Um Estudo Sobre Ateismo No Anarquismo An

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UM ESTUDO SOBRE ATEÍSMO NO ANARQUISMO: ANÁLISE DA PEÇA


TEATRAL “O SEMEADOR”, DE AVELINO FÓSCOLO
A study on atheism in anarchism: analysis of “O Semeador”, a play written by Avelino
Fóscolo

Ricardo Cortez Lopes 1


Lis Yana de Lima Martinez 2

RESUMO
Esta pesquisa problematiza um ateísmo anarquista por meio da literatura, mais precisamente a
peça O semeador, de Avelino Fóscolo. Essa reflexão pontual está inserida dentro dos estudos
mais amplos sobre o movimento social ateu, sendo esta manifestação considerada como da
vertente revolucionária. A obra foi analisada com base em quatro temas: Deus (como a
divindade católica é retratada?), Vigário (como ele é apresentado na peça?), Religião (como
princípios religiosos são retratados?) e Fiel (Como é retratado um religioso?). Os resultados
apontaram para um enredo pautado no ateísmo de aposta: deus aparece como um engano que
serve exclusivamente para manter a desigualdade, e isso fica demonstrado a posteriori se a
revolução ocorre.
Palavras-chave: ateísmo anarquista; Avelino Fóscolo; O semeador; teatro.

ABSTRACT
This research problematizes an anarchist atheism through the play O semeador”, written by
Avelino Fóscolo. This specific reflection is part of the broader studies on the atheist social
movement, and this manifestation is considered to be a revolutionary aspect. The play was
analysed according to four themes: God (how is the Catholic deity portrayed?), Vicar (how is
he presented in the play?), Religion (how are religious principles portrayed?) And Faithful
(How is a religious portrayed? ). The results pointed to a plot based on the betting atheism: god
appears as a mistake that serves exclusively to maintain inequality, and this is demonstrated
posteriori if the revolution occurs.
Keywords: anarchist atheism; Avelino Fóscolo; O semeador; play.

1
Doutor e Mestre em Sociologia (linha sociedade e conhecimento) no Programa de Pós-graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Suas pesquisas se focam nas ressignificações dos conceitos da
modernidade primeira em representações sociais. Em 2019 lançou os livros "Personagens: entre o literário, o
sociológico e o social" (em co-autoria) e "Construindo Contextos", no qual delineia a sua teoria dos contextos
representativos. E-email: [email protected]
2
Doutoranda e Mestre em Estudos de Literatura (linha de pesquisa Teoria, Crítica e Comparatismo) do Programa
de Pós-graduação em Letras Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Especialista em Literatura
Contemporânea pelo Centro Universitário UniDomBosco. Sua pesquisa se concentra em estudos sobre
Intermedialidade, mas também possui publicações nas áreas de literatura fantástica, mitológica e epistolar.
Atualmente é Bolsista CNPQ. Em 2019, lançou seu livro Personagens: entre o literário, o midiático e o social
publicado pela editora Viseu juntamente com o sociólogo Ricardo Cortez Lopes. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende investigar uma parte do material de divulgação do


movimento social ateu por meio da obra de Avelino Fóscolo, que potencialmente empregou o
teatro pedagógico anarquista como maneira de divulgar o ateísmo em território nacional. Essa
análise, no entanto, não está isolada, mas é a continuidade de uma série de estudos que se
defrontam uma apreciação do movimento social ateu no Brasil a partir de amostras do
comportamento social e tecnológico (Cf. LOPES, 2014,2015 e 2013) e literário (Cf. LOPES;
MARTINEZ, 2019).
O movimento social ateu não é uniforme; a causa ateia foi sendo formulada no interior
de diferentes grupos, muitas vezes sendo retirada do mainstream reivindicatório, em outras
vezes assumindo a dianteira. Essa característica, no entanto, o fez sempre circular pelos
diferentes grupos, de acordo com as definições jurídicas do que é religião pelo estado brasileiro:

Em um primeiro momento, postulamos que o que se desenvolveu em território


nacional foi a uma Etapa Incipiente (1947-1844) do pensamento ateu: nesta etapa, os
ateus manifestavam-se esparsamente, indicualmente e sem um fim público definido.
Provavelmente o máximo da expressão pública foi através de personagens de
romances literários (usando figuras de linguagem para se comunicar com pessoas com
o mesmo capital simbólico) [...] A genealogia em um segundo momento, com o que
denominamos Etapa Revolucionária (1844-1930): nesta etapa, erigem-se as
metanarrativas (na expressão de Lyotard) que buscam erradicar o conceito de Deus,
seja por sua eliminação, seja por sua substituição (LOPES, 2015, p.1418)

Assim como o ateísmo de tipo marxista – já analisado em Lopes & Martinez (2019),
dentro de uma amostra literária –, o ateísmo anarquista é, cronologicamente, tanto de etapa
revolucionária quanto de positivista. Todavia, nesse caso, o marxista estava lidando com um
momento de censura, o que o fez se localizar na etapa incipiente, em que se expressava de
maneira oculta, por meio de metáforas. Vemos que o mesmo não ocorre a Avelino Fóscolo que,
em 1921, lançou a peça O Semeador, cujo enredo tenderia a divulgar ideias anarquistas:

O semeador é uma obra dramática em três atos que estabelece uma crítica à
propriedade. A história se passa em uma fazenda onde há uma tentativa de diluir a
propriedade, sobre o ideal de cada um obter apenas o necessário para si. Júlio, o
personagem principal, entra em contato com o pensamento anarquista após uma
viagem à Europa. Ao regressar, tenta modificar os hábitos instituídos na fazenda de
seu pai, começando por não se reconhecer como superior diante dos trabalhadores,
mesmo sendo o herdeiro das terras. Tratava todos por igual, inclusive os ex-escravos.
Propôs o fim do salário, visto como uma nova forma de escravidão, podendo todos
usufruir do fruto do trabalho comum, e reduziu as horas de trabalho para que os
trabalhadores pudessem gozar mais de seu tempo livre. Para isso, implantou o uso de

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máquinas na produção, lançando mão do uso das novas técnicas e saberes


desenvolvidos para o benefício de todos. (RAMUS, 2009, p.287)

Ao longo da análise, iremos detalhar o enredo de modo a complementar essa sinopse.


A presente pesquisa provém de embasamentos alocados em toda uma ciência do ateísmo que
tem se construído no Brasil nos últimos anos, compreendendo a necessidade de explorá-la em
diversos ambientes de expressão social e cultural (Cf. DASILVA, 2018, 2020). Aqui, esses
embasamentos são aplicados ao nosso olhar junto ao campo literário, extraindo da peça
elementos textuais que fundamentam sua identidade anarquista (Cf. DUARTE, 1991).

