O Ofício Do Historiador

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez.

2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-8

O OFICIO DO HISTORIADOR:
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE PASSADO EM
SUAS DIMENSÕES SOCIAIS E HISTÓRICAS

João Paulo Pereira Coelho*


José Joaquim Pereira Melo**

RESUMO: O uso do passado como uma experiência legitimadora


de interesses e demandas do presente tem suscitado debates
por parte dos historiadores. Diante de tal questão, analisam-
se as diferentes formas de apropriação do passado pelos
homens, considerando-se os enfrentamentos sociais ocorridos
historicamente. Entende-se que essas lutas fazem com que
o passado seja objeto ora de negação, ora de reiteração no
presente. Tal antagonismo exprime a complexidade das relações
humanas, que são constituídas por meio da totalidade social
na qual o homem é formado. Cabe, portanto, ao historiador,
problematizar o entendimento que a sociedade faz a respeito do
passado e situá-lo para além das representações que os homens
fazem de si mesmos.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da História. Formação Humana.


Historiografia.

ABSTRACT: Use the past as a legitimizing experience of interests

* Professor de História da Educação e Políticas Educacionais do Curso de


Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná. Doutor em Educação:
História e Historiografia da Educação pela Universidade Estadual de Maringá.
Contatos: [email protected]; [email protected]
** Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa
de Pos-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.
Doutor em Educação pela UNESP. Contatos: [email protected]

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and actual demands has evoked debates by the historians. Faced


with this question, we analyze the different forms of past ownership
by men, regarding the social clashes occurred historically. It is
understood that these struggles make that the past be a denial
object and in other case a reiteration object in the present. Such
antagonism expresses the complexity of human relationships
that are made through the social totality in which the human
being is formed. So, it concerns to the historian to problematize
the understanding that society has about the past and to place
it beyond the representations that men make about themselves.

KEYWORDS: History Theory. Human Formation. Historiography.

Introdução

As reflexões sobre o sentido do passado para o ofício do


historiador implicam, inicialmente, uma abordagem do conceito
de tempo, o qual tem inquietado os historiadores indistintamente
de suas orientações teórico-metodológicas.
Analisando-se o conceito de tempo como uma representação
simbólica, e, portanto, distinta da expressão concreta da vida
humana e dos ciclos da natureza, observa-se que esse expediente
foi concebido tardiamente com o advento da indústria. O tempo
regulado pelo relógio e pelo calendário, aplicado de maneira
imperativa sobre a existência do homem, tinha como objetivo o
controle e a exploração do homem dentro e fora do espaço da
fábrica: “Assim, as máquinas do tempo (o relógio) abrem caminho
para a sociedade das máquinas” (ATTALI, 1985, p. 67).
À medida que o tempo se colocou como o referencial para
a mensuração da expropriação da força de trabalho, instaurou-
se um processo de transformações na forma de vida dos
trabalhadores. Estes foram submetidos a esse tempo relógio,
que sincroniza suas existências com as requisições temporais do
trabalho, suas vivências sociais com as obrigações decorrentes

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dessa nova forma reguladora do tempo para a execução do seu


ofício no espaço de produção (HOBSBAWM, 2004). Conforme
o relato de um marceneiro britânico, que expõe em um bilhete
a um amigo as novas relações de trabalho a que foi submetido,
em 1848: “o tempo não mais nos pertence, por isso amanhã não
poderei ir à sua casa, mas se você puder vir à praça da Bolsa,
entre duas e duas e meia, nós nos encontraremos como sombras
miseráveis nas bordas do inferno” (PIKE, 1974, p. 67).
As novas articulações entre tempo e trabalho devem ser
consideradas nas vivências sociais do historiador do presente.
Este deve ter consigo o entendimento de que o conhecimento ou
a análise da História têm como base sua própria época, de forma
que, ao dialogar com o passado, ele contemple os embates e as
contradições que são próprias do seu presente.
Em outros termos, a pesquisa acadêmica não se desenvolve
de forma alheia às práticas sociais cotidianas dos homens, uma
vez que sua intencionalidade está, em parte, intimamente ligada
ao exercício do historiador.
Guardadas as devidas proporções e considerando as
identificações estabelecidas entre o historiador e sua época,
entende-se que, para que se possa realizar uma reflexão a respeito
do sentido do passado – referencial inerente a esse ofício –, é
necessário ir ao encontro de sua historicidade. “O tempo, como
categoria central da História”, ao ser analisado, “não se apresenta,
porém, como uma unidade, uma síntese”, mas deve ser “entendido
em seus momentos constitutivos” (CASTANHO, 2010, p. 63),
como resultado e produto das relações humanas, das práticas
sociais promovidas pelos homens em seus enfrentamentos e
embates, em suas lutas. Ou seja, o homem fazendo sua história.
Todavia, buscar o entendimento da forma como a sociedade
se apropria do passado é um exercício fundamental para o oficio
do historiador. Assim, passado e memória são conceitos que:
“apesar de oscilantes, são noções fundamentais para o trabalho
histórico, porque operam exatamente no coração da mudança”
(CASTANHO, 2010, p. 64).
Neste âmbito, os subsídios da memória à legitimação do

