CANÇÃO E IDENTIDADE Sandro José Celeste - Dissertação
CANÇÃO E IDENTIDADE Sandro José Celeste - Dissertação
CANÇÃO E IDENTIDADE Sandro José Celeste - Dissertação
Florianópolis
2019
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Inclui referências.
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a
poeira
E dá a volta por cima!
Salve!
Nem todo trajeto é reto
Nem o mar é regular
Correndo o mundo
(Cobra rasteira)
Me engoli de vez
(Cobra rasteira)
Ô, giramundo
(Cobra rasteira)
Assim o chão se fez
INTRODUÇÃO ................................................................................... 19
CAPÍTULO 1. Canção e Ensino de História: estudos teóricos ....... 25
1.1 Canção como fonte para o ensino de histórica ................................ 27
1.2. As pesquisas sobre ensino de história e canção .............................. 31
1.2.1. O Dossiê “Música e Ensino de História”..................................... 35
CAPÍTULO 2. Identidade, diferença e ensino de história ............... 43
2.1 Identidade, Diversidade e Diferença ............................................... 45
2.2. Identidades afro-brasileiras na sala de aula: do ocultamento ao
entranhamento ....................................................................................... 51
2.3. A questão da identidade nacional e os currículos de História ....... 55
2.4. O entranhamento das identidades afro-brasileiras .......................... 59
CAPÍTULO 3. Rap e identidades afro-brasileiras ........................... 63
3.1. O rap como gênero musical: caracterização ................................... 67
3.2. O Rap no Brasil .............................................................................. 71
3.3. Opções metodológicas .................................................................... 77
CAPÍTULO 4. Rap como possibilidade............................................. 79
4.1. A banda Racionais MC´s. O primeiro momento. A construção da
diversidade musical do rap brasileiro. ................................................... 81
4.1.1. O álbum “Sobrevivendo no Inferno”: Rap, Resistência,
Representação e Empoderamento.......................................................... 83
4.1.2. Análise das canções do álbum “Sobrevivendo no Inferno” da banda
Racionais MCs. ..................................................................................... 89
4.2. Criolo, o segundo momento do rap brasileiro: A consolidação da
diversidade do rap brasileiro ............................................................... 103
4.2.1. O álbum “Nó na Orelha”; Rap, Resistência, Representação e
Empoderamento .................................................................................. 105
4.2.2. Análise das canções do álbum “Nó na Orelha” de Criolo. ........ 107
4.3. Algumas considerações sobre as análises das canções ................. 117
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................ 119
REFERÊNCIAS ................................................................................ 123
GLOSSÁRIO ..................................................................................... 129
APÊNDICE A .................................................................................... 135
APÊNDICE B .................................................................................... 137
ANEXO A........................................................................................... 139
ANEXO B ........................................................................................... 141
ANEXO C........................................................................................... 143
19
INTRODUÇÃO
1
Trata-se da Lei 10.639 de 09 janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências.
24
2 De acordo com Costa (2010, p.138), com base nas concepções de Stuart Hall,
um dos mais conhecidos e destacados intelectuais dos Estudos Culturais, esta
perspectiva teórica considera que: “é na cultura que se dá a luta pela significação,
na qual os grupos subordinados tentam resistir à imposição de significados que
sustentam os interesses dos grupos dominantes. Nesse sentido, os textos culturais
são muito importantes, pois eles são um produto social, o local onde o significado
é negociado e fixado, em que a diferença e identidade são produzidas e fixadas,
em que a desigualdade é gestada”.
46
3 Destaco que praticamente em toda nossa história, com algumas raras exceções
trazidas pelos últimos governos que atenderam às demandas históricas de
movimentos sociais, como por exemplo, o movimento negro, feminista, LGBT e
indígena, pode-se dizer que foi uma história e um currículo centrado e pautado
na figura de quem sempre esteve e novamente está no poder.
47
4
Trata-se da Lei 11.645 de 10 de março de 2008 que altera a Lei no 9.394, de 20
de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena.
52
5
Implantado em 2004, pela Resolução nº 38 do FNDE, o Programa Nacional do
Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) prevê a universalização de livros
didáticos para os alunos do ensino médio público de todo o país.
