Capitalismo Dependente e A "Questão Social" No Brasil Racismo e Desigualdades Regionais Como Determinações Estruturais

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Volume 23, N°03, Nov.

2023, ISSN 1984-3879

CAPITALISMO DEPENDENTE E A “QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL:


RACISMO E DESIGUALDADES REGIONAIS COMO DETERMINAÇÕES
ESTRUTURAIS

DEPENDENT CAPITALISM AND THE "SOCIAL ISSUE" IN BRAZIL:


RACISM AND REGIONAL INEQUALITIES AS STRUCTURAL
DETERMINATIONS

CAPITALISMO DEPENDIENTE Y LA "CUESTIÓN SOCIAL" EN BRASIL:


EL RACISMO Y LAS DESIGUALDADES REGIONALES COMO
DETERMINACIONES ESTRUCTURALES.

Flávio José Souza Silva1

RESUMO

Este artigo apresenta reflexões a respeito das determinações estruturais do racismo e das
desigualdades regionais no país, a partir da teoria da dependência e da análise da formação
social-histórica-econômica-cultural brasileira. O texto destaca a importância de compreender
esses fenômenos como determinações incontornáveis para se apreender a formação da classe
trabalhadora brasileira e apresenta mediações que buscam traçar características universalizadas
pelo modo de produção capitalista, mas que se particularizam no Brasil e se singularizam na
região Nordeste. Além disso, o artigo discute a cultura profissional do Serviço Social brasileiro
e sua relação com as reflexões apresentadas. Destaca-se a compreensão da formação da classe
trabalhadora brasileira a partir das determinações estruturais do racismo, das desigualdades
regionais, destacando a importância de analisar tais fenômenos como elementos fundamentais
para compreender não apenas a gênese, mas também o movimento e as contradições da "questão
social" no Brasil.

Palavras-chave: capitalismo, questão social, racismo, desigualdades regionais, teoria da


dependência.

ABSTRACT

This article presents reflections on the structural determinations of racism and regional
inequalities in the country, based on the theory of dependence and the analysis of the Brazilian
social-historical-economic-cultural formation. The text highlights the importance of
understanding these phenomena as unavoidable determinations to grasp the formation of the
Brazilian working class and presents mediations that seek to outline characteristics universalized
by the capitalist mode of production, but which are particularized in Brazil and singularized in
the Northeast region. Additionally, the article discusses the professional culture of Brazilian

1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social vinculado à Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/ESS - UFRJ). https://orcid.org/0000-0002-2381-7174
[email protected]

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Social Work and its relationship with the presented reflections. It emphasizes the understanding
of the formation of the Brazilian working class based on the structural determinations of racism,
regional inequalities, highlighting the importance of analyzing such phenomena as fundamental
elements to understand not only the genesis, but also the movement and contradictions of the
"social issue" in Brazil.

Keywords: capitalism, social issue, racism, regional inequalities, dependency theory.

RESUMEN

Este artículo presenta reflexiones sobre las determinaciones estructurales del racismo y las
desigualdades regionales en el país, basadas en la teoría de la dependencia y el análisis de la
formación social, histórica, económica y cultural brasileña. El texto resalta la importancia de
comprender estos fenómenos como determinaciones inevitables para comprender la formación
de la clase trabajadora brasileña y presenta mediaciones que buscan trazar características
universalizadas por el modo de producción capitalista, pero que se particularizan en Brasil y se
singularizan en la región Nordeste. Además, el artículo discute la cultura profesional del Trabajo
Social brasileño y su relación con las reflexiones presentadas. Se enfatiza la comprensión de la
formación de la clase trabajadora brasileña a partir de las determinaciones estructurales del
racismo y las desigualdades regionales, destacando la importancia de analizar dichos fenómenos
como elementos fundamentales para comprender no solo la génesis, sino también el movimiento
y las contradicciones de la "cuestión social" en Brasil.

Palabras clave: capitalismo, cuestión social, racismo, desigualdades regionales, teoría de la


dependencia.