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passado constituem-se uma discussão profícua. Por um lado, na


contemporaneidade caracterizada pelo tempo urbano e industrial,
o passado a ser conformado pela memória constituiu-se, por
vezes, como um instrumento para a legitimação da história dos
vencedores – pautada, por exemplo, por ideais nacionalistas e
de progresso. Por outro, a valorização da memória promovida por
grupos sociais minoritários, quando circunscrita à individualidade e
à subjetividade do sujeito, perde complexidade, desconectando-se
de experiências sociais em uma perspectiva cultural mais ampla.
Assim, não se pode desconsiderar que a definição de
passado é sempre instável, volátil e, em muitos casos, até mesmo
comprometida com interesses que se impõem pelo momento
histórico em que o historiador vive: legitimar a ordem posta,
em termos de produção e reprodução da vida, ou negar sua
excelência como referencial para a nova ordem social que se
pretende efetivar, visto que aquela já não atende às demandas
que se colocam para seu tempo.

O conceito de passado: considerações históricas e sociais

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que


vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas –
é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do
século XX. (HOBSBAWM, 2010, p. 13).

Faz parte do processo de construção da história humana a


compreensão de que o passado é expressão da vida dos homens
ao longo dos tempos. Esta consciência a respeito do tempo
passado pôde ser constituída com base nas vivências sociais,
em espaços compostos pelas experiências humanas de sujeitos
pertencentes a diferentes gerações.
A consciência do passado desenvolveu-se, portanto, por
meio de trocas sociais e culturais em períodos históricos em
que os mais velhos, como expressão maior das experiências
da vida comunitária em épocas pretéritas, constituíam-se como

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mediadores entre o passado e o presente. Assim, formavam as


novas gerações para terem consciência de que eram membros
de uma comunidade, cuja dimensão era coletiva e social (MARX,
1986).
A defesa da continuidade cultural e social que compõe a
história humana, nesse sentido, não significa uma negação
do processo de mudanças que a humanidade vivencia e, por
extensão, transforma. Faz parte da busca pela preservação da
existência o comprometimento do homem com a reiteração da
cultura transmitida ao longo dos tempos (HOBSBAWM, 2004).
Foi a partir dela que se estabeleceu um novo tempo, uma nova
ordem social.

Em suma, [...] é possível concluir que o novo só se estabelece


na luta contra as velhas formas de comportamento, na utilização
de materiais, suportes e subsídios do passado para justificar ou
sedimentar os comportamentos emergentes. Por outro lado, isso
permite também identificar as marcas que o passado deixa nos
homens de outras épocas e em que circunstâncias isso acontece.
(PEREIRA MELO, 2010, p. 27-28).

Assim, as heranças do passado são as bases para a


manutenção e a sobrevivência das gerações vindouras, ou seja,
para a perpetuação de todo um legado social cultural produzido
e acumulado por um povo.
O sujeito é, portanto, expressão dessa complexidade social,
uma vez que, ao mesmo tempo em que vai ao encontro das novas
demandas impostas pelo momento histórico vivido, vivencia –
particularmente em sua cultura – experiências individuais que
reiteram seus laços com o passado (HOBSBAWM, 2010) e
garantem sua vigência e perenidade em outras gerações. Assim:
“Esse ‘ir e vir’, presente-passado, exige um ‘exorcismo’ das
influências e dos ‘preconceitos’ da dinâmica social do presente.
Para se projetar em momentos históricos distanciados no tempo,
[...] é necessário encontrar um modo peculiar de entender a
realidade. (PEREIRA MELO, 2010, p.22-23).

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Isso é expressão do reconhecimento de que a consciência


de humanidade está revestida de singularidades, ainda que esse
valor seja constituído com base em toda a produção humana do
passado. O homem é um ser singular e, ao mesmo tempo, social
e histórico, inserido em uma totalidade sem fronteiras:

A memória individual constitui o fundamento da noção do eu,


daquilo a que chamamos identidade pessoal. Isso não significa que
seja isenta de aspectos da memória social do grupo ou da classe
social de que o indivíduo é originário. Pelo contrário; no indivíduo
subsistem os fundamentos de sua identidade pessoal com traços da
cultura em que ele foi formado, e em que continua sendo formado.
(CASTANHO, 2010, p. 57).

Diante dessa complexidade humana, o desafio que se


apresenta ao historiador de ofício é analisar o passado em sua
transformação e com base no movimento que esse próprio
passado apresenta (CASTANHO, 2009). Com isso, o retorno ao
passado implica tanto a busca pela conservação de suas heranças
culturais e sociais quanto a gênese de suas transformações.

A crença de que a “sociedade tradicional” seja estática e imutável


é um mito da ciência social vulgar. Não obstante, até um certo
ponto de mudança, ele pode permanecer tradicional: o molde do
passado continua a modelar o presente, ou assim se imagina.
(HOBSBAWM, 2004, p. 25).

