O Imperio Dos Canaviais

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O IMPÉRIO DOS CANAVIAIS

- ROMANCE –

Joanny Bouchardet Júnior

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Contatos com o autor: Tel.: (32)3551-1239
e-mail :[email protected]

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Capítulo 1
O século XVI despontava no horizonte dos tempos, quando a coroa
portuguesa empreendeu uma ousada e secreta expedição marítima:
quatro embarcações com fartas provisões partiram rumo ao desconhecido.
Lisboa ocupava o centro de uma explosão de luz no que se referia às
artes e ciências náuticas; homens cujos destinos estavam ligados ao mar,
como marinheiros, estudiosos, aventureiros, buscavam seus estaleiros
que se proliferavam proficuamente. Era uma das cidades da Europa que
mais crescia e se desenvolvia. O frenesi das grandes descobertas se fazia
presente entre muitos países, e a cultura, as artes e o comércio se
expandiam. Velhos dogmas se dissolviam ante às novas fronteiras que se
abriam numa velocidade vertiginosa. Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril
de 1500, avistou novas terras à oeste daquele que se chamava Mar
Oceano. Vasco da Gama, impelido em forjar um novo caminho para as
Índias, fê-lo, contornando o temível Cabo da Boa Esperança, limite sul do
continente africano, onde grandes tormentas afastavam os navegadores.
Cristóvão Colombo, sob bandeira espanhola, já havia se deslumbrado
alcançando a América. Instalava-se a era das grandes navegações. Da
Itália, espalhando-se por toda a Europa, o Renascimento Cultural, de
cunho humanista, marcava seu advento. Para Leonardo da Vinci “a
natureza era a maior escola, e o homem, o modelo do mundo”. Em meio
às aceleradas transformações, Portugal, como um dos países precursores
a se beneficiar dos novos conhecimentos, se colocou também à frente da
reviravolta econômica que se sucedeu.
O prodígio da tecnologia das caravelas portuguesas, reforçadas e
ampliadas sob a inspiração de projetos ousados e inovadores, ficou por

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demais suscetível ao espírito aventureiro do rei de Portugal, Dom
Joaquim, que assim resolveu: quatro naus seriam construídas
especialmente para uma missão ultra-secreta. Partiriam das imediações
de Lisboa tendo somente uma rota conhecida até determinado ponto da
viagem, ou seja, até a costa atlântica da África. À partir deste ponto,
deveriam adentrar em águas desconhecidas e rumarem para o sul
indefinidamente até encontrarem terras novas. A tripulação da pequena
esquadra fora criteriosamente selecionada com o intuito de se minimizar
as possibilidades de possíveis arrependimentos, desistências ou motins
ocasionados pelo cansaço, revolta, doença, descrença. Os homens que se
submeteram com sucesso à seleção e ao recrutamento, passaram por um
treinamento árduo, orientados por profissionais tarimbados e confiáveis.
Para que pudessem se estabelecer em um lugar virgem e desconhecido,
receberam ensinamentos de diversas áreas do conhecimento. Cada qual
diante de suas mais flagrantes vocações: carpintaria, construção naval e
civil, artes plásticas e literárias, navegação, medicina, culinária... Tudo
seria passível de acontecer diante de condições absolutamente estranhas
e inescrutáveis. Deveriam buscar irremediavelmente terras desconhecidas
à civilização para aportarem; nem que jamais encontrassem, deveriam
continuar incessantemente à procura, por águas enigmáticas, misteriosas.
O rei de Portugal, cortejado por um pequeno e seleto grupo de estudiosos
de história, línguas e filosofia, deslumbrado pela perícia e técnica
apuradas dos antigos fenícios na arte e ciência da navegação, cresceu os
olhos diante das possíveis riquezas que poderia vislumbrar ainda mais,
deu imenso crédito aos indícios encontrados que apontavam para a
descoberta de terras muito distantes por esse “povo do mar”, além dos

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novos limites impostos pelos recentes descobrimentos. As quatro
caravelas, construídas especialmente para esta missão, foram colocadas
na “grande água” à noite e zarparam submetidas ao mais escrupuloso
sigilo, para que não despertassem a avidez e a cobiça dos piratas,
mercenários do mar, sobretudo porque estavam portando verdadeiros
tesouros como parte de suas provisões.
Depois de um longo percurso a observar somente o azul denso e
vertiginoso do mar se misturar ao do céu, calmo e reconfortante, a
pequena esquadra chega ilesa à costa da África, ponto aproximado de
onde começaria a grande aventura: deveriam então se afastar do
continente. Os ventos, as tempestades, certas correntes marítmas e as
vontades de ferro dos tripulantes, altamente motivados pelas promessas
de riqueza e prestígio, se incumbiram de levar as quatro naves em direção
ao ponto extremo do então futuro Continente Americano. Aí foram
surpreendidos por um maremoto que os abateu contundentemente. A
violência dos ventos e a fúria das ondas que se formavam
sucessivamente, surrando as indefesas embarcações, deram fim a duas
caravelas e às suas respectivas tripulações. Dois dias depois do fim da
tempestuosidade, os dois navios remanescentes, que quase se perderam
um do outro, encontraram destroços de um dos outros dois, que
naufragaram. Surpresos e desapontados, seguiram viagem maravilhados
pela abundância da vida marinha que lhes fazia companhia na figura de
golfinhos, leões marinhos, focas, baleias, etc. Com alimentos escassos e
mal conservados, alguns padeciam do mal das gengivas, provenientes de
seu inchaço, quando esta exala um odor insuportável e impossibilita o
doente de comer, ocasionando seu desfalecimento. Os navios estavam

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infestados de ratos, baratas e carunchos. Seus tonéis de água,
comprometidos com o acúmulo de algas e parasitas. Dois representantes
da Igreja a bordo consolavam e propagavam os ensinamentos cristãos
entre os tripulantes; eram incumbidos desta mesma missão entre os
bárbaros e infiéis da nova terra que possivelmente encontrariam. A pesca
se tornou farta à medida que se aproximavam de um pequeno arquipélago
e, em dado momento, o vigia que se posicionava no mastro de um dos
navios gritou à plenos pulmões: “ Terra à vista!”. Ao lançarem suas
âncoras a tripulação por fim pôde pisar em terra firme. Secos e ávidos por
água doce, não tiveram muito que procurar, pois havia uma fonte bem
perto da praia, por onde escorria, mansamente até as águas do mar. Uma
vez reabastecidos com o líquido vital e também com carnes de animais,
aves e peixes, puderam prosseguir reanimados em busca de terras mais
auspiciosas.

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Capítulo 2
Os marujos foram tomando um rumo que os levaram àquele que
seria chamado de Oceano Pacífico. Adentraram-se nas densas e
inesgotáveis águas deste oceano, deixando para trás as brancas e fartas
vias geladas por onde passaram temerosos à mercê dos icebergs. Porém
não perdiam de vista o continente; depois de tudo o que passaram e tendo
sobrevivido, estes heróis intrépidos, nessa aventura avassaladora, não
queriam ficar mais entregues às infinitas águas, que a cada dia pesavam
mais sob seus pés e balançavam suas cabeças já bastante debilitadas
pelos transtornos da longa viagem. Enfim, depois de mais um mês,
navegando na esperança de encontrar um lugar que fosse mais aprazível,
ancoraram num porto seguro e desceram em terra firme. Havia-se
passado oito meses. Esta praia fazia parte de uma grande ilha, que
compunha um imenso e surpreendente arquipélago, fato este que os
navegadores só descobririam tempos depois.
Maravilhados com a beleza virginal das praias, reconfortados por
estarem seguros, num lugar supostamente inabitado, puderam se
recompor. Fixaram-se num acampamento e estabeleceram um método de
trabalho intenso, motivados sobretudo pela premente necessidade de
sobrevivência. Foram localizados rapidamente por um pequeno grupo de
silvícolas, que os observavam à distância, secretamente. Demorou
aproximadamente três dias até que o local fosse sitiado pelos índios. Um
confronto armado se insinuou mas, dado o tamanho do contingente
autóctone que foi se aproximando ao redor dos portugueses, estes não
chegaram a se manifestar com hostilidade. O primeiro contato foi até certo
ponto amigável, oportunidade na qual ocorreram trocas de presentes e

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afabilidades. Os índios eram dóceis, alegres no trato. Suas cútis pardo-
avermelhadas, revestiam corpos saudáveis, rostos e narizes bem
formados. Andavam semi-nús, em harmonia com a grande floresta virgem.
Afáveis e festivos, gostavam de música e cobriam parcialmente seus
corpos com alegorias e adornos feitos de plumagens magníficas de aves e
com peles de animais. À medida que esses dois povos tão estranhos um
ao outro foram se interagindo e se conhecendo mutuamente, um surto de
gripe entre os portugueses fez com que uma verdadeira legião de índios
sucumbissem inexoravelmente, devido à falta de resistência ante o vírus
introduzido pelo homem branco. Em meio ao clima funesto da grande
mortandade de nativos, uma tempestade que se formou inadvertidamente
fez com que os navios, ancorados e em manutenção, fossem arrastados
pelas ondas em fúria e avariados quando se chocaram contra arrecifes de
corais, provocando seu afundamento. Passada a tormenta, muitos foram
arregimentados para o resgate do que pudesse sobrar do terrível
incidente. Canoas com hábeis e velozes remadores se aproximaram do
local e puderam constatar que havia pouco no que sobrara das duas naus;
os destroços encontrados foram arrastados para a praia. Houve então a
necessidade imperiosa de se construir uma outra embarcação para
regressar a Portugal com a notícia da nova terra recém descoberta. Um
esboço foi sendo construído, mas, como o mestre de projetos marítimos
havia falecido conjuntamente com seus iniciados, vítimas da tormenta em
águas profundas, antes de chegarem à essa auspiciosa terra, os anos
foram se sucedendo até que passados dez anos, os portugueses, com a
inestimável ajuda dos índios, pudessem colocar na água uma pequena
caravela à altura do desafio de regressar a Portugal. Algumas tentativas

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anteriores se frustraram por conta de erros nos projetos. Por fim, um barco
aparentemente seguro saiu em busca do velho mundo, sob veemente
aclamação do povo, que festejava e desejava boa sorte aos marinheiros
incautos e destemidos. Em alto mar, a nau sem rumo fatalmente se
perdeu ante à imensidão do Oceano Pacífico, mas depois de uma longa e
penosa travessia sob o látego impiedoso do sol causticante, pôde aportar
numa ilha próxima ao Extremo Oriente.
A maioria da tripulação enferma desfalecia gradualmente de
escorbuto e de complicações pulmonares. Seis meses foi o tempo
necessário para que, o restante dos bravos marujos pudessem se
restabelecer e suprir o navio de mantimentos e de diversos produtos. Tais
suprimentos que seriam de muita valia durante o transcurso oceânico até
a Europa. Alguns sucumbiram no percurso até chegarem à essa ilha e
outros morreram em terra firme. Havia também como que uma síndrome
do pânico rondando a tripulação, porque os homens acreditavam piamente
que nessas águas desconhecidas e longínquas habitavam monstros
terríveis e dragões, prestes a surgirem das profundezas e devorá-los a
qualquer momento. Em terra firme, puderam reconstituir-se. Os que
zarparam novamente, foram os que sobreviveram ao flagelo da doença e
do desespero, já em plenas condições de navegar. Mais fortalecidos e
com uma nova visão do mundo diante das descobertas de novas terras,
esses poucos sobreviventes, gozavam de um estado de alma bastante
amplo, o que os fazia se sentirem mais seguros, mesmo diante de uma
longa e imprevisível jornada que ainda haveriam de enfrentar pela frente.
Porém não estavam mais à mercê das infinitas águas desconhecidas: já
haviam se localizado geograficamente e esboçado traços para a

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constituição de novos mapas; possuíam uma bagagem ímpar que os
possibilitava fazer modificações no mapa-mundi. No transcorrer da
viagem, passaram por momentos graves, como quando aportaram numa
ilha perto da China, onde estava em curso uma insurreição popular contra
o governo local; num outro momento foram abordados por piratas e, não
fosse um golpe de pura sorte, poderiam ter sido abatidos impiedosamente
pelos carniceiros-mercenários do mar. Após terem galgado a costa oeste
da África, dobraram o estreito das tormentas e ganharam o Atlântico.
Baixas de todos os tipos ocorriam, quando foram resgatados por um navio
português nas imediações da Ilha da Madeira. Somente três homens
portugueses conseguiram completar a rota de retorno, dos sete que
partiram da costa do Pacífico; havia ainda com eles mais oito homens
orientais e dois índios, e desses, apenas quatro sobreviveram.
A partir de então, esquadras portuguesas aportavam às praias
paradisíacas do Pacífico Sul, até o momento desconhecidas para os
povos europeus. Estabeleceu-se um fluxo de transporte de riquezas da
terra nova para a terra velha e vice-versa. Um caso de amor entre a filha
de um poderoso cacique e o comandante da terceira esquadra portuguesa
a aportar nessas terras entrou para os anais da história como uma
passagem trágica do período do descobrimento. Eles haviam se
apaixonado e impetrado juras de amor eterno; porém, quando a esquadra
partiu repleta de madeiras nobres e outras riquezas como pedrarias e
metais preciosos, deixou-a à ver os navios se afastarem um a um,
lentamente do litoral. Foi quando a bela mulher impulsivamente se atirou
às águas volumosas na tentativa de alcançá-los, sem lograr êxito. Ao
perceber que nadara em vão em busca de seu amado fugidio, recuou,

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mas não conseguiu forças para chegar à praia e sucumbiu afogada. O
chefe da tribo, seu pai, furioso e extremamente indignado, ateou fogo às
três igrejas que foram construídas pelo povo invasor, crucificando os seis
padres jesuítas que haviam se estabelecido na nova terra com a missão
de catequizá-los, lançando-os também ao mar, martirizando-os pregados
em cruzes. Os outros portugueses que ficaram também foram
sacrificados: degolados...
Passado algum tempo, uma nova esquadra chegou à esse local;
um confronto sangrento se sucedeu; uma pequena vila foi fundada para
abrigar os novos moradores do lugar e expedições exploradoras foram
sendo enviadas ao interior. Incontáveis perigos e flagelos perseguiram os
exploradores itinerantes, como diversos tipos de enfermidades advindas
do contato estreito com o jângal, ataques de animais selvagens e
peçonhentos, e de povos indígenas... Sofrendo pesadas baixas, sob
condições adversas, entregues também às intempéries da natureza,
muitos homens morreram, e os poucos que iam restando dessas
expedições acabaram por se fixar em locais mais apropriados, como na
beira de rios ou perto de nascentes de água. Assim foram aos poucos
surgindo os primeiros núcleos humanos por entre as matas, e num
determinado lugar, nasceu um povoado de nome Jacaré; nome esse
advindo da quantidade assustadora destes répteis, que habitavam os
fartos pântanos existentes. Estes, imensos, sombrios e inescrutáveis,
formavam o habitat de incontáveis espécies dos reinos animal e vegetal,
na região.

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Capítulo 3
Fincaram pé com uma cruz de madeira jesuítica e uma pequena
igreja foi erguida, em cujo redor se formou o arraial. A atividade laboral de
subsistência inicialmente transcorreu em torno da plantação de mandioca,
uma planta comestível muito apreciada pelos índios e que passou a fazer
parte do cotidiano gastronômico do novo povo; a cultura do milho e de
certas ervas medicinais e aromáticas, provenientes do conhecimento do
povo originário da região, também se fez presente, dentre outras plantas
comestíveis nativas; a caça e a pesca eram fartas. Tratava-se de um lugar
onde um vale montanhoso se espraiava por grandes extensões de terra. E
pelos morros, abrigadas do terreno encharcado, árvores frondosas
imperavam pela paisagem de mata virgem. Esse reino natural, exuberante
e ameaçador, se mostrava em todo o seu esplendor irradiando vida em
cada porção de terra que formava densa floresta, do qual nenhum ser
estranho se atreveria a adentrar sem os respectivos aparatos de
exploração. Nele viviam os seres autóctones, nús, com seus sombreiros
de penas de aves, seus arcos e flechas, seus beiços furados portando
ossos brancos, seus cabelos lisos raspados até por cima das orelhas...
Em condições rudimentares, formavam seus clãs, aparentados entre si,
nos flancos dos morros, ao lado das abundantes nascentes de água.
Moravam em cabanas coletivas, umas perto das outras, construídas de
pau e folhas. Pequenas tribos se dividiam na ocupação da terra generosa,
vivendo em perfeita integração com a natureza, que os agraciava com
fartos recursos alimentícios e farmacológicos, nutrindo suas culturas.
Viviam em grupos de aproximadamente quarenta, em média, interagindo
com seu habitat, em harmonia.

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Com o advento da civilização, forjada por emissários destemidos
dos reis de Portugal, a morte lenta e inexorável desses seres humanos
primitivos, desencadeou paulatinamente a extinção da raça genuína. Isto
se deu em conseqüência do processo de aculturação à que foram
submetidos; às novas práticas de vida, estranhas e hostis ao velho e
tradicional jeito de se viver em comunidade, em equilíbrio com a natureza.
Enquanto etnia pura, este povo desapareceu da face da terra; porém, o
sangue da raça se disseminou no novo povo mestiço que se formava. As
novas linhagens que se sucederam foram carregadas inclusive de sangue
negro de escravos africanos, os quais chegavam em grande quantidade à
nova terra. Gerações de portugueses, índios e negros, fundaram as bases
para o estabelecimento de uma nova civilização, desbravando a rica
floresta tropical, que emergia do solo fértil há milhões de anos, em
transformações evolucionais pelas eras geológicas: surgiram os mulatos,
cafusos, mamelucos...

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Capítulo 4
Os anos se somaram até que veio à luz Gilberto S. Camarões, num
lugarejo denominado Arraial da Boa Esperança, anteriormente Jacaré,
pelos tempos idos de 1757. Na sua juventude, Gilberto presenciou a
invasão de parte do vasto território da colônia, pelos franceses, que à
partir de então, seriam os senhores dessas plagas. Houve guerra e os
portugueses desavisados foram emboscados em várias localidades.
Muitos morreram e os sobreviventes foram expulsos para as regiões das
ilhas mais longínquas do arquipélago, ou escaparam pelo mar em direção
ao continente. Gilberto, que se embrenhou na densa floresta juntamente
com outros, se entregou aos franceses por exaustão, advinda de uma
enfermidade que contraíra na fuga: de um ferimento na perna, houve uma
infecção, impossibilitando-lhe de continuar a fugir, e obrigando-lhe a
retornar. Assim que conseguiu chegar ao arraial, caiu desmaiado e foi
atendido por uma índia que o salvou da morte. Inicialmente preso, por bom
comportamento e também pelo fato de dominar relativamente o idioma
francês, foi posto em liberdade e começou a trabalhar na construção e
reconstrução de casas. Seu pai, morto durante a invasão, era
descendente de franceses. Gilberto casou-se aos vinte e cinco anos e foi
pai de seis filhos e de duas filhas. Os homens, como era de costume,
assinavam somente o sobrenome do pai, e as mulheres, somente o
sobrenome da mãe. Um dos filhos, Silvério, foi para a guerra contra uma
colônia portuguesa vizinha que se estabelecera nalgumas ilhas
desgarradas do arquipélago, mesmo tendo tentado custosamente se safar.
Contra sua vontade, foi amarrado e levado até embarcar. Nunca mais deu

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notícias à sua família, que ficou sem saber sobre seu paradeiro e se
estaria vivo ou morto.
Outro filho, Jorge S. Camarões, se estabeleceu como forte
negociante, comprando e vendendo mercadorias de tipos bastante
variados; suas negociações se estendiam até os E.U.A e a Europa. Este,
em 1850, aos cinqüenta e nove anos, participou da Revolução no estado
de Jardin, como importante membro do Movimento Revolucionário, que
sonhava com a independência política e econômica de Canela, nome este
dado à colônia pelos portugueses e mantido depois pelos franceses. Era
conhecido pelo seu espírito complacente para com seus escravos. Os
fazendeiros das redondezas costumavam lhe entregar seus escravos
indisciplinados, temperamentais e fujões, para que ele lhes aplicasse seu
corretivo quase que infalível, sua psicologia intuitiva, para transformá-los
em escravos passivos e dóceis. A família de Jorge S. Camarões possuía
escravos e escravas que continuaram lhe servindo depois da abolição da
escravatura em 1880. Sobre as escravas. As negras Mina, que
desempenhavam funções dentro de casa, mesmo antes de serem
libertadas já gozavam de certa autonomia, devido ao fato de não dormirem
acorrentadas. Eram dóceis, subservientes e dedicadas. Duas dessas
escravas, irmãs, tiveram filhas mulatas, uma cada, do mesmo homem, que
freqüentava a casa como amigo da família, e as possuía, ora a uma ora a
outra, altas horas da noite, no quintal da casa. As duas meninas foram
criadas por uma irmã de Jorge S. Camarões, que, estando viúva e sem
filhos, ao falecer lhes deixou de herança um bom terreno, onde
posteriormente seria erguida uma igreja. Este terreno, algum tempo depois
foi vendido, e Ana, uma das irmãs, ao receber o dinheiro da venda o

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depositou no Banco Parisiense, em sua filial em Boa Esperança. Pouco
tempo depois este banco sofreu um processo falimentar, deixando Ana
destituída de seu patrimônio em espécie. Não fosse uma casa modesta
que sua irmã Laura havia comprado, estaria em péssima situação. Ana
não se casou e vivia com Laura, e esta, por ter perdido seu marido num
acidente de trabalho, picado por uma terrível serpente, quando extraía da
mata plantas nativas para serem comercializadas, teve que forçosamente
trabalhar duro nas mesmas condições que seu falecido marido, ajudada
por Ana, para se sustentar e aos três filhos, então menores.

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Capítulo 5
Com o transcorrer do tempo, a pequena vila se mostrou um forte
reduto de catequizadores e traficantes de índios. Houve a formação de
colônias portuguesas, francesas, italianas, libanesas e holandesas
fundamentalmente; os negros eram comercializados como escravos e
chegavam de várias fontes da África. Estes serviam, em massa, aos
senhores das vastas extensões de terras que sofreram a ação do plantio
de café, que a partir de então seria a fonte primordial da economia de toda
a colônia. O rei de Portugal havia dividido o território do arquipélago, que
recebera o nome de Canela, em vastas propriedades denominadas
sesmarias. Estas glebas de porte de mil a mil e quinhentos alqueires,
legadas fundamentalmente a portugueses que se estabeleciam na nova
terra, formavam fazendas de café, cultura que se expandia tenazmente.
Depois da invasão do território e de sua conquista pelos franceses,
mudaram de mãos a maioria dessas grandes propriedades, mas a cultura
do café continuou sendo implementada.
Em 1850 nasceu Marta, filha do mais rico fazendeiro de café da
região. De olhos vivos, muito azuis e cabelo de um amarelo reluzente e
liso, cútis branca e traços finos. Uma princesinha abençoada pela
meiguice e pela rara beleza. Era no entanto retraída, grave e silenciosa.
Sua infância transcorreu de modo tranqüilo, até chegar o dia de seu
aniversário de quinze anos. Vestida toda de branco, usando um colar de
ouro cravejado de pedras preciosas que seu pai a havia presenteado,
estava mais linda e radiante do que nunca. Este, extremamente orgulhoso
e feliz, a viu em plena posse de suas faculdades mentais pela última vez,
quando ela estava descendo a escada que dava para a senzala. Sentado

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na cabeceira da grande mesa de jantar, com o almoço já servido e os
convidados ávidos para começar a degustar as finas iguarias, Sérgio, o
pai, tendo sua esposa impaciente como todos a seu lado, se levantou com
a intenção de buscar a aniversariante que havia se esquivado. Assim que
ele deixou a cadeira ao encalço da filha, eis que ela surge: repentinamente
transfigurada, com os cabelos eriçados e o semblante confuso e tenso.
Inesperadamente subiu em cima da mesa e começou a chutar os pratos e
as travessas de porcelana francesa, repletas com a comida mais fina e
elaborada da região. Enquanto todos ainda estavam estupefatos e imóveis
diante de tamanha surpresa, rasgou e tirou toda a sua própria roupa,
permanecendo completamente nua, quando foi abordada pelo pai com
uma toalha de mesa e levada para seu quarto, relutantemente, com a
ajuda de alguns criados da casa. Ficou, a partir de então, sem pronunciar
uma palavra sequer durante dez anos, voltando a falar somente por um
curto período. Sérgio, homem esnobe e pedante, hipocondríaco, não
colocava suas mãos nas porteiras de sua grande fazenda, com receio de
contrair alguma doença. Ele a levou para vários países da Europa e para
os E.U.A. sem obter sucesso nos tratamentos a que foi submetida. Por
fim, depois de dois longos, penosos e esperançosos anos, voltaram para
casa na fazenda e Marta ganhou uma pequena jaula para a abrigar
quando tivesse que se locomover, tal seu estado de agitação e violência.
Suas crises inesperadas de furor quase sempre provocavam danos onde
estivesse, daí a necessidade desse meio extremo de segurança que era o
pequeno aposento de grades que lhe foi imposto mais adequada e
forçosamente. Longos anos depois do surto inicial, Marta já com a idade
de oitenta e cinco anos, num dia quando haviam três de seus irmãos em

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seu quarto, num rasgo de consciência e lucidez, abriu
surpreendentemente os olhou e exclamou: “Por que é que eu estou velha?
Quem são vocês?...” Daí então adormeceu rapidamente e nunca mais
acordou.
Nessa mesma fazenda viviam Sebastião Daluc, que era neto de
escravos descendentes de africanos, e sua família. Trabalhavam nas
lavouras de café. Seu avô morrera queimado com cachaça num dia em
que ficou por demais embriagado e se furtou ao trabalho por incapacidade
física, havia também contraído uma séria enfermidade do fígado causada
pela ingestão sucessiva dessa bebida. O pai de Marta, enraivecido diante
de seus constantes acessos de indulgência e embevecimento pelo álcool
que conseguia clandestinamente, jogou-o no limbo, encharcou-o com o
mesmo líquido inflamável e ateou fogo em seu corpo diante de outros
escravos, que presenciaram a cena ignóbil, sob altos prantos e lamentos.
Depois da áurea lei que aboliu a escravatura em Canela, a avó de
Sebastião, como quase todos os outros ex-escravos, continuou a trabalhar
na fazenda onde havia nascido, em troca de insipientes refeições, até que
veio a falecer bastante velha e saudosa de sua família, que se
desintegrara diante de condições absolutamente degradantes. Via
diuturnamente seus descendentes e colaterais se desgastarem até à
morte à mercê das ordens sádicas de seus senhores prepotentes e
desdenhosos, covardes e desumanos. Não poucas vezes eram levados ao
pelourinho por motivos torpes, e submetidos ao canto esfuziante do látego,
pelos capatazes embrutecidos; e seus dorsos escarnados, lívidos de
sangue, algumas vezes os levavam à máxima transcendência: a morte
libertadora. Era uma existência plenamente austera, flagelada pela

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condição de animais a que eram submetidos. Algumas vezes certos
homens fomentavam revoltas e fugas que raramente se coroavam de
êxito. Quando não eram pegos e sacrificados à vista dos outros, a floresta
impenetrável tratava de dar cabo às suas vidas que valiam menos que a
dos bichos peçonhentos, mortos, quando encontrados, pelas solas dos
sapatos dos homens ditos civilizados.
As histórias de lobisomem, mulas-sem-cabeça, sacis, almas
penadas, deixavam os meninos amedrontados, desde o tempo dos
escravos. Esses seres inefáveis habitavam o imaginário de todos e havia
muito respeito pelos mortos, provenientes das condições sacrificais a que
eram compelidos, os escravos castigados até a morte. Os meninos
sentiam um misto de curiosidade e pânico em saber dessas histórias de
terror. Muitas vezes não dormiam nas noites que sucediam à morte de
algum escravo sacrificado, impiedosamente, pela animosidade do senhor.
Nas noites quando o chefe da família se ausentava da fazenda, sua
esposa permitia que houvessem os rituais africanos, como forma de
espantar o tédio e também de conhecer sua cultura primitiva. Os meninos
se exaltavam no embalo das danças e dos cantos místicos acompanhados
pelo ribombar dos tambores, nas noites escuras ou prateadas pela lua
altiva e implacável, reverenciada como deusa no mundo dos orixás. O tio
de Sebastião, nascido em liberdade, era casado com uma índia originária
dessa região; desse povo herdou a vocação pelo conhecimento e
manipulação de ervas medicinais, que extraía dos recônditos sombrios
das matas nativas. De posse dessa práxis altamente necessária, tratava
dos doentes da fazenda onde moravam; e capinava pasto e cuidava dos
bois. Sebastião, desde menino, trabalhava arduamente capinando os

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pastos onde as vacas leiteiras e os bois de corte garantiam uma
alimentação substanciosa para todos, empregados e patrões, não
obstante o fato de que aos empregados cabia as partes menos
privilegiadas dos bovinos, obviamente; como os restos de carnes que
sobravam dos desossamentos dos animais no abate. Porém, grande parte
da dieta dos subalternos consistia, no dizer de Sebastião: “... trabaiava a
semana inteira sem comer um grão de arroz, só comia foia de batata,
grelo de abóbra, flor de abóbra frita...” ...

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Capítulo 6
Em 1889, chegou ao vilarejo o representante do imperador francês,
seu sobrinho Dom Luiz Bertt, com sua corte, para a inauguração da
primeira usina de açúcar da região, sendo recebido pela sociedade local
com todas as honras, sob grande ovação popular. De iniciativa privada,
pertencia a um consórcio de empresas francesas. Para o ato oficial de
descerramento da fita inaugural, como também para o grande almoço que
foi servido a todos logo após, os habitantes das localidades vizinhas foram
convidados e compareceram em massa, lisonjeados pela presença de tão
ilustre visitante. Em solenidade pública, Dom Luiz Bertt mudou o nome do
vilarejo para Toulouse. Hospedou-se no dia seguinte num casarão à Rua
N. S. Lurdes, onde lhe foi oferecido um banquete com uma inigualável e
requintada gastronomia. Esta foi especialmente preparada pelo senhor
Carlos Santos Mourão, casado com Sílvia Camarões, filha de Astolfo
Danté e Vera S. Camarões, esta, neta de Jorge S. Camarões. Houve
festejos na cidade. A senhora Márcia Camarões, também filha do casal
Astolfo Danté e Vera Camarões, para muita honra e lisonja de seus
familiares, assim como para inveja e despeito de muitos, foi convidada
para ser dama de companhia da esposa de Dom Luiz. A sociedade de
Toulouse estava convidada e devidamente preparada para que pudesse
assistir ao jantar. As famílias ficaram de pé ao redor da mesa onde estava
sendo servido o ágape, como era de costume da época. Houve um sorteio
de uma pessoa para fazer representar os presentes à mesa, ao lado de
Dom Luiz. A contemplada, que contava quinze anos de idade, era Wilma
Bett, sobrinha de Vera Camarões. Esta a teria acolhido, por ocasião da
morte de sua mãe, Verônica, que havia falecido deixando sua filha Wilma

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com apenas seis meses de idade, susceptível de ser criada por sua tia
Vera S. Camarões e por seu marido Astolfo Danté. O pai de Wilma
falecera na mesma ocasião, assim como também seu único irmão, num
acidente de trem. Nesse ínterim, o jovem infante Silvino Danté, filho do
casal, dormia no canto da cama de seus pais, com aproximadamente três
anos de idade. Vera colocou-o para dormir entre seus pés e pernas e em
seu lugar posicionou a filha de Verônica, Wilma Bett. Esta foi sempre
tratada como se fosse filha do casal e, com o passar dos tempos, ajudava
em todos os serviços de casa, se destacando como excelente cozinheira.
O universo gastronômico, apesar de não ter sido rico e variado, dispunha
de um sabor inigualável. O arroz com feijão, o angú, a carne de porco e a
de frango caipira continham interessantes peculiaridades que davam à
comida um gosto que atendia e encantava aos mais exigentes paladares.
O arroz em casca era colocado em pilões que geralmente ficavam nas
imensas cozinhas das casas. Era socado primeiramente, ou pilado, para
que as cascas dos grãos se desprendessem dos mesmos. Depois de
limpo, era refogado na gordura de porco em uma panela de pedra, no
fogão à lenha. As carnes, preparadas em grandes quantidades, eram
conservadas meses a fio imersas em gordura de porco, também em
grandes panelas de pedra. O torresmo, muito apreciado! Os pratos mais
usuais dessa culinária serviam legumes cozidos, verduras refogadas na
gordura de porco, angú, farinha de milho e farinha de fubá torrado,
também chamada farinha de moinho, dentre outros.
O casal Astolfo Danté e Vera S. Camarões acolheram também
alguns anos depois, uma sobrinha de Danté em sua casa e a criaram
como se fosse filha legítima, assim como a Wilma, sobrinha de Vera.

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Marlene era seu nome, dez anos mais nova que Wilma. Marlene, depois
de ter se casado e de ter tido quatro filhos, ficou viúva. Se apaixonou por
um viajante que freqüentava a cidade e num belo e inesperado dia fugiu
com ele para um paradeiro desconhecido, e nunca mais se ouviu falar
dela. Silvino e Wilma, como os filhos de Marlene ainda estavam
impúberes, os resguardaram em suas companhias, representando para
estes os arrimos de família: Lauro, Ricardo, Hortência e Silvana.

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Capítulo 7
Durante a juventude de Silvino, ocorreu que certa noite, ele e um
amigo de voz privilegiada, que cantava frequentemente na igreja matriz de
Toulouse, andavam conversando pelas ruas da cidade. De repente, se
viram frente a frente com um cachorro bravo a lhes encarar, a rosnar e a
latir. Temerosos, imediatamente subiram numa árvore que se encontrava
bem por perto, cujos galhos maiores se precipitavam para dentro da
propriedade de um distinto comerciante de tecidos da cidade. Para se
livrarem do cão agressivo, que estava a lhes avançar nos calcanhares,
impetuosamente se lançaram para o outro lado do muro e caíram em cima
do telhado de um quiosque, no quintal da casa. O telhado ruiu e eles
caíram ao lado do dono da casa e de sua esposa, que estavam distraídos,
passando os olhos nos jornais. Correram assustados e pularam de volta o
muro para outra rua, atravessando correndo o quintal. O homem, calvo e
barrigudo, saiu correndo atrás dos dois jovens a lhes lançar imprecações e
ameaças Os aventureiros voláteis saíram dessa para outra. Porém foi um
escândalo na cidade e a sociedade toda foi envolvida. Durante uns dois
meses discutia-se no jornal quinzenal de Toulouse o ocorrido.
O primeiro jornal na cidade, fundado em 1890, portava o seu
nome: Jornal de Toulouse, nascido das mãos de franceses que se
estabeleceram por lá. E em 1912, intitulado A Cidade, surgiu o segundo
jornal, fruto direto do casamento de um jovem idealista e inquieto com uma
linda e rica senhorita, filha de um grande fazendeiro de café dessa região.
Nesse mesmo momento, Silvino se firmava como aprendiz de
representante comercial de importadoras de Besançon; viajava muito com
seu tio, que estava vinculado a esse negócio.

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A casa da família Danté\Camarões situava-se à Praça São Marcos,
no. 457. Tratava-se de um sobrado cor-de-rosa, de estilo barroco, de pau-
à-pique, rebocado e pintado, como todas as outras casas da época. Na
vizinhança, somente a casa de D. Mariquita, da família Bráz de Lemos,
continha em suas paredes internas, papel francês, mas o assoalho era
sempre de táboa corrida, muito usada. A tinta para a pintura externa e
interna era à base de cal, pois não havia nem tintas, nem pincéis
industrializados: estes eram feitos de feixes de sapé amarrados, deixando
suas pontas livres para pincelar as paredes. O mobiliário era basicamente
de madeira: as mesas de jantar, de táboa corrida; os guarda-louças, para
quem possuía boas condições financeiras, exibiam porcelanas importadas.
No primeiro andar da fachada cor-de-rosa, seis janelas de guilhotina, bem
baixas, quase na altura do passeio, e a porta de entrada depois da terceira
janela; no andar de cima, mais seis janelas idênticas e a porta que abria
para uma sacada, também depois da terceira janela; dava sua frente para
o pasto que posteriormente se transformaria na praça principal da cidade.
Quando se adentrava à casa, podia-se vislumbrar uma ampla sala com um
imenso lustre dourado dependurado no centro, e móveis pintados de
preto, de madeira nobre, pesados, dispostos pelo ambiente amplo e
confortável. Avistava-se no canto direito uma espaçosa e firme escada de
madeira, com o corrimão torneado e pintado com temas bucólicos; esta
dava acesso ao andar de cima, que continha, depois da sala da parte
anterior, um corredor que acessava quatro quartos, um banheiro e uma
outra sala com uma biblioteca. Os seis quartos do andar térreo se
estendiam ao longo de um outro corredor, três em cada lado deste, que
conduzia à cozinha. Esta, tão espaçosa quanto a sala grande de entrada,

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continha um fogão à lenha, uma mesa larga, um armário de mantimentos,
um pilão e pipotes de vinho de vários tamanhos, todos de madeira;
serviam para armazenar a água que vinha do poço do quintal. Depois que
a cidade passou a ter água encanada, uma pia. Os banheiros continham,
antes do advento da água encanada, duas bacias imensas de cobre, cada
um, e vários pipotes de vinho que armazenavam água para os banhos.
Tempos depois, a água quente do chuveiro era proporcionada pelo
sistema de serpentinas instalado no fogão à lenha de tijolos. Da cozinha
dava-se para o espaçoso quintal que se estendia até a linha do trem;
continha em seu terreno plano várias árvores frutíferas e um tanque
grande para lavar roupas. Havia lá também um poço com uma bomba
d’água manual. A água era depositada em recipientes, como latas e
garrafas de vidro, e levada para os pipotes na cozinha e nos banheiros,
para uso constante. Wilma era muito dedicada à família e não muito dada
a festejos e namoros, preferindo se esmerar nos afazeres domésticos.
Logo cedo, revelou incisiva vocação para o celibato e a vida religiosa.
Organizava sempre novenas e eventos para a igreja.