CONTEXTUALIZANDO: O ANARQUISMO, O ANARQUISMO NO BRASIL E


ÁVELINO FÓSCOLO

Nesta seção, vamos apresentar um jogo de escalas, partindo desde o anarquismo


enquanto sistema moral, passando pelo anarquismo no Brasil e chegando ao próprio Avelino
Fóscolo. Esse percurso permitirá a conexão da temática com o referencial teórico, o que
resultará na análise dos dados com conclusões mais amplas.
Anarquismo, etimologicamente, significa a ausência do poder, no caso o poder estatal,
que não possui um futuro possível (ELTZBACHER, 2004, p.292) – assim como o ateísmo,
como veremos adiante, tem como ponto de partida a negação de Deus. Há em comum nesses
dois pensamentos a variedade interna:

Um aspecto fundamental do movimento libertário é a recusa incondicional de


qualquer tipo de organização política e social baseada na coação, ao lado do desejo e
da luta por uma sociedade em que a ordem, a liberdade e a igualdade coincidam. Para
atingir tais objetivos, os anarquistas, pelo menos nas correntes majoritárias, baseadas
no mutualismo, no cooperativismo e no anarco-comunismo, enfatizam sempre a
junção entre os fins e os meios na política, sublinhando que não se pode chegar a fins
libertários por vias autoritárias [...] Para os anarquistas, a educação, a cultura e,
portanto, a apropriação do conhecimento pelas classes trabalhadoras sempre foram
questões essenciais. Concebem a transformação social pela criação de formas
igualitárias, anti-hierárquicas e desburocratizadas de organização, em sintonia com a
mudança de sensibilidades, atitudes, valores e não como tomada do poder do Estado
pelos partidos políticos e a constituição de uma nova classe dirigente (SILVA, 2011,
p.88)

Ou seja, o anarquismo recusa a coação e busca a cooperação voluntária. A partir dessa


concordância, a harmonia social se estabeleceria por meio do diálogo e seria possível criar um
sentido comum. Desse ponto primeiro, partem, no mínimo, três tipos de anarquismo: o
individualista, o coletivista e o socialista (Cf. LUIZETTO, 1987). A ideia é uma ruptura sem a
intermediação de um “partido único” (PASSETTI, 2002, p.147). Por meio da ruptura com a

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alienação – e também a religião –, crê-se ser possível ir adiante em uma vida comunal.
Cronologicamente, Avelino poderia pertencer a apenas dois deles: ou ao coletivista ou ao
socialista. No entanto, não vamos classificá-lo dentro dessas tipologias por não estarmos
apreciando a maioria das obras.
É mister, antes de tudo, observar como o anarquismo chegou ao Brasil. Seu berço foi a
Europa:

[...] principalmente [...] de países como Espanha, Itália e Portugal, de onde veio grande
parte dos imigrantes responsáveis, no Brasil, em outros países da América Latina e
nos Estados Unidos, pela expansão do anarcosindicalismo e pela criação, no Novo
Mundo, das expressões artístico-culturais e pedagógicas inerentes ao movimento
anárquico desde suas origens (SILVA, 2011, p.88)

Isto é, além das obras intelectuais, há todo um aporte dos imigrantes que chegaram ao
país, além das expressões artísticas – como o próprio teatro de Fóscolo ilustra. De acordo com
Pablo Martins, o Brasil foi particularmente fértil para essas ideias:

Boris Fausto identifica que as condições sociais e políticas da República Oligárquica


confirmavam em grande parte a crítica dos grupos anarquistas à sociedade burguesa
[...]. Desta forma, o anarco-sindicalismo aparece como estratégia de luta, tendo como
principal ferramenta de resistência o sindicato: greves, revoltas e sabotagens fazem
parte desta vertente, que atinge um ponto vital do capital, a produção (MARTINS,
2018, p.152).

Possivelmente, há toda uma emergência envolvida na ação anarquista, junto com a ideia
de que, como houve o transplante do estado moderno, este seria mais embasado no mando
pessoal do que em ideias políticas já consolidadas. Outrossim, no Brasil o anarquismo adquire
uma face própria devido à própria cultura política do país.
Como pessoa, Fóscolo é metonímia da assimilação do anarquismo no Brasil, pois

[...] se mostra um autor com certos diferenciais nesse movimento de contracultura


dentre eles ser brasileiro de Sabará, [...] longe dos perímetros urbanos. Trabalhava
como farmacêutico, e fez de seu negócio um local de propagação das ideias
anarquistas, inclusive até editou um jornal A Nova Era, baseado em Mikhail Bakunin
e Pedro Kropotkin longe de ser diplomado também não era um inculto e muita coisa
era apreendida por si mesmo [...] em se tratando que o anarquismo na época era um
movimento de muito estudo, leituras e intercâmbios de informação vide o sucesso dos
periódicos [...] Fóscolo teve que trabalhar no campo o que o fez vivenciar as questões
do trabalhador rural em sua própria carne [...] A relação com o teatro fomentada nos
tempos de ator itinerante se solidificou como militância na mesma farmácia formando
ali o Club Dramático e Literário, onde eram encenadas as peças, tornando aquele local
importantíssimo no movimento anarquista em Minas Gerais (PEREIRA, 2018, p. 4)

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Ademais, Fóscolo chegou a construir um teatro e a fundar um jornal e uma biblioteca


(Cf. DUARTE, 1988 & 2018). Junto a essas atividades, que já seriam suficientes para colocá-
lo como uma grande influência cultural, o autor teceu uma ampla obra literária, entre romance
e teatro, caracterizada pelo enfoque em uma perspectiva social:

Dentro dessa nova metodologia do teatro político os objetivos são ressignificar o que
o trabalhador brasileiro toma como verdade absoluta por estar na cegueira da
alienação política e aí entra a questão da manifestação cultural (no caso a arte
dramática) como a melhor arma pedagógica principalmente por seu grande alcance
(PEREIRA, 2018, p.3)

Dessa forma, o escritor almeja romper a alienação política pela crítica. Essa postura está
em diálogo com a escola literária naturalista, que buscava ilustrar as relações sociais em suas
dinâmicas internas.
O naturalismo tem por pretexto representar fielmente a realidade. Apresenta-se como
uma escola literária simbólica de um período de transições no Brasil:

No campo científico, desenvolvem-se as ciências da natureza, muito mais do que as


ciências da sociedade. Toma vulto a sociologia; o naturalismo é um pouco a sociologia
na literatura. Como surgira uma ciência especial para o estudo da sociedade? Pela
necessidade, quando todas as condições impunham a ampliação da economia para
desvendar as relações sociais, de uma outra ciência, que afastasse a economia e que
aparentemente a superasse, como específica, para a interpretação e a definição das
grandes lutas sociais que então se travaram. [...] O naturalismo pretende ser o
laboratório, em literatura. E chegará a pretender-se experimental, quando não
ultrapassa o empirismo dos arrolamentos. (SODRÉ, 1965, p. 25)

Todavia, é importante ressaltar que não há na peça a mesma estética de determinismo


animalesco como a que encontramos em O cortiço, de Aluysio de Azevedo. No caso de O
semeador, é o anarquismo que dá bases à construção estética, seguindo o movimento como um
todo:

[...] em seu projeto de transformação social e luta contra a “tríade maldita” – O Estado,
o Capital e a Igreja –, o anticlericalismo aparece com destaque nas ações anarquistas.
O anticlericalismo anarquista era militante e abertamente ateu. Os anarquistas
brasileiros repudiavam a religião através de um discurso violento e fundaram jornais
antirreligiosos, ligas anticlericais e escolas racionalistas para combater a presença da
Igreja no campo da educação e da formação de crianças e jovens, influência vista
como nefasta e contra a razão. O discurso anticlerical anarquista pretendia libertar o
operariado de toda a escravidão moral e social e para tal era necessário combater a
Igreja, o Capital e o Estado através da revolução social (MARTINS, 2018, p.152)

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O naturalismo literário “libertário” por vezes se posiciona de modo a contrapor a tríade


Igreja-Capital-Estado. Infelizmente, não conseguimos encontrar informações de como Fóscolo
tomou contato com os conhecimentos anarquistas, o que pode vir a creditar a ideia de uma
transmissão familiar, segundo uma compreensão sociológica. Assim, resta, por enquanto,
associar Fóscolo com o ateísmo e o faremos a seguir.