A concepção de passado, portanto, não se reduz à ideia


de “conservação”, mas abrange a de que ele é um valor que
faz dos homens seres históricos, comprometidos com suas
heranças culturais e sociais, mesmo em contextos em que
já são identificadas rupturas em suas estruturas. É na busca
pelo entendimento dessa dinâmica que se pode compreender
o “coração da mudança” (CASTANHO, 2010, p. 64) que está
em curso, as circunstâncias nas quais a sociedade não tinha
precisado de maneira objetiva a si mesma e as transformações
que suas vivências já comportavam:

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Mas sempre terá interstícios, ou seja, matérias que não participam


do sistema da história consciente na qual os homens incorporam,
de um modo ou de outro, o que consideram importante sobre a
sociedade. A inovação pode ocorrer nesses interstícios, desde que
não afete automaticamente o sistema e, portanto, não se oponha
automaticamente: “não é desse jeito que as coisas sempre foram
feitas”. (HOBSBAWM, 2004, p. 23).

É necessário considerar que essas transformações sociais


em curso, quando atingem um maior amadurecimento, um ponto
culminante, são externadas pelos sujeitos de maneira consciente.
Este estado de mudanças é resultado da maior complexidade que
as relações sociais vão adquirindo, complexidade esta que acirra
as contradições contidas no interior da sociedade (MARX, 1990).
Característica dessas novas demandas sociais e econômicas
advindas desses processos de mudanças já efetivadas – as quais
se desdobram em embates entre as classes sociais emergentes
e as práticas sociais e políticas que garantiam a manutenção da
ordem posta pelos setores sociais até então hegemônicos – foi
a Revolução Francesa.
O legado histórico do medievo, como o renascimento
do comércio e o desenvolvimento das cidades, havia criado
necessidades que o Estado monárquico francês não conseguiu
suprir (SAINT-JUST, 1996). Para a burguesia que se desenvolve
nos tempos modernos, e que atingia um alto grau desenvolvimento
econômico, tornava-se insustentável manter seus negócios
subordinados aos interesses do Estado absolutista, alinhado aos
privilégios da nobreza e do clero. Portanto, as contradições entre
o Antigo Regime e as necessidades do homem burguês tornaram
a estrutura social francesa vulnerável.
Apesar de ocupar um posto privilegiado, a situação da
nobreza não era confortável. A manutenção de seus títulos de
nobreza exigia altos investimentos. Ainda, como não tinham
experiência administrativa, não possuíam grandes habilidades
para gerenciar suas fortunas (SAINT-JUST, 1996). Diante destes
problemas enfrentados, recorreriam aos privilégios oferecidos

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pelo Estado, na tentativa de manter seu status quo. Assim, os


cargos diplomáticos e administrativos que antes eram ocupados
pela burguesia – mais diligentes nas questões administrativas –
passaram a ser preenchidos pela nobreza.

Embora a burguesia não cessasse de crescer em número e em


riqueza, desde o início do século, era cada vez mais despojada das
grandes funções públicas. Ao passo que no século XVII a burguesia
havia fornecido ao Estado, ministros, como Colbert, a maioria dos
intendentes, vários magistrados aos parlamentos, oficiais à marinha
e ao exército, prelados a igreja, no século XVIII, todos esses postos
passaram a ser reservados a nobreza. (GODECHOT, 1976, p. 34).

A burguesia identificou na monarquia – com sua forma de


administrar para os privilegiados – valores que fomentavam os
entraves ao seu pleno desenvolvimento. Esta percepção a respeito
do Estado monárquico, ainda que em dimensões diferenciadas,
atingia tanto a burguesia como os trabalhadores. Neste sentido,
Michelet diria que “houve um acordo completo sem reserva, uma
situação simples, a nação de um lado, e o privilégio do outro”
(MICHELET, 1989, p. 95).
Desenvolveu-se um estado de enfrentamento que fez com
que os atores sociais promotores da mudança de então (a
burguesia) deixassem de orientar sua existência pelas práticas
sociais e culturais tidas como pretéritas (HOBSBAWM, 2010).
Estas, por seu turno, já que envelhecidas, não atendiam mais às
necessidades que se colocavam para os homens, o que levou a
burguesia à concepção de que o passado não era uma vivência
com articulações com o seu presente. Este antagonismo evidencia
que as transformações sociais se inserem em uma dinâmica de
demandas e preocupações, por vezes, contraditórias. Assim,
com “o estudo dessas relações, é possível observar que, em seu
bojo, emergem atores sociais que promovem a paulatina negação
do modelo envelhecido e, ao mesmo tempo, desencadeiam um
processo de elaboração do que seria o novo “(PEREIRA MELO,
2010, p. 27).

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Nesse novo espaço de enfrentamentos, as transformações


desencadeadas pela burguesia no âmbito econômico passaram
a compor a estrutura, no caso, da sociedade francesa. A partir
de então, as forças sociais emergentes começaram a se
sobressair no último espaço de resistência da ordem social em
declínio: a política. Neste âmbito, as conquistas da burguesia
desencadearam, por fim, a defesa de uma ruptura sistemática
com os valores políticos que representavam esse passado a ser
superado.
Vale lembrar que os tempos que antecederam a Revolução
Francesa compuseram a gênese dos princípios de troca
capitalistas, os quais foram se efetivando ao longo da história
humana até se tornarem suficientemente organizados para
subsidiar um enfrentamento polarizado entre burguesia,
representante de uma “nova ordem social”, a aristocracia e o alto
clero, que capitaneavam a “velha ordem social” (MARX; ENGELS,
1990). Contudo, a revolução colaborou para que as experiências
constituídas em épocas anteriores deixassem de compor a base
na qual o homem burguês fundamentaria seu devir histórico.