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Capítulo 8
Desde meados do século XIX, o café encontrou habitat ideal nas
terras do Arraial da Boa Esperança e se proliferou profícuamente, como
em toda a região. Foi construída uma ferrovia para escoar a produção que
aumentava, lenta e tenazmente, até o porto de Adelaide, de onde era
exportado. As fazendas absolutamente gigantescas, denominadas
sesmarias, agregavam números consideráveis de escravos em suas
senzalas. Esses autênticos palácios campesinos de pau-a-pique, eram
erguidos sob a mão-de-obra negra, aproveitando os recursos madeireiros
fartos, como braúnas, jacarandás, ipês, sucupiras, canelas...
Manoel de Sá possuía terras que subiam e desciam morros,
infindavelmente, repletas de café, que ele mesmo transportava em
comboios de carros-de-boi até a próspera cidade de Adelaide, onde era
vendido para ser embarcado para a Europa. Em Adelaide, Manoel, que
era um apaixonado pelos faustos embriagantes dos jogos de baralho,
sempre acompanhados de bebidas e mulheres, levava até às últimas
conseqüências suas farras homéricas: gastava todo o dinheiro que
arrecadava na venda de suas safras e, quando este findava, vendia os
escravos, os bois e os carros; voltava a cavalo para seu império
monocultural, acompanhado de, geralmente dois escravos que o
assistiam. Era um farrista inveterado, e sua mente, extenuada pela
combinação bebida, jogo e mulheres, o levava à patamares de prazer
luxurioso, inconfessáveis.
Os índios aos poucos sucumbiram, submetidos ao processo de
escravatura ao qual não se adaptaram: foram cruelmente subjugados,
subestimados e submundanizados. Com o falecimento de Manoel de Sá,

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seus dez filhos herdaram a sesmaria e a dividiram entre si; aliás, como
acontecia com todas as outras ricas famílias. Devido a este processo
hereditário sucessivo, as fazendas de café passaram a pertencer a mais
proprietários e consequentemente a diminuir de tamanho. A pecuária
bovina encontraria no Arraial da Boa Esperança um reduto no qual se
pode prosperar indefinidamente, à parte a grande onda do ciclo do café e,
posteriormente, do ciclo da cana-de-açúcar. O cavalo, como meio de
transporte individual, fez proliferar a arte do artesanato da selaria, que
encontrou em mãos hábeis e talentosas artífices memoráveis. Cavalos de
montaria, marchadores, de raças distintas, foram criados por alguns
apaixonados por estes animais, venerados como se fossem semi-deuses.
Alguns coronéis donos de grandes fazendas possuíam os melhores
exemplares das raças representadas no Arraial. Indistintamente eram
assistidos por meretrizes de alto escalão, muitas vezes exclusivas,
mantidas por estes donos da lei. Os meninos eram iniciados nessa arte
pelos catorze anos em média, quando não mais ostentavam o título, do
senso comum, de donzelo impúbere. Eram levados ao Beco da Sinhá,
pelos próprios pais ou parentes próximos, antro de prostituição, para
serem desvirginados. Uma das mais famosas divas da cidade, mulher
independente, que não se deixou encabrestar por nenhum coronel, fora
um dia bem casada. Dona Mariquinha, que deixou o marido chamada pela
forte vocação à qual não pode resistir. Recebia na sua maioria jovens para
iniciá-los na vida de homem. Seu marido mudou-se da cidade
envergonhado e indignado, depois de inúmeras ameaças de morte a ela
dirigidas, não consumadas: ele haveria desaparecido da região.

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Com o advento do século XX, a única praça central da cidade foi
demarcada e a luz elétrica chegou para o regozijo de seus cidadãos, por
influência do parlamentar, o português, sr. Ronaldo Souza e Silva,
fundador da Casa Souza e Silva, homem de invejável capacidade de
realização. Seu filho depois de sua morte seguiu seus passos e suas
idéias. Homem forte e empreendedor, o substituiu frente aos negócios. Foi
levado ao suicídio por fortes pressões políticas contrárias; ameaçado de
morte, assim como a sua família, quis poupá-la de maiores vicissitudes,
devido ao seu caráter intransigente e guerreiro. Sucumbiu ao lado negro
da luta pelo poder político. Se houvesse se contentado somente com seu
grande talento para o mundo dos negócios...

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Capítulo 9
Silvino era um bom filho e fazia de tudo pela mãe, mas, namorava
uma certa moça contra a vontade dela, havendo ficado noivo certo dia.
Tempos depois, sua mãe ficara doente e acamada. Ele, em seus cuidados
para com ela, encomendou de Besançon, capital do estado vizinho de
Luíza, uma lata de goiabada. Esperou o momento quando o quarto
estivesse repleto de visitas e ofereceu à todos a fina iguaria. E colocou
especialmente para sua mãe um pouco da goiabada num prato, dizendo:
“coma mamãe, eu encomendei para a senhora”. “Não, não quero”. Ele
então disse para ela pedir o que quisesse que ele atenderia, contanto que
comesse da goiabada. Quando então ela murmurou em sua cama: “...oh...
Silvino!” “Peça o que a senhora quiser que eu lhe dou”. Então, ela, com
firmeza e autoridade respondeu: “Quero o desmanche do seu noivado com
a Maiza!”. Ele saiu do quarto e voltou com uma barra grande de goiabada
e com um queijo dizendo: “Comam em homenagem ao desmanche do
meu noivado!”. No dia seguinte, entregou a aliança à noiva, e nunca mais
se casou.
Em sua maturidade possuía compleição não muito robusta; de tez
branca, era muito magro, de boa altura e boa aparência. Auto-didata de
primeira qualidade e grandeza, possuía vastos conhecimentos e certa
erudição. Escrevia para o “Jornal de Besanson”, que durante muitos anos
publicou suas matérias culturais, políticas, sociais. Deixou como legado
cultural alguns livros de poemas. Patriarca da família, era rigorosamente
obedecido e respeitado por todos; um capataz, no sentido de que tudo
girava em torno de sua pessoa; controlava todas as atividades de sua
família; era seu tutor. Andava-se nas pontas dos pés para não acordá-lo

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em sua casa à noite, e durante o dia, quando ele adentrava-se em seu
quarto. Usava muitas vezes botas de cano longo, e o barulho de seus
passos sobre o assoalho de madeira, reverberava por toda a extensão da
casa. Ficava horas sentado no alpendre, usando seu pince-nez, a apreciar
a vista da praça em vias de formação. Pessoas mais simples geralmente
conversavam com ele de cabeça e olhos baixos, sem cruzar os focos de
seus olhares impassíveis e magnéticos. De caráter firme e autoritário;
genioso, rigoroso e exigente, era difícil de marchar à seu lado. Orgulhoso
de sua família, para a qual sua estima se estendia ao primeiro plano.
Católico fervoroso, dedicava desde criança, sua devoção e seu culto à
São Marcos; era assíduo freqüentador das missas de domingo à tarde na
matriz que tinha o nome do santo. Se vestia com elegância e sobriedade;
de porte altivo e nobre, deixava por onde passava uma legião de
admiradoras secretas e declaradas, com quem, aliás, mantinha estreito
contato, mas nunca se comprometendo seriamente. Usava pince-nez de
vários estilos devido à problemas de vista, que foram se agravando em
sua velhice. Alguns homens usavam lorrignon para lerem na privacidade
de seus lares, porque eram vistos publicamente somente em mulheres.
Silvino deixou uma prole bastarda considerável em Toulouse e
circunvizinhança, apesar de ter falecido solteiro.
A cidade era bem pequena, com seu casario barroco, suas ruas
estreitas sem calçamento. Não havia água encanada. Eram utilizadas
bombas que tiravam a água dos poços (cisternas). Onde haveria de se
formar a Praça São Marcos, havia um pasto, habitat de bois e cavalos,
que perambulavam por aquele cenário todo o tempo, rodeados pelas
casas baixas e pelos sobrados.

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Francisco nasceu na primavera de 1916, na Fazenda Rio do Peixe,
imediações de Toulouse. Seu avô morava nesta fazenda da Usina Jackes
Ledoux e era um de seus vendedores de açúcar. A fazenda contudo,
exibia somente vastas plantações de café e possuía um engenho onde o
café era moído; depois vendido para as casas comerciais principalmente
para a Casa Souza e Silva. Os cafezais se espraiavam por toda a grande
região, subindo e descendo os morros e pelas férteis planícies; marcavam
a paisagem que amadurecia seus grãos; estes quando lançados ao ar
pelas peneiras de seus coletores, exibiam um bailado inexpugnável ao
som do barulho que proporcionavam ao caírem. E quando se
aproximavam os meses de floração, um cheiro adocicado se expandia nos
ares e deliciava a todos. O vento fresco irradiava o perfume pelos quatro
cantos. Era o período mais belo dessa cultura, mais contemplado e
louvado, quando as enflorescências brancas se mostravam em todo o seu
explendor em cada pé de café. O branco marcava seu reinado perfumoso
surpreendente e extraordinário.
Para atravessar a praça de Toulouse e ir em direção à rua Lebrié,
eram necessárias sete juntas de boi, em períodos de chuvas. A travessia
da linha do trem era sobretudo um grande desafio. Com os carros-de-boi
geralmente carregados de sacas de café, a força que todos despendiam
empurrando, colocava à prova a mais tenaz persistência. Pelas ruas
atolavam à tal ponto que seus eixos charfundavam na lama. Miguel era
candeeiro de boi quando menino. Certo dia, na Travessa Tolouse Lotrec, a
chuva caía intensamente quando passava à passos de tartaruga, o carro-
de-boi candiado por Miguel. Carregava trinta e cinco sacos de café em
coco, o café in natura, ainda com sua casca protetora que envolve o grão.

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A rua totalmente alagada, mostrava seu casario barroco ao fundo de uma
espessa chuva; os olhos estavam encharcados, o que viam, Miguel e seu
companheiro, era quase que pura água, como se estivessem submersos.
Seus chapéus não paravam em suas cabeças; a chuva e o vento
surravam seus corpos e suas faces expostas sofriam o peso dos pingos
que caíam velozes do céu. Desatordoados, todos, o candeeiro, o carreiro
e os bois, descontrolados num passo desconexo, caíram por fim num
buraco; a roda direita afundou e fez com que o carro tombasse e sua
carga escorresse para a lama. Os sacos esparramaram-se pelo chão
cheio de água, alguns sacos cederam em suas costuras e foram
arrombados; houve uma pequena avalanche de grãos de café, fazendo
pressão sobre certas costuras entreabertas: espalhou café por todo lado.
A luta que travaram depois, foi inglória.

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Capítulo 10
Rafael nasceu em 1918. Cresceu livre pelos cafezais e plantações
de fumo. Brincava com os outros filhos dos empregados da fazenda.
Jogavam pião nos quintais das casas, no meio das estradas; faziam
cavalo de cana de milho: com a haste do pé de milho; jogavam piorra, um
pião de carretel de linha; jogavam birosca... algumas vezes se
desentendiam pra valer e rolavam pelo chão empoeirado até seus corpos
ficarem completamente exaustos e cobertos de poeira. No transcorrer da
década de vinte, Rafael trabalhava nas plantações de fumo com seu pai; e
fazia rapadura: arte esta que desenvolveu e chegou a produzir com sua
própria e secreta receita de sucesso. Antes que sua notoriedade se
consumasse, foi aprendiz por um longo período, do qual extraiu e
desenvolveu sua receita infalível. Desde a infância angelical e frágil, nutria
forte interesse pelos animais, e durante o período que gravitou em torno
de sua puberdade, construiu lentamente e com suas próprias mãos um
sólido, arejado e espaçoso viveiro de pássaros. Povoou-o com
representantes de várias espécies como curiós, pintassilgos, canários da
terra, trinca-ferros, etc.. Foi um aficcionado por pássaros durante toda sua
vida e menos dado à caça ao tatú, à cotia, ao coelho, ao preá-do-brejo, à
rã, à paca, à anta... Nos invernos, apreciava as andorinhas que chegavam
em grandes bandos e fechavam o céu com seus bailados fantásticamente
inusitados. As tardes exibiam nas núvens intensos matizes de fortes
colorações, levadas à transcendência pelo brilho do sol quando se punha
no horizonte. Remanescente da cultura autóctone, o conhecimento e uso
de uma planta, matava de uma vez a fome e a sede: a “batata de índio”,
um capim que ostentava em sua raíz um bulbo que era raspado com

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canivete e comido crú. Seu uso foi largamente difundido entre as pessoas
de baixa renda. Rafael logo cedo conheceu o capim, adquirindo certa
autonomia na adolescência. Nas épocas de safra participava da colheita
de canas para abastecer a usina toulouseana.

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Capítulo 11
Patric Bourdon, natural de Besançon, França, de numerosa
irmandade, trabalhava para uma firma francesa em Lyon, como
engenheiro. Esta o mandou para Canela em 1890, à fim de cumprir um
contrato de prestação de serviços especializados, com a maior usina de
açúcar do sul do país. Seu desafio inicialmente foi projetar uma linha de
ferro que deveria percorrer considerável extensão de terra, no intuito de
transportar as canas das plantações para o núcleo transformador.
Concomitantemente à construção da ferrovia, deveria projetar um sistema
de irrigação de outras terras agricultáveis e depois implementá-lo; retiraria
a água do segundo maior rio que corta a vasta, já república soberana de
Canela, em prol do abastecimento de uma área semi-árida, viabilizando-a
para o cultivo de cereais e frutas. Mesmo sofrendo forte oposição de
certos políticos, chegou a concluir tal feito honorável, que contribuiu
decisivamente para o aumento da produção agrícola do país. Tendo
concluído sua missão, a firma francesa à qual prestava obediência
contratual, o presenteou pela notável realização: ganhou algum
reconhecimento extra em espécie e três meses de férias, já sabendo de
sua nova empreitada numa outra usina de açúcar no estado de Jardin, da
federação. Este era o tempo aproximado que se gastava para ir à cavalo
de onde estava até Toulouse, em Jardin, onde desempenharia seu novo
serviço. Teria também que trafegar um trecho de mar. Se fosse de navio
durante o maior trajeto, demoraria pouco, mas resolveu que iria
acompanhar um circo que para lá se dirigia, parando e se apresentando
em várias localidades. Para Patric, que estava com os bolsos cheios de
dinheiro e mantinha sua independência como um bem precioso, a viagem

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foi muito divertida e curiosa. O convívio com aquela gente incomum, hábil
nas artes e ofícios da diversão, o encantou até determinado ponto da
viagem, quando foi obrigado a deixá-los para prosseguir seu rumo. Desta
vez, passados oito anos que estava no sul de Canela, seria o dirigente da
usina Jackes Ledoux em Toulouse, recém inaugurada. Enfim Patric havia
se apaixonado. Foi por uma das duas trapezistas do circo e a levara
embora consigo. Eliza era seu nome; uma morena atraente, com um belo
corpo e uns olhos esverdeados profundos. Ao chegar, tomou posse do
cargo e sobrecarregado pela tamanha responsabilidade de administrar a
firma, demorou um ano para projetar a linha agrícola que deveria escoar a
maior parte da produção de canas dos canaviais para a indústria. A
construção demorou mais um ano de árduos e pesados serviços sob o sol
lenhando as costas dos homens que posicionavam os pesados trilhos em
seus devidos lugares. Depois da ferrovia inaugurada, um novo tempo se
revelou. Os ventos do progresso e da expansão comercial sopravam com
força, para Toulouse.
Aos trinta e dois anos, em 1902, Patric viu nascer seu primeiro
filho, Gustavo. Depois Alex, Renan, Jean Claude, respectivamente.
Moravam numa casa construída para os abrigar, dentro do pátio da usina,
que se divisava com as plantações de cana. Os meninos cresceram sob o
sol indelével dos canaviais, em cima dos montes de cana ou das pilhas de
sacos de açúcar, correndo pelos quintais e pelas sessões de trabalho
dentro da usina. À medida que iam crescendo, se ingressavam como
aprendizes na firma, sob os olhares severos do pai. Mais tarde aos
cinquenta anos de idade, Patric recebeu uma carta que transformou sua
vida inexpugnavelmente. Seus pais, já em idade avançada almejavam vê-

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lo antes de falecerem, assim como também seus irmãos que, com
exceção de Voltaire, estavam todos na França. Ao ler a carta, Patric se
transfigurou, e bateu fundo em seu peito uma saudade de todos e de sua
terra natal como nunca tinha sentido antes. Ficou completamente
transtornado até que ele e Eliza embarcaram para uma viagem sem volta
à França. Seus filhos, todos crescidos, ficaram em Canela. Dois netos que
ficaram órfãos de pai e mãe os acompanharam.

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Capítulo 12
Um trem à vapor transportava as canas das plantações até a
fábrica. Esta estrada de ferro que possuía vinte quilômetros, ligava a usina
à dez fazendas que se estendiam por um terreno cuja grande parte de sua
topografia plana viabilizava o processo. Todas as fazendas possuíam um
desvio de cem metros, aproximadamente, da linha de ferro. Eram os locais
onde se posicionavam os trilhos paralelos à linha principal, onde a
máquina à vapor ia deixando os vagões estacionados para serem
preenchidos. Os homens e mulheres cortavam as canas, uma por uma e
as limpavam com seus facões, retirando delas toda a palha. Depois iam
depositando-as em feixes horizontais alinhados na beira das estradas
vicinais, percorridas pelos carros-de-boi. Os feixes do chão eram
colocados nestes, que os levavam até os vagões do trem nos desvios. Às
vezes, acidental ou criminosamente, um dos canaviais explodia em
chamas, e havia a necessidade premente de que as canas queimadas
fossem retiradas em poucos dias. Imediatamente, todo o pessoal das
outras fazendas parava com o corte das canas e ia socorrer o canavial
avariado. Havia uma mobilização intensa para que fossem cortadas e
transportadas o máximo de canas queimadas possível, para se evitar
perdas acentuadas. A Usina Jackes Ledoux já se beneficiava lautamente
dos fartos recursos disponíveis de suas terras, mas contava também com
fornecedores particulares de canas que as transportavam para a indústria
nos carros-de-boi.
Os vagões de canas entravam para a usina por um desvio na linha
próprio para esse fim. O trem seguia viagem e quando retornava
carregado, resgatava os vagões deixados no desvio, já vazios, e os levava

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de volta para serem reabastecidos nos canaviais. A usina possuía quatro
máquinas de ferro, à vapor, alimentadas principalmente com a lenha de
angicos plantados especialmente para esse fim. Um trem puxava em
média quinze vagões de canas, contendo cada um seis toneladas. Vias
férreas vicinais foram erguidas para servir a linha principal.
A estrada de ferro se mostrou um meio de transporte bem eficiente,
mas, ainda insuficiente para transportar todo o montante de canas das
fazendas da usina. Então os carros-de-boi eram também utilizados.
Usava-se em média seis bois para puxar um carro repleto de canas,
contendo três bois em cada uma das duas fileiras, presos um ao outro,
dois à dois, paralelamente, por uma canga de madeira. A carga puxada
pelos bois, era conduzida por um homem que nessa função recebia o
nome de carreiro, e que caminhava ao lado do carro quando este
estivesse cheio; quando estivesse vazio, ele se colocava em cima da
mesa do carro-de-boi, portando uma guiada – um pau fino, de madeira,
contendo uma capa de ferro ou de metal na ponta, um ferrão pontiagudo,
com o qual ferroava os animais --. Sempre um menino andava à frente,
servindo de guia para os bois e lhes ritimando o andar. Conduzia uma vara
grande, bem maior que a de seu companheiro, apoiada num dos ombros.
O carreiro dava guiadas nos bois para que eles se comportassem e para
que andassem sincronizadamente. O guia, era denominado candeeiro e
jamais deixava o seu posto à frente dos animais, marcava-lhes o sentido.
Cada fazenda possuía seus carros-de-boi que serviam não só para
transportar as canas dos canaviais para a fábrica de açúcar, mas também
para transportar cargas da fazenda para a cidade, como sacos de milho,
arroz, feijão, para serem vendidos; e para outras finalidades menores.

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As fazendas da Usina Jacques Ledoux e somente mais algumas
outras de fornecedores particulares, eram as únicas terras da região onde
floresciam abundantemente os canaviais. Os cafezais imperavam pelas
planícies e morros, e os horizontes contendo ao fundo as serras, exibiam
incontáveis plantações. Somente com a baixa do café no mercado
externo, página assustadora da história, o que fez com que a economia de
vários países entrasse em colapso, é que as terras toulouseanas e
adjacências, ficaram à mercê da atividade produtiva açucareira que
gozava de posição estável no mercado. O trem à vapor, que passava por
Toulouse, provindo de longe, despontava do alto da Serra Bonita, apitando
e soltando fumaça, tansportando gêneros variados de cargas. Ao cortar os
vales férteis, ganhava vagões de canas das fazendas às margens da
estrada de ferro. Estes eram deixados num desvio ao lado da Usina
Jacques Ledoux, para que as máquinas à vapor da própria usina se
encarregassem de transportá-los para a esteira, de onde seguiriam pelo
processo de fabricação do açúcar. Na época das chuvas, os carros-de-boi
que também serviam à usina de canas, se tornavam quase que
impraticáveis, o que sobrecarregava o transporte ferroviário da própria
usina e o da Companhia Ferroviária.
Portando uma grande e fina vara com uma capa de metal numa
ponta, segura na outra extremidade por uma das mãos e colocada num
dos ombros, Euclides fazia com que as juntas de boi que puxava o carro o
seguisse por onde fosse. Era seu trabalho, que possibilitava uma
convivência íntima com esses dóceis e fortes animais, que atendiam por
seus próprios nomes. O carreiro gritava: “Marruero, hêá! Pintado, Estrela!!”
E ferroava os animais que precisavam do corretivo para que se

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acertassem devidamente. Os bois soltavam seus mugidos, balançavam
suas cabeças e chifravam o ar. Nos períodos de chuva, em certos locais
da cidade, como no pé de um morro na Av. São Luiz, os carros-de-boi
ficavam à mercê dos grandes atoleiros que os seguravam em fila.
Imperioso então se fazia buscar socorro, e posicionar duas boiadas para
retirar de cada buraco os carros repletos de canas ou de sacas de café.
O próximo passo de Euclides seria capinar nas fazendas de café;
depois ganhou as plantações de cana da usina Jacques Ledoux, cortando-
as em períodos de safra, e nos períodos de entre-safra, trabalhava na
manutenção dos canaviais, em capinas e outros serviços nos campos de
canas, nas pastagens, nos quintais... Percebia um ordenado de homem já
adulto, dado seus atributos físicos precoces: dois mil e quinhentos réis por
dia.

43
Capítulo 13
Alex, terceiro filho de Patric, já era gerente de produção na usina
Jacques Ledoux, até se desentender com outros dirigentes e deixar seu
trabalho peremptoriamente. Silvino, que ora também trabalhava lá,
simpatizando bastante com Alex Bourdon, enamorado de sua sobrinha
Rita, e, reconhecendo nele um invejável espírito empreendedor, fez uma
proposta a Alex no sentido de fundarem uma firma quase do mesmo ramo
de negócios da usina. Prontamente aceita por este, e de posse de todos
os dados, resolveram se lançar. No início, o empreendimento foi
consolidado numa refinaria de açúcar, cuja rasão social era
Danté\Bourdon e Cia. Seu Endereço telegráfico foi REFINARIA DE
AÇÚCAR. Comprava-se o açúcar cristal, da própria usina Jacques
Ledoux, e dispunha-o a passar pelo processo de refinamento, que se
consistia no segiunte: haviam fornalhas que comportavam tachos de
fervura, eram fogões à lenha feitos de tijolos. O açúcar cristal ia
diretamente para dentro de pesados tachos de cobre que ficavam sobre as
fornalhas; estes continham um pouco de água, que fazia do açúcar
derretido, uma calda, que era fervida e batida até tomar determinada
consistência. Durante a fervura, usava-se espumadeiras de cobre para
retirar a espuma que ficava por cima da calda, boiando, e que continha
impurezas do açúcar cristal. A um certo ponto, retirava-se o tacho com a
calda do fogo, e com uma pá de madeira, um homem ia batendo-a até que
ela ficasse bem grossa, se transformando no açúcar refinado. O processo
era desempenhado pelos trabalhadores que, no braço, iam girando suas
pás de madeira dentro do tacho, secando seu conteúdo. Engrossavam
seus próprios braços e peitos, que se apresentavam desenvolvidos e

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musculosos. Diz Pierre, sobrinho de Alex: “...era cada negão!... com uns
braço dessa grossura, oh!...” A refinaria funcionava num armazém de
tijolos, coberto com folhas de zinco. À medida que ela foi crescendo,
Silvino e Alex, num impulso de expansão do negócio, resolveram
transformá-la numa usina de açúcar: usina São Marcos.
A empresa foi se desenvolvendo no transcorrer da primeira metade
da década de vinte, e poucos anos depois do seu advento, chegou, numa
dessas reviravoltas da vida, a entrar em declínio, havendo possibilidade de
falência. Nesse ínterim, o então presidente da replública José Tamires
assinou a moratória, possibilitando às empresas que estivessem em sérias
dificuldades financeiras, se safarem das pesadas dívidas, diluindo-as em
prestações plausíveis. Com esse alento reconfortador, a usina sobreviveu
aos seus ávidos credores. E os tremendos esforços despendidos por
todos, conjuntamente, salvaram-na. Silvino ficou encarregado de vender o
açúcar fabricado, sendo que manteve uma retirada financeira, assim como
Alex, até sua morte. O tempo passou, ela se recuperou, Silvino continuou
vendendo açúcar, e Alex a administrar todo o patrimônio.

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Capítulo 14
Pouco depois da fundação da “Refinaria de Açúcar”, a cidade foi
assolada por uma fulminante epidemia de varíola, que deixou profundas
marcas em suas famílias, provocando perdas irreparáveis. A mortandade
foi grande ao ponto de se enterrarem as pessoas muitas vezes sem
caixão, porque não havia tempo suficiente para providenciá-los, uma vez
que os cadáveres se decomporiam. Utilizavam-se caixotes para enterrar
as crianças, caixas de sapato, etc.. Os cortejos fúnebres deslizavam pelas
ruas da cidade, disseminando um clima de desolação, ocasionando fortes
receios e temores à população. Todos se imaginavam engrossando a fila
dos sepultamentos, inadvetidamente, também presas indefesas da peste
fatídica. As sombras da morte espreitavam à todos, instalando uma “idade
das trevas”, inexpugnavelmente. Após seu reinado sinistro, ergueu-se de
seus recônditos ruidosos, uma flor, dos esquifes silenciosos: o casamento
de Alex e Rita. O início de uma saga.
Após o casamento Alex e Rita foram morar numa casa grande
construída ao lado da refinaria, que estava em vias de se transformar em
usina. De madeiras nobres e alvenaria, continha grandes janelas de
guilhotina. Ao lado da cozinha imensa, dois quartos, um onde dormia
Maria, a empregada, e no outro funcionava uma dispensa. Antes, uma
sala de jantar espaçosa com uma lareira. Em quartos distintos, dormiram
os três filhos do casal: Julio, Carmem e Wânia, à partir de determinada
idade. Julio também morava com Wilma, que era como se fosse sua outra
mãe. Nos outros quartos, ficavam hospedados temporariamente parentes,
viajantes e amigos: eram dois quartos de hóspedes, onde haviam algumas
camas, móveis antigos, cadeirinhas tipo austríacas, torneadas... Num

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outro cômodo ficava a biblioteca de Alex, conjuntamente com seu
escritório, onde mantinha o controle administrativo da firma. A casa ficava
suspensa do chão por dois metros, como meio de precaução acerca das
cheias do rio Ululu. Na varanda da frente, uma escada larga feita com
grossas peças de madeira nobre lhe dava acesso; dois corrimões grossos,
pintados com temas bucólicos a emolduravam até o meio da varanda;
esta, cercada por uma balaustrada também de madeira; uma trepadeira de
flores amarelas se estendia ao redor de toda a casa. Na parte de baixo,
onde os esteios e o assoalho ficavam à vista, haviam fogões à lenha, onde
Rita preparava suas quitandas para vender, obviamente fora das épocas
de cheias. Uma horta brotava de canteiros bem cuidados até o rio. Na
parte da frente, canteiros de flores com um viveiro de pássaros de várias
espécies, contendo três árvores de cimento armado em seu interior.
Pelos tempos idos de 1924, uma cerca de arame farpado e estacas
de braúna, marcava a divisa da usina com a rua Luiz Bertrandt, que fazia
uma curva de noventa graus e se transformava na Rua Virgílo de Souza,
que também se divisava com o terreno da usina até a altura da ponte que
ficava sobre o rio Ululu. Do lado da ponte funcionava o Matadouro
Municipal. Haviam duas casas de pau-a-pique no pátio da usina, onde
moravam dois empregados que se revesavam na tomada de conta de toda
a extensão da grande área que compunha o terreno. No quintal, onde Alex
residia, foi construído um canal utilizado para desaguar detritos industriais
no rio; servia também para conduzir água do rio puxada por uma bomba
para sua utilização nas caldeiras da recente usina e para outros fins. A
horta, permeava quase toda a extensão do canal; continha algumas
espécies de verduras como couve, repolho, taioba, alface, agrião; legumes

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como tomate, pimentão, cenoura; ramas de abóboras, de chuchus, de
buchas de cerca, de melancias, que trepavam pelas cercas que
circundavam a horta, formando uma paisagem exuberantemente verde,
um verdadeiro jardim comestível irresistível, principalmente para os
animais herbívoros que assediavam sempre que podiam esse manancial
de fertilidade.
Havia uma balança logo depois do portão de entrada da usina, na
Rua Luiz Bertrandt. Era o ponto final de uma rua por onde os carros-de-boi
chegavam e paravam em fila para serem pesados, no período de
consolidação da usina. O carreiro e o candeeiro do primeiro carro da fila,
desengatavam os quatro primeiros bois que seguiam na frente, passando
direto para o pátio da usina por sobre o piso de madeira da balança.
Ficavam somente os dois bois mais próximos ao carro para puxá-lo: eram
denominados “bois mestres”. Depois de pesados, os dois bois com o carro
se dirigiam para a direita do terreno, num pátio tangenciado pelas
construções que abrigavam a indústria. Paravam perto da esteira rolante e
os bois mestres eram separados do carro. Então estes eram empinados e
suas canas derramadas pelo chão. Logo em seguida o carro era
novamente pesado, desta vez vazio, somente com os dois bois, para se
tirar a tara e o talão. Eram pesados de três a quatro carros seguidamente,
que logo iam descarregar suas cargas perto da esteira, e depois, um a um,
voltava para ser repesado. Os quatro primeiros bois que saíam
imediatamente após um carro parar em cima da balança para ser pesado,
saíam do pátio da usina por outro portão. Ficavam aguardando na Rua
Luiz Bertandt seus carros descarregarem, formando filas. Alguns homens
pegavam as canas do chão, dos pequenos montes que se formavam, e as

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carregavam nos braços até a esteira que as levava para a moenda. A
usina ainda não possuía nenhuma propriedade rural, e contava com
fornecedores de canas locais. Muitos trabalhadores vinham desde a
fundação. Eram chamados curiosos porque aprenderam a lidar com as
máquinas empiricamente: vácuo, turbinas, tanques de melado, a caldeira
que fornecia o vapor para todo o maquinário, este, todo movido à lenha e
também utilizava-se o próprio bagaço das canas para a combustão.
Próximos à caldeira, os montes de bagaço se amontoavam. Haviam
trabalhadores que vigiavam os termômetros à noite inteira, medindo o
cozimento da garapa que era transformada em melaço. O caldo que saía
das turbinas e retornava aos tanques, denominado charopinho, um tipo de
melado mais ralo: muito apreciado! Se fez usual pessoas munidas de
garrafas de vidro ou recipientes de lata, irem pegá-lo mediante ordem do
gerente. O acesso até a moenda era quase livre para todos, que
chegavam e enchiam seus canecos com a garapa que jorrava das
engrenagens.
O trânsito dos carros-de-boi pela cidade transcorria com
tranquilidade numa marcha lenta, típica desse meio de transporte milenar.
Mas com frequência descer um morro se fazia necessário: havia um que
fazia parte do trajeto até a usina. Nesses momentos uma estratégia se
fazia premente: desatava-se os primeiros quatro dos seis bois que
puxavam o carro, e os levavam para a parte de trás para segurá-lo
enquanto este lentamente descia. Acorrentados ao carro, ficavam
“segurando marra”, para que ele não descesse morro à baixo
desenfreadamente. Quando chovia, alguns acidentes fatalmente
aconteciam, os morros ficavam extremamente escorregadios.

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Capítulo 15
Com o advento da Usina São Marcos, fruto da transição da
Refinaria para uma usina de fabricação de açúcar, uma chaminé para a
primeira caldeira foi erguida, em meados da década de vinte. Esta primeira
chaminé continha forma quadrangular, de tamanho e estilo diferentes
daquela que a sucedeu, e que rompeu o início do século XXI, possuindo
formato circular, de altura mais proeminente, e que fora erigida ao lado da
original. Esta, de base mais grossa, ia afunilando até chegar ao topo,
como a posterior, onde havia um para-ráios. Esse obelisco fantástico
possuía, na sua parte externa, degraus de ferro da base ao cume para que
fosse totalmente acessado. Toda quadriculada pelos pequenos tijolos de
sua estrutura, não possuía revestimento. Era rústica, sólida e
esplendorosa. Certa vez, Pedro, um jovem excepcional do bairro, filho de
família distinta, foi encontrado agarrado nos degraus dessa chaminé,
quando estavam procurando por ele, por ter fugido de casa. Retornaria
algumas outras vezes para este seu perigoso refúgio, mesmo estando
terminantemente proibida sua entrada, uma vez desacompanhado, no
pátio da usina. Foi demolida depois da construção da outra, do seu lado.
Aconteceu um incidente quase trágico quando esta primeira chaminé
estava sendo erigida: um homem que trabalhava na sua construção, certo
dia, escorregou das alturas e caiu, resvalando seu corpo pela parede
quadriculada de um de seus lados externos. Este homem não havia
falecido devido à queda vertiginosa, mas suas mãos, seus pés e certas
partes localizadas de seu corpo ficaram em carne viva!

50
Capítulo 16
Beneficiado, o melaço ia para tanques enormes, e lá ficava até
açucarar. Destes tanques, era conduzido por canaletas até duas turbinas
instaladas atrás das moendas. Nesse ambiente, o melaço era lavado e
secado a vapor. No interior da turbina havia um ralo por onde, através da
lavagem, o caldo do melaço saía, retendo a perte cristalizada. No final do
processo, a turbina era parada e o açúcar retirado e levado para um
armazém ao lado. Nos fundos da usina ficava a destilaria de álcool.
Da turbina, de onde o açúcar saía pronto, jorrando para dentro dos
sacos que os trabalhadores seguravam com firmeza, era levado até o
armazém, onde era derramado num chão cimentado, preparado para
recebê-lo, formando grandes montes. Desses belos montes brancos e
doces, o açúcar era novamente depositado dentro de sacos, que eram
pesados e então costurados manualmente com agulhas e barbantes. Num
outro processo, antes de ensacar o açúcar, os sacos eram colocados
deitados, e em cima deles, pressionava-se uma placa de metal furada com
os dizeres de rotulagem, através da qual eram pintados com tinta azul. Isto
por um certo período, até que eles passaram a ser enchidos e costurados
mecanicamente, quando também as canas já chegavam em caminhões
dos canaviais, que eram pesados, e com um guindaste, os grandes feixes
eram suspensos das carrocerias e depositados em pilhas debaixo de uma
estrutura coberta; aqui, o guindaste se movimentava e distribuía os
pacotes de cana empilhando-os no chão, para somente então esses feixes
gigantescos de cana, amarrados com cabos-de-aço, serem retirados pelo
guindaste noutro momento, para serem transportados até a esteira, que
partia debaixo dessa estrutura coberta por onde o guindaste se

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movimentava, para as moendas que se situavam retiradas desse grande
depósito de canas, debaixo de outra estrutura coberta, onde ficava todo o
maquinário da indústria. Isso, ainda mais à frente no tempo.
Voltando aos sacos de açúcar, estes eram, do mesmo modo que
os feixes de cana, empilhados. Retirados do armazém, eram levados para
a estação da estrada de ferro. Utilizaram-se as duas carroças de
propriedade da usina, sendo puxadas por dois burros de nome Estrela e
Bonito, no início do empreendimento, desde a refinaria de açúcar. Estes,
depois de aposentados, ficaram num pequeno pasto, no quintal da usina,
até morrerem. Um dos carroceiros, o sr. Jamil, trabalhou na empresa até
seu falecimento. Estas bestas de carga, de tão acostumadas com o trajeto
da usina até a estação de trem, algumas vezes, se deslocavam sozinhas,
tanto para irem à estação levar os sacos de açúcar, quanto para voltarem
à usina. Nesses casos, alguém já as esperava com suas doces cargas
para levarem-nas de Toulouse pelo trem-de-ferro. Algumas vezes, alguns
estivadores truculentos, levavam em seus próprios lombos os sacos de
sessenta quilos de açúcar, à pé, para a estação. Iam e voltavam à usina
algumas vezes para continuarem a levá-los até que a encomenda fosse
cumprida.

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Capítulo 17
Na frente da usina S. Marcos, havia um brejo, existindo somente
algumas casas que davam de frente para a Rua Luiz Bertrandt e para a
usina. Os fundos destas casas faziam limite com um pasto para bois. Num
dado momento, com o progresso da empresa, Alex comprou o terreno de
pasto e as casas, às quais derrubou e construiu outras no mesmo lugar,
no intuito de as alugar para seus próprios empregados. Ele sempre
almejou vê-los morando perto da usina, por motivos óbvios. “... me lembro
da Casa de Assistência funcionano numa casa velha, onde era um puteiro
antigamente. ...” Rita fundou esta casa para obras filantrópicas, em prol de
dar vazão à sua grande vocação para servir. Logo em frente, depois da
rua, ficava o terreno onde seria erguido um grande pavilhão que abrigaria
diversos departamentos da usina. “...quando eu era ainda bem menino, às
vez, chegava até na porta e via o movimento das mulher oferecida, elas
ficava debruçada nas janela chamano a gente...” Depois que a casa
começou a servir à causa de Rita, Honório passou por lá, novamente
chegou até a porta, e viu uns meninos tomando banho de bacia na sala.
Neste terreno, que seria depois o Bairro S. Marcos, ficavam vacas e bois
pastando por uma área que tomava toda a grota, até Alex plantar ipês e
angicos na parte íngreme do terreno.
Rita possuía traços finos e delicados, a tez branca e lisa, olhos
claros e vivos, grandes e dissimulados; de compleição abundante em sua
juventude e magra com o passar dos anos. Era alegre e comunicativa.
Vestia-se muito bem, deixando claramente demonstrada sua vaidade. Ela
e Alex levavam uma vida movimentada com muitas viagens,
principalmente para Besançon, e mais raramente para a Europa. Usava

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um elegante mas único chapéu para as viagens, e certa vez chegando a
Toulouse foi abordada por seu tio Silvino que lhe disse: “Minha querida,
você está se enquadrando na história das duas comadres, uma dizendo
pra outra: ‘Comadre, há quanto tempo não nos víamos, hein?...mas eu a
reconheci de longe pelo chapéu!’” Depois deste comentário irônico e
sarcástico de seu tio, comprou imediatamente um novo chapéu e passou a
exibí-lo com orgulho e altivez. Mulher bonita e vistosa, fazia muito sucesso
entre os homens. Certo dia Alex estava passeando no jardim da praça em
companhia de um senhor de S. Caetano, que teria vindo à cidade para
assessorá-lo em algum assunto referente à usina. Rita passou
dissimuladamente por eles, exalando seu perfume e sua sensualidade
naturais, despertando as atenções do homem que disse: “... acho que vou
me mudar para Toulouse ... aqui tem mulheres muito bonitas!...”. Dois dias
depois Alex o convidou para almoçar em sua casa, e aquele, ao ser
apresentado a Rita como sendo a esposa deste, ficou constrangido,
envergonhado, desajeitado, perdendo até o apetite... O comentário irônico
de Alex foi: “... foi melhor assim que ele comeu menos...”. Três flagrantes
vocações de Rita que eram levadas a sério: a culinária, o cultivo da terra e
o serviço social. Da terra extraía a matéria-prima para a confecção de
cardápios absolutamente fantásticos, invejáveis.
Havia uma cerca de bambú ao redor da casa com um portão, atrás
da usina. Um empregado efetivo trabalhava permanentemente na horta e
saía com uma cesta vendendo as hortaliças ou os outros produtos, as
quitandas, muito apetitosas! Vendia para terceiros, fora dos limites da
usina, e principalmente para os funcionários desta, sempre descontando
de seus salários: hortaliças, leite, goiabada cascão, broa de fubá, doce de

54
leite..., que ela mesma e suas ajudantes faziam. Usava latinhas de
manteiga e outras para fazer as formas das broas, dos doces... O doce de
leite era vendido num copo de vidro por oitocentos réis. Cristiano diz: “era
muito gostoso!”. O porão embaixo da casa, este o conheceu, quando já
tinham se passado quatro anos desde que começara a trabalhar na usina.
Era muito prudente. A janela da cozinha ficava em cima de um poço...
havia a bomba para puxar água do rio: de quatro polegadas que puxava a
água para refrigeração do vácuo, na usina... depois, passou-se para uma
de onze polegadas para uma produção de três vezes mais açúcar.