6
Apesar de algumas falhas nos cursos de formação, as universidades públicas
servem como exemplo no que tange à efetivação da lei, incluindo tal temática
tanto na Graduação como também em seus cursos de extensão e atividades de
pesquisa. Acredito que possuo alguma propriedade nesse relato, pois sou aluno
do mestrado profissional na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ao
cursar as disciplinas de Metodologia, Currículo, Teorias da História e História do
Ensino de História, estudamos, discutimos e aprendemos vários aspectos
relacionados ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Além disso,
tanto na UFSC como na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), há
cursos de extensão, há Núcleos e Laboratórios de Estudo direcionados ao ensino,
a valorização e a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 e da ERER.
54
7
Destacamos que o álbum “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais MCs se
tornou leitura obrigatória para o vestibular de 2020 da Unicamp, uma das
65
8
O Bronx é um distrito da cidade norte-americana de Nova York.
68
Unidos, e nesse contato foi desenvolvido o rap, assim como o soul, o funk,
o jazz, o blues, entre outros.
O segundo momento imigratório que contribuiu com o surgimento
do rap foi, nas palavras do autor: “Uma segunda onda imigratória, após o
final da Segunda Guerra Mundial, levou largos contingentes de homens e
mulheres pobres de ilhas caribenhas como Jamaica, Porto Rico e Cuba
para os Estados Unidos, em busca de melhores condições de trabalho”
(TEPERMAN, 2015, p.17).
Esses imigrantes se estabeleceram nas periferias das grandes
cidades, entrando em contato com outros imigrantes latinos e afro-
americanos que lá já estavam estabelecidos. Uma dessas regiões era o
Bronx, localizado no norte da Ilha de Manhattan da cidade de Nova York,
um bairro, que na década de 1970 estava abandonado, e, cuja população
era predominantemente negra. À falta de opções de lazer e cultura,
pobreza, exclusão e preconceito racial, soma-se o contato entre diferentes
povos imigrantes. Neste contexto social, jovens dessas regiões, para se
divertir nos finais de semana, iam para as ruas com enormes
equipamentos de som nas caçambas de caminhões e carros para tocar seus
discos de variados gêneros musicais, e juntamente com isso, plugavam
microfones no som para se comunicar com o público. Como sugere o
autor:
Nos finais de semana dos meses de verão, alguns
desses imigrantes acoplavam poderosos
equipamentos de som a carrocerias de caminhões e
carros grandes (os chamados sounds systems),
tocavam discos de funk, soul e reggae, e com isso
criavam um clima de festa nas ruas. Inspirados nos
disc jockeys que animavam programas de rádio, se
autodenominavam djs. Além disso, usavam um
microfone para “falar” com o público, não só entre
as músicas, mas também durante a música, como
mestres de cerimônia (daí a sigla mc — master of
cerimony). (TEPERMAN, 2015, p.17)
É interessante anotar que não há uma exatidão sobre a origem e a
gênese do rap e sobre isso, Teperman (2015, p. 13) afirma:
O mito de origem mais frequente sobre o gênero é
que teria surgido no Bronx, bairro pobre de Nova
York, no início dos anos 1970. [...] Alguns
preferem dizer que o rap nasceu nas savanas
africanas, nas narrativas dos griôs – poetas e
cantadores tidos como sábios. Ou ainda, como
69
Vimos que uma das teorias mais aceitas sobre a origem desse
gênero musical é que surgiu na Jamaica no ano de 1960 e de lá foi levado
para os Estados Unidos, onde se difundiu principalmente nos bairros mais
pobres da cidade de Nova York, e dos Estados Unidos ele teria vindo para
o Brasil.
Com o intuito de destacar aspectos importantes do histórico do rap
no Brasil, utilizamos como principais fontes o livro de Ricardo Teperman
já supracitado e também textos e entrevistas de Roberto Camargos, autor
do livro “Rap e Política”, retirados de sites especializados em rap e cultura
afro-brasileira9.
Antes do gênero musical rap surgir no Brasil na década de 1980,
pode-se falar que tal termo era pouco utilizado e esse estilo musical era
confundido com outros gêneros como o soul e o disco. No final do período
da ditadura civil-militar brasileira (1964-85), com uma pequena abertura
política em relação a censura, o rap engajado e politizado atrelado à
movimentos negros urbanos principalmente na cidade de São Paulo se
expande com as rádios comunitárias. Pode-se dizer que tal momento foi
uma espécie de antecedente do rap no Brasil.
Também na década de 1970, a cena da “black music 10” com seus
funks, sambas-rock, souls, grooves 11 e disco, era muito forte no Brasil,
com destaques para Tim Maia, Jorge Bem, Jair Rodrigues, entre outros.
Muitos DJs, que futuramente vão se destacar na cena rap, tiveram contato
e também foram influenciados pela cena “black music”.
