CANÇÃO E IDENTIDADE Sandro José Celeste - Dissertação

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SANDRO JOSÉ CELESTE

ENSINO DE HISTÓRIA, CANÇÃO E


IDENTIDADES AFRO-BRASILEIRAS:
O RAP COMO POSSIBILIDADE

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Ensino de
História-ProfHistória da Universidade
Federal de Santa Catarina para a
obtenção do Grau de Mestre em Ensino
de História.
Orientadora: Profª Dra. Jane
Bittencourt.

Florianópolis
2019
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Celeste, Sandro José


Ensino de história, canção e identidades afro
brasileiras : o rap como possibilidade / Sandro
José Celeste ; orientador, Jane Bittencourt, 2019.
143 p.

Dissertação (mestrado profissional) -


Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em
Ensino de História, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. Ensino de História. 2. Identidades afro


brasileiras. 3. Canção. 4. Rap. I. Bittencourt,
Jane. II. Universidade Federal de Santa Catarina.
Programa de Pós-Graduação em Ensino de História. III.
Título.
AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas que participaram direta e indiretamente na


minha formação e que me proporcionaram chegar até esse momento, seria
impossível agradecê-las nominalmente. Não são só apenas essas pessoas,
com suas individualidades e subjetividades que me ajudaram a chegar até
aqui, mas também toda uma coletividade de pessoas, representadas
principalmente pelos movimentos sociais com suas pautas, demandas,
lutas, resistências e conquistas que me influenciaram e incentivaram a
entrar, continuar e finalizar esse mestrado. Por isso, divido meus
agradecimentos a partir de duas perspectivas, a primeira sob um ponto de
vista coletivo, e a segunda a partir de um ponto de vista de proximidade
pessoal e profissional. E é interessante observar como essas duas
perspectivas se entrecruzam formando uma espécie de “rede de
sociabilidades e conhecimentos” enriquecedor tanto intelectual como
humano.
Pelo ponto de vista coletivo, agradeço todos os músicos e bandas
que um dia escutei na minha vida e que me fizeram rir, chorar, relaxar e
energizar nos mais variados momentos. Em especial a Banda Racionais
MC’s e Criolo que emprestaram seus álbuns e canções carregados de
identidades afro-brasileiras por meio de lutas, resistências e
empoderamentos, para contribuir com essa dissertação.
Agradeço aos movimentos sociais brasileiros, em especial o
Movimento Negro, que por meio de muita luta e resistência, conseguiu
que uma parcela de suas demandas fosse atendida, entre elas a Lei
10.639/03 e a Lei 12.711/12 também conhecida como Lei de Cotas.
Agradeço também às Universidades Públicas, aqui representada
pelo Profhistória da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que
lutaram pela criação do Mestrado Profissional em Ensino de História,
configurado em rede nacional no ano de 2013.
E agradeço ao Partido dos Trabalhadores (PT) que nos seus treze
anos no poder executivo federal entre os anos de 2002 a 2015, tendo seu
último mandato interrompido por um golpe
jurídico/midiático/parlamentar em 2016, que atendeu essas demandas
supracitadas, além de outras, transformando-as em políticas públicas e
programas de governo.
Por uma perspectiva pessoal, agradeço em primeiro lugar meus
pais, Ezelça de Lourdes Guarini Celeste e Afonso Celeste Neto, que não
mediram esforços para me proporcionar uma boa educação formal e
informal. Agradeço a eles o privilégio de ter acesso a vários gêneros
musicais, bandas e músicos escutados e conhecidos por meio dos toca-
discos, tape-decks e rádios que eles tinham e tem até hoje em casa. Me
considero uma pessoa com um gosto musical amplo, múltiplo, aberto e
em construção, e devo isso, em grande parte ao incentivo dos meus pais,
que escutavam os bolachões de Jair Rodrigues, Roberto Carlos, Elis
Regina, Vinícius de Morais, Nat King Cole e músicas orquestradas, entre
outros gêneros musicais e músicos.
Agradeço aos meus irmãos, pela ordem de idade, Ana Cristina
com seus inúmeros álbuns de Música Popular Brasileira, com destaque
para Chico Buarque, Milton Nascimento e Elba Ramalho, artistas que
quando eu era moleque não os suportava, mas que com o passar do tempo,
passei a apreciá-los. Paulo Afonso que me mostrava os discos e fitas k-7
de punk rock, com destaque para Cólera, Replicantes e Ratos de Porão, e
posteriormente alguns clássicos do rock como The Doors, Led Zeppelin
e as bandas de rock nacional da década de 1980/90. Samuel, que após sua
saída de nossa cidade natal São José do Rio Pardo -SP para estudar na
cidade de São Paulo, sempre aparecia com inúmeros Cds, com destaque
para Aretha Franklin, Nina Simone, Luiz Gonzaga e os músicos do Buena
Vista Social Club, e por último, o caçula temporão Marcos, que me fez
rememorar várias bandas e artistas que já não escutava mais como os
Beatles e Tim Maia. Agradeço a eles, entre outras coisas, a grande
contribuição para meu eclético gosto musical.
Não poderia deixar de mencionar todos meus amigos e
conhecidos que passaram e estão presentes na minha vida e que de alguma
maneira, por meio de conversas, trocas e compartilhamentos de discos e
fitas, também ajudaram na (trans)formação do meu gosto musical. Valeu
Galera!
Agradeço à grande maioria dos meus colegas e amigos
professores, verdadeiros guerreiros que ainda sonham com uma
transformação social por meio da educação pública. Aqui faço uma
menção especial a Giovana Canalle e José Mario Caputo, que além de
professores, são grandes amigos que seguraram minha barra nos meus
momentos mais difíceis que passei, profissional e pessoal, em Piracicaba
-SP.
Agradeço à grande maioria dos meus alunos que me instigaram
a aprender constantemente e que me transmitiram energia para não
desanimar na docência de história.
Agradeço aos colegas de mestrado, Bárbara, Luciane, Jaqueline,
Luciana, Mylene, Guilherme, Harley, Jeferson, João Vítor e Odair pelas
inúmeras contribuições em suas falas e apontamentos e também pela força
e união para seguirmos, no mestrado e na docência.
Agradeço aos meus professores de história e geografia no ensino
básico, respectivamente, Marcos Resende e Homero Borba, professores
progressistas e humanistas, que despertaram meu gosto para as ciências
humanas, em especial, a história. E também ao professor Benedito Tadeu
Euzebio, o único professor negro que tive na educação básica.
Agradeço aos meus professores da Graduação, em especial os
amigos e conhecidos, Ana Lúcia Porfírio, Roque Lúcio e Marcos
Demartini.
Agradeço aos meus professores do mestrado, Mônica Martins da
Silva, Jane Bittencourt, Janine Gomes da Silva, Cristina Scheibe Wolff e
Elison Antonio Pain, que, por meio de uma sólida formação acadêmica,
conhecimentos, sabedorias e uma visão de mundo engajada, humana e
progressista, me proporcionaram e me incentivaram a chegar até a
conclusão desse mestrado.
Agradeço aos professores que participaram da minha banca de
qualificação Jéfferson Dantas e Nilton Pereira Mullet, e da banca de
defesa Karen Christine Rechia e Antônio Alberto Brunetta com suas
magníficas contribuições para as tomadas de rumo, o desenvolvimento e
a conclusão dessa dissertação.
Agradeço também à professora da UFSC Joana Célia dos Passos,
que passou várias dicas de leituras e esclareceu várias dúvidas
relacionadas a cultura e história dos povos afro-brasileiros. Joana, com
todo seu conhecimento, energia, alegria e engajamento é uma das
principais representantes das identidades afro-brasileiras dessa
Universidade e também em outros espaços, e serviu como uma grande
fonte de inspiração.
Agradeço especialmente à iluminada, tranquila, competente e
profissional Jane Bittencourt, minha professora e que aceitou ser minha
orientadora também, em um momento complicado e tenso da minha
trajetória nesse mestrado. Com muita paciência, sensibilidade, leveza e
conhecimento, me incentivou e apontou possibilidades e caminhos para
que chegasse até a conclusão dessa dissertação. Uma pessoa ímpar que
merece todo o meu respeito e admiração.
Agradeço também especialmente o meu amigo de fé, meu irmão,
companheiro e camarada Berto, menino que saiu da roça para se tornar
um grande professor universitário, uma pessoa que une todo o arcabouço
de uma trajetória acadêmica sólida com a sabedoria, a simplicidade e a
praticidade do homem do campo, uma mistura que lhe proporciona ser
um “caboclo da fronteira”, sujeito capaz de enfrentar as adversidades com
inteligência e leveza. Agradeço ao Berto pois além de ser um grande
incentivador aos meus estudos, é um grande amigo para todos os
momentos de alegria e tristeza, um camarada que sempre canta e
interpreta a vida por meio de canções desse Brasil afora.
E por fim, a pessoa mais importante nesses últimos oito anos da
minha vida, minha companheira Priscila, que sempre apoiou e incentivou
meus estudos, que sempre esteve ao meu lado tanto nos momentos felizes
e alegres, como nos momentos de tristeza e desânimo, não permitindo que
eu parasse ou desanimasse de caminhar, seguindo ao encontro dos meus
sonhos e utopias. Uma pessoa guerreira que já passou por muitos
momentos difíceis na sua vida, mas que sempre os enfrentou e também
por isso, é para mim, uma das grandes fontes de inspiração para continuar
estudando e lutando. Durante o mestrado, Priscila foi a um só tempo,
psicóloga para aguentar meus resmungos, debatedora nas nossas
conversas, revisora das minhas ideias e que sempre me indicava canções
e bandas que poderiam contribuir com minha dissertação. Agradeço à
Priscila, pois grande parte do meu gosto musical nesses últimos anos, em
especial o samba e a música popular brasileira, que andavam esquecidos
nas minhas vitrolas da vida, voltaram a tocar e dançar novamente,
deixando minha vida mais feliz e contagiante. Foi com essa menina
guerreira ao meu lado, nos vários tombos que levei na vida e também
nessa trajetória do mestrado que o verso de Paulo Vanzolini abaixo, que
ela sempre cantarolou, ganhou mais sentido:

Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a
poeira
E dá a volta por cima!

Salve!
Nem todo trajeto é reto
Nem o mar é regular

Estrada, caminho torto


Me perco pra encontrar
Abrindo talho na vida
Até que eu possa passar
Como um moinho que roda
Traçando a linha sem fim
E desbravando o futuro
Girando em volta de mim

Correndo o mundo
(Cobra rasteira)
Me engoli de vez
(Cobra rasteira)
Ô, giramundo
(Cobra rasteira)
Assim o chão se fez

Nem todo trajeto é reto


Nem o mar é regular

Letra da música “Cobra Rasteira” da Banda Metá-Metá


Composição: Kiko Dinucci
RESUMO

O presente trabalho buscou explorar as possibilidades do uso de


canções no ensino de história, tendo em vista colocar em evidência de que
modo a letra e a musicalidade de algumas canções, no caso, do gênero
musical rap, podem estimular relações identitárias associadas às múltiplas
identidades afro-brasileiras. Para isso, esse estudo pesquisou as relações
e potencialidades do uso da canção como linguagem e fonte histórica para
o ensino de história, tendo como principais referências Marcos
Napolitano, Mirian Hermeto e Circe Bittencourt. O estudo também
discute questões relacionadas com a construção da identidade, com base
nos Estudos Culturais, segundo autores tais como Kathryn Woodward,
Stuart Hall e Tomás Tadeu da Silva e busca aproximar esta discussão do
ensino de história. Salientamos de que modo a diversidade e a diferença
se relacionam com a temática das identidades afro-brasileiras associadas
à constituição da identidade nacional, por meio de ocultamentos e
entranhamentos. Esse trabalho também levantou algumas características
do gênero musical rap, relacionando-o às identidades afro-brasileiras e
analisou, como exemplo, todas as canções contidas em dois discos,
“Sobrevivendo no Inferno” (1997) dos Racionais MCs e “Nó na Orelha”
(2011) de Criolo, que marcam o dinamismo do rap no Brasil. Destas
análises, concluímos ser a canção uma boa fonte para o ensino de história
e também uma rica e complexa linguagem. Como foi possível indicar no
caso das canções de raps escolhidas e analisadas, tanto em sua
musicalidade como em suas narrativas, distinguimos elementos
associados aos processos de resistência e de empoderamento, o que atesta
a importância de se considerar tanto a letra quanto a música no uso de
canções no ensino. Além disso, indicamos como o rap pode retratar, numa
perspectiva não essencialista, aspectos das identidades afro-brasileiras a
serem explorados no ensino de história e, deste modo, estimular nos
estudantes processos de construção identitária.

Palavras-chaves: Ensino de História, Relações Étnico-raciais,


Linguagens, Canção, Rap e Identidades afro-brasileiras.
ABSTRACT

The present work sought to explore the possibilities of using songs


in history teaching, in order to show how the lyrics and musicality of some
songs, in this case, the rap music genre, can stimulate identity relations
associated with multiple identities Afro-Brazilian. For this, this study
investigated the relations and potentialities of the use of the song as a
language and historical source for the teaching of history, having as main
references Marcos Napolitano, Mirian Hermeto and Circe Bittencourt.
The study also discusses issues related to identity construction, based on
Cultural Studies, by authors such as Kathryn Woodward, Stuart Hall and
Tomás Tadeu da Silva, and seeks to bring this discussion closer to the
teaching of history. We highlight how diversity and difference are related
to the thematic of Afro-Brazilian identities associated with the
constitution of national identity, through occultations and
entranhamentos. This work also raised some characteristics of the rap
music genre, relating it to Afro-Brazilian identities and analyzed, as an
example, all the songs contained in two albums, "Sobrevivendo no
Inferno" (1997) by Racionais MCs and "Nó na Orelha" (2011) of Criolo,
that mark the dynamism of rap in Brazil. From these analyzes, we
conclude that the song is a great source for the teaching of history and
also a rich and complex language. As it was possible to indicate in the
case of raps songs chosen and analyzed, both in their musicality and in
their narratives, we distinguish elements associated with the processes of
resistance and empowerment, which attest to the importance of
considering both the lyrics and the music in use of songs in education. In
addition, we indicate how rap can portray, in a non-essentialist
perspective, aspects of Afro-Brazilian identities to be explored in the
teaching of history and, thus, to stimulate students in the processes of
identity construction.

Keywords: History Teaching, Ethnic-Racial Relations, Languages,


Song, Rap and Afro-Brazilian Identities.
LISTA DE ABREVIATURAS

ANPUH Associação Nacional de História


EJA Educação de Jovens e Adultos
ERER Educação das Relações Étnico-Raciais
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais ou Transgêneros
MPB Música Popular Brasileira
PCN’s Parâmetros Curriculares Nacionais
Pnad Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNLEM Plano Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio
PT Partido dos Trabalhadores
UDESC Universidade Estadual de Santa Catarina
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UPP Unidade de Polícia Pacificadora
USP Universidade de São Paulo
VMB Vídeo Music Brasil
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................... 19
CAPÍTULO 1. Canção e Ensino de História: estudos teóricos ....... 25
1.1 Canção como fonte para o ensino de histórica ................................ 27
1.2. As pesquisas sobre ensino de história e canção .............................. 31
1.2.1. O Dossiê “Música e Ensino de História”..................................... 35
CAPÍTULO 2. Identidade, diferença e ensino de história ............... 43
2.1 Identidade, Diversidade e Diferença ............................................... 45
2.2. Identidades afro-brasileiras na sala de aula: do ocultamento ao
entranhamento ....................................................................................... 51
2.3. A questão da identidade nacional e os currículos de História ....... 55
2.4. O entranhamento das identidades afro-brasileiras .......................... 59
CAPÍTULO 3. Rap e identidades afro-brasileiras ........................... 63
3.1. O rap como gênero musical: caracterização ................................... 67
3.2. O Rap no Brasil .............................................................................. 71
3.3. Opções metodológicas .................................................................... 77
CAPÍTULO 4. Rap como possibilidade............................................. 79
4.1. A banda Racionais MC´s. O primeiro momento. A construção da
diversidade musical do rap brasileiro. ................................................... 81
4.1.1. O álbum “Sobrevivendo no Inferno”: Rap, Resistência,
Representação e Empoderamento.......................................................... 83
4.1.2. Análise das canções do álbum “Sobrevivendo no Inferno” da banda
Racionais MCs. ..................................................................................... 89
4.2. Criolo, o segundo momento do rap brasileiro: A consolidação da
diversidade do rap brasileiro ............................................................... 103
4.2.1. O álbum “Nó na Orelha”; Rap, Resistência, Representação e
Empoderamento .................................................................................. 105
4.2.2. Análise das canções do álbum “Nó na Orelha” de Criolo. ........ 107
4.3. Algumas considerações sobre as análises das canções ................. 117
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................ 119
REFERÊNCIAS ................................................................................ 123
GLOSSÁRIO ..................................................................................... 129
APÊNDICE A .................................................................................... 135
APÊNDICE B .................................................................................... 137
ANEXO A........................................................................................... 139
ANEXO B ........................................................................................... 141
ANEXO C........................................................................................... 143
19

INTRODUÇÃO

O trabalho aqui proposto surge como oportunidade de sistematizar


e aprofundar experiências didáticas que acompanham minha trajetória
docente desde seu início, em 2005, até os dias de hoje. Acredito que,
assim como eu, quase todos professores de história já devem ter pensado
inúmeras vezes, ao escutar canções no seu cotidiano: Por que não usar
essa canção ao trabalhar determinado tema?
Ao longo desses mais de 10 anos como professor em todos os
níveis do ensino básico - fundamental, médio, assim como na modalidade
Educação de Jovens e Adultos (EJA) - nas redes públicas e privadas do
interior de São Paulo e desde 2015 em Florianópolis-SC, já utilizei
canções de diversas maneiras em sala de aula. Entre as experiências que
realizei, lembro de ter utilizado a canção apenas como descontração ou
de levar uma canção descontextualizada do tema proposto ou trabalhado.
Ou ainda levar uma canção sem a letra para que os alunos pudessem
acompanhar, ou vice-versa, levar a letra, mas não a música para ser
escutada. Também já introduzi a canção em um momento inadequado da
sequência didática, perdendo o sentido ou atropelando uma outra
atividade.
Atualmente procuro trabalhar o uso de canções preferencialmente
de duas maneiras: na primeira, utilizo a canção como ferramenta
pedagógica para complementar um assunto/tema proposto. Aqui pode-se
usar a canção tanto no início da sequência didática como no fechamento,
utilizando a canção, por exemplo, para uma atividade avaliativa ou de
recuperação, e por fim, utilizando-a em ambos os momentos. A segunda
maneira de se utilizar a canção, e, em minha opinião, a melhor, é utilizá-
la, não apenas como linguagem, mas também, como fonte de construção
do conhecimento histórico escolar, ou seja, a canção como fonte histórica
para o ensino. O presente trabalho tem como objetivo analisar e propor
possibilidades do ensino de história através de canções, com foco em seus
aspectos identitários, tendo em vista sua utilização como fontes históricas
no contexto escolar.
Considero ainda que a canção possui diversos significados na
nossa vida prática, ela tanto pode servir como um simples momento de
prazer e relaxamento, como pode também servir para refletirmos sobre
vários aspectos da vida que nos cerca. A canção nos faz refletir sobre
questões políticas e sociais, ela nos emociona ao falar do sofrimento, do
amor, da alegria e da tristeza de pessoas que não conhecemos mas nos
identificamos, ela nos revolta ao mostrar as mazelas e desigualdades
20

sociais, ela nos motiva com seus ritmos e mensagens de esperança e de


um mundo melhor e menos desigual, ela nos faz rememorar um momento
da nossa vida que não volta mais, ela nos dá cara e forma de seres
pertencentes a grupos e pessoas com as quais comungamos das mesmas
angústias e dos mesmos anseios.
Legitimando a importância da canção no cotidiano das pessoas,
Hermeto e Soares (2017) afirmam:
No nosso cotidiano, a música é distração e lazer,
signo e linguagem, contato e convívio, percepção e
diálogo acerca do mundo e da vida social. Podemos
analisar a relação do ser humano com a música em
diferentes perspectivas: os aspectos subjetivos,
vinculados às percepções daqueles que ouvem e
interagem com a música; as relações sociais que a
música estabelece e proporciona em festas, shows e
cultos religiosos e outros lugares de sociabilidade;
a utilização da música como divulgação de
modelos de linguagem, de estética e de
posicionamento político; a sua construção como
veículo de representações sociais que
(re)produzem símbolos, valores e práticas
cotidianas – e têm também uma forte dimensão
crítica a eles; entre outros. A historiografia tem
demonstrado que seja qual for a perspectiva, a
utilização da música como fonte para a pesquisa
requer do historiador conhecimentos e
sensibilidades específicos, como o ouvido atento
para as melodias e os olhos abertos para as letras, a
compreensão de que a sua audição e dos demais
está intimamente relacionada com seus respectivos
contextos históricos, bem como o domínio da
gramática básica da linguagem musical e das
especificidades de cada gênero (HERMETO;
SOARES, 2017, p.1) .
Reforçando a importância do uso de canções em sala de aula,
devemos lembrar a força que as formas de comunicação oral exercem
sobre as pessoas em relação à escrita, principalmente para grande parte
da população brasileira, como sugerem Abud e Gleizer (2004).
Sendo assim, se, por um lado, ouvir uma canção é um prazer
praticamente de todas as pessoas em vários lugares e momentos, não seria
diferente em sala de aula. Por outro lado, ao ouvir uma canção em sala de
aula, principalmente no caso do ensino de história, necessário se faz
21

problematizá-la, ou seja, transformá-la em objeto de investigação e


análise, nesse sentido, a canção: (...) “ao entrar na sala de aula, se
transforma em uma ação intelectual. Existe enorme diferença entre ouvir
música e pensar a música” (BITTENCOURT, 2011, p.380).
Corroborando esse pensamento e contribuindo para a reflexão
sobre a importância de um material didático diversificado em sala de aula
pelo professor, vale considerar o que os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN’s) recomendam:
O material didático é um instrumento específico de
trabalho na sala de aula: informa, cria conflitos,
induz à reflexão, desperta outros interesses,
motiva, sistematiza conhecimentos já dominados,
introduz problemáticas, propicia vivências
culturais, literárias e científicas, sintetiza ou
organiza informações e conceitos. É tarefa do
professor estar continuamente aprendendo no seu
próprio trabalho, procurar novos caminhos e novas
alternativas para o ensino, avaliar e experimentar
novas atividades e recursos didáticos, criar e recriar
novas possibilidades para sua sala de aula e para a
realidade escolar (BRASIL, 1998, p.79-80).
Para justificar ainda mais o uso da canção em sala de aula, é
importante lembrar a diversidade da música popular brasileira,
constituída por vários ritmos e gêneros que agradam o gosto musical da
grande maioria dos jovens alunos, como por exemplo, o samba, o pagode,
o sertanejo, o forró, o rock, o rap, o funk, o reggae, entre tantas outras
nuances, misturas e hibridismos da “fauna musical brasileira”,
considerada “uma das grandes usinas sonoras do planeta, é um lugar
privilegiado não apenas para ouvir música, mas também para pensar a
música” (NAPOLITANO, 2005, p.7).
Neste trabalho, além do foco na importância e no uso de canções
em sala de aula e no ensino de história, consideramos que muitas vezes
os estudantes não possuem ainda muita familiaridade com a temática dos
estudos africanos e afro-brasileiros. Assim, a utilização de canções
associadas a esta temática abre possibilidades para seu aprofundamento.
Além disso, consideramos que a canção pode estimular processos
de produção de identitade, tendo em vista a consideração de identidades
plurais em uma perspectiva democrática, o que diz respeito ao potencial
do currículo, particularmente de história, em fomentar esses processos. A
partir destas considerações, tomo como foco, neste trabalho, a temática
da valorização das múltiplas identidades afro-brasileiras, por meio de
22

canções, como elemento fomentador e inclusivo, complexando e


ajudando na construção de uma identidade nacional heterogênea e
múltipla. Consideramos que o currículo escolar, em particular o currículo
de história, possibilita aos alunos processos de identificação e relações de
pertencimento em relação a diversos aspectos do presente e do passado,
entre os quais a constituição da identidade nacional, geralmente
concebida de forma homogênea, una e excludente, mas que atualmente, é
considerada como múltipla, complexa, heterogênea, fluida, de fronteira e
em construção.
Partimos dessa premissa em torno de uma concepção de
identidade, assim como da consideração da importância e do papel das
canções no ensino de história, com o objetivo de propor possibilidades de
ensino-aprendizagem com base em algumas canções, selecionadas a
partir de categorias consideradas relevantes na temática dos estudos afro-
brasileiros. A partir dos estudos teóricos, foi feita uma análise de um
gênero musical, o rap, com o intuito de indicar possíveis utilizações de
canções deste gênero no ensino de história.
A escolha deste gênero musical levou em consideração as
perspectivas teóricas sobre o ensino de história que fundamentam esta
dissertação, associadas ao uso das canções, assim como as discussões
sobre as identidades afro-brasileiras e os mecanismos de produção
identitária em questão. Outro elemento levado em consideração para sua
escolha, é que o rap é um gênero musical com grande aderência e
ressonância ao gosto musical dos jovens, e consequentemente, dos nossos
alunos.
Outro aspecto relevante na elaboração deste trabalho se refere ao
lugar de fala deste professor pesquisador, que disserta sobre uma
identidade que não é a dele: que vivência, experiência ou mesmo
autoridade possuo para dissertar sobre tais temas? Justifico este
questionamento a partir de duas perspectivas, uma de ordem mais pessoal
e humana e outra de ordem profissional associada às especificidades da
História. E é obvio que elas se misturam.
Em relação às questões pessoais, escrevo a partir da perspectiva da
alteridade, como o ponto de vista de uma pessoa ciente do mundo
extremante desigual que perpetua o preconceito racial e o racismo. Uma
sociedade que, sistematicamente, para manter o privilégio de alguns,
exclui uma grande maioria, negando-lhes saúde, cultura, educação e lazer.
Ciente dessa situação, penso e escrevo com o intuito de colaborar de
alguma maneira com a valorização e reconhecimento das identidades
afro-brasileiras.
23

Em relação às questões profissionais, sou professor de história, e


uma das funções primordiais dessa disciplina é narrar as histórias que por
muito tempo foram silenciadas, ocultadas e esquecidas. Entre essas
histórias não narradas, estão as dos povos afro-brasileiros. Também nesse
sentido, a partir da Lei 10.639/031, o ensino de história dos povos
africanos e afro-brasileiros se tornou obrigatório, o que serviu como um
grande impulsionador para se refletir e contribuir para a afirmação das
identidades afro-brasileiras, tarefa especialmente relevante para todos
professores de história.
Este trabalho está organizado em capítulos que visam
problematizar as várias questões relacionadas às categorias “canção”,
“identidades” e “ensino de história”. O primeiro capítulo, denominado
“Canção e ensino de história”, trata dos estudos teóricos do uso de
canções no ensino, no qual problematizamos o uso da canção, não apenas
como recurso didático no ensino de história, mas também, como
linguagem e fonte histórica. Apresentamos também algumas pesquisas
sobre as relações entre o ensino de história e as canções.
O segundo capítulo, denominado “Identidade, diferença e ensino
de história”, discorre sobre as discussões teóricas relacionadas às
múltiplas identidades afro-brasileiras e como essas discussões e teorias
perpassam pelo currículo de história até chegarem à sala de aula e, mais
especificamente, às aulas de história. Dissertamos sobre a questão da
diversidade e da diferença nas aulas de história, discutimos a perspectiva
essencialista e não essencialista sobre a identidade no que tange a questão
étnico-racial. Discorremos ainda sobre os ocultamentos e entranhamentos
das identidades afro-brasileiras nas aulas de história e discutimos de que
maneira a questão da identidade nacional brasileira está relacionada ao
currículo e ao ensino de história. Neste mesmo capítulo procuramos
fundamentar o debate sobre o uso de canções e as questões identitárias no
campo da história cultural e do ensino de história.
O terceiro capítulo desse trabalho faz uma caracterização do
gênero musical rap, aponta algumas discussões sobre a origem e história
desse gênero e também alguns aspectos de sua trajetória no Brasil. Nesse
capítulo também é problematizado as relações do rap com as identidades
afro-brasileiras.