INTRODUÇÃO

Brasil, o teu nome é Dandara


E a tua cara é de cariri
(...)
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
(Histórias Para Ninar Gente Grande)2

2
Escolhemos, para a epígrafe que abre este artigo, este trecho do samba enredo da Mangueira de 2019,
por abordar questões históricas, culturais e sociais que são fundamentais para compreender a formação
da classe trabalhadora brasileira. A menção a Dandara, ao Cariri e aos caboclos de julho remete à
resistência e à luta contra a opressão, enquanto os nomes de Marias, Mahins, Marielles e malês
representam figuras históricas e contemporâneas que simbolizam a luta por justiça social e igualdade,
temas centrais no debate sobre a formação da classe trabalhadora brasileira e as determinações estruturais
do racismo e das desigualdades regionais.

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A nossa proposta, neste texto, é traçar reflexões que busquem uma aproximação
qualificada em torno da relação entre os fundamentos sócio-históricos da “questão
social” com o racismo no Brasil e as particularidade no Nordeste. Nosso ponto de partida
terá dois pressupostos:
i) o primeiro diz respeito à nossa opção teórico-metodológica que é sustentado
pela tradição de pensamento marxista/marxiana. Assim, buscaremos direcionar o debate
da “questão social”, do racismo e das disparidades regionais à guisa da lei geral de
acumulação capitalista e da teoria da dependência na constituição do capitalismo no
Brasil. Daremos, assim, a devida importância à compreensão desses fenômenos como
determinações incontornáveis para se apreender a formação da classe trabalhadora
brasileira. Nesse sentido, recuperaremos as determinações que mediam a relação entre
o capital e o trabalho à formação social-histórica-econômica-cultural no Brasil,
apreendendo não apenas a gênese da “questão social”, mas o seu movimento próprio e
as suas contradições fundamentais, que estruturam um determinado tipo de capitalismo
que possuí matrizes escravocratas, patrimonialistas, patriarcais e genocida.
ii) o segundo norte diz respeito à cultura profissional que foi gestada pelo
Serviço Social brasileiro no final da década de 1970, do século passado, a partir da
experiência da Escola Católica de Minas Gerais. A proposta seria a construção de um
projeto profissional que possibilitasse a ruptura política e teórica com o lastro liberal-
conservador que marca o surgimento e o desenvolvimento da profissão em nossa
realidade. Segundo Iamamoto (2019), rompe-se com a prevalência exclusiva do
conservadorismo, mas a profissão presencia a dialética da convivência entre esse
pensamento e a intenção de ruptura, até os dias atuais.
O marco dessa vertente da Renovação Profissional, o da Intenção de Ruptura,
se dá com o Congresso da Virada, O 3.º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, em
1979. Apresenta-se à categoria profissional um projeto que possuí um peso ideopolítico
e teórico-metodológico que determinou por uma direção estratégica à profissão com
profundas refrações no exercício profissional, na formação profissional e na organização
política das/os Assistentes Sociais brasileiras/os (NETTO, 2011; MOTA; AMARAL,
2016).
A década de 1980, representa, para essa categoria profissional, o momento de
disputa entre os projetos conservadores (com a prevalência do projeto modernizador,
em detrimento do projeto da reatualização, que teve parca adesão profissional) e do
Projeto de Intenção de Ruptura em busca de hegemonia. Ao mesmo passo, esse

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momento histórico externa a consolidação do projeto de Ruptura, tendo como marco o