O primeiro momento da cena rap aqui no Brasil pode ter como
marco temporal o fim da década de 1980 e início da década de 1990, onde
esse gênero foi apropriado principalmente por jovens negros das
periferias de grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro.
9
http://www.rapnacional.com.br/; http://www.brasilhiphop.com.br/ ;
https://www.geledes.org.br/; http://www.ceert.org.br/
10
Black music ou música negra também conhecida como música afro-brasileira
no Brasil, e música afro-americana nos Estados Unidos, é um termo dado a todo
um grupo de gêneros musicais que emergiram ou foram influenciados pela cultura
de descendentes africanos em países colonizados na América.
11
Groove é na verdade um termo, que significa encaixar palavras
relacionadas”.Por isso muitos músicos usam esse termo ao criarem algum arranjo,
ou seja, eles tem que estar interligados (encaixados) mesmo que não seja de forma
direta, exemplo baixo e bateria são dois instrumentos distintos, porém tem que
estar em perfeita ordem.
72
12
Ska é um gênero musical que teve sua origem na Jamaica no final da década de
1950, combinando elementos caribenhos como o mento e o calipso e
estadunidenses como o jazz, jump blues e rhythm and blues. Foi o precursor do
rocksteady e do reggae. Suas letras trazem sinais de insatisfação, abordando
temas como marginalidade, discriminação, vida dura da classe trabalhadora, e
acima de tudo a diversão em harmonia.
13
Afrobeat é uma combinação de jazz americano, funk e batida [beat] nigeriano.
Ele foi criado pelo artista o mais militante da África, o falecido Fela Ransome
Anikulapo, da Nigéria, no início dos anos 70. Era justamente a época em que o
rock britânico e soul music americana estavam dominando a maior parte da cena
musical da África. Fela Kuti introduziu sua marca, com estilo próprio, para deter
a invasão musical britânica.
74
14
Com a chegada pela primeira vez de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT)
ao poder no plano federal, algumas dessas demandas foram ouvidas e de alguma
forma se transformaram essas causas em política de Estado conquistando
visibilidade inédita a essas “minorias”, e é óbvio que esse empoderamento se
reverbera também no plano cultural e, consequentemente, nas canções, entre elas,
o rap.
75
15
Canção “Fórmula Mágica da Paz” do álbum “Sobrevivendo no Inferno” (1997).
16
http://www.racionaisoficial.com.br/
17
Informações retiradas dos sites <http://www.racionaisoficial.com.br> e
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo636012/racionais-mcs.
82
18
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Cosa Nostra,
1997, Cd.
19
OLIVEIRA, Roberto de Camargos de. Rap e política: percepções da vida
social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015.
20
Livro que ganhou o Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música de 2013,
fruto de uma dissertação de mestrado do professor e pesquisador Roberto
Camargos de Oliveira, que é professor, pesquisador e doutor em história social
pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e que foi orientado pelo
professor dessa mesma universidade, Adalberto Paranhos, autor de várias obras,
com destaque para sua tese de doutorado “Os desafinados: sambas e bambas no
'Estado Novo”, que também virou livro.
84
21
Professor adjunto de literatura na Universidade de Pernambuco, Acauam
Silvério de Oliveira, sua tese de doutorado intitulada “O fim da canção? Racionais
MC's como efeito colateral do sistema cancional brasileiro” trata, entre outros
temas, as relações das canções dos Racionais com a identidade nacional.
22
Racionais MC's. Sobrevivendo no Inferno: Racionais MC's. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
85
importância desse disco não apenas para o cenário musical brasileiro, mas
também por trazer para o debate nacional temas extremamente difíceis da
sociedade brasileira. Nesse sentido, Oliveira (2018) chama a atenção para
a importância desse álbum não apenas pelo seu valor estético e cultural,
mas também pelo valor político por trazer à tona debates promovidos
pelos movimentos identitários, compactuando com a opinião de Bosco
(2017) que afirma que
[...] o reconhecimento obtido pelo grupo após o
sucesso nacional de “Diário de um detento” foi o
grande responsável por fazer com que os debates
promovidos pelos movimentos identitários
extrapolassem as fronteiras mais estreitas da
academia e dos movimentos sociais, ganhando
assim o campo mais amplo da cultura (BOSCO,
2017 apud OLIVEIRA, A., 2018, p. 23)
Reafirmando a importância desse disco, Oliveira (2018) aponta
que tal obra ajudou a formar uma nova identidade denominada de “sujeito
periférico”. D’Andrea (2013 apud OLIVEIRA A., 2018, p. 23) chama a
atenção de que “mais do que simplesmente representar o cotidiano
periférico em crônicas poderosas, a obra dos Racionais ajudou a fundar
uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele
define como ‘sujeito periférico’”.
