Teatro e Resistência em Aracaju em Tempos de Ditadura: 1964 - 1977

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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA &

IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE


O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

Teatro e resistência em Aracaju em tempos de ditadura: 1964 – 1977

Mayra Cruz Alves⃰

RESUMO: A ditadura civil-militar brasileira perseguiu e pôs na ilegalidade diversos


segmentos da sociedade que representavam oposição e perigo à sua manutenção.
Organizações políticas, movimentos sociais e culturais foram proibidos ou tiveram suas
atividades limitadas pela censura. Nesse quadro, analisamos que a cultura, mesmo sob
forte censura, teve papel primordial na divulgação do debate sobre a realidade brasileira
e na denúncia e resistência à ditadura militar. Este trabalho pretende analisar a cultura
como um espaço de resistência, tendo como foco uma de suas mais antigas
manifestações: o teatro. Objetiva descrever e analisar os principais grupos e
manifestações teatrais em Aracaju no período de 1964 a 1977 que tinham como
influência o teatro político e engajado e atuavam, direta ou indiretamente, como agentes
da resistência.
Palavras-chave: ditadura; cultura; teatro; resistência.

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende analisar a cultura como um espaço de resistência à


ditadura civil-militar no Brasil, tendo como foco uma de suas mais antigas
manifestações: o teatro. Objetiva descrever e analisar os principais grupos e
manifestações teatrais em Aracaju no período de 1964 a 1977, entre eles os que tinham
como influência o teatro político e engajado e atuavam, direta ou indiretamente, como
agentes da resistência.

*Licenciada em História pela Universidade Federal de Sergipe e mestranda com bolsa CAPES no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Endereço eletrônico:
[email protected]
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As razões da escolha de tal tema decorrem principalmente da deficiência de


trabalhos sobre a produção cultural em Sergipe no período, pois a maioria das pesquisas
sobre a ditadura civil-militar concentra-se no aspecto político, relegando aos aspectos da
cultura artística pequenos comentários e pesquisas superficiais.
Outro fator importante para tal recorte temático deve-se ao momento vivido na
historiografia sobre a ditadura civil- militar no Brasil, com o crescimento produção
sobre o tema. Resultado tanto do desenvolvimento da vertente da historiografia ligada à
análise do tempo presente, que tem se debruçado sobre a história recente e no Brasil tem
como tema principal de estudo o período da ditadura civil- militar, quanto do crescente
debate da sociedade civil brasileira (especialmente os movimentos sociais) sobre a
ditadura e seus desdobramentos.
Esse debate tem resultado não só em uma crescente produção acadêmica, mas
também na elaboração e construção de iniciativas institucionais que tem como objeto de
investigação à ditadura, como o Projeto Memórias Reveladas – que tem contribuído
com o levantamento e organização das fontes documentais relativas ao período- e a
recentemente criada Comissão Nacional da Verdade – que tem a função de investigar
violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 e tem tido seu maior foco no
período da ditadura.
Nesse sentido, o presente estudo é motivado pela necessidade de contribuir para
o debate historiográfico acerca do período citado, especialmente no que se refere ao
estudo da produção cultural a partir do recorte regional, pois é de grande importância
que nesse momento de efervescência do debate nacionalmente, também haja uma
intensificação da contribuição dos estudos sobre o desenrolar dos acontecimentos em
âmbito estadual e municipal. Em Sergipe ainda há um grande déficit no que diz respeito
à historiografia sobre o período e as poucas pesquisas existentes tratam principalmente
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dos aspectos políticos, tendo os movimentos sociais e os movimentos culturais sido


objeto de análise em poucos casos.