lançamento do livro Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma
interpretação histórico-metodológica, de Raul de Carvalho e Marilda de Iamamoto, em
1982. Esses avanços só foram possíveis, graças ao momento histórico que a sociedade
brasileira estava vivenciando, marcado pelo enfraquecimento da ditadura civil-militar e
de lenta reabertura democrática.
A década de 1990 é o momento de espraiamento desse projeto profissional à
categoria das/os Assistentes Sociais, que se materializa em quatro dimensões, sendo
elas, segundo Lopes, Abreu e Cardoso (2016), a formação, a intervenção, a produção de
conhecimentos e a organização política da categoria profissional, que estão vinculadas
organicamente e o que comumente chamamos de Projeto Ético-Político Profissional. O
projeto Ético-Político profissional carrega consigo elementos que dizem respeito aos
instrumentais formais e legais que o comportam, como a Lei que Regulamenta a
Profissão (1993), O Código de Ética Profissional (1993), as Diretrizes Curriculares da
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS, 1996) e os
mecanismos de fiscalização do exercício profissional (resoluções, orientações e outros)
elaborados pelo Conjunto CFESS/CRESS.
Esse projeto profissional tem clara filiação teórico-metodológica com a matriz
de pensamento marxiana – e com a tradição marxista –, sendo responsável por plasmar
“[...] uma direção ético-política cujo produto intelectual – mais do que é uma intenção
– expõe, na altura do presente século, uma ruptura com as origens tradicionais da
profissão” (MOTA, 2016, p. 167). A Intenção de Ruptura marca a apropriação, pela
categoria profissional, da tradição de pensamento marxista, que se dá: no primeiro
momento da emersão, de forma ideopolítica, atendendo aos interesses conjunturais
daquela época, ocorrendo diversos equívocos, como o principal, a utilização de fontes
questionáveis dessa tradição de pensamento; já na fase da consolidação acadêmica da
direção de ruptura, a apropriação da tradição de pensamento marxista se dá
epistemologicamente, onde há busca das obras originais de Marx, possibilitando a
constituição de uma vanguarda acadêmico-profissional; no momento de espraiamento à
categoria profissional, na década de 1990, a apropriação se dá ontologicamente ao
método crítico-histórico-dialético (NETTO, 2011; SANTOS, 2007).
Assim, o Projeto Ético-Político Profissional expressa-se enquanto uma arma
política, teórica, legal e ética, construída pela categoria das/os Assistentes Sociais, na
luta contra o conservadorismo que sempre quis subordinar e colocar a profissão a

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serviço da reprodução do capital. Neste sentido, partimos da compreensão que o


apreende enquanto sendo um processo dinâmico e vivo. Possibilitando avanços
significativos à profissão, rompendo com a instrumentalidade que fora designada à
profissão, no momento da sua gênese. Permitindo a construção de um fazer profissional
que articula às dimensões da teoria e da prática, sustentados pela análise crítica da
sociedade e direcionado pelo compromisso ético-político ao projeto da classe
trabalhadora (MOTA, 2016: GUERRA, 2014; NETTO, 2009).
É a partir dessa construção coletiva que possibilita a apreensão da profissão
enquanto uma especialização do trabalho, sendo inscrita na divisão social e técnica do
trabalho social (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011). Emergindo, na realidade mundial,
na passagem da fase concorrencial para fase dos monopólios do capitalismo, a partir do
agravamento das expressões da “questão social” (NETTO, 2011). Na particularidade
brasileira, essa gênese está articulada a um movimento social mais amplo, de base
confessional, buscando a formação doutrinária do laicato, por meio da Reação Católica
à laicização da sociedade, naquilo que fora chamado de reformismo conservador, a partir
do processo de industrialização da sociedade brasileira, na passagem do modelo de
produção escravista para o capitalismo dependente (IAMAMOTO, 2013; CARVALHO;
IAMAMOTO, 2011).
Apreende-se, assim, que são as expressões da “questão social” a razão da
existência da profissão, concomitantemente, são as suas expressões o objeto de
intervenção profissional (IAMAMOTO, 2001; 2012). Para além, esse Projeto
Profissional externa, a partir das Diretrizes Curriculares (ABEPSS, 1996), que a
“questão social” é o eixo articulador dos conteúdos composicionais da nossa formação
e do nosso exercício profissional. Neste sentido, por meio da indissociabilidade dos 3
Núcleos que fundamentam as Diretrizes Curriculares da ABEPSS (Núcleo dos
Fundamentos Teórico-Metodológicos da vida social; Núcleo dos Fundamentos da
Particularidade da Formação social-histórica da sociedade brasileira; e Núcleo dos
Fundamentos do Trabalho Profissional), busca-se a construção de sólidas competências
profissionais que visem potencializar o desvelamento não apenas das formas, mas dos
conteúdos dos fenômenos sociais, objeto de trabalho das/os Assistentes Sociais.
A partir dessas reflexões iniciais, buscaremos, neste artigo, construir mediações
que nos possibilitem capturar características, universalizadas por meio do modo de
produção capitalista, são particularizadas em nosso país e se singularizam na região
Nordeste. Assim, no primeiro momento iremos traçar reflexões, buscando apreender a

