poderia gozar imediatamente.
— Porra, vida. — Sopro as palavras bem baixinho,
acariciando sua coxa e vendo-a balançar seu quadril em busca dos
meus dedos na sua boceta. Quando finalmente estão lá, a
expressão em seu rosto muda para uma satisfação que me causa
náuseas, eu consigo sentir a porra do alívio dela correndo por meu
sangue.
Um gemido sensível sai da sua boca quando faço
movimentos delicados, empurrando dois dedos para dentro,
deixando-a louca como eu sempre fico quando estamos juntos.
— Kalon… Eu quero você. — Ela tenta me tocar, um sorriso
dança em meus lábios ao reconhecer sua linguagem afetiva. Arcane
é faminta por toque físico, o que é maravilhoso, porque estamos
prestes a ter a melhor foda das nossas vidas, onde nenhum pedaço
da sua pele vai estar longe do meu.
— Eu também quero você. Muito. — Respondo, porque a
minha linguagem são palavras de afirmação e eu não consigo ficar
em silêncio quando a tenho por perto.
Ela puxa meu corpo contra o seu, acabando com toda a
posição que eu tinha planejado para começar com isso. Suas
pernas entrelaçam meu quadril e eu não demoro para entrar,
sentindo um alívio instantâneo quando ela geme perto do meu
ouvido. Seus dentes se fecham em meu pescoço quando eu
aumento as estocadas, causando um barulho delicioso e obsceno.
Suas mãos exploram minhas costas como se ela nunca tivesse
deixado marcas nas outras vezes.
Eu mordo seu queixo quando ela aperta meu traseiro, isso
rende uma risadinha ofegante de nós dois, então eu começo a me
movimentar mais rápido porque sei que é isso que ela quer.
— Você pode sair de dentro de mim? — Arcane geme, sua
boca diz uma coisa completamente diferente do seu toque. Eu
suspiro, afastando meus lábios dos seios seios para poder visualizar
seu rosto.
— Por que eu faria isso? Estamos tratando um assunto muito
importante, não acha? — Arqueio uma sobrancelha, indo mais fundo
e fazendo sua expressão mudar para um prazer incontrolável.
— Porque eu não consigo me concentrar com o preservativo.
— Seus dedos apertam meus ombros.
— De onde você saiu? — Uma risada incrédula sai da minha
boca. — O preservativo está atrapalhando sua concentração? — Eu
repito, não suportando o impacto das suas palavras exigentes.
— Eu também quero ficar por cima. — Ela fala cheia de
orgulho, afastando os lábios quando tento beijá-la. — Eu disse isso
no banheiro, então, por favor, guarde seu lado selvagem e
dominador e me deixe ter um momento agradável sentada em seu
pau.
Eu afundo o rosto na curva do seu pescoço, minha risada
saindo entre uma espécie de gemido e histeria. Eu paro minhas
estocadas e todo meu corpo protesta.
— Não, eu vou ficar por cima. – Sibilo, abaixando a cabeça
para devorar um dos seus seios. – Ninguém vai me tirar daqui.
— Kalon, eu quero ficar por cima. — Arcane geme, apertando
meus cabelos. — Agora mesmo.
Eu me afasto a contra gosto, retirando o maldito preservativo
e deitando no meio da cama. Ela se ergue, eu analiso seu corpo
perfeito que me enfraquece de imediato, e meu ventre treme de
necessidade em fode-la com força. Ela demora alguns segundos
analisando todo o meu corpo nu em cima da cama. Meus lábios se
repuxam em um sorriso safado, gostando do fogo em seus olhos.
— Você perdeu a coragem? — Eu me inclino de forma
preguiçosa, separando minhas pernas e apontando para o meu pau.
Ela engatinha na cama até se acomodar em meu colo,
nossas intimidades se tocando e arrancando um suspiro satisfeito
de nós dois. Seu corpo é um pouco pequeno em meus braços, mas
ela guia meu membro com a ponta dos dedos e começa a rebolar
devagar, me deixando obcecado com a visão dos seus seios
balançando a cada sentada.
— Porra. Cacete. Porra. — Praguejo, unindo minha testa na
sua e fechando minha mão em seus cabelos, segurando os fios
enquanto tenho algum fio de controle. — Porra, amor. Você é tão
boa. — Beijo seu queixo, me perdendo nos seus movimentos
rápidos.
Quando suas mãos buscam apoio em meus ombros, eu
estapeio sua bunda, arrancando um grito excitado dos seus lábios.
— Ai, cacete, que gostosa. — Eu aperto seu seio farto,
trazendo até minha boca e mordiscando. Arcane joga a cabeça para
trás, meus dedos apertam sua cintura, não permitindo que ela
interrompa a frequência deliciosa com que senta em mim. Eu juro
que nunca fiquei tão tonto durante o sexo.
O calor sobe por minha coluna e eu preciso segurar os dois
lados da sua cintura para me controlar, minha cabeça está perdida
em um prazer absoluto que nos envolve como uma corrente elétrica.
Seguro seu queixo, devorando seus lábios com tanta paixão que
perco o fôlego.
Arcane puxa meu ombro como se fosse uma tortura ter que
manter meu corpo tão separado do seu, eu dou risada disso, ela me
agarra como se estivéssemos a milhas de distância. Seus seios
fartos apertam meu abdômen de acordo com cada rebolada.
— Amor! — Chamo por ela, aproximando meu rosto do seu
pescoço. Estamos tremendo de satisfação, tão vulneráveis e
entregues. Seus olhos me observam cheios de atenção e palavras
não ditas. Nesse momento somos apenas eu e ela.
Seus lábios estão entreabertos e suas bochechas vermelhas.
Porra, quem diria que Arcane, uma assassina nata, está corada
porque acabou de gozar. Quando eu também gozo, meu pau desliza
para fora, fazendo uma bagunça deliciosa em sua pele. Eu encaro
as gotas do meu esperma com um olhar possessivo.
Arcane afunda na cama, puxando meu corpo para cair por
cima do seu, como se a distância fosse dolorosa. Eu gemo,
escondendo meu rosto na curva do seu pescoço. Ela tem o meu
cheiro. Eu gosto disso.
— É uma regra dizer o primeiro pensamento depois do sexo.
— Eu sussurro, abraçando sua cintura, sem permitir nenhum espaço
entre nós.
— Isso é sério? — Suas sobrancelhas se unem em
desconfiança. Mantenho a melhor expressão possível para não
entregar que não existe nada sobre essa regra.
— Não me olhe assim, amor. — Reclamo, descansando
minha mão bem em cima da sua bunda quando metade do seu
corpo fica por cima do meu. — Isso é verdade.
Ela grunhe, ainda sem acreditar, mas me observa como se
tudo isso que estamos fazendo fosse completamente novo para seu
mundo.
— Primeiro pensamento. — Insisto.
— Eu me sinto vazia agora que você não está dentro de mim.
— Ela fala. Meu coração estremece. Porra. Eu não devia ter
inventado essa regra. Tento segurar a minha vontade de recomeçar
nossa foda.
— Você é muito safada, Arcane. — Sibilo, deslizando o dedo
indicador por sua bunda grande, fazendo desenhos imaginários.
— Você não vai me dizer o que está pensando? — Ela
questiona, erguendo uma sobrancelha.
— Em você. — Respondo de imediato, encarando sua pele
avermelhada em alguns pontos.
— Você pode parar de flertar? — Ela reclama em um
grunhido irritado.
— Estou pensando em como gosto de deixar você suja com
meu pau. — Completo, afundando debaixo das cobertas e ela grita
quando meu rosto vai até entre suas pernas. Mordisco sua coxa e
deixo um beijo no exato lugar onde eu estava fodendo como se não
houvesse amanhã.
— Muito gostosa. — Sussurro, Arcane estremece quando
meus dedos acariciam sua boceta marcada por meu pau. — Seu
cheiro me deixa louco.
Eu gemo, mordendo sua barriga. Seu corpo balança em uma
risada tranquila. Merda. Isso me deixa duro. Muito duro. Ela sente
isso quando eu me inclino em sua direção, procurando como um
louco por sua boca. Minha ereção pulsa mais forte em sua barriga
quando ela solta uma risada sufocada.
— Kalon! Você sente tesão por risadas? — Ela engasga,
prestando atenção na ereção. — Não acredito! Você é um psicopata
mesmo! Bem que avisaram!
— Apenas pela sua. — Sussurro, abraçando seu corpo com
força, como se ela fosse a coisa mais preciosa que eu vou ter no
mundo inteirinho.
Deixo beijos estalados em seu rosto, esfregando meu queixo
no seu e respirando aliviado por estarmos em trégua.
— Esse foi o pior casamento de toda a minha vida. — Ela
geme, empurrando meu corpo para longe. Meu coração fraqueja
como se eu tivesse sido atingido por uma lança.
— Eu sinto muito. — Limpo a garganta, dando espaço para
ela se organizar na cama. Eu arrumo meus cabelos para trás e fico
em pé, caminhando pelo quarto e encontrando uma caneta. —
Venha aqui. — Aceno, sentando em uma poltrona confortável.
Arcane me olha com uma expressão preguiçosa, eu dou
risada do seu resmungo.
— Venha, minha alma. — Bato a mão em minha perna. —
Sente na porra do meu colo.
— Apenas porque você é muito gentil. — Ela pula da cama e
caminha em minha direção, se acomodando em meu colo e
apoiando suas costas em meu abdômen. — O que você quer? —
Beijo a lateral do seu rosto e respiro seu cheiro.
— Vou fazer um desenho do nosso casamento. — Explico,
pegando o seu braço que tem menos tatuagens e começando a
deslizar a caneta suavemente.
Arcane dá risada e observa com atenção, sentindo cócegas
quando desenho em lugares sensíveis do seu braço. Ela respira
fundo, apoiando a cabeça contra meu ombro e permitindo que eu
leve o tempo que quiser, já que seus olhos estão fechados.
— Qual sua cantora favorita de todos os tempos, jovem
Arcane? — Chamo sua atenção, mantendo meus olhos nos
desenhos que estou fazendo.
— Não sei… — Ela faz uma expressão pensativa, inclinando
seu rosto para mais perto do meu e esfregando a ponta do seu nariz
em minha barba por fazer. — Cheiroso. — Ela sussurra.
— Então é assim que você vai me chamar? — Dou risada. —
Chei-ro-so. — Soletro, fingindo morder a ponta do seu nariz.
— Você disse que tem uma cobra de estimação? —
Pergunta.
— Eu disse. — Balanço a cabeça em concordância. — Ele se
chama Scar.
— Certo, então talvez eu comece a chamar você de víbora.
— Ela me olha feio. – Combina com tudo que você representa. —
Fico quieto, mantendo a cabeça abaixada enquanto presto atenção
no desenho.
— O que eu represento? — Arrisco perguntar.
— Veneno, morte, traição. — Ela sussurra. — Instabilidade e
pavor.
Eu aperto os lábios, balançando a cabeça profundamente em
concordância enquanto ignoro o tom de mágoa que sua voz tem.
Acho que ela nunca vai deixar de sentir isso por mim.
— Está certo. — Falo mais baixo, deslizando o polegar para
apagar um traço que faço errado quando minha mão treme. — Você
já pensou em uma cantora favorita?
— Lana Del Rey. — Ela responde, me olhando. Eu acho
engraçado a forma como ela diz “Del Rey”. Firme e um pouco grego.
— Está pronto. — Aponto para seu braço, permitindo que ela
veja o desenho. — Nosso casamento. — Eu me concentro na sua
expressão maravilhada. Seu braço está marcado com vários
passarinhos tentando voar, algumas flores e correntes nas
extremidades, cobrindo os passarinhos pequenos.
— É lindo. — Seus olhos se encontraram com os meus. — O
que significa? — Meu coração bate de forma tímida e louca.
— Por que você permanece na prisão quando a porta está
aberta? — Eu respondo, descobrindo um brilho novo e mais vivo em
seu rosto no momento em que ela compreende minhas palavras.
Arcane passa os próximos segundos analisando cada
pequeno traço em seu braço, ela ri maravilhada e toca com a ponta
dos dedos, como se fosse uma obra feita por grandes nomes que
ficaram marcados na história, sendo que foi apenas o seu marido
quem fez. Ela me olha mais um tempo, mas não diz absolutamente
nada.
— Dear Lord, when I get to heaven. — Começo a cantar
baixinho, retocando os traços do desenho para ficar mais visível.
— Young and Beautiful? — Acho que ela está prestes a dar
um grito quando ergue o rosto para me encarar.
— Please let me bring my... — Faço uma pausa pensando
em uma palavra para defini-la. — naughty goddess.
Ela dá uma risada divertida e nem parece que estamos em
guerra até que a morte nos separe. Seus olhos brilham, esperando
que eu continue a cantar. Puxo seu rosto para deitar em meu ombro
e começo a andar até a cama.
— When she comes, tell me you'll let her in. — Ergo uma
sobrancelha me perguntando se ela está satisfeita com isso. —
Father, tell me if you can.
— Você canta tão bem. — Ela fecha os olhos, confirmando
meus pensamentos. Suas mãos me abraçam como se eu fosse o
seu mundo, ou como se eu pudesse fugir durante o sono. Estamos
em um conflito tão assustador que chega ser doloroso tentar
compreender o que somos afinal.
— All that grace, all that body. — Aperto sua bunda, puxando
o edredom para nos cobrir. — All that face… — Acaricio sua
bochecha. — Makes me wanna party. She 's my Sun, she makes me
shine like diamonds.
Eu deixo um beijo molhado em seus lábios, ela abre os olhos
para me encarar. Nesse momento o mundo inteiro para. Meu
coração bate desenfreado, ansioso pelas palavras que ameaçam
sair da sua boca.
— A sua voz é tão linda. — Ela segura meu queixo, deixando
um beijo estalado.
— Obrigado, meu amor. — Beijo a ponta do seu nariz.
— Mas eu continuo odiando você, Kalon. — Ela sussurra, sua
boca cheia de veracidade. — Eu te odeio tanto que meu peito dói,
víbora.
Víbora. Ódio. Tudo isso definindo o quanto somos um caso
perdido. Eu limpo a garganta, imediatamente odiando continuar
cantando. De hoje em diante, toda vez que eu encarar seus olhos
vou entender que não sou um santo, que sou o culpado pela sua
infelicidade e não importa o quanto eu implore a Deus para que isso
mude, ela sempre vai me odiar. Fecho meus olhos, deitando meu
rosto perto do seu.
Maldita seja Lana Del Rey por fazer uma música que vai me
atormentar para sempre, porque eu sempre vou lembrar desse
momento e dessas palavras.
Eu aperto seu corpo com força como se pudesse evitar que
no meio da noite ela vire para o lado e toda a nossa trégua acabe.
— Eu também me odeio tanto, minha alma. — Tenho a
coragem de sussurrar quando ela pega no sono.
30. QUEM PODERIA ME
DEIXAR, AMOR?
“Não se pode pensar bem, amar bem,
dormir bem, quando não se jantou bem.”
— VIRGINIA WOOLF.

Eu acordo em um sobressalto, sentindo uma coisa gelada


deslizando pela minha barriga. Primeiro, o fôlego some da minha
garganta, depois eu tenho coragem de abrir os olhos. Porra, é a
cobra. Todo meu corpo pulsa de dor ao lembrar da noite passada,
foi tão estressante e intenso que me sinto acabada.
— O que você quer, filho? — Eu questiono, sentindo a víbora
ficar cada vez mais enroscada. Pela sua cor, eu acredito que seja
uma píton.
Eu viro a cabeça para o meu lado da cama, o único sinal de
Kalon é a bagunça, mas ele não está mais aqui. Ele deixou as
cortinas abertas e um pouco de comida na cabeceira.
Eu aperto os lábios quando a serpente sibila, agora
procurando se enroscar no meu braço. Ele é grande e pesado. Eu
tomo fôlego, não me assustando muito. Ele não pode fazer nada
comigo. Eu me sento, deixando que ele fique em meu corpo o
quanto quiser, então tomo cuidado para entrelaçar o restante do seu
corpo por meu pescoço.
— Bom, pelo menos agora eu tenho um amigo. — Pisco,
jogando um beijinho em sua direção. Sua frieza é um alívio delicioso
para o meu corpo dolorido.
Kalon disse que eu posso caminhar pela propriedade, e de
qualquer forma eu faria isso mesmo sem sua permissão, mas uma
animação eletrizante sobe por minha barriga para conseguir
explorar toda a mansão e os arredores. Principalmente porque ele
mora perto da praia e eu consigo ouvir o marulho daqui. Nosso
bairro é o último antes de chegar na costa.
As cores do quarto são claras, e até que é agradável. Eu
tento vestir uma camisa sem atrapalhar o meu novo amigo ao redor
do pescoço. Minhas pernas estão parcialmente cobertas pela
camisa preta de botões. Scar desliza por minha bochecha, eu dou
uma risada trêmula, sentindo meu cabelo cair quando ele escala
minha cabeça.
Agora que eu estou casada com ele, preciso encontrar uma
nova forma de sobreviver. Não consigo aceitar que toda a minha
vida vai acontecer dentro das paredes dessa mansão, esse
pensamento me sufoca, e eu rapidamente saio correndo para fora
do quarto. Quero apenas sentir o ar puro nos meus pulmões e a
grama em meus pés. Não consigo aceitar a ideia de viver a vida
dentro dessas paredes depois de anos naquela prisão. Não consigo
aceitar que estou casada com um homem que matou sua ex-
namorada, e que eu não consigo esconder minha atração por ele.
O cheiro do ambiente é agradável, parece muito com um lar.
Todas as decorações são perfeitas e tem traços da personalidade
de Kalon em tudo, na vitrola que tem na sala com uma prateleira
cheia de discos, o projetor com filmes antigos e românticos. Tudo
me lembra ele. Eu me aproximo, fazendo uma análise nos clássicos
de Hollywood. Ele tem Casablanca, Scarface e Ben-Hur. Eu solto
uma gargalhada surpresa ao ver Homem de Ferro. Percebo que tem
um filme em exibição na parede branca onde o projetor está virado,
mas o que me assusta mesmo é ver Kalon parado do outro lado da
sala, ele está com um guardanapo em mãos enquanto me assiste.
— Você. — Eu suspiro pesadamente, analisando suas roupas
brancas e folgadas que caem tão bem em seu corpo bronzeado.
— Sim, eu. — Ele aperta os lábios, me analisando da mesma
forma fumegante e necessitada de sempre, fazendo meu corpo
enfraquecer. — Quando Voam As Cegonhas, é um drama soviético
de Mikhail Kalatozov, de 1957. A história se passa durante a
Segunda Guerra Mundial, e conta a história de um menino e suas
experiências durante o conflito. É um filme bonito, com uma
narrativa poética e impactante, e também é uma ótima
representação da guerra em um nível mais pessoal.
Eu pisco algumas vezes, me perguntando que tipo de
máquina inteligente é esse homem para conseguir armazenar tanta
informação. Eu viro meu rosto para o projetor refletindo as imagens
na parede, tem um casal muito bonito.
— Quem são eles? — Aponto.
— Boris e Veronika. — Ele responde depois de suspirar. —
Eles são um casal que vivem em um vilarejo durante esse período.
— Fascinante. — Eu respondo quando Kalon coloca o
guardanapo no ombro e caminha em minha direção. Seus olhos
inspecionando cada traço do meu rosto.
Eu não consigo superar a forma como ele sempre se
aproxima como se sua única função fosse me devorar com beijos,
tocar a minha alma e não sair de forma alguma.
— Scar… — Ele sorri, acariciando meu cabelo enquanto
tenta segurar sua cobra nos braços. — Ah, meu Deus. Que
saudades do meu garotinho frio. — Suas pálpebras tremem quando
ele encosta o rosto no réptil que é grande ao ponto de assustar
pessoas despreparadas. — Como você achou ele? — Kalon respira
fundo, como se ele fosse a razão da sua felicidade, então esfrega
seu rosto, sentindo cada parte de Scar se enrolar no seu pescoço
bem devagar.
— Na verdade, eu acordei com ele rastejando em minha
barriga. — Respondo, ainda maravilhada com todos os beijos que
Kalon dá nele.
— Ele deve ter escapado ontem a noite. Ah, minha alma!
Minha vida! — Kalon balança Scar como se fosse um bebê, meus
lábios se repuxam em um sorriso bobo, seu rosto vira em minha
direção. — O que? — Ele sorri.
— Nada, é só que você trata ele como se estivesse falando
comigo. — Eu balanço a cabeça.
— Essa é a minha camisa? — Ele ergue uma sobrancelha,
encarando minhas pernas com tanta intensidade que eu enfraqueço.
— Agora é minha. — Meus dedos tocam o tecido,
acariciando-o em meu corpo. — O que você está fazendo?
— Nossa comida. — Ele aponta por cima do ombro enquanto
segura Scar com a outra mão. — Vamos?
— Eu vou procurar o Páris primeiro. — Falo, começando a
andar. Primeiro porque quero ficar longe de Kalon e desse
sentimento que enfraquece meu corpo toda vez que estamos juntos,
mas também porque eu estou ansiosa para conhecer cada lugar
desse bairro e ver como é a vista do mar daqui.
A expressão de Kalon cai para uma decepção que me faz
querer voltar atrás e ficar aqui, mas eu apenas dou as costas.
— Não vá muito longe. — Ele grita quando eu desapareço
pela porta. Tem vários seguranças no jardim, eles estão armados e
sequer viram o rosto para me ver, mas sei que sabem que eu estou
aqui.
Ninguém diz nada ao ver uma mulher seminua e descalça
andando entre as árvores. Essa mansão tem várias janelas. Tudo é
tão moderno, mas ainda assim com seus detalhes tradicionais da
Grécia.
— Páris. — Me abaixo quando vejo ele brincando na grama
com uma bola e uma colher de madeira. Eu dou risada, Kalon
provavelmente usou essa colher para afastar ele da cozinha. — Oh,
meu amor. Ele não gosta de você? — Sussurro, esfregando seu
focinho e recebendo suas lambidas. — Dê mais algum tempo, eu
prometo que ele vai estar caidinho por seu charme, bebê.
Eu quase deito no chão para enchê-lo de beijos, mas me
assusto com um movimento atrás de nós. Primeiro, eu penso que é
Kalon, até que alguém fala.
— Veja só, você deve ser a nova mulher. — Eu levo a mão ao
peito pelo susto e giro, dando de cara com Evren. Ele é tão alto que
chega a ser intimidante. Cruzo os braços, me sentindo
desconfortável com sua atenção demorada em meus seios
marcados na camisa.
— Você é vizinho do Kalon? — Eu pergunto, visivelmente
chocada.
— E você casou com ele depois daquela confusão. — Ele
estala a língua. Ele abre a lata de lixo perto de uma árvore e joga
um pacote preto. — Coitadinha, eu no seu lugar teria saído
correndo.
— Eles não me deram muita escolha. — Eu falo.
— É isso que dá vender a alma ao diabo. — Ele pisca.
O homem respira profundamente, olhando para a mansão do
outro lado, o jardim muito bem cuidado e os seguranças espalhados
em lugares estratégicos.
— Essa é a primeira vez que vejo as portas dos fundos
abertas como algum tipo de lugar feliz. — Ele dá risada. — Que
clichê dos infernos.
Eu viro meu rosto ao perceber que a sacola está se
mexendo, volto minha atenção para Evren, imediatamente
desconfiando da sua falsa modéstia.
— O que tem aí? — Aponto.
— Porcaria. — Ele responde, lançando um último olhar para
minhas pernas. — Venha qualquer dia beber um chá comigo.
Ele some pelo caminho que veio, entrando na sua casa que
fica ao lado, entre várias árvores e um jardim mais apertado. Sua
casa é mais pequena, mas não deixa de ser luxuosa.
— Vai sonhando, seu troglodita. — Sibilo, caminhando até o
balde de lixo para ver com meus próprios olhos o que tem dentro.
Balanço apenas a pontinha do saco e me assusto ao ouvir
um miado sufocado, isso me dá a coragem necessária para abrir e
puta merda, são gatinhos. Eu deito o saco na grama e ajudo cada
um deles a sair. Meu coração acelera em tristeza quando os vejo
assustados.
— Não há nada de errado com vocês, por que foram
abandonados? — Eu lamento, pegando um deles em meus braços.
São cinco filhotes da mesma cor. Branco com pequenas listras
pretas.
— Vocês são tão gordinhos. — Eu aproximo meu rosto para
deixar beijos estalados.
Infelizmente, algumas pessoas não gostam de gatos dentro
de casa, é mais comum gostar ver eles na rua do que em um lar.
Eles acreditam que o lugar dos gatinhos é na natureza, eles não tem
paixão em dar um lar para bichinhos tão fofinhos.
— Céus, o que você está aprontando? — Me assusto quando
uma voz grave fala bem atrás de mim. — Por que está demorando
tanto?
Eu pego todos os gatinhos em meus braços, me
atrapalhando um pouco para conseguir juntar todos, mas como são
pequenos, eles se encaixam bem contra meu seio. Olho por cima do
ombro, vendo a sombra de Kalon me analisando cheio de
incredulidade.
— Você me assustou, sabia? — Ele cruza os braços diante
do peito, segurando a colher de madeira que Páris estava brincando
agora a pouco.
— Onde você conseguiu gatos? — Ele pergunta, agora
colocando as duas mãos na cintura. Sua testa enruga e eu sorrio de
lado, percebendo que isso é muito atraente.
— No lixo. — Afasto meus pés, dando espaço para que ele
veja a lata atrás de mim. Kalon suspira como se eu fosse
inacreditável.
— Meu Deus, Arcane. — Ele fala meu nome como se eu
tivesse acabado de lhe dar um chute. — Você está semi nua e
descalça no meio da rua.
— Eu sei. — Respondo com calma, seus olhos se apertam
minimamente em minha direção, deixando claro que minhas poucas
palavras tem o poder de lhe dar nos nervos. — Você está bravo?
— Não, estou curioso. — Ele fica mais perto. — O que você
vai fazer com esses filhotes, vai virar a gatinha deles? — Sua piada
ridícula me deixa raivosa. — Você sabe que é a gatinha apenas do
Kalon, não é? Não de filhotes!
Eu balanço os animais, formando uma distância segura entre
nós, antes que ele tente me tocar e me deixar daquele jeito delicioso
novamente. Estou decidida que ontem a noite foi nossa última vez
fazendo sexo louco e nos beijando como amantes. Nossa trégua
acabou, não haverá uma segunda vez.
Kalon encara os gatos e recua como se fosse alérgico, isso
me diverte, ele está com medo.
— Você tem medo de gatinhos, meu amor? — Provoco,
imitando sua voz cheia de charme e carinho. Então eu me sinto
tentada a caminhar em sua direção apenas para provocar.
— Vida, pare com isso. — Kalon ergue as mãos, encarando
os animais como se fossem monstros.
— Qual o sentido de ter uma píton de estimação mas ter
medo de gatinhos? — Eu não consigo acreditar no que estou vendo,
Kalon realmente tem medo de gatos.
— Você não tem ideia do tamanho que essa coisa pode ficar
e ameaçar devorar você depois. — Ele declara, encarando o animal
como se fosse um bicho feroz. — Ou como a garra deles podem
deixar cicatrizes aterrorizantes.
Eu solto uma gargalhada sincera. Ele tem medo de gatos e
acha que eles podem ficar enormes? Puta merda. Eu quero tornar
isso o seu pesadelo pelo resto de sua vida.
— Vamos entrar, Arcane. — Ele implora, ignorando o quanto
eu estou me divertindo com seu medo por gatos.
— Vamos, mas eu vou levar eles comigo. — Decido. — Não
vou devolver os bebês ao lixo.
— Não temos espaço, já tem o Páris, o Scar e a Pinar. — Ele
aponta para os gatos. — Mais cinco e nós vamos estar dormindo no
chão.
— Podemos dormir em uma rede também. — Sugiro,
balançando os gatinhos na intenção de convencê-lo com a fofura
deles.
— Podemos decidir isso lá dentro? — Ele implora, encarando
minhas pernas até que seu olhar vai até minha bunda. Suas
sobrancelhas se unem. — Você está sem calcinha? — Meu rosto
fica vermelho imediatamente.
— Bom, eu não sei onde minha calcinha ficou e minhas
outras roupas. — Explico. Kalon ri e meus ossos vibram em
resposta a esse som. Há um brilho malicioso em seus olhos.
— Eu coloquei suas roupas para lavar. Mas agora nós
definitivamente vamos entrar. — Ele responde firme, olhando ao
redor para ter certeza de que estamos sozinhos na rua.
— Você é tipo uma gata borralheira. — Provoco, me
aproximando do seu corpo e colocando os gatinhos em seus braços,
já que eles são maiores que os meus.
Kalon treme, apertando os olhos quando sente as patas dele,
mas ele fica mais aliviado quando eu levanto a barra da sua camisa
para ele segurar os bichinhos dentro.
— Espere um momento, está bem? — Peço baixinho, então
me abaixo na grama, tentando arrancar algumas pedras do chão.
— Arcane do céu! — Kalon ronrona atrás de mim. — Que
visão perfeita, hein?
Eu olho feio para ele, sua expressão sequer muda quando
lhe flagro encarando minha bunda como se fosse um tesouro.
— Vire as costas! — Sibilo, irritada. Kalon ri rouco e me lança
uma piscadela.
— Não mesmo. — Ele balança a cabeça. — Continue o que
está fazendo, você está indo muito bem, gatinha.
— Cretino. — Eu fico em pé quando tenho todas as pedras
que preciso, então sigo em direção a casa de Evren.
— Arcane! — Kalon grita atrás de mim, deixando os gatinhos
na grama e tentando me acompanhar. — Venha já aqui! — Ele fala
raivoso.
Ignoro seu chamado e respiro fundo, brincando com a pedra
em mãos, eu tenho uma boa mira e estou disposta a acabar com
esse filho da puta. Foda-se as consequências. Lanço a pedra com
força, suspirando quando a vidraça principal cai aos pedaços. O
som demora a cessar, o que me leva a acreditar que algumas coisas
quebraram dentro da casa.
— Arcane! — Kalon agarra minha cintura, ele está ofegante e
tão protetor que quase caio no chão com sua força. — Puta merda,
o que você fez?
Eu tento me afastar, mas ele me puxa contra seu corpo e eu
me assusto com sua dureza, ele me segura como se pudesse fazer
qualquer coisa pra me proteger da situação que eu acabei de criar.
Olho por cima do ombro, seu rosto está em choque, suas duas
mãos não deixam de abraçar minha barriga no momento em que o
homem aparece pisando firme.
— Você está louca, garota? — Ele grita firme. — Que porra
você pensa que está fazendo? — Ele ergue as mãos, gesticulando
como se fosse louco.
Tento avançar em sua direção para baixar sua bola na base
de murros, mas Kalon me segura com força e eu quase grito em
frustração
— Ela não quis fazer isso, Evren. Estávamos apenas
brincando com nosso cachorro. — Kalon me defende, seu olhar
tenso na direção do homem furioso. Eu não consigo compreender
como essa criatura horrenda conseguiu virar amigo da família
Somáli, ele deve ser muito importante para ser tolerado.
— Eu quis fazer isso sim. — Interrompo as palavras de
Kalon, não preciso que ele me defenda.
— Segure a sua garota, Kalon! — Ele aponta em minha
direção em um gesto brusco, eu estremeço, odiando a forma como
estou sendo tratada.
— Eu não sou louca para você pedir para ele me segurar. —
Sibilo. — Mas você quem devia dar uma segurada, Evren. —
Aponto o dedo em sua direção.
— Ah, é mesmo? — Ele ergue uma sobrancelha. — Eu sou a
última pessoa a ter medo de um Somáli, não pude me ameaçar,
senhora. — Ele late, se forçando a parecer cordial. — Explique para
ela os limites dos nossos negócios, Kalon. — Ele aponta o dedo
para o meu marido. — Para que não vire um problema maior.
— Escute aqui seu filho da puta! — Eu rosno, afastando sua
mão usando meu punho. Kalon tenta me segurar com mais força,
sussurrando meu nome de forma calma, como se isso fosse me
fazer parar. — Eu vou colocar as mãos em você e mostrar como
deve tratar os outros. Seja da sua espécie ou não. — Eu visualizo
seu rosto, traçando cenários de como destruir sua vida bem aqui.
— Meu amor. — Kalon me chama. — Eu cuido disso, está
bem? Eu sei que você quer fazer alguma coisa, mas não faça, por
favor. — Seu olhar é cheio de aflição, como se o confronto pudesse
ser letal e decisivo.
— Esse homem jogou filhotes indefesos em um saco de lixo,
Kalon. — Eu explico a situação, agora vendo um brilho raivoso em
seus olhos. — Por isso estou atirando pedras na janela dele, mas
gostaria que fosse em seu rosto. — Cuspo as palavras. — Evren
não merece o meu respeito ou qualquer outra coisa
— Ah, porra. — O homem acaricia o queixo. — Eu tentei ser
legal. — Ele suspira, então aponta o dedo para o rosto de Kalon. —
Diga para a vadia da sua... — Eu cambaleio para trás quando meu
corpo é liberado, quase caio de bunda no chão pela ausência do
corpo de Kalon.
Em um piscar de olhos ele está em cima do homem
desferindo golpes em seu rosto. Dessa vez eu não me assusto com
sua agressividade, pelo contrário, eu dou uma risadinha divertida
enquanto me afasto para não atrapalhar. Porra, eu gostaria que
todas as pessoas que maltratam animais fossem tratadas dessa
forma. Kalon se ergue em um grunhido raivoso quando o corpo do
homem fica mole, Evren está quase desfalecido no chão.
— Porra, cachorro que late não morde, pelo visto. — Kalon
massageia seu queixo e então olha para os hematomas em seus
dedos. — Eu juro que tentei manter a calma, Evren. — Ele está tão
ofegante que eu me aproximo, tocando seu peito para ajudar na sua
respiração. — Você tem duas horas para encontrar um novo lugar
para viver antes que eu mande meus irmãos caçar você e jogar
seus pedaços no Mar Egeu.
Kalon dá as costas para ele, envolvendo meu braço e me
incentivando a caminhar depressa, sequer dando tempo do homem
falar alguma coisa.
— Eu poderia ter acabado com ele sozinha. — Falo, ainda
preocupada com o estado em que ele respira fundo, quase tendo
um infarto.
— Eu sei. — Ele resmunga, apontando com o queixo para os
gatinhos. — Pegue os filhotes e vamos. — Ele lança um último olhar
para o homem jogado no chão. — Rápido. — Acrescenta, me
olhando feio.
Seguro os filhotes, abraçando eles contra meu corpo e
deixando beijinhos em suas barriguinhas, enquanto eles miam.
Kalon me puxa contra seu corpo e descansa sua mão na lateral da
minha bunda.
— Você não pode andar por aí e tentar matar qualquer um. —
Ele declara, fechando a porta.
— Mas eu não ando por aí fazendo isso. — Eu encaro seu
rosto.
— Com a bunda de fora ainda por cima. — Ele aponta para
minhas pernas. Eu arrisco olhar por cima do ombro, vendo meu
traseiro muito bem coberto por sua camisa.
— Você está sendo dramático. — Eu dou risada.
— Dramático. — Ele repete a palavra como se fosse a
primeira vez que está ouvindo. — Fala sério, você é tão louca que
eu fico nervoso.
Eu caminho em sua direção, aproximando meu rosto até que
meus lábios estão contra os seus. Eu deixo um beijo demorado e
calmo, Kalon respira fundo, acariciando minhas costas. Eu me
afasto quando um dos gatinhos reclama.
— Obrigada por defender a gente. — Sussurro. — Você foi
muito gentil, Sr. Somáli. — Pisco e sua expressão se derrete.
— Ah, não foi nada, moça bonita. — Ele bate os cílios
tentando forçar humildade. Eu dou risada, balançando a cabeça em
negação.
— Aquele homem pertence a família Montalbano. — Ele
muda sua expressão, agora segurando meu queixo e fazendo com
que eu mantenha meus olhos nos seus. — Isso significa que ele é
como o filho caçula da Cúpula Demoníaca.
Eu junto as sobrancelhas, não compreendo a maneira como
ele abraça minha cintura como se pudesse me proteger de tudo
quando estamos só nós dentro de casa.
— O que é a Cúpula? — Questiono.
— A Cúpula é o que dá ordem para cada organização do
nosso meio. Eles são a justiça dos deuses. — Ele responde. — E
nós estamos cheios de pecados que devem ser punidos, Arcane
mou, nem mesmo o diabo escapa do poder daqueles homens de
terno e gravata.
Ele me abraça com força e pressiona o queixo contra meu
ombro, fico tensa contra o seu toque, meu coração bate forte
ouvindo suas palavras.
— Se eles disserem que eu devo cavar um buraco e ir para o
inferno, assim eu tenho que fazer ou o mundo inteiro pode sofrer por
minha desobediência. — Kalon faz uma pausa ofegante. — Eles são
os juízes absolutos dos deuses da máfia. — Sua voz estremece. —
Por favor, não fale com vizinhos, minha vida. Por favor, eu pedi a
você. — Ele balança a cabeça em negação, acariciando minhas
bochechas para aliviar a tensão em seus ombros. — Agora que
estamos casados, eles podem fazer qualquer coisa com você para
tentar me atingir, apenas porque não gostam de mim.
Eu suspiro pesadamente, agora entendendo o que ele quis
dizer sobre não falar com vizinhos. Pisco algumas vezes, agora
tenho medo deles porque se souberem que queimei a uma mulher
sem querer, eles podem me dar um fim muito pior do que Yuri ao me
lançar na prisão.
— Então por que Evren estava na casa dos seus pais? —
Falo baixo. — Vocês não são amigos?
— É apenas uma amizade por conveniência. — Kalon pisca.
— Ele estava lá porque eu destruí a prisão de onde você veio.
Esse é um assunto que eu não quero entrar. As palavras de
Minerva invadem minha cabeça, sua explicação sobre Kalon ter feito
isso porque é descontrolado, porque precisa realizar essas
atrocidades de tempos em tempos por ser um maníaco. Eu me
pergunto o quanto ele é afetado por esse descontrole. Essa é uma
coisa que eu passei a minha vida inteira tentando evitar, e eu me
orgulho muito por conseguir manter minha humanidade
parcialmente intacta.
Eu olho para seus olhos verdes profundos, eu me pergunto
se ele já está consumido, se é um caminho sem volta. Parte minha,
a parte que sente atração por cada pedaço desse homem, quer
acreditar que nada do que Minerva me disse é verdade, mas é difícil
ir contra um fato que eu vi com meus próprios olhos.
Não há justificativa para o que ele fez naquela prisão, mesmo
que aqueles monstros tenham merecido, mas isso não explica seus
motivos para dirigir até lá com tanta determinação. Assim como não
existe nenhuma palavra que possa absorver a sua culpa por ter
matado sua ex-namorada. Eu abaixo a cabeça, essa é outra coisa
que não encaixa na minha mente. Eu vi com meus próprios olhos
ele brigando com Rajá e colocando a culpa nele, mas Ivan o tratou
como louco, assim como todos ao seu redor, o que não tenho como
ir contra porque vi seu comportamento enquanto mata pessoas.Ele
dá risadas e parece perdido em uma névoa assustadora, mas o
ponto é que, ninguém parece levar Kalon a sério, isso é o que faz
ele ser mais explosivo e monstruoso.
— Arcane? — Eu pisco, saindo dos meus pensamentos
desenfreados. — No que você está pensando?
— Existe alguma punição para quem joga gatinhos no lixo?
— Eu pergunto, erguendo uma sobrancelha.
Kalon resmunga, tentando segurar uma risada grave e
pesada.
— Talvez uma gatinha furiosa com a bunda de fora. — Ele
debocha, me empurrando cuidadosamente até que estamos
deitados no sofá da sala.
— O que você está fazendo? — Respiro fundo, ele me puxa
para ficar por cima do seu corpo, com minhas pernas ao redor da
sua cintura.
— Eu estou tenso, fique em cima de mim até passar. — Ele
pede com carinho.
— Tudo bem, eu também estou. — Me remexo, observando
os gatinhos que agora estão espalhados pela casa. Páris está
fazendo um ótimo trabalho enquanto brinca com eles.
— Aquele homem vai começar uma guerra? — Eu pergunto,
temendo essa possibilidade.
— Acho que ele não tem como explicar para os superiores
que quer destruir minha família por causa de gatinhos. — Kalon dá
uma risadinha. — Mas acho que a partir de agora eles vão ficar de
olho em meus irmãos, procurando algum um lugar para entrar e
causar algum conflito. — Ele acaricia sua testa, como se isso o
deixasse doente. — Só espero que não resolvam revirar o passado
novamente.
Fico em silêncio por um tempo, analisando seu rosto e
tentando compreender se ele vai falar mais que isso, se vai me
explicar sobre tudo que significa o passado. Eu me aproximo,
deixando um beijo estalado em seu nariz. Merda, eu estava decidida
a não voltar a fazer isso, mas algo sempre me puxa para ele sem eu
sequer perceber.
— Podemos ficar com os gatos? — Eu pergunto, gostando do
seu carinho em minha cabeça. Eu esfrego minha bochecha contra
sua barba. — Por favor, eu prometo que não vamos precisar dormir
no chão ou em uma rede.
Seus olhos verdes estão dilatados. Ele sorri discretamente
enquanto encara os filhotes no chão.
— Não sei. — Ele respira pesadamente e descansa sua mão
na minha perna desnuda. — Podemos negociar. — Seus dedos
deslizam em uma carícia que me faz estremecer.
— Não ouse fazer isso. — Sussurro quando ele fica sentado,
mantendo minhas costas contra seu abdômen.
Seus dedos brincam no meu umbigo e eu fecho os olhos,
tentando ignorar os arrepios que são mais evidentes do que
qualquer coisa acontecendo comigo. Um suspiro involuntário escapa
da minha boca, então percebo que vou acabar enlouquecendo e
tomo impulso para me erguer, mas ele puxa meu quadril com força.
— Estou me perguntando se devo matar o homem que fez
essa tatuagem em você. — Ele fala, deslizando o polegar pelo
desenho em meu quadril, um pouco perto da bunda. — Um lugar
perigoso para tatuar uma mulher casada, não acha?
— Não éramos casados nessa época e você também não
pode sair matando qualquer pessoa por aí. — Inclino meu rosto para
ver seus olhos verdes.
— Entenda uma coisa. — Ele respira fundo, apontando o
dedo em minha direção. — Nosso casamento ontem é uma prova
que nascemos para isso. — Ele pontua cheio de convicção.
— Você está falando em destino? — Eu solto uma
gargalhada.
— Destino, Deus, Universo, almas gêmeas. — Ele balança os
ombros. — Chame como quiser.
— Você sabe que metade das coisas que você falou é
apenas uma invenção romântica, não é? — Eu dou risada.
— Você já ouviu falar na teoria da relatividade de Einstein?
Para mim é uma prova de que destino existe. — Ele pisca. — Tipo,
você é parte da minha costela. — Ele me aperta com força.
— Você é um galanteador nato. — Eu solto outra gargalhada
animada, então suspiro e apoio meu corpo contra o seu para assistir
os gatinhos correndo pela casa. — Eu fiz isso em mim mesma. —
Respondo depois de um tempo.
— Você é uma caixinha de surpresas. — Ele ronrona,
afundando a lateral do seu rosto em meu pescoço e deixando
beijos.
Sua mão descansa em minha barriga e seus dedos deslizam
pela minha pele, até que ele toca entre minhas pernas. Meus lábios
ficam entreabertos, buscando por oxigênio, quando seus dedos
acariciam de forma tortuosa.
— Kalon, por favor. — Eu sussurro trêmula. — Eu preciso
cuidar dos gatinhos. — Tento escapar.
— Não, você não precisa cuidar dos gatos. — Ele aperta
minha barriga com a mão livre. — Por que está tentando fugir? —
Sua voz está carregada por um sentimento que abala meu sistema
nervoso.
— Porque isso não está certo. — Eu resmungo. — Não está
certo eu fazer sexo com o homem que me obrigou a me casar com
ele. — Viro meu rosto para visualizar seus olhos. — Não está certo
tratar isso como se fosse um casamento normal.
— Mas você faz sexo comigo muito antes do nosso
casamento. — Ele ergue uma sobrancelha.
— Então quando você vai se cansar disso? — Balanço as
mãos.
— Nunca. — Ele fala com tanta firmeza que eu me assusto.
— Você não é alguém feito para se cansar e descartar.
— Para o que eu fui feita, então? — Sussurro, temendo sua
resposta.
O maior problema é que não quero que ele se canse de mim,
ao mesmo tempo em que desejo desesperadamente que aconteça,
porque vai significar que finalmente vou poder ser livre.
— Para ser feliz. — Ele balança os ombros. — Para se
apaixonar e descobrir quem você é, e acredite, ser chamada de
assassina nunca fez parte da sua identidade. Isso não é você, não é
o que te define.
Meus olhos ardem, de forma alguma eu esperava por esse
tipo de resposta. Eu respiro fundo, encarando minhas mãos em seu
peito e depois seu rosto. Kalon sorri, erguendo uma sobrancelha e
cheio de sugestão, como se quisesse dizer outras inúmeras coisas.
— Tudo bem, vamos ignorar o sexo por enquanto. — Ele dá
um tapinha em meu traseiro, fazendo eu me remexer. — Vamos
comer alguma coisa, o que acha?
— Essa parece uma ideia bem melhor. — Eu balanço a
cabeça em concordância. — Pelo visto você gosta de cozinhar,
certo?
— Sim, e isso é justo depois de tanta aflição na sua vida. —
Ele sorri, segurando minha mão quando começamos a andar. —
Então basta apenas você aproveitar tudo que planejei para o dia de
hoje.
— Como assim? — Eu paro, vendo ele puxar a cadeira para
eu sentar. Descanso as mãos em meu colo, observando sua
facilidade em tornar qualquer momento leve.
— Você vai descobrir em breve, não seja uma jovem
precipitada, Arcane. — Ele pisca, colocando um prato com comida
para eu comer.
31. MAS QUEM PODERIA
FICAR?
“Não posso suportar a ideia de 18 milhões de pessoas
vivendo em um mundo separado do meu.”
— VIRGINIA WOOLF.