A DÉCADA DE 1960 E O FLORESCIMENTO DA CULTURA ENGAJADA

Ao analisarmos que o Estado autoritário brasileiro instaurado em 1964, que


perseguiu e pôs na ilegalidade diversos segmentos da sociedade, representantes da
oposição, incluindo as organizações políticas de esquerda, os movimentos sociais e
culturais, visualizamos, como hipótese central, que a cultura mesmo sob forte censura,
teve papel primordial na divulgação do debate sobre a realidade brasileira e na denúncia
e resistência à ditadura civil-militar.
Até o golpe de 1964, que implantou a ditadura civil-militar no Brasil, o país
vivia uma fase de florescimento artístico e intelectual, que estava intrinsecamente ligado
à ideia de revolução e à procura pela identidade do brasileiro (RIDENTI, 2009). Na
década de 1950, existia uma tensão e disputa entre dois projetos políticos antagônicos –
um conservador, que defendia os interesses da elite agrária e industrial, articulado pela
elite e setores militares com apoio da classe média e demais setores conservadores e
outro projeto, articulado pela classe trabalhadora, intelectuais e setores progressistas,
que defendia a ruptura ou mudanças profundas na situação econômico-social vigente e
refletia-se no projeto progressista de reformas sociais e políticas. Disputa esta
materializada no governo do então presidente João Goulart, que passou por diversas
crises que culminaram no golpe que derrubou o presidente e implantou a ditadura no
país.
A intelectualidade, circundada pelo sentimento de transformação social, buscava
na origem da formação do país a representação do homem brasileiro que expressasse
esse novo projeto, elegendo os trabalhadores da cidade e do campo, os negros e os
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indígenas como símbolo do povo brasileiro. Nessa busca pela identidade, construía-se a
imagem de um homem novo, que seria tanto a causa quanto a expressão concreta da
transformação (RIDENTI, 2000).
Diversos setores da sociedade brasileira estavam empenhados na construção de
mudanças para o país, que para alguns seria em forma de revolução e para outros apenas
a reforma e adequação das políticas econômicas e sociais brasileiras para que houvesse
uma melhor inserção do país no processo de desenvolvimento econômico internacional.
O amplo movimento que reúne diferentes agrupamentos da esquerda tinha como
eixo principal o debate sobre o nacional- popular, que segundo Marilena Chauí “podem
indicar maneiras de representar a sociedade sob o signo da unidade social. Isto é, Nação
e Povo são suportes de imagens unificadoras tanto no plano do discurso político e
ideológico quanto no plano das experiências e práticas sociais” (CHAUÍ, 1986. P. 105).
E o governo Goulart, pautado por um discurso reformista e nacionalista foi um
campo frutífero para a crescente mobilização das esquerdas. Esse grupo mais
progressista demandava um amplo leque de reformas sociais, econômicas e políticas
que abarcavam desde a reforma agrária, passando pelas reformas bancária e
universitária até a luta pela legalização do Partido Comunista Brasileiro (que apesar de
oficialmente proibido, tinha nesse período enorme influência nas pautas das esquerdas,
nos movimentos sociais e sindicais e inclusive no governo Goulart).
Era um momento de esperança e engajamento e diversos setores confluíam para
a pauta em comum: a luta pelas reformas de base no Brasil e a construção da identidade
do povo brasileiro, representada pela classe trabalhadora da cidade e do campo. A
“Frente de Mobilização Popular” formada principalmente pelo movimento sindical -
liderado pelo Comando Nacional dos Trabalhadores (CGT), os movimentos sociais de
luta pela terra- especialmente as Ligas Camponesas, os movimentos urbanos, o
movimento estudantil - liderado pela União Nacional Dos Estudantes (UNE), o Partido
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Comunista Brasileiro (PCB) e diversos partidos e parlamentares, pressionavam o


governo no sentido de aprovar as reformas ( FERREIRA, 2004)
No início da década de 1960 o Brasil vivia, então, um momento de grande
ebulição política e cultural e “ talvez os anos 1960 tenham sido o momento da história
republicana mais marcado pela convergência revolucionária entre política, cultura, vida
pública e privada, sobretudo entre a intelectualidade” (NAPOLITANO, 2009).
A intelectualidade brasileira voltava-se para a análise e produção de um novo
paradigma histórico, econômico e cultural para o Brasil, que se refletiam na

... luta contra o poder remanescente das oligarquias rurais e suas


manifestações políticas e culturais; um otimismo modernizador com o
salto na industrialização a partir do governo Kubitschek; também um
impulso revolucionário, alimentado por movimentos sociais e portador
de ambiguidades nas propostas de revolução brasileira, democrático-
burguesa (de liberação nacional), ou socialista, com diversas
gradações intermediárias. (RIDENTI, 2009: 154).

Dentre os setores que participavam desse debate sobre as mudanças no país, um


dos mais atuantes era a União Nacional dos Estudantes (UNE), que em 1961 criou o
Centro Popular de Cultura (CPC),
... colocando na ordem do dia a definição de estratégias para a
construção de uma cultura nacional, popular e democrática. Atraindo
jovens intelectuais, os CPC´s- que aos poucos se organizavam em
todo o país- tratavam de desenvolver uma atividade conscientizadora
junto às classes populares. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995: 9).

O CPC da UNE surge a partir de reflexões feitas especialmente por pessoas


ligadas ao teatro, como Augusto Boal e Oduvaldo Viana Filho que, influenciados pelo
debate do nacional- popular, propõem a criação de um teatro dirigido a um público
mais popular. Com a aproximação de artistas da UNE, surgiu então o primeiro Centro
de Cultura Popular.
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O CPC foi de fundamental importância na elaboração da produção cultural do


início da década de 1960, especialmente no diz respeito ao debate da cultura popular e
nacional que predominava o discurso da intelectualidade de esquerda da época,
representando uma tentativa de construir uma verdadeira cultura popular revolucionária.
E para elaborar essa cultura popular, o CPC busca no povo, na classe
trabalhadora do campo e da cidade a representação da identidade nacional. As ações do
CPC seriam construídas a partir do entendimento do que era o povo e o que era cultura
popular e tinham como público alvo o próprio povo, tendo como objetivo conscientizar
esse setor da sociedade sobre sua situação de opressão e exploração:

O sucesso do CPC generalizou-se pelo Brasil, a partir da organização


da UNE-Volante, em que uma comitiva de cerca de 25 dirigentes da
entidade e integrantes do CPC percorreu os principais centros
universitários no país, no primeiro semestre de 1962, levando adiante
suas propostas de intervenção dos estudantes na política universitária
e na política nacional, em busca das reformas de base, no processo da
revolução brasileira, envolvendo a ruptura com o subdesenvolvimento
e a afirmação da identidade nacional do povo. (RIDENTI, 2000: 108).