REFERENCIAL TEÓRICO: ATEÍSMO, ANARQUISMO E REPRESENTAÇÕES


SOCIAIS

Nesta seção, vamos fazer a ligação teórica sociológica entre anarquismo e ateísmo. Essa
ligação não é automática: o ateísmo é uma das bandeiras do anarquismo, porém não é nem de
longe sinônimo dele. Isso porque o anticlericalismo não implica uma ausência de crença
religiosa: é possível se tratar apenas uma reconfiguração da fé abdicando da instituição
religiosa. Nesse caso, é preciso confirmar essa variedade religiosa por parte de Fóscolo. Se essa
conexão ficar fortemente estabelecida, será possível apontar o ateísmo circulando dentro do
anarquismo e como ele acaba sendo expresso na obra estudada.
Para problematizar essa pertença, são necessárias algumas evidências. A primeira
evidência da possibilidade de ateísmo é circunstancial, porém possui sua relevância: a
ascendência de seu bisavô (Cf. DUARTE, 2018) Ugo Fóscolo, escritor italiano conhecidamente
ateu (Cf. WILKINS, 1950). Em situações normais, seria possível argumentar que o ateísmo não
é uma condição genética e que não pode ser transferido por zigoto, porém não foi possível
encontrar informações sobre a infância e a adolescência do autor, excetuando-se esse trecho:
“Decepcionado com o regime republicano e influenciado por pensadores como Eliseé Reclus,
Jean Grave e Piort Kropotkin, aderiu ao anarquismo. Fóscolo era órfão e trabalhou junto com
escravos nas minas de Morro Velho” (RAMUS, 2009, p.286). Em tais informações, não
constam em que etapas da vida do autor esses dois fatos ocorrem ou se eles são subsequentes.
Assim, informações sobre a família ganham especial relevância senão como definidoras, mas
como elementos significativos.
Outra evidência parte de certos depoimentos de terceiros que conviveram com o autor:
"[...] as pessoas o chamavam de ateu e o achavam esquisito, mas em caso de enfermidades,
prisões ou abusos policiais o convocavam para prestar auxílio, e ele o fazia com grande
empenho, sem exigir nada em troca" (AQUINO, 2011, p.114). Nesse sentido, seus conterrâneos
o atribuíam a pecha de ateu, porém aparentemente não o hostilizavam e aceitavam seu “capital

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social”, em termos bourdiesianos. Essa evidência é relativamente mais forte do que a anterior
se for contrastada com uma sociologia do estado brasileiro que leve em conta a influência
cultural da religião na conformação do estado brasileiro (Cf. MARIANO, 2003). O laço social
era forte mesmo com a atribuição da pertença religiosa, o que pode indicar que ela não era
falaciosa ou que não havia uma estigmatização dela.
Uma última evidência seria a própria história do movimento anarquista, que passou por
um momento de maior radicalização:

Os anarquistas são tradicionalmente anticlericais e ateus. Os primeiros anarquistas


opunham-se tanto à Igreja como ao Estado e a maioria deles opunha-se à própria
religião. A fórmula «Nem Deus nem Amo» foi amiúde utilizada para resumir a
mensagem anarquista. Muitas pessoas dão ainda os primeiros passos para o
anarquismo perdendo a fé e tornando-se racionalistas ou humanistas; a recusa da
autoridade divina encoraja a recusa da autoridade humana. A maioria dos anarquistas
hoje é provavelmente ateia, ou pelo menos agnóstica. Mas houve anarquistas
religiosos [...] O ódio generalizado dos anarquistas pela religião declina à medida que
declina o poder da Igreja e muitos anarquistas pensam agora que se trata duma questão
pessoal (WALTER, 1981, p.17)

Nesse caso, Avelino está situado cronologicamente dentro dos anarquistas tradicionais,
cujo anticlericalismo resulta no ateísmo, o que aumenta suas chances de ser ateu de fato.
Segundo essa perspectiva, o anarquista tornou-se racionalista ou humanista – pois a autoridade
divina, em verdade, espelha a autoridade humana. É possível, portanto, superar a alienação
questionando essas duas qualidades de autoridade, que agem em bloco para suprimir o
indivíduo em sua liberdade.
A maneira de analisar o corpus textual será por meio da teoria das representações
sociais. Esta teoria estuda as representações construídas socialmente que servem para atribuir
significações a fenômenos e atribuir sentido para a realidade (Cf. MOSCOVICI, 1961). Do
compartilhamento das representações sociais, geram-se grupos de pertencimento (Cf.
JOVCHELOVITCH, 2008), cujos subgrupos se arquitetam internamente em volta do ideal
primário (Cf. LOPES, 2019). Adicionalmente, uma representação pode ser estudada quanto aos
seus elementos internos: o seu núcleo central e estável e os seus elementos periféricos mais
modificáveis (Cf. SÁ, 1996). O percurso metodológico que vamos chegar a essas
representações sociais é aquele proposto pela análise de conteúdo, um conjunto de técnicas
destinadas a encontrar o sentido subjacente em determinado texto, de modo que o material é
analisado por meio de categorias, unidades de significação que aglutinam o corpus textual (Cf.
BARDIN, 1977). Os resultados dessa grelha categorial permitem observar as estruturas das

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representações sociais. Estamos lidando com representações sociais de um subgrupo ateísta


dentro do grupo anarquista, expressando representações sociais por meio da obra ficcional,
abordada por análise de conteúdo. Assim, uma vez estabelecido o ateísmo por meio três
evidências e explicitada a heurística da pesquisa, é possível avançar para a análise do material
empírico, procedido na próxima seção.

ANÁLISE

Partindo da definição de ateísmo – como a negação da causalidade de Deus pela


inexistência da metafísica – foi possível elaborar algumas categorias de análise para o corpus,
apresentado com a ortografia mais próxima da sua época, o que pode resultar em estranhamento
para o leitor atual. Na imagem abaixo, apresentamos as categorias temáticas e suas descrições:

A partir destas categorias, vamos articular o texto e apresentar os dados, produzindo a


resposta ao problema inicial da pesquisa e mostrando, por fim, o núcleo duro e a periferia da
representação social de ateísmo que deriva desse material. Ressaltamos que analisar
representações de negações (como ateísmo, agnosticismo, anacrônico) implica também buscar
a definição daquilo que é negado, de modo que as categorias eleitas se prestam a esse fim de
definição positiva.
A categoria Deus aparece pelos menos de duas maneiras. A primeira delas é como
interjeição, o que tira de absoluto o ímpeto causal da divindade e o coloca como expressão
cultural de significado interior à própria cultura. O segundo uso é por parte dos personagens da
velha ordem: nesse caso Deus representa, de fato, uma causalidade, que gera e sustém a
desigualdade de maneira transcendental.

