Um Estudo Sobre Ateismo No Anarquismo An
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RESUMO
Esta pesquisa problematiza um ateísmo anarquista por meio da literatura, mais precisamente a
peça O semeador, de Avelino Fóscolo. Essa reflexão pontual está inserida dentro dos estudos
mais amplos sobre o movimento social ateu, sendo esta manifestação considerada como da
vertente revolucionária. A obra foi analisada com base em quatro temas: Deus (como a
divindade católica é retratada?), Vigário (como ele é apresentado na peça?), Religião (como
princípios religiosos são retratados?) e Fiel (Como é retratado um religioso?). Os resultados
apontaram para um enredo pautado no ateísmo de aposta: deus aparece como um engano que
serve exclusivamente para manter a desigualdade, e isso fica demonstrado a posteriori se a
revolução ocorre.
Palavras-chave: ateísmo anarquista; Avelino Fóscolo; O semeador; teatro.
ABSTRACT
This research problematizes an anarchist atheism through the play O semeador”, written by
Avelino Fóscolo. This specific reflection is part of the broader studies on the atheist social
movement, and this manifestation is considered to be a revolutionary aspect. The play was
analysed according to four themes: God (how is the Catholic deity portrayed?), Vicar (how is
he presented in the play?), Religion (how are religious principles portrayed?) And Faithful
(How is a religious portrayed? ). The results pointed to a plot based on the betting atheism: god
appears as a mistake that serves exclusively to maintain inequality, and this is demonstrated
posteriori if the revolution occurs.
Keywords: anarchist atheism; Avelino Fóscolo; O semeador; play.
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Doutor e Mestre em Sociologia (linha sociedade e conhecimento) no Programa de Pós-graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Suas pesquisas se focam nas ressignificações dos conceitos da
modernidade primeira em representações sociais. Em 2019 lançou os livros "Personagens: entre o literário, o
sociológico e o social" (em co-autoria) e "Construindo Contextos", no qual delineia a sua teoria dos contextos
representativos. E-email: [email protected]
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Doutoranda e Mestre em Estudos de Literatura (linha de pesquisa Teoria, Crítica e Comparatismo) do Programa
de Pós-graduação em Letras Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Especialista em Literatura
Contemporânea pelo Centro Universitário UniDomBosco. Sua pesquisa se concentra em estudos sobre
Intermedialidade, mas também possui publicações nas áreas de literatura fantástica, mitológica e epistolar.
Atualmente é Bolsista CNPQ. Em 2019, lançou seu livro Personagens: entre o literário, o midiático e o social
publicado pela editora Viseu juntamente com o sociólogo Ricardo Cortez Lopes. E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Assim como o ateísmo de tipo marxista – já analisado em Lopes & Martinez (2019),
dentro de uma amostra literária –, o ateísmo anarquista é, cronologicamente, tanto de etapa
revolucionária quanto de positivista. Todavia, nesse caso, o marxista estava lidando com um
momento de censura, o que o fez se localizar na etapa incipiente, em que se expressava de
maneira oculta, por meio de metáforas. Vemos que o mesmo não ocorre a Avelino Fóscolo que,
em 1921, lançou a peça O Semeador, cujo enredo tenderia a divulgar ideias anarquistas:
O semeador é uma obra dramática em três atos que estabelece uma crítica à
propriedade. A história se passa em uma fazenda onde há uma tentativa de diluir a
propriedade, sobre o ideal de cada um obter apenas o necessário para si. Júlio, o
personagem principal, entra em contato com o pensamento anarquista após uma
viagem à Europa. Ao regressar, tenta modificar os hábitos instituídos na fazenda de
seu pai, começando por não se reconhecer como superior diante dos trabalhadores,
mesmo sendo o herdeiro das terras. Tratava todos por igual, inclusive os ex-escravos.
Propôs o fim do salário, visto como uma nova forma de escravidão, podendo todos
usufruir do fruto do trabalho comum, e reduziu as horas de trabalho para que os
trabalhadores pudessem gozar mais de seu tempo livre. Para isso, implantou o uso de
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alienação – e também a religião –, crê-se ser possível ir adiante em uma vida comunal.
Cronologicamente, Avelino poderia pertencer a apenas dois deles: ou ao coletivista ou ao
socialista. No entanto, não vamos classificá-lo dentro dessas tipologias por não estarmos
apreciando a maioria das obras.