Assim, como categoria, para analisar as canções, que é o binômio
resistência/empoderamento, que resume, de um lado, a resistência dos
povos afro-brasileiros frente a vários elementos do seu cotidiano como
por exemplo a exclusão e a desigualdade social, o racismo e o preconceito
racial e de classe, a falta de oportunidades de estudos, lazer e trabalho.
Por outro lado, aponta o empoderamento desses povos por meio do
orgulho, de luta e da valorização de aspectos de sua cultura. E nesse
sentido, é importante observar o que D’Andrea (2013 apud Oliveira A.,
2018, p.23) afirma ser o “sujeito periférico”:
O morador da periferia que assume sua condição,
tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir
dele. O termo “periferia” passaria a designar não
apenas “pobreza e violência” – como até então
ocorria no discurso oficial e acadêmico –, mas
também “cultura e potência”, confrontando a
lógica genocida do Estado por meio da elaboração
coletiva de outros modos de dizer.
86
23
http://www.ipea.gov.br/retrato/infograficos_habitacao_saneamento.html
24
KL Jay, nome artístico de Kleber Geraldo Lelis Simões, é o DJ, integrante do
grupo de rap Racionais MCs.
87
25
Os áudios das canções estão disponibilizados por meio de links que estão juntos
com a ficha técnica dos álbuns no Anexo 1.
90
26
Mano Brow é o nome artístico de Pedro Paulo Soares Pereira, cantor,
compositor e um dos integrantes dos Racionais MCs.
93
Periferia é periferia
Aqui, meu irmão, é cada um por si
27
Segundo Acauam Silvério de Oliveira no prefácio do livro “Sobrevivendo no
Inferno” (2018, p.19.): “Em 2 de outubro de 1992, São Paulo foi palco daquela
que é considerada a mais violenta e brutal ação da história do sistema prisional
brasileiro: o massacre do Carandiru, intervenção assassina da polícia militar do
Estado de São Paulo que resultou na morte de pelo menos 111 detentos, a maioria
composta de réus primários, sem nenhuma chance de defesa”.
28
A escrita da narrativa teve contribuições de Josemir Prado, o Jocenir, ex-
detento do Complexo do Carandiru.
95
Periferia é periferia
Molecada sem futuro eu já consigo ver
Periferia é periferia
Aliados, drogados, então
Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Gente pobre
Periferia é periferia
Deixe o crack de lado, escute o meu recado
(sirene de polícia)
29
Edi Rock, nome artístico de Edivaldo Pereira Alves, é um dos integrantes da
banda Racionais MCs.
96
Aí, caralho
(voz do policial)
prefixo da placa é MY
sentido Jaçanã, Jardim Hebron
(Edi Rock)
Quem é preto como eu já tá ligado qual é
Nota Fiscal, RG, polícia no pé
(voz do policial)
"Escuta aqui:
o primo do cunhado do meu genro é mestiço
Racismo não existe, comigo não tem disso
É pra sua segurança"
(Edi Rock)
Falou, falou, deixa pra lá
Vou escolher em qual mentira vou acreditar
Além desse trecho acima analisado que narra uma relação entre um
morador da periferia, Ice Blue30, e um policial, é interessante analisar que
a canção traz outras narrativas (conversas de Ice Blue com Edi Rock),
relatando os encontros com outras pessoas durante seu “rolê”. Em um
desses encontros Ice Blue depara com outros personagens, como a mulher
que em um primeiro momento era uma “princesa” para ele, mas que se
revela uma “racista” que não se identifica com suas origens da periferia.
Aqui também é possível estabelecer uma análise da complexa relação das
questões identitárias coletivas, nesse caso das relações de gênero com as
identidades afro-brasileiras.
Outro encontro é com o “rapaz” que de dia parecia um pastor de
igreja pentecostal, mas que a noite era traficante de drogas. Entre um
encontro e outro das narrativas (policial, mulher e traficante), “gambé,
puta e pilantra” nas palavras dos Racionais MC’s, canta-se o refrão que
tem a frase que dá título à canção“ Em qual mentira vou acreditar” e a
última frase dessa canção é “Tem que andar é esperto, mano” o que
demonstra um aspecto da identidade desses moradores da periferia, tal
esperteza não no sentido pejorativo e sim no sentido de que para
sobreviver a tantos problemas e provocações, tem que saber ser esperto.