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Capítulo 18
François era de origem pobre. Sua infância foi marcada pelas
obrigações que sua família lhe impunha como forma de repartir o fardo de
seu provimento: “...Eu ia muito na usina S. Marcos panhar casca de pau
da madeira pra queimar, no fogão à lenha da minha mãe... ia na
carpintaria com um carrinho de mão, pegar serragem pra queimar no
fogão... lá em casa nós não tinha condição... aí ia lá na moenda e tomava
muita garapa!...” Armavam-se expedições de incursão aos matos já
consagrados pelo conhecimento popular como sendo os mais auspiciosos.
Numa viagem destas, de uns quatro quilômetros do bairro na periferia da
cidade, onde moravam, saía uma leva de umas trinta ou mais pessoas. Os
mais velhos vigiavam e orientavam os mais novos. “... O pessoal levantava
de madrugada e ia buscar lenha nos mato, andava bastante. A gente ia à
pé, aquela porção de gente... entrava descalço no meio do espinho...
Tinha os ponto de parada, as mina. A gente botava os feixe no chão e
cortava aquelas folha grande de inhame e pegava água. Não tinha água
encanada, era só numa rua.
Tinha um quilombo no Córgo Preto... tinha muito café, aquela gente
de lá, dos Mariano, quebraram tudo!... A gente carregava os galho dos
café pra queimar, das tosseira que eles rancava pra plantar cana; esses
galho era bom pra carregar, dava uns feixe muito bom: a gente ia
satisfeito, ninguém recramava... a gente tava habituado a fazer isso! Era
tudo descalço, eu fui pra escola descalço! Era ruim pra andar no meio do
capim-gordura porque ele era muito fechado e armazenava muita água! ...”
Dona Maria: “... Dona Rita era uma pessoa muito boa, simples. Ela
ajudava muito os pobre. ...Esse pessoal das usina andava em dificuldade

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quando saímo da roça e viemo morar em Toulouse. Sr. Alex e Dona Rita,
coitados... a Casa Souza e Silva até cortou o crédito deles! Os usineiro
morreram tudo pobre! Dizem que...
O jardim era tão bonito! Era cada árvore alta, lindas! O coreto
antigo... Cabava a missa às dez da manhã, os homens ficavam rodando
prum lado, as mulher pro outro... Era baile todo dia, só na segunda é que
não tinha. Começava as duas da tarde, era muito familiar. Era baile à
japonesa, à mexicana, o pessoal ia mais ou menos trajado... os baile de
Toulouse era muito chique! ...tinha muita ordem. Os baile dos preto era no
Cine... no último dia do carnaval eles entrava de mão dada nos clube dos
branco e rodava e saía...
Fazia doce pro ano inteiro, enchia muita lata! Tinha umas caixa
que enchia de goiabada, caixetinha... A vovó lá na fazenda fazia pro ano.
Minha tia não gostava que ninguém pegasse antes do almoço. Meu primo
ia abrino por baixo e pegava pra ele. Ela quando pegava a caixa e ia
cortano o doce pra por na mesa, ele falava: ‘Éh mamãe, nós tamo quase
encontrano!’
Em Toulouse teve uma época que faltava moeda. Eles davam vale
pra gente... padaria, farmácia... não tinha troco! Qualquer coisa cê voltava
com o vale e comprava qualquer coisa depois!...”
François: “... As moenda dos Bourdon tinha mais ou menos uns
sessenta centímetro, já à da usina Jacques Ledoux tinha um metro e
vinte... enquanto na usina dos Bourdon tinha uns vinte homem pra botar
as cana na estira, na Jacques Ledoux já tinha guindaste e ele jogava as
cana direto na moenda, ela proveitava até os bagaço das trêis moenda;
esse bagaço caía numa esteira que levava direto pra fornalha...”

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Capítulo 19
“...Não tinha água encanada nas casa. Ês fazia o buraco no chão e
pegava água na corda. Marrava o balde numa corda e jogava no fundo do
poço. Assim que ele enchia puxava pra cima. Era água pra lavar roupa e
pra cozinhar. Aqui na usina tinha um poço artesiano do sr. Alex e tinha
muita carroça-de-burro – de um burro – que colocava a água num tambor
e fazia frete. Ligava a bomba e enchia o tambor num cano de prástico. Aí
quando chegava no lugar de descarregar a água, o carroceiro puxava ela
com a boca, com uma mangueira que ele carregava...” Retirava-se água
deste poço na usina, durante o dia e a noite, sem que Alex cobrasse pelo
bem. Porém, através dessa atividade, algumas pessoas lucravam: os
carroceiros, que atendendo à necessidade de parte da população por
transporte dessa água às suas casas, cobravam pelo frete que realizavam.
Porém, ao iniciar a safra, Alex suspendia a retirada e ela passava a servir
exclusivamente à usina, que demandava bastante desse líquido precioso...
“...Na fazenda Rio do Peixe tinha lavoura de café. Pé de café mais
alto do que essa casa! Despois, marrava corrente nos pé de café e tirava
com quatro junta de boi...” Para a formação de uma muda de café, eram
necessários alguns grãos e um caixote pequeno com terra, sem fundo. As
madeiras preferidas para a feitura dos caixotes eram as mais macias, que
aceitavam serem pregadas com facilidade, retiradas das matas
abundantes da região. Para o plantio, fazia-se uma cova de um palmo ou
mais de fundura e depositava a muda. As chuvas eram intensas e fartas, e
muitas vezes carregavam as mudas que, nos caixotes, resistiam mais à
sua ação lixiviadora. “...e tinha muitas qualidade de café. Tinha café catú,
que dava uma árvore pequena, mas dava uma roda assim!... e tinha

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muitas qualidade de míi tamém, de pé grande, pequeno... o pequeno é
mió. O sole não mata ele. É forte. Ele dá espiga e caroço. O outro, só dá
caroço!... o pequeno tá granado. O grande sê puxa e tá tudo chupeta...
que não tem nada. O pequeno se fartar água não deixa de dar. ... ... o
feijão é prantado despois que colhe o míi, em janeiro, fevereiro: o feijão e
trêis água: uma pra prantar, outra pra dar flor, e outra pra cozinhar pra
comer!... há!...há! ... chovia bem... despois o tempo descontrolou...”
Toulouse contava com pouco mais de seis mil habitantes durante
a primeira metade da década de vinte. Os processos eleitorais se
resolviam nas suas urnas: os habitantes dos pequenos povoados vizinhos
iam à cidade para deixarem seus votos; assim como seus tributos. As
demandas judiciais para definir a jurisdição de áreas de terras vizinhas
ocorriam com certa frequência envolvendo Toulouse e suas cidades
fronteiriças. A água encanada abastecia somente o centro da cidade.
Descia da Serra Bonita dentro de um cano de ferro que seguia a direção
para Toulouse, sob a linha do trem. Quando este descarrilhava ou quando
houvesse algum outro problema de pouco menos proporções, acabava-se
a água. A cidade esperava dias, ou meses a fio para que o problema fosse
sanado e ela voltasse. “... Já candiei muito boi: eu puxava de carro-de-boi.
Tinha que passar dentro do rio pra ir pra usina, com os carro carregado de
cana. Despois que passava no rio, os boi não guentava subir um morro
pra ir pra usina. Os carro tombava. Quebrava os fueiro tudo! Tinha que
carregar as cana que caía no chão, no braço. Os boi saía pro meio do
canavial... quando chegava na esquina da venda... o carro tava pesado,
os boi-de-coice não guentava, ia no barranco. Os boi não guentava fazer a
curva, aí tinha que tirar os quatro boi da frente e deixar só os dois boi-de-

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coice. Rumava um calço e botava na roda, senão na hora que ia puchar,
ele ia pra frente... era só pro carro virar, parado. Era difícil porque na hora
de virar, os boi mexia, não ficava parado. O calço saía. E só tinha o
carreiro e o candieiro... aí tombava porque não tinha uma pessoa pra ficar
na frente dos boi, segurano... tombava e caía as cana tudo! Quebrava os
fueiro tudo...”. Nessa curva em particular, na chegada da usina, o espaço
era estreito e cabia somente um carro-de-boi por vez, devido aos dois
muros de terra que limitavam a estrada de chão escavada num morro. O
carro muitas vezes era parado no meio da curva ante à necessidade de
avaliar a passagem estreita. Nesse momento, quando sob chuva, os bois
patinavam no barro; algum sempre caía e quebrava seu canzil. Este ia
enforcando-o. “... antigamente vinha era dois homem tocano o carro, não
tinha menino não! ...ele caía, o canzil começava a apertar no gogó dele...
e pra tirar ele dalí?! Tinha que cortar a brocha de couro que ficava por
baixo do pescoço do boi... e dois homem pra pegar na ponta da canga,
pra levantar pra folgar pro boi... o canzil era feito de madeira dura, não
quebrava fácil! O outro boi que era pareado com ele ficava suspenso! O
outro lado baixava, o peso ficava só no pescoço dele... ele pavorava e
cabava caino tamém... uns até morria enforcado... a usina tinha muito
carro-de-boi... Eu fiquei muito tempo sem assinar carteira, recebendo por
fora, né?!...”
Os trabalhadores moravam em sua maioria em casas alugadas,
espalhadas pelos bairros da cidade. Os que moravam mais distantes
acordavam cedo para percorrerem a pé um longo trajeto até a usina.
Poucos tinham bicicleta. As noites de moagem entravam madrugada
adentro após madrugada e sobretudo os que assim trabalhavam sofriam a

60
penosa ação do frio. Alguns sempre faltavam ao serviço em virtude
também de certas vicissitudes tais como brigas de casais, bebedeiras, etc.
Quem faltava ao serviço era substituído pelo primeiro da fila de espera que
era formada todas as noites no portão principal do pátio. “...às vêis
machucava alguém tamém, aí o outro ficava mais tempo... às vêis o
sujeito entrava bêbado pra trabaiá, caía, quebrava o braço, a perna...
acontecia sempre! Usina é perigoso, e trabaia muita gente!... é arriscado!
Aí quando machucava levava pro hospital, era só lá que atendia. Chegava
lá não tinha médico e o sujeito ficava esperano até de manhã, o dr. Carlos
Magno. Tinha o dr. Silvério, da usina Jaques Ledoux. Ele ia num
automovelzinho que ia em cima da linha de trem... ou então ele ia à cavalo
atender na roça... tinha doutor que tinha medo de montar nos cavalo! Ês
pedia tudo enquanto é coisa na roça pra tratar dos doente do hospital:
abóbra, galinha... e os empregado do hospital botava as cangalha nos
burro e ia pedino o povo na roça...”

61
Capítulo 20
Alguns contavam a respeito de uma mulher que fazia milagres.
Morava no meio de uma mata, numa choupana de sapé. Lugar muito
visitado por gente de toda parte à procura de cura para os males que os
afligiam. Esta mulher, que diziam ser santa, ficava sempre escondida em
seus aposentos e somente aparecia para seu público para lhes imprimir
suas bênçãos e seus chás milagreiros. Ela, em certo momento, indicava o
mesmo chá para todos os que estivessem presentes à sua reza, e todos
ficavam bons com as misturas de ervas. A santa não sabia ler, mantinha
seus cabelos alvos descendo até os calcanhares. Ergueram em sua honra
e memória algumas capelas na cidade. Foi cultuada fervorosamente por
aqueles a quem ela havia auxiliado, assim como os da geração sucessora.
“... Benzedeira boa... ela divinhava! Morreu com cento e vinte ano! Fez
muito milagre. Vinha gente tamém assim, só pra ver o movimento... Teve
uma vez que um rapaz lá de Belo Campo, ele tava capinano, e com
pobrema.... a mãe dele chamou ele pra ir ver mãe Manoela e ele falou: ‘Ir
lá na mulher cabeluda, pra quê?’ Ela divinhou e falou com ele: ‘Vêi vê a
cabeluda?’ O terreiro dela ficava cheio de gente. Dois homem deixaram os
cavalo mais em baixo e foram lá: ‘Ôh mãe Manoela, sês ajuda nóis que
nóis vêi à pé de muito longe!...’ Aí ela falou: ‘Sês vêi à pé, sês vão vortar à
pé!’ Quando ês chegaram mais em baixo, os cavalo dês tava morto, ês
tiveram que levar os arreio nas costa! A gente nesse mundo não pode
abusar de nada, não. ...” O terreiro de sua morada era frequentado
diuturnamente por muitos que também acompanhavam os enfermos ou
aflitos à procura de suas rezas e ervas miraculosas. Gente de lugares
distantes, que diante das circunstâncias precisavam almoçar e jantar.

62
Como mãe Manoela ganhava presentes de todo tipo, sobretudo
mantimentos e víveres, até mesmo bois, o fogão à lenha no quintal supria
os famintos de todos os lugares alí presentes. Curaria incontáveis pessoas
ao longo de sua extensa existência, era seu destino, sua missão, à qual se
dedicava interinamente. “... Qualquer pobrema que a pessoa tinha, ela
fazia oração e punha a mão na pessoa, a pessoa ficava bão mesmo! A
lavoura tamém, né?! Às vêis chegava uma pessoa e falava com ela que a
prantação tava ruim, aí ela melhorava a prantação da pessoa. Tinha
aquele cabelão que ia até no pé! O cabelo dela não crescia mais não. Ela
tava de idade e parecia gente novo. Comia igual a gente mesmo, ela
gostava é de carne de galinha... Tem outra: O cara era mudo, sabe?! Foi
pra vê se meorava, né?! Aí chegou a hora dela atender ele e ela falou: ‘O
que sê vêi fazer aqui, meu filho?’ Aí ele falou: ‘Eu não falo!’ E falou e
continuou falano. ...”
Mãe Manoela cultivava uma vida simples. Atendia a todos até o sol
se pôr. Trabalhava também plantando milho, cana e certo dia apareceu
com um engenho onde passou a fazer rapadura. Seus produtos eram
prontamente vendidos, mas ela distribuía entre os necessitados todos os
seus parcos rendimentos. Amanheceu certo dia doente e em três dias
faleceu. Seu enterro foi um episódio ímpar! Nunca havia se visto assim
tanta gente aglomerada! Um corredor humano se estendia de seu sítio na
zona rural até o cemitério na zona urbana. Em torno de seu caixão uma
movimentação tal, parecendo um redemoinho, porque muitos queriam
carregar seu esquife; como se fosse uma abelha rainha sendo cortejada
pelas suas operárias todo o tempo. Morava sozinha numa casinha de sapé
com suas ervas, seus presentes, sempre muito cortejada. Havia iniciado

63
sua missão em lugar certo, o mesmo onde terminaria: no meio do terreiro,
fincou uma cruz de madeira... “... Quando uma pessoa benze, vem gente
contra, né?!, que quer trapaiá. Ela já foi presa por causa de querer benzer,
começou a parecer muita gente... Em pouco tempo ês tiraram ela de lá!
Foi muita gente pra delegacia fazer vigília do lado de fora...
De primeiro fizeram uma igrejinha de talba lá...”

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Capítulo 21
Flávio começou a estudar aos sete anos de idade, e foi forçado a
sair da escola aos oito, quando ingressou no mundo do trabalho rural, para
sustentar a mãe e duas irmãs, devido a morte precoce do pai.
“...É muito ruim não estudar, viu?!! É a coisa mais triste que tem
pra uma criança. Eu passei por isso e acho assim. Graças à Deus, eu
estudei todos os meus filhos. E tenho dois neto estudando em Bello
Campo e dois em Ouro Cinza. Meus dois avô era lavoureiro, empreiteiro,
ou contratista de café. O sujeito ia trabaiá em fazenda e fazia contrato de
formar lavoura de café de tantos pé. Eu já ajudei a prantar café. O
contratista pegava uma terra que o patrão arava e dava as muda...”
Segundo o que contavam os avós de Flávio, como não se faziam canteiros
de mudas, estas eram apanhadas pelas turmas de trabalho, dentro das
matas, onde nasciam, devido à ação disseminadora de pássaros e
morcegos. Estes comiam sementes de café nos cafezais, e as expeliam
em seus excrementos, nas matas, onde nasciam as mudas. Flávio, como
candeeiro de boi, buscava mudas nas matas do sr. Fhillipe Lainé e nas de
outros. Quando as mudas se tornavam escassas em determinada mata,
buscava-se noutra, e barganhavam-se-nas de acordo com a necessidade
dos fazendeiros da região.
“...Nóis formamo uma lavoura de cento e vinte litro de café... Eu
busquei muita muda pra prantar na fazenda do sr. Lainé... eu buscava
jornal e fazia mandado. Despois, fui embora pra Pedra Bonita. Eu
desentendi e borreci com o patrão. Rumei morada pra nóis e fomo trabaiá
em fazenda de míi, cana e fumo; tinha arroz tamém. Fui de uma vez com
minha mudança nas costa. O novo patrão era parecido com o sr. Lainé, sr.

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José Marcelino... Ês batia nos empregado... Eu fazia rapadura, cachaça.
Tinha catorze cachorro grande lá... As semente de café era prantada na
cova: 30cmX20cm: desce uns 25 a 30cm e bota meia duzia de caroço.
Prantava numa das parede da cova pra dar sombra pra ele. E prantava
uma cabecinha de taioba, que saía depressa e dava sombra pra muda de
café...”
Flávio se lembra de como se fazia rapadura: “...Era uma tacha
grande de cobre. Pega um carro-de-boi de cana moída. Ferve essa
garapa, espuma, retira a espuma todinha... todo o cuidado tá nossê retirar
toda a espuma... ela vai ferveno e cê vai espumano com uma
espumadeira de cobre grande. Ruminhol era uma concha que pegava a
massa dentro da tacha e colocava na forma. Aí, eu não guentava, tinha só
treze ano! O ruminhol pegava dentro da tacha a massa que dava três
rapadura de 1kg e duzentas grama. No lugar que tem porco pra engordar,
pega a espuma e leva pra eles beber. Eles adoram!! Rapadura queima a
gente muito, ela espirra da tacha! ...Tem segredo pra fazer certo o
fermento, o cristal do açúcar... são coisa... segredo... principalmente na
mecânica de moenda... não tem nos livro... dentro da montagem da
moenda, cê é que tira coisa da sua cabeça e coloca lá... ... Eu só deixei de
ser candieiro aos treze ano. Os menino começava com oito ano e ia até os
quinze, mais ou meno; aí ia pra turma, pra roça. Eu com treze ano de
idade ganhava ordenado de homem na roça, que era dois mil e quinhento
réis por dia. Em fazenda tudo era dois mil e quinhento réis por dia!...”
Os rios que banhavam a cidade eram altamente piscosos: bagre,
traíra, bocarra, cará, lambarí, mandi, etc. Quando uma enchente se
apresentava e as águas do Ululu e do Bonito se espraiavam em aluviões,

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os pescadores se fartavam de peixes! Um equipamento, tipo um coador de
um metro ou maior, era lançado à correnteza do rio ou mesmo num poço,
trazia à superfície duas dúzias de peixes... Certa vez o Ululu sofreu uma
cheia tão intensa, que suas águas se estenderam até a Esquina das
Vedetes, até quase a Praça, e passaram por dentro das casas que se
encontravam às suas margens e subiu até quase alcançar as lâmpadas
dos tetos... Algumas casas foram arrastadas pela fúria das águas
torrenciais... Pescava-se muito nos fundos da usina. Na altura da ponte, o
rio apresentava uma profundidade de seis a oito metros. Homens e
meninos se deliciavam nos banhos de imersão nas águas do Ululu, e, com
certa periodicidade, alguém morria afogado, desaparecia.
A usina de Alex era ainda pequena, com uma producão de cento e
vinte toneladas em vinte e quatro horas. No período de safra, moía-se as
canas durante tempo integral, ou seja, por vinte e quatro horas por dia. Às
vezes, um pequeno parafuso quebrado numa engrenagem fazia parar
todo o maquinário. “...Em 1925 quebrava muita coisa lá! Às vêis, quando
parava de moer por causa de algum defeito no maquinário, eu esfriava o
corpo e não gostava, ficava parado...”
Marcelo: “...Eu, quando entrei na usina ganhava trezentos réis por
hora. Antes, fazia de tudo e ficava sempre sem serviço...” O pagamento
aos trabalhadores na usina S. Marcos era efetuado semanalmente,
sempre pela mesma pessoa, que exercia outra função ordinariamente.
Havia revesamento semanal de turnos, e, na semana que se trabalhava
de dia, ganhava-se dezoito mil réis, e na semana que trabalhava-se à
noite, vinte e sete mil réis. No turno da noite costuma-se trabalhar mais
horas do que no turno do dia. Pagava-se por hora, aos torneiros

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mecânicos, dez mil réis, aos pedreiros, sete mil réis, aos eletricistas, de
seis a sete mil réis... Havia os encarregados do trabalho de cada sessão:
na sessão da esteira, uma turma durante o dia e outra durante a noite; na
sessão de caldeiraria, os “cabos-de- fogo”, nome dado àqueles que faziam
o fogo nas caldeiras, que eram em número de dois ou três... Flávio
começou colocando braçalmente canas na esteira, e com o tempo, além
de se tornar exímio artífice do reparo dos equipamentos pesados,
trabalhou em várias sessões, segundo as necessidades de cada momento
que iam surgindo. “...Não tinha horário certo de trabaio tamém. Qualquer
coisa que acontecia... pra concertar... eles ia me buscar em casa: pra
concertar um registro, uma válvula, e buscava o Ronaldo pra ajudar... A
minha sessão mesmo era de prantão...” Houve um tempo em que Flávio
estava trabalhando muito à noite, e dormindo durante o dia, mas, bastava
algo da parte mecânica começar a não funcionar bem, e isso acontecia
com certa frequência, mandavam-no buscar em sua casa de imediato.
Havia sido aprendiz do mecânico de máquinas, Ricardo, que fora embora.
Porém, seu lugar também seria ocupado por Ronaldo, pois iria se mudar.
“...Conforme o compromisso que eu tinha com o trabaio, pedia alguém pra
ficar olhano e ia até em casa pra armoçá rápido e vortá...” O trabalho de
colocação de canas na esteira, que era desempenhado por oito
trabalhadores, como não podia parar, quatro iam almoçar de nove às dez
e os outros quatro, das dez às onze horas. Remanejava-se ainda outros
trabalhadores de outras sessões, a fim de que mais dois fossem substituir
os quatro que estavam almoçando. O engenho moía todo o tempo durante
a safra toda, de maneira que não se parava de colocar canas na esteira.
“...Em 1925, quase todos os trabalhador fazia hora de armoço. Rumava

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um jeito... um substituino o outro, até que todos armoçava. Eu não tinha
hora porque não tinha quem ficava no meu lugar. Alguns levava o armoço
já de manhã, outros, deixava pros seus filho ou mulher levar a comida na
hora...” A comida usual consistia de arroz, feijão, farinha, alguma verdura.
Haviam aqueles que não podiam comer carne todos os dias, a maioria,
outros não comiam por questão de economia.

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Capítulo 22
José Fernando trabalhava somente na safra. No período de
conserva, batia pasto, era servente de pedreiro, dentre outras coisas,
fazendo de tudo para sobreviver. O destino lhe doara um corpo bem
formado e robusto. Durante a safra, já era conhecido e seu lugar
reservado como estivador no armazém. Ele e mais seis homens troncudos
carregavam, nas costas, os sacos de 60kg de açúcar, empilhando-os e
descarregando as pilhas, abastecendo as duas carroças-de-burro da
usina, e já dois pequenos caminhões que saíam para realizar vendas do
açúcar nas casas comerciais da cidade e em Lídice. Também enviavam o
açúcar para Lídice via estrada de ferro. Zé Fernando era quase sempre
deslocado para o trabalho de colocar canas na esteira, que os carros-de-
boi despejavam no chão. A usina moía pouca cana e seu equipamento
industrial sofria a ação de intermináveis remendos. Ricardo ainda era o
mecânico, montava os engenhos e era quem consertava o maquinário
quando este dava algum defeito. Muitas vezes, saía de sua casa correndo,
vestindo as calças, porque quando alguma peça quebrava e emperrava
todo o processo, parava-se tudo e a usina não podia ficar parada, sob
pena de desencadear prejuízos em diversos setores direta e indiretamente
envolvidos. Nas vésperas do período de safra em toda a região, um
senhor proprietário de uma usina de açúcar, pouco maior que a de Alex,
surge assustado à presença deste. Seu mecânico o havia abandonado
com muitas peças do engenho desmontadas no chão: haviam brigado e o
homem sumira. Alex, indulgente para com seu igual, emprestou Ricardo
para montar o engenho do homem numa cidade a cem quilômetros de
Toulouse. Ricardo voltaria algumas vezes para Alex, mas preferiu se juntar

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ao outro usineiro que, provavelmente o agraciou com melhores ganhos.
Flávio então assumiria o seu lugar.

71
Capítulo 23
Quando Vincent começou a trabalhar na usina em 1927, aos
dezesseis anos de idade, foi muito discriminado devido a sua idade
precoce, principalmente por seus colaterais, que o tratavam com
indiferença e desdém; não o queriam em suas frentes de trabalho, dentre
outras coisas, pelo fato de pensarem que teriam que se despender mais
nas tarefas para compensar a inexperiência e a carência de força física de
Vincent. Começou como tantos, em época de safra, colocando as canas
que provinham dos canaviais, na esteira. Na entre-safra, trabalhava como
auxiliar na indústria. Foi cedo na vida também, para o armazém,
transportar nas costas os sacos de 60kg de açúcar das pilhas até as
carroças-de-burro e os dois caminhõenzinhos. Precisava trabalhar, ficara
sozinho na vida, por isso se submetia ao trabalho pesado e diligente,
mesmo sem possuir uma constituição física que o proporcionasse reais
condições para que esse trabalho fosse desempenhado com desenvoltura
e sem muito risco. Sofria seriamente as consequências, mas, precisava
continuar. Era remanejado de posto de trabalho constantemente. Porém,
mostrava a todos a sua incrível vontade de trabalhar, sua garra e
determinação, que o fizeram mais tarde conseguir se efetivar no emprego
e ser respeitado e valorizado. O trabalho se tornou uma obsessão.
Alex era alto, de tez branca, cabelos curtos e lisos de cor preta.
Andava sempre muito limpo e bem arrumado, de barba sempre feita,
usava, quando saía, terno de linho, branco ou cinza. Em seu dia-a dia na
usina, trajava camisa de manga comprida; nem magro nem gordo, mas
grandalhão. Seu cabelo fino e liso não era abundante; não que fosse
careca, é que possuía pouco cabelo mesmo. Ele pegava o cabelo com o

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pente, na frente, e o deslizava até quase a nuca. Era muito enérgico, mas
tolerante. Julio, seu filho, seria também enérgico, mas pouco tolerante.
Não teria paciência com seu pai, e estouraria com ele por qualquer motivo.
Alex usava muito, no frio, uma blusa vermelha de lã com um casaco cinza
por cima e um boné vermelho, além do cachecol e numa certa noite na
usina, cobrou dos funcionários que usassem cahecol para se protegerem
melhor do frio intenso que fazia. Vincent passou a trabalhar somente
durante a noite, e como ele mesmo conta: “...Numa noite, eu tava deitado
em cima dum monte de cana, com febre, meio zonzo. Ele foi, e me pegou
pelo braço com outros dois companheiro e me levou pra casa dele na
usina. E ele me aplicou uma injeção e me fez esperar meia hora pra eu ir
pra casa. Aí eu fui pra casa e deixei um recado pra ele que tava tudo
bem...” Vincent tomava conta da turma de já dez homens que colocavam
canas na esteira. Todos gostavam muito do trabalho desempenhado por
ele. Se não houvesse alguém nessa função, os homens não trabalhariam
direito. A esteira partia da altura do chão, subia uns sete metros para que
as canas caíssem diretamente dentro da moenda, e possuía, ao longo de
seu corpo, uma coberta de zinco para impossibilitar que a água de chuva
caísse no maquinário. Alex era o que menos dormia. Passava em revista a
usina pela última vez à noite, às onze horas, ou à meia noite, ou à uma
hora. De madrugada, mandava alguém o chamar. Vivia integralmente
voltado para o universo do trabalho. Dia e noite, nos períodos de safra, lá
estava ele. Era um guerreiro, um lutador, e se não o fosse, não lograria
êxito quanto a resistir a uma onda de falências e concordatas que assolou
o país por volta do início dos anos trinta. Conseguiu reerguer sua usina às
custas de seu tenaz e empedernido instinto de sobrevivência e de um

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agudo pragmatismo. Nesses tempos de crise aguda, seu estado financeiro
era precário e incerto. Rita se empenhou em manufaturar camisas de saco
de açúcar alvejado que vendia para os próprios empregados e para outras
pessoas mais simples dos arredores. De sua horta e de seus fornos
também saíam subsídios. Não fosse toda a estrutura industrial e a paixão
de Alex pela usina, poderiam se aventurar pelo ramo da confecção de
roupas. As peças do vestuário feitas com os sacos alvejados foram bem
recebidas pelo público. Alex frequentava um bar de um seu amigo de
longa data na cidade, o sr. Joaquim dos Anjos. Quando se via tomado pela
fadiga e o estresse mental das obrigações, anuviava suas preocupações
em algumas doses de aguardente, na companhia de Joaquim, que o ouvia
empatica e pacientemente. Este o compreendia, porque já havia passado
pelo grande flagelo da falência de uma fábrica de bebidas, conjuntamente
com seu irmão. Havia então montado um bar para tentar se restabelecer.
Morreu repentinamente do coração e deixou duas famílias em conflito por
sua modesta herança.

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Capítulo 24
Em 1928, Alex adquiriu uma fazenda de cento e cinquenta
alqueires de terras de café. Fazenda Santa Júlia, com uma sede
imponente composta de um casarão de paredes grossas, de tijolos
dobrados; portas, assoalho, forro e janelas de jacarandá e o mobiliário
quase todo de peroba rosa. Fora construída um pouco suspensa do chão,
com aberturas para arejamento e utilização do porão, que funcionava
como uma dispensa e onde um adulto somente poderia adentrar de
joelhos e curvado. Era o local predileto dos bichos, tanto os peçonhentos
quanto as aves e os mamíferos; onde faziam seus ninhos. As crianças
sempre vasculhavam esse local sombrio às escondidas, sim, porque era
um lugar terminantemente proibido para elas. As braúnas dos esteios, dos
batentes das portas e janelas, das vigas de sustentação, impingiam um
forte estilo colonial. Os cômodos de seu interior, mal divididos, faziam juz
ao estilo da época em que havia sido construída. Uma cozinha imensa
com um tanque grande de pedra incrustado na parede do lado de fora,
prenunciava um quintal cimentado para a secagem e beneficiamento do
café. Um pomar de frutas variadas adentrava uma grota e subia até o alto
de um morro, contendo, dentre outras espécies, exemplares de
mangueiras grossas, altas e velhas, cujas mangas doces, com seu sabor
peculiar, serviam sobretudo para as mulheres transformarem-nas em
doces de barras, ou pastosos, deliciosos! Depois do pomar, uma área de
mata nativa secundária, que abarcava o ponto alto do morro que formava
a grota. No pé da grota, uma mina d´água escorria passando ao lado da
casa. No quintal as criações andavam soltas pastando, como galinhas,
patos, cabritos, porcos, e os carnívoros, de estimação: os cachorros que

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vigiavam e caçavam, os gatos manhosos e carinhosos e, às vezes,
aparecia um filhote de algum bicho do mato que uma criança transformava
em animal de estimação, como coelho, alguma espécie de pássaro, etc..
O ônus da retirada do cafezal da fazenda ficou por conta de Alex
que o empreendeu. Os velhos e arraigados pés de café formavam
verdadeiras tosseiras. Correntes eram amarradas a duas ou quatro juntas
de boi que puxavam um a um os pés, extirpando-os. Meses a fio esse
trabalho fora feito até que a fazenda fosse novamente inaugurada para um
novo ciclo monocultural. Quando o terreno estava limpo da última tosseira
de café, iniciou-se o plantio da cana e do advento dessa cultura. Os
lavradores acordavam de madrugada e faziam suas comidas entre 4 e
5hs. da manhã. Colocavam-na num caldeirãozinho de alumínio e partiam
para a lida. Alguns moravam na própria fazenda e outros iam até lá a
cavalo, a pé... Trabalhavam de seis da manhã às cinco da tarde, com
tempo de 54 minutos para almoçarem e mais 45 minutos para o café às 2
da tarde. O bombeiro, aquele homem ou mulher que nutria de água os
trabalhadores no canavial, durante o tempo de almoço, era designado
para esquentar as comidas de cada um numa fogueira improvisada que
tinha o nome popular de caieira. Os bombeiros carregavam em suas
cabeças os tarrotes de madeira feitos na usina, com água que pegavam
das nascentes. Colocavam um pano na cabeça para amortecer o peso do
tonel e subiam e desciam os morros dos canaviais servindo a todos. Cada
trabalhador tinha sua caneca, e o bombeiro passava por todos
abastecendo-os do líquido vital debaixo das irradiações violentas do sol.
Quando chegava aos sedentos, descia o tarrote da cabeça e colocava-o
no chão. Então, de posse de um canecão, ia retirando a água e servindo a

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todos. Cada um deixava de lado sua enxada, estendia sua caneca de
alumínio, extasiado e seco, suando desprotegido do forte calor, contando
somente com o chapéu de palha inseparável, que também esquentava
como tudo o que tivesse exposto à chibata escaldante do sol. Toda
segunda-feira os bombeiros penavam ante a demanda por água que
aumentava significativamente. Aos domingos, todos bebiam cachaça para
relaxarem e se descontraírem, mas às segundas a ressaca batia forte no
peito e na cabeça e a sede os consumia: a água se tornava o remédio
mais urgente que havia para saciá-la. Os bombeiros eram evocados,
cantados, xingados... até chegarem, então eram enaltecidos, louvados.
Aquele que ficava velho ou doente, ficava por conta de sua família.
Desassistidos e desconsolados, muitos sem família desfaleciam à mingua,
perambulando até cair fragilizados e indefesos. Pelas calçadas das casas
da cidade via-se um desfilar constante de tipos bem característicos, de
uma pobreza crônica, que andavam ao lado daqueles bem estabelecidos e
agraciados pela sorte com condições econômicas bem mais favoráveis.
Os lavradores da fazenda de Alex eram assistidos por este e por Rita, que
sempre os presenteavam com roupas e certos mantimentos. Quando de
seus deslocamentos de sua casa na usina para a fazenda, esta trazia de
volta víveres, produtos da horta que cultivava lá, esterco, lenhas já
cortadas adequadamente para serem usadas em suas fornalhas ou para
serem vendidas. Estes produtos eram consumidos pelos moradores da
fazenda S. Júlia também.

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Capítulo 25
Sebastião, com vinte anos, capinava e batia pasto nesta
propriedade. Cortava o capim para que fosse fardado por uma máquina
prensadora. Os fardos eram de 30kg, armazenados para alimentar os bois
que puxavam os carros, nas épocas de estiagem, que coincidiam com a
safra da cana; eram misturados com melaço e sal. As mulheres cantavam
enquanto cortavam o capim que rolava morro abaixo... “... eu morava no
Rancho Azul e ia andano pro serviço. Tinha que tá lá às seis hora da
manhã. Se chegasse alguns minuto trasado, tinha que esperar até dar
sete hora. Eu nunca perdi hora! ... Sr. Tito ia pagar a gente na roça. Saía
da usina de cavalo com o embornalão na carcunda, e nunca ninguém
saltou ele! No camim, tinha mato dos dois lado, aqueles boqueirão,
aqueles morro...” As roças de milho garantiam o fubá produzido num
moinho de pedra, tocado por um forte fluxo de água desviada do ribeirão
que cortava a propriedade. O fubá que saía das pedras que trituravam os
grãos de milho, servia de nutrientes para os homens e os animais, para as
criações de porcos, patos e galinhas que habitavam os quintais. Sebastião
cuidava da saúde de todos na roça e depois, quando foi trabalhar na
usina. “... a turma que chegava na segunda-feira de ressaca... eu botava
cordão-de-frade, são caetano, boldo, macaé e limão-rosa. Socava tudo e
passava num coador; ficava até espumano! Todo mundo bebia aquele
trem!... onde é que eu vou eu levo uma mudinha de pacová comigo... eu
prantei agora uma e cê precisa vê, tá uma beleza!... todo sábado eu vou
pro mato pegar erva. Eu trato tudo o quanto há com pranta! Remédio de
farmácia não presta não! É tanchage, cipó de são joão... tá tudo aí
memo!... Um dia um home tava muito doente, de cama! Eles falava que

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ele ia morrer. Eu dei pra ele umas erva e mandei ele ficar enrolado num
cobertor. Ele ficou tão queto que ês achava que ele tinha morrido. No dia
seguinte ele levantou da cama!...”
Sebastião era grave, retraído, observador. Numa noite de festejos
de São João, quando o sanfoneiro fazia soar a música alegre, típica da
região, presenciou um trágico incidente. Numa mesa de jogo, seis homens
embriagados lançavam seus dados à sorte. Um deles, que já havia
perdido algumas rodadas, começou a ser molestado por risos zombeteiros
dos colegas e, num ímpeto de violência, acusou gravemente um dos
adversários de haver roubado em todas as mãos que haviam sido
jogadas. Num paroxismo de despeito e ódio súbitos, desembainhou uma
adaga que trazia à cintura e costurou aquele que havia acusado na faca,
fazendo o sangue esguichar. Um outro que tomou as dores da vítima,
imediatamente pulou por sobre o arrogante esfaquiador e o nocauteou
com um pedaço de pau, ferindo-o fatalmente na cabeça. No ruidoso
tumulto que se formou, aquele desapareceu e nunca mais foi visto. Foi
incontinente buscar um cavalo na estrebaria, passou por sua casa para
apanhar seus pertences pessoais e se mandou. Os dois mortos foram
enterrados lá mesmo na fazenda sob uma horda de prantos de seus
familiares inconformados.