Depois de comer, Kalon me serve uma taça de vinho e


começa a lavar a louça enquanto assobia uma canção dos seus
discos tocando. Eu assisto em silêncio, me distraindo com a vista
das janelas abertas, mostrando o azul do oceano há alguns metros
de distância, também é possível ver o verde das árvores e as
nuances douradas do céu. Esse é o tipo de paisagem que faz meu
coração inchar de contentamento.
— E então, você gostou do souvlaki? — Ele cruza os braços,
arrumando as mangas da sua camisa branca.
— Estava apimentado, eu achei uma delícia. — Esse é o
maior eufemismo dito hoje, aquela carne estava gostosa pra
caralho. Kalon leva muito jeito na cozinha.
— Isso me deixa satisfeito. — Ele balança a cabeça em
concordância e eu me inclino para servir uma taça de vinho para ele
também.
— Com quem você aprendeu a cozinhar tão bem? —
Pergunto depois de um tempo apenas nos encarando sem nenhum
cansaço, é como ler um livro que tem um plot maravilhoso.
— Eu aprendi sozinho. — Ele dá um gole preguiçoso em sua
taça. — É relaxante. — Ele fala por fim, descansando uma mão na
sua perna e olhando para a direção onde o vento entra pela casa,
bagunçando seus cabelos.
As portas de vidro da cozinha estão abertas, revelando o
gramado e as árvores onde Páris está brincando descontrolado. Eu
volto a olhar para Kalon e seu sorriso tranquilo, seus ombros largos
e os botões da camisa um pouco abertos, revelando sua pele
branca e tatuada.
— Qual sua altura? — Questiono. — Eu tenho a impressão
de que você é mais alto do que eu imagino.
— Bom, eu poderia jogar basquete profissional, caso tivesse
interesse. — Ele dá risada, seus ombros balançando. — Eu tenho
2,01m de altura.
— Puta merda. — Eu me ergo imediatamente, puxando seu
braço para tentar medir. Ele realmente é mais alto do que eu estava
pensando. — Você só pode estar brincando, não é? Eu pensei que
você tinha 1,90 e agora estou em choque por saber que é muito
mais que isso. — Levanto minha cabeça, observando seu rosto
enquanto procuro medir nossas alturas da melhor forma.
— De acordo com meus cálculos você tem 1,70 de altura. —
Ele comenta, deslizando sua mão por meus cabelos. — Não se
sinta uma anã, você não é. Apenas está na minha genética ser alto
demais.
— Kalon, você é muito alto, perto de você eu sou uma
formiguinha e isso é um fato. — Balanço a cabeça, ainda incrédula.
— Já que você não tem vergonha na cara, eu vou perguntar! Qual o
tamanho do seu pau?
— O que? — Ele leva a mão ao peito fazendo um drama
divertido. — Eu sou um homem de família, se minha esposa raivosa
descobrir que uma mulher está dando em cima de mim desse jeito…
— Deixe de ser palhaço. — Eu cubro meu rosto,
envergonhada.
Seu sorriso quadrado me causa arrepios, principalmente
porque seus olhos ficam apertados de um jeito amável e eu juro que
nunca vi um sorriso tão belo.
— Você não conhece o tamanho do que mais consome nesse
relacionamento? — Ele cochicha, apertando as mãos nos dois lados
de suas bochechas. — Não acredito nisso, que decepção! — Seu
corpo balança para trás como se estivesse infartando.
— Tudo isso é algum tipo de modéstia para revelar um
tamanho absurdo? — Eu questiono, tentando medir com os dedos.
— Desse tamanho, é?
— Dezessete centímetros não é absurdo, também não é
escandaloso. — Ele cruza os braços. — É um tamanho normal para
um pau, podemos mudar de assunto? — Ele dá risada ao ponto de
ficar vermelho. — Porque eu sinceramente quero transar bastante
ao invés de revelar a minha surpresa.
— Se for uma boa surpresa, prometo pensar em compensar
você. — Pisco, segurando sua mão e puxando para mais perto. —
Eu adoro surpresas, então vamos logo.
Seus lábios estalam, deixando beijos em minha bochecha,
sua risada batendo contra minha pele, meus olhos se fecham para
absorver cada segundo, e por um momento eu faço de conta que
tudo é perfeito, que tudo está bem.
Kalon me puxa para subir as escadas cheio de uma
ansiedade eletrizante, eu agarro seu braço, caminhando devagar
quando ele empurra a porta no final do corredor, revelando uma
biblioteca espaçosa.
— Não fique aí parada, se apresse em entrar. — Ele bate em
minha bunda, me incentivando a caminhar.
Eu observo as prateleiras cheias de livros, meu coração
batendo desenfreado quando reconheço cada título em uma estante
preto da janela. Esses são todos os livros que Yuri queimou,
exatamente todos, sem faltar nem um.
— Kalon… — Minha voz falha quando eu procuro seu rosto.
Seus braços estão cruzados, ele apenas acena a mão em
minha direção, dispensando qualquer palavra que eu não consigo
pronunciar agora por estar muito chocada com essa surpresa. Sem
dúvidas a melhor surpresa da minha vida. Estão todos aqui, todos
os livros que eu amei desde as primeiras palavras, que me
identifiquei tanto ao ponto de tatuar em minha pele.
— Como você sabia de todos? — Eu falo chocada.
— Simples, eu falei com suas irmãs na festa de aniversário.
— Ele pisca. — E os outros eu fui tentando descobrir depois que
decorei as tatuagens em seu corpo. — Ele respira fundo e eu me
vejo fazendo o mesmo. — Estão todos aí?
— Sim, todos! — Pego um dos livros da Virgínia Wolf. —
Você sabia que ela é minha autora favorita? — Eu mostro, estou
animada demais para ficar em silêncio.
— Bom, agora eu sei. — Ele pisca. Eu dou risada, puxando
sua camisa e consequentemente fazendo seu corpo esbarrar contra
o meu. — Você está feliz?
— Muito. — Balanço a cabeça em concordância. — Muito
obrigada por isso. — Me inclino, selando nossos lábios em um beijo
estalado. Ele segura o meio das minhas costas e deixa outros dois
beijos.
— Então leia um pedaço para mim. — Ele pede, apontando
para a poltrona de descanso que tem uma ótima iluminação natural
vinda da janela.
— Por isso odeio espelhos que revelam meu verdadeiro
rosto. — Eu começo a ler, caminhando atrás dele até me acomodar
com as pernas em seu colo, lugar onde ele faz uma massagem
demorada sem tirar os olhos dos meus, com um dos livros em
mãos. — Sozinha, muitas vezes mergulho no nada. Preciso firmar
meu pé fortemente, se não, caio do limite do mundo para dentro do
nada. Preciso bater minha mão contra uma porta rija, para me
chamar de regresso ao meu corpo.
Eu descanso o livro sobre minha barriga, olhando para Kalon
que brinca com o dedo dos meus pés.
— São palavras lindas. — Ele pisca. — Muita verdade e
tristeza escancarada.
— Você sabia que ela se suicidou? — Falo, depois de um
tempo.
— Agora eu sei. — Ele balança a cabeça. — Não entendo
porque só as pessoas mais inteligentes e profundas tiram a própria
vida, e são elas que deixam um buraco imenso, no tempo e no
mundo.
— Eu concordo com isso. — Balanço a cabeça. — Virginia
encheu seu bolso de pedras e pulou na água, deixando apenas uma
última carta de amor para o seu marido. — Eu acaricio meus
cabelos, olhando para ele de relance, sem parar de falar. — Ela foi
alguém que conseguiu compreender profundamente o que é ser
uma pessoa, e acima disso, o que é ser mulher nesse mundo de
Deus. — Sorrio de lado. — Acho surreal como as pessoas se
identificam com ela e seus livros, mesmo depois de anos e anos,
essa é uma coisa que nunca vai morrer.
Kalon balança a cabeça em concordância, olhando para o
livro em minha barriga enquanto absorve cada palavra que eu disse,
então ele se inclina, pegando-o do meu colo e começando a folhear
cada página desde o começo. Eu fico em silêncio, apenas assistindo
ele absorver cada palavra sem interromper o carinho em meus pés.
Ficamos horas assim, até que eu fico parcialmente
adormecida contra uma almofada e com um dos gatinhos em meus
braços. Eu abro os olhos quando um telefone toca, Kalon pisca,
parecendo sair de uma hipnose. Ele larga o livro que já está na
metade para atender a ligação, soltando alguns palavrões no
processo.
— Pois não? — Sua voz está grave pelas horas em silêncio.
— Sim, Kol. — Ele balança a cabeça em concordância, apertando
os lábios. — Não, ela não quer. — Ele fala risonho, eu separo as
sobrancelhas quando ouço meu nome saindo do outro lado da linha.
— Qual é, merda. — Ele faz uma carranca feia. — Tá bom, tá bom.
— Sua carranca aumenta, estendendo o celular em minha direção.
— É Kol. — Ele fala o nome do seu irmão como se isso fosse uma
razão para eu quebrar o celular ou sair correndo.
— Sim, Kol mou? — Eu falo com um sorriso, olhando para
Kalon de relance. — Você queria falar comigo?
— Sim, quero. — Ele responde risonho. — O que você acha
de sair comigo hoje a noite?
— Fazer o que? — Balanço a cabeça.
— Diversão sem a presença de um esposo velho e sem
noção. — Ele fala pausadamente, me arrancando uma gargalhada
boba. — Sério, eu tenho planos maravilhosos e só pensei em você.
— Tudo bem. — Eu afasto minhas pernas do colo de Kalon.
— Eu realmente gostaria de alguma coisa desse tipo, parece ótimo.
— Qualquer oportunidade de sair de casa para ver a cidade e me
divertir como uma pessoa normal, eu jamais recusaria.
— Ótimo, então eu vou pegar você daqui a pouco. — Ele
responde. — Vou aproveitar para tratar alguns assuntos com Kalon
que só podem ser resolvidos pessoalmente, enfim, fique muito
gostosa, como se fosse para um baile.
Eu solto outra gargalhada, mas viro o rosto quando Kalon
limpa a garganta ao meu lado. Ele está com uma cara muito feia,
balançando a perna como se isso fosse aliviar o seu ciúmes bobo.
— Combinado, tchauzinho. — Jogo beijos antes de desligar,
o que arranca um suspiro muito dramático do homem ao meu lado.
— Isso é o que eu estou pensando? — Ele cochicha.
— Sim. — Eu engatinho na sua direção. — Eu tenho um
encontro com Kol Gostoso Somáli.
Kalon solta uma gargalhada amarga ao ouvir o apelido, eu
me levanto, indo até a saída da biblioteca para me arrumar.
— Se você já acabou com as surpresas, então eu vou ficar
gostosa para esse encontro e você vai cuidar dos gatinhos. — Lhe
lanço uma piscadela atrevida, Kalon solta um grito exagerado e joga
uma almofada em minha direção.
— Eu vou matar ele quando chegar aqui. — Ele ameaça, me
fazendo rir mais alto.
Eu vou até o quarto, dessa vez encontrando minha mala de
roupas onde eu procuro por um vestido que se encaixe na descrição
que Kol me deu de como seria o evento. Eu passo horas me
arrumando em frente ao espelho e quando retorno para a sala, vejo
que já está de noite. Eu respiro fundo, chamando a atenção de
Kalon que está com sua lontra nos braços. Ele perde o foco
enquanto analisa o vestido verde em meu corpo, ombro a ombro e
muito apertado.
— Verde é a minha nova cor favorita. — Ele respira fundo.
— É da mesma cor que seus olhos. — Eu dou risada, me
aproximando e girando na sua frente, mostrando meu cabelo e a
maquiagem suave.
— Porra, Arcane. — Ele agarra minha cintura, puxando meu
corpo até que seu rosto afunda em meu traseiro e ele deixa uma
mordida que me arranca um grito. — Você está linda pra caralho,
nem fodendo que vou deixar meu irmão ter a oportunidade divina de
passar a noite ao seu lado.
Eu dou risada, tentando escapar quando caio em seu colo,
ele me puxa com tanta facilidade que eu me sinto um brinquedo em
suas mãos.
— Você está me bagunçando. — Eu protesto, tomando fôlego
quando ele me aperta para afundar o rosto em meu pescoço.
— Você está bagunçando ela. — Me surpreendo quando vejo
Kol parado na porta, com os braços cruzados enquanto observa nós
dois. — Estou atrapalhando?
— Sim, faça o favor de ir embora e voltar em um ano. —
Kalon debocha, ele mostra o dedo do meio para seu irmão e me
ajuda a sentar em sua perna.
— Deixa de ser vagabundo e libera logo a Arcane. — Kol
sibila, mostrando indiferença para o olhar raivoso de Kalon. Eu dou
risada, me divertindo com os dois.
— Tudo bem, nada de brigas. — Eu levanto as mãos em
rendição. — Você não disse que tinha algo para conversar com
Kalon? Façam isso enquanto eu pego a minha bolsa e me despeço
de Páris.
Balanço as mãos, caminhando até Kol que me puxa para um
abraço amigável e beija a lateral do meu rosto.
— Você está muito linda, Arcane. — Ele diz. Kalon se
aproxima, puxando o ombro dele.
— Deixa de ser metido, Kol. — O homem repreende,
estalando a língua. — Você planejou o que eu pedi?
— Sim, você foi muito exigente quando disse para não
comentar com ninguém e para tratar o assunto pessoalmente. —
Ele balança a cabeça em negação, acenando para mim.
Os dois se trancam no escritório e eu fico parada, tentando
descobrir do que se trata, mas me convenço que se for da minha
conta o meu marido vai falar em algum momento. Fecho os olhos,
caminhando de volta até o quarto para procurar a bolsa que eu
esqueci na ansiedade para saber se minha aparência estava
aprovada.
Não consigo encontrar Páris no quarto, ele deve estar
escondido no escritório de Kalon, então desço as escadas com
minha bolsa em mãos. Os dois estão caminhando para fora
enquanto apertam as mãos um do outro.
— Eu agradeço seu empenho. — Kalon aproxima seu rosto
para beijar sua bochecha.
— Ah, foi simples. — Ele balança as mãos. — Irmãos servem
para essas coisas.
— De verdade, meu amor. — Kalon insiste. — Obrigado por
trabalhar tanto em tão pouco tempo.
Eu assisto os dois, desconfiada com o que tanto agradecem,
mas os se afastam para me dar atenção.
— Pronta para a melhor noite da sua vida? — Kol ergue uma
sobrancelha.
— Pode apostar. — Eu caminho em sua direção, olhando
para Kalon que retira seu celular para ver uma nova notificação. Sua
expressão divertida muda imediatamente para raiva e descrença.
— Algum problema? — Kol pergunta, virando seu corpo para
visualizar a impaciência de Kalon enquanto afunda seus dedos na
tela do celular.
— Kalon? — Eu balanço a cabeça.
— O que você tem com Pavlos? — Ele rosna, me
surpreendendo.
— Como assim? — Olho para Kol que assobia, dando um
pouco de espaço para nós dois.
— Você está me traindo com ele, é isso? — Ele pergunta
suavemente e ergue a tela do celular para que eu veja uma foto de
nós dois no casamento.
O ângulo em que estamos abraçados faz pensar que Pavlos
beijou minha boca, mas foi apenas a minha bochecha, só que
minhas mãos ao redor dele dão a impressão de que realmente foi
um beijo na boca.
— Você estava na festa e viu o que realmente aconteceu. —
Respondo quando ele guarda o celular. — O que te faz pensar que
eu estou traindo você?
— O fato disso estar acontecendo desde o dia em que vi os
dois se abraçando no restaurante naquele dia. — Ele afunda as
mãos no bolso. — Foi exatamente o que você deu a entender, não?
Que ele é um ótimo amante e que se amam, ou vai dizer que é
mentira?
— Não é mentira, eu sempre deixei claro que amo Pavlos
com todo o meu coração. — Isso faz ele dar as costas, ficando
tenso e furioso.
— Eu acho que vou esperar no carro. — Kol limpa a
garganta. Meu rosto queima de vergonha quando a porta se fecha e
o silêncio assustador perdura na sala.
— Fala sério, você me envergonhou na frente do seu irmão.
— Balanço as mãos. — Qual é o seu problema?
— O meu problema é o fato de você ter um amante e sequer
se dar ao trabalho de esconder ele de mim. — Ele gesticula, dando
uma risada amarga. — Você beijou ele na porra do nosso
casamento, Arcane.
— Eu não beijei ele. — Caminho em sua direção. — Você é
louco, merda? Você só pode estar brincando comigo!
— Então me explica, Arcane. — Ele me olha. — Como você
não tem nada com ele se estava na fazenda dele e até trouxe o
cachorro dele pra dentro da nossa casa. — Ele aponta ao redor. —
Eu estou delirando?
De forma alguma eu vou revelar que Pavlos é o namorado de
Melissa. Ninguém precisa saber disso.
— Você não tem o direito de me tratar desse jeito. — Eu
levanto meu rosto. — Você não está em posição de me acusar
dessa forma ou exigir alguma coisa de mim, não quando insistiu até
o último momento em manter esse casamento de merda. —
Empurro seu peito.
Eu estou furiosa por estarmos brigando, por ele achar que
está no direito de sentir ciúmes do meu melhor amigo, da única
pessoa que me ama como uma pessoa normal, que me enxerga
como a pessoa que eu quero ser. Estou furiosa por a bolha estourar
e eu voltar a enxergar o quanto esse casamento me assombra.
— Por que você não fala de uma vez? Por que não diz com
todas as letras o que de fato enxergamos? — Ele está furioso, eu
recuo para trás, não gostando do seu tom de voz.
— Porque eu não tenho nada com ele. — Grito alto. —
Porque você entrou na minha casa, tirou a minha liberdade, minhas
irmãs… — Minha voz falha pelo desgosto. — Eu fui negociada como
uma mercadoria, fui forçada a esse casamento e você não merece
nenhuma das minhas explicações. — Eu abro os braços. — Além
disso, eu não tenho nada pra explicar a você. Nada. Você criou uma
coisa inexistente. No começo eu até pensei em convencer você que
ele era meu namorado, mas eu já disse a você, Pavlos é meu
melhor amigo. — Sibilo, meu rosto vermelho de raiva. — Consegue
entender a diferença?
— Eu quero apenas compreender você e protegê-la, Arcane.
— Ele pisca, me observando ao compreender totalmente o que eu
venho explicando desde o começo. Seus ombros balançam como se
ele estivesse se sentindo péssimo agora.
— Você me envergonhou na frente do seu irmão por causa
de uma besteira. — Eu caminho em sua direção, empurrando seu
corpo para longe do meu quando ele tenta me abraçar. — Você
surta comigo constantemente por causa de uma idiotice, uma
paranóia, mas em nenhum momento eu coloquei você contra a
parede para esfregar o seu passado na cara. — Kalon paralisa, me
observando cheio de choque.
— Do que você está falando? — Sua voz sai mortalmente
fria.
— Do fato de você ter matado sua ex-namorada. — Coloco
as palavras para fora. — Você pode me matar da mesma forma que
fez com ela, surtar comigo e causar um acidente já que parece estar
sempre no limite. — Aponto o dedo em sua direção, meu peito
doendo com as palavras que saem da minha boca.
— Eu? — Ele leva a mão ao peito. Sua expressão torna tudo
mais doloroso e assustador. — Machucar você como fiz com ela?
— Não é o que todos comentam? Que você é louco, que
voltou para casa banhado de sangue e foi chorar nos braços da sua
mãe. Foi o que eu ouvi no dia em que você brigou com Rajá, foi o
que seu pai deixou claro quando tentou controlar você. — Eu
balanço a cabeça em negação. — Todos tratam você como louco e
descontrolado, mas em nenhum momento eu usei isso contra você
como você tenta usar Pavlos contra mim. — Empurro seu corpo,
dando tapas em seu peito. — Eu odeio você por me machucar
usando o meu melhor amigo contra mim, apenas porque eu amo ele
e não você! — Grito, colocando cada sentimento reprimido para
fora. — Apenas porque ele me ama e você é obcecado com a ideia
de alguém nutrindo afeto por algo que considera seu.
— Silêncio. — Ele pede ofegante e caminha para trás. —
Pare. Pare de falar. — Seu olhar é vago e cheio de culpa. Ele
engole em seco como se tivesse acabado de lembrar algo que não
deve esquecer de jeito nenhum.
— Você não é diferente de mim. — Eu levanto meu queixo.
— Mas em nenhum momento eu ousei usar isso contra você, para
descontar todas as minhas frustrações em relação a esse
casamento amaldiçoado. Tudo que eu fiz até aqui foi apenas
enfatizar a minha vontade. — Bato em seu peito para liberar esse
monstro dentro de mim. — Tudo que eu fiz foi deixar bem claro que
não queria esse casamento! Que eu odeio você por sempre me dar
motivos para isso, como agora!
— Silêncio. — Ele fala mais alto, empurrando a cadeira ao
seu lado com um chute tão agressivo que eu tenho um sobressalto.
Fecho meus olhos, inclinando o rosto para o lado imaginando
que esse provavelmente é o momento em que ele me derruba no
chão e me bate pra caralho como Yuri fez. Eu sinto sua respiração
ofegante, seus sons de mágoa, mas passa um minuto, dois. Não
ouço nada, nenhum ruído, nenhum movimento agressivo contra
mim. Meu coração dói de espanto.
Eu abro meus olhos procurando por ele, Kalon está parado
no mesmo lugar inspecionando cada traço do meu rosto. Seu
controle é tão assustador que não consigo aceitar que esse homem
é real. Há decepção em seus olhos, vejo a mágoa brilhando quando
ele inclina a cabeça para o lado.
— Você achou que eu ia bater em você? É sério que você me
enxerga como um monstro? — Seu queixo se ergue, respirando
fundo. — Agora está claro que você me abomina, que me odeia
muito e nada que eu faça vai mudar isso. — Ele bate as mãos uma
na outra como se estivesse limpando poeira. — Não poderia ficar
mais claro.
Ele caminha para trás como se estivesse traçando uma linha
no chão e dividindo nosso espaço.
— Você foi egoísta e cruel comigo esse tempo inteiro! — Eu
grito, batendo as mãos em seu peito na intenção de interromper
toda essa discussão aterrorizante. Parece que não fomos feitos para
desfrutar a paz, em um momento estamos nos divertindo e no outro
a realidade bate em cheio, mostrando que existe uma grande
diferença entre nós,que é impossível ter algum tipo de trégua com o
homem que obrigou você a um casamento que não queria.
— Você se comportou o tempo inteiro como um babaca
paranóico! — Falo mais alto. Ele me observa tomado por um
silêncio perturbador. Sua respiração está irregular quando ele
afunda seu rosto contra o meu, abraçando meu corpo com força. Eu
me assusto e tremo.
— Pelo amor de Deus, você está me matando! — Ele arqueja
ofegante. — Eu acabei de descobrir que odeio discutir com você,
então vamos parar com isso! — Suas palavras são apressadas e
ditas pela metade, eu pisco algumas vezes sentindo o seu cheiro se
misturar ao meu.
Meu corpo está fervendo em adrenalina e dou tudo de mim
para afastar meu rosto quando Kalon tenta me beijar, meu coração
bate como louco e eu preciso levar a mão ao peito para me acalmar.
— Eu posso ter falado coisas que você não gostou, mas você
me magoa profundamente. — Sustento seu peito para impor um
limite entre nós. — Por isso você não vai dormir comigo hoje.
Quando eu voltar, será melhor a gente não se ver.
— Arcane... — Sua voz soa aflita quando ele tenta consertar
a nossa discussão.
— Agora não. — Eu caminho para longe, sentindo cada
pedaço do seu corpo me tocando pelas costas.
— Eu não quero ficar brigado, por favor, não dê as costas. —
Kalon afunda o rosto em meu ombro, me abraçando como se
estivesse morrendo de saudades e segurando minha mão na
maçaneta da porta.
Eu tento empurrar seu corpo quente para longe do meu,
sentindo dor física por ter bastante espaço entre nós.
— Não me abrace. — Falo firme, empurrando seu corpo para
longe. — Fique longe de mim, Kalon. Eu estou falando sério,
respeite ao menos isso.
— Meu amor. — Sua voz está ofegante quando ele segura a
porta. — Arcane, vamos nos resolver antes de você ir embora com
ele, por favor. — Ele implora.
— Eu não quero falar com você agora. — Gritei alto. — Me
deixe sozinha. Você não consegue entender? — Vocifero. — Faça
de conta que existe outro homem em minha vida e se afaste para
bem longe de mim. — Sibilo, usando esse golpe para ver a culpa
brilhando em seus olhos. — Babaca. Se você tivesse me
perguntado como uma pessoa respeitosa eu teria dito. — Faço uma
pausa, voltando em sua direção para verbalizar melhor. — Na
verdade, eu estive falando o tempo inteiro, mas você só enxerga a si
mesmo.
— Isso não foi legal, Arcane. — Ele balança a cabeça em
negação. — Não me torture assim.
— Você deveria ter pensado nisso quando resolveu agir
como um louco. — Largo a porta aberta e caminho pelo jardim,
sentindo seus olhos me acompanhando até que entro no carro de
Kol.
Eu respiro fundo, todo meu corpo está trêmulo. Minhas mãos
se atrapalham para puxar o cinto de segurança.
— Você está pálida. — Kol sussurra, me ajudando com o
cinto. — Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Na verdade, quando eu voltar eu resolvo. — Balanço a
cabeça. — Me desculpe por você ter visto isso.
— Eu já estou acostumado. — Kol dá a partida. — Meu irmão
é muito intenso com suas emoções, mas ele é uma boa pessoa,
mesmo errando tanto com a forma que tenta se expressar.
— Eu estou percebendo isso. — Arrumo meus cabelos. —
Mesmo que eu tenha sido dura com ele e passado dos limites,
mesmo cheia de defeitos, acho que estava na hora de colocar um
limite nessa confusão. Eu não gosto quando ele deixa de me ouvir
para dar ouvidos às suas paranóias sem sentido.
— Os relacionamentos são difíceis assim mesmo. — Ele
estala a língua. — Coisas da vida, esse é o lado ruim em se casar
com um psicopata.
— Tudo bem, não vamos deixar isso pior do que já está. —
Eu solto uma gargalhada ao ver como ele está determinado a atacar
o irmão. — Para onde estamos indo?
— Eu consegui ingressos para um concerto musical ao ar
livre. — Ele explica. — Eu tenho certeza que você vai gostar e essa
é uma oportunidade para virarmos amigos.
Ele me olha, piscando de forma exagerada.
— Já somos amigos, não precisava de tudo isso. — Eu toco
seu ombro.
— Tudo bem, mas eu sou do tipo que gosto de tempo de
qualidade, então precisava sim. — Ele pisca.
Eu ergo as mãos em rendição, não vou reclamar por passar
algum tempo aproveitando as coisas belas desse mundo. Eu
realmente necessito disso porque tudo que experimentei é tão
pouco. Minha vida é tão limitada e sombria.
Depois de alguns minutos conversando, Kol estaciona em
uma vaga e caminha para abrir a porta.
— Por favor. — Ele pisca.
— Obrigada. — Eu dou risada, segurando seu antebraço e
caminhando ao seu lado pelo mesmo caminho onde algumas
pessoas estão indo.
As mulheres se vestem com elegância e os homens vestem
terno. Kol, no entanto, está usando um conjunto creme estilo
europeu, com um sobretudo preto e um cachecol branco ao redor do
pescoço. Ele é diferente de Kalon que algumas vezes gosta de usar
roupas no estilo streetwear, que consistem em bermuda, camisa
larga, tênis de marca e meias altas. Mas na maior parte do tempo,
Kalon usa calça no lugar de bermuda, mas como ele é muito alto,
prefiro mil vezes ver seu corpo vestido em bermudas escuras e
meias altas. É sexy pra caralho.
O lugar onde estamos é em um deck de madeira, com vista
para o mar e as luzes da cidade do outro lado das águas. Kol me
ajuda a sentar, nós dois pegamos a primeira fileira onde é possível
ver vários homens sentados com seus instrumentos musicais.
— Como você sabe que eu gosto desse tipo de coisa? — Eu
ergo uma sobrancelha.
— Eu sou bom em descobrir os segredos das pessoas. —
Ele me lança uma piscadela, batendo palmas quando os homens se
preparam para começar a tocar.
Eu respiro fundo quando ele me entrega uma taça de vinho e
balança a sua em mãos, perdendo sua atenção nas águas agitadas
e no som suave dos instrumentos de corda. Está tocando Umutsuz
Ask, meu coração enche de melancolia quando a melodia suave se
espalha pelo ambiente noturno um pouco frio. Eu olho para Kol, me
perguntando porque alguém gastaria tanto dinheiro para vir até aqui
assistir um musical tão triste como esse.
Kol respira fundo, dando goles em seu vinho branco e
observando cada detalhe do lugar onde estamos. As luzes
iluminando todo o espaço amadeirado, as águas escuras atrás dos
músicos, toda a cidade brilhando em pequenas luzes mais a frente,
transformando a paisagem em uma coisa carregada de nostalgia e
tristeza.
— Sabe… — Ele sussurra, balançando sua taça de vinho
entre os dedos e cruzando as pernas com elegância. — Quando
Kalon soube do casamento, ele deu risada, olhou para o céu e disse
que seria maravilhoso não ficar sozinho até a morte.
Seu sussurro fica mais pesado sendo coberto pela melodia
triste. Eu pisco, olhando para seu rosto.
— Sério? — Questiono.
— Sério. — Ele balança a cabeça em concordância. — Acho
que ele começou a enxergar o mundo de uma forma diferente
depois daquele dia.
Eu abaixo a cabeça, meus dedos brincando com a aliança ao
redor do meu dedo. Um nó se forma na minha garganta que eu
tento desmanchar com goles no vinho. Eu não ouso falar nada,
apenas me distraio com as próximas músicas que eles tocam, cada
uma mais triste que a outra. A todo instante minha cabeça volta para
a nossa discussão, para seu olhar arrependido e como ele parecia
quebrado depois de ouvir meu desabafo raivoso.
Quando o piano finaliza suas últimas notas e o arco do violino
para de se movimentar, eu me levanto transtornada e olho para Kol.
Ele não parece surpreso, até mesmo sorri e toma seu último gole.
— Eu preciso voltar, Kol. — Sussurro. — Meu coração está
apertado.
— Eu sei disso. — Ele dá risada, arrumando seu cachecol de
um jeito vaidoso.
— Você sabe? — Me assusto.
— Sim, está no seu rosto. — Ele aponta, deslizando o
polegar por minhas bochechas molhadas de lágrimas. — Você se
emocionou com o musical, correto?
— Correto. — Pisco. Eu não vi que estou chorando. Limpo a
garganta e os últimos resquícios das lágrimas silenciosas. — Que
coisa esquisita. — Eu aperto os lábios, soltando uma risada fraca.
— Concordo. — Ele balança os ombros. — Estamos há três
horas aqui, eu vou deixar você em casa já que também te trouxe.
Suas mãos enluvadas estão em seus bolsos, ele olha ao
redor, para todas as pessoas aplaudindo e se aproximando para
uma mesa com bebidas e frutas vermelhas. O vento bate forte
contra nossos corpos, me fazendo encolher e caminhar para mais
perto do seu corpo alto.
— Eu gostei muito do musical. — Abraço seu bíceps,
caminhando ao seu lado com calma e vendo as outras pessoas se
distanciando envoltos por uma conversa cheia de sussurros. — Eu
não sabia que você gosta desse tipo de coisa.
— Ah, eu gosto muito. — Ele sorri. — É muito relaxante não
precisar pensar em nada por algumas horas. — Responde, batendo
os cílios. — Podemos marcar de novo.
— Eu adoraria. — Balanço a cabeça e entro no carro.
Eu respiro fundo para aliviar o aperto angustiante em meu
peito. Não consigo entender o que está acontecendo comigo, na
primeira oportunidade que tenho para sair de casa e aproveitar um
pouco de liberdade que consigo, eu começo a ficar com uma
saudade estranha e quero voltar para o conforto do lugar que eu
não escolhi viver, e que se eu pudesse escolher, trocaria por outro
melhor.
Nossa viagem até a mansão é feita em silêncio. Eu caminho
para fora do carro depois de me despedir de Kol com um abraço
apertado. Ele garante que se divertiu muito, que foram as melhores
horas de silêncio ao lado de uma pessoa silenciosa e poética, e que
precisa repetir logo.
Eu entro em casa vendo todas as luzes apagadas, já é de
madrugada, o que me leva a acreditar que Kalon está dormindo ou
também se divertindo em algum lugar.
Quando acendo as luzes do corredor, deixo escapar um grito
ao ver seu corpo sentado no final das escadas. Ele está apoiado
contra a parede e cochilando. Os gatinhos estão aproveitando sua
quietude para perambular por seu corpo em busca de conforto para
dormir.
Eu tapo a boca para não gargalhar alto. Sim, eu ainda estou
furiosa com ele, mas essa cena é impagável. Suas mãos balançam
trêmulas quando encontram a barriguinha peluda de um dos
gatinhos. Seus olhos se abrem e ele me encara.
— Muito linda… — Ele pisca como se estivesse em um
sonho. Suas sobrancelhas estão juntas em uma expressão
carrancuda e ao mesmo tempo amável.
— O que você está fazendo dormindo no chão, Kalon? — Me
ajoelho aos seus pés, largando meu salto.
— Eu queria comprar um buquê de flores, mas estava tudo
fechado. — Ele lamenta e aponta para as escadas. — Então eu
comprei alface.
Eu não tinha visto antes, mas a escada está cheia de alface
de uma forma que todo o caminho está interrompido. Minhas
bochechas ficam agressivamente vermelhas, eu nunca ganhei
flores, mas agora já posso dizer que ganhei alfaces. Eu cruzo os
braços diante do peito. Puta merda. Ele comprou mesmo alface para
mim.
— Por que você comprou tanto alface? — Tento soar ainda
com raiva.
— Desculpa, minha vida. — Ele segura minha mão. — Eu
comprei porque sou um marido horrível.
Kalon faz carinho no gatinho que começa a ronronar, eu fico
em silêncio tentando me familiarizar com esse tipo de tratamento e
minha demora faz ele abaixar a cabeça, mostrando que realmente
está arrependido e envergonhado da nossa discussão. Ele suspira,
tomado pelo choque quando ouve o gatinho ronronando em sua
perna.
— Então você comprou alface como um pedido de desculpas,
é isso? — Eu ainda estou incrédula. Kalon geme, me encarando
como um cachorrinho que caiu da mudança.
— Eu sei que foi péssimo. — Ele balança a cabeça. — Você
pode fingir que são rosas vermelhas?
— Não. — Torço o nariz e volto a encarar todo o alface. Uma
risada divertida escapa dos meus lábios e eu balanço a cabeça em
negação. — O que vamos fazer com tudo isso?
— Podemos doar. — Ele respira fundo, me olhando de um
jeito fofo. — Tem um abrigo e um restaurante aqui pertinho, um
desses lugares vai aceitar toda a escada repleta de alfaces.
— Há quanto tempo você está aí? — Pergunto. Ao menos ele
tomou um banho e não está tão acabado, mas seus olhos indicam
que ele está morrendo de sono.
— Eu não sei, amor. — Ele balança os ombros, voltando a
encarar os gatinhos. — Quando você saiu eu fui correndo comprar.
— Ai, Kalon… — Eu balanço a cabeça.
— Você vai me tirar do castigo? — Ele questiona, balançando
a patinha do gatinho em minha direção e fazendo o filhotinho dançar
em seu colo, exibindo sua barriguinha gorda. — Eu não quero
continuar brigando com você.
Seu tom de voz é cheio de sinceridade e arrependimento.
Porra, eu não sei se foi o gatinho ou ele que me fez derreter, mas eu
estou disposta a comer todo esse alface como prova de que aceito
suas desculpas.
— Acho que sim, você pode voltar a dormir comigo. —
Resmungo, tentando me manter durona e fazendo um grande
sorriso dançar em seus lábios. — Mas os gatinhos vem junto. Eles
vão ficar no meio. — Aponto em sua direção.
Ele faz uma careta feia, pegando cada um deles e levantando
do chão. Meu braço envolve seu tronco e eu deito a cabeça em seu
peito, respirando seu cheiro delicioso.
— Desculpa por ter falado tudo aquilo. — Peço baixinho,
fechando a porta quando atravessamos todo o alface nos degraus
da escada. — Às vezes eu sou muito dura, mas eu só queria que
você me enxergasse. Se eu pudesse voltar e falar tudo aquilo de
outra forma, eu faria.
— Eu também peço desculpas por ter sido muito paranóico
todo esse tempo e isso ter chegado a um ponto em que ficamos
magoados. — Ele respira fundo, me observando com atenção. —
Eu sei, eu acabo sempre pisando na bola e estragando tudo que
mal temos. — Sua voz soa amarga ao apontar ao redor. — Mas
enfim, eu lamento muito. De verdade.
— Vamos nos beijar? — Eu seguro seu rosto em minhas
mãos quando ele libera os gatinhos para correr pelo quarto. Tomo
seus lábios em um beijo cheio de reconciliação.
— Sim, por favor. — Kalon geme, agarrando meus cabelos e
me puxando para perto. Todo seu corpo forte me causa arrepios, ele
mordisca meu lábio e aperta meu vestido, puxando até minha
cintura.
— Você está com o cheiro dele? — Ele toma fôlego,
mordiscando meu queixo e apertando minha pele seminua.
— Deve ser porque nos abraçamos na despedida. — Eu
afasto meus lábios, abrindo os botões da sua camisa branca.
— O que vocês dois aprontaram? — Ele ergue uma
sobrancelha, jogando a camisa no chão.
— Fomos em um concerto musical. Eu adorei e vamos outra
vez. — Engulo em seco ao lembrar daquele sentimento fechando
minha garganta, martelando meu coração e me deixando louca para
voltar depressa.
— Eu estou saindo do castigo? — Sua voz me causa
arrepios, eu balanço a cabeça em concordância e minhas mãos se
perdem no cinto da sua calça.
— Eu vou continuar castigando você mais um pouco. —
Empurro seu corpo para sentar na poltrona, Kalon me olha cheio de
surpresa quando eu ajoelho.
— Arcane mou… — Ele treme quando meus dedos seguram
seu pau ereto, um gemido controlado sai dos seus lábios quando
massageio bem devagar.
Suas mãos procuram apoio na mesa que tem ao lado da
poltrona, seus dedos se fecham na madeira com força quando eu
aproximo meus lábios para experimentá-lo em minha boca. Meus
olhos procuram pelos seus para saber se estou fazendo certo, Kalon
solta um palavrão feio que me assusta, mas sua mão livre aperta
meus cabelos para me ajudar com os movimentos do seu pau
dentro da minha boca.
— Ah, porra! — Suas bochechas ficam vermelhas e sua mão
treme, derrubando uma jarra de água no chão que se estilhaça. —
Desculpa. — Ele implora, segurando contra o rosto a almofada que
estava atrás de suas costas.
Conforme eu chupo seu pau e deslizo a língua pela pontinha,
ele estremece contra a poltrona e aperta a almofada como se
pudesse parti-la aos pedaços, eu até mesmo ouço o tecido se
rasgando quando intensifico os movimentos da minha boca.
— Ah, isso realmente é um castigo! — Ele larga a almofada
para respirar fundo. Sua cabeça tomba para trás e eu me deleito
com a visão perfeita do seu abdômen desnudo. — Esse é um
sofrimento delicioso.
Eu afasto meus cabelos para trás quando ele rebola na
minha boca, me fazendo gemer e sentir meu corpo doendo para
senti-lo em todos os lugares. Kalon está ofegante e trêmulo, ele
aperta os braços da poltrona com força e solta um gemido tão
sensual que eu consigo me atrapalhar no que estou fazendo. Eu
afasto minha boca, sentindo-o jorrar em meu pescoço e seios.
— Cacete. — Ele treme, descansando a mão em sua barriga
e encarando o teto do quarto, seu corpo parece ainda estar fervendo
e eu deixo um selinho na ponta do seu pau. — Eu acabei de ir para
o melhor lugar do mundo inteiro.
Ele me encara, o peso do seu olhar me faz levantar com
calma. Ele inspeciona toda a bagunça que está meus cabelos, o
vestido amarrotado e marcas do seu orgasmo em minha pele.
— Minha vez de castigar você. — Ele se aproxima,
segurando meu queixo e devorando meus lábios sem dar
importância para seu gosto salgado em minha boca.
Eu grito, ou talvez tenha sido um gemido, mas faço isso
quando ele estapeia minha bunda e puxa meu vestido para fora do
meu corpo sem nenhum esforço. Tento cobrir meus seios sensíveis
do frio noturno, mas Kalon afasta minhas mãos e afunda seu rosto,
mordiscando e lambendo de um jeito tão delicioso que eu
enfraqueço.
Agarro seu pescoço, ele separa minhas pernas e empurra
meu corpo contra a mesa que quase derrubou quando eu estava
fazendo o boquete. Lágrimas de prazer invadem meus olhos quando
seus dedos se perdem entre minhas pernas, ele massageia de um
jeito exigente e tão prazeroso que eu perco o fôlego.
— Minha. Porra. — Ele geme, agora mordiscando meu
pescoço. Meu rosto vira para trás, dando espaço para que sua boca
marque cada parte do meu corpo.
Meus dedos apertam seus cabelos ondulados e Kalon
paralisa, levantando a cabeça bem devagar para me encarar de um
jeito selvagem que me deixa tonta.
— Fique de costas. — Ele manda, apertando os dois lados da
minha cintura. Eu faço isso, recebendo sua ajuda quando demoro
demais para encontrar o controle das minhas pernas trêmulas. Ele
acaricia minhas costas e volta a beijar a curva do meu pescoço,
mantendo todo o meu corpo contra o seu. — Eu me pergunto se vou
foder a sua bunda primeiro ou a sua boceta. — Ele morde meu
ombro.
Eu paraliso, tentando respirar corretamente da mesma forma
que sucumbo a esse prazer sombrio e doloroso. Kalon brinca com
meus cabelos bagunçados e contorna minha barriga com o braço,
empurrando seus dedos em minha boceta e fazendo movimentos
exigentes.
— Diga o que você acha. — Ele ordena, marcando meu
ombro com os dentes. Porra, eu não consigo falar absolutamente
nada enquanto o sinto intensificar os movimentos dentro de mim. —
Vamos, minha alma. — Ele aperta minha bunda, deixando um tapa
ardente que me faz rebolar contra seus dedos.
— Eu estou pronta para você foder minha bunda. — Gemo,
tentando encontrar apoio contra seu abdômen quente e sólido.
— Porra, você está? — Ele esfrega seu pau em uma das
minhas nádegas. Outro tapa marca minha bunda, meus olhos ardem
e eu mordo o lábio para não gritar alto. — Então nós vamos
começar por aqui, concorda?
Eu balanço a cabeça em concordância, fechando minhas
pernas quando um arrepio trêmulo sobe por minha barriga, Kalon
rosna e coloca outro dedo na minha boceta, aumentando os
movimentos e me deixando tonta.
— Diga com todas as letras. — Ele ordena. — Você
concorda, minha alma?
— Eu concordo… — Minha voz sai cheia de dificuldade. —
Víbora.
Uma risada sensual e grave bate contra minha pele. Ele
remove os dedos de entre minhas pernas e me surpreende
deixando um tapa na minha boceta. Eu estou tão sensível que a
ardência me faz fraquejar contra seu corpo, ele me segura com
força e pressiona os lábios em meu ouvido.
— Onde está toda aquela sua raiva? — Sussurra. — Não me
diga que eu acabei de domar você, meu amor. — Ele debocha, me
fazendo tremer e empurrar seu corpo com o traseiro.
— Não seja cruel. — Eu sibilo, virando meu rosto para ver
seus olhos verdes. — A não ser que você goste de apanhar durante
o sexo.
— Ah, se for dessa gatinha rebelde… — Ele provoca,
mordendo o lábio de um jeito safado.
— Palhaço. — Eu tento escapar, rosnando para sua
provocação irritante.
— Calma, amor. — Ele agarra meus cabelos, mantendo
minha cabeça contra seu corpo e me fazendo olhar para ele em um
ângulo diferente. — Eu estava apenas brincando.
— Solte meus cabelos. — Ordeno.
— Não, solte você. — Ele aperta minha cintura com força,
mordiscando minha orelha. Eu me debato para ele soltar meus
cabelos, Kalon aperta com mais força enviando choques de prazer
por minha coluna até se concentrar em minha boceta.
— Certo, estamos em guerra novamente. — Eu tomo
impulso, batendo minha nuca contra seu queixo e arrancando um
gemido misturado com uma gargalhada grave.
— Você cortou minha boca. — Ele aperta minha bunda,
deixando um tapa estalado. — Merece retaliação.
— Isso vai me deixar dolorida. — Eu grito quando meu corpo
é empurrado contra a parede.
— Foda-se, você também vai deixar meu pau do mesmo
jeito. — Meus seios ficam doloridos quando ele se concentra em
deixar alguns tapas ardentes na minha bunda. — Se prepare, eu
vou foder sua bunda por cada noite que passei em claro imaginando
que você estava com outro. — Ele mordisca minha pele. — Agora
estou aliviado por saber que não era nada disso.
Fecho meus olhos, tremendo de ansiedade quando ouço o
barulho da embalagem de preservativo se rasgando. Um vento
gélido bate em minhas costas, me fazendo estremecer. Kalon geme
de satisfação quando veste o preservativo e encosta seu pau em
minha bunda.
— Então quer dizer que você se preparou para isso? — Sinto
a ponta do seu nariz esfregar em minha nuca. — Cheirosa.
— Sim, eu fiz isso mais cedo… — Gaguejo, sentindo ele
deslizar os dedos para separar minhas nádegas. — Ai, porra. O que
é isso? — Minhas palavras morrem, dando lugar a um suspiro
trêmulo quando sinto algo molhado escorrendo pela minha pele.
— Lubrificante, para você não sentir tanta dor. — Ele
sussurra, afastando um pouco do seu corpo para eu ver a gaveta
aberta onde isso estava guardado.
— Vai doer? — Eu tento me afastar para ver melhor o seu
corpo, mas ele segura os dois lados da cintura e encosta seu rosto
em minha nuca.
— Um pouco, mas vai passar. — Ele beija minha pele,
acariciando minha barriga até que seu braço se deixa contra meus
seios, me mantendo em uma espécie de casulo quando o sinto
entrar bem devagar.
— Kalon… Está doendo. — Meus olhos ficam marejados, ele
aperta minha bunda com a mão livre, empurrando seu quadril contra
minhas nádegas e fazendo movimentos dolorosos.
— Porra, minha alma. Me desculpa. — Ele empurra meu
corpo contra a mesa e meus olhos se fecham, seus movimentos
aumentando e fazendo uma onda de prazer inesperada subir por
minha coluna. Eu mordo meus lábios, gostando disso pra caralho.
O prazer é mais forte do que qualquer coisa, fazendo meu
corpo balançar com cada estocada exigente e profunda do seu pau.
Minha visão fica turva quando Kalon estapeia os dois lados da
minha bunda, eu grito fraco, mantendo minhas pernas firmes
quando ele vai mais fundo, apertando minha carne. Seus
movimentos são muito molhados e rápidos por causa do lubrificante.
Meus olhos se fecham quando sua mão busca apoio em minha
barriga, seus movimentos ficam selvagens e gostosos.
— Você está bem? — Sua voz carinhosa contra meu ombro
me arranca um gemido choroso. Eu balanço a cabeça em
concordância, me perdendo em cada movimento que me deixa fora
de órbita. Minha coluna está úmida de calor, eu perco a noção do
tempo, meus ouvidos estão barulhentos, mas ao mesmo tempo
minha cabeça está flutuando. Eu sinto apenas a força dos seus
movimentos batendo contra meu corpo, seus braços fortes me
agarrando, sua boca em meu ombro e seus gemidos roucos.
Eu tento fechar minhas pernas, quando sou tomada pelo
prazer doloroso em minha boceta. Todo meu corpo está tremendo.
Eu choramingo, ficando cada vez mais difícil segurar o orgasmo que
faz minhas pernas tremerem. Kalon se afasta, removendo o
preservativo. Eu arrumo minha postura, tremendo. Respiro fundo
quando meu corpo fica de frente para o seu.
— Preciso tanto de você. — Ele diz. Minhas pernas se
fecham ao redor da sua cintura, dessa vez eu fico mais alta quando
sou apoiada contra a parede e sinto seu pau entrar na minha
boceta.
— Ah, Kalon. — Eu agarro seus cabelos, seu rosto se perde
em meus seios, mordendo e me arrancando gemidos fracos. Seus
movimentos são rápidos e obscenos, fazendo barulho por todo o
quarto e aumentando o suor do meu corpo.
Minhas unhas marcam suas costas, ele morde meu seio com
mais força. Kalon caminha com nossos corpos até a cama, me
deitando sem sair de dentro, suas estocadas ficam mais existentes
agora que tem o apoio do colchão contra nossos corpos. Eu aperto
seu traseiro e ele rosna, mordendo meu queixo e batendo com mais
força. Estou trêmula, meus olhos turvos e com a sensação de que
posso desmaiar com todo esse prazer latejando em meus nervos.
Sua última estocada faz meu corpo balançar, eu aperto meus
dentes em seu pescoço quando sinto algo quente escorrendo pelas
minhas pernas. Não tenho nenhum controle dos meus gemidos
quando ele remove seu pau e deita a cabeça em minha barriga,
abraçando todo o meu corpo com seus braços grandes. Eu sinto
como se tivesse sido atropelada, mas todo esse cansaço físico vale
a pena enquanto o prazer ainda domina todo o meu corpo.
— Você está rindo de um jeito safado. — Ele fala, apoiando
seu queixo em um dos meus seios.
— Você me deixa muito viciada em sexo. — Eu respiro fundo,
afastando meus cabelos bagunçados das minhas bochechas.
— Essa é uma notícia maravilhosa. — Ele se inclina, beijando
meus lábios. — Porque vamos ter muito tempo para fazer isso na
nossa viagem.
— Que viagem? — Eu levanto minha cabeça do travesseiro.
— Algo chamado lua de mel, conhece? — Ele debocha,
deitando do outro lado da cama e me puxando para um abraço tão
apertado que perco o fôlego.
— Você está falando sério? — Eu sussurro.
— Muito sério. — Ele esfrega seu rosto contra o meu, eu
gemo quando sua mão aperta minha bunda, me causando arrepios.
— Nós vamos ao amanhecer.
— Podemos levar os gatinhos e o Páris? — Seguro seu
queixo.
— Podemos. — Ele bate os cílios de um jeito amável.
— Para onde nós vamos? — Eu me apresso em perguntar.
— Isso é um mistério. — Ele vira o rosto para não me olhar.
— Mas agora você pode dormir e sonhar comigo entre suas pernas.
Ele cochicha, mordiscando meu lábio. Eu gemo quando uma
dor prazerosa lateja em meu corpo.
— Eu realmente preciso dormir, minhas pernas estão doendo.
— Descanso minha mão em seu peito.
— Durma o quanto quiser, meu amor. Nós vamos ficar bem
agora. — Ele beija minha testa, me fazendo ficar com as pernas ao
redor da sua cintura, até que ele caminha com nós dois até o
banheiro. Eu realmente adormeço, pois não sinto ele me banhando,
apenas o som dos seus beijos em minhas costas antes de tudo
sumir novamente.
32. O LEÃO NA GAIOLA
“Este é um privilégio da solidão: pode a gente fazer o que
bem nos parece.
Pode-se até chorar, se ninguém está olhando.”
— VIRGINIA WOOLF.

Eu pensei que estava livre dos meus pesadelos depois de


tantas coisas acontecendo na minha vida. Mas não estou, sei disso
porque acordo com o vento batendo em meu rosto. Estou deitada no
meio de um deck de madeira, os passarinhos cantam cheios de
liberdade e a figura de Nikoleta está deitada sob um tronco de
árvore, acima de águas verdes.
— Você veio partir meu coração novamente ou veio para
ficar? — Sussurro, ganhando sua atenção.
Seu rosto estava voltado para o céu azul, mas agora ela me
observa dos pés à cabeça, sorrindo de lado.
— Você nunca me disse se acredita em outras vidas. — Sua
pergunta não faz o menor sentido na minha cabeça. — Se acredita
que em outro universo as coisas foram diferentes.
— Eu só acredito no que é palpável, no que consigo ver com
meus próprios olhos e que pode me trazer segurança. — Falo com
receio, vendo ela se erguer no tronco da árvore e caminhar até onde
eu estou.
Eu sinto frio, muito frio quando vejo seus olhos, exatamente
os mesmos. Lágrimas de saudades queimam meus olhos, mas isso
dói tanto que não consigo colocar pra fora em um choro angustiado.
— Eu vim para dizer que é tudo culpa sua. — Ela sussurra
contra meu rosto. — Tudo é culpa sua. E não importa quantos
universos existem, nós acabamos dando errado em todos eles.
— Então você voltou a partir meu coração uma outra vez. —
Eu respiro fundo. — Eu acho que é cruel demais existir outra vida
onde podemos nos encontrar. — Eu balanço a cabeça em negação,
Nikoleta me observa cheia de um vazio assustador, não consigo
absorver nenhuma expressão do seu rosto. Não consigo alcançá-la.
— Eu espero que não exista nada, porque eu não suporto viver os
próximos dias da minha vida conformada com a ideia de que as
coisas são diferentes em outro mundo mas não nesse, não na
minha vida. — Aponto para meu peito.
— Eu não suporto viver de saudades, mágoa e
arrependimento. Eu não suporto viver com esse coração partido por
você, por razões que eu desconheço. — Tremo. — Você não me
deixou nada, nenhuma resposta, nenhuma explicação, nada! —
Grito em seu rosto, mas ela não se abala, ela não faz nada porque
não existe mais.
— Você apenas partiu meu coração e destruiu tudo que a
gente tinha. — Soluço, observando cada traço do seu rosto vazio. —
Como você pode fazer isso comigo? Não éramos amigas de
verdade? Como pode sequer pensar em tentar me matar daquele
jeito? Tudo que eu fiz foi amar você!
— Sua grande vadia, eu te odeio tanto! Como você pode me
colocar nessa situação? Eu tive que matar você com minhas
próprias mãos apenas porque você me deixou com medo demais,
porque eu estava morrendo em seus braços quando sempre disse
que queria viver. Eu queria viver, Nikoleta. Viver. Veja o pesadelo em
que estou agora por sua causa! Isso não é vida! Não consigo viver
depois disso! — Meu gemido se torna forte e sufocante.
Ela não faz nada. Ela continua parada como uma criatura
existente, como uma projeção da minha cabeça doente.
— Eu gostaria de perder a memória, de esquecer o seu rosto
e todas as coisas que vivemos. — Tento empurrar seu corpo, mas
tudo desaparece. — Você nem está aqui de verdade para olhar na
minha cara e ouvir da minha boca que me causou tanta dor, mas
tanta dor, que eu prefiro bater a cabeça e esquecer de tudo.
Absolutamente tudo. Eu estou falando com a porra de um fantasma
porque você me deixou louca!
— Eu estou louca por sua causa! — Choramingo. — Eu
quero me matar toda vez que sinto sua falta, toda vez que choro
porque ainda amo você e só queria voltar para aquela época!

— Eu estou louca! — Atiro a cabeça de um lado para o outro,


minha garganta está doendo com todos os meus gritos angustiados.
— Você me deixou louca! — Choro mais alto, me contorcendo.
— Você não está louca, meu amor. — Sinto dedos suaves
tocando minhas bochechas molhadas. Eu abro meus olhos,
soluçando sem fôlego. Kalon está me olhando cheio de tristeza,
seus lábios até mesmo se repuxam para baixo quando ele segura
minha mão e leva para seu rosto. — Você não está louca. — Ele
repete, afastando meus cabelos úmidos e enxugando minhas
lágrimas.
— Foi um pesadelo? — Sussurro trêmula.
— Foi um pesadelo. — Ele balança a cabeça em
concordância, beijando minha palma e fechando os olhos. — Eu
estava aqui o tempo inteiro, eu sou a prova de que você não é
louca. — Ele fala baixinho, como uma oração ou uma promessa
cheia de confiança. — Você é a pessoa mais forte e perfeita que eu
conheço.
Algo doloroso esmaga o meu peito. Eu sufoco, ficando
sentada e jogando meu corpo por cima do seu, eu preciso apenas
de um abraço para tirar todos os resquícios desse pesadelo. Minhas
mãos agarram seus ombros com força e ele deixa inúmeros beijos
na minha pele.
— Eu assustei você? — Questiono, apertando seu corpo
contra o meu para sentir a segurança de que não estou presa em
outro pesadelo, que o alívio e conforto é real e não pode acabar.
— Claro que não. Está tudo bem. — Ele balança a cabeça
em negação, tocando minhas bochechas e em seguida apontando
ao redor. — Você não notou nada diferente?
Apenas agora consigo olhar ao redor, nosso quarto está
muito diferente e eu estou vestida. Faço uma expressão confusa,
pulando da cama e sendo sustentada pelas mãos dele.
O quarto está balançando, primeiro eu faço uma careta
chorosa pensando que estou em outro pesadelo, mas Kalon apenas
acaricia meus cabelos e não se transforma em nenhuma figura
assustadora.
— Você também está sentido isso ou nosso quarto está
assombrado? — Eu aperto seus dedos.
— Eu também estou sentindo isso. — Ele solta uma
gargalhada. — Nós estamos em um iate, por isso está balançando.
— Ele explica, caminhando até às cortinas que se abrem com o
movimento das suas mãos ao puxar a persiana. — Veja, estamos
navegando.
Realmente estamos navegando. Alívio instantâneo sobe por
meu corpo e logo é substituído por enjôo, o iate está balançando
demais e eu estou desacostumada. Eu faço uma careta, olhando
para meu conjunto branco de camiseta e short.
— Foi você quem me vestiu? — Levanto uma sobrancelha.
— Sim, eu escolhi o que iria favorecer sua bunda gostosa. —
Ele pisca, caminhando para o outro lado do quarto onde os raios de
sol iluminam seus olhos perfeitos. — Você se sente bem agora?
Quer que eu ligue para alguém?
Ele oferece enquanto me observa cheio de preocupação. Eu
penso nas minhas irmãs, estou morta de saudades delas e meu
coração dói só de pensar. Preciso falar com elas mas ainda não
tenho coragem para reunir meus pensamentos e dizer tudo que vem
acontecendo.
— Não, os pesadelos acontecem com frequência. Eu já estou
acostumada. — Eu balanço a cabeça, caminhando em sua direção
quando ele abre os braços para me envolver. — Para onde estamos
navegando?
— Para a terra do nunca. — Ele brinca, juntando as
sobrancelhas de um jeito engraçadinho.
— Me responda com seriedade. — Eu balanço seu corpo.
— É uma surpresa, você vai saber quando chegarmos. — Ele
estala a língua e entrelaça nossos dedos. — Páris está com
saudades sua, ele ficou o tempo inteiro deitado ao seu lado e só
saiu porque eu coloquei comida para ele lá na cozinha.
— Ah, eu estou com muita fome. — Eu falo, usando esse fato
como uma desculpa para sair desse quarto e me esquecer do
pesadelo assustador que ainda parece me perseguir quando estou
acordada.
— Vamos comer, esse é um bom momento para você
conhecer a terceira pessoa mais importante da minha vida. — Ele
pisca, aumentando minha curiosidade.
Quando Kalon abre a porta e me guia pelas escadas, eu
percebo que estamos no último andar desse iate. Ele não é enorme,
mas definitivamente é um tipo luxuoso de cair o queixo. O vento
bate forte em meu rosto e eu agarro seu braço quando me sinto
tonta demais para olhar ao redor por mais de alguns segundos.
— Kalon, nós estamos navegando perto da ponte do Bósforo.
— Eu sussurro. Esse é o estreito que separa a parte Asiática de
Istambul da parte Europeia.
— Isso mesmo. — Ele balança a cabeça em concordância. —
Esse estreito é usado para a passagem de navios russos de
petróleo, mas também onde pessoas do mundo inteiro navegam
para conhecer a cidade do amor. — Ele pisca, me fazendo suspirar
com todo o esplendor dessa ponte há quilômetros de distância, mas
ela é tão alta e espaçosa que conseguimos ver a distância.
Estou chocada que estamos em solo turco, mas
principalmente com a beleza de todo esse lugar. Porra, isso aqui é o
Mar Negro e o lugar mais lindo que já coloquei meus olhos. As duas
passagens separam a Europa e a Ásia e também ligam o Mar Negro
ao Mediterrâneo e aos oceanos.
— Como você se sente? — Ele pergunta, erguendo uma
sobrancelha.
— Como se estivesse no mundo inteiro. — Eu solto uma
gargalhada.
— Porque você realmente está. — Ele balança a cabeça em
concordância. — A mulher mais linda a colocar os pés em dois
continentes ao mesmo tempo.
Novamente o meu peito se enche de surpresa ao perceber
que não estamos em Atenas, a ficha ainda não caiu de que tudo que
meus olhos enxergam é um mundo completamente diferente. Onde
as águas balançam cheias de agitação e as aves fazem um barulho
libertador ao redor do mar. O vento frio bate em minha pele e eu me
sinto livre. Pela primeira vez eu não estou em Atenas, onde tenho a
impressão de que todos os meus demônios ficaram. Não. Eu estou
entre dois continentes, navegando como se o mundo fosse feito
para ser visto por meus olhos, e tudo que eu vejo é a cidade do
amor. Não Paris, não Grécia e suas ilhas divinas, mas Istambul.
Minha paixão à primeira vista.
— Nosso novo lar. — Ele sussurra.
Eu encaro seu rosto me perguntando se posso ficar mais
surpresa do que isso. Eu realmente vou infartar com tanta coisa
absurda que ele fala, esse pensamento me arranca uma
gargalhada.
— Você está brincando, não é? — Questiono quando
voltamos a andar.
— Não, eu realmente falo sério. — Ele balança a cabeça. —
Istambul, toda essa cidade e a fascinação em seus olhos, esse era
o assunto que eu estava conversando com Kol no meu escritório. —
Eu olho para seu rosto. — Até agora apenas ele sabe, e eu pedi
para que ele não contasse a ninguém porque quero que seja uma
surpresa. — Ele diz. — Também porque quero que sua nova vida
não seja incomodada por ninguém, aqui ninguém vai saber qual o
mercado que você gosta de ir para fazer compras, qual bar você
gosta de beber no final de semana, quais são seus novos amigos
que tem uma vida normal e qual faculdade você está fazendo.
Eu estou sem fôlego. Minha visão está turva enquanto
compreendo cada palavra que ele está dizendo. Ele descreve uma
vida normal como se eu já estivesse a vivendo, como se o idioma
desse país que aprendi ainda pequena tivesse servido para esse
momento, para essa vida que ele acabou de descrever.
— Mas e a nossa família? — Eu sussurro muito baixo porque
tenho medo de qualquer movimento brusco desate em um desastre,
como se todo o momento se rasgue em pedaços e eu perceba que
é a porra de um sonho.
— Suas irmãs virão visitar você no momento em que disser
que precisa delas. — Ele balança a cabeça com firmeza. — Atenas
fica em algum lugar depois desse mar, minha alma. Nada é
impossível quando se trata da sua felicidade. — Ele aponta para
todo o caminho de águas atrás de nós que ainda tem as marcas
suaves enquanto o iate se movimenta.
Entramos na cozinha, meu coração ainda está batendo
desenfreado. Meu corpo está tão leve que eu sinto que estou
flutuando. Páris vem latindo em minha direção, mas eu estou tão
submersa nesse sentimento em meu peito que nem consigo fazer
alguma coisa além de acariciar seu focinho.
— Então essa é a jovem com quem você se casou? — Eu
caminho para perto de Kalon quando uma mulher surge na nossa
frente. Ela segura uma vasilha de plástico em mãos. Seus cabelos
tem alguns fios brancos e seus olhos são azuis, muito azuis, o que
combina tão bem com sua pele morena.
— Seyma, essa é Arcane Somáli. — Kalon me apresenta. Eu
olho para seu rosto surpresa com seu sobrenome acompanhando o
meu.
— Mashallah. Muito prazer. — A mulher caminha em minha
direção, suas mãos frias apertam minhas bochechas e eu aproximo
meu rosto para receber um beijo gentil. — Como vai você?
— É um prazer, Seyma. Eu estou bem. — Eu aperto seus
dedos nos meus e ela me puxa para sentar.
Kalon caminha em silêncio até a bancada, pegando um copo
com água e assobiando enquanto toca uma música na rádio que
Seyma está ouvindo. Certo, esse lugar é tão aconchegante que eu
me sinto em um sonho. Me pego cruzando os dedos e implorando
para que não seja mais uma invenção da minha cabeça conturbada.
— Você deve estar se perguntando quem eu sou. — Ela
pisca. — Eu sou amiga de Atena há muitos anos, mas nos
afastamos depois que ela se casou e teve tantos filhos. — Ela
explica, apontando para Kalon e fazendo uma careta engraçada.
— Ela é a minha madrinha. — Kalon coloca as mãos no
ombro da mulher. — Minha tia, minha segunda mãe, meu tudo, até
minha avó ela é.
— Deixe de ser inconveniente. — Ele recebe um tapa por
isso.
— Vovó? Como pode fazer isso com seu netinho? — Eu dou
risada quando ele leva a mão aos lábios e finge uma careta super
dramática, como se estivesse em choque.
— Ela não tem idade para ser sua avó. — Eu balanço a
cabeça em negação.
Embora ela pareça ser mais velha que Atena, é mais fácil
acreditar na parte em que ele disse que ela é sua tia. As duas
parecem muito irmãs e Seyma parece a mais velha.
— Não sei porquê você diz que mamãe é sua amiga quando
vocês têm o mesmo sangue. — Kalon balança a cabeça, dando as
costas para nós e sumindo atrás da bancada ao se abaixar para
pegar alguma coisa.
— Então eu pensei certo. — Respondo. — Você parece muito
com Atena.
— Sim, nós somos irmãs… — Ela parece perdida em
pensamentos. — Mas isso mudou depois que ela se casou com
aquele homem engravatado. Toda sua linhagem foi apagada, ela
agora é uma nova pessoa. — Ela estala a língua. — Uma madame.
— Mas ela nunca proibiu você de conhecer seus sobrinhos.
— Kalon caminha até nós, mordendo uma maçã. — De participar da
vida dela como antes. — Ele respira fundo, sentado ao seu lado e
deixando um beijo estalado em suas bochechas. — Inclusive, eu
agradeço muito por você ter aceitado o meu convite para subir
nesse iate e conhecer minha esposa.
— Eu fiquei mais feliz com a surpresa de que depois de tanto
tempo vocês decidiram se reconectar com essa cidade. — Ela
balança a mão. — Você sabe, sua mãe nasceu e cresceu aqui. É
muito lindo da sua parte estar se reconectando com suas origens.
Um sorriso largo domina os lábios de Kalon e ele me olha,
respirando fundo e balançando a cabeça em concordância.
— Você é turco? — Eu pergunto.
— Sim, meu avô se casou com uma grega e trouxe ela para
morar em Izmir. — Kalon explica. — Eles tiveram vários filhos, e
entre eles, Seyma e Atena.
— Mas me fale de você, Arcane mou. — Seyma interrompe
Kalon. — Eu estou cansada de saber da minha história. — Ela ri.
— Bom, meu avô é russo. — Eu balanço os ombros. — Meu
pai não me contou muita coisa sobre seu passado, mas tudo que sei
é que tenho origem russa. Também tenho duas irmãs, as quais
estou morrendo de saudades.
— Tudo bem, você é um vagabundo de muita sorte. — Ela dá
um tapa no ombro de Kalon.
— Realmente sou. — Ele não finge nenhuma modéstia
quando ergue o queixo. — Me casei com a Planard mais gostosa e
bonita. — Eu solto uma gargalhada boba ao ponto do meu rosto
ficar vermelho.
— Seyma, se você contar que vai ser minha vizinha eu me
mudo para cá agora mesmo. — Balanço a cabeça. — Faço qualquer
coisa para me livrar desse homem sem pregas na língua.
— Não, ela mora em outra área da cidade. — Kalon balança
a cabeça. — Mas nós vamos nos mudar para nossa mansão no final
do ano, e ela fica muito perto do mar.
Certo, eu realmente quero gritar e dar pulos como uma
adolescente que acabou de ser convidada para o baile. Estou muito
animada com a ideia de sair de Atenas, de morar em um novo lugar
e criar novas memórias. Eu desejo isso com tanto desespero que
tenho medo de morrer a qualquer momento. Eu quero a sensação
de ter uma cidade só minha, construir a minha própria vida e sonhar
com todas as possibilidades possíveis. Eu quero isso. Quero a
Turquia, quero a vista para o mar, os gatos fofos na rua, os lugares
históricos, o clima frio nessa época do ano, quero todas as
mesquitas, atravessar a ponte todo santo dia e me sentir viva. Eu
quero tudo isso imediatamente.
Essa sem dúvidas foi a melhor surpresa que alguém já me
ofereceu, eu olho para Kalon me perguntando se ele está apenas
brincando comigo, se isso é algum tipo de tortura onde recebo o que
mais quero apenas para perder cruelmente. Eu imploro a Deus
mentalmente para que não seja, porque posso morrer. Não é justo
perder uma cidade inteira, todas as fantasias que criei em tão pouco
tempo, apenas porque era uma mentira muito linda que ele me
entregou de mãos abertas.
Eu sempre sonhei em conhecer a Capadócia desde que vi
um comercial na TV pela primeira vez. Eu fiquei fascinada pela
chaminé das fadas, pelos balões e todo aquele vilarejo onde as
casas são diferentes de tudo que existe no mundo. Agora estou
diante da chance de conhecer esse país inteiro e eu vou aproveitar
cada momento.
É incrível como você pensa que morreu anos atrás quando o
pior dia da sua vida aconteceu e não teve ninguém para reerguer o
seu corpo, como você se sente sozinha e sombria por bastante
tempo que até desaprende a ser humana, mas em um belo dia,
aparece alguém que parece estar restaurando cada pedacinho seu
e transformando em novas experiências. De repente, até respirar
fundo parece a coisa mais magnífica do mundo, pois seu pulmão
fica cheio de algo pesado e barulhento que implora para sair voando
da boca pra fora.
Eu fecho meus olhos, guardando cada sensação e me
alimentando desse gosto doce que parece nunca ter fim. Porra, se
viver for realmente isso, então é bom pra caralho.
Mas ainda assim, não deixa de doer quando eu lembro de
tudo que foi necessário eu perder para conseguir estar aqui.

Não apenas pedaços da minha identidade, mas ela. Ela está


em tudo que eu tento experimentar de novo, ela me persegue como
um fantasma, me fazendo encolher de tanta tristeza e me faz
acreditar que depois que nos separamos não vale a pena viver
nada, amar nada, sentir nada, seu fantasma me faz acreditar que
não é possível eu me contentar com isso quando algo grande foi
destruído e nós duas nunca mais vamos ser como antes.
Dói, dói muito e eu me sinto doente e prestes a desabar
quando tenho a realização de que não vamos voltar a ser melhores
amigas. Ela está morta, não tem como eu sair correndo para ouvir
da sua boca tudo que ficou pela metade e entalado na garganta.
Não tem como consertar a nossa relação. Acabou de verdade. Ela
sempre vai ser a minha pessoa inconsolável, todo o amor que eu
sinto por ela está morrendo dentro do meu peito enquanto imploro
pelo que tínhamos antes de toda aquela dor. Eu a matei com minhas
próprias mãos logo quando ela estava mais viva do que nunca
dentro do meu peito.
Eu já aceitei que vou sentir a falta dela para sempre, eu juro
que vou sentir, principalmente de todas as coisas que não tivemos a
chance de viver e eu acreditei tanto que íamos, mas ainda não sei
como vou viver com esse fantasma me perseguindo para todo canto
que vou, como se o ponto final fosse apenas a loucura, a bela e
amarga loucura. Eu sinto que realmente vou enlouquecer quando
perceber que estou começando a esquecer da voz dela, das
gargalhadas em horários inapropriados e todos aqueles sonhos em
cima de uma beliche enferrujada, onde tudo que víamos era uma
pequena fresta do imenso céu noturno.
Vou ficar quebrada em dobro quando perceber que vou
esquecer de momentos importantes juntos, mas ainda assim não
vou esquecer da parte mais dolorosa que é o fato dela estar morta.
Em momentos assim eu gostaria de arrancar a minha cabeça,
remover todos os resquícios, todo pequeno traço da existência de
Nikoleta até que não sobre absolutamente nada. Nada para chorar,
nada para sentir falta, nada para enlouquecer. Que vida miserável é
essa? Amar tanto uma pessoa e sentir tanto a falta dela, sentir tanta
dor por causa dela ao ponto de implorar pelo esquecimento.

Eu percebo que estou afogada em meus pensamentos


quando sinto que a mão de Kalon aperta as minhas. Eu pisco,
olhando para seu rosto. Eu me pergunto se vou ser para sempre
uma pessoa atormentada de espírito, que não pode apenas sentar e
aproveitar o momento porque está constantemente pensando em
tudo, ruminando os acontecimentos dolorosos da sua vida e se
convencendo de que está morta. Profundamente morta e quebrada.
Até quando vou precisar ser segurada como uma criancinha apenas
para não sucumbir no primeiro passo que tento dar sozinha?
— Me desculpe, eu não estava ouvindo. — Minha voz sai em
um tom desesperado.
— Tudo bem, eu posso repetir quantas vezes você quiser. —
Kalon bate os cílios e aponta para Seyma. — Ela estava dizendo
que hoje vamos apenas aproveitar o dia e que o almoço é por conta
dela.
— Eu não estava dizendo isso. — Ela ergue uma colher de
pau para bater no braço dele. Meus lábios se repuxam para baixo.
— Eu disse que vou preparar uma sobremesa deliciosa enquanto o
iate não chega no porto, é lá onde vocês vão comer de verdade.
— Vai demorar muito? — Eu pergunto, olhando para Kalon.
— Quero tanto ligar para minhas irmãs e ouvir a voz delas quando
chegar em terra firme.
— Não se preocupe, você vai sim. — Kalon aperta minha
mão e leva até seus lábios para deixar beijos. — Nós fizemos uma
pequena parada apenas para eu mostrar uma coisa a você.
Ele aponta para as portas de vidro abertas onde uma brisa
gostosa entra e bagunça meus cabelos. Eu dou risada, ela sai fraca
e anestesiada. Eu acho que para alguém que passou sua vida
aprisionada em um lugar sombrio, qualquer acontecimento natural
será considerado uma surpresa, uma coisa de outro mundo, um
milagre grande.
— O que você quer me mostrar? — Pergunto, não
conseguindo ignorar a ansiedade que domina os meus nervos.
Eu estou faminta para me alimentar de qualquer coisa incrível
que ele consegue me mostrar. Coisas simples, mas que são únicas
e me fazem enxergar o mundo por uma nova perspectiva.
— O oceano. — Ele responde, me pegando pelas pernas e
me jogando por cima do ombro. Eu tento me segurar, mas estou
definitivamente de cabeça para baixo e com medo de cair de cara
no chão.
Seyma solta uma gargalhada muito divertida enquanto acena
para nós, Kalon continua andando até que eu não consigo enxergar
nada além das paredes brancas do iate. Ele respira fundo, me
colocando em pé.
— Nós vamos mergulhar. — ele explica, apontando para o
equipamento de mergulho ao nosso lado. — Isso é, se você quiser
essa experiência maravilhosa dentro de dois continentes ao mesmo
tempo.
— Claro que eu quero. — Dou risada. — Eu jamais vou
desperdiçar qualquer oportunidade de viver alguma coisa pela
primeira vez. — Me apresso em abaixar meu short e levanto os
braços para tirar minha blusa.
Quando estou nua, usando apenas peças íntimas, percebo
Kalon ainda me assistindo em silêncio, inspecionando cada pedaço
do meu corpo como se estivesse me devorando.
— Eu devo ser a única pessoa na face da terra a mergulhar
usando uma lingerie. — Todo meu corpo pulsa, ainda sensível de
tudo que fizemos recentemente. — Estou me sentindo uma grande
vadia.
— Ah, então eu adoro essa visão de vadia gostosa. — Ele
ergue uma sobrancelha, analisando as minhas pernas. —
Principalmente as marcas em sua bunda.
Eu fico perplexa e viro meu rosto. Merda, eu estou com
marcas do nosso sexo selvagem. Não é nada exagerado e forte,
mas estou com marcas visíveis dos seus tapas e mordidas.
— Você não vai tirar sua roupa também? — Eu caminho em
sua direção, descanso minhas mãos em sua camisa e puxando-o
lentamente para mais perto. — Eu espero que seu corpo esteja mil
vezes pior.
— Acredite, Seyma ficou muito envergonhada quando eu
expliquei que as marcas em meu pescoço eram chupões. — Ele
confessa da forma mais descarada possível, simples assim. Meu
rosto pulsa de vergonha e eu preciso balançar a cabeça para me
controlar.
— Tudo que você tem de gostoso é o equivalente a tudo que
te falta de vergonha na cara. — Repreendo quando sinto suas mãos
em cada lado da minha cintura.
— Não, você é apenas um tipo raríssimo de tímida-gostosa
com complexo de deusa. — Ele estala a língua e desvia o rosto de
forma exagerada quando finjo morder seu queixo.
— Você é tão divertido que às vezes eu esqueço que temos
uma imensa diferença de idade. — Balanço a cabeça em negação.
— Sério, existem terapeutas que pagariam horrores para estudar
seu cérebro e essa sua personalidade incomum.
— Não me trate como se eu fosse um alienígena, Arcane. —
Ele faz uma carranca. — Eu li em um dos seus livros que ser jovem
é um estado de espírito, parte da nossa personalidade, então eu sou
muito, muito jovem.
— Você já conseguiu levar alguma mulher pra cama com
esse tipo de lábia? — Aponto o dedo em sua direção, sem
conseguir segurar minhas gargalhadas. — Eu pensava que apenas
o Ajax era o tipo de cara que faz uma mulher rir e depois estão
pelados na cama, mas pelo visto isso é uma coisa comum em todos
os homens dessa família.
— Eu nem vou perguntar como você fala disso com tanta
certeza. — Ele aponta o dedo para meu rosto. — Mas eu te conto se
a lábia funciona depois que a gente terminar aqui. — Ele ergue o
queixo de um jeito vaidoso. — Vamos lá, eu vou ajudar você a
colocar a máscara de mergulho.
Eu deixo ele me ajudar a colocar a máscara sem machucar
meus cabelos, então eu seguro o respirador quando ele ajoelha
para colocar as nadadeiras em meus pés.
— Você é muito atencioso. — Eu apoio minha mão em seu
ombro quando ele levanta minha perna.
— Estou apenas tentando ser um bom marido. — Ele ergue o
rosto para piscar de um jeito muito sexy.
Kalon é tão perfeccionista que ele passa alguns minutos
checando a nadadeira como se a possibilidade dela cair do meu pé
e afundar no mar pudesse provocar a minha morte.
— Você tem certeza que colocou direito? — Faço graça
quando ela libera meus pés, mas ele fica sério e encara isso como a
chance de analisar todo o equipamento, desde a máscara até o
respirador. — Kalon, eu acho que está tudo certo.
— Sim, você está certa. — Ele fica em pé, fazendo sinal
positivo e sentando para se preparar. — Estou pronto.
Porra, como ele pode passar minutos analisando o meu
equipamento e em menos de cinco minutos ficar em pé para ir? Ele
estende a mão, eu aceito e caminho para mais perto da borda do
iate.
— No três? — Ele me olha, eu balanço a cabeça em
concordância. — Ok. Um, do… — Não dou tempo para ele terminar
de contar, eu simplesmente empurro seu corpo na água e pulo logo
atrás sentindo meu corpo vibrando com a adrenalina da água gelada
me envolvendo.
Balanço minhas mãos, soltando risadas exageradas quando
Kalon submerge soltando inúmeros palavrões.
— Você é a mulher mais louca que eu já conheci. — Ele
balança a cabeça. Eu nado em sua direção, respirando ofegante e
segurando os dois lados do seu rosto.
— Foi muito divertido ver o seu corpo tombando. — Debocho,
ajudando ele com o respirador e ele faz a mesma coisa comigo.
Kalon aponta para mergulharmos juntos, eu seguro sua mão
e faço isso, sentindo a água acolher meu corpo quando vamos para
o fundo. Kalon é um ótimo nadador, não sei porque me surpreendo
com o fato dele ser bom em tudo, mas a visão do seu corpo em
movimento na água me causa uma sensação eletrizante de
liberdade e satisfação. Eu o acompanho, parando algumas vezes
para ver o cardume de peixes fugindo dele. Isso me diverte muito,
gostaria de ter uma câmera para fotografar toda a beleza que o
fundo dessas águas proporciona.
Eu me sinto como se fizesse parte de tudo, como se a vida
do mundo inteiro estivesse dentro de mim, como se nada fosse
impossível enquanto eu estiver dentro dessas águas que me
acolhem como uma mãe protetora. Eu balanço meu corpo, nadando
na frente de Kalon, ele segue por trás e puxa minha cintura de um
jeito brincalhão.
Eu tento chutar seu tronco, mas ele desvia e empurra minha
cabeça para baixo, bagunçando os meus cabelos e me fazendo ficar
no meio do cardume agitado. Os peixes fazem cócegas, eu
provavelmente estaria gritando se pudesse respirar, tocar neles é
uma sensação tão esquisita e molenga que eu bato meu corpo
contra o de Kalon.
Eles fazem muitas cócegas, e quando se torna mais fácil
nadar até o outro lado, Kalon segura meus dedos e mantém meu
corpo perto do seu. Ele remove o respirador e a máscara, me dando
uma visão bonita dos seus traços suaves e olhos verdes. Eu
também tiro a máscara e o respirador porque preciso muito beijar
sua boca. Quando meus lábios se chocam com os seus, eu percebo
que o oxigênio não importa porra nenhuma enquanto sua boca
estiver por perto.
Nós nos afastamos e meu coração bate rápido, não por falta
de ar, mas por causa dele, por causa de tudo que ele significa e se
tornou na minha vida. Kalon segura meu rosto com cuidado, me
olhando como se pudesse ficar debaixo d'água por horas. A visão
turva do seu rosto é a melhor coisa que eu poderia enxergar nesse
momento, porque eu sinto como se tivesse acabado de acordar de
um coma e percebesse a realidade ao meu redor. Eu sinto como se
estivesse existindo de verdade, onde todos os dias são prazerosos
e a tristeza não vai me dominar por muito tempo. Eu posso até ficar
triste, mas Kalon consegue expulsar isso apenas agindo
naturalmente, sendo ele mesmo.