1
Trata-se da Lei 10.639 de 09 janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências.
24

A última parte desse trabalho é a parte propositiva, na qual


exploramos o gênero musical rap em relação à temática afro-brasileira
com base na análise de algumas canções e indicamos as potencialidades
do uso do rap no ensino de história para a construção de identidades
múltiplas.
Chamo a atenção para alguns termos específicos da cultura do rap
e do hip-hop, assim como dos gêneros musicais que estarão explicados
em notas de rodapé na primeira vez que forem citados, além disso todos
constarão no glossário ao final do texto.
25

CAPÍTULO 1. Canção e Ensino de História: estudos teóricos

A primeira questão terminológica que surgiu nesse trabalho se


refere à escolha entre os termos “música” ou “canção”. Canção é aquilo
que cantamos com nossa voz. Uma melodia com letra para ser cantada.
Música é um conjunto mais amplo do que canção, pois ela abarca desde
a música clássica, música popular, música instrumental, música folk, etc.
e abarca também a canção.
O termo “música” é muito mais comum, usual e conhecido,
portanto mais próximo do público em geral, mas há uma tendência,
principalmente no meio acadêmico, em se utilizar o termo “canção”.
Talvez em um primeiro momento, o professor ao apresentar a
atividade a ser realizada com o termo “canção”, possa soar um pouco
estranho aos ouvidos dos alunos, e, por isso, já no início, necessário se
faz distinguir tais termos.
Vários autores, principalmente do campo do ensino de história,
como por exemplo Circe Maria Fernandes Bittencourt, utilizam o termo
“música”. Em seu livro “Ensino de História: fundamentos e métodos”
(BITTENCOURT, 2011), a autora, no capítulo III, desenvolve um tópico
denominado “Música e História”, com subtópicos denominados “Música
e ensino de história” e “Música e historiadores”, portanto percebe-se
claramente que a autora opta pelo termo “música”.
Há também historiadores especialistas nessa área que utilizam
ambos os termos, “música” e “canção” em seus trabalhos, que é o caso do
historiador Marcos Napolitano (2005; 2017), autor de vários livros e
artigos dedicados ao tema. A título de exemplo em relação à terminologia,
podem-se ser citados os livros “A síncope das ideias: A questão da música
popular brasileira” e “História e Música: História cultural da música
popular”. No entanto, apesar da utilização do termo “música” em alguns
títulos de suas obras, Napolitano (2005) também usa, explica e define o
que é canção:
Ao mesmo tempo, a canção vai além de todas estas
linguagens e informações específicas, realizando-
se como um artefato cultural que não é nem música,
nem poesia (nos sentidos tradicionais), nem pode
ser reduzida a um reflexo singular da totalidade que
a gerou (da sociedade, da história, do autor ou do
estilo musical). (NAPOLITANO, 2005, p.96).
Há também autores que utilizam o termo “canção” em seus
trabalhos. Luiz Tatit, músico fundador do grupo musical Rumo e
26

professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(USP) que possui várias obras, entre elas, “A canção: Eficácia e Encanto”,
“Semiótica da Canção: Melodia e Letra’, “O Cancionista: Composição de
Canções no Brasil” e “O Século da Canção”, diferencia os termos “música
e canção”, o que ajuda a justificar a escolha do termo a ser utilizado:
Mas o grande "xis" da questão, o que faz uma
música ser considerada uma canção, nas palavras
de Tatit, é a fala por trás da melodia. Tanto a letra
quanto a melodia devem passar a mesma
mensagem, como na época em que surgiram as
primeiras canções, em que pareciam recados:
amorosos, uma bronca ou até uma exaltação. Além
disso, canção é diferente de música ou de poesia,
pois "não adianta fazer poesia, porque, se ela não
puder ser dita, não vira canção. E você pode ter
também uma música extremamente elaborada, mas
se ela não suscitar uma letra, não tiver entoação,
também não é canção. (TATIT, 2007)
Após esses breves apontamentos sobre alguns livros, artigos,
entrevistas sobre o uso dos termos “canção e “música”, feitos por autores
que pesquisam a intersecção de história e o referido tema, optamos neste
trabalho pelo termo “canção”, que passamos a explorar na perspectiva do
uso de fontes no ensino de história.
27

1.1 Canção como fonte para o ensino de histórica

Nesse trabalho, a canção é considerada como fonte para o ensino


de história, capaz de permear todo o processo de aprendizagem, carregada
de significados, produzida em um determinado contexto, por um grupo
de pessoas que querem expressar seus sentimentos e transmitir suas
ideias. Essa é uma das possíveis maneiras de atribuir sentido e significado
ao aprendizado em sala de aula.
Outro enfoque em relação à canção, reafirmando seu potencial em
sala de aula, é que ela também possui uma dimensão política, associada
ao poder e ao pertencimento, ou seja, a canção se relaciona com a
construção identitária, pode gerar entre os sujeitos escolares uma maior
identificação com os temas trabalhados, nesse caso, com as identidades
afro-brasileiras, proporcionando um avanço no ensino-aprendizagem.
O interesse em trabalhar a canção como fonte para o ensino de
história vai muito além do simples fato dela ser uma fonte que possui uma
dimensão estética que dialoga com a linguagem juvenil. O interesse
também reside no fato de que a canção possui uma dimensão cognitiva,
ou seja, produz um saber, um conhecimento, nesse caso, um
conhecimento histórico.
Nesse sentido, a relação entre as fontes e o conhecimento histórico
pode ser assim explicada:
[...] o conhecimento histórico não é construído
apenas com as informações das fontes, mas as
informações das fontes só são incorporadas nas
conexões que dão sentido à história com a ajuda do
modelo de interpretação, que por sua vez não é
encontrado nas fontes [...] Os modelos de
interpretação, que o historiador aplica às fontes
para fazê-las fluir e para revelar o conteúdo dos
fatos, devem ser discutidos à base da configuração
de suas teorias, a forma pela qual correspondem
aos princípios da metodização do pensamento
histórico. (RÜSEN, 2007, p. 25).
Em relação ao uso de fontes históricas alternativas, o que vem
crescendo cada vez mais com a historiografia atual, a canção, assim como
os clipes musicais, os filmes, as charges, os desenhos, as animações, os
memes, entre outras fontes e linguagens, tornam a construção do
conhecimento histórico algo muito mais complexo. Se antes eram
considerados poucos documentos e, como consequência, poucas
28

narrativas, hoje com a “revolução documental”, termo utilizado por


Pereira e Seffner (2008), as narrativas e o conhecimento também se
alargaram.
Nesse sentido, o “uso de fontes históricas deve servir para
suspender o caráter de prova que os documentos assumem desde a história
tradicional e mostrar às novas gerações a complexidade da construção do
conhecimento histórico” (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p.126).
Quanto ao ato de “desconfiar da fonte”, por meio da complexidade
e diversidade proporcionadas pela “revolução documental”, os autores
afirmam:
Desconfiar da fonte não quer dizer atestar sua
falsidade, mas olhá-la como um monumento que as
sucessivas gerações classificaram, ordenaram e
ressignificaram. Desse modo, o uso de fontes em
sala de aula é profícuo, na medida em que apresenta
às novas gerações a complexidade da construção
do conhecimento histórico e tira do documento o
caráter de prova, desloca o estudante da noção de
verdade que utiliza no cotidiano e, sobretudo,
permite abordar o relato histórico como uma
interpretação (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p.
127).
E, reafirmando a importância de se utilizar outras fontes e com
novos olhares, significados e interpretações, devemos lembrar que tais
documentos são monumentos, ou seja, como sugerem os autores, são
rastros deixados por seres humanos no passado. Seria o caso também da
canção.
Sobre a transformação do documento em monumento, os autores
sugerem que:
O documento se torna monumento, ou seja, ele é
rastro deixado pelo passado, construído
intencionalmente pelos homens e pelas
circunstâncias históricas das gerações anteriores. O
documento não é mais a encarnação da verdade,
nem mesmo pode ser considerado simplesmente
“verdadeiro” ou “falso”. O ofício do historiador
deixa de ser o de cotejar o documento para verificar
sua veracidade, e passa de ser o de marcar as
condições políticas da sua produção. O
documento/monumento é um engenho político, é
um instrumento do poder e, ao mesmo tempo, uma
29

manifestação dele. (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p


116).
Após essas análises e observações, pode-se afirmar que esse
trabalho defende o ponto de vista desse novo olhar e interpretação sobre
as canções como uma fonte alternativa e rica de significados, as quais
ajudam a complexificar ainda mais o conhecimento histórico construído
em sala de aula.
30
31

1.2. As pesquisas sobre ensino de história e canção

A discussão sobre as relações entre ensino de história e canção já


possui uma trajetória significativa no contexto da consideração de
múltiplas linguagens e suas possibilidades na sala de aula, tanto que a
canção é objeto de análises em textos, artigos, dissertações, teses e livros.
Bittencourt (2011) analisa a relação entre a canção e história.
Segundo a autora, a música, em especial a música popular, tem se tornado
cada vez mais objeto de pesquisa de historiadores e também utilizada
como recurso didático.
Corroborando esse pensamento a respeito da utilização da canção
na história, Napolitano (2005) reafirma a preferência de uso de alguns
gêneros musicais e temas, como por exemplo, os sambas no período
Vargas, a Música Popular Brasileira (MPB) durante a ditadura civil-
militar, além do forró, do sertanejo e do rap com temáticas ligadas à
identidade, ao mundo rural e do trabalho, à juventude e às questões sociais
como preconceito, violência e discriminação.
Bittencourt (2011) problematiza o uso das canções em sala de aula,
questionando de que maneira deve-se transformá-las em objetos de
investigação. A autora também discorre sobre a relação entre a canção e
historiadores, o que no Brasil ganha força a partir da década de 70 e 80
do século XX, quando a canção foi vista como veículo das tensões sociais,
conforme analisada por Arnaldo Contier a respeito da produção de Edu
Lobo e Carlos Lyra, isto é, o nacional e o popular na canção de protesto.
A autora cita também a contribuição dos estudos de Theodor Adorno em
seus estudos referentes à indústria cultural na qual, segundo ele, a música
popular estava inserida. A autora aponta ainda a importância quanto ao
método de análise documental no caso da canção, que possui
especificidades em relação aos demais tipos de documento, como por
exemplo a análise dos autores e intérpretes das canções, os produtores, as
gravadoras, os técnicos e os consumidores. No final do tópico, a autora
problematiza as limitações do uso de canções nas aulas de história
apontando alguns problemas possíveis, como: quando a análise da letra
se encontra separada da música; o autor não está inserido no contexto
social em que produziu a obra; os livros didáticos sugerem apenas uma
leitura da letra da música como uma manifestação de setores sociais
populares; as canções não retratam outros momentos históricos e outras
culturas, como por exemplo, dos povos indígenas e não é feita a relação
entre canção e indústria cultural.
32

Schmidt e Cainelli (2010) problematizam as novas linguagens no


ensino de história, afirmando que, a partir da divulgação sistemática de
imagens em livros e veículos de comunicação, essas contribuíram para
que o passado se confundisse com a própria imagem. As autoras apontam
para os novos desafios dos historiadores e professores de história, que,
entre o final do século XIX e começo do XX, período em que houve um
desenvolvimento e uma expansão de novas linguagem culturais como por
exemplo, a fotografia, o cinema, a televisão e a informática, precisam
entender a importância de analisar e compreender a natureza dessas novas
linguagens, para incorporá-las como fontes de estudo. Embora as autoras
não citem diretamente, podemos considerar a canção inserida nesta
mesma discussão a respeito da diversidade de linguagens no ensino.
No livro “Ensino de História” (2010), os autores Ronaldo Cardoso
Alves, Katia Maria Abud e André Chaves de Melo Silva, no capítulo 4,
denominado “Letras de música e aprendizagem de história”, trabalham na
perspectiva da linguagem musical como ponte entre a consciência
histórica e o passado histórico. Segundo os autores, a essência da canção
pode ser respondida com base nas especificidades culturais de cada povo,
grupo social e indivíduos, ou seja, a canção deve ser compreendida como
arte e conhecimento sociocultural.
Os autores também consideram a canção como uma “linguagem
no ensino de história que serve para estimular os alunos a compreenderem
por quais motivos as pessoas atuaram no passado de determinada forma
e o que pensavam ao agirem daquela maneira” (ABUD; ALVES; SILVA,
2010, p.64). Afirmam ainda que o diálogo entre o gosto musical dos
alunos e o do professor é muito importante. Segundo os autores, a
apropriação da canção é criação de uma representação, no caso dos
jovens, e que é importante para eles tal vinculação/participação de um
determinado movimento cultural, constituindo-se uma identificação com
determinado grupo. Os autores também lembram da importância da
articulação entre a canção e o seu contexto histórico. Além disso, os
autores ressaltam a questão da “recepção cultural” da canção por parte
dos alunos e, nesse sentido, como mapear e compreender “os usos e
apropriações” relacionando à questão do mercado de produção, das forças
e influências que agem sobre as relações de consumo das canções pelos
jovens. Propõem relacionar estas questões com o conhecimento histórico.
Complementando essas ideias, Napolitano afirma que “o ouvinte
opera num espaço de relativa liberdade, influenciado por estruturas
objetivas (comerciais, culturais e ideológicas) que lhe organizam um
campo de escutas e experiências musicais” (NAPOLITANO, 2002, p.82).
33

A respeito das relações entre receptividade juvenil, relações de


consumo, apropriações, identificações e construção do conhecimento
histórico, assinala Contier (1991)
Conhecimento histórico e a produção musical são
formas de explicar o presente, inventar o passado e
imaginar o futuro – representações históricas
construídas pelos alunos com base nas músicas
podem ajudar na construção do conhecimento
histórico ao propiciar a identificação dos
diferentes significados dos elementos definitivos e
provisórios contidos e trabalhados de maneira
diagnóstica pelo professor por meio dos
instrumentos de leitura histórica na linguagem
musical, processo que pode se transformar numa
ponte entre a realidade atual e o passado histórico.
(CONTIER, 1991, p.151).
Após esses apontamentos, análises e observações sobre a relação
entre canções e ensino de história, com o intuito de aprofundar e alicerçar
esse trabalho, algumas leituras e análises foram feitas em vários artigos,
dissertações e textos, com destaque para o Dossiê “Música e ensino de
história”.
34
35

1.2.1. O Dossiê “Música e Ensino de História”

Em função de sua atualidade e importância, analisamos as


contribuições, para este trabalho, do Dossiê “Música e Ensino de
História”, publicação da Revista História e Ensino da Associação
Nacional de História (ANPUH), publicado em junho de 2017. O Dossiê
traz uma série de artigos, resenhas e entrevistas que tratam das relações
entre canção e ensino de história. Logo na apresentação do Dossiê,
Miriam Hermeto e Olavo Pereira, os organizadores, ressaltam a
importância de os professores/pesquisadores ficarem com os “ouvidos
atentos para a melodia e os olhos abertos para as letras” (HERMETO;
PEREIRA, 2017, p.3), evidenciando a importância de analisar/trabalhar a
canção, ou seja, letra e música. Os autores também destacam a
importância de contextualizar não apenas a produção e a letra da canção,
mas também as formas de audição da canção naquele contexto histórico.
E, por último, destacam que os professores de história, ao utilizar as
canções em suas aulas, devem utilizá-la não apenas como objeto de
estudo, mas também como fonte para a construção do conhecimento
histórico pelos estudantes.
O Dossiê também traz uma rica entrevista com o professor de
história Marcos Napolitano, considerado como uma das principais
referências na intersecção entre música e história. Nesta, Napolitano
(2017) destaca as possibilidades de relacionar gêneros musicais com
determinadas temáticas, como os sambas da década de 1930 com a Era
Vargas, associados aos temas do trabalhismo ou malandragem, ou a
música popular brasileira (MPB) no período da ditadura civil-militar
(1964-1984), com canções de protesto e resistência. Também aponta
outras abordagens, como por exemplo, o rap e o rock associados a temas
da juventude, os gêneros nordestinos, como o forró, o frevo e o maracatu
relacionados com questões identitárias e representacionais, e ainda a
música caipira/sertaneja com as temáticas do trabalho rural, da
propriedade rural, do cotidiano e do êxodo rural.
O autor destaca os desafios, tanto metodológicos, em relação à
melhor, ou mais adequada maneira de se incorporar a escuta musical na
análise da canção como um processo heurístico no que tange à utilização
da canção como fonte histórica. Neste caso, deve ser mobilizado também
o formato original da gravação (LP, CD, MP3, etc). Em relação aos
desafios, o autor defende que o eixo do planejamento das atividades deve
ser pensado tanto no gosto musical dos alunos como também na
ampliação do repertório musical dos mesmos. Segundo ele, não se deve
36

apenas reproduzir os gostos musicais dos alunos e muito menos impor o


do professor, e aqui existe um nó difícil de ser desatado, pois cada vez
mais ocorre uma “tribalização” das audiências juvenis, que se fecham em
certos gêneros e gostos musicais. Por outro lado, há um enorme
preconceito dos professores em relação a alguns gêneros musicais, como
por exemplo o funk, o rap e o sertanejo.
Ao final da entrevista, Napolitano realça a importância dos
cuidados metodológicos. Para além da sala de aula, destaca a busca, pelo
professor, da maior quantidade de informações acerca das canções; o
aumento do seu repertório musical para além dos denominados clichês; a
importância em conhecer diversos gêneros musicais e entender o contexto
histórico da produção e circulação de determinadas canções e gêneros
musicais. Em sala de aula, o professor deve ter o esmero com os roteiros
de atividades, com a letra e a escuta da canção, a qual deve ser feita
repetidas vezes, e com a observação em relação a sensibilidade dos
alunos.
Outros artigos do Dossiê contribuem para as reflexões teóricas e
metodológicas deste trabalho, como o caso do artigo denominado
"Rasuras da História: samba, trabalho e Estado Novo no ensino de
História", de Adalberto Paranhos, no qual a canção é analisada como
fonte histórica. Aqui o contexto histórico é assinalado como sendo de
extrema importância, já que o samba era considerado como parte
fundamental da construção de uma cultura política tipicamente brasileira.
Segundo o autor, a pesquisa histórica que, nesse caso, toma a canção
como objeto de análise, pode fornecer elementos teóricos e
metodológicos para o trabalho do professor (PARANHOS, 2017).
Importante destacar esse artigo pois Paranhos analisa a canção
como fonte histórica, e uma das defesas desse trabalho é justamente esse
enfoque dado à fonte canção, e não apenas a utilização dela como recurso
didático.
No artigo intitulado “A música nas aulas de história” de Olavo
Pereira Soares, que tem uma perspectiva centrada na epistemologia da
história, é realizado um debate teórico e metodológico sobre a canção nas
práticas escolares, que contribui para este trabalho no sentido de apontar
possibilidades teórico-metodológicas. Esse artigo também é muito
relevante para este trabalho já que o foco principal é a utilização de
canções nas aulas de história, e para isso, é fundamental que conheçamos
formas e metodologias para a utilização dessas canções.
O artigo “Relato de viagem: o livro Apologia da História e o uso
de canções no ensino de disciplinas da Área de Teoria e Metodologia da
História” de autoria de Edmilson Alves Maia, já discorre sobre o uso da
37

canção como possibilidade didática nas disciplinas voltadas para a


formação do historiador em cursos de graduação. As análises tiveram
como base programas elaborados pelo autor na Universidade Estadual do
Ceará. Interessante notar a relevância desse artigo em relatar a
importância das capacitações nas formações de professores, o que
contribuiu para o este trabalho no sentido de trazer exemplos de
possibilidades didáticas no uso de canções em sala de aula.
No artigo “Na trilha sonora da História: a canção brasileira como
recurso didático-pedagógico na sala de aula” de Luis Guilherme Ritta
Duque, a canção é utilizada como recurso didático em sala de aula. A
análise das canções se deu a partir de experiências do autor como docente
na formação de professores, utilizando a canção como recurso didático.
Esse artigo, assim como o anterior, também contribuiu para o trabalho,
no sentido de mostrar possibilidades do uso de canções como recurso
didático.
No artigo intitulado “Decantando a República: um encontro entre
o historiador e o compositor popular” de Bruno Viveiro Martins, a análise
e voltada para um programa da rádio da Universidade Federal de Minas
Gerais denominado “Projeto República”. A análise aborda as relações
entre as canções populares e a história. Esse artigo é relevante no sentido
de apontar uma possibilidade de se pensar canções populares como fontes
históricas. Esse artigo também é muito importante para este trabalho, pois
da mesma forma que o artigo de Adalberto Paranhos, joga luz sobre a
possibilidade de se trabalhar as canções como fontes históricas e não
apenas como recurso didático.
O artigo “História por Música: aplicações de um projeto de música
popular e ensino de história”, de Carlos Eduardo de Freitas Lima, consiste
na utilização de algumas canções concatenadas com alguns
períodos/acontecimentos históricos. Os textos que buscam articular
conhecimentos históricos por meio de algumas canções foram
disponibilizados em uma página do Facebook denominada “História por
música”, cuja ferramenta, segundo o autor, “permite uma difusão do
conhecimento histórico e a busca de novos métodos para o aprendizado
de história”. É interessante a contribuição desse artigo em duas frentes, a
primeira que é a possibilidade da utilização de redes sociais com o intuito
de se alcançar um número maior de pessoas e também como um
mecanismo facilitador na hora da utilização dessas canções em sala de
aula, e é também muito interessante observar como o autor se utiliza de
canções para remeter e contextualizar alguns períodos e acontecimentos
históricos.
38

“Ditadura militar sob o olhar de composições musicais” é um


artigo de autoria de Flávia Jovelino da Silva que relata a utilização de
letras de canções populares da década de 60 e 70 do século XX com
turmas do 9º ano do ensino fundamental nas aulas sobre o período da
ditadura. As atividades consistiam em utilizar as canções como fontes de
pesquisa, contextualizando o período histórico da ditadura-civil militar
(1964-1985) e, também, estabelecendo relações com o momento em que
os alunos estavam passando. A escola onde a professora propôs a
atividade fica na Rocinha-RJ e, naquela época, estava ocupada pelas
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Como atividade final, a
professora solicitou aos alunos a produção de canções que refletiam o
momento atual que estavam passando relacionados ao que aprenderam
por meio das canções do período estudado. Esse artigo contribui
duplamente para esse trabalho, em primeiro lugar por trabalhar a canção
como fonte histórica, e em segundo lugar, por estabelecer relações do
período histórico estudado com o cotidiano dos alunos, dando mais
sentido para os alunos os temas estudados nas aulas de história.
Dentre os artigos do Dossiê, dois merecem um destaque e um olhar
mais detalhado por tratarem da temática relacionada as identidades afro-
brasileiras e o uso de canções no ensino de história.
O primeiro é o artigo denominado “O Canto de Clara:
possibilidades de ensino-aprendizagem da história afro-brasileira”, do
autor Luciano Magela Roza, que trata de uma pesquisa histórica
relacionada com a prática pedagógica. O artigo discorre sobre as relações
entre a cultura afro-brasileira e a canção popular que ganham uma
relevância ainda maior nos tempos de intolerância. Ao analisar as canções
da intérprete Clara Nunes e também de sua trajetória artística, que foi, ao
longo do tempo, se modificando e cada vez mais se identificando com os
elementos da cultura afro-brasileira, o autor demonstra a aproximação
crescente da intérprete não apenas com o movimento negro ou outros
movimentos sociais, mas também com vários extratos sociais que
simpatizavam com os elementos da cultura afro-brasileira. O artigo
advoga a importância das práticas de ensino que honrem, por meio do uso
de canções da artista Clara Nunes, as conquistas dos movimentos sociais
e da valorização da cultura e dos estudos afro-brasileiros que foram
contemplados nas legislações educacionais mais recentes, principalmente
as Leis 10.639/03 e 11.645/08.
Esse artigo é extremamente relevante para este trabalho, pois ele
traz uma intersecção da utilização das canções como fontes históricas nas
práticas pedagógicas com a questão das identidades afro-brasileiras, que
39

é justamente o foco deste trabalho. Sintetizando a relevância desse artigo,


Magela (2017) assim escreve:
Considerando o contexto apontado, este artigo
propõe uma reflexão sobre a utilização da música
como parte do processo de produção do
conhecimento histórico na escola no tratamento da
História e cultura afro-brasileira e africana no
currículo escolar. A obrigatoriedade da temática
africana e afro-brasileira como conteúdo curricular
obrigatório da Educação Básica, posta a partir da
Lei 10.639/031 e reafirmada nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História
e Cultura Africana e Afro-brasileira, produziu
simultaneamente, por um lado, novas questões,
tensões e inquietações em diversos espaços sociais,
e, por outro, a necessidade de elaboração de novas
e diversas abordagens, metodologias e ações
pedagógicas para o tratamento dos temas postos a
partir daí. Além disso, é importante ressaltar que a
referida legislação busca, nas disputas constitutivas
do campo do currículo escolar, redimensionar o
lugar reservado aos africanos e afro-brasileiros na
memória coletiva do país e na narrativa nacional.
(MAGELA, 2017, p.101).
O segundo artigo que faz essa intersecção da canção com os
estudos afro-brasileiros é intitulado “Gênero e reconhecimento no funk
carioca: perspectivas para o ensino na educação básica”, cuja autoria
pertence a Carlos Eduardo Dias Souza e Gladysmeire Guimarães Silva.
O artigo traz à tona uma canção da Mc Carol, a qual, fazendo referências
a Dandara dos Palmares, reivindica o protagonismo feminino, tanto no
passado, como no presente, ou seja, personagens femininos como
“lugares de memória”. Segundo o artigo, a personagem Dandara
possibilita o reconhecimento de outras mulheres negras e marginalizadas
como agentes de sua própria história, e sugere que tal reconhecimento
atue como ferramenta pedagógica no ensino de história, tanto em relação
às questões de gênero como às étnico-raciais. O artigo tem como
fundamentação teórica alguns autores decoloniais como Homi Bhabha,
autores que também se debruçam sobre questões identitárias como Stuart
Hall, e, no campo das representações, Pierre Bourdieu. Esse artigo
também é extremamente relevante para este trabalho, pois, além de
relacionar canções com questões identitárias afro-brasileiras, fundamenta
40

em autores que também serão aqui considerados, mais especificamente,


Stuart Hall, como veremos a seguir.
O artigo também é muito importante para este trabalho, pois seus
autores trazem muitas discussões sobre algumas categorias da história
como a memória e a identidade, citando autores como Pierre Nora, Vera
Maria Candau, Paul Gilroy, entre outros já supracitados, e, segundo, tanto
os autores do texto, bem como suas referências, tratam dos
entrelaçamentos da memória com identidade como vetores de se pensar
em outras narrativas diferentes da eurocêntrica, e consequentemente,
capaz de facilitar processos de identificação por mais pessoas. Essa
tentativa de produção de processos de identificação também faz parte da
parte propositiva deste trabalho.
Outra característica muito relevante desse artigo para o trabalho é
que, após fazer vários apontamentos e discussões sobre canção (funk, hip
hop, rap), personagens históricos (Dandara dos Palmares), categorias da
história (memória, narrativa e identidade), questões de gênero e étnico-
racial (empoderamento da mulher negra), traz todas essas
problematizações para o ambiente escolar, especificamente para as aulas
de sociologia e história, demonstrando todo o potencial que o uso dessas
canções podem trazer para o ensino, articulando novas narrativas
decoloniais e questionando as narrativas eurocêntricas que quase sempre
predominaram nos currículos e aulas de história. Toda essa discussão é
de suma importância e está presente neste trabalho também, por isso o
grande destaque para esse artigo.
Um trecho desse artigo demonstra como a intersecção da utilização
de canções com o ensino de história serve como potencializador de
produção de novas narrativas, e, consequentemente, capaz de estimular
pertenças e identificações. Nesse trecho a seguir, os autores citam uma
estrofe da canção Falsa Abolição das cantoras Preta Rara e Negra Jack
que diz: “meninas negras não brincam com bonecas pretas” e
problematizam:
Preta Rara e Negra Jack chamam a atenção, na
música Falsa Abolição aqui citada, para um fato
cada vez mais questionado: a sub-representação de
negras nas distintas esferas do fazer social,
inclusive na escola. Por vezes, no currículo escolar,
em livros didáticos ou mesmo na narrativa docente,
o ponto que se destaca tende a realçar aspectos
negativos da história das pessoas negras no Brasil:
o africano e o seu descendente, muitas vezes
construídos por aqueles identificados à narrativa do
41

colonizador branco, ganham uma identidade


“atribuída”. Ainda que ambas sejam MCs da cena
hip-hop, o trecho destacado pode nos servir aqui
como ponto de aproximação com o funk para fins
pedagógicos (SOUZA E SILVA, 2017, p 202).
Esse trecho resume a importância, não apenas desses dois últimos
artigos analisados, mas praticamente quase que a totalidade dos artigos,
entrevistas, resenhas e análises contidos nesse Dossiê, sobre a
importância do uso de canções como linguagem, recurso didático e fonte
histórica capaz de produzir novas narrativas para o ensino de história,
principalmente no que tange a temática das identidades afro-brasileiras, o
que ganhou relevância após a promulgação da Lei 10.639/03,
constituindo-se como uma forte matriz produtora de identificação e
pertencimento por uma maior parte dos alunos em relação ao currículo e
ensino de história.
42
43