É mister, antes de tudo, observar como o anarquismo chegou ao Brasil. Seu berço foi a
Europa:
[...] principalmente [...] de países como Espanha, Itália e Portugal, de onde veio grande
parte dos imigrantes responsáveis, no Brasil, em outros países da América Latina e
nos Estados Unidos, pela expansão do anarcosindicalismo e pela criação, no Novo
Mundo, das expressões artístico-culturais e pedagógicas inerentes ao movimento
anárquico desde suas origens (SILVA, 2011, p.88)
Isto é, além das obras intelectuais, há todo um aporte dos imigrantes que chegaram ao
país, além das expressões artísticas – como o próprio teatro de Fóscolo ilustra. De acordo com
Pablo Martins, o Brasil foi particularmente fértil para essas ideias:
Possivelmente, há toda uma emergência envolvida na ação anarquista, junto com a ideia
de que, como houve o transplante do estado moderno, este seria mais embasado no mando
pessoal do que em ideias políticas já consolidadas. Outrossim, no Brasil o anarquismo adquire
uma face própria devido à própria cultura política do país.
Como pessoa, Fóscolo é metonímia da assimilação do anarquismo no Brasil, pois
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Dentro dessa nova metodologia do teatro político os objetivos são ressignificar o que
o trabalhador brasileiro toma como verdade absoluta por estar na cegueira da
alienação política e aí entra a questão da manifestação cultural (no caso a arte
dramática) como a melhor arma pedagógica principalmente por seu grande alcance
(PEREIRA, 2018, p.3)
Dessa forma, o escritor almeja romper a alienação política pela crítica. Essa postura está
em diálogo com a escola literária naturalista, que buscava ilustrar as relações sociais em suas
dinâmicas internas.
O naturalismo tem por pretexto representar fielmente a realidade. Apresenta-se como
uma escola literária simbólica de um período de transições no Brasil:
[...] em seu projeto de transformação social e luta contra a “tríade maldita” – O Estado,
o Capital e a Igreja –, o anticlericalismo aparece com destaque nas ações anarquistas.
O anticlericalismo anarquista era militante e abertamente ateu. Os anarquistas
brasileiros repudiavam a religião através de um discurso violento e fundaram jornais
antirreligiosos, ligas anticlericais e escolas racionalistas para combater a presença da
Igreja no campo da educação e da formação de crianças e jovens, influência vista
como nefasta e contra a razão. O discurso anticlerical anarquista pretendia libertar o
operariado de toda a escravidão moral e social e para tal era necessário combater a
Igreja, o Capital e o Estado através da revolução social (MARTINS, 2018, p.152)
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Nesta seção, vamos fazer a ligação teórica sociológica entre anarquismo e ateísmo. Essa
ligação não é automática: o ateísmo é uma das bandeiras do anarquismo, porém não é nem de
longe sinônimo dele. Isso porque o anticlericalismo não implica uma ausência de crença
religiosa: é possível se tratar apenas uma reconfiguração da fé abdicando da instituição
religiosa. Nesse caso, é preciso confirmar essa variedade religiosa por parte de Fóscolo. Se essa
conexão ficar fortemente estabelecida, será possível apontar o ateísmo circulando dentro do
anarquismo e como ele acaba sendo expresso na obra estudada.
Para problematizar essa pertença, são necessárias algumas evidências. A primeira
evidência da possibilidade de ateísmo é circunstancial, porém possui sua relevância: a
ascendência de seu bisavô (Cf. DUARTE, 2018) Ugo Fóscolo, escritor italiano conhecidamente
ateu (Cf. WILKINS, 1950). Em situações normais, seria possível argumentar que o ateísmo não
é uma condição genética e que não pode ser transferido por zigoto, porém não foi possível
encontrar informações sobre a infância e a adolescência do autor, excetuando-se esse trecho:
“Decepcionado com o regime republicano e influenciado por pensadores como Eliseé Reclus,
Jean Grave e Piort Kropotkin, aderiu ao anarquismo. Fóscolo era órfão e trabalhou junto com
escravos nas minas de Morro Velho” (RAMUS, 2009, p.286). Em tais informações, não
constam em que etapas da vida do autor esses dois fatos ocorrem ou se eles são subsequentes.
Assim, informações sobre a família ganham especial relevância senão como definidoras, mas
como elementos significativos.