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O primeiro trecho analisado é com Laura, paixão atual e de infância de Julio que
lecionava na fazenda do Coronel:

LAURA - Que interesse pode a filha de um simples administrador despertar em quem


a fortuna bafejou desde o berço e que possue dotes collocando-o em outra esphera?
JULIO - O que inspira a belleza, a grandeza d'alma aos que na vida não se obumbram 3
á refulgencia do ouro.
LAURA - Si seu pai o ouvisse...
JULIO - Tenho um roteiro traçado e seguil-o-ei embora me esphacelem os membros
as urzes 4 da estrada. Houve outr'ora, em antiguidade remota, um genio que se rebellou
contra a ordem estabelecida, porque a julgava incompativel com a felicidade
humana... perturbou a engrenagem das injustiças daquella machina infernal - o
auctoritarismo judaico e pagou com a forca a sua audacia de reformador. Quantos
como elle tombaram no campo da lucta, quantos perecerão ainda até atingirmos o
ideal sonhado - o amor como universal cadeia entre os homens?!
LAURA - Ha em suas palavras algo de mysterioso e novo que não comprehendo.
JULIO - Comprehendel-o-ás mais tarde: quero-te consocia no meu anhelo de
regeneração social.
LAURA - Eu?! Está brincando, certamente.
JULIO - Sei com que desvelo te devotas aos pequenos e quanto balsamo de consolação
tens para as chagas da injustiça. Depois... és a companheira dos meus descuidosos
dias da infancia, a imagem que me seguio sempre nesse voluntario desterro, longe do
berço natal.
LAURA - Ah! não zombe de mim!
JULIO - Zombar, eu? Vi mulheres formosas em pose estudada, ostentando uma
caridade ficticia e uma belleza mais falsa ainda. Numas a religião doirava os vícios;
noutras a habilidade da modista corrigia as imperfeições naturais e em todas o cold
cream e o carmin eram os factores do encanto; nas denominadas grandes damas só
deparei banalidade, fingimento e coquettismo; jamais a candidez immacula de teu
rosto se reflectio num daquelles semblantes. E nas horas solitarias de Celebes eu via
numa recordação, e era saudade tambem, a imagem querida deixada aquem dos mares
no meu remoto sertão. (FÓSCOLO, 2009, p. 14)

Alguns pontos podem ser destacados neste segmento textual. O primeiro é que a fortuna
é um ideal religioso que conduz a uma ideia de que o destino pode favorecer intencionalmente
um indivíduo, e Laura ainda o nutre a essa altura da peça, mas abandonará posteriormente.
Outro ponto de destaque é que Jesus Cristo aparece, porém é relatado por Júlio como um
revolucionário: esse é o seu valor moral supremo, e não sua transcendência religiosa
demonstrada nos milagres. Por fim, a religião é retratada como uma capa de invisibilidade para
vícios de indivíduos, quando são descritas as mulheres formosas e viciosas.
Deus aparece de novo em outro trecho, quando o latifundiário Lima, genro do Coronel
por desposar sua filha, afirma sobre a montagem de um negócio: “Qual o que, seu compadre!
500 mil réis bastam. O rapaz abre uma bitacula 5 e o cobre dos trouxas começa a pingar lá dentro

3 Disfarçar ou esconder.
4
Tipo de arbusto roseado.
5
Caixa de metal onde cabe a bússola.

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que é um louvor a Deus de gatinhas” (FÓSCOLO, 2009, p.28). Nesse ponto se trata de uma
associação entre lucrar e louvar a Deus, pois o dinheiro serviria como mote de agradecimento
para se louvar Deus de joelhos, o que em verdade representaria uma atribuição positiva ao lucro
desmedido. Ainda, há outra representação que acontece pela negação:

JULIO - A terra foi dada a todos os seres pela natureza, mãe benefica e imparcial,
como fonte commum imprescendivel á existencia. Tudo é de todos e os instrumentos
de trabalho, as invençòes representando um legado de gerações passadas e anonymas
não podem constituir propriedade exclusiva de alguns homens apenas (FÓSCOLO,
2009, p.21)

Nesse caso, o princípio natural se apresenta com muita força: a natureza é a mãe de
todos os seres humanos e é imparcial. A ideia de Deus serve para criar o oposto: a parcialidade
que favorece apenas as classes favorecidas. Isso fica evidente em uma fala do Coronel sobre
Laura, após a sua guinada para o anarquismo: “Que acabo de ouvir dessa misera que vi crescer
e me considerou sempre como um ente superior?” (FÓSCOLO, 2009, p.33). Laura considerava
Coronel um ente para além dela, o que se confronta diretamente com os ideais de igualdade
diante da mãe natureza. Essa ordem das coisas não é mantida apenas pela questão da
discrepância financeira, como mostra Lima com relação à desistência de Alfredo do casamento
contratado com Laura: “Roeu a corda, p'ra encurtar razão; mas nós o obrigaremos, a nós é que
o negocio interessa. Temos donheiro, Deus louvado, temos gente, bota-se o bicho no tronco
[...]” (FÓSCOLO, 2009, p.33). Louvar a Deus é o que permitiria e tornariam justas as agressões,
as tornariam um ritual de purificação que ocasionaria o retroceder das ideias já expostas até
então: nesse caso a hierarquia fica reforçada com essa explícita referência à escravidão.
Outra questão que é interessante de se explorar com relação a essa categoria é a figura
de Jesus Cristo. A questão de aguentar agressões parece ser um traço que é atribuído, por parte
dos fiéis dominantes apenas ao Cristo. No entanto, os anarquistas consideram que é possível
para outros indivíduos sofrerem castigos físicos e também se enobrecerem, como demonstra
essa frase de Laura: “Sacrificar-me é por vezes uma maneira de ser forte e de fazer o bem: para
a felicidade de um maior numero, aceito” (FÓSCOLO, 2009, p.31). Assim, o sacrifício sagrado
não está restrito apenas à Cristo: qualquer um que busque a igualdade entre os indivíduos poderá
fazê-lo e, assim, será simetrizado à figura maior do catolicismo. Um outro ponto com relação
ao Messias católico, é que Julio parece ser sua versão secularizada: ele traz um conhecimento
superior para uma realidade social que é refratária e forma um grupo de pessoas que coadunam

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com ele – os apóstolos e os camponeses. Além, é claro, dos primeiros nomes de ambos
começarem com a letra J.
Um último trecho que trata do assunto é uma descrição por parte de Julio: “Entretanto,
meu tio, Platão, que não conhece, o Christo, que julga venerar, pregaram a mesma cousa. Acha
justo que uns trabalhem, produzam, com immensa pena, emquanto outros que nada fazem
uzufruam o fruto do alheio trabalho?” (FÓSCOLO, 2009, p.44). A utilização da figura de Platão
poderia ser um artifício para “laicizar” o que Julio está narrando, mas a ideia parece ser a de
traçar uma tradição intelectual revolucionária, ressignificando Jesus para o Coronel. Nesse caso,
não se pode tomar as palavras de Jesus por meio de uma interpretação conservadora, e por isso,
dentro do contexto que o dramaturgo propõe para a peça, é Julio quem consegue entendê-lo de
fato e perceber a sua humanidade, por meio de seu ideal de igualdade.
Partindo das evidências levantadas é possível apontar que texto da peça dá suporte à
negação de Deus, assim como, adicionalmente, à figura da própria transcendência de Jesus
Cristo. Cabe, portanto, observarmos como se comportam as relações sociais derivadas dessa
crença primária.
Primeiramente, nos deteremos no vigário e, posteriormente, nos fiéis. O vigário e Bíblia
foi o único caso em que a categoria temática prévia foi modificada parcialmente pelo material
empírico. Isso porque o esperado era encontrar a figura de um líder religioso (vigário ou padre)
que tivesse participação efetiva no enredo, mas ele apenas é citado algumas vezes durante a
peça. Por outro lado, a Bíblia tem diversas aparições, entre citações literais e referências
metafóricas nos diálogos, o que compensa, parcialmente, a ausência direta do vigário em nossa
análise e abre a possibilidade para observações alegóricas.
O primeiro trecho que trazemos aqui referente à categoria é novamente uma fala de
Lima: “Tudo se arranja com arame. O nosso vigario é rasoavel e não resiste a certos
argumentos” (FÓSCOLO, 2009, p.32). As palavras aqui (“argumentos”) escondem uma grande
ironia, pois o vigário está sendo subornado para promover o casamento de Laura com Alfredo:
“O nosso vigario foi bem rasoavel e prompto” (FÓSCOLO, 2009, p.33). Outra característica do
vigário aparece no seguinte trecho: “Bem o percebo, seu mestre-escola, do que você tem medo
é da sabença do rapaz que andou lá pelas europas e deve ter mais cousa na cachola do que o
nosso vigario, que não é nenhuma besta quadrada” (FÓSCOLO, 2009, p.8). Por essa fala,
podemos perceber que se trata de uma comparação entre Julio e o Vigário, o que permite o
estabelecimento de um padrão: a questão evolucionista que Avelino se propõe a tecer fica