CAPÍTULO 2. Identidade, diferença e ensino de história

Com o intuito de desenvolver um trabalho que possibilite trabalhar


as identidades afro-brasileiras por meio de canções, após as discussões
sobre as possibilidades de utilização de canções em sala de aula,
necessário se faz problematizar os conceitos sobre o termo “identidade”.
O que é identidade? Qual a sua, a minha e a nossa identidade? O
que é “ter” uma identidade? São perguntas que sempre foram difíceis de
responder e que possuem inúmeras e imprecisas respostas. No mundo
atual tais conceitos ou tentativas de construí-los ficaram cada vez mais
complexos. O que é ser brasileiro? Qual a sua etnia? Qual a sua raça?
Perguntas relativamente simples, mas que geram uma série de crises e
perturbações na hora de respondê-las.
Para tentar responder tais perguntas, necessário se faz
problematizar e definir o que é identidade. Para tanto, vamos
problematizar tais questões sobre a perspectiva contemporânea nos
estudos da sociedade e cultura.
Segundo Woodward (2000), uma concepção de identidade está
relacionada a uma perspectiva essencialista, ou seja, sobre quem pertence
ou não pertence a um determinado grupo identitário. Neste caso, a
identidade é vista como fixa e imutável. Entretanto, segundo a autora, a
identidade é relacional, ou seja, a diferença é estabelecida por uma
marcação simbólica e depende daquilo que o outro diz o que ela é. Ela é
definida pela negação, ou seja, por aquilo que não é.
Nesta mesma perspectiva, segundo Hall (2000),
Além disso, elas emergem no interior do jogo de
modalidades específicas de poder e são, assim,
mais o produto da marcação da diferença e da
exclusão do que o signo de uma unidade idêntica,
naturalmente construída, de uma “identidade” em
seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade
que tudo inclui, uma identidade sem costuras,
inteiriça, sem diferenciação interna (HALL, 2000
p.109).
A identidade se relacionada com o contexto social e material, e,
para Woodward (2000), depende dos símbolos marcados em algum
desses grupos sociais, o que provoca processos de exclusão ou
desvantagens materiais. A identidade é, portanto, marcada por meio da
linguagem, por meio de símbolos que designam a diferença.
44

O social e o simbólico referem-se a dois processos


diferentes, mas cada um deles é necessário para a
construção e a manutenção das identidades. A
marcação simbólica é o meio pelo qual damos
sentido às práticas e relações sociais, definindo, por
exemplo, quem é excluído e quem é incluído. E por
meio da diferenciação social essas classificações da
diferença são “vividas” nas relações sociais
(WOODWARD, 2000, p.14).
Nesses processos de classificação e demarcação que envolvem as
relações de identidade e diferença, outras relações de forças e de poder
podem ficar esquecidas e/ou escondidas e desaparecem das discussões.
Ou seja, quando consideramos as relações de identidades étnicos-raciais,
esquecemos das relações de gênero, ou ainda, quando tratamos das
relações de trabalho, esquecemos das relações de gênero e étnico-raciais.
Portanto, as identidades possuem vários aspectos, não são unificadas e
apresentam inúmeras contradições, e todas elas precisam ser
problematizadas e negociadas.
E por último, mas não menos importante, não se pode esquecer do
aspecto psíquico em relação às questões identitárias, ou seja, o modo pelo
qual as pessoas assumem suas posições de identidade e se identificam
com ela (WOODWARD, 2000), marcando, deste modo, ao mesmo tempo
a identidade e a diferença.
45

2.1 Identidade, Diversidade e Diferença

Em primeiro lugar, cabe salientar que vemos a diversidade com


ótimos olhos, ela é necessária, salutar e positiva, pois uma sociedade que
considera a alteridade pode se tornar um lugar mais plural, harmônico e
inclusivo. Mas apenas diversidade não basta, necessário se faz questionar
o porquê das diferenças, por que essa escolha e não outra? Por que esses
temas e não aqueles? Por que trabalhar tais conteúdos e não outros? Por
que uma história eurocêntrica e não uma história brasileira? Por que uma
história brasileira a partir da chegada dos europeus e não uma história
brasileira antes da chegada dos europeus? Por que uma história pautada
nos homens, brancos, descendentes de europeus e católicos e não uma
história pautada em mulheres e homens, indígenas, negros e brancos,
ateus, politeístas, do candomblé, de muçulmanos e cristãos?
Enfim, há uma série de diferenças que não foram, e ainda não são
contempladas pelos nossos currículos de história.
Poderíamos questionar se, ao trazer todas essas problematizações
para nossa história e nosso currículo, não seria isso a tal da diversidade?
Pode-se dizer que sim, mas precisamos ir além, precisamos dar alguns
passos adiante, virar essa página da nossa história brasileira, ou seja,
aquela heterossexual, católica e eurocêntrica, precisamos caminhar.
Assim como a sociedade e suas instituições são dinâmicas, umas mais
outras menos, nossa história e nosso currículo também o são. E antes de
incluir e diversificar nossa história e nosso currículo, urge perguntar: Por
que é diferente? Por que tais diferenças nunca foram incluídas?
Acredito que os Estudos Culturais2 nos forneçam não respostas
prontas, e sim fundamentos e questionamentos em relação a essas
escolhas.
E, segundo os Estudos Culturais, não há como escapar de que toda
a nossa cultura é permeada pelas relações de poder, e, consequentemente,
nossas histórias, segundo as narrativas oficiais, nossos currículos e nossas

2 De acordo com Costa (2010, p.138), com base nas concepções de Stuart Hall,
um dos mais conhecidos e destacados intelectuais dos Estudos Culturais, esta
perspectiva teórica considera que: “é na cultura que se dá a luta pela significação,
na qual os grupos subordinados tentam resistir à imposição de significados que
sustentam os interesses dos grupos dominantes. Nesse sentido, os textos culturais
são muito importantes, pois eles são um produto social, o local onde o significado
é negociado e fixado, em que a diferença e identidade são produzidas e fixadas,
em que a desigualdade é gestada”.
46

escolhas são pautadas, também, nas relações de poder. E ao examinar toda


a nossa trajetória e história educacional, desde os primeiros colégios
jesuíticos chegando até a redemocratização na década de 80 do século
passado, me parece óbvio que ela foi pautada na história apenas dos
vencedores, ou seja, do homem, branco, europeu e católico.
E é nesse sentido que os Estudos Culturais são extremamente
importantes para problematizar e questionar tais escolhas3, por isso
defendemos as problematizações trazidas pelos Estudos Culturais, pois
não apenas defendemos os estudos das diferenças, questionamos os
porquês das diferenças e por que algumas culturas, temas e conteúdos são
contemplados e outros não, os quais são intencionalmente esquecidos. As
relações de poder fundamentam tais respostas.
Um aspecto importante em relação ao conceito de identidade e
diferença, segundo os Estudos Culturais, se refere à diferenciação entre
identidade cultural essencialista e não essencialista. A primeira diz
respeito a uma concepção de identidade fixa, sólida e imutável, com
relação à qual um determinado grupo de pessoas se identifica, como, por
exemplo, uma nacionalidade, uma etnia ou uma raça. A segunda se refere
a uma concepção de identidade fluida, móvel, em construção e híbrida,
em relação à qual, não apenas uma determinada categoria de pessoas se
identifica, e sim, uma coletividade heterogênea, ou seja, vários grupos de
sujeitos.
Na concepção essencialista, para se afirmar uma identidade, é
preciso diferenciá-la, em outras palavras, é na negação ou diferenciação
do outro que se constrói determinada identidade. É a identidade
construída pela negação da diferença. No caso de uma concepção de
identidade não essencialista, a diferença é vista como fator positivo, ou
seja, ela é necessária para a construção daquela identidade. É a identidade
“na” e “com” a diferença.
As conceitualizações clássicas quanto aos termos raça (ligada às
questões biológicas) e etnia (relacionada às características culturais),
também ganham contornos mais complexos no âmbito dos Estudos
Culturais, nos quais, apesar das diferenciações, tais conceitos passam a
abarcar mais semelhanças e diferenças nos sujeitos que reivindicam tal

3 Destaco que praticamente em toda nossa história, com algumas raras exceções
trazidas pelos últimos governos que atenderam às demandas históricas de
movimentos sociais, como por exemplo, o movimento negro, feminista, LGBT e
indígena, pode-se dizer que foi uma história e um currículo centrado e pautado
na figura de quem sempre esteve e novamente está no poder.
47

ou qual identidade. Em outras palavras, o que é ou quem pode pertencer


ou pleitear tal raça ou determinada etnia?
À primeira vista, pode-se parecer que a concepção essencialista de
identidade traz apenas uma característica negativa e/ou excludente. Na
maioria dos casos relacionados às questões identitárias, ela é, sim,
utilizada para excluir o “outro” ou os “diferentes”, como por exemplo,
quem não faz parte de tal comunidade, povo, nacionalidade ou país. Ou
seja, nesta perspectiva, definindo um critério identitário,
obrigatoriamente estaremos excluindo outras identidades.
No entanto, uma concepção essencialista pode servir para atender
às demandas de grupos que historicamente foram excluídos de
determinada sociedade. É o caso por exemplo, das comunidades
quilombolas e indígenas que reivindicam a demarcação de suas terras
previstas na Constituição Federal de 1988. Também é o caso dos sujeitos
que fazem parte das comunidades afrodescendentes e indígenas que
possuem direitos garantidos por lei.
Embora reconheça este aspecto, mas buscando problematizar e
superar essa discussão dicotômica, Hall (2003) critica a necessidade da
perspectiva essencialista de identidade em relação à questão racial:
Esse momento essencializa as diferenças em vários
sentidos. Ele enxerga a diferença como "as
tradições deles versus as nossas" — não de uma
forma posicional, mas mutuamente excludente,
autônoma e autossuficiente — e,
consequentemente, incapaz de compreender as
estratégias dialógicas e as formas híbridas
essenciais à estética diaspórica. (HALL, 2003, p.
344).
Nesses casos, apesar de tal perspectiva essencialista de
identidade possuir o intuito não de excluir, e, sim, de afirmar a identidade
de um grupo, ou de uma chamada “minoria”, tal perspectiva acaba por
reforçar a discriminação. Nesse sentido, Hall (2003) cita o exemplo de
Paul Gilroy em relação à agenda política e cultural da política negra no
Reino Unido na década de 90 do século passado:
(...)os negros da diáspora britânica devem, neste
momento histórico, recusar o binário negro ou
britânico. Eles devem recusar porque o "ou"
permanece o local de contestação constante,
quando o propósito da luta deve ser, ao contrário,
substituir o "ou" pela potencialidade e pela
48

possibilidade de um "e", o que significa a lógica do


acoplamento, em lugar da lógica da oposição
binária. Você pode ser negro e britânico, negra e
britânica não somente porque esta é uma posição
necessária nos anos 90, mas porque mesmo esses
dois termos, unidos agora pela conjunção "e",
contrariamente à oposição de um ao outro, não
esgotam todas as nossas identidades. (HALL,
2003, p. 345)
Hall (2003) também critica a fragilidade da perspectiva
essencialista de identidade pois esta naturaliza as diferenças, passando a
ideia de que estas resultam de questões biológicas e genéticas, portanto,
naturais, enquanto que o correto seria apontar tais diferenças como fruto
de construções históricas e culturais. Nesse sentido, o autor escreve sobre
a identidade essencialista em relação à questão de raça, comparando-a e
exemplificando com a questão de gênero e sexualidade:
O momento essencializante é fraco porque
naturaliza e des-historiciza a diferença, confunde o
que é histórico e cultural com o que é natural,
biológico e genético. No momento em que o
significante "negro" é arrancado de seu encaixe
histórico, cultural e político, e é alojado em uma
categoria racial biologicamente constituída,
valorizamos, pela inversão, a pr6pria base do
racismo que estamos tentando desconstruir. Além
disso, como sempre acontece quando
naturalizamos categorias históricas (pensem em
gênero e sexualidade), fixamos esse significante
fora da história, da mudança e da intervenção
políticas. E uma vez que ele é fixado, somos
tentados a usar "negro" como algo suficiente em si
mesmo, para garantir o caráter progressista da
política pela qual lutamos sob essa bandeira —
como se não tivéssemos nenhuma outra política
para discutir, exceto a de que algo é negro ou não
é. Somos tentados, ainda, a exibir esse significante
como um dispositivo que pode purificar o impuro
e enquadrar irmãos e irmãs desgarrados, que estão
desviando-se do que deveriam estar fazendo, e
policiar as fronteiras — que, claro, são fronteiras
políticas, simbólicas e posicionais — como se elas
fossem genéticas. É como se pudéssemos traduzir
a natureza em política, usando uma categoria racial
49

para sancionar as políticas de um texto cultural e


como medida do desvio. (HALL, 2003, p. 345).
E é nesse sentido que Hall (2003) afirma uma perspectiva não
essencialista, assumida pelos Estudos Culturais:
As identidades parecem invocar uma origem que
residiria em um passado histórico com o qual elas
continuariam a manter uma certa correspondência.
Elas têm a ver, entretanto, com a questão da
utilização dos recursos da história, da linguagem e
da cultura para a produção não daquilo que nós
somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a
ver não tanto com as questões “quem nós somos”
ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as
questões “quem nós podemos nos tornar”, “como
nós temos sido representados” e “como essa
representação afeta a forma como nós podemos
representar a nós próprios”. (HALL, 2003, p.109).
Neste sentido, este trabalho defende a perspectiva não essencialista
para se trabalhar a questão dos estudos afro-brasileiros, pois tal
perspectiva permite que as múltiplas identidades afro-brasileiras sejam
problematizadas e abarcadas no ensino de história, como veremos a
seguir.
50
51

2.2. Identidades afro-brasileiras na sala de aula: do ocultamento ao


entranhamento

A identidade nacional brasileira oficial e ensinada nas escolas por


muito tempo sempre foi única e homogênea, ou seja, aquela forjada em
uma matriz eurocêntrica. A partir da década de 1990 ocorre uma ruptura
em relação à identidade nacional, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB)
de 1996 e nos anos seguintes, com os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), quando a perspectiva identitária essencialista, homogênea, única
e hegemônica, passa a ser confrontada, em função das contribuições do
multiculturalismo, trazendo à tona as diversas contribuições dos diversos
povos que aqui viviam, que para cá vieram e que aqui vivem. Neste
sentido, o que mais nos interessa nesses estudos, sem sombra de dúvida,
é a ruptura em relação a uma identidade nacional una e totalizante, e a
consideração de identidades nacionais plurais, híbridas, em movimento,
em construção, fronteiriças, emaranhadas.
Dando sequência aos avanços na problemática da identidade
nacional nos currículos escolares, as Leis 10.639/03 e 11.645/084, que
tornaram obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-
brasileira nas escolas brasileiras, constituíram um dos principais avanços
no currículo escolar do país, trazendo consigo novos temas e narrativas,
geralmente negligenciados, principalmente no que se refere aos povos
indígenas e aos povos de origem africana que contribuíram imensamente
para a formação do país e, por conseguinte, para a formação do que seria
uma identidade nacional.
Paralelamente à essas leis, parâmetros e diretrizes de âmbito
nacional, estadual e municipal, também foram sendo definidos em torno
dos princípios norteadores das relações étnico-raciais, corroborando a
importância de trabalhar tais questões em sala de aula.
Em Florianópolis, por exemplo, um breve histórico dos marcos
legais da educação das relações étnico-raciais (ERER) pode ser elencado:
a Lei Municipal 4.446/96, que incluiu conteúdos de matriz afro-brasileira
nos currículos do município; em 2007, as “Orientações curriculares para
a educação das relações étnico-raciais"; a Resolução do Conselho

4
Trata-se da Lei 11.645 de 10 de março de 2008 que altera a Lei no 9.394, de 20
de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena.
52

Municipal de Educação de 2009, que instituiu diretrizes curriculares


municipais para a ERER e para o ensino de história e cultura afro-
brasileira, africana e indígena; em 2010, o Plano Municipal de Educação
de Florianópolis, com o eixo temático da ERER; em 2012, as Orientações
Curriculares para a Educação Infantil, com o núcleo da ação
pedagógica/relações sociais e culturais; em 2015 as Diretrizes
Curriculares da Educação Básica de Florianópolis, que tem como um dos
princípios educativos o fortalecimento da Educação das Relações Étnico-
raciais (ERER) na educação básica; ainda em 2015, o currículo da
educação infantil da rede municipal de ensino de Florianópolis, que
incluiu reflexões e ações sobre a diversidade; e em 2016, com a
publicação da Matriz Curricular para a ERER na educação básica, que
traz uma série de conceitos, leis, normativas, justificativas, exemplos e
discussões sobre a referida temática.
Sobre o último documento citado, importante destacar que, logo na
introdução do material, há uma importante justificativa dessa Matriz:
Com esta ação, a SME (Secretaria Municipal de
Educação) materializa uma proposta pedagógica
que deseja romper com os modelos educacionais
que circundavam estruturas monoculturais e
eurocêntricas, situando “os outros” – os sujeitos da
diversidade – à margem de uma normatização
considerada padrão. (FLORIANÓPOLIS, 2016,
p.9).
Percebe-se com a citação que o material tem o intuito de romper
com as concepções monoculturais e eurocêntricas, considerando a
diversidade étnico-racial da sociedade brasileira. No entanto, apesar da
existência de todos esses marcos legais sobre a ERER, tanto no âmbito
federal e estadual como municipal, percebe-se que tais práticas são
efetivamente pouco praticadas em sala de aula. Em outras palavras, a
ERER é estranha a algumas unidades escolares, ausente nas práticas
pedagógicas e nas salas de aula.
Notam-se algumas mudanças em livros didáticos, em obras que já
dedicam capítulos exclusivos sobre tais temas, enquanto que outros
continuam a abordar a temática apenas quando se refere à escravidão.
Outra mudança decorrente dessas leis se evidencia em obras paradidáticas
que são utilizadas muitas vezes em projeto interdisciplinares, mais
especificamente, entre as disciplinas de História, Geografia, Língua
Portuguesa e Artes.
53

Como exemplo, é interessante observar a análise feita por Jesus


(2012) de um livro didático editado após 2003, ao tentar se adequar à nova
legislação para poder estar entre as possíveis escolhas do Plano Nacional
do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM)5 no ano de 2008.
Notou-se, através da condução de seus conteúdos e didática que:
[...] a falta de conhecimento da lei n. 10.639/03
aliada ao atraso e ao descaso que se têm no Brasil
em relação aos estudos de cultura negra e africana,
contribui de forma decisiva para que a sociedade
cultive, ainda, estereótipos e imagens negativas do
negro na sociedade brasileira, mantendo firme o
status quo de uma sociedade onde o poder continua
sendo branco, heterossexual e machista,
dependesse exclusivamente de políticas públicas
governamentais de cunho socioeconômico para
superar a condição “natural” de exclusão na qual
estariam acometidos (JESUS, 2012, p. 169).
Em relação à formação de professores, nota-se que, após mais de
dez anos, no caso dos currículos de História, muitas universidades
continuam com a grade curricular organizada na história cronológica e
eurocêntrica. Esse modelo curricular afeta diretamente a precariedade da
formação dos professores em relação ao ensino de história e cultura
africana e afro-brasileira6.
Sobre essas questões relacionadas à formação dos professores,
importante analisar esse fragmento de texto:

5
Implantado em 2004, pela Resolução nº 38 do FNDE, o Programa Nacional do
Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) prevê a universalização de livros
didáticos para os alunos do ensino médio público de todo o país.
6
Apesar de algumas falhas nos cursos de formação, as universidades públicas
servem como exemplo no que tange à efetivação da lei, incluindo tal temática
tanto na Graduação como também em seus cursos de extensão e atividades de
pesquisa. Acredito que possuo alguma propriedade nesse relato, pois sou aluno
do mestrado profissional na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ao
cursar as disciplinas de Metodologia, Currículo, Teorias da História e História do
Ensino de História, estudamos, discutimos e aprendemos vários aspectos
relacionados ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Além disso,
tanto na UFSC como na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), há
cursos de extensão, há Núcleos e Laboratórios de Estudo direcionados ao ensino,
a valorização e a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 e da ERER.
54

[...] trabalhos que analisam a aplicação da lei


10.639/03 são temas iniciais nos cursos de pós-
graduação e estão centrados nos programas de
Educação. Por isso, não se têm pesquisas prontas
com resultados que permitam um referendo
teórico. Existem trabalhos realizados cujo foco é a
África nos livros didáticos, através deles é possível
perceber a preocupação que há com o tema e
também a relação que os professores mantêm com
este conhecimento em sala de aula” (LAUREANO,
2008, apud JANS, 2014, p 4).
Desse modo, apesar das dificuldades, a tendência é que o ensino
da história da cultura africana e afro-brasileira se fortaleça cada vez mais,
não pelo simples fato de ter se tornado uma obrigatoriedade, mas
principalmente por ser uma demanda histórica de uma enorme parcela da
população brasileira, a população negra, à qual sempre foi negado o
acesso a todos os direitos sociais, que sempre foi estigmatizada, que
sempre sofreu preconceito e racismo, e cuja história nunca constituiu a
história oficial.
Corroborando a reflexão sobre a importância de uma história plural
em um país como o nosso, que é:
[...] multirracial e poliétnico não pode aceitar que
se escreva apenas a história dos vencedores, ou
seja, dos considerados brancos. Embora negada, a
história do negro não é irrelevante. Pelo contrário,
é tão importante quanto a de qualquer outro
segmento da população. Uma história plural
pressupõe o registro da diferença, o acolhimento da
diversidade e o reconhecimento do “outro
(DOMINGUES, 2003 apud JANZ, 2014, p. 4).
Neste debate a respeito dos marcos legais da ERER e de sua
efetivação em sala de aula, cabe questionar qual seria o enfoque a respeito
da identidade nacional numa perspectiva plural.
55

2.3. A questão da identidade nacional e os currículos de História

Antes mesmo de falar sobre identidades afro-brasileiras,


importante lembrar da problemática dos currículos de História, que
sempre privilegiaram a história geral, eurocêntrica. Ao perguntarmos aos
alunos se eles preferem estudar a História do Brasil ou História Geral,
grande parte dos alunos prefere, de acordo com minha própria experiência
docente, a História geral, de matriz europeia. O argumento de tal escolha
pelos alunos, na maioria dos casos, se justifica pelo fato deles acharem
bem mais interessante pois tem mais guerras, lutas e curiosidades, além
da produção midiática, que reforça essas narrativas. Tais escolhas se
referem ainda às questões identitárias, pois nossos alunos, assim como
boa parte da sociedade brasileira, se identificam com a perspectiva
eurocêntrica, ensinada nas escolas e disseminadas nos livros didáticos de
história.
Que identidade nacional é essa, narrada a partir da chegada dos
portugueses na América no século XVI, seguida pela independência da
nação no início do século XVIII declarada por um príncipe português,
herdeiro do trono português e que se tornou o rei do Brasil, e pela
proclamação da República realizada por militares e poderosos
latifundiários no final do século XVIII? E ainda pelas narrativas oficiais
do período da ditadura civil-militar (1964-1985), produzindo reflexos até
os dias de hoje no ensino de história. Como se dá a produção identitária a
partir destas narrativas oficiais? O debate sobre a constituição de uma
identidade nacional permanece bastante pertinente, considerando as
histórias e identidades indígenas e afro-brasileiras, que deveriam fazer
parte dos livros didáticos, paradidáticos, assim como das práticas
docentes. Cabe questionar, assim, quem são os estudantes que irão se
posicionar a respeito das diretrizes da ERER.
A matriz curricular de Florianópolis elenca como esses sujeitos da
ERER as crianças, os adolescentes, os jovens, os adultos e idosos
atendidos nas unidades educativas: “São os descendentes de africanos,
dos europeus e dos indígenas como referência das três etnias e todos os
povos que se originam de qualquer outro lugar e que escolheram
Florianópolis para morar e a rede municipal de ensino para se constituir
sujeito da educação” (FLORIANÓPOLIS, 2016, p. 21).
De modo geral, podemos considerar que esta observação se refere
a todos os estudantes brasileiros, de qualquer rede de ensino. Ou seja,
sujeitos da educação, que, conforme sugere Passos (2014):
56

Sujeito é um ser humano que se constrói


historicamente na relação com outros seres
humanos, também sujeitos; é carregado de desejos
e movido por eles, os quais o mobilizam. O sujeito
também é um ser social com determinada origem
familiar, que ocupa uma posição em um espaço
social e tem relações sociais. Por fim, o sujeito é
um ser único, que tem uma história, que interpreta
o mundo e lhe dá sentido. É um sujeito ativo, que
se produz ao agir no e sobre o mundo, ao mesmo
tempo em que é produzido nas relações sociais de
que participa. (PASSOS, 2014, p.82).
A partir destas considerações, percebe-se que há uma interligação
entre o currículo de história e as questões identitárias. Primeiro, em
relação à predominância de uma história eurocêntrica na constituição da
identidade nacional, e, segundo, há um silenciamento de narrativas
associadas aos povos africanos e afro-brasileiros, assim como aos povos
indígenas brasileiros. Ou seja, múltiplas culturas e identidades foram
apagadas, ocultadas e esquecidas, o que até hoje causa desconforto em
parte da sociedade e nos currículos escolares quando colocados em
prática. No entanto, é evidente também um movimento de resistência e de
mudança de modo a assegurar a inclusão de suas histórias e identidades.
A esse respeito, Marques e Pereira (2013, p.91) afirmam que “a
história é o único espaço que nos permite um encontro com as culturas e
os tempos estranhos”, e que essa “estranheza” permite perceber nossas
singularidades nas diferenças com os outros. Os autores afirmam que
“não trata de ser contrário a um ensino que seja espaço de encontro dos
grupos com seu próprio passado”, mas que certos cuidados devem ser
observados para não se reproduzir a “história-memória” que reproduz
uma história recheada de heróis e dicotômica entre o bem e o mal, positivo
e negativo. Para evitar tais equívocos, o autor explica três problemas
relacionados a esse projeto, que são: a história referencial; o conteúdo
relacionado com a realidade do aluno; e a generalização/julgamento.
A história referencial é aquela que analisa os modos de vida no
passado e dos outros em relação a um referencial já pré-determinado, uma
determinada cosmovisão de mundo. No artigo, o autor traz o exemplo
clássico dos povos indígenas, sobre os quais associamos seu modo de vida
ao “comunismo primitivo”. Afirma, que dessa maneira, além de apagar
as particularidades sobre a quantidade de povos originários que aqui
viviam, não valorizamos as diferenças entre eles.
57