Vimos, portanto, que os meios de produção e de troca, nos quais a


burguesia erigiu-se, foram geradas na sociedade feudal. Em um certo
estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de troca,
as condições sob as quais a sociedade feudal produziu e trocou,
a organização feudal da agricultura e da indústria manufatureira,
resumindo, as relações de propriedade feudais, tornaram-se não mais
compatíveis com as forças produtivas já desenvolvidas. Tornaram-se
grilhões. (MARX; ENGELS, 1990, p. 18).

O entendimento de que o passado expressa diferenciações de


sentido relacionadas a rupturas com as questões econômicas não
significa inseri-lo em uma dinâmica de progresso (CASTANHO,
2009). A sociedade de cada época, em um dado momento, passa
a comportar um grau de amadurecimento e são seus embates
econômicos que oferecem ao historiador a possibilidade de
compreender tal processo de forma mais objetiva.

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Diante de transformações estruturais, é, portanto, infrutífera


qualquer tentativa de restabelecer o passado tal qual ele ocorreu,
ainda que seja recorrente, particularmente entre as classes sociais
em declínio, o clamor pela restauração de valores de uma ordem
pretérita jurídica e social.
No seio de uma nova ordem estabelecida, reiteram-se vozes
dissonantes revestidas de saudosismo de um tempo agonizante
ou já liquidado, muitas vezes romantizado, tendo em vista que
“a hegemonia de uma forma (mudança histórica) não exclui a
persistência, em diferentes meios e circunstâncias, de outras
formas de sentido do passado” (HOBSBAWM, 2004, p. 35).
Constitui-se, desta maneira, a concepção de que o passado
detém uma lição, arquivada no tempo e que não pode ser
esquecida, à qual se recorreria no momento em que se fizesse
necessária. A sociedade, ao não estabelecer este passado como
uma diretriz para o presente, retiraria a autoridade da história para
continuar operando em favor da “manutenção da ordem”.
Observa-se que o sentido do passado, defendido no seio das
classes que buscam sua conservação, apresenta-se revestido
de valores que pretensamente seriam essenciais à vida coletiva,
quando, de fato, essas classes, em primeira instância, lutam pela
manutenção de seu poder:

O passado é um elemento essencial, talvez o essencial nessas


ideologias. Se não há um passado satisfatório, sempre é possível
inventá-lo [...]. O passado legitima. O passado fornece um pano
de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que
comemorar. (HOBSBAWM, 2004, p. 17).

Como expressão de uma verdade essencial, o passado


é tido como detentor de uma grandiosidade ideal, sem
contradições, pois a contrariedade está em concordância com o
presente – esse sim, marcado pelas incertezas, inseguranças e
medos que caracterizam a nova ordem social, em processo de
estabelecimento ou até mesmo já estabelecida.
Diante da impossibilidade da recriação de relações sociais

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e culturais que o passado comportou, observam-se, conforme já


referido, tentativas de reescrevê-lo, sempre tendo em vista buscar,
intencionalmente ou não, um referencial de excelência para
cumprir as necessidades sociais do presente. Essas tentativas
de reafirmar momentos do passado ocorrem especialmente
quando sua pretensa grandiosidade começa a se dissipar ou já
não apresenta caráter homogêneo.
Por vezes, o processo de ressignificação da história se
desenvolve com base na defesa de princípios nacionalistas, como
ocorreu, a exemplo, nos movimentos nacionalistas do século
XX, em particular na Alemanha. A composição da identidade
alemã, que passou por um período de amadurecimento ao longo
do século XIX, foi resultado, em grande medida, de seu vigor
econômico, político e cultural. Contudo, a Primeira Grande Guerra
(1914-1918) anunciou para a Alemanha um período de derrotas
que acabariam por abalar a autoconfiança que, construída ao
longo do passado (HOBSBAWM, 2010), dera ao povo alemão
a ideia de grandeza e superioridade diante dos demais povos.
Em 1918, com o fim da guerra, diante da derrota sofrida, a
prosperidade sem fronteiras culturais e políticas parecia sucumbir
e isso desconstruiu uma identidade cultural tecida historicamente
pela nação alemã ao longo do tempo. Acrescentam-se as
significativas perdas territoriais e a fragilização de uma identidade
nacional fundada em conquistas que fizeram dos alemães um
povo reconhecido e temido por seus feitos expansionistas.
O triunfo de Hitler, a partir de 1933, não teria tomado
contornos de um movimento mais amplo se o nacionalismo não
tivesse se constituído como um elemento basilar dos pretensos
princípios renovadores do estado alemão. Da mesma forma,
o exercício de “reescrever” a própria história alemã não se
sustentaria internacionalmente se o nacionalismo não fosse ao
encontro dos anseios de líderes de países europeus, que viam
no protagonismo internacional do nascente nazismo um caminho
para também trilharem (HOBSBAWM, 2010).
Sem essa busca comum por reinstituir no ocidente um
protagonismo histórico a partir de “revanches” de caráter