A UNE-Volante percorreu diversas capitais do país realizando debates, oficinas


de teatro, cinema, artes visuais e filosofia para formação profissional, técnica e artística,
apresentações artísticas. O principal objetivo era difundir o debate cultural do CPC e
fomentar o desenvolvimento cultural e o debate político nas demais cidades brasileiras,
assim como criar as bases para a formação de centros de cultura nas cidades por onde
passava. (BERLINCK, s.d)

O GOLPE DE 1964: PERSEGUIÇÕES E RESISTÊNCIA


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Essa fase de intensos debates e lutas pelas transformações socioeconômicas e


culturais no Brasil sofreu uma ruptura com o golpe civil- militar de 1964. A partir de
então, com o mote de proteger o país da ameaça comunista identificada no governo de
João Goulart e nas crescentes manifestações e ações dos movimentos sociais,
especialmente com as tentativas de aprovar as reformas de base, foi instaurada a
ditadura civil-militar. Apesar da ampla frente que apoiava o governo Goulart que
pautava as transformações sociais, especialmente as reformas de base, não houve
resistência desses setores ou do governo ao golpe. Como afirma Caio de Navarro,

Desarmadas, desorganizadas e fragmentadas, as forças progressistas e


de esquerda nenhuma resistência ofereceram aos golpistas. Alegando
que não queria assistir a uma “guerra civil” no país, Goulart negou-se
a atender alguns apelos de oficiais legalistas no sentido de ordenar
uma ação repressiva — de caráter intimidatório — contra os
sediciosos que vinham de Minas. Preferiu o exílio político.
(TOLEDO, 2004: 24)

Desde então os sucessivos governos militares executaram um longo processo de


centralização política e forte repressão a qualquer oposição. Partidos políticos,
sindicatos, movimentos sociais e culturais e qualquer manifestação que se opusesse ao
regime tiveram sua atuação limitada, reprimida ou submetida à forte censura.
Nos primeiros anos após o golpe a sensação era de que aquela situação era
temporária e o Estado autoritário instalado em 1964 não se sustentaria por muito tempo.
Era grande o número de passeatas, atos e movimentos de resistência ao golpe. Mas a um
governo militar sucedia outro, mais violento e centralizador. Censura e repressão foram
os principais mecanismos do regime militar naquele período, que amparado pela
intenção de manter a segurança nacional contra a ameaça comunista, modificava as leis,
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criava decretos e implementava leis que tinham como objetivo controlar e reprimir as
ações contrárias ao regime.
Partidos, sindicatos e entidades de classe foram proibidos e entraram na
clandestinidade, tendo suas ações e seus membros vigiados, perseguidos, enquadrados
como subversivos e criando uma política sistemática de prisões, torturas e assassinatos.
A cada Ato Institucional promulgado, mais difícil era a denúncia e a atuação na luta
contra a ditadura.
Diversas organizações políticas de esquerda – então na clandestinidade-
discutiam a melhor estratégia para o enfrentamento da situação posta. Algumas
defendiam o enfrentamento indireto, planejando e apoiando manifestações de rua,
denúncias em organismos internacionais e ações políticas que dessem visibilidade à
oposição. Muitos intelectuais, artistas e membros da imprensa desenvolveram meios de
combater a ditadura através do uso de metáforas e alegorias.
Outras organizações defendiam o enfrentamento direto, planejando e executando
embates na área rural e nas cidades. Organizações como a Aliança Nacional
Renovadora (ALN), Ação Popular (AP), Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-
8), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Movimento de Libertação Nacional,
Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares) são alguns dos mais destacados
grupos políticos que ao longo da ditadura agiram como focos de resistência e combate
práticos contra a ditadura, através de sequestros, expropriações de bancos e cofres
privados e luta armada. (ROLLEMBERG, 2009)
A maioria das ações realizadas por essas organizações foram frustradas já em
seu planejamento ou na sua realização, devido ao grande esforço do governo e dos
órgãos de espionagem e repressão que desmontaram organizações perseguindo,
prendendo, torturando, matando ou exilando seus membros.
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CENSURA, CULTURA E RESISTÊNCIA

O espaço para oposição era limitado e nesse sentido a cultura assume importante
papel da resistência e combate à ditadura. Na música e no cinema, letras e imagens que
se utilizam de metáforas e alegorias para driblar a censura, assim como acontecia com
artigos e notas de jornais. No teatro, encenações sobre o cotidiano e a busca por novas
experiências e formas de contar histórias. Apesar da censura, a cultura se tornou a
válvula de escape da oposição e a maior expressividade da resistência. (RIDENTI,
2009)
Marcos Napolitano nos dá um panorama desse novo quadro ao afirmar que,

A esquerda, forçada pela nova conjuntura, inverteu a “equação”


político- cultural proposta pelo Manifesto do CPC, que subordinava a
consciência social ( a elaboração cultural, a ideologia) ao ser social (as
determinações materiais e de classe social). A consciência social se
transformava em prioridade na luta contra o regime, na medida em
que o fim da política econômica nacionalista e o autoritarismo política
implantado colocavam em xeque as posições tradicionais da esquerda.
A cultura passou a ser supervalorizada, até porque, bem ou mal, era
um dos únicos espaços de atuação da esquerda politicamente
derrotada. (NAPOLITANO, 2008: 49).

Ainda sobre as consequências do golpe, foi um marco na política de censura o


Ato Institucional número 5 (AI-5) que radicalizou a repressão e a censura, diversas
esferas da sociedade foram afetadas e limitadas, em especial aquelas que caracterizavam
risco ou oposição à ditadura. Dentre esses setores, destaca-se a cultura por ter
representado tanto a expressão máxima da censura no período como também, a maior
forma de resistência à ditadura. Como afirma Franco,
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A ação imediata do Estado Militar após a edição do AI-5, por meio do


qual ele alterava sua postura diante da vida cultural, foi basicamente
repressiva. Ele estava de fato determinado a suprimir efetivamente
qualquer herança ou consequência da prática cultural anterior a 1968.
Para isso, por meio da censura, suprimiu toda forma expressiva que
pudesse ter qualquer eventual significação política; reprimiu
indistintamente todo tipo de obra ou criou dificuldades objetivas para
a circulação e distribuição de grande número delas; atacou a produção
cultural universitária, afetando gravemente tanto seu destino como sua
qualidade; demitiu professores e perseguiu (alguns) produtores
culturais. Em outras palavras: seu objetivo imediato era o de calar a
voz da sociedade e impedir suas manifestações culturais. [...] Enfim, o
Estado Militar, tomado por este desejo de suprimir a cultura do
período anterior, parecia almejar o estabelecimento de um formidável
silêncio social; uma espécie de "vazio cultural". Claro está que, com
tais atitudes, comprometia a qualidade da formação dos cidadãos e
estabelecia uma atmosfera cultural desanimadora e incipiente.
(FRANCO, 1995: 62).