Sobre essa perspectiva de história referencial, Marques e Pereira


(2013, p.92) afirmam que “trata-se de uma história referencial, tendo
como referência nossos próprios valores, nossa cultura, procurávamos, na
cultura e no modo de vida indígena, marcas de nossa cultura, e segundo
nossos valores, considerados positivos”.
É interessante observar que muitos defendem uma outra história
que seja não eurocêntrica, mas contraditoriamente, quando nos referimos
a esses outros povos, como por exemplo africanos e indígenas, queremos
analisar, “enquadrar”, classificar e julgar segundo o modo de vida
eurocêntrico, em outras palavras, não estamos deixando de reproduzir tal
eurocentrismo.
Nesse sentido, mais uma vez, com maestria, Marques e Pereira
(2013) nos elucidam sobre a história referencial eurocêntrica:
É o que chamamos de uma história referencial, que
sempre mira o outro com os olhos do presente ou
com os olhos de uma cultura – continuamos a ser
eurocêntricos, ao mesmo tempo em que criticamos
o eurocentrismo e reclamamos uma história para os
silenciados. A história que damos aos silenciados é
uma história que é nossa – uma projeção de nossa
própria história, de nossa própria cultura.
(MARQUES; PEREIRA, 2013 p. 92).
Sobre uma segunda perspectiva, a história-memória, que diz que o
conteúdo deve se identificar com a realidade do aluno, os autores
novamente defendem a pedagogia do estranhamento, já que essa provoca
uma surpresa ao aluno, que, ao estudar história, descobre as diferenças,
as estranhezas e as novidades. Já a pedagogia da identificação, com o
intuito de facilitar o aprendizado, desconsidera todo esse estranhamento.
Nesse sentido, tal aproximação e identificação do conteúdo estudado com
a realidade do aluno serve para reforçar uma identidade única com uma
história igual, homogênea. Em contrapartida, ao destacar as diferenças e
estranhamentos, a identidade se torna múltipla, complexa, fluida e em
construção, e nesse sentido permite o aprendizado com as diferenças.
Sobre as relações entre a defesa da história da diferença e a
construção da identidade, Marques e Pereira (2013) afirmam:
A história da diferença permite a construção da
identidade pela mirada sobre si mesmo como uma
singularidade na história, e isso somente pode ser
feito se apresentamos ao estudante aquilo que ele
não conhece e não pode colocar em uma forma
58

conhecida. Além do mais, a identidade torna-se


algo fluido, na medida em que o estudante não é
levado a, necessariamente, identificar-se
definitivamente com este ou aquele modo de vida,
mas que pode aprender com a experiência dos
outros. (MARQUES; PEREIRA, 2013 p. 93).
Por último, o terceiro problema da história-memória se refere às
generalizações e julgamentos que serve apenas para comparar o presente
com o passado, e com isso, não se extrai nada de novo ou estranho,
perdendo a oportunidade de se aprender algo, pois segundo os autores, “o
que já conhecemos não nos pode ensinar nada de novo” (MARQUES;
PEREIRA, 2013, p 93).
Após essas análises sobre o termo estranhamento, muito bem
fundamentadas nas palavras de Diogo Souza Marques e Nilton Mullet
Pereira, que se referem às novidades, diferenças e estranhezas como
forma de produzir conhecimentos e explicações diversas do que já temos
e reproduzimos, a seguir, corroborando o que foi escrito nesse tópico,
passamos agora a discorrer sobre o entranhamento das identidades afro-
brasileiras, como ferramenta de se combater os silenciamentos sobre essas
identidades no cotidiano escolar.
59

2.4. O entranhamento das identidades afro-brasileiras

Uma maneira de superar possíveis silenciamentos em relação às


identidades afro-brasileiras é entranhá-las, ou seja, torná-las presentes nas
nossas aulas, nos nossos discursos e na nossa prática. Atualmente, após
vários avanços legais que atenderam demandas de movimentos sociais,
especificamente aqui, do movimento negro, vários cursos de formação
inicial e continuada de capacitação de professores, alterações e inclusões
de produções didáticas e paradidáticas que abarcam os estudos afro-
brasileiros, e, além, é claro, da quantitativa e qualitativa produção
acadêmica relativa a esses temas, não há mais como se abster de trabalhar
tais questões em sala de aula.
Nesse sentido, a Matriz Curricular para a ERER da Prefeitura
Municipal de Florianópolis (2016), afirma:
Desse modo, a diversidade étnica nos currículos
implica em debater os fenômenos históricos,
políticos, econômicos e sociais do etnocentrismo,
racismo, sexismo, homofobia e da xenofobia.
Tratar da diversidade e da diferença implica em
posicionar-se contra processos de colonização e
dominação; oferecer possibilidades de análises
sobre como, nesses contextos, diferenças foram
hierarquizadas e tratadas de forma desigual e
discriminatória; entender o impacto objetivo destes
processos na vida dos sujeitos sociais e no
cotidiano da escola e, analisar o currículo como um
território político e de disputa que na
contemporaneidade é reivindicado como território
de saber multicultural (ARROYO, 2011; GOMES,
2007; SACRISTAN, 1998 apud
FLORIANÓPOLIS, 2016, p. 17).
O que esse trabalho defende é que ao incentivarmos e dar subsídios
para os professores, em sala de aula, abordando as identidades afro-
brasileiras, por meio das canções, estaremos contribuindo para romper
essas barreiras de conteúdos, histórias e identidades consideradas
hierarquicamente superiores, combatendo preconceitos, complexificando
e empoderando identidades que pouco ou nada foram estudadas.
Importante observar que tal defesa está em consonância com a
perspectiva da Matriz Curricular para a ERER da Prefeitura Municipal de
Florianópolis (2016), que afirma:
60

O fortalecimento de identidades como princípio


pressupõe a compreensão de que não podemos
homogeneizar os conteúdos escolares tomando por
base somente uma perspectiva étnica, uma “única
história”. Arroyo (2011:261) diz que a escola é
lugar para “saber de si”, defendendo a pluralidade
na organização do currículo e o direito que todos
possuem de lidarem com seus conteúdos e
pertencimentos históricos e culturais no âmbito da
escola e, especialmente na atividade do ensinar e
do aprender. Nesse sentido, o fortalecimento da
identidade do sujeito está apoiado na
desconstrução e na construção de conceitos que
recuperem as contribuições de África e de seus
sujeitos para a humanidade e a identidade nacional,
ampliando o repertório dos estudantes sobre os
negros. (FLORIANÓPOLIS, 2016, p. 19).
Também importante destacar o que Arroyo afirma sobre o
reconhecimento da pluralidade e diversidade das experiências e sua
contribuição para a não hierarquização das mesmas:
Reconhecer que há uma pluralidade e diversidade
e não uma hierarquia de experiências humanas e de
coletivos, que essa diversidade de experiências é
uma riqueza porque produzem uma rica
diversidade de conhecimentos e formas de pensar
o real e de pensar-nos como humanos. (ARROYO,
2011, p.117 apud FLORIANÓPOLIS, 2016, p.31).
Importante realçar ainda que estudar, debater, aprender a respeito
das identidades afro-brasileiras também significa quebrar paradigmas,
resistências e silenciamentos quanto a essas identidades:
O currículo não está envolvido em um simples
processo de transmissão de conhecimentos e
conteúdos. Possui um caráter político e histórico e
também constitui uma relação social, no sentido de
que a produção de conhecimento nele envolvida se
realiza por meio de uma relação entre pessoas
(GOMES, 2007, p. 23 apud FLORIANÓPOLIS,
2016, p.23).
Com base nestas reflexões, o trabalho apresentado visa defender o
entranhamento das identidades afro-brasileiras no ensino de história,
primeiro, como vetor de combate ao racismo e o preconceito racial,
61

segundo, como elemento de resistência do movimento negro e de uma


parcela majoritária da nossa população que não teve e ainda não tem sua
própria história narrada e efetivada nas escolas brasileiras. E por último,
mas não menos importante, como incentivador de um olhar de alteridade
entre todos os sujeitos da educação, aprendendo que nossas histórias só
são possíveis de serem narradas em correlação com as demais histórias.
Ou seja, que só será possível considerar uma narrativa histórica realmente
horizontal, plural, complexa e democrática quando conseguirmos abarcar
as múltiplas identidades que formam a denominada identidade nacional,
entre elas, o que é objeto desse trabalho, as identidades afro-brasileiras.
Procuraremos exemplificar esta perspectiva com base nas análises de
algumas canções do rap como gênero musical.
62
63

CAPÍTULO 3. Rap e identidades afro-brasileiras

A escolha do rap como gênero musical levou em consideração as


perspectivas teóricas sobre o ensino de história que fundamentam esta
dissertação, associadas ao uso das canções, assim como as discussões
sobre as identidades afro-brasileiras e os mecanismos de produção
identitária em questão.
Um dos primeiros elementos que colocamos em destaque é o fato
de que o rap é um gênero musical que surge na Jamaica, é levado até os
EUA onde se consolida e na década de 1980 chega ao Brasil,
principalmente nas periferias das grandes cidades brasileiras. Da sua
origem até chegar ao Brasil, esse gênero sempre esteve intimamente
atrelado à população marginalizada predominantemente negra, e,
consequentemente o rap é um dos movimentos culturais intrinsicamente
associado aos processos de constituição e de consolidação de identidades
afro-brasileiras.
Outro elemento importante para a escolha do rap é o tripé
“temática, musicalidade e linguagem juvenil”, pois o rap é um dos
gêneros musicais com maior aderência e ressonância na juventude de
grande parte das cidades brasileiras e, em especial, na população jovem
dos grandes centros urbanos. Sua musicalidade, ora simples, seca e direta,
ora dançante e contagiante, aderiu ao gosto de grande parte dos jovens. O
mesmo pode-se falar em relação às temáticas contidas em boa parte das
letras das canções que se referem a problemas sociais presentes em quase
toda a totalidade das cidades grandes brasileiras. As vivências,
experiências e expectativas sobre o futuro da juventude também estão
presentes nessas narrativas. Temáticas que envolvem problemas sociais,
processos de resistência e empoderamento estão presentes nessas
canções, apresentando temas bastante relevantes na vida dos nossos
alunos, e por isso, há um potencial processo de identificação. Ou seja,
pelo fato desse trabalho se voltar para o ensino de história, optou-se por
um gênero em relação ao qual provavelmente boa parte dos alunos se
identifica, por meio de sua linguagem, o que pode possibilitar que se
estabeleçam relações de pertencimento.
Outro aspecto relevante em relação ao rap é que tal gênero musical
vem ao encontro de uma das perspectivas dos Estudos Culturais. O rap,
por ser um gênero considerado marginal e que se desenvolveu e
consolidou principalmente nas periferias das grandes cidades brasileiras,
sempre foi visto por outros setores da sociedade, inclusive por
especialistas, críticos musicais e formadores de opinião, como um gênero
64

musical inferior, um subgênero musical, um artefato cultural de baixa


qualidade, uma “não música”, ou ainda, música de marginal e de bandido
que faz apologia à violência, principalmente nas décadas de 1980/90,
como é possível verificar em um fragmento da coluna de Apoenan
Rodrigues no “Jornal do Brasil em 12 de outubro de 1993 que afirma que
o “rap já é um tipo meio chato de música na sua repetição incessante. No
caso dos grupos brasileiros que cultivavam o gênero, então, o assunto
piora quando o que sobra da pobreza musical são letras lamurientas e mal
construídas” (APOENAN, 1993 apud OLIVEIRA, 2015, p.15).
Não se pode afirmar que esses estigmas tenham acabado, mas
nessas últimas décadas, quando vários rappers e bandas frequentam os
principais circuitos musicais do país, programas de TV, ganham prêmios
e estão presentes nas principais plataformas e suportes digitais de
divulgação de canções, chegando inclusive e excursionar e terem público
fora do Brasil, tais estigmas e preconceitos pode se dizer que foram
minimizados.
Esse empoderamento pode ser observado nas palavras de
Teperman: “A partir de artistas importantes como Racionais MCs e
Emicida e do contexto histórico que coincide com o fim da ditadura e o
início das rádios comunitária, o rap foi aos poucos ganhando ares locais
e, assim como nos Estados Unidos, rompeu as barreiras do preconceito”.
(TEPERMAN, 2015, Orelha do livro).
A partir dessa difusão musical do rap nos circuitos de produção e
divulgação musical, atingindo um público mais amplo, e com o avanço
das perspectivas dos Estudos Culturais, houve um avanço das análises do
rap também nos meios acadêmicos, cujas características e potencialidades
foram analisadas em artigos e dissertações como por exemplo “O Rap
como ferramenta didática na construção de conhecimentos histórico
educacionais”(MARTINS, 2015) e “Ensino de História e RAP: Classe,
raça e gênero como possibilidades de diálogo nas aulas de
História”(BARBOSA, 2017).
Citamos ainda a dissertação de mestrado de Roberto Camargos de
Oliveira que foi lançada em livro sob o título “Rap e Política: Percepções
da vida social brasileira” e o livro “Se Liga no Som: As transformações
do rap no Brasil” do antropólogo Ricardo Teperman. Além destas
publicações, citamos ainda a obra “Sobrevivendo no Inferno” dos
Racionais MCs, que foi lançado em livro, referindo-se ao disco de mesmo
título.7

7
Destacamos que o álbum “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais MCs se
tornou leitura obrigatória para o vestibular de 2020 da Unicamp, uma das
65

A própria diversidade da música brasileira, de modo geral, já ajuda


a validar a consideração da multiplicidade de aspectos associados às
identidades afro-brasileiras, já que são inúmeros gêneros musicais que
possuem influências muito fortes das culturas e dos povos africanos, e
que, ao chegarem aqui na América, se multiplicaram, mantendo suas
caraterísticas, mas incorporando também várias outras.
A letra da canção “O Ariano e o Africano”, da banda Mundo Livre
S/A (Anexo 1), por exemplo, cita vários ritmos e gêneros musicais
populares no continente americano. Tais contribuições e gêneros musicais
estão divididos em norte, centro e sul, que se referem respectivamente a
América do Norte, Central e Sul. No entanto, apesar dessa divisão,
praticamente que todos eles são produzidos e/ou tocados nas três partes
do continente americano, como por exemplo, o funk, o blues e o rap. Tal
característica pode ser apontada como um dos muitos aspectos que
caracterizam as múltiplas identidades afro-brasileiras.
Na estrofe da canção que se refere a América do Sul, são citados
os gêneros musicais bumba, maracatu, afoxé, xote, choro, samba, baião,
coco e a embolada. Além desses, ainda podemos acrescentar tantos outros
ritmos e gêneros musicais que são os hibridismos desses gêneros, como o
axé, por exemplo, ou hibridismos desses gêneros com outros, o afro jazz
por exemplo, ou ainda, gêneros musicais que são mais específicos da
América do Norte, mas que, ao serem produzidos aqui, ganham toda uma
especificidade afro-brasileira, como por exemplo os raps produzidos por
Marcelo D2 e Criolo, cujas várias canções misturam o rap com o samba
e outros gêneros musicais.
Portanto, pela íntima relação do gênero musical rap com as
identidades afro-brasileiras e os possíveis mecanismos de processos de

universidades mais concorridas e almejadas do Brasil. Ou seja, um dos pré-


requisitos para ter acesso a um dos espaços educacionais mais concorridos se
refere ao conhecimento de uma obra considerada por muitos como aspecto da
“cultura marginal”, cuja principal temática é o cotidiano de moradores da
periferia da maior cidade do Brasil, São Paulo, a partir de um gênero musical
estigmatizado como é o rap. Aliás, não são apenas as letras das canções, e sim
toda a obra, ou seja, as canções (letra e música) que são indicadas. Tal alteração
no vestibular da Unicamp corrobora e referenda duplamente esse trabalho, em
primeiro lugar, por se trabalhar na perspectiva integral da canção (letra e música)
e não a consideração parcial das músicas (geralmente apenas a letra). Em segundo
lugar, na perspectiva dos Estudos Culturais, esta indicação ressalta temáticas e
aspectos culturais das identidades afro-brasileiras que por muito tempo foram
esquecidas, ocultadas e silenciadas na nossa história e, por consequência, em
praticamente todos os ambientes e instituições educacionais.
66

identificação pelo uso dessas canções no ensino de história optamos pela


escolha do rap que terá uma breve caracterização a seguir.
67

3.1. O rap como gênero musical: caracterização

O rap é a parte musical, que se refere à voz e ao som do Movimento


Hip Hop, que possui quatro elementos, o Break (dança), o grafite (arte
visual), o MC (voz) e o DJ (som). Além desses quatro elementos, temos
as posses também, que seriam grupos ou organizações de pessoas que se
reuniam para praticar pelo menos um desses quatro elementos.
A etimologia da palavra “rap” mais aceita é que ela é uma sigla
para rhythm and poetry, ou seja, ritmo e poesia. Mas para Teperman
(2015, p. 13), músico, antropólogo e professor no programa de pós-
graduação em canção popular da Faculdade Santa Marcelina, há tempos
a palavra “rap” está presente nos dicionários de inglês: A palavra “rap”
não era novidade nos anos 1970, pois já constava dos dicionários de inglês
havia muitos anos – seu uso como verbo remonta ao século XIV. Entre os
sentidos mais comuns, queria dizer algo como “bater” ou “criticar”
(TEPERMAN, 2015, p. 13).
Além da questão etimológica da palavra rap, é importante apontar
algumas características desse gênero musical. Nas palavras de Felix
(2005, p.62):
Trata-se de um “canto falado”, cuja base musical é
tirada do manuseio de duas pick-ups, comandas
pelo DJ, que incremente sua apresentação com a
introdução de efeitos sonoros denominados
scracht, back to back, quick cutting e mixagens. A
outra personagem na realização do rap é o MC, que
é a pessoa que “fala” o canta a poesia.
Para Teperman (2015, p.16), no que tange o local de nascimento
do rap, “dez entre dez MCs dirão que é o Bronx” 8, mas para dar sentido a
essa origem, é necessário considerar duas ondas de imigração, a primeira,
da África para a América, e a segunda, da América Central para os
Estados Unidos. Nesse sentido, a primeira onda foi: “a vinda de centenas
de milhares de africanos, das mais diferentes origens, para alimentar o
maquinário insaciável dos regimes escravocratas nas Américas”
(TEPERMAN, 2015, p.16). Com essa imigração ocorreu o contato
da cultura e tradição desses povos de origem africana com as tradições
musicais europeias levadas pelos colonizadores europeus aos Estados

8
O Bronx é um distrito da cidade norte-americana de Nova York.
68

Unidos, e nesse contato foi desenvolvido o rap, assim como o soul, o funk,
o jazz, o blues, entre outros.
O segundo momento imigratório que contribuiu com o surgimento
do rap foi, nas palavras do autor: “Uma segunda onda imigratória, após o
final da Segunda Guerra Mundial, levou largos contingentes de homens e
mulheres pobres de ilhas caribenhas como Jamaica, Porto Rico e Cuba
para os Estados Unidos, em busca de melhores condições de trabalho”
(TEPERMAN, 2015, p.17).
Esses imigrantes se estabeleceram nas periferias das grandes
cidades, entrando em contato com outros imigrantes latinos e afro-
americanos que lá já estavam estabelecidos. Uma dessas regiões era o
Bronx, localizado no norte da Ilha de Manhattan da cidade de Nova York,
um bairro, que na década de 1970 estava abandonado, e, cuja população
era predominantemente negra. À falta de opções de lazer e cultura,
pobreza, exclusão e preconceito racial, soma-se o contato entre diferentes
povos imigrantes. Neste contexto social, jovens dessas regiões, para se
divertir nos finais de semana, iam para as ruas com enormes
equipamentos de som nas caçambas de caminhões e carros para tocar seus
discos de variados gêneros musicais, e juntamente com isso, plugavam
microfones no som para se comunicar com o público. Como sugere o
autor:
Nos finais de semana dos meses de verão, alguns
desses imigrantes acoplavam poderosos
equipamentos de som a carrocerias de caminhões e
carros grandes (os chamados sounds systems),
tocavam discos de funk, soul e reggae, e com isso
criavam um clima de festa nas ruas. Inspirados nos
disc jockeys que animavam programas de rádio, se
autodenominavam djs. Além disso, usavam um
microfone para “falar” com o público, não só entre
as músicas, mas também durante a música, como
mestres de cerimônia (daí a sigla mc — master of
cerimony). (TEPERMAN, 2015, p.17)
É interessante anotar que não há uma exatidão sobre a origem e a
gênese do rap e sobre isso, Teperman (2015, p. 13) afirma:
O mito de origem mais frequente sobre o gênero é
que teria surgido no Bronx, bairro pobre de Nova
York, no início dos anos 1970. [...] Alguns
preferem dizer que o rap nasceu nas savanas
africanas, nas narrativas dos griôs – poetas e
cantadores tidos como sábios. Ou ainda, como
69

sugerem alguns rappers e críticos brasileiros, que é


uma variante do repente e da embolada
nordestinos. Outros MCs brasileiros defendem que
rap é a sigla para “Revolução Através das
Palavras”, e já foi dito que as três letras poderiam
corresponder a “Ritmo, Amor e Poesia”. [...].
Apesar de não ser possível afirmar com exatidão a origem do rap,
mais importante é saber como ele vai ser apropriado por determinados
grupos e repelidos por outros, quais são seus significados e o que ele
representou e representa nos diversos contextos.
Por muito tempo o rap ficou conhecido por ser um gênero musical
onde a letra se sobressai frente a musicalidade/melodia. Entretanto, ao
longo do tempo, o rap também ganhou uma musicalidade associada à uma
melodia complexa, misturada e influenciada por outros gêneros musicais
como o samba, o maracatu, ritmos caribenhos, o rock, entre outros.
Grande parte do conteúdo das letras é direcionado à realidade dos
graves problemas sociais enfrentados principalmente na periferia das
grandes cidades, entre eles, podemos destacar, a falta de oportunidades de
trabalho, falta de espaços de lazer, esportes, cultura e educação, racismo,
preconceito racial e social, violência policial. Realidade essa que é muito
comum nas principais capitais e cidades de médio e grande porte de quase
a totalidade do Brasil, talvez isso ajude a explicar a grande difusão desse
gênero por aqui também.
Após essa breve história da teoria mais aceita sobre a origem do
rap, e alguns significados, logo abaixo, algumas palavras sobre a chegada
desse gênero musical no Brasil.
70
71

3.2. O Rap no Brasil

Vimos que uma das teorias mais aceitas sobre a origem desse
gênero musical é que surgiu na Jamaica no ano de 1960 e de lá foi levado
para os Estados Unidos, onde se difundiu principalmente nos bairros mais
pobres da cidade de Nova York, e dos Estados Unidos ele teria vindo para
o Brasil.
Com o intuito de destacar aspectos importantes do histórico do rap
no Brasil, utilizamos como principais fontes o livro de Ricardo Teperman
já supracitado e também textos e entrevistas de Roberto Camargos, autor
do livro “Rap e Política”, retirados de sites especializados em rap e cultura
afro-brasileira9.
Antes do gênero musical rap surgir no Brasil na década de 1980,
pode-se falar que tal termo era pouco utilizado e esse estilo musical era
confundido com outros gêneros como o soul e o disco. No final do período
da ditadura civil-militar brasileira (1964-85), com uma pequena abertura
política em relação a censura, o rap engajado e politizado atrelado à
movimentos negros urbanos principalmente na cidade de São Paulo se
expande com as rádios comunitárias. Pode-se dizer que tal momento foi
uma espécie de antecedente do rap no Brasil.
Também na década de 1970, a cena da “black music 10” com seus
funks, sambas-rock, souls, grooves 11 e disco, era muito forte no Brasil,
com destaques para Tim Maia, Jorge Bem, Jair Rodrigues, entre outros.
Muitos DJs, que futuramente vão se destacar na cena rap, tiveram contato
e também foram influenciados pela cena “black music”.
O primeiro momento da cena rap aqui no Brasil pode ter como
marco temporal o fim da década de 1980 e início da década de 1990, onde
esse gênero foi apropriado principalmente por jovens negros das
periferias de grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro.