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nacionalista, não seria razoável que líderes conservadores não


fascistas achassem que serem identificados como ligados à
Alemanha “pela mesma ideologia” – como afirmou Salazar, em
Portugal, em 1940 – fosse de fato algo agregador.
Assim, o estado nazista foi buscar na Idade Média uma
narrativa que legitimasse o III Reich, vigente entre 1933 a 1945,
bem como o império constituído por nações conquistadas. Esse
exercício tinha por fim passar à população alemã que o seu governo
representava a continuidade do Sacro Império Romano Germânico,
o I Reich. Dessa forma, punha-se em tela a superioridade e a
nobreza dos alemães frente aos povos europeus. Ao elaborar essa
narrativa, Hitler objetivava dar vigor à identidade e ao nacionalismo
da população e, assim, dar credibilidade ao III Reich,1 ao apresentá-
lo como o governo que estava recuperando um passado glorioso,
marcado por conquistas, que havia feito da nação alemã superior
e temida.

Mas que relação mantém então o presente, e, sobretudo, a moderna


cultura alemã, com o antigo mundo helênico? Após Winckelmann,
Lessing e o Homero de Voss, formou-se a ideia de que entre o espírito
helênico e o espírito alemão existia um “sagrado vínculo nupcial”,
uma relação e uma compreensão toda especial, como nenhum outro
povo europeu do ocidente moderno. (BURCKHARDT, 2010, p. 176).

Considerando esse processo de “recuperação” dos eventos


históricos, é de particular significado que, durante a Segunda
Grande Guerra (1939-1945), Hitler tivesse exigido que a França
assinasse sua carta de capitulação no reconhecido vagão de
trem em que a Alemanha havia assinado sua rendição em 1918
(HOBSBAWM, 2010). Ainda que esse fato possa ser concebido,
simbolicamente, como uma marca da retomada do sentimento de
orgulho nacional alemão, ele expressa também uma tentativa de
(re)instituir um passado glorioso para os alemães à altura de sua
tradição “helênica”.

1
Importa considera que a unificação alemã, em 1870, marca o surgimento do
II Reich, que se estendeu até o final da primeira guerra mundial.

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O que se evidencia nesses eventos, muito mais do que


qualquer sucesso na recriação do passado, é uma sobreposição
de eventos históricos, considerados capazes de atender à
necessidade de regeneração do orgulho nacional perdido. Um
novo fato, carregado de representações emocionais, é utilizado
para ressignificar, à luz do presente, um momento histórico do
passado que, todavia, não pode ser apagado nem refeito, pois
qualquer tentativa de restaurar a História só pode ser concebida
como farsa (MARX, 1997).
Cabe, então, considerar que a história como expressão
das transformações sociais, como resultado de um processo de
lutas, não se submente passivamente a manipulações, contudo
estão sujeitas a serem “manejadas” ao encontro de um ideário
em ascensão em determinados momentos históricos. A história,
neste contexto, pode ser esvaziada de complexidade, perdendo,
assim, vivacidade; uma vez que a pertença do sujeito aos “novos
tempos”, a saber, o tempo em prol da ressignificação do sentido
de cidadania e estado, passa a ser circunscrita ao que deve ser
reiterado ou suplantado de seu passado.

O retorno ao passado em suas diferentes finalidades

As tentativas de se fazer uso do passado para legitimar


valores sociais do presente são recorrentes, já que aparecem
em diferentes épocas históricas. Por mais que seus objetivos,
a princípio, pareçam paradoxais, elas transitam entre suplantar
o passado e se apropriar de suas tradições para atender às
demandas do presente.

Os novos burgueses buscam pedigrees, as novas nações ou


movimentos anexam a sua história exemplos de grandeza passadas
na razão direta do que sentem estar faltando dessas coisas em
seu passado real – quer esse sentimento seja ou não justificado. A
pergunta mais interessante relativa a tais exercícios genealógicos é
se ou quando tonam-se dispensáveis. (HOBSBAWM, 2004, p. 23).

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Ainda que esse retorno tenha como motivação as articulações


existentes entre passado e presente, desconsidera-se, nesse
percurso, a historicidade dessas tradições (CASTANHO, 2010)
– mais do que sua história, busca-se uma identidade:

O que os marxistas modernos ganharam ou ganham com o


conhecimento de que havia rebeliões de escravos na Roma Antiga –
que, mesmo supondo-se que tivessem metas comunistas, estavam,
segundo a própria análise desses marxistas, fadadas ao fracasso ou
a produzir resultados que trariam escasso suporte às aspirações dos
comunistas modernos? É evidente que a sensação de pertencer a
uma tradição antiquíssima de rebelião fornece satisfação emocional.
(HOBSBAWM, 2004, p. 33).