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Capítulo 26
Os meninos na década de vinte jogavam pião nos quintais das
casas, no meio das estradas de chão... piorra, que era um pião com
carretel de linha; brincavam de cavalo com a “cana de milho”, haste do
milho sem a espiga, jogavam birosca e brigavam, como todos os meninos
de todos os tempos. Zé Chico quando menino plantava fumo na fazenda
de Rubens Wilson, perto de Uludé; capinava cana; fazia rapadura como
ninguém! Chegou a ganhar duzentos e cinquenta réis por dia, candeando
boi e capinando, aos oito anos de idade. Seu avô trabalhava contratado
em lavouras de café: “...Essa região toda daqui era de café. Era o forte da
lavoura. O ordenado dos trabalhador era de duas prata de dez tostão e
uma de cinquenta réis que ele recebia por dia. Por semana dava mais ou
menos quinze merréis. ... quando a lavadeira era muito boa e lavava muita
roupa ela ganhava uns doze merréis...”
Onde haveria de se formar a Praça São Marcos ainda era um
pasto, porém com muitas árvores, com ares de praça em formação,
habitat de bois e cavalos, rodeados pelas casas baixas, chalés, e
sobrados. A cidade continuava sem as benesses do calçamento de suas
ruas, obrigando seus cidadãos a terem que enfrentar barro e poeira. Os
cavalos eram fartamente usados em sela, para uso individual. O trânsito
de pessoas dentro da cidade era feito a pé, pelas ruas de chão, pelos
escassos passeios das calçadas revestidas de pedra. Até que um dia os
mais desavisados puderam se surpreender com a chegada de um carro
mecânico, à tração motora, na cidade, para servir seus moradores como
carro-de-praça. Este continha capota de lona preta, conversível. Se tratava
do Ford Bigode. Ao longo do tempo, outros carros do mesmo modelo

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foram aparecendo, até o advento do calçamento de algumas ruas. A Rua
Jorge S. Camarões e a Rua Velha, importantes, centrais, ganharam uma
capa de asfalto, tempo este quando já possuíam calçamento de pedra
fincada. E o movimento de calçamento das ruas da cidade, da pedra-
fincada aos paralelepípedos, e posteriormente destes, para o asfalto, foi
partindo do centro para a periferia. A Rua Voluntários da Pátria, também
chamada de Rua Quebra Pedra, ganhou este cognome devido ao fato de
que, em certa época, houve a instalação de uma máquina de quebrar
pedras nesta rua, onde havia uma pedreira, viabilizando o encapamento
das outras ruas da cidade.
Alex adquiriu um carro à tração motora, um Nash cinza, antes de
1930, que era utilizado para passeios. Quando porém tinha que pegar
uma carga em Besanson ou São Caetano, acordava de madrugada e saía
com um caminhãozinho que também adquirira nesse mesmo período, com
seu motorista Wander Ribeira, homem muito religioso e bem humorado.
Dirigia com maestria qualquer carro à tração motora e até guiava o
caminhão com os pés no volante em vez de com as mãos, apenas para
revesar de jeito, de posição; ou para se distrair; mas quando na presença
de Alex, se mantinha irrepreensível.
Alex, quando passeava pela cidade, se divertia em desfilar com
seu Nash avermelhado, muito confortável. Só que seu desempenho
chegava às raias de ser comparado a um animal preguiçoso e fraco, a
ponto de não subir sequer um pequeno morro com uma inclinação não
muito íngreme, suportando o peso de algumas pessoas. Mas somente
para trafegar dentro da cidade e em locais de topografia plana, fazia a
felicidade de todos os que participavam de suas voltas muito concorridas

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pelas estradas esburacadas, de chão, empoeiradas ou enlameadas. Era
uma sensação! Muitas vezes, dado o volume de peso como umas cinco ou
seis pessoas, meninos, o carro não detinha forças para subir um pequeno
morro. Todos então tinham que descer e empurrar. De vez em quando
algum piquenique: Rita levava uma ou duas cestas contendo suas
deliciosas broas de fubá, biscoitos e doces de leite, de manga, sucos...
Algumas vezes Alex e Rita iam com seus filhos, alguns sobrinhos e
amigos, de caminhão, para um lugar especial que esta particularmente
adorava: maravilhoso, no alto de um morro, às margens de uma mata,
onde um pasto servia de habitat para alguns bois. Este sítio pertencia a
um amigo de Alex, sr. Alexandre, que fornecia cana para a Usina S.
Marcos. De lá do alto, sentados em cadeiras portáteis, todos avistavam ao
longe uma malha azul escura, de serra a perder de vista. Os pensamentos
flutuavam ao sabor do vento calmo e fresco. Divagavam e caminhavam
por uma trilha que seguia para dentro da mata, até o local onde um
jequitibá rosa, algumas vezes secular, anos deitava suas raízes profundas
e erguia altaneiro sua copa numa altura admirável! Depois de alguns
sempre abraçarem a árvore e cantar loas à sua majestade, voltavam pelo
mesmo caminho até o visual amplo e arejado se descortinar; sentavam em
suas cadeiras e lanchavam, famintos e cansados. Rita nem sempre
caminhava até o jequitibá, preferindo ficar relaxada, deitada numa toalha
de mesa que armava em cima da terra, na entrada da mata. Maria, a
empregada de confiança de toda a família, ficava com ela a lhe fazer
companhia.

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Capítulo 27
Joaquim dos Montes Rios, filho de comerciantes portugueses que
se estabeleceram com uma loja de tecidos em Toulouse, desde cedo na
vida revelou forte gosto pelos animais. Candeava boi e, nas horas vagas,
o que mais gostava de fazer era nadar no rio Ululu e se aventurar com os
amigos para dentro do grande quintal do vizinho que cultivava um pomar
invejável. Essa posse ficava na margem oposta do rio, de onde se situava,
logo em frente, a usina de Alex. Joaquim espreitava os trabalhadores da
usina atravessarem o rio para abraçar os pés pretos de jabuticaba, ou as
laranjeiras carregadas de frutas, envergadas, ou as mangueiras, as
goiabeiras, dentre outras árvores frutíferas. O terreno era imenso e o
pomar continha várias espécies de frutas da região, e exóticas. Sua mãe,
excelente cozinheira, preparava todos os dias quitutes para vender como
broas de fubá, broas de arroz, de melado... Havia muitas encomendas, e
Dona Maria trabalhava arduamente para ajudar o marido a sustentar os
oito filhos menores: cerca de três homens saíam diariamente para
entregar as encomendas e vender pelas ruas; com taboleiros de madeira
com alça pra pendurar no pescoço, e toalhas brancas que tampavam os
comestíveis, iam oferecendo àqueles que cruzassem o seu caminho.
Joaquim e quase todos os seus irmãos estudaram no grupo da praça e
chegavam sempre de carroça-de-burro. Depois das aulas, davam voltas
pelo jardim com os amigos e as meninas, exultantes; a carroça saía da
porta do grupo sobrecarregada pelo peso dos meninos que dependuravam
por toda parte nela. Muitas vezes, professores e outras pessoas
intervinham para evitar propensos acidentes. Joaquim, o primogênito,
certo dia, teve que ingressar no mundo do trabalho braçal; fardo pesado

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que imperiosamente se interpôs entre ele e seus estudos, devido à doença
da mãe: esta interrompeu suas atividades e caiu vítima de um mal não
identificado. A febre e o delírio da matriarca se tornaram então intensas
companheiras de toda a família. As duas filhas mais velhas tomaram conta
da mãe em tempo integral até seu falecimento. Nesse ínterim, em 1928,
Joaquim aos dezessete anos, passa a fazer parte das hostes dos
lutadores destemidos e infatigáveis, na lida do mundo dos adultos, como
trabalhador na indústria de Alex Bourdon. Sua primeira frente de trabalho
foi colocar as canas esparramadas pelo chão, deixadas pelos carros-de-
boi, na esteira rolante; o processo inicial de entrada das canas na
indústria. Trabalhava doze horas por dia, de um lado para o outro, levando
embaladas nos braços ou com os feixes nos ombros, as canas que eram
jogadas na esteira. Depois de dois anos nessa labuta, foi transferido
inesperadamente para ocupar outro posto, pela falta de um dos homens
que havia morrido. Eram então oito homens com ele, nas caldeiras.
“...Cada um tomava conta de uma boca, e um lá embaixo no cinzeiro
tirano cinza; quando apertava, a gente tirava um das caldeira pra ajudar...
depois fui pras caixa de evaporação...”
Nos períodos de safra, pelas altas horas da madrugada, mesmo
quando chovia torrencialmente, Alex estava atento a qualquer imprevisto
que pudesse desencadear o emperramento das engrenagens. Quando a
pesada estrutura parava forçosamente por algum defeito, nas noites frias
quase geladas do inverno, ou sob intensa tempestade em outubro ou
novembro, era imediatamente comunicado, assim como os mecânicos do
engenho. Desencadeava-se uma batalha incessante até o momento
quando o defeito fosse sanado. A indústria não podia parar sob pena de

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prejudicar cada processo que sucedia o outro, num todo harmônico, que
compreendia muito mais do que a soma de todas as peças da imensa
engrenagem: a fábrica era como que possuída de vida, respirava, estava
viva! Era o que todos sentiam.

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Capítulo 28
Gaston Bardott entrou tardiamente para a empresa de Alex.
Nascido em Toulouse, residia na zona rural com seus pais. Sua
companhia na infância foi somente duas primas, com as quais brincava
especialmente de fazer bolinhos de barro e depois colocá-los num buraco
no barranco, simulando um forno; imitavam as broas de fubá que saíam
em fornadas preparadas por sua mãe e sua tia. Seu pai mantinha um
pequeno canavial do qual retirava parte considerável do sustento da
família. Criavam galinhas, porcos, cabritos e patos, sobretudo. A matriarca
recebia encomendas para casamento e outras festas, que solicitavam uma
gastronomia bem típica da região; ela sabia preparar como ninguém:
leitoada, cabritada, galinhada e pato com arroz: suas especialidades.
“...Tinha uma légua do centro da cidade até onde eu morava. Se precisava
de um médico, tinha que levar dois cavalo, um pro médico... E quando
morria gente lá! Não tinha estrada, era só trilho pros cavalo passar!
Quando chovia, cabava tudo...” O trilho de acesso à cidade ficava
completamente intransitável. Mas, sob a imperiosidade de ter que se
enterrar o defunto, não havia outro meio senão enfrentar essas condições
totalmente adversas. O caixão era improvisado com tábuas e pregos
arrebanhados na vizinhança. Certa vez a chuva descia enquanto quatro
homens a segurar o caixão partiam numa jornada perigosa. Os
escorregões eram quase que constantes. “...um puxa pra lá, outro puxa
pra cá... os prego não guentava, o caixão caía e o difunto rolava no
barro!... aí tinha que por uma cruz onde o difunto caía do caixão. Quando
chegava na igreja, pra encomendar o corpo, muitas vez o padre não tava
lá. Aí qualquer um... o cemitério era só cercado de arame farpado, a gente

86
tinha que furar a cova: pedia emprestado enxadão, pá... quando trazia o
caixão de carro-de-boi, já trazia tudo pra furar a cova. Se desse enchente,
tinha que passar dentro do rio... ... ... Onde eu morava... eu fui um dia
pegar um cavalo meu no pasto, e na volta tava lá um difundo dentro
d’água, no corgo! Tinha dado enchente e o corgo tava muito cheio. Eu
joguei um cabresto e lacei o difunto. Eu marrei ele num pedaço de pau e
vim falar com o delegado. Quando nós chegamo, o home tava pindurado
pelo pescoço com um palmo de língua pra fora! É que a água tinha
baixado... O delegado pensou que era eu que tinha matado ele! Há!!... aí
fizemo o caixão durante a noite...” O pai e a mãe de Gaston, ambos
receberam propostas de Alex para que fossem trabalhar com ele. Rita
precisava de mais alguém competente na cozinha para auxiliar Maria e
Ana, enquanto Alex, que já conhecia bem o pai de Gaston, quis que este
fosse para a usina com ele, como alguém de sua confiança. Se mudaram
da zona rural e passaram a morar numa das casas da usina no Bairro São
Marcos. Gaston já havia completado sua maioridade e devido a seu
temperamento tímido e quieto, conseguiu um trabalho como ronda noturno
da usina. “...Fiquei muitos ano direto sem falhar, fazeno doze hora só de
noite, era carnaval, semana santa, toda festa... eu não falhei um dia em
doze ano!... ...Alex tomava muito nesse tempo! Ele vinha na usina toda
hora de noite. Ele entrava lá no escritório, abria o cofre, tirava muncado de
dinheiro e deixava o cofre aberto! Ele voltava duas, três vez por noite pra
buscar mais dinheiro... eu colocava a cadeira na porta e ficava lá tomano
conta... isso na entressafra... ...os outro via alguém lá, depois de morto,
atrás de mim, de noite... eu não via nada. Ês falava mas nunca vi!...”

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O homem que trabalhava alimentando de lenha e bagaço o grande
forno, era comumente chamado de vapor, ou cabo-de-fogo. Em contato
direto com a fornalha, as insuportáveis ondas de forte calor penetravam
constantemente pelas narinas e bocas dos homens, que arfavam o tempo
todo. Gaston, depois de ter sido ronda noturno trabalhou neste posto
altamente insalubre para preencher o lugar de um dos homens que nem
tão raramente se ausentavam do trabalho em virtude de problemas de
saúde. Uma esteira rolante pequena passava a uns três metros acima da
cabeça destes, transportando bagaço que deixava cair perto da fornalha.
Quando o engenho parava por algum problema, pela necessidade de
continuar a fabricação do açúcar, alguns homens eram deslocados de
suas funções e iam socorrer os ‘cabos-de-fogo’. Nessa hora, o calor
chegava a limites alarmantes, e os homens ficavam molhados de suor e a
temperatura de seus corpos subia consideravelmente. Suas energias eram
exauridas pelo esforço repetido em contato com o calor insuportável!
“...Quando tinha cana demais entupia e não passava na moenda.
Aí parava e tinha que tirar as cana com a mão... Ficava um homem na
moenda. A hora que caía cana demais ele ficava com um pedaço de pau
pra puxar as cana. O que ficava em cima, pra cima da moenda, no breque,
esse parava a esteira quando precisava; desligava a chave da
eletricidade. Quando desocupava, ele ligava outra vez...” As
consequências desastrosas advindas da parada ou quebra de
engrenagens da moenda, se somavam e lançavam seus tentáculos quase
trágicos por toda parte. Os homens do campo que haviam plantado e
cuidado de suas lavouras de cana, acabavam por perdê-las, ou perder
parte delas, uma vez que os carros-de-boi ficavam estacionados em fila

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por tempo indeterminado em frente à balança da usina, à mercê do tempo
que precisasse para a retomada da moagem. Às vezes, o concerto do
maquinário demorava dias e essas canas nas plataformas dos carros-de-
boi, se deterioravam, assim como as que já estavam cortadas no campo
esperando serem transportadas. “...o pessoal que prantava ficava no
prejuízo. Eles não tinha dinheiro, aí na usina eles ganhava um saco de
açúcar, dois... eles falava que era pra despesa... mas a primeira venda
que eles achava eles comprava comida pra levar pra roça; trocava o
açúcar em troca de coisa de comer...”. Além disso, tanto os animais
quanto os carreiros e os candeeiros, padeciam de fome. Rita os ajudava.
Alguns animais morriam de fome, uma cena desoladora.
“... o açougue só comprava o toicinho do animal porque não
achava quem comprava a carne. Uma família de seis, sete filho, comprava
um quilo de toicinho por semana e dez quilo de fubá. Arroz não. Não tinha
dinheiro! ... Os dono da terra tinha a terra, mas não tinha dinheiro pra
pagar os outro pra trabalhar pra ês. ...produzia só pra ês comer: milho,
arroz e feijão. A carne dês era horta, mais uma criação que ês tinha nos
quintal, macarrão, feijão e angú... Quando ês ia levar cumê pra mim eu
falava: ‘pode deixar em qualquer lugar porque se cair no chão nem
cachorro come!’. Era sempre macarrão e feijão e angú, ou couve, feijão e
angú. ...todos os trabalhador da usina comia isso. Os chefe, acho que
comia melhor, mas ês fintava todo mundo... nóis não tinha crédito, não
tinha jeito de dar prejuízo, né?!...”. Na safra, uma legião de pessoas de
todas as idades se formavam em frente ao portão principal da usina,
portando o almoço dos trabalhadores. A comida era transportada num
prato esmaltado, de lata, coberta por outro prato idêntico, ambos

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envolvidos por um pano de saco de mauá. Um pano branco quadrado ou
retangular era colocado numa superfície plana , e no meio deste, o prato
contendo a comida tampada pelo outro. A pessoa segurava em duas
extremidades opostas do pano e os entrelaçavam envolvendo os pratos:
era dado um laço e um nó por sobre o prato que estava tampando a
comida. Fazia-se o mesmo com as outras duas extremidades do pano.
Dos nós saía uma pequena alça onde as pessoas seguravam e aí ficavam
os talheres. “...Os home botava os prato no fogo pra quentá comida. De
noite, ês botava na beira da caldeira. Assim que mornasse ês comia... tava
cheio de fome!... era um lugar mais seguro pra criação não pegar. Vivia
cheio de cavalo e boi no pátio da usina, ficava tudo sorto!...”. Havia um
matadouro ao lado, “um fedor danado!”, chamado também de charquiada,
cujos bois transitavam pelo extenso pátio da usina, bastante atrativo por
causa dos capins que cresciam inadvertidamente pelos cantos.
Encantados pela visão das altas moitas de capim, abundantes sobretudo
pela margem oposta do rio, o terreno da usina, os bois saltavam-no com
frequência. As parcas e insuficientes cercas de arame farpado não eram
aptas a frearem-nos em suas investidas para atravessar o rio e se fartar
de capim fresco na margem oposta. O rio já sofria as consequências do
seu lento assoreamento e se apresentava raso em certos locais,
facilitando a travessia para os animais. “...alguns até caía dentro do rio!...
foi aí que eu comecei a comer carne. Todo dia quando eu largava do
serviço, eu tocava os boi do pátio da usina pra lá... ês passava de volta
por dentro do rio... ês não fazia carne seca nem com o fígado nem com o
filé: aí eu ganhava ês. Ês abria o boi e tirava a barrigada... Tinha o Zé-pé-
de-boi que pegava pé de boi, cabeça, e tinha outros que pegava tamém. E

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tinha um matador do outro lado da cidade, Morro do Calvário. ... acharam
um homem enforcado lá uma vez... lá enchia mesmo de gente. Dividia pra
quem quisesse. ...dava um trocadinho pro matador... o dono tinha que tá lá
vigiano!...”
Gaston se aposentou como ronda da usina; voltara para este posto
porque era o que mais gostava de fazer. Depois do falecimento
inesperado daquele que o ocupava, se candidatou e foi recolocado.
Passou sua vida adulta lá, sozinho na maioria das vezes, em noites frias e
quentes, secas ou úmidas. Durante as chuvas a energia elétrica sucumbia:
apagavam-se todas as luzes, instalava-se a escuridão. Quando chovia,
Gaston sempre se molhava porque era mister que se fizesse a inspeção
de toda a usina. “...Teve um dia que eu tava no portão perto do botequim.
Tava choveno muito. Aí pareceu uma mulher no escuro, tava tudo
escuro... e perguntou se eu queria um café. Eu falei que queria. Ela sumiu.
Aí pareceu com um copo de café quente e me deu e sumiu de novo. Nem
esperou eu tomar pra levar o copo! Sumiu. Não sei quem ela é até hoje! ...
teve outro ronda que falou que viu o sr. Argemiro lá depois de morto. Ele
tava lá no alto, no último andar das passarela. Quando ele viu, ele quis
correr mas as perna dele não saía do lugar. Ele ficou garrado no corrimão
da escada, de medo. Depois pediu pra ser transferido prum serviço de
dia...”
Quando as canas já ficavam expostas num pequeno depósito de
jeito a serem transferidas para a esteira, depois do período de colocação
de canas manualmente numa esteira menor e mais precária, três homens
ocupavam postos aí definidos. De porte de um tridente de ferro cada um,
engatado num cabo de enxada, estes homens provocavam e controlavam

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a caída de canas na esteira. Do depósito, que era uma plataforma de
madeira plana colocada um pouco acima da esteira, no início desta, junto
a ela, os homens puxavam as canas com os ganchos. O equilíbrio da
quantidade que deveria cair na esteira era fundamental e condição “sine
qua non” para que todo o processo de moagem ocorresse
satisfatoriamente. Quando descia muita cana para ela, a primeira moenda
emperrava.

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Capítulo 29
No início de seu ingresso na usina, primeira metade dos anos
trinta, quando chegava o período de safra, Zé Chico, aos dezenove anos,
trabalhava no armazém com mais cinco homens, carregando sacos,
empilhando-os, carregando as carroças-de-burro e os caminhõezinhos. Às
vezes, ia colocar canas na esteira. A usina moía pouco e os equipamentos
eram precários, como o conjunto de turbinas que era constantemente
reparado, remendado daquí e dalí; comprava-se uma peça num dia,
noutro dia outra peça e ia-se levando. Zé Chico propôs a Alex que
trocasse a gracha do rolamento, porque a que tinha não era apropriada e
estava forçando o equipamento. “...Esse rolamento gasta muito porque a
lubrificação não é própria pra isso. Essa gracha não dá pra levar essa
turbina direito... vai 180kg de açúcar... vai tudo pindurado nela...” Mas,
como eles não acreditavam muito no que Zé dizia que estava
acontecendo, foi preciso esperar três anos para que um vendedor
passasse pela usina e fosse até esse maquinário examiná-lo. E Zé,
dirigindo-se ao vendedor e técnico no assunto, disse: “...Tão me culpano
que eu não tenho condição... não tô trabaiano direito... o peso dessa
turbina pindurada no rolamento que roda 1400 voltas por minuto...”. Ele
examinou o problema e dirigindo-se a Alex, declarou: “...O rapaz tem
razão... a gracha pra aguentar esse peso só tem na Alemanha, e eles não
vendem a gracha nem a fórmula...” Eram três ternos de moenda. Zé Chico
sentiu-se lisonjeado e enaltecido. Foi para casa naquele dia em estado de
graça: estava certo no que dizia durante anos, embora tenha sido
subestimado. Sentia-se dignificado por estar sabendo o que estava
fazendo em seu trabalho. Era um trabalhador competente.

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De seus dois lados, no princípio da esteira, tampados com folhas
de zinco, situavam-se os montes de cana. No tempo de frio, ficavam um
pouco mais para fora, porque não chovia. A garapa saía com muito pó de
bagaço. Os apreciadores, antes de degustarem seu sabor adocicado,
passavam-na diversas vezes em algum coador, ou mesmo pelo coador de
pano que ficava no local por onde saía. O meladinho também era muito
requisitado.
Todos os dias iam para o escritório as informações que faziam
parte do controle de todo o processo, entre elas (estas informações
deveriam ir para o escritório toda manhã): “...quantos sacos de açúcar ia
dar a cana amontoada lá, calcular quantos sacos de açúcar ia dar no
xaropinho, de primeira e de segunda, quanto de saco de açúcar tinha em
caldo...”
Hilário Gabriel, empregado da usina que não gozava de muita
saúde, pois sofria de um mal que o sujeitava a convulsões e acessos,
talvez epilépticos, perdeu sua mão direita amputada na moenda, entre
uma e duas horas da manhã. Zé não quis que ele trabalhasse lá, mas este
insistiu em ir. “...Parou o engenho e voltou a engrenagem pra trás e veio a
mão dele cheia de sangue!...” Bebeto ficou também sem sua mão direita
por volta das dezoito horas. Na moenda em que trabalhava, entrava o
bagaço da moenda anterior. Sua função era ajeitar a quantidade volumosa
de bagaço com um pedaço de cana, para que ele adentrasse
uniformemente na moenda para que ela “pegasse”, ou seja, não parasse
por congestionamento ou por algum entrave. Sua mão ficou moída e ele
foi socorrido aos berros!

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Capítulo 30
Carlos José Augusto vendia carne pra seu tio Rafael José M.
Souza. Tio Rafael possuía um açougue na cidade. Não se usava
embrulhar as carnes. Carlos José colocava nove pedaços de um quilo
num tabuleiro de madeira em cima da cabeça e um pedaço ia segurado
numa das mãos por uma alça de barbante. Ele vendia bastante, inclusive
para fregueses certos, como: sr. Daniel S. Silveira, dr. Alfredo, etc..
Na década de trinta os meninos brincavam no jardim da praça, que
continuava com seu piso de terra. Jogavam birosca, pulavam corda (os
dois sexos)... No grupo Silvio de W. Lannon e no Colégio Toulouse
brincavam de peteca com rede, vôlei, pulavam corda e também havia a
“peladinha” dos meninos. E em 1932, um sargento da Polícia Militar
introduziu o futebol americano e também um destacamento de Escoteiros.
A sede deste funcionou no primeiro andar de um sobrado, onde se
reuniam três vezes por semana. Passavam fins de semana na Ribeira, na
fazenda do sr. Alfredo Augusto, desempenhando atividades. Houve um
encontro de escoteiros de várias cidades em Marselha. Os de Toulouse
empreenderam uma marcha a pé até o Parque Silva Mello ( que tinha seu
piso de terra) em Marselha, onde todos os grupos ficaram acampados em
suas barracas. Demoraram de cinco a seis dias para chegarem. Os
rapazes, apesar de estarem exaustos, se divertiram muito e se lembrariam
deste episódio por toda vida.

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Capítulo 31
O Clube Romano, de cunho social e político, marcou seu advento
ocupando o segundo andar de um sobrado na praça, e seus fundos se
estendiam até a linha de trem, onde se situava uma quadra para jogos de
vôlei e peteca. Continha um salão recreativo para bailes e algumas salas
de jogos de baralho. Nos bailes noturnos os homens usavam sempre
paletó, gravata e chapéu. Estes raramente usavam barba e seus bigodes
eram finos, rentes aos lábios superiores, e bem aparados. Cada sala de
jogos continha uma mesa com várias cadeiras, onde se jogava a noite
inteira a dinheiro. Muita gente se viu repentinamente em estado de
insolvência devido aos exageros a que se submetiam nas apostas. Os
carnavais do Romano eram famosos. Usava-se executar somente as
músicas denominadas marchinhas, que eram deixadas de lado durante o
resto do ano. Nesse período, contudo, tomavam conta do salão, alegrando
e animando os fantasiados, sob chuvas de confetes e serpentinas. O
carnaval de rua era muito inexpressivo. Na parte de baixo havia um bar e
ao lado uma casa de comércio de cereais. Em certa ocasião, houve a
demolição do casarão antigo, sede do Clube, no intuito de se erguer outro
prédio moderno no lugar, o que não ocorreu por falta de verbas... O clube
tradicional então, passou a não mais existir concretamente, somente na
memória daqueles saudosos frequentadores e ex-sócios
O Clube de Toulouse, muito movimentado, teve sua sede também
no segundo andar de um sobrado situado à Praça S. Marcos. Possuía
também salão de festas e salas de jogos, sendo seu espaço físico menor
do que o do Clube Romano. Os dois clubes da cidade, recreativos e
desportivos, tinham forte cunho político. O Romano pertencia à situação e

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tinha à sua frente como líder o Dr. Joaquim M. Silveira, e o Clube de
Toulouse, pertencente à facção de oposição, o Dr. Amauri N. Matodentro.
Estes, os dois maiores representantes políticos da cidade. Joaquim
Silveira foi para Toulouse para assumir a Delegacia de Polícia. Iniciou sua
carreira chegando à presidência da Câmara Municipal da cidade. Depois
foi várias vezes deputado estadual e uma vez deputado federal, chegou a
ocupar o cargo de vice-governador do Estado de Jardin. Acabou por se
suicidar, temeroso acerca de muitas ameaças que havia recebido de
inimigos ferrenhos. Do lado da oposição, o Dr. Amauri N. Matodentro, fez
um longo trabalho... e seu filho, herdando a tradição política de seu pai, se
tornou um dos grandes prefeitos da cidade e um dos maiores políticos de
expressão no Estado. Aquele cidadão que frequentava um dos clubes,
necessariamente, não frequentava o outro. Não se mudava facilmente de
lado político. Os cabos eleitorais, quando nas eleições, levavam “seus”
eleitores quase que diretamente à “boca” da urna, durante a primeira
metade dos anos trinta, e com maior precaução aos eleitores provenientes
da zona rural. Nesse período Bertold era vereador e foi por dez anos
secretário da câmara, por um mandato de seis anos e outro de quatro,
respectivamente. O mandato de seis anos foi instituído prorrogando-se o
mandato de quatro, com o fim de se igualar a época das eleições para
presidência do Estado e para a presidência da União. As eleições
municipais, estaduais e federais, passaram a ter a mesma época, então.
Patric Bourdon frequentava o bar do Clube Romano que tinha uma
vista privilegiada para o que seria a praça central da cidade: o terreno de
pasto, por onde cavalos ociosos perambulavam e havia um campinho de
terra para que os meninos jogassem futebol. Em sua sacada ficava

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sentado sozinho ou acompanhado por Alex ou algum amigo, apreciando o
movimento – os irmãos de Alex haviam todos saído da cidade para
tentarem a vida -. Jogava-se a dinheiro, a noite inteira; este nunca foi o
caso da família Bourdon, que abominava essa prática perniciosa. Não
poucos depauperaram seus patrimônios na mesa de jogo, e levaram à
desonra e à desesperança suas famílias, como foi o caso de João,
cidadão toulouseano. Certo dia em que estava com o ímpeto acalourado,
somado à uma forte indignação e revolta por ter se desentendido com sua
mulher, foi à bancarrota. Quis jogar e beber para esquecer a dor. O que
não sabia é que o destino lhe preparara uma peça mal fadada. Em seus
rompantes de auto-afirmação levados ao grau extremo pelo fogo de sua
desorientação, foi apostando e perdendo, até que saiu de lá devendo até a
própria roupa do corpo. Num ato de desolação, pulou debaixo das rodas
de ferro do trem que passava pela manhã.
A mocidade de Toulouse era muito afeita às festas. Os clubes
funcionavam todas as noites. Todos gostavam muito de dançar e a cidade
era famosa por seus dançarinos. Havia o costume dos homens andarem
no jardim, ou seja, na Praça São Marcos, circundando-a no sentido oposto
ao das mulheres. Nessas voltas, os olhares se cruzavam e os namoros
surgiam desses flertes. Clodoaldo, primo que fora também criado por
Slivino e Wilma, era proibido de frequentar o Clube de Toulouse porque
Silvino, Patric e Alex pertenciam ao partido do Clube Romano. Clodoaldo
não se deixava intimidar e entrava pela porta dos fundos. O salão onde os
bailes aconteciam eram somente providos com cadeiras que ficavam ao
redor da pista de dança, onde as famílias se sentavam. Sem palco, os
músicos se alojavam num canto do aposento. Além das salas para jogos

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de baralho haviam as salas de café. Os bailes nos dois clubes ora eram a
rigor, em ocasiões especiais, ora a trajes de passeio, quando dançava-se
valsa, bolero, samba, foxtrote, assim como outros gêneros musicais
nacionais e estrangeiros.
Rita gostava de bailar, valsar, se espraiava pelo salão arrastando
Alex ou algum chegado da família. Contudo, sabia da existência de uma
amante de Alex. Nunca a conhecera, tendo falecido sem realizar este
sonho. Queria saber quem era, olhar nos olhos dela, conversarem. Às
vezes sonhava que ela e Alex estavam fugindo para Besançon sem a sua
mínima desconfiança: este deixava uma carta, ou um bilhete que voava...
“...e eu ia tropeçano no vento correno atrás... Uma vez eu quase vi o rosto
dela na estação de trem, no meio da neblina, seria ela mesma? Alex tava
no trem que partia a apitava alto no meio da neblina, quase amanheceno o
dia, ele tava na porta acenano, e uma mulher correu pra ele. Eu tava
paralisada. Outras vezes, na cama, imaginava se ele tava alí mesmo
comigo ou não, se tava pensano nela. Ela tinha para mim só uma silhueta,
no meio da neblina. Lá em casa não tocava nesse assunto em hipótese
nenhuma, eu não permitia nunca! Era um tabu. Era como se nada
acontecesse, todos sabiam, mas agiam como se não soubessem de
nada...” Havia ocasionalmente certas circunstâncias incomuns que
deixavam transparecer insinuações sem maldade, ocasionadas por
observações infelizes de um ou outro desavisado interlocutor. Rita chegou
a seguir Alex, este numa caminhonete e aquela, num ford bigode, em vão.
Seu carro acabou por emperrar dentro de um buraco onde caiu, e Rita
ficou no escuro e sozinha no meio da estrada de chão.: “...Burra eu sou, e
agora aqui nesse fim de mundo, quem vai aparecer pra me prestar

99
socorro...?” De repente um carro se aproximou e como o carro de Rita
havia obstruído a estrada, pararam e ajudaram-na a ir embora. Foi pura
sorte porque ninguém ficou sabendo de seu paradeiro naquela noite.
Desde este incidente, nunca mais quis saber da amante de Alex, ou seja,
de querer segui-lo, sabia que seria infrutífero e desastroso. Apesar de os
sonhos com ela continuarem, Rita passou a ser mais resignada a partir
desse dia.

100
Capítulo 32
Rita usava vestidos bem compridos e um coque nos cabelos
grisalhos. Por cima dos vestidos, sempre um avental; nos pés, uma bota
confortável. Administrava seus afazeres múltiplos e, quando em sua horta
na usina encontrava animais predadores de suas verduras e legumes,
“...virava bicho! Nós tinha umas cabrita de leite. Era do meu marido.
Sortava elas e elas ia direitim pra horta da dona Rita. Ela metia o coro
nelas! Antônio entrou aqui primero marcano saco, depois foi pra garagem
e depois pro escritório, era caixa. Lá era bem grande com os balcão de
madeira depois da porta, cheio de vidro, uns balcão cumprido... do lado de
dentro do balcão tinha as mesa que os homem trabalhava: era tudo de
madeira preta pesada. Trabalhava uns oito, e depois uma sala com tapete
azul, a diretoria...”. E já nos anos quarenta: “...O Arlindo, irmão do meu
marido, é quem foi pro exterior trazer a ponte rolante do guindaste que ia
instalar. Quando a ponte chegou, foi um tempo ainda pra por ela pra
funcionar. Aí quando ficou pronto o sr. Alex até fez discurso e fez uma
festa na usina...
Um dia eu tava passano e me dissero que tinha caído uma corrente
na cabeça de um tal de Silvano e ele tinha morrido, morreu muito novo.
Teve um que quemô com melaço quente... coitado, deve ter sentido uma
dor!!... Bebeto, usava tipo uma mordaça na munhequinha dele, que ele
tinha perdido a mão...” Chico Macumbeiro era um colega de trabalho de
Zeca, que era colega de Pedro, na usina... era chamado de Lobisomem
devido às suas práticas de bruxaria e conjurações de sortilégios. Seu
terreiro era o mais frequentado da cidade, mas havia outros também
movimentados. A raça negra pura e suas miscigenações marcavam a

101
etnia do povo da cidade, e suas tradições se faziam presentes no
cotidiano dos toulouseanos.
Um dos irmãos de Chico, conjuntamente com um colega de
trabalho seu morreram queimados num canavial: “...ele tava trabalhano
com um grande fornecedor da usina do sr. Alex. Aí ele foi por fogo no
canavial, a pessoa acha que tá saíno dele e tá envolveno mais, né?! Ele
saiu de lá do canavial pingano pele e foi assim que ele entrou no hospital.
Aí eles fizero uma cirurgia e fizero dele como se ele fosse uma múmia.
Levaro ele pra Besançon mais ele não guentou, não. Morreu ele e um
outro. ...ele chegou conversano no hospital: ‘Me acode, me acode!!’ O
cabelo dele tava aquela escovinha... parecia que ele tinha feito barba e
bigode...”
Os srs. Julio e Norberto, com dezoito e vinte anos respectivamente,
que trabalhavam para Alex, rodavam o comércio comprando garrafas
usadas que levavam para o alambique da usina. Em certo período, Alex
começou a fabricar cachaça, e mudou a vida de seu lambiqueiro sr. Jonas
e de seu auxiliar, sr. Alfredo; mas logo viu que não seria uma atividade
compatível com seu gênio: chegou a armazenar dez tonéis enormes de
cachaça fabricada do álcool com noz moscada e outros ingredientes. Não
foi difícil adaptar um caminhão à gasolina em um caminhão a álcool. Alex
o abastecia com o álcool de sua destilaria; ficou à mercê dos serviços num
raio de atuação que possibilitasse seu abastecimento sem que este
ficasse sem álcool no meio do caminho. Sua autonomia se dilatava com os
galões de álcool que transportava na carroceria, caso o trajeto fosse mais
longo. Com essa manobra imperiosa, a economia da família com o novo
combustível possibilitou também um ganho de espaço; as fazendas

102
passaram a ficar mais perto. Tempos difíceis. Os preços do açúcar não
estavam razoáveis. Houve outra onda de falências e concordatas. Alex e
Rita economizavam ao máximo e Rita vendia os frutos de sua horta e de
sua cozinha primorosa, como fazia desde logo depois da fundação da
firma que foi no início a refinaria. As roupas passaram a ser muito
valorizadas e dispostas às reformas. Rita fazia sempre alguma peça nova
e não se comprou roupas por um período de oito anos. Intensificou-se as
atividades com os sacos de mauá que embalavam sessenta quilos de
açúcar, que se transformavam em camisas, bermudas, e outras peças do
vestuário, sob encomenda, que Rita fazia com suas ajudantes. Eram
vendidas para os funcionários da usina e para quem quisesse comprar.
Chegou a mandar essas roupas para Lídice... Três homens corriam as
ruas da cidade com os quitutes e lenhas e produtos hortifrutigranjeiros;
ficavam exclusivamente por conta dessa atividade diuturnamente.
Durante mais esse período complicado, Alex andava com roupas
velhas restauradas, devido às condições financeiras oscilantes que sofria.
Era um trabalhador infatigável! E diz Antônio: “...Eu me lembro dele com
calça remendada na bunda... quando eu tinha dez, doze ano... por causa
dos tempo ruim...”
Houve mais alguns acidentes fatais e outros de menor gravidade.
Porém, alguns foram provocados pelo fato de que muitos trabalhadores
tivessem o hábito de beber em demasia. Bebeto, Bertold, Benito, bebiam
muito! Houve um episódio em que Carlindo, embriagado, empregado da
usina, foi nadar depois das cinco horas da tarde, depois de deixar o
serviço, na ponte. Mergulhou e não voltou. Giuliano: “...Aí me chamaram
porque eu nadava bem. Aí eu mergulhava e encostava a mão nele... por

103
umas dez vezes! Tava com medo. Na última vez, coloquei a mão no
calção dele e consegui tirar ele da água. Tinha mais de duzentas pessoas
assistino...” Antônio trabalhou com Alex na usina de 1933 a 1936, lavando
garrafas usadas, com Anastácio, para engarrafar álcool. Nesse tempo as
garrafas vendidas no comércio com quaisquer conteúdos eram
reaproveitadas. Depois Alex montou uma firma que armazenava café,
feijão, e fazia um fubá finíssimo com moinhos comprados na cidade de S.
Gonçalo. Este negócio se desenvolveu até quando começaram a surgir os
supermercados, e a concorrência começou a embalar seus produtos
diretos para a venda nas prateleiras, o que dificultou a sobrevivência da
firma. Começou a faltar capital... “...Teve uma vez que ele tinha muito
estoque de feijão e café e ele acabou vendeno pelo preço do mercado; em
10, 15 dia, os preço dobraram!...”