9
http://www.rapnacional.com.br/; http://www.brasilhiphop.com.br/ ;
https://www.geledes.org.br/; http://www.ceert.org.br/
10
Black music ou música negra também conhecida como música afro-brasileira
no Brasil, e música afro-americana nos Estados Unidos, é um termo dado a todo
um grupo de gêneros musicais que emergiram ou foram influenciados pela cultura
de descendentes africanos em países colonizados na América.
11
Groove é na verdade um termo, que significa encaixar palavras
relacionadas”.Por isso muitos músicos usam esse termo ao criarem algum arranjo,
ou seja, eles tem que estar interligados (encaixados) mesmo que não seja de forma
direta, exemplo baixo e bateria são dois instrumentos distintos, porém tem que
estar em perfeita ordem.
72

Jovens se reuniam para ouvir discos de seus artistas prediletos e tentavam


cantar suas músicas e fazer rimas. Essas reuniões foram crescendo e se
aperfeiçoando e desta maneira o rap começou a ganhar força.
Grande parte das letras está direcionada à realidade dos graves
problemas sociais enfrentados principalmente na periferia das grandes
cidades, entre eles, podemos destacar, a falta de oportunidades de
trabalho, falta de espaços de lazer, esportes, cultura e educação, racismo,
preconceito racial e social, violência policial. Realidade essa que é muito
comum nas periferias das principais capitais e cidades brasileiras de
médio e grande porte, o que talvez ajude a explicar a grande difusão desse
gênero musical aqui no Brasil também.
O rap surge no Brasil como um tipo de música considerada
“inferior”, de “má qualidade” ou ainda, considerados por muitos como
uma “não música”. Para além das questões atreladas a musicalidade, suas
letras, por tratarem do cotidiano de boa parte da população desses bairros
periféricos, passa a ser taxada de música violenta, a qual não deve ou
merece ser tocada, escutada e divulgada, devendo ficar restrita aos guetos
da periferia. Percebe-se que o rap surge no Brasil com o estigma da
periferia, é “música de pobre, preto e favelado”, é “música de segunda
categoria”, “nem música é’. Em um país preconceituoso como o Brasil e
que quase sempre impediu à população pobre e negra o acesso à
cidadania, não é de se estranhar que toda a cultura surgida e/ou atrelada
aos pobres e negros da periferia também tenha sido excluída dos circuitos
de circulação e taxada pejorativamente.
Nos anos 90 o rap nacional começa a ganhar as rádios e
principalmente a indústria fonográfica, surgindo os primeiros rappers
com maior visibilidade, que foram Thayde e DJ Hum. Nesse mesmo
período surgiram grupos que são destaque até hoje no país, são eles:
Racionais MCs, Pavilhão 9, Detentos do Rap, Câmbio Negro, Xis &
Dentinho, Planet Hemp, Faces da Morte. Alguns desses grupos não
existem mais, outros se desfizeram, dando origem a carreiras solo, com
destaque para Marcelo D2 e outros continuam atuando, com grande
destaque para o Racionais MCs (para muitos dos ouvintes e dos críticos
musicais é, até a atualidade, a principal banda de rap do Brasil).
Algumas das características desse momento foram descritas por
Teperman da seguinte maneira:
A partir do início dos anos 1990, a excelência da
produção musical e poética do grupo Racionais
MCs, aliada ao rigoroso discurso de classe e raça e
à recusa renitente a deixar-se assimilar pelos
esquemas comerciais do mercado da música
73

configurou o forte paradigma político que passou a


nortear a produção, a recepção e a crítica do rap no
Brasil. (TEPERMAN, 2015, p.10)
Pode-se falar em um segundo momento da cena rap brasileira, os
anos iniciais da primeira década do século XXI, quando o rap passa a se
misturar de forma mais intensa com outros gêneros musicais, adquirindo
uma musicalidade/melodia mais complexa, híbrida e influenciada por
outros gêneros musicais como o samba, o maracatu, o ska 12, o afrobeat13,
o rock, o jazz entre outros. O rap também passa a abarcar outros temas
em suas narrativas que naquele primeiro momento não são muito
recorrentes e também passa a ter outros representantes e protagonistas,
diferentes da hegemonia do homem da periferia do momento anterior.
O rap, que nunca foi um gênero musical fixo e homogêneo,
incorpora, nesse segundo momento, outras vertentes e nuances, tanto em
relação à melodia, quanto às narrativas de suas letras. Apenas como
exemplo, podemos citar o rap gangsta, o rap engajado, o rap gospel, a rap
ostentação, e cada um deles possui temáticas variadas e sonoridades às
vezes semelhantes ou diferentes, sem falar nos raps híbridos que são
aqueles que misturam o rap com outros gêneros musicais já citados
anteriormente.
Também nas palavras de Teperman, algumas características desse
momento podem ser descritas da seguinte maneira:
Na virada dos anos 2000, a democratização do
acesso à internet banda larga e à tecnologia em
geral estimulou a produção e a circulação do rap,
revelando a pluralidade do gênero, com vários
focos de produção espalhados pelo território
nacional. A capacidade de mobilização do rap

12
Ska é um gênero musical que teve sua origem na Jamaica no final da década de
1950, combinando elementos caribenhos como o mento e o calipso e
estadunidenses como o jazz, jump blues e rhythm and blues. Foi o precursor do
rocksteady e do reggae. Suas letras trazem sinais de insatisfação, abordando
temas como marginalidade, discriminação, vida dura da classe trabalhadora, e
acima de tudo a diversão em harmonia.
13
Afrobeat é uma combinação de jazz americano, funk e batida [beat] nigeriano.
Ele foi criado pelo artista o mais militante da África, o falecido Fela Ransome
Anikulapo, da Nigéria, no início dos anos 70. Era justamente a época em que o
rock britânico e soul music americana estavam dominando a maior parte da cena
musical da África. Fela Kuti introduziu sua marca, com estilo próprio, para deter
a invasão musical britânica.
74

passou a interessar grupos que, até então, haviam


tido espaço reduzido no campo. Mais e mais,
“minorias” como mulheres, indígenas e
homossexuais vêm encontrando espaço de
expressão como rappers, inserindo novas
reivindicações na pauta e propondo novas
elaborações estéticas. (Teperman, 2015, p.10).
Esse segundo momento da cena rap nacional coincide, não apenas
com a democratização do acesso à internet de banda larga, mas também
com um fortalecimento e empoderamento dos movimentos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros (LGBT),
feminino, negro, que trazem suas demandas, pautas, reivindicações e
discursos, que quase nunca tinham sido escutados14. Várias bandas e
cantores de rap que surgem nesse momento trazem consigo suas
demandas e pautas, que ficam visíveis e perceptíveis não apenas nas
letras, como também em sua musicalidade. Aqui pode-se citar como
destaques as rappers com suas demandas femininas, Karol Conká e
Ludmila e Mc Carol.
Destaca-se também, na cena paulistana, os rappers Criolo e
Emicida, que conseguiram atingir um prestígio muito grande, elevando o
rap para um novo patamar, conseguindo atingir um público maior e mais
eclético, considerados por boa parte da crítica musical, como dois dos
principais potencializadores desse segundo momento da cena rap
nacional.
Para explicar o destaque desses dois rappers, é interessante
observar as palavras de Teperman (2015, p.11):
O sucesso e o prestígio obtido por Criolo e Emicida
reforçaram a ideia do surgimento de uma nova
escola do rap no Brasil. Para além das novidades
estéticas e do alinhamento com a tradição
consagrada da música popular brasileira, os artistas
da chamada nova escola mostraram-se muito mais
desenvoltos na profissionalização de suas carreiras,
obtendo grande e inédito sucesso na criação de
novos sistemas de gestão do rap como negócio. O

14
Com a chegada pela primeira vez de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT)
ao poder no plano federal, algumas dessas demandas foram ouvidas e de alguma
forma se transformaram essas causas em política de Estado conquistando
visibilidade inédita a essas “minorias”, e é óbvio que esse empoderamento se
reverbera também no plano cultural e, consequentemente, nas canções, entre elas,
o rap.
75

fortalecimento do rap como gênero musical de


mercado problematiza sua eficácia como fenômeno
de classe, trazendo à tona contradições que sempre
estiveram presentes.

Após essa breve descrição da trajetória do rap no cenário musical


brasileiro e o seu crescente fortalecimento como gênero musical de
mercado caracterizado aqui nesses dois grandes momentos (1980/90 e
2000/10), percebe-se que o rap conquistou muita visibilidade. Um gênero
musical que não estava ou era pouco presente no mercado musical
brasileiro, a partir da profissionalização, uma melhor gestão das carreiras
desses artistas e uma melhor negociação com tal mercado, passou a ser
presença cada vez mais constante nesse cenário musical. Para demonstrar
algumas características desses dois momentos foram escolhidos dois
álbuns como veremos a seguir.
76
77

3.3. Opções metodológicas

Iremos destacar, a título de análise, dois momentos marcantes da


história desse gênero musical no Brasil, o primeiro que vai do final da
década de 1980 perpassando toda a década de 1990 até o início dos anos
2000, com a chegada e consolidação do rap no Brasil, e o segundo
momento, a partir da segunda metade dos anos 2000 até o ano corrente
(2019). As canções analisadas se referem às que compõem os álbuns
“Sobrevivendo no Inferno” (1997) dos Racionais MCs e “Nó na Orelha”
(2011) de Criolo.
Destacamos como foco da análise aspectos do cotidiano presentes
nas narrativas das canções para demonstrar a resistência e o
empoderamento, tendo em vista apontar elementos associados às
identidades afro-brasileiras. Busca-se colocar em evidência, ao longo
destes dois momentos, a construção de uma perspectiva cada vez mais
diversificada, múltipla e complexa, no rap brasileiro enquanto gênero
musical, o que ilustra bem uma perspectiva não essencialista em relação
a alguns elementos significativos das identidades afro-brasileiras.
Um elemento, por exemplo, seria a questão racial que comumente
se expressa sob a forma de racismo presente na nossa sociedade. Segundo
a Matriz Curricular para a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER)
na Educação Básica da Prefeitura de Florianópolis (2016), o racismo é
definido da seguinte forma:
Doutrina que se baseia na superioridade racial. O
racismo hierarquiza pessoas de acordo com sua
origem e características biológicas. De outro modo,
no pensamento de uma pessoa racista existem raças
superiores e inferiores. Em nome das chamadas
raças, inúmeras atrocidades foram cometidas nesta
humanidade: genocídio de milhões de índios nas
Américas, eliminação sistemática de milhões de
judeus e ciganos durante a segunda guerra mundial.
(FLORIANÓPOLIS, 2016, p.26).
Essa categoria também está relacionada à resistência dos afro-
brasileiros em relação a essas e tantas outras formas de opressão, exclusão
e violência que sofreram ao longo de toda nossa história e que ainda
sofrem na atualidade. O termo resistência possui vários significados
dependendo do contexto analisado, de forma geral pode ser interpretado
de duas maneiras complementares e diretamente associadas às
identidades afro-brasileiras.
78

A primeira se refere às diversas maneiras que os povos afro-


brasileiros permeadas por suas lutas, fugas, trabalhos, estudos,
manifestações culturais (dança, culinária, cantos, músicas, canções) e
religiosas (candomblé e umbanda) resistiram à violência e opressão dos
colonizadores. Já a segunda interpretação do termo resistência está
relacionada à quebra da resistência em se trabalhar, estudar, analisar todas
essas contribuições dos povos afro-brasileiros por parte de uma parcela
da sociedade brasileira que através do silenciamento e ocultamento dessas
inúmeras contribuições, defende aquela identidade una, homogênea e
essencialista pautada majoritariamente nas contribuições culturais
pautada no eurocentrismo, que constitui uma visão de mundo fortemente
centrada na cultura europeia, tomada como centro e referência a partir da
qual se observam e analisam os demais povos e as outras civilizações.
Consideraremos nas análises também o termo “empoderamento
negro” pois a resistência frente aos mais variados tipos de violência contra
os afro-brasileiros demonstra toda a força e pujança do movimento negro
que, por meio de luta, resistência e afirmação contra todos os mais
variados tipos de exclusão e violência, tem proporcionado aos afro-
brasileiros orgulho e liberdade para se empoderarem de tudo que sempre
lhe foi tirado, mas que atualmente, diga-se de passagem, a passos bem
lentos, estão sendo ocupados também pelo afro-brasileiros.
Cabe ressaltar novamente que a própria valorização de vários
gêneros musicais que antes eram vistos como “marginais”, uma espécie
de “cultura inferior” de “segunda categoria” atualmente é escutada por
praticamente todas as classes sociais, e por isso tem ganhado cada vez
mais destaque nos vários espaços produtores e reprodutores musicais.
Pode-se pegar como exemplo dessa valorização a difusão crescente do
samba, do rap, do hip-hop, do funk e do afrobeat.
Portanto, a resistência e o empoderamento se referem diretamente
às questões identitárias, já que os povos afro-brasileiros, em todo o seu
processo de luta contra a escravidão e as mais diversas violências, têm
afirmado as múltiplas identidades afro-brasileiras, expressas por meio dos
diversos aspectos que iremos apontar nas canções.
79

CAPÍTULO 4. Rap como possibilidade

Com o intuito de desenvolver uma análise do rap como gênero


musical, com destaque nos conceitos de resistência e empoderamento,
que também são constitutivos das identidades afro-brasileiras, de modo a
sugerir possibilidades do uso deste gênero musical nas aulas de história,
foram escolhidos dois álbuns, um lançado em 1997 e o outro em 2011. A
partir da análise desses dois álbuns, pretende-se observar características
desse gênero musical produzido durante as décadas de 1980 e 1990, que
é o momento da chegada e consolidação do rap no Brasil e de um segundo
momento, a partir de meados da década de 2000 até o momento atual
(2019).
Para esta análise foram escolhidos dois álbuns que podem
expressar cada um destes momentos. O primeiro é o álbum
“Sobrevivendo no Inferno” da banda Racionais MCs, produzido em 1997
e o outro é o “Nó na Orelha” do artista Criolo, produzido em 2011.
A justificativa pelas escolhas desses dois álbuns, além do contexto
diferenciado em que foram produzidos, se deve a importância que eles
tiveram para a projeção, não apenas dos Racionais MC’s e do Criolo, mas
também para o rap nacional, que ganhou muita visibilidade, atingindo um
público maior e diversificado a partir do lançamento desses dois álbuns.
80
81

4.1. A banda Racionais MC´s. O primeiro momento. A construção da


diversidade musical do rap brasileiro.

“Aqui quem fala é


Mano Brow, mais um
sobrevivente
Vinte e sete anos
contrariando a estatística,
morô?”15

Racionais MC´s é um grupo de rap que surgiu no final da década


de 1980 e se encontra ativo e engajado até o momento atual (2019). A
banda é considerada por muitos críticos e público como a mais importante
de rap do Brasil. Segundo o site oficial da banda 16,
O Racionais Mc's é um grupo brasileiro de RAP
que surgiu no final dos anos 80 com um discurso
que tinha a preocupação de denunciar o racismo e
o sistema capitalista opressor que patrocinava a
miséria que estava automaticamente ligada com a
violência e o crime. Vinte e cinco anos depois,
Racionais Mc's, ainda com um forte engajamento
na luta contra o racismo e discriminação, vem
deixando seu legado e construiu uma história ao
lado das pessoas que sempre os acompanharam.
Tudo começou em 1989, na zona sul de São Paulo, Mano Brown
(Pedro Paulo Soares Pereira, 1970) e Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador,
1970) eram dois jovens que curtiam música negra americana da época,
como Kurtis Blow e Marvin Gaye. Mas o envolvimento dos dois com a
música se deu ainda na infância nos terreiros de candomblé, onde eram
levados pelas mães. Na zona norte estavam KL Jay (Kléber Geraldo Lelis
Simões, 1969) e Edi Rock (Adivaldo Pereira Alves, 1970), amigos que já
trabalhavam juntos apresentando suas músicas pela cidade de São Paulo.
Foram então reunidos pelo produtor Milton Sales e assim nascia um dos
ícones do rap no Brasil17.

15
Canção “Fórmula Mágica da Paz” do álbum “Sobrevivendo no Inferno” (1997).
16
http://www.racionaisoficial.com.br/
17
Informações retiradas dos sites <http://www.racionaisoficial.com.br> e
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo636012/racionais-mcs.
82

Pela formação da banda já se percebe uma das características


preponderantes de boa parte do cenário rapper brasileiro àquela época,
são três MCs e um DJ, não há bateria, baixo, guitarra ou qualquer outro
instrumento musical, o som é produzido por um DJ através de bases e
sons sampleados e “colados” que são executados em suas Pick-ups.
As letras das canções demonstram a preocupação em denunciar a
destruição da vida de jovens negros e pobres das periferias brasileiras.
São temas recorrentes em suas canções o preconceito de classe e racial, o
racismo, a exclusão e desigualdade social, a convivência com a violência
gerada tanto pelo tráfico de drogas como com a guerra às drogas por parte
do Estado.
83

4.1.1. O álbum “Sobrevivendo no Inferno” 18: Rap, Resistência,


Representação e Empoderamento.

Para discorrer sobre os elementos mais significativos das canções


deste álbum, esta análise utiliza, além das fundamentações teóricas
desenvolvidas ao longo dessa dissertação, o livro “Rap e Política:
Percepções da vida social brasileira”, de Roberto Camargos de Oliveira19,
que é fruto de sua própria dissertação publicada em 201320.
Nessa obra, Oliveira (2015) traz uma narrativa contada não por
aqueles sujeitos que de alguma maneira dominam as relações de poder ou
que estão integrados na sociedade, mas narra uma parte da história recente
do Brasil, mais especificamente a partir do final da década de 1980 até os
primeiros anos do século XXI, sob a perspectiva e o olhar a partir “de
baixo”. As narrativas são construídas a partir das experiências, vivências
e memórias da vida social dos rappers nas periferias de algumas grandes
cidades brasileiras e que são representadas em grande parte de seus raps.
Oliveira (2015) esclarece, logo no início de sua obra, que sua opção
é pelo rap com viés de contestação, de engajamento, de denúncia e que
narra as mazelas do cotidiano das periferias de algumas cidades
brasileiras, um tipo de rap que não era aceito por boa parte da imprensa
brasileira, pelos críticos musicais e pelos chamados setores hegemônicos
da sociedade brasileira. Esse rap muitas vezes era taxado de rap violento
por, segundo alguns críticos, fazer “apologia à violência”. Paranhos
(2015, p.14), que escreve o prefácio do livro, esclarece que isso não é
hegemônico no rap, que tem outras variantes como por exemplo, os
denominados “rap do bem”, “rap gospel”, “rap mauricinho”, que eram

18
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Cosa Nostra,
1997, Cd.
19
OLIVEIRA, Roberto de Camargos de. Rap e política: percepções da vida
social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015.
20
Livro que ganhou o Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música de 2013,
fruto de uma dissertação de mestrado do professor e pesquisador Roberto
Camargos de Oliveira, que é professor, pesquisador e doutor em história social
pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e que foi orientado pelo
professor dessa mesma universidade, Adalberto Paranhos, autor de várias obras,
com destaque para sua tese de doutorado “Os desafinados: sambas e bambas no
'Estado Novo”, que também virou livro.
84

mais aceitos pelos críticos musicais, imprensa e outros setores dessa


mesma sociedade brasileira.
Sua obra é articulada e fundamentada sob a perspectiva das
seguintes categorias e autores: memória e representações (Michael
Polack); práticas sociais e culturais (Carlo Ginzburg e Raymond
Willians); experiência (E.P. Thompson); cotidiano (Michel de Certeau);
relações de poder (Michel Foucault e Pierre Bourdieu); história cultural
(Roger Chartier); a história vista por baixo (E.P. Thompson, Eric
Hobsbawm e Adalberto Paranhos); representações (Edward Said) e os
estudos culturais (Maria Elisa Cevasco).
Além dessas categorias, a obra é articulada e pensada nos artefatos
culturais analisando o tripé: autor (rappers), as obras (raps) e o contexto
no qual foram produzidos (prioritariamente o fim da década de 1980 e
toda a década de 1990).
Há diversas relações entre essa obra e o trabalho aqui
desenvolvido, mas merecem destaque dois pontos fundamentais.
O primeiro ponto é que essa obra fala da importância das
memórias, vivências, experiências dos rappers e que possibilitaram a
construção de narrativas (raps) que representam boa parte da população
das periferias de algumas cidades brasileiras, narrativas estas que
encontraram ressonância por parte dessas pessoas, e, portanto, pode-se
dizer que foram produtoras de identidades, foco principal desta análise. E
desse ponto decorre o segundo, já que a obra trata dos rappers e raps que
narram o cotidiano da população das periferias de grandes cidades
brasileiras, com destaque para os temas da exclusão e desigualdade social,
da violência policial, do preconceito racial e de classe e do racismo, todos
temas que se direcionam às identidades afro-brasileiras.
Outro texto que serviu de referência para análise desse disco foi
“O Evangelho Marginal dos Racionais MC`s” de Acauam Silvério de
Oliveira21, autor também do prefácio do livro “Sobrevivendo no Inferno”,
dos Racionais MC´s22.
Em “Sobrevivendo no Inferno”, livro lançado em 2018 com as
letras das canções do disco de mesmo nome dos Racionais MCs, Oliveira
(2018) comenta no prefácio do livro um pouco da história da banda e da

21
Professor adjunto de literatura na Universidade de Pernambuco, Acauam
Silvério de Oliveira, sua tese de doutorado intitulada “O fim da canção? Racionais
MC's como efeito colateral do sistema cancional brasileiro” trata, entre outros
temas, as relações das canções dos Racionais com a identidade nacional.
22
Racionais MC's. Sobrevivendo no Inferno: Racionais MC's. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
85

importância desse disco não apenas para o cenário musical brasileiro, mas
também por trazer para o debate nacional temas extremamente difíceis da
sociedade brasileira. Nesse sentido, Oliveira (2018) chama a atenção para
a importância desse álbum não apenas pelo seu valor estético e cultural,
mas também pelo valor político por trazer à tona debates promovidos
pelos movimentos identitários, compactuando com a opinião de Bosco
(2017) que afirma que
[...] o reconhecimento obtido pelo grupo após o
sucesso nacional de “Diário de um detento” foi o
grande responsável por fazer com que os debates
promovidos pelos movimentos identitários
extrapolassem as fronteiras mais estreitas da
academia e dos movimentos sociais, ganhando
assim o campo mais amplo da cultura (BOSCO,
2017 apud OLIVEIRA, A., 2018, p. 23)
Reafirmando a importância desse disco, Oliveira (2018) aponta
que tal obra ajudou a formar uma nova identidade denominada de “sujeito
periférico”. D’Andrea (2013 apud OLIVEIRA A., 2018, p. 23) chama a
atenção de que “mais do que simplesmente representar o cotidiano
periférico em crônicas poderosas, a obra dos Racionais ajudou a fundar
uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele
define como ‘sujeito periférico’”.
Assim, como categoria, para analisar as canções, que é o binômio
resistência/empoderamento, que resume, de um lado, a resistência dos
povos afro-brasileiros frente a vários elementos do seu cotidiano como
por exemplo a exclusão e a desigualdade social, o racismo e o preconceito
racial e de classe, a falta de oportunidades de estudos, lazer e trabalho.
Por outro lado, aponta o empoderamento desses povos por meio do
orgulho, de luta e da valorização de aspectos de sua cultura. E nesse
sentido, é importante observar o que D’Andrea (2013 apud Oliveira A.,
2018, p.23) afirma ser o “sujeito periférico”:
O morador da periferia que assume sua condição,
tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir
dele. O termo “periferia” passaria a designar não
apenas “pobreza e violência” – como até então
ocorria no discurso oficial e acadêmico –, mas
também “cultura e potência”, confrontando a
lógica genocida do Estado por meio da elaboração
coletiva de outros modos de dizer.
86

Um esclarecimento importante sobre a relação dessa citação com


a dissertação é que D’Andrea fala do “sujeito periférico” e aqui
consideramos as identidades afro-brasileiras. Quando nos referimos à
periferia e as favelas, segundo dados apresentados pelo estudo “Retrato
das Desigualdades de Gênero e Raça23”, que analisa indicadores com base
em séries históricas de 1995 a 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), 66,2% das habitações são chefiadas por homens ou mulheres
negras, ou seja, a maioria da população desses locais é
predominantemente composta por sujeitos associados às identidades afro-
brasileiras.
Também é interessante observar que a narrativa e o discurso do
disco “Sobrevivendo no Inferno” e da própria banda Racionais não são
apenas representações do cotidiano da periferia, mas traduzem um
sentimento de resistência e empoderamento, que é justamente o foco
dessa dissertação, ou seja, a tentativa de se promover e produzir
pertencimento e identificações afro-brasileiras por meio de canções.
Nesse sentido
A atuação do grupo foi decisiva para fazer do rap
muito mais que uma simples representação da
periferia. Sua radicalidade e seu senso de “missão”
ajudaram a desenvolver um espaço discursivo em
que os cidadãos periféricos puderam se apropriar
de sua própria imagem, construindo para si uma
voz que, no limite, mudaria a forma de enxergar e
vivenciar a pobreza no Brasil (OLIVEIRA A.,
2018 p.23).
Também nesse sentido de resistência e empoderamento é
interessante observar a fala de KL Jay24 no artigo de Kehl (1999): “Somos
os pretos mais perigosos do país e vamos mudar muita coisa por aqui. Há
pouco ainda não tínhamos consciência disso”, que demonstra essa
perspectiva de incorporar a “valorização”, o “orgulho” e o “poder” do
sujeito periférico e não apenas se colocar como vítima, o que ilustra o
binômio “resistência/empoderamento”. Observando e analisando essa
mudança de atitude dos rappers dos Racionais MC’s, Kehl (1999, p.96),
afirma

23
http://www.ipea.gov.br/retrato/infograficos_habitacao_saneamento.html
24
KL Jay, nome artístico de Kleber Geraldo Lelis Simões, é o DJ, integrante do
grupo de rap Racionais MCs.
87

[...] há uma mudança de atitude, partindo dos


rappers e pretendendo modificar a autoimagem e o
comportamento de todos os negros pobres do
Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de
inferioridade que tanto agrada à elite da casa
grande, acostumada a se beneficiar da mansidão –
ou seja: do medo – de nossa “boa gente de cor”.
Uma parcela dessas características dos Racionais em relação aos
seus discursos, narrativas e representações do cotidiano da periferia e suas
relações com outros espaços e sujeitos poderão ser observadas a partir de
trechos das canções do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, conforme
análise a seguir.
88
89

4.1.2. Análise das canções do álbum “Sobrevivendo no Inferno” da


banda Racionais MCs.

O disco “Sobrevivendo no Inferno” da banda Racionais MC’s é


composto por onze canções (letra e música) e uma música apenas
instrumental. Todas elas, inclusive a instrumental, serão analisadas.
Essas análises levam em consideração características da
musicalidade/sonoridade (música25) e aspectos das narrativas do
cotidiano (letra), tendo em vista ilustrar a categoria
“resistência/empoderamento”, com seu potencial de estimular os
processos de produção identitária.
Não são todas as faixas do disco que conseguem abarcar todos
esses aspectos, por exemplo, existe uma faixa instrumental de número 6
cujo título é o sinal de reticências (...). Embora seja apenas instrumental,
mesmo assim é importante analisá-la, pois possui elementos que
transmitem ao ouvinte sensações do cotidiano. Há outras canções que
também não abarcam elementos da categoria
“resistência/empoderamento”, mas que tratam das narrativas do cotidiano
da periferia e que são importantes pela potencialidade de estimulação de
processos de identificações e pertencimentos, além de escancararem a
realidade, muitas vezes cruel, da periferia das grandes cidades,
consequência de séculos de uma sociedade extremante desigual. Apesar
dessas ponderações, é importante analisar a obra por completo, pois ela é
uma somatória de narrativas se formando em uma história com começo,
meio e fim. Somente analisando-a em sua completude é possível ter uma
visão e um entendimento da grandeza e importância dessa obra.
Contudo, a análise de cada canção será sobre trechos e fragmentos
delas. Algumas canções passam de dez minutos de duração, são narrações
extensas, sem refrão ou trechos repetidos. O intuito dessa análise, além
dos já expostos, é apontar por meio desses trechos/fragmentos, a
importância de se observar a canção em sua totalidade (letra e música) e
também de analisar a diversidade dessa obra em seus vários momentos e
nuances contidos nas várias canções que possuem temáticas e sonoridades
semelhantes e ao mesmo tempo diferentes, cada uma com suas
especificidades.

25
Os áudios das canções estão disponibilizados por meio de links que estão juntos
com a ficha técnica dos álbuns no Anexo 1.
90

A primeira canção do álbum, “Jorge da Capadócia”, é a junção da


letra da canção de mesmo nome de Jorge Ben com a música de fundo o
som da canção “Ike’s Rap 2”, do cantor e compositor norte-americano
Isaac Hayes. Uma mistura de pedido de proteção contra os ataques dos
inimigos e uma sonoridade que infere um “clima” em que há uma mistura
de sensações de calma e tensão, proporcionando uma certa dramaticidade
à canção.
Também é importante ressaltar que a letra dessa canção começa
com a palavra “Ogunhê”, que é a saudação que se refere ao orixá Ogum,
que é o deus da guerra da cultura afro-brasileira. No sincretismo religioso
ele é São Jorge, o santo guerreiro que se utiliza da lança e escudo para sua
proteção, como é narrado na canção. Observa-se uma ambiguidade de
representação, pois se trata do mesmo personagem, mas que é
representado ou como orixá Ogun ou como o santo guerreiro São Jorge.
Outro aspecto importante a se destacar em relação a Ogun/São Jorge, é
que ele é um guerreiro que luta pelo que é correto, que não se deixa abalar
pelas adversidades e dificuldades, buscando seus desejos, nada mais
semelhante do que o cotidiano que vai ser narrado por todo o disco
“Sobrevivendo no Inferno”
Na segunda canção, chamada “Gênesis”, que é a primeira com
letra autoral dos Racionais no disco, pode-se observar representações de
aspectos do cotidiano de uma parcela dos moradores da periferia como o
contato com a violência e as drogas.
Interessante observar como musicalidade da canção que é
semelhante a uma trilha sonora de filmes de terror e suspense, permeadas
por sirenes de polícia e latidos desesperados de cachorro, o que imprime
uma maior dramaticidade, o que atesta a importância de se analisar a letra
em conjunto com a audição da música, ou seja, a canção.

Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor.


O homem me deu a favela, o crack, a trairagem,
As arma, as bebida, as puta.
Eu?
Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática
Um sentimento de revolta.
Eu tô tentando sobreviver no inferno.

As três últimas frases dessa canção ilustram a categoria


“resistência/empoderamento”, pois em meio às adversidades encontradas
no dia a dia, eles encontram os “mecanismos” e as maneiras para
91

resistirem e sobreviverem, que no caso da canção, pode ser por meio da


fé e da violência.
A terceira canção do álbum cujo título é “Capítulo 4, Versículo 3”,
logo na estrofe inicial observa-se a narrativa do cotidiano da periferia
através da violência policial contra a população negra e pobre e o baixo
acesso dessa mesma população às universidades brasileiras. Tal narrativa,
apesar dos avanços nos últimos anos em relação ao acesso da população
negra e parda nas universidades, ainda é uma triste realidade brasileira.