Não sei quanto tempo ficamos debaixo d'água apenas


olhando um para o outro, tocando o rosto ou o corpo um do outro,
buscando por esse contato sufocante debaixo d'água, mas ele
finalmente me puxa para a superfície. Meu corpo treme e eu inclino
a cabeça para o alto recobrando todo o fôlego perdido. Eu respiro
como uma pessoa que acabou de acordar de um coma, como se
todos os meus ossos estivessem intactos depois de uma batalha
sangrenta, porque bate a realização de que estamos vivos. Vivos de
verdade, mesmo que com alguns machucados, mas vivos. É assim
que ele está me olhando, como se compartilhasse dos meus
pensamentos e sentimentos.
Não consigo distinguir se estou tremendo de frio ou por causa
dele, mas fecho os olhos enquanto tento processar e sentir cada
gota desse sentimento dominando o meu íntimo. Kalon fecha os
olhos, seu corpo balança junto com a água e seu peito desnudo se
ergue para o alto quando ele flutua tão leve e calmo que eu não faço
outra coisa senão assistir.
— Você conhece algum lugar mais bonito do que esse? —
Ele pergunta de olhos fechados. Um sorriso dança em minha boca,
eu observo cada detalhe dos seus braços balançando na água e
sua pele branca sendo banhada pelo sol. Porra, eu conheço sim.
Eu não falo nada, permaneço em silêncio e girando meu
corpo ao redor do seu quando começamos a nos distanciar, sendo
levados pelo balançar suave.
— Você ainda está aí? — Ele abre os olhos para me ver.
— Eu estou. — Falo baixo, balançando a cabeça. — Quando
eu era pequena vi em um comercial que a Capadócia é o lugar mais
lindo do mundo.
— Eu concordo. — Ele volta a fechar os olhos. — Tudo na
Turquia é lindo e perfeito, mas nada se compara a casa em que
vamos morar.
Ansiedade se revira em meu peito apenas por ouvir isso. Eu
gemo, desejando como alguém faminto para conhecer logo cada
detalhe, mas não apenas isso, também quero viver tudo que ele fala
com tanta crença.
— Para onde você vai quando fica tão quieta? — Kalon
sussurra de olhos fechados. — Eu me pergunto se é algum lugar
melhor do que esse, algum lugar mais real, que você ama e deseja.
— Ele abre os olhos e sou consumida pela intensidade do seu olhar.
— É algum lugar onde você tem tudo que eu não consigo dar? Onde
eu não estou destruindo sua vida?
Sua pergunta me surpreende tanto que eu não consigo
formar palavras nos primeiros segundos, apenas encaro seu rosto, o
olhar pesado e cheio de temor, como se a resposta pudesse matá-
lo.
— Minha vida já estava destruída antes da gente se
conhecer, Kalon. — Eu balanço a cabeça.
— Eu sei. — Ele volta a fechar os olhos depois dessas curtas
palavras que saíram em um sussurro trêmulo. — O que eu não sei é
se esses momentos ao seu lado são apenas algum tipo de tortura e
ilusão. — Ele explica. — Se você está apenas fingindo, se você
esconde seus espinhos de mim mais do que eu percebo que
esconde, se você vai continuar sem confiar em mim até o fim dos
tempos.
— Eu não sei. — Falo baixo, de repente não sinto vontade de
continuar na água. — Na verdade, eu não consigo pensar nisso
porque só consigo enxergar que não queria esse casamento. —
Encaro seu rosto, sendo afetada por sua expressão séria. — Não
consigo pensar em encontrar um espaço para confiar em você ou
compartilhar meus pedaços porque estou cheia desse sentimento
de que decidiram esse casamento por mim. — Confesso, tomando
fôlego.
Kalon muda sua posição e balança a cabeça em
concordância. Seu olhar cai dos meus olhos, não consigo saber o
que ele está pensando e isso me incomoda.
— Eu entendo, e pensando bem, não precisamos continuar
esse assunto pois eu já sei a resposta. — Ele morde o canto dos
lábios de um jeito tristonho e balança a cabeça profundamente em
concordância antes de me dar as costas. — Você sempre vai me
odiar. — Ele fala por cima do ombro quando toma impulso para sair
da água e subir no iate.
Algo vazio e doloroso invade todo o meu corpo quando ele
some. Agora a água está tão gelada que eu começo a tremer, então
subo de volta ao iate e caminho para algum lugar seguro onde eu
posso sentar e fazer de conta que sua reação às minhas palavras
não me deixaram transtornada, e acima disso, eu quero fingir que
não foram palavras fracas porque já não é nisso que eu quero
acreditar.
Quero fingir que a minha raiva e mágoa não estão sumindo e
que eu não estou começando a enxergar as coisas de outra forma,
quero fingir que não sei que a minha boca só disse essas palavras
porque meu coração está batendo forte para dizer uma coisa
diferente, uma coisa que eu nem entendo o que é, mas tudo em
mim dói para descobrir.
Eu quero fingir que nada mudou, mesmo quando é evidente
que tudo está diferente em minha vida há muito tempo.
33. REFÉM
“Nós todos somos fantasmas. Estamos
mortos há muito tempo.”
— VIRGINIA WOOLF.

Arcane amou nossa nova casa, mesmo que a gente não


tenha conversado muito depois do iate, eu consigo ver o encanto
em seus olhos quando inspeciona cada detalhe da nossa mansão.
Nosso bairro é literalmente na beira do mar, onde tudo que nos
separa é uma calçada que fica depois do jardim principal que leva
até o iate ancorado.
Toda a vista é linda, não apenas do mar, mas da cidade
depois dele. Essa tranquilidade que nos consome é quase como a
mão divina segurando nossos corações. A forma mais rápida de
chegar ao centro movimentado de Istambul é atravessando o mar
de barco ou de balsa, e a forma mais demorada é indo de carro,
dirigindo pelos bairros atrás de nós e atravessando a enorme ponte
do Bósforo, toda a demora vale a pena quando somos
compensados pela vista linda.
Nós vivemos em um bairro nobre para famosos e bilionários,
então nossos primeiros dias foram tranquilos, mas solitários. Eu me
distanciei de Arcane para que ela pudesse se encontrar, descobrir
os seus gostos e fazer as coisas que tanto desejou mas era
proibido. Durante o dia, ela sempre sai de casa com Páris, seguindo
pelo caminho mais demorado. Ela se encontra regularmente com
Seyma e até conheceu o seu marido. Eles não têm filhos.
Eu afundo no trabalho e me concentro em ignorar as ligações
de Rajá, não quero falar com ele depois que descobri o que ele fez
com Azra. Eu passei anos da minha vida me culpando por uma
coisa que não fiz, enquanto ele sabia de tudo e nunca me amou ao
ponto de assumir toda a verdade. Ele abandonou seus sentimentos
por mim, fez de conta que seus princípios e sua vida medíocre eram
mais importantes do que o relacionamento que tínhamos. Eu não
quero ver ele na minha frente. Sinto vontade de matá-lo ao saber
que Arcane está sendo ameaçada de morte por causa do que ele
fez com Azra. Não eu, mas meu irmão, meu próprio sangue. Ainda
não sei como olhar nos olhos de Arcane e falar a verdade, falar que
ela está sendo ameaçada de morte por culpa minha, que ela nunca
entrou na minha família para proteger mamãe, mas sim para ser
protegida.

Eu saio dos meus pensamentos e encaro meu relógio no


pulso, já é tarde da noite e Arcane ainda não voltou. Ela tinha me
dito que ia sair para comprar livros em uma biblioteca que fica em
um bairro perto do nosso. Eu fiquei tranquilo porque conheço o
lugar, porque conheço toda essa cidade como a palma da minha
mão e ninguém sabe onde estamos. Esse é um lugar seguro, nós
não temos inimigos na Turquia, todas as máfias são aliadas e
protegem os Somáli como se fossemos da família.
Me ergo da poltrona, abandonando meu terceiro livro da
Virginia Woolf que trouxe na nossa mala. Pego meu telefone para
ligar para Arcane, mas é o momento exato que tocam a campainha.
Alívio sobe em minha coluna e eu sigo até a porta. Quando eu abro,
fico petrificado porque não é ela. Tudo que tem na porta é uma
caixa escorrendo um líquido vermelho.
Eu me abaixo para abrir, mantendo minha postura
inexpressiva quando vejo a cabeça de um cordeiro, seus pêlos
brancos manchados de sangue e os olhos sem vida. A cabeça de
um cordeiro morto e um bilhete em um envelope preto.

Eu sei onde vocês estão, então você devia se preparar,


grande herói. O tempo está passando e eu vou pegá-la de você. Tic-
tac.

— Nem mesmo morto. — Eu sibilo, me erguendo quando


fúria fria agride minha pele e eu chuto a porra da caixa. Fico quieto,
sombriamente silencioso enquanto analiso o papel e o sangue
manchando.
Inúmeros pensamentos cruzam em minha cabeça, minha
vontade é queimar toda essa casa e encontrar um novo lugar onde
nem mesmo o diabo pode nos alcançar. Eu não consigo
compreender como fomos descobertos sendo que a única pessoa
que sabe sobre nossa viagem é o Kol. Eu quero enfrentá-lo, mas
meu corpo é empurrado para frente quando começo a caminhar
pela rua escura em busca de Arcane.
Qualquer coisa que eu tiver que fazer, farei apenas depois
que ela estiver comigo e debaixo da minha proteção.
Eu chego na livraria o mais rápido que consigo, suas luzes
estão apagadas, o que indica que ela já saiu daqui e deve estar em
algum lugar das redondezas. São dez horas da noite, ela tem que
estar por aqui.
— Arcane? — Grito, olhando ao redor. — Páris? — Grito
mais alto, buscando algum som do seu cachorrinho agitado e bobo.
Não ouço nada, eu tomo um fôlego profundo antes de
continuar andando e seguindo pelo mesmo caminho que ela
aprendeu a fazer todos os dias em que saiu para conhecer a cidade.
Merda. Eu me odeio por ter passado os últimos dias
magoado com suas palavras enquanto deveria estar mostrando toda
a cidade ao seu lado, pelo menos estaríamos juntos agora e eu não
estaria com essa sensação de que a perdi para sempre. Estou
andando perto de uma praça quando ouço latidos. Fecho meus
olhos, me alimentando do alívio que dança em meu corpo ao
reconhecer sua risada.
— Arcane? Meu amor? — Eu a chamo, vendo ela sair de
debaixo de uma árvore.
— Kalon? O que você está fazendo aqui? — Ela tem uma
sacola em mãos e a coleira de Paris entre os dedos.
— Ah, meu Deus. Por um segundo eu fiquei totalmente louco
e cardíaco. — Eu encurto nossa distância e aperto seu corpo com
força, fechando meus olhos e sentindo seu cheiro delicioso.
— Você está bem? — Ela treme, mas não separa nossos
corpos. Pelo contrário, ela me aperta com força e une sua testa com
a minha. — Você está frio e pálido, aconteceu alguma coisa?
— Eu fiquei preocupado. — Tomo fôlego, olhando para seu
rosto e buscando qualquer traço de que algo está errado, mas ela
está bem, não tem nenhum arranhão e eu sou o único surtando. —
Você demorou para voltar e eu fiquei muito, muito preocupado.
— Eu estou bem, viu? — Ela se afasta minimamente para eu
vê-la dos pés à cabeça. — Eu demorei porque comprei uma sacola
de maçãs, kebabs e três copos de ayran.
— Três copos? — Eu junto as sobrancelhas. — Por acaso
você vai ter gêmeos do dia pra noite?
— Idiota. — Ela solta uma gargalhada boba. — Um ayran
seu, outro meu e o outro vamos dividir juntos. — Ela explica, abrindo
a sacola para eu ver tudo que tem dentro.
Meus dedos se perdem em seu sobretudo quente, eu adoro
as roupas de inverno que ela comprou para usar, são cheias de
cores.
— Você saiu sem sobretudo. — Arcane se aproxima para
arrumar o cachecol em meu pescoço. — Precisamos andar
depressa antes que você morra de frio.
— Eu estou bem, podemos andar abraçados. — Puxo seu
corpo para debaixo do meu braço.
Arcane me olha de um jeito mandão, mas não diz nada
quando começamos a andar, ela apenas sorri encarando Páris
caminhando à nossa frente com o focinho no chão.
— Kalon mou. — Ela me olha cheia de confusão.
— Arcane mou? — Eu levanto uma sobrancelha, me
divertindo com sua expressão ao perceber que estamos indo por
outro caminho.
— Esse não é o caminho de casa. — Ela aponta para a outra
rua que deveríamos seguir.
— Porque estamos prestes a ter o melhor encontro das
nossas vidas. — Eu respondo.
— Onde, exatamente? — Ela me olha. — Com essas roupas
e essa hora da noite?
— Sim, vamos sentar nas escadas mais lindas dessa cidade,
eu vou deitar a cabeça em seu colo e nós vamos comer tudo isso
que você tem na sacola. — Eu pisco, arrancando uma gargalhada
dela.
— Vamos ter o nosso encontro em escadas? — Ela me olha
feio. — Você está ficando muito mesquinho depois do casamento.
— Não são qualquer escadarias. — Eu dou risada. — Mas o
lugar onde os amantes se encontram, choram e compartilham seus
segredos mais profundos. — Arcane me olha cheia de surpresa.

Quando nós chegamos minutos depois, Arcane olha as


escadas brancas que são uma mistura de neobarroco com
modernismo, ela observa tudo enquanto tenta visualizar a história
de todas as pessoas que já sentaram aqui.
— Que lugar lindo, Kalon. — Ela suspira, observando o
tronco fino e comprido das árvores encostadas na parede, também
tem algumas plantas no meio das escadas, nas paredes de apoio.
— As escadarias de Camondo é muito famosa por levar até a
torre de Gálata. — Eu aponto para cima, que é quase impossível ver
onde as escadas terminam se não subirmos mais um pouco. — Ela
foi construída pelo judeu sefardita Abraham Salomon Camondo, ele
abriu um banco quando se mudou para cá e mandou construir as
escadas para facilitar a ida dos jovens à escola que fica lá em cima.
— Explico, me sentando ao lado de Arcane que me observa cheia
de fascínio. — O objetivo também servia para encurtar a distância
até a rua bancária e a residência da família.
— Você também sente como se tivesse nascido para essa
cidade? — Ela pergunta, me entregando o copo de ayran e abrindo
a embalagem com cuidado para não derramar.
Eu ouço essa cidade chamando meu nome, me fazendo
promessas de uma vida maravilhosa e jamais vivida antes, e isso
deixa o meu peito cheio de esperança. Meu coração pulsa
constantemente com a necessidade de viver tudo que eu conseguir,
sem pausas, sem sentir exaustão, apenas viver.
— Sim, a todo instante em que respiro fundo. — Eu tomo um
gole da minha bebida salgada.
Arcane se apressa em me entregar um kebab, seus olhos
não se desviam da vista que temos da cidade. Ficamos em silêncio,
apenas comendo e bebendo, vez ou outra assistindo ao Páris
brincar com sua maçã.
— Você está ouvindo? — Arcane fica tensa quando um
trovão clareia os céus. Ela arrasta seu corpo para perto do meu,
agarrando meu braço. — Eu acho que vai começar a chover.
— Não se preocupe. — Eu inclino meu rosto em sua direção.
— Você está segura comigo. — Entrelaço minha mão na sua.
Ela me encara como se minhas palavras fossem insuficientes
para acalmar o medo que ela tem de tempestade, então eu deito
minha cabeça em seu colo, sentindo suas mãos se perderem em
meus cabelos.
— Assim está melhor? — Eu questiono.
— Está sim. — Ela acaricia meu rosto lentamente, eu fecho
os olhos quando sinto seus dedos em meus lábios, em meu queixo,
em minhas pálpebras. — Até quando nós vamos continuar vivendo
assim?
— Como? — Eu abro os olhos, virando meu rosto para
encarar seus olhos.
— Incomunicáveis. — Ela explica. — Você me olha como se
tivesse inúmeras coisas para dizer, mas prefere continuar calado.
— Você também me olha do mesmo jeito, Arcane, e eu
entendo porquê. — Eu viro o rosto. — O ponto é que as coisas entre
nós podem mudar, isso pode acontecer, mas parece que tudo
continua do mesmo jeito. — Faço uma pausa. — Nós vamos
permanecer onde estamos mesmo depois de todas as palavras que
podem ser ditas. — Eu seguro seus dedos nos meus para acariciar
devagar.
Ela não tem a obrigação de me dar seus pensamentos depois
de eu tê-la forçado a esse casamento. Ela está infeliz por minha
causa. Mesmo que estejamos em um país novo, experimentando
coisas pela primeira vez, em algum momento isso vai ser
insuficiente e ela vai voltar a ficar triste, sombria e quebrada. Eu
tenho medo que isso aconteça logo porque não me sinto capaz de
lutar por ela, não me sinto digno.
— Eu não matei Azra. — Eu falo porque existe um monstro
em meu peito que implora para que eu explique quem
verdadeiramente sou. Eu quero que ela me enxergue. — Sim, eu
sou a porra de um psicopata louco, mas eu não matei ela.
Seus dedos param de acariciar meu rosto, eu levanto a
cabeça para encarar seus olhos de frente, ela engole em seco e
balança a cabeça em concordância.
— Mesmo que você tenha matado ela, a sua bondade é um
fato inegociável. — Ela segura minha mão. — Quando o assunto for
sua humanidade, eu estou mais disposta a acreditar na versão que
sair da sua boca do que as coisas que os outros dizem a seu
respeito. — Ela balança a cabeça. — Eu não me importo quando
eles dizem que você é louco, eu confesso que senti medo no
começo e fiquei chocada, mas para mim não importa quem você é,
importa o que você faz.
Importa o que eu faço. Eu abaixo a cabeça para encarar
nossas mãos. As coisas que eu faço também não são nada boas, a
verdade é que estou fazendo tudo errado pelas razões certas, mas
foda-se, eu faria tudo de novo.
Eu sou capaz de matar pessoas e destruir uma cidade inteira
para manter Arcane segura, para dar felicidade a ela e sua liberdade
tão desejada. Algo monstruoso domina meu peito quando penso na
possibilidade de repetir cada morte que eu causei para manter
Arcane viva.
— Foi Rajá quem matou ela e eu nem sei o motivo. — Eu falo
mais baixo. — Parte minha sente culpa, acho que agora existem
pessoas que querem se vingar pela morte dela. — Eu falo mais
baixo. — Se eu eu nunca tivesse entrado na vida de Azra, se eu
nunca tivesse sido inconsequente em tentar manter um
relacionamento com uma mulher que não fazia parte do meu
mundo, ela estaria viva.
— Me dói muito saber que a vida de uma pessoa inocente foi
destruída por minha causa, mas foi Rajá quem deu o golpe final,
não eu. — Minha voz está carregada de aflição quando revivo tudo
aquilo novamente. — Foi meu irmão quem deixou o peito dela
aberto e sem um coração, Rajá simplesmente matou Azra no meio
da rua e eu fui um covarde. — Respiro fundo. — Eu saí correndo
quando vi que eu não podia fazer mais nada para trazer ela de volta,
eu senti vergonha, medo, culpa e dor, então simplesmente deixei ela
morta no chão e fui correndo para os braços da minha mãe.
Fecho meus olhos. Eu pensava que se me escondesse, que
se eu continuasse fingindo que nada aconteceu, a verdade nunca
bateria na minha porta. Mas bateu, e quando a Cúpula me
encontrou na noite do dia seguinte, eu nunca mais fui o mesmo. Eu
convivo com essa culpa por anos e sinto que ela jamais vai embora.
— Eu costumo pensar que um coração sem dor, ou pertence
aos poucos ou aos mortos. — Arcane segura os dois lados do meu
rosto. — Você se perdeu na dor e na culpa, e acabou esquecendo
que existe uma cura, que você pode seguir em frente mesmo que
tenha sido insuportável tudo aquilo.
— Eu não consigo deixar isso quieto até saber porque ela
morreu. — Eu balanço a cabeça em negação. — Foi apenas para
me torturar? Ele matou ela apenas por maldade? Azra era uma boa
pessoa, eu juro que era. — Eu lamento.
Meu coração dói pela vida dela, não porque eu a amo,
embora eu estivesse apaixonado por ela naquela época, mas
porque eu não consigo deixar de me responsabilizar por tudo que
aconteceu. Agora, olhando para o rosto de Arcane, eu sinto que
seria capaz de ir até o inferno para trazê-la de volta caso ela
estivesse no lugar de Azra, porque eu sinto por Arcane um tipo de
coisa que nunca senti por ninguém, porque eu sou obcecado por ela
e não gosto da ideia de viver em um mundo onde ela não é minha.

Puta merda, Arcane é fodidamente minha. Nada pode mudar


isso, o mundo pode queimar, mas eu não quero viver um único dia
sem ter ela na porra da minha vida. É isso, Deus criou Adão e Eva
para que um dia Arcane pudesse ser minha. Ele fez uma pessoa da
costela do outro para que eu possa olhar no rosto de Arcane e ter
plena certeza de que ela também é parte da minha costela. Eu
acredito que ela foi feita para viver ao meu lado, que isso já estava
destinado desde o Éden e que de todas as formas nós vamos
acabar juntos.
Um dia eu vou para a porra do inferno, mas isso não me
impede de ser fielmente crente. Eu acredito como louco que Deus
fez ela para mim. Ninguém no mundo terá mais fé na sua existência
do que eu, porque fui eu quem recebeu o maior milagre de todos.
Eu tenho a porra de uma mulher selvagem como minha esposa.
Eternamente minha.

— Kalon, agora que você sabe que foi Rajá quem


definitivamente matou Azra, você deve se resolver com o seu
passado e morrer para ele, não insista tanto em saber o que
aconteceu, um dia as respostas vão chegar até você. — Ela me
arranca dos meus pensamentos. Eu pisco e balanço a cabeça em
concordância. — Apenas morra para o seu passado e não permita
que isso te afete mais, que isso roube seu sono e todos os seus
dias.
— Morrer para o passado. — Eu repito, gostando da sua
ideia.
— O que você acha de fazer isso comigo, minha alma? — Eu
sugiro.
— Como assim? — Ela fica tensa.
— Viver com você não é suficiente, eu quero que você morra
comigo também. — Eu explico, segurando suas mãos. — Eu quero
que você também morra para o seu passado, que jogue fora toda
essa culpa que tenta suportar por ter matado Nikoleta.
— Mas isso é diferente… — Ela balança os ombros. — Eu
não posso me livrar disso porque o fantasma dela me persegue toda
vez que eu fecho os olhos. — Seu olhar cai para nossas mãos. —
Eu matei ela com minhas próprias mãos, não tenho como ser
absolvida disso.
— Claro que tem. — Eu insisto, me erguendo. — Morra para
ela, morra para tudo que ficou para trás e a partir de hoje renasça
como uma nova pessoa. — Eu explico, estendendo minha mão para
ela segurar. — Faça um funeral simbólico para todos os seus
demônios, invista profundamente na morte deles e no dia seguinte
acorde pronta para sua nova vida, pronta para viver tudo que você
tem o direito.
— Tudo bem, eu realmente quero muito viver, eu juro que
quero viver tudo que sempre sonhei, mas como seria o funeral
simbólico? — Ela dá risada, ficando de pé e me encarando de
frente.
— Vamos nos matar, não tem mistério. — Olho para seu
rosto. — Matar a pessoa que fomos anos atrás, no caso, nos
livrarmos de toda essa doença e demônios. — Seguro seu queixo,
fazendo ela me encarar. — Eu não falo no sentido literal, é claro,
não vamos atirar em nossas cabeças porque eu preciso de você
mais viva do que nunca, e caso eu morresse, voltaria rastejando do
túmulo no primeiro instante, eu brigo com o diabo apenas para
continuar ao seu lado. Não existe a porra de um fim para nós. Mas
vamos ligar o foda-se para o mundo. — Pisco. — Eu acredito que
sua vida precisa desse próximo passo, desse abandono de todas as
coisas ruins que aconteceram, para enfim você finalmente se
encontrar.
— Vários filmes e livros ensinam sobre deixar o passado para
trás, certo? Sobre reunir coragem para seguir em frente e virar as
costas para todos que nos abandonaram primeiro. — Ela fica mais
perto de mim, acariciando meu rosto. — Então eu aceito, eu aceito
isso bem aqui, nas escadarias de Camondo. Está na nossa hora de
deixar o passado para trás.
— Perfeito, porra, é disso que estamos falando. — Eu
reivindico seus lábios em um beijo exigente e eufórico, agarrando
seu corpo contra o meu e mergulhando na sensação do meu
coração batendo como louco.
Arcane geme contra minha boca, agarrando meus ombros e
matando qualquer pequena distância entre nós. Esse é o plano
perfeito para o começo de uma vida perfeita. Morrer para depois
nascer para a nossa nova vida. Uma vida onde não vamos precisar
de todas as pessoas que nos quebraram, que fizeram pedacinho
das nossas almas, nós vamos apenas nos libertar e criar uma nova
história, um novo capítulo.
— Vamos nos matar antes do sol nascer. — Eu tomo fôlego.
— Vamos pular dentro d'água e deixar para trás toda essa
sobrecarga que nos sufoca.
— E depois? — Arcane me olha cheia de esperança.
— Depois nós vamos fazer um novo plano. — Eu balanço os
ombros. — Dançar em frente a algum restaurante com música boa,
comprar passagens para conhecer a Capadócia, tudo que você tiver
em mente.
— Tudo que eu tenho em mente? — Ela me olha como se eu
estivesse lhe entregando uma loja para gastar com tudo que ela
quiser. Eu dou risada e balanço a cabeça em concordância.
— Isso mesmo, Arcane mou. — Eu pego o último copo de
ayran para bebermos juntos. — Primeiro nós morremos para o
mundo, depois nós queimamos ele. — Eu ergo o copo em um brinde
e bebo metade.
Como um prelúdio dos nossos planos sombrios, uma chuva
intensa começa a cair sob nossos ombros, Arcane respira fundo e
avança em minha direção para se esconder
— Começar a chover é um ótimo acontecimento para
morrermos com estilo, não é mesmo? — Ela solta uma risadinha.
— Eu concordo. — Repuxo meus lábios para baixo enquanto
balanço a cabeça em concordância. — Eu acho que vou pedir
gentilmente para um conhecido da família ligar para o meu irmão,
pois eu tenho algumas coisas para arrancar dele.
Comento rudemente, falando mais comigo do que com ela.
Arcane me olha torto quando puxo sua mão para começarmos a
correr na chuva, estamos indo na direção onde fica um dos cartéis
de Salih Karasai, o homem mais influente e poderoso desse país.
Uma vez meu pai me ensinou que se você precisa atrair a atenção
de uma pessoa grande, então tem que fazer algo grande.
Eu estou ciente que nada nesse mundo é capaz de perturbar
a paz do meu irmão, ninguém consegue obrigá-lo a estar onde não
quer, então a melhor forma de trazer Kol de volta para a Turquia é
quebrando o acordo que ele fez com Sombra para que eu tivesse a
liberdade de negociar nessas ruas como se estivesse em meu
território. É isso, vou agir como a porra de um maníaco louco e não
como o convidado de honra.
Claro que isso não vai ser irreversível ao ponto de interferir
na vida que Arcane pode construir aqui, será apenas um alarde para
conseguir alcançar o maldito caçador selvagem, eu preciso saber
como Kol deixou escapar que eu e Arcane estamos aqui.
Preciso saber todas as palavras que ele usou para negociar
com Salih, quem estava presente na sala, quem conhece os crimes
de Arcane o suficiente para entrar em contato com a pessoa que
quer matá-la. Porra, já está na hora de encontrar o seu perseguidor
e destruir sua vida. Ninguém vai tocar na minha mulher por causa
de um crime que ela não cometeu.
Alguém nos traiu, seja Kol ou Salih, seja a Cúpula que está
por trás disso ou até mesmo Yuri, alguém precisa morrer hoje. Eu
preciso encontrar quem quer matar Arcane e acabar com isso de
uma vez por todas.
— Onde estamos? — Ela segura minha mão mais forte
quando paramos na frente do lugar pouco iluminado por causa da
intensidade da chuva. Eu tenho certeza que estão todos lá dentro
envolvidos com jogatina, bebendo e vendo prostitutas baratas
dançando pelada.
Mas Salih é um homem casado, ele não gosta de se envolver
com a libertinagem dos seus homens, tudo que ele faz é ficar na sua
sala assistindo TV ou brincando com seus filhos. Ele deve estar no
último andar, um lugar com proteção de ruído para não assustar as
crianças, então eu posso matar quem eu quiser, fazer uma bagunça,
e ele só vai perceber no momento em que eu entrar na sua sala.
— Eu preciso entrar lá e fazer uma ligação. — Olho para
Arcane sem perder o meu bom humor. — Depois disso nós vamos
pegar um carro emprestado e pular no mar. — Aperto a ponta do
seu nariz, fazendo ela soltar uma gargalhada boba e revirar os
olhos.
— Essa é uma grande loucura, você sabe. — Ela balança os
ombros.
— Mas tem valor simbólico. — Eu balanço a mão. — Esse é
o funeral dos nossos demônios, precisamos de um fim apropriado.
— Balanço a cabeça, levando as mãos atrás das costas e olhando
ao redor para estudar como vou matar tantos homens em tão pouco
tempo.
— Eu devo esperar você aqui? — Ela me olha, preocupação
e receio brilham em seu rosto.
— Sim, eu não vou demorar. — Seguro seus dedos e trago
aos meus lábios, deixando um beijo. — Em menos de meia hora eu
volto, você pode contar se quiser, porque eu vou. — Pisco.
Ela fica em um ponto afastado, eu entro no cartel e
rapidamente os dois guardas me perseguem como se eu fosse um
bêbado que entrou no lugar errado. Afundo as mãos em meu bolso,
olhando pelo canto do olho quando os dois erguem suas armas
antes que eu chegue até a varanda.
— Você está no lugar errado, irmão. — Um deles fala,
apontando com o queixo para a saída. — Procure outro lugar para
se abrigar da chuva, talvez uma mesquita.
Eu viro meu corpo, erguendo as mãos para o alto e mantendo
uma expressão inofensiva.
— Eu estou no lugar certo, Salih Karasai está me esperando.
— Afirmo, os dois se encaram e soltam uma gargalhada grotesca.
— Vamos, irmão. — Os dois abaixam as armas. — Procure
uma mesquita para dormir e se proteger da chuva, aqui não é lugar.
Quando eles se viram lentamente por acreditarem que sou
algum bêbado, eu avanço em cima do primeiro sendo motivado por
sua altura inferior a minha. Agarro seu braço com facilidade, seu
dedo dispara contra o peito do homem que cai no chão, tremendo
em meio aos disparos.
— Puta merda. — Eu solto uma gargalhada divertida quando
o sangue se espalha, molhando meus pés. — Você fez isso sozinho,
irmão?
Eu empurro o corpo do homem contra a parede, eu desfiro
murros contra seu rosto até que ele desliza no chão, então eu
disparo contra sua cabeça.
— Que entediante. — Eu balanço os ombros e respiro o
cheiro almiscarado da morte. Se passaram cinco minutos.
Eu subo as escadas, determinado a chegar no último andar
depressa e encontrar Arcane antes do tempo que eu falei. Os
homens que tentam lutar comigo acabam morrendo, eu derrubo
alguns deles das escadas e atiro contra o peito da fileira dos que
tentaram me alcançar. O sangue mancha minhas bochechas e
roupas, eu respiro pesadamente, apertando os olhos quando me
sinto incomodado com todo o sangue sob meus ombros.
Eu chuto a porta do último andar quando todos estão mortos
lá embaixo. Salih sequer se mexe, ele está cantarolando enquanto
balança um dos seus bebês, o homem beija seu rosto e deita a
criança no berço.
— O papai ama muito você, Mert. — Ele sussurra, seu
comportamento silencioso é tão sombrio quanto a minha presença
ensanguentada na sua porta. — Eu vou queimar o mundo inteiro
para proteger você… — Ele continua falando.
— Ora, que momento lindo. — Eu inclino a cabeça para o
lado. — Acabo de decidir que também quero um filho.
— Você é muito corajoso, Kalon. — Ele se abaixa no chão,
pegando o outro bebê que está choramingo por estar assustado
com a minha presença sombria. Essa é uma menininha loira igual a
ele.
— Obrigado, eu sempre ouço que minha coragem é insana.
— Eu encaro minhas mãos sujas de sangue e abandono a arma no
chão. — Porra, minha mulher adora minhas roupas brancas, agora
eu estou todo sujo e ela provavelmente vai ficar com nojo. — Eu
balanço a cabeça.
— E a minha mulher adora o tapete que você está
manchando. — Ele balança o bebê no colo e caminha em minha
direção de forma silenciosa e ameaçadora. — Posso saber o motivo
para você estar chateando minha querida Zeynep desse jeito?
— A menininha? — Aponto a criança chorosa em seus
braços. — Sinto muito, querida, eu quero apenas conversar. — Ergo
as mãos em rendição, olhando para Salih que tem consciência da
matança que eu fiz em seu castelo sombrio. — Você sabe, eu matei
todos os seus homens e…
— Não, você não matou. — Ele ergue o dedo indicador para
me silenciar. — Está se esquecendo de um. — Ele pisca, apontando
por cima do meu ombro.
Eu giro lentamente quando sinto a ponta de uma faca em
minha jugular, meus olhos se iluminam de admiração quando a
mulher morena me empurra para caminhar até o meio do quarto.
— Agora eu entendo porque você continua inabalável, eu não
matei quem é mais importante. — Estalo a língua. — Sua esposa,
certo? — Eu aponto. — A menininha abriu os braços, então estou
certo.
— Eu atendo por Adalet, seu homenzinho louco. — Ela sibila
como uma verdadeira leoa. — Você sabe o que significa?
— Porra, mas é claro. — Eu balanço a cabeça. — Justiça. —
Levanto uma sobrancelha e olho para a porra do seu marido que
não mete tanto medo como ela. — Como você casou com ele? Eu
tenho irmãos que fariam loucuras por você, Adalet. Você não
precisa me tratar assim.
— E a mulher lá embaixo com o cachorro? — Eu giro minha
cabeça na direção de Salih, odiando o interesse em sua expressão.
— Ela é sua?
Eu odeio a forma como sua sobrancelha se ergue, se ele não
tivesse com a criança nos braços, e eu não estivesse com uma faca
em meu pescoço, teria esmurrado sua cara por olhar para minha
mulher.
— Olhe para mim, porra, não para ela. — Eu ameaço.
— Por que tão raivoso? — Adalet aumenta o aperto.
— Você não acha que ela é nova demais para você? — Salih
solta uma gargalhada cínica.
— Eu poderia fazer a mesma pergunta. — Eu inclino a
cabeça para trás na intenção de observar melhor o rosto de Adalet,
eu lhe lanço uma piscadela travessa apenas para provocar o seu
marido, pois eu sei que ele é como eu.
— Eu ouvi falar que vocês estão em lua de mel na nossa
cidade, isso é jeito de se comportarem? — Adalet afasta sua faca e
caminha até onde o seu marido está. — Askim, colocou o bebê para
dormir?
— Sim, bebek. — Os dois selam os lábios.
— Que nojo. Eu odeio gente bonita se amando na minha
frente. — Interrompo os dois ao acenar para a menininha grudenta.
— Eu preciso que liguem para Kol Somáli e informem o que eu fiz
aqui. — Eu comento, caminhando até a poltrona que tem no meio
do cômodo. — Essa é a única forma de colocar alguma emoção no
sistema nervoso daquele homem, quando ele souber do que
aconteceu aqui, e se vocês colocarem um drama nas informações,
ele vai vir correndo para tentar resolver.
— Por que eu faria isso? Eu posso simplesmente matar você.
— Salih ergue uma sobrancelha, Adalet estremece e joga uma
toalha para eu sentar em cima e não manchar seu sofá.
— Você vai ligar porque enviaram a cabeça de um cordeiro
para a minha porta, isso significa que seu território não é tão seguro
quanto eu imaginava. Também vai fazer isso porque você não é
doido de matar um Somáli, você tem filhos pequenos, eles não
estão prontos para sobreviver a uma guerra. E quando eu falo em
sobreviver, eu quero dizer que eles seriam os primeiros a morrer
pelas mãos do meu irmão mais velho. — Eu respondo.
— Você disse uma cabeça? — Salih sequer se abala com a
minha ameaça, sua mulher muito menos, ela está gargalhando
como se eu tivesse contado uma piada.
— Uma cabeça com um bilhete ameaçando a minha mulher.
— Eu falo.
— Coitadinha, e você deixou ela esperando lá fora na chuva?
— Adalet leva a mão ao peito e eu me sinto péssimo. Eu me ergo
depressa e afundo as mãos em meu bolso. Tenho mais dez minutos
e posso finalizar essa conversa em cinco.
— Eu não quero que ela saiba o que eu vou falar aqui. — Eu
respondo. Salih está em silêncio acariciando sua barba enquanto
me encara.
— Falar o que? — Adalet questiona e senta no sofá para
amamentar a criança.
— Que Kalon tirou ela de um presídio psiquiátrico. — Salih
responde, me analisando de um jeito misterioso, como se
conseguisse ler toda a minha vida. — Pelo o que seu irmão disse,
você anda fazendo coisas pelas costas dela na intenção de protegê-
la, certo?
— Correto. — Eu balanço a cabeça em concordância. — Eu
fiz isso porque Deus fez ela para mim, eu sei que vão entender, olha
só pra vocês. — Eu aponto para os dois que vivem em um palácio
esquisito com uma creche de crianças.
— Fala sério, as notícias contaram que você estava
assistindo desfiles, aparecendo em capas de revistas e não se
preparando para se casar com uma mulher que saiu do presídio
psiquiátrico. — Adalet me encara dando uma risadinha. — Que tipo
de mafioso é você? Você só pode ser louco.
— Ora, eu sou uma referência de moda nas mídias. —
Balanço os ombros. — Minha família também se envolve em
negócios limpos, querida Adalet, não fique espantada. Eu sou um
homem muito acessível.
— Um Somáli que é muito conhecido pela moda social e o
casual de luxo, que anda por aí usando streetwear… — Salih solta
uma gargalhada, como se eu fosse a chacota da profissão. — Porra,
quem é o louco que tira uma mulher do presídio psiquiátrico mais
sombrio de todos?
— Eu já expliquei, eu fiz isso porque Deus fez ela para mim.
— Balanço as mãos. — Você precisa acompanhar o raciocínio, seu
merda, e não ficar julgando o meu estilo impecável.
— Eu estou dizendo que preciso que você chame o meu
irmão aqui, alguma coisa está fazendo a cabeça dele nos últimos
dias, Kol anda desligado e muito desinteressado nas coisas que faz
para nós. — Eu insisto, olhando para o casal. — Ainda não é o
momento para confessar a Arcane que fui eu quem tirei ela da
prisão, que a Cúpula está torcendo para que ela morra e seja punida
por seus crimes… Que tudo que eu fiz nos últimos tempos foi por
causa de um acordo entre o pai dela. — Eu ergo as mãos para
silenciar meus pensamentos desenfreados. — O ponto é que a
Cúpula deu a liberdade para ela viver como antes e eu não vou
desperdiçar isso, mas também quero proteção contra a pessoa que
quer matar ela, por isso estamos no lugar mais seguro para um
Somáli viver.
— Você jogou isso fora quando matou metade dos meus
homens. — Salih aponta o dedo em minha direção.
— Você converte homens para sua organização todos os
dias, não seja dramático. — Eu reclamo.
— Você tem alguma ideia de quem quer matar ela? — Adalet
questiona.
— Sinceramente? Eu desconfio de todo mundo, desde o meu
irmão mais velho até o caçula. Todos têm algum motivo para matar
Arcane, seja por causa das coisas que faço, ou por causa das
coisas que ela fez no passado. — Eu comento pausadamente. —
Meus irmão fariam para me afetar, com certeza.
— E o pai dela? — Salih se aproxima, me entregando um
copo de whisky.
— Yuri não faria isso porque ele também quer proteger
Arcane, por isso estamos casados. — Eu comento.
No começo eu aceitei a porra da proposta porque ele me
prometeu esclarecimentos sobre a morte de Azra em troca de
proteção de Arcane, e eu fiz tudo que estava ao meu alcance, mas
alguma coisa mudou quando eu vi ela naquela noite em que ela me
flagrou com uma prostituta. Ela me enxergou de um jeito diferente
de todo mundo, foi ali que eu a quis para mim, que ela fosse apenas
minha.
— E você não desconfia que foi nós que enviou a cabeça
para a porta da sua casa? — Adalet ri. — O que faz você confiar em
nós?
— Vocês tem Mert e Zeynep para proteger. — Eu aponto
para as crianças. — Vocês pensariam duas vezes antes de fazer
algo que prejudique a vida das crianças, e também porque somos
amigos faz anos. — Eu abro os braços, apontando para Salih de um
jeito dramático. — Você jamais me trairia.
— Então esse é o plano… Arrastar Kol até aqui para forçar
ele a caçar com você. — Salih bate seu copo na mesa depois de me
analisar por longos segundos.
— Exatamente, porque se eu pedir como uma pessoa
normal, ele vai recusar. – Eu concordo. — Porque tem alguma coisa
que consegui entrar na cabeça daquele caçador selvagem, eu ainda
não sei o que é, mas vou descobrir.
— Como você desconfia disso? — Adalet me olha, beijando
as mãos da sua garotinha.
— Porque ele convidou minha mulher para um musical. — Eu
explico. — Eles passaram três horas juntos.
— Qual é, o desfecho vai ser você confessando que ele se
apaixonou por sua mulher? — Salih solta uma gargalhada.
— Não, Kol não se apaixona fácil. — Eu aperto os olhos,
negando. Ele é do tipo que persegue, que fica obcecado até que
isso morra dentro dele para que não enlouqueça. — Veja bem, ele
convidou Arcane porque queria falar alguma coisa, eu sei que sim,
pois ele escolheu um lugar calmo e emotivo. Eu conheço meu
irmão, ele levou Arcane para um musical dramático porque queria
muito falar alguma coisa, ele é um predador nato.
— O que seria essa coisa? Que ele é o perseguidor? —
Adalet sussurra, me fazendo apertar os lábios com a ideia de ter
outro irmão me traindo. — Ele tem motivos para isso?
— Até onde eu sei, não tem. Mesmo assim, se ele fosse, teria
a chance de matar Arcane várias vezes. — Aperto os lábios. — O
ponto é que ele pensou duas vezes antes de falar com ela, pois
Arcane chegou muito tranquila em casa, sem desconfiar de nada.
— Você acha que ele está escondendo alguma coisa muito
grande que foi incapaz de contar? — Salih pergunta.
— Sim. — Eu massageio minha bochecha. — Talvez ele
saiba quem quer matar Arcane e não quer contar, mas por que?
— Você quer descobrir forçando ele a essa caçada em nosso
território? — Adalet me olha, finalmente compreendendo o meu
plano.
— Eu tenho que admitir, você não é apenas um rostinho
bonito estampado nas capas de revistas, também tem muita
inteligência aí dentro. — Salih estala a língua, caminhando em
minha direção e segurando meus ombros. — Do que você precisa
para resolver essa guerra de uma vez por todas?
— Por enquanto, apenas que você ligue para ele avisando o
que aconteceu aqui. Seja muito dramático nos detalhes. — Eu
coloco um sorriso debochado no rosto. — Ah, eu quase ia
esquecendo… — Limpo a garganta. — Está chovendo, o que acha
de me emprestar um carro?
— Pega o meu conversível. — Salih sorri e me entrega as
chaves do seu carro, eu solto uma risadinha irônica.
Essa é a última vez que esse homem vai ver o seu carro.
— Foi bom reencontrar vocês, e eu adorei o cabelo castanho
iluminado, Adalet. Combina muito com roupas pretas. — Eu aceno
para eles.
Quando saio pela porta, faço a contagem regressiva até
chegar onde Arcane está, eu chego nela com dois segundos de
antecedência e pelo visto estávamos contando juntos, pois ela abre
um largo sorriso.
34. ONDE VOCÊ ESTEVE?
“A beleza deve ser quebrada
diariamente para que perdure.”
— VIRGINIA WOOLF.

Cinco, quatro, três…


Kalon aparece com suas roupas sujas de sangue, eu solto
uma risada animada porque ele realmente chegou antes do que
havia prometido, mesmo que tenha sido apenas alguns segundos
de diferença.
— Eu disse que ia chegar logo. — Ele abre os braços para
mim.
— Então você estava contando? — Eu inclino a cabeça para
apreciar os traços do seu rosto. — Porque eu estava e estou prestes
a declarar que está atrasado.
Pouco me importa que ele esteja sujo de sangue, tudo que eu
realmente quero é sair correndo e viver todo o resto da vida que eu
sonho em ter, a vida que ele disse que eu posso sonhar em ter no
momento em que fizemos o funeral simbólico dos nossos demônios.
— Prometo compensar você. — Kalon solta uma gargalhada
grave que ecoa junto com o barulho da chuva. Eu tenho um
sobressalto quando arrepios deliciosos sobem por minha coluna em
contemplação a esse som. Páris, por outro lado, está se divertindo
com a água correndo perto da calçada.
— Podemos ir? — Eu arrumo meus cabelos molhados para
trás e seguro sua mão, vendo a chave entre seus dedos. — Você
ainda trouxe um carro?
— Presente de casamento, acredita? — Ele brinca, olhando
ao redor quando aperta no botão para destravar o carro.
No final da rua, onde tem vários outros carros, vejo um
Pagani Huayra BC.
— Porra, que bonequinha mais linda. — Um assobio sai da
boca de Kalon enquanto eu libero a coleira de Páris. Eu solto uma
gargalhada animada, beijando o focinho do meu cachorro e fazendo
carinho em seus pêlos molhados.
— O que acha de deixar Páris fazer o caminho até em casa
sozinho? — Kalon sugere. — Ele não pode participar do que vamos
fazer, e nós estamos perto de casa.
A chuva diminuiu, um cheiro úmido e reconfortante se
espalha pelo ambiente. Eu balanço a cabeça em concordância, a
ansiedade domina meu corpo e eu apenas observo Páris farejar a
calçada, indo para o outro lado da rua.
— Você está pronta? — Kalon está com seu corpo parado
contra o carro, observando nosso cachorro correr pela rua da nossa
casa latindo como louco, provavelmente deve ter encontrado
alguma coisa que gosta. Talvez algum gatinho.
— Muito pronta. — Eu entro no carro, o teto está aberto.
Kalon dá a partida e começa a dirigir, subindo pela avenida
principal onde o caminho é mais longo. Ele não se importa com o
limite de velocidade, e eu muito menos, apenas levanto os braços
enquanto sinto o vento em meu rosto.
— Isso é tão legal! — Uma gargalhada fraca sai da minha
boca quando ele gira o volante, fazendo meu corpo tremer de
adrenalina, eu grito alto, olhando para o céu noturno e todas as
luzes dessa cidade.
— OLÁ, ISTAMBUL! — Eu grito alto e Kalon buzina, me
fazendo rir. Ele me olha como se algo mágico e milagroso estivesse
acontecendo conosco, no futuro, quando eu olhar para a noite em
que enterrei meus demônios, vou me lembrar da forma como ele
está me olhando agora. Ele me segura como se eu fosse perfeita ao
ponto de lhe causar uma epifania devastadora. Eu volto a sentar,
estou ofegante e com meu coração batendo como uma bomba
prestes a explodir.
Sua mão descansa em minha coxa, acariciando de um jeito
acolhedor, eu fecho meus olhos e me alimento de cada sensação
dominando meu peito.
— Quando a gente cair, você deve pensar em todas as
coisas que quer se livrar. — Kalon fala, ele permanece confortável
em seu assento, com os olhos no ponto fixo em que deseja
encontrar. — Apenas abandonar tudo, nos despedir de cada
fantasma.
Eu respiro fundo, a ansiedade me dominando quando avisto
a última rua em que o carro está percorrendo em alta velocidade.
Tudo que temos depois disso é a calçada que leva para o mar, mas
eu não sinto medo, pelo contrário, me sinto pronta para cair e
abandonar todos os fantasmas dentro de mim.
Conforme nos aproximamos o meu corpo entra em um
estado de levitação, uma prontidão tão enraizada que eu fecho
meus olhos no minuto em que o carro sobe para fora do asfalto,
estamos em uma queda que parece estar câmera lenta pelo silêncio
que minha mente alcança, até que meu corpo desaba e é engolido
pela massa d'água. Eu permaneço inerte, apreciando o silêncio
reconfortante que temos debaixo d'água. Eu não vejo o meu homem
e nem sinto o seu corpo perto do meu, quando pisco, vejo apenas
os faróis do carro se distanciando conforme ele afunda mais rápido
do que eu.
Kalon disse que era para eu pensar em tudo que quero me
livrar quando pulasse na água. Eu mantenho meus olhos fechados,
revirando minhas memórias, minhas dores mais profundas. Um
fantasma mais antigo do que Nikoleta, é o meu pai. Ele é tudo que
consigo enxergar. Todas as lembranças daquele dia finalmente vêm
à tona. Eu engasgo. Meu corpo é puxado para baixo com mais
agressividade e desespero.

— Arcane mou! — Ouço ele gritar. — Arcane, agapi mou!


Ele parece estar com dor quando finalmente me encontra,
seu corpo me agarra com força, de uma forma que me faz engasgar
novamente. Quando eu ouvi o disparo, tudo que pensei em fazer foi
tentar me esconder em algum lugar como papai ensinou.
— Papai, a mamãe está brava de novo? — Eu tremo,
agarrando seu corpo com força. — O que ela está fazendo?
— Shhh, não fale nada. Suas irmãs estão escondidas, a
mamãe está tendo outra crise e você precisa ficar agarrada em mim.
— Ele pressiona seus lábios na minha testa.
Sua pele está fria, assim como todo o seu corpo.
Papai está tremendo, sinto algo vermelho e quente
escorrendo por suas costas e eu quero gritar, mas ele fecha sua
mão em minha boca.
— Isso é sangue? Você está morrendo? — Eu escondo o
rosto no pescoço do papai, ele é tão cheiroso que quero ficar para
sempre em seus braços. — Não morra, papai. Eu amo tanto você.
— Eu choramingo, ele aperta meus cabelos.
— Arcane mou, nós já falamos sobre isso. — Ele diz
baixinho. — O papai nunca vai morrer, nunca. Eu não posso
abandonar minhas garotas. — Ele balança a cabeça em negação.
Seus olhos estão tomados por algo que suspeito ser medo e
vulnerabilidade. — Não consigo viver sem as perguntas super
inteligentes de Melissa, o jeitinho super delicado de Nimue, seus
abraços grudentos e o sorriso banguela de Theo.
Então, por que eu consigo ouvir tantos cacos quebrando?
Tantos gritos raivosos e palavrões feios. Esse lugar parece um
inferno e papai é o único que tenta me enganar dizendo que não vai
ser assim para sempre e que vai passar.
— Tem um monstro no jardim, papai? — Eu sussurro, ficando
mais escondida em seus braços.
— Tem sim, meu amor. — Ele balança a cabeça em
concordância. Meu corpo paralisa. Eu começo a tremer de medo. O
mundo parece parar de girar quando eu grito. Eu grito pra caralho.
— Mas o Theo está lá. — Papai não consegue me segurar
quando eu começo a correr. Ele até mesmo tenta gritar comigo e
corre em minha direção determinado a me alcançar.
— Arcane! Volte aqui, porra! — Ele grita de um jeito feio que
me faz ficar triste. — Arcane! — Essa é a primeira vez que ele fala
comigo com tanta brutalidade.
Outro disparo. Eu fico em choque, eu choramingo e me
esqueço de como se anda. Mamãe está com sua arma apontada na
direção de Theo, os olhos dele se encontram com os meus, então
ele cai. Eu grito alto. Eu corro em sua direção e caio por cima do
seu corpo.
— Theo! Theo! — Eu tento devolver o sangue que está
espirrando para fora do seu peito. — Theo! Theo!
— Eu estou morrendo… — Ele choraminga, os olhos
pesados e sua cabeça girando na grama, procurando por mamãe.
— Foi a mamãe, Arcane?
— Arcane! — Papai grita atrás de mim. — Theo! Meu filho! —
Ele pula por cima de nós dois, seu braço forte consegue envolver
nós dois e seu rosto está afundado em meus cabelos.
Papai puxa o corpo do meu irmão, gritando de um jeito
quebrado e tão assustador que eu fico tonta, meu corpo cai por cima
do dele, mas papai permanece ajoelhado.
— Me desculpem… — Ele sufoca. — Eu só queria que vocês
fossem crianças mais um pouquinho. — Ouço papai gemer, suas
lágrimas frias molham minhas mãos. — Só mais um pouquinho.
Eu também queria que você voltasse a ser o papai grudento.
Só mais um pouquinho. Papai grita alto e leva as mãos à cabeça
como se estivesse morrendo junto com Theo. Isso é tudo que eu
vejo antes de virar na grama, vomitando todo o meu choro e
soluçando até desmaiar.
Alguns dias depois daquela noite, mamãe foi embora de casa
dizendo que não suportava viver com o homem que matou o seu
filho, ela me olhou no rosto e fez toda aquela cena como se fosse a
vítima, como se papai fosse o verdadeiro monstro, mas agora eu
vejo que passei a minha vida acreditando em uma mentira. Não era
ele o monstro no jardim, era mamãe. Papai estava lá para me
proteger, ele estava me procurando e levou um tiro por mim, e
mesmo assim permaneceu comigo nos braços enquanto sangrava.
Ele escondeu todas as minhas irmãs porque mamãe ia nos
matar, mas falhou. Talvez, se ele tivesse conseguido impedir,
nossas vidas fossem diferentes hoje em dia. Isso é tudo culpa dela.
Não foi o papai quem matou Theo. Porra. Não foi. Ele estava
tentando impedir. Foi a mamãe quem matou o meu irmãozinho e
depois fugiu.
O que mais me machuca é que não consigo mais lembrar
como ele era, nem sentir meu peito aquecido com o calor do seu
sorriso. Eu era muito nova e ele também. Não consigo sequer
lembrar da nossa diferença de idade, como eram os nossos
momentos juntos, sua voz, suas coisas favoritas. Eu esqueci de
tudo.