Outra evidência parte de certos depoimentos de terceiros que conviveram com o autor:
"[...] as pessoas o chamavam de ateu e o achavam esquisito, mas em caso de enfermidades,
prisões ou abusos policiais o convocavam para prestar auxílio, e ele o fazia com grande
empenho, sem exigir nada em troca" (AQUINO, 2011, p.114). Nesse sentido, seus conterrâneos
o atribuíam a pecha de ateu, porém aparentemente não o hostilizavam e aceitavam seu “capital
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social”, em termos bourdiesianos. Essa evidência é relativamente mais forte do que a anterior
se for contrastada com uma sociologia do estado brasileiro que leve em conta a influência
cultural da religião na conformação do estado brasileiro (Cf. MARIANO, 2003). O laço social
era forte mesmo com a atribuição da pertença religiosa, o que pode indicar que ela não era
falaciosa ou que não havia uma estigmatização dela.
Uma última evidência seria a própria história do movimento anarquista, que passou por
um momento de maior radicalização:
Nesse caso, Avelino está situado cronologicamente dentro dos anarquistas tradicionais,
cujo anticlericalismo resulta no ateísmo, o que aumenta suas chances de ser ateu de fato.
Segundo essa perspectiva, o anarquista tornou-se racionalista ou humanista – pois a autoridade
divina, em verdade, espelha a autoridade humana. É possível, portanto, superar a alienação
questionando essas duas qualidades de autoridade, que agem em bloco para suprimir o
indivíduo em sua liberdade.
A maneira de analisar o corpus textual será por meio da teoria das representações
sociais. Esta teoria estuda as representações construídas socialmente que servem para atribuir
significações a fenômenos e atribuir sentido para a realidade (Cf. MOSCOVICI, 1961). Do
compartilhamento das representações sociais, geram-se grupos de pertencimento (Cf.
JOVCHELOVITCH, 2008), cujos subgrupos se arquitetam internamente em volta do ideal
primário (Cf. LOPES, 2019). Adicionalmente, uma representação pode ser estudada quanto aos
seus elementos internos: o seu núcleo central e estável e os seus elementos periféricos mais
modificáveis (Cf. SÁ, 1996). O percurso metodológico que vamos chegar a essas
representações sociais é aquele proposto pela análise de conteúdo, um conjunto de técnicas
destinadas a encontrar o sentido subjacente em determinado texto, de modo que o material é
analisado por meio de categorias, unidades de significação que aglutinam o corpus textual (Cf.
BARDIN, 1977). Os resultados dessa grelha categorial permitem observar as estruturas das
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ANÁLISE
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O primeiro trecho analisado é com Laura, paixão atual e de infância de Julio que
lecionava na fazenda do Coronel:
Alguns pontos podem ser destacados neste segmento textual. O primeiro é que a fortuna
é um ideal religioso que conduz a uma ideia de que o destino pode favorecer intencionalmente
um indivíduo, e Laura ainda o nutre a essa altura da peça, mas abandonará posteriormente.
Outro ponto de destaque é que Jesus Cristo aparece, porém é relatado por Júlio como um
revolucionário: esse é o seu valor moral supremo, e não sua transcendência religiosa
demonstrada nos milagres. Por fim, a religião é retratada como uma capa de invisibilidade para
vícios de indivíduos, quando são descritas as mulheres formosas e viciosas.
Deus aparece de novo em outro trecho, quando o latifundiário Lima, genro do Coronel
por desposar sua filha, afirma sobre a montagem de um negócio: “Qual o que, seu compadre!
500 mil réis bastam. O rapaz abre uma bitacula 5 e o cobre dos trouxas começa a pingar lá dentro
3 Disfarçar ou esconder.
4
Tipo de arbusto roseado.
5
Caixa de metal onde cabe a bússola.