60% dos jovens de periferia sem antecedentes


criminais já sofreram violência policial
(toque de piano)
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
(toque de piano)
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos
são negros
(toque de piano)
A cada 4 horas, um jovem negro morre
violentamente em São Paulo
(toque de piano)
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
(toque de piano)

A cada frase falada e não cantada dessa primeira estrofe, ouve-se


uma nota grave de um piano, dando uma dramaticidade à narrativa que
demarca ponto a ponto cada índice apresentado escancarando a triste
realidade da desigualdade social brasileira.
Nesse trecho da canção, a última frase ilustra bem a categoria
“resistência/empoderamento”, quando ela narra “Aqui quem fala é Primo
Preto” percebe-se um sentimento de afirmação às identidades afro-
brasileiras e “mais um sobrevivente” está se referindo, que perante
tamanha e brutal desigualdade e condições postas para os moradores da
periferia, viver é sinônimo de sobreviver, ou seja de resistência.
Após a primeira estrofe da canção, em relação aos aspectos
musicais dessa canção, merecem atenção as onomatopeias que
reproduzem sons de tiros contidas nas frases: “A primeira faz “bum, a
segunda faz tá” e “Explode sua cara por um toca-fita velho / Click, plau,
plau e acabou”. Também na estrofe que antecede o refrão, “Depois de
Cristo / A fúria negra ressuscita outra vez / Racionais, capítulo 4,
versículo 3”, na última palavra há um som que imita o toque de um sino,
92

começando logo em seguida um coral com vozes femininas cantando


“Aleluia” com um órgão de tubos, auferindo ao refrão da canção um
“clima” de cultos cristãos, mas que se encerra rapidamente com a frase
imitando o som de tiros de revólveres “Pá, pá, pá”.
Nessa canção aspectos identitários podem ser observados nas
frases “Eu tô na rua de bombeta e moleton / dim-dim-dom, rap é o som
que emana do opala marrom”; “Que era um preto tipo A ninguém tava
numa / Mó estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma / Um jeito humilde
de ser no trampo e no rolê / Curtia um funk, jogava uma bola / Buscava a
preta dele no portão da escola / Exemplo pra nóis mó moral, mó ibope”
e: “Ou o da família real de negro como eu sou / Um príncipe guerreiro
que defende o gol”. Percebe-se que há elementos associados às
identidades afro-brasileiras, constituídas de maneira heterogênea, híbrida,
como é o caso da marca Calvin Klein misturada com referências do
cotidiano da periferia.
Finalizando a análise dessa canção, que mistura aspectos do
cotidiano, elementos da categoria “resistência/empoderamento”
associada à produção de identidades afro- brasileiras, a última estrofe
sintetiza toda a importância de se pensar e trabalhar nessa perspectiva,
que seria a resistência frente às adversidades do cotidiano, ressaltando o
empoderamento e o sentimento de pertencimento a um lugar e a um
grupo, como estratégia na produção identitária.

Permaneço vivo, prossigo a mística


Vinte e sete anos contrariando a estatística [...]
Eu sou apenas um rapaz latino americano
Apoiado por mais de cinquenta mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais capítulo quatro, versículo três

Na quarta canção do álbum, “Tô ouvindo alguém me chamar”, a


princípio a narrativa é sobre as relações entre alguns personagens
bandidos já “experientes” (Guina) com outros que estão “iniciando nessa
bandidagem” (narrado por Mano Brow26), alguns assaltos e os confrontos
com a polícia e suas consequências.
Durante toda a canção, escuta-se o som intermitente e incessante
de um monitor de sinais vitais em uma sala de unidade de tratamento
intensivo (UTI) de um hospital e que ao final torna-se contínuo, o que

26
Mano Brow é o nome artístico de Pedro Paulo Soares Pereira, cantor,
compositor e um dos integrantes dos Racionais MCs.
93

significa que o sujeito veio a falecer. Ao escutar a canção percebe-se que


a narrativa se dá por um narrador que está à beira da morte numa sala de
UTI ou em uma ambulância (consequência dos tiros em confronto com a
polícia). A canção também é permeada por gritos tiros, sirenes de polícia,
risos, respiração ofegante, vozes que sussurram, choro de criança que
imprimem à narrativa um teor de veracidade e transmitindo ao ouvinte
dramaticidade, desespero, tensão, e ao final, resignação perante a morte.
Todas essas sensações e explicações só são possíveis ao escutar a
totalidade da canção (letra e música), ao ler apenas a letra a experiência e
o entendimento certamente ficam comprometidos. Apenas, após a escuta
da canção inteira, percebe-se que a narrativa é pela perspectiva de alguém
que levou alguns tiros, está prestes a morrer e recebendo socorro, e
começa a rememorar suas “bandidagens”, até o momento da sua morte.
A quinta canção, sob o título “Rapaz Comum” narra um possível
“acerto de contas” ou um assalto “comum” que ocorre muitas vezes, entre
os próprios moradores da periferia, onde ocorre um ataque com tiros
resultando na morte de um dos envolvidos.
Logo no início da canção, ouvem-se trechos de uma narração de
uma partida de futebol pela televisão, vozes de homens assistindo ao jogo,
sons de campainha de residências, tiros e carros partindo cantando os
pneus. Fica evidente que se trata de um “acerto de contas”. Além das
onomatopeias ao longo da letra que imitam sons de tiros de revólveres
(Click, Cleck, Bun), durante praticamente toda a canção, escuta-se o som
repetitivo de uma espécie de marretada em ferro, transmitindo ao ouvinte
a mensagem de uma situação do cotidiano (os conflitos) que sempre se
repete, que não muda e que “não sai da cabeça” dos moradores da
periferia, passando uma mensagem, em conjunto com a letra, de angústia
e fraqueza perante uma situação que não se pode fazer nada para mudar.
A sexta e única faixa instrumental do álbum, cujo título é um
símbolo de reticências “(...)” também é importante analisa-la pois durante
quase que toda sua duração, o som passa a sensação de normalidade,
somente sendo interrompida por alguns sons, que também não despertam
sensações muito diferentes, mas ao final, escuta-se sons de tiros de
revólveres colocando fim a música. A sensação que fica ao escuta-la é a
de um dia ou de um cotidiano normal e sem grandes problemas, mas que,
repentinamente, algo ou uma tragédia (os tiros que podem ser um assalto,
um homicídio) vem a acontecer.
A sétima canção do álbum, e também uma das mais famosas dos
Racionais é “Diário de um Detento” que narra um dos episódios mais
tristes e violentos da história recente do Brasil que foi o Massacre do
94

Carandiru27. A canção começa com Mano Brown narrando o cotidiano


sob a perspectiva de um detento28 do Carandiru no dia anterior a esse
massacre “São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã”. E depois
a canção segue narrando a frieza, indiferença e crueldade do massacre e
alguns desdobramentos.
A musicalidade dessa canção, inclusive com o recurso de
linguagem (onomatopeia) “Ratatatá”, que se refere a uma rajada de
metralhadora, é seca, crua e direta passando ao ouvinte, e, corroborando
com a narrativa da letra, a frieza com que a polícia, as autoridades
policiais chegando até o govenador do Estado de São Paulo à época (Luís
Antônio Fleury Filho), conduziram esse massacre, e que, depois, se
omitiram, se esquivaram e se ausentaram de culpa.

Era a brecha que o sistema queria


Avise o IML, chegou o grande dia
Depende do sim ou não de um só homem
Que prefere ser neutro pelo telefone
Ratatatá, caviar e champanhe
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!

A oitava canção do álbum chama-se “Periferia é Periferia (em


qualquer lugar)”, traz uma narrativa do cotidiano da juventude da
periferia, descrevendo suas experiências, memórias e sensações, onde
alguns entram em contato com as drogas e a violência resultante do tráfico
delas. A canção relaciona esses problemas com a falta de expectativa de
um futuro melhor, que por sua vez é consequência do sistema capitalista
que produz desigualdade, exclusão, baixos salários e desemprego.

Periferia é periferia
Aqui, meu irmão, é cada um por si

27
Segundo Acauam Silvério de Oliveira no prefácio do livro “Sobrevivendo no
Inferno” (2018, p.19.): “Em 2 de outubro de 1992, São Paulo foi palco daquela
que é considerada a mais violenta e brutal ação da história do sistema prisional
brasileiro: o massacre do Carandiru, intervenção assassina da polícia militar do
Estado de São Paulo que resultou na morte de pelo menos 111 detentos, a maioria
composta de réus primários, sem nenhuma chance de defesa”.
28
A escrita da narrativa teve contribuições de Josemir Prado, o Jocenir, ex-
detento do Complexo do Carandiru.
95

Periferia é periferia
Molecada sem futuro eu já consigo ver
Periferia é periferia
Aliados, drogados, então
Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Gente pobre
Periferia é periferia
Deixe o crack de lado, escute o meu recado

Na parte final dessa canção, a musicalidade com suas bases


repetidas incessantemente, juntamente com a repetição da frase “periferia
é periferia” (treze vezes), passa uma sensação de uma espiral de
problemas que dificilmente se resolverá, reforçando a mensagem na letra
em geral, e nessa estrofe em específico, passam para o leitor/ouvinte.
Apesar dessa “espiral de problemas”, na última frase do trecho da
canção, pode-se observar um aspecto da categoria “resistência”, abarcada
na última frase “Deixe o crack de lado, escute o meu recado”. E, apesar
de não estar explícito, a canção, ao narrar os problemas da periferia, e que
periferia é periferia em qualquer lugar, indica que “resistir” às drogas é
uma forma de se empoderar e buscar uma saída dessa espiral de
problemas.
Na nona canção do álbum “Em qual mentira vou acreditar?”, a
narrativa traz vários diálogos entre Edi Rock29, que também é morador da
periferia, com outro amigo, que demonstram algumas relações entre esses
moradores e as autoridades policiais. Esses diálogos indicam o
desrespeito e violência, o que comprova/expressa o preconceito racial e
de classe muito presente na sociedade brasileira, e também a relação
complexa e contraditória deles com outros moradores das favelas.
Logo no começo da canção, ouve-se o som de rádio do carro
mudando de uma estação para outra, tocando pequenos trechos de
canções variadas.
A sirene do carro de polícia que antecede a frase de Edi Rock (uma
espécie de desabafo) e depois, a fala do policial, exemplificam todo o
contexto dessas relações, dando um tom de veracidade e tensão a essa
narrativa representativa dessas relações.

(sirene de polícia)

29
Edi Rock, nome artístico de Edivaldo Pereira Alves, é um dos integrantes da
banda Racionais MCs.
96

Aí, caralho
(voz do policial)
prefixo da placa é MY
sentido Jaçanã, Jardim Hebron
(Edi Rock)
Quem é preto como eu já tá ligado qual é
Nota Fiscal, RG, polícia no pé
(voz do policial)
"Escuta aqui:
o primo do cunhado do meu genro é mestiço
Racismo não existe, comigo não tem disso
É pra sua segurança"
(Edi Rock)
Falou, falou, deixa pra lá
Vou escolher em qual mentira vou acreditar

Além desse trecho acima analisado que narra uma relação entre um
morador da periferia, Ice Blue30, e um policial, é interessante analisar que
a canção traz outras narrativas (conversas de Ice Blue com Edi Rock),
relatando os encontros com outras pessoas durante seu “rolê”. Em um
desses encontros Ice Blue depara com outros personagens, como a mulher
que em um primeiro momento era uma “princesa” para ele, mas que se
revela uma “racista” que não se identifica com suas origens da periferia.
Aqui também é possível estabelecer uma análise da complexa relação das
questões identitárias coletivas, nesse caso das relações de gênero com as
identidades afro-brasileiras.
Outro encontro é com o “rapaz” que de dia parecia um pastor de
igreja pentecostal, mas que a noite era traficante de drogas. Entre um
encontro e outro das narrativas (policial, mulher e traficante), “gambé,
puta e pilantra” nas palavras dos Racionais MC’s, canta-se o refrão que
tem a frase que dá título à canção“ Em qual mentira vou acreditar” e a
última frase dessa canção é “Tem que andar é esperto, mano” o que
demonstra um aspecto da identidade desses moradores da periferia, tal
esperteza não no sentido pejorativo e sim no sentido de que para
sobreviver a tantos problemas e provocações, tem que saber ser esperto.
Outro aspecto importante dessa canção, agora relacionado a
resistência/empoderamento, é que observando trechos em que Edi Rock
narra situações em que tanto um policial como uma mulher

30
Ice Blue, nome artístico de Paulo Eduardo Salvador, é um dos membros da
banda Racionais MCs.
97

ofendem/criticam símbolos (roupas, aparências, trejeitos, gostos) que


remetem à sua identidade, é possível perceber o sentimento de repulsa e
indignação gerados por eles. Para Edi Rock esses símbolos trazem um
sentimento de pertencimento, de identidade e ao narrar o momento de
revista policial, ele demonstra que a destruição destes, representa uma
forma de ofensa, humilhação:

Ô, que caras chato, ó! Quinze pras onze


Eu nem fui muito longe e os "home" embaçou
Revirou os banco, amassou meu boné branco
Sujou minha camisa dos Santos
Eu nem me lembro mais pra onde eu vou

Ou ainda no trecho da canção que narra parte da conversa de Edi


Rock com a mulher:

Eu ouvindo James Brown, pá, cheio de pose


Ela pergunto se eu tenho... o quê?
Guns n' Roses? Lógico que não! A mina quase
histérica
Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica
Como é que ela falou? Só se liga nessa
Que mina cabulosa, olha só que conversa
Que tinha bronca de neguinho de salão (não...)
Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não...)
Aí não, mano! Foi por pouco

A décima canção do álbum é “Mágico de Oz”. Logo no início a


narrativa (1ª estrofe) é realizada por um menino31 que está respondendo
perguntas sobre os motivos que o levaram a usar drogas e logo após ele
fala dos seus sonhos e do momento em que ele começa a usar drogas para
“fugir dos problemas”. Ao responder o que faria se fosse um mágico, toca
uma música de fundo igual às cenas de filmes quando uma mágica ou um
milagre acontecem. Então a resposta do Pulga do ABC é: “Não existia
droga, nem fome e nem polícia”, ou seja, uma verdadeira mágica. Após a
fala do Pulga, a narrativa realizada por Edi Rock trata do cotidiano de

31
Conhecido como Pulga do ABC, já se destacava no rap e também era usuário
de crack.
98

várias crianças e jovens da periferia que passam a usar drogas ou entram


para o mundo do crime em decorrência da falta de oportunidades, da
desestruturação familiar, do contato com o mundo do crime e dos sonhos
de participar (consumir) do mundo capitalista, que são impossíveis. A
narrativa é permeada por pedidos a Deus, como se fosse um mágico de
Oz, para que transforme ou mude a realidade da periferia. Edi Rock em
alguns momentos questiona a existência desse Deus, o que fica
evidenciado nas frases, “Será que Deus tá provando minha raça?” e “Às
vezes fico pensando se Deus existe mesmo, morô?”
No que tange a musicalidade dessa canção, além da introdução, um
dos pontos que chamam a atenção é o refrão: “Queria que Deus ouvisse a
minha voz/que Deus ouvisse a minha voz/Num Mundo Mágico de Oz /um
Mundo Mágico de Oz”, cantado por um coral feminino em estilo gospel
ou espiritual, corroborando com a letra, um pedido de salvação, um
socorro, um milagre ou uma mágica. Durante toda a canção, vozes desse
coral feminino ao fundo aparecem, dando uma conotação de uma grande
oração ou um culto narrando as mazelas do cotidiano da periferia, a fé em
Deus e os pedidos a ele de que um dia, como num passe de mágica, mude
tal realidade.
A penúltima canção do disco, cujo título é “Fórmula Mágica da
Paz” é quase que uma continuação da anterior “Mágico de Oz” (os títulos
das canções já indicam isso). Mas, diferentemente da canção anterior cuja
narrativa trata mais do cotidiano das crianças e jovens, aqui a narrativa do
cotidiano é sobre a vida dos “manos”, ou seja, dos homens já na fase
adulta, onde alguns estão sobrevivendo e outros morreram ou por
continuarem na “vida loka”, que é a vida associada às drogas e ao crime,
ou inocentemente, pela violência e truculência da polícia contra os
moradores da periferia. Outras semelhanças com a canção anterior é a fé
em deus, a esperança, a procura de uma espécie de mágica ou de salvação
que mude a realidade deles e também há o questionamento da existência
desse mesmo Deus, que parece ter abandonado ou esquecido a periferia.
É interessante observar que durante toda a canção cantada por
Mano Brown, há uma “crise de identidade”, ora pela opção em não ter
uma vida sem se envolver com a criminalidade, mas em crise com os
“mano” que estão morrendo, ora em relação aos próprios moradores da
periferia como evidencia a frase “Preto, branco, polícia, ladrão ou eu?
/Quem é mais filha da puta, eu não sei / Aí fudeu, fudeu / Decepção essas
hora / A depressão vai me pegar, vou sair fora”.
Essa “crise de identidade” também pode ser observada quando
Mano Brown canta ao observar um cemitério no dia de Finados: “E o que
todas as senhoras tinham em comum? / A roupa humilde, a pele escura /
99

O rosto abatido pela vida dura”. Ou ainda no trecho no qual Mano Brown
questiona: “Assustador é quando se descobre / Que tudo deu em nada e
que só morre o pobre / A gente vive se matando, irmão por quê? / Não me
olha assim, eu sou igual a você”.
Essas “crises de identidades”, isto é, as contradições também são
características relacionadas às identidades heterogêneas, híbridas, em
construção e fronteiriças, passíveis de inúmeras crises e dilemas.
Outros dois destaques importantes nessa canção, ainda em relação
às identidades afro-brasileiras, em primeiro lugar, o sincretismo religioso
presente, a frase “Agradeço a Deus e aos Orixás”, que demonstra a fé e a
devoção de boa parte da população brasileira que cultua deuses de
diferentes religiões. E, em segundo lugar, a questão de alguns símbolos e
referências expostos nas frases: “Era só um moleque, só pensava em
dançar / Cabelo black e tênis All Star”. Aqui percebe-se esta mistura de
referências identitárias como o cabelo black, por um lado, e, por outro
lado, o tênis All Star, símbolo muito mais atrelado a uma cultura
capitalista norte-americana do que uma afro-americana. Mas pela
perspectiva não essencialista em relação à produção de identidades, que
procuramos ilustrar neste trabalho, com base em canções do rap não há
problema algum, ou seja, um sujeito perderia sua identidade afro-
brasileira por usar símbolos ou elementos diferentes do que alguns
convencionaram em chamar de pertencentes dessa ou daquela identidade?
Quanto a musicalidade dessa canção, além da onomatopeia “Pá,
pá, pá, pá” que imita uma saraivada de tiros, é interessante observar o
coral que, com uma voz ao fundo no estilo gospel ou soul music
acompanha toda a canção, imprimindo a ela toda uma dimensão religiosa,
na qual a narrativa se transforma em um discurso que se assemelha a uma
confissão dos pecados, arrependimento, o purgar dos pecados e a
promessa e tentativa de uma mudança de vida para conseguir a salvação.
Isso se evidencia ainda mais nos trechos que o coral ganha destaque, em
que deixa de ser uma apenas uma música de fundo e passa a ser
protagonista da canção, auferindo ainda mais essa dimensão e
característica de uma canção religiosa ou gospel, cuja mensagem é a
procura de uma salvação ou redenção. A seguir o trecho em que o coral
ganha destaque:

Eu vou procurar, sei que vou encontrar, eu vou


procurar
Eu vou procurar, você não bota mó fé, mas eu vou
atrás
100

Eu vou procurar e sei que vou encontrar


Da minha fórmula mágica da paz
Eu vou procurar, sei que vou encontrar
Procure a sua, eu vou procurar, eu vou procurar
Você não bota uma fé...
Eu vou atrás da minha fé
você não bota uma fé

No final da canção, a partir da frase “Agradeço a deus e os orixás”,


onde Mano Brown faz uma série de agradecimentos e afirma que é mais
um sobrevivente, ouvem-se ao fundo falas, risadas, palmas, assobios, que
se assemelham a uma comemoração, talvez pelo fato de tal sobrevivência,
que desafia as estatísticas de acordo com as palavras “Aqui quem fala é
Mano Brown, mais um sobrevivente.../....Vinte e sete anos contrariando
as estatísticas, morô?”
A décima segunda canção e que fecha o álbum é “Salve”, nome
que expressa uma saudação. Essa canção de encerramento é de fato uma
saudação, cantada por Ice Blue e Mano Brown, para todos os manos da
periferia, principalmente para os da cidade de São Paulo, onde são citadas
várias regiões e bairros periféricos, mas o Salve é para toda a periferia do
Brasil, como expressa a frase “E pra todos os aliados espalhados pelas
favelas do Brasil / Firma!”
É interessante observar que nesse “Salve” para todos os aliados da
periferia, está implícito uma identificação do sujeito periférico e que fica
mais evidente por meio da frase “Todos os DJs, todos os MCs / Que fazem
do rap a trilha sonora do gueto”, e aqui essa identidade do sujeito
periférico se mistura com os rappers, sujeitos associados às identidades
afro-brasileiras, que vivem no lugar ou no bairro onde vivem as pessoas
ou membros de uma etnia considerada minoritária, no caso específico da
canção, os afrodescendentes.
O “Salve” não é apenas uma saudação para os aliados, é um recado
para os inimigos também, expressado na frase: “E pros filhas da puta que
querem jogar minha cabeça para os porco: / Aí tenta a sorte, mano”, e
para aqueles que querem continuar na vida da bandidagem, “Aí ladrão, tô
saindo fora / Paz”.
É interessante notar que há uma demarcação de território e de
identificação, pois aos inimigos que querem a cabeça dele, é para “tentar
a sorte”, quem é o inimigo? Ele pode ser um “gambé” (policial), mas pode
ser um sujeito da periferia mesmo, mas que não compactua com os
mesmos preceitos de sua ideologia e/ou discurso. Por outro lado, para os
ladrões, Mano Brown afirma que está saindo dessa vida e deseja paz a
101

eles, ou seja, não são seus inimigos, podem ser seus amigos. E aqui é que
recai a importância dessas falas de resistência e exclusão. A identificação
não está circunscrita a uma questão geográfica e/ou raça e/ou classe, e
sim, todas elas, misturadas ou não, mas que se identificam pelas atitudes
e valores, o que denota uma perspectiva identitária não essencialista, pois
é fluida, de fronteira, em construção e heterogênea. É o caso da identidade
do “sujeito periférico”.
Outro aspecto interessante na narrativa da canção é a passagem em
que Mano Brown se refere a Jesus (Cristo) como um homem de pele
escura e de cabelo crespo: “Eu acredito na palavra de um homem de pele
escura, de cabelo crespo / Que andava entre mendigos e leprosos
pregando a igualdade / Um homem chamado Jesus / Só ele sabe a minha
hora”. É muito interessante analisar esse trecho da canção pois Mano
Brow faz referência ao Cristianismo na figura de Jesus Cristo, mas ele
tem algumas das características aparentes da identidade afro (pele escura
e cabelo crespo). Aqui há uma mistura de elementos de uma religião de
origem branca e europeia, com elementos das identidades afros, o que
mais uma vez atesta a composição heterogênea das relações identitárias.
No aspecto da musicalidade dessa canção, o que mais chama a
atenção é o fundo musical que a acompanha é a mesma da primeira canção
deste mesmo disco, “Jorge da Capadócia”, que é a da canção “Ike’s Rap
2”, do cantor e compositor norte-americano Isaac Hayes. Da mesma
forma que na primeira canção, o sampler 32 dessa canção também passa as
mesmas sensações, mas é interessante escutá-la justamente com as letras,
considerando o fato de que se trata da primeira e da última canção do
disco. A primeira canção, cuja letra “Jorge da Capadócia”, é um pedido
de proteção: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge / Para
que meus inimigos tenham pés mas não me alcancem / Para que meus
inimigos tenham mãos não me toquem / Para que meus inimigos tenham
olhos e não me vejam / E nem mesmo pensamentos eles possam ter”. Na
canção que fecha o disco, “Salve”, trata-se de uma saudação para os
aliados, um recado para os inimigos para que os bandidos fiquem em paz.
Ou seja, o mesmo som, mas com letras e mensagens diferentes, iniciando
e encerrando o disco: um pedido de proteção, expectativas de mudanças
e despedidas. O início e o fim de uma narrativa, de uma história, que pode
ter mudado (ou não).

32
Sampler: instrumento eletrônico dotado de memória para os sons selecionados,
amplamente utilizados pelos rappers. Normalmente é acoplado a um mixer, o que
permite realizar colagem de sons pré-gravados durante a execução de uma música
pelo DJ ou inseri-las no processo de mixagem de uma música.
102

A seguir, o trabalho passa a analisar o rapper Criolo,


representante dessa 2ª geração do cenário musical rapper brasileiro e seu
álbum “Nó na Orelha”, considerado o melhor disco de 2011 pela Revista
Rolling Stone.
103

4.2. Criolo, o segundo momento do rap brasileiro: A consolidação da


diversidade do rap brasileiro

“Pronto pra rimar um doido criolo mestiço, eu não sou


preto, eu não sou branco, eu sou do rap, eu sou bem isso”33.

Criolo já começa chamando a atenção pelo próprio nome artístico.


Kleber Cavalcante Gomes que nasceu na cidade de São Paulo no ano de
1975, mais conhecido pelo pseudônimo Criolo, é filho de pai metalúrgico
e mãe educadora, ambos cearenses. Em sua trajetória de vida, já vendeu
cocadas feitas por suas próprias mãos, foi professor de escola da rede
pública e trabalhou com crianças em situação de rua. Um músico ciente
de sua condição social, sensível aos problemas do contexto em que vive
e dinâmico para encarar seus problemas, Criolo consegue transmitir toda
sua trajetória de vida dinâmica, diversa e fronteiriça, nos seus álbuns com
uma linguagem quase que universal, atingindo um público que não estava
acostumado ao rap.
Criolo é um dos músicos e rappers mais conhecidos no cenário
musical brasileiro, tendo também reconhecimento no exterior, fazendo
shows e turnês em vários países. Alguns músicos e críticos apontam
Criolo como um dos principais músicos do Brasil. Uma das características
marcantes de seu rap é a mistura com outros gêneros musicais como o
samba, a soul music34, o afrobeat, o reggae e brega 35. Embora este artista
difunda a cultura do rap nacional desde os anos 1980 e tenha começado a
cantar rap em 1989, Criolo despontou no cenário musical apenas na
primeira década dos anos 2000, lançando seu primeiro disco com o título
“Ainda Há Tempo” em 2006. Em 2010 fez uma gravação de um DVD ao

33
Canção “Criolo Doido” do álbum “Ainda Há Tempo” (2006).
34
Soul (em inglês: alma) é gênero musical dos Estados Unidos da América que
nasceu do rhythm and blues e do gospel, durante o final da década de 1950 e
início da década de 1960, entre músicos negros.
35
Brega é um termo utilizado por muitos, inicialmente de maneira pejorativa, para
designar a chamada música romântica popular. A música romântica sempre teve
lugar marcante no cancioneiro popular brasileiro, desenvolvida em diferentes
gêneros e estilos. A designação "música brega" ganhou força a partir de meados
dos anos 1960, quando a música jovem, por um lado, de matriz americana, e por
outro, oriunda da classe média estudantil, alcançou cada vez maiores espaços,
fazendo com que a música romântica vinda das camadas populares fosse
considerada cafona e deselegante.
104

vivo chamado Criolo Doido Live in SP e, em 2011, Criolo Doido mudou


seu nome para Criolo e lancou o disco “Nó na Orelha”, o qual foi eleito
pela Revista Rolling Stone como o melhor disco de 201136. Em 2014
Criolo lançou seu terceiro disco ‘Convoque seu Buda’ que também foi
muito aclamado pela crítica e que obteve muito sucesso. Logo após,
lançou, junto com Ivete Sangalo, o disco “Viva Tim Maia!” que é um
tributo a Tim Maia. Em 2016, Criolo fez uma regravação de oito faixas
de seu primeiro disco Ainda Há Tempo e em 2017 foi lançado o disco
“Espiral de Ilusão”, um disco com muito samba de raiz, considerado por
muitos críticos, um disco muito mais de samba do que rap37.
As narrativas de suas canções são recheadas de experiências,
vivências e memórias que retratam o cotidiano do seu bairro (Grajaú) na
cidade de São Paulo, mas Criolo não fica restrito apenas a essas temáticas,
ele extrapola o ambiente do seu cotidiano e incorpora, muitas vezes por
meio da ironia, metáforas e críticas, temas polêmicos e subjetivos, que
tratam desde relações amorosas, angústias e ansiedades com o presente e
o futuro, críticas ao modelo de sociedade em que vivemos, chegando até
o cenário político e obscuro desses últimos anos no nosso país.
Criolo é um dos músicos de grande expressão no cenário atual, pois
entre outras qualidades, sabe narrar em suas canções uma ampla temática
com críticas ácidas a praticamente tudo que diz respeito à sociedade
desigual em que vivemos e suas consequências. E junto com essas
narrativas, proporciona uma musicalidade/sonoridade múltipla e
heterogênea, que sem perder o peso e a dureza do gênero musical do rap,
mistura com a alegria, a leveza e a malemolência de variados gêneros
musicais, como o samba, o funk e o reggae. Sinteticamente, pode-se dizer
que sua canção perpassa temas pesados e polêmicos, mas que são
narrados de forma de forma leve por meio de metáforas e ironias, com
sonoridades, as vezes triste e dura, mas que transmitem energia, esperança
e alegria com sua diversidade musical.