Outro aspecto importante dessa canção, agora relacionado a
resistência/empoderamento, é que observando trechos em que Edi Rock
narra situações em que tanto um policial como uma mulher
30
Ice Blue, nome artístico de Paulo Eduardo Salvador, é um dos membros da
banda Racionais MCs.
97
31
Conhecido como Pulga do ABC, já se destacava no rap e também era usuário
de crack.
98
O rosto abatido pela vida dura”. Ou ainda no trecho no qual Mano Brown
questiona: “Assustador é quando se descobre / Que tudo deu em nada e
que só morre o pobre / A gente vive se matando, irmão por quê? / Não me
olha assim, eu sou igual a você”.
Essas “crises de identidades”, isto é, as contradições também são
características relacionadas às identidades heterogêneas, híbridas, em
construção e fronteiriças, passíveis de inúmeras crises e dilemas.
Outros dois destaques importantes nessa canção, ainda em relação
às identidades afro-brasileiras, em primeiro lugar, o sincretismo religioso
presente, a frase “Agradeço a Deus e aos Orixás”, que demonstra a fé e a
devoção de boa parte da população brasileira que cultua deuses de
diferentes religiões. E, em segundo lugar, a questão de alguns símbolos e
referências expostos nas frases: “Era só um moleque, só pensava em
dançar / Cabelo black e tênis All Star”. Aqui percebe-se esta mistura de
referências identitárias como o cabelo black, por um lado, e, por outro
lado, o tênis All Star, símbolo muito mais atrelado a uma cultura
capitalista norte-americana do que uma afro-americana. Mas pela
perspectiva não essencialista em relação à produção de identidades, que
procuramos ilustrar neste trabalho, com base em canções do rap não há
problema algum, ou seja, um sujeito perderia sua identidade afro-
brasileira por usar símbolos ou elementos diferentes do que alguns
convencionaram em chamar de pertencentes dessa ou daquela identidade?
Quanto a musicalidade dessa canção, além da onomatopeia “Pá,
pá, pá, pá” que imita uma saraivada de tiros, é interessante observar o
coral que, com uma voz ao fundo no estilo gospel ou soul music
acompanha toda a canção, imprimindo a ela toda uma dimensão religiosa,
na qual a narrativa se transforma em um discurso que se assemelha a uma
confissão dos pecados, arrependimento, o purgar dos pecados e a
promessa e tentativa de uma mudança de vida para conseguir a salvação.
Isso se evidencia ainda mais nos trechos que o coral ganha destaque, em
que deixa de ser uma apenas uma música de fundo e passa a ser
protagonista da canção, auferindo ainda mais essa dimensão e
característica de uma canção religiosa ou gospel, cuja mensagem é a
procura de uma salvação ou redenção. A seguir o trecho em que o coral
ganha destaque:
eles, ou seja, não são seus inimigos, podem ser seus amigos. E aqui é que
recai a importância dessas falas de resistência e exclusão. A identificação
não está circunscrita a uma questão geográfica e/ou raça e/ou classe, e
sim, todas elas, misturadas ou não, mas que se identificam pelas atitudes
e valores, o que denota uma perspectiva identitária não essencialista, pois
é fluida, de fronteira, em construção e heterogênea. É o caso da identidade
do “sujeito periférico”.
Outro aspecto interessante na narrativa da canção é a passagem em
que Mano Brown se refere a Jesus (Cristo) como um homem de pele
escura e de cabelo crespo: “Eu acredito na palavra de um homem de pele
escura, de cabelo crespo / Que andava entre mendigos e leprosos
pregando a igualdade / Um homem chamado Jesus / Só ele sabe a minha
hora”. É muito interessante analisar esse trecho da canção pois Mano
Brow faz referência ao Cristianismo na figura de Jesus Cristo, mas ele
tem algumas das características aparentes da identidade afro (pele escura
e cabelo crespo). Aqui há uma mistura de elementos de uma religião de
origem branca e europeia, com elementos das identidades afros, o que
mais uma vez atesta a composição heterogênea das relações identitárias.