104
Capítulo 33

Alex fez uma experiência com as condições de cultivo da cana.


Plantou-as debaixo de anjicos como se plantava café debaixo de árvores.
Não se adaptaram. Restou a mata de angicos que serviu de reservatório
de lenha para a usina; também para a extração dessa madeira para outras
necessidades prementes, como para abastecer os fornos de Rita. O
bosque de angicos na planície à beira do rio também servia de palco para
certas brincadeiras dos meninos do bairro S. Marcos. De cima de alguns
que se encontravam às margens do Ululu, mergulhavam dentro d’água.
Era uma sensação! Alguns saíram dessa prática perigosa, lesados
permanentemente, como foi o caso de Alcebíades, que ficou paraplégico,
e, como era de família bastante humilde, saía de casa se arrastando pelas
ruas, munido de uma proteção de câmaras de pneus de bicicleta para
suas pernas.
Jean Jack havia nascido de parteira, na fazenda São Vicente da
usina São Marcos. Corria pelos quintais e capoeiras, e nas épocas de
safra sentava com seu irmão Márcio no alto dos morros para ver a retirada
dos canaviais. Os homens cortavam as canas e os carros-de-boi da usina
as levavam embora. Os meninos se empoleiravam nos carros e
percorriam parte do percurso; voltavam caminhando, agraciados pela
aventura. De vez em quando, um acidente ocorria: a corrente de algum
carro-de-boi que prendia o carro aos bois se rompia e o carro carregado
de canas despencava morro abaixo; outras vezes junto com os bois. Teve
um caso em que dois bois tiveram que ser sacrificados porque sofreram
fraturas irrecuperáveis na queda. Havia uma pequena cachoeira artificial,

105
cuja água que a abastecia ininterruptamente provinha de uma nascente
farta e cristalina, que havia sido represada, dando origem a um pequeno
lago. Era o ponto chave e central para onde convergiam todos os meninos
das famílias que moravam e trabalhavam na fazenda o ano inteiro – ou
noutras fazendas em torno; e muitas pessoas saíam de lugares distantes
para se refrescarem debaixo das águas dessa queda. Esta proporcionou
uma vida mais colorida, alegre e refrescante para todos indistintamente,
que se aventuravam a adentrar embaixo de seu fluxo imanente. Havia
uma carreira de árvores enormes e antigas que davam uma fruta pequena,
arredondada e amarelada: os meninos subiam em cima das árvores
sequiosos e enquanto todas as frutas maduras não fossem derrubadas,
estariam prontos e armados de bambus e pedras ao encalço de cada alvo,
dia após dia. De vez em quando algum se machucava: num belo dia,
quando estavam à procura de mangas maduras debaixo de um mangal,
uma pedra foi lançada e cursou uma órbita que a levou diretamente para
um dos olhos de Amauri. A pedrada o tonteou instantaneamente e ele
quedou desmaiado. Tiveram que levá-lo para o hospital e diziam que não
mais enxergaria do olho atingido. E, voltando então, depois de saciados
pelas frutas saborosas, corriam para a cachoeira e iam jogar pião no
terreno de terra batida em frente às casas de seus pais, os lavradores dos
canaviais. As latas de sardinha compradas por suas mães nos períodos de
pagamento tinham destino certo: eram transformadas em carrinhos,
ganhando rodas de madeira, cabines e assentos. Os bois eram
representados por sabugos de milho, buchas de cerca ou mesmo pedaços
de pau. Eram os carros-de-boi a transportar canas, estas, pequenos
espetos de pau, dispostos à maneira das verdadeiras nas plataformas dos

106
carros. O universo da economia açucareira reproduzido no imaginário
pueril das crianças marcava o berço cultural à partir do qual se forjariam
muitas histórias de vida.
“...no meio do canavial tinha coelho, iambú, tatu... Dona Yolanda
morava no meio do canavial, perto da usina: cachorro do mato ia lá pegar
galinha dela pra comer... quando a turma ia cortano as cana, ia
encontrano os ninho dos bicho...” Com os carros bem carregados, as
canas bem arrumadas em suas plataformas pelos carreiros, rumavam
todos em direção à usina. Depois de pesados, descarregavam no pátio, ao
lado da esteira rolante. Quando não chovia, a atividade transcorria
normalmente. Do contrário, uma batalha contra as condições
desfavoráveis se instalava. Os carros-de-boi ficavam atolados nas
estradas precarizadas ainda mais pelas abundantes águas que caíam nem
sempre mansamente do céu. Custavam a chegar na usina, topando
constantemente com buracos traiçoeiros escondidos sob as poças d’água.
Quando empinavam seus carros no pátio para descarregar, as canas
caíam no chão enlameado. Os homens que levavam nas costas as canas
descarregadas para a esteira, sob a chuva que se fizesse suportável,
colocavam em seus ombros um saco de mauá para firmarem os móis-de-
cana e para protegerem seus ombros do contato direto com as canas
barrentas. “ ...formava as montanha de cana dos dois lado da esteira; elas
ficava toda emaranhada... a esteira era de táboa de madeira com corrente.
Os homem pegava as cana só de um monte, pra esvaziar ele pro outro
dia... às trêis da manhã chegava os carro e ficava enfileirado até as seis.
Os carreiro e os candieiro fazia fogueira na rua... eles passava umas hora
boa, conversano... tinha briga tamém!... vinha de todo lado e ia fazeno

107
fila... e ia longe... quando tinha muito fazia duas fila. ... outros cantava...
todo mundo acordava de madrugada nas casa da usina, em frente.
Quando eles ficava parado na fila, no morro, eles colocava pedra nas roda
dos carro... era a 413, a cana manteiga, que todo mundo gostava de
chupar!... eles vigiava muito pra nego não tirar!... os carreiro dava guiada
na mão de quem eles pegava tirano... tinha um muito brabo que metia
guiada nos outro!...
...o vinhoto do alambique ia pro rio. Matava os peixe tudo! De
época em época os peixe ia igual a uma lenha por cima do rio... os peixe
branco morria tudo!... peixe que tinha escama. O bagre e o cascudo que
entrava no barro, resistia...” Nos tempos de conserva, viam-se carros-de-
boi chegarem à usina com fardos de lenhas provindas de matas da região,
que seriam usadas na safra seguinte, e que Rita preparava e vendia em
feixes, e também as usava para preparar suas obras de arte
gastronômicas. Alguns destes carros-de-boi, ao descarregarem as lenhas,
que formavam uma montanha ao ar livre, recarregavam logo em seguida,
de sacas de açúcar, as plataformas de seus carros, com destino à estação
de trem.
Uma enchente de grandes proporções invadiu e cobriu quase todo
o pátio da usina. Havia uma quantidade considerável de sacas de açúcar
empilhadas a partir do chão em uma antecâmara de armazenamento,
prontas para serem transportadas para o local mais apropriado. Pois as
águas da enchente minaram as primeiras sacas da parte de baixo das
pilhas, e estas derretidas ocasionaram o desmoronamento de todas que
foram bebidas pela grande lagoa que se formou.

108
Capítulo 34
Os dois rios que banhavam a cidade eram fartos de peixes como
lambarí, traíra, mandí, bocarra, bagre, cascudo, etc.. Quando uma
enchente se anunciava pela forte chuva que caía na região, sobretudo
condensando na Serra Bonita nuvens que desabavam em contato com os
paredões, levava para o rio um volume de água excepcional. Os peixes
apareciam em abundância e fartavam os pescadores profissionais e
amadores. Pegava-se muito! Num local já sabido pelos mais experientes,
no meio da correnteza, num poço fundo, pegavam-se dúzias de peixes, ao
lançar o coador, uma armadilha. Uma enchente em especial marcou a vida
dos toulouseanos na primeira metade dos anos trinta. Os morros se
derretiam ante à avalanche de águas ininterruptas do céu. Os rios e
córregos transbordaram muito além do esperado, surpreendendo os
ribeirinhos ao levarem suas casas e algumas de suas vidas. Foram pegos
sem que pudessem reagir ante à correnteza avassaladora de lama e água
em grandes proporções, arrasando tudo pela frente. Muitas pessoas foram
vítimas dessa enchente única e pavorosa, como também animais nos
pastos e os que se encontravam confinados. A água chegou a patamares
inacreditáveis; os prejuízos, incalculáveis! Alguns morreram afogados no
rio. No local onde havia a ponte do rio Ululu, que dava acesso à usina de
Alex, um poço de aproximadamente seis a oito metros tragava para suas
profundezas alguns aspirantes a grandes nadadores. Até mesmo alguns
que se julgavam meio anfíbios, dado o estreito contato com a água que
sempre estabeleceram, sucumbiram; outros foram até o limite entre a vida
e a morte, e retornaram. As pontes de madeira que cobriam os rios e
córregos da região, foram arrastadas.

109
Júlio desde cedo mostrava um eminente espírito comercial; mente
afiada e focada no ganho. Um capitalista inveterado, astuto, perspicaz,
mas que não deixava de, em nome do seu alcance intelectual, cultivar
certas atitudes que beneficiassem a todos os envolvidos: enxergava longe.
Teve vários negócios, e nunca até então lograra continuidade e sucesso.
Sua face determinadamente inquieta e aventureira se fazia sempre
presente e de uma força instintiva que suplantava, no fim das contas, sua
capacidade de parcimoniosidade. Isto somado à outra face também bem
atuante, a que o impelia a buscar a perfeição, através de uma visão crítica
acurada e incisiva, o colocava numa situação delicada e ao mesmo tempo
frugal. Se, por um lado, não mantinha em andamento a mesma força que
havia posto em ação iniciando um negócio, por outro, já que Alex o
acobertava, foi somando experiências que lhe seriam de grande valia.
Chegou a montar uma firma de beneficiamento de grãos de cereais.
Depois de sua rápida falência, outra de engarrafamento de aguardente de
cana, que também fechou suas portas para o nascimento de uma loja de
tecidos, que por sua vez com seu fechamento deu à luz a uma granja de
criação e venda de pintos. Com esta última mal fadada experiência, Alex o
persuadiu a ir trabalhar com ele: isto porém somente ocorreria em 1945. A
usina era ainda um engenho pequeno que moía, em 24hs., 120 toneladas
de cana. Porém Júlio começou efetivamente a se inteirar de tudo acerca
da fabricação do açúcar, lentamente, em especial acerca dos problemas
advindos do mal funcionamento das precárias engrenagens, que faziam
parar todo o maquinário.

110
Capítulo 35
Os animais, já nem tão abundantes quanto décadas atrás,
pululavam as grotas, as capoeiras e sobretudo as áreas de matas. Os
homens em geral, e alguns particularmente apreciavam com fervor a arte
da caça, em primeiro lugar, pelo valor de sobrevivência. Depois vinham
aqueles que faziam do esporte um hábito e meio de se divertir, além do
fruto da caça, sempre exaltado, sobretudo pelos envolventes pratos
saborosos que proporcionavam. Os caçadores tarimbados saíam em dia
de lua cheia, noite clara. Levavam uns três ou quatro cachorros e também
espingardas de pólvora e chumbo, que eram carregadas pela boca. Os
cachorros farejavam os tatus nas tocas e os acuavam até que os
caçadores chegassem. Ao tentarem sair por um dos buracos que ficava
livre, que era deixado assim para atraí-los, eram então fisgados pelos
caçadores ou os cachorros os pegavam em disparada. Outras vezes,
quando o buraco era raso ainda, o caçador enfiava a guiada na porta do
buraco e cercava o tatu até este tentar sair “de fasto”, momento quando
era fisgado e pego. Esta carne era um prato típico de paladar forte e
quente: quem a comesse estaria sujeito a uma hemorragia caso
fortuitamente fosse acometido por uma ferida profunda. Quem tivesse
algum ferimento em processo de cicatrização, ficaria sujeito à demora do
processo imposta pelos efeitos nocivos que a ingestão da carne
provocava: a ferida não sarava e se abria... Os preás do brejo dentre
outras espécies pertencentes à este habitat, também eram alvo dos
caçadores que sabiam se agraciar degustando suas carnes. Os pássaros
se tratavam de um cardápio variado e mais leve: pombas rola, trucal, juriti,
e outras abundantes espécies. A caça às aves era comum, bastante usual.

111
Nos fins de semana, hordas de atiradores partiam para certos redutos em
busca de suas presas fáceis. As capoeiras das fazendas, últimos refúgios
para a flora e a fauna nativas, onde os pássaros se encontravam, eram os
locais mais cobiçados; senão as áreas pequenas ou grandes, de mata. Os
bípedes caíam um a um ante às miras certeiras dos caçadores bem
treinados. Poucos respeitavam as épocas de procriação e abatiam
verdadeiros contingentes emplumados, matando ou danificando
seriamente suas crias nos ninhos; os filhotes morreriam de fome caso os
dois pássaros provedores fossem abatidos, o que não era raro. As fieiras
de pássaros se igualavam às de peixe, em termos de bons exemplares
apanhados. A caça e a pesca, atividades bastante corriqueiras, rendiam
pratos típicos muito apreciados. Porém, como não havia nenhuma forma
de controle dessas práticas, muitas espécies foram desaparecendo à
medida que o tempo avançava.

112
Capítulo 36
Antes do advento do rádio, as cidades do interior contavam com os
cinemas para o entretenimento de seus cidadãos. Haviam também os
bailes noturnos e os jogos de futebol, diurnos. Toulouse abrigava dois
cinemas: o Cine Toulouse e o Cine Globo. Este que situava-se perto da
praça, num casarão antigo com pé-direito alto, com cadeiras em baixo e
duas fileiras de cadeiras na parte de cima, era mais popular. O Cine
Touluose, mais grã-fino: sua arquitetura para teatro, é um monumento à
grandeza do homem. Não havia som nas exibições dos filmes -- tratava-se
do cinema mudo -- que apresentavam somente suas películas visuais no
telão; uma pequena orquestra em cada cinema preenchia os ouvidos dos
presentes. Os músicos se instalavam entre a tela e o público, numa
trincheira, de modo que não eram vistos. Os filmes nos dois cinemas
concentravam as atenções de todos e os maravilhavam. Quando o
primeiro filme mudo estreou na cidade, houve uma cena inicial de um trem
que se aproximava, vindo de longe, aumentando de tamanho na tela, até
que passou por cima da câmera que o filmava, causando a impressão na
platéia desavizada, que estaria adentrando à sala de exibição. Muitos
saíram correndo apavorados, acrediando fielmente que a sena era real e
que o trem estava passando por cima de todos que o estavam assistindo.
Alex apesar da intensa carga de trabalho à que era submetido, não
faltava às sessões de domingo com Rita, somente não comparecia
quando exibiam algum filme repetidamente, o que não era raro de
acontecer. Durante uma sessão de comédia, em que Alex se divertia
dando gargalhadas, foi avisado de que um dos seus criados prediletos
havia acabado de falecer vítima de um ataque fulminante do coração. Ele

113
e Rita saíram imediatamente para vê-lo e assistir sua família. Os caixões
eram feitos por encomenda depois da morte da pessoa. Tirava-se medida
do defundo e em duas ou mais horas estava pronto. Enterraram-no com
lamentações e tristeza. Fato é que diante da morte inesperada do marido,
sua mulher se esvaiu completamente em prantos e em tal ignóbil estado
de revolta, que acabou por dar cabo de sua própria vida, atirando-se de
um penhasco. Os dois foram enterrados juntos. Seus dois filhos passaram
a ser criados por Alex e Rita numa casa pequena que mandaram construir
para abrigá-los no grande pátio da usina; não deixaram parentes
próximos, tanto em questões de consanguinidade, quanto de distância:
não se houve notícias de parentes destas crianças por um bom tempo, até
que num belo dia, já na década de cinquenta, uma tia apareceu para
visitá-los, e somente.
Rita ia ao cinema quase todos os dias. Saía da usina à pé, às
vezes antes de escurecer, e quando chegava no Cine Toulouse, se
desligava do mundo. A sessão noturna diária, começava às oito e havia
dia que acabava às dez, dez e meia. Ela pegava um carro de praça para
retornar, e quando chovia, descia em frente à casa do Sr. Zezinho, porque
o carro não subia mais o pequeno morro para chegar à usina. “...Ela
apiava alí e eu ia lá pra acompanhar ela até a casa dela na usina...” Do
outro lado do morro também, as condições da rua ficavam irrecuperáveis
até passar o tempo de chuva.
Na usina Jacques Ledoux, durante a primeira metade dos anos
trinta, havia campeonatos de futebol entre os empregados de suas
fazendas. Um campo bem cuidado ficava atrás da usina, ao lado de uma
nascente de água. Para os jogos neste campo, três caminhões se

114
deslocavam para as fazendas e iam arrebatando os times e suas torcidas.
Numa dessas vezes, o caminhão passou por um transeunte e suas rodas
espirraram barro no indivíduo que estava na beira da estrada.
Imediatamente, e com extrema violência, o homem lambuzado de barro
reagiu sacando de um revólver e lançando impropérios ao motorista.
Atirou em direção ao caminhão e correu para dentro do canavial. Dois dos
tiros desferidos sucessivamente acertaram o mesmo homem que
desfaleceu instantâneamente na carroceria do caminhão repleta de
pessoas. Resultado: os campeonatos foram suspensos e a usina teve que
pagar uma indenização à família da vítima. Houve então uma idade das
trevas nesse sentido e os homens ficaram sem praticar esses
campeonatos que os faziam se integrarem e se sentirem mais felizes.
Eram acontecimentos sociais, onde as pessoas se encontravam, trocavam
idéias, se enamoravam, brigavam, etc.. Um período de isolamento fez com
que os jogos de futebol se reduzissem às peladas estritamente
localizadas. Os torneios de futebol envolvendo a usina São Marcos,
surgiram com o renascimento dessa atividade na usina Jaques Ledoux.

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Capítulo 37
Lauro quando tinha doze anos, já fazia mandados na fazenda S.
Vicente, de Alex. Ia sempre à cidade buscar mantimentos, como sacos de
macarrão, de carne seca, de arroz limpo, etc.. Adentrava à praça de
Toulouse e parava o carro com três juntas de boi em frente à Maison de
France e o abastecia. Os meninos brincavam na praça e por extensão,
nas ruas. Árvores frondosas povoadas de saguis e monocarvoeiros
tomavam quase todo o terreno da praça, e algumas exibiam raízes que
emergiam do solo e formavam pequenos muros ao seu redor. Eram
esconderijos manjados em toda brincadeira de “soldado-ladrão”, e os
locais prediletos dos namorados que se esgueiravam por entre as raízes.
Os homens à cavalo que transitavam pelas ruas que contornavam a praça,
e os carros-de-boi, vez por outra se deparavam com uma bola extraviada
cruzando seus caminhos. A cidade pacata, possibilitava que houvessem
partidas de futebol jogadas pelos meninos, no meio das ruas. Isso
acontecia em todo lugar, em toda rua, em todo canto. Quando algum
cavaleiro ou alguma carroça-de-burro ou de boi queria passar, a pelada
cessava imediatamente, e continuava logo após sua passagem.
A praça de Toulouse, rodeada pelos imponentes sobrados e casas
baixas, já continha num de seus lados um lindo jardim e a igreja matriz de
São Marcos mais ao fundo
Na década de trinta não havia pleitos eletivos para cargos públicos,
mas, dois partidos clandestinos se faziam presentes na vida dos cidadãos,
na esperança de um dia conseguirem se impor legalmente. A ditadura
militar mantinha todos os setores da vida sob áspera vigilância, e não
haviam novidades sobretudo na esfera da política, que rompesse com os

116
padrões estabelecidos. A Igreja também imperava sob as mentes de todos
com uma força descomunalmente coercitiva.
Ivã era um rapaz com boa capacidade de discernimento,
inteligente; determinado e possuidor de um porte físico robusto e bem
formado. Iria galgar um lugar cativo na usina, certamente, não fosse sua
morte prematura: caiu num buraco fundo num dia de muita chuva e lá
permaneceu até que o descobrissem e o retirassem, direto para o
cemitério. Sua família ficou completamente desamparada e suas irmãs
mais velhas, ainda na fase da puberdade, se prostituíram. Foram trabalhar
para uma senhora possuidora de uma casa de mulheres no alto do morro
do Calvário. Uma delas teve boa sorte, quando apareceu em sua vida um
viajante que se apaixonou por ela e a levou embora. Muitas pessoas em
situação similar passaram fome. O império do capital sobre o trabalho,
este, por sua vez escasso, era veemente, crudelíssimo.
Jack Lenon Dubois nasceu em 1923, na zora rual de Santo
Antônio, cidade vizinha de Toulouse. Seu avô, se fixou aí depois da guerra
da conquista de Canela pela França. Plantava cana desce o início do
século para abastecer a usina Jackes Ledoux. Era uma espécie de cana
grossa, amarelada, rica em sacarose, que dava uma rapadura clara, que o
avô fazia. Em 1936 houve uma perda acentuada de canas nos canaviais,
advinda do plantio excessivo que ocorreu. A queda do café em 1929 fez
com que a cultura da cana ganhasse grande impulso, os canaviais
imperavam. Jack Lenon era o candeeiro do carro-de-boi de seu pai, que
era o carreiro. Davam somente uma viagem de ida e volta à usina por dia:
18 km para a ida e outros 18 km para a volta. Saíam às duas ou três da
madrugada do pequeno sítio que possuíam. A safra começava em maio e

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terminava em outubro\novembro, cujo maior período era de inverno,
rigoroso e seco, chegando à sua temperatura extrema de zero grau, ou
ainda menos em certas ocasiões excepcionais. Jack não tinha nada para
calçar e trajava uma bermuda, uma camisa e uma leve blusa jogada por
sobre seu corpo aparentemente frágil: foi premiado pela natureza com
uma saúde de ferro, uma resistência ímpar. Certa ocasião, caiu uma
geada forte, espessa, que lançou seu encantamento branqueando toda a
paisagem; os obrigou a parar e a se abraçarem para resistirem ao imenso
frio cortante, de roer os ossos. Juntaram os bois e ficaram abraçados no
centro, até que a temperatura se amenizasse.
O único irmão do pai de Jack, seu tio Carlos, possuía três boiadas:
dezoito bois divididos para três carros: seis bois em cada carro. Durante o
período de inverno não chovia, coincidia com o período de estiagem.
Faltava capim nos pastos para alimentar os bois, que sofriam
amargamente a falta de nutrientes para enfrentarem o pesado fardo de
puchar as canas. Antes e depois da usina de Alex começar a funcionar,
quando as usinas ficavam temporariamente avariadas por causa de
alguma disfunção em seu maquinário, os bois aguardavam nas filas
quilométricas sem comer capim ou outra coisa qualquer, como milho, etc..
Isso era muito frequente, e os sucessivos períodos que os bois ficavam
sem alimento os enfraquecia inexpugnavelmente. Muitos morriam,
desfalecidos nas filas. Na usina de Alex, como isso também ocorria, Rita
ficava amargurada. Ninguém gostava de ver um animal morrer de
inanição: era inaceitável! “... a usina quebrava sempre e os carro-de-boi
ficava o dia inteiro esperano rumar... outra hora ês deixava os carro cheio
no pátio da usina e levava os boi embora; vortava no dia seguinte. Se o

118
defeito era simples, esperava rumar...” Rita, sempre compadecida do
sofrimento dos carreiros e dos candeeiros nas filas, horas à fio, os nutria
às vezes com almoço, às vezes com café com broa ou com pão...
Em época de conserva, os meninos da cidade tinham mais tempo
para brincar, na quietude do ambiente. Jogavam birosca, batiam pelada,
caçavam e pescavam. Como a carne era escassa, a caça e a pesca eram
muito valorizadas. Todos empreendiam verdadeiras expedições. Jack
amava seu cão e se orgulhava muito dele quando iam caçar. “... eu tinha
um cachorro que era tão bão que mergulhava atrás do largato e pegava
ele debaixo d’água. Pegava tatú...” Jack e seus dois irmãos mais novos
seguiam os cachorros que encovavam os tatus. Então, de porte de
pequenos enxadões, cavucavam a terra até conseguirem pegar o bicho;
nem sempre conseguiam porque os tatus mantêm trilhas subterrâneas
alternativas para fugirem de seus predadores, e escapavam por elas ou se
escondiam eficazmente, para não atraírem os cachorros. Quando a caça
era bem sucedida, havia a necessidade de se tomarem precauções para
que os caçadores não fossem feridos pelas unhas grandes e fortes dos
tatus; estes deveriam ser imobilizados de barriga para cima. Os meninos
pescavam também com seus pais, de tarrafa, quando juntavam muitos
peixes, ainda mais quando as enchentes engrossavam os córregos e rios.
Haviam os que pegavam os peixes com as mãos, dentro de suas locas
debaixo d’água. Com relação aos pássaros, Jack, seus irmãos e seus
amigos, desenvolveram, como todos os meninos, a arte de atirarem-lhes
pedras em pássaros com atiradeiras. Alguns evoluíam à ponto de suas
pontarias lograrem efeito quase sempre. Outros nem tanto, e outros nem
ousavam persistir. Quando saíam para caçar, quase sempre regressavam

119
carregando algumas aves pelos pés, desfalecidas pelos traumatismos à
que eram submetidas impiedosamente. Os estilingues ou atiradeiras eram
suas companheiras de todo momento, e quando menos se esperava,
algum pássaro incauto quedava atingido; alguns usavam-na no pescoço
como um colar, o que muito se orgulhavam. Quando os pássaros
entravam no raio de ação dos atiradores astutos, estes as abatiam
intrepidamente. Mesmo quando iam pescar, empunhando varas de bambú
e latinhas de minhoca, não se esqueciam das atiradeiras que eram
também displicentemente levadas à tiracolo ou amarradas nos calções. De
vez em quando, uma guerra de pedradas.

120
Capítulo 38
O pai de Josué Bertold foi quem abriu a terceira fazenda de Alex,
em 1936 e plantou-a toda em cana. Era sua lida: limpava os terrenos de
matas, cafezais, e os plantava com outra ou a mesma cultura. Trabalho
duro. Aqui consistia em arrancar os pés de café, arregimentando muitas
juntas de boi. O terreno ficava limpo e o plantio de cana se sucedia.
Porém, não obstante o real progresso alcançado por Alex e Silvino, por
duas safras, a produção logrou prejuízo devido a constantes problemas no
maquinário e os fornecedores não foram pagos. Indignados, estes se
reuniram para vislumbrarem as providências a tomar. Quando estavam à
ponto de crucificar Alex e Silvino, o pai de Josué, sr. Agripino interviu
sabiamente alegando que não receberiam se a usina abrisse falência.
Depois de uma acalourada conversa, chegaram à conclusão de que seria
mais plausível incentivar Alex e Silvino a persistirem. E se ficassem
sujeitos à um único preço para a cana, estariam nas mãos da Usina
Jackes Ledoux.
Um espírito misto de empreendedor, aventureiro e inventor, fazia
Alex conceber e experimentar recursos como forma de diminuir os custos
da produção. Um carro-de-boi comportava uma tonelada e duzentos quilos
de cana; depois de seu advento, uma carroça-de-boi comportava duas
toneladas. E foi em 1936, quando Alex construiu uma carroça de três
toneladas: os bois não resistiram! Mesmo com exemplares bovinos dos
mais robustos e truculentos. A carroça balançava muito suas rodas e
machucava os bois-de-coice no pescoço, os dois bois que ficavam
imediatamente à frente dela.

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Houve um programa sertanejo no rádio que catalogou mais de cem
peças que compunham um carro-de-boi; foram descobertas num
programa lançado pelo locutor: uma surpresa geral! Mais primitivo e
robusto que a carroça, sendo-lhe o precursor, carregou os fardos por
muito tempo, incontáveis... até ir sendo desbancado por ela, da segunda
metade da década de trinta em diante.
A cana mais plantada era a de maior peso e maior índice de
sacarose. Depois apareceram outras variedades com pouca concentração
de sacarose, portanto, pouco plantadas. Estas eram usadas em
substituição às primeiras, por serem as olhaduras -mudas- desta
variedade, mais caras e mais selecionadas. As primeiras canas que foram
plantadas em Toulouse, tiveram procedência de Oliveira, S.C. -- estado
vizinho à Jardin e o mais poderoso e influente de Canela -- e as
posteriores foram saindo de seleções realizadas pela própria empresa,
que passou a ter sua própria fonte de mudas. Em 1937\8, Bertold foi com
Smith, agrônomo da Usina Jaques Ledoux, reconhecidamente
competente, à Guianá – capital do estado de Jardin -- levando as
primeiras amostras de terra para análise, ao Instituto de Tecnologia da
Secretaria de Agricultura. Este, apresentava a fórmula do composto de
adubo. Os ingredientes eram comprados e em Toulouse, realizava-se a
mistura. Os fornecedores particulares de cana, para a usina São Marcos,
custaram à se adaptar ao advento dessa nova realidade e se mostraram
extremamente resistentes no início: não queriam pagar pelo adubo,
colocando-o sob suspeita quanto à sua eficária para aumentar a
produtividade. Somente com o transcorrer dos anos é que foram

122
constatando efetivamente um aumento na produção nas terras da usina e
aderiram à nova prática.
Neste momento ainda, havia somente uma fina esteira que
alimentava de canas, as parcas e exitantes moendas. Não se aceitava
canas muito grossas para diminuir a possibilidade destas emperrarem ou
quebrarem aquela. Josué Bertold ainda menino, não saía da casa de
Ricardo, o mecânico das engrenagens, às noites, nos períodos de
entressafra. Este morava no alto do morro ao lado da usina, numa casa
alugada da própria usina. Numa tarde quando a noite caía mansa e
imperceptivelmente, ao chegar em casa, Ricardo encontrou Josué e outros
à sua espera para ouví-lo duelar brava e suavemente com seu violão, o
que sempre fazia nessa hora. Quando o tocador estava na varanda de sua
casa cantando uma valsa, eis que surge alguém convocando-o para uma
manutenção imperiosa numa turbina manual; fazia-se a safra. Ao
inspecionar o problema na turbina, ao ligá-la, esta inesperadamente
estourou provocando nele ferimentos que o levaram à morte
instantâneamente! Seu estado de desintegração foi tal que... Ricardo, o
mais velho mecânico da usina, que teria se afastado desta por ter se
mudado duas vezes para Besançon, mas, retornado, foi pego
tragicamente pelo destino, deixando sua família desesperada.

123
Capítulo 39
Ronaldo ingressou em 1933\34, quando apresentava a idade de
trinta e três anos e desempenhava a função de puchar as canas que
ficavam no depósito, um pouco acima da parte mais baixa da esteira, para
esta, que se situava ao lado. Os homens puchavam com garfos ajeitando-
as na queda e intervinham sobre aquelas que saíssem da uniformidade.
Com ele trabalhavam mais dois. O guindaste, mais tarde, içava as cargas
de cana dos caminhões, dos carros-de-boi e das carroças e ia
depositando-as ao lado direito (de quem entrava) da balança, num espaço
que se estendia da balança de pesagem até depois da esteira, formando
pilhas de canas. Este local foi quase todo coberto com folhas grandes de
telhas de amianto, para proteger as pilhas de cana e o guindaste que
percorria por uma ponte, toda a estenção dessa área. Os carros-de-boi e
as carroças, usualmente, por possuirem um volume de carga bem menor
do que os caminhões, suas canas eram levadas direto para o caixote – o
compartimento ao lado e um pouco acima do início da esteira --, e deste,
para esta. Ronaldo no princípio somente trabalhava no período de safra,
até ser efetivado, quando Alex mandou sr. Sebastião, que era o contador,
realizar sua efetivação: “...À partir de hoje o sr. é efetivo. Nunca deu
problema... é um homem bom. ...” Trabalhava doze horas por dia. Certo
dia, sr.José Rosa quis que Ronaldo fosse para as caldeiras no lugar do sr.
Benjamim... e o tirou da amarração, lugar onde trabalhou também. Eram
então sete pessoas nas caldeiras: “...Cada um tomava conta de uma boca
e um lá embaixo no cinzeiro tirano cinza. Onde o bagaço caía trabalhava
um, lá fora. Quando apertava a gente tirava um das caldeira pra ajudar...
Trabalhei na usina por trinta e seis ano e em qualquer lugar que me punha

124
eu trabalhava bem, eu fazia bem. Eu sempre ia lá pros vácuo, pro
alambique, pras turbina de primeira e de segunda... Eu trabalhava em
quase todos os setor. Nada me punha em dúvida. Trabalhei um pouco
com Jaime...” ... a garapa saía das caixas de evaporação, passava por um
encanamento e caía dentro de uma caixa de charopinho. Dali, seguia num
encanamento de três polegadas para os vácuos. Nos vácuos se misturava
ao açúcar cristalizado que já estava lá dentro, para que este crescesse.
Ele engrossava e virava um açúcar preto com melado. Então, era
conduzido por um encanamento para um depósito que ficava em cima da
turbina. Abria-se uma comporta e o melaço caía nas turbinas, de onde
saía pelas paredes internas (telas de aço, peneiras) da mesma, só ficando
o açúcar. Quando a turbina parava depois de cada operação, o açúcar
pronto se depositava na parte baixa, no fundo da mesma, onde havia um
dispositivo que se abria e ele caía numa esteira que o levava para o
ensaque.
Na década de trinta, na usina S. Marcos: “...Quando eu cheguei,
tinha uma bomba de vácuo, colosso! Diversos cristalizador... O melado
caía pros cristalizador antes de ir pra turbina... aumentava a produção no
cristalizador... três turbina de primeira e cinco de segunda... o açúcar de
segunda saía preto, que era levado pro vácuo e saía o açúcar cristal... Os
cozinheiro de vácuo ficava lá no registro misturano o charope com mel, o
meladinho ralo; tirava uma sonda, uma vara de metal com um cachimbo
na ponta, e trazia no cocho cheio de charope pra ver se ele tava no ponto
pra arriar, pra abrir a porta e ele cair dentro dos mexedor, umas vazilha
grande... por baixo dos mexedor, as bica. Alex sabia mesmo, o ponto, ele
era craque naquilo e ninguém batia nele nisso. Ele sabia fazer açúcar!...”

125
Certa ocasião o armazém ficou lotado de açúcar porque não conseguiram
vendê-lo. Passado um tempo, quando foi efetivada a venda, todos os
empregados foram carregar os caminhões que iam buscá-lo de uma vez.
“...Quando eu cheguei em 1936, já tinha o grande armazém, e do lado,
inauguraro o Cine Liberdade. Eu frequentava o cinema. Eu gostava muito
era de filme de far-west!” Esta grande construção de tijolos com paredes
altas e espessas e coberta com camadas de telhas inteiriças, partia da rua
Luiz Bertrandt, e se estendia perpendicularmente à esta para dentro do
terreno da usina, se dividindo em compartimentos, como marcenaria,
armazém, oficina elétrica.
Trabalhavam na marcenaria cinco homens e um rapazinho moreno.
Fazia-se carrocerias de caminhão e de carros-de-boi e tudo o que se
precisasse fazer também, para a indústria. Nada ficava por ser feito, na
espera de alguém que tivesse conhecimento específico sobre o assunto,
dava-se sempre um jeito. Era o que Alex queria. Tudo tinha que funcionar.
A garagem situava-se num pavilhão comprido, de somente o andar térreo,
que partia da esquina da rua Luiz Bertrandt com a rua Virgílio de Souza e
se estendia paralelamente à rua Virgílio de Souza, separada desta
somente por um muro de tijolos, dobrado. Esse prédio era todo cheio de
entradas abertas onde os carros, tratores e caminhões ficavam
estacionados, cobertos por um telhado de gradações de madeira e de
telhas francesas. Sr. Marcelo era o mecânico, Jamil o lavador de veículos
e borracheiro, sr. Ersílio, sr. Aldair, sr. Murilo e sr. Adriano, os motoristas
efetivos. Haviam uns quatro ou seis caminhões D-30 e um caminhão
Chevrolet...