Eu grito, engasgando com a água que queima minha


garganta. Eu vejo o fantasma dela subindo pelas profundezas,
gritando meu nome debaixo d'água, me perseguindo como um
espírito obsessor que tem a missão de sugar cada gota de vida do
meu corpo. Eu não tenho certeza se estou pronta para deixar
Nikoleta ir, não consigo fazer isso quando todo o meu peito grita de
saudades dela, dos momentos que éramos melhores amigas. Um
vazio angustiante consome meu peito quando sinto a exaustão da
minha minha mente ao tentar recuperar o que já está perdido. Não
tem como voltar atrás e mudar o passado. Eu não tenho como
reencontrar Nikoleta e arrancar todas as palavras da sua boca, os
motivos, suas razões profundas para tentar me matar.
Não importa o quanto eu continue revirando minhas
memórias em busca de alguma pista solta, em busca de alguma
coordenada, eu não encontro nada. Tudo que aconteceu, passou.
Não tem como mudar o passado. É só isso que nós somos, agora, a
partir desse ponto eu preciso deixá-la para trás e seguir sozinha. Eu
não posso continuar arrastando um fantasma até o túmulo só
porque ainda estou em negação, porque não consigo superar o que
vivemos e procuro feito uma louca por alguma coisa nas entrelinhas.
Não há nada, nenhum mistério, nenhuma carta na manga,
nenhuma reviravolta impressionante, tudo que aconteceu é apenas
isso. Nós duas fomos um final doloroso e injusto por nossas próprias
escolhas. No final de tudo, o único fato consumado é que eu matei
Nikoleta para me defender da sua tentativa de me eliminar, todo o
amor que tínhamos uma pela outra não existiu naquele dia, ele ficou
esquecido em um canto escuro enquanto o fim era colocado em
nossas vidas por nossas próprias mãos.
Essa é a verdade dolorosa que eu não posso me livrar, mas
agora eu estou me livrando desse fantasma, desse peso doloroso
em meus ombros, eu não preciso de nenhum fantasma
assombrando a minha nova vida. Não vou precisar olhar para trás e
ficar me perguntando como seria se tudo fosse diferente. Nesse
momento, eu mato todas as dúvidas, todas as tentativas de
enxergar as coisas por outro ângulo. Eu apenas aceito as coisas
como verdadeiramente são e deixo tudo ir. Eu me liberto, eu
abandono toda a bagagem, eu paro de tentar procurar o meu futuro
no meu passado.
Meus pulmões apertam em busca de oxigênio, eu empurro
meu corpo para cima, começando a nadar para o alto. Meus
movimentos são pesados e cheios de necessidade de viver, quando
minha cabeça emerge na superfície, eu respiro como nunca fiz
antes. Eu engasgo, eu estremeço sentindo a água deixar o meu
corpo leve como nunca senti.
— Você demorou tanto. — Kalon está nadando ao meu lado,
ele atira os braços em minha direção, para me alcançar. — Como
você se sente?
Porra, essa pergunta coloca lágrimas em meus olhos. Eu me
sinto pronta para viver e lutar por tudo que mais almejo. Eu encosto
a minha cabeça em seu peito, apertando-o contra mim e
mergulhando na sensação acolhedora do seu coração batendo
desenfreado.
— Eu me sinto livre. — Confesso, erguendo meus olhos. —
Você também se despediu de tudo?
— Absolutamente tudo. — Ele balança a cabeça em
concordância, contornando meus lábios com os dedos.
Algo libertador sobe por minha coluna, fazendo todos os
meus nervos se expandirem em um alívio delicioso, eu fecho meus
olhos sentindo seu beijo necessitado.
— Então é assim que começamos? — Ele questiona,
soltando um gemido fraco. — Ou estamos apenas brincando um
com o outro? É apenas algum truque para me quebrar depois?
Ele me olha, os olhos brilham tomados pela dúvida se eu
sempre vou odiá-lo ou se isso tem a chance de mudar a partir de
hoje. A verdade é que eu sequer sei a resposta, quero apenas dar
esse próximo passo em direção a porta aberta, encontrar o que está
me esperando do outro lado. Mas eu quero fazer isso com ele,
então agarro seus ombros, mordendo seu lábio e me deliciando na
sensação de estar leve como nunca.
Quero cada pedaço dele, quero torná-lo o meu homem e
reivindicar a sua alma, fazê-lo meu. Apenas meu. Talvez seja essa
cidade, talvez seja ele, ou talvez seja porque consigo me sentir
como eu mesma, mas tudo parece se encaixar dentro de mim. Eu já
não sinto nenhum resquício de medo em meu peito.
— Por que você fala que eu vou quebrar você, Kalon mou?
— Eu pergunto quando separamos nossos lábios, a água está
gelada ao nosso redor, mas de um jeito tão delicioso que quero ficar
aqui até o amanhecer.
— Não está claro, Arcane mou? — Ele respira fundo e aperta
meu rosto em suas mãos. — Porque eu morreria por você. — Ele
declara, me olhando de uma forma tão intensa que algo dentro de
mim se quebra. Se essa é a sensação de morrer para renascer
dentro de uma versão que apenas ele aprecia, feita apenas para
ele, então é delicioso.
Quando estou prestes a roubar seus lábios para um beijo,
Páris pula na água com tudo, me fazendo gritar de surpresa. Ele
vem nadando bem devagar até que começa a lamber minhas
bochechas e as de Kalon.
— Agora só falta a Pinar. — Eu aperto os olhos, lembrando
da lontra antissocial de Kalon.
Estamos de frente para nossa casa, literalmente no nosso
quintal, então não é nenhuma surpresa que Páris esteja nadando
conosco. Kalon me olha de um jeito profundo que afeta meus ossos
e a capacidade que tenho de comportar normalmente, agora eu
estou nervosa, não consigo me concentrar no carinho que Páris me
dá enquanto ele tem esse olhar profundo, parecido com uma
carranca aflita, sem se desviar de mim.
— Você está furioso? — Eu questiono, me aproximando para
sentir seu corpo.
— Isso não é uma carranca de raiva. — Ele estala a língua,
balançando a cabeça de um jeito dengoso. — É a carranca que faço
quando estou com o pau duro. — Ele acrescenta sem nenhuma
vergonha na cara.
Eu solto uma gargalhada nervosa, Kalon grunhe e ataca meu
queixo, deixando uma mordida tão prazerosa que o som morre na
minha boca. Eu me afasto dele depressa para ajudar Páris a subir
na borda da calçada.
— Vamos entrar, está começando a ficar muito frio. — Páris
balança seu corpo de um lado para o outro, espirrando água em
meu rosto.
Kalon me persegue silenciosamente, analisando minhas
roupas grudando em meu corpo. Eu me preparo para remover o
sobretudo e a blusa, largando em uma pilha molhada no nosso
gramado. Kalon me segue, juntando as mãos uma na outra e
assistindo em silêncio quando eu abaixo minha calça, ficando
apenas com a peça íntima que se torna transparente por estar
molhada.
— Você vai ficar apenas me olhando, habibi? — Eu
questiono, arrumando meus cabelos molhados para trás e girando
meu corpo em sua direção, exibindo minha bunda e as marcas do
nosso último sexo selvagem.
— Você me chamou de habibi? — Sua voz suave me causa
arrepios por toda parte. Eu balanço a cabeça em concordância e
paro de respirar no segundo em que ele corta nossa distância e
segura meu pescoço. — Puta merda. Eu quero que você repita
cada. Fodida. Sílaba. — Ele rosna pausadamente.
— Habibi. — Eu repito, minha voz é tão doce e calma que ele
treme, então bate sua boca contra a minha em um beijo tão exigente
que eu perco as forças. Porra. Meu cérebro não consegue
processar nada além dos seus lábios exigentes.
Kalon estapeia minha bunda, então me puxa com força
contra seus braços, apertando minhas pernas e caminhando até a
parede mais próxima. Quando sua boca afunda na curva do meu
pescoço, me chupando e mordendo, eu inclino o rosto para olhar ao
redor.
Estamos debaixo do chuveiro externo, o céu está escuro e
cheio de estrelas, tudo que temos atrás de nós é o mar e as luzes
da cidade do outro lado. Eu apenas relaxo, liberando um gemido
trêmulo quando ele aperta meu seio direito, não perdendo tempo em
levar até seus lábios e morder.
— Kalon! — Eu agarro seu ombro. — Kalon… — Repito
quando sua outra mão se perde entre minhas pernas.
— Porra, o certo é habibi. — Ele rosna, puxando minha
calcinha com força até o tecido se rompe, a ardência que se espalha
por minha boceta é deliciosa que eu reviro os olhos.
— Nós realmente vamos fazer sexo ao ar livre? — Eu agarro
seus cabelos, rebolando contra seus dedos exigentes que não
perdem o ritmo das estocadas.
— Já estamos. — Ele aperta meu mamilo com os dentes. —
Fodidamente minha, psychi mou.
Porra. Eu gemo com força quando ele retira seus dedos é dá
lugar para o seu pau, Kalon apenas me fode com força, segurando
minha perna como apoio para sua frequência agressiva. Minhas
unhas marcam suas costas e eu seguro os dois lados do seu rosto
para roubar todos os beijos que necessito.
— Meu. Fodidamente meu, habib mou. — Eu assumo isso
em voz alta e gemo de realização quando as palavras causam
impacto nele.
— Filha da puta. — Kalon aperta sua testa na minha, minhas
costas doem contra a parede, mas é prazeroso quando ele estoca
mais forte e caloroso, fazendo minha vista escurecer. — Você não
pode nunca retirar o que disse.
— Eu não quero retirar o que disse. — Sussurro, mordendo
seu lábio inferior quando ele me beija com força.
— Ótimo, porque daqui eu só saio morto. — Suas palavras
ferozes me fazem tremer porque eu acredito solenemente em cada
sílaba, porque eu também desejo isso, que daqui ele só saia morto.
— Daqui você só saio morto. — Sibilo. Eu nunca vou permitir
que ele me abandone, ou que vivamos uma vida separados depois
do que fizemos hoje.
— Você é a minha alma. — Ele declara e eu sei que nunca
vou ouvir nada mais verdadeiro do que isso. Meus dedos deslizam
por sua costela onde está escrito as pequenas palavras em grego.
Venha e me encontre, porque você é a minha alma.
— Psychi mou. — Eu apenas resmungo, nesse momento eu
sou incapaz de produzir qualquer palavra racional além dessas.
Minha alma. Estava certo que de alguma forma iríamos nos
encontrar, é nisso que eu acredito e vou depositar minhas
esperanças a partir de hoje.
Eu abaixo minhas pernas e ele me gira para ficar de frente
com a parede, meus olhos se fecham em deleite e eu empino minha
bunda no momento em que ele volta a foder minha boceta por trás.
— Gostosa. — Ele declara em meu ouvido, deixando tapas
em minha bunda. — Minha esposa. — Eu enfraqueço com suas
últimas palavras, nossas alianças se tocam quando ele entrelaça
seus dedos na minha mão que está apoiada na parede.
Meus seios estão doloridos, suas mãos grandes não param
de machucar minha carne e lágrimas enchem meus olhos, todo meu
corpo está perdido na força desse prazer pecaminoso e devastador,
agora estamos condenados porque eu não quero outra coisa além
disso, eu não consigo pensar em nada melhor, nenhuma coisa no
mundo que seja capaz de me possuir como ele faz. Kalon está
impregnado na minha alma e eu não posso negar esse fato, porque
se eu o fizer, estarei negando a mim mesma.
Kalon mordisca meu ombro e coloca sua outra mão na minha
barriga, tomando espaço para manter a minha postura que facilita
suas estocadas dentro da minha boceta.
— Vamos, Arcane mou. Não segure seus gemidos. — Eu
grito quando sinto um tapa prazeroso em minha boceta. — Porra. —
Um calor intenso sobe por minha coluna, me fazendo tremer e
gemer alto quando não encontro forças para respirar corretamente
entre o ritmo de suas estocadas.
Minha cabeça tomba para trás, alcançando seu peito. Kalon
me aperta com força, soltando gemidos roucos e tão sensuais que
eu levo minha mão para acariciar meu clitóris, preciso senti-lo
dominando cada parte minha, preciso sentir essa liberdade que sem
dúvidas vai além de tudo que qualquer pessoa tenha experimentado
na vida.
Meu corpo treme com o orgasmo intenso, logo minha vista
escurece e minhas pernas enfraquecem. Kalon beija minha nuca, ao
contrário do seu corpo, seus lábios estão frios.
— Vamos terminar isso lá dentro. — Ele me segura nos
braços com tanta facilidade que eu sinto tontura.
— Sim, por favor. — Eu respondo, minhas mãos seguram
seus ombros porque me sinto incapaz de manter minhas mãos
longe do seu corpo. — Eu preciso muito do seu corpo no meu, ou
serei capaz de morrer. — Eu afundo meu rosto na curva do seu
pescoço e deixo uma mordida delicada, Kalon geme e me aperta
com mais força, ele me empurra com cuidado até que minhas
costas batem no sofá macio.
— Porra, psychi mou, não diga isso. — Sua voz está
carregada por uma angústia dolorosa e ao mesmo tempo sexy. —
Eu não existo se você não existir, isso ainda não ficou claro?
Antes que eu possa responder, seu pau volta a entrar na
minha boceta, dessa vez tão apertado que eu grito, apertando
minhas pernas ao redor da sua cintura. Kalon geme e aperta minha
coxa, começando a estocar com tanta força que nossos corpos
fazem um barulho obsceno.
Minhas costas se erguem do sofá e eu procuro seus lábios.
Estamos gemendo na boca um do outro, sussurrando palavrões e
palavras incompreensíveis. Meus dedos deslizam por sua coluna
até que eu apalpo seu traseiro definido.
— Meu homem. — Falo contra sua boca, arrancando uma
gargalhada safada. Kalon fecha os olhos, me fodendo com mais
força e rapidez, me apertando de uma forma insensível enquanto
mergulha nesse sentimento possessivo que compartilhamos.
Um grito fraco de satisfação sai da minha boca quando ele
estoca uma última vez, dessa vez foi tão gostoso que eu sinto minha
alma em êxtase. Meus dedos acariciam sua nuca, Kalon mergulha
seu rosto em meus seios e permanece dentro de mim mesmo
depois de ter gozado.
— Arcane…? — Ele me chama de um jeito manhoso, como
se quisesse ter certeza de que realmente existimos.
— Habibi? — Eu respondo fraco, mostrando que estou aqui e
isso é real. Meu coração bate forte, eu ainda estou tentando
recobrar o fôlego.
— O que você acha de assistir um filme comigo? — Eu solto
uma gargalhada, não acreditando que ele está dizendo isso depois
de foder como loucos. Estamos molhados de suor e água do mar e
o seu cheiro almiscarado, misturado com a maresia, me faz desejar
recomeçar todo o sexo.
— O que você quer assistir, Kalon? — Eu questiono,
acariciando sua nuca quando ele deita a cabeça em meu peito. Não
quero me desvencilhar do seu calor por nada.
— É habibi, por favor. — Ele fala de um jeito raivoso. Eu ergo
uma mão em rendição, recebendo sua forte crítica a minha tentativa
de chamá-lo pelo nome de nascimento.
— Tudo bem, habibi... — Eu tento falar, me esperneando
quando ele esfrega sua barba em minha bochecha, mas sinto muita
cócega por ela estar maior e mais áspera. — O que você quer
assistir? Diga logo. — Imploro em meio às gargalhadas sensíveis.
— Que tal Pearl? — Ele questiona, parando de me fazer
cócegas.
— Eu nunca vi antes. — Tomo fôlego. — Mas pode ser,
contanto que você não pare de me aquecer com seu corpo gigante
e encontre uma forma de ligar o projetor sem sair daqui. — Balanço
a cabeça, olhando para a tela branca projetada na parede da sala.
Kalon tem um gosto muito peculiar e eu amo isso, mesmo
que tenhamos uma TV enorme, ele prefere assistir filmes em um
projetor.
— Como quiser, esposinha. — Ele ronrona e apenas inclina
uma mão na direção da mesa ao lado, começando a revirar algumas
coisas que eu não consigo acompanhar, apenas fecho meus olhos e
me concentro na sensação do seu corpo em cima do meu. Ele é
muito quente e gostoso de sentir.
— Mas estou chocado, tenho que admitir… — Depois de
alguns minutos, ele volta a espremer seu corpo contra o meu. —
Como uma assassina como você nunca conheceu a padroeira das
mulheres surtadas? — Ele me encara de um jeito debochado.
— Você está falando da Pearl? — Eu dou risada quando ele
balança a cabeça em concordância.
— Você é tipo… — Ele balança o dedo em círculos enquanto
aponta para mim. — A versão real dela, só que mais assustadora.
Isso desperta o meu interesse para assistir o filme que
começa a rodar. Meus olhos ficam perdidos nas imagens, na
estética antiga em que foi produzido e na paisagem tranquila e um
pouco medonha da fazenda onde eles vivem. Algumas cenas são
divertidas, porque Pearl é uma garota que vive com a cabeça nas
nuvens. Eu me perco na narrativa engraçada e ao mesmo tempo
nojenta. Eu olho para Kalon completamente em choque quando a
garota tem um orgasmo com um espantalho, meu marido, por outro
lado, está se contorcendo de rir em cima de mim.
— I’M MARRIED! — Pearl grita com o espantalho, fazendo
Kalon revirar a cabeça para trás e quase engasgar.
Pelo visto, ele tem um senso de humor muito duvidoso. Eu
também acabo dando risadas de algumas outras cenas ao decorrer
do filme, eu me identifico com a vontade que ela tem em ser livre,
em se libertar do seu passado e começar uma coisa diferente. Meus
olhos se enchem de lágrimas quando ela desabafa para a sua
cunhada como se fosse o seu marido.
— Pessoas como você já se sentiram desse jeito? Eu acho
que não, vocês parecem perfeitos o tempo todo. O Senhor deve ter
sido tão generoso com você, mas ele nunca respondeu nenhuma
das minhas orações. Eu não sei porque, o que eu fiz? O que tem de
errado comigo? Por favor, apenas me diga para que eu possa
melhorar. Eu não quero terminar como a minha mãe, eu quero estar
dançando nas telas como as meninas bonitas nas fotografias.
Ela soluça e respira fundo enquanto coloca para fora todo
esse sofrimento feio e ao mesmo tempo tão puro. Meus olhos se
enchem de lágrimas porque me enxergo em seu monólogo, eu
consigo sentir essa insuficiência e insegurança, o peso de saber que
não somos como as outras mulheres do mundo e isso nos leva a
fazer coisas obscuras para alcançar nossos sonhos, pois nada vem
fácil para pessoas como nós.
— Eu quero tanto o que eles tem, ser perfeita, ser amada
pelo maior número de pessoas possível para compensar todo o meu
tempo gasto sofrendo. Às vezes eu acordo no meio de noite e o
medo toma conta de mim, porquê, e se for só isso? E se aqui for
exatamente onde eu pertenço? Eu sou um fracasso. Eu não sou
bonita, ou naturalmente agradável, ou amigável, eu não sou
inteligente, ou engraçada, ou confiante, eu sou exatamente o que a
minha mãe disse que eu era, uma fraca. Eu não sei porque, o que
eu fiz? Por que minha família não é como a sua? Eu odeio o
sentimento de ser eu e não você.

Eu olho para Kalon, respirando fundo e sendo tomada pela


realização de que eu me identifico com toda a porra do monólogo.
Seus olhos estão vidrados na tela, mas seus braços estão ao redor
da minha cintura, ele não ousa desgrudar seu corpo do meu.
Quando eu pensei que o filme havia terminado, nós entramos na
cena mais sôfrega e assustadora. Pearl está correndo atrás da sua
cunhada com um machado, a mulher loira grita e implora por ajuda,
mas ninguém vai ouvir por estarem em uma fazenda cheia de
fantasmas e uma família morta. Kalon solta uma gargalhada alta
quando a garota cai no chão, já eu, solto um grito quando Pearl se
aproxima por trás com o machado erguido no alto.
— Puta merda! — Eu cubro meu rosto, empurrando Kalon.
Toda essa ansiedade faz meu sangue tremer. — Ela vai matar, não
vai?
— Ela vai. — Ele responde, sem desviar os olhos do filme
que parece um stand-up de comédia para ele. Ele se inclina para
trás, ficando totalmente silencioso quando a cunhada de Pearl tem
sua cabeça arrancada.
— Eu acabo de ser traumatizada pelo meu próprio marido. —
Agarro seu bíceps, tentando esconder meu rosto em seu ombro
quando a cabeça balança nas mãos da mulher mais louca que já vi
em um filme. — Você tem algum tipo de fetiche por mulheres loucas,
não é mesmo?
— Nenhuma se compara a você e as coisas que eu faria para
te ter. — Ele bate os cílios, me olhando de um jeito cheio de
sugestão.
Eu solto uma risada nasalada e viro o rosto para o filme,
apenas porque não sei como responder a esse olhar intenso. Kalon
solta uma gargalhada muito alta e deliciosa, mas não faço ideia se
foi pela minha reação ou pelo fato do marido de Pearl ter voltado da
guerra. Eu encaro a cena final, o sorriso de angústia estampado no
rosto dela enquanto recebe o marido. Mas a pior parte foi ver os
pais em decomposição, assim como toda a comida cheia de bichos.
— Que horror! — Eu faço uma careta. — Da próxima vez nós
vamos assistir alguma comédia romântica. Eu gritei tanto na torcida
pela vida da cunhada. — Balanço a cabeça. — Tudo em vão. — Eu
viro em sua direção. — Então, Senhor especialista em mulheres
surtadas, você acha que ela matou o marido depois que acabou o
filme?
— Eu não faço ideia. — Ele balança a cabeça em negação.
— Tudo que eu sei é que existe um segundo filme onde a mesma
atriz faz o papel de outra estrela surtada, você quer ver?
— Não mesmo! — Eu balanço a cabeça, pulando do sofá. —
Eu vou passar a semana tendo pesadelos com as suas risadas em
cada cena macabra. — Aponto o dedo em sua direção, ouvindo o
mesmo som sufocado, suas bochechas estão vermelhas. — Você
percebe que faz isso? Fica rindo quando mata alguém ou vê uma
pessoa morrendo.
— Eu faço? — Ele tenta esconder o rosto em uma almofada,
rindo mais alto e balançando seu corpo grande como se estivesse
quebrado ao meio com minhas palavras. — Mas é muito divertido,
eles morrem tão fácil.
— Você é inacreditável. — Eu dou risada, balançando a
cabeça em negação e ignorando todas as bandeiras vermelhas,
apenas porque ele fez uma expressão fofa depois de rir tanto.
— Então você acha que não morreria tão fácil? — Levanto
uma sobrancelha, caminhando em sua direção para sentar no seu
colo novamente. Kalon está usando apenas sua calça, mas eu estou
completamente nua.
Ele me olha por alguns instantes, tão pensativo que eu
começo a me perguntar se eu também sou capaz de morrer tão fácil
como os filmes mostram.
— Depende do que é capaz de me matar. — Ele fala por fim.
— Tem coisas que deixam a pessoa tão cega que ela morre em um
piscar de olhos. Tipo o amor, esse é um bom exemplo do que me
mataria da forma mais tola possível.
— Caso você amasse alguma coisa. — Eu balanço a cabeça,
olhando para seu rosto e tentando decifrar como uma pessoa como
nós, cheios de pecados e monstros, conseguem reconhecer quando
o amor chega às nossas vidas.
Os romances descrevem como uma coisa que eleva o seu
estado de espírito, que faz tudo ficar bem, nos deixa completos, que
muda toda a nossa perspectiva para o futuro. Mas eu me pergunto
como as pessoas sombrias, que tem a vida destruída e complicada,
como eles conseguem identificar o amor sem acabar matando-o?
Acho que o amor acaba virando caos, destruição e pecado, acho
que o amor é loucura.
— Eu acho que estamos loucos, Arcane. — Kalon sussurra.
Eu tenho um sobressalto, Kalon permanece me assistindo
como se estivesse formando seus próprios questionamentos dentro
de sua cabeça, se perguntando sobre o mesmo assunto; onde está
o amor de que tanto falam?
O amor é loucura. Estamos loucos.
— O que você disse? — Pergunto, não é possível que
estamos pensando a mesma coisa, sobre o mesmo assunto.
— Que estamos loucos. — Ele balança os ombros, sua
expressão muda para uma preguiça que é quase impossível levá-lo
a sério, mas meu coração bate como louco desejando por palavras
que eu nem sei quais são. — Estamos loucos por assistir um filme
de terror que parece uma comédia, depois de foder ao ar livre, que
por acaso aconteceu depois que pulamos no mar. — Ele acrescenta
depois de alguns segundos observando a minha expressão tensa.
Uma dor angustiante e ansiosa sobe por meu peito, me
fazendo respirar fundo e perder o rumo. Eu abaixo a cabeça na
tentativa de engolir essa criatura que nasceu do nada dentro de
mim, que se manifesta com tanta intensidade que eu fico
enjoada,que eu quero gritar para o mundo inteiro coisas que eu
sequer sei verbalizar.
Não existem palavras para descrever isso dentro de mim, ou
existem?
— Eu preciso dormir. — Falo depressa, pulando do seu colo
e buscando uma forma para ficar sozinha com os meus
pensamentos. Kalon balança a cabeça em concordância e fica em
pé para me seguir, mas eu ergo a mão para colocar uma distância
dolorosa entre nós. — Eu vou sozinha, você não precisa me
acompanhar. — Balanço a cabeça. — Vou tomar um banho e depois
colocar comida para nossos bichinhos.
Kalon me analisa de um jeito melancólico, como se eu tivesse
acabado de empurrar uma faca em seu peito, mas ele engole
qualquer palavra que parece querer colocar para fora e assente.
— Boa noite, Arcane mou. — Ele vira o rosto para me olhar
saindo.
Eu fecho a porta do quarto e respiro fundo, tentando fugir de
uma coisa que continua dentro de mim e aumenta de tamanho
agora que eu estou sozinha.
— Eu tenho certeza que agora estou louca de verdade. —
Lamento, sentindo esse peso angustiante no estômago.
35. AMOR DESESPERADO
“Deixe o tempo parado, essa é uma longa jornada enquanto
eu deixo meu coração correr para você neste vazio atemporal… Oh!
Meu coração cego está chorando, ninguém vai ouvi-lo. Oh! Eu
pensei que a luz do meu amor nunca chegaria até você… Mas você
pode me ver e me esconder em seu coração toda vez que você está
perdido em sua própria vasta solidão, no vazio.”

— AMOR DESESPERADO.

Kalon tentou me encurralar várias vezes durante o dia,


tentando arrancar de mim o motivo para eu estar evitando sua
presença. Durante a manhã, eu me distraí no jardim com os
gatinhos, Páris e Pinar. Ele está trancado em seu escritório com
Scar, fazendo ligações, até que parou para receber a visita do seu
casal de amigos. Salih e Adalet. Eles têm dois filhos, a menininha é
mais velha e muito idêntica ao pai.
Eu caminho na direção deles no momento em que saem do
escritório para sentar em uma mesa redonda ao ar livre. Eles estão
bebendo raki, minha atenção se volta para as duas crianças
brincando com os gatinhos e Páris.
— Vocês gostam mesmo de animais, não é? — Salih
questiona, apontando para a píton ao redor do pescoço de Kalon.
— Eu adoro. — Kalon fala cheio de sinceridade ao inclinar o
rosto para sentir melhor o réptil. — O que você está esperando para
sentar em meu colo, Arcane? — Ele fala com casualidade, sem
sequer olhar para o meu rosto.
Sinto todo meu rosto esquentar quando continuo andando em
sua direção, até sentar em uma de suas pernas, essa é a primeira
vez que estamos tão perto um do outro depois de dois dias. Kalon
não perde tempo em envolver minha cintura com uma mão,
brincando com a ponta dos dedos por debaixo da minha blusa. Eu
tento ignorar sua provocação e os arrepios que sobem por minha
coluna.
— Vocês moram em Istambul desde sempre? — Eu
pergunto, olhando para Adalet que parece estar se divertindo com o
comportamento de Kalon.
— Antes eu morava no campo. — Ela suspira, entrelaçando
sua mão na do seu esposo. — Até que ele me engravidou e eu me
rendi aos encantos da cidade grande.
— Claro que não foi assim. — Ele estala a língua, dando
risada e olhando para sua esposa como se lembrasse mais do que
ela como as coisas aconteceram naquele dia. — Nós nos
apaixonamos. Eu fui ver o festival dos trovadores e vi você com o
seu pai, juro que não queria mais ninguém no mundo, eu estava
obcecado.
Um som de apreciação sai da minha boca quando ela inclina
o rosto na direção do homem, que por sinal é muito lindo, os dois
formam um casal tão perfeito que estou curiosa para saber como é
a sensação.
— Como você descobriu que estava apaixonada? Quais
foram os sinais? — Eu pergunto. Kalon para de acariciar minha pele
quando ouve as minhas palavras.
Ele permanece quieto, sua presença atrás de mim me
consumindo como uma sombra. Agora Scar tem uma parte do seu
corpo por cima do meu ombro, me fazendo ficar mais perto de Kalon
para que ele não se machuque com suas travessuras.
— Eu não sei, eu apenas senti que estava. — Adalet
responde. — Tudo que eu pensava era nele, meu corpo ia a
loucura, meu coração disparava. Eu perdia a noção de tudo. — Ela
continua. — Eu estava cega.
Eu fico um tempo em silêncio, tentando compreender suas
palavras e buscar dentro de mim qualquer resquício similar.
— Não está mais? — Eu olho para Salih, pela forma que se
olham, é claro que estão.
— Meu amor, essas coisas não acabam tão facilmente. —
Salih balança a cabeça. — Não acaba, eu existo por causa disso,
em função disso.
— Fica espalhado em tudo, fica mais intenso e arrebatador.
— Adalet aponta para as crianças e depois para suas mãos por
cima das do seu marido.
— Só acaba com a morte. — Kalon inclina o rosto, olhando
para meus olhos e em seguida para Salih. — Não foi isso que você
me disse? — Ele pergunta, sorrindo de canto.
— Eu disse isso no dia do nosso casamento. — Ele balança
a cabeça em concordância. — Foi uma festa apenas para meus
amigos mais próximos, no campo, do jeito que ela gosta. — Salih
pisca, passando seu braço pelo ombro de Adalet. — Ela se casou
grávida da nossa Zeynep. — Ele aponta para a garotinha loira que
segura o meu gatinho como se fosse seu.
— Isso é muito bonito e emocionante. — Eu balanço a
cabeça, me remexendo no colo de Kalon quando ele volta a
acariciar minha pele.
— É muito bom ver que vocês tiveram a chance de escolher
tudo isso. — Eu apoio as minhas mãos na mesa e me encosto com
mais tranquilidade no corpo de Kalon, agora ele está estático, tão
tenso e frio que eu me sinto incomodada.
— O seu pai está vindo para cá em algumas horas, ele já
pousou em solo turco. — Kalon limpa a garganta, me olhando de um
jeito distante e interrompendo o que Adalet ia falar.
— Aconteceu alguma coisa com minhas irmãs? — Eu levo a
mão ao peito.
Eu não consegui falar com nenhuma delas nos últimos dias, e
considerei que era por causa da correria após o casamento, mas
elas estiverem passando por alguma coisa difícil eu nunca vou me
perdoar por não saber.
— Não aconteceu. — Ele assegura quando percebe a
preocupação em meu rosto. — Suas irmãs estão bem, inclusive.
Elas passam a maior parte do tempo com a mamãe em viagens
para algumas pequenas ilhas da Grécia. — Ele explica, abrindo o
seu celular para me mostrar algumas fotos delas juntas. Eu respiro
fundo, recebendo o aparelho como se pudesse alcançar elas duas.
Eu estou com tanta saudade que sinto vontade de chorar. — Eu
teria dito isso a você caso mantivesse um diálogo comigo nos
últimos dias. — Ele fala de um jeito magoado.
— Kalon… — Eu tento rebater, mas o que eu poderia dizer?
Isso é verdade, eu estou evitando esse homem porque não consigo
compreender o que está acontecendo comigo.
— O certo é Habibi. — Ele rosna, me olhando de um jeito
possessivo. Enquanto eu observo seu rosto, esse monstro volta a
machucar meu peito, ameaçando explodir da boca pra fora.
O fato é que essa besta existe dentro de mim há muito tempo
e só agora eu pude percebê-lo com clareza. Essa é a única
explicação para ele ser tão forte; ele é antigo. Um cão dos infernos,
como Bukowski citou. Agora eu posso senti-lo sussurrando o nome
do meu homem, e ele não quer se calar, ele quer ser saciado, ele
quer confessar. Eu faria loucuras por Kalon Somáli, assim como ele
faria por mim, e isso me assusta pra caralho. Eu morreria por ele, eu
mataria por ele. Esse sentimento não é nada calmo e reconfortante,
pelo contrário, ele é ardente e cheio de desespero. Eu não consigo
ser calma em relação a isso, não tem como, esse monstro dentro de
mim é intenso e antigo demais.
Eu viro o rosto, odiando essa confusão que está enraizada
em meu peito. Eu olho para Salih e Adalet como se pudesse
encontrar alguma resposta neles dois, na forma como se tocam e
parece conhecer todos os pensamentos um do outro apenas com o
olhar. Eu quero o que eles tem, quero saber qual é o gosto e que
impacto pode causar na minha vida, eu quero ser preenchida por
esse afeto milagroso que brilha no rosto deles.
— Por que meu pai está vindo? — Eu pergunto, por um
momento, estou com medo que ele tenha escolhido me devolver
para aquela vida depois de me mostrar tudo que posso viver aqui.
— Eu convidei Kalon para trabalhar comigo em um novo
negócio, algo grande e que exige muita concentração. — Salih
recebe minha atenção. — Então seu pai vai ficar com você
enquanto Kalon trabalha comigo. Você sabe, é um país diferente da
Grécia, você precisa de alguém de confiança a protegendo.
Eu consigo compreender o tom de mentira em suas palavras
pela forma como seu ombro balança duas vezes. Eu sou muito boa
com linguagem corporal, eles estão me enganando. Meus olhos se
voltam para Kalon e eu me pergunto se ele vai confirmar cada
palavra que saiu da boca do seu amigo.
— Você vai passar muito tempo longe? — Eu pergunto,
olhando para Kalon e sentindo algo muito doloroso machucar meu
peito. Eu não quero que ele vá. Simplesmente não quero.
— Um ou dois dias. — Ele balança os ombros. — Você
sequer vai sentir a minha falta. — Não gosto como sua voz soa
insegura e fria.
Acontece que eu já estou sentindo sua falta. Eu guardo meus
sentimentos em um lugar escuro e balanço a cabeça em
concordância.
Permaneço em seu colo, ouvindo toda a conversa em
silêncio, me sentindo anestesiada com as gargalhadas deles,
principalmente quando as travessuras das crianças se tornam o foco
do assunto. Kalon mantém sua mão ao redor da minha cintura,
apertando com força, outras vezes acariciando devagar como quem
deixa claro que está me observando. Eu gostaria de ter apenas
alguns minutos a sós com ele para poder conversar e compreender
tudo que está acontecendo.

Quando meu pai chega horas depois em uma Mercedez, eu


me ergo, caminhando em sua direção com mais peso e ansiedade
sob meu corpo. Salih e Adalet seguem atrás de nós e eu ouço Kalon
tentando chamar as crianças para vir junto.
— Arcane mou? — Ele abre os braços, eu não penso,
apenas pulo em cima dele tentando recuperar todas as coisas
perdidas da infância, tentando encontrar qualquer outra memória
perdida. — Você está bem? — Ele respira fundo, tremendo de
surpresa por receber um abraço tão forte.
— Estou. — Eu engulo em seco quando minha voz sai
embargada. — Estou muito bem. — Respiro seu cheiro que agora
me lembra muito da infância.
Eu não fui a única que saiu quebrada naquele dia, agora eu
vejo que ele também, mas eu ainda preciso de um esclarecimento
para todas as coisas ruins que aconteceram, o motivo para ele ter
deixado de ser o papai grudento.
— Yuri? — Eu me afasto devagar quando ouço a voz de
Kalon bem atrás de nós. — Seja bem-vindo. — Meus olhos se
erguem, meu marido está me observando de uma forma estranha,
como se eu estivesse o machucando.
— Obrigado. — Yuri limpa a garganta. Agora que ele está há
quilômetros de distância de Ivan, seu comportamento é mais
relaxado e parecido com ele mesmo, ou pelo menos com quem ele
costumava ser. — Salih e Adalet, é um prazer ver vocês. — Ele
caminha até os dois, abraçando-os. — E quem são os dois filhotes
de cruz-credo? Deus tenha misericórdia, que crianças feias. — Ele
fica de cócoras, olhando para a menininha desconfiada e para o
garotinho ainda aprendendo a andar. — Mert e Zeynep, se vocês
fossem meus filhos, seriam a coisa mais linda desse mundo, mas
não são, então são feios e eu vou colocar vocês em um saco.
As crianças gritam, principalmente quando Yuri finge atacar
os dois de uma só vez. Eu dou risada porque me lembro quando ele
fazia o mesmo comigo e minhas irmãs. O casal solta uma
gargalhada sincera como se estivessem acostumados com essa
versão divertida e zombeteira do meu pai. Eu cruzo os braços,
caminhando para mais perto de Kalon, ele está me olhando de um
jeito intenso quando eu seguro seu bíceps e apoio meu rosto em
seu corpo.
— Você não está gostando daqui? — Ele pergunta, ainda me
olhando. — Por que você está assim?
— Por que você está perguntando isso? — Eu balanço a
cabeça.
— Porque você está me evitando e pulou nos braços do seu
pai como se estivesse louca para me deixar. — Ele fala baixo, me
olhando de um jeito transtornado. — Eu não sou suficiente? — Ele
inclina a cabeça para o lado, me dando uma visão perfeita da sua
pele bronzeada. Esse homem fica tão lindo de branco que eu me
sinto fraca apenas em ver.
— Kalon… — Eu balanço a cabeça em negação, me sentindo
frustrada por ele estar entendendo tudo errado, como eu vou
explicar para ele o que está acontecendo sendo que eu nem sei o
que é?
— Puta merda. — Ele rosna, segurando meu queixo e
aproximando sua boca para bem perto da minha. — O certo é
Habibi. — Ele sibila, quase mordendo meus lábios ao desferir as
palavras.
— Tudo bem, Habibi mou. — Eu falo baixinho. — Você é
suficiente, sim. Muito suficiente. — Eu confesso, o alívio invade seus
olhos rapidamente e ele respira trêmulo. — Você está satisfeito com
isso?
— Nem um pouco. — Ele balança a cabeça rudemente. —
Eu preciso estar dentro de você agora mesmo, foder bastante, para
então me sentir satisfeito. — Ele fala mais baixo, deslizando a ponta
dos seus dedos por minha bochecha.
Sinto meu corpo fraquejar de desejo. Um som necessitado
sai da minha boca e meus dedos se perdem na sua camisa branca,
puxando seu corpo para mais perto do meu.
— Kalon? O que vocês estão cochichando aí? — Adalet
interrompe esse momento enquanto balança o seu menininho em
nossa direção. — Yuri está esperando.
— Estamos indo. — Kalon aperta os lábios e se afasta, me
observando de cima a baixo, roubando todo o meu fôlego.
— Arcane, o que você acha de dar a mamadeira para o Mert?
— Ela balança a mãozinha do garoto. — Eu preciso ajudar Zeynep a
usar o banheiro e Salih vai ficar muito ocupado conversando com
Yuri, você sabe como os homens são.
— Eu não tenho muita experiência com crianças. — Eu falo
com receio, de repente o garotinho está maior do que eu imaginava,
ele balança as mãozinhas em minha direção, soltando uma
gargalhada animada para ficar em meu colo.
— Você tem medo de cobras, Adalet? — Eu pergunto,
segurando Scar e retirando-o com cuidado do pescoço de Kalon. —
Se não tiver, você pode levar ele para o escritório quando for ajudar
Zeynep no banheiro.
— Eu não tenho medo. — Ela pisca, aproximando seu corpo
do de Kalon para entregar seu bebê. — Muito obrigada por
ajudarem. — Ela segura nossa cobra com cuidado e chama por
Zeynep. As duas entram na casa e eu viro meu rosto para apreciar
Kalon com o garotinho nos braços.
— Você está com fome, Mert? — Sua voz de bebê me faz
soltar uma gargalhada sincera. — Quer cerveja? — Ele começa a
caminhar até a cadeira onde estava sentado anteriormente.
Eu me aproximo quando Kalon me chama com um olhar
intenso, ele separa muito bem suas pernas e me faz sentar em seu
colo usando a mão livre. Eu estalo a língua, tentando descobrir
como ele vai segurar um bebê enquanto me tem em suas pernas.
— Vamos lá? Uma cerveja geladinha para o pior Karasai de
todos. — Ele pega a mamadeira e faz barulho de avião, o garotinho
abre a boca afoito e agarra o objeto com força, começando a sugar.
— Bom garoto, muito diferente do seu pai fodido, não seja nunca
como ele, Mert. — As pálpebras do garotinho tremem e Kalon vira
seu rosto para me encarar.
— Você quer segurar ele? — Ele questiona, vendo que não
consigo parar de babar nós dois conversando como bons amigos.
— Ah, não. Eu não sou muito boa com crianças. — Minha
mão treme quando lembro do meu irmão. Theo foi a única criança
que eu segurei na vida, tudo que consigo pensar é na última vez em
que eu segurei ele em meus braços.
Kalon aproxima seu rosto, roubando um beijo da minha boca
que me faz tremer, cheia de necessidade por mais. Eu quero cada
pedaço dele que chega a ser uma loucura mensurar o quanto. Eu
respiro pesadamente, me afastando com cuidado do seu colo e
ficando em pé para entrar na casa, Yuri ergue seu rosto, me
analisando da mesma forma de sempre, então levanta e caminha
em minha direção.
— Você me faz um chá? — Ele questiona, me olhando cheio
de uma indiferença assustadora. Eu fico tensa por alguns segundos,
mas balanço a cabeça em concordância e caminho para a cozinha
ciente da sua sombra atrás de mim.
— Como minhas irmãs estão? — Eu pergunto, abrindo o
armário para procurar pela bebida.
— Ocupadas com Atena. — Ele fala rapidamente, analisando
o meu rosto por algum tempo. Eu coloco o chá no fogo, separando a
erva tília na água que já começa a mudar de cor, possuindo uma
tonalidade avermelhada.
— Você está gostando daqui? — Ele questiona depois de um
tempo observando o barulho da água fervendo. — Da Turquia, eu
quero dizer.
— Sim. — Eu balanço a cabeça em concordância, não
conseguindo controlar o meu sorriso ao lembrar de todos os lugares
que visitei. — Kalon me deixa muito a vontade para conhecer cada
lugar dessa cidade. — Eu balanço a cabeça.
Yuri está me olhando com uma carranca estranha, ele até
mesmo rosna de um jeito assustador quando eu menciono Kalon.
Fico em silêncio por um tempo, começando a lembrar da enorme
diferença que existe entre nós.
— Por que você está com esse sorrisinho esquisito quando
fala nele, hein? — Ele desliza o dedo indicador por minha bochecha,
traçando o sorriso que estava em minha boca agora a pouco. Sua
carranca não se desfaz, ele a mantém mais intensa quando eu fico
nervosa. Porra, como o meu pai que me maltratou a vida inteira
consegue me ler com tenta facilidade?
— Como você sabe que é por causa dele? — Eu questiono,
tentando ter uma análise de fora sobre o que está acontecendo
comigo.
— Porque você é minha há vinte e um anos. — Ele mantém
sua voz ríspida. — Eu quem fiz você, eu conheço cada traço da sua
personalidade porque amo você. — Ele continua. — Eu sempre
conheço quando algo está mexendo com você, apenas fico em
silêncio.
— Mexendo comigo? — Eu respiro fundo. — Você acha que
Kalon de alguma forma consegue…
— Você não quer voltar para casa? — Ele interrompe minhas
palavras, como se pudesse ficar louco caso eu termine de dizê-las.
— Você deve estar dodói.
— Eu não estou... — Aproximo meu rosto para cochichar a
última parte que é tão vergonhosa que sinto vontade de rir. —
Dodói.
Eu realmente espero que isso não seja uma doença grave,
mas eu me sinto como se tivesse alguma droga no meu corpo e
apenas agora está fazendo efeito, me matando com uma overdose
severa.
— Não é possível que você esteja… — Ele faz uma pausa,
resmungando. — Eu acho que mudei de ideia, vou matar Kalon e
fugir com minhas filhas para algum país onde homens cafajestes
são proibidos de existir. — Ele fala depressa quando me vê em
silêncio.
— Nesse caso, você vai precisar se matar quando chegar
nesse país. — Eu levanto meu rosto, soltando uma gargalhada
fraca.
O chá faz barulho de que está transbordando, eu me apresso
para desligar e servi-lo em uma xícara. Respiro fundo, observando a
fumaça se dissipando no ambiente.
Meu coração bate desesperado, pedindo por todas as
respostas que eu nunca tive, que ninguém nunca se importou em
me dar. Eu sempre tive essa necessidade frágil de ter alguém para
me mostrar onde a vida começa, que me dê todas as explicações
escancaradas para todas as coisas que aconteceram na minha vida.
– Por que você está me olhando assim? — Eu saio dos meus
pensamentos, ficando um pouco nervosa com sua atenção. — Não
quer beber chá turco? — Eu olho para a xícara em sua mão.
– Quero. — Ele bate os cílios. — Só... Estava com saudades.
— Sua garganta parece estar doendo. Eu pisco algumas vezes,
tentando compreender se isso saiu mesmo da sua boca.
— Você estava com saudades? — Eu pergunto novamente,
ficando mais chocada quando ele concorda.
— Tinha esquecido desse som. Você rindo e falando tão
abertamente, como uma menina crescida. — Ele aponta para o meu
rosto. — Acho que você está bem agora, vai ficar tudo bem. — Ele
me entrega um sorriso conformado e começa a dar as costas.
— Espera. — Eu alcanço seu ombro, fazendo ele girar
lentamente para me observar. — Eu consigo me lembrar de tudo
agora. — Confesso. — Eu tinha esquecido da nossa infância como
um mecanismo de defesa, ou talvez como uma vingança por ter sido
colocada naquele presídio, mas agora eu me lembro. — Tomo
fôlego, os olhos de Yuri engrandecem e ele encara a xícara em suas
mãos.
— Do que você está falando, agapi mou? — Ele limpa a
garganta, mantendo uma voz indiferente e sem nenhum resquício
de emoção.
— De tudo. — Eu procuro seu rosto. — Não foi você quem
matou o Theo, foi a mamãe, eu vi quando ela disparou, eu lembro
de você chorando… Eu lembro de tudo. — Eu falo ofegante.
Meu corpo estremece. Yuri aperta os lábios, ele olha para
algum lugar ao seu lado, tentando controlar seus pensamentos.
Uma respiração pesada ecoa do seu peito.
— Isso não muda nada, Arcane. — Ele balança os ombros,
seu olhar demonstra vulnerabilidade. — Já passou. Eu gostaria que
você continuasse sem lembrar, pois isso não muda nada do que
aconteceu.
— Claro que muda! — Eu avanço em sua direção na tentativa
de chacoalhar o seu corpo e arrancar algum tipo de reação do seu
corpo. — Eu passei a minha vida acreditando que você era um
monstro!
— Eu continuo sendo. — Ele balança a cabeça. — A única
diferença é que sua mãe também era. — Ele respira fundo.
— Por que você nunca me contou? — Eu balanço a cabeça.
— Todas as vezes em que eu acusei você de ter matado Theo, por
que não tentou explicar?
— Porque de certa forma eu acredito que matei ele. — Ele
leva a xícara aos lábios para tomar um longo gole. — Eu não
consegui impedir sua mãe, eu escondi suas irmãs e escondi você,
mas não consegui chegar a tempo para salvar seu irmão. — Ele
respira fundo.
— Por que ela fez isso? Ela não nos amava? — Eu sussurro,
precisando dessa resposta para conseguir viver.
— Não, sua mãe era egoísta. — Ele ergue uma mão para
afagar o meu rosto. — Ela matou a própria irmã para ficar comigo e
ter o casamento que sempre sonhou. — Eu tremo diante das suas
palavras. — Quando eu descobri, já tínhamos vocês, e eu briguei
com ela todas as noites. — Ele engole em seco, erguendo o rosto
para controlar a velocidade com que provavelmente é afetado por
essas lembranças. — Ela ficou louca, ela queria matar todos vocês
e fugir de casa com o pai biológico de Theo, ela queria se vingar por
eu ter descoberto a verdade.
Mas ela não conseguiu. Ele foi um herói e conseguiu nos
proteger. Eu lembro claramente que ele tomou um tiro nos salvando.
Ele pode ser um monstro, mas existe algo dentro dele que ainda
quer ser bom, eu quero acreditar que sim.
— Você acha que ela ainda pode retornar e tentar tudo de
novo? — Eu sussurro. — Tenho medo que isso aconteça e ela tire
tudo que eu quero viver.
Meu pai derruba a xícara como se isso o afetasse, como um
tapa forte. Ele está em choque e isso está estampado no seu rosto.
Essa é a expressão mais intensa que ele esboça em anos.
— Está tudo bem? — Eu me afasto para longe dos cacos.
— Você ficou… Sombrio.
— Sua mãe não pode voltar. — Ele afirma, abaixando no
chão para pegar os cacos. — Não enquanto eu estiver vivo e
enquanto Kalon estiver protegendo você. — Ele fala ríspido, ficando
furioso. — Katerina não tem mais nada pelo que voltar.
— Mas por que você está tão nervoso? — Eu questiono, me
abaixando para ajudar ele a recolher os pedaços, mas de repente
ele solta um palavrão feio e abandona todos os cacos, se erguendo
e me olhando de cima.
— Deixe isso e vamos. — Ele estende a mão em minha
direção. — Venha dar uma volta comigo, Kalon vai precisar sair em
alguns minutos, de qualquer forma.
— Para onde ele está indo? Eu consigo perceber quando
alguém está mentindo, e aqueles dois de fato estão. — Eu falo
baixo, aceitando a mão do meu pai porque acredito que ele pode me
explicar o que está acontecendo entre meu marido e seu amigo. —
De verdade, por que você está aqui?
— Eles vão encontrar Kol. — Ele responde, me olhando de
uma forma indecifrável. — Seu cunhado é o melhor caçador desse
continente, eles precisam caçar e eu preciso manter você em
segurança até que retornem.
— Caçar o que? — Eu pergunto mais alto, me sentindo
sufocada com todas as informações pela metade.
— Eu prometo que explico mais tarde, agora você precisa me
acompanhar, Arcane. — Ele fala em um tom de voz calmo, me
fazendo ficar agoniada quando atravessamos o jardim e não vejo
mais ninguém.
Eu olho ao redor, o carro de Kalon desapareceu, assim como
o de Salih. Eu me sinto como uma criança que foi enganada pelos
pais para poder ficar na creche sozinha e se acostumar com o novo
ambiente. Minhas pernas fraquejam pelo sentimento de abandono e
confusão.
Toda aquela conversa sobre dar a mamadeira, sobre preparar
a porra do chá, tudo foi uma forma de distração para que eu não
visse eles saindo, para que eu não os seguisse.
— Canalha. — Eu bato no braço de Yuri, desejando que ele
me solte, que apenas me deixe sozinha.
— Vamos andando, Arcane. — Yuri insiste, me empurrando
para entrar no seu carro. — Você pode gritar e bater o quanto
quiser, mas isso é para o seu bem. — Ele me trata como se eu
fosse uma criancinha incapaz de compreender o que está
acontecendo ao meu redor.
— Custa apenas me explicar? — Eu vocifero, odiando esse
sentimento sombrio e angustiante que se intensifica a cada minuto
que o carro se afasta da nossa casa. — Pare o carro! — Eu grito,
tentando segurar suas mãos no volante.
— Arcane! — Ele tenta me afastar, o carro derrapa e faz um
barulho feio.
— Apenas pare o carro! Pare agora! — Eu grito mais alto,
batendo em suas mãos. Minha garganta dói, meus cabelos estão
bagunçados quando ele finalmente freia no meio do asfalto.
— Que porra você tem na cabeça, garota? — Ele grita
ríspido.
Todo meu corpo está tremendo quando eu abro a porta e pulo
no chão, correndo até o outro lado da rua e abrindo os braços para
Páris que estava brincando com uma bolinha.
— Páris, venha aqui, filho. — Eu chamo, no mesmo instante
o enorme Golden vem correndo em minha direção, pulando em
meus braços. Eu respiro de alívio, fechando meus olhos e
segurando ele em meus braços como se fosse o meu conforto.
— Arcane, agora entre no carro. — Yuri caminha em minha
direção, segurando meu braço e me fazendo andar contra minha
vontade.
Meu cachorro solta um latido insatisfeito, mas eu acalmo
seus nervos deixando alguns beijos em seu focinho. Yuri bate a
porta com força quando eu estou dentro, então ele volta a dar a
partida, me olhando de forma furiosa.
— Você não deve sair do meu lado até que eu decida,
entendeu? — Ele me observa como se pudesse enlouquecer a
qualquer momento. Eu solto uma risada debochada para o seu
comportamento abrasivo. — Eu prometo que vamos conversar
sobre isso, mas primeiro precisamos encontrar um lugar seguro.
— Um lugar seguro para o que? — Eu questiono, começando
a tremer e sentir dificuldade para respirar corretamente. — Você
pode uma única vez explicar o que está acontecendo?
— Estão tentando matar você! — Ele grita alto, praticamente
rosnando. — Kalon está impedindo que isso aconteça de todas as
formas, então você precisa apenas calar a boca e fazer o que eu
peço! — Eu me encolho quando sua voz reverbera por toda parte,
fazendo o Páris se encolher.
Meu sangue esfria em meu corpo e meu coração bate
acelerado. Eu estou em choque, sem conseguir desviar meus olhos
da figura de Yuri. Ele gira o volante com força, fazendo curvas tão
perigosas que meu estômago embrulha. Suas palavras batem
dentro do meu peito, causando um nó doloroso em minha garganta,
de alguma forma ele ainda não se calou, eu continuo ouvindo seu
grito exausto dentro da minha cabeça.
— Por que querem me matar? — Eu sussurro, minha voz
rouca. — Eu não estou entendendo.
Yuri aperta os olhos como se estivesse buscando por
controle, suas mãos estão tremendo quando ele faz outra curva
perigosa. Eu respiro fundo, olhando para trás na intenção de
descobrir se estamos sendo seguidos ou alguma coisa desse tipo,
mas antes que eu tome alguma conclusão, ele descansa sua mão
por cima da minha.
— Arcane. — Ele fala meu nome como se nunca tivesse dito.
Eu tenho medo desse som. — Eu e Kalon fizemos um acordo para
tirar você daquela prisão, porque a Cúpula estava determinada a
matar você depois do que fez com Nikoleta. — Ele confessa,
roubando qualquer palavra que possa sair da minha boca. — No
começo, Kalon aceitou porque eu prometi que daria respostas sobre
a morte de sua ex-namorada, Azra. Mas ficou claro que depois que
ele viu você, Kalon desenvolveu uma imensa obsessão.
Meus ouvidos chiam conforme meu pai continua falando, meu
corpo fica cada vez mais pesado e cada curva do carro é um
pedaço da minha alma que ele está arrancando. Eu estou em
choque, em nenhum momento passou pela minha cabeça que foi
Kalon quem me tirou de lá, eu sempre acreditei que eu estava
sendo expulsa para um lugar pior.
— Arcane mou, está me ouvindo? — Ele balança a mão em
minha direção. Eu suspiro, virando meu rosto para observá-lo
melhor, mas ele está desfocado por causa das minhas lágrimas. —
Ele salvou você porque eu implorei por isso, porque não foi você
quem matou Cíntia, fui eu. — Ele confessa, fazendo as lágrimas
escorrerem por minhas bochechas. — Eu matei ela no dia em que
tentou jogar vocês da janela.
Porra. A Páscoa Sombria, eu menti para Nimue quando disse
que lembrava de cada detalhe, minha cabeça tem apenas alguns
flashes daquela noite. Eu lembro de Yuri entrando pela porta da
frente, procurando por nós dentro do fogo e ajudando Melissa a
respirar.
— Porque? — Eu tremo, choramingando com força. — Como
você pode ter feito isso comigo? — Eu grito alto, minha voz falhando
pelo choro desamparado. — Que tipo de pai é você? Eu era apenas
uma criança! Eu não merecia passar por nada daquilo!
Levo a mão ao peito, engasgando com meu choro
angustiado. Um alívio sufocante sobe por minha coluna, afrouxando
o meu peito e me deixando tonta. Eu passei tanto tempo me
culpando pela morte de Cíntia que agora não sei como me sentir,
esse crime era tudo que segurava a minha identidade. Eu fui
torturada dentro de um presídio psiquiátrico por causa dele, fui
tratada como uma pessoa louca e incapaz de viver na sociedade.
Eles fizeram eu me sentir como uma aberração, uma criatura
descontrolada que não merecia a liberdade, eu sonhei todos os dias
em ser livre, em construir a minha vida, confirmada com a ideia de
ter perdido metade do que eu tinha antes daquele lugar sombrio que
vai me perseguir para sempre.
— Se você tivesse assumido a culpa eu nunca teria matado
minha amiga. — Eu grito alto, me debatendo no banco quando a dor
é intensa demais, ao ponto de se tornar física.
Uma dor que carrego por anos, que controlei atrás das
grades, que engoli calada e não ousei expor, mas que agora veio a
tona e eu não consigo segurar. Eu levo as mãos a cabeça, sentindo
que ela pode explodir a qualquer momento. Eu choro engasgado e
cheio de soluços sai da minha boca, eu aperto os olhos, me
curvando para frente.
— Por que você fez isso comigo?! — Eu tremo, apertando
meu pescoço quando começo a tossir. — Você viu sua filha
pequena sendo jogada em um presídio psiquiátrico por causa de um
crime que você cometeu, você estava tentando nos proteger e fez
pior! — Eu balanço a cabeça, não acreditando que ele tenta ser bom
e surgem inúmeros motivos mostrando que ele nunca vai deixar de
ser um monstro.
— Você não entende? — Ele freia o carro com força, me
fazendo ergue minha coluna e olhar em sua direção. — Ivan nunca
vai me deixar livre! Eu preciso ficar ao lado dele! — Ele balança as
mãos, gesticulando de um jeito agressivo e descontrolado. — Se eu
sair do lado dele, tudo cai, tudo é destruído. — Sua voz é ofegante e
trêmula. — Eu não tive escolha, agapi mou. Você assumiu a culpa
quando eu perguntei do incêndio, você estava assustada quando eu
confrontei Melissa sobre a discussão que tiveram com Cintia porque
descobriram que ela estava grávida e queria matar vocês. — Ele se
exalta, me olhando com tanta raiva e pesar que eu fico trêmula. —
Eu ouvi cada palavra, eu ia matar ela de uma forma ou de outra,
porque ninguém toca nas minhas crianças. — Ele segura meu braço
com força, fazendo meu corpo girar no bando até que eu o encaro
de frente. — Meu único plano foi deixar que você fosse para a
prisão e eu daria um jeito de tirar você. — Ele aponta para mim. —
E eu fiz isso, Arcane. Eu fiz um pacto com Kalon para que você
fosse salva.
Eu soluço, todo meu corpo enfraquece com suas palavras e
eu atiro a cabeça de um lado para o outro, sentindo aflição e ao
mesmo tempo alívio.
— Esse casamento, Arcane, só aconteceu porque era a única
forma de você ser livre. — Meu pai continua, abrindo a figura para
um estado que eu não consigo sentir meu corpo funcionar. Eu estou
me desmanchando em lágrimas, em alívio e tristeza. — Kalon
destruiu a prisão para que em troca você pudesse ter filhos, viajar,
fazer novos amigos e ser uma pessoa normal.
— Então, quer dizer… — Eu tomo fôlego. — Aquela história
que eu precisava proteger Atena? — Eu questiono.
— Eu inventei aquilo. — Ele responde. — Era uma mentira
para você ir se acostumando com a vida que temos, porque seria
muito agressivo tirar você da prisão já com a ideia do casamento, eu
precisava preparar você antes. — Ele fala com calma, afrouxando o
seu aperto em meu braço. — Aquele tiroteio quando você foi em
busca do informante, aquilo foi um plano para que você se
aproximasse de Kalon e não descobrisse a verdade.
Eu fecho meus olhos e choro alto. Ele estava me protegendo
esse tempo inteiro. Kalon fez toda aquela matança por mim, todo
esse tempo ele estava cuidando da minha vida, abrindo a porra do
caminho para que eu pudesse encontrar a minha liberdade. Em
nenhum momento eu pude enxergar que ele estava sofrendo toda
vez que eu o rejeitava, que eu gritava com ele e dizia odiá-lo, ele
estava apenas tentando me entregar a vida que eu sempre sonhei.
— Por que ele nunca me disse? — Eu tento respirar, mas
outra onda de choro me invade.
— Porque a Cúpula colocou na cabeça dele que nada disso
importa. — Ele balança a cabeça. — Que você vai continuar
odiando Kalon mesmo sabendo de tudo que ele fez para salvar
você.
— Mas eu não odeio ele, papai. — Eu balanço a cabeça. —
Eu não consigo sentir ódio por ele já faz um bom tempo. — Eu
expulso esse monstro para fora, eu grito as palavras em bom tom,
tremendo depois que cada sílaba sai dos meus lábios. — Eu não
odeio ele! — Eu falo novamente, balançando a cabeça em negação.
— Eu sei que não, meu amor. — Ele passa sua mão ao redor
do meu corpo, me puxando para um abraço tão apertado que meus
ossos ficam frágeis. — Eu conheço você mais que tudo no mundo,
eu sei que você não odeia ele, por mais que tenha tentado.
Eu escondo meu rosto em seu peito, eu grito alto e
choramingo como se tivesse voltando a ser aquela criancinha
incapaz de se proteger sozinha. Yuri agarra minha cintura, me
puxando com força até que estou deitada em seu colo. Ele me
aperta com força, beijando minha testa e permitido que eu coloque
para fora todo esse emaranhado de sentimentos confusos e tão
intensos que eu não consigo controlar meus gritos. Eu estou
quebrada com o fato de saber que Kalon me manteve ao seu lado
esse tempo inteiro não porque é apenas obcecado por mim, porque
consegue tudo que quer, mas porque estava me protegendo. Ele
estava fazendo tudo ao seu alcance para me manter livre, ele fez
tudo isso sem pedir nada em troca.
— Porque isso dói tanto? — Eu sufoco, olhando para seu
rosto quando ele limpa minhas lágrimas. — Essa é a dor mais
inconsolável que eu já senti na vida.
— Porque quando o amor é negligenciado por muito tempo,
quando ele é ignorado e tratado como uma criatura monstruosa, ele
fica tão pesado que faz a gente chorar muito. — Ele fala cheio de
convicção. — O amor é sensível e abrasivo, ele nos faz sofrer para
pagar por todo o tempo perdido, pois ele não passa de uma criança
que precisa de muita atenção para crescer. Essa é a verdade triste,
quando demoramos para aceitá-lo, ele se sente injustiçado, ele se
sente quebrado e abandonado, então ele inflama e machuca até ser
vomitado para fora do nosso peito. Quando isso acontece, eu não
desejo a ninguém que fique por perto para presenciar, porque os
pedaços podem acabar matando.
— De um jeito ou de outro ele precisa ser confessado? — Eu
pergunto, engolindo um soluço. — O que eu faço quando sinto
medo? Eu fui feita para viver isso? Eu mereço, papai?
— Você merece, minha filha. Você foi feita exatamente para
isso, quando eu segurei você nos braços pela primeira vez, foi para
isso. — Ele balança a cabeça em concordância. — Se é isso que
você precisa ouvir para aceitar o seu amor por Kalon Somáli, então
saiba que o amor nada mais é do que a liberdade plena quando
você confessa ele em voz alta, você não estará em uma prisão,
Arcane. Todo aquele pesadelo já passou, você pode seguir em
frente agora. — Ele aperta sua testa contra a minha.
Minhas mãos estão tremendo e eu continuo soluçando,
chorando de um jeito feio por todas essas coisas que estão
nascendo dentro de mim. Aceitar certas verdades e mudanças é um
processo doloroso como um parto, porque aceitar significa que
estamos nascendo de novo, que estamos renunciando as coisas
velhas para dar espaço para as novas.
— O que eu faço agora que eu sei que amo muito ele? — Eu
arrisco perguntar, cobrindo meu rosto para segurar as lágrimas que
ameaçam me transformar em um fantasma.
— Você chora, meu amor. Você chora até sentir coragem
para falar olhando nos olhos dele. — Ele acaricia meus cabelos. —
Você chora por todo o tempo perdido, por todos os dias em que ele
foi reprimido. Está tudo bem chorar, lembra? — Ele balança a
cabeça.
Meus ombros balançam e meu rosto se perde entre a camisa
amarrotada do meu pai, eu libero todo esse sentimento entalado na
minha garganta, eu grito e deixo tudo ir embora. Eu me liberto de
todo o passado sombrio, libero todas as minhas culpas e todo o
medo entalado na garganta por ter passado tantos anos em uma
cela escura. Eu fecho meus olhos e começo a aceitar que posso
escolher para o que fui feita, escolher quem eu vou amar e com
quem quero passar o resto dos meus dias.
Eu choro tanto nos braços do meu pai que em algum
momento acabo adormecendo. Abro meus olhos devagar quando
sinto ele me carregando em seus braços, resmungando uma canção
antiga e um pouco assustadora por causa da sua voz grave.
— Você sabe quem quer me matar? — Essa é a primeira
coisa que pergunto.
— Eu acredito que seja a sua mãe. — Ele responde,
apertando os lábios de um jeito impaciente. — Acho que ela voltou
agora que soube que você saiu do presídio.
Eu olho ao redor, percebendo que estamos em um quarto
simples. A janela aberta traz para dentro o som das crianças
brincando de bola na rua, está escurecendo e as paredes brancas
possuem uma nuance azulada. Eu sinto frio e saudades de Kalon.
— Eu quero ele. — Sussurro. — Você pode me levar até
Kalon? Eu não me importo com quem quer me matar, eu preciso
apenas ver ele. — Imploro, segurando sua mão no momento que ele
me deita na cama e envolve meu corpo com cobertas brancas. —
Eu preciso dizer para ele, eu preciso que ele saiba antes que seja
tarde demais.
Meu peito está sufocando com a ideia de que seja tarde
demais. Eu preciso estar perto dele, eu preciso confessar com todas
as letras, eu preciso que ele sinta.
— Esse bairro é o lugar mais seguro de Istambul para
ficarmos agora. Ele é antigo e desconhecido. — Ele balança a
cabeça em negação, me olhando de um jeito profundo. — Kalon
sabe se cuidar, Kol está com ele, então eles vão conseguir rastrear
sua mãe, ou seja quem for, e vai dar um fim nisso tudo. — Ele abre
o seu sobretudo em um movimento elegante e retira a arma do seu
coldre. — Depois disso, você pode dizer o que quiser.
Eu fico em silêncio, me movimentando para ficar sentada na
cama. Páris para de farejar o tapete vermelho e vem correndo em
minha direção, pulando na cama e se escondendo nas coberturas.
— Você não está preocupado que ela vá atrás das meninas?
— Eu pergunto, me sentindo apavorada com a ideia de perder
alguma delas. — Você tem mesmo certeza que é ela?
Yuri se ergue, caminhando até a janela aberta para ver as
crianças jogando bola, as cortinas balançam suavemente, fazendo
uma brisa fria entrar no quarto.
— Sua mãe é a única com um motivo forte para matar você,
Arcane. — Ele me olha de relance. — Além disso, todos aqueles
bilhetes, as ameaças muito bem arquitetadas, só podem ter sido
feitas por uma mulher. Uma mulher muito louca e vingativa como
Katerina. — Ele acrescenta depois de um tempo, voltando a olhar
para a janela. — Suas irmãs estão seguras com Atena, não tem
como ela alcançá-las na Grécia, pois Kalon recebeu uma ameaça
aqui, de alguma forma ela descobriu para onde você veio.
Isso é muito exaustivo para acompanhar. Eu me sinto
exposta, como se qualquer movimento pudesse desencadear o
nosso fim, e eu não quero isso, quero que tudo fique bem e normal
como estava antes. Eu corro as mãos por meus cabelos, tentando
encontrar estabilidade para não ficar abalada com a notícia que
minha própria mãe, a mulher que não vejo há anos, voltou para me
matar.
— Kalon já sabe que é ela? Você deve avisar para que ele
volte logo. — Eu insisto, olhando para o celular em seu bolso.
— Eu liguei para ele enquanto você dormia. — Yuri responde,
afundando as mãos em seu bolso e encarando a rua como se fosse
a coisa mais interessante para fazer.
— Eu não vou aguentar ficar aqui enquanto ele está lá fora.
— Eu pulo da cama, caminhando de um lado para o outro. — Por
favor, faça alguma coisa, eu vou ficar louca.
Eu preciso encontrar Kalon e falar para ele o que sinto, eu
preciso tocá-lo, ver o seu rosto agora que tenho um nome para
definir esse sentimento em meu peito.
Yuri caminha em minha direção, fazendo uma careta irritante.
— Sente e espere. — Ele aponta para uma mesa de madeira
do outro lado do cômodo largo. — Se estiver com fome, coma
kebab, está quente.
Eu caminho, arrumando meu vestido e respirando fundo. Meu
estômago está embrulhado, eu encaro a comida sem nenhuma
vontade de comê-la, mas me forço e colocar um pouco para dentro
quando lembro que não me alimentei de nada o dia inteiro.
As horas se passam, Yuri permanece de pé e na mesma
posição, encarando as ruas do bairro. Eu fico inquieta, não consigo
pregar o olho mesmo que esteja morrendo de sono. Eu me
levantando da cadeira e afundando na cama fria. Fecho meus olhos,
me sentindo magoada por sequer ter beijado sua boca, por sequer
ter encontrado tempo para olhar em seus olhos e ouvir todas as
palavras que ele sempre tem a dizer sobre mim. Um vazio doloroso
se espalha em meu peito. Meu coração está gritando comigo, me
torturando para encontrar Kalon, para falar o que sinto.
Eu preciso olhar pra ele e dizer que não o odeio, que isso
morreu há muito tempo, que eu me sinto grata por ele ter salvado a
minha vida. Eu levo a mão ao meu peito, meu coração está rugindo
como uma fera faminta.
Então você vai até ele e prova, aproveita que o coração dele
está batendo do outro lado da cidade e esperando por você. Dá
tempo de ir correndo, Arcane. Você precisa correr. Começa a correr,
porra.
— Por favor. — Eu imploro, caminhando até Yuri. — Eu estou
com um mal pressentimento, papai. — Sussurro. — Faça isso por
mim, apenas isso, em nome de tudo que perdemos. — Eu balanço a
cabeça, sentindo minha garganta doer. — Eu não quero perder ele
também, eu sinto que se não for encontrá-lo agora isso pode
acontecer.
— Tudo bem, Arcane. — Ele respira fundo, se afastando com
cuidado. — O dia já está amanhecendo, então vamos, se é disso
que o seu coração precisa para sentir paz.
36. ESTE É O SEU MUNDO DE
JUSTIÇA?
“Olhe ao redor! Foi aqui que o caminho
do ódio nos trouxe!”
— POCAHONTAS.