Contudo, a censura não consegue extinguir totalmente as manifestações culturais


e de oposição. Os movimentos culturais não hegemônicos continuaram a encontrar
meios de produzir e manifestar uma alternativa ao discurso autoritário. De certa forma,
a própria censura contribuiu para que a arte desenvolvesse novas formas, tanto com
relação ao conteúdo quanto no que diz respeito à estética.
Já na década de 1970, o Estado passou a formular um processo de construção de
uma política cultural que controlasse todos os aspectos da vida cultural do país. O
Estado passou a investir na produção cultural, no teatro, cinema, música e televisão,
apropriando-se de certa maneira da cultura dita popular, tirando dela seu caráter
político, eliminando todo o discurso social e transformando-a em produto, objeto de
consumo. Para a elaboração dessa política, “em 1975, foi criada durante o Governo
Geisel a Política Nacional Cultural (PNC) cujo objetivo era destituir das mãos da
esquerda o controle da produção cultural impedindo assim que se incentivasse através
da cultura a mobilização da sociedade.” (SANTOS, 2009: 497).
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A resistência passou a se dar em dois focos: 1 - contra a ditadura militar e o


autoritarismo, em favor da democracia e da liberdade de direitos e valorizando
expressões da sociedade brasileira; 2- contra a mercantilização da arte e a crescente
consolidação da indústria cultural. Novas formas e modelos, estéticos e políticos são
formulados, como a “arte marginal”, que extrapola todas as convenções estéticas
conhecidas e cria novos meios de expressão e linguagem (NAPOLITANO, 2001).
O debate sobre a cultura como forma de resistência é abordado por Marilena
Chauí através da discussão sobre a definição do que é Cultura Popular, qual é o conceito
de cultura e a distinção entre cultura popular, de massas e cultura dominante. A autora
afirma que a cultura popular é ambígua, pois é ao mesmo tempo "tecido de ignorância e
de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz
de resistência ao se conformar." (CHAUÍ, 2009:124).
Entendemos a cultura como forma de resistência contínua ao cenário político
brasileiro. Alguns autores analisaram o avanço dos setores progressistas, no campo da
cultura, na busca de um projeto popular e democrático para o Brasil no período pré-
golpe e que no pós-golpe continuou a ter influência nos setores ligados à cultura. Essa
tese de continuidade dos ideais do movimento de cultura popular está presente na obra
de Heloísa Buarque de Hollanda (HOLLANDA, 1995: 13-21).
Durante a ditadura civil-militar, a cultura tem destaque como espaço de
resistência por conjugar diversos sujeitos- muitas vezes com concepções e formulações
diversas- num único espaço: a luta pela liberdade. Como afirma Marcos Napolitano,

... mesmo limitado do ponto de vista da política institucional, o espaço


informal proporcionado pela resistência artístico-cultural foi
fundamental para garantir uma espécie de "rede de recados", na qual o
principal conteúdo era o próprio exercício da liberdade, da expressão e
da opinião. "Liberdade" (NAPOLITANO, 2002: 1).
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Ainda com relação à resistência cultural, Napolitano reforça a análise de que


esse espaço de resistência não pode ser considerado homogêneo do ponto de vista
estético ou no entendimento do que deve ser a cultura, sendo a indignação contra a
opressão e a luta pela liberdade o fio que unia essas diferentes concepções
(NAPOLITANO, 2002). Napolitano afirma que existiram três maneiras de atuação da
resistência no campo da cultura:

Por parte dos comunistas ortodoxos, ocupação dos espaços (no Estado
e no mercado) buscando recompor a cultura nacional-popular
destroçada após 1968; por parte das correntes marginais da
contracultura jovem, a criação de espaços libertários e alternativos,
sobretudo em torno da sociabilidade universitária; por parte de
católicos e militantes de grupos clandestinos (dissidentes do PC,
trotskistas, maoístas) a ocupação dos espaços da cultura popular
operária, nas periferias das grandes cidades (NAPOLITANO, 2002:
6).

Percebemos que a resistência cultural à ditadura civil-militar e ao estado de


exceção de direitos e liberdades instaurado pela mesma, apesar de ter se manifestado de
diversas maneiras ao longo do período, teve papel importante à medida que aglutinou
diferentes setores e concepções atuando por um mesmo objetivo: a liberdade.