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universalidade da “questão social”, para, no segundo momento, traçar reflexões em


torno do colonialismo, escravismo, genocídio, imperialismo e dependência como
marcos sólidos não apenas da nossa formação, mas como elementos que possibilitam
análises contemporâneas sobre o nosso país. Por fim, apresentaremos as nossas
considerações.

MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA: a “questão social” como o seu produto

(...)
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
(Canto das três raças)

Neste momento, iremos nos orientar teoricamente em torno da apreensão sobre


a “questão social” como sendo um produto direto da produção e da reprodução do
sistema capitalista. Para isto, iremos nos orientar sob dois ângulos analíticos,
imbricados, mas nem por isso são idênticos, sendo eles os planos histórico e conceitual.
Buscaremos analisar a gênese da “questão social”, a fim de delimitarmos teoricamente
os traços mais significativos do seu surgimento e do seu desenvolvimento. Para alcançar
o objetivo proposto, iremos nos sustentar nos aportes teóricos da teoria social de Marx.
Iamamoto (2001) e Netto (2001) já destacaram que a expressão “questão
social” é estranha à obra de Marx. No entanto, tal constatação não nos impossibilita
apreender a “questão social” sob a ótica de análise marxiana. Não obstante, a própria
Iamamoto (2012, p. 27), ao conceituar a “questão social”, parte dos elementos da crítica
da economia política, contidos no livro primeiro d’O Capital de Marx, definindo-a como
sendo “[...] o conjunto de expressões das desigualdades da sociedade capitalista
madura.” Sendo o capitalismo, portanto, fundamentado pela produção socializada,
quando o trabalho se torna cada vez mais coletivo, mas a apropriação do que é produzido
é privada, monopolizada por parte da sociedade. Neste sentido, a “questão social” deve
ser apreendida como condição inerente à sociedade do capital.
Todavia, a busca pela compreensão das determinações da “questão social”, a
partir dos pressupostos teóricos da tradição de pensamento marxiana, parte dos
elementos contidos na crítica da economia política, tendo como núcleo central

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conceitual fundamentado pela lei geral de acumulação capitalista. A partir dessa


sustentação teórica, Marx (2013) nos mostra o papel de destaque da população
trabalhadora excedente3, como sendo um elemento fundamental para o processo de
acumulação e de ampliação da riqueza. Desvelando, portanto, que a superpopulação
relativa é um mecanismo que alavanca a acumulação capitalista. A superpopulação
relativa, assim, constitui-se como um exército industrial de reserva disponível, que
pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria
conta (MARX, 2013). Em síntese, a lei geral de acumulação capitalista “[...] ocasiona
uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital”, expressando o
grau de exploração da força de trabalho, tendo como consequência a pobreza que atinge
a classe trabalhadora (MARX, 2013, p. 721).
A análise marxiana, assim, busca apreender as condições de desenvolvimento
que move a burguesia não a partir de um caráter unitário e simples, mas dúplice e
complexo, ou seja, “[...] que nas mesmas condições em que se produz riqueza, também
produz a miséria; que nas mesmas condições em que se processa o desenvolvimento das
forças produtivas, desenvolve-se também uma força repressiva; que essas condições só
geram a riqueza burguesa, isto é, a riqueza da classe burguesa, com a destruição
continuada de membros que integram essa classe e com a formação de um proletariado
cada vez maior.” (MARX, 2013, p. 749).
Historicamente, esses processos são intensificados, simultaneamente ao
desenvolvimento do modo de produção capitalista, caracterizado pelo surgimento e a
consolidação da grande indústria. Temos, segundo Santos (2012), o aprofundamento da
vigência e da capilaridade das leis do modo de produção capitalista, fazendo emergir,
no século XIX, o pauperismo. Segundo Netto (2001), temos, portanto, o marco histórico
do conjunto dos fenômenos que, incluindo o pauperismo, mas também se reproduzindo
para além dele, como sendo a gênese da “questão social.”
Ao delimitarmos, no plano histórico, a gênese da “questão social”, cabe o
esclarecimento a duas questões centrais. O primeiro diz respeito que não estamos
designando como “questão social” a desigualdade e a pobreza indistintamente, mas