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que é um louvor a Deus de gatinhas” (FÓSCOLO, 2009, p.28). Nesse ponto se trata de uma
associação entre lucrar e louvar a Deus, pois o dinheiro serviria como mote de agradecimento
para se louvar Deus de joelhos, o que em verdade representaria uma atribuição positiva ao lucro
desmedido. Ainda, há outra representação que acontece pela negação:
JULIO - A terra foi dada a todos os seres pela natureza, mãe benefica e imparcial,
como fonte commum imprescendivel á existencia. Tudo é de todos e os instrumentos
de trabalho, as invençòes representando um legado de gerações passadas e anonymas
não podem constituir propriedade exclusiva de alguns homens apenas (FÓSCOLO,
2009, p.21)
Nesse caso, o princípio natural se apresenta com muita força: a natureza é a mãe de
todos os seres humanos e é imparcial. A ideia de Deus serve para criar o oposto: a parcialidade
que favorece apenas as classes favorecidas. Isso fica evidente em uma fala do Coronel sobre
Laura, após a sua guinada para o anarquismo: “Que acabo de ouvir dessa misera que vi crescer
e me considerou sempre como um ente superior?” (FÓSCOLO, 2009, p.33). Laura considerava
Coronel um ente para além dela, o que se confronta diretamente com os ideais de igualdade
diante da mãe natureza. Essa ordem das coisas não é mantida apenas pela questão da
discrepância financeira, como mostra Lima com relação à desistência de Alfredo do casamento
contratado com Laura: “Roeu a corda, p'ra encurtar razão; mas nós o obrigaremos, a nós é que
o negocio interessa. Temos donheiro, Deus louvado, temos gente, bota-se o bicho no tronco
[...]” (FÓSCOLO, 2009, p.33). Louvar a Deus é o que permitiria e tornariam justas as agressões,
as tornariam um ritual de purificação que ocasionaria o retroceder das ideias já expostas até
então: nesse caso a hierarquia fica reforçada com essa explícita referência à escravidão.
Outra questão que é interessante de se explorar com relação a essa categoria é a figura
de Jesus Cristo. A questão de aguentar agressões parece ser um traço que é atribuído, por parte
dos fiéis dominantes apenas ao Cristo. No entanto, os anarquistas consideram que é possível
para outros indivíduos sofrerem castigos físicos e também se enobrecerem, como demonstra
essa frase de Laura: “Sacrificar-me é por vezes uma maneira de ser forte e de fazer o bem: para
a felicidade de um maior numero, aceito” (FÓSCOLO, 2009, p.31). Assim, o sacrifício sagrado
não está restrito apenas à Cristo: qualquer um que busque a igualdade entre os indivíduos poderá
fazê-lo e, assim, será simetrizado à figura maior do catolicismo. Um outro ponto com relação
ao Messias católico, é que Julio parece ser sua versão secularizada: ele traz um conhecimento
superior para uma realidade social que é refratária e forma um grupo de pessoas que coadunam
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com ele – os apóstolos e os camponeses. Além, é claro, dos primeiros nomes de ambos
começarem com a letra J.
Um último trecho que trata do assunto é uma descrição por parte de Julio: “Entretanto,
meu tio, Platão, que não conhece, o Christo, que julga venerar, pregaram a mesma cousa. Acha
justo que uns trabalhem, produzam, com immensa pena, emquanto outros que nada fazem
uzufruam o fruto do alheio trabalho?” (FÓSCOLO, 2009, p.44). A utilização da figura de Platão
poderia ser um artifício para “laicizar” o que Julio está narrando, mas a ideia parece ser a de
traçar uma tradição intelectual revolucionária, ressignificando Jesus para o Coronel. Nesse caso,
não se pode tomar as palavras de Jesus por meio de uma interpretação conservadora, e por isso,
dentro do contexto que o dramaturgo propõe para a peça, é Julio quem consegue entendê-lo de
fato e perceber a sua humanidade, por meio de seu ideal de igualdade.
Partindo das evidências levantadas é possível apontar que texto da peça dá suporte à
negação de Deus, assim como, adicionalmente, à figura da própria transcendência de Jesus
Cristo. Cabe, portanto, observarmos como se comportam as relações sociais derivadas dessa
crença primária.
Primeiramente, nos deteremos no vigário e, posteriormente, nos fiéis. O vigário e Bíblia
foi o único caso em que a categoria temática prévia foi modificada parcialmente pelo material
empírico. Isso porque o esperado era encontrar a figura de um líder religioso (vigário ou padre)
que tivesse participação efetiva no enredo, mas ele apenas é citado algumas vezes durante a
peça. Por outro lado, a Bíblia tem diversas aparições, entre citações literais e referências
metafóricas nos diálogos, o que compensa, parcialmente, a ausência direta do vigário em nossa
análise e abre a possibilidade para observações alegóricas.