TEATRO E RESISTÊNCIA

“No ponto de desgaste a que chegou nossa


sensibilidade, certamente precisamos antes de
mais nada, de um teatro que nos desperte:
nervos e coração.”
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Antonin
Artoud

Dentre as variadas manifestações da cultura que atuaram como espaço de


resistência à ditadura, destacamos o teatro pelo importante relevo que teve nesse
período e pelas possibilidades que essa arte proporciona no debate e expressão da
realidade de uma sociedade. Sobre o papel do teatro, destacamos a visão do dramaturgo
e crítico Fernando Peixoto:
O teatro inúmeras vezes parece uma expressão em crise. Em certas
épocas quase perde o sentido. Em outras é perseguido. Às vezes
refugia-se em pequenas salas escuras, às vezes sai para as ruas e
redescobre a luz do sol. Sua função social tem sido constantemente
redefinida. [...] Desde muitos séculos ates de nossa era até hoje, nunca
deixou de existir: há algum impulso no homem, desde seus
primórdios, que necessita deste instrumento de diversão e
conhecimento, prazer e denúncia. (PEIXOTO, 1986: 11)

Analisamos a cultura, a arte e mais especificamente o teatro no período em que a


liberdade individual e coletiva era reprimida, abafadas as expressões de
descontentamento. O teatro se transformava à medida que surgiam novas necessidades.
Naquele momento pretendia-se fazer a denúncia do que se passava no país e para isso o
teatro se aproximou do público, provocando, chocando e o tornando parte do
espetáculo.
Desenvolve-se o teatro político, de rua, de arena, engajado com as
transformações sociais e compromissado com a denúncia e o protesto, protagonizando
no palco e fora dele, momentos de luta contra o arbítrio, contribuindo para a resistência
ao regime autoritário. E a função da cultura então é mais que nunca a de chamar a
atenção, como afirma Antonin Artaud, “no ponto de desgaste a que chegou nossa
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sensibilidade, certamente precisamos antes de mais nada, de um teatro que nos desperte:
nervos e coração.” (ARTAUD, 1993: 81).
Como dito anteriormente, as condições repressivas postas pela ditadura ao
mesmo tempo que inviabilizaram a cultura em certos aspectos, por outro lado findou
impulsionando a formulação de novos modelos. Foi assim com o teatro, que mesmo
sofrendo com a censura, acabou por criar caminhos alternativos de atuação através do
uso de metáforas e distorções e que se aproveitou das condições desfavoráveis para
fazer “ surgir nos palcos tendências, experiências, textos e encenações de características
muito diferentes de tudo que ali fora visto anteriormente” (MICHALSKI, 1989).
O teatro tem várias formas, estilos e tendências que surgiram ou adquirem
destaque a depender do contexto sociocultural. Para Fernando Peixoto “ o que se
transforma na vida social e real dos homens é que determina modificações nas
concepções filosóficas como nas representações artísticas” (PEIXOTO, 1981, p. 12),
assim, a cultura e o teatro em suas diversas manifestações são reflexo do momento em
que estão inseridos.
Durante a ditadura civil- militar, o teatro viveu e refletiu esse tempo. Falou sobre
a realidade do Brasil naquele contexto, contestou e denunciou os abusos do Estado
autoritário, criou imagens e cenas que falavam de outra realidade- do passado e da
esperança no futuro diferente.
Três momentos foram particularmente importantes para o teatro no período da
ditadura: no primeiro, no início da década de 1960, o teatro ainda mantinha aquela áurea
de luta pelas mudanças que influenciaram o teatro a partir da década de 1950; o
segundo, iniciado em 1968 com a implementação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) que
representou o estreitamento da censura, mas em contrapartida uma renovação na forma
de fazer teatro; e o terceiro, a partir do final da década de 1970, com o início da
abertura política e uma retomada da liberdade na cultura.
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O teatro político surge no Brasil na década de 1950, refletindo a busca pela


identidade do povo brasileiro e o debate sobre a realidade do país. Ele encontrará sua
base, primeiramente, numa revolução estética: o teatro de arena, que propõe um contato
maior com o público.
Durante a ditadura, importantes grupos teatrais fazem parte do movimento de
resistência cultural, invocando o teatro de protesto, político e engajado. Dentre eles os
mais expressivos estão o Teatro Arena, Teatro Opinião, Grupo Oficina, Teatro do
oprimido, entre outros.
Em 1953 o Teatro de Arena é inaugurado em São Paulo por José Renato e será o
marco desse formato no Brasil. Mas é a partir da fusão do Arena com o Teatro Paulista
de Estudantes e artistas ligados ao movimento da esquerda estudantil integrarão o
grupo, como Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vinna Filho, criando um ambiente
favorável ao uso do palco como manifestação política. Dentre os elementos que sobem
ao palco estão a denúncia das mazelas sociais, a crítica aos problemas brasileiros e uma
crítica a situação econômica do país. Em 1958 o Arena lança Eles Não Usam Black-Tie,
peça de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de José Renato, que se torna um marco
na história do teatro político do país ao tratar de questões como movimento sindical e a
vida na favela.
Outros grandes sucessos do Arena e marcos do teatro político e engajado da
década de 1960 são Arena Conta Zumbi de 1965, e Arena Conta Tiradentes de 1967,
que tratam da resistência dos escravos nos quilombos e da Inconfidência Mineira,
respectivamente.
Outro importante grupo é o Opinião, que surge a partir da necessidade de um
grupo de artistas ligados ao CPC da UNE de criar um foco de resistência à situação
posta. Criam então o espetáculo musical Opinião, que dará nome ao grupo.
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O Teatro Oficina nasce ainda em 1958 enquanto movimento na busca de


construir um teatro com uma nova estética. Dentre as peças do Oficina, destacamos O
Rei da Vela, de Oswald de Andrade, lançada em 1967, dirigida por José Celso Martins
Correia.
Em 1970, Augusto Boal cria um novo método teatral chamado Teatro do
Oprimido, que possui características de militância e destina-se à mobilização do
público, unindo teatro à ação direta. A intenção de Boal era criar uma prática teatral
revolucionária, que não falasse do povo, do oprimido, mas que fosse construída pelo
próprio oprimido.1
Esse teatro militante, engajado com as causas sociais tem no período da ditadura
seu auge. Mas apesar das transformações que sofre ao longo dos tempos, ele continua a
existir, talvez com outros objetivos e sujeitos, novas formas e modelos, mas ainda
tratando da realidade do país.