No aspecto da musicalidade dessa canção, o que mais chama a
atenção é o fundo musical que a acompanha é a mesma da primeira canção
deste mesmo disco, “Jorge da Capadócia”, que é a da canção “Ike’s Rap
2”, do cantor e compositor norte-americano Isaac Hayes. Da mesma
forma que na primeira canção, o sampler 32 dessa canção também passa as
mesmas sensações, mas é interessante escutá-la justamente com as letras,
considerando o fato de que se trata da primeira e da última canção do
disco. A primeira canção, cuja letra “Jorge da Capadócia”, é um pedido
de proteção: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge / Para
que meus inimigos tenham pés mas não me alcancem / Para que meus
inimigos tenham mãos não me toquem / Para que meus inimigos tenham
olhos e não me vejam / E nem mesmo pensamentos eles possam ter”. Na
canção que fecha o disco, “Salve”, trata-se de uma saudação para os
aliados, um recado para os inimigos para que os bandidos fiquem em paz.
Ou seja, o mesmo som, mas com letras e mensagens diferentes, iniciando
e encerrando o disco: um pedido de proteção, expectativas de mudanças
e despedidas. O início e o fim de uma narrativa, de uma história, que pode
ter mudado (ou não).
32
Sampler: instrumento eletrônico dotado de memória para os sons selecionados,
amplamente utilizados pelos rappers. Normalmente é acoplado a um mixer, o que
permite realizar colagem de sons pré-gravados durante a execução de uma música
pelo DJ ou inseri-las no processo de mixagem de uma música.
102
33
Canção “Criolo Doido” do álbum “Ainda Há Tempo” (2006).
34
Soul (em inglês: alma) é gênero musical dos Estados Unidos da América que
nasceu do rhythm and blues e do gospel, durante o final da década de 1950 e
início da década de 1960, entre músicos negros.
35
Brega é um termo utilizado por muitos, inicialmente de maneira pejorativa, para
designar a chamada música romântica popular. A música romântica sempre teve
lugar marcante no cancioneiro popular brasileiro, desenvolvida em diferentes
gêneros e estilos. A designação "música brega" ganhou força a partir de meados
dos anos 1960, quando a música jovem, por um lado, de matriz americana, e por
outro, oriunda da classe média estudantil, alcançou cada vez maiores espaços,
fazendo com que a música romântica vinda das camadas populares fosse
considerada cafona e deselegante.
104
36
https://oglobo.globo.com/cultura/rolling-stone-elege-discos-de-criolo-adele-
os-melhores-de-2011-3564237
37
Informações retiradas dos sites http://dicionariompb.com.br/criolo e
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa429387/criolo
105
A canção é um rap, com uma base tradicional feita por uma bateria
eletrônica, com toques de soul music e jazz com trompete e piano e suaves
solos de guitarra.
A canção inicia com a fala em um tom mais baixo na voz de Criolo
como se estivesse resmungando a respeito da situação dos jovens, dando
o tom do que se trata a canção: “Tem uns menino bom novo hoje aí na
rua, pra lá e pra cá, que corre pelo certo / Mas já tem uns também que eu
vou te falar, viu / Só por Deus, viu!”.
Sua musicalidade passa a sensação de um dia tranquilo e calmo,
com uma sonoridade levemente tranquila e swingada. Até mesmo o refrão
“Para pa pa, para pa pa” (som que simula uma rajada de tiros) é cantado
de uma maneira que pode passar desapercebido e não ser relacionado ao
som de tiros. Também é interessante como o ritmo da música, com
destaque para os scratches 42 e o som do trompete, se encaixam
perfeitamente à letra, dando uma característica de organicidade a canção,
por isso a importância de não se escutar/ler a música separada da letra e
vice-versa.
A terceira canção do disco é “Não existe Amor em SP”, uma
canção melancólica que trata das sensações, angústias e crises de solidão
sobre o vida na maior cidade de país, São Paulo. A narrativa é repleta de
mensagens subjetivas por meio dos labirintos e enigmas da cidade de São
Paulo, transmite os perigos, a frieza, as tentações e a dor de viver nessa
cidade. Tal narrativa transcende o universo da periferia paulistana,
falando de uma realidade ao mesmo desigual social e economicamente
falando, mas semelhante no que tange os medos, tristezas e a solidão de
viver no meio da multidão, provocando uma identificação de um público
muito maior que o circunscrito a uma ou outra região.
A musicalidade da canção se assemelha a uma balada lenta,
praticamente um tipo de dub 43, com destaque para os sons graves do
contrabaixo contrastando com a batida seca e marcada da bateria, além
dos arranjos de cordas que deixam a canção ainda mais introspectiva. O
ritmo devagar e pausado da canção potencializa as várias mensagens da
narrativa, e ao ser escutada em sua completude, transmite as sensações de
viver em São Paulo. Assim como Criolo afirma que: “Não precisa morrer
pra ver Deus / Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você”, ao
42
Scratch: efeitos sonoros produzidos pelo atrito entre a agulha do toca-discos e
o próprio disco.