O primeiro trecho que trazemos aqui referente à categoria é novamente uma fala de
Lima: “Tudo se arranja com arame. O nosso vigario é rasoavel e não resiste a certos
argumentos” (FÓSCOLO, 2009, p.32). As palavras aqui (“argumentos”) escondem uma grande
ironia, pois o vigário está sendo subornado para promover o casamento de Laura com Alfredo:
“O nosso vigario foi bem rasoavel e prompto” (FÓSCOLO, 2009, p.33). Outra característica do
vigário aparece no seguinte trecho: “Bem o percebo, seu mestre-escola, do que você tem medo
é da sabença do rapaz que andou lá pelas europas e deve ter mais cousa na cachola do que o
nosso vigario, que não é nenhuma besta quadrada” (FÓSCOLO, 2009, p.8). Por essa fala,
podemos perceber que se trata de uma comparação entre Julio e o Vigário, o que permite o
estabelecimento de um padrão: a questão evolucionista que Avelino se propõe a tecer fica
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ROBERTO - De certo, filha. E, embora nos pese, é refinada toleima não querer ver
isto que a sociedade estatuio e alimentar fantasias de igualdade no cerebro do pobre.
A nós compete obedecer, observar callados...
LAURA - E assim vão os pequenos, e são a maioria, deixando-se salpicar de lama,
aterrorisados e ofuscados pelo idolo de ouro (FÓSCOLO, 2009, p.11)
A referência à Moisés é explícita. O povo eleito se deixou seduzir pelo ídolo de ouro e
isso o obrigou a tecer a uma nova aliança com o Deus do primeiro testamento. Observar as
desigualdades se desenhando e se reforçando é justamente a atitude de desviar da verdadeira
finalidade humana. Laura utiliza a metáfora bíblica para apontar o desvio de maneira
compreensível a seu pai.
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ROBERTO - [...]Sinto que a razão do mundo está com elles: mas a justiça é que não.
JULIO - Estás pensativo e cabisbaixo.
ROBERTO - Por sua causa andamos de Herodes para Pilatos (FÓSCOLO, 2009,
p.41)
Roberto acredita que o mundo está descrito pela lógica da dominação, porém não aprova
mais moralmente essa ordem das coisas, tal como outrora. É neste momento que outros trechos
da Bíblia ganham maior relevância e outra análise se processa: Herodes é o juiz que encaminhou
Jesus Cristo para o veredicto jurídico de Pilatos, que teria lavado as mãos e deixado que o povo
decidisse a sorte de Jesus. Nesse sentido, o que Julio teria causado seria uma revolução da
mesma maneira: o julgamento das coisas passaria da decisão do mais forte (o juiz Herodes)
para o povo, o que dá um novo significado para o texto bíblico, pois Pilatos deixa de ser um
criminoso (ou no mínimo condescendente) para se tornar um “distribuidor” de poder político.
Um último trecho de relevância é o seguinte: “É que toquei no ponto vulneravel.
Conheço os teus amores, teu papel de serpente seductora colleando-se entre o embuste e a
apparencia de saber, para empolgar a victima almejada” (FÓSCOLO, 2009, p.37). Nesse caso,
é evidente a referência à serpente do Jardim do Éden. Laura seria a serpente que está tentando
subverter esse paraíso originário, que é a antiga ordem.
A última qualidade de dados nessa categoria é a de expressões de cunho religioso sendo
apropriados pelos personagens nos mais diversos contextos. Um desses pontos é a utilização da
palavra “ascenção”:
O que vem de dizer é torpe, é infame e somente um cerebro imbuido de erros, que tem
tornado a humanidade infeliz, poderia conceber um plano ambicioso em creaturas que
não se vendem, almejando apenas o direito á vida para os esbulhados por vós. Mas as
suas palavras não me farão recuar na ascenção libertaria, porque me sinto forte para
despresal-as como despreso esse ouro esbulhado ao misero proletário. (Sahe)
(FÓSCOLO, 2009, p.37)
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só é possível no mundo natural. Vimos a derivação da crença em Deus repercutindo nas relações
sociais e poderemos, então, investigar a seguir a religião em si.
Certamente, religião não pode ser associada diretamente com teísmo, posto que há
religiões que não possuem divindades. No entanto, da mesma maneira que é possível cruzar os
dados da história do anarquismo com a biografia de Avelino, é possível cruzar a história da
religião no Brasil com o contexto do enredo: por volta de 1921, data de lançamento da peça, o
Brasil já era um país laico, porém a hegemonia católica em território nacional era bem
pronunciada, e só foi ameaçada posteriormente com a expansão pentecostal na década de 1960
(Cf. MARIANO, 2003). Nesse caso, religião seria sinônimo de catolicismo, assim como Igreja
seria equivalente à igreja de tipo católica. Dessa maneira, a religião é apresentada estritamente
como a católica ao longo da obra.