GRUPOS TEATRAIS EM ARACAJU

No Estado de Sergipe, apesar das proporções e de não ser considerado como


grande centro político e cultural como São Paulo e Rio de Janeiro, a expressão da
cultura de resistência não foi muito diferente do resto do país. Com o golpe militar e
seus desdobramentos, restava muito pouco a ser feito no sentido de mobilizar, protestar
e resistir à ditadura, com sedes de sindicatos e partidos fechados, estudantes e

1
As referências sobre os grupos teatrais são da Enciclopédia Itaú cultural de Teatro. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm>. Acesso em: 22 mar.
2013.
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trabalhadores vigiados, presos e assassinados. Restavam aos movimentos culturais


agirem como foco de resistência.
Nesse sentido, houve uma visível movimentação de elementos da sociedade
artística e estudantil enquanto vanguarda politica e cultural nesse período,
especialmente os que tiveram envolvimento com os movimentos de educação de base,
os Centros de cultura popular (CPC´s) e à União Estadual dos estudantes de Sergipe
(UEES). (CRUZ, 2003).
No início dos anos 1960 o debate sobre a realidade do país florescia e
começavam a entrar em cena a luta por mudanças. Em especial a partir de 1962, com o
Governo Goulart e a tentativa de construção de um governo democrático - popular, as
esquerdas levavam adiante esses debates. Em Aracaju, sindicatos, movimentos sociais e
movimentos de educação e cultura travavam esse debate e, influenciados pelo debate
nacional-popular e das reformas de base, se engajaram na luta por mudanças.
Vários estudantes das faculdades e escolas de Aracaju, militantes do movimento
estudantil, faziam parte desse contexto de lutas e reivindicações. As questões do
movimento estudantil em Sergipe iam além das pautas específicas das faculdades e
escolas e da necessidade de criação de uma universidade no Estado.
Os militantes do movimento estudantil, animados com as pautas de
transformação social, apoiaram movimentos sociais e culturais como o Movimento de
Educação de Base, que surge com o propósito de desenvolver um programa de
alfabetização e educação de base, através de um novo modelo de educação que
trabalhasse a consciência crítica dos educandos; e o Movimento de Cultura Popular,
nascido em Pernambuco, era constituído por estudantes artistas e intelectuais e tinha
como objetivo construir uma educação popular e comunitária, para formar uma
consciência política e social nos trabalhadores.
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Outro espaço de atuação dos estudantes sergipanos eram os CPC´s. A partir de


1962, o CPC através da UNE - volante passou a visitar diversas capitais do país levando
os debates travados nacionalmente no campo da cultura e da política e realizando
oficinas e exposições e criando as bases para a construção de CPC´s nas diversas
cidades.
Em Aracaju, essas passagens da UNE - volante foram importantes, pois como
afirma Vieira Cruz, “não apenas despertaram as atenções dos estudantes para os
problemas da modernização e democratização do país, como também incentivaram a
produção cultural dos artistas locais, muito dos quais eram egressos do movimento
estudantil” (CRUZ, 1998: 139). Essas passagens também incentivaram a criação de
centros de cultura popular em Sergipe. Havia o CPC da União Estadual dos Estudantes
Sergipanos (UEES) e o CPC do Centro Acadêmico Silvio Romero.
Esses CPC´s tinham relação com os movimentos de educação de base e de
cultura popular, tendo muitos de seus militantes atuando tanto no campo político quanto
no cultural. A partir da ligação dos estudantes com os CPC´s e com os movimentos de
cultura popular surgem alguns grupos teatrais (CRUZ, 2003).
Com o golpe de 1964 são extintos os CPC´s e os movimentos de educação de
base e cultura popular. Também tem seus direitos cerceados e são constantemente
vigiados o movimento sindical e estudantil, estudantes sofrem processos de afastamento
da universidade, militantes políticos e sindicais são presos e sofrem inquéritos policiais.
Assim como no resto do país, com a militância política restrita e a possibilidade de
enfrentamento direto com a ditadura praticamente inexistente, restou à cultura agir
como foco de resistência.
Os militantes do movimento estudantil, que no início da década de 1960 estavam
ligados aos movimentos de educação e cultura e vinham desenvolvendo a cultura
engajada no Estado e principalmente, vinham formando grupos de teatro, escrevendo,
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dirigindo e atuando espetáculos que tratavam das temáticas da cultura popular e da