3
A classe trabalhadora excedente, segundo a teoria marxiana, é a parte da população disponível para o
capitalismo, sem emprego regular, servindo como reserva de mão de obra para manter salários baixos e
permitir maior exploração. Sua existência reflete a dinâmica da acumulação capitalista, onde a expansão
da riqueza está relacionada à ampliação da pobreza e da exploração dos trabalhadores o que é, em síntese,
a lei geral da acumulação capitalista.

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estamos tratando daqueles fenômenos que têm a sua existência fundada pelo modo de
produção capitalista. Reconhecemos, assim como Netto (2001) fez, que a exploração
não é um traço distintivo do regime do capital, pelo contrário, essa precede largamente
a ordem burguesa, reproduzindo, em outros modelos sociais, desigualdades entre as
classes sociais historicamente existentes.
Nos modelos de produção anteriores ao capitalismo, a produção estava
determinada exclusivamente aos fatores naturais, sendo limitada pelo parco
desenvolvimento das forças produtivas (NETTO, 2001; SANTOS, 2012). Assim, a
desigualdade e a pobreza eram expressões concretas dos limites impostos à produção.
Com a Revolução Industrial, propiciada pelo capitalismo, houve a possibilidade de
desenvolvimento tão significativo das forças produtivas, permitindo a redução da
dependência aos fatores naturais que eram responsáveis pela produção da escassez, que
se materializava em pobreza e miséria, nos modelos de produção precedentes ao
capitalismo. Cabe destacar que, mesmo com essa revolução na produção, o capitalismo
vivenciou momentos de escassez. No entanto, esses fenômenos acabaram sendo cada
vez mais localizados, em comparação aos outros modelos de produção, como o
escravismo e o feudalismo.
O Segundo esclarecimento, em sintonia com a complexidade que devemos
apreender a “questão social”, diz respeito que além de socialmente produzida, a escassez
que gera o pauperismo não expressa sozinha a “questão social.” Outra característica de
suma importância para que possamos construir uma apreensão crítica, sobre os
elementos que fundamentam a “questão social”, está relacionada diretamente aos seus
desdobramentos sociopolíticos.
Segundo Netto (2001), a escassez que se reproduz nos marcos do capitalismo
resulta na forma como serão estabelecidas as relações sociais de produção e de
reprodução deste sistema social. Podendo, dessa forma, serem superadas caso haja a
superação desse modelo de produção, que é sustentado pelas formas de exploração do
trabalho que garantem a apropriação privada do que é socialmente produzido. Santos
(2012) afirma categoricamente que as lutas de classe são ineliminavelmente
constitutivas da “questão social”. Atingindo, portanto, o cerne do processo de produção.
Constituindo relações sociais contraditórias e antagônicas entre capitalistas e
trabalhadores.
Os elementos que apresentamos, nesta seção, como já afirmamos, se
debruçaram na historicidade e na conceituação crítica em torno da “questão social”.