A configuração da identidade de um grupo deriva da formação


de sua autoconsciência, da capacidade de seus integrantes
expressarem um conjunto de características tidas como próprias,
particulares, e, da mesma forma, de se sentirem pertencentes a
uma esfera social e histórica mais ampla. Nessa esfera, a tradição,
cujos valores são compostos pela memória coletiva, é convocada
a dar coesão ao tecido social que compõe a identidade dos
homens, principalmente nos momentos em que suas convicções
sobre os laços de pertencimento a determinada classe ou grupo
parecem incertas (HOBSBAWM, 2010).
Em um momento em que a constituição da identidade se
encontra em um estágio inicial, ou frágil, a tradição, por estar
essencialmente articulada à experiência e à sabedoria moral, é
utilizada para reforçar os laços de pertencimento dos homens a
um determinado grupo (CASTANHO, 2010).
Da mesma forma, a evocação das tradições por parte de
muitas nações não se caracteriza simplesmente pela busca do
passado, pela tentativa de apresentar as origens de seu povo.
O passado, ao se constituir como uma memória comum, é
particularmente fecundo quando expressa uma descendência
genealógica tida como nobre, que seja revestida de uma pretensa
pureza, linearidade e coesão, o que, se considerado da perspectiva
da lógica dos enfrentamentos sociais, não se sustentaria.

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Aquilo que se chama de identidade nacional – ou, de modo genérico,


identidade social – assenta na memória de um passado comum,
ou pelo menos tido como comum. Por certo, o que é considerado
comum, localizável ou não – e nesse último caso temos o mito
fundador. (CASTANHO, 2010, p. 59).

Se, por um lado, considera-se que o passado conformado


pelas tradições é buscado como um padrão para o presente,
por outro, é necessário refletir sobre o caminho inverso: quando
o presente se estabelece como um padrão “coercivo” para o
entendimento do passado.
A busca por consolidar mudanças na sociedade faz com que,
por vezes, as classes sociais emergentes defendam o presente
como a expressão de toda mudança, porque o que se busca é o
afastamento sistemático do passado. Esses homens passam a
projetar no presente a transformação que as épocas anteriores
não teriam sido capazes de gerir e aplicar em sua realidade:

O problema de se rejeitar sistematicamente o passado apenas


surge quando a inovação é identificada tanto como inevitável quanto
como socialmente desejável: quando isso representa o “progresso”.
Isso levanta duas questões distintas: como a inovação em si é
identificada e legitimada, e como a situação que dela deriva será
explicada. (HOBSBAWM, 2004, p. 29).

Ainda que a ideia de progresso seja um valor que a sociedade


tende a adotar de forma muitas vezes desordenada, é necessário
considerar que esse conceito é primeiramente relacionado ao
âmbito das inovações tecnológicas que podem repercutir em uma
melhoria na vida prática das pessoas. Nesse sentido, a ideia de
mudança pode ser difundida no meio social primeiramente como
uma facilitação na vida prática e funcional das pessoas.
Essa concepção de progresso fortalece o discurso de que
toda mudança é sinônimo do tempo presente, o que, muitas vezes,
simplifica as imbricações entre passado e presente, reduzindo-as
a uma relação dicotômica: atraso/inovação (HOBSBAWM, 2004).

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Contudo, quando se busca analisar o sentido de mudança


e transformação para além das questões que envolvem o uso
da tecnologia, a exemplo dos valores culturais e sociais, tal
simplificação (atraso/inovação) não se sustenta. Os valores
culturais de sociedades anteriores passam a ser incorporados
em meio aos embates que ocorrem no espaço social, na “arena
na qual se digladiam interesses opostos gerados na contínua luta
pela vida” (CASTANHO, 2010, p. 55).
Nesse âmbito, os conflitos sociais tornam-se mais intricados,
pois estão em jogo forças antagônicas. Esse embate pode
se estender por períodos indeterminados, pois a legitimação
das transformações na cultura e na sociedade é resultante de
enfrentamentos que amadureceram historicamente (MARX, 1990).
Diante de tais manifestações, o discurso em favor do progresso
que reveste o presente fica fragilizado e, em muitos dos casos,
esvaziado de conteúdos. Quando se tratam de transformações
sociais e culturais, para além de uma acomodação prática, exige-
se um posicionamento mais contundente diante de mudanças
tecnológicas, pois o que está em debate são transformações na
própria subjetividade, naquilo que historicamente faz do homem
um ser consciente de sua humanidade.

Temos conhecimento de resistência violenta a qualquer mudança


nos textos sagrados antigos, mas parece não ter havido nenhuma
resistência equivalente, digamos, ao barateamento de imagens e
ícones sagrados por meio de processos tecnológicos modernos,
tais como impressões tipográficas e oleográficas. (HOBSBAWM,
2004, p. 30).

Diante da impossibilidade de as mudanças tecnológicas


serem agentes de ruptura entre passado e presente, volta-se
então para uma defesa do presente como expressão de uma
“justa medida” que orientaria a crítica ao passado. Na defesa do
tempo presente, desconsideram-se as bases nas quais se funda
o historiador em sua análise, quais sejam as da historicidade
do objeto estudado (CASTANHO, 2010), desconsidera-se a

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passagem do tempo como um processo que interfere na forma


de a sociedade se organizar, que transforma suas estruturas.
Ignorando-se os diferentes estágios de negociação que
caracterizam cada época em relação às suas heranças culturais,
desmembra-se a relação entre o acontecimento e o momento
histórico e considera-se cabível um julgamento moral a respeito
desse tempo pretérito:

O declínio da historicidade, ou da consciência da diacronia, leva


à centralidade do sincrônico, que, para Ragazzini, é o imediato, o
evento. E aí se coloca um problema epistemológico rigorosamente
sem solução: como estudar o acontecimento fora de suas relações
com outros eventos, como estudar uma posição ou estado de um
fenômeno fora de sua processualidade, de suas determinações?
(CASTANHO, 2010, p. 58).