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evidente na indicação da superioridade de Julio em relação àquele que conhece as escrituras a


fundo e não as pratica.
Em um determinado momento da peça, pela fala do Coronel, que afirma “[...] nem sò
de pão vive o homem” (FÓSCOLO, 2009, p.17), a citação religiosa é empregada como subsídio
da atitude de aproveitar a vida ao invés de apenas despendê-la no trabalho. No entanto, o trecho
citado ocorre na passagem em que o diabo está tentando a Jesus Cristo no deserto. Assim, o
Coronel manipula o sentido do enunciado, pois se coloca como seguidor das palavras da Bíblia
ao fazer-lhe uma citação literal, mas oculta o versículo respectivo.
De mesma maneira o livro é empregado por Lima, quando ele afirma ao Coronel a
respeito de Julio: “A arvore que não dá fructo deve ser cortada: É da biblia” (FÒSCOLO, 2009,
p.6). O trecho bíblico daria, então, subsídios para que Julio fosse erradicado.
Outro momento da peça aponta para uma parábola, a do Filho Pródigo: “Gastou um
dinheirão com a vinda do filho prodigo que o deixou como um ingrato, desfalcou a herança de
minha mulher e de seus netos!” (FÓSCOLO, 2009, p.7). Podemos perceber que a citação está
inversa porque o filho pródigo “trai” ao pai apenas no começo da história, e se redime no fim
dela, mas nessa fala Julio “trai” ao pai apenas na sua volta.
É mister, aqui, uma pequena pausa, pois é importante que se observe, pelos diálogos,
que não há uma compreensão da religião por parte dos personagens. Todavia, literariamente,
sabemos também que essa “falta de compreensão” pode vir a ser entendida como ingenuidade
ou como manipulação do discurso, o tom será aferido quando da encenação da peça ou pela
interpretação do leitor.
Retomemos a análise. Mais adiante na peça é possível encontrar outras referências ao
texto bíblico:

ROBERTO - De certo, filha. E, embora nos pese, é refinada toleima não querer ver
isto que a sociedade estatuio e alimentar fantasias de igualdade no cerebro do pobre.
A nós compete obedecer, observar callados...
LAURA - E assim vão os pequenos, e são a maioria, deixando-se salpicar de lama,
aterrorisados e ofuscados pelo idolo de ouro (FÓSCOLO, 2009, p.11)

A referência à Moisés é explícita. O povo eleito se deixou seduzir pelo ídolo de ouro e
isso o obrigou a tecer a uma nova aliança com o Deus do primeiro testamento. Observar as
desigualdades se desenhando e se reforçando é justamente a atitude de desviar da verdadeira
finalidade humana. Laura utiliza a metáfora bíblica para apontar o desvio de maneira
compreensível a seu pai.

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Roberto, então, experimenta uma mudança de pensamento no sentido profundo:

ROBERTO - [...]Sinto que a razão do mundo está com elles: mas a justiça é que não.
JULIO - Estás pensativo e cabisbaixo.
ROBERTO - Por sua causa andamos de Herodes para Pilatos (FÓSCOLO, 2009,
p.41)

Roberto acredita que o mundo está descrito pela lógica da dominação, porém não aprova
mais moralmente essa ordem das coisas, tal como outrora. É neste momento que outros trechos
da Bíblia ganham maior relevância e outra análise se processa: Herodes é o juiz que encaminhou
Jesus Cristo para o veredicto jurídico de Pilatos, que teria lavado as mãos e deixado que o povo
decidisse a sorte de Jesus. Nesse sentido, o que Julio teria causado seria uma revolução da
mesma maneira: o julgamento das coisas passaria da decisão do mais forte (o juiz Herodes)
para o povo, o que dá um novo significado para o texto bíblico, pois Pilatos deixa de ser um
criminoso (ou no mínimo condescendente) para se tornar um “distribuidor” de poder político.
Um último trecho de relevância é o seguinte: “É que toquei no ponto vulneravel.
Conheço os teus amores, teu papel de serpente seductora colleando-se entre o embuste e a
apparencia de saber, para empolgar a victima almejada” (FÓSCOLO, 2009, p.37). Nesse caso,
é evidente a referência à serpente do Jardim do Éden. Laura seria a serpente que está tentando
subverter esse paraíso originário, que é a antiga ordem.
A última qualidade de dados nessa categoria é a de expressões de cunho religioso sendo
apropriados pelos personagens nos mais diversos contextos. Um desses pontos é a utilização da
palavra “ascenção”:

O que vem de dizer é torpe, é infame e somente um cerebro imbuido de erros, que tem
tornado a humanidade infeliz, poderia conceber um plano ambicioso em creaturas que
não se vendem, almejando apenas o direito á vida para os esbulhados por vós. Mas as
suas palavras não me farão recuar na ascenção libertaria, porque me sinto forte para
despresal-as como despreso esse ouro esbulhado ao misero proletário. (Sahe)
(FÓSCOLO, 2009, p.37)

O cérebro antigo, repleto de erros “epistemológicos”, se mostrou facilmente


reproduzível por não encontrar nenhum tipo de oposição discursiva – apesar de produzir a
infelicidade, que no caso é a desigualdade. Não é de graça a utilização da palavra “ascenção”,
pois que ela é mobilizada na gramática católica como maneira de explicar o modo como Jesus
retornou ao Céu após a sua ressuscitação. Nesse caso, a ressignificação está patente: o processo

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só é possível no mundo natural. Vimos a derivação da crença em Deus repercutindo nas relações
sociais e poderemos, então, investigar a seguir a religião em si.
Certamente, religião não pode ser associada diretamente com teísmo, posto que há
religiões que não possuem divindades. No entanto, da mesma maneira que é possível cruzar os
dados da história do anarquismo com a biografia de Avelino, é possível cruzar a história da
religião no Brasil com o contexto do enredo: por volta de 1921, data de lançamento da peça, o
Brasil já era um país laico, porém a hegemonia católica em território nacional era bem
pronunciada, e só foi ameaçada posteriormente com a expansão pentecostal na década de 1960
(Cf. MARIANO, 2003). Nesse caso, religião seria sinônimo de catolicismo, assim como Igreja
seria equivalente à igreja de tipo católica. Dessa maneira, a religião é apresentada estritamente
como a católica ao longo da obra.
Foram alocados neste espaço expressões de tipo religioso, que mostram a crença como
sendo um frame analítico para o seu respectivo fiel ou como esses valores se tornaram correntes
e culturais. O primeiro caso é o do pai de Laura:

ROBERTO - Queira Deus que não desepere o Coronel, levando-o a commeter


violencias.
JULIO - Meu pai, bem que autoritario, é intelligente, e bom e comprehenderia o meu
sonho de equidade; si não aplaudisse todas as reformas, fecharia os olhos vendo que
eu não me havia illudido; mas como sombra implacavel tem aquela alma excecranda
de meu tio, com um conservatismo ferrenho, anathematisando o progresso, querendo
obrigar a humanidade a permanecer estacionaria, como se na natureza tudo não
evoluisse para a perfeição. [...]
JULIO - Porque visam do matrimonio a concentracao das fortunas e dos previlegios,
sem curarem da perfeição da especie [...] A mola real da sociedade moderna é o
dinheiro, como si elle fosse capaz de constituir felicidade. É o castello que meu pai
fantasiou para mim com uma alliança rica, mas que desprezo por um ideal mais
elevado. (FÓSCOLO, 2009, p.43)

Aqui, “alma” aparece nos dois sentidos. Para Roberto, Deus aparece como disparador
da ação. Já para Julio, o conceito de alma equivale à psicologia do indivíduo, num sentido
aquiniano de alma intelectiva, e a mentalidade do seu pai impede o progresso, pois foca-se na
questão financeira: nisso o matrimônio, ao invés de autêntico, se torna uma união que serve
para manter a real mola da sociedade moderna.
Isso porque algo mudou, segundo o próprio Coronel: “Meu filho! (pausa). Ah! como
estás mudado! tens algo de novo e desconhecido no semblante... uma virilidade distanciando-
te bem do jovem que dáqui partio há alguns annos” (FÓSCOLO, 2009, p.6). Após a sua

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descoberta do anarquismo em solo europeu, Julio superou uma espécie de “infância” da


religião. E alguns indivíduos seguem nessa infância mental, segundo Julio, como os parasitas:

JULIO - Um parasita que se enriqueceo especulando com a miseria e a toleima dos


pobres.
CORONEL - Hoje, porém, é um capitalista e tem as im triplicado a sua fortuna.
JULIO - Um explorador de peor especie ainda, porque vive das desgraças alheias. [...]
JULIO - A auctoridade paterna tem como unico alicerce o amor, a violencia lhe
derrota a base jogando-a por terra.
CORONEL - Retira-te da minha presença! Saberei defender um nome que queres
envolver numa aventura ridicula e insensata.
JULIO - Cada qual age segundo a sua consciência: tracei um roteiro na vida e hei de
seguil-o ainda que seja o unico: ser livre em terras de escravos. (Sahe) (FÓSCOLO,
2009, p.26)

Para Julio, a autoridade deveria se manter pelo amor, e não pela imposição, que foi a
tentativa do Coronel no diálogo. Neste ponto, a peça pretende criar a atmosfera de que a
ignorância do povo é o que permite que haja a imposição, e a viagem de Julio para a Europa
possibilita pensar que é a religião local que aceita que essa dominação se esconda com tanta
eficiência e se perpetue por inércia. É o caso de um diálogo de Laura com seu noivo arranjado,
Alfredo:

ALFREDO - O homem extraordinário que sacrificou fortuna, bem estar, tudo por um
principio de solidariedade humana! E... é correspondda nesse affecto?
LAURA - Sou; sei, sinto-o. Poderão tirar-me tudo, menos essa certeza - é o meu
galhardão na estrada do cacrificio.
ALFREDO - Pois bem, amo-a immensamente, deve sabel-o, deve ter lido no meu
semblante; mas acima da paixão está o sentimento de justiça, está a nobreza d'alma.
Para conquistar a maior somma de felicidade possivel, é mister ser-se forte, isto é: ter
energia para combater o mal, e semear o bem. Laura, está livre de qualquer
compromisso para commigo [...]
LAURA - Não vê que estou predestinada á fogueira ateada pela ganancia e um orgulho
idiota?
ALFREDO - Soffrerei por isto, mas lisonjear-me-á a lembrança de não haver
concorrido para o seu martyrio. É preciso encouraçar a alma! os primeiros semeadores
encontram o campo agro, cheio de cardos e ai delles se lhes fenece a coragem: tombam
arrastando outros na queda. [...]
LAURA - Tem razão! Quando um apostolo, como Julio, se despe das regalias que o
mundo lhe dá para trabalhar em prol do bem estar social, devemos seguil-o mesmo
antevendo o martyrio (FÓSCOLO, 2009, p.34)

Fica evidente a utilização de alguns vocabulários do léxico católico: fogueira,


inquisição, martírio, alma para criar a significação para as falas. Está se reproduzindo certa
interpretação sobre a perseguição da instituição Igreja à “verdade” que se apresenta com
inegável lógica, iludida pela hierarquia, um “orgulho idiota”. Assim, a religião é redirecionada:

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o seu conteúdo também precisa ser revolucionado, não apenas a sociedade. Isso fica evidente
em outra fala:

JULIO - [...] reconheci a necessidade, em vez da repressão brutal, que cria martyres e
faz fanaticos, de uma discussão desapaixonada, de uma educação preliminar e pratica,
preparando os espiritos para a realidade que virá após a miragem de hoje. Para tal fim
procurei destruir as barreiras de classe, de fortuna, indo ao encontro do proletario,
auxiliando-o no direito de conquista á existencia e ao goso (FÓSCOLO, 2009, p.41)

A religião, portanto, lida com a repressão brutal e, por isso, cria mártires e fanáticos, o
que prova a estratificação proposta pela narrativa religiosa. Neste ponto, é o saber simétrico que
permite que essa “miragem” se desfaça. Ou seja, a religião como se configura na peça é uma
maneira curta e direta de manter a dominação, pois não permite a existência do indivíduo,
apenas do domínio:

JULIO - Basta a ideia da justiça; façamos aos outros o que desejamos que nos façam;
executar somente trabalhos que se prendem á perfectibilidade das especies; nivelar
todos os homens na harmonia pela existencia, eliminando os monstros dos bordeis e
das tavernas, todas as parasytas, emfim, vivendo á custa do productor. É isto o que
chamam a má semente, que eu tento implantar: a igualdade no direito, a nobilitação
do trabalho, a morte do lenocinio, do roubo, da guerra, do parasytismo afinal
(FÓSCOLO, 2009, p.42).