— Eu não acredito que você ainda não contou para Arcane, o


que você está esperando? — Kol está trabalhando comigo desde
que colocou os pés em solo turco, Salih está ao seu lado,
debatendo sobre alguns assuntos que ele perdeu enquanto estava
na Grécia.
Eu sinto vontade de estrangulá-lo, eu juro que faria sem
pensar duas vezes caso não estivesse tão concentrado em
caminhar por entre a mata fechada. Minhas botas afundam em algo
duro, eu faço uma careta, tem tanta pedra nesse lugar que sinto
vontade de atirar algumas na direção do meu irmão irritante.
Os dois estão conversando como se estivéssemos em um
bar e não controlando vários cães farejadores para seguir a pista
que foi deixada em minha porta. Estamos rastreando não apenas o
bilhete, mas a cabeça também. Meu irmão é perfeccionista, ele fez
vários testes para encontrar algum DNA no papel e no cadáver, em
seguida, puxou as imagens de segurança não apenas do bairro
onde estamos morando, mas de todos os lugares em Istambul por
onde eu e Arcane estivemos nos últimos dias. Desde o aeroporto
até a vez em que pulamos na água para reconstruir o nosso espírito.
— Você pode tirar o nome dela da sua boca? — Eu viro meu
rosto em sua direção. — Não estou de bom humor.
— Kalon acha que Arcane pode rejeitá-lo se souber a
verdade. — Salih responde, ignorando minha ameaça furiosa. — Ele
acredita que nada vai mudar quando ela souber, mas porra, dá pra
perceber que a menina sente alguma coisa por ele.
Isso é porque ele não sabe da forma como ela anda me
evitando nos últimos dias. Meu coração sufoca, latejando como um
louco em busca da atenção dela, da sua afeição. Eu corro a mão
por meus cabelos, tentando respirar corretamente e não vacilar. Não
posso baixar a guarda para pensar em Arcane, eu preciso protegê-
la.
— Eu quero contar para ela depois que eu destruir a pessoa
que quer matá-la. — Eu explico, olhando na direção de Salih. —
Não é nada do que você está falando, eu quero apenas fazer as
coisas do jeito certo. — Respondo firme. — Quero a segurança dos
acontecimentos, e agora não é um momento seguro para falar.
— Ele já se perdeu na narrativa. Qual é, Kalon. — Salih solta
uma risada. — Falar seus sentimentos, correto? — Ele bate os cílios
em minha direção, falando por cima do barulho feroz do seu cão
farejador. — Você tem medo de confessar agora e ela ser arrancada
de você, por isso está tão desesperado para encerrar esse tópico de
uma vez.
— Confessar que a ama. — Kol enfatiza, fazendo arrepios
subir por minha coluna. Eu fecho os olhos, suas palavras me afetam
mais do que eu consigo expressar. Todos os meus ossos estão
tremendo quando a realização das suas palavras atravessam cada
célula do meu corpo. Arcane e amor na mesma frase. Eu sinto que
vou enlouquecer.
— Vocês podem apenas ficar concentrados no que estamos
fazendo? — Eu falo com mais fúria. — Yuri me ligou no meio da
madrugada, ele disse que tem a certeza que é a mãe de Arcane. —
Eu repasso todas as informações novamente.
— Se for ela, se vocês acreditam que é ela, eu preciso dizer
que uma mulher não andaria por essa floresta sozinha. — Kol
responde, caminhando para o lado na intenção de desviar de uma
árvore grande. — Eu tenho a certeza que tem um homem por trás
disso, pense um pouco, Kalon.
— Você quer compartilhar alguma coisa sobre isso? — Eu
viro o meu rosto na sua direção. — Se você souber de alguma coisa
que vai nos ajudar muito, a hora é agora.
— Na verdade, eu quero compartilhar que não acredito que
fui forçado a sair da minha casa sob aquela ameaça ridícula. — Kol
balança a cabeça, me olhando de um jeito feio, um brilho raivoso e
cheio de mistério invade seus olhos. — Salih disse que você surtou,
que tinha matado a esposa dele e os filhos e que você estava
prestes a perder sua cabeça em uma execução a céu aberto, com
todos os membros da organização dele assistindo.
— Porra, Salih. — Eu viro meu rosto em sua direção, não
conseguindo decidir se fico grato pela jogada certeira ou chocado
por ele ter cruzado a porra da linha. — Você considerou mesmo o
meu pedido para ser dramático.
— Ora, eu não brinco em serviço. — O homem balança a
cabeça, levando seu cigarro aos lábios e dando uma demorada
tragada. — De qualquer forma, era o que eu faria caso não
fôssemos próximos, mataria para todo mundo ver.
— Maníaco. — Falo ríspido, voltando a olhar para Kol. —
Você tem certeza que rastreou certo? — Questiono, começando a
odiar qualquer possibilidade de estarmos no caminho certo.
Quando Kol rastreou as câmeras, viu que tinha um carro
rondando a rua perto da nossa casa e que estava nos vigiando até o
momento em que Arcane e eu entramos em casa na noite em que
recebi o bilhete com a ameaça. Como nós entramos pela porta que
leva ao mar, ela não viu a caixa na porta principal, que leva para o
estacionamento.
— Eu passei malditas horas vendo cada câmera de
segurança por onde esse carro passou. — Ele fala ríspido. — Eu
nunca falhei, eu tenho certeza que ele veio parar nessa fazenda.

Estamos caminhando por uma floresta fria e tão assustadora


que sinto minhas costas arrepiarem. Tenho a sensação de que
estou sendo seguido, que alguém está me observando entre as
árvores, mas os cães latem com ferocidade, avançando para frente,
sempre na direção das árvores densas. Porra, também tem a
fazenda que está há alguns quilômetros atrás de nós.
Salih confia tanto nas habilidades de Adalet que deixou
aquela mulher sozinha para lidar com qualquer ameaça que possa
surgir na propriedade enquanto estivermos aqui. Uma única mulher
esperando para matar homens que querem nos destruir e ele está
tranquilo como se a ameaça fosse ela, não eles. Ela sequer
demonstrou medo quando os cães ficaram loucos para entrar dentro
da floresta aberta e nós decidimos nos preparar para ver até onde
eles iriam chegar. Isso foi há duas horas e ainda não paramos de
andar.

— Você não está preocupado que Adalet esteja em perigo?


— Eu questiono, está quase amanhecendo completamente, mas a
floresta ainda está escura. — Nós passamos a madrugada nessa
brincadeirinha de cães.
— Adalet já tentou me afogar dentro de uma banheira. — Ele
solta uma gargalhada ríspida. — Ela já deu um tiro no meu peito, me
abandonou em outra cidade para conseguir fugir e ajudar o melhor
amigo do seu irmão, depois disso, eu achei que ia ficar louco por ela
ter fugido, mas ela matou várias pessoas para aparecer nos jornais
e eu poder recuperá-la. Essa nem é a parte mais louca do nosso
relacionamento, quando eu estava morrendo, ela me trouxe a vida
com as próprias mãos. — Salih continua falando, completamente
perdido em seus pensamentos, ele tem um sorriso no rosto que só
vejo em cachorros na coleira. — Ter medo de perdê-la é a última
coisa que passa na minha cabeça, ela sabe se cuidar.
— Mas e aquela história que você disse a minha mulher? —
Eu questiono. — Sobre vocês terem escolhido um ao outro desde o
começo? Que estavam apaixonados desde o começo?
— Você é um tolo se acredita que eu não forcei ela a ficar
comigo. — Ele balança a cabeça em negação. — Fizemos as coisas
do nosso jeito, Adalet mais ainda, mas por ser assim não significa
que nunca escolhemos um ao outro. — O homem soa como o último
romântico da face da terra. — Eu escolho ela todos os dias.
— Ah, Deus! — Kol vibra, erguendo o rosto para o alto. —
Que tipo de pecado eu cometi para precisar ouvir dois imbecis
debatendo sobre o quanto são obcecados por suas mulheres? Eu
vou me matar!
— Vamos nos separar para cobrir toda a área e depois voltar
para a fazenda. — Eu falo, puxando meu sobretudo para cobrir
melhor o meu corpo. — Acabou o papinho terapêutico, estou com
nojo de vocês.
— Idiota. — Salih ri. — Eu vou para aquele lado, sou mais
rápido que vocês e o Taro está querendo avançar sozinho. — Salih
fala, no mesmo instante seu telefone começa a tocar, despertando o
sentido dos animais. — Que estranho, Yuri está me ligando, vou dar
uma olhada nas redondezas e atender.
— Me fale imediatamente. — Meus olhos marcam seu rosto.
— Qualquer coisa sobre Arcane eu quero ser o primeiro a saber. —
Mesmo que eu confie que Yuri mantenha ela em um lugar seguro
até que eu volte para ficar ao seu lado.
— Você é muito impaciente. — Kol resmunga quando Salih
se afasta. — Isso vai acabar te matando, Kalon.
— Não, isso vai acabar me fazendo matar alguém. — Eu bato
os cílios em sua direção. Quando fica difícil atravessar o mato eu
usando o machado que tenho por cima do ombro para cortar o mato
quando fica difícil atravessar o mato, eu uso o machado que estava
carregando por cima do ombro. — Eu me pergunto quando esses
cachorros vão parar de farejar, eles estão ávidos por algo.
— Eu vou ficar quieto apenas quando investigar toda essa
floresta. — Kol responde, tendo a determinação de um deus para
finalizar suas caçadas.
— Kratos, você precisa se acalmar. — Eu reclamo, tentando
domar essa besta selvagem que foi criada por Kol, o que significa
que ele não consegue obedecer ninguém além do seu dono que
instiga seus instintos selvagens. — Vai acabar arrancando meu
braço com tanta força, seu fodido.
— Kol, você pode fazer ele se acalmar? — Eu chamo meu
irmão, olhando para o lado quando não ouço sua resposta e nem
seus passos. — Porra. Kol? — O frio úmido sobe por minha coluna,
eu tremo, girando lentamente em sua direção. — Por que você
parou de andar? O que você está fazendo? — Ele está conversando
com o enorme Rottweiler como se o animal fosse seu amigo mais
antigo.
— Estou contando um segredo para Bones, um segredo que
você ignorou. — Ele cochicha, segurando o focinho do animal que
parece muito ameaçador nessa posição de ataque.
— Que segredo, seu idiota? — Eu seguro a coleira com
força, procurando algum controle sob o meu cachorro que está
rosnando, ele firma suas patas no chão, louco para avançar. — Eu
juro que a maconha está afetando o seu cérebro, Kol Somáli. — Eu
rosno, segurando as correntes com mais força quando meus pés
deslizam no chão molhado. — Coloque a porra do cão para andar,
essa floresta está me sufocando.
— Eu estou dizendo para ele… — Ele fica de cócoras,
liberando a coleira entre seus dedos e permitindo que Bones
avance. O animal desaparecer entre as árvores, latindo ferozmente.
— Que ele pode estraçalhar o homem que está nos seguindo.
Seu queixo aponta para as árvores atrás de nós, para o ponto
exato que estava me incomodando minutos atrás.
— Porra. — Eu solto a coleira e seguro o machado com as
duas mãos, me posicionando para lutar. — Cacete.
— Você percebeu isso e deixou passar, nunca deixe de
confiar na sua intuição, Kalon, é nela que as verdadeiras coisas vêm
à tona. — Ele me repreende, me olhando como se tivesse o direito
de me dar lição de moral. — Eu quero que Bones arranque a
cabeça dele com os dentes.
Suas últimas palavras foram o suficiente para um grito
angustiado ecoar pela floresta, seu cachorro está latindo como uma
besta, e o meu acompanha, já livre do meu aperto.
— Onde estão as armas? — Kol questiona, percebendo que
acabamos de encontrar o que os cães estavam farejando. — Vamos
matar todos e deixar apenas um vivo para interrogar, estou
começando a acreditar que foi apenas um plano para nos afastar da
cidade e pegar Arcane.
Eu odeio que suas palavras façam sentido, pois eu quero
abandonar tudo e ir ao seu encontro o mais rápido possível. Porra,
como é possível que caímos nessa? Não é apenas um homem entre
as árvores, são vários.
— Salih! — Eu grito, girando meu rosto em sua direção, ele
está há alguns metros de distância.
— Se o plano era esse, seria um fracasso para eles, pois Yuri
já está vindo para cá. — Ele caminha em minha direção. — Eu
estava imaginando isso há um tempo, então resolvi partir para um
plano B.
— As armas, Kalon! — Kol fala furioso, no momento os cães
estão fazendo a maior parte do nosso trabalho ao derrubar alguns
homens e arranca partes vitais deles.
— As armas estão no carro, mas quem precisa disso quando
se tem um machado em mãos? — Eu balanço a arma na direção do
primeiro homem que chega perto de mim.
Eu golpeio o machado em seu rosto, fazendo-o tombar no
chão em um baque seco. Eu não consigo controlar uma gargalhada
cheia de adrenalina que é liberada entre dentes. Balanço minha
cabeça em negação quando sinto o sangue escorrer nas minhas
bochechas. Eu aperto meus olhos, ainda sufocando de rir quando
minhas costas batem contra as de Kol.
— Você quer parar de rir? Está deixando eles nervosos. —
Meu irmão cochicha, formando alguma estratégia para derrubar dois
de uma só vez.
— Foi engraçado o jeito que eu arranquei a cabeça dele. —
Eu me defendo, ainda com com um sorrisinho nos lábios.
Kol me ignora para bater seu machado nas costas de um dos
homens, ele cai, mas ainda assim o meu irmão continua acertando-
o, pois é perfeccionista e só acredita quando consegue arrancar o
coração com a parte pontuda da lâmina. Como se não bastasse a
matança, seu cachorro retorna com um braço preso entre os dentes.
Porra, literalmente um braço sangrando, desde os dedos até o
cotovelo.
Eu faço uma careta, não acreditando na força que essa
criatura tem, mas logo uma gargalhada explode da minha garganta
quando ele joga o cadáver nos pés de Kol, pedindo por aprovação
como se fosse um bom garoto.
— Mandou bem, filho. — Ele se abaixa para beijar o focinho
do animal, ignorando completamente as manchas de sangue.
— Fala sério. — Eu tomo fôlego, não acredito no que nos
metemos. — Um cachorro acabou de matar uma pessoa com a
porra dos dentes e você está beijando ele como se fosse um
graveto.
— Atrás de você. — Kol aponta com o machado, me fazendo
girar e bater a parte de madeira no nariz do homem. Ele grita,
tropeçando para trás e tentando estancar o sangue que espirra.
— Que coisa boba. — Eu balanço a cabeça, ficando
entediado com a facilidade com que ele está morrendo aos meus
pés. — Cale a porra da boca. — Eu grito, impaciente. Dessa vez
acertando seu rosto com a lâmina e estremecendo quando sua
cabeça parte pela metade e o silêncio reina.
Kol volta a se posicionar atrás de mim, derrubando vários
homens ao mesmo tempo e recebendo ajuda dos seus cachorros.
Salih, pelo contrário, não gosta de lutar em dupla. Ele usa todo o
seu corpo para cair em cima dos homens, rolando no mato alto que
chega a bater em nossas panturrilhas. Esse homem é tão
descontrolado que fica difícil acompanhar seus movimentos, apenas
os sons guturais enquanto dois cães o ajudam a desmembrar os
inimigos que mal têm tempo de gritar antes de serem decepados.
Passaram-se trinta minutos, até que o último homem desaba
no chão e eu respiro fundo. Inclino minha cabeça para o alto,
usando toda a minha energia para controlar a adrenalina que corre
por meu sangue e me faz soltar gargalhadas grotescas. Isso foi
revigorante, meus olhos observam com interesse quando Kol
caminha por entre o mato sujo de sangue e bate seu machado
repetidas vezes contra o corpo dos homens.
— Fala sério, eu matei esses daí. — Salih aponta com o
machado, mostrando a imensa diferença e falta de cuidado com os
golpes raivosos. — É claro que estão mortos.
— Mas eu ainda não estou satisfeito com a morte deles. —
Meu irmão responde como a porra de um maníaco.
Eu os ignoro, olhando ao redor mais uma vez para ter certeza
que eles realmente estão mortos. Empurro o cabo do machado no
chão molhado e tento limpar minhas mãos, movendo meu sobretudo
e ficando apenas com as roupas brancas.
— Precisamos retornar. — Eu sibilo. — Temos que começar a
correr até encontrar a fazenda. — Eu abandono o tecido rasgado
perto do cachorro que me olha com a língua de fora. Faço uma
carranca para ele. — Mais um irmão louco que é obcecado por
animais perigosos. — Lamento, percebendo que deve haver uma
cura para tudo, menos para essa preferência esquisita.
Um estalo ecoa na floresta quando começamos a nos
movimentar para ir embora, então, uma figura surge de entre as
árvores. Um palavrão ríspido sai da minha boca quando eu vejo
Evren.
— O que você está fazendo aqui? — Fúria consome meu
corpo e eu não perco tempo para avançar na sua direção.
— Quem você acha que armou todo esse espetáculo? — Ele
ergue a mão para me deter. — Calminha aí, Kalon, ou eu mato a
mulher.
Ele aponta para um homem encapuzado que arrasta Adalet,
ele tem uma arma em sua cabeça e a mulher está suja de sangue,
principalmente suas mãos, o que significa que ela lutou muito antes
de ser capturada.
Primeiro, eu busquei um inimigo em comum da família
Somáli. — Evren repuxa os lábios para baixo, me olhando de um
jeito raivoso. — Você não devia ter me expulsado daquele jeito. —
Ele lamenta. — Eu investiguei a fundo e descobri que seu pai tem
um grande inimigo que ainda não conseguiu eliminar.
— Porra. — Kol rosna, me fazendo olhar em sua direção. —
Que porra você fez, homem?
— Um acordo muito justo. — Ele balança a cabeça,
ignorando a raiva que emana do meu irmão mais novo. — Em breve
eu vou revelar com mais detalhes, mas por agora agora…
— Deixe Adalet. — Eu vocifero, tentando avançar em sua
direção.
— Qual é, Kalon. — Ele aponta sua faca em minha direção.
— Eu preciso contar as coisas desde o começo. — Ele balança a
cabeça. — Eu realmente estava disposto a ajudar sua família em
relação a pessoa que está tentando matar Arcane, porém, eu achei
mais lógico mudar o jogo ao meu favor. — Ele ergue o queixo,
tomado pelo ego. — Nos encontramos dias atrás e ele me ajudou a
criar essa imensa emboscada. — Ele sussurra. — Sou apenas um
mensageiro do chefe, ele dá a minha parte em troca eu elimino toda
a família Somáli. — Ele sorri largo.
— Como você pode se vender desse jeito? — Eu balanço a
cabeça em reprovação.
— É como diz o ditado. — Ele dá risada. — A ocasião é que
faz o ladrão. — O homem balança a cabeça em negação,
mostrando o quanto ele consegue ser baixo. — Agora, quem eu vou
matar primeiro? Talvez a bruxinha, como vingança por ela ter me
dado muito trabalho.
Adalet grita alto quando o homem aperta seu pescoço,
marcando sua pele com as unhas. É necessário Kol se meter na
frente de Salih para ele não fazer nenhuma besteira.
— Você está nervoso, Sombra? — Evren questiona,
relembrando o apelido de Salih.
— O seu erro foi tocar na minha mulher. — Salih rosna,
apertando o machado com as duas mãos e encarando o homem
que mantém Adalet sob ameaça. — Vou me banhar no seu sangue,
Evren. Vou estraçalhar seu corpo, sua alma, e isso vai ser tão
insuficiente que eu vou procurar por todos os membros da sua
família e fazer o mesmo com eles. — Ele declara, tornando essa
floresta mais sombria do que já é.
Meu amigo está respirando fundo como se a qualquer
momento fosse capaz de realizar suas palavras. Eu avanço
lentamente, percebendo que essa ameaça fez Evren estremecer.
— Deixe Adalet, Evren. — Eu ergo as mãos para apaziguar a
situação. — Nós vamos com você, eu vou. — Aponto para o meu
peito. — Faremos o que você quiser, mas deixe ela.
— Não, não. As coisas vão funcionar do meu jeito. Foi
necessário três homens para domar essa bruxinha. — Ele balança a
cabeça em negação. — Ela é feroz, Sombra. — Evren sussurra,
exibindo um rasgo em seu pescoço feito por Adalet. — Vai ser um
prazer matá-la na sua frente.
Isso é tudo que ele diz quando se aproxima por trás do
homem que segura Adalet e assume o controle, colocando-a de
joelhos. Ela chora, entendendo o que está acontecendo quando ele
segura a arma na testa dela. O tempo fica inerte, a floresta fica mais
escura e sufocante, esse é o momento mais longo e mais curto das
nossas vidas.
— Não, não faça isso. — Eu tento intervir quando a arma é
destravada. Kol me olha cheio de perturbação.
— Não faça isso. Me mate no lugar dela, mas não faça isso.
— Meu amigo avança, balançando a cabeça em negação. A aflição
e desespero enchem seus olhos de lágrimas.
— Um... Dois... — Evren conta.
— Ela não fez nada contra você, Evren. Nós temos dois
bebês, não faça isso conosco. — Salih toma fôlego, suas palavras
saem engasgadas pela urgência.
— Três…
— NÃO, PORRA! — Salih perde o controle. — ASKIM!
Eu viro o rosto e aperto meus olhos quando a arma dispara.
O silêncio reina. Eu solto minha respiração e tudo fica turbulento
quando um único grito assombra todos os pássaros e até mesmo a
porra dos cachorros ferozes. Porra. Não. Ele realmente matou ela.
Meu coração dispara, eu viro meu rosto para inspecionar o corpo da
minha amiga caído no chão.
— Kol? — Eu engasgo, vendo meu irmão jogado por cima
dela. — Kol?! — Minha voz falha, eu estou incrédulo. Eu caminho
aos tropeços, ajoelhando no chão e empurrando o corpo do meu
irmão para sair de cima do corpo de Adalet. — KOL? — Eu grito
mais alto, minhas mãos tremendo.
Não consigo distinguir de quem é o sangue, mas os dois
estão de olhos fechados. Salih ajoelha ao meu lado como a porra de
um fantasma que se materializa do nada.
— HAYIR! HAYIR! — Ele grita, puxando o corpo mole de
Adalet para deitar em suas pernas. Evren assiste tudo enquanto
solta gargalhadas grotescas. — Yardim edin! Tanrım, bir şeyler yap!
Aşkım! Canım! — Ele sufoca, soluçando de um jeito doloroso. Eu
não consigo compreender todas as palavras, mas sei que ele está
implorando.
— Kol? Kol! — Eu chacoalho o peito do meu irmão, olhando
para todos os lados em busca de alguma intervenção divina que
possa mudar todos os acontecimentos.
Porra, ele pulou na frente de Adalet no último segundo. Seu
braço está sujo de sangue e o ombro dela está sangrando. Eu olho
para Salih, meu corpo enfraquecendo quando não consigo acordar
meu irmão. Eu esmurro seu peito sem nenhuma delicadeza,
gritando alto e acariciando seu rosto, até que um engasgo fraco
escapa da sua boca.
— Porra! — Eu tremo quando o alívio imediato bate contra
meu peito. Não tomo tempo para me recuperar do susto, minhas
mãos vão em direção ao ombro de Adalet. — Ela ainda está viva,
você precisa acordar ela e estancar. — Falo depressa, levando as
mãos de Salih para o lugar exato em que muito sangue espirra. —
Sombra, você está me ouvindo? — Ele está perdido em
pensamentos, preso em um transe tão assustador que eu perco o
fôlego.
— Kol, ajude ele. — Eu chamo meu irmão que está tossindo.
Sua mão se fecha ao redor do seu braço sangrando. — Ajuda ele,
está bem? — Tento fazê-lo focar na situação. — Não deixe que ele
perca o controle.
— Eu admiro sua preocupação, Kalon, mas isso não vai ser
necessário. — Eu me ergo quando a mão de Evren descansa em
cima do meu ombro.
Aperto meus dentes, girando lentamente em sua direção,
meus olhos analisam os seus para memorizar cada traço da sua
expressão. Ele é a porra de um traidor. Na primeira oportunidade
aceitou trair a família que o recebeu de portas abertas, apenas para
satisfazer a porra do seu ego sádico. Meu olhar é tão ameaçador
que ele remove sua mão devagar, apontando para o caminho que
percorremos.
— Vamos resolver isso na fazenda, Sr. Somáli. — Ele
debocha, batendo em minhas costas com o cano da arma. Eu
começo a andar, ignorando os rosnados ferozes dos cachorros. —
Faça ele parar, Kol, ou eu atiro! — Evren grita, incomodado com a
agressividade deles. — Eu estou dando a chance de você sair vivo
por enquanto, então controle essas bestas!
— Por quanto você se vendeu, hein? — Eu inclino minha
cabeça, analisando a expressão de Evren. — O que foi tão
importante para fazer você nos trair dessa forma? Você entrou na
porra da minha casa dizendo que estava disposto a nos ajudar a
resolver esse problema, Evren. Como você pode nos trair? — Eu
cuspo as palavras, fomentando esse ódio que cresce no meu peito.
— Quem é a porra do seu chefe, hein? Por que ele passou
esse tempo inteiro se escondendo nas sombras? — Eu grito mais
alto. — Faça ele vir e me enfrentar, vamos! Faça isso acabar de
uma vez, Evren! — Eu desafio amargamente.
— Cale a boca, Kalon. — O homem ri, me empurrando para
sair da floresta quando chegamos na fazenda. Eu respiro o ar
aberto, sentindo meu peito estremecer com toda a vastidão do
gramado. Estamos perto de um cercado cheio de cavalos fortes,
todos na cor branca. Os que estão mais perto começam a relinchar,
incomodados com a agressividade com que Evren me empurra para
caminhar mais rápido.
— Acho que esse é o fim da linha para você, Kalon. — Evren
debocha. — Eu realmente admiro a sua coragem. Tirou uma mulher
do presídio psiquiátrico, fez um pacto com a Cúpula, destruiu o lugar
de onde ela veio... — Ele estala a língua. — Só não conseguiu
prever que eu iria me aliar ao inimigo e acabar com todos os seus
planos.
— O que ele te ofereceu, hum? — Eu rosno, girando meu
corpo para ficar de frente para ele. — Fale de uma vez!
Sua expressão muda para humor genuíno quando o carro de
Yuri estaciona na entrada da fazenda. Porra. Todo meu corpo
congela quando vejo Arcane descendo do carro, seu pai me olha
como se não tivesse outra escolha.
— Kalon! — Ela grita, sua voz trêmula. — Kalon mou! — Eu
avanço em sua direção, ignorando Evren e sua arma apontada em
minha direção. Eu apenas corro na direção da mulher que está de
braços abertos para mim, eu sinto como se fosse uma eternidade
sem vê-la.
— O que você está fazendo aqui? — Eu sufoco quando seu
corpo bate contra o meu, uma eletricidade dolorosa sobe por minha
coluna, enfraquecendo minhas pernas. — Meu amor, você precisa
sair. — Aperto meus dentes, preenchendo meus pulmões com seu
cheiro delicioso.
— O que está acontecendo? — Ela sussurra, ficando tensa
em meus braços quando vários homens de preto surgem em carros
da mesma cor. Porra. Eles foram seguidos.
Eu aperto Arcane com mais força em meus braços, me
convencendo que enquanto ela estiver contra mim, nada vai
acontecer com ela. Minha função é protegê-la. Eu estou aqui desde
o começo para dar a sua liberdade, para salvar sua vida e mostrar
uma nova chance para ser quem ela sempre almejou.
Ela é a minha mulher, a minha alma, a pessoa mais
importante nesse mundo. Ela merece a chance de ter uma vida
normal, se apaixonar, ler bons livros, conhecer o mundo e ser
artista. Ela nunca quis o seu passado sombrio, todos os seus
fantasmas e o peso doloroso de ser acusada de assassina louca. Eu
estou aqui para redefinir toda a sua vida, então daqui só saio morto.
— Você não devia ter vindo até aqui? — Eu sussurro,
segurando os dois lados do seu rosto. Seus lábios estão
entreabertos pelo nervosismo que não a deixa respirar direito.
— Mas eu precisava dizer uma coisa para você, Kalon. — Ela
balança a cabeça em negação. — Eu ainda preciso muito, porque
não vou conseguir viver mais nenhum segundo enquanto não
confessar.
— Meu amor, o mais importante é a sua segurança. — Eu
interrompo, meu coração bate dolorosamente pesado dentro do meu
peito quando vejo a aflição em seu rosto. Minha alma está
quebrada, implorando por cada pedaço dela para que eu possa me
reconstruir. — Ouça, você deve ir com seu pai para o mais longe
possível e eu te dou cobertura. — Beijo suas mãos, sentindo seu
toque pesado nos dois lados do meu rosto.
— Não, não me torture assim. — Ela implora, balançando a
cabeça em negação. — Eu preciso dizer que…
— Segurem ela. — Evren grita, interrompendo as palavras de
Arcane. Eu fico tenso, me colocando na sua frente.
— O que você está fazendo? — Questiono para ele, sentindo
as mãos de Arcane abraçando meu corpo. Seus dedos estão firmes
no tecido fino da minha camisa branca. — Ninguém vai tocar em
Arcane! — Eu vocifero, percebendo que os homens estão
impedindo Yuri de avançar em nossa direção.
Evren balança a cabeça em negação, gargalhando como
louco enquanto assiste a minha tentativa de manter Arcane comigo.
— Você perguntou o que foi capaz de me comprar? Eu vou te
explicar! — Ele avança em minha direção. — Eu realmente pensei
em deixar o nosso pequeno infortúnio no passado, mas os dias se
passaram e eu fiquei curioso... Porra, o que leva um homem a ficar
tão descontrolado quando se tratada da mulher que ele tirou de uma
prisão para loucos? Eu quero muito saber, Kalon Somáli. Que tipo
de milagre ela operou na sua vida? Ela é uma santa, por acaso?
— Pare de falar nela. — Eu seguro seu pescoço, me
controlando para não rasgar sua garganta com os dentes. — Ou
você vai conhecer o seu Deus pessoalmente. — Sibilo, puxando o
crucifixo para fora da sua camisa.
— Eu quero ela para mim, essa é a única forma dessa
confusão acabar. — Ele ergue o queixo. — Foi exatamente isso que
me fez mudar de lado, a possibilidade de Arcane ser minha. Agora
ela me pertence, eu vou levá-la hoje.
Suas palavras me deixam cego, minha cabeça ferve e eu
aperto seu pescoço com mais força, mas mãos afastam meus
braços usando uma força absurda.
— Se você tocar na minha mulher, então você vai ter que
enfrentar não um, mas a porra de cinco Somáli. — Eu esbravejo. —
Sem somar com a fúria de um marido tão louco que vai transformar
essa cidade em cinzas. Vamos lá, encoste nela e eu derrubo tudo
que te sustenta, Evren.
— Cinco Somáli? — Ele inclina a cabeça para o lado. — Mas
vocês são quatro irmãos.
— Você não deve achar que mamãe é apenas um rostinho
bonito, correto? — Eu debocho. — Porque você seria um tolo em
acreditar que nossa maldade não foi inspirada nela. Se você
encostar em Arcane, minha mãe vai se encarregar de matar sua
família, principalmente a sua amada irmã caçula. — Eu ameaço,
tocando no seu ponto fraco, revelando que minha família conhece a
pessoa que ele tenta esconder do resto do mundo.
Evren paralisa, me olhando de um jeito profundo que eu
começo a acreditar que ele está com receio de dar continuidade
com essa insanidade, mas ele solta uma gargalhada feia.
— Eu não preciso me preocupar com isso. — Ele balança a
cabeça. — Até o anoitecer, toda a sua família vai estar morta como
você. — Ele me empurra para longe e aponta na direção de Arcane
agarrada ao meu bíceps. — Levem ela, agora!
— Kalon! — Minha mulher grita quando um dos homens
agarra seu braço.
— Pare com isso, Evren! — Eu grito alto, tentando segurar o
corpo de Arcane contra o meu. Ela se contorce contra meu corpo,
me olhando cheia de temor. — Deixem ela, porra!
Eu esmurro o rosto do homem que tem suas mãos ao redor
da cintura dela, mas é em vão, logo outros dois estão levantando-a
do chão e arrastando-a para longe do meu corpo.
Minhas mãos estão segurando as suas, ela está gritando alto,
se esperneando nos braços dos três homens que a arrancam para
longe de mim.
— Não, Kalon! — Ela engasga com seu choro desesperado.
— Kalon, por favor! Me deixem ficar com ele! Me deixem! — Ela
rasga o rosto deles, ela se revira, mas nada é o suficiente. Nossa
separação me causa uma dor física tão lancinante que eu me curvo,
tentando respirar sem entrar em colapso.
— Deixem ela! — Eu grito mais alto, tentando escapar dos
homens que estão me agarrando com uma força absurda, ou talvez
eu tenha enfraquecido por vê-la chorando e tão quebrada.
— Kalon! Me ajuda! — Arcane choraminga, se contorcendo
nos braços do homem. — Não me tirem dele! Por favor! Eu não
quero ir! Eu não quero ficar longe dele! — Um choro exausto e cheio
de tristeza consome a sua expressão, meu coração se parte em
meu peito quando nossos dedos se soltam. — Estão me ouvindo?
— Ela grita mais alto, seus gritos sobressaindo os meus. — Eu não
quero ir com vocês! Eu quero ficar com Kalon! Eu não quero ficar
longe dele! — Ela grita, tremendo nos braços do homem. Seu choro
é rouco e sem fôlego, seu corpo balança pela urgência do seu
desespero. — Ninguém pode me forçar a ficar longe dele! Não me
tirem dele! Eu não quero ir!
— Deixem ela! — Eu balanço meus braços, suas mãos ainda
estão estendidas em minha direção. — Deixem ela ficar comigo! Ela
quer ficar comigo!
Arcane atira a cabeça para trás, quase desfalecendo nos
braços deles por não suportar a forma como seus gritos são
liberados do seu corpo. Eu me enfureço, atirando minha cabeça
para trás repetidas vezes. Eu puxo a cabeça do homem que está
me segurando com mais força, meus dedos perfuram em seus olhos
até que ele grita, soltando o meu corpo.
Eu rosno com mais força, aproximando meu rosto da orelha
do segundo homem e mordendo com força, não sentindo piedade
ao arrancar um pedaço. O sangue escorre pelo meu queixo,
arrancando um rosnado dos meus lábios ao sentir o gosto metálico
e quente.
Quando os dois estão se contorcendo no chão, eu corro na
direção de Arcane, lutando com outros dois homens que tentam me
segurar. Eu chuto as costas do primeiro e bato minha cabeça contra
o segundo, para em seguida aperta seu pescoço e desferir socos
em sua face.
— Kalon! Não me deixe ir! — Arcane grita quando Evren
agarra seu braço, começando a arrastá-la para dentro de um carro.
— Eu não vou deixar, minha alma! — Eu respondo, usando
todas as minhas forças para derrubar Evren e matá-lo da forma
mais tortuosa possível. Quando ele solta o braço de Arcane e
aponta a arma em minha direção, tudo fica em silêncio dentro da
minha cabeça. Arcane está gritando, mas não consigo ouvir os
sons, vejo apenas suas trêmulas mãos escondendo seu rosto.
Algo doloroso atravessa meu peito, fazendo a dor se espalhar
por minha coluna, por minha barriga e pernas. Porra. Está doendo
tanto que eu não consigo movimentar meu corpo, eu apenas desabo
no chão, percebendo que ele atirou em mim. Duas vezes. Ou foram
três? Eu não consigo raciocinar direito.
— NÃO! NÃO! — Meus ouvidos voltam a funcionar em um
chiado doloroso. — KALON!
Os gritos roucos de Arcane fazem o meu corpo doer em
dobro. Eu estou deitado em seus braços, suas roupas estão sujas
de sangue e suas mãos seguram meu rosto, outras vezes tocando
onde está doendo ao ponto de queimar minha alma.
— Não fique com medo…
Eu tento falar, minha voz não passa de um som fraco e
inaudível. Tento segurar sua mão, mas minha mão está tremendo
demais. Eu estou com muito frio. Tanto frio que sinto uma
necessidade desesperadora de fechar meus olhos.
— Arcane… — Chamo seu nome. — Está tudo bem. — Eu
balanço a cabeça, minhas pálpebras tremem quando suas mãos
acariciam minhas bochechas.
— Por favor, não faça isso comigo! — Ela implora,
engasgando a cada palavra dita. — Você não pode morrer… — Ela
choraminga, balançando a cabeça em negação repetidas vezes.
Suas lágrimas são a única coisa quente que desliza pelo meu rosto.
Ela esconde seu rosto contra o meu, soluçando mais alto, fazendo
minha alma se partir em milhões de pedaços.
— Eu te disse que daqui eu só saio morto. — Balanço a
cabeça, olhando para seu rosto bonito por alguns segundos,
guardando na memória cada traço, cada pequena parte que eu amo
tanto. Quando eu for para o outro lado, quero caminhar com toda a
satisfação, paixão e realização em ter passado cada último
momento com ela. — Não chore, vai passar. — Eu acaricio seu
rosto, enxugando todas as lágrimas que consigo.
— Kalon, não fale assim! — Ela implora, choramingando de
um jeito tão quebrado que minha garganta se fecha, não suportando
a dor. — Kalon, olhe pra mim! Você não pode morrer! — Ela grita
alto. — Você prometeu que me daria uma vida! Você disse que
dessa vez seria diferente, que eu nunca mais vou precisar sofrer! —
Ela engasga. — Não faça isso! — Ela me segura com tanta força
que suas unhas machucam meus ombros. — Por favor… Deus!
Não!
Antes de desmaiar, eu me acalmo pela última vez, eu respiro
profundamente pela boca e olha ao redor, observando cada detalhe
e me certificando de que Arcane está segura. Se eu vou partir e não
consigo lutar contra isso, então quero ir com a certeza de que ela
está segura. Meus dedos se entrelaçam aos seus.
— Não machuque ela, Evren. — Eu olho para os homens que
lutam para controlar Yuri de avançar. — Não façam nada com ela…
Arcane é uma pessoa tão pura e boa.
— Ela não merece nenhum mal. — Eu balanço a cabeça em
negação, minha voz trêmula e sufocada.

— Não…
— Não machu…
37. ADEUS
“Aquele setembro roubou a nossa humanidade,
aquele setembro roubou as nossas vidas!”

— DILEK TASI.

Eu não sei com que tipo de força interior estou conseguindo


segurar o corpo frio de Kalon, mas eu não separo nenhum
centímetro das nossas peles. Se eu pudesse encontrar uma forma
de entrar pra dentro do seu corpo e encontrar sua alma, eu faria,
para que dessa forma eu o agarrasse de uma vez por todas e o
seguisse até os confins da terra. Eu me sinto fraca, reduzida a pó,
tão vazia e quebrada que até respirar se torna assustador.
Por que eu ainda estou respirando?
Por que a porra do mundo continua girando?
O sol continua o mesmo, não há nada de novo no mundo e
isso é tão injusto. Meu peito está doendo porque ele está morto. Ele
parou de respirar faz trinta segundos, eu contei. E conforme a
contagem aumenta, algo monstruoso se rasga dentro do meu peito.
Ele está frio, seu sangue está espalhado por toda parte. Ele
realmente está morto, pálido, seus olhos estão fechados e a porra
dos meus gritos não provocam nenhuma reação nele. Kalon
continua inerte. Nenhum buraco se abriu no chão para me engolir,
Deus não desceu do céu para me ajudar, não há nenhuma virgem
santíssima com vestes brancas preparada para me segurar nos
braços e fazer ele acordar. Não, conforme o tempo passa, a
realidade fica cada vez mais dolorosa de engolir. Ele está morto e
vai continuar assim, não tem ninguém impedindo a morte da pessoa
mais importante da minha vida, a pessoa que me salvou.
Eu choramingo de um jeito tão feio que até a porra do diabo
sairia correndo. Meus braços estão fracos e tão doloridos que sinto
vontade de desmaiar.
— Kalon… Por favor! — Eu Imploro, engasgando com
qualquer palavra racional que possa sair da minha boca. — Deus…
Por que as pessoas tem que morrer? — Eu balanço o corpo dele em
mãos. — Como eu vou viver com isso? — Eu sinto vontade de
rasgar o meu rosto, de rasgar as minhas roupas e jogar terra em
minha carne, de me revirar na areia e choramingar até que a morte
venha me buscar. — Me diz o que eu faço! — Eu grito mais alto, tão
descontrolada que meu corpo balança no chão úmido.
Eu quero arrancar a minha pele, quero silenciar esse órgão
em meu peito que está doendo tanto, mas não me mata. Eu quero
alguma coisa grande e fatal para arrancar essa negação que se
expande por meus ossos, que atormenta a minha cabeça e faz eu
me questionar se estou louca. Porra, eu quero tanto a loucura nesse
momento, qualquer coisa para não encarar a realidade diante dos
meus olhos. O meu homem está morto e o mundo continua igual.
Isso é tão injusto.
— Por favor! Faça alguma coisa! — Eu balanço a cabeça em
negação. Eu grito alto, protegendo o corpo de Kalon com o peso do
meu.
Minhas mãos estão sujas de sangue, eu aperto minhas
bochechas, cravando minhas unhas em minha pele e gritando mais
alto. Ele está morto. O mundo não significa nada. Ninguém significa
porra nenhuma. Ele está morto.
— Papai! Faça alguma coisa! Eu imploro! — Minhas mãos
envolvem o corpo de Kalon novamente, dessa vez com mais força.
— Ele não está respirando faz dez minutos! Faça alguma coisa!
— Alguém faz alguma coisa! — Eu balanço a cabeça para
trás. — Eu quero a cura para a morte, eu quero qualquer coisa,
apenas tragam ele de volta! — Eu afundo meu rosto em seu
pescoço, sentindo seu cheiro como se isso pudesse acabar a
qualquer momento.
Eu não quero ter que lidar com o luto. Eu não quero viver em
um mundo onde ele não está comigo em carne e osso. Meus
gemidos de angústia se tornam cada vez mais altos, tão intensos
que eu sinto ânsia de vômito. Eu olho ao redor em busca do seu
fantasma, desejando vê-lo ao meu lado como Nikoleta vive me
perseguindo, mas eu não encontro nada. Tudo está tão vazio e
sombrio que eu começo a ficar sem fôlego.
— Papai! Faça alguma coisa! — Eu grito mais alto, erguendo
minhas mãos em prece. Meu pai me olha com pena, todo mundo
está me olhando com pena, como se agora eu realmente tivesse
uma razão para enlouquecer de verdade. Ninguém fala nada. Não
ouço ninguém dizendo que isso é algum delírio. Eu fecho meus
olhos porque eu sei que vou. Eu estou louca de verdade. Eu estou
quebrada. Ele está morto. Ele está morto. Ele realmente está morto.
Isso é culpa minha. Se eu tivesse esperado ele voltar para dizer que
eu o amo, nada disso teria acontecido. Ele está morto de verdade.
Eu quero morrer também. ISSO É CULPA MINHA.
— Arcane. — Uma mão pesada descansa em cima do meu
ombro. — Você precisa se controlar, ele está morto. — Eu não
suporto ouvir a voz desse homem.
— Por que você ainda está aqui? — Eu grito alto, virando
meu rosto em sua direção. Apenas a sua presença é um insulto
devastador a minha alma. — Você não acha que já fez o suficiente?
— Eu me contorço no chão, não suportando ver a maldita arma
ainda em sua mão. — O que mais você quer de mim?
— Eu quero que você venha comigo! — Ele me olha de um
jeito tão nojento que sinto vontade de arrancar meus olhos. — Kalon
está morto, você precisa aceitar e vir comigo. — Eu gemo quando
ele puxa meu corpo, levantando meus joelhos do chão e me
chacoalhando. — Você é minha agora, Arcane.
— Existe apenas um homem nesse mundo a quem eu
pertenço. — Eu sibilo, começando a tremer conforme esse monstro
em meu peito fica maior. — E você acabou de tirar a vida dele. —
Bato minhas mãos em seu peito, usando toda a minha força para
afastá-lo. — Eu vou arrancar a porra da sua língua por você ousar
dizer que eu pertenço a alguém nesse mundo além do meu homem.
— Pare com isso, porra! — Evren geme quando eu esmurro
em seu rosto, meu corpo treme de exaustão, mas eu ignoro todos
os protestos e pulo em cima do seu corpo.
Eu estou cega, meus dedos estão doloridos com cada
impacto da minha mão contra sua face. Ele tenta lutar, mas eu uso
todos os recursos para imobilizá-lo no chão.
— Alguém precisa pagar pela morte dele! — Eu grito,
sentindo prazer com cada gota de sangue que eu arranco do seu
rosto. — Eu não vou parar até que a porra do mundo inteiro esteja
queimando!
Evren usa suas mãos para me empurrar no chão, mas eu uso
minhas pernas para acertar sua barriga, fazendo-o sequer ter forças
para se levantar sobre mim. Eu quero matá-lo lentamente, quero me
banhar com seu sangue e entregá-lo ao diabo com minhas próprias
mãos. Foda-se o maldito controle, isso não me serve de nada
quando eu não tenho mais uma vida para aproveitar. Eu não me
importo se vou ser executada ou se vou passar o resto da minha
vida dentro de outra prisão. Não existe nada no mundo que possa
me segurar agora que Kalon está morto.
Eu uso minhas mãos para desferir outro murro em seu rosto,
fazendo-o cair para trás e bater a cabeça no chão.
— Arcane! — Yuri grita atrás de mim, eu grito em resposta. O
som sai de uma forma tão rouca e quebrada que ele recua, não se
incomodando em tomar alguma atitude.
Eu pego uma pedra no chão, usando ela para bater contra a
cabeça de Evren e arrancando seu fôlego. Ele engasga, erguendo
suas mãos para lutar comigo.
— Eu poderia passar a eternidade repetindo esse momento.
— Eu falo, vendo a pedra manchada com seu sangue. — Eu desejo
ir para a porra do inferno, apenas para reencontrá-lo e fazer tudo de
novo. Sem parar.
Cada impacto não é suficiente para acalentar a minha alma,
não, cada movimento apenas me faz lembrar do motivo pelo qual
estou fazendo isso. Meu homem está morto. Eu não tive a chance
de dizer que amo ele. Meus dedos estão temendo pela força que
estou usando, eu abandono a pedra que praticamente se esfarelou
em meus dedos depois de tão usada. Eu respiro pesadamente,
parando alguns segundos apenas para me satisfazer da visão dele
engasgando com seu próprio sangue e gemendo sufocado. Minhas
bochechas estão sujas, meu busto e meus cabelos.
— Arcane, pare! — Yuri toca meu ombro. — Ele já está
morrendo! Você está me assustando!
— Não encoste em mim! — Eu vocifero. — Me deixe em paz
com a minha dor! Me deixe matá-lo! — Eu não quero parar, não
quero ter que ficar calma e ver o corpo de Kalon sem vida no chão.
Minha cabeça está explodindo, mas eu uso cada energia
para rasgar pedaços da minha roupa e enrolar ao redor do seu
pescoço. Fico em pé, puxando seu corpo bem devagar pelo chão,
usando como gancho a ponta do tecido amarrado no seu pescoço.
Eu paro quando encontro a cerca mais próxima.
— Eu quero que você apodreça no inferno. — Sussurro e
inclino meu rosto para o alto, me sentindo quebrada e triste de uma
forma que ninguém pode curar, absolutamente nada vai me
reconstruir novamente.
Meus lábios se repuxam em uma expressão chorosa quando
eu levanto seu rosto para bater contra o arame farpado. Evren geme
e eu fico satisfeita por ele ainda estar vivo e sentindo cada fagulha
de dor. Eu rasgo seu rosto bem devagar, ouvindo o barulho
inconfundível do tecido se separando do seu rosto.
Eu continuo batendo sua cabeça repetidas vezes, me
saciando com a facilidade que ele está sendo destruído, mas ao
mesmo tempo me sinto amarga por saber que depois que ele estiver
morto, eu vou precisar parar, só que eu não quero parar. Quero
expressar a minha dor até o fim dos tempos.
Eu paro quando seu corpo fica enganchado no arame e eu
não consigo mais puxar. Um vazio doloroso se expande em meu
peito quando o silêncio reina nessa maldita fazenda. Minhas pernas
estão trêmulas, eu desabo no chão, me encolhendo e encarando as
marcas de sangue por toda parte. Todos os meus demônios voltam
a gritar na minha cabeça e só agora eu percebo que eles não
estavam aqui desde que Kalon entrou na minha vida.
Eu me sinto tão sozinha e desamparada que começo a gritar,
meu corpo está tão fraco que eu deito no chão, não conseguindo
ficar sentada. Minha face está contra o chão, o cheiro da terra
preenche meu nariz, mas é tão artificial e insignificante que eu
começo a engasgar, sentindo ânsia de qualquer coisa que ainda
exista no mundo como se a morte do meu homem não tivesse
causado impacto.
— Arcane, você está me ouvindo? — Eu gemo quando ouço
a voz enjoativa do meu pai. Eu me encolho, sentindo frio. Quero
apenas ficar sozinha. — Arcane! — Sua voz está distante, mas ao
mesmo tempo tão perto.
Eu o ignoro, procurando por alguma lembrança boa que vivi
com Kalon. Todas as noites em que dormimos juntos, onde eu não
me sentia mais sozinha. Sua mão ao redor da minha cintura, me
abraçando com força, como uma promessa de que nada pode me
arrancar dele. Porra. Mas e como eu fico agora que ele foi
arrancado de mim? Eu levo minha roupa suja de sangue ao meu
nariz, procurando sentir o seu cheiro que é tão doce e profundo que
me deixa embriagada no meio dessa negação desesperadora.
— Arcane, nós precisamos levar Kalon para o hospital. — A
mão de Yuri toca a minha coluna e eu choramingo, como se tivesse
levado uma surra. — Você precisa levantar do chão, agapi mou. —
Eu me sinto doente, me sinto fora de mim mesma.
Meus olhos procuram os seus sem muito interesse no que
está acontecendo ao meu redor. Eu quero apenas me desligar da
realidade.
— Se você não está aqui para atirar no meu peito e acabar
com o meu sofrimento, então me deixe em paz. — Eu rosno, tão
agressiva e magoada que ele recua suas mãos. — Ninguém vai tirar
ele de mim. — Eu tento levantar do chão, sentindo tontura
imediatamente.
Eu quero apenas continuar nos braços dele. Não importa se
Kalon está morto, ainda é ele, ele ainda tem o mesmo cheiro e a
mesma aparência. Ninguém vai tirar o seu corpo para longe de mim,
eu quero apenas ficar com ele para sempre, não importa como seja.
— Arcane, deixe ele! — Antes que eu termine de engatinhar
para pular em seus braços, Yuri me segura com força, fazendo meu
corpo deitar no seu colo que é tão diferente do lugar que eu
realmente quero estar.
Ele segura meu queixo, me posicionando para vomitar todo
esse desconforto dentro do meu estômago. Eu não sei quanto
tempo permaneço nessa posição, como uma boneca quebrada que
perdeu metade dos movimentos, mas eu consigo ouvir o barulho de
sirenes.
Eu ouço Kol gritando com eles. Os médicos fazem os
primeiros socorros, mas Kol quer que eles sejam mais rápidos. Eu
ouço alguém falando sobre uma cirurgia de última hora e como
Adalet também vai precisar de uma. Eu ouço a voz instável de Salih.
Alguém está falando sobre os batimentos de Kalon terem parado
por quinze minutos, sobre colocarem máscara de oxigênio, eles
perguntam o nome da sua esposa, se eu quero acompanhá-lo. Eles
perguntam que horas são, e para não precisar ouvir a notícia do
óbito, eu apenas desabo.
Eu mergulho na escuridão assustadora que Kalon havia
mantido longe da minha vida por tanto tempo que eu já tinha me
acostumado a viver sem ela. Agora ela está de volta e ele não está
mais aqui para me salvar.
Alguém bate em meu ombro, me fazendo abrir os olhos com
um sobressalto. Estou sentada em uma cadeira desconfortável que
deixa metade do meu corpo dolorido. Eu levanto minha cabeça,
incomodada com as luzes claras do hospital, apenas para ver Kol
me assistindo cheio de preocupação.
— Como você está? — Ele questiona, me fazendo odiar sua
pergunta.
Eu não faço esforço para responder, permaneço inerte, agora
observando minhas mãos sujas de sangue. Eu me encolho quando
ele toma meu silêncio como uma permissão para sentar ao meu
lado. A presença de qualquer pessoa que não seja o meu marido
me faz ficar enjoada.
— Você está com frio? — Ele tenta tocar o meu braço, eu me
esquivo, chiando de um jeito agressivo para ele me deixar em paz.
— Arcane, você está toda suja de sangue e as pessoas estão
assustadas.
Ele sussurra, me fazendo olhar em volta. Estamos em um
hospital público de Istambul, onde algumas crianças esperam na
recepção e são obrigadas a me ver desse jeito, mas eu não me
importo com nada. Kol me olha esperançoso, desejando que eu fale
alguma coisa, mas não sinto nenhuma vontade de me comunicar.
Eu me sinto profundamente vazia e quebrada ao ponto de não
conseguir falar. Tudo dentro de mim está doendo.
Eu não sei onde meu pai está, tampouco me importo com
isso. Faz horas que estamos esperando nesses corredores, alguém
tentou me explicar o que está acontecendo, mas eu não consegui
absorver nenhuma palavra. Kol suspira impaciente, retirando o seu
sobretudo e colocando em meus ombros.
— Você está temendo, Arcane. — Ele aperta meus ombros,
fazendo com que eu afunde mais ainda em meu assento. Um
resmungo choroso sai da minha boca quando lembro do corpo de
Kalon, ele estava tão frio e sem nenhum sinal de vida. — Arcane…
— Kol me chama, puxando meu corpo com força até que minha
cabeça deita em seu ombro. — Eles estão fazendo uma cirurgia
nele há horas, isso significa que vai dar tudo certo, não existe a
chance de Kalon morrer e deixar você sozinha nesse mundo.
Ele declara, tentando me consolar. Meus olhos se fecham,
não suportando ouvir nenhuma outra palavra que possa sair da sua
boca. Salih vem caminhando ao lado de Yuri, os dois estão
conversando baixinho e com uma aparência horrível.
— Encontramos uma forma de ir para Atenas o mais rápido
possível. — Meu pai fala, me olhando cheio de preocupação. —
Salih marcou um voo privado para o anoitecer. Devemos nos
preparar, Rajá e Ivan vão tomar conta do que for necessário para
investigar a pessoa que Evren fez um acordo para matar Kalon e
levar Arcane.
Pânico rasga minha garganta ao ouvir suas palavras, a única
forma de matar o que sobrou dentro de mim é me levando embora
dessa cidade que foi o palco dos meus momentos mais felizes. Eu
não quero ir. Horror invade meu peito e eu tento me erguer para
protestar, mas estou tão fraca que meu corpo é empurrado para
baixo em um solavanco doloroso.
Ainda tem a pessoa que quer destruir minha vida, isso não é
nada justo.
A única pessoa que eu consigo imaginar que tenha motivos
para tentar me matar, é a minha mãe. Assim como papai também
imagina que seja ela. Uma raiva fumegante sobe por minhas veias,
fazendo o meu peito latejar e minha respiração ficar pesada. Eu não
consigo enxergar nada além da necessidade de destruir todo mundo
que contribuiu para que Kalon ficasse em uma linha tênue entre a
vida e a morte.
— Arcane mou, você precisa me dizer se está bem. — Yuri
senta no lugar que estava sendo ocupado por Kol. Eu não faço
esforço para encarar seu rosto. — Quando voltamos para Atenas,
as coisas entre eu e você não podem continuar tão… Íntimas.
Um som grotesco escapa da minha boca ao ouvir esse
absurdo. Ele está dizendo que não pode continuar fazendo o seu
papel de pai, o que já é uma merda independente dos seus
esforços.
— Me deixe facilitar as coisas entre nós, papai. — Eu levanto
meu olhar. — Enquanto Ivan Somáli estiver vivo, você só vai existir
para ele, amar ele e ficar ao lado dele. — Meus lábios se repuxam
em repulsa. — Porque você tem tanta dependência nele que não
consegue enxergar o quanto ele te estragou, ou o quanto são ruins
um para o outro.
— Você realmente acha que é por isso que eu fico ao lado
dele? Por vontade própria? — Ele me olha cheio de incredulidade e
mágoa.
— Eu estou pouco me fodendo por seus motivos egoístas. —
Eu grito alto, começando a tremer. — Tudo que eu sei é que o meu
homem está morrendo e eu odeio você por não ter arrancado a
cabeça de Katerina quando teve a chance naquela época. — Eu
aponto o dedo em sua direção, relembrando do dia sombrio em que
ela começou com tudo isso. — Você foi um covarde. —
Choramingo. — Eu estou prestes a perder o homem que eu amo por
causa de uma mulher que deveria estar morta, mas não está!
Yuri me olha cheio de exaustão, como se realmente sentisse
toda a insignificância que eu despejo em cima dele. Seus olhos me
observam dos pés a cabeça, então eu percebo que é porque estou
em pé, na sua frente. Meu corpo está tremendo e eu estou prestes a
desmaiar. Todos estão me olhando como se eu fosse louca, até
mesmo alguns médicos se aproximam para me alcançar, mas Kol e
Salih os impedem.
— Eu entendo que você está assustada, com muito medo e
quebrada. — Yuri sussurra, me olhando de um jeito tão amoroso
que sinto vontade de gritar, eu não quero essa afeição quando algo
dentro de mim está quebrado. — Mas vai ficar tudo bem, Arcane.
Isso vai passar, acredite, vai passar…
— Não vai passar, papai! — Eu grito alto, empurrando seu
corpo para longe do meu quando ele tenta me tocar. Eu me esquivo
como se seu toque carinhoso pudesse arrancar um pedaço do meu
corpo. — Não vai passar! — Eu levo as mãos aos meus cabelos,
choramingando alto quando a luz forte do hospital incomoda meus
olhos. Eu sinto uma agonia tão angustiante que começo a andar aos
tropeços.
— Arcane. — Ele protesta, encarando meus pés descalços.
— Venha aqui… Você precisa de um abraço, você está nervosa.
— Não vai passar porque não há nada que eu queira nesse
mundo além dele! — Meus olhos estão queimando pela falta de
lágrimas para escorrer. — Não existe nada no mundo! Eu não quero
nenhuma dessas coisas fúteis para preencher a minha dor! Não vai
pesar! Eu não quero que isso acabe para que outra coisa comece!
— Balanço a cabeça em negação, tentando respirar fundo, mas a
cada segundo eu sufoco mais ainda.
Quando Yuri tenta me abraçar, o médico cirurgião aparece e
ele se detém. Sinto meu corpo estremecer dos pés a cabeça ao ver
a expressão pesarosa no rosto do homem. Meu corpo enfraquece
de um jeito tão angustiante que sinto náuseas, eu caminho na
direção do meu pai, temendo receber alguma notícia ruim e não
conseguir suportar.
— Algum familiar do paciente está aqui? — O médico
pergunta, unindo as mãos uma na outra.
— Fale logo. — Eu imploro.
— Eu sou o irmão dele e ela é a esposa. — Kol se apressa,
parando ao lado do médico.
— Eu sinto muito. — O médico abaixa o olhar. — Nós
fizemos o possível na cirurgia, foi um procedimento delicado, o
paciente perdeu muito sangue e teve um lugar muito complicado
que foi afetado… — Eu tremo quando minha vista escurece.
— Fale de uma vez. — Eu me enfureço, tapando a boca para
conter um soluço.
— Tudo que podemos fazer é esperar ele acordar. — O
homem fala. — Nós fizemos o que estava ao nosso alcance para
salvá-lo, mas agora é com ele.
O mundo parece sumir dos meus pés no momento em que
compreendo o que ele está dizendo. Eu abaixo a cabeça,
incomodada com todo esse pesadelo que se intensifica e não vai
embora.
— Se vocês têm algo para dizer a ele… — O homem
continua falando. — Alguma coisa importante, então vou permitir
que entrem no quarto apenas por alguns minutos, mas não
perturbem a recuperação dele. Caso ele não sobreviva, vocês terão
se despedido.
Suas palavras me acertam como uma apunhalada. Eu
caminho para trás, não suportando ficar mais um segundo nesse
ambiente assustador. Eu não quero passar por isso, não quero dizer
adeus para a única pessoa que precisa ficar comigo para sempre.
— Arcane! — Yuri tenta me segurar quando eu começo a
correr. Eu não olho para trás, apenas atravesso os corredores do
hospital, ignorando as pessoas assustadas com minha aparência
horrível.
Empurro as portas de vidro quando alcanço a saída, eu libero
uma respiração trêmula no primeiro segundo em que sinto o vento
noturno. Eu me curvo, engasgando em meio ao choro desesperado.
Reúno minhas forças até conseguir me curvar em um banco de
pedra debaixo de uma árvore. Fecho meus olhos, apoiando minha
testa no mármore frio. Meus ombros balançam enquanto choro por
toda a vida que podemos perder.
Ele salvou a minha vida, me tirou da prisão e me mostrou que
eu posso ser livre. Eu me arrependo tanto de todo o tempo que
perdemos porque eu estava cega e não conseguia enxergar tudo
que ele fez por mim.
— Como uma jovem tão linda por estar chorando desse jeito
tão triste? — Eu soluço, tendo um sobressalto quando uma voz
masculina faz atrás de mim.
— O que você quer? — Levanto meu rosto e afasto minhas
lágrimas para enxergar o homem que está sentado à minha
esquerda.
— Eu quero saber o que está acontecendo, você está
machucada? — Elequestiona, apontando para todo o sangue em
minhas roupas e mãos.
— Estou. — Balanço a cabeça. — Mas aqui. — Aponto para
o meu peito.
— Ah, desse jeito eu não posso ajudar. — Ele lamenta,
inclinando a cabeça para o lado e possibilitando que eu veja melhor
o seu rosto. — Mas você pode expressar sua dor, assim ela pode
ficar leve. — Ele parece tão familiar, como se eu tivesse visto o seu
rosto um milhão de vezes. Tento lembrar onde, mas minha cabeça
está doendo tanto que apenas ignoro essa impressão.
— O meu marido está morrendo. — Eu respondo, fechando
os olhos quando apenas essas palavras me fazem querer chorar. —
Temos toda uma vida planejada e eu nem sei se ele vai acordar
outra vez.
— Eu sinto muito por ele. — Os olhos do homem brilham
cheios de pesar. — Mas pense que nem tudo está perdido, acredite
como louca que ele pode viver, e um milagre vai acontecer. — Ele
estende sua mão em minha direção, eu seguro e ele me ajuda a
levantar. — Dizem que não há nada mais forte do que o amor de
dois amantes, isso ultrapassa o tempo e o espaço, ao ponto de
milagres acontecerem para que os corações não se partam.
Ele retira um lenço branco do bolso, enxugando minhas
lágrimas bem devagar. O céu está coberto por nuvens escuras. Eu
não quero que Istambul seja lembrada como uma história triste, foi
aqui que aconteceram os melhores momentos da minha vida. Eu
balanço a cabeça em negação, ainda soluçando, devastada com
toda essa dor que se expande em meu peito.
— Qual o seu nome? — Eu questiono, ainda sem
compreender porque sinto que eu conheço ele de algum lugar.
— Meu nome é Aleksander. — Ele se apresenta, fazendo
uma reverência educada. — Qual o seu nome, criança?
— Eu me chamo Arcane. — Respondo, limpando a garganta
para soar mais calma.
— Arcane. — Seus olhos inspecionam cada traço do meu
rosto e em seguida ele balança a cabeça em concordância. — É um
prazer, independente das circunstâncias.
— Então o segredo é apenas acreditar que um milagre pode
acontecer? — Eu pergunto, voltando ao assunto inicial. — Por que
se for isso, eu faço tudo, qualquer coisa que estiver ao meu
alcance… — Balanço a cabeça. — Qualquer coisa para trazer ele
de volta.
O homem sorri largo, então balança a cabeça em
concordância como se reconhecesse esse sentimento dentro de
mim. Eu respiro fundo quando ele enxuga minhas lágrimas
novamente.
— Sabe, eu também perdi alguém. — Ele me olha de um jeito
pesaroso. — Minha filhinha caçula. A pior parte é que eles
entregaram apenas o seu corpo sem vida, eu não tive a chance de
usar todas as minhas esperanças para que ela pudesse ficar bem.
— Sua voz fica falha. — Eu tenho comigo que se eu tivesse ficado
perto dela, se eu estivesse segurando ela nos meus braços, ela iria
ficar bem. Eu só precisava segurar ela em meu colo e ela iria
sobreviver. — Ele engole em seco de um jeito que me faz querer
chorar novamente. — Mas não me deram a chance.
— Então não fuja disso só porque está com medo. — Ele
segura meu queixo. — Vá correndo e passe cada momento ao lado
dele enquanto ele estiver aqui, converse com ele e o lembre de
todos os motivos dos quais ele precisa lutar para ficar entre os
vivos. — O homem aperta minha mão de um jeito carinhoso. — Eu
falo sério, lembre a ele que a história de vocês dois ainda não
terminou.
De certa forma, as duas palavras me revestem de força e
determinação para eu não fugir só porque estou com medo da
morte. Eu preciso ficar ao lado de Kalon, segurar sua mão e dizer
em seu ouvido todos os motivos para ele viver, porque eu não aceito
viver em um mundo onde ele não esteja.
— Eu sinto muito pela sua menina. — Balanço a cabeça. —
Sinto muito mesmo.
— Claro que você sente, você é uma pessoa tão boa, dá pra
ver em seus olhos, criança. — Ele pisca. — Por isso que você
merece toda a felicidade desse mundo, e eu espero rever você com
boas notícias dentro de algumas semanas.
— Se ele melhorar. — Eu sussurro, segurando sua mão. —
Darei um jeito de encontrar você apenas para dizer que deu certo.
— Eu balanço a cabeça.
O homem se ergue, olhando ao redor por algum tempo, então
me entrega um outro sorriso cheio de convicção e dá as costas,
sumindo entre as árvores como uma sombra que se mistura com
tudo que é sombrio, e isso me causa arrepios. Minha garganta fecha
quando eu me vejo sozinha outra vez, mas as portas de vidro são
abertas há alguns metros de distância e Kol vem caminhando em
minha direção.
— Você se sente melhor? — Ele questiona, olhando na
direção que o homem saiu. — O que você estava fazendo aqui fora?
— Ele pergunta outra vez, avançando alguns passos no rumo que o
homem sumiu, seu olhar é cheio de indiferença e raiva.
— Eu vou poder ver Kalon agora? — Pergunto, olhando para
as condições em que eu estou.
Suja de sangue e terra, minhas roupas estão rasgadas em
alguns lugares e eu me sinto tão fraca que posso desmaiar caso eu
comece a caminhar por muito tempo.
— Você derrubou o sobretudo quando saiu correndo. — Ele
bate os cílios e me encara. — Você não pode passar frio, por essa
hora o clima é muito forte.
Ele passa o tecido escuro e grande por cima dos meus
ombros novamente. Eu balanço a cabeça em concordância,
agarrando com força, me sentindo grata por isso me trazer algum
conforto.
Kol observa ao redor outra vez, então se inclina para o lado,
apontando que eu devo segui-lo para entrar no hospital. Quando as
luzes claras voltam a afetar minha vista, eu sinto vontade de sair
correndo pela angústia que se expande em meu peito, mas me
mantenho forte e procuro não pensar negativamente. Claro que
Kalon vai ficar bem, de forma alguma ele me deixaria em um mundo
onde não posso viver sem ele ao meu lado, mesmo que essa
decisão não esteja em suas mãos, ele precisa de um jeito de
sobreviver.
Meu corpo começa a tremer quando passo por meu pai e
Salih, então meu cunhado abre a porta para eu entrar no quarto
silencioso. Meus olhos se enchem de lágrimas quando vejo Kalon
deitado na cama, ele está usando roupas brancas e coberto até o
peito por um tecido azulado. Os aparelhos estão ligados, mostrando
os seus batimentos cardíacos um pouco lentos. A tranquilidade que
se espalha pelo quarto é tudo que sua alma precisa nesse
momento. As cortinas do seu quarto estão abertas, permitindo que o
som silencioso da rua adentre por essas paredes, na cabeceira da
cama está tocando um disco na vitrola, eu reconheço a música de
imediato, Gitme do Dolu Kadehi Ters Tut junto com Sedef
Sebuktekin. Talvez seja uma grande ironia do universo que a letra
fala exatamente do que eu necessito que ele faça; que ele não vá
embora. que ele fique, ou que me leve junto para eu não precisar
ficar sozinha nesta terra.
— Meu amor? — Eu me aproximo do seu corpo, segurando
sua mão na minha, a eletricidade me sufoca quando sou atingida
em cheio pela maciez dos seus dedos. Aperto meus lábios na
tentativa de segurar um soluço rouco, ele permanece de olhos
fechados e seu corpo não se movimenta. Ele permanece inerte. Eu
subo na cama, deitando ao seu lado com cuidado e envolvendo seu
tronco com minhas mão.
— Por favor, não fique frio. — Eu imploro, reconhecendo que
a frieza é como um sinal de que a morte veio ceifar nossas almas.
Eu escondo meu rosto na curva do seu pescoço, respirando
pesadamente o seu cheiro que permanece o mesmo. — Você
precisa ficar vivo. — Sussurro, desejando que ele esteja me
ouvindo. — Eu preciso que você fique bem e volte para mim.
Eu afasto meu rosto da sua pele para observar melhor o seu
rosto, meus dedos se erguem lentamente para sentir o contorno dos
seus lábios, o formato das suas bochechas e a ponta do seu nariz.
Não consigo resistir a nossa distância, então esfrego minha
bochecha em sua pele, tomando cuidado para não machucá-lo.
Meus lábios ficam trêmulos quando encosto minha boca na sua com
tanta paixão que perco o fôlego.
— Me desculpe por todas as vezes que eu falei que te
odeio… Não era verdade. Eu estava apenas com medo de
confessar o que nasceu dentro de mim há muito tempo. — Eu apoio
minha testa na lateral da sua cabeça. — Mas você precisa voltar
para mim e assim eu poder falar a verdade olhando em seus olhos.
— Minha voz sai mais baixa e chorosa. — Não deixe que a gente
acabe assim, por favor, eu tenho tanta coisa para falar agora que
entendo o que você estava fazendo desde o começo… Por essa
razão eu não posso existir se você também não.
Eu permaneço repetindo essas palavras, falando tudo outra
vez e beijando seu rosto, me certificando de que seu corpo está
quente. Em algum momento eu adormeço ao seu lado, ouço apenas
as vozes distantes.
— Você quer que eu leve ela nos braços? — Não consigo
distinguir se foi Kol ou Salih.
Eu aperto o corpo de Kalon, sentindo medo de que alguém
me tire dele novamente. Um choro fraco sai da minha boca e eu
escondo meu rosto na curva do seu pescoço. Eu não quero sair,
quero ficar com ele. Me deixem ficar com ele.
— Não, ela está melhor com ele. — Yuri responde. — Vamos
deixar ela passar esse tempo com ele, não sabemos o dia de
amanhã.
O corpo de Kalon se mexe minimamente contra o meu,
causando fisgadas de esperança em meu peito, provando que não
existe um amanhã onde não estamos juntos. Ele vai viver, nós
vamos ficar juntos outra vez e ele saberá de todas as coisas que
sinto em meu peito.
38. UM MILAGRE OU
MALDIÇÃO?
“As estações mudam, as vidas mudam,
mas as memórias são sempre permanentes…”