realidade brasileira, ficaram à frente da resistência no campo da cultura durante a
ditadura.
Algumas peças de teatro foram censuradas em Aracaju nas décadas de 1960 e
1970. A maioria teve somente algumas partes cortadas e na maioria dos casos a censura
ocorria não por questões políticas, mas sim morais. É o caso por exemplo a peça Ratos
de esgoto, submetida à censura em 1973, teve trechos vetados por causa do uso de
palavrões. Em 1974, a peça de Jorge Lins, Atascal, que trata da realidade brasileira e
tem como personagens principais sujeitos à margem da sociedade- contém vetos por
aspectos morais e políticos. Em 1976, a peça Brefaias de Aglaé Fontes, cuja história se
passa em uma feira, tem cortes também morais (MATOS, 2008).
Em Sergipe não havia grandes grupos de teatro como no Rio de Janeiro ou em
São Paulo, como também não havia uma produção sistemática voltada ao debate da
realidade brasileira e transformações estéticas, mas existia sim uma movimentação dos
sujeitos ligados ao teatro em tratar de temas relativos à situação do país e à luta pela
liberdade. Dentre os grupos de teatro existentes em Aracaju nas décadas de 1960 e 70,
destacamos: o Teatro de Cultura Artística de Sergipe, Teatro de Estudantes do Colégio
Estadual de Sergipe, Grupo Raízes, Grupo Expressionista da UFS, Grupo de teatro
experimental, Grupo Oxente de teatro, Grupo checkup, Grupo Imbuaça.2
Na década de 1970 a Universidade Federal de Sergipe realiza o Festival de Arte
de São Cristóvão, que tem sua primeira edição em 1972. O FASC nasce de uma
iniciativa da UFS com o objetivo de criar uma política de extensão na universidade. O
Festival era um evento que integrava diversos setores artísticos, contando com
apresentações de grupos das mais diferentes expressões artísticas e atividades paralelas,

2
Referências sobre os grupos foram encontradas no Arquivo do CULTART-UFS (Centro de Cultura e
Arte), atualmente localizado no acervo da Universidade Federal de Sergipe.
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como oficinas e cursos. O Festival torna-se importante pelo seu caráter de divulgação
das experiências culturais e pelas trocas entre os participantes.
No fim da década de 1970 é criado o Grupo Imbuaça, talvez o mais reconhecido
grupo teatral sergipano. Um grupo de jovens que participava de uma oficina de teatro
resolve montar um grupo e dar o nome de ”Aspectrus”. Ainda em 1977, no Festival de
Artes de São Cristóvão, o grupo recém formado sofre influência de um outro grupo que
se apresentava no festival, o Teatro Livre da Bahia, que utilizava a linguagem da
literatura de cordel nos espetáculos, elementos da cultura popular e certa conotação
política. O Aspectrus decide prosseguir um caminho mais voltado à cultura popular, ao
debate da realidade brasileira e à defesa do povo (CARREGOSA, 2008).
O Imbuaça tornou-se o grande nome do teatro sergipano e é reconhecido
nacional e internacionalmente. Sobre o grupo, Lindolfo Amaral, um de seus membros,
afirma:

O Imbuaça surge do desejo de fazer um teatro mais aberto, do ponto


de vista democrático. Lembrando que o Imbuaça surgiu em agosto de
1977, um período que se lutava pela redemocratização do país, então
historicamente era importante que nós começássemos a ir as ruas.
Então esse é o primeiro motivo e o grupo estava trabalhando junto ao
movimento estudantil. Depois, havia na época o Festival de Arte de
São Cristóvão e lá em 77 conhecemos o Teatro Livre da Bahia, que
estava fazendo um teatro de rua, com a literatura de cordel. Então era
um caminho que nós optamos, exatamente por uma questão muito
mais política e claro, buscando trabalhar com as manifestações
populares devolvendo ao povo seu próprio trabalho. Estar na rua
significa dizer que você tem um espetáculo aberto. (AMARAL)3

O Imbuaça surge já no período de abertura política do Brasil. O processo de


redemocratização no campo da cultura significou um arrefecimento da censura e

3
Entrevista de Lindolfo Amaral ao Programa Temporada, n. 15. Fundação Aperipê. Disponível em: <
http://www.youtube.com/watch?v=odINCEhTaoY>. Acesso em: 16 mar. 2013.
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repressão, até seu fim. O debate então não era mais pelo fim da ditadura e pela
liberdade. Aos poucos, o teatro político, engajado com a realidade social foi perdendo
espaço, sendo substituído por um teatro mais lúdico e leve.
Mas esse teatro não se perdeu de todo. Atualmente podemos encontra-lo em
grupos que fazem teatro de rua, como o Imbuaça de Sergipe e o Galpão de Minas
Gerais. Não há mais o inimigo autoritário da ditadura, mas o debate sobre a cultura
popular, a identidade do povo, a realidade social brasileira, continuam a influenciar o
teatro.
Em Sergipe nos últimos anos, além do Imbuaça, podemos citar dois exemplos de
experiências teatrais comprometidas, engajadas ou que no mínimo representam a não
conformação com a realidade. A primeira é uma trilogia escrita pelo sergipano Hunald
Alencar. São três peças: Castrum, Itanhy e Cárcere, que fazem uma viagem pela
história da classe trabalhadora no Brasil, desde o século XX até a década de 1980 com a
abertura política. Hunald Alencar resgata um tema não muito corriqueiro no teatro atual,
porém extremamente atual e plausível. Ele assim descreve sua trilogia:

É a luta do operariado contra o coronelismo nessa terra que ainda


continua”. Começa já agora pelo fim, ou seja, no final da suposta
abertura politica, que a peça mostra que não houve abertura de nada.
Quem está no poder, continua no poder, quem sofria secularmente
continua sofrendo. Então o “Cárcere” é isso. O “Castrum” é o
surgimento desse conflito no começo do século XX e o “Itanhy” é a
luta dessa classe operária aqui em Sergipe, no Siqueira Campos, que é
lá que se armou a barricada da luta operária. (ALENCAR)4

A outra experiência é significante por dois motivos: em sua formação


encontramos elementos que identificam sua atuação como resistência; e ela surge na