Pode-se observar um apelo ao universalismo: a noção de justiça consegue regular as


relações como um todo, especialmente se elas forem simétricas. Assim, o parasita acaba
morrendo por inanição, pois não toma mais parte da produção. Considerando o argumento que
emerge da peça de modo mais amplo, essa solução aponta também às instituições políticas num
geral, pois não haveria a necessidade de normas formais diante desse princípio moral superior.
No entanto, essas instituições reagem, como no caso do militante Alfredo:

LIMA - Cá está o méco! Corda no bicho e tronco com elle rapaziada. Levem-o
amarrado como um porco, p'ra respeitar as cousas sagradas.
JULIO - Não sei a quem se refere, meu tio, nem o que entende por cousas sagradas.
Aqui estào os homens, mais humanos do que o senhor, respeitando a liberdade dos
outros, para que respeitem a deles (FÓSCOLO, 2009, p.43)

A expressão “cousas sagradas” obtém destaque no enunciado. Dentro do contexto da


peça, amarrar o humano como um porco seria reduzi-lo a um animal e, assim, punir sua
transgressão. No entanto, o sistema não se utiliza de suas próprias palavras, uma vez que apela
a princípios que fogem da humanidade, que a transcendem por serem “sagradas”. Assim, a

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religião é como se fosse o porta-voz da dominação, a sua gramática, como diria Boltanski.
Aplicando o princípio antes declarado, que poderia mesmo ser chamado de um imperativo
categórico kantiano, o humano estaria em busca da igualdade e, perante os olhos de Julio, o
parasita está querendo ser superior.
Um último ponto de relevância concentra-se nas outras religiões que não a católica. A
marca mais especifica aparece quando Julio explica a raison d'être do próprio título do livro:

[...] nestes campos a semear, com uma abnegação sublime, o gérmen do Saber, esses
primeiros rudimentos que são a estrada conduzindo à conquista de um paraíso
sonhado. E não é o óbolo azinhavrado com que te retribuem os mais favorecidos da
sorte o teu sustenetáculo nessa missão excelsa, mas sim a ânsia de desvendar um
futuro de paz (FÓSCOLO, 2009, p.13)

Segundo esse entendimento, o paraíso sonhado não se alcançaria pela dedicação


religiosa, mas sim pela organização comunista das relações sociais. A utilização da expressão
“óbolo”, que remete ao barqueiro Caronte, expressa que a aprovação social dos pobres não é o
suficiente, não se tratando, portanto, de “populismo”. E a comunidade alternativa se mostra
uma solução estrutural.
Vimos, portanto, que, no argumento tecido pela peça, o pensamento religioso é posto
em exame pelo pensamento libertário. No entanto, não compreender todo esse arcabouço de
saberes configura dois tipos de fiéis: o fiel oprimido e o fiel opressor. Tratemos, portanto, de
observar esses comportamentos.
Se já abordamos Deus, o líder religioso e a religião, podemos agora terminar o circuito

argumentativo com uma caracterização do fiel, que basicamente são os indivíduos com a

mentalidade antiga. Destes há os parasitas (Coronel e Lima) e os oprimidos (Roberto). É

possível verificar a construção desse fiel por meio da análise dos trechos abaixo, na sua

introjeção da superioridade.

O primeiro crente é o oprimido, que não reconhece que está sendo manipulado. O caso

mais explicitado é o de Roberto:

ROBERTO - Seu Coronel, os trabalhadores resolveram trazer o doutor numa


cadeirinha carregada por todos.
LIMA - Ideia supimpa, não ha duvida, e que me traz uma lembrança dos saudosos
tempos da escravidão... prova de humildade demonstrando os bons instinctos do povo
dos campos.

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ROBERTO - Desejamos, também, que o mestre-escola lhe dirija uma saudação em


nosso nome.
CORONEL - Approvo tudo do imo d'alma, pois sei ser essa demonstração filha da
sinceridade de vossos corações (FÓSCOLO, 2009, p.8)

Há, portanto, toda uma idolatria ao dono da terra. Julio, por seu turno, não aceita ser
conduzido na cadeira por seus empregados. O Coronel aprova o ato desejado pelos oprimidos,
pois enxerga essa hierarquia como adequada para as relações sociais, o que fica bem evidente
um sua fala: “Mas que vento de loucura passou aqui e transtornou todas as cabeças ao ponto de
se renegar hoje o que se almejava hontem? Elle não renunciaria a um anhelo íntimo se não
surdisse um poderoso obstaculo” (FÓSCOLO, 2009, p.37). Esse “vento” tornou as
mentalidades dos antigos fiéis completamente mudadas, o que se espelha diretamente no
desacordo com a antiga sociedade.
Em relação aos fiéis que são dominadores, podemos observar, junto a outras
anteriormente citadas, algumas falas como a de Lima: “[...]a ociosidade è mãe de todos os vícios
e bom será que vocês, emquanto esperam, vão se divertindo por ahi a descascar milho, a limpar
a ceva [...] porque hoje não é dia santo e vocês já pegaram o grude do compadre: quem deve
paga (FÓSCOLO, 2009, p.6). É claro que podemos observar uma série de outras manifestações
dessa religiosidade ao decorrer do texto, porém esse trecho parece concentrar o argumento
central a que Fóscolo pretende retratar, isto é, o dominador deseja que o dominado trabalhe para
ele initerruptamente e considera que sua riqueza é apenas sua – no caso, simbolizado nos
mantimentos do Coronel, que oferecia a festa.

CONSOLIDADO DOS DADOS: ATEÍSMO ANARQUISTA COMO APOSTA

A análise do texto, com base nos estudos da Sociologia da Moral e na observação de


elementos componentes do enunciado dos personagens, permite que se compreenda que a peça
se apropria do ateísmo anárquico e de seus postulados para arquitetar sua mensagem e a
movimentação de seus personagens. Ressaltamos que essa aproximação não se destina a esgotar
o assunto, mas a se apresentar como um primeiro passo no sentido de abordar os diferentes
tipos de religiosidades anarquistas. Em termos de investigação, seria possível a comparação de
outras obras do autor, romances e peças teatrais, de modo a verificar como o ateísmo anárquico
nelas se manifesta. Neste texto, porém, por ter se tratado de um primeiro esforço, o foco foi
em O semeador. Nas próximas linhas iremos delinear a representação social com base nos dados
levantados.

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Como núcleo central desta representação, temos que esse ateísmo é o que denominamos
como ateísmo de aposta, invertendo o argumento de Pascoal 6. Ele aponta para todas as
limitações do pensamento teísta em termos da criação da desigualdade e ensina que essas
afirmações serão comprovadas com o regime anárquico – na peça, Julio está demonstrando que
todas as crenças anteriores eram ideologias diante da felicidade que o seu sistema de
regeneração social pode causar. Ainda, há também elementos periféricos, que já foram
cotejados com os estudos de Lopes (Cf. 2013) sobre o ateísmo positivista e Lopes e Martinez
(Cf. 2019) sobre o ateísmo marxista e que serão brevemente retomados abaixo.
Primeiro, cabe relembrar a concepção de Deus. Para o anarquista Ele é um engano que
deve ser ignorado em prol da revolução, pois a revolução é o pré-requisito para se superar o
engano – e não há outro caminho possível que não esse único. Na peça, Deus aparece ou como
força de expressão corriqueira, ou como sentimento verdadeiro de pessoas ultrapassadas. Para
o positivista, a divindade católica é um engano que pode ser reaproveitado para a Religião da
Humanidade. Para o ateu marxista, é um engano que pode ser vilipendiado aos poucos, o que
resultará na quebra paulatina da ideologia.
Segundo, temos o combate ao teísmo com o contra-argumento. O ateu anarquista não
precisa derrubar a religião apenas por ela mesmo. Nesse caso, a superestrutura e a estrutura
estão completamente ligadas, logo atacar em conjunto é o suficiente também à religião. A
religião se impõe por ser um discurso único, e nisso reside a sua força de criar as desigualdades.
Em um contexto assim estabelecido, quando o discurso anarquista é apresentado, ele tente a se
demonstrar como persuasivo, levando seus interlocutores a automaticamente perceber a
desigualdade e a religião pede seu espaço. O discurso anarquista mostra, portanto, a falta de
lógica do sistema como um todo a partir de uma maiêutica socrática 7 em prol do anarquismo,
tópico já abordado por Lauris Junior (Cf. 2009). As perguntas lançadas partem da falta de lógica
no sofrimento do trabalhador. Personagens que não passaram pela maiêutica demonstram a
crença em Deus sendo autêntica; já os personagens que passaram pela maiêutica utilizam Deus
como metáfora. No entanto, a maiêutica não é o fim do processo, mas o começo, porque ainda
há uma comprovação material para a revolução.
Terceiro, retomemos a questão da intensidade. O ateísmo anarquista primeiramente
demonstra maieuticamente a fraqueza da religião; em seguida tira-lhe a base material, e daí se
completa a demonstração da sua fraqueza. O trabalhador precisa arriscar-se a entrar num novo
sistema, ter certa fé no sentido de que o sistema atual é a prova de que o sistema anarquista é