— DILEK TASI.

Faz três dias que Kalon ainda não acordou completamente.


Algumas vezes ele tenta abrir os olhos, mas ainda não o fez, assim
como também aperta minha mão quando estou conversando com
ele. Rajá disse que ele está demorando porque foi um trauma muito
grande, que ele precisa de mais forças para se recuperar, então
aumentou a dosagem do soro e remédios. Minhas irmãs tentaram
conversar comigo nos primeiros dias, Melissa insistiu tanto que eu
aceitei sair de perto de Kalon para tomar um banho, mas
rapidamente voltei a deitar com ele sem dizer nenhuma palavra para
eles.
Estamos na mansão Somáli, todos os dias eles vêm até o
nosso quarto para saber como estamos. Rajá é o que fica mais
tempo, a maior parte ele me observa profundamente, tentando
entender o meu silêncio e fazendo algum jogo de afeto para que eu
diga alguma coisa para ele, mas eu permaneço agarrada no tronco
de Kalon e não falo nada com ninguém. Todas as minhas palavras
eu gasto conversando com Kalon, pedindo para ele acordar e voltar
para mim. Eu sinto saudades da nossa casa, todos os dias eu
derramo algumas lágrimas por não estar lá e sim em Atenas. Sinto
saudades do ar puro de Istambul, da sensação de liberdade que
corre em minhas veias, das paisagens históricas e da vista para o
mar que temos na nossa casa.
— Arcane, você precisa comer alguma coisa hoje. — Eu
afasto meu rosto para longe do pescoço de Kalon.
Rajá está parado na minha frente, suas mãos nos bolsos da
calça branca, assim como a parte de cima. Seus cílios batem
quando nossos olhos se encontram e ele arrisca sorrir para mim.
— Eu adoraria ouvir sua voz, meu bem. — Ele balança os
ombros. — Qualquer coisa. — Seus olhos brilham cheios de
esperança, isso faz meu coração se partir. Eu admiro seus esforços
para me fazer falar, mas eu não sinto vontade. — Apenas fale. —
Ele se aproxima quando eu viro o rosto na direção onde Páris está
deitado no chão, ele permanece ao lado de Kalon desde que
estávamos no hospital de Istambul.
— Por que você não me deixa tentar? — Eu volto a olhar
para a porta. Salih caminha em nossa direção com seu bebê nos
braços. Ele beija as bochechas de Mert e acena sua mãozinha em
minha direção. — Diga Selam para a titia, filho.
— O que você está fazendo aqui? — Rajá chia, caminhando
na direção de Salih. — Eu disse para você esperar na sala, Sombra.
— Acontece que eu estou fugindo da mamãe, você pode falar
baixo? Por que ninguém me disse que ela ficou mais grudenta com
o tempo? — Ele caminha na direção de Rajá, segurando seu bebê
com mais força. — Ela está tentando me convencer a voltar para
casa agora que Kalon e Adalet quase morreram.
Tudo bem, eu não estou compreendendo absolutamente
nada que está acontecendo na minha frente. Os dois estão
discutindo como irmãos e ele está chamando Atena de mãe. — O
que está acontecendo? — Eu resmungo, tentando ligar os pontos.
— Desde quando vocês são…
— Irmãos. — Salih responde. — Nós somos irmãos.
Rajá gira seu rosto, seu olhar queimando enquanto
inspeciona cada traço do meu rosto como se eu fosse uma criatura
nova. Diversão brilha em seus olhos e ele entorta os lábios,
agradecido por eu ter falado alguma coisa.
— Como vocês são irmãos? — Eu questiono, ficando
perplexa. — Como eu nunca soube disso?
— Seu pai sabe. — Salih ergue uma sobrancelha. — Bem,
Kalon é muito rancoroso e gosta de fingir que não somos irmãos. —
Ele balança a cabeça em negação. — O desgraçado passou toda a
viagem fazendo isso apenas porque eu decidi ir embora de casa
anos atrás.
— Não esqueça da parte em que ele sempre finge que não
conhece Adalet e às vezes até obriga você a contar toda a história
de como se conheceram, só para ver você pulando a parte em que
foi embora de casa para poder ficar com ela. — Rajá solta uma
gargalhada rabugenta e respira fundo, sem desviar os olhos de
Salih. — Você merece esse tratamento de víbora que ele te dá.
— Ele está apenas magoado por eu não ter me submetido a
autoridade doentia do papai. — Salih ergue o queixo. Desprezo
brilha em seus olhos ao falar de Ivan. — Eu também prefiro fingir
que não faço parte dessa família, até meu sobrenome eu mudei.
— Claro, porque nossa infância juntos não significa nada. —
Rajá desvia os olhos, agora encarando seus pés.
— Não me entenda mal, eu amo vocês, mas eu jamais vou
permitir que aquele homem me doutrine como fez com todos vocês.
— Sua voz soa mais firme e raivosa, então ele beija a bochecha do
seu bebê e me olha. — De qualquer forma, Arcane, eu não tenho o
sangue deles. — Ele balança a cabeça em negação. Bom, isso
explica porque eles não são parecidos. — Atena teve que implorar
para ficar comigo. Eu não sou o membro mais importante dessa
hierarquia de homens com a humanidade corrompida. Prefiro ser
tratado como Kalon gosta de fazer, como se eu fosse um amigo
distante da família. — Sua voz é cheia de desprezo.
— Você está querendo dizer alguma coisa com isso? — Rajá
pisca, girando a cabeça para encarar o homem que de fato é o seu
irmão.
— Estou querendo dizer que vocês não têm o direito de
ficarem chateados comigo porque eu encontrei uma vida melhor
para viver. — Ele responde ríspido. — Eu não me sentia parte dessa
família, nosso pai nunca permitiu.
— Olhe ao redor, Sombra. — Rajá resmunga. — Ninguém se
sente parte dessa família, nosso pai era igual com todos nós, você
apenas procurou um meio mais fácil para si mesmo. — Rajá
gesticula. — Eu odeio quando você entra nesse assunto porque
parece que não devemos ficar ressentidos com o fato dessa família
ter ido de mal a pior depois que você pulou do barco.
— Eu não tenho culpa dos pecados que meus pais
cometeram, Rajá. Caso não tenha percebido, esse garoto em meus
braços é a minha única responsabilidade. — Ele fala firme.
— Você foi embora por causa de uma garota, Sombra. —
Rajá inclina a cabeça para o lado, claramente debochando dele. —
Uma garota.
— Não, você está enganado. Eu fui embora porque foi ele
quem fechou a porta na minha cara. — Salih fala mais alto,
empurrando o peito de Rajá. — Foi a porra do nosso pai que falou
que eu não precisava voltar para casa. Todos me deram apenas
migalhas, mamãe foi a única que implorou para ficar comigo porque
eu nasci no mesmo buraco que ela. E você, como o meu irmão mais
velho, não fez nada. Você apenas assistiu. Sabe, é por isso que eu
odeio a ideia de voltar aqui, mesmo que seja uma visita. Vocês são
todos loucos e egoístas. — Os dois discutem de forma calorosa. É
evidente a mágoa que sentem um do outro. — Eu odeio voltar
porque ninguém procura me compreender, todos estão chateados
por essa ilusão de irmandade ter virado uma chacota na primeira
dificuldade que surgiu.
— Parem de brigar. — Eu protesto, não gostando de como
isso fica mais intenso e o bebê começa a choramingar.
— Você foi o primeiro a estragar tudo isso. — Salih balança a
cabeça em negação.
— Do que você está falando, porra? — Rajá solta uma risada
ríspida.
— Seu irmão mais novo foi baleado e você não estava lá
para protegê-lo, Rajá. Largou ele porque era mais fácil, porque você
sempre foi egoísta demais e nunca vai conseguir assumir que errou
e está arrependido por ter matado a pessoa que ele mais amava
naquela época. — Salih jogar as palavras para cima de Rajá,
fazendo ele recuar para trás como se tivesse levado um tapa. —
Você foi o primeiro a abandonar esse conceito ridículo de irmandade
por causa de uma garota. Ou não vai admitir? Vai viver em negação
para sempre? Quando vai confessar que matou ela por remorso?
— Exatamente. Eu nunca vou falar, eu não preciso falar
sobre essa merda. O que aconteceu, está feito. — Rajá engole em
seco, esfregando seu queixo e olhando para o rosto de Salih. — Me
diga, Sombra, como eu vou assumir que matei Azra porque estava
com raiva por Kalon ter alguém mais importante do que eu?
— Você não liga mesmo em se redimir com seu irmão, não
é? — Ele balança a cabeça em negação. — Homenzinho covarde.
Eu no teu lugar já teria feito bem mais do que ser um merda egoísta,
por isso sou o melhor, você sabe. — Eu noto um sarcasmo
ameaçador em seu tom de voz.
Eu pensei que Rajá fosse reagir à altura, talvez dar um
enorme soco em seu rosto ou algum insulto pesado, mas o homem
apenas ri e balança a cabeça em concordância, como se
reconhecesse a vibra que Salih demonstra ser.
— Você é cobra criada, Sombra. — Ele fala com mansidão.
— Diz que eu sou idêntico ao papai em aparência, mas tem toda a
lábia venenosa do velho. — Tudo bem, essa foi uma resposta do
caralho. — Talvez eu use a jogada maravilhosa do Kalon e comece
a fingir que não somos irmãos, você gosta de causar, não é?
Cobrinha do caralho. Agora vai aguentar o meu fingimento também.
— Os lábios de Rajá se repuxam de forma debochada.
— Se você acha que há alguma redenção para traidores,
então vai precisar recriar a família Somáli, pois estamos fodidos. —
Rajá ri. — Traição é tudo que mantém essa família erguida, você
ficaria chocado ao descobrir como estamos condenados desde
sempre. Se você quer jogar isso para cima de algum pobre coitado,
vamos ser sensatos, culpe o papai por isso, não eu. Perto dele eu
sou um Santo e um dia vou provar.
Os dois caem em um silêncio perturbador depois dessas
palavras. Salih balança a cabeça em concordância, olhando para
Rajá dos pés a cabeça, então acaricia a bochecha do seu bebê que
deita a cabeça em em seu ombro. Rajá vira seu corpo para me
encarar com atenção, minhas mãos estão ao redor do corpo de
Kalon e meu rosto ainda permanece na curva do seu pescoço. Ele
está respirando pesadamente.
Salih caminha com calma para fora do quarto, batendo a
porta de um jeito que arranca um suspiro exausto de Rajá. Ele
desliza os dedos por sua testa, afastando alguns fios de cabelo e
acariciando sua barba.
— Por que você se comporta assim? — Eu questiono.
— De que forma? — Ele segura seu coque bagunçado entre
os dedos.
— Dizendo palavras que você não quer dizer. — Eu
respondo, analisando seus ombros trêmulos. — Você fica
incomodado em ser um babaca, mas ainda assim continua. — Eu
balanço a cabeça em negação. — Você sabe que Salih tem razão.
— Ele é o único que está vivendo melhor do que todo mundo.
— Rajá balança a cabeça em negação. — Eu também tenho razão
nessa discussão, mas ele ainda insiste em ser egoísta e falar que
nosso pai o fazia sofrer. — Ele balança a cabeça em negação. —
Novidade, ele fez isso com todos nós, e eu garanto que Sombra tem
irmãos que vivem pior.
— Tipo você, é isso? — Eu questiono, tentando decifrar o que
ele esconde por trás dessa casca grossa.
— Não, tipo Kalon. — Ele fala tão cheio de indiferença que eu
acredito em suas palavras. Rajá caminha até a bolsa de soro,
colocando luvas em suas mãos e abrindo uma nova embalagem de
analgésico. — Quando anoitecer, eu vou voltar para trocar os
curativos dele, esse remédio vai ajudar para o ferimento fechar logo.
— Rajá respira pela boca, me dando as costas por alguns
segundos. — De acordo com os meus cálculos, ele está pronto para
acordar em algumas horas, tudo está estável e ele apresentou uma
ótima melhora.
Eu fico impressionada com o fato dele ser um ótimo médico,
ele sabe de tudo e sempre está com algum livro esquisito em mãos.
Rajá permanece encarando os remédios, até que me olha por cima
do ombro.
— Você precisa comer. — Ele me olha de um jeito mandão.
— Eu só posso cuidar de uma pessoa por vez, e você… — Ele me
inspeciona de cima a baixo. — É proibida para o tipo de tratamento
que eu gosto de oferecer. — Eu engasgo ao entender o que ele
acabou de falar. O homem caminha em minha direção lentamente,
roubando minha respiração e me deixando desconfortável. — Abra
a boca. — Ele manda de um jeito indelicado.
— O que você quer comigo? — Eu tento me esquivar quando
ele segura meu queixo.
— Manter você viva. — Seus lábios se repuxam para baixo
quando ele empurra blocos de açúcar em minha boca.
— Rajá, eu não sou cavalo. — Eu faço uma careta.
— Com toda certeza. — Ele solta meu queixo. — Porque um
cavalo é sete vezes mais forte e saudável que você, fofinha. — Ele
pega o seu sobretudo branco que está em cima da poltrona. —
Qualquer coisa não me ligue, chame um dos outros. — Ele acena
com os dedos. — Vou levando o vira-lata fedorento também.
Foi necessário apenas Rajá fazer uma expressão fofa para
Páris ir correndo em sua direção, achando que vai ganhar alguma
recompensa. Uma risada amarga sai da minha boca quando ele
fecha a porta. Eu olho para Kalon agora que estamos sozinhos.
Acaricio seus lábios cuidadosamente, observando sua respiração
profunda.
— Você bem que devia acordar e dar um jeito nele, não
acha? — Solto uma risadinha triste. — Eu sinto falta de Istambul. —
Sussurro depois de algum tempo, entrelaçando meus dedos nos
seus e segurando o controle da TV.
Todos os noticiários sobre a Turquia estão comentando sobre
o final do jogo feminino de vôlei, foi uma grande vitória para o país e
as garotas realmente jogaram com muita bravura. Eu me concentro
na reprise avassaladora e solto uma gargalhada quando a atleta
Zehra Güneş bate suas mãos nas costas do árbitro.
— Essa Zehra é muito alta, mas eu também sou, então
porque você não está me olhando? — Uma voz grave fala bem ao
meu lado, me fazendo tremer e virar o rosto para encarar Kalon. Ele
está de olhos abertos e me observando. — Sevgilim? Que cara é
essa? — Ele bate os cílios. — Não está me reconhecendo?
Um choro fraco escapa dos meus lábios e eu afundo meu
corpo contra o seu, beijando a curva do seu pescoço, suas
bochechas e seus lábios. Eu respiro de alívio quando ele retribuiu o
meu beijo cheio de saudades. Seus dedos apertam minha cintura e
ele solta um gemido fraco.
— Eu estou machucando você? — Eu afasto meus lábios,
olhando para seu peito e rosto na busca de qualquer indício de dor.
— Você está bem? — Minha garganta dói pela quantidade de
palavras que falo rápido demais. — Eu vou chamar seu…
Ele segura meu pulso antes que eu possa sair da cama, seu
olhar corre por meu rosto, até demorar em meus lábios.
— Você não está se alimentando direito? — Ele questiona de
um jeito raivoso e preocupado. — Quantos dias eu estou dormindo?
— Três dias. — Todo meu corpo se expande de alívio por ele
finalmente estar acordado e bem. Eu arrumo meus cabelos pra trás,
aproximando meu rosto para deixar outro beijo em sua boca. —
Kalon, eu fiquei com tanto medo de perder você. — Sussurro e ele
segura meu queixo, me olhando cheio de uma possessividade
faminta.
— Você não vai. — Ele sopra as palavras. — Eu ouvi você,
mas estava cansado demais para conseguir fazer alguma coisa. —
Ele responde, fazendo uma careta dolorosa ao olhar para seu peito.
— Mas eu ouvi cada palavra, meu amor.
— Cada palavra? — Seu rosto está borrado pelas minhas
lágrimas.
— Cada uma. — Kalon resmunga em concordância,
aproximando sua boca para mordiscar meus lábios. — Eu estou
morrendo de saudades. — Ele deixa um beijo estalado no meu lábio
dolorido. Todo meu corpo enfraquece como reação às suas palavras
manhosas.
— Sinta isso. — Eu gemo contra sua boca, trazendo sua mão
até o meu peito. — Eu também estava morrendo de saudades.
— Você está pálida e com uma aparência cansada. — Ele
segura meu queixo, levando meu rosto para mais perto do seu. —
Eu quero que você se alimente agora mesmo. — Ele fala de um jeito
firme.
— Um milagre acabou de acontecer na sua vida e você está
preocupado comigo? — Eu questiono, não conseguindo afastar meu
rosto do seu toque firme. — Você é mesmo um louco.
— Claro que estou preocupado com você. — Seus dedos
deslizam por meu queixo até que ele aperta meu pescoço bem
devagar. — Minha vida não serve para porra nenhuma caso você
morra porque está fraca. — Ele aproxima sua boca da minha e sibila
do de forma possessiva. — Pior ainda, que você acabe morrendo
em cima do meu pau por não aguentar o tempo perdido que vamos
compensar na cama.
— Kalon, você acabou de acordar e já está pensando nisso?
Por acaso você acha que é de ferro? — Meu rosto esquenta, de
alguma forma ele consegue mexer tanto comigo que fico
envergonhada do quando meu corpo entra em combustão.
— Ora, você disse que um milagre aconteceu comigo. — Ele
balança a cabeça em negação. — Então vamos honrá-lo estando
juntos em uma só carne. — Eu solto uma gargalhada fraca pela
forma que ele fala sem nenhum escrúpulos.
— Você é inacreditável. — Eu aproximo meu rosto do seu e
fecho meus olhos. Estou tão aliviada por ouvir sua voz que tenho
medo que isso não passe de um sonho. — Você está bem mesmo?
De verdade? — Minhas mãos se fecham ao redor do seu ombro
com força, buscando algum tipo de descanso contra sua pele. Meu
coração bate tão rápido que perco o controle da minha respiração
estável.
— Eu garanto a você. — Ele desliza sua palma por minhas
costas. — Mas vou ficar melhor quando eu souber que você comeu
alguma coisa. — Então eu quero um cheeseburguer e souvlaki.
— Isso foi muito específico, e que tipo de mistura é essa? —
Kalon treme contra meu corpo, soltando uma gargalhada tão
deliciosa que eu gemo de satisfação. — Mais algum acréscimo?
— Sim. — Eu balanço a cabeça em concordância. —
Também quero loukoumades com mythos. — Levanto meu rosto
para ver a sua expressão de incredulidade.
— Certo, eu também estou com vontade de beber uma
cerveja geladinha. — Ele solta uma risada boba. — Mas o
Loukoumades vai ficar guardado para a sobremesa. — Ele desliza o
dedo indicador por meu nariz. — Tem certeza que essa gatinha vai
aguentar comer tudo isso?
— Você me deu uma ótima motivação agora a pouco. — Eu
bato os cílios, aproximando meus lábios dos seus. — Mas eu posso
dividir com você.
— Negócio fechado. — Kalon balança a cabeça. — Você
realmente ficou comigo esse tempo inteiro?
— Claro que fiquei. — Eu seguro seu queixo na intenção de
distribuir beijos por todo o seu rosto. — Vou mandar mensagem
para Kol trazer nossa comida e deixar na porta.
Eu me inclino por cima do corpo dele para pegar meu celular,
tomando cuidado para não machucá-lo. Kalon geme e afunda seu
rosto na curva do meu pescoço, deslizando sua língua de um jeito
inesperado. Eu estremeço, sentindo cócegas.
— Porra, Kalon. — Tento segurar seu ombro para me afastar,
mas ele fecha suas duas mãos ao redor da minha cintura. — Você
precisa ir com calma.
— Porra, minha vida. — Ele chupa minha pele, causando
uma ardência prazerosa. — Ei voltei dos mortos por você, não me
peça para ter calma.
— Você não voltou dos mortos. — Eu repreendo. — Você
estava vivo esse tempo inteiro, não me faça acreditar que em algum
momento eu perdi você de verdade e não foi apenas um delírio do
meu desespero.
— Tire a roupa e eu faço você acreditar em qualquer coisa
que a faça feliz. — Ele mordisca minha orelha.
— Eu recuso. — Seguro seu queixo. — Precisamos ir com
calma, eu não quero que você se machuque.
— Ora, Arcane. — Kalon me olha de um jeito ranzinza,
tentando levantar minha roupa. — Eu não tenho problema em foder
devagar, se é disso que está falando. — Seus lábios se repuxam de
um jeito safado.
Eu mando mensagem para Kol contando que Kalon acordou
e quer comer alguma coisa, ele disse que entende que precisamos
de um momento para recuperar o fôlego depois de tanto stress e
prometeu deixar a comida na porta.
— Chega disso. — Kalon pega o celular das minhas mãos
antes que eu possa enviar uma resposta em agradecimento. — Eu
ainda estou sem acreditar que você ficou todo esse tempo me
esperando acordar.
— Porra, o que eu posso fazer para você acreditar nisso? —
Eu dou risada, arrumando meus cabelos para trás.
— Isso é muito simples. — Sua mão descansa na minha
perna, puxando meu corpo para mais perto do seu. Eu me controlo
para não acabar em cima do seu colo. — Fique nua para mim.
— Claro. — Eu solto uma risada fraca, mas começo a tirar
meu vestido para satisfazer sua vontade. — Você está feliz agora,
habibi? — Kalon me observa cheio de fome.
Certo, eu nunca vou me acostumar com esse olhar selvagem
que ele guarda apenas para mim. Ele inspeciona cada pedaço do
meu corpo quando eu jogo o vestido no chão.
— Estou quase lá, minha alma. — Meus seios estão expostos
e duros, sua mão rapidamente aperta um deles entre os dedos e eu
mordo o lábio para não gemer alto. — Eu tenho certeza que você
pode me fazer mais feliz nesse momento.
Antes que eu possa questionar, sua língua desliza pelo
mamilo sensível, me arrancando um gemido fraco. Rapidamente
minha pele está molhada pela sua boca, e como se não bastasse os
chupões que ele marca em minha pele, seus dentes me apertam
com força, me fazendo agarrar seu ombro em busca de algum
equilíbrio.
Nossa cama espaçosa não parece suficiente para segurar
nossos corpos. Kalon está apoiado contra a cabeceira da cama e
isso permite que ele me segure com as duas mãos, puxando minhas
duas pernas para finalmente ficarem em cima do seu tronco. Eu
rebolo devagar contra seu membro, fazendo ele liberar um silvo
rouco.
— Eu senti sua falta. — Ele sopra minha pele, erguendo os
olhos para me encarar de um jeito preguiçoso.
— Eu também senti sua falta. — Eu encontro forças para
falar em meio ao prazer que toma conta do meu corpo.
— Eu não estou falando com você. — Ele muda para o outro
seio, puxando meu tronco para mais perto ao ponto dele afundar
seu rosto no meu busto. — Estou falando com a minha boceta. —
Ele empurra sua mão por entre minhas pernas, me causando
estremecimento. — Você vai me dar o que eu quero, amor?
— Ah, sim. — Eu tremo, ele rosna de satisfação e desliza
seus dedos na minha entrada, me fazendo rebolar em busca de
mais contato.
Meu coração bate desenfreado porque dias atrás eu estava
certa que nada disso voltaria a acontecer, que ele jamais voltaria a
me tocar como está fazendo agora. Meus lábios ficam entreabertos,
segurando um gemido silencioso quando ele atinge o ponto sensível
que escurece minha vista. Eu sinto tonturas de prazer quando ele
mantém dois dedos dentro de mim, aprofundando suas estocadas e
arrancando sons desconexos da minha boca.
Eu inclino minha cabeça para trás, rebolando com mais
necessidade contra seus dedos que me fodem em uma frequência
deliciosa, mas antes que eu possa me sentir plenamente entregue a
esse sentimento, Kalon afasta sua mão.
— Por que você parou? — Eu abro meus olhos, tentando
compreender porque ele está me torturando desse jeito. — Eu
estava quase lá. — Gemo de um jeito sôfrego.
— Você terá o seu prazer apenas quando comer. — Ele
conserta minha calcinha exatamente do jeito que estava antes. —
Vamos, o que está esperando? — Kalon estapeia minha boceta,
uma ardência dolorosa lateja entre minhas pernas, subindo por
minha barriga até alcançar minha coluna.
Eu pulo da cama, odiando como minhas pernas estão fracas
na caminhada difícil até a porta. Ele solta uma risada grave, não
tirando os olhos da minha bunda. Cubro meus seios e destravo a
fechadura bem devagar, a sacola está pendurada na maçaneta.
— Está com um cheiro delicioso? — Eu abro a sacola,
fechando a porta com o calcanhar. Kalon está em pé, analisando os
tubos de soro em seu braço. — Nem pense em tirar isso. — Eu
repreendo, avançando em sua direção e passando uma manta
verde por cima dos seus ombros.
— Venha aqui, vamos comer. — Ele senta na poltrona perto
da janela. Um vento delicioso adentra o quarto e eu caminho em sua
direção, ele bate em suas pernas para eu sentar.
— Eu acho que você não pode beber álcool, está cheio de
remédios em suas veias. — Aponto para a lata de Mythos que é do
tamanho de uma lata de Redbull.
— Tudo bem, contanto que você não me negue um delicioso
chá de boceta. — Kalon grunhe, olhando para a barra de ferro que
ele trouxe consigo para manter a bolsa de soro pela metade.
— Pare de falar coisas tão vergonhosas. — Eu solto uma
gargalhada feia. — Você faz eu me sentir a pior vadia de todas.
— Mas você é a melhor vadia de todas. — Ele me olha cheio
de inocência. Eu balanço a cabeça em negação, ainda dando
risada. Eu separo nosso cheeseburguer em um prato, misturando o
meu com molho apimentado e souvlaki. Kalon abre a boca,
indicando que quer um pouco do meu.
Apenas quando sinto o gosto delicioso na minha boca é que
percebo o quanto estava morrendo de fome. Kalon inclina seu corpo
contra a poltrona, vendo as luzes da cidade pela janela e
mastigando alguns pedaços de souvlaki.
Eu me levanto do seu colo para beber um pouco de cerveja e
desligo a TV para podermos ouvir alguma música na vitrola. Eu
separo alguns discos, analisando quais os mais usados, mas
rapidamente me rendo a curiosidade por um disco sem nome. Ele
está apenas guardado em uma embalagem verde musgo.
— Esse é especial? — Eu viro meu rosto para Kalon, ele
terminou de comer e está acendendo um cigarro. Faço uma careta
em desaprovação, mas ele apenas bate os cílios e me olha de um
jeito amável.
— Não, amor da minha vida. — Ele solta a fumaça. — É
apenas antigo.
Isso é o suficiente para aumentar minha curiosidade, eu
respiro pesado, colocando o disco com cuidado e me afastando
quando a música começa a tocar. É um instrumental, não há
nenhuma voz, apenas melodias lentas e tradicionais. A tranquilidade
preenche o nosso quarto e Kalon continua me observando enquanto
termina seu cigarro, a fumaça se dissipa quando some pela janela
aberta ao seu lado.
— Por que você não disse que Salih é o seu irmão? — Eu
falo quando termino minha cerveja.
— Porque ele não quer ser. — Kalon balança a mão que está
erguida para manter o cigarro em sua boca. — Salih foi embora de
casa, então ele não quer ser da minha família. — Ele balança a
cabeça em negação. — Então eu trato ele como meu amigo.
— Eu acho que ele foi embora apenas porque queria ser
livre. — Respondo, indo na sua direção. O olhar de Kalon estremece
por alguns segundos, então ele encara meus seios.
— Não quero você fumando. — Eu afasto o cigarro da sua
mão. — Até porque você ainda está se recuperando. — Ele me olha
de um jeito sério quando jogo seu cigarro pela janela. — Eu posso
fazer uma pergunta?
— Quantas você quiser, amor da minha vida. — Sua voz soa
profunda e tão eletrizante que eu fecho meus olhos.
— Salih disse que é adotado. — Eu limpo a garganta. — Que
ele veio do mesmo lugar que Atena, onde seria esse lugar?
— Uma ilha de ciganos. — Ele responde sem pensar duas
vezes. — Minha mãe foi vendida ao meu pai por uma família de
ciganos. Ela, Seyma, todo mundo são ciganos. — Ele balança as
mãos. — Isso é mais comum na Turquia do que imaginamos.
— Meu Deus, sua mãe foi vendida? — Minha voz falha, de
forma alguma eu cheguei a pensar que Atena era algum tipo de
escrava, para mim ela sempre foi de uma família rica e influente. —
Como ela nunca pensou em fugir?
— Não sei. — Ele balança os ombros. — Medo, talvez. Mas
eu gosto de pensar que eu e meus irmãos ressignificamos a sua
vida nesse país.
Eu perco o fôlego quando Kalon se ergue e caminha bem
devagar na minha direção, não desviando seus olhos dos meus
seios nus e avermelhados. Eu caminho para trás o quanto posso,
até que sinto minha bunda encostar na cama e ele avança bem
devagar, pairando seu corpo acima do meu.
— Arcane mou? — Ele chama meu nome como se fosse a
primeira vez.
— Habibi? — Eu engulo em seco, levantando meu queixo
para observar melhor os seus olhos verdes.
— Eu tenho uma pergunta. — Seus dedos acariciam minha
testa, afastando alguns fios de cabelo, até que seus dedos se
fecham em meu pescoço. — Por que você está tão interessada em
saber da vida do meu irmão? — Ele aproxima seus lábios bem
devagar, desferindo suas palavras enciumadas contra minha boca.
— Você gosta dele, por acaso?
— Eu gosto dele, ele é divertido e um pouco doidinho como
vocês. — Balanço a cabeça em concordância, não negando que
gosto do fato de existir outro Somáli e sua personalidade é tão
encantadora quanto a dos outros.
— Arcane… — Kalon rosna em advertência. — Eu vou bater
tanto na sua bunda que você vai chorar de um jeito feio. — Ele
afasta seus dedos do meu pescoço e eu respiro trêmula, sentindo
falta do seu aperto selvagem.
— Você arrancou os tubos do soro. — Meu dedo desliza por
seu braço. — Por favor, volte para a poltrona e me deixe colocar de
volta.
— Foda-se o soro. — Ele estala a língua. — Você não deve
falar no diminutivo com ninguém além da porra do seu homem.
— Nesse caso. — Eu solto uma gargalhada animada. — O
certo é homenzinho.
— Você ainda está me provocando? — Eu grito quando ele
posiciona sua mão entre minhas pernas, levantando meus joelhos e
empurrando meu corpo para o meio da cama. — Eu tive uma ideia
melhor… — Ele puxa minha calcinha de um jeito rápido, fazendo
meu corpo tremer. — Eu vou bater na sua boceta, não na bunda.
— Mas eu prefiro a bunda. — Gemo, sentindo ele deslizar o
polegar por minha entrada. — Ah, Kalon… — Eu aperto os lábios
quando ele empurra seu dedo sem a menor delicadeza. Meu corpo
treme e arde com o prazer intenso.
— Eu acho que está na hora de testar as suas preferências,
gatinha manhosa. — Ele bate em minha boceta, me fazendo gritar
quando ao mesmo tempo sinto seus dedos mais fundos.
Kalon segura meu joelho e me gira de barriga na cama,
puxando minha bunda minimamente para o alto, na posição que ele
quer, e deixando o primeiro tapa. Eu afundo o rosto na cama para
não perder o controle dos meus gemidos.
— Olhe para mim, amor. — Ele sussurra, deixando outro
tapa. Eu encontro seus olhos por cima do ombro, mordendo o lábio
quando ele aproxima sua boca e morde minha carne. — Outro tapa?
— Ele sopra as palavras.
— Sim. — Eu tremo, não conseguindo terminar de falar, sua
palma bate contra minha pele de uma forma que ele consegue
alcançar a boceta também. Eu volto a ficar de barriga para cima,
essa dor deliciosa me faz fechar as pernas, mas Kalon continua
empurrando seus dedos para dentro, mal me dando tempo para
respirar. — Preciso de você. — Eu tomo fôlego, agarrando as
cobertas da cama para sentir que tenho algum controle.
— Então diga, alto e bom tom. — Ele sibila contra minha
boca. — Onde você precisa de mim, esposa? Então eu darei.
— Aqui. — Imploro, segurando seu pulso e controlando seus
movimentos por alguns segundos. Kalon solta uma risada faminta e
deixa outro tapa na minha carne sensível. — Amor… — Eu fecho
meus olhos, sinto tanto prazer que uma lágrima escorre pelo meu
queixo.
— Vamos aumentar essa frase? — Ele ergue uma
sobrancelha, sorrindo de um jeito autoritário. — Repita comigo.
Amor…
Porra. Eu fecho meus olhos, me rendendo a cada tortura
deliciosa que ele me entrega. Como vou lutar contra isso se já está
claro que eu o amo com todas as minhas forças? Eu não quero lutar
contra nada, eu quero apenas me entregar ao meu homem.
— Amor… — Eu repito, sentindo um calor úmido subir por
minha coluna.
— Da minha vida. — Ele completa, mordiscando meu queixo.
Eu agarro seu pescoço, sentindo um alívio divino quando sinto seu
corpo quente contra cada pedaço do meu.
— Da minha vida. — Eu respondo no seu ouvido, minhas
pálpebras estão trêmulas de prazer e eu mordisco sua orelha. —
Amor da minha vida. — Repito a frase, marcando suas costas com
minhas unhas quando ele abaixa sua calça e estoca com força.
Todo meu corpo balança quando sinto-o dentro de mim por
completo, ele está tão quente e pulsando que fico úmida sem ele
sequer fazer algum movimento. Algo quente molha meus lábios em
gotas rápidas, eu paraliso, estamos respirando pesadamente e
encarando o rosto um do outro.
— Isso são lágrimas? — Eu questiono, segurando seu rosto
para lamber o traço molhado que ficou em suas bochechas. Eu
soluço, então percebo que estou chorando a muito mais tempo que
ele. Não consigo distinguir se são de prazer ou saudades, mas está
tudo misturado dentro do meu peito ao ponto de me fazer chorar.
— Porque você está. — Ele encosta sua testa na minha. —
Porque você está me olhando como se tivesse passado uma
eternidade quebrada e sem rumo, apenas porque eu quase morri. —
Eu mordisco seu queixo quando ele bate seu quadril contra o meu,
me causando uma dor boa e tão amarga que aperto minhas pernas
ao seu redor. — Eu não queria assustar você daquele jeito. — Kalon
geme fraco. — Quero que sinta meus pedidos de desculpas em
cada estocada, certo?
Sua barba rala raspa no meu queixo, me fazendo soluçar e
abrir minha boca esperando por seus lábios. Sua língua me invade,
nosso beijo tem um gosto salgado e cheio de paixão, tão voraz e
desesperador que eu perco o controle dos meus gemidos. Kalon
mordisca meu lábio, esfregando sua pele contra a minha e me
fodendo mais rápido.
— Ah, Kalon. — Eu inclino a cabeça para trás, sentindo
arrepios até na alma quando ele rebola de um jeito gostoso, me
proporcionando um prazer tão intenso que minhas pernas fraquejam
ao seu redor.
Seu punho fechado fica apoiando em minha cintura, tomando
impulso para estocar mais rápido e profundo, me fazendo gritar
quando minha vista escurece e tudo fica fora de foco. Eu sinto
apenas as batidas do meu coração a cada ritmo obsceno e
insaciável. Meus dedos se perdem em seus cabelos, puxando com
um pouco de força quando ele morde meu pescoço.
— Porra. Porra. — Ele geme contra minha bochecha, me
mordendo e me ajudando a não perder a posição. Eu choramingo
de satisfação, nossos corpos estão tão conectados que eu entendo
perfeitamente quando ele segura meu joelho e me ajuda a ficar de
quatro na cama. — Cacete, que porra de bunda bonita. — Ele
aperta minha nádega.
Minhas mãos estão apoiadas na cama e eu rebolo devagar,
sentindo seu pau me preenche por completo quando ele volta a
foder minha boceta. Jogo meus cabelos para trás, ignorando a
bagunça descuidada que eles estão faz dias, Kalon o segura entre
os punhos e puxa minha cabeça para trás, batendo seu quadril
contra minha bunda com mais rapidez. O som do nosso atrito é a
coisa mais prazerosa e obscena de ouvir, eu estou obcecada por
isso e viro meu rosto para observar melhor.
Sua camisa tem alguns botões abertos, o ferimento está
muito bem protegido com um curativo e ele está suando de um jeito
sensual, sua pele brilha debaixo da luz do quarto. Um sorriso
possessivo dança em meus lábios, esse homem é totalmente meu,
dos pés a cabeça, e eu mataria para mantê-lo apenas comigo.
Kalon estapeia minha bunda, eu grito, jogando minha cabeça para
trás e ficando apoiando em uma única mão, ajudando ele com os
movimentos rápidos e gostosos.
— Venha aqui, minha vida. — Minha bunda está encaixada
no seu quadril quando ele senta na cama, me fazendo sentar em
seu pau.
Nossa diferença de tamanho é uma coisa que me surpreende
principalmente no sexo. Minhas costas estão contra o seu peito nu,
minhas pernas estão uma de cada lado e eu começo a me
movimentar nessa posição, quicando em seu pau de um jeito
prazeroso que parece uma dança obscena. Ele agarra minha bunda,
deixando outro tapa e guiando meus movimentos.
— Kalon… — Eu suspiro quando ele aperta meu seio,
beliscando meu mamilo com a ponta dos dedos. — Diga que você é
meu. — Eu falo, arrancando uma risada safada da sua boca.
— Eu acho que você está contaminada com o meu jeito. —
Sua voz está rouca.
— Eu estou falando sério. — Eu interrompo meus
movimentos e fico de frente para o seu rosto, voltando a sentar em
seu pau. — Diga que você é meu, porque eu preciso me alimentar
disso, das suas palavras. — Sibilo, segurando seu queixo.
— Você precisa ouvir que tem poder sobre mim? — Ele
segura os dois lados da minha bunda quando eu empurro suas
costas para deitarem na cama, parece uma loucura querer cavalgar
o seu corpo grande e forte mesmo sabendo que vou me casar
rapidamente.
— Sim, eu preciso. — Aproximo minha boca da sua. —
Preciso que você reconheça que é meu por inteiro, apenas meu. —
Mordisco seu lábio, fazendo ele gemer gostoso quando eu volto a
sentar em seu pau.
— Porra, meu amor. — Ele bate na minha bunda com mais
força. — Eu sou seu, inferno. Apenas seu, agora seja uma boa
garota e continue devorando meu pau com essa boceta deliciosa. —
Ele morde meu pescoço, me causando uma sensação de prazer tão
forte que eu não perco tempo em erguer minha coluna e cavalgar no
seu pau com rapidez, controlando meus movimentos enquanto
mantenho minhas mãos em seu tronco.
Tombo minha cabeça para trás, tremendo e quase
desmaiando quando sinto seus dedos massageando meu clitóris.
Sua outra mão aperta minha bunda, me estimulando para ir mais
rápido. Continuamos nessa frequência, até que seu pau parece
grande e inchado demais para eu suportar e ele desliza por minhas
coxas, marcando minha pele sensível com seu esperma. Nós dois
gozamos ao mesmo tempo. Um som fraco e trêmulo ecoa da minha
boca, Kalon está me observando cheio de fascínio, gemendo de um
jeito tão sensual que ele precisa esconder o rosto em um travesseiro
para não fazer muito barulho.
— Porra, vida. — Ele puxa meu corpo para deitar ao seu
lado. Estamos úmidos de suor, sua pele brilha enquanto seu peito
sobe e desce.
— Você está bem? — Eu apoio minha cabeça em seu peito,
tomando cuidado para não machucá-lo e me concentrando nos sons
do seu coração batendo.
— Melhor do que isso é impossível. — Ele acaricia minhas
costas, aproximando sua boca da minha. — Agora que voltamos,
nada pode nos separar, kardia mou.
Eu fecho meus olhos para que suas palavras se concretizem,
não quero de forma alguma voltar a sentir aquele desespero, não
quero que Kalon seja arrancado de mim novamente. Eu afundo meu
rosto na curva do seu pescoço, respirando seu cheiro delicioso e
acalmando meu coração ao sentir seu corpo quente. Eu tenho
tantas coisas para dizer a ele, começando pelo fato dele ter me
tirado da cadeia, eu quero falar dos meus sentimentos e revelar que
eu quero estar ao seu lado, que eu quero viver essa vida como se
estivesse caminhando para o seu, porque ele faz eu me sentir livre
de uma forma que nunca imaginei ser possível. Esse sentimento
que ele me proporciona vai além do que eu sempre sonhei enquanto
vivia naquela prisão.
Talvez eu deva procurar Aleksander quando voltarmos para
Istambul, ou enviar flores para ele como uma resposta para as
palavras que ele me disse naquela noite no hospital; realmente
funcionou. Um milagre aconteceu nas nossas vidas.
39. QUEBRANDO O SILÊNCIO
“A vida é como um sonho;
é o acordar que nos mata”.

— VIRGINIA WOOLF.