Foram alocados neste espaço expressões de tipo religioso, que mostram a crença como
sendo um frame analítico para o seu respectivo fiel ou como esses valores se tornaram correntes
e culturais. O primeiro caso é o do pai de Laura:
Aqui, “alma” aparece nos dois sentidos. Para Roberto, Deus aparece como disparador
da ação. Já para Julio, o conceito de alma equivale à psicologia do indivíduo, num sentido
aquiniano de alma intelectiva, e a mentalidade do seu pai impede o progresso, pois foca-se na
questão financeira: nisso o matrimônio, ao invés de autêntico, se torna uma união que serve
para manter a real mola da sociedade moderna.
Isso porque algo mudou, segundo o próprio Coronel: “Meu filho! (pausa). Ah! como
estás mudado! tens algo de novo e desconhecido no semblante... uma virilidade distanciando-
te bem do jovem que dáqui partio há alguns annos” (FÓSCOLO, 2009, p.6). Após a sua
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Para Julio, a autoridade deveria se manter pelo amor, e não pela imposição, que foi a
tentativa do Coronel no diálogo. Neste ponto, a peça pretende criar a atmosfera de que a
ignorância do povo é o que permite que haja a imposição, e a viagem de Julio para a Europa
possibilita pensar que é a religião local que aceita que essa dominação se esconda com tanta
eficiência e se perpetue por inércia. É o caso de um diálogo de Laura com seu noivo arranjado,
Alfredo:
ALFREDO - O homem extraordinário que sacrificou fortuna, bem estar, tudo por um
principio de solidariedade humana! E... é correspondda nesse affecto?
LAURA - Sou; sei, sinto-o. Poderão tirar-me tudo, menos essa certeza - é o meu
galhardão na estrada do cacrificio.
ALFREDO - Pois bem, amo-a immensamente, deve sabel-o, deve ter lido no meu
semblante; mas acima da paixão está o sentimento de justiça, está a nobreza d'alma.
Para conquistar a maior somma de felicidade possivel, é mister ser-se forte, isto é: ter
energia para combater o mal, e semear o bem. Laura, está livre de qualquer
compromisso para commigo [...]
LAURA - Não vê que estou predestinada á fogueira ateada pela ganancia e um orgulho
idiota?
ALFREDO - Soffrerei por isto, mas lisonjear-me-á a lembrança de não haver
concorrido para o seu martyrio. É preciso encouraçar a alma! os primeiros semeadores
encontram o campo agro, cheio de cardos e ai delles se lhes fenece a coragem: tombam
arrastando outros na queda. [...]
LAURA - Tem razão! Quando um apostolo, como Julio, se despe das regalias que o
mundo lhe dá para trabalhar em prol do bem estar social, devemos seguil-o mesmo
antevendo o martyrio (FÓSCOLO, 2009, p.34)
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o seu conteúdo também precisa ser revolucionado, não apenas a sociedade. Isso fica evidente
em outra fala:
JULIO - [...] reconheci a necessidade, em vez da repressão brutal, que cria martyres e
faz fanaticos, de uma discussão desapaixonada, de uma educação preliminar e pratica,
preparando os espiritos para a realidade que virá após a miragem de hoje. Para tal fim
procurei destruir as barreiras de classe, de fortuna, indo ao encontro do proletario,
auxiliando-o no direito de conquista á existencia e ao goso (FÓSCOLO, 2009, p.41)
A religião, portanto, lida com a repressão brutal e, por isso, cria mártires e fanáticos, o
que prova a estratificação proposta pela narrativa religiosa. Neste ponto, é o saber simétrico que
permite que essa “miragem” se desfaça. Ou seja, a religião como se configura na peça é uma
maneira curta e direta de manter a dominação, pois não permite a existência do indivíduo,
apenas do domínio:
JULIO - Basta a ideia da justiça; façamos aos outros o que desejamos que nos façam;
executar somente trabalhos que se prendem á perfectibilidade das especies; nivelar
todos os homens na harmonia pela existencia, eliminando os monstros dos bordeis e
das tavernas, todas as parasytas, emfim, vivendo á custa do productor. É isto o que
chamam a má semente, que eu tento implantar: a igualdade no direito, a nobilitação
do trabalho, a morte do lenocinio, do roubo, da guerra, do parasytismo afinal
(FÓSCOLO, 2009, p.42).