36
https://oglobo.globo.com/cultura/rolling-stone-elege-discos-de-criolo-adele-
os-melhores-de-2011-3564237
37
Informações retiradas dos sites http://dicionariompb.com.br/criolo e
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa429387/criolo
105

4.2.1. O álbum “Nó na Orelha”38; Rap, Resistência, Representação e


Empoderamento

“Nó na Orelha” é o segundo álbum de estúdio do rapper brasileiro


Criolo, com produção de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, lançado em
25 de abril de 2011 em mídia física, em CD e vinil pela Livraria Cultura,
e digital, gratuita, pela gravadora Oloko.
Criolo, com esse álbum, ganhou muito destaque, sendo que ele foi
um dos grandes vencedores do MTV Vídeo Music Brasil (VMB) de
201139, conquistando três prêmios, “Revelação do Ano”, “Melhor
Música” com “Não Existe Amor em SP” e “Melhor Álbum” com “Nó na
Orelha”. Além desses prêmios, Criolo se apresentou com Caetano Veloso,
cantando “Não Existe Amor em SP”, umas das canções mais elogiadas
desse mesmo álbum.
O álbum “Nó na Orelha” também recebeu uma indicação de quatro
estrelas40 da Revista Rolling Stone, que atribui uma indicação máxima de
cinco estrelas aos álbuns avaliados 41, o que proporcionou uma
visibilidade ainda maior para Criolo.
“Nó na Orelha” é um álbum de rap com várias influências
musicais, misturando o rap com ska, samba, afrobeat e até bolero, com
letras críticas sobre o cotidiano da periferia, mas que também abordam
outras temáticas mais subjetivas como a angústia e a solidão. Acredita-se
que justamente por causa dessa diversidade e multiplicidade, Criolo, com
esse disco, tenha alcançado um público mais heterogêneo, fazendo
sucesso com fãs de outros gêneros musicais levando o rap para outros
espaços e ambientes em que nunca tinha chegado.

38 Criolo. Nó na orelha. São Paulo: Oloko Records. 2011. Cd.


39 https://rollingstone.uol.com.br/noticia/hip-hop-paulistano-da-o-tom-da-noite-
no-vmb-2011/
40 https://rollingstone.uol.com.br/guia/cd/4913-criolo/
41 https://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-129/musica-em-detalhes/
106
107

4.2.2. Análise das canções do álbum “Nó na Orelha” de Criolo.

Semelhante à forma que foi realizada a análise do disco


“Sobrevivendo o Inferno” dos Racionais MC’s, em relação a esse disco a
análise também levará em consideração características da
musicalidade/sonoridadade (música), aspectos das narrativas do cotidiano
(letra) que ilustram a categoria “resistência/empoderamento”, tendo em
vista apontar as características dos processos de produção identitária.
Assim como no álbum “Sobrevivendo no Inferno”, aqui também
não são todas as faixas do disco que conseguem abarcar todos esses
aspectos. Há canções que não abarcam a categoria
“resistência/empoderamento”, mas que tratam das narrativas do cotidiano
da periferia e que são importantes pela potencialidade de estimular, junto
aos jovens, processos de identificações e pertencimentos.
Aqui também, a análise realizada não é sobre a totalidade das
canções e sim sobre trechos/fragmentos delas. O intuito dessa análise é
demonstrar, por meio desses trechos/fragmentos, a importância de se
analisar a canção em sua totalidade (letra e música) e também de analisar
a diversidade dessa obra em seus vários momentos, com uma rica
diversidade musical.
A canção que abre o álbum é “Bogotá” e o que já chama a atenção
é o próprio título da canção, que é a capital da Colômbia. Por que a
escolha dela? Seria pelo fato de ter ficado conhecido por ser um país que
teve uma parte da sua história recente ligada à produção e o tráfico de
cocaína? A canção não deixa claro, o que é uma das características do
álbum: diferentemente de outros raps, cuja mensagem é direta e objetiva,
Criolo, em vários momentos desse álbum, quer passar suas mensagens,
seus recados subjetivamente, às vezes, por meio de metáforas e ironias.
No próprio refrão da canção isto fica evidente: “Vamos embora para
Bogotá / Muambar / Muambei / Vamos cruzar Transamazônica / Pra levar
/ Pra freguês”. O que seriam essas muambas? Quem seriam os fregueses?
Mas a canção não se restringe a metáforas ou narrativas com
indiretas, ela é muito mais complexa pois trata de decisões a serem
tomadas que a princípio são tentadoras, mas que podem levar a caminhos
ou lugares indesejáveis como na primeira estrofe: “Fique atento irmão! /
Fique atento, quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto /
Quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto, fique atento".
Mas Criolo não esquece também de sua origem e parece também
direcionar recados aos jovens da periferia, que, assim como ele,
conhecem bem essas tentações: “Desde pequeno sabe o que é isso / No
108

fio da navalha / Brincar no precipício / A vida e a morte / Escolha o seu


troféu / Pois cada um sabe o preço do papel / Quem tem / E de onde vem”.
Nesse sentido, Criolo por meio das indiretas e metáforas de
“Bogotá”, sabe da realidade de vários jovens não apenas da periferia, mas
também de outros bairros menos pobres, que passam por várias tentações
e provações e que precisam ser espertos na hora de fazer suas escolhas.
Em relação a musicalidade da canção, logo de início o que salta
aos ouvidos, é o swing e o balanço da percussão junto com um naipe de
metais que já passam ao ouvinte uma sensação de energia e movimento,
e juntamente com o nome e a narrativa da canção, possui muito da ginga
e do ritmo dos gêneros musicais latinos e da soul music. Alguns críticos
musicais classificam essa canção como um samba-funk, outros como
afrobeat. E já nessa canção, Criolo e o disco já apresentam o cartão de
visita, que é a diversidade sonora de suas canções, uma miscelânea de
ritmos cheia de influências de afrobeat, samba, ska e bolero.
A segunda canção desse álbum é “Subirusdoistiozin” (o nome está
relacionado a história de dois “tiozinhos” que morrem em uma espécie de
acerto de contas e que “subiram” aos céus) que é repleta de gírias,
metáforas e combinações linguísticas, como o próprio título, que narra o
cotidiano da periferia relacionado com o uso e tráfico de drogas e também
as relações de moradores da periferia com pessoas de outros extratos
sociais (classe média).
A narrativa chama a atenção pela grande quantidade de gírias
“baguio”, “campin’, “azulê”, “campana”, “chinesin”, “babylon”, “HK”
“vadia”, “no 12”, “perreço” combinações linguísticas
“subirusdoistiozin”, “flango”, “macalão”, palavras com sentido figurado
como “arrastar”, “preta”, “branca” e onomatopeias que imitam uma
rajada de tiros “Para pa pa, para pa pa”. Esses recursos de linguagem
produzem uma identificação com a juventude pois é uma linguagem deles
e que em muitos casos, apenas quem é desse meio sabe o significado de
tais palavras. Nesse caso, tais recursos, além de produzirem identidades,
também servem para demarcar quem pertence ou não a esse universo,
incluindo ou excluindo sujeitos.
A narrativa da canção trata do dia a dia de vários jovens da
periferia, suas práticas de lazer “Pleno domingão, flango ou macalão”, as
relações com as drogas “Mas quem quer preta, mas quem quer branca”, o
contato com a polícia “Vários de campana aqui na do campin” e com
sujeitos que não pertencem à sua comunidade “Os perreco vem, os
perreco vão / As vadia quer, mas nunca vão subir”.
109

A canção é um rap, com uma base tradicional feita por uma bateria
eletrônica, com toques de soul music e jazz com trompete e piano e suaves
solos de guitarra.
A canção inicia com a fala em um tom mais baixo na voz de Criolo
como se estivesse resmungando a respeito da situação dos jovens, dando
o tom do que se trata a canção: “Tem uns menino bom novo hoje aí na
rua, pra lá e pra cá, que corre pelo certo / Mas já tem uns também que eu
vou te falar, viu / Só por Deus, viu!”.
Sua musicalidade passa a sensação de um dia tranquilo e calmo,
com uma sonoridade levemente tranquila e swingada. Até mesmo o refrão
“Para pa pa, para pa pa” (som que simula uma rajada de tiros) é cantado
de uma maneira que pode passar desapercebido e não ser relacionado ao
som de tiros. Também é interessante como o ritmo da música, com
destaque para os scratches 42 e o som do trompete, se encaixam
perfeitamente à letra, dando uma característica de organicidade a canção,
por isso a importância de não se escutar/ler a música separada da letra e
vice-versa.
A terceira canção do disco é “Não existe Amor em SP”, uma
canção melancólica que trata das sensações, angústias e crises de solidão
sobre o vida na maior cidade de país, São Paulo. A narrativa é repleta de
mensagens subjetivas por meio dos labirintos e enigmas da cidade de São
Paulo, transmite os perigos, a frieza, as tentações e a dor de viver nessa
cidade. Tal narrativa transcende o universo da periferia paulistana,
falando de uma realidade ao mesmo desigual social e economicamente
falando, mas semelhante no que tange os medos, tristezas e a solidão de
viver no meio da multidão, provocando uma identificação de um público
muito maior que o circunscrito a uma ou outra região.
A musicalidade da canção se assemelha a uma balada lenta,
praticamente um tipo de dub 43, com destaque para os sons graves do
contrabaixo contrastando com a batida seca e marcada da bateria, além
dos arranjos de cordas que deixam a canção ainda mais introspectiva. O
ritmo devagar e pausado da canção potencializa as várias mensagens da
narrativa, e ao ser escutada em sua completude, transmite as sensações de
viver em São Paulo. Assim como Criolo afirma que: “Não precisa morrer
pra ver Deus / Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você”, ao

42
Scratch: efeitos sonoros produzidos pelo atrito entre a agulha do toca-discos e
o próprio disco.
43
Dub é um gênero musical fortemente associado ao reggae e à cultura jamaicana,
o dub faz uso da base baixo e bateria com sobreposições de efeitos criativos
dentro das possibilidades de estúdio.
110

escutar essa canção não é preciso morar em São Paulo para sentir tais
sensações.
A quarta canção do álbum chama-se “Mariô”, que possui várias
referências, tanto na letra como na música, às identidades afros. A canção
começa com o refrão na língua Iorubá: “Ogum adjo, ê mariô (Okunlakaiê)
/ Ogum adjo, ê mariô / (Okunlakaiê)”, cujo significado são referências ao
Orixá Ogun e a Mariô que é a folha extraída do denzezeiro, item,
indispensável no culto a esse Orixá. A canção também faz referências a
importantes cantores africanos como Mulatu Astatke e Fela Kuti, ao
rapper americano OlDirty Bastard, membro do Wu-Tang Clan´, ao rapper
brasileiro Sabotagem e a Chico Buarque. Com exceção do último, todos
são exemplos de músicos com identidades afros (africana, afro-americana
e afro-brasileira).
A narrativa dessa canção é uma série de críticas à sociedade
contemporânea, seja em relação a desigualdade social e à soberba por
parte de algumas pessoas e classes sociais: “E quem se julga a nata
cuidado pra não quaiar”, ou em relação àqueles que fingem não enxergar
o mundo em que vivem: “Eu não preciso de óculos pra enxergar / O que
acontece ao meu redor” e: “Eu não preciso de Mãe Diná / Pra saber que é
o seu pior”. Defende o hip hop e o rap para combater a hipocrisia dessa
sociedade e o sistema em que vivemos, que parece não fazer nada para
mudar tal situação: “Na força do verso a rima que espanca /A hipocrisia
doce que alicia nossas crianças”
Nessa canção, além das referências africanas supracitadas,
observam-se também relações com as identidades afro-brasileiras nos
trechos “E pode crer, mais de quinhentos mil manos / Pode crer também,
o dialeto suburbano / Pode crer a fé em você que depositamos / E fia, eu
odeio explicar gíria”, fazendo alusão aos manos da periferia, falando de
seus dialetos e suas gírias que são símbolos para os sujeitos da periferia,
cuja maioria são de afrodescendentes
No que tange a musicalidade, essa canção é uma das que mais
possuem influências dos gêneros musicais africanos, além do próprio rap,
batuques do candomblé e da umbanda estão presentes, o groove do
contrabaixo se destaca e em conjunto com as referências e identidades
africanas presentes nas narrativas, a canção pode ser considerada uma
mistura de rap com afrobeat. A canção possui momentos mais pausados
e demarcados que é característico do rap, concatenado com as mensagens
da letra, e, momentos mais contagiantes e envolventes, características
típicas do afrobeat durante o refrão.
A quinta canção cujo título é “Freguês da Meia Noite” pode ser
considerada a que mais destoa do álbum, o gênero musical é quase um
111

bolero, ou ainda, uma canção brega, gêneros musicais cujas caraterísticas


rítmicas e musicais não possuem semelhanças com as do rap.
A canção, através de palavras e frases com sentidos figurados,
narra os encontros e desencontros de um homem com uma prostituta no
centro da cidade de São Paulo, as relações dele com as drogas e a boemia.
Apesar de aparentar em um primeiro momento uma canção apenas
romântica, as analisar com mais afinco, a canção expressa vários
sentimentos contraditórios das relações humanas como a dor, a solidão e
as angústias e outras fragilidades das relações pessoais e amorosas, e
também com os vícios.
A sexta canção do álbum é “Grajauex”, cujo título é uma alusão ao
bairro paulistano Grajaú, bairro natal do cantor Criolo. Essa canção pode
ser considerada um rap “clássico” ou “tradicional”44 pela sua
musicalidade, linguagem cheia de rimas e gírias e recursos sonoros.
A canção traz vários elementos do cotidiano e alguns problemas
sociais, que são comuns a uma parcela da juventude das regiões
periféricas, fazendo uma analogia com o equivalente dos espaços, hábitos
e costumes dos bairros não periféricos e mais abastados, como por
exemplo no refrão: “The Grajauex / Duas laje é triplex”. Também traz os
desejos de consumo de alguns símbolos do capitalismo, não apenas pelos
jovens da periferia, cujos “têm que dar seus pulos para conseguir”, mas
para boa parte da juventude, independentemente de sua condição social,
como por exemplo nas frases “É o ouro branco o pó mágico e o poder do
Rolex / Na favela com fome atrás dos Nike Air Max”. Essas narrativas
mostram como, em determinadas ocasiões, se estabelecem as relações
entre os moradores das periferia com moradores de outras regiões, “E as
princesinhas na nóia de um papel faz bo...”, seu sonhos e desejos de
consumo, e as adaptações e/ou substituições de alguns produtos por
outros semelhantes (geralmente considerados inferiores) mostrando a
disparidade entre os desejos e sonhos de consumo com a realidade difícil
de acesso a eles, por parte dos moradores das periferias, como por
exemplo: “Sabão de coco não é tão bom quanto o Protex”.
Quanto aos aspectos musicais, a canção é um rap mais pesado e
agressivo com scratches e samplers, recheado de gírias e construções de
palavras. A canção traz rimas muito bem-feitas e rápidas, onde em alguns
determinados momentos, Criolo acelera ainda mais o ritmo. As frases que
quase sempre finalizam com palavras que terminam em “ex” também dão

44
Entende-se como rap “clássico” ou “tradicional” a maioria dos raps brasileiros
das décadas de 1980/90.
112

um diferencial a mais nessa canção, como por exemplo “retornex”,


belezex” e “irmãozex”, a impressão que se tem é como se estivesse em
uma batalha de MCs”45.
Outro aspecto importante dessa canção são as onomatopeias (clic
clac) ao final do refrão, imitando o som de uma arma sendo carregada,
sons de assobios, risadas, gritos, que em conjunto com os scracthes e
samplers mais o ritmo musical, imprimem uma maior complexidade à
canção.
Outro destaque importante nessa canção, reforçando a importância
da sua análise de forma completa, é que ao final dela, uma voz ao fundo
(mais baixa) pode ser escutada, e essa fala não está na letra da canção, ou
seja, se analisar apenas a letra, parte de suas mensagens e possíveis
interpretações ficarão prejudicadas. E tal detalhe ganha maior relevância
ao constatar que parte dessa fala é “Toda comunidade pobre é um
quilombo”, fazendo uma analogia entre periferia e os quilombos, pois,
assim como no passado, os quilombos eram espaços de resistência, no
presente, as periferias representam esses lugares. E aqui tal fala está
diretamente relacionada com as categorias aqui consideradas, cotidiano,
resistência e empoderamento.
A sétima canção do disco é “Samba Sambei” que, apesar do título,
não é um samba e sim um reggae com bastante swing. Para alguns essa
canção também pode ser considerada um ska. Mais uma vez percebe-se a
versatilidade de Criolo que transita por vários gêneros musicais com
esmero e competência.
A canção traz em sua narrativa referências a Bob Marley: “Mas
não esqueci das palavras do rei” que é considerado como um dos artistas
mais conhecidos em boa parte do mundo e o grande nome do reggae, que
foi sinônimo de luta pela paz, pelos direitos humanos e também pela
resistência e empoderamento das identidades africanas:, “In the ghetto,
rude boy sensation / Freedom, please!” 46
Também é importante apontar que a canção também traz
elementos de resistência, como em “Não baixe a guarda, a luta não
acabou”, e empoderamento: “Orgulhar, é, nossos ancestrais”, aspectos
relacionados às identidades afro-brasileiras.

45
As "batalhas de MCs" são espaços onde os rappers fazem um duelo com letras
improvisadas e cheios de rimas, expressando o que sente sobre determinado
assunto ou sobre a conduta do próprio oponente. Nessas batalhas, onde um rapper
“elimina” o outro até chegar à final, é o público que decide quem será o vencedor.
46
Tradução: “No gueto, sensação de menino rude / Liberdade, por favor”.
113

Em relação à musicalidade da canção, apesar do reggae ser um


gênero musical que parece transmitir tranquilidade e paz, historicamente
é sinônimo de luta e resistência em relação às identidades africanas. Ao
analisar essa canção, a mensagem que é transmitida é que para se alcançar
a liberdade, é necessário resistência e luta.
A oitava canção do disco é “Sucrilhos”, um rap com influência do
dub e também do reggae, que narra o cotidiano, as relações sociais entre
periferia e a não periferia. A canção também faz algumas referências a
vários personagens representativos das identidades afro-brasileiras.
A canção traz como narrativa central as possíveis relações entre
periferia com outros espações e sujeitos de fora da periferia. Logo na
primeira estrofe, são duas críticas bem ácidas sobre essas relações:
“Calçada pra favela, avenida pra carro /Céu pra avião e pro morro
descaso” que exemplificam aspectos das desigualdades sociais nas
cidades brasileiras. Ou ainda em: “Cientista social, Casas Bahia e tragédia
/ Gosta de favelado mais que Nutella”, o que pode ser entendido como
uma crítica a parte do mundo acadêmico que tem como objeto de estudo
a favela, e que, analogicamente, a explora, de forma semelhante às redes
varejistas que veem na favela uma fonte de lucro e um mercado
promissor.
Sucrilhos também faz mais uma série de críticas sociais que falam
sobre as relações entre moradores da periferia e de fora da periferia,
preconceito racial e o consumo e tráfico de drogas, como por exemplo nas
frases: “Quanto mais ópio você vai querer? / Uns prefere morrer ao ver o
preto vencê”; “Rico quer levar uma com nóis, cê é quem sabe / Quero ver
paga de loco lá em Abu Dhabi” e “Pode colar mas sem arrastar / Se
arrastar favela vai cobrar”.
É interessante observar que o próprio nome da canção é uma
provocação e ao mesmo tempo uma crítica aos sujeitos de fora da
periferia, mas que estabelecem relações com ela para “explorar” algo, seja
o cientista social, as grandes redes varejistas ou o consumidor de drogas,
todos são “sucrilhos”, uma maneira de dizer que esses cresceram e
possuem uma vida bem mais tranquila e fácil se comparar com os
moradores das periferias.
A canção também traz uma série de nomes de pessoas que são
referências para o mundo do rap e para as questões afro-brasileiras: “Eu
sou nota 5 e sem provocar alarde / Nota 10 é Dina Di, Dj Primo e
Sabotage” e “Trilha Sonora do gueto, Rappin Hood e Facção / Fazem o
povo cantar com emoção”. Cita ainda “Muhammad Ali” (boxeador norte-
americano) e “Usain Bolt” (atleta jamaicano) e Cartola (sambista
114

brasileiro), todos negros. Mas, para além destas referências, há um


questionamento sobre o que é valorizado por alguns e, por outros, não:
“Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo / Têm o mesmo valor que a
benzedeira do bairro”.
Por fim, na última estrofe, a canção exemplifica muito bem a
questão identitária associada à identidade nacional e ao empoderamento:
“Eu tenho orgulho da minha cor / Do meu cabelo e do meu nariz / Sou
assim e sou feliz / Índio, caboclo, cafuso, criolo! Sou brasileiro!”
Em relação a musicalidade da canção, além da mistura do rap com
o dub e o reggae, ela já começa com alguns batuques e sopros
característicos de ritmos africanos. Durante o refrão “Pode colar mas sem
arrastar / Se arrastar favela vai cobrar” é cantado em um conjunto de vozes
mais graves, imprimindo à frase uma espécie de recado impositivo de
como se deve proceder para quem é de fora e quer se relacionar com a
favela.
A nona canção do disco é “Lion Man47”, um rap cheio de metáforas
que narram a caminhada de um artista independente (provavelmente
Criolo), que estrategicamente como em uma partida de xadrez, traça uma
estratégia para escolher o melhor caminho para “sobreviver”. Tal
narrativa mistura-se com críticas as desigualdades sociais do nosso país.
A canção é uma narrativa que mistura a trajetória de artistas
independentes: “E se fosse pra ter medo dessa estrada / Eu não estaria há
tanto tempo nessa caminhada / artista independente leva no peito a
responsa tiozão / E não vem dizer que não”, críticas sociais: “É o ser
humano, o egoísmo e uma draga / Pátria amada, o que oferece aos teus
filhos sofridos”, que é uma constante no álbum de Criolo, e ainda questões
de ordens mais subjetivas: “Abandonado cão, sozinho na multidão / A
solidão no coração de alguém”.
É na intersecção das críticas sociais com questões subjetivas que
essa canção retrata características da sociedade em que vivemos
observadas na estrofe que diz: “Vamos às atividades do dia / Lavar os
corpos, contar os corpos e sorrir / A essa borda rebeldia”, que retrata a
frieza e a indiferença com as mortes de jovens da periferia. O “contar os
corpos” seria mais uma atividade comum e corriqueira do dia-a-dia como
outra qualquer. Percebe-se, nesse trecho da canção, aspectos marcantes
de nossa sociedade atual que é o individualismo e a indiferença perante
tragédias e extermínio de uma parcela da população que não provoca
comoção ou qualquer outro tipo de reação.

47
Título se refere a um seriado japonês da década de 1970 sobre um samurai que
virava um leão para defender a justiça durante o período feudal.
115

Em relação a musicalidade da canção, ela se inicia com um bonito


som de um violoncelo que já imprime a ela um tom de dramaticidade, o
que é corroborado com a letra da canção. Antes da estrofe que demonstra
a frieza da sociedade perante o extermínio de uma parcela da população
“Vamos às atividades do dia / Lavar os corpos, contar os corpos e sorrir”
uma voz em coro "wooh wooh woah" a antecede, auferindo uma
dramaticidade ainda mais forte a canção.
A décima canção do álbum é “Linha de Frente”, um samba que
mais uma vez mostra todo o dinamismo e ecletismo de Criolo, não apenas
musical, mas também em suas interpretações e letras recheadas de
referências da cultura pop e brasileira. Sea canção anterior, Lion Man, é
uma alusão a um seriado japonês, em “Linha de Frente” ele se apropria
dos personagens Cebolinha, Magali e Cascão das histórias em quadrinho
da Turma da Mônica de Maurício de Souza para, metaforicamente,
retratar alguns comércios de fachada que são pontos de tráfico de drogas,
e que se apropriam de crianças e adolescentes para auxiliar nesse
comércio: “E Cebolinha mandou avisar / Que Quando a "fleguesa"
chegar”, “Magali faz a cadência da situação / É que essa padaria nunca
vendeu pão” e “Na turma da Mônica do asfalto / Cascão é rei do morro e
a chapa esquenta fácil”. Mas a canção também faz críticas ao descuido e
desleixo dos poderes públicos e da sociedade com a situação da periferia,
fazendo “vista grossa” ou intervindo de maneira truculenta através de
ações militares: “E tudo que é de ruim sempre cai pra cá / Tem pouca
gente na fronteira, então é só chegar”. A metáfora dessa história em
quadrinho da Turma da Mônica, que pode passar desapercebida por
alguns em um primeiro momento, mostra o abandono social em que se
encontra boa parte da juventude brasileira, que por falta de oportunidade
de estudos, trabalhos, lazer e cultura, são muitas vezes cooptados para
auxiliarem no tráfico de drogas.
Também merece destaque o refrão da canção: “Quem tá na linha
de frente / Não pode amarelar / O sorriso inocente / Das crianças de lá”.
Quem são esses que estão na linha de frente? Pode ser interpretado como
os sujeitos que são os manifestantes que estão na linha de frente dos
protestos, os adultos, a sociedade, as instituições e/ou o poder público, e
que não podem “amarelar”, ou seja, não podem ser omissos perante
tamanho desmantelo e abandono em relação a boa parte da juventude
brasileira.
É interessante observar que a musicalidade da canção, que parece
um samba despretensioso, ao ser escutado e interpretado em conjunto
com a letra, se torna um samba mais “carregado” e melancólico. Os
116

sopros dos metais que abrem a canção e tocam ao fundo do refrão,


intensificam essa dramaticidade para nos lembrar que o “nó da tua orelha”
(passagem clássica dos quadrinhos da Turma da Mônica em que
Cebolinha furtava o coelhinho da Mônica e dava um nó na orelha dele
para provoca-la) “ainda dói em mim” para chamar a atenção da sociedade
para a realidade das crianças do nosso país.
Também é interessante observar que essa linguagem, a utilização
dos quadrinhos infanto-juvenis como metáforas para um grande drama da
nossa sociedade, é um recurso de linguagem na elaboração das mensagens
que o artista e a canção querem passar.
A última faixa do álbum é uma música e não uma canção, é a
versão instrumental da sétima canção “Samba Sambei”. Ela é uma
mistura de ska e dub que contém apenas alguns samplers e efeitos sonoros
que transmitem ao ouvinte uma sensação de paz e tranquilidade, que
provavelmente seja uma mensagem final que Criolo queira deixar para o
seu público.
Com esse álbum eclético, cheio de raps e misturas de gêneros
musicais, com dinamismo em suas interpretações e diversidade quanto às
temáticas narradas e abordadas, Criolo com sua sensibilidade, senso de
humanidade e realidade, por meio de linguagens recheadas de símbolos,
gírias e metáforas coloca o “dedo na ferida” e dá um “nó na nossa orelha”
para nos provocar e chamar a atenção às desigualdades sociais do nosso
país e da condição de abandono em que boa parte dos sujeitos da periferia,
em especial a juventude, se encontram. Um álbum muito bem produzido,
com sensibilidade, esmero e leveza, mas sem perder o peso e a dureza da
realidade desse mundo em que vivemos.
117

4.3. Algumas considerações sobre as análises das canções

O primeiro exemplo, que se refere aos anos 1980/90, foi analisado


por meio das canções do álbum “Sobrevivendo no Inferno” (1997) dos
Racionais MCs. Este álbum apresenta um rap com letras mais pesadas,
que narram e representam o cotidiano sofrido e as mazelas dos moradores
da periferia das grandes cidades, como por exemplo, racismo, preconceito
racial, violência policial, exclusão e desigualdade social, com destaque
para a cidade de São Paulo.
Em relação a sonoridade, este disco exemplifica um rap com
batidas mais “secas” e “cruas”, com poucas influências de outros gêneros
musicais. As melodias são simples e diretas, cujas bases são colagens e
samplers, feitas pelos Disk Jockeys (DJs) nos toca-discos (Pick-ups) de
outros sons e de outras bandas, cantadas ou quase faladas pelos Mestres
de Cerimônia (MC’s).
O segundo exemplo, que se refere ao início da segunda década dos
anos 2000, foi analisado com base nas canções do álbum “Nó na Orelha”
(2011) de Criolo, que tem como características letras que também falam
do cotidiano dos moradores da periferia, mas estas canções também
narram e retratam outras questões mais subjetivas, como a angústia e a
solidão da vida nas grandes cidades, e também incorpora elementos da
cultura pop às suas canções, como por exemplo, histórias em quadrinhos
e super-heróis do mundo oriental.
Em relação a musicalidade, esse álbum exemplifica muito bem um
rap repleto de diversidade musical, apresentando uma grande mistura,
uma fusão do rap com diversos outros gêneros musicais como o reggae,
o afrobeat, o samba, entre outros gêneros musicais. Deste modo
procuramos exemplificar de que modo o próprio rap, como gênero
musical, se modifica e complexidade rítmica e melódica, e também
temática.
Ressalta-se que estas análises se limitaram à escolha de duas
bandas, cada uma com um álbum para destacar alguns elementos do rap,
e seu potencial associado aos processos identitários relacionados com
temáticas afro-brasileiras no que diz respeito tanto à musicalidade quanto
às temáticas tratadas48.