43
Dub é um gênero musical fortemente associado ao reggae e à cultura jamaicana,
o dub faz uso da base baixo e bateria com sobreposições de efeitos criativos
dentro das possibilidades de estúdio.
110
escutar essa canção não é preciso morar em São Paulo para sentir tais
sensações.
A quarta canção do álbum chama-se “Mariô”, que possui várias
referências, tanto na letra como na música, às identidades afros. A canção
começa com o refrão na língua Iorubá: “Ogum adjo, ê mariô (Okunlakaiê)
/ Ogum adjo, ê mariô / (Okunlakaiê)”, cujo significado são referências ao
Orixá Ogun e a Mariô que é a folha extraída do denzezeiro, item,
indispensável no culto a esse Orixá. A canção também faz referências a
importantes cantores africanos como Mulatu Astatke e Fela Kuti, ao
rapper americano OlDirty Bastard, membro do Wu-Tang Clan´, ao rapper
brasileiro Sabotagem e a Chico Buarque. Com exceção do último, todos
são exemplos de músicos com identidades afros (africana, afro-americana
e afro-brasileira).
A narrativa dessa canção é uma série de críticas à sociedade
contemporânea, seja em relação a desigualdade social e à soberba por
parte de algumas pessoas e classes sociais: “E quem se julga a nata
cuidado pra não quaiar”, ou em relação àqueles que fingem não enxergar
o mundo em que vivem: “Eu não preciso de óculos pra enxergar / O que
acontece ao meu redor” e: “Eu não preciso de Mãe Diná / Pra saber que é
o seu pior”. Defende o hip hop e o rap para combater a hipocrisia dessa
sociedade e o sistema em que vivemos, que parece não fazer nada para
mudar tal situação: “Na força do verso a rima que espanca /A hipocrisia
doce que alicia nossas crianças”
Nessa canção, além das referências africanas supracitadas,
observam-se também relações com as identidades afro-brasileiras nos
trechos “E pode crer, mais de quinhentos mil manos / Pode crer também,
o dialeto suburbano / Pode crer a fé em você que depositamos / E fia, eu
odeio explicar gíria”, fazendo alusão aos manos da periferia, falando de
seus dialetos e suas gírias que são símbolos para os sujeitos da periferia,
cuja maioria são de afrodescendentes
No que tange a musicalidade, essa canção é uma das que mais
possuem influências dos gêneros musicais africanos, além do próprio rap,
batuques do candomblé e da umbanda estão presentes, o groove do
contrabaixo se destaca e em conjunto com as referências e identidades
africanas presentes nas narrativas, a canção pode ser considerada uma
mistura de rap com afrobeat. A canção possui momentos mais pausados
e demarcados que é característico do rap, concatenado com as mensagens
da letra, e, momentos mais contagiantes e envolventes, características
típicas do afrobeat durante o refrão.
A quinta canção cujo título é “Freguês da Meia Noite” pode ser
considerada a que mais destoa do álbum, o gênero musical é quase um
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44
Entende-se como rap “clássico” ou “tradicional” a maioria dos raps brasileiros
das décadas de 1980/90.
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As "batalhas de MCs" são espaços onde os rappers fazem um duelo com letras
improvisadas e cheios de rimas, expressando o que sente sobre determinado
assunto ou sobre a conduta do próprio oponente. Nessas batalhas, onde um rapper
“elimina” o outro até chegar à final, é o público que decide quem será o vencedor.
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Tradução: “No gueto, sensação de menino rude / Liberdade, por favor”.
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Título se refere a um seriado japonês da década de 1970 sobre um samurai que
virava um leão para defender a justiça durante o período feudal.
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A vertente do rap escolhido foi o denominado engajado ou politizado, que trata,
entre outros temas de preconceito, racismo, exclusão, violência, resistência,
pertencimento e empoderamento. Só a título de exemplo, poderíamos escolher
outras produções, como a mistura do rap com a música eletrônica e o maracatu,
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em conjunto com as temáticas das letras nas canções de Chico Science e Nação
Zumbi, ou ainda analisar as questões de gênero muito presentes nas temáticas das
canções e a estética musical das rappers como Mc Carol, Ludmila e Karol Conká,
ou ainda, as temáticas das letras e sonoridades da banda de rap indígena Brô
MC’s, ou ainda, a banda Quebrada Queer, 1º grupo de rap LGBT do Brasil.