LIMA - Cá está o méco! Corda no bicho e tronco com elle rapaziada. Levem-o
amarrado como um porco, p'ra respeitar as cousas sagradas.
JULIO - Não sei a quem se refere, meu tio, nem o que entende por cousas sagradas.
Aqui estào os homens, mais humanos do que o senhor, respeitando a liberdade dos
outros, para que respeitem a deles (FÓSCOLO, 2009, p.43)
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religião é como se fosse o porta-voz da dominação, a sua gramática, como diria Boltanski.
Aplicando o princípio antes declarado, que poderia mesmo ser chamado de um imperativo
categórico kantiano, o humano estaria em busca da igualdade e, perante os olhos de Julio, o
parasita está querendo ser superior.
Um último ponto de relevância concentra-se nas outras religiões que não a católica. A
marca mais especifica aparece quando Julio explica a raison d'être do próprio título do livro:
[...] nestes campos a semear, com uma abnegação sublime, o gérmen do Saber, esses
primeiros rudimentos que são a estrada conduzindo à conquista de um paraíso
sonhado. E não é o óbolo azinhavrado com que te retribuem os mais favorecidos da
sorte o teu sustenetáculo nessa missão excelsa, mas sim a ânsia de desvendar um
futuro de paz (FÓSCOLO, 2009, p.13)
argumentativo com uma caracterização do fiel, que basicamente são os indivíduos com a
possível verificar a construção desse fiel por meio da análise dos trechos abaixo, na sua
introjeção da superioridade.
O primeiro crente é o oprimido, que não reconhece que está sendo manipulado. O caso
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Há, portanto, toda uma idolatria ao dono da terra. Julio, por seu turno, não aceita ser
conduzido na cadeira por seus empregados. O Coronel aprova o ato desejado pelos oprimidos,
pois enxerga essa hierarquia como adequada para as relações sociais, o que fica bem evidente
um sua fala: “Mas que vento de loucura passou aqui e transtornou todas as cabeças ao ponto de
se renegar hoje o que se almejava hontem? Elle não renunciaria a um anhelo íntimo se não
surdisse um poderoso obstaculo” (FÓSCOLO, 2009, p.37). Esse “vento” tornou as
mentalidades dos antigos fiéis completamente mudadas, o que se espelha diretamente no
desacordo com a antiga sociedade.
Em relação aos fiéis que são dominadores, podemos observar, junto a outras
anteriormente citadas, algumas falas como a de Lima: “[...]a ociosidade è mãe de todos os vícios
e bom será que vocês, emquanto esperam, vão se divertindo por ahi a descascar milho, a limpar
a ceva [...] porque hoje não é dia santo e vocês já pegaram o grude do compadre: quem deve
paga (FÓSCOLO, 2009, p.6). É claro que podemos observar uma série de outras manifestações
dessa religiosidade ao decorrer do texto, porém esse trecho parece concentrar o argumento
central a que Fóscolo pretende retratar, isto é, o dominador deseja que o dominado trabalhe para
ele initerruptamente e considera que sua riqueza é apenas sua – no caso, simbolizado nos
mantimentos do Coronel, que oferecia a festa.
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Como núcleo central desta representação, temos que esse ateísmo é o que denominamos
como ateísmo de aposta, invertendo o argumento de Pascoal 6. Ele aponta para todas as
limitações do pensamento teísta em termos da criação da desigualdade e ensina que essas
afirmações serão comprovadas com o regime anárquico – na peça, Julio está demonstrando que
todas as crenças anteriores eram ideologias diante da felicidade que o seu sistema de
regeneração social pode causar. Ainda, há também elementos periféricos, que já foram
cotejados com os estudos de Lopes (Cf. 2013) sobre o ateísmo positivista e Lopes e Martinez
(Cf. 2019) sobre o ateísmo marxista e que serão brevemente retomados abaixo.
Primeiro, cabe relembrar a concepção de Deus. Para o anarquista Ele é um engano que
deve ser ignorado em prol da revolução, pois a revolução é o pré-requisito para se superar o
engano – e não há outro caminho possível que não esse único. Na peça, Deus aparece ou como
força de expressão corriqueira, ou como sentimento verdadeiro de pessoas ultrapassadas. Para
o positivista, a divindade católica é um engano que pode ser reaproveitado para a Religião da
Humanidade. Para o ateu marxista, é um engano que pode ser vilipendiado aos poucos, o que
resultará na quebra paulatina da ideologia.