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Buscamos, a partir da obra marxiana, bem como, na tradição de pensamento marxista,


especificamente, em obras clássicas e contemporâneas do Serviço Social brasileiro,
analisar os fundamentos sócio-históricos da “questão social”, sem concessões às
interpretações conservadoras, as quais buscam pessoalizar, individualizar e conceber
essas como sendo uma situação problema, como é o norte conceitual das teorias
francesas. Pelo contrário, buscamos decifrar “[...] a gênese das desigualdades sociais,
em um contexto em que a acumulação de capital não rima com equidade”
(IAMAMOTO, 2001, p. 59).
A partir do exposto, apresentamos os elementos históricos e conceituais que
representam a universalidade da “questão social”. Para Netto (2001), se a lei geral de
acumulação capitalista opera independentemente das fronteiras nacionais, os seus
resultados societários trazem a marca da História onde este se concretiza. Ou seja, os
elementos universais que apresentamos, se objetivam particularmente a partir de cada
formação social e histórica específica. Nesse sentido, iremos nos debruçar sobre as
particularidades da formação social brasileira, a fim de traçar relações entre os
fundamentos da “questão social”, do racismo e das disparidades regionais, na
constituição do capitalismo no Brasil.

A CONSTITUIÇÃO DO CAPITALISMO NA PARTICULARIDADE


BRASILEIRA: a relação entre os fundamentos da “questão social”, o racismo e as
disparidades regionais

(...)
Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar
(Gente Humilde)

Nesta seção, iremos apreender a constituição do capitalismo na particularidade


brasileira, buscando relacionar os fundamentos da “questão social”, do racismo e das
disparidades regionais como traços da formação social e histórica do nosso país. A fim
de alcançarmos o objetivo proposto, iremos nos orientar pela teoria da dependência,
assim, como, a lei geral de acumulação capitalista.

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Netto (1996), ao analisar as particularidades da “questão social” em nosso país,


parte de um determinante que é central: o caráter conservador da modernização operada
pelo capitalismo brasileiro. Segundo o autor, o desenvolvimento do capitalismo não se
operou contra o atraso, mas mediante a sua contínua reposição em patamares mais
complexos, mas funcionais e integrados à constituição do capitalismo no Brasil. A
modernização conservadora, assim, possibilitou a articulação entre o moderno e o
arcaico, recriando elementos que fazem parte da herança histórica colonial e
patrimonialista em nosso país.
Para Fernandes (1975), a revolução burguesa no Brasil, diferentemente das
experiências vívidas pelos países do “velho mundo”, é marcada por um caráter
antidemocrático, onde as grandes decisões são tomadas de “cima para baixo” e pela
reiterada exclusão das classes subalternas, historicamente destituídas de cidadania social
e política, constituindo uma contrarrevolução burguesa permanente (IANNI, 1984).
Neste sentindo, para Fernandes (1975), a transição do capitalismo competitivo ao
monopolista no Brasil se desenvolve por caminhos que vão de contramão ao modelo
universal da democracia burguesa. Assim, a revolução burguesa brasileira constrói uma
democracia restrita aos membros das classes dominantes que universalizam os seus
interesses de classe a toda nação, pela mediação do Estado e dos seus organismos
privados de hegemonia (IAMAMOTO, 2012). O Brasil, assim, transita da democracia
dos oligarcas à democracia do grande capital, com clara dissociação entre o
desenvolvimento capitalista e o regime político democrático.
O resultado é o aprofundamento e a manutenção dos laços de dependência às
nações imperialistas, sem a desagregação radical da herança colonial na conformação
da estrutura agrária brasileira. Dessa herança, destaca Iamamoto (2012), permanecem
tanto a subordinação da produção agrícola aos interesses exportadores, com foco na
produção de commodities primárias, quanto os componentes não capitalistas nas
relações de exploração e nas formas de propriedade, que são redimensionadas e
incorporadas à expansão capitalista.
Em síntese, na particularidade brasileira, a expansão monopolista desenvolve-
se sobre dois eixos: o da dominação imperialista e da desigualdade interna no
desenvolvimento da sociedade nacional. Aprofundando, portanto, as disparidades
econômicas, sociais e regionais, na medida em que favorece a concentração social,
regional, e racial de renda, prestígio e de poder. Engendrando uma forma típica de
dominação política, de cunho contrarrevolucionário, em que o Estado assume um papel