6
O Argumento da Aposta, de Blaise Pascoal, se caracteriza por convencer alguém a acreditar em Deus porque a
sua descrença pode levá-lo ao inferno se Deus de fato existir.
7
A maiêutica funciona pela conversa ser guiada por perguntas: Sócrates indagava o interlocutor e o convencia
da inconsistência de suas ideias por meio de seus questionamentos.

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melhor, o que caracteriza a aposta e exige um trabalho intensivo do anarquista. Em comparação,


o ateísmo marxista busca provar que o pensamento metafísico é uma ilusão em maneira
extensiva, procura demonstrar que a religião está errada desde a base para depois iniciar a
revolução.
Quarto, é necessário que se observe o foco na crença em si, partindo da definição
durkheimiana de religião como conjunto de crenças e práticas (Cf. DURKHEIM, 2003)
permite-se formular outra reflexão. Assim, o ateísmo anarquista concebe a religião apenas como
crença, desconsiderando a prática. Uma vez a crença deísta sendo descartada na maiêutica, a
prática perderia sentido automaticamente. Dessa maneira, os benefícios da vida libertária
estariam suplantando a alienação, o que resultaria numa negação da metafísica. Em
comparação, o ateísmo positivista é mais inercial, ele sabe que a religião se mostrará falsa em
algum momento histórico. Em comum está a crença na ciência, mas o ateísta anarquista deseja
que a ciência substitua tudo de uma vez. Já o marxista é tão paciencioso quanto o positivista,
mesmo que o resultado seja bem diferente, a Revolução.
Quinto, emerge a questão da definição de religião. A religião é formulada como
compósita com as relações de produção: ela faz parte da dominação junto com o Estado e o
Capital – então ela é mitologia por remeter à dominação, é seu vocabulário. Quanto ao modo
de invalidação da religião, o ateísmo anarquista precisa ser mais agressivo para causar a ruptura,
que precisa ser a curto prazo para que a Revolução comprove os seus argumentos; já o ateísmo
marxista, por ser mais estadista, pode se dar ao luxo de desconstruir a religião com mais calma,
mostrando por meio da arte sua condição de delírio.
Sexto, insurge a figura do líder religioso. O padre ou o vigário cumpre uma função
importante nas histórias na condição de líderes religiosas. Cumpre notar que o vigário, em O
semeador não atua na história, apenas é citado. Na peça marxista o padre cumpre papel
relevante, enquanto no positivismo a figura do padre é ultrapassada, porém não necessariamente
corrupta. A figura do padre, portanto, é essencial na medida em que ele é a corporificação da
fé. É ele quem acumula mais conhecimento das escrituras religiosas. Nesse sentido, ele é
imperdoável para o revolucionário e pode mostrar a verdadeira essência da religião: ou ele é
conivente (Padre Hipólito) ou ele aceita subornos (o vigário). Figurativamente, o padre é o
sinônimo da própria Bíblia e, assim sendo, se este personagem é corruptível, aos outros fiéis
não resta muita esperança de purificação.
Por último, destaca-se a noção de tempo. Não há ateísmo anarquista sem revolução e
não há revolução sem uma relação com o tempo. Através do material estudado, conclui-se que
a revolução anarquista deve ser realizada no presente, e por isso é tão buscada com um ímpeto
iconoclasta intensivo; já o marxista vislumbra a revolução no futuro, e por isso pode focar uma

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mídia inteira (a obra literária) em demonstrar a falibilidade da religião em si. Já o positivismo


também enxerga a transformação no futuro, porque a constata a evolução já no passado e a sua
função é ser uma catálise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo tratou de uma representação social de um ateísmo anarquista estudado por
meio da peça O semeador, do escritor naturalista Avelino Fóscolo. Sabe-se que o anarquismo
adotou uma estratégia de divulgação basicamente pedagógica e a peça cumpre com essa função
ao mostrar, pelo literário, o cotidiano do seu público alvo em ambiente rural. Essa peça é
relevante para o problema na medida em que, como apontado em nossa análise, se desenvolve
em uma argumentação bastante específica. Quanto ao autor, apesar de não se declarar
publicamente ateu, possui muitas evidências de seu pertencimento particular, o que o torna
singular a demais análises futuras tanto no campo social quanto no campo literário.
A conclusão mais geral do estudo é que o enredo trata de um ateísmo de aposta: a crença
em Deus e ideias acessórias servem para manter a desigualdade e pode ser combatida se houver
a aposta. O indivíduo se engaja na vida libertária antes de desacreditar a religião e ocorre a
supressão da base material. A partir disso, essa crença perde completamente o sentido enquanto
crenças e práticas. Essas crenças seriam destruídas pela lógica dos fatos e o fiel conseguiria
escapar da ilusão apenas pela educação libertária. Ou seja, a religião como um todo, precisaria
da revolução para ser destruída por completo, é o seu pré-requisito. Por isso, ela aparece na
forma de metáfora nas falas dos personagens anarquistas e é autenticamente vivida por quem
pertence à antiga ordem – pois ela reforça a desigualdade entre os homens.
Encerramos o texto com duas pequenas reflexões. Cumpre ressaltar que a discussão aqui
proposta, partindo da análise da religiosidade na peça teatral, permitiu alinhar, a final, teorias
como o anarquismo, o marxismo e o positivismo, ideias cujos representantes são muitas vezes
avessos entre si. A observação desses extratos por meio da literatura atinge dois grandes pontos
de relevância para discussões futuras. Em primeiro lugar, resgata um elemento da história
literária brasileira que se encontra periférico ao cânone e amplia a percepção histórico-social
de sua época, pois a investigação do que consideram senso comum dá uma pista de como
conduzem o seu ativismo.
Outra reflexão interessante é que a análise aqui exposta serve para a observação do
movimento anarquista atual. Isso porque, durante a peça, os lavradores aparecem como simples

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coadjuvantes, no máximo com a função de um coro de tragédia grega. No mais do enredo,


temos apenas Julio dialogando com as forças antagônicas da Revolução, buscando demovê-las
de suas posições políticas prévias. Isso nos faz pensar, do ponto de vista extratextual, isto é
social e histórico: Num cenário real, seria possível que todos os camponeses participantes do
projeto agissem da mesma maneira? Seria possível que, mesmo com uma maiêutica
individualizada, todos os indivíduos nutrissem o mesmo pensamento? Que dinâmicas interiores
poderíamos encontrar nesse grupo, se houvesse uma etnografia? Que tensões com hábitos
antigos subitamente surgiriam em prol de um projeto de regeneração social?

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