Segundo, temos o combate ao teísmo com o contra-argumento. O ateu anarquista não
precisa derrubar a religião apenas por ela mesmo. Nesse caso, a superestrutura e a estrutura
estão completamente ligadas, logo atacar em conjunto é o suficiente também à religião. A
religião se impõe por ser um discurso único, e nisso reside a sua força de criar as desigualdades.
Em um contexto assim estabelecido, quando o discurso anarquista é apresentado, ele tente a se
demonstrar como persuasivo, levando seus interlocutores a automaticamente perceber a
desigualdade e a religião pede seu espaço. O discurso anarquista mostra, portanto, a falta de
lógica do sistema como um todo a partir de uma maiêutica socrática 7 em prol do anarquismo,
tópico já abordado por Lauris Junior (Cf. 2009). As perguntas lançadas partem da falta de lógica
no sofrimento do trabalhador. Personagens que não passaram pela maiêutica demonstram a
crença em Deus sendo autêntica; já os personagens que passaram pela maiêutica utilizam Deus
como metáfora. No entanto, a maiêutica não é o fim do processo, mas o começo, porque ainda
há uma comprovação material para a revolução.
Terceiro, retomemos a questão da intensidade. O ateísmo anarquista primeiramente
demonstra maieuticamente a fraqueza da religião; em seguida tira-lhe a base material, e daí se
completa a demonstração da sua fraqueza. O trabalhador precisa arriscar-se a entrar num novo
sistema, ter certa fé no sentido de que o sistema atual é a prova de que o sistema anarquista é
6
O Argumento da Aposta, de Blaise Pascoal, se caracteriza por convencer alguém a acreditar em Deus porque a
sua descrença pode levá-lo ao inferno se Deus de fato existir.
7
A maiêutica funciona pela conversa ser guiada por perguntas: Sócrates indagava o interlocutor e o convencia
da inconsistência de suas ideias por meio de seus questionamentos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo tratou de uma representação social de um ateísmo anarquista estudado por
meio da peça O semeador, do escritor naturalista Avelino Fóscolo. Sabe-se que o anarquismo
adotou uma estratégia de divulgação basicamente pedagógica e a peça cumpre com essa função
ao mostrar, pelo literário, o cotidiano do seu público alvo em ambiente rural. Essa peça é
relevante para o problema na medida em que, como apontado em nossa análise, se desenvolve
em uma argumentação bastante específica. Quanto ao autor, apesar de não se declarar
publicamente ateu, possui muitas evidências de seu pertencimento particular, o que o torna
singular a demais análises futuras tanto no campo social quanto no campo literário.
A conclusão mais geral do estudo é que o enredo trata de um ateísmo de aposta: a crença
em Deus e ideias acessórias servem para manter a desigualdade e pode ser combatida se houver
a aposta. O indivíduo se engaja na vida libertária antes de desacreditar a religião e ocorre a
supressão da base material. A partir disso, essa crença perde completamente o sentido enquanto
crenças e práticas. Essas crenças seriam destruídas pela lógica dos fatos e o fiel conseguiria
escapar da ilusão apenas pela educação libertária. Ou seja, a religião como um todo, precisaria
da revolução para ser destruída por completo, é o seu pré-requisito. Por isso, ela aparece na
forma de metáfora nas falas dos personagens anarquistas e é autenticamente vivida por quem
pertence à antiga ordem – pois ela reforça a desigualdade entre os homens.
Encerramos o texto com duas pequenas reflexões. Cumpre ressaltar que a discussão aqui
proposta, partindo da análise da religiosidade na peça teatral, permitiu alinhar, a final, teorias
como o anarquismo, o marxismo e o positivismo, ideias cujos representantes são muitas vezes
avessos entre si. A observação desses extratos por meio da literatura atinge dois grandes pontos
de relevância para discussões futuras. Em primeiro lugar, resgata um elemento da história
literária brasileira que se encontra periférico ao cânone e amplia a percepção histórico-social
de sua época, pois a investigação do que consideram senso comum dá uma pista de como
conduzem o seu ativismo.
Outra reflexão interessante é que a análise aqui exposta serve para a observação do
movimento anarquista atual. Isso porque, durante a peça, os lavradores aparecem como simples
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