126
Houve um acidente no elevador de açúcar, com um homem que
estava trabalhando colocando os sacos de açúcar na esteira que os
levava para os caminhões; isso, na década de quarenta. Esta esteira
partia do local coberto e fechado onde os sacos de açúcar ficavam prontos
para o transporte, trespassava a parede grossa e alta por intermédio de
uma fenda larga e se estendia até um pouco depois, onde ficava
estacionado sempre um caminhão, com alguns chapas em sua carroceria,
de pé, recebendo em seus ombros os sacos que iam chegando da esteira.
Os homens dispunham convenientemente os sacos nas carrocerias dos
caminhões, que, de um à um, iam se abastecendo e deixando o pátio da
usina para seus destinos. Este homem, que estava na parte de dentro
colocando os sacos na esteira, em certo momento, vacilou e ficou preso
nesta, que, em movimento, o confrontou com a parede ao redor do buraco
por onde passava para a parte externa da grande construção. Como ele
não cabia do jeito que estava preso, no buraco da parede por onde
passava a esteira, esta foi forçando-o contra a passagem ocasionado
neste homem inúmeras fraturas e provocando um derramamento de
sangue que lhe foi fatal. Meio esmagado, meio quebrado, meio rasgado,
sucumbiu nesse processo doloroso porém rápido, à que foi vítima
indefesa.
No caso do Riveira, que trabalhava na esteira que levava cana
para a moenda: Zé: “A moenda ia engolino a cana, mas tinha alguma cana
que ia meio atravassada e pegou a mão dele... muito sangue! Um berrero
danado!...” Nunca mais seria o mesmo, física e psicologicamente. Já não
mais aguentava o barulho gritante e contundente daquele ambiente
insalubre. Aposentou-se. Outros acidentes de menor gravidade ocorreram

127
nesse período, sem maiores consequências para aqueles que os
sofreram.

128
Capítulo 40
Na década de trinta, o rio Ululu, ainda caudaloso e piscoso, não
sofria tanto o sério problema do assoreamento de seu leito, como nas
décadas posteriores. As enchentes sazonais provocavam seu
transbordamento e suas águas repletas de sedimentos se espraiavam
pelas planícies aluvionais. A ponte situada ao lado do terreno da usina que
era banhado pelo rio, estava sempre em péssimas condições e forçava as
carroças e os carros-de-boi passarem por dentro d`água, para
atravessarem o rio, ao lado dela. Suas taboas que com o tempo se
desprendiam de seus lugares, formavam fendas de vários tamanhos que
machucavam as patas dos animais, às vezes, irremediavelmente. “...A
ponte costumava machucar uma mão, uma perna, dos boi. O carro
passava tamém pros boi beber água. ...” Os dois burros pioneiros que
puxavam as duas carroças da usina, já ficavam soltos pelo pátio; haviam
se aposentado. Alex já possuía três glebas de terra na zona rural, e
contava com os fornecedores para abastecer a usina de matéria-prima.
Quando chovia muito, seus filhos com seus companheiros se deliciavam
com o espetáculo dos carros-de-boi atolados nas ruas da cidade, com
suas cargas de cana. Implementava-se o arranjo de boiadas para a
retirada dos atolados: os meninos se divertiam com a movimentação.
Ronaldo trabalhou na usina por quatro anos até conhecer o porão
da casa de Alex, perto do tanque de melaço. “... eu era muito prudente...
Rita usava latinha de manteiga, quadrada, de forma pra fazer as broa de
fubá... ela fazia goiabada cascão, doce de leite... vendia pros empregado
e descontava do pagamento... doce de leite ela vendia em copo de vidro.
Era muito gostoso!!!...” Quando Ronaldo entrou aos treze anos de idade,

129
colocando canas do chão para a esteira, foi muito discriminado também,
como todos os novatos menores. A história se repetia, ninguém os
respeitava e eles não eram bem aceitos por seus companheiros de
trabalho, que sempre acreditavam ter que assumir uma carga maior por
causa da incapacidade física desses meninos, para contrabalançar suas
debilidades. Porém, com o tempo, deixou patente sua garra e força de
vontade, advinda da grande necessidade de um emprego para poder
ajudar a sustentar seus numerosos irmãos, bem mais novos que ele. Era
um rapaz com boa capacidade de discernimento, inteligente; determinado
e possuidor de um porte físico robusto e bem formado. Aliás, somente
eram admitidos para a labuta diária nesse ambiente, homens cujos físicos
privilegiados eram condição “sine qua non”, para aguentar as cargas e o
ritmo do trabalho braçal.
Diz Ronaldo: “...Alex Bourdon, era um homem muito inteligente,
que trabalhava muito, duro! Bem alto, muito corado, vermelho, bem claro,
de cabelo corrido, meio pardo. Do olho castanho-claro, e um corpo que
não era magro nem gordo. Júlio era tamém claro. Sistemático, só
conversava com a gente de cara fechada...” Rita buscava lenhas onde
elas ficavam depositadas para serem usadas nas caldeiras. “...Chegava
ela, o Tião, que fazia mandado pra ela, e o Sinhô, um crioulo que tamém
trabaiava pra ela. Ela mandava rachar e despois vendia. Ela tinha um
caminhãozinho que puxava a lenha até na casa dela, dentro da usina
mesmo... Zé Messias todo dia saía vendeno verdura pra ela rua afora:
alface, couve, cebolinha, tudo o quanto há. Ês vendia bolo de farinha de
trigo, dentro e fora da usina, numa cexta de madeira forrada com um
pano... Ela era cavadeira!” Alex abriu ruas no terreno ao lado da usina e

130
vendeu lotes, onde viria a ser a Vila Santa Edwiges. Alguns empregados
seus, compraram e pagaram em prestações que eram descontadas dos
seus salários. Ronaldo comprou dois e depois vendeu um lote. “...Os
Bourdon foram muito bom pra mim... nunca pude recramar nada do sr.
Alex e o sr. Júlio gostava muito de mim e eu dele... eu tabaiava, mais
tabaiava lascado! Todo cuidado era pouco ... quatro caldeira, depois
cinco...”

131
Capítulo 41
Alex e Rita depois de uma exaustiva safra, foram à Besançon para
se distrairem e descansarem um pouco. Ambos estavam extremamente
cansados e estressados com as múltiplas atividades imperiosas que uma
safra lhes impunha. O contato com o mar lhes faria muito bem. Com seu
motorista de confiança e com suas bagagens todas arrumadas no carro,
sairam em direção ao relaxamento. Quando estavam passando pelas
imediações da cidade de Lídice, inadvertidamente, ao apreciar a paisagem
no caminho Alex teve uma visão: viu com perfeição uma construção
gigantesca e rústica, um palácio ou um templo; era de proporções
inacreditáveis! Rita estava adormecida e seu motorista concentrado na
estrada. Estava sozinho. O carro passou pelo lugar determinado da
aparição e a imagem da fabulosa construção permaneceu em sua
imaginação, encantando-o e perturbando-o. Ao chegarem à Besançon,
instalaram-se num hotel à Avenida Beira Mar, e foram imediatamente ao
Museu de Besançon, porque Alex estava suspeitando que aquele
magnífico, assombroso e antigo edifício existia realmente em algum lugar.
Em suas infatigáveis investigações, ao chegar ao Egito, se surpreendeu
em vê-lo em pintura e fotografia; ele o havia visto espontâneamente, brotar
dos confins de seu interior. Tratava-se do Templo de Luxor, em Tebas, à
margem do Nilo. Imediatamente, sob severa relutância de Rita, partiram
rumo ao Cairo. Permaneceram no Egito durante um mês. Quando
voltaram, Alex escreveu suas experiências que foram por demais
aterradoras. Rita estava assustada e não fosse por ela, Alex teria se
perdido em meio ao fascínio que o passado distante o impusera
compulsoriamente. Havia algo de muito estranho acontecendo. Numa de

132
suas fortes experiências oníricas carregadas de simbolismo, Alex estava
sitiado por grandes pirâmides e obeliscos gigantescos, num lugar inóspito,
deserto, com muitas palmeiras, na margem oriental do Nilo. Com somente
uma passagem estreita em meio à profusão de pedras, ele se viu
rapidamente cercado por homens fortemente armados com lanças,
escudos e espadas: conseguiu fugir correndo até que em certo momento
subiu por uma pirâmide, escalando uma a uma suas pedras sobrepostas;
o bando de perseguidores estava ao seu encalso. Quando parava para
respirar e desfrutar da vasta visão do vale cravejado de pirâmides e
obeliscos, via também os homens se aproximarem. Subiu
desesperadamente e quando enfim chegou no topo, foi surpreendido
pelas hordas inimigas que vinham de todos os lados! Instantâneamente
pulou por sobre os homens que estavam prestes a lhe agarrar e voou:
surpreso, assustado, ainda assim se sentia uma águia! Voou
intensamente! Quando pousou, estava num reino distante, numa planície
imensa e o céu estava claro com muitas cores berrantes. Andou um pouco
e acordou.
Num outro sonho, as portas de um grande templo pesado, de
pedras sobrepostas formando espessas e altíssimas paredes, se abriram
para ele. Porém, estava por demais repleto de gente, à ponto de algumas
pessoas sairem, sendo pressionadas para fora. Assim que as portas se
abriram completamente, começaram a se fechar. As pessoas que saíram
espremidas pelas outras que se empurravam mutuamente, num
movimento de uma massa compacta, tentavam entrar insistentemente,
forçando seus corpos uns contra os outros, para dentro. Alex era um deles
que lutava para não ficar de fora, em vão. As portas espessas se fecharam

133
e o único a sobrar do lado de fora fora ele. Havia um grande lago azul em
frente ao templo rústico e pesado e Alex sentou e dormiu em suas
escadarias, apreciando a paisagem calma e reconfortante. Neste
momento, viajou para o interior da terra onde havia um apartamento real
lhe esperando com todas as provisões dignas de um faraó embalsamado.
Havia um sarcófago imenso e rico num dos quartos; não era o seu. Ele
então se viu tomado de uma sensação de pânico e horror, e não
encontrava a saída da tumba. Até que tocou em determinado ponto de
uma parede que esta cedendo à pressão do toque, levou-o para uma
passagem subterrânea com alguns focos de luz advindos da superfície.
Após longa caminhada por túneis sinistros, chegou num local onde havia
uma escada de pedra longa e bastante empoeirada e danificada pelo
tempo. Após subir penosamente todos os degraus em ruinas, havia
chegado num ponto onde por uma estreita abertura se via o lado de fora: o
complexo arquitetônico de Gisé. Alex estava no interior da Grande
Esfinge! Ao tomar consciência de onde estava, acordou! Do Egito para sua
casa, sua cama, seu mundo; não poucas vezes. Fora ao Egito em vários
sonhos inúmeras vezes, ou o Egito de certa forma foi até ele.
Houve mais um sonho significativo, ou fragmentos, que ficaram
presentes em sua lembrança durante toda sua vida. Um observador
avistava do lado de fora de uma grande pirâmide, o seu interior. Era como
se na órbita daquela visão não houvesse a parede, ou que uma visão de
raios-X tivesse incidido sobre um dos lados dessa pirâmide. Em seu
interior um batalhão de homens do deserto trajando seus turbantes e
roupas características, se movimentavam em frente à uma grande tela que
exibia uma filmagem. Num dado momento montaram em seus cavalos e

134
saíram em disparada para o deserto, saindo da pirâmide por um de seus
lados que não existia. O sonhador ultrapassou a cavalaria num vôo rápido
e a deixou para trás, bem longe. Pousou como se de repente asas de anjo
tivessem aparecido em suas costas, aterrissou em frente à um grande
templo rústico, de imensos blocos de pedra. Muitos anões corriam como
que aleatoriamente, abraçados em grandes mandiocas. O sonhador foi
entrando para o interior do templo e teve acesso à uma rampa que subia
em aspiral até o topo da pirâmide; já era uma pirâmide e não mais um
templo. Os anões largaram os exemplares de mandioca e de abóbora que
carregavam e saíram correndo atrás do sonhador. Este, quando observou
o rumo que as coisas foram tomando, correu na frente, subindo a rampa
até alcançar o topo. Quando olhou pra baixo, viu dos quatro lados
externos da pirâmide, um verdadeiro exército ao seu encalso subindo as
pedras, já quase lhe alcançando. Num impulso inconsciente, saltou do
topo e inesperadamente ganhou uma asa-delta e plainou, ganhou as
alturas vendo os homens chegarem ao ápice da pirâmide e lhe avistarem,
nervosos e falantes. Entrou por dentro de umas núvens e quando saiu,
estava sobrevoando um lindo vale de deserto rochoso. Aterrissou e saiu
andando tranquilamente. O sonho acabou. Porém, alguns outros o
perturbariam ainda por algum tempo. Certos padrões permaneciam como
subir por pirâmides correndo dos homens do deserto... Algumas dessas
fortes experiências oníricas eram terríveis e ameaçadoras, enquanto que
outras se apresentavam luminosas e reveladoras. Ele os havia anotado e
esboçado rascunhos para a consecução de um livro que nunca haveria de
ser realmente escrito; estes textos esparços desapareceriam com o
tempo.

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Alex era estudioso das línguas portuguesa e francesa; o agradava
bastante a companhia de filólogos e escritores. Escreveu algumas obras
literárias, assim como seu pai, Patric Bourdon. Certa vez levou à Toulouse
um gramático da língua francesa, de grande envergadura e prestígio
nacional, cujo livro de gramática de sua autoria era usado em todo o
território nacional.

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Capítulo 42
Aos quinze anos de idade, Clodoaldo Bello, primo de Wilma que
esta também havia criado, ocupou o quarto que havia sido de Júlio,
quando este casou-se em 1940. Porém quando se desentendia com sua
esposa Maura, a levava para lá e a deixava de castigo, sentada na sala
numa cadeira de vime. Numa certa época, essa mesma casa ficou em
estado precário para continuar sendo habitada, no que ganhou o cognome
de “casa velha”. Clodoaldo havia completado dezessete anos de idade,
então. Silvino passou para o sobrado ao lado, já reformado, que havia sido
dos Dubois, ele o havia adquirido; e abandonou a outra definitivamente,
deixando-a desabitada, até que desmoronasse; restou a parte da frente da
casa e a fachada bonita. Neste outro sobrado residiram por muitos anos.
Este continha sete quartos, até se mudarem para lá; quando Wilma
derrubou uma parede para aumentar o quarto que ocuparia. Era composto
além dos quartos, de três salas, cozinha e dois banheiros e uma pequena
construção feita no quintal para abrigar os restos da mobília da casa velha,
dentre outras coisas. Este solar também antigo, era muito sinuoso na
divisão de seus cômodos, e já tinha sido objeto de várias reformas,
inclusive, realizadas por Silvino que fez para ele uma nova fachada. Aí
ficaram até meados da década de cinquenta. Era de pau-a-pique e se
apresentou mais uma vez carente de reformas, quando Clodoaldo
conseguiu fazer com que Wilma saísse de lá; e havia uma estaca enorme
e grossa segurando o teto da sala de jantar, no andar térreo, tal o estado
precário das instalações. Foram morar numa casa alugada que situava-se
na Travessa Alex Bourdon, no Bairro São Marcos, em frente a casa de
Dona Linda Lanna, amiga de Wilma.

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Clodoaldo, em 1950, mudou-se para Besançon à fim se seguir
carreira de bancário. Esta casa de Wilma, era de uma construção mais
moderna, de tijolos e de janelas da época, ainda de madeira. Foi também
a menor, dentre todas. Haviam se mudado para lá, além de Wilma, Vera,
uma prima idosa e uma empregada, de nome Maura. Numa ocasião, no
aniversário de Vera, Arthur, neto de Alex, ainda menino, começou a pegar
os doces na mesa posta e enfeitada e a jogá-los na rua, correndo da
pagem, Ana, que tentava lhe segurar. Esta casa continha três quartos,
duas salas, cozinha e banheiro; serpentina ligada do fogão à lenha ao
chuveiro, recurso usado a fim de aquecer a água para os banhos dos
moradores.
Com a morte de Wilma, Vera que já era aposentada e velha, com
mais de oitenta anos, não tardou a falecer. A empregada D. Maura, já
havia falecido.

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Capítulo 43
Durante a primeira metade da década de quarenta, o movimento
dos carros-de-boi já era bastante intenso. Seu apogeu coincidiu com a
vertiginosa expansão das carroças que os substituiria gradualmente. O
movimento ainda era o mesmo: às três da manhã eles chegavam e
permaneciam enfileirados até as seis, quando a usina abria o portão de
entrada para receber a matéria-prima. Em períodos de estiagem, o fluxo
corria normalmente, fora alguma eventualidade como falta de energia.
Quando chovia, o transtorno ocorria: as rodas dos carros, finas, atolavam
no chão repleto de buracos com muita lama e água acumulada. Mister se
fazia retirar as canas de suas plataformas. O carreiro e o candeeiro de
cada carro enfileirado, forravam seus ombros com um saco de mauá, e
sob as águas torrenciais caindo do céu, iam levando as canas para o
depósito ao lado da esteira, dentro do pátio da usina. O “fiscal da cana”
ficava de olhos espertos e vigilantes caso alguém, na sua maioria
meninos, quisesse retirar canas dos carros: isso ocorria diuturnamente,
com muito menos intensidade quando chovia. Todos apreciavam o paladar
das suculentas, saborosas e doces canas, principalmente as canas
manteigas. Cometia-se loucuras por uma ou por um feixe de canas
manteigas selecionadas. Os carros desatolados, ainda depositavam suas
canas em montes emaranhados que se formavam dos dois lados da
esteira. Quando as noites estreladas rompiam as madrugadas invernais e
primaveris, e as filas dos carros-de-boi cresciam e davam volta pelos
morros, os homens continuavam fazendo fogueiras nas ruas; passavam
boas horas em colóquios de toda natureza. Nos morros, posicionavam
pedras sob as rodas dos carros-de-boi para firmá-los ao chão e se

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disponibilizavam para estabelecer contatos com seus colegas dos outros
carros. Muitos tomavam suas marafas e levantavam louvores aos deuses
para que não houvessem perdas, como quando chovia forte, ou quando
os maquinários da indústria emperravam. Os carros-de-boi carregados do
irresistível mel das canas, surgiam pelos horizontes de três caminhos
distintos, que iam dar no portão de entrada da usina. Durante as noites de
safra, os moradores das ruas pelas quais passavam os comboios de
carros-de-boi, não conseguiam dormir direito; tinham seus sonos
conturbados: havia aqueles de sono pesado e denso que não acordavam;
outros, que acordavam algumas vezes, mas que se adaptaram; e
finalmente aqueles de sono leve, que ficavam à mercê do barulho dos
gritos estridentes das rodas dos carros, somados ou alternados com o
barulho dos homens conversando, gritando para outros ao longe,
cumprimentado-se, cantando, rindo, contando casos, piadas... Algumas
vezes em rodas de conversa ao redor das fogueiras nas madrugadas,
surgiam conflitos pessoais que evoluíam para agressões verbais e\ou
físicas, até quando os amigos e companheiros apartavam as contendas.
Outras vezes surgiam cenários com forte apelo gastronômico, como
quando algum carreiro ou candeeiro surgia com uma galinha ou um
coelho, ou alguns pássaros pegos no meio do caminho; iam logo para
serem assados numa fogueira. Algum morador do bairro ajuva-os a
prepará-los casualmente.
As carroças-de-boi e os carros emitiam um ruído alto e agudo,
proveniente do atrito entre seus eixos de ferro e suas rodas de madeira.
Passava-se óleo, graxa, entre os mesmos para que elas cantassem larga
e abertamente, quando estivessem no perímetro rural. À medida que

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adentrassem à zona urbana, esperava-se de seus guieiros o
comportamento oposto: que usassem de outros métodos para que as
carroças e os carros não cantassem alto. Era proibido. Passava-se então
sabão em seus eixos, evitando-se assim o canto estridente, porque o
delegado de polícia estava sempre à espreita, com seus ouvidos bem
afiados, assim como os cidadãos, de uma forma geral; e caso uma delas
passasse do nível permitido, era prontamente denunciada, no que poderia
ser multada. Cada carroça e carro tinha sua marca de distinção, que ao
longe se definia: seu canto único e particular. A mãe de Carlos José,
candeeiro de boi quando identificava o canto de sua carroça ao longe,
dizia: “Lá vem o Carlinho!” Os bois, como qualquer animal de estimação,
atendiam pelos seus próprios nomes: estrela, boneco, marrueiro, mimoso,
cativo, manhoso, etc..
Em sua infância e adolescência, Júlio, seus primos, e os meninos
do bairro, tinham em sua escala de valores, a máxima estima em nadar no
rio Ululu. Um poço largo no leito do rio marcava a divisa entre a usina e
um terreno onde era um dos pontos de parada do trem, cuja linha corria
paralelamente ao rio. Neste ponto, concentrava-se muitos moleques e
sempre quando muitos se reuniam, saíam brigas e disputas. Porém, nos
fundos da usina havia um pocinho; fazia divisa na outra margem com um
quintal de uma casa. Era o paraíso de Júlio, de seus primos e dos amigos
destes. Os meninos pescavam de anzol com isca de minhoca e às vezes,
afanavam peixes de algum rabudo ou giqui que algúem havia colocado
preso à uma margem do rio; levavam algumas vezes os próprios giquis; os
rabudos eram maiores e mais difíceis de carregar: eram despresados. Um
dia um dos donos dos giquis desaparecidos dirigindo-se à um dos

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membros do clã afanador, observou: “...Eu quero desbrir quem é que pega
meus giqui... eu não posso comprá carne!...” Ao arredor da usina, tudo era
um grande tapete verde, canavial. As tosseiras de cana dobravam pelas
estradas, fechando-as, ou tornando difícil o deslocamento. Pelos canaviais
afora, muitas espécies do reino animal se aninhavam: coelhos, tatus,
pacas, cachorros do mato, porcos do mato, inhambús, jacús, muitas
espécies de pássaros... Quem morasse perto dos canaviais, nas zonas
rurais, onde os cantões ermos se aprofundavam pelos grotões, ficava à
noite, ante à ameaça de ataque de lobos e cachorros do mato, e alguns
felinos que surpreendiam os rebanhos e criações de bípedes, com suas
garras e dentes mortíferos. A aceleração da degradação ambiental se
fazia uma triste e irreverssível realidade. O advento da agricultura em
crescimento desordenado e predatório na região, forjou um desequilíbrio
ecológico cujas consequências nefastas colaborou eficazmente para o
empobrecimento do homem local. A espantosa bio-diversidade se reduziu
inexpugnavelmente. As águas fervilhavam de cardumes, as terras
pulsavam em riquezas incomensuráveis da fauna e da flora, os céus
erguiam quadros deslumbrantes de mil cores animados pelas revoadas
dos imensos bandos de gansos, marrecos, garsas, pombas selvagens...

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Capítulo 44
No final da rua dos angicos a usina mantinha uma estrebaria, onde
guardava suas carroças-de-boi; os carros-de-boi voltavam para as
fazendas. Uma construção rústica, aberta, ventilada, onde somente havia
uma parede de tijolos; era coberta com telhas de barro, e grossos esteios
e vigas de sustentação de braúna formavam sua estrutura; ao seu redor, o
pasto que alimentava os bovinos. Cada carroça-de-boi tinha seu lugar
específico. Às sete, oito da noite, elas chegavam carregadas de canas e
seus carreiros e candeeiros soltavam os bois no pasto da estrebaria. Ao
chegar, retiravam dos bois os materiais como as cangas, os canzis, as
sôgras, as correntes de amarração, e as colocavam em seus lugares pré-
determinados. Eram de propriedade da usina, cinco juntas de boi
puchavam cada uma das dez carroças. Como a usina somente começava
a receber sua matéria-prima à partir das seis da manhã, aqueles cujas
carroças-de-boi não estavam carregadas, chegavam à estrebaria por volta
das três da madrugada. Pegavam seus bois de aproximadamente dezoito,
vinte arrobas, no pasto e os arreavam, então começavam o dia se
dirigindo para um canavial a fim de preencher as carroças. Davam em
média, três viagens por dia, e, como a usina parava de receber a matéria-
prima às seis da tarde, alguns enchiam suas carroças e as deixavam
adormecer carregadas na estrebaria.
Na primeira metade dos anos quarenta, o advento dos três filhos
de Júlio Bourdon: Jean-Paul, Patric e Adriano. Estes, nasceram de
parteira, numa casa ao lado da usina, onde residia Julio com sua esposa
Maura Moura. Os filhos dos irmãos de Júlio, que moravam em outras
casas na mesma rua, vieram à luz também na década de quarenta. Todos

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cresceram tendo como parque de diversões, a grande usina. Na entre-
safra, o silêncio permeava o espaço dentro da grande construção que
abrigava todo o maquinário da indústria. Durante as noites calmas de céu
estrelado, alguns diziam que fulano ou ciclano havia visto alguém já
falecido lá dentro. Folclore à parte, testemunhos veementes e eloquentes
apontavam para certas aparições de alguns homens que trabalharam
nessas engrenagens em tempos passados. A crendice e o imaginário
popular criaram contudo, personagens fictícios que habitavam certos
lugares: a mula-sem-cabeça perambulava pelas madrugadas nos
arredores do matadouro municipal; falavam que a rua Virgílio de Souza
era mal assombrada, povoada à noite por cachorros endemoniados, e os
meninos acreditavam nos sacis-pererês. Quem morava por aquelas
imediações pouco habitadas, sentia forte receio em sair à noite e
atravessar pela extensão da rua descalsada e escura; quando chovia, era
insuportável sair à noite de casa, fosse pelo motivo mais relevante, como
aconteceu certo dia com José Raimundo. Sua mulher entrou em trabalho
de parto às duas horas da madrugada, e do lado de fora chovia mansa e
continuamente. Somada à essas condições, o medo da lenda dos
monstros dessa rua aterrorizava o espírito já perturbado de José, ante à
revelação de seu filho que estava prestes a inspirar. Relutante, com a
mulher lhe ordenando que fosse chamar o médico Dr. Oswald, saiu às
escuras escorregando pela estrada enlameada. Em certo momento, ao
cair num buraco empossado, se viu rodeado de cachorros e percebendo
que só poderiam ser os cachorros endemoniados da lenda, desmaiou de
terror e pânico. Quando acordou, voltou correndo para sua casa ainda
pela noite. Ao chegar, seu filho já havia nascido. Os filhos de Júlio e seus

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primos alimentavam verdadeira temeridade por estes seres do outro
mundo que se aventuravam pela usina. À noite, somente em certas
ocasiões em que se encontravam mais audaciosos e aventureiros, Jean-
Paul, Patric, Adriano, os primos Lúcio, Wander, Jarbas, Roberto, Carlos
Henrique e alguns amigos, desafiavam estes seres do outro mundo e lhes
lançavam imprecações e anátemas.
Durante a década de cinquenta, pequenos tratores que puxavam
carretas de canas, foram gradativamente substituindo as carroças e os
carros-de-boi. O novo transporte por meio mecânico, possibilitou o
abastecimento de quatro a cinco carretas diárias, de um terreno de várzea
para a usina; nas terras íngremes, as carroças-de-boi desempenhavam o
serviço eficazmente representando um risco menor de acidentes.
Entretanto, dada a frequência do trabalho e à topografia inclinada do
terreno, ainda haviam acidentes com carros-de-boi e carroças que
despencaram e rolaram do alto à baixo, atropelando tudo pela frente.
Numa dessas vezes, os bois em queda abraçaram o carreiro e este,
depois de vários tratamentos e cirurgias, passou o resto da vida
claudicando, e às vezes, em certas ocasiões sentia dores terríveis. Um
dos bois foi sacrificado devido à queda vertiginosa.

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Capítulo 45
Alex colocava em ação toda a extensão de sua mente arguta,
perspicaz: nada escapava às suas feições inteligentes, ao seu olhar de
ave de rapina, enigmático, à sua astúcia. Postura altiva, gostos suntuosos
e um certo perfeccionismo, que o levava pelos caminhos do serviço bem
feito, que fosse realmente eficaz. Seus netos, meninos, brincavam
despreocupadamente pelo pátio imenso da usina. Permitia ainda que os
transeuntes o adentrassem e fossem até o engenho para tomar garapa:
seus fregueses incondicionais e assíduos eram os meninos do bairro, de
posse de suas canecas de lata, copos de vidro ou outro recipiente
qualquer. Alguns trabalhadores cruéis e sádicos, ou mesmo somente
portadores do impulso pueril arquetípico, sacanas e embusteiros, se
divertiam bastante dando gargalhadas quando os meninos erguiam seus
copos embaixo das engrenagens onde saía a garapa e a bebiam com
vontade. É que muitas vezes, haviam percebido a aproximação deles e
untado com óleo de mamona as engrenagens. Resultado: os meninos se
fartavam da garapa contaminada com o óleo. Saíam tossindo e
blasfemando.
Nos períodos de safra, pelas altas horas da madrugada, mesmo
quando chovia torrencialmente, Alex estava atento à qualquer imprevisto
que pudesse desencadear o emperramento das engrenagens. Quando a
pesada estrutura parava forçosamente por algum defeito, nas noites frias
quase geladas do inverno, ou sob intensa tempestade, era imediatamente
comunicado, assim como o mecânico do engenho, o sr. Ronaldo, e seu
ajudante: desencadeava-se uma batalha incessante até o momento
quando o defeito era sanado.

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A marcenaria funcionava ainda com um marceneiro, Sr. Zyn Lair e
um ajudante-aprendiz, à cargo de concertos dos mais diversos: carros-de-
boi, carrocerias de caminhões que foram aparecendo com o tempo, peças
do mobiliário geral da usina, etc.. Como as moendas não podiam parar em
época de safra, era imperioso que tudo fosse feito, no sentido de prevenir
e de concertar o que porventura estragasse. Sr. Zyn Lyzair: “...Alex dava
duro!... não tinha bomba pra empurrar o melaço pro quebrador das
turbina... ele levava água nos balde até o quebrador, com a Maria... ele
colocava açúcar nas carroça e saía vendeno pro comércio...”
Num certo dia, Zyn soube de um indicidente. O sr. Arlindo Filhos
estava em pleno concerto de uma turbina, quando esta foi acionada
distraídamente pelo Bastião da Ritinha. Todos gritaram pra ele desligá-la
imediatamente! Arlindo saiu de lá tipo “galinha tonta”... depois que
melhorou, passou a mão numa faca e saiu correndo atrás do Bastião!...
Rita era uma mulher que transparecia no brilho de seus olhos, a
determinação e a garra, a vontade indomável; e uma capacidade de
trabalho espantosa. Todos os dias com seus criados, ia buscar lenha perto
das caldeiras, onde elas ficavam amontoadas. Estes, iam retirando do
monte desuniforme e emaranhado, os pedaços de pau que mais lhes
convinham, e os colocavam na carroceria do caminhãozinho. Então
levavam a lenha para o terreiro da casa e rachavam-na; ela os mandava
às ruas para vendê-la em feixes; e também continuavam a todos os dias
carregarem para vender nas ruas, cada um, um sexto de hortaliças. Nesse
período também: biscoitos de polvilho, brevidades, casadinhas e fatias de
doce de leite, que eram os mais apreciados pelos fregueses. Rita
mantinha duas empregadas exclusivamente para este trabalho: o de

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atender e encantar o paladar de sua freguesia. Estas ficavam sob o
comando de Maria, que fazia de tudo na casa, era a governanta. Rita dava
pensão para alguns empregados da usina, ou seja, concedia-lhes almoço
e café com seus quitutes, e descontava dos seus ordenados. A casa
comprida, em “L”, com os esteios todos de grossas peças de braúna, com
seu assoalho bem mais alto que o plano do terreno, de táboa corrida,
continha o porão aberto que se estendia até por onde haviam paredes
formando cômodos; por toda a extensão do porão, andava-se
normalmente sem que houvesse necessidade de se inclinar o corpo. Na
parte aberta, haviam dois fogões à lenha, com dez bocas cada um. Os
tachos de cobre provenientes do período da refinaria, juntamente com
grandes panelas de pedra e de ferro, formavam o acervo dos recipientes,
que forjavam em seus interiores a mutação alquímica dos alimentos. As
mulheres fritavam, coziam e também assavam em espaçosos fornos as
broas de fubá, de trigo, os bolos cheirosos, perfumados com ervas que
exalavam um cheiro adocicado ou picante. Tudo recendia gostosuras, e
todos aqueles que se aproximavam não tinham como evitar: suas bocas
salivavam, o cheiro enfeitiçava e despertava instantaneamente o apetite.
Alex por vezes usava botas de couro, sobretudo quando saía à
campo, para inspecionar o andamento dos negócios nas fazendas. Ao
andar sobre o assoalho da casa, com seu pisar forte e determinado,
produzia sempre o som das batidas da bota na madeira, que se ouvia ao
longe e reverberava pelas paredes da casa.

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Capítulo 46
O expediente de trabalho perdurava por doze horas. Caso
houvesse algum acidente que impossibilitasse permanentemente ou não
algum empregado para o serviço, este ficaria à mercê da própria sorte; no
caso dessa sorte, para os que trabalhavam para Alex, era boa. Este, tinha
verdadeira temeridade com relação ao que pudesse acontecer de ruim
com algum empregado seu, durante e fora do expediente de trabalho.
Sabia que um bom empregado valia ouro, e seu espírito complacente, de
uma empatia sólida, sofria com algum incidente malfadado envolvendo um
deles. Tratava-os com zelo e justiça, mas com certa doze de austeridade.
Josué era menino e certo dia brincando no pátio da usina com os netos de
Alex, foi surpreendido por um abraço caloroso e envolvente: Alex,
pensando que era uma neta sua, por causa da extrema semelhança entre
os cabelos e o tipo físico de ambos, agarrou Josué por trás e o deixou por
uns momentos atônito...
De sua casa no alto do morro, Josué ouvia os berrantes
anunciarem a passada de uma boiada e descia o morro correndo para
apreciar o espetáculo. “... aqui passava boiada com duas horas de
duração, que vinha das terras que tinham muito pasto, no norte de Jardin.
Era só poeira! Cê não via nada, virava tudo poeira! Subiam o morro do
cemitério, passavam pelo Barro Preto e iam pro lado de Veneza, que era o
caminho mais perto pra Besançon...” A mãe de Josué servia almoço, ou
como se dizia, dava pensão para os trabalhadores da esteira, da usina de
Alex. Um homem levava todos os dias um balaio de palha, grande, com
caldeirõezinhos de lata, esmaltados, contendo a comida: arroz, feijão,
carne, verdura... isso nos períodos de safra, quando o movimento

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aumentava consideravelmente. Ela os tratava bem, confiando no
pagamento certo no fim do mês. Muitos homens ao se aproximar o
princípio da safra, povoavam o portão principal da usina, na esperança de
conseguirem ser colocados. Eram provenientes da zona rural, na sua
grande maioria, e acalentavam o sonho de se mudarem para Besançon ou
São Caetano. Muitos ao acabar a safra, partiam. E muitas vezes eram
recrutados por firmas de São Caetano, Dijon, Lille, etc, por intermédio de
pessoas que se deslocavam à essas paragens para tal finalidade: de
entrevistá-los, selecioná-los e recrutá-los. A mãe de Josué cedia uma casa
de pau-a-pique para os trabalhadores à quem ela dava pensão, no grande
quintal de sua casa. Josué, aos sete, oito anos de idade passava muito
tempo na companhia destes homens. Até que um dia apareceu na casa
barreada onde moravam com um livro. À partir deste dia, se viu impelido a
ler histórias para eles e a lhes ensinar a ler e a escrever. Ia com eles para
a beira do rio pescar, e em certos lugares as águas fervilhavam de
cardumes; gostava de pegar os cágados enterrados na lama do rio, de uns
30 a 40cm de diâmetro. Tinha em sua casa um pequeno viveiro com essa
espécie, e algumas outras que seriam totalmente extintas na região.
Um dos precursores modernos das ciências naturais, provindo da
Baviera, Alemanha, atraído pela abundante vida que pulsava
ardentemente sob o sol causticante dos trópicos sul-americanos, esteve
em Toulouse. Depois de atravessar regiões longínquas de Canela, soube
da notoriedade dos inescrutáveis pântanos e florestas densas das plagas
toulouseanas e circunvizinhansas. Em sua breve estada na cidade, pode
arrebanhar imensos tesouros naturais provenientes de sua flora e fauna
gritantes e arrebatadoras. Por onde passava, reunia fartas amostras dos

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reinos naturais, que enviava aos museus da Europa: animais
embalsamados, sementes de plantas, mudas, pedrarias, rochas, etc.. Não
obstante o acelerado processo de devastação à que as Américas foram
submetidas depois de seu descobrimento pelos povos europeus, ainda
haviam lugares preservados e mesmo nunca penetrados pelo homem,
como as florestas primárias, ainda abundantes em certas regiões
inóspitas. Toulouse sofreu a ação de rapinagem de seus recursos naturais
em velocidade vertiginosa, devido à implantação da monocultura do café e
depois a da cana-de-açúcar. Quando um exemplar mais evoluído de
alguma espécie animal, como uma onça, que ocorria na região, aparecia
ante aos olhos de algum fazendeiro ou citadino, era imediatamente caçada
à altos brados por grande contingente humano, motivado pelo alto grau de
sua periculosidade iminente.

151
Capítulo 47
Alex era um autodidata, de inteligência privilegiada e de uma
persistência imbatível: teimava contra a própria sorte. Conheceu algumas
vezes tempos difíceis. Silvino o apoiou incondicionalmente. Chegou no
final da década de trinta, a quase fechar seu negócio. Não havia uma
política governamental bem definida que defendesse e viabilizasse
efetivamente o ramo açucareiro. Era escravo do trabalho, enfrentando
desafios poderosos e imprevisíveis. De Bertrée: “... esse era o tempo em
que o usineiro fabricava o açúcar, mas não tinha um preço estabelecido de
venda... então eles saíam pra realizar as vendas até em cima do
caminhão... no comércio, vendeno nas ruas: um compra um saco, outro
compra outro... os mais ricos tinham vendedores, mas os mais pobres
como Alex, tinham que sair vendeno...”.
Os anos quarenta trouxeram à partir de 1941, um órgão
governamental que regulava as relações de produção e comercialização
do açúcar: o AAA (Autarquia do Açúcar e do Álcool). Impôs certas práticas
como limite na produção, estabelecendo novas relações das usinas com
seus fornecedores; estes passaram a ter cota de fornecimento limitada e
prioridade no abastecimento das indústrias: depois as usinas poderiam
moer suas próprias canas se as tivessem. Novas regras se
estabeleceram. A tábua de salvação estava lançada para os usineiros, à
mercê das ondas gigantescas do mar das incertezas do mercado.
Regulava a atividade econômica, estabelecendo também dentre outras
normas importantes, as que ditavam o preço da cana e o preço de venda
do açúcar e do álcool; taxado por região, respeitando as condições mais e
menos favoráveis para a cultura da cana em cada estado da federação, ou

152
seja, o custo de produção. Com a intervenção do AAA as usinas passaram
a ter a garantia de um preço justo para o açúcar e o álcool, acima dos
custos de produção, viabilizando efetivamente a atividade. Seus fiscais
arregimentavam toda a escrituração das firmas, e com base em cálculos
contábeis, ajustavam o preço de venda da cana dos fornecedores para as
usinas, e o preço do açúcar para o comércio.
Com o advento da Autarquia as usinas de Canela, que se
proliferavam, puderam contar com o seu apoio no sentido de obter
financiamentos, caso houvesse necessidade, o que sempre ocorria.
Quando havia dificuldades na venda do açúcar, devido à concorrências de
outras usinas, a instituição financiava todo o estoque para que não
houvesse a possibilidade de venda abaixo da tabela prescrita; as sacas
ficavam estocadas até que o preço de mercado melhorasse. Um
determinado percentual das vendas era destinado ao Instituto que, com o
recolhimento dessas taxas, compunha seu capital e emprestava dinheiro
para as usinas em dificuldades. A pequena empresa de Alex então passou
a dar um lucro razoável, e à medida que ela foi se desenvolvendo, o lucro
foi aumentando. Mais tarde, a desvalorização monetária impetrou juros
altos e também devido ao processo de inflação crescente, as usinas
começaram a decair. Viriam então os empréstimos financiados que
gerariam hipotecas em vários graus. Isso faria com que uma prática
altamente perniciosa se instalasse: a venda antecipada da produção do
açúcar para empresas poderosas que aproveitavam dessas circunstâncias
para adquirirem o produto por preços abaixo de seu custo de produção,
mas isso só ocorreu...