Eu desperto em um sobressalto após ouvir o barulho de um


tiro ecoando na minha cabeça. Mesmo que já tenha passado dois
dias desde que acordei, as lembranças daquele dia ainda me
perseguem, me fazendo acordar no meio da noite ou deixar Arcane
me olhando com preocupação quando me pega olhando muito
tempo para o mesmo lugar.
— Outro pesadelo? — Arcane sussurra, girando na cama de
um jeito manhoso. Páris está deitado no final da nossa cama,
dificultando os meus pés de se entrelaçam aos da minha mulher. —
Você quer que eu ligue para Rajá? — Ela resmunga de um jeito
preguiçoso, tocando minhas bochechas e aproximando sua pele da
minha. — Talvez ele possa trazer algum analgésico que ajude no
sono. — Seus olhos ainda estão fechados, lutando entre ficar
acordada e voltar a dormir.
— Volte a dormir, meu amor. — Eu abraço sua cintura. —
Você já fez demais nesses últimos dias, até banho me ajudou a
tomar quando eu não conseguia me livrar dos tubos de soro.
Ela ri de um jeito sexy e grave, provavelmente relembrando
como eu precisei passar o dia com duas bolsas de soro para
compensar a que foi perdida quando fizemos sexo.
— Então vamos voltar a dormir, por favor. — Arcane
resmunga baixinho, girando seu quadril até sentir sua bunda contra
meu tronco. — Seus ferimentos estão bem?
— Muito bem. — Ronrono. — Já consigo movimentar meu
braço sem sentir tanta dor. — Eu mergulho meu rosto na curva do
seu pescoço, agarrando sua barriga com mais força e não dando
espaço para ela escapar.
Agora que estamos de volta a nossa casa perto do mar,
Arcane está mais à vontade. Quando completar um mês de cirurgia,
vamos voltar para Istambul e retomar de onde paramos. Nós
passamos alguns minutos em silêncio, eu começo a acreditar que
ela voltou a dormir, mas seu corpo se ergue na cama e ela me
encara.
— Vamos ver o sol nascer. — Arcane declara.
— Ah, não. — Eu balanço a cabeça em negação. — Está aí a
última coisa que farei, me peça um órgão, mas não para sair dessa
cama quentinha uma hora dessas.
— Deixa de ser palhaço. — Ela solta uma gargalhada,
batendo o travesseiro em meu rosto. — Pense em quantas pessoas
estão presas em algum lugar e dariam tudo para ver o sol nascendo.
— Se essa é uma tentativa de me comover, saiba que não
funciona. — Fecho meus olhos, não dando a mínima para a
humildade. — Não consigo me sensibilizar com pessoas que não
conheço.
— Kalon. — Ela agarra meu braço. — Então pense em mim,
eu sempre desejei ver o sol nascendo quando estava na prisão. —
Merda. Eu abro meus olhos. Seus cabelos estão bagunçados e ela
me encara com um brilho indecifrável em seu rosto. — Parece uma
coisa simples e tediosa, mas eu juro que sempre quis isso.
— Tudo bem. — Eu concordo, levantando da cama com tanta
sonolência que ela precisa me segurar. — Mas faz tanto frio essa
hora que vai estragar essa sua vontade descomunal.
Arcane solta uma risada debochada e segura o edredom
esverdeado em cima dos ombros, me puxando para abraçar seu
corpo, até que todo o nosso tronco está envolvido por essa manta
quentinha.
— Vamos sobreviver ao frio com isso. — Ela realmente tem
uma solução para tudo, estou impressionado.
Quando ela abre a porta de vidro, um vento morno e ao
mesmo tempo frio bate em minhas bochechas. Eu olho para Arcane
que parece maravilhada ao encarar o horizonte. Do outro lado,
temos uma visão espaçosa da cidade, as pequenas luzes perdendo
seu brilho em meio as nuances alaranjadas dos primeiros raios de
sol. Não se compra a vista que temos da nossa casa em Istambul,
mas é maravilhoso ver essa cidade com paredes brancas, tão
minúscula e arrebatadora.
Eu olho para Arcane que me observa por alguns segundos.
Ela parece chorosa, as bochechas avermelhadas e os olhos claros
brilhando, cheios de uma mansidão e paixão que eu não consigo
decifrar com todas as letras. Parece alívio, como se eu não fosse
real, ou como se nós não fôssemos de tão perfeitos que somos.
Nossa casa tem um espaçoso jardim, com árvores e um
gramado macio. Algumas cadeiras e um balanço debaixo de uma
árvore, mas a melhor parte, sem dúvidas, é essa vista esplendorosa
para a cidade branca e minúscula. Eu sinto como se tivesse nascido
para viver esse exato momento. Gostaria de segurar o tempo com
minhas próprias mãos, apenas para perdurar esse momento e vivê-
lo para sempre.
— É realmente lindo. — Eu sussurro, mesmo sabendo que
qualquer coisa parece o céu quando estamos juntos.
— Eu sinto vontade de viver esse momento todos os dias. —
Ela suspira, sua voz quase não sai.
O corpo de Arcane afunda contra o meu, nossa manta está
muito presa ao nosso redor, como um casulo. Ela apoia sua cabeça
em meu ombro e continua assistindo o sol nascer, até que suas
pálpebras pesam e os raios mornos do sol ficam mais próximos e o
astro fica cada vez mais alto nos céus.
— Essa é a hora que você fala alguma coisa muito bonita,
Kalon. — Ela ergue o rosto para me observar.
— Você é algo muito bonito, Arcane. — Meus lábios se
repuxam para baixo. — Você deseja que eu repita seu nome até
perder a voz? Eu faço agora mesmo, e de joelhos. — Bato os cílios
de um jeito ousado, apenas para provocar. — A parte mais bonita é
que você me pertence. Fodidamente... — Aponto o queixo em sua
direção, para ela completar.
— Fodidamente sua. — Ela completa. — Você precisa mudar
essa frase, procure algo mais respeitoso.
— Certo, vou pensar em alguma coisa que envolva seu sexo
divino, isso sim é muito respeitoso da minba parte; enaltecer a forma
incrível como você senta.
— Entre todos os absurdos que eu acabei de ouvir, me diga
uma coisa: por que de joelhos? — Ela solta uma risada amável, que
deixa suas bochechas mais vermelhas e os olhos mais brilhantes.
— Por que você parece um milagre. — Eu respondo.
— Não seja bobo, você está me deixando sem jeito. — Ela
fala ainda rindo. Eu aproximo meu rosto do seu, apertando seu
corpo por baixo da manta e reivindicando seus lábios em um beijo
calmo.
— Não estou sendo bobo, estou sendo devoto. — Eu esfrego
meu nariz no seu. Suas mãos sobem por meu peito, até que ela
segura meus ombros e se inclina, beijando minha boca como se não
houvesse amanhã. Nossos lábios se separam por falta de fôlego,
Arcane me olha de um jeito travesso.
— Eu estava pensando, o que as pessoas diriam se
soubessem que você é completamente louco, perdido, por mim? —
Ela segura meu queixo. — Você pode ficar com a reputação de
cachorrinho na coleira.
— Ah, eu não sou isso. — Solto uma risada amarga. — Está
insinuando que você manda em mim?
— Mas é óbvio que eu mando em você. — Ela joga a cabeça
de um jeito vaidoso e tão brincalhão que faz meu estômago vibrar
de uma forma que apenas um adolescente na puberdade é capaz
de sentir. — A questão é o seguinte, você vai me dar a patinha?
— Cacete, que fofa. — Eu aperto os olhos, soltando um
gemido divertido quando ela solta as palavras de um jeito manhoso.
— Eu vou bater na sua bunda, isso é bem melhor, não acha? —
Debocho, fingindo morder seu nariz.
— Minha bunda já está dolorida, desse jeito você vai precisar
me carregar nos braços. — Ela morde meu queixo, me fazendo
gemer, então, em seguida, deixa um beijo estalado na minha pele.
— Ora, mas você esfregou a sua bunda em meu pau no dia
do nosso noivado. — Eu seguro seu queixo. — Quantos tapas eu
vou precisar dar para essa determinação voltar?
— Você pode ir contando enquanto eu rebolo no seu colo
novamente. — Ela debocha, deixando claro que eu estou brincando
com fogo. — Vamos entrar? Nosso dia está apenas começando.
— O que você quer dizer com apenas começando? —
Esfrego meu nariz em sua bochecha.
— Não pense besteira. — Ela dá risada. — Eu vou ao
mercado comprar alguma coisa para preparar nosso almoço. — Ela
explica, cortando o clima quando puxa a manta verde e me deixa
sozinho.
— Venha aqui, sua diaba gostosa. — Eu sigo atrás dela. —
Você gostou de ver o pôr do sol?
— Muitíssimo. — Ela responde com rapidez, me fazendo rir
da expressão fofa que ela demonstra apenas comigo. Minha mulher
realmente é uma caixinha de surpresas.
Quando entramos no quarto, Arcane passa alguns minutos
obcecada em trocar meus curativos e checar se meu ferimento não
abriu, mesmo eu repetindo que me sinto bem e o pior já passou. Ela
está superprotetora comigo desde que retornamos de Istambul,
como se toda aquela merda tivesse nos aproximado mais ainda, o
que me deixa preocupado, porque tenho medo que seja
momentâneo e em algum momento ela se canse de mim e decida ir
embora.
Yuri me contou que ela já sabe que eu a tirei da prisão, mãe
ainda não tivemos coragem de iniciar o assunto sobre tudo que está
acontecendo. Eu tenho medo de tentar primeiro e isso estourar a
bolha frágil que estamos escondidos.
Nós estamos fingindo que nada aconteceu, porque sabemos
que quando cada palavra guardada vier à tona, não tem como voltar
atrás. Estamos esperando o momento certo e isso é evidente.
— Kalon? — Ela sussurra, deslizando a ponta do seu dedo
indicador na minha barriga.
— Sevgilim? — Eu levanto o rosto para ver sua face.
— Você acredita no amor? — Eu paraliso com sua pergunta.
— Você acha que ele foi feito para você? — Ela encara suas mãos
— Para nós?
Os problemas desaparecem e ficamos apenas eu e ela, nós
dois nos encarando e tentando decifrar tudo que está escrito em
nossos olhos.
— Dizem que o amor nos faz querer ser a melhor versão de
nós mesmos. — Eu limpo a garganta. — Eu acredito que ele é feito
para salvar as pessoas, dar mais sentido à vida delas, fazer com
que se sintam livres.
Ela balança a cabeça em concordância para cada palavra
que eu estou falando. Seus olhos brilham, até que seu corpo desaba
ao meu lado e ela segura minha mão em seu colo.
— Por que você pergunta? — Eu sussurro, acariciando seus
dedos com o polegar.
— Porque eu quero compreender como as coisas funcionam.
— Ela engole em seco. — Como as coisas funcionam para uma
pessoa que não é louca?
— Mas você não é louca. — Eu procuro seu rosto. —
Passaram a sua vida inteira tentando te convencer de uma coisa
que você não é. — Falo baixinho. — Você é inteligente, um pouco
tímida porque não está acostumada a ser tratada como uma mulher,
mas também muito forte e atraente quando sente confiança. —
Arcane se inclina e deita a sua cabeça em meu ombro.
— Fale mais, por favor. — Ela Implora, como se minhas
palavras fossem importantes demais para ficarem guardadas.
— Você é uma artista, ama música e desenhos. — Pisco. —
Você tem um gosto maravilhoso para escolher livros antigos, as
roupas que você veste são lindas, principalmente as de inverno. —
Ela dá risada, provavelmente lembrando das combinações de meia
calça com saia curta em um estilo punk.
— Eu gosto do seu cabelo ondulado e grande. — Olho para
sua cabeça. — Como ele fica mais claro dependendo da claridade
ou de como você cuida dele. — Eu balanço a cabeça.
— Você repara nisso? — Ela levanta o rosto.
— Claro que sim. — Eu solto uma gargalhada animada. —
Meu amor, eu sei até mesmo o seu ciclo menstrual.
— Deus do céu. — Ela balança a cabeça, ainda em choque.
— Então você é o cuidadoso da relação e eu sou desleixada?
— Não. — Eu viro o rosto, pensando por um tempo. — Bom,
se formos considerar que você revira todas as minhas roupas e
acaba bagunçando todos os meus discos, então você é.
— Mas desse jeito você também é. — Ela me olha cheia de
confusão. — Porque você rasga todas as minhas calcinha quando
vamos fazer sexo, também deixa a toalha molhada na cama e
esquece de colocar Scar na casa dele.
Ficamos em silêncio por um bom tempo, não deixamos de
nos encarar, um sentimento bom e agradável se espalha entre nós,
até que soltamos uma gargalhada alta e estridente.
— Então isso nos leva a qual conclusão? — Ela pergunta,
ainda dando risada. — Somos péssimos donos de casa?
— Não. — Eu balanço a cabeça em negação, completamente
descrente da sua conclusão. — Isso prova que você não é louca,
que tem uma vida normal como todo mundo, e cá entre nós… — Eu
aceno para ela ficar mais perto e eu cochichar, Arcane faz isso com
tanta inocência e curiosidade que eu me derreto. — Você é mais
privilegiada que todo mundo.
— Eu sou? — Ela sorri. — Por qual razão?
— Primeiro, porque você é casada comigo. — Eu aponto
para meu peito, arrancando uma gargalhada desdenhosa dela. —
Segundo, porque ninguém no mundo tem essa vida, essa
oportunidade de fazer o seu próprio destino e morar naquela casa
em Istambul. — Os olhos de Arcane brilham. — Aquele é o seu
paraíso, eu consigo ver isso. Então o amor está espalhado em todos
os lugares que te deixam muito feliz e faz você ser você mesma. —
Acrescento. — É assim que você reconhece o amor, quando está
feliz e em paz.
— Isso faz bastante sentido para mim. — Ela encara suas
mãos por um tempo, sua boca segura palavras que estou louco para
ouvir. — Mas você não me disse o que é o amor para você, apenas
para mim. — Ela me encara.
— Eu não percebi. — Pisco, encarando um ponto vazio do
quarto. — Mas isso faz muito sentido agora.
Volto a olhar para seu rosto, Arcane sorri torto, esperando
que eu compartilhe o meu ponto de vista, mas minha boca reivindica
a sua com suavidade, fazendo ela suspirar e segurar meu queixo
em busca de mais contato. Eu afundo na cama, trazendo ela para
cima do meu corpo e abraçando tão forte que nada no mundo será
capaz de movê-la daqui. Eu suspiro seu cheiro, desejando nunca
viver em um mundo onde eu não possa sentir isso.
— Ah, você está amassando minha roupa. — Ela tenta se
afastar. — Eu vou passar o dia fazendo compras e já estou
atrasada. — Ela pula para fora dos meus braços e começa a
apreciar seu corpo no espelho.
Eu tomo apoio em meus cotovelos para observar seu traseiro
muito bem apertado no tecido delicado desse vestido. Eu inspeciono
cada traço da peça e imediatamente reconheço.
— Esse é o vestido que a Bruna Lírio usou no desfile da
Mirror Palais SS24. — Fico sentado. Arcane gira seu corpo e me
encara como se eu fosse um alienígena.
— Como você sabe dessas coisas? — Ela está chocada, é
evidente. — Você por acaso é algum perseguidor de modelos
gatas?
— Não. — Eu solto uma gargalhada. — Mas poderia ser.
— Poderia? — Ela atira a escova de cabelo na minha cara,
eu bato na cama, gemendo e soltando gargalhadas sufocadas. —
Não esqueça que você é casado comigo, seu idiota.
— Impossível esquecer uma coisa dessas. — Eu continuo
rindo, viro meu rosto na almofada para apreciar seus seios muito
bem apertados no tecido branco. — Porra, você está linda pra
caralho.
— Obrigada. — Ela bate os cílios de um jeito vaidoso. — Eu
ganhei de presente, acredita?
— E porque eu só estou sabendo disso agora? — Eu junto as
sobrancelhas. — Quem foi o canalha?!
— Como você sabe que foi um homem? — Ela leva a mão ao
peito. — Você está me perseguindo também? — Sinto vontade de
beijar sua boca quando vejo essa expressão fingida de deboche.
— Porque esse é o tipo de coisa que eu daria a você se
quisesse colocar um filho em você horas depois. — Eu jogo uma
almofada em sua direção.
— Eita. — Ela paralisa e me encara cheia de pesar. — Pois
foi seu irmão quem me deu, ele disse que era um presente para
desejar recuperações e eu usar na ocasião em que vamos celebrar
uma nova fase das nossas vidas, agora que você sobreviveu. — Ela
acaricia sua cintura de um jeito tão vaidoso que meu pau fica
inchado.
— Vou matá-lo. — Eu declaro.
— Não faça isso, ele tem dois filhos para criar. — Arcane
volta a se olhar no espelho. — Deixe de ser paranóico.
— Foi Salih? — Eu solto uma gargalhada amarga. — Ok, eu
vou matar ele e os filhos. — Ela grita quando eu jogo outra almofada
em sua direção, dessa vez acertando sua bunda deliciosa.
— Ai meu Deus, você está possesso! — Ela grita, correndo
para fora do quarto. Eu dou risada quando a porta bate de um jeito
dramático. — Não faça muito esforço enquanto eu não voltar, está
bem? — Ela fala do outro lado. — Você pode ouvir música em meu
headphone, eu fiz uma playlist maravilhosa para você.
— Você é maravilhosa, isso sim vai me sustentar até o final
dos tempos. — Eu agradeço, caminhando até a cabeceira.
— Bom, agora eu vou indo. — Ela abre a porta e coloca a
cabeça pela brecha. — Quando eu voltar, vou preparar um delicioso
almoço para comemorar todas as coisas que Salih falou ao meu
presentear com o vestido.
— Está bem, Sevgilim. — Eu pisco. — Então eu vou me
preparar para colocar um filho em você.
— Você não é louco. — Ela faz uma careta desesperada e
fecha a porta novamente.
Eu dou risada, assobiando para Páris me seguir até a
varanda do nosso quarto. Coloco o fone em meus ouvidos e me
deito na espreguiçadeira, sentindo os raios de sol marcando meu
rosto suavemente. Arcane tem muito bom gosto para escolher
músicas, toda a playlist está repleta com artistas que não tem muito
reconhecimento. Eu coloco Don't Hold Me do Sandro Cavazza para
repetir e me concentro na leitura de mais um livro da Virginia Woolf,
desde que Arcane me falou da autora eu não paro de ler cada livro
que ela tem na estante.

Eu perco a noção do tempo, já é tarde do dia quando Arcane


retorna para casa, por volta das cinco horas. Ela não subiu para o
nosso quarto, eu desço até a cozinha e vejo ela caminhando de um
lado para o outro, seu semblante está tenso e suas mãos estão
tremendo enquanto ela segura a faca.
— Eu adorei a playlist. — Cruzo os braços, apoiando meu
corpo na bancada. Ela tem um sobressalto, virando seu rosto
avermelhado para me encarar. — Você está bem?
— Estou. — Ela sorri, limpando a garganta. — Você apenas
me assustou.
— Você demorou a chegar. — Seguro seu ombro, mas ela
rapidamente se afasta para o outro lado da cozinha, quase
esbarrando em Paris. — Arcane? — Eu aperto meus lábios,
definitivamente tem algo de errado com ela.
— Eu tive que ir em outro mercado porque o primeiro estava
cheio demais e eu odeio lugares lotados. — Ela explica, abaixando
seu corpo para ligar o forno. — Eu comprei várias frutas e estou
preparando uma lasanha italiana.
Certo, então voltamos para aquele distanciamento dos
infernos. Algo doloroso transpassa meu peito e eu preciso respirar
fundo para não resmungar com o desconforto intenso. Eu observo
Arcane por algum tempo, tentando buscar qualquer pista, qualquer
coisa que esclareça por que ela está me tratando assim.
— Você pode esperar na sala, por favor? — Ela pergunta,
ainda sem me olhar. — Está atrapalhando a minha concentração.
Eu dou as costas sem responder nenhuma palavra, apenas
me sento no sofá e ligo a TV tentando acompanhar as notícias. O
som do aparelho ecoa por toda a sala, até que o dia se faz noite e
Arcane continua na cozinha. Eu seguro o controle para deixar a TV
muda, não consigo ouvir nenhum som vindo de lá.
— Arcane, eu acho que você já fez comida o suficiente para
dois dias. — Eu levanto, caminhando devagar em sua direção. —
Você pode dizer o que está acontecendo? — Eu me assusto quando
ela pula em meus braços e rouba um beijo dos meus lábios. —
Porra. — Um som fraco e divertido escapa da minha boca.
— Vamos conversar no quarto? — Ela questiona, essa
expressão que me incomoda ainda não foi embora, mas seus olhos
brilham de uma forma que eu confio nela para segurar sua mão e
caminhar ao seu lado.
— Sobre o que precisamos conversar? — Eu questiono,
ajudando ela a subir as escadas.
— Sobre nossas vidas. — Ela responde.
— Isso tem a ver com o que você queria me contar quando
me encontrou na fazenda? — Eu pergunto, Arcane paralisa por
algum tempo e seus olhos brilham de um jeito melancólico.
— Sim, tem a ver com isso. — Ela balança a cabeça. — Acho
que precisamos começar com o dia em que você me tirou da prisão.
Eu olho para seu rosto, uma frieza dolorosa sobe por minha
coluna e machuca meu estômago, tenho a sensação que qualquer
passo em falso pode derrubar tudo que nós construímos.
— Você já sabe os motivos para eu ter feito isso. — Eu
respondo. — Você também sabe que minhas intenções mudaram no
dia em que eu vi você naquele quarto.
— Eu acho que tudo isso começou de um jeito muito errado e
não tem como a gente continuar, Kalon. — Ela toma fôlego, me
encarando com frieza.
— Como? — Minha voz sai falha e tão dolorosa que eu fecho
a boca. — O que você está dizendo?
— Eu estou dizendo que quero ir embora. — Ela solta as
palavras que me deixam desnorteado. — Por que você não me
contou? Eu tive que descobrir sozinha que você fez isso porque
alguém quer me matar. — Ela aponta o dedo em minha direção. —
Você me deixou no escuro, Kalon. Se você tinha alguma esperança
que alguma coisa poderia mudar quando eu soubesse dos seus
atos heróicos, saiba que não mudou. — Ela toma fôlego. — Eu
continuo odiando você e quero ir embora.
— Arcane? — Eu tento segurar sua mão, não é possível que
isso esteja acontecendo, que isso é real. — O que você está
dizendo? Estávamos bem, estávamos dando certo.
— Não, não estava! — Ela afasta minha mão. — Eu estava
fingindo, tentando assimilar toda essa confusão para reunir coragem
e ir embora. Eu não me importo se existem pessoas atrás de mim,
isso não justifica o fato que eu estou aprisionada com você, com um
homem que não significa nada para mim.
Suas palavras arrancam meu fôlego. Ela me odeia? Mas e
quanto aos nossos planos? E todos os momentos que vivemos
juntos?
— Não… — Eu balanço a cabeça em negação, me
recusando a acreditar no que sai da sua boca. — Eu não contei
sobre a prisão porque queria proteger você.
— Eu não preciso de você, Kalon! Entenda isso! Eu não
preciso de você me protegendo como se fosse a porra do meu
herói, como se a minha vida fosse incrível ao seu lado. — Ela me
empurra na cama, me fazendo enfraquecer diante das suas
palavras.
— Pare de falar essas coisas. — Eu aperto os olhos, sentindo
algo quente molhar minhas bochechas, isso só pode ser um
pesadelo.
— Claro que eu vou falar! Eu não quero você controlando a
minha vida! — Ela grita mais alto. — Eu nunca precisei que você
fizesse nada disso por mim, eu não preciso dessa vida que você me
oferece, dessa ilusão controladora. — Ela grita na minha cara.
— Não… — Eu balanço a cabeça em negação. Arcane
prende minhas mãos na cama e começa a me prender usando as
algemas que eu guardo na gaveta por segurança. — Meu amor, o
que você está fazendo?
— Você nunca vai me deixar ir embora, porque você é
egoísta e só pensa em si mesmo. — Ela segura meus pulsos
quando eu tento lutar. Eu tento encarar seu rosto, mas ela está
concentrada em me prender. — Essa é a única forma que eu posso
ser livre.
— Não, amor! — Eu entrelaço minhas pernas ao redor da sua
cintura, procurando uma forma de prender seu corpo ao meu. —
Pare com isso, Arcane.
— Me solte! — Ela bate em meu peito, me fazendo gritar de
dor e me revirar na cama. Todo meu corpo treme quando sou
devorado por essa agonia que se espalha por minha carne. — Você
não consegue compreender o que eu estou falando? Eu não quero
você, Kalon!
Porra, ela me prendeu com tanta facilidade que eu estou
incrédulo. Ela conquistou minha confiança, me trouxe até a porra do
quarto e está partindo meu coração desse jeito. Eu balanço a
cabeça em negação, tentando escapar, mas é em vão.
— Não… Não vá embora. — Um soluço involuntário sai da
minha boca. Isso não pode acontecer. — Arcane, não faça isso.
Ela bagunça todo o quarto, chorando de um jeito doloroso
enquanto procura por suas coisas. Seu corpo esbarra na cabeceira
da cama quando ela tropeça.
— Eu prometo que vou melhorar. — Balanço a cabeça, minha
visão está turva. — Não parta meu coração desse jeito, eu juro que
vou tentar fazer você feliz.
— Cale a boca, Kalon. — Ela me olha com os cabelos
bagunçados. — Você não entende? Não há nada que você possa
fazer para melhorar essa situação, eu não preciso de você, eu não
sinto nada por você.
— Nada? — Eu encaro seu rosto. — Nada do que eu sinto
você sente também?
— Esse é o ponto. — Ela aponta o dedo em minha direção.
— Você também não sente nada, você é a porra de um monstro
psicopata. — Ela balança a cabeça em negação. — Tudo que você
conhece é a destruição.
— Eu vou tentar mudar… — Eu balanço meu corpo na
intenção de escapar. — Por favor, não faça isso com a gente.
Vamos dar um jeito, não desista de mim. — Minha garganta falha e
eu preciso tomar fôlego. — Você está partindo meu coração, meu
amor.
— Eu não preciso de nada que venha de você. — Ela
caminha para trás, me encarando com tanta insignificância que todo
o meu corpo dói. — Meus sentimentos por você nunca vão mudar,
eu continuo te odiando, Kalon. Eu não quero uma vida ao seu lado,
você não pode me obrigar a isso.
Minha alma está sangrando, implorando pela necessidade de
rasgar minha pele e refazer meu espírito, apenas para que eu seja
perfeito aos seus olhos, para que eu tenha algum valor na sua vida.
— Arcane! Não vá! — Eu grito quando ela me dá as costas e
fecha a porta do quarto.
O silêncio soa tão desesperador que eu grito alto, me
debatendo na cama para conseguir escapar.
Eu não consigo acreditar que ela acabou de me abandonar,
pior ainda, que eu estou chorando porque me sinto aos pedaços. Eu
fecho meus olhos, respirando pesadamente e tentando processar
tudo que acabou de acontecer.
Ela simplesmente foi embora e disse que me odeia, jogou no
lixo tudo que temos. Eu balanço minhas mãos, fazendo um barulho
doloroso, meus gritos ecoam pelo quarto porque nada faz sentido
para mim. Eu não fui bom o suficiente, tudo que aconteceu foi em
vão, eu não posso tê-la comigo para amar e ser feliz. Agora
realmente está claro, não importa o que eu faça, ela sempre vai me
odiar.
Um gosto amargo se espalha na minha boca e me faz gritar
mais alto. Ela partiu meu coração, foi embora e levou tudo que eu
tenho de mais importante.
Porra, como eu vou viver sem a minha alma?
40. FÁBULAS
“Mas eu sigo teus passos, ainda não é o fim.
Eu seguirei teus passos”.
— MORENA.

Eu estou correndo pelas ruas de Atenas enquanto lágrimas


escorrem por minhas bochechas. Meu coração está partido com as
palavras que eu ouvi sair da sua boca, a expressão vulnerável
quando eu abandonei seu corpo algemado. Eu tento enxugar meu
rosto, mas começo a soluçar quando minha alma quebra a cada
passo que eu dou para longe de Kalon.
— Ai, Deus! — Meu corpo treme e eu desabo no chão, não
conseguindo dar nenhum passo sem me encolher de dor. O vento
gélido bate contra meu corpo, me fazendo encolher com mais
desespero.
Maldita hora eu que eu resolvi ir para a porra do mercado e
aquele homem apareceu. Aleksander. Eu acreditei que ele era uma
pessoa normal que me encontrou no hospital porque também estava
passando por um momento ruim, mas a verdade é que ele estava
me perseguindo esse tempo inteiro e estava apenas esperando uma
oportunidade para me alcançar.
Eu seguro a carta de baralho em mãos, lendo as palavras
escritas: “Piadas, segredos, mentiras… Um beijo do seu amiguinho
maluquinho”. O desenho é de um palhaço. Joker. No verso está
escrito: “Dê um jeito de se livrar do seu homem e me encontrar, ou
sua irmã morre”.
Aquele homem me entregou isso depois de me mostrar uma
foto de Melissa com seu rosto ensanguentado, eu não tive tempo de
confrontá-lo e saber o que estava acontecendo, no momento em
que eu li a carta, ele já tinha desaparecido como um fantasma. Eu
tentei como louca ligar para Melissa e Nimue, mas nenhuma delas
me atenderam. Eu pensei em contar para Kalon, mas comecei a
receber vídeos dela sendo torturada, gritando e chamando meu
nome.
— Deus, eu queria tanto que fosse um pesadelo. — Observo
o mar na minha frente, estou no porto; esse lugar sempre tem algum
movimento de pessoas e ele me deu esse endereço para colaborar
com a vida de Melissa.
Levo a mão ao peito, sentindo um vazio me consumir quando
relembro as últimas horas. A única forma de manter Kalon fora disso
foi algemando ele na cama e dizendo todas aquelas coisas para ele
não me perseguir, mas eu sinto que acabei de destruir tudo de mais
precioso na minha vida.
Escondo meu rosto entre as mãos e soluço mais alto. Meu
corpo está trêmulo, eu tenho medo que aquele homem tenha
enviado homens para matar Kalon. Eu nunca vou conseguir me
perdoar se algo acontecer com ele.
— Pare de chorar, criança. — Uma sombra familiar para bem
na minha frente, eu cubro minha boca para sufocar um grito
desesperado. Frio agride minhas bochechas e algo doloroso parte
meu coração em pedaços.
— Não… — Eu quebro quando vejo seu rosto. Eu me sinto
tão traída que meu fôlego acaba. — Não faça isso comigo… — Toda
essa agonia deixa a minha boca amarga. — Era você esse tempo
inteiro? Por favor, diga que não…
Eu perco meu fôlego e olho ao redor como se o mundo
estivesse em chamas. Isso não pode ser real, tem que ser um
pesadelo, como eu vou suportar a traição dele?
— Você pensou que mudando sua vida estaria livre do seu
passado? — Pavlos questiona, me analisando dos pés a cabeça. —
Que casando com aquele homem, e estando debaixo das asas dele,
conseguiria escapar de mim?
— Por que você está fazendo isso comigo? Logo você! —
Todo o meu corpo estremece quando ele descansa sua mão em
meu ombro. Seus dedos se fecham com agressividade e eu grito
alto, sentindo dor.
— Eu ainda não terminei. Eu sei que você está em choque,
mas logo vamos chegar nessa parte. — Ele estala a língua. — Você
achou que as pessoas simplesmente te aceitariam como você é? —
Ele solta uma risada amarga. — Que a vingança não pode bater na
sua porta apenas porque você pertence a eles? Pois eis-me aqui,
Arcane. — Ele aperta os dentes. — Estou aqui para finalmente
provar que o mundo não está ao seu favor, que esse não é um
mundo onde assassinos como você saem ganhando.
— Não… — Eu choramingo, meu peito queimando com a sua
traição. — Você é o meu melhor amigo, como você pode fazer isso
comigo?
Pavlos não responde, meu corpo treme de dor quando ele
agarra meus joelhos e me ergue do chão, me jogando por cima dos
seus ombros.
— Por que você?!— Eu choramingo, esmurrando suas
costas. Ele é muito mais forte do que eu, mesmo que eu não
consiga fazer nada por me sentir traída, tão quebrada e usada que
um buraco imenso se abre em meu peito. — Por que você fez isso
com Melissa?
Eu balanço a cabeça em negação, Pavlos rosna e olha para
os lados. Eu engasgo, perdendo a força das minhas mãos que
tentavam esmurrar suas costas. Ele me coloca no chão quando
chegamos do outro lado, seus olhos me analisam com tanta calma
que eu começo a acreditar que estou delirando.
— Pare de chorar ou eu arranco sua língua. — Ele sibila,
apertando meu queixo com força. Eu estou a beira de um colapso
por imaginar as coisas que ele fez com minha irmã.
Como eu pude ser tão cega? Em que momento eu não
consegui perceber que era ele?
— Você logo vai saber de Melissa, mas primeiro, vamos sair
das ruas. — Ele me empurra para entrar em um barco. — Depressa,
Arcane. — Eu tropeço quando ele bate em minhas costas. —
Caminhe caso não queira sua irmã morta, porra!
Eu olho por cima do ombro, tentando compreender porque
ele está tão agitado.
— Por que temos que sair das ruas? — Eu tremo, fica difícil
subir no barco por causa da maré agitada.
— Vamos conversar primeiro. — Ele aponta uma arma em
minha direção. — Eu mandei você andar, cacete! — Sua mão aperta
meus cabelos, me empurrando com força. — Eles estão subindo na
torre.
Eu viro meu rosto para a direção em que Pavlos está
olhando. Todos os dias um grupo de almuadens sobem no alto dos
minaretes para cantar, trata-se de um chamado, sinalizando que as
pessoas devem começar suas orações, mas a parte assustadora é
que agora não é o horário adequado.
— A Alkyóna já sabe que alguém da família Somáli está
desaparecido. — Ele rosna.
Eu tento gritar, mas ele aperta minha boca, me empurrando
com força no barco. Minhas costas queimam com o impacto severo.
— Cale a boca, porra! — Ele sibila em meu ouvido, me
empurrando de mal jeito e agarrando os remos.
— O que estamos fazendo? — Eu sinto medo quando
ficamos distante da cidade, a escuridão do mar toma conta do
ambiente ao nosso redor e fica impossível ver onde nós dois
estamos navegando.
— Eu estou ganhando tempo. — Ele balança os ombros,
sorrindo largo. — Estou escondendo você daquele caçador filho da
puta.
— Do que você está falando? — Eu seguro as bordas do
barco quando ele para de remar.
— Ouça, Arcane. — Pavlos aponta para a cidade na nossa
frente. — Ouça e saiba.
Eu fico em silêncio, até que consigo ouvir uma voz distante.
— Da pacem, Domine, in diebus nostris. — Uma canção
suave ecoa por toda a cidade. Eu me assusto com o timbre grave e
mortal da voz masculina, entoando palavras em uma língua antiga.
— Quia non est alius. Qui pugnet pro nobis. Nisi Tu Deus noster.
— Fiat pax in virtute tua: et abundantia in turribus tuis. —
Completaram fortemente.
Eu olho para Pavlos, meu coração está palpitando de medo
ao ponto de consumir minha respiração. Ele me encara tomado por
um silêncio perturbador, virando seu rosto para encarar as torres de
onde as vozes ecoam com fervor.
O som noturno do mar não é mais assustador do que todas
essas vozes se misturando em uma canção diferente de tudo que
essa cidade está acostumada a ouvir. As pessoas parecem
entender do que se trata, porque todas as portas estão trancadas.
Os cachorros latem ao longe, crianças choram baixinho. Parece que
todo mundo espera um banho de sangue imediatamente.

— Essa é a canção dos templários. — Pavlos me olha. —


Usada apenas pelos irmãos Somáli. — Ele explica. — É um
chamado de guerra.
— O que a letra diz? — Minha voz sai trêmula.
— Dá paz, ó Senhor, em nosso tempo. Pois não há ninguém
que há de lutar por nós, Senão Tu, Deus nosso. — Pavlos faz uma
pausa. — Que a paz seja a tua força, e abundância em tuas
colunas.
— Eles estão falando com o céu. — Declara. — Já que se
dizem deuses, certo? — Uma risada amarga sai da sua boca, ele
está claramente debochando da situação enquanto volta a remar.

— Da pacem, Domine, in diebus nostris. Quia non est alius.


Qui pugnet pro nobis. Nisi Tu Deus noster. — Eles repetem a
canção novamente. Eu me pergunto quantas vezes farão isso até
que a guerra se inicie. — Propter domum Domini Dei nostri quaesivi
bona tibi. — Apenas o final foi cantado diferente.

Dá paz, ó Senhor, em nosso tempo. Pois não há ninguém


que há de lutar por nós, Senão Tu, Deus nosso. Aos meus irmãos e
meus próximos falarei de tua paz.
Há tanto fervor e convicção em cada palavra que meu corpo
estremece de medo.
— Da pacem, Domine, in diebus nostris. Quia non est alius.
Qui pugnet pro nobis. Nisi Tu Deus noster. — Eles repetem a
mesma letra novamente, não errando o tom ou a suavidade mortal.
Dá paz, ó Senhor, em nosso tempo. Pois não há ninguém,
que há de lutar por nós, Senão Tu, Deus nosso.
Eu viro o rosto, acompanhando a forma grave como a voz
invade cada rua e se espalha por cada torre onde eles estão, eles
estão mais altos do que todo o resto da cidade, observa cada rua
sem parar de cantar.
— Rogate quae ad pacem sunt Jerusalem:et abundantia
diligentibus te. — E mais uma vez, apenas a última frase foi cantada
de forma diferente.
Orai pela paz de Jerusalém, prosperem aqueles que te
amam.
— Da pacem, Domine, in diebus nostris. Quia non est alius.
Qui pugnet pro nobis. Nisi Tu Deus noster. — Dessa vez, todos
cantam ao mesmo tempo, mas antes da última palavra ser
finalizada, uma voz distante e mais firme se sobrepõe às outras.
Suas palavras são diferentes e mais profunda do que todas as
outras. — Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Sicut erat in principio
et nunc et semper, et in saecula saeculorum.
Parece uma eternidade com cada palavra sendo pronunciada
lentamente, o resto do mundo permanece em silêncio, apenas
ouvindo.
— Amen. — Eu sinto calafrios quando os pássaros que
estavam dormindo se agitam, voando para longe das árvores perto
do mar, então todos que estão na torre repetem em uníssono.
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Como era no
princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
Foi isso que eles acabaram de cantar. Eu respiro
pesadamente quando eles voltam a cantar tudo de novo, eu afundo
em um canto do barco, tentando controlar meus nervos e não
enlouquecer com o ambiente sombrio.

Toda a cidade dorme em um silêncio absoluto, nenhum


animal está latindo, nenhuma criança continua chorando, Atenas
parece sem vida quando eles param de cantar.
— O que aconteceu? — Eu olho na direção em que Pavlos
está sentado, com as mãos cruzadas e assistindo a água turva.
— Eles saíram para caçar. — O homem me encara de um
jeito sombrio. — Diga amém, Arcane. — Ele ordena de um jeito
sádico.
Eu fico tensa, observando a pessoa que considerei o meu
melhor amigo. Agora eu sinto que o conheço de verdade, e dói
muito perceber que tudo que vivemos foi uma mentira. Eu nem sei o
motivo para ele estar fazendo isso comigo. Meu coração afunda em
meu peito, pois sinto que estou revivendo o passado.
— Pavlos, por que você está fazendo isso comigo? — Eu me
aproximo, tentando segurar sua mão. — Com minha irmã. — Eu
balanço a cabeça, sentindo lágrimas molhando minhas bochechas.
— Eu pensei que você nos amasse.
— Ownt.— Ele me encara, repuxando seus lábios para baixo
em uma expressão fingida de fofura. — Foi tão fácil enganar vocês,
Melissa é uma pessoa tão fácil… — Ele balança as mãos, me
observando cheio de desdém. — Eu só precisei foder ela do jeito
certo para conseguir me misturar com vocês. — Ele estala a língua,
dando uma risadinha amarga. — Eu construí uma vida inteira, cheia
de simplicidade e normalidade para atrair vocês.
Sua maldade está estampado em seu rosto, eu sinto nojo de
mim mesma por ter confiado cegamente nesse homem. Ele
conseguiu enganar todas nós com seu comportamento de bom
moço, com sua vida perfeita e limpa, mas ele demonstra ser tão mal
quanto qualquer pessoa que eu conheço.
— Meu pai me ajudou, é claro. — Ele infla seu peito. — Você
deve lembrar dele. — Pavlos bate os cílios. — Aleksander, aquele
amigo de quem falei no dia em que estávamos soltando pipa.
Eu tento me soltar quando ele segura meu braço ao
chegarmos do outro lado da cidade. Esse é um bairro mais pobre e
escuro, algumas pessoas nos observam com preocupação,
tentando compreender porque eu estou sendo arrastada para fora
do barco.
— Eu tenho muita coisa para falar, mas antes, vamos
começar a brincadeira. — Pavlos me empurra no chão, eu grito
quando minha palma rasga no chão de pedra.
— Pare com isso! — Eu grito, mas Pavlos me silenciar com
um tapa em meu rosto. Foi tão pesado e ardente que eu bato a
cabeça no chão. Minha visão está turva, eu não imaginei que sua
mão pesava tanto. — Me ajudem! Me ajudem! — Eu grito alto, mas
para o meu terror, as pessoas soltam risadas amargas.
— Eles não vão ouvir você. — Pavlos estala a língua. —
Você está na minha área agora, aqui ninguém é seu amigo, criança.
Ele agarra meus cabelos, me fazendo ver um carro preto
parado no acostamento, suas narinas estão dilatadas de ódio.
— Por favor, pare com isso! — Eu cuspo sangue quando ele
bate minha boca no chão de pedra, causando uma dor tão grande
no canto dos meus lábios que nem gritar por socorro eu consigo. —
Pavlos, nós somos amigos… Eu amo você. — Minha gengiva arde,
gotas de sangue pingam da minha bochecha.
— Cale a boca! — Ele vocifera. Eu me contorço no chão
quando homens de preto se aproximam do meu corpo, puxando
minhas pernas e me forçando a ficar em pé. Eu estou tão fraca e
minha boca dói tanto que não consigo fazer nada que eles me
obrigam.
— Você é o meu melhor amigo, Pavlos. — Ele segura meu
queixo, soltando uma risada desdenhosa vendo meu esforço para
falar.
— Nunca fomos amigos, Arcane. — Ele estala a língua. — Eu
fiz a porra de uma cirurgia para mudar o meu rosto, eu matei Leyla e
coloquei aqueles homens para perseguir você, eu coloquei aquela
cadáver estripado nos portões da família Somáli. — Seu dedo bate
em minha testa. — Tudo para matar você no momento certo.
— Por que você quer me matar? — Eu choramingo. — Eu
nunca fiz mal a você.
— Claro que você fez! — Ele grita, apertando meu pescoço.
— Você tirou tudo que eu mais amava, Arcane! Tudo!
Meus olhos se enchem de lágrimas. Eu não fiz isso, eu
jamais faria essa atrocidade com o meu melhor amigo, com a
pessoa mais gentil e atenciosa que eu já conheci. Tudo que eu fiz
foi amá-lo e lutar para protegê-lo.
Eu defendi sua vida tantas vezes, briguei com Kalon e com
meu pai, eu inventei mentiras, tudo porque o amava e queria tê-lo
comigo, porque queria que ele continuasse sendo o namorado da
minha irmã e a pessoa que mais fazia ela feliz no meio desse
inferno.
— Seu pai foi muito perspicaz em casar você com Kalon. —
Pavlos rosna. — Aquele homem dificultou tanto a minha vida,
Arcane… eu tive que foder a vadia da sua irmã, mas ela é uma
pessoa tão descartável que passei a maior parte do tempo com
nojo. — Suas palavras saem cheias de desprezo. — Os homens
que eu enviei para pegar você na festa de noivado foi um desastre,
então meu pai negociou com Evren para matar Kalon e trazer você
até mim, mas aquele imprestável falhou. — Pavlos balança a
cabeça em negação.
— Kalon é como a porra de um verme difícil de eliminar, mas
eu vi a oportunidade perfeita quando soube através das suas irmãs
a forma como você lutou por ele e destruiu Evren. — Ele abre os
braços como um psicopata. — A única forma de destruir Kalon é
usando você para fazer isso, e voilá, funcionou!
— Você matou Leyla e o marido dela? — Eu soluço, sentindo
uma culpa destruidora invadir meu corpo. Fecho meus olhos, não
suportando continuar olhando para seu rosto e ver a traição
estampada. — Ela era inocente. — Eu balanço a cabeça em
negação. — Pavlos, eu confiei em você para salvar ela e você a
matou!
— Você é uma pessoa tão tola, Arcane. — Ele estala a
língua. — Aqueles anos na prisão não ensinaram você a desconfiar
das pessoas, pelo contrário, deixaram você como um animal
irracional que dá até pena em manipular. — Eu fecho meus olhos
quando seus dedos acariciam minhas bochechas.
— Como você descobriu que eu estava na Turquia? — Eu
questiono, lembrando que apenas Kol sabia sobre isso.
— Essa foi a coisa mais fácil do mundo. — Ele solta uma
gargalhada tão exagerada que me deixa enjoada. — Eu coloquei um
rastreador em Paris, você é tão obcecada por animais que jamais
desconfiaria dele.
Eu encaro seu rosto. Deus, como uma pessoa pode ser tão
insensível dessa forma? Ele usou um animal indefeso para
contribuir com sua perversidade assustadora. Meu coração se parte
a cada explicação que ele me dá, eu começo a olhar para o
passado e todas as peças começam a se encaixar no lugar certo.
— Mas e a fazenda? — Eu soluço, não posso aceitar que o
lugar mais feliz em que estive antes de Istambul não passa de uma
fraude. — Eu conheci seus avós, eu participei da festa de
aniversário de Samia. — Meu coração se parte com a gargalhada
animalesca que ele solta, como se minha confusão pudesse
fomentar mais ainda a sua crueldade.
— Imagine a sorte que eu tenho em substituir a vida de um
cara que tem o mesmo nome que eu. — Ele ergue o queixo. —
Sério, eu vivi tanto tempo como um fantasma que meu nome não
desperta nenhuma lembrança nas pessoas. — Ele estala a língua.
— Mas eu assumi a vida de Pavlos, também fiz uma cirurgia para
deixar o meu rosto como o dele e os avós do cara não perceberam
porra nenhuma. — Pavlos me inspeciona de cima a baixo. — Eu
sou um ótimo ator, disso você já sabe.
— O que você fez com o verdadeiro Pavlos? — Sussurro,
com meu coração partido, já por imaginar a resposta.
— O que você acha? — Ele debocha. — Eu cortei ele em
vários pedacinhos e joguei no mar, simples assim. — O homem
estala a língua. — Agora chega de falar.
Eu grito ao sentir um soco pesado na minha barriga, uma
tosse seca em minha garganta, me fazendo perder os sentidos. Eu
olho para os lados, entrando em pânico, meu corpo está tão
cansado, eu não aguento nenhum desses esforços para continuar
respirando. Pavlos segura meus cabelos em seu punho, deslizando
o dedo indicador pelo rasgo que fez em minha bochecha quando
bateu meu rosto no chão.
— Ah, Arcane, você não imagina como é prazeroso ver você
sofrendo desse jeito. — Ele cheira meu pescoço, como se estivesse
faminto. — Vai ser um prazer ouvir todos os seus gemidos de dor. —
Lágrimas escorrem por meu rosto.
Eu sinto nojo das suas palavras, eu tento lutar para escapar
do seu aperto, mas ele aperta meu pescoço com força.
— Não tenha pressa para fugir, eu ainda vou te contar uma
história. — Ele desliza o dedo indicador por minha bochecha,
machucando mais ainda o rasgo em minha pele.
Eu quero gritar, mas não tenho forças para isso. Os homens
que estão me segurando voltam a me jogar no chão como se eu
fosse um saco de lixo.
— Por favor... Por favor... — Eu imploro baixinho, encarando
meu próprio sangue pingando no chão de pedra. — Fique vivo...
Sobreviva... — Penso em Kalon, em como eu abandonei ele em
casa e agora sua vida pode estar em perigo.
— Olhe para mim, Arcane. — Pavlos puxa meu rosto. —
Você não lembra dela, Arcane? Como você pode ser tão fria e não
se lembrar? — Ele sussurra, me fazendo tremer de medo.
Eu aperto meus olhos, me recusando a ver a indiferença
estampada em seu rosto.
— Aposto que você não lembra nem mesmo da voz dela... —
Ele estala a língua. — Por isso que você merece tudo que vai
acontecer.
Eu rastejo quando ele pega uma pedra no chão e caminha
em minha direção bem devagar, dando risada dos meus gritos de
agonia para conseguir escapar do seu golpe, mas ele vem certeiro e
me derruba.
Eu acordo com água gelada machucando meus ferimentos,
sinto vontade de vomitar quando sinto meu corpo balançando para
cima e para baixo. Uma música irritante está tocando em algum
lugar, percebo que é um instrumental dramático pelas notas
agitadas do violino e piano. Luzes ofuscantes piscam sem parar,
meu corpo está girando em círculos.
Eu estou em cima de um carrossel e meus pulsos estão
amarrados em um cavalo branco cheio de luzes marcantes. Tento
falar alguma coisa, mas minha boca está amordaçada.
— Você finalmente acordou. — Pavlos joga o balde no chão,
me olhando cheio de satisfação. — Eu pensei que você iria perder a
melhor parte.
Lágrimas molham minhas bochechas quando ele sobe no
carrossel e segura o cavalo, fazendo a máquina parar de girar como
um jogo que acaba a pilha. As luzes se apagam e eu permaneço
contra o cavalo de madeira, tontura aperta minha cabeça, Pavlos
puxa a mordaça da minha boca em um gesto brusco.
— Pavlos… — Eu tremo, respirando fundo. — Por favor…
Não faça isso…
— Você não se cansa de implorar? — Ele me olha sorridente.
— Que coisa irritante.
Estamos em uma espécie de circo abandonado, em uma
barraca imensa que está cheia de ferros enferrujados. Esse lugar é
espaçoso e mal iluminado, mais na frente tem grandes cortinas
vermelhas, elas estão escancaradas, revelando a madrugada fria lá
fora.
— Eu bati com tanta força na sua cabeça que pensei que
tinha matado você. — Ele esteja minha testa com um tecido que
cheira a álcool. Eu grito, afastando minha cabeça para longe do seu
toque.
— Onde está minha irmã? — Eu questiono, percebendo que
esse é o lugar de onde ele mandou aqueles vídeos dela sendo
torturada.
— Você não quer saber da outra novidade? — Ele balança os
ombros de um jeito dramático. — Por essa hora o corpo de Kalon já
deve estar sendo arrastado por aí. — Ele balança os dedos. — Um
marido sem vida, e com isso, uma organização inteira sendo
derrubada por causa de uma mulher que saiu do hospício.
— Não. — Eu choramingo. — Não faça nada com ele. Eu
imploro.
— Mas você precisa decidir quem quer salvar… — Pavlos
balança a cabeça em negação. — Kalon ou Melissa? — Ele cruza
os braços.— Eu mal posso esperar para ter a cabeça de um deles
em minhas mãos.
Eu fecho meus olhos, não quero imaginar o meu marido
morto, eu o amo tanto que essa ideia arranca um pedaço da minha
alma.
— Por que você está tão desesperada, Arcane? — Pavlos
segura meu queixo. — Por que está sofrendo tanto por ele? Você o
ama, é isso?
— Não! — Eu grito, tenho medo que ele descubra a verdade
e isso piore a situação. Eu quero apenas que esse fantasma na
minha frente desapareça e que Kalon e Melissa fiquem bem.
— Por que sua boca diz "não" quando seus olhos dizem
"sim"? — Ele se aproxima, me observando de um jeito perverso. —
Essa é a vantagem de ter passado tanto tempo te enganando, eu
sei tudo sobre você.
Primeiro, seus dedos deslizam por minha bochecha, em
seguida, ele aperta com força, cravando suas unhas em minha pele.
Eu faço careta ao sentir seu hálito de whisky e cigarro.
— O que você fez com a minha irmã? — Eu gemo, tenho
quase certeza que ele quebrou uma das minhas costelas.
— Já que você insiste tanto em saber, Arcane... — Ele
cantarola de um jeito dramático, como se estivesse atuando para
um teatro lotado. — Tragam ela. — Ele bate palmas.
Uma melodia dos infernos ecoa pelo ambiente, são correntes
sendo arrastadas, Melissa está chorando enquanto três homens
puxam seu corpo como se ela fosse um animal.
— Melissa! — Eu grito, chorando junto com ela. — Você
destruiu minha irmã! — Eu tento escapar, mas é em vão, meu corpo
permanece preso nesse cavalo de madeira. — Melissa…
Eu me quebro ao ver seu corpo sujo de terra e sangue, ela
não consegue me ouvir enquanto luta para continuar viva enquanto
é arrastada. Um grito sufocado sai da sua boca quando seus
ferimentos rasgam mais ainda no chão.
— O que você fez com ela? — Me desespero, tentando soltar
minhas mãos. — Melissa! — Eu grito.
Os três homens empurram minha irmã no chão, ela geme,
afundando seu rosto no solo arenoso. Meus olhos se enchem de
lágrimas e meu coração sente tanta dor que não consigo respirar
direito.
— Como você pode ser tão cruel? — Eu soluço. Eles
destruíram minha irmãzinha. Eu vejo sangue escorrendo na sua
pele, inúmeros cortes por tanta parte que preciso desviar o rosto
para não desmaiar de tristeza e horror.
— Eu transformei ela em uma obra de arte. — Ele aponta
para seu corpo no chão, dando risada como um demônio. —
Melissa merece, vamos concordar? Merece porque eu usei ela
durante meses apenas para chegar a esse momento. — Ele suspira.
— Merece por ter sido burra e ingênua pra cacete.
Pavlos bate suas mãos, aplaudindo toda a brutalidade que
marca a pele de Melissa. Ele caminha até onde eu estou, segurando
meu queixo e me forçando a encarar seu rosto.
— Hoje é o dia em que eu vou me vingar de todos vocês. —
Ele cospe as palavras. — Primeiro, por vocês terem matado a minha
mãe incendiada.
Suas palavras me afetam com tanta força que eu me sinto
tonta, minha vista escurece e algo profundo se quebra no meu peito.
— Sua mãe? — Eu tremo, inspecionando os traços do seu
rosto. — Cintia? — O nome dela sai quebrado e trêmulo.
— Cíntia Koumanes. — Ele fala o nome completo, agora me
fazendo compreender porque sempre achei o seu sobrenome tão
familiar. Ele alterou apenas algumas sílabas para conseguir virar
outra pessoa. — Vocês mataram ela quando eu era apenas um
garotinho.
— Não… Eu não matei… — Pavlos fecha seu punho ao redor
dos meus cabelos, arrancando um grito angustiado da minha boca.
— Não ouse mentir! — Ele rosna. — Eu nunca vou deixar
você esquecer que é a porra de uma assassina e não merece viver
em paz, Arcane.
Eu balanço a cabeça em negação, me sinto tão cansada de
ser chamada de assassina. Eu não quero isso, eu só quero ser livre
de todo o meu passado. Eu não quero que todos me olhem como se
conseguissem ver o mundo sombrio na minha cabeça, todos os
meus pecados e minhas culpas.
— Pavlos… — Eu choro quando ele estapeia meu rosto.
— Não ouse negar, Arcane. — Ele grita. — Você matou a
minha mãe logo depois do seu pai roubá-la do meu pai. — Ele
cospe as palavras. — Você não imagina o quanto foi solitário…
Apenas eu e minha irmã dando um jeito de sobreviver.
Os homens começam a torturar Melissa novamente, ela grita
alto e de um jeito tão doloroso que o mundo parece estar se
partindo em um terremoto, tudo apenas com a força com que sua
voz ecoa pelo lugar.
— Pare com isso! — Eu imploro, não aguento ver a dor nos
olhos dela. Ela está morrendo aos poucos, eu consigo ver. — Pare
de bater nela! Pare! — Eu enfraqueço, perdendo minha voz. —
Pare, Pavlos! — Soluço.
— O nome dela era Nikoleta! — Ele grita mais alto do que
nós duas. Eu paraliso, virando meu rosto em sua direção. — Minha
irmã, a pessoa que você matou. — Lágrimas quentes molham
minhas bochechas. — Nikoleta.
É como se meu pesadelo tivesse ganhado vida, o fantasma
de quem eu estava tentando fugir esse tempo inteiro finalmente me
encontrou.
— Minha irmã estava infiltrada naquela prisão para matar
você e vingar a morte da nossa mãe. — Ele cospe as palavras. —
Mas você matou ela, Arcane. Você tirou tudo de mim. — Seus
dedos apertam meu pescoço. — Sabe a pior parte? Logo depois
que você fez isso, você saiu da prisão como se não merecesse uma
punição pelo seu crime.
Eu encaro seu rosto, tendo a realização mais dolorosa da
minha vida.
— Não… — Eu gemo. — Ela era minha melhor amiga, jamais
faria isso.
Eu encaro seu rosto, me recusando a acreditar que Nikoleta
estava me usando e me enganando todo esse tempo. Eu quero
continuar acreditando que aquilo foi apenas uma discussão que teve
um final trágico, que nossa amizade sempre existiu e nunca foi uma
ilusão.
— Você continua em negação?— Pavlos solta uma
gargalhada. — Aquele dia não está claro na sua cabeça?
— Eu não sou uma assassina. — Sussurro firme. — Eu não
sou assim, eu nunca quis isso. — Engasgo. — Eu jamais faria
algum mal a vocês. A ninguém. — Soluço, balançando a cabeça
para conseguir me livrar das lágrimas. — Eu fui obrigada, ela tentou
me matar e eu precisava me defender.
— Agora você vai pagar por isso. — Ele ergue o queixo.
Eu procuro por Melissa, ela está tremendo no chão, tão
quebrada que eu tenho medo de qualquer movimento ser o seu
último. Ela parece tão frágil que eu trocaria de lugar com ela sem
pensar duas vezes.
— Melissa... — Eu a chamo, ela não se mexe.
Pavlos está caminhando de um lado para o outro, repetindo
sobre o incêndio que levou a vida da sua mãe e como isso nos
trouxe a esse momento.
— Eu não tive a chance de enterrá-la. — Ele fecha o punho
ao redor dos meus cabelos. — Nem as cinzas dela restaram.
— Sua mãe era uma mulher cruel, Pavlos. — Eu engulo um
gemido de dor. — Eu não sei que tipo de relacionamento doentio ela
tinha com o meu pai, mas você não consegue ver que ela
abandonou você e sua irmã sem pensar duas vezes?
Pavlos inclina a cabeça para o lado, analisando o meu rosto e
processando minhas últimas palavras. Uma raiva doentia mancha
seu rosto, deixando sua expressão mais sombria e perversa.
— Isso é mentir, foi o seu pai quem a tirou do meu. — Ele
rosna. — Yuri e Aleksander eram melhores amigos, Arcane. Assim
como eu e você somos. — Pavlos sibila, aumentando o meu
espanto. — Seu pai traiu o meu para continuar ao lado de Ivan
Somáli. — Ele estala a língua. — Eu não vou destruir apenas você e
Melissa, mas todo mundo que contribuiu com essa traição de anos
atrás.
— Isso não vai ficar assim, Pavlos. — Alívio sobe por minha
coluna quando ouço a voz de Melissa, mesmo que ela esteja fraca,
ao menos ainda está viva. — Papai e Kalon vão matar você. — Ela
diz como se fosse Deus quem lhe tivesse confessado. — Porque
Arcane agora é uma Somáli, ela é valiosa, a proteção dela não tem
nada a ver com o fato de você estar perseguindo-a esse tempo
inteiro, mas porque ela é amada. — Cada palavra ecoa como um
rosnado feroz, seu corpo treme quando ela se ergue minimamente
para enfrentá-lo. — Eles vão colocar fogo no mundo para encontrá-
la.
Eu fecho meus olhos, meu coração dói como se eu tivesse
sido apunhalada. Penso em Kalon, na forma como eu o abandonei.
— Kalon está morto, eu não te disse, amor? — Pavlos
resmunga, balançando o dedo em negação. — Eu enviei homens
para matá-lo no momento em que coloquei as mãos em Arcane.
Não. Eu paro de respirar com sua afirmação. Meu coração
bate tão rápido que meu corpo fica frio, eu esmoreço em cima do
cavalo de madeira. Eu choramingo, sentindo tanta angústia que me
sinto doente.
— Que seja! — Ela suspira. — Alguém virá atrás de você,
existem vários irmãos Somáli loucos para vingar o sangue dessa
família. — Ela ergue o rosto, seus olhos me encontram por alguns
segundos e eu percebo que minha irmã está tentando atrair a
atenção dele.
Eu admiro sua coragem em erguer o rosto quando Pavlos se
aproxima dela, ele segura seus cabelos com tanta agressividade
que minha irmã sufoca. Eu mordo as cordas em meu pulso,
buscando uma forma de desatar o nó, até que meu corpo pula
suavemente no chão quando eu consigo afrouxar. Em um
movimento rápido, eu me livro completamente das amarras. Tontura
escurece minha vista, mas eu avanço na direção dele com um único
objetivo; salvar minha irmã e dar o fora daqui.
Eu acerto o rosto dele com um chute, após tomar impulso
pulando a plataforma onde o carrossel está montado.
— Ora, sua desgraçada. — Ele cospe sangue, eu avanço;
esmurrando sua boca e fazendo seu corpo cair no chão. Melissa
usa suas correntes para sufocar o pescoço dele. Eu observo em
silêncio o seu corpo se debatendo, ele engasga e fecha os olhos,
ficando vermelho.
Eu giro em meus calcanhares, pegando a faca que ele tem
na cintura para lutar com os três homens que correm em minha
direção. Eu não permito que eles alcancem Melissa para salvar
Pavlos. Eu derrubo o primeiro corpo no chão, mantendo a faca em
seu peito, e pulo nas costas do segundo, cortando sua garganta.
O sangue espirra por todo lado, ele tropeça no chão e eu
giro, agarrando as pernas do terceiro homem que quase conseguiu
segurar Melissa. Ele cai no chão, tentando se arrastar, eu escalo
seu corpo e empurro a ponta da faca no seu rosto. Um silêncio
perturbador se espalha pelo lugar.
— Você está bem? — Melissa pergunta quando eu me
ajoelho no chão, abraçando seu corpo com todas as minhas forças.
— Eu tive tanto medo de perder você. — Ela soluça, eu afundo meu
rosto na curva do seu pescoço, chorando entre engasgos porque
senti o mesmo medo.
Melissa choraminga, se esquivando completamente do meu
toque. Eu afasto minhas mãos, vendo que meus dedos estão sujos
de sangue. Ela está muito ferida.
— Como desprende? — Eu soluço, começando a entrar em
desespero quando ela se encolhe no chão como um animal
indefeso. Melissa grita mais alto quando eu tento puxar as correntes
que envolvem cada parte do seu corpo.
— Não tem como tirar. Você precisa sair daqui. — Ela soluça.
— Não, eu não vou sair sem você. — Eu balanço a cabeça,
cobrindo meu rosto para não ver a forma horrível como sua pele foi
cortada.
— Não tem como, Arcane. — Ela balança a cabeça. — Me
deixe aqui e fuja. — Seus olhos se fecham. — Eu nunca vou
conseguir viver com essa culpa, então me deixe aqui para morrer. —
Ela geme. — Eu estou implorando. Me deixe morrer.
Eu grito quando ela usa suas pernas para me empurrar o
máximo que consegue. Eu soluço, tentando retornar, mas ela volte a
me empurrar até suspirar de exaustão.
— Não, eu não quero deixar você. — Choramingo. — Eu não
existo se você não existir, Melissa.
Eu olho ao redor, tentando encontrar uma chave para tirar as
correntes que estão presas em uma barra de ferro grande e muito
bem estruturada no chão. Nesse momento, uma mão agarra meus
cabelos. Eu grito quando ele me arrasta para longe da minha irmã.
— Sua puta! — Pavlos rosna. — Você pensou que eu
morreria tão fácil? Eu vou te assombrar como a porra de um
fantasma, Arcane. Vocês nunca vai se esquecer de mim. — Ele usa
toda a sua força para chutar as costas de Melissa.
— Não! Melissa! — Eu grito quando ela fica inconsciente.
— Agora eu vou dizer tudo que fiz com sua irmã. — Ele me
puxa, empurrando meu corpo para o lado oposto de onde Melissa
está caída.
Estamos do lado de fora desse lugar assustador, as luzes da
cidade estão tão distantes que fica difícil enxergar alguma coisa
através do borrão das minhas lágrimas. Ainda estamos dentro do
maldito bairro onde ele nos trouxe de barco, mas aqui é mais
deserto e escuro, afastado de todas as casas.
Tudo que eu vejo quando olho para cima são as estrelas,
essa é uma noite tão linda e encantadora que chega a ser pavoroso
e injusto, considerando que estou prestes a morrer e perder tudo
que mais amo.
— Eu cortei cada parte do corpo dela, arranquei sangue e
lágrimas daquela vadia. — Ele dá risada. — Depois, eu obriguei ela
a cavar sua cova, Arcane. — Ele aponta para um ponto afastado do
lugar onde estamos. — Agora eu vou enterrar você em um lugar
onde ninguém vai te achar, Arcane. É assim que eu vou me vingar,
enterrando você viva para que sinta agonia e desespero até o último
segundo, e depois, eu vou atrás dos outros.
Eu começo a tossir, sentindo falta de ar, meu coração está
tão inchado de dor que eu seria capaz de explodir. Meus gritos
ecoam por toda parte, não porque vou morrer, mas porque meu
melhor amigo está partindo meu coração de uma forma que jamais
será consertada. Ele é o irmão de Nikoleta e os dois estão me
destruindo de uma forma que vai me atormentar até o fim dos
tempos.
Pavlos era o meu melhor amigo, a pessoa que me fez abrir
meu coração para uma nova amizade, ele foi a primeira pessoa a
me enxergar como alguém normal. Sua traição queima meu peito,
como se tivesse alcançado minha alma e me transformado em uma
criatura insignificante que não merece uma coisa que deveria ser
simples na vida de todo mundo.
Ele me ergue com tanta facilidade que sinto ânsia de vômito,
seus olhos se encontram com os meus e eu tremo, buscando
qualquer resquício daquela pessoa bondosa que me abraçou pela
primeira vez, que me deu seu cachorrinho de estimação. Eu fecho
meus olhos porque não vejo nada. Ele se foi. Pavlos não passa de
um fantasma agora.
Sinto uma dor absurda quando meu corpo bate dentro de
algo amadeirado, percebo que é um caixão. Eu abro meus olhos,
me sentindo soterrada ao ver como o céu está muito alto e eu cada
vez mais no fundo.
— Diga adeus, criança. — Eu visualizo seu rosto acima do
meu corpo, os traços de um sorriso, o céu brilhando com tanta
beleza acima dele.
— Pavlos… — Tento respirar fundo quando ele empurra uma
tábua de madeira para me deixar presa, eu engasgo com meu choro
fraco e cheio de resignação.
Eu fecho meus olhos quando a terra adentra as brechas da
madeira, parece que o peso do mundo caiu sob meu corpo no
próximo segundo. Esse pequeno espaço de madeira deixa tudo
mais desesperador e sufocante. Eu sinto falta de ar e começo a me
debater quando tudo fica pesado e escuro.
— Eu te disse que ele estava atrás de você, criança. — O
fantasma dela sussurra quando eu fecho meus olhos.
— Não… Eu só queria ser livre… — Ela não está aqui de
verdade, se eu me concentrar, vou perceber que não ouço nada,
não vejo nada, é apenas uma ilusão.
Eu aperto meus olhos, soluçando e engasgando. Imploro a
Deus para que minha morte venha sem demora, eu procuro alguma
lembrança feliz para me satisfazer enquanto eu estiver morrendo.
Tudo que eu vejo são meus momentos ao lado de Kalon, desde a
primeira vez que eu vi seus olhos até a última. Parece que nós
realmente nascemos para morrer, eu conheci a liberdade em tão
poucos dias que não consigo me conformar com a ideia de que esse
é o fim, eu preciso de mais, foi tudo tão pouco.
Eu preciso que seja para sempre.
41. NASCIDOS PARA MORRER
“Perdi tudo, menos a
certeza da tua bondade”.