119
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
JANZ, Rubia Caroline. Dez anos da lei 10.639/03: o que mudou nos livros
didáticos de História? – Uma proposta de análise. Anais do Xv Encontro
Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e
Estado, Florianópolis, p.1-13, ago. 2014. Disponível em
<http://www.encontro2014.sc.anpuh.org/resources/anais/31/140554578
0_ARQUIVO_trabalhocompleto_RubiaCarolineJanz.pdf >. Acesso em:
03 dez. 2017.
<http://seer.mouralacerda.edu.br/index.php/plures/article/view/53>.
Acesso em: 03 dez. 2017
GLOSSÁRIO
Back to back: performance dos DJs usando dois discos iguais, invertendo
o sentido da rotação.
Beat box: batida improvisada feita com a boca pelo DJ ou pelo rapper.
em intervalos aleatórios.
Break: dança de solo, praticada em rodas, como a capoeira. Os
movimentos são quebrados e assemelham-se, basicamente, ao de robôs.
Breakers: dançarinos de break.
Dance: gênero de música eletrônica cujo ritmo assemelha-se a um “bate
estacas”.
DJ: abreviatura de disc jóquei. No universo do rap, é aquele que faz os
efeitos sonoros da música, como os scratches.
Drum machine: instrumento eletrônico que produz as batidas pesadas do
Miami bass.
Fazer a rima: comunicar, passar a mensagem.
Free style: estilo de grafite que não segue regras, técnicas e lugares. A
espontaneidade é total, muitas vezes entrando em harmonia com o
ambiente. Quando se refere ao rap, significa improviso nas rimas.
Funk melody: também conhecido como funk brega. Rap romântico de
grande sucesso na indústria fonográfica.
Gambé: policial.
Gangsta rap: gênero de rap norte americano que faz apologia ao modo
de vida dos gangsters dos guetos negros.
Gangue: para os leigos, denomina os grupos de jovens delinquentes. No
hip hop, é uma organização de breakers, que também pode ser chamada
de equipe ou crew.
Grafite: pintar ou desenhar (com spray ou tinta) muros, painéis, túneis,
etc., com logotipos ou desenhos relacionados com o movimento hip hop.
Utiliza letras tortas ou engarrafadas que fazem com que, muitas vezes,
apenas os grafiteiros entendam o que está escrito.
Groove: parte da música que se repete, determinando os ritmos.
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Termos e definições retiradas do site
http://www.professoramanuka.com.br/2016/07/Girias-do-hip-hop-rap-e-
seus-significados.html
130
50
Retirados dos sites: https://www.dicionarioinformal.com.br;
https://fernandonogueiracosta.wordpress.com;
https://www.conhecimentogeral.inf.br; http://www.arte.seed.pr.gov.br;
http://dicionariompb.com.br; https://pt.wikipedia.org.
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APÊNDICE A
Mágica da
Paz
12. Salve Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/w
Pereira (Mano Brown) atch?v=Fpyk4633_Pw
e Paulo Eduardo
Salvador (Ice Blue)
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APÊNDICE B
ANEXO A
O africano foi levado para sofrer no norte e gerou, entre outras coisas, o
jazz, o blues, gospel, soul, r&b, funk, rock'n'roll, rap, hip hop
ANEXO B
PARTICIPAÇÕES
“Mágico de Oz”: Daniel Quirino, Priscila Maciel, Pulga e Guilherme
“Fórmula mágica da paz”: Dagô Miranda
“Tô ouvindo alguém me chamar”: Giovani, Quindim e Dinho
“Periferia é periferia”: Rivaldo BV
“Capítulo4, versículo 3”: Primo Preto
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Informações retiradas de RACIONAIS MC'S. Sobrevivendo no
Inferno: Racionais MC's. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 142-143.
Apenas o Link para ouvir as músicas não constam no livro, são resultados de
consultas próprias feitas na internet em site aberto e gratuito.
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ANEXO C
PARTICIPAÇÕES
“Mariô”: Kiko Dinucci - violão
"Linha de Frente"Rodrigo Campos - cavaquinho e percussão
Verônica Ferriani - backing vocal
Juçara Marçal - backing vocal
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Informações retiradas do site
https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%B3_na_Orelha. O Link para ouvir as
músicas foi resultado de consulta própria na internet em site aberto e gratuito.