153
Capítulo 48
Alex ostentava frugalmente uma boa biblioteca em sua casa, numa
sala grande, com várias estantes na parede. Era um leitor hedônico. Não
lhe bastavam somente os livros relacionados com a cultura da cana-de-
açúcar e sua industrialização para a produção de açúcar, mas também, as
grandes obras literárias de todos os tempos, algumas obras-primas de
autores renomados; seu acervo também abrigava enciclopédias, atlas
históricos e geográficos, coleções importantes, da filosofia e da poesia;
dicionários dos mais falados idiomas, etc.. Sempre investiu muito em livros
e alegava que era uma grande herança que deixaria para seus filhos. Não
só apreciava bastante a leitura, mas também a escrita: se dedicava à
atividade literária nas horas vagas. Escreveu alguns livros sobre a cultura
da cana e a produção de açúcar; dois livros de poemas e um de ficção,
envolvendo o cenário dos canaviais e do parque industrial de sua própria
usina. De vez em quando recebia telefonemas de personalidades ligadas
à Autarquia para que expressasse suas opiniões acerca de determinados
assuntos relacionados ao universo açucareiro. O telefone se tratava de um
aparelho preto, acionado à manivela, que ficava dependurado na parede.
Assim que o chamavam para atendê-lo, levantava de sua cadeira de
balanço e à passos largos se dirigia ao aparelho. Já não enxergava tão
bem, mas escutava quase que perfeitamente; não obstante, as conversas
ao telefone fossem marcadas por alto e bom som, uma vez que o
processo de telefonia era precário e obrigava aos falantes, a aumentarem
o tom de voz, quase aos gritos para se fazerem ouvir.
Nas fazendas da usina e da família, os bóias-frias, assalariados,
efetivos da empresa, nas épocas de entre-safra, capinavam os canaviais,

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limpavam os córregos e desempenhavam outros serviços corriqueiros;
também plantavam arroz à terça com a usina, nas partes das terras que se
apresentavam inviáveis para o plantio de cana. Eram terrenos
encharcados, terras úmidas, que se prestavam unicamente para o plantio
de arroz. Muitas vezes cultivavam em pequenas quantidades somente
para o consumo de suas famílias, outros produtos como milho, feijão,
hortaliças. Em seus quintais insipientes as ramas de bucha, de abóbora,
de chuchu, sempre estavam presentes, quer trepadas nas cercas, quer
nas poucas árvores, como nas mangueiras, nos abacateiros, quer nas
outras árvores nativas que cresciam ao sabor do tempo, displicentemente:
coramados, anjicos, jacarandás, etc. As mulheres sempre plantavam
algumas flores na parte da frente de suas casas, com as quais se
deliciavam ante à beleza de suas formas e cores e ante aos seus
perfumes, que se espalhavam pelos ares. As crianças ficavam restritas às
poucas áreas sombreadas durante o dia. Nascentes de água nas
imediações de suas casas, lhes proporcionavam o indispensável contato
com o líquido vital. As mulheres e crianças tinham a incumbência familial
de prover suas casas com a água que era transportada da mina por latões
ou tonéis de madeiras que eram carregados na cabeça. Aproveitavam
suas viagens às nascentes também para lavarem suas parcas e precárias
peças do vestuário. Elas se reuniam para a lida com as roupas e
cantavam enquanto as ensaboavam e as enxaguavam. Os meninos,
munidos de varas de pescar que forjavam dos bambusais, escolhiam
locais úmidos na terra para colherem as minhocas que serviam de isca
para a pesca nos riachos e córregos onde os peixes pululavam em toda a
região, que fora abençoada com fartos recursos hídricos. As meninas

155
também, desde cedo aprendiam a empunhar varas de pescar, mas na
maior parte do tempo preferiam brincar de bonecas em suas próprias
casas ou nas casas dos vizinhos. Levavam uma vida simples, em estreito
contato com a terra e não galgavam os caminhos do conhecimento até
que surgisse a oportunidade de estudar em alguma escola rural nova,
onde aprendiam as primeiras e únicas letras, não se aprofundando nunca
nos estudos, justamente por falta de recursos para que fossem para outras
escolas dar prosseguimento ao aprendizado.
“...Nóis comia rolinha, tatu, peixe nem se fala! Perto do moinho, só
de anzol cê pegava... largato... mandi, bagre, traíra, bocarra, lambari, cará,
cascudo... Nóis pegava aquilo alí, abria ês no mêi alí mesmo, a água era
clarinha... passava outra água mais limpa dentro de casa, pegava uma
quantidade, porque não tinha geladeira, passava um arame, quando era
muito peixe, marrava em cima do fogão de lenha, na fumaça, fica aquele
ressecamento... durava até uma semana, pra não secar muito... é igual a
uma linguiça defumada... Aquela papada do porco, tirada com oreia, o
fucim, a carne todinha até o pescoço, salgava e deixava lá, defumano.
Ficava mais gostoso do que o baicon, não tinha composição... comia o
toicim com pão... tô vivo até hoje aí... é saúde!
Nóis brincava de pique, no canavial... entrava no canavial, ninguém
pegava nóis. Pegava aqueles córrego lá e saía do outro lado, pegava
aqueles brejo tudo, tinha muito brejo... A lua cheia, tudo claro, a gente ia
brincar de roda com as meninas, passava anel... Brinca de pique de
esconder com as meninas, aproveitava e garrava elas... Eu estudava
longe! Aí vim pra morar na casa do meu tio pra estudar na cidade. A mãe
me matriculou eu no grupo... a professora não guentou, ela era braba! Ela

156
vinha beliscar ninim... Eu tampava pedrinha nela... Fui pro outro grupo, a
sopa era uma miséria danada! Mingal de fubá puro! Nem uma couve! E
uma canja que não tinha nem um pedaço de carne, não tinha nada! Uma
canequinha só! Quando vinha o macarrão branco, vinha mais água do que
tudo! Parecia uma lombriga! Não descia... A gente tinha que levar
merenda: pão com salame...

157
Capítulo 49
Rita era expansiva, expressiva, alegre. Ela mesma dirigia seu
caminhão International, muitas vezes quando ia às fazendas recolher
produtos ortifrutigranjeiros. Era muito caridosa, portadora de uma rara
consciência social. Vivia cercada por uma série de pessoas, merecedoras
de suas benesses despretenciosas. Seus empregados eram tratados
como pessoas de sua família. “...Silvino era divertido! Com a vassoura na
mão, limpano tudo... não podia ver um papel no chão! Implicante! De 1928
a 34, trabalhei sob a fiscalização dele no armazém de Alex, de
engarrafamento de álcool. Era um depósito da Companhia para
engarrafamento de álcool e mistura de aguardente. A aguardente era feita
de melaço e levava uma série de produtos químicos... eu e Anastácio, a
gente lavava garrafa usada pra engarrafamento de álcool; a gente fazia os
engradado de álcool e cachaça... tinham dez tonéis enormes de cachaça
que era fabricada do álcool, misturadada com nóz-moscada e outras
substâncias; o álcool vinha da usina e era beneficiado. O pessoal bebia
mesmo! Era uma cachaçada danada! Eles facilitava demais, e bebia
mesmo!...”
Quando os anos quarenta se apresentavam, veio com ele a
inauguração da ponte rolante, que manejava o guindaste que à partir de
então erguia as canas dos caminhões, dos carros e das carroças-de-boi e
as colocava numa grande caixa, de onde, as canas caíam na esteira
rolante. Esta, incrementada, passou a ter um sistema de facões rotativos,
que cortavam as canas enquanto elas eram transportadas até a primeira
moenda.

158
Num domingo de sol, Cláudio e Adriano mergulharam no rio Ululu e
não voltaram. Haviam muitos jovens e homens nadando. Todos saíram da
água e ficaram aguardando: sumiram indelevelmente engolidos pelas
águas volumosas e barrentas. Algumas carroças passaram com suas
parelhas de boi dentro d’água ao lado da população suspensa em rumor e
expectativa.
Silvino, bem mais velho que Alex, na terceira idade possuía certos
cacuetes e trejeitos que lhe imprimiam uma silhueta característica.
Costumava assoprar seu cabelo como se ele fosse cair nos olhos, à todo
momento. Também guardava e colecionava coisas. Depois de sua morte
foram encontradas em seu quarto, uma série de cartas de amor que ele
recebia de suas pretendentes voláteis; quase uma gaveta comprida cheia,
a última da grande cômoda de jacarandá de seu quarto. Encontraram toda
sorte de objetos de ornamentação, pequenos, e um guarda-roupa
invejável, contendo, inclusive, peças de roupa muito antigas que lhe
pertenceram, até durante sua infância. O que possuía quando a morte o
abraçou, eram somente seus pertences pessoais, que Wilma tratou de dar
bom direcionamento. Em seu funeral compareceram pessoas de graus
distantes de parentesco com ele, dada sua reputação de pilar de uma
grande família, e seu convívio pacífico e exemplar com todos, exceto, seu
comportamento errático para com as mulheres; que não deixou de ser
comentado subrepticiamente como também não deixou de surtir seus
efeitos antes, durante e depois do velório. Alguns de seus filhos bastardos
acabaram por se conhecer e se reconhecer enquanto irmãos, dadas às
semelhanças físicas que possuíam entre si. Um deles se apresentou à
Alex que imediatamente lhe deu um emprego na usina como membro

159
efetivo do quadro de trabalhadores. Um outro, já havia se mudado para
Besançon no intuito de trabalhar com seu tio, irmão de sua mãe, que havia
se estabelecido bem lá. No velório e no cortejo fúnebre, compareceu uma
senhora com uma menina; esta tinha claros traços de Silvino, e seu
semblante estava por demais abatido. Todos observaram em silêncio e se
admiraram ante à beleza e graça da adolescente, mesmo estando com
sua aparência comprometida pelo mau estado de ânimo. Depois, nunca
mais ouviram falar de ambas. Silvino sucumbiu repentinamente aos 73
anos, vítima de um tombo de uma escada, quando pretendia alcançar o
telhado de sua casa para avaliá-lo. Este apresentava sérias avarias em
diversos pontos, o que possibilitava a entrada da água de chuva que
formava goteiras e quando chovia muito, verdadeiras cachoeiras por duas
paredes da sala.

160
Capítulo 50
Sr. João Batista nasceu na fazenda Santa Catarina da usina S.
Marcos quando ela era toda plantada em café. Sua infância em meio aos
pés de café, gozou de grande liberdade de brincar com os irmãos e
amigos, filhos dos lavoreiros de café. Os recursos hídricos da fazenda
eram fartos, o que sempre propiciou a exploração da pesca em seus
riachos. Os meninos se saciavam exibindo extensas e gordas fieiras com
carás, mandis, bagres, bocarras, labarís, traíras, cascudos... E os
pássaros que ainda eram fartos e de espécies variadas, ficavam
susceptíveis aos seus amantes e aficcionados de gaiola em punho, e às
caçadas pelas matas e capoeiras. Ao amanhecer, canários da terra
estalavam seus cantos encantadores e exibiam suas plumagens
intensamente amarelas ao sol; povoavam os terreiros conjuntamente com
trinca-ferros, bentivís, sabiás, melros, coleiros, tizís, tico-ticos, rolinhas...
Os meninos viviam extasiados pela oferta de peixes e aves e giravam
suas vidas em torno dessas atividades, quando não estavam jogando
birosca, ou gozando de outra brincadeira qualquer. Isso até
aproximadamente os oito ou nove anos de idade, quando iam candear
bois; já ajudavam seus pais com os irmãos menores, zelando por eles e
vigiando-os. João batia pasto, capinava os canaviais e realizava outros
serviços que não careciam de maiores responsabilidades. Seu irmão mais
velho assumiu a seguinte função: “... tinha vinte e cinco carroça-de-boi na
fazenda, que dava duas viagem pra usina por dia. Nas outras fazenda da
usina tamém tinha carroça. Eu distribuía as carroça no canavial pra encher
de cana... tinha o chefe dos carretero que coordenava todas as carroça:
era eu e o sr. Manoel. A gente distribuía as carroça no canavial, pra evitar

161
de tirar elas do lugar. Enquanto as carroça tava encheno os boi tava
comeno palha de cana. Cada carroça era trêis junta de boi: junta guia, de
frente; a junta do meio e a junta de cabeçalho, que carregava o carro; as
outras duas, puchava o carro... às cinco e meia já tava distribuino as
carroça no canavial; elas fazia uma fila, as vinte e cinco... eu andava à pé
correno as carroça, coordenano o andamento delas. Quando chegava na
usina, elas ia passano na balança e o guindaste pegava o volume e
depositava no depósito de cana. Era uma ponte com um guindaste só. O
administrador tinha uma boca suja, só sê veno! Só falava pornografia! A
gente conversava com ele e ficava rino... Nessa época era tudo carro e
carroça-de-boi, mas já tinha uns caminhão D-40 movido à álcool. O sr.
Wander Ribeira bebia mais que o caminhão!... fazia álcool na usina, na
destilaria... Ainda não colocava fogo no canavial pra cortar a cana. Fazia
tanto frio que eles acendia fogo fora da palha, na estrada pra esquentar as
mão, porque era muito frio!... Depois fomo apontador, João e eu. Nós fazia
o ponto e o custo... era umas folha azul e branco... calculava os custo: a
mão-de-obra do corte, do plantio, da limpeza da cana... Eu, o João e o
Canela corria as fazenda tudo. A gente ia à cavalo...”
João permaneceria na zona rural enquanto que um de seus irmãos
ingressou no quadro de funcionários do escritório da usina. Foi trabalhar
com Manoel Gallo, à quem prestaria contas de seu serviço. Dois anos
depois falece Manoel aos cento e três anos de idade. Somava de cabeça
as folhas de pagamento, sem máquina! E acertava!
Os anos de guerra também foram tempestuosos para Alex e Júlio.
Certo dia quando Júlio sob o ímpeto fogoso de haver se desentendido com
seu pai, sob o rubor de um temperamento explosivo, exaltado, eis que

162
nessas condições, se depara inesperada e infelizmente com um fiscal do
Instituto, da Autarquia do Açúcar e do Álcool. Este havia sido incumbido de
vistoriar e analisar os apontamentos contábeis da empresa, que, naquele
momento se encontravam vulneráveis. Júlio carcomido pela raiva e
intemperança, destratou o fiscal que se dignou a notificá-lo. Foi
inadvertidamente escorraçado! Júlio lhe desferiu um tapa no rosto que o
fiscal caiu no chão e após se levantar, tomou outro. Os dois rolaram pelo
chão! Pelo barro! Chovia mansamente havia dias. Dias depois, após nova
discussão entre pai e filho que ostentavam inflexivelmente suas máximas
comportamentais antagônicas, Alex tomou um choque. Uma descarga
elétrica que lhe deu uma lambada nas costas! Havia encostado num fio
desencapado que estava às suas vistas, mas não em sua memória
fragilizada pelas descargas de adrenalina de seu corpo, nas brigas com
seu filho. Ao esquecer do fio foi pego por ele. Estava inspecionando uma
caldeira num andar de cima da grande construção da indústria. Ao tomar a
lambada, quase cai da passarela onde estava. Foi seguro pelos corrimões!
A família Water Silveira produzia talento na área de mecânica, em
quase todos os seus indivíduos, e estes, tiveram estreita ligação com as
engrenagens da usina de Alex. Sempre se mostraram harmoniosos para
com a família deste. Silvério: “...O gerente da usina ia marcano as peça e
os W. Silveira ia concertano.... uma vez estorô uma caldera e vuô pedaço
de chapa de ferro lá na grota dos ipê! Foi um barulho tão alto que aquilo
ficô zunino na minha cabeça uns dia... eu ia passano no pátio quando
estorô!...”
O pai de João Batista havia falecido vítima de uma enfermidade
que contraíra nos pulmões, consequência do trabalho insalubre nos

163
canaviais. “...Na colheita, os homem trabalhava de manga comprida e
pano enrolado na mão pra não machucar... as mulher usava um pano
enrolado no pescoço pra proteger do frio e das palha da cana e outro
enrolado na cabeça por cima do chapéu de palha. Ês fazia um fogo na
estrada, num local limpo, pra poder quentar as mão... elas usava uma
manga comprida pra proteger os braço... as mulher sempre que ia fazer
necessidade... elas sumia pro meio do mato... a gente via dois facão no
canavial: porque elas ia em duas... ou sumia um homem e uma mulher, é
que ele ia muntar nela... as ferramenta de trabalho era facão e enxada,
dês memo... durava umas cinco safra ou até mais...” Os cortadores de
cana iniciavam a lida nos canaviais às seis da manhã. Chegavam ao local
de trabalho de suas casas, à pé ou à cavalo. Os que possuíam cavalos,
amarravam suas rédeas nos pés das canas e os abasteciam com palha.
Enquanto seus donos cortavam as canas, eles se alimentavam.
Via-se ao longe a movimentação da colheita nos canaviais: os
homens cortavam as canas que ainda não passavam pelo processo de
queimada e iam depositando-as nos carros e nas carroças-de-boi.
Quando repletas, saíam em comboio em direção à usina para descarregar
as cargas. A hora do almoço se fazia às nove, nove e trinta. “...A maior
parte levava o almoço nuns caldeirãozinho de alumínio e quentava na
hora... e lá pelas duas e meia três hora, ês tomava café... ês deixava
comida do almoço pro café...” E sobre o pagamento: “... esse pagamento
era de 1942 a 45, mais ou menos... O caixa separava as nota e levava o
dinheiro trocado e contado, e dava certinho!... Era feito por chamada.
Ficava aquele monte de gente no pátio da fazenda, do lado da sede: era
um casarão de madeira, ipê, braúna... era enorme!... de janela de

164
guilhotina... desmancharam ela e no lugar construíram um estábulo pra
alimentar os boi das vinte e cinco carroça. Era alimentado com fardo de
capim prensado... e o capim era empilhado... tipo silo... depois era
emprensado e marrava os fardo do capim gordura e guardava ês pra tratar
do gado: ês misturava ele com melaço no cocho... na safra e no plantio
tinha mais de cem empregado efetivo e temporário... ... a cana era
prantada em suco feito com arado de boi, geralmente duas junta mais ou
menos...”
Silvério passou a feitor, sempre apoiado pelo administrador que se
harmonizava bem com ele. “...Ele tinha a boca muito suja! Só falava
besteira, o tempo todo. Hê home de boca suja!... mas se eu mandava um
cara embora, ele me garantia... Os caminhão novo pareceram em 1945,
46... a usina já tinha um guindaste... era os D-40, os D-45...” Quando
Arnaldo foi transferido para o escritório, certo dia presenciou uma cena
engraçada: “...Aníbal trabalhava no escritório comigo... um dia ele montou
num velocípede de menino... devia ser de um dos neto de Alex... e veio
correno abrino aquelas porta de far-west que tinha no escritório... ele veio
correno e de repente ele deu de cara com o sr. Alex e sr. Júlio!... eu morrí
de rir, e fiquei rino baixado na mesa...”
A guerra na Europa explodia. Era emitida pelo rádio, ocasionando
pouco impacto num rincão tão distante nos confins do mundo, senão
instigando ira e compaixão à todos. Em Canela, a ditadura militar sentava
suas pesadas mãos de ferro sobre os ombros dos cidadãos,
metodificando-os o comportamento, não havia liberdade de expressão. O
contingente policial da opressão gozava de caráter irrefutável quanto a ser

165
efetivo. As ineptas inssurreições populares eram prontamente
recrudescidas severamente.
Alex trabalhava muito à noite vistoriando a papelada que a
burocracia sempre impõe. Todas as noites, portando uma pasta preta, o
sr. Djondt subia a escada externa de sua casa adentrando-a. Em seu
escritório num dos cômodos da grande casa com assoalhos de táboa
corrida, Alex inspecionava os papéis e fazia anotações. Já havia adquirido
cinco fazendas na cidade que produziam cana permanentemente, exceto
uma, que somente produzia café. Depois de Júlio ter galgado alguns
postos de trabalho na usina, Alex mandou-o para percorrer as
propriedades rurais como prestador de contas do trabalho dos
administradores que moravam nas fazendas. Era o chefe de culturas ou
dos administradores. Nos períodos do plantio e da colheita, o movimento
de trabalhadores nessas terras já era em torno de quinhentas a seiscentas
pessoas. Na indústria, os efetivados somavam cerca de sessenta a
setenta homens. Durante a safra, funcionavam dois turnos de doze horas
cada um, na usina: o contingente aumentava para cento e cinquenta. A
movimentação era intensa e o barulho das engrenagens em ação,
ensurdecedor. Essas turmas se revezavam: numa semana uma trabalhava
durante o dia e a outra durante a noite e depois havia a troca. Já na
lavoura, todo o trabalho era feito de dia; o movimento começava às seis da
manhã e parava às cinco da tarde, e não havia o pagamento de horas-
extra como já ocorria com os trabalhadores da indústria, mesmo que
certos trabalhadores, como os caminhoneiros que começaram a puxar
cana pra usina nos caminhões desta, adentrassem à noite em suas
atribuições. Três das cinco fazendas da usina de Alex, possuíam

166
trabalhadores efetivos morando nelas, para prestar a constante
manutenção aos canaviais; durante a safra outros eram contratados e logo
o seu término, exonerados.
O senhor Djondt regularmente jantava com Alex em sua casa na
usina, quando da inspeção administrativa do fim do dia. O jantar servido
na mesa grande e pesada de madeira nobre para catorze lugares, saciava
a horda de comedores, porque se tratava de Alex e Rita, seus três filhos,
netos, mais convidados sempre frequentes como vendedores e alguns
funcionários, ocasionalmente um, outro, parentes de Alex, de Rita... a casa
ficava recendendo à comida, mantida todo o tempo no calor aconchegante
do fogão à lenha com o fogo baixo. Maria, cozinheira que chegou à casa
de Alex aos treze anos de idade em 1923, uma negra alta manhosa e
brincalhona, cozinhava divinamente. Seus pratos refinados e sumamente
apetitosos, despertavam elogios generalizados. Ficou famosa por sua mão
de ouro, por sua vocação fascinante, carregada pelo fardo da
imperiosidade do que plasmava: a comida. Os pratos doces, os salgados,
todas as iguarias ganhavam um sabor e uma consistência ímpar, quando
Maria se adentrava às viagens das misturas e combinações; levava ao
delírio sensorial, ao extremo prazer do paladar, ocasionando às vezes
excessos que custavam caro aos incautos degustadores de suas
maravilhosas obras gastronômicas. Pois bem, todos comiam fartamente.
De vez em quando um garrote era sacrificado para abastecer das mais
variadas partes de seu corpo, a cozinha farta de Maria e suas duas
ajudantes; estas nunca conseguiriam superar sua mestra. As leitoas
assadas regadas à um maná de perfumoso líquido, os cabritos
especialmente preparados às modas usuais, os patos e frangos e peixes,

167
uma infinidade de pratos especiais com carne... No universo dos doces, as
polpas em calda, tortas, pudins, manjares, rocamboles, tudo continha um
sabor inigualável! Um convite à gula, ao pecado. Não poucos cederam à
essa tentação e chegaram à pagar o preço, em recepções da família
Bourdon.

168
Capítulo 51
No período da guerra o ponto de charretes de aluguel era na praça,
em frente à casa de Firmino e Wilma. Os cavalos possuíam um sino cada,
dependurado em seus pescoços para que aqueles que intensionavam
alugá-los pudessem tocá-los à fim de chamar seus donos que, neste caso,
estariam sempre por perto. O barulho que os sinos proporcionavam,
somados ao cheiro constante de estrume e urina dos cavalos, irritavam
Silvino e este, tão logo pode, tirou-os de frente de sua casa. Do lado dos
cavalos ficava um carrinho de vender laranjas, que muitas vezes eram
consumidas alí mesmo pelos fregueses, após serem descascadas por um
descascador mecânico; este pequeno negócio foi poupado pela fúria de
Silvino porque não lhe trazia nenhum inconveniente e o simpático senhor
que o geria, mantinha um relacionamento amistoso com aquele. As
charretes então se mudaram para o outro lado do jardim pela intervenção
do delegado, após insistentes pedidos de Silvino.
A praça continha um movimento constante de meninos e
adolescentes, que em seu chão ainda de terra batida, jogavam birosca,
ambos os sexos pulavam corda, os meninos pelavam, as meninas
jogavam maré e brincavam de boneca e de casinha; os jogos de peteca e
voleibol também se mostravam bastante presentes no dia-a-dia desses
cidadãos. Os pássaros voavam em liberdade pelas árvores frondosas não
só do grande espaço da praça, mas também por toda parte, e os mais
valorizados eram caçados pela forte demanda à que eram submetidos.
Como os jogos de futebol tinham grande popularidade, sempre alguns
jogadores de fora da cidade, estando nesta em dado momento por causa
de alguma partida, levavam encomendas de pássaros presos em gaiolas

169
no intuito de os comercializarem em outras regiões, sobejamente nas
grandes cidades. O comércio de pássaros sobretudo, gozava de bastante
efervescência e verdadeiros contingentes presos, se apresentavam ao
aquecido mercado.
Na usina, a destilaria de álcool estava em vias de passar por uma
grande reforma. “... era um tal de nego com dor de dente de noite, ês
pegava o álcool pra bochechar e bebia!... Ês pegava o álcool pra ferver
água pra fazer café e... ês fazia quentão: água, álcool, açúcar e o
charopinho das turbina. Ês não tinha hora de beber, não! ...Eu bebia um
litro de cachaça todo dia de tarde. O Arlindo deixava um litro pra mim toda
manhã lá em casa, era igual o leiteiro trazeno leite, há! A cachaça era boa,
não tinha química. Hoje ês usa cada produto pra fazer cachaça que ôcê
nem acredita! Um cheiro horrorozo! ... Depois de um certo tempo,
desativou a destilaria, que ês viro que era preferível vender o melaço...”
Certo dia o único guindaste que levantava até sete toneladas em
certo momento içou um pacote de canas de uma carroça-de-boi com três
toneladas e ao transportá-lo para o depósito, eis que um dos cabos se
rompeu e as canas se desprenderam e caíram de forma desuniforme
sobre Miguel, este, instantâneamente pulou para o lado e conseguiu sair
da rota de algumas canas que caíam verticalmente; não teve como evitar
que algumas que caíram horizontalmente e transversalmente o
atingissem, mas, não provocaram senão leves leões em suas costas
musculosas.
Wander e Lúcio seu primo quando adolescentes, certa noite de
safra estavam fumando escondidos de seu tio Alex, no terceiro andar das
passarelas da indústria. Inadvertidamente uma telha se desprendeu do

170
teto e caiu entre os dois, que se assustaram e se surpreenderam ainda
mais pela sorte que tiveram em sair ilesos do incidente. A fábrica toda
surpreendia pelo seu movimento, pelo barulho ensurdecedor e pela
grandeza das engrenagens e equipamentos; um meio agressivo, pesado,
cruel, um simples vacilo e adeus, uma mão, um braço, uma perna, duas,
uma cabeça voando, um corpo esmagado, um corpo carbonizado, um
corpo moído, etc..
Júlio sofria quase em toda safra, crises de asma que o levavam à
loucura: “...eu passei um aperto com ele! Ele tava com muita falta de ar e
puxava o ar e parecia que tava sufocano... eu desengatei a mangueira do
massarico e dei oxigênio pra ele...
Sê precisava ver, o pessoal trabalhava com prazer mesmo! Era
uma boa vontade, coisa impressionante! Esse pessoal dava show no
pessal de fora. O ambiente lá fora é só pra te entregar. Ês acha que sê
chega pra pegar o lugar dês. É horrível! O pessoal trabalha tudo amarrado
aí fora, sê precisa ver! Quando vêi um pessoal da usina de Santo Antônio
pra visitar essa daqui, ês achava que sabia tudo, hê pessoal convencido!
Numa outra usina que eu trabalhei, de trêis irmão e trêis cunhado, era uma
fofoca danada, ês milindrava a gente! Aqui tinha uma equipe muito boa. ...”
Com a ampliação e modernização do parque industrial, a demanda
por mão-de-obra cresceu vigorosamente. Maurício chegou a ficar sem
dormir por muitas horas ao longo de todo o trabalho, o tempo era curto e o
volume do que precisava ser feito, grande. Um ambiente altamente
barulhento e empoeirado se instalava nas repartições devido às reformas.
Muitas vezes serviços mal feitos por incapacidade técnica daqueles que os
realizavam, não eram embargados nem refeitos dada à urgência que se

171
impôs à realização do montante do trabalho. “... Vêi gente de todo lado,
tinha que fazer, tava apertado! Montagem de engenho, de caldeira... e
muitos não tinha noção do que era solda elétrica, tinha solda por todo
lugar! O pessoal ficava soldano e os que passava perto ficava olhano... No
outro dia chegava com os olho doeno, era uma dor! Nem conseguia
trabalhar! ... Teve uma vez que eu cheguei no laboratório e um enxame de
abelha me atacou, grudou no meu cabelo, eu fiquei desesperado! E saí
correno e entrei no almoxarifado e ês fecharam a porta e as janela e
ficaram tirano as abelha da minha cabeça toda inchada das picada, foi
foda! ... Teve um dia que eu tomei o maior susto porque eu tava muito
distraído. De noite, na conserva, tava trabalhano e não sei o que que eu
fui fazer, só sei que eu peguei a lanterna e fui andano no escuro, pra perto
do rio. De repente um cavalo deu uma bufada perto de mim que eu gritei e
dei um pulo, e saí correno! Depois que eu vi que era um cavalo, eu fiquei
mais tranquilo. ... Tinha um companheiro meu que tinha uma saúde muito
ruim, sempre eu via ele sentado com as mão na cabeça com dor-de-
cabeça! Ele não guentava os barulho das martelada, das purretada, ele
não guentava soldar... Esses dia eu fui no enterro dele coitado,
descandou. ...”

172
Capítulo 52
Joseph L. nascido na cidade vizinha de Lídice, aos vinte anos
ingressa na usina de Alex como ajudante de mecânico, na oficina de
mecânica pesada, comandada por seu tio, um engenheiro inglês. Na safra
entrava às seis e saía às seis. “...Concertava caldeira, engenho, vácuo...
Fizemo a ponte rolante pro guindaste... comecei como soldador. A solda
pra imendar os ferro era assim: juntava os ferro e punha na fornalha, e
soprava com um fole até eles avermelhar, aí batia com martelo de ferro ou
marreta. Era isso o tempo todo... ...eles comprava aquelas chapa de ferro
de navio, chegava muita. Pegava aquilo pra fazer dorna, que é onde fica
depositado o melaço, garapa, vácuo... A gente levava os dor, vácuo, de
um lugar pro outro, rolano, debaixo a gente colocava duas tora de
eucalipto e ia empurrano. Sabe esses cilindro de oxigênio, essas
garrafona... eu ia rolano um cilindro pesado desse de um lugar pro outro,
segurava a ponta dele em cima e ia rolano a outra ponta...
Meu irmão era cabo-de-fogo junto com um crioulo que perdeu trêis
dedo e uma parte da mão no engenho. Ês é que colocava as lenha e
depois passaro a jogar tamém o bagaço nas caldeira. O bagaço era de
graça e economizava lenha. ... O matadouro do lado da usina, ês levaram
ele lá pro alto do Morro do Calvário, onde tinha uma forca... Rita não
gostava que dava um cheiro muito forte, um fedor danado! Era muito
catinguento!...”
Alex empreendeu o soerguimento de um galpão para proteger das
chuvas os montes de bagaço e projetou um guindaste que seria instalado,
comportando garras mecânicas para pegar certa quantidade de bagaço
dos montes, erguê-los e levá-los até as caldeiras, passando por cima dos

173
referidos montes. No princípio dessa construção, quando dez colunas de
tijolos já haviam sido erguidas, Alex quis conferir para saber se elas
estavam no prumo. Seu pedreiro de confiança, sr. Amaury, tratava-se de
um trabalhador competente e seguro de suas obras, mas era alcoólatra.
“...ele bebia mesmo! Aí o sr. Alex chegou e viu que ele tava tonto e falou:
‘Ô Amaury, essas coluna tão no prumo?’, -- ‘Mais ou menos...’, ‘Não, vamo
ver se elas tão no prumo!’ Aí foram ver elas tava tudo no prumo. ...era
perto da chaminé, um barracão grande, cumprido. Meia-noite ês parava,
na safra, tinha meia-hora pra fazer o lanche. Ês deitava no monte de
bagaço e dava uma cuchilada. Tinha sempre um caboco que vinha e
botava um foguinho num pedacinho da montanha de bagaço, pro cara
acordar e assustar...” Na usina Jaques Ledoux, ocorreu nesse período um
trágico acidente, quando, nesse mesmo tipo de cenário, o guindaste
pegou um homem que dormia inadvertidamente em meio à bagaceira. O
operador depois de tê-lo erguido juntamente com certa quantidade de
bagaço, não o pode avistar preso ao bolo, agarrado pelas garras do
guindaste, e pôs-se em direção à fornalha. O homem preso por mais que
gritasse por socorro, não se fazia ouvir uma vez que as engrenagens e o
motor do guindaste emitiam um ruído ensurdecedor. Foi conduzido em
pleno estado de consciência e pânico para o interior de uma das quatro
fornalhas que haviam. Desapareceu inexoravelmente. Houve porém uma
testemunha ocular que narrou o fato à todos, completamente estupefata.
Não pode fazer nada a não ser assistir aqueles breves momentos de
desolação tanto para a vítima sacrificada pelo fogo, quanto para si próprio.
Alex habitualmente ainda, quando suas carroças e seus parcos
caminhões não supriam a entrega do açúcar em tempo hábil para as

174
casas comerciais da cidade e para a estação de trem com o fim de
desembarcarem, contava com a força física de certos empregados seus.
Ele os convocava para que fossem levar determinado número de sacos de
açúcar em suas próprias costas até esses destinos supra-citados. “...Tinha
um cara que gostava de lutar boxe e pegava trêis saco de açúcar de
60kg.!: um na cabeça, outro debaixo de um braço e outro debaixo do outro
braço!...”
Amaury se casou depois de oito anos de experiência de trabalho
na usina. Pediu suas contas a Alex e com a ajuda de seu sogro montou
seu próprio negócio: uma casa de soldas. Tornou-se o melhor soldador de
toda a região, sendo requisitado por outras usinas além da de Alex, que
continuou a precisar de certos serviços precisos e bem acabados com os
quais se primava e através dos quais manteve seu prestígio.

175
Capítulo 53
Durante da guerra, Orlando S. Oliveira assume a condição de
aprendiz de mecânica na usina de Alex. Faria vinte anos e era um
entusiasta. “Eu era novinho e inexperiente. Trabalhava no torno mecânico
e nas bomba de puchar garapa pras diversas faze da fabricação do
açúcar. A usina era muito precária e usava muito equipamento usado...
depois do fim da guerra é que tiveram uma melhora de equipamento. Alex
tava sempre de sapato marrom e branco e de terno de linho branco e
chapéu panamá. Quando ficava só na usina, ficava mais relaxado. Ele era
enérgico e bravo com a gente. Os neto dele tava pequeno e brincava pela
usina afora. Todo o açúcar que fazia era vendido rapidim. Foi o
crescimento das usinas de Besançon que possibilitou o crescimento dessa
daqui. Aí compraram uma moagem completa de segunda mão... mas na
década de quarenta a produção ainda era pequena... Alejandro perdeu a
mão na moenda, em 1943; ele vacilou e a moenda comeu a mão dele!...
foi uma gritaria danada! Em 1944, uma outra turbina centrífuga explodiu e
voou um pedaço na cabeça do Luiz!... um rapaz novo e forte, coitado! Ele
morreu na hora com a cabeça toda rebentada!... foi uma coisa triste de
ver... ... Rita gostava muito de vender as coisa dentro da usina pros
empregado e eles mandavam ela descontar no salário dês... Alex não
gostava de jeito nenhum!...”
Alex, que foi um dos idealizadores do Instituto, a Autarquia do
Açúcar e do Álcool, que passava a normatizar a produção do açúcar e do
álcool, era um amigo inseparável de Orlando S. Oliveira em sua juventude;
e estes dois, amigos de José Santana. Este diz: “...Alex era sempre ouvido
em qualquer resolução do Instituto; era um dos principais. Muito

176
sistemático. Tinha opinião formada e não voltava atrás. Muito inteligente!
Andava sempre engravatado, muito bem vestido. Quando fundaram o
Instituto, foi um dos que deu mais opinião, em Besançon. Ele e Rita
viajavam muito pra lá...”
Anastácio G. Franco, outro personagem que se ligou
indelevelmente à saga açucareira de Alex; depois de passar pela função
de “fazer mandados”, já registrado como empregado da firma: “... na
época da conserva, o balanceiro que era o sr. Silvério, que era trabalhador
efetivo, fazia o trabalho de apontador durante o dia. Na safra, eu é que
fazia. Corria a indústria e fazia o apontamento: registrava a presença do
empregado no serviço. Era numa caderneta. Dessa caderneta passava
pruma folha de pagamento, grande... o pagamento era semanal. Já na
entre-safra eu era auxiliar de escritório: fazia arquivo, arquivava
correspondência, documento, duplicata no escritório, fazia folha de
pagamento do pessoal da usina e dos fornecedor... Quando foi em 1945,
ou 46, sr. Silvério ficou diabético... teve que fazer tratamento em Guianá,
mas, coitado, morreu... ... Aí eu entrei no lugar dele na balança. Ela abria
às seis da manhã e recebia os carro, as carroça e os caminhão: cinco da
usina e seis dos fornecedor, mais ou menos...
Alex, infatigável, lutava tremendamente contra as crises do setor
açucareiro. Quando vendia açúcar pelas ruas da cidade, à granel, ou seja,
o saco, colocava vários sacos em cima de seu pequeno caminhão à álcool
e com um megafone ia anunciando sua mercadoria pelas ruas. Com ele, ia
sempre um estivador robusto além do motorista. Um técnico agrícola
comandava todo o processo da cultura dos canaviais da usina S. Marcos.
O trabalho de arar, gradear e sulcar a terra era todo feito ainda à tração

177
bovina, para o plantio de algumas variedades como a Cana Caiana, Lisié e
mais uma ou duas. Depois de passado o sulcador puxado por um boi e por
um homem segurando atrás e imprimindo-lhe direção e profundidade,
iniciava-se o plantio: os homens colocavam uma cana inteira deitada
dentro do sulco ao lado da metade de outra cana inteira que se estendia
para diante; e este processo se repetia até o final do sulco. Deitadas as
canas, vinham com seus facões golpeando-as de forma a cortá-las em
pedaços de 40 a 50cm. Então com suas enxadas cobriam-nas com a terra,
que formavam pequenos montes ao lado destes. O ciclo do plantio até a
maturação das canas era de um ano.
Na região, também plantava-se canas para a fabricação de
cachaça e rapadura, assim como cereais, feijão... Não havia enraizada a
prática de desmatar do meio dos morros para cima. Muitos proprietários
de terras deixavam essas faixas de mata em seus terrenos, e
colaboravam, para que o clima se mantivesse mais ameno, e para que
muitas espécies da fauna e da flora fossem preservadas. Outro benefício
era que as águas das chuvas penetravam os lençóis freáticos e não só
lavavam as superfícies de terra desmatadas, como aconteceu bastante,
tempos depois, quando o desmatamento chegou às suas últimas
consequências.