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decisivo não só na unificação dos interesses das frações e classes burguesas, como na
imposição e na irradiação de seus interesses, valores e ideologia para o conjunto da
sociedade. Temos um Estado “[...] que é capturado pelo bloco de poder burguês, por
meio da violência ou pela cooptação de interesses” (IAMAMOTO, 2012, p. 132).
Estrutura-se um Estado que evita qualquer ruptura radical com o passado,
buscando conservar traços essenciais das relações sociais coloniais e da dependência
ampliada ao capital internacional. Um Estado divorciado das classes subalternas
(IANNI, 1984). Uma democracia que é incompleta, blindada aos interesses do povo
(DEMIER, 2017).
Um dos traços essenciais das relações sociais coloniais que estruturam a nossa
formação social-histórica-econômica-cultural é marcada pelo aburguesamento dos
senhores de escravos, na passagem do modelo de produção escravista para o
capitalismo, como afirma Moura (1983). Com a universalização do trabalho livre,
aposta-se numa política de imigração de europeus, mas mantendo o lucrativo negócio
das empresas de tráfico de escravizados. Mesmo com o fim formal desse tipo de
comércio, em 1850, através de decreto inglês, ele não deixou de existir, tendo em vista
a sua alta lucratividade. Para Moura (1983), além de possibilitar uma reorganização para
as empresas vinculadas ao tráfico de escravizados, criou-se um potente exército
industrial de reserva com a população negra.
Neste sentido, o racismo não é um mero reflexo das estruturas arcaicas que
poderiam ser superadas com a modernização, pois a modernização é estruturada pelo
racismo (ALMEIDA, 2018). O racismo, assim, é um sistema de dominação-exploração
que tem base material na divisão social-racial-regional do trabalho. No capitalismo ele
é responsável por integrar a organização política e econômica da sociedade, sendo assim
estrutural. Segundo Almeira (2018) é uma forma de discriminação, de preconceito e um
processo em que as condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre
os grupos raciais se reproduzem nas esferas da materialidade e da imaterialidade.
Segundo Fernandes (2017), mesmo que o trabalho seja uma mercadoria,
havendo, assim, uma composição multirracial-sexual/gênero-regional, nem sempre os
trabalhos iguais são mercadorias iguais. Ou seja, à formação do capitalismo no Brasil,
foi fundamental tratar a força de trabalho como mercadorias desiguais, tendo em vista
que isso incide no valor da força de trabalho e no pagamento de salários, na formação
da classe trabalhadora em nosso país.

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Estamos argumentando, assim, que no processo de desenvolvimento do


capitalismo brasileiro houve a necessidade de articular estruturas arcaicas e modernas,
como sendo um requisito do capitalismo dependente (FERNANDES, 1975). Ou seja, a
noção que o desenvolvimento capitalista produz subdesenvolvimento, um
desenvolvimento desigual, mas combinado ao processo de constituição do capitalismo
em nossa realidade. Sendo, o racismo e as disparidades regionais, partes estruturantes
desse subdesenvolvimento.
A partir dessa ótica analítica, a particularidade do Nordeste pode ser apreendida
não como uma mera causalidade, mas cumprindo um papel central na divisão regional
do trabalho, com grande diferenciação salarial em relação à média nacional; menor
índice de industrialização em comparação a outras regiões, implicando em taxas
reduzidas de produtividade do trabalho e menos composição orgânica do capital; maior
peso da pauperização absoluta e, portanto, de condições de trabalho precárias; além da
grande marca da questão agrária que retrai ainda mais o mercado interno e revela com
mais clareza a relação dialética entre o moderno e o atraso no capitalismo como
desdobramento do desenvolvimento desigual e combinado no capitalismo dependente
do Brasil.
Assim sendo, o processo de incorporação de diferentes sujeitos, utilizando
raça/etnia/sexo/gênero/território, para determinar o exército industrial de reserva e os
diferentes padrões salariais, é um elemento estrutural do processo de acumulação do
capital no Brasil. Ou seja, a constituição da “questão social” em nosso país está
fundamenta pelas estruturas raciais e pelas disparidades regionais, assim como de
gênero/sexo. Nesse processo, compreendemos a relação do racismo e das disparidades
regionais com a “questão social” como mecanismos sócio-históricos que legitimam a
segregação da força de trabalho em nosso país, elemento presente na nossa formação
social-histórica-econômica-cultural brasileira.