Isolando o passado das dinâmicas sociais, políticas e


econômicas, faz-se dele uma análise sentenciosa (CASTANHO,
2009), delibera-se eticamente sobre a maneira de visitá-lo. Em
última instância, esse julgamento sentencioso pode dar origem
a regulamentações que tiram da sociedade o direto de ter
acesso a determinada memória do seu passado, especialmente
quando este está revestido de um pretenso “preconceito” ou
“desumanidade”.
Observa-se que, em sociedades com acirrados enfretamentos
sociais, as memórias a respeito do passado são objeto de disputa,
já que devem ser conformadas aos interesses do presente.
Desse modo, o exercício da memória, tendo em vista a
interdependência entre o individuo e a coletividade, traduz-se
como uma experiência particular, que é própria do ser humano.
Neste caso, entende-se que a memória, historicamente
constituída, foi condição fundamental para a humanização do
homem, não se reduzindo, portanto, à tarefa de se amoldar aos
interesses do presente.

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Passado e memória

Ao longo da história humana, a utilização da memória


colaborou em grande medida para a manutenção da sociedade
ocidental: foi um recurso fundamental para as trocas culturais
em tempos anteriores ao do pleno desenvolvimento da escrita. A
memória, portanto, constitui-se como uma prática indispensável
para a preservação da cultura.
Historicamente, o valor essencial da memória foi a sua
colaboração com a organização dos afazeres cotidianos,
provenientes da necessidade de manutenção da própria vida;
mediando a ação do sujeito sobre a realidade que o circunda.
Ela situa-se no campo das:

[...] necessidades mais autênticas da humanidade. Seja estreito ou


amplo o círculo que abarcam, elas jamais deixam o homem; Não
há comunidade humana possível sem memória; toda comunidade
tem, em seu devir e em sua história, uma imagem de seu ser – um
bem comum de todos os que nela participaram, e que só torna sua
comunhão mais sólida e íntima. (DROYSEN, 2010, p. 37).

Tal dimensão prática e coletiva da memória – insuperável


à condição humana – fez dela um recurso de excelência. Seu
uso para o entendimento do ritmo da natureza e dos diferentes
compassos que a ação humana pode tomar, historicamente, foi
uma formação necessária a todo sujeito (CASTANHO, 2010).
Acrescenta-se, assim, a complexidade conceitual que permeia
a memória, que perpassa a história humana de forma distinta
não só no âmbito da época a qual determinado sujeito pertence,
mas dos valores da cultura ou mesmo do espaço geográfico
em que está inserido – o que contribui para a permanência ou
para a ruptura com determinadas concepções de temporalidade
comportadas pela memória.
A exemplo, a importância da memória já era reconhecida
pelos gregos, que transformaram esse atributo em uma divindade
– Mnemosine –, a ela recorrendo diante da falha de suas

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lembranças a respeito dos feitos de seus grandes heróis.


Dessa maneira:

É compreensível que povos extremamente bem dotados embelezem


suas recordações em sagas convertidas e tipos transmissores de
ideias para os quais se direciona o espírito do povo. É também
compreensível que sua crença se lhes transpareça e justifique
na forma de histórias sagradas nas quais o objetivo da crença é
apresentado como conteúdo real, e, assim, que o mito e a saga se
desenvolvam conjuntamente. (DROYSEN, 2010, p. 37).

É necessário considerar, portanto, que a memória foi


um recurso de preservação do passado épico grego, cujas
narrativas sobre deuses e heróis foram se constituindo como
uma memória coletiva, uma vez que passaram a ser socializadas
e “embelezadas” por diferentes gerações. À memória coletiva
Homero (VIII a. C.) recorreu para compilar em suas “Ilíada” e
“Odisseia” os valores heroicos do homem grego (MOSSÉ, 1994),
tendo em conta dignificar as virtudes cardeais do cidadão grego.2
Muitas vezes, observa-se a concepção de que a memória,
por também estar situada no âmbito da subjetividade humana,
seria de tal maneira fragmentada e parcial que se constitui como
um “retalho” e não como um “fio” que compõe o complexo “tecido”
social. As reflexões a respeito das delimitações objetivas e
subjetivas da memória devem ser orientadas com base em suas
dimensões culturais sem, contudo, reduzi-la a polarizações.
Ao se problematizar o passado a partir da memória, é

2
Não se quer com tal exemplificação entrar em discussão sobre os limites
do uso da literatura para a escrita da História, tão pouco se pretende
situar Homero como historiador de seu tempo – mesmo porque essa é
uma discussão direcionada pelos padrões metodológicos da historiografia
contemporânea. O que se pretendeu apontar é que, com o processo de
aperfeiçoamento do uso da memória ao longo dos tempos, ela pôde se
constituir como um campo em que se sustentam lembranças do passado de
maneira “mais objetiva e confiável do que se poderia supor” (CASTANHO,
2010).