4
Entrevista de Hunald Alencar ao Programa Temporada da Fundação Aperipê. Disponível em: <
http://www.youtube.com/watch?v=odINCEhTaoY>. Acesso em: 16 mar. 2013.
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Universidade, com militantes do movimento estudantil. Em 2006, a Universidade


Federal de Sergipe estava no início de seu processo de expansão para o interior do
Estado. Seria inaugurado o campus de Itabaiana e um grupo de militantes do
movimento estudantil resolveu se manifestar contra a administração da universidade e a
política de expansão, pois consideravam que o novo campus não tinha estrutura para
receber estudantes e a administração estava atropelando o processo. Alguns militantes
resolvem fazer uma esquete sobre a situação. Surgia o coletivo “Só a arte nos resta?”.
Um dos membros do grupo assim descreveu a experiência:

Um grupo de estudantes, da mesma universidade, resolve construir


uma intervenção de teatro para denunciar essas questões referentes ao
campus de Itabaiana. É uma intervenção construída sem nenhuma
leitura de teatro e de que linha teatral seguir. Após essa apresentação,
alguns dos envolvidos resolve formar um grupo de intervenção
política, que tinha como objetivo usar do teatro como forma de
dialogar sobre problemas da universidade e da própria sociedade. Esse
grupo se intitula "Só a arte nos resta?". Sem saber, esse grupo utiliza
elementos do teatro do oprimido e do teatro marginal em suas
construções. A ideia central era utilizar da arte como forma de
despertar a criticidade sobre temas atuais da sociedade, questões como
opressão, a exploração imposta pelo capital e eventos do dia-a-dia
eram elementos inspiradores da atuação do grupo.5

O grupo retoma o debate sobre a realidade social e a crítica a opressão e


exploração, agora não mais impostas pela ditadura, mas ainda presentes no país. Em
seguida o grupo cria uma intervenção intitulada “ Voltei e estou armado”, baseada em
um texto homônimo do escritor Ferrez, que foi apresentada em vários espaços da
universidade, encontros de estudantes e atividades de sindicatos e partidos. Em seguida,
realizaram um esquete na abertura do Encontro Regional de Estudantes de História com
uma intervenção que abordava temas como as “opressões (gênero, homofobia, racismo),

5
Depoimento de Leandro Sacramento. Entrevista concedida à Mayra Alves, Aracaju, 18 mar. 2013.
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a questão das drogas, o extermínio da população pobre, o esgotamento dos


trabalhadores pela lógica de expropriação da mais valia e etc”.
Leandro Sacramento diz que o grupo passou por mudanças:

Recentemente, esse grupo começa a dialogar e estudar o teatro


marginal e o teatro como forma de atuação politica e de intervenção
na realidade. Atualmente o grupo reconfigurou-se. Mudou o nome
para Berradero. E é composto por quatro pessoas. Atualmente,
definimos que nosso espaço de atuação é a rua. A rua é o nosso palco,
por ser da rua que conseguimos buscar inspiração para nossas
construções. Estamos num processo de adaptação da intervenção da
abertura do encontro de história para a rua.6

Percebemos que essas experiências atuais, que trabalham com o questionamento


da realidade e com a discussão da cultura popular, tiveram forte influência do
movimento teatral das décadas de 1960 e 1970. O teatro engajado com a denúncia da
realidade e com a construção das mudanças tem, ainda hoje, espaço nos palcos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na última década três momentos tiveram destaque quando se trata de teatro. Em


2007, a Universidade Federal de Sergipe abriu o Curso de Licenciatura em Teatro no
campus de Laranjeiras. O curso serve especialmente como espaço de profissionalização
dos agentes teatrais de Sergipe.
Outro aspecto importante foi o lançamento do Festival de Teatro Sergipano, em
2011, numa iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura. Em 2013 o Festival entrou em
sua terceira edição. O festival é de extrema importância pois é um dos poucos espaços

6
Idem.
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do tipo no Estado, beneficiando tanto o público que tem acesso aos espetáculos, quanto
os artistas, que tem a possibilidade de dialogar entre si e expor sua arte.7
Ainda em 2011, a Secretaria de Cultura do Estado de Sergipe inaugura o
Memorial do Teatro Sergipano no Teatro Lourival Baptista. O Memorial conta com 500
peças, que são fruto de doações, pesquisa e arquivos pessoais, dentre elas encontramos
programas de peças, livros, objetos de cena, figurinos etc.8
Esses três espaços são de fundamental importância para o conhecimento,
valorização e construção do teatro sergipano. A cultura muitas vezes age como
instrumento da resistência. As vezes, resiste ao autoritarismo de uma ditadura militar,
mas pode resistir também à opressão e exploração sofrida por um grupo ou pela
sociedade.
Durante a ditadura civil-militar, a cultura, que vinha formulando seu discurso
sobre as bases da construção da democracia e das mudanças sociais, passou a atuar
como foco de denúncia e resistência à situação vivida. E o teatro, enquanto expressão
importante da cultura, assume um papel relevante no enfrentamento simbólico ao estado
autoritário.

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contra o regime militar no Brasil (1964-1985). In: MARTINS FILHO, João Roberto

7
Informações sobre o Festival do Teatro Sergipano obtidas no site da Secretaria Estadual de Educação.
Disponível em: < http://cultura.se.gov.br. Acesso em: 22 mar. 2013.
8
Informações sobre Memorial do Teatro Sergipano obtidas no site da Secretaria Estadual de Educação.
Disponível em: < http://cultura.se.gov.br>. Acesso em: 22 mar. 2013.
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