— VIRGINIA WOOLF.

Eu nunca me senti tão desesperado quanto agora. Estou


caminhando de um lado para o outro, meu coração bate
desenfreado, minha respiração está desregular.
— Saia da minha frente, porra! — Eu chuto um corpo cheio
de sangue. Tem uma pilha de corpos na sala, em cima do tapete
que agora está pingando em vermelho. Desvio o rosto, sentindo
nojo e uma náusea angustiante quando lembro que Arcane me
abandonou.
Meu irmão caminha em minha direção depois de revirar todos
os cadáveres, matando-os do seu jeito, repetindo o mesmo
ferimento apenas para se satisfazer com a realização de que estão
plenamente mortos.
— Não foi nada maravilhoso, Kol. — Eu balanço a cabeça em
negação, relembrando da noite em que eu acreditei que jamais
ficaria sozinho quando me casasse com Arcane. — Ela saiu por
aquela porta depois de me dizer coisas horríveis. — Aponto para o
meu peito, me sentindo em pedaços.
Ele me observa por algum tempo, eu vejo a pena estampada
em seu rosto ao ver como me sinto destruído.
— Algumas coisas não foram feitas para pessoas como nós.
— Ele balança a cabeça em negação, erguendo sua mão para tocar
meu rosto. — Talvez, se você deixar ela ir embora, você se sinta
melhor em saber que ao menos ela está feliz. — Eu fecho meus
olhos quando seus lábios encostam na minha pele, deixando um
beijo consolador. — Vai passar.
— Não, não vai. — Eu balanço a cabeça em negação, me
afastando para longe do seu toque. Kol respira pesadamente e olha
para todos os corpos espalhados pela sala.
— Eu estive investigando… — Ele explica, pegando as
chaves para retirar as algemas do meu punho. — Eu estava a
caminho da sua casa para informar que Melissa está desaparecida
e a mansão Planard foi destruída com fogo.
Eu tive que lutar contra esses homens usando a porra das
algemas, mesmo que a cama tenha quebrado com a força que eu
usei, ainda estou preso com isso.
— Se Arcane fugiu, daremos um jeito de encontrá-la e talvez
ela volte pela família. — Kol me olha de um jeito esperançoso.
— E quanto a Yuri? — Eu questiono, limpando minhas mãos
sujas de sangue.
— Ele está caçando por Nimue. — Ele explica com calma. —
Mas eu já sei onde ela está, graças aos meus meios.
Eu encaro seu rosto por algum tempo, analisando sua
expressão e tentando compreender o que ele está escondendo de
mim.
— Me conte tudo, Kol. — Eu rosno, ficando impaciente com
seu silêncio.
— Você não ouviu? — Ele balança a cabeça em desdém. —
Eu coloquei homens para cantar no alto das torres faz meia hora.
— Esse foi o maior insulto que você já cometeu. — Eu seguro
sua camisa. — Aquelas torres foram erguidas para o povo islâmico
em suas orações, uma tradição deles. — Eu sibilo.
— Foi uma jogada maravilhosa, pare com isso. — Kol solta
uma gargalhada cheia de deboche.
— Você mandou os homens cantarem a canção dos
templários, a música de guerreiros que passaram suas vidas
defendendo o cristianismo das mãos do islamismo. — Bato em seu
ombro. — Eles cantaram Da Pacem Domine em cima de torres
islâmicas. Como você pode ser tão baixo?
— Se isso serve de consolo, eu não estou do lado nem de
um e nem de outro. — Ele balança os ombros. — Toda a confusão
aconteceu antes mesmo de eu nascer, podemos apenas fingir que
está tudo certo?
— Tudo certo, não sou eu quem vai parar nas profundezas do
inferno por causa dessa brincadeira de mal gosto. — Eu balanço a
cabeça.
— Eu ainda não terminei de falar sobre tudo que eu descobri.
— Ele ergue o queixo. — Eu estava suspeitando de um homem que
anda olhando de um jeito muito errado para Melissa.
— Como? — Eu ergo uma sobrancelha. — Desde quando
você presta atenção na minha cunhada?
— Eu presto atenção em todo mundo. — Ele entorta os
lábios. — Pavlos Koustenis. — Kol sibila lentamente. — Você sabia
que ele é o namorado de Melissa?
Eu solto uma gargalhada amarga e sufocante. Minha mulher
fugiu, deixou um buraco no meu peito, e ele vem falar no homem
que eu passei metade do tempo acreditando que era a porra do
amante dela.
— Me dê um bom motivo para não matá-lo por estar
assombrando minha vida desse jeito. — Eu rosno, aproximando
meu rosto do dele.
— O ponto é que não há nenhum motivo para poupar essa
besta selvagem que vive dentro de você. — Ele me olha como se eu
fosse uma vagabunda. — Eu achei ele muito estranho no dia do
casamento, um homem muito santinho para o meu gosto, então
descobri que ele é filho de Aleksander e Cíntia Koumanes.
O chão some dos meus pés quando ele repete os dois
nomes. Não é possível que eu tenha deixado isso passar
despercebido. Os nomes são quase iguais.
— A mulher que Yuri matou queimada era esposa do ex-
melhor amigo do papai. — Eu sibilo sem muita emoção. — Filhos da
puta!
— Eles tiveram dois filhos gêmeos. — Kol avança em minha
direção. — Pavlos e Nikoleta.
— A Cúpula sabia disso o tempo inteiro? — Frieza sobe por
minha coluna.
— Provavelmente. — Ele balança os ombros, me analisando
cheio de satisfação. — Você precisa encontrar uma forma de trazer
Arcane de volta e explicar isso para ela. — Ele me analisa. —
Melissa está com ele faz muito tempo, eu não consigo encontrá-la.
— Ele gira, começando a soltar uma série de palavrões porque
nunca aceita falhar em uma caçada. Kol encarou seu relógio como
se soubesse de cada segundo e hora em que Melissa foi tirada da
nossa segurança. — Eu encontrei Nimue escondida em uma
mesquita, aquela garota esperta, foi para o único lugar onde um
membro da Alkyóna, ou qualquer criminoso, é proibido de colocar os
pés.
— Mas você colocou? — Eu rosno, incrédulo demais para
formar algum insulto decente.
— Exato, eu não senti vergonha dos meus pecados ao entrar
lá e resgatar ela com minhas mãos. — Ele ergue o queixo. — O
lugar é como todos os outros, apenas muito silencioso que me
causa arrepios, e eles também deixam o dinheiro em um lugar muito
acessível.
Eu desvio o rosto para não visualizar a quantidade de
dinheiro embrulhado que ele arranca dos bolsos e joga no chão.
— Eu não acredito no que estou vendo. — Sibilo,
caminhando para longe de todas as moedas que rolam no chão. —
Que Deus castigue você, Kol Somáli.
— A que Deus você se refere? — Ele me olha, batendo os
cílios.
— Você é insano. — Eu balanço a cabeça. — Nós não
perturbamos a paz dos fiéis que vão lá para orar. — Sibilo, como se
essa regra não fosse clara o suficiente.
— Eu não perturbo ninguém. — Ele ergue uma sobrancelha.
Pavio curto pra caralho. — Apenas trouxe alguém que pertence ao
nosso mundo. E enfim, Nimue está salva agora, o assunto é Melissa
e Arcane, fazendo o favor?
— Você precisa tirar isso daqui primeiro. — Balanço as mãos
em sua direção, apontando para as algemas que ele não tirou
completamente.
— Calma aí, ranzinza. Eu não sou seu capacho. — Ele fala
firme. — Me trate direito.
— Eu não dou um caralho para como estou tratando você
nesse momento. — Eu falo entre dentes. — Precisamos salvar
Melissa e encontrar Arcane, antes que seja tarde demais!
— Só para deixar claro. — Seus olhos brilham com cinismo.
— Eu amo aquela garota! — Suas gargalhadas são suaves. — Ela
domou você direitinho, que menina esperta! Agora já pode tomar
sua posição de fodão.
— Kol? — Eu respiro fundo, encarando seu rosto com tanta
fúria que a diversão abandona sua expressão. — Podemos ir ou
você ainda tem algum elogio para fazer?
— Eu tenho quase certeza que ele mandou os homens para
matar você e não ela. — Ele me ignora, caminhando pela casa por
um tempo e analisando todos os corpos outra vez. — Você fez
planos para explodir a casa com uma lasanha? — Kol caminha até o
forno, percebendo que ainda está ligado.
— Porra. — Eu resmungo, odiando o fato dela ter preparado
um jantar para nós que jamais aconteceu. Kol se esquiva da minha
tentativa de fechar o forno e deixar a comida onde está.
— Está no ponto. — Ele retira a travessa sem dar importância
para o quanto está quente. — Vocês costumam trocar declarações
com comida ou também comem papel?
— Do que você está falando, merda? — Começo a ficar
irritado com suas piadinhas.
— Meu querido, tenho certeza de que vou enlouquecer de
novo. — Kol começa a ler, repetindo cada palavra como se fosse
algum enigma. — Não podemos passar por mais uma daquelas
crises terríveis. E, dessa vez, não vou sarar. Começo a ouvir vozes
e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me
parece a melhor coisa. Você me deu a maior felicidade possível.
Ele faz uma pausa e me encara por breves segundos, eu me
apoio contra a bancada, suas palavras afetam minha cabeça de
uma forma que não me permite respirar direito ou falar alguma
coisa.
— Por que isso parece uma carta de suicídio? — Ele
questiona.
— Porque é. — Eu falo baixo.
— Arcane fugiu para se matar, Kalon? — Ele me inspeciona
como se eu fosse uma ameaça. — O que isso significa? — Suas
palavras me fazem soltar uma gargalhada amarga, meus ombros
balançam com a força dos sons graves que saem da minha boca.
— Você não quer terminar de ler, irmãozinho? — Eu tomo
fôlego, apontando para o papel em suas mãos.
— Você foi, sob todos os aspectos, tudo o que alguém
poderia ser. — Ele continua lendo. — Acho que não existiam duas
pessoas mais felizes, antes de aparecer essa terrível doença. Não
consigo mais lutar. Sei que estou estragando sua vida, que, sem
mim, você poderia trabalhar. E eu sei que vai. Veja que nem consigo
escrever direito. Não consigo ler.
— O que quero dizer é que devo a você toda a felicidade da
minha vida. Você tem sido extremamente paciente comigo e
incrivelmente bom para mim.
— Quero dizer que—todo mundo sabe disso. Se existisse
alguém capaz de me salvar, seria você. Perdi tudo, menos a certeza
da sua bondade. Não posso continuar estragando sua vida. Não
creio que tenham existido duas pessoas mais felizes do que nós. V.
O silêncio se espalha pela cozinha, Kol descansa o papel na
bancada e me observa cheio de raiva e incompreensão.
— Quem é V? — Ele sibila.
— Virginia Woolf, a autora favorita de Arcane. — Eu
respondo. — Ela escreveu essa carta para o marido antes de
encher seus bolsos de pedra e pular no lago.
Ele fica em silêncio por um tempo, passando os olhos pelo
papel até voltar a me encarar.
— Eu não entendo. — Ele balança a cabeça. — Desde
quando você conhece Virgínia Woolf?
— Desde que eu li todos os livros dela. — Eu massageio meu
queixo, cruzando os braços diante do peito ao lembrar de todas as
tardes em que eu tirava meu tempo para ler os livros favoritos de
Arcane. — Foi ela quem escreveu isso, é uma pista. — Eu levanto o
papel. — Ela está tentando dizer que não fugiu porque me odeia,
mas porque precisava.
— Fugiu para onde? — Kol questiona, apoiando as mãos na
bancada.
— Você conhece o endereço do verso? — Eu viro o papel
para ele ver, seus olhos correm pelas palavras. Uma. Duas. Três.
— Não é possível que Arcane tenha ido para lá. — Ele estala
a língua. — Isso deve ser alguma armadilha, Kalon.
— Não, não é. — Eu bato o dedo nas palavras. — Essa é a
letra dela.
— Então ela não fugiu. — Ele me encara. — Ela foi obrigada
a ir, porque ninguém em sã consciência coloca os pés no território
da Ecclésia.
O lugar onde todos os inimigos da Alkyóna vivem, onde eles
matam sem nenhuma lei e não tem piedade das pessoas que
acabam sendo torturadas naquelas ruas.
— Vamos depressa. — Eu avanço para sair da cozinha,
sendo perseguido pelo meu irmão que liga seu celular e faz
inúmeras ligações.
Eu não consigo me concentrar no que está acontecendo ao
meu redor, só consigo pensar em Arcane, no fato dela não ter fugido
de casa e sim ter sido obrigada a isso.
Kol assume o volante do meu carro, cortando caminho entre
os carros da avenida principal e soltando alguns palavrões de
incredulidade. Todo meu corpo estremece quando ele pega a ponte
principal que leva até o bairro deles, o ambiente muda
completamente, dando razão aos boatos sobre esse lugar ser igual
ao inferno.
As casas são simples, como se o lugar tivesse parado no
tempo, e mesmo sendo tarde da noite, algumas pessoas estão
caminhando pelas ruas.
— Como você sabe que é aqui? — Eu olho para Kol.
— Eu não sei, o endereço na carta de Arcane dizia apenas
sobre o porto em Atenas que leva até aqui. — Ele explica, me
analisando cheio de profundidade. — Vamos ter que seguir a
intuição.
Meu irmão permanece dirigindo até que não tenha mais
casas, apenas uma estrada vazia, ele está prestes a fazer a curva
para rondar cada rua desse território quando os faróis do carro
iluminam uma espécie de circo abandonado. Meu coração falha as
batidas e eu seguro o braço de Kol.
— Eu quero entrar e ver o que tem lá dentro. — Eu sibilo,
olhando em sua direção. — Um vi uma luz lá dentro.
— Vou tirar o carro da estrada. — Ele resmunga, girando o
volante e parando em um lugar escondido.
Eu saio do carro, Kol parece tão agitado e distante em seus
pensamentos quanto eu. Eu seguro minha arma e caminho atrás de
Kol, fazendo a retaguarda. O lugar está silencioso e vazio.
Tensão corre pelas minhas veias quando entramos na tenda,
eu vejo corpos espalhados pelo chão, todos estão mortos. Kol faz
uma careta de nojo quando sua bota afunda em uma poça de
sangue. Sua expressão de desprezo apenas aumenta quando ele
tem a realização de que estão mortos.
— Parece que cuidaram de tudo? — Ele questiona, erguendo
uma sobrancelha. — Interessante, mas eu ainda não me sinto
satisfeito. — Ele limpa a garganta, pegando sua faca e cortando a
garganta de cada um deles, fazendo sangue espirrar em suas
bochechas.
— Eu vou olhar ao redor. — Sibilo, percebendo que ele vai
demorar até ficar satisfeito com a morte deles. Kol me ignora, ele
continua olhando os corpos como se fosse algum cientista esses
fosse seu experimento dos sonhos.
Eu tento não ficar perturbado com a possibilidade de Arcane
ter passado as últimas horas nesse lugar asqueroso, esse
pensamento me impulsiona a caminhar depressa, mas eu paro
quando ouço um choro baixo, acompanhado por gemidos de dor.
— Você ouviu? — Arrepios sobem pela minha espinha, foi
necessário Kol segurar meu ombro para eu manter a guarda e não
correr até lá.
— Seja cuidadoso. — Ele sussurra, me fazendo andar ao seu
lado. Não demorou muito para vermos o corpo de Melissa no chão,
envolto por correntes pesadas.
— Melissa? — Eu me aproximo, ajoelhando perto do seu
corpo e acariciando suas bochechas ensanguentadas. Ela está tão
fraca que sinto medo de quebrá-la.
— Onde está Arcane? — Eu questiono, não vendo nenhum
sinal da minha mulher.
— Por favor. — Melissa implora. — Por favor, me mata. —
Ela choraminga de um jeito tão quebrado que eu faço uma careta.
— Está doendo tanto, Kalon.
— Eu farei a dor passar. — Toco seus cabelos, tentando
acalmá-la para em seguida arrancar as correntes do seu corpo.
Ela grita e se contorce no chão quando seus ferimentos são
marcados pela força que usei para remover a primeira dobra de
corrente. Eu solto o metal como se tivesse tocando em fogo, em
cada dobra das correntes há pontas profundas contra sua pele.
— São pregos, Kol. — Eu sussurro, procurando por meu
irmão. — Estão dentro da pele dela.
— Melissa? — Ele chama por ela com tanta suavidade que
eu pisco algumas vezes, estou incrédulo, nunca vi meu irmão falar
dessa forma carinhosa. — Se concentre em nós, está bem? Eu vou
tentar tirar. — Kol fala bem baixinho, deslizando a ponta dos dedos
por seus ferimentos.
— Os pregos não estão muito fundos. — Ele suspira. —
Talvez, se eu puxar devagar… Você aguenta, não é? — Melissa
chora, seu corpo treme quando Kol desliza os dedos por sua coluna.
— Você é forte demais, Melissa! Claro que você aguenta!
Meu irmão conversa com ela, mas me olha por alguns
segundos, indicando que eu devo tentar puxar as grandes barras de
ferro onde as correntes estão presas. Se eu conseguir soltá-las da
estrutura, pode ser que fique mais fácil para arrancar os pregos do
seu corpo.
— Por favor... Eu não aguento mais! — Melissa implora,
chorando tão fraco enquanto se contorce.
— Não diga isso, Melissa. — Kol geme junto com ela,
frustrado por não conseguir remover os pregos penetrando sua
cintura e seus braços. — Você não vai morrer, apenas aguente mais
um pouquinho.
— Kol… — Ela treme, segurando sua mão. — Por favor, será
mais fácil se você me matar! — Sua voz sai tão fraca que eu desvio
o rosto. — Me mate, por favor. Eu não vou me importar em morrer...
Apenas acabe com o meu sofrimento. — Ela implora, apertando os
olhos. Meus ombros pesam, eu sinto agonia ao imaginar o quanto
ela está sofrendo há horas.
— Você não vai morrer hoje, está ouvindo? — Kol fala
apressado, ele segura ela cheio de perturbação, puxando seu corpo
para ficar em seu colo.
— Eu imploro. — Ela soluça, agarrando os braços dele
quando ele segura seu corpo desnudo e ensanguentado no colo.
— Não, Melissa. — Ele rosna. — Nem que eu arranque meus
próprios pulmões para você respirar. — Ele segura os dois lados do
seu rosto, tentando fazê-la lhe encarar. — Você quer isso para
sobreviver? Eu faço, porra! Eu faço tudo! — Ele está rosnando como
a porra de um homem obcecado que não vai aceitar outra coisa
além do que quer.
Melissa grita, e ele grita junto com ela, tomado pelo esforço
exaustivo para conseguir arrancar as correntes da sua cintura.
Sangue escorre por sua pele, Melissa se revira nos braços de Kol,
enfraquecendo.
— Está doendo, pare! — Ela sufoca.
— Não se atreva a fechar os olhos, Melissa. — Ele ordena,
segurando seu queixo. — Olhe para mim.
Eu retiro meu sobretudo, ajudando a cobrir seu corpo nu
agora que ela está livre das correntes que estavam em sua cintura.
Kol aperta seu corpo com força, acariciando seus cabelos e se
preparando para puxar as correntes em seu braço.
— Eu te prometo, Melissa. Você nunca vai parar de respirar.
Sequer pense nisso. — Ele enxuga suas lágrimas, afundando o
rosto dela na curva do seu pescoço. — Eu vou arrancar o restante
das correntes, vai doer, mas não vai doer para sempre.
— Eu preciso achar Arcane. — Resmungo apressado,
sentindo agonia por não tê-la por perto. Eu olho para Melissa, me
certificando de que ela vai ficar bem.
— Vá. Eu cuido de Melissa. — Kol sibila, parecendo
submerso em seus pensamentos.
Eu permaneço no lugar, não confiando em suas condições
para deixá-la sozinha com ele. Meu irmão pode perder o controle e
tentar arrancar as correntes com impaciência.
— Eu disse que cuido dela. — Ele rosna como um animal
possessivo, como se odiasse a ideia de ter meus olhos em Melissa.
— Ele está matando ela. — Melissa chora, olhando em minha
direção. — Kalon, ele está matando Arcane.
Sua voz é cheia de exaustão e desespero. Ela tenta se
levantar, mas Kol segura ela com força.
— Calma, Melissa. — Kol sussurra baixinho. — Se concentre
em respirar.
Eu dou as costas para os dois, ignorando os gritos de Melissa
quando Kol remove o restante das correntes de uma só vez. Eu
paro de andar quando vejo uma sombra caminhando em minha
direção, aparecendo do meu lado esquerdo.
— Ah, merda. Você nunca morre? — Pavlos rosna,
caminhando em minha direção como um animal astuto.
— Vai precisar mais do que alguns furos para me destruir. —
Eu abro os braços, encarando seu rosto. — Eu nunca gostei de
você, agora entendo o motivo.
— Bom, eu penso que sabendo que eu acabei de enterrar o
corpo de Arcane, isso te mate de vez. — Ela solta uma gargalhada
astuta.
Raiva cresce dentro de mim quando eu visualizo todo o seu
corpo sujo de terra, Pavlos está suado como se tivesse finalizado
um trabalho braçal muito difícil.
— O que você fez com ela? — Eu avanço em sua direção.
— Tirei tudo de você, assim como ela tirou tudo de mim. —
Ele sibila. — Você sabe como as coisas funcionam no nosso mundo,
eu não preciso explicar. — Uma gargalhada cheia de satisfação sai
da sua boca, eu me descontrolo e esmurro seu rosto.
— Você não passa de um garoto inconsequente. — Eu bato
minha testa em seu nariz, fazendo ele cair para trás e gemer alto. —
Por isso passou esse tempo inteiro escondido e nunca tentou lutar
comigo. — Eu rosno, chutando seu corpo quando ele bate no chão.
— Você é fraco e perverso.
— Você não sabe nada sobre mim. — Ele cospe sangue,
tentando segurar meu punho.
— Ah, eu conheço muito bem essa história. — Balanço a
cabeça. — Você é apenas um menino seguindo as ordens do papai,
não é?
— Eu atraí Arcane até aqui e acabei com a vida dela. — Ele
ergue o rosto, me encarando. — O que eu tinha que fazer já está
feito, então me mate, se quiser. — Ele tomba quando eu acerto sua
boca, fazendo-o se calar.
— Cale a porra da boca! — Eu grito, perdendo o controle. —
Cale a boca!
— Logo alguém mais forte vai substituir o meu lugar e
finalizar o que eu comecei. Todas as pessoas que eu matei, seu
amigo Altan, Leyla... Isso não chega nem perto do que meu pai vai
fazer. — Ele fecha os olhos, seu rosto está inchado e sangrando. —
Sua família inteira vai ser destruída.
Eu tremo, agarrando seu pescoço, um grito cheio de fúria e
angústia rasga a minha garganta. Eu fico cego para conseguir
enxergar as coisas que estou fazendo com esse homem. Eu prometi
que não faria nada com ele porque era o melhor amigo de Arcane,
porque ela o amava de uma forma que eu sentia inveja por não ter.
Um amor cuidadoso e cheio de admiração, tão genuíno e profundo
que fazia meu peito doer.
— Você vai pagar por isso. — Ele traiu ela, ele jogou fora
toda a consideração que ela sentia por ele. — Você não passa de
uma criança mimada, seu merda.
Ele está gargalhando enquanto olha para o lugar distante
mais a frente, onde tem um amontoado de terra mexida
recentemente. Eu juro pelos deuses que nesse momento consigo
ouvir o som do meu coração quebrando e parando de bater.
Lágrimas tomam meus olhos quando encaro Pavlos. Ele não estava
blefando quando afirmou que enterrou ela.
— Seu filho da puta! — Eu rosno, essa é a primeira vez que
eu mato alguém sem dar risada, pelo contrário, gemidos de raiva e
mágoa consome minha garganta a cada golpe contra seu rosto.
Ele geme, tentando se defender. Nesse momento, meu corpo
cede à exaustão e eu pulo em cima do seu corpo, sufocando sua
garganta. Eu quero rasgar ele com as minhas mãos.
— Você vai queimar no inferno por isso, Pavlos. — Eu sibilo.
— E quando eu descer para lá, vou fazer questão de caçar você e
fazer tudo isso novamente.
Ele grita quando eu seguro seu queixo, puxando devagar seu
osso estalar, indicando que quebrou. Eu quebro o seu pescoço com
facilidade, sentindo seu corpo ficar mole e muito pesado por cima do
meu. Ele está morto, foi tão fácil que insatisfação consome meu
peito. Ele merece mais, muito mais.
Eu me levanto, empurrando-o para longe. Analiso cada parte
da sua existência insignificante e sem vida. Eu vou adorar ver Kol
esquartejando cada pedaço do seu corpo porque não vai estar
satisfeito com o seu fim.
Eu começo a correr até a cova, eu respiro fundo, não
conseguindo achar a pá em nenhum lugar, eu também não tenho
tempo para sair procurando. Minhas mãos afundam na terra,
gemendo com cada punhado de terra que eu arranco desseburaco
onde ela está enterrada.
— Arcane! — Eu grito em desespero. — Não vá! Eu não
quero viver em um mundo onde você não existe! — Meus dedos
estão doendo, mas eu permaneço cavando.
Todo meu corpo treme, mergulhando nesse desespero
sufocante. Ela não pode estar morta. Não pode. Eu não faço pausas
para respirar, quando alcanço um pedaço de madeira, eu começo a
usá-lo para tirar a terra com mais rapidez.
— Arcane! — Eu me sinto tão desamparado e destruído que
consigo ouvir minha alma rasgando em pedaços.
Eu sinto um medo assustador de como será a minha vida
depois que eu encontrar seu corpo sem vida. Eu sempre fui cabeça
quente e terrivelmente perturbado, mas agora me sinto no limite dos
meus sentimentos quando tenho a realização de que minha mulher
está morta. Esse é o momento onde as palavras acabam, onde tudo
se esgota e eu percebo que história como a nossa só escrevem os
infelizes.
— Deus! — Eu imploro, sufocando quando minha palma
sentiu a madeira dura. — Arcane! — Eu tento puxar, usando todas
as minhas forças.
Quando a madeira sai por completo, eu avanço, procurando
por ela. Eu seguro seu corpo desfalecido em meus braços,
respirando pesadamente, como se minha alma tivesse retornado ao
meu corpo apenas para me fazer sentir uma agonia dos infernos.
Ela está tão fria e mole, seu peito não está se movimentando.
— Arcane! — Eu deito meu rosto em seu corpo. — Meu
amor! Não me deixe! — Seu coração está batendo fraco, eu me
preparo para fazer uma massagem cardíaca. Eu olho por cima do
ombro, procurando por alguma ajuda.
— Vamos, acorde! — Ela se contorce quando eu empurro
minhas mãos uma última vez. Seu corpo gira para o lado, ela
engasga, procurando oxigênio.
Eu afasto a terra dos seus cabelos, apoiando minha outra
mão em suas costas e permitindo que ela respire fundo. Quando
seus olhos se encontram com os meus, ela desaba, chorando de
um jeito frágil.
— Kalon… — Ela me chama, segurando meu rosto. — Você
está vivo? Pensei que eu tinha perdido você. — Ela esconde seu
rosto contra minha pele, me tocando pra ter certeza que eu não sou
um fantasma.
Desespero e alívio me invadem ao mesmo tempo, eu puxo
seu corpo contra meus braços.
— Você pensou? — Minha voz fraqueja. — Saiba que eu
quase morri porque não conseguia trazer você de volta. Você quase
morreu, Arcane. — Eu falo risonho, me alimentando desse alívio
que corre por minhas veias. Eu seguro seu rosto como se meu
coração pudesse sair pela boca.
— Eu preciso te dizer uma coisa. — Minha testa se encaixa
contra a sua, estamos respirando pesadamente.
— Eu também. — Ela responde, me apertando com força. —
Nada daquilo que eu falei era verdade. — Ela choraminga. — Eu
menti em tudo que disse, Kalon.
— Sim, eu sei que não. — Eu sussurro, balançando a
cabeça. — Me ouça, por favor. — Eu esfrego meu rosto contra o
seu, sentindo sua pele molhada. — Eu não sei o que é o amor, nem
sei qual é a medida para ele ser perfeito e correto. Arcane, eu
também não sei porque sou tão descontrolado e destruo tudo, mas
eu prometo que vou tentar mudar quando estiver com você, porque
para mim você é o amor e nada mais. — Sussurro. — Você acredita
que milagres acontecem, pois bem, você é o meu milagre, Arcane.
Eu te enxergo como a melhor coisa que existe na minha vida.
— Eu fiz muitas coisas erradas em nome dessa liberdade que
eu tentei te dar, mas agora vejo que não consigo mantê-la porque a
liberdade é uma coisa que precisa nascer dentro de você, Arcane.
Minha insistência e obsessão quase custou a sua vida, então, se
você ainda quer ir embora… Eu prometo que hoje é a noite em que
tudo acaba.
Ela está sorrindo e chorando, Arcane fecha seus olhos como
se o peso do mundo tivesse saído dos seus ombros.
— Você me ama? — Ela está trêmula. — Eu sou amada por
você? — Seus dentes perfeitamente alinhados se exibem em um
sorriso que me tira o fôlego, suas bochechas estão rosadas, mesmo
sujas de terra.
— Claro que eu amo você. — Eu respondo, liberando minha
respiração. Ela me abraça, escondendo o rosto em meu pescoço.
— Você não pode retirar essas palavras. — Ela sussurra.
— Eu não vou. — Eu fecho meus olhos, adorando suas
risadas baixas e apaixonadas. — Eu amo muito você, como um
louco.
— Eu também amo muito você. — Ela segura meu rosto e
reivindica meus lábios. — Eu não quero ir para lugar nenhum se não
for com você. — Ela me encara. — Eu te amo por ter salvado minha
vida, por ter me tirado daquela prisão e ter me mostrado a liberdade
que eu sempre sonhei, por me tratar como uma pessoa normal que
precisa realizar todos os seus sonhos. — Eu enxugo suas lágrimas,
beijando sua boca e me alimentando de cada palavra que ela coloca
para fora. — Eu não quero ir para outro lugar no mundo, eu quero
ficar com você, porque você é a única coisa que me faz ser livre e
viva de verdade.
Meu coração parece que vai explodir se continuar batendo
tão forte, eu beijo sua boca como se não houvesse ninguém no
mundo além de nós dois. Tudo que preenche a minha vida é ela.
Apenas ela. Ela é a minha alma. Apenas ela.
— Por favor, vamos para casa. — Ela implora. Eu me levanto,
segurando seu corpo em meus braços. Seus olhos estão pesados
quando ela mergulha sua cabeça em meu ombro.
— Para nossa casa em Istambul. — Eu sussurro. — Vamos
deixar Atenas e recomeçar naquele lugar.
Ela balança a cabeça em concordância, olhando de um jeito
tristonho para o corpo de Pavlos abandonando no chão. Seus lábios
tremem, mostrando que ela sempre vai sentir mágoa ao relembrar
que seu melhor amigo a traiu, e pior ainda, que ele era irmão de
Nikoleta.
Mas eu abraço seu corpo como uma promessa de que ela
nunca mais vai sentir essa dor novamente, ela jamais vai sofrer por
causa de alguém que a apunhalou. Nós vamos nos cuidar juntos,
vamos viver a vida que ela sempre mereceu e sonhou. Porra, nós
nascemos foi para viver, e isso vai durar até que a morte nos
separe.
EPÍLOGO
“Se existisse alguém capaz de me salvar, seria você.
Perdi tudo, menos a certeza da sua bondade.”

— VIRGINIA WOOLF.

Desde que saímos daquele lugar sombrio, Kalon não para de


me tocar minha pele, analisando se eu estou bem de verdade. Ele
inspeciona meu rosto, meus braços, minhas mãos. Ele olha cada
parte do meu corpo com atenção, mesmo que seus dedos estejam
trêmulos pelo esforço de ter cavado uma cova funda com as
próprias mãos. Eu descanso a cabeça em seu ombro para que ele
se preocupe menos. Está tudo bem agora. Tudo que eu preciso é
dele comigo.
— Você está com febre. — Ele diz baixinho, eu abro meus
olhos, tentando observar seu rosto.
Estamos dentro do carro, Kol está dirigindo apenas com uma
mão, a outra está abraçando a cintura de Melissa. Minha irmã está
dormindo, aconchegada em sua lateral.
— Eu vou ficar bem. — Eu asseguro. Ele acaricia minhas
bochechas e eu tento segurar minha vontade de fechar meus olhos
e dormir. Eu devo ter feito isso, pois abro meus olhos quando Kol
estaciona abruptamente. Ele começa a rasgar sua camisa com
agressividade.
— O que está acontecendo, Kol? — Kalon questiona,
firmando o aperto em meu corpo. — Está assustando Arcane mou.
— Seu queixo descansa no topo da minha cabeça.
— Melissa precisa de uma transfusão. — Ele funga, abrindo o
painel e retirando um kit médico. — Eu consigo fazer. — Ele fala por
cima do ombro, afastando os cabelos de Melissa.
Eu sinto vontade de chorar ao ver minha irmã destruída e não
conseguir fazer nada além de observar. Kalon respira pesadamente,
também assistindo tudo que Kol está fazendo para transferir seu
sangue para Melissa.
— Não se preocupe, eu estou fazendo de um jeito seguro. —
Ele acena, fixando os tubos de sangue em seu antebraço. — Eu
guardo isso comigo porque nunca se sabe quando vou poder salvar
uma vida. — Els acrescenta. — Já que meu tipo sanguíneo me
permite ajudar as pessoas.
Eu fecho meus olhos quando minha cabeça lateja de dor,
agora os dois estão conversando baixinho sobre ir ao hospital, mas
Kol diz que um médico de confiança vai dar um jeito de nos ajudar,
pela urgência com que estão falando, parece que os dois estão à
flor da pele.
— Eu vou deixar vocês em um hotel por essa noite. — Ele
explica. — Esse é o tempo em que eu encontro passagens para
Istambul e penso em um lugar onde vou esconder Melissa e
ninguém vai saber. Essa é a única forma dela se recuperar de todo
esse trauma. — Eu adormeço de exaustão, sentindo segurança em
suas palavras suaves.
Abro meus olhos, gemendo baixinho. Estou deitada em uma
cama e um homem está me examinando.
— Quem é você? — Eu tento soar firme.
— Shhh, está tudo bem. — Kalon está deitado ao meu lado,
ele está com roupas limpas e com um curativo em sua mão. Eu olho
para meu corpo, vendo que também estou limpa e que o homem
está cuidado dos meus machucados.
— Eu não quero que ele me toque. — Resmungo, Kalon beija
minha testa, me abraçando.
—Sua febre ainda não passou. — Ele murmura.
— Melissa está bem? — Questiono, minha cabeça está
girando como se eu estivesse em queda livre.
— Kol levou ela para um lugar seguro. — Kalon responde. —
Ela vai ficar bem, nós vamos para casa em algumas horas.
— Que horas são? — Eu questiono, pressionando minha
bochecha em seu peito.
— Já é outro dia. — Ele responde, massageando minhas
costas. — São três horas da tarde.
Meu estômago está embrulhado, minha cabeça gira quando
eu tento olhar ao redor novamente. Todo o meu corpo está frio e
latejando sem parar, eu choramingo baixinho, sentindo uma agonia
absurda.
— Você está pálida. — Alguém fala distante. — Vai precisar
ficar no soro por algumas horas. Vou preparar isso e deixar que
descansem.
Os últimos acontecimentos retumbam na minha cabeça; eu
assistindo Melissa sendo torturada de maneira horrenda, a
sensação de ter sido enterrada viva e não conseguir mover um
músculo e nem respirar. Pavlos era o meu melhor amigo, ele me
compreendia e me fazia feliz de uma forma que só os amigos
conseguem. Foi ele quem me ensinou a soltar pipa, a ter o meu
primeiro contato com animais, a amar fotografias.
Levo minha mão ao peito, chorando baixinho. Tudo está
doendo como se eu estivesse no inferno. Todo esse sentimento de
traição é insuportável, mais uma vez eu gostaria de perder a
memória, de esquecer tudo sobre nós dois. Sua traição vai me
assombrar para sempre.
— Meu amor… — Kalon fala cheio de aflição. Seus lábios
encostam na minha bochecha, deixando beijos demorados.
— Eu não me sinto bem, eu me sinto quebrada. —
Resmungo.
— Você vai ficar bem. — Ele responde. — Tudo isso vai
passar com o tempo, nós vamos sobreviver, vamos ser tão felizes
que você jamais vai conseguir lembrar como é esse sentimento que
está te consumindo agora.
— Você promete? — Eu descanso meu rosto contra o seu,
sentindo sua respiração contra a minha.
— Eu prometo. — Ele balança a cabeça em concordância. —
Em nome de tudo que é mais importante para mim, eu prometo a
você, Arcane.
Seus lábios são quentes contra minha testa. Seu beijo macio
e molhado vira um alívio para o caos debaixo da minha pele. Estou
engasgando minhas respirações, mas ele beija minha boca e me
ajuda a respirar corretamente. Eu consigo ouvir seus batimentos
acelerados, ele soa como uma promessa de que Kalon nunca vai
me soltar, que nada pode nos separar novamente.
Eu me concentro apenas nisso, e aos poucos, a agitação em
meus nervos se dissipa completamente.
— Eu amo você. — Sussurro, olhando para seu rosto. —
Quero ficar com você para sempre, não importa o que aconteça.
Quando eu era pequena, as únicas referências que eu tinha
sobre o amor eram gritos e tapas, mas agora, olhando a serenidade
em seus olhos, eu percebo que o amor não é nada comparado ao
que eu imaginava. Ele é leve e acolhedor, assim como também é
monstruoso e assustador.
Ele me protege mesmo quando o mundo inteiro ameaça me
destruir, ele segura a minha mão e não solta, ele é incondicional,
maior do que tudo que existe no mundo, ele me deixa livre.
Esse homem está disposto a travar uma guerra por minha
liberdade. Eu finalmente posso dizer que encontrei tudo que sempre
quis.
— Eu quero ser livre com você. — Falo imediatamente,
porque essa é a minha resposta para todas as vezes que alguém
perguntar se eu ainda quero a liberdade. — Eu quero viver ao seu
lado. Apenas com você. Não tem graça nenhuma coisa no mundo,
nenhuma pessoa, se não for com você.
Eu trago sua mão ao meu peito para mostrar que eu falo
sério. Seus olhos brilham de uma forma avassaladora.
— De hoje em diante, você mora aqui. — Eu sussurro. —
Porque foi você quem pegou cada pedacinho e transformou em um
templo digno dos deuses. Eu não quero ir embora. — Afirmo. —
Quero viver com você.
— Então se case comigo outra vez. — Ele fala firme. —
Aceite se casar comigo. — Uma lágrima escorre por sua bochecha.
— Mas nós já somos casados. — Eu solto uma risada
chorosa.
— Eu quero que você me escolha como seu marido, que
você tenha a chance de dizer sim ou não. — Ele sussurra. — Olhe
para o meu rosto, todos os anos nós vamos nos casar novamente.
— Ele acaricia meu queixo.
— Você está falando sério? — Eu estremeço.
— Sim, vai ser sempre uma festa enorme e com todo mundo.
— Ele balança a cabeça em concordância. — Nós vamos renovar
nossos votos como uma promessa de que você nunca mais vai
estar sozinha, Arcane. Eu sempre vou estar aqui. Vamos enxergar
todo dia 31 de dezembro como a prova de que você vai continuar
vivendo, que a vida não acabou, que um dia você terá amigos novos
que te amam de verdade, que eu nunca vou soltar a sua mão e que
nossa vida está apenas começando.
— No dia do meu aniversário? — Eu soluço, abraçando seu
corpo com mais força e beijando sua boca. — No ano novo?
— Exatamente. — Ele sorri. — No seu aniversário, e quando
a morte nos separar, vai ser quando estaremos mais juntos do que
nunca. Vamos estar juntos do outro lado, olhando para toda nossa
vida realizada. Nós vamos viver como deuses, meu amor. Essa é
uma promessa de Kalon Somáli.
— Então eu aceito. — Balanço a cabeça em concordância. —
Nós vamos nos casar todo ano novo.
— Meu Deus, como eu amo você! — Ele arqueja, tomando
fôlego. Eu beijo sua boca com intensidade, todo meu corpo
transbordando de felicidade. — Eu prometo fazer você inteiramente
feliz e ser digno de nós dois. Eu prometo te dar o mundo e fazer de
tudo para você ficar em paz, meu amor.
Eu vejo a verdade em seus olhos, eu me agarro nisso como
se fosse o meu mundo inteiro. Eu beijo sua boca outra vez, me
alimentando com a certeza de que ele vai cumprir cada palavra.
— Eu também amo você, Kalo Somáli. — Eu sussurro,
minhas palavras cheias de emoção.
— De verdade? Com todo o seu coração? — Ele acaricia
meu rosto, me fazendo lembrar da noite em que eu usei essas
mesmas palavras para dizer que o odeio.
— Com todo o meu coração, Habibi. — Eu respondo.
Ele faz eu me sentir como se eu estivesse voando, como se
aquele passarinho finalmente tivesse saído da gaiola. Agora eu
estou livre.
TRÊS ANOS DEPOIS
— Arcane, nós estamos quase lá. — Rajá sussurra,
acariciando minha testa. Meus gritos são de felicidade e
nervosismo. Nossa filha finalmente está vindo ao mundo.
Meu cunhado pediu para Kalon esperar fora do quarto porque
a minha gravidez é de risco e ele precisa se preparar para o caso de
uma cesárea. Eu estou ajoelhada no banheiro, Rajá está
massageando minhas costas e Ajax está observando tudo enquanto
canta uma canção de ninar.
— Arcane mou, sua bebê está quase chegando. — Ele
segura minha mão, me olhando de um jeito calmo que faz choques
de tranquilidade subir por minha coluna.
— Eu não vou aguentar. — Soluço. — Está doendo muito,
Rajá.
Minha vista escurece quando outra contração atinge minha
barriga, ele segura meu braço quando eu grito mais alto. Meu corpo
fraqueja, eu penso que vou cair, mas sou amparada por outro corpo
quente e mais forte.
— Está tudo bem, minha alma. — Kalon sussurra em meu
ouvido, segurando meu corpo e me fazendo sentir alívio ao tê-lo por
perto. — Você está indo tão bem. — Ele beija minha bochecha,
acariciando meu corpo com a palma da mão.
— Kalon, está doendo muito. — Eu olho para seu rosto.
— Nós vamos fazer isso juntos. — Ele sussurra, nossos
corpos estão molhados pela água que cai do chuveiro. — Nossa
bebê precisa vir ao mundo e nós vamos recebê-la juntos.
Eu balanço a cabeça em concordância, um gemido sensível
sai da minha boca quando outra contração me atinge. Eu grito alto,
segurando a mão de Kalon e usando todas as minhas forças, calor
sobe por minha coluna e meus gritos aumentam.
Eu ouço Rajá conversando com Ajax sobre se prepararem
para uma nova tentativa. Eu grito mais alto, segurando minha
barriga, as mãos de Kalon não me soltam por nenhum segundo.
Quando um choro fraco ecoa pelo banheiro, eu esmoreço em seus
braços segurando meu bebezinho nos braços.
— Eu consegui. — Olho para Kalon, ele balança a cabeça em
concordância. Seus olhos verdes estão cheios de amor e felicidade.
— Eu disse que você conseguiria. — Ele beija meus lábios.
Seus dedos deslizam pela cabecinha da nossa criança.
— Puta merda, é um menino. — Rajá fala, olhando para nós
a distância. — A ultrassom enganou todo mundo.
Uma risada trêmula escapa dos meus lábios, eu olho para
Kalon que encara nosso garotinho como tanta surpresa que meu
coração se derrete. Eu o ajudo a encontrar meu peito, ele ainda está
choramingando, mas respira fundo quando os dedos de Kalon
acariciam sua cabeça.
— Oi, meu amor. — Eu sussurro, minhas lágrimas pingando
em seu bracinho. Suas pálpebras pesam ao ouvir minha voz, até
que ele abre os olhos completamente.
— Ele tem os meus olhos, amor. — Kalon resmunga. —
Nosso bebê surpresa.
— Ele é perfeito. — Eu sussurro, beijando seu punho
fechado. Eu olho para Kalon, vendo em seus olhos que é impossível
existir alguém mais feliz do que nós. — Agora ele vai poder levar as
alianças em todos os nossos casamentos. — Eu brinco, fazendo ele
soltar uma gargalhada trêmula.
Todos os anos Kalon investe em um pedido de casamento
cheio de surpresas, nós nunca nos cansamos disso, principalmente
das festas onde nossa família nunca sente tédio em participar. Nós
sempre comemoramos como se fosse a primeira vez. Não apenas
meu aniversário, mas o dia em que eu realmente nasci de novo,
comemorando a vida que eu estou vivendo de verdade. Nosso bebê
é a maior prova disso. — Então… — Ajax fala atrás de nós. —
Como o menino Perséfone vai se chamar? — Ele solta uma
risadinha atrevida. — Joseph? Yuri? Augusto?
— Eu não gostei dos nomes, então cale a boca. — Kalon
solta um rosnado possessivo, abraçando meu corpo e nosso bebê
com mais força, nos colocando em um casulo onde apenas ele
consegue nos manter.
Eu inclino meu rosto, segurando seu queixo com a ponta dos
dedos e roubando um beijo dos seus lábios. Ele mordisca minha
boca, me arrancando um gemido trêmulo.
— Eu acho que você cumpriu muito bem o que eles chamam
de hora dourada. — Rajá fala. — Mesmo eu não tendo certeza se o
pai era necessário nesse momento. — Ele olha para Kalon de
soslaio, o qual me aperta, indicando que não vai me abandonar.
— Eu acho impressionante como você sabe tudo sobre
maternidade. — Balanço a cabeça.
— Mas é que eu sou pai de animais, e do Ajax, o que é ainda
pior. — Ele toma fôlego. — Você não acha que eu ando fodendo a
sua irmã à toa, não é?
— Eu não quero nem imaginar o tipo de coisa que você anda
fazendo com Nimue. — Arregalo os olhos, ainda não superando
todas as loucuras que ele fez para ficar com ela. Inclusive, nós
estamos fugindo do país por sua causa.
— Tudo bem, acho que foi cedo para tentar normalizar meu
romance proibido com Nimue. — Ele limpa a garganta. Eu solto uma
risadinha divertida, gostando da sua expressão assustada, acho que
aos poucos ele está me conquistando como cunhado.
— Que nome vocês dariam? — Eu olho para ele. — Eu e
meu homem vamos deixar vocês escolherem. — Eu comento depois
de algum tempo assistindo meu pequeno garotinho se alimentar.
— Eu chamaria ele de Yagmür, Arcane. — Ajax responde,
seus olhos tomados pela melancolia de algumas lembranças que eu
desconheço. — Significa chuva. — Ele acrescenta.
— E você, meu irmão? — Kalon olha para Rajá.
— Sinan. — Ele responde, cruzando os braços. — Sinan
Yagmür Somáli.
— Sinan. — Kalon sorri, olhando para nossa criança. — Esse
é um nome forte e único. — Suas mãos me apertam com mais
força. — Aquele que constrói.
— Bem-vindo ao mundo, Sinan Yagmür. — Eu beijo seu
punho, olhando para os traços perfeitos do seu rostinho. Um som
amável sai da minha boca quando seus lábios se repuxam de um
jeito fofo, quase deixando meu peito escapar da sua boca, mas ele
agarra com suas mãozinhas pequenas.
— Eu estou tão orgulhoso de você, minha vida. — Kalon
sussurra, esfregando sua barba na minha pele. Um som prazeroso
de felicidade sai da minha boca. — Eu te amo muito.
— Eu te amo mais. — Respondo, suspirando. Meu coração
bate forte, porque agora eu tenho a certeza de que faria tudo de
novo, exatamente como aconteceu, tudo para no final poder ter o
meu marido e meu filho comigo.
— Já faz muito tempo que ele nasceu. — Rajá está parado
na nossa frente. — Você deve me entregar o bebê para eu cortar o
cordão umbilical e ver se ele está saudável. — Ele estende os
braços.
— Seja cuidadoso, Rajá. — Kalon olha para ele de um jeito
possessivo, abraçando minha barriga e deslizando seus dedos pelo
corpinho do nosso filho. — Estamos vivendo tempos difíceis, eu não
vou suportar que minha família seja afetada por essa guerra.
— Você pode relaxar, Kalon. — Seu irmão encara seu rosto.
— Eu tenho tudo sob controle. — Ele bate os cílios de um jeito
vaidoso. — Agora… — Ele sorri torto. — Vocês tem algo bonito para
dizer ao menino Yagmür?
Eu olho para nosso bebê, essa é a maior felicidade que eu já
pude experimentar. Eu agradeço ao papai por ter sido um grande
homem mal, por ter sido egoísta e carrancudo.
Mesmo que ele tenha me amado do seu jeito distorcido, eu
sou eternamente grata porque se não fosse por ele, eu jamais teria
essa criança em meus braços, ou Kalon e todas as minhas irmãs
com suas vidas completas.
— Eu e você nascemos para ficarmos juntos. — Sussurro,
sem desviar os olhos do meu garotinho.
— Nossa história está apenas começando, minha alma. —
Ouço Kalon sussurrar em meu ouvido. Eu estremeço os pés à
cabeça, ele soa como um fantasma, mas dessa vez eu não sinto
medo ou angústia, eu sinto felicidade. Eu me sinto completa e em
paz porque sei que ele sempre vai cuidar de nós. — Eu amo tanto
vocês. — Ele sussurra novamente.
Porra, eu amo muito mais, Habibi.
— O papai te ama muito, Yagmür. — Kalon cheira sua
cabecinha, em seguida, ele espalha beijos por meu pescoço. Esse
homem foi a melhor escolha que eu já fiz na vida, depois de
Yagmür, é claro. Porque aquela noite foi inesquecível. Ele nasceu no
dia do nosso casamento, no dia em que eu voei para fora da gaiola
aberta mais uma vez, como uma prova de que eu sempre vou
escolher Kalon e a nossa vida juntos.
AGRADECIMENTOS
Cacete. Chegou a parte mais difícil e dolorosa desse livro; me
despedir deles e agradecer a todos que toparam participar do
processo de lançamento. Eu começo dizendo que esse livro nunca
teria acontecido se não fosse as coisas que eu vivenciei no
passado. Aberração não tem apenas cinco meses de lapidação
final, mas anos. Literalmente.
Eu agradeço as minhas melhores amigas, aquelas que estão
comigo desde que eu nasci e falei minhas primeiras palavras. —
meninas, eu sou grata por ter vocês, pois muitas pessoas não têm a
sorte de encontrar sua pessoa favorita desde que nasce, ou pior, às
vezes nem encontram. É graças a vocês três, aos nossos
momentos juntas, desde as festas de ano novo até os aniversários
apocalípticos, que eu tive muita inspiração para as melhores
aventuras que se pode encontrar neste livro. Não apenas a relação
entre irmãos e irmãs, mas as merdas, os momentos tristes e as
brigas que sempre terminam com alguma piada de merda. Vocês
me dão plena certeza que tudo no mundo pode acabar, que as fases
mudam, a gente pode ir para lugares separados, mas o que
sentimos umas pelas outras vai permanecer inabalável. Eu acredito
muito nisso, que nem a morte pode nos separar, porque já temos
um plano perfeito para tudo. Algumas de vocês provavelmente vão
estar muito ocupadas para ler todos os nossos momentos em um
livro, mas se lerem, foi exatamente isso que aconteceu; eu
transformei tudo que passamos em uma história linda, desde os
momentos tristes, até a parte em que eu pensei que estava tudo
acabado. Nós enfrentamos muitas coisas ruins, principalmente
sozinhas, sem nem uma saber completamente, mas sempre
soubemos qual era o caminho de volta para casa. Obrigada por
isso, por serem uma parte do meu lar.
Pois bem, caro leitor, eu comecei a escrever romances
tomada pela necessidade de ser compreendida, amada e lembrada.
Esse livro, meu primogênito, foi o palco das minhas dores, cansaço,
decepções e medos. Como o velho Bukowski uma vez escreveu;
quando tocarem o meu livro agora, vão reconhecer os contornos do
meu corpo, vão reconhecer minha risada, e meu amor, e minha
tristeza. Veja bem, não foi nada fácil mantê-lo e finalizá-lo. Eu amei
e odiei isso aqui por muito tempo, pensei tantas vezes em desistir e
continuar com minha vida medíocre e incompleta, mas eu precisava
estar satisfeita comigo ao menos uma vez.
Eu era uma criancinha crescida quando comecei a escrever,
e isso aconteceu depois que eu conheci a pessoa que viria a ser
minha melhor amiga e o melhor feliz para sempre na vida de uma
garota que sempre foi solitária e sem amigos fiéis. O que devo dizer
quando penso sobre isso? Foi incrivelmente assustador. Simples
assim. Vivemos tantas coisas que ainda me surpreendem, me
fazem sentir falta e até mesmo ficar triste. Saibam que por trás de
todas essas histórias de amor que eu coloquei no mundo existe uma
história de amizade, que assim como cada personagem imperfeito,
tivemos nossos altos e baixos, nossas diferenças e nossas
memórias e sentimentos inconsoláveis. Eu devo muito as minhas
melhores amigas pelos momentos incríveis (e os tristes também)
que me levaram a escrever esse livro.
Muitas coisas mudaram até o momento em que eu escrevo
isso que você está lendo. Para você que está aqui desde que eu
aprendi a falar como escritora, saiba que reescrever sobre Arcane e
Kalon foi a minha forma de sair da negação e começar a entender
que coisas acabam, coisas mudam e coisas machucam, mas
sobretudo, as coisas são eternas enquanto breves. Eu comecei meu
primeiro livro rodeada por pessoas que acreditavam em mim e que
estavam dispostas a me apoiar e permanecer ao meu lado. Ou não,
olhando para trás, eu acho que estava realmente sozinha nessa
caminhada. Mas sei que eu era jovem e cheia desse fogo
empolgante que você sente ao conhecer o seu primeiro amor, sabe?
Mas passou, já não sou a mesma. Agora estou terminando como
uma criança que foi obrigada a crescer e mudar. Passei por isso
sozinha, sem ninguém ao meu redor, mesmo estando todos por
perto. Todos estão espalhados por aí, vivendo suas próprias paixões
e descobertas, lutando contra seus próprios demônios e dando o
seu melhor. Agora, eu finalmente estou vendo o mundo por uma
perspectiva madura e um pouco triste, admito.
Agora que conheço o final de como tudo isso começou,
também posso ver meus erros, toda minha trajetória pessoal por
trás dessas páginas, e tudo que eu podia ter feito, mas não fiz.
Quero chorar e fico triste quando percebo que sou conhecida por
uma história feita sozinha e em minha versão silenciosa, mas
saibam que esse livro só aconteceu e teve significado por causa das
coisas que vivi e construí ao lado da minha melhor amiga, saibam
que existe uma criança guardada aqui dentro que gostaria que
vocês tivessem me conhecido através dos romances que escrevi ao
lado dela. Aberração é a minha primeira obra solo, colocada no
mundo sem as palavras dela para completar as minhas. Fico triste
por isso, pois parte de quem somos uma com a outra, nasceu
quando decidimos escrever juntas. Eu acho que fizemos isso muito
bem, veja bem, escrevemos a nossa história de amizade, nossa
convivência e nossos melhores momentos. E se você estiver lendo,
o que não vou estar esperando, saiba que foi escrevendo ao teu
lado que eu criei coragem para colocar o meu primeiro livro no
mundo. Sinto falta daquela época, de quem éramos, de ser apenas
eu e você no nosso mundinho de faz de conta, quando a vida adulta
não nos assustava tanto, e de como era mais fácil dizer o que
sentíamos através dos nossos personagens (im)perfeitos. Eu te
agradeço por tudo, talvez você não leia porque acabou virando uma
leitora aposentada, ou porque não gosta do gênero, mas eu entendo
você. Eu coloquei muito nos meus personagens do que aprendi
contigo, do que vivemos e construímos juntas. Se a gente nunca
mais voltar a escrever juntas, saiba que eu vou sentir muita falta de
tudo aquilo. Minhas melhores obras foram contigo. Obrigada.
Agora, olhando para todas as minhas amizades, todos altos e
baixos, acredito que na vida real não existe uma Nikoleta de
verdade, ela foi apenas momentos em que pensei que era o fim, e
esse medo acabou virando um fantasma assustador que vivia
sempre me perseguindo. Uma personificação da fase sombria em
que eu entrei, das minhas inseguranças em relação a todas as
minhas amizades, — e principalmente de algumas em específico.
Mas hoje sei que no final, tudo precisa mudar quando chega o seu
tempo. Não há nada que impeça esse evento de acontecer, assim
como todas as coisas que estavam no escuro, que me deixaram
sozinha, finalmente vieram à tona.
Sasá Somáli, eu te agradeço por ter sido a pessoa mais louca
e amorosa a me acolher, os meus personagens e minha história.
Nós duas temos tanto em comum que chega a ser assustador, eu te
adoro muito por isso. O capítulo 25 é inteiramente seu, e muito
obrigada por ter sido a primeira a compreender o significado do
capítulo 33 (quando eles pulam na água para deixar o passado para
trás). Você é incrível, Sasá. Eu te agradeço por ter lido esse livro
com olhos tão sensíveis e poéticos. Você fez toda a diferença.
Anajú, a sua loucura foi o complemento perfeito para o
lançamento desse livro. Você foi uma amiga tão perfeita, me
dedicou tanto do seu tempo para conhecer Kalon e Arcane, para se
aprofundar na construção deles e me alimentar com todos aqueles
surtos e ameaças dignos de um membro da família Somáli. Foi
muito surreal ter você comigo, resolvendo as minhas inseguranças e
me fortalecendo a continuar com isso até o fim. Porra, nós
conseguimos. Quando eu for contar sobre esse livro, vou dizer com
muita alegria que ele não seria possível sem você e Sasá. Eu
agradeço com todo o meu coração.
Maeve, muito obrigada por ouvir todos os meus surtos e
sempre me assegurar que era apenas a crise do primeiro livro, ou
meio livro, ou final do livro, mesmo quando não era. Sua grande
maluca, você é a melhor pessoa que eu pude conhecer, a melhor
autora também. Muito obrigada por ter segurando minha mão e não
ter soltado em nenhum momento, saiba que você me fortaleceu
muito. Niks, você é a melhor vadia, com o melhor coração. Eu ainda
me assusto com o quanto temos em comum, tipo, em todos os
sentidos, tu sabe. Você foi uma pessoa tão divertida e leve, que me
acalmou muito no meio desse lançamento e mostrou que entende
minhas inseguranças, até porque também está colocando o seu livro
no mundo na mesma época que eu. Cayer, o seu humor é tão
quebrado que eu estou escrevendo isso dando risadas. Eu acho que
sempre vou ficar em choque quando perceber que você é a Bruna
Cayer, tipo, a pessoa com quem converso as maiores loucuras
perigosas, é a Bruna Cayer. É muito bom conhecer vocês como
pessoa, meninas. Eu sou muito grata pela amizade de vocês, esse é
um trio apocalíptico do caralho. Nossos surtos foram os principais
fundamentos para o ponto mais alto da personalidade deles. Cayer,
Maeve e Niks, eu amo vocês, obrigada por fingirem que eu não sou
doida varrida.
Teté, você é surreal de perfeita. Eu pude desabafar com você
e surtar ao teu lado de um jeito libertador. Você é a autora favorita
da Melissa e a minha também. Ter conhecido você no meio do
lançamento de Lonely Souls, ter trocado aprendizados e desabafos,
isso foi muito reconfortante, eu me senti em casa. Você foi a
primeira pessoa a me mostrar que não é necessário rivalidade entre
escritoras, que não existe coisa melhor do que apoiar e acompanhar
alguém que está começando agora nesse mundo da Amazon. Eu já
te considero como a porra da minha irmã, mulher, e ainda ganhei a
Aninha de brinde, a dona da melhor risada de todas, que tem uma
alma tão jovem que eu me sinto renovada com apenas dez minutos
de conversa. Ana Canuto, você é a melhor rapariga de todas. Eu
sempre vou assumir isso.
Jaque e Thiffs, eu nunca teria colocado Aberração na
Amazon se não fosse os incentivos de vocês, foram as duas que me
deram total apoio para eu começar com isso, que ofereceram até o
tempo de vocês para me ajudarem com o que fosse necessário. O
pouco tempo que eu vivi ao lado de vocês, as coisas que eu aprendi
com a Jaque, isso vai ser sempre lembrado, porque foi assim que
eu encarei tudo isso com profissionalismo e poder.
Eu agradeço aos leitores que fazem tudo isso ter significado
e importância, foi o carinho de vocês que me trouxe até aqui. Muito
obrigada por lerem esse livro, por conhecerem parte da minha
história, do meu mundo, minhas aventuras, minha tristeza e os
meus fantasmas mais profundos. Eu amo vocês pra caralho, eu
espero que gostem muito da minha Aberração. Que esse livro toque
a alma de vocês, que minhas palavras façam vocês se identificarem
com os meus demônios e monstros, que vocês tenham se divertido
e se apaixonado perdidamente por cada coisa monstruosa, triste e
belíssima dessa história.
Meus agradecimentos, todos vocês significam muito para
mim. Agora essa obra realmente está completa.

Com amor, Talibah Casillas.

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