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necessário considerar que a mesma é seletiva e que, assim, pode


expressar anacronismos quando aplicada a uma determinada
realidade. É necessário considerar também as relações de poder
com base nas quais a memória se constitui, o que traz implicações
para o exercício de rememorar o passado, uma vez que isso pode
se constituir unicamente como um exercício romântico alheio à
realidade (CASTANHO, 2010).
Estas questões de ordem conceitual e teórica também se
apresentam no caso da escrita da História, pois, assim como se
pode diferenciar História e memória, podem-se identificar certas
aproximações: ambas partem de uma seleção.

Os fatos históricos não se constituem como tais de maneira cândida


como o positivismo quer inculcar. Ao revés, eles tornam-se “fatos
históricos” referendados pela memória cultural na medida em que
são conformados pela construção conflitiva da existência social,
essa arena na qual se digladiam interesses opostos gerados na
continua luta pela vida. (CASTANHO, 2010, p. 55).

A memória é requisitada não apenas por aqueles que narram


o passado sem um comprometimento teórico metodológico. Em
sua análise a respeito da realidade, o historiador também parte
de um conhecimento que, em última instância, estabelece diálogo
com a memória:

E na medida em que compilam e constituem a memória coletiva do


passado, as pessoas na sociedade contemporânea têm de confiar
neles (historiadores). O problema não é se elas confiam. É o que
exatamente esperam obter do passado, e, nesse caso, se é isso
que os historiadores deveriam lhes dar. (HOBSBAWM, 2004, p. 37).

É necessário considerar, portanto, que a escrita da História


passou por transformações de cunho teórico metodológico que
tornam possível problematizar tais questões que se apresentam ao
historiador. Este pode refletir para além dos valores que a memória
expressa por si mesma, superando suas intencionalidades

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explícitas com base na confrontação com as demandas sociais


e políticas que sustentam essa lembrança. Isso não implica
desconsiderar os subsídios históricos com base nos quais essa
memória pode se constituir:

Da mesma forma que não se pode julgar um indivíduo pela idéia que
ele faz de si mesmo, não se poderia julgar uma época de transtornos
pela consciência que ela tem em si mesma; é necessário, ao
contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida
material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais
e as relações de produção. (MARX, 1977, p. 168).

Considerando o exposto, entende-se que a memória é uma


representação não científica do passado, o que não significa negar
que, por meio dela, o homem desse tempo tenha transmitido
para as gerações vindouras suas representações do mundo.
Desse modo, a memória não pode se entendida como se fosse
constituída pela simples individualidade, já que expressa os
valores sociais e culturais vivenciados pelo sujeito e com base
nos quais (CASTANHO, 2010) se faz homem.
Por ser coletiva e social, a memória também é uma vivência
do historiador, embora como estudioso. Nesse caso, seu papel
não é compatível com o livre exercício da memória praticado
por qualquer outro cidadão (HOBSBAWM, 2004), dados o seu
compromisso social e o comprometimento ao máximo com
a verdade histórica, mesmo quando se põe em dúvida sua
imparcialidade. O historiador deve se revestir da consciência de
que o fazer histórico se constrói pela constante vigilância teórica:
tais memórias podem estabelecer identificações com o estudioso,
que, por isso, é levado a se comprometer de tal forma com elas
que deixa de ser imparcial, acabando por assumir o discurso de
sua fonte.
A memória coletiva ou individual pode, por fim, constituir-se
como uma referência por meio da qual o historiador problematiza
determinada realidade social e histórica. No entanto, ele deve
compreender a tensão existente entre a afirmação da memória

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como um monumento à verdade e a desconstrução dessas


verdades por meio de sua análise, já que são as condições
concretas que dão subsídios a essas representações.

Considerações finais

O homem, com base na vida coletiva, adquire a consciência de


que sua origem faz parte de um processo que não se desenvolve
de maneira harmoniosa. Tem-se em vista que o sujeito faz parte de
um contexto de constantes enfrentamentos sociais, participando
de embates que transitam desde a sistemática negação de seu
passado até as negociações com suas tradições, que teimam em
ser perenes e efetivas. Dessa maneira, a forma como o passado
é concebido no seio da sociedade é constantemente afetada
pelo presente. Uma vez que, em cada época histórica, o homem
encontra novas exigências para a manutenção de sua existência
social e política, ele opera transformações nas formas de se inserir
no continuum da existência humana.
Essa dinâmica expressa a complexidade das relações
humanas e se constitui como um processo legítimo, embora
possam ocorrer tentativas de se “reconstruir” o passado em
momentos em que os enfrentamentos sociais se tornam mais
acirrados.
Resta, por fim, um alerta ao historiador: ao se voltar para o
estudo de períodos históricos marcados por profundos embates,
ele pode assumir as polaridades expressas pelos sujeitos em
questão: conservação/transformação. Por isso, primeiramente,
ele precisa compreender tais discursos com base em suas
condicionantes sociais e históricas.

Referências

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Recebido em agosto de 2016.


Aprovado em junho de 2017.

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