178
Capítulo 54
Concomitantemente ao apogeu do movimento de circulação das
carroças, surgiu um pequeno trator que puxava de três a quatro carretas
pequenas carregadas de canas, nas várzeas; nos morros, as carroças é
que circulavam em curvas de nível. Inicialmente, somente dois tratores
foram adquiridos pela usina, e no transcorrer dos anos, seu número
aumentava na proporção direta em que diminuíam as carroças. “... era
cada boi de dezoito, vinte arroba... a cana ia arrumadinha dentro da
carroça! O carreiro é que arrumava a carga e não dava cana pra ninguém!
Vigiava o tempo todo, porque os menino ficava por conta de roubar cana
nelas... ... a rua Virgílio de Souza era só barro e espinho e eles falava que
a rua era mal-assombrada! Meu cunhado, caiu num buraco numa noite,
ele tava correno, tava com muito medo! Coitado, ele ficou aleijado e
andava de quatro dentro de casa...”
Os netos de Alex cresciam em liberdade pelo vasto espaço que a
usina abrigava e além, nos arredores, terras plantadas em cana. “... nasci
em Toulouse... a gente era ladrão na usina, de menino... a gente roubava
muito ferro velho: levava lá uns vinte, trinta quilo, pegava aquele
trocadinho e ia pro cinema! Passava Fantasma, Tarzan... e nós lá todo
sábado!... todo impoluto lá... no Cine Toulouse...
Júlio deu quatro luva de boxe pro Patric: a brincadeira era a
seguinte: podia bater de todo jeito, mas quem caía no sofá não podia
apanhar...
tinha muito passarinho como canarinho, azulão... a gente ia pegar
com as gaiola de embaúba. Um dia, a gente jogano bola, um azulão
pousou no ombro do Luiz Carlos!... ...a gente nadava no rio Ululu, que

179
dava pros fundo da casa do padeiro, sr. Argemiro. Ele ficava vigiando a
gente: ‘... nadar pode, mas eu vou ficar aqui vigiano procês não roubar
minhas laranja!’... uma vez marrei uma corda num pé de laranja e puxei e
ranquei o pé, e puxei pro lado de fora da cerca pra chupar as laranja. Ele
encontrou comigo e perguntou: ‘Cê sabe quem arrancou o pé de laranja?
Se algum dia eu panhar esse que rancou, vai ver comigo!’... a gente
nadava no rio todo mundo pelado! Minha mãe um dia pegou a roupa de
todo mundo e falou: ‘Quem quiser a roupa que vai lá buscar!’ Eu fiz uma
tanga com o cipó de São Caetano... se botar uma galinha pra chocar, é só
colocar o São Caetano que não dá piolho! É bater e valer! Um cachorro
cheio de pulga, ou uma casa, é só jogar erva de Santa Maria que as pulga
some tudo!... nosso prato preferido era nadar! A gente pescava tamém
com anzol e minhoca... a gente à vez, pegava um giquí com peixe...
Pegava peixe com armadilha: giqui, rabudo... nessas armadilha de bambu,
o peixe entra e não sai!... ... ...eu levava comida pro meu irmão que
trabalhava na usina; eu entrava lá e roubava cana... ... naquele tempo
antigo... 1947, 48... era 72 motor. Eu ajudava Jean Dubois a lavar, secar,
trocar o rolamento... bubina... O chefe do engenho, sr. José Rosa um dia
vacilou e o engenho ia levano a mão dele!... aí gritaro: pára, pára!!...
mandaro desligar o motor elétrico, e depois tocaro ele pra trás: a mão dele
tava toda moída!... uma coisa horrível!... ... ... comecei queimano enxofre,
com uns doze ano... eu corria do sr. Alex. Ele queria que eu fizesse faxina.
Quando ele vinha eu escondia!... eu era queimador de enxofre. Ele
marcava serviço pra uma semana! ... o alambique ficava atrás da casa
dele. Teve um irmão dele que caiu lá de cima do alambique! Era uma
escadaria... que ia prá lá e pra cá... ele passou direto e caiu com a cabeça

180
no chão!... ...depois passei a enfrentar a evaporação lá do andar de cima:
aquilo me arrebentou!...
... Dona Rita vendia broa, biscoito, pro pessoal da usina. Ela tinha
dois empregado que vendia por toda parte... e o sr. Alex falava: ‘Não
quero que vende biscoito aqui dentro da usina! Se eu vê novamente eu
jogo um pau nossês e jogo a sexta fora!’...” O laboratório de análises
químicas teve início no ano de 1954. Seu segundo chefe, sr. Leonardo
Ponte Djon, químico industrial, se desentendia frequentemente com Júlio e
nessas ocasiões se demitia; Julio sempre voltava atrás e o oferecia de
volta o cargo, indo alguém ao seu mandado chamar Leonardo em sua
casa. O que motivou Júlio a construir o laboratório foi o fato intrigante que
ocorreu no ano em que foi empreendido. A produção de 2.400 sacas caiu
para 1800, inexplicavelmente! “... ele olhou e falou que precisava de um
moço pra pegar as amostra... eu só pegava e deixava lá. Ele me ensinou
como fazia a análise dos produto e em dois ano eu tava sabendo igual à
ele! Aí ele entregou tudo pra mim e só ia lá pra assinar. E me falava: ‘sr.
Waldomiro, cuidado hein! Não dá corda pra ninguém!...’... ele era meu
amigo...
... eu saía da usina e ia buscar cigarro pro sr. Júlio, à meia noite,
uma hora, na Praça, correno!... eu chegava cansado...”
Rita ainda andava com aventais e em seus bolsos sempre dinheiro
trocado que arrecadava de suas vendas. Seu caminhão D-30 transportava
a lenha e o açúcar, que deixava no porão de sua casa. Ela e os seus
empregados dividiam os sacos de sessenta quilos em sacos de um quilo,
e mandava cortar a lenha. Em 1950 Wilma iria falecer: “... quando ela
morreu ficou um cofre cheio de dinheiro na casa. Júlio foi abrir o cofre...

181
tinha muito dinheiro vencido! ... que não valia nada! Tinha algum bom
ainda, né?!... mas, a maioria... aquelas nota grande!... aí teve um dia que
mandou a gente fazer uma limpeza na casa e aquele dinheiro velho tava
lá, todo espalhado...
... debaixo da casa do sr. Alex na usina, tinha dois fogão de tijolo a
lenha, muito grande! Alí fazia cada broa, cada comida!... Broa de fubá,
biscoito de fubá frito mais farinha de trigo pra tapiar.. brevidade... os dois
sacoleiro saía com cada sextão!... e um menino ia atrás anotano tudo,
porque eles era analfabeto e nem sabia assinar o nome!... na sala da casa
era uma lasca duma mesa! Lá eles batia aquelas broa, almoçava... na
cozinha, um chaminezão, quadradão assim... Rita ficava só
supervisionano. Era enérgica!... ela fornecia verdura na região toda. Não
existia isso de por nas venda não. Os sexteiro saía vendeno na rua, os
verdureiro...
...um dia em frente do bar do sr. Osvaldo, era o ponto de encontro
do pessoal... apareceu no meio da rua um tatu. Aí a gente saiu correno pra
pegar ele: um cerca daqui, outro cerca dali... eu segurei no rabo dele e ele
saiu me puxando... comemo ele!...”

182
Capítulo 55
Nicolá veio com seus pais para Toulouse, provenientes de rincões
distantes e quase despovoados, um recanto encravado no seio de uma
serra, entre abruptos e inóspitos sítios rochosos. Quase não lidavam com
dinheiro porque eram auto-suficientes em mantimentos que garantiam sua
sobrevivência onde moravam. Era agraciado pela natureza com um físico
privilegiado e um caráter firme e equilibrado, dócil, bem mandado, do tipo
que não rejeita trabalho, qualquer que ele fosse. Depois de duas recusas
a pedidos de emprego, a família chega à usina de Alex. Nicolá foi
prontamente incorporado à empresa como amarrador. Depois assumiu
outras funções dentro da indústria.
O pai de que Nicolá nutria um gosto forte pela atividade de briga de
galos. “...Eu gostava de galo de briga! Nós construímo uma rinha: tinha
gaiola pra colocar os galo nos dia de briga, o rodo, arquibancada... eu
arranjei uns quarenta sócio mais ou menos, aos domingo de tarde, era o
dia inteiro! Tinha um botequim lá dentro que eu vendia bebida, salgado...
...a rinha ficava na entrada da cidade.
Os galos japonês eram os mais rápido. Os da malásia, um galo
forte, graúdo, mais pesado e mais vagaroso, a gente cruzava eles... os
ingles eram bons tamém: cruzava eles com os japones. Era tudo galo
índio, mexicano...” Este sítio de desporto com o sangue dos pobres
animais agressivos e briguentos, era frequentado por amantes deste
esporte que se deslocavam de lugares das mais variadas distâncias.
Chegavam ávidos de luta e apostavam até suas mulheres. A rinha
enviava-lhes um convite pomposo, um envelope amarelo solene e grande
como os convites de casamento. A arquibancada de madeira qualhada de

183
gente, suportava os homens sempre exaltados pelo calor da disputa: as
apostas corriam soltas a todo tempo, até mesmo quase no final de uma
briga, quando um galo já tinha ultrapassado o outro em resistência e fúria
e estava prestes a colocar seu adversário fora de combate. Existiam
aqueles homens astutos ou aventureiros, que nesses instantes apostavam
no galo que estava perdendo, com a esperança de que ele revertesse o
quadro. Isso até que não era tão difícil de acontecer: as esporas afiadas
bastavam atingir lugares sensíveis como os ouvidos, os olhos, e outras
regiões fragilizáveis do inimigo, como o papo, para que a luta se decidisse
contra o favorito no momento. Nicolá como todo aficcionado também tinha
seus galos de fé e os punha à prova sempre que sua intuição lhe falasse
com seus pressentimentos e sonhos estranhos. Este foi o caso de uma
vez que, de posse do melhor galo de sua vida, chegou a ganhar uma
bolada razoável contra um adversário famoso, proporcionando para sua
família bons momentos. “Quando era torneio, tinha prêmio: medalha de
ouro, de prata e de bronze. Tem muito barulho! Nego grita: ‘100 no galo
tal!...’, ‘10 por 20!’; às vez, quando um galo tava mal, nego gritava: ‘100
por 20!’... Parava a briga de 15 em 15 minuto pra refrescar os galo: lavava
a cara dele, tirava a gosma dele com uma pena enfiada dentro da guela
dele: eles rodavam a pena... tirava, punha de novo..., passava água
debaixo da asa, enxugava... às vez saía muito sangue de uma esporada
que o galo levava, e, se não conseguisse parar o sangue, o galo não
voltava pra briga.
Tinha os preparador de galo: de 30, 60, 90 dias... a pessoa sabe
treinar um galo mas não tem condições de manter um pra ele e nem de
apostar. ...Às vez o galo que tava mal ganhava. Sr. Júlio teve um galo que

184
tava com oito briga ganha, um galo carijó, grande. O outro era carijó
tamém. O galo do sr. Júlio tava ganhano a briga, aí o outro galo subiu,
esporou e tucou o galo dele...” Este não havia acreditado no que via. Seu
rosto enrubesceu de um furor advindo do profundo de sua alma; o marcou
para sempre desde então. Pelo andamento da luta, estava certo de que
seu galo sairia vencedor, mas o destino lhe havia preparado esta
incongruência no intuito de lhe poupar mais aborrecimentos com os galos:
daí em diante, não mais teria galos e nem mais apostaria. Chegou a
frequentar mais algumas brigas e depois desapareceria desse meio.
Dedicar-se-ia mais ao trabalho e passou a viajar mais por Canela. “...Hoje
eu não tenho saco pra guentar rinha. É uma narquiada desgraçada!...”. Os
dois únicos filhos de Nicolá, que sempre o ajudaram a movimentar seu bar
na rinha, nunca apreciavam esses eventos, e muitas vezes se recusavam
a ver certas brigas bastante disputadas. O final era sempre dramático,
com o desvanecimento de um dos contendores, que resistia até suas
últimas forças, para então morrer nos braços de seu dono, ou no daquele
que o ganhava para o comer ensopado em sua casa; ou, então, algum
simpatizante das brigas de galo, que, o ganhando, o recuperava para
futuras disputas. Seus graves ferimentos não intimidavam aqueles que se
arvoravam em merecedores do bicho desfalecido, uma vez que havia
possibilidades de contaminação da carne por toxinas advindas das
esporas de seu opositor, caso o bicho fosse comido. Muitos galos menos
corajosos, persistentes e teimosos, corriam em meio ao calor da luta, ante
à superioridade do adversário. Decepcionavam seus donos, que
acabavam, por muitas vezes, doando-os.

185
Capítulo 56
Rita deixava que os meninos apanhassem frutas em seu vasto
quintal no pátio da usina. Quando chegavam, sequiosos das frutas
suculentas como jabuticabas, mangas, laranjas, mexericas, cajus,
pitangas, ela indicava-lhes os pés que estavam produzindo nessa referida
época do ano. Quando se fartavam e iam saindo carregados, Rita os
convidava a descascarem frutas para a confecção de doces, compotas e
licores. Dependendo da época: goiabas, mangas, caquis, abis, siriguelas...
Os meninos já sabiam os esquemas armados por Rita e só se submetiam
a ele quando a alternativa mais viável para o momento apontava para
esse caminho. No dia 5 de março de 1956, lá estavam eles, os meninos,
que sempre se renovavam com o tempo, descalços e sem camisas,
empanturrados de frutas, descascando bacias de goiabas vermelhas para
a feitura de um doce em calda que maravilhava. Nos tachos de cobre
sobre as fornalhas, no porão da casa de Rita, as obras de culinária
marcaram época e encantaram todos os tipos de paladares. O cheiro,
levado longe pelo vento, incitava os que o percebiam. Maria comandava
as já três colaboradoras, que manejavam diretamente as caldas e as
popas. As compotas de vidro atendiam às demandas de alguns mercados
extra-municipais, chegando até Besançon. O auge deste negócio coincidiu
com um momento delicado na vida de Rita: o início de sua velhice, quando
atingiu os sessenta anos. Com o transcorrer do tempo, essas demandas
por esses manjares dos deuses passaram a não mais serem atendidas e a
produção diminuiu até desaparecer. Rita decidiu levar uma vida menos
atribulada. Alex, por sua vez, já havia também diminuído o seu ritmo:

186
usava um cachecol diuturnamente ao redor do pescoço, caindo por sobre
as vestes sóbrias e alinhadas.
Janet era filha de uma das quatro mulheres que o sr. Odair
mantinha: “...Meu avô e meu tio acordava cedo na roça e trazia cana pra
usina do sr. Alex de carro-de-boi. Eles acordava as quatro da manhã e
tinha dia que eles já deixava as carroça cheia e tinha dia que não. Os
carro era da minha avó... eu candiei boi pra arar cana, sulcar com aqueles
arado de ferro, era dois; quatro boi pra puxar o arado.
Eu fazia muita rapadura e vendia a carga de cem rapadura pra
cidade, pras roça... De primero, no meu tempo na roça, adoçava café com
rapadura. ... Fazia broa de fubá: fubá, leite que azedava, que coalhava...
misturava com rapadura e batia com ovo. Colocava na caçarola de ferro,
depois na chapa do fogão, e colocava em cima da tampa da panela umas
brasa e sabuco de milho. O sabuco quemava e virava brasa. Era pra
acabar de assar.”...Janete sabia se esmerar na elaboração de pratos
tradicionais que, em suas mãos, se transformavam em obras originais,
inigualáveis. “...Quando tirava bambu, tinha o mês, a lua, pra não dá
caruncho. Tinha muita erva: erva cidrera, funcho, rebenta-pedra - dá no
pasto -, poejo, picão, pra hepatite, assapexe, alecrim... Cozinhava as folha
na panela de ferro e botava açúcar. ... Minhas duas tia era partera. Não
morria ninguém. Os menino nascia sadio, tudo forte. Hoje em dia... Usava
uma bacia com água morna. Curava o umbigo com hortelã, azeite de
mamona... Minha mãe e minha tia fazia azeite de mamona e vendia pros
engenho untá as engrenagem: ela primero fazia uma fornalha no terrero,
aí torrava as mamona e depois socava as mamona num pilão: virava uma
pasta com as casquinha tudo miudinha e aí, colocava a pasta num tacho

187
com água e deixava ferver e a água ir secano. Misturava de vez em
quando pro azeite soltar. A água secava e o azeite ficava por cima. Secou,
o azeite ficava por cima, dois dedo, um dedo... a mãe ia pegano com uma
concha e botano num litro. A borra ficava no fundo e jogava fora. ... ... Na
roça não tinha luz, usava aqueles ferro a brasa pra passar roupa. Hoje é
pra enfeitar, pra prantar flor... Ês botava fogo nas bosta de boi pra
espantar os pernilongo. Punhum pano véi por baixo pro fogo pegar.
Minha mãe fazia farinha de mandioca: ranca a mandioca, casca
ela, lava, aí põe a bacia em baixo e rala ela no ralo. Depois põe um pano
no sol em cima duma mesa e põe em cima pra secar. Aí coa na penera e
põe num vidro. Tá seca no sol, depois podia torrar. ... Fazia polvilho com a
mandioca, laruta, que dá uma folha larga, uma tossera: dá debaixo da
terra igual a mandioca. Menino tá com caganera, pega uma culhé de
polvilho de laruta, mistura na água e toma. Tomava remédio e não
diantava. Minha tia faz hoje isso na roça. Faz biscoito com ovo, leite... A
receita do polvilho: Sê ranca a laruta, raspa a casca fina dela, rala e põe
numa bacia cheia d’água. Vai pono e misturano e tirano e botano noutra
bacia com uma penera por cima. Tira ela da água igual a uma massa.
Esfrega ela em cima da penera com a mão. O que vaza é o polvilho. A
massa da laruta dá pros porco, a da mandioca proveita. O polvilho desce e
fica no fundo. Aí escorre a água e fica só o polvilho. Põe um pano numa
mesa e põe secar.
O café torrava em casa: Pegava os caroço no pé, punha pra secá e
guardava. Punha o café em coco num pilão e socava e separava a casca
do grão. Punha ele na penera e soprava e jogava pro alto pra sair a casca
e ficava o café limpinho na penera. Aí cata ele. Depois punha os grão na

188
panela de ferro e ia mexeno. Quando tava quase na hora de tirar, a mãe
pegava pra ver se tava bão... tava mei vermei lá... e colocava uns grão na
mesa e batia pra ver se tava torrado, senão voltava com ele pra panela. Aí
despejava numa bacia e espalhava pra secar. Depois ia pro pilão de novo
e socava até... e punha na penera e cuava muncado e voltava ele pro
pilão, cuano, cuano, até ele virá pó finim. ... Depois, com aquele
muinhozinho de muê pó, pudia guardá o café em grão torrado. Aí pegava
os grão e muía na hora o tanto que queria.

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Capítulo 57
No raiar dos anos cinquenta, Marcos, com dez anos, apesar de não
ter deixado certas práticas mais pueris, começava a se interessar por
outras mais usuais para a juventude. Lidar com o estilingue, o gancho,
como era chamado por eles, foi sua prática das mais preferidas, que
custaria abandonar. Era um exímio atirador e acertava alguns indefesos
pássaros que estivessem dentro de sua órbita de ação. Na verdade,
caçava as aves pelo simples prazer do esporte. Aos oito anos, foi
apresentado a uma cabana no meio de uma capoeira e logo incentivou
seus amigos mais próximos a erigir uma. “...A gente aprendeu a fumar na
caverninha na capoeira. Depois da aula a gente ia pra cabana. Ficava o
dia inteiro lá só deitado fumano... era Mistura Fina, Minister... a gente
viajava nos desenho animado da televisão e queria fazer a caverninha
igual à do desenho. Aí voltava dois irmão: eu e o Paulo e outros amigo:
Jean-Paul, Patric, Adriano, Zé Alberto, Zé Márcio, Alerico... Alerico morreu
num tombo que ele tomou: caiu dentro de um buraco num barranco e
quebrou o pescoço. Era bom de bola demais! O primo dele, o Arnaldo,
contava história demais!... piada... Todo mundo era menino e ele contava
história de assombração: a gente voltava pra casa e de noite morria de
medo. Hoje ele passa na rua e nem cumprimenta a gente mais, mudou
muito a cabeça... tá bebeno demais! Maconha, se der tempo! O irmão dele
morreu de cirrose de tanto beber.
Mãe um dia falou: ‘Cadê Flávio?’ --Tá lá no corguinho... ‘Há é? Eu
vou lá e ele vai voltar pelado!’ ... A mãe sepou ele no corguinho, e ele saiu
com o pinguelão pindurado pra rua afora, nós rimo demais!...”

190
Bastião tinha dezoito anos. Um rapaz malicioso, de índole
perversa: “...Ele sentava os gato no poste igual pedra. O gato caía ele ia lá
e tampava a cabeça do gato no poste. O gato urrava:
xssrrrrlghaaaaauuh!!!!!! ????. O gato caía no chão e ele sentava o pé nele
com vontade! Era gente boa, maconhero, o pai e a mãe dele morrero junto
num acidente de carro. Ele era encapetado demais! Ele rancou os dente
da frente com alicate. Bicho doido!...” Fazia parte da turma de amigos de
Adriano, filho de Júlio. Este porém não o tinha como admirador e seguidor
de suas atrocidades para com os animais, não só, mas também não
compactuava com sua rebeldia e inconsequência: exalava seu
temperamento áspero e gratuitamente provocador atingindo aos que
estivessem sob sua ascendência. Adriano, Patric e Jean-Paul apreciavam
desempenhar outras atividades com certos amigos, como “bater pelada”,
pegar passarinho ou andar de carroça-de-boi nos períodos de safra.
Participavam das guerras de gangues dos bairros. O chefe do bando do
bairro da usina de Alex era Bastião, aos dezoito anos; Adriano, nessa
época, contava com treze, Patric, dez e Jean-Paul, oito. Todos saíam de
suas casas pela noite e se encontravam em certas esquinas do bairro e da
cidade, dependendo do que estava programado para ser feito. “...tinha
flexa e arco, a gente ficava trenano pontaria. Saía de noite, todo mundo
encontrava nas esquina e vamo lá... aí os chefe das duas gangue ficava
discutino entre eles e de repente eles saía na porrada!! ... eu dei uma
tijolada nas costa do Zeca que ele até gemeu! Depois, noutro dia, ele me
cercou no bairro dele... meu colega não deixou ele me bater, não. ... A
gente ia pro clube nadar, saía da piscina e ia ver os chinchero fumar
maconha, a gente ficava escondido...”

191
Capítulo 58
Uma grande indústria multinacional se instalou em Canela na
primeira metade da década de cinquenta, no intuito de produzir aço
utilizando mão-de-obra barata. A uns cem quilômetros de Toulouse, numa
região montanhosa, onde escarpas rochosas abruptas imperavam
formando uma paisagem exuberante. Nesse local, desciam rios de água
cristalina, provindos de fontes diversas que se estendiam por toda a serra;
região de mata virgem, habitada somente pelos inúmeros exemplares de
espécies dos reinos animal e vegetal que lá ocorriam abundantemente.
Giuliano era o oitavo filho de uma numerosa prole que residia num vilarejo
aos arredores de Toulouse. Seus irmãos, na sua maioria, ingressaram
precocemente na lida dos canaviais. Ele, contudo, fora morar com um tio
casado, que não podia ter filhos, dado a problemas de esterilidade. Foi
para uma gleba de terra justamente na cabeceira de um rio, nas alturas
da serra onde a grande Companhia instalou recursos para a estração de
madeira e a feitura de carvão que abasteceria seus fornos siderúrgicos.
Seu tio era empreiteiro: pegou um serviço de limpeza de matas para a
empresa multinacional, arregimentando trabalhadores que, a machado,
iam derrubando árvores, que os encarregados da Co. mediam, sendo
depois transportadas para os fornos instalados perto de onde eram
cortadas. “...as junta de boi puxava as lenha até as praça dos forno. Era
lenha de toda qualidade. Ês proveitava até cipó grosso! Era só mesmo pra
fazer o carvão, só pra cozinhar... Fazia aquele fecho de 2, 3 pau e
marrava com corrente... e os boi era tão manso, tão treinado que ia só o
carreiro tocano até a praça do forno. Tinha forno no barranco que ês fazia
só a copa dele de tijolo e um tunelzinho pra entrar... e tinha ao ar livre

192
tamém. O carvão pronto ia pros depósito tudo ni lombo de burro. Aqui pra
cima tinha trêis depósito de carvão, com madeira e cipó tampano... os
burro ia chegano com aqueles balaião de meio metro: cada burro levava
dois balaio. Vinha dois tropeiro pra tabaiá no lote de burro, que era doze
burro, que era da Co. incrusive...”
Um episódio marcou a vida de um amigo de Giuliano. Tratava-se
de um tropeiro casado que construíra sua casa em local ermo e de difícil
acesso, em meio a uma região de mata primária, que seria derrubada pela
Co.. Trabalhava com lotes de burro, transportando lenha e carvão. Uma
senhora de idade, tia desse homem em questão, “...tucaiô ela e viu o
amante entrá pra denda casa. Dispois chamô o marido e ele pegô ês lá
dentro...” O amante conseguiu se safar, fugindo pela janela levando
consigo somente a ceroula do próprio corpo. O marido legítimo desferiu
nele alguns tiros de arma de fogo, mas, não acertou. Isso porém não
aconteceu com a mulher que tomou uma sova com vara. Apanhou
bastante!
“...Aqui pra cima era pasto de burro, hoje é capoeira. Tinha mais de
mil homem aqui, no Rochedo, na Testa do Ingá... ês dirrubava as arvre,
picava, tudo no machado. Uns ia puxano com boi, outros com burro... Aí o
transporte do carvão era de carreta... as última saiu daqui tem uns
quarenta ano! Cada carretão que cabia 45 metro de carvão!... A Co. tinha
os barrancamento dela. Os barraco era tudo arriado. Barreado: punha as
trava, os pau-a-pique fica tudo fincado no chão, depois vem a ripação, o
barro... Os fichado na Co. pegava das sete as quatro, os particular pegava
a qualquer hora... Os barraco já era feito no meio dos mato... ês começava
a trabalhar em volta do terreiro e ia abrino...” Devido à abundância da

193
fauna, legiões de caçadores saíam empunhando suas armas ao encalso
de tatus, pacas, onças, coatis, macacos, etc.. As mordeduras de cobras e
escorpiões eram verdadeiramente temidas por todos, mas, sempre alguém
saía lesado por esses bichos peçonhentos, muitas vezes,
permanentemente. Houve um caso de um homem que, após ter sido
vítima de uma picada da cobra jaracuçú, da barriga podre, ficou por longo
tempo sofrendo de escamações de pele pelo corpo todo; um outro
desenvolveu uma febre que o levou à tumba. Quando as simpatias e
benzições não surtiam os efeitos esperados, as pessoas sucumbiam.
Giuliano batia pasto e matava cerca de seis a oito cobras por dia. “...Eu já
fui ofendido de jaracuçu... deu aquela febre, mas eu fui curado de
simpatia. A gente usava orca-paúba, um óleo que dá num pau: pau de
óleo: ele serve pra ofensa de cobra, dor no corpo... ele fica bão de julho a
agosto. Se não tirar ele do pau, ele estoura e escorre pro chão. Procê
colher ele, sê faz um cocho nele: faz um buraco no tronco da árvore, antes
do meio dela e colhe o óleo no cocho. Bico de andorinha era bão pra
banhar o lugar da picada da cobra, semente de quiabo com cachaça, a
erva butão... essa erva é veneno. Sê pode beber, sê faz o chá da foia...
mas tem que ter certeza que é cobra que picou, senão morre! ... a cobra
pega o detrás da trilha. O que vai na frente sanha ela e ela enrola e pica o
detrás. Ela fica enfezada e corre atrás da gente! Ela drorme é enrolada,
mas com o bote armado. A cobra espichada não morde ninguém.
... De primeiro, era arroz branco uma vez por dia. Macarrão era
mais difícil. Era feijão, angu, mingal de couve, cangiquinha, mingal de
cenoura, de batatinha... Ninguém ia em venda fazer compra, não...”

194
O café, produto nacional que continuava abastecendo o mercado
interno e novos mercados externos, fora plantado e cultivado nessas
plagas, tão logo o desmatamento concluiu sua obra. Depois da extração
da madeira e a contumaz destruição do ambiente natural, os cafezais se
impuseram. Eram plantados em fileiras que se estendiam de cima para
baixo nos terrenos inclinados e facilitavam a erosão do solo. Somente
tempos depois é que a técnica de plantio em curvas de nível finalizou essa
prática altamente danosa aos terrenos. “...Quando eu vim pra cá, ês ainda
não botava veneno nos pé de café. Despois passaram a botar e o resto
dos bicho foi sumino tudo! Aí ês vem diminuino o veneno e os passarinho
tão vortano! Aqui tem pé de café de cinquenta ano!...” Fazia-se também
açúcar cansado que era vendido nas imediações, provindo de pequenas
plantações de cana; plantava-se milho que era transportado em bolsas de
couro nos lombos de burros. “...Os tropeiro acampava e tinha um burro
levano as vaziama, os alimento, a cozinha. Ês ranjava num lugar e ia fazer
a comida dês: arroz, farinha... usava muita farinha de mandioca, carne
seca... hoje é salame. Vinha gente de Trevi trazeno lote de panela nos
lombo dos animal, vendeno... hoje ês traz no caminhão, tem os ponto de
venda... todo mundo prantava de tudo! Tinha engenho pra todo lado: era
café de garapa: sê mói a cana e freve a garapa pra ela sortar a escuma,
sê escuma ela, sê vai secano ela, ela engrossa, punha água... aí coava o
café com essa garapa pra adoçar ele. Sê vai engrossano ela, ela vira
melado e depois rapadura. ... De primeiro a pobreza era feia!...” O pai de
Giuliano relatava a ele a existência e sua experiência com o subaco, que
era o recurso usado antes do advento da engenhoca: A cana era
amassada entre dois paus grossos para a retirada da garapa

195
Capítulo 59
Gaston Bouchestein Dutra de Almeida chega a Toulouse em 1952,
proveniente de outro estado da federação, casado com uma toulouseana
filha de um fazendeiro que plantava cana-de-açúcar para abastecer a
usina de Alex. Era um desportista e logo foi contratado pelo Clube
Toulouseano de futebol. Aprendera a arte do cultivo da cana e durante as
safras, transportava para a usina as canas da propriedade de seu sogro,
em um caminhãozinho D-30 verde, com paralamas preto. “...Na usina de
Alex, no período da entressafra, tinha uns 400 empregado. Tava em
processo de ampliação: tinha uns empreiteiro contratado pra construção
de um armazém, caldeira nova... Funcionava o armazém de venda de
cereais e mantimento só pros funcionário. Era uma maneira de facilitar pra
eles... o preço era menor e as mercadoria de boa qualidade: eles tinha
crédito e descontava na folha de pagamento deles...” Às sextas
feirasGaston entregava para o escritório os talões do peso das canas e
recebia o pagamento aos sábados. Os fornecedores particulares eram os
próprios turmeiros. “...Se rendia, ele ganhava mais... ou perdia até
dinheiro, ou não ganhava nada. Quando a cana era fraca, o turmeiro
perdia... o turmeiro com a turma, tinha que cortar tanto as cana boa quanto
as ruim. Na soca mais velha é que não ganhava tanto...
O jardim da casa de Alex na usina era muito bonito! Tinha um
jardineiro que cuidava do jardim e fazia mandado... Alex e Rita ficava
sentado na varanda da casa: cada um na sua cadeira de balanço... era
interessante; quando a usina dava um probleminha, Alex já chegava antes
deles chamar. Ficava ligado no barulho das engrenagem... Teve um dia,
na esteira, o Orlando tava soldano a esteira, e outro cara, sem querer,

196
ligou a chave e ele foi puxado pra dentro da esteira! A esteira moeu ele e
ele não morreu! Ficou todo quebrado! Ele era chefe de moagem, de
fabricação... o trem ali não rodava sem ele! ... ... ... Quando chegava uma
carroça pra descarregar, ela passava na frente e os caminhoneiro ficava
puto!... ... ... Teve um dia, em 1957, que eu tava passando perto da usina
Jacques Ledoux e vi uma explosão grande! Foi o tanque de álcool que
explodiu! Foi um clarão no céu... Eu fiquei impressionado com aquilo!...”
No final da década de cinquenta, chegou em Canela a primeira indústria
automotiva, e fez com que, a partir de então, houvesse maior
popularização dos carros e caminhões no país. O reflexo disso na usina
de Alex, fez com que, gradual e mais aceleradamente, as carroças-de-boi
fossem sendo substituídas pelos pequenos caminhões. Começaram a
aparecer outros carros nas ruas da cidade, que não somente os poucos
exemplares do Ford Bigode que já ocorriam. As ruas começaram a ser
calçadas com paralelepípedos mais rapidamente e a cidade passou a ter
seus exemplares automotorizados misturados às charretes que já havia
em abundância, e às carroças-de-boi; os carros-de-boi, já em processo de
extinção devido à concorrência das carroças, que suportavam mais
cargas, começaram a ficar ainda mais escassos, mas, somente
desapareceriam após duas décadas, por completo, das ruas da cidade.

197
Capítulo 60
Diz Juan Carlos de Lafontanna: “...Joaquim dos Montes Claros,
fornecedor de cana da usina de Alex Bourdon... foi muito meu amigo!... já
foi produtor de café, cana, suíno, gado de leite, gado de corte, ovo,
frango... e morreu quebrado. Eu achava ele muito simples. As doença dos
produtor e lavrador era má alimentação e friagem... e ia atrofiano... ... ele
foi tamém do Sindicato dos Produtor. Era um cri-cri danado!... ... ... Já meu
outro amigo, Silviano Alexander, morreu de paixão por causa de política.
Em 1935, 36... ele foi prefeito... nessa época os prefeito eram nomeado
pelo governador do estado. Teve uma perseguição do Dr. Amauri N.
Matodentro, que era amigo particular do governador da época. Aí ele ficou
dedurano o prefeito Silviano Alexander pro governo do estado pra entrar
no lugar dele na prefeitura. Aí ele saiu do cargo e foi pra fazenda e trêis
meses depois ele morreu. Ficou muito apaixonado!!!... ele ficava na
varanda de dia e de noite sem fazer nada... com uma cara muito triste... ...
... Alex andava na usina com uma boinazinha preta, um parzinho de
sapato preto, com um bico meio arrebitado pra cima,... Rita plantava horta
nas fazenda e todo dia de manhã ia buscar verdura... marrava um pano na
cabeça...
Na época da guerra, em 1942, era uma choradera danada, né!?...
as mulher chorava com medo dos marido ir pra guerra... os filho... não
tinha rádio a pilha ainda não, e na roça nem energia elétrica! Os rico tinha
rádio a energia elétrica. Na roça a gente comia angu, feijão, couve picada,
outra hora, cangiquinha... e pronto! Comia só isso: miséria desgraçada!! ...
Pindurava o tocim na fumaça e ia cortano aos pouco, assava na brasa...
fritava na própria gordura e comia com angu. ... Na roça sempre tinha um

198
míizim no paiol. Dava muito rato! Uma rataiada danada! Não tinha veneno
pra rato, não tinha remédio pra piôi, nem pra formiga, pra pulga... Quando
cabava o míi, aí juntava a rataiada no cacete! Metade escapava. Quando o
míi tava cabano ês ficava muntuado. A gente ia revirano e metia o
cacete!!... era assim que fazia na roça... ficava com o pé chei de bicho...
bicho de pé... os menino ficava chei de piôi...
Pelos anos de 1938, 40... morreu muita gente de tuberculose,
porque não tinha cura!... às veis estrepava e dava tétano e morria porque
não tinha vacina...”
Quando os negócios iam velejando sobre o mar de certa
tranquilidade a a soberba, o orgulho e a megalomania imperavam nas
suas famílias. Dona Maria do Carmo, proprietária da única usina de açúcar
de Lídice, reiteradas vezes insistia com seu marido para que fossem
residir na capital do estado, e dizia: “...Vamos embora de uma vez por
todas para Guianá! Toulouse não tem nem homens para casar com
nossas filhas!...” E foram. Só que quando a usina fechou suas portas, um
dos maridos das três filhas simplesmente fez suas malas e se despediu de
sua mulher dizendo: “Casei com cê por causa da usina; ela foi embora e
cê agora pra mim, já era!” Este sujeito ficou amigado com uma
adolescente bonita e tranquila...

199
Capítulo 61
Toulouse se primava por suas festas, inúmeras, no transcorrer de
cada ano. A começar pelos festejos de ano novo, quando os clubes
repletos de pessoas ostentavam, inclusive, espetácuos pirotécnicos
explendorosos; isso somado aos elegantes desfiles informais das
mulheres bem trajadas e pintadas. Os homens vestiam ternos impecáveis
e usavam um bigode fino bem rente ao lábio superior. As valsas
conduziam a todos pelos salões em danças leves e harmoniosas, e as
horas passavam à revelia, embaladas pelos apelos sonoros e poéticos,
convidativos ao êxtase, ao sonho e à fantasia; o dia trazia consigo um
novo ano e uma nova