48
A vertente do rap escolhido foi o denominado engajado ou politizado, que trata,
entre outros temas de preconceito, racismo, exclusão, violência, resistência,
pertencimento e empoderamento. Só a título de exemplo, poderíamos escolher
outras produções, como a mistura do rap com a música eletrônica e o maracatu,
118

Ressalta-se também que as análises desses trechos/fragmentos,


visam fornecer subsídios ao leitor/ouvinte, elementos para a compreensão
dessa obra como uma narrativa complexa do cotidiano dos moradores das
periferias das grandes cidades brasileiras e suas relações com outros
espaços e sujeitos, seus mecanismos de resistência e empoderamentos e
os possíveis estímulos aos processos identitários.

em conjunto com as temáticas das letras nas canções de Chico Science e Nação
Zumbi, ou ainda analisar as questões de gênero muito presentes nas temáticas das
canções e a estética musical das rappers como Mc Carol, Ludmila e Karol Conká,
ou ainda, as temáticas das letras e sonoridades da banda de rap indígena Brô
MC’s, ou ainda, a banda Quebrada Queer, 1º grupo de rap LGBT do Brasil.
119

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises de todas as canções dos álbuns “Sobrevivendo


no Inferno” (1997) dos Racionais MCs e “Nó na Orelha” (2011) de
Criolo, algumas considerações devem ser feitas em relação às
perspectivas teóricas e aos objetivos desta dissertação.
Em primeiro lugar, optamos pela questão da utilização da canção
(letra e música) no ensino de história. A análise destes dois álbuns, de
diferentes épocas, indica a possibilidade do uso de suas canções, artefatos
culturais, como fontes históricas, pois apontam, narram e constroem
características do cotidiano da periferia paulistana e de suas complexas
relações com outros espaços, sujeitos e instituições.
Também, por meio das canções, pode-se analisar aspectos e
características da desigualdade social brasileira, assim como e relaciona-
la com aspectos políticos e econômicos do nosso país em diferentes
contextos e diferentes tempos. São álbuns que foram produzidos em
épocas diferentes, “Sobrevivendo no Inferno” em 1997 e” Nó na Orelha”
em 2011 e apesar de não se tratar de um lapso temporal distante, é possível
observar e analisar as semelhanças e diferenças entre esses períodos,
apontadas nas letras das canções, bem como permanências e rupturas. Isto
não só em relação aos fatos sociais e às experiências do cotidiano (das
cidades, das periferias, da vida urbana), mas também no que se refere à
musicalidade, ao uso de aparatos técnicos na produção musical, assim
como às questões associadas ao uso de diversas linguagens e aspectos
linguísticos envolvidos nas letras das canções.
No ensino de história, ao analisar a canção, percebe-se a
importância de trabalhá-la em sua completude, ou seja, letra e música.
Como indicamos nas análises das canções, vários detalhes, como falas,
sons de fundo, colagens, onomatopeias e metáforas só podem ser
identificadas com a escuta da música em conjunto com a letra. No caso
específico do rap como gênero musical, é evidente a relevância de ambos
os aspectos da canção, ou seja, os diversos recursos de linguagem tanto
nas letras, com suas temáticas próprias, como na musicalidade. Ambos
não podem ser analisados separadamente, pois perderiam grande parte de
seus significados ou nem seriam observados e interpretados em alguns
casos. Além disso, a canção também apresenta outra dimensão, como
procuramos apontar na análise, que se refere às intenções, sensações e
sentimentos, como por exemplo, tensão e paz, alegria e tristeza, desânimo
e esperança, entre outros.
120

Outra consideração importante se refere à relevância da canção


como um ótimo recurso didático no ensino de história pois, além de fonte
histórica e linguagem, a mesma pode provocar uma aproximação em
relação aos alunos que, em sua grande maioria, gostam de canções dos
mais variados gêneros musicais. O rap é um dos principais gêneros
escutados pela juventude na atualidade, daí seu potencial no sentido de
promover identificações e pertencimentos por parte dos alunos em relação
ao ensino-aprendizagem. A escolha de dois álbuns de duas bandas e de
momentos diferentes pode ilustrar muito bem a diversidade e as múltiplas
combinações desse gênero musical com outros, com várias nuances,
estilos e ritmos, potencializando assim uma maior sensibilidade musical
e promovendo uma possível ampliação do gosto musical dos alunos.
Neste trabalho enfatizamos as relações da canção no ensino de
história com um enfoque específico, a questão das identidades afro-
brasileiras. Procuramos ressaltar de que modo o rap é um gênero musical
umbilicalmente ligado às identidades africanas, afro-americanas, e
também afro-brasileiras. Ao narrar e retratar o cotidiano de boa parte dos
moradores das periferias das grandes e médias cidades brasileiras, as
canções do rap se referem às populações afrodescendentes e trazem à tona
diversos aspectos identitários. Procuramos mostrar, utilizando como
exemplo as canções analisadas, que há uma predominância não
essencialista na constituição destas identidades, que são (assim como o
próprio rap) múltiplas, heterogêneas, contraditórias, em construção,
móveis, fronteiriças e híbridas.
Sendo assim, percebe-se, ao analisar esses dois álbuns de rap, que
mesmo durante a produção inicial do rap brasileiro (década de 1980/90),
aqui exemplificado pelo álbum “Sobrevivendo no Inferno”, que tem
características mais “clássicas”, esse sempre apresentou elementos
bastante diversificados em sua musicalidade, com colagens e samplers de
outros gêneros musicais. Ao longo do tempo, o rap foi se mesclando aos
próprios gêneros musicais brasileiros, passando a se constituir com
características múltiplas e heterogêneas, com muitas influências e
misturas desses gêneros. As temáticas tratadas também se
complexificaram ao longo do tempo, se tornam mais amplas em suas
referências, como indicamos no caso do álbum “Nó na orelha”.
Afirmamos, neste trabalho, que as canções no ensino de história, e
em particular o rap, teriam o potencial de incitar processos identitários
associados às questões étnico-raciais, ou, de modo geral, às identidades
afro-brasileiras. Exemplificamos os processos de empoderamento,
resistência e pertencimento que as canções do rap constroem e provocam
por meio de seus temas, que se referem aos problemas e mazelas do
121

cotidiano das periferias relacionados ao abandono do poder público, à


desigualdade social, aos problemas com o tráfico de drogas, a violência,
às relações da periferia com outros espaços e sujeitos, além do cotidiano
e do estilo de vida dos jovens da periferia. O tom de denúncia que está
nas letras e na musicalidade, que faz desse rap um gênero musical
politizado e engajado, certamente tem potencial para estimular nos jovens
estudantes possíveis processos identitários. Em sua riqueza,
complexidade, diversidade cultural, as múltiplas identidades afro-
brasileiras estão expressas nas canções aqui analisadas. Pela luta, pelas
denúncias contra o preconceito e contra todas as formas de desigualdade,
em contraposição ao abandono e ao desleixo do poder público e de grande
parte da sociedade civil em relação à população pobre e das periferias,
estas canções podem afetar os estudantes, muitos deles também jovens da
periferia, jovens afrodescendentes brasileiros. Como indicam diversas
canções analisadas, o empoderamento perpassa pela resistência dessa
população em como (sobre)viver a todas as adversidades enfrentadas no
seu dia a dia, e também, pela luta, esperança e sonho de que um dia
viveremos em uma sociedade com menos preconceito, menos desigual,
mais inclusiva, onde as múltiplas identidades afro-brasileiras sejam
respeitadas e incluídas em todos os seus aspectos e em todas as instâncias
sociais, alcançando assim, uma sociedade mais justa e igualitária. Por isso
defendemos aqui que as canções, ao denunciar e mostrar tais condições
de vida em que vive grande parte da população brasileira, podem
constituir mecanismos de resistência e de empoderamento, inclusive na
escola.
Ainda em relação possíveis movimentos que estimulam processos
de produção identitária, observamos que, nos álbuns escolhidos, as
narrativas e falas não são verticalizadas, ou seja, eles não se colocam
acima dos seus semelhantes, com discursos moralizantes ou julgadores.
Muito pelo contrário, são discursos horizontais, que falam de igual para
igual, da mesma condição de moradores das periferias, enquanto “sujeitos
periféricos”. E é justamente por isso que esses rappers e suas obras, são
capazes de estimular processos identitários em grande parte da juventude
brasileira, retratando seus problemas, angústias e anseios.
Essa dissertação se insere no contexto da Educação para as
Relações Étnico-Raciais (ERER), e nesse sentido, concluímos que o rap
enquanto gênero musical, como um exemplo do uso de canções tanto
como linguagem como fonte histórica, particularmente no ensino de
história, pode contribuir para que os processos de ensino-aprendizagem
se tornem mais dinâmicos e mais complexos, mais próximos dos
122

interesses dos estudantes e capazes de provocar questionamentos


identitários. Sendo assim, esperamos que este trabalho contribua para
exemplificar, com um enfoque cultural, mas sobretudo político e social,
de que maneira o rap poderia servir como base para estudos culturais, na
escola, de modo a impulsionar análises históricas e sociais mais críticas.
Após a conclusão dessa dissertação vislumbra-se a potencialidade
da utilização desses estudos e análises para se pensar na construção de um
site com essas e outras canções de gêneros musicais diversos do rap. Um
site que seria voltado ao ensino de história, como suporte didático-
metodológico para os professores, cuja aplicabilidade pode suscitar
pesquisas futuras.
123

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Vozes, 2009.
129

GLOSSÁRIO

TERMOS RELACIONADOS À CULTURA RAP E HIP HOP 49

Back to back: performance dos DJs usando dois discos iguais, invertendo
o sentido da rotação.
Beat box: batida improvisada feita com a boca pelo DJ ou pelo rapper.
em intervalos aleatórios.
Break: dança de solo, praticada em rodas, como a capoeira. Os
movimentos são quebrados e assemelham-se, basicamente, ao de robôs.
Breakers: dançarinos de break.
Dance: gênero de música eletrônica cujo ritmo assemelha-se a um “bate
estacas”.
DJ: abreviatura de disc jóquei. No universo do rap, é aquele que faz os
efeitos sonoros da música, como os scratches.
Drum machine: instrumento eletrônico que produz as batidas pesadas do
Miami bass.
Fazer a rima: comunicar, passar a mensagem.
Free style: estilo de grafite que não segue regras, técnicas e lugares. A
espontaneidade é total, muitas vezes entrando em harmonia com o
ambiente. Quando se refere ao rap, significa improviso nas rimas.
Funk melody: também conhecido como funk brega. Rap romântico de
grande sucesso na indústria fonográfica.
Gambé: policial.
Gangsta rap: gênero de rap norte americano que faz apologia ao modo
de vida dos gangsters dos guetos negros.
Gangue: para os leigos, denomina os grupos de jovens delinquentes. No
hip hop, é uma organização de breakers, que também pode ser chamada
de equipe ou crew.
Grafite: pintar ou desenhar (com spray ou tinta) muros, painéis, túneis,
etc., com logotipos ou desenhos relacionados com o movimento hip hop.
Utiliza letras tortas ou engarrafadas que fazem com que, muitas vezes,
apenas os grafiteiros entendam o que está escrito.
Groove: parte da música que se repete, determinando os ritmos.

49
Termos e definições retiradas do site
http://www.professoramanuka.com.br/2016/07/Girias-do-hip-hop-rap-e-
seus-significados.html
130

Looping: repetição de um ciclo rítmico (groove) indefinidamente,


geralmente via sampler, ao longo da música.
Mano: aquele que é reconhecido como um igual dentro do movimento
hip hop.
MC: abreviatura de master of ceremony (mestre de cerimônias). Rappers
que cantam e animam os bailes.
Miami bass: gênero de rap de ritmo acelerado, com batidas pesadas e
versos curtos, originário de Miami (EUA). As letras falam do cotidiano
de forma engraçada. Executado no rio de Janeiro, onde ficou conhecido
como funk carioca.
Mixer: aparelho que, além de unir os toca discos, ajusta a sincronicidade
dos vinis; com ele criam-se os efeitos musicais.
Paga pau: delator, dedo duro.
Pick up: toca discos. Os rappers referem-se ao uso combinado dos dois
pratos em uma “pick up, uma herança da disco mobile jamaicana. A
possibilidade de o som ser reproduzido simultaneamente pelas “pickups”
conectadas possibilita a performance dos DJs.
Playboy: rapaz de classe média ou classe alta.
Posse: quando dois ou mais grupos de rap se reúnem, formando uma
turma ou associação, para realizar ações sociais na sua comunidade.
Quebrada: lugar ou bairro/cidade do hip hopper.
Rappers: aqueles que cantam ou compõem o rap.
Sampler: instrumento eletrônico dotado de memória para os sons
selecionados, amplamente utilizados pelos rappers. Normalmente é
acoplado a um mixer, o que permite realizar colagem de sons pré-
gravados durante a execução de uma música pelo DJ ou inseri-las no
processo de mixagem de uma música.
Sampling (“samplear”): apropriação de materiais previamente
gravados, normalmente sem observar direitos autorais previstos em lei.
Sangue bom: amigo, colega.
Scratch: efeitos sonoros produzidos pelo atrito entre a agulha do toca-
discos e o próprio disco.
Sequência: montagem feita pelo DJ com vários sucessos do momento.
Single: disco ou CD com apenas duas ou quatro faixas; antigo compacto.
Street dance: dança produzida pelos dançarinos de break. Muitas vezes
nas festas estabelecem-se longas disputas entre os breakers de diferentes
turmas.
Style: a atitude dos b.boys, que se reflete no jeito de vestir, falar e dançar.
Para ser um b.boy é preciso “andar no style”.
Trairagem: traição.
Treta: confusão, briga.
131

Vacilão: bobo, a quem os outros enganam facilmente.

TERMOS RELACIONADOS AOS GÊNEROS MUSICAIS50

Afrobeat é uma combinação de jazz americano, funk e batida [beat]


nigeriano. Ele foi criado pelo artista o mais militante da África, o falecido
Fela Ransome Anikulapo, da Nigéria, no início dos anos 70. Era
justamente a época em que o rock britânico e soul music americana
estavam dominando a maior parte da cena musical da África. Fela Kuti
introduziu sua marca, com estilo próprio, para deter a invasão musical
britânica.
Black music ou música negra também conhecida como música afro-
brasileira no Brasil, e música afro-americana nos Estados Unidos, é um
termo dado a todo um grupo de gêneros musicais que emergiram ou foram
influenciados pela cultura de descendentes africanos em países
colonizados na América.
Bolero é um ritmo cubano que mescla raízes espanholas com influências
locais de vários países hispano-americanos. Apesar de nascer em Cuba,
tornou-se também bastante conhecido como canção romântica mexicana.
O ritmo foi se modificando, tornando-se mais lento e desenvolvendo
especialmente temas mais românticos.
Brega é um termo utilizado por muitos, inicialmente de maneira
pejorativa, para designar a chamada música romântica popular. A música
romântica sempre teve lugar marcante no cancioneiro popular brasileiro,
desenvolvida em diferentes gêneros e estilos. A designação "música
brega" ganhou força a partir de meados dos anos 1960, quando a música
jovem, por um lado, de matriz americana, e por outro, oriunda da classe
média estudantil, alcançou cada vez maiores espaços, fazendo com que a
música romântica vinda das camadas populares fosse considerada cafona
e deselegante.

50
Retirados dos sites: https://www.dicionarioinformal.com.br;
https://fernandonogueiracosta.wordpress.com;
https://www.conhecimentogeral.inf.br; http://www.arte.seed.pr.gov.br;
http://dicionariompb.com.br; https://pt.wikipedia.org.
132

Disco é um estilo de música extremamente dançante e popular, a disco é


a combinação de um tempo do jazz acelerado com uma forte e
intermitente batida do rock, quase sempre utilizando-se de instrumentos
latinos de percussão.
Dub é um gênero musical fortemente associado ao reggae e à cultura
jamaicana, o dub faz uso da base baixo e bateria com sobreposições de
efeitos criativos dentro das possibilidades de estúdio.
Funk é um gênero musical com ritmo forte, batidas compassadas e que
incita a dança. Teve origem nos Estados Unidos nos anos 60 e foi criado
através de uma mistura de outros gêneros musicais afro-americanos,
como o jazz e blues. Existem várias correntes e estilos diferentes dentro
do funk, como o funk proibidão, funk ostentação, funk melody, entre
outros.
Gospel é um gênero musical com melodia leve e harmoniosa cantada em
cultos ou shows evangélicos.
Groove é na verdade um termo, que significa “encaixar palavras
relacionadas”. Por isso muitos músicos usam esse termo ao criarem algum
arranjo, ou seja, eles têm que estar interligados (encaixados) mesmo que
não seja de forma direta, exemplo baixo e bateria são dois instrumentos
distintos, porém tem que estar em perfeita ordem.
Jazz é um gênero de música, de origem afro-americana, que ganhou
ampla difusão depois da 1ª Guerra Mundial, caracterizada por
improvisações instrumentais e pelo ritmo e sonoridades sincopados.
Reggae é um gênero musical desenvolvido originalmente na Jamaica do
fim da década de 1960. Embora por vezes seja usado em sentido mais
amplo para se referir à maior parte dos tipos de música jamaicana, o termo
reggae indica mais especificamente tipo particular de música que se
originou do desenvolvimento do ska.
Samba é um gênero musical, de onde deriva determinado tipo de dança,
de raízes africanas, surgido no Brasil, e considerado uma das principais
manifestações culturais populares brasileiras.
Ska é um gênero musical que teve sua origem na Jamaica no final da
década de 1950, combinando elementos caribenhos como o mento e o
calipso e estadunidenses como o jazz, jump blues e rhythm and blues. Foi
o precursor do rocksteady e do reggae. Suas letras trazem sinais de
insatisfação, abordando temas como marginalidade, discriminação, vida
dura da classe trabalhadora, e acima de tudo a diversão em harmonia.
Soul (em inglês: alma) é gênero musical dos Estados Unidos da América
que nasceu do rhythm and blues e do gospel, durante o final da década de
1950 e início da década de 1960, entre músicos negros.
133

Spirituals é um gênero musical que surgiu nos EUA, na época da


escravidão, composto por palmas e ritmos alegres.
Swing é um estilo de jazz que foi muito popular na década de 1930,
usualmente arranjado para grande orquestra dançante, caracterizado por
uma batida menos acentuada que a do estilo tradicional do Sul dos EUA,
e menos complexo, rítmica e harmonicamente falando, do que o jazz
moderno.
134
135

APÊNDICE A

Listagem das músicas disco Sobrevivendo no Inferno (Racionais


MC´s)

Músicas Créditos Link para ouvir as


músicas
1. Jorge da Jorge Bem https://www.youtube.com/
Capadócia watch?v=goICQUk6NYk
2. Gênesis Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/wa
(intro) Pereira (Mano Brown) tch?v=vYpaKFi32As
3. Capítulo Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/
4, versículo Pereira (Mano Brown) watch?v=2LQSFLTiwS8
3
4. Tô Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/
ouvindo Pereira (Mano Brown) watch?v=38QjzMaTNOE
alguém me
chamar
5. Rapaz Edivaldo Pereira https://www.youtube.com/w
comum Alves (Edi Rock) atch?v=X9Zgl54qLWo
6. ... Edivaldo Pereira https://www.youtube.com/w
Alves (Edi Rock) atch?v=XJ5iI5HejI4
7. Diário de Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/wa
um detento Pereira (Mano Brown) tch?v=er-bYI9-3hM
e Josemir José
Fernandes Prado
(Jocenir)
8. Periferia Edivaldo Pereira https://www.youtube.com/w
é periferia Alves (Edi Rock) atch?v=vfbujF5sXOM
(em
qualquer
lugar)
9. Qual Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/w
mentira Pereira (Mano Brown) atch?v=7NNYP67AKpM
vou e Edivaldo Pereira
acreditar Alves (Edi Rock)
10. Mágico Edivaldo Pereira https://www.youtube.com/w
de Oz Alves (Edi Rock atch?v=GDNUQm9GhlQ
11. Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/w
Fórmula Pereira (Mano Brown) atch?v=UrSGiQGeXW4
136

Mágica da
Paz
12. Salve Pedro Paulo Soares https://www.youtube.com/w
Pereira (Mano Brown) atch?v=Fpyk4633_Pw
e Paulo Eduardo
Salvador (Ice Blue)
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APÊNDICE B

Listagem das músicas do disco Nó na Orelha (Criolo)

Músicas Créditos Link para ouvir as músicas


1."Bogotá" K. Cavalcante https://www.youtube.com/wa
Gomes tch?v=13vNCKnyIes
2."Subirusdoist K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
iozin" Gomes atch?v=Da04TlloTg0
3."Não Existe K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Amor em SP" Gomes atch?v=f35HluEYpDs
4."Mariô" K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Gomes e Kiko atch?v=WTUCK1kTEns
Dinucci
5."Freguês da K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Meia-Noite" Gomes atch?v=cAT8lM0gVQk
6."Grajauex" K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Gomes atch?v=eM4Bh5Equ2g
7."Samba K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Sambei" Gomes atch?v=jGwOkSnMROs
8."Sucrilhos" K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Gomes atch?v=K66N55TTLY8
9."Lion Man" K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Gomes atch?v=ODa9Yvm-0io
10."Linha de K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Frente" Gomes atch?v=6HXhflx-hl4
11."Samba K. Cavalcante https://www.youtube.com/w
Sambei Dub Gomes atch?v=Xj56pOVtBx4
Mix - Bonus
Track" (Dub
Remix)
138
139

ANEXO A

O africano e o Ariano (Mundo Livre S/A)

Há quatro séculos a alma humana tem sido um motor


Da inquietação, da resistência, da transgressão
O negro sempre quis sair do gueto
Fugir da opressão fazendo história
Ganhando o mundo com estilo

O africano foi levado para sofrer no norte e gerou, entre outras coisas, o
jazz, o blues, gospel, soul, r&b, funk, rock'n'roll, rap, hip hop

No centro, o suor africano fomentou o mambo, o ska,o calipso, a rumba,


o reggae, dub, ragga, o merengue e a lambada, dancehall e muito mais

Mas é o ariano que ignora o africano ou


é o africano que ignora o ariano?"

E ao sul a inquietude negra fez nascer,


entre outros beats, o bumba, o maracatu, o afoxé, o xote, o choro, o samba,
o baião, o coco, a embolada

Entre outros, os Jacksons e os Ferreiras,


os Pixinguinhas e os Gonzagas,
as Lias, os Silvas e os Moreiras
A alma africana sempre esteve no olho do furacão
Dendê no bacalhau, legítima e generosa transgressão
É Dr. Dre e é maracatu
É hip hop e é Mestre Salu

Mas é o ariano que ignora o africano ou é o africano que ignora o ariano?"


Links de Áudio: https://www.youtube.com/watch?v=x9PXZrW0jvI
140
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ANEXO B

FICHA TÉCNICA DISCO SOBREVIVENDO NO INFERNO


(RACIONAIS MC’s) 51

Produtor fonográfico: Com. De Grav. Ediç. E Confecções Racionais


MC’s LTDA.
Gavado no estúdio The Hit (exceto a música “Jorge da Capadócia”,
gravada e mixada em Atelier Studio)
Vozes gravadas no estúdio Mundo Musical
Mixagem: Mosh Studios e Atelier Studio
Engenheiros de mixagem: Luís Paulo Serafim e Sillas Godoi
Assistentes de mixagem: Rico e Keko
Masterização: Walter Lima
Produção: Racionais MC’s
Coprodução: Gertz Palma

PARTICIPAÇÕES
“Mágico de Oz”: Daniel Quirino, Priscila Maciel, Pulga e Guilherme
“Fórmula mágica da paz”: Dagô Miranda
“Tô ouvindo alguém me chamar”: Giovani, Quindim e Dinho
“Periferia é periferia”: Rivaldo BV
“Capítulo4, versículo 3”: Primo Preto

Criação e direção de arte: Marcos Marques


Fotos: Klaus Mitteldorf
Arte: Tyco
Execução: Jayme Ribeiro

51
Informações retiradas de RACIONAIS MC'S. Sobrevivendo no
Inferno: Racionais MC's. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 142-143.
Apenas o Link para ouvir as músicas não constam no livro, são resultados de
consultas próprias feitas na internet em site aberto e gratuito.
142
143

ANEXO C

FICHA TÉCNICA DISCO “NÓ NA ORELHA” (CRIOLO) 52

Álbum de estúdio de Criolo


Lançamento: 25 de abril de 2011
Gravação: 2010-2011
Gênero(s): Político/ Hip Hop/ Rap
Duração: 38:56
Idioma(s): Português
Formato(s): LP/ CD Streaming/ download digital
Gravadora(s): Oloko Records
Produção: Daniel Ganjaman Marcelo Cabral

PARTICIPAÇÕES
“Mariô”: Kiko Dinucci - violão
"Linha de Frente"Rodrigo Campos - cavaquinho e percussão
Verônica Ferriani - backing vocal
Juçara Marçal - backing vocal

52
Informações retiradas do site
https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%B3_na_Orelha. O Link para ouvir as
músicas foi resultado de consulta própria na internet em site aberto e gratuito.

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