CONSIDERAÇÕES
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
(O meu guri)

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Volume 23, N°03, Nov. 2023, ISSN 1984-3879

A nossa exposição buscou apresentar uma apreensão teórica em torno da


transição para o capitalismo no Brasil, considerando a indissociabilidade das relações
escravistas e das disparidades regionais. Para além destes dois fenômenos, é inegável
que o patriarcado também compõe a formação e a composição da classe trabalhadora no
país. Obviamente, fizemos um recorte que buscou apresentar o debate do racismo e da
particularidade do nordeste, mas destacamos que o patriarcado é uma determinação que
compõe, junto com o racismo e as disparidades regionais, elementos para
compreendermos não apenas a gênese da “questão social”, mas o seu movimento e as
suas contradições fundamentais.
Nosso esforço se deu em pensar as particularidades da formação capitalista no
Brasil a partir da teoria do valor em Marx. Compreendemos essas dimensões como
estruturais e estruturantes aos fundamentos da “questão social” em nosso país. Assim,
apresentamos mediações que buscaram traçar mediações das características,
universalizadas por meio do modo de produção capitalista, mas que se particularizam
em nosso país. Neste sentido, apresentamos alguns elementos que podem servir como
eixos analíticos, a fim de dar sustentação a análises extremamente atuais sobre a
“questão social” na atualidade. Assim, como, a incorporação dessas referências pela
formação profissional em Serviço Social.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento,


2018.

DEMIER, Felipe. Democracias Blindadas nos dois lados do Atlântico: formas de


dominação político-social e contrarreformas no tardo capitalismo (Portugal-Brasil). In:
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sociológica. Rio de Janeiro: Guanabara. 1975.

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Popular, 2017.

GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. 10ºed. São Paulo:


Cortez, 2014.

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IANNI, Otávio. A questão agrária e as formas de Estado. Petrópolis: Vozes,1984.

IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço


Social no Brasil: esbouço de uma interpretação histórico-metodológica. 35ª ed. São
Paulo: Cortez, 2011.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em Tempo de Capital Fetiche: capital


financeiro, trabalho e questão social. 7ºed. São Paulo: Cortez, 2012.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social:


ensaios críticos. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2013.

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social brasileiro em tempos de


mundialização do capital. In: IAMAMOTO, Marilda Villela; YAZBEK, Maria
Carmelita. Serviço Social na história: América Latina, África e Europa. 1ª ed. São
Paulo: Cortez, 2019.

IAMAMOTO, Marilda V. A questão social no capitalismo. Temporalis, Brasília (DF):


Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, ano 2, n. 3, 2001.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.

MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Angela Santana do. Serviço Social brasileiro:
cenários e perspectivas nos anos 2000. In: MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Angela
Santana do. Cenários, Contradições e Pelejas do Serviço Social Brasileiro. 1ª ed.
São Paulo: Cortez, 2016.

MOURA, Clóvis. Brasil: raízes do protesto Negro. São Paulo: Global, 1983.

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no
Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2011.

NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez,
2011.

NETTO, José Paulo. Cinco Notas a Propósito da “Questão Social”. Revista


Temporalis, Brasília (DF): Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social, ano 2, n. 3, 2001.

NETTO, José Paulo. Transformações Societárias e Serviço Social no Brasil: notas para
uma análise prospectiva da profissão no Brasil. In: Revista Serviço Social e
Sociedade. Nº50. São Paulo: Cortez, 1996, p. 87-129.

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Santos, Joseane S. “Questão Social”: particularidade no Brasil. São Paulo: Cortez,


2012.

Submetido em: 05 /02 /2024


Aceito em: 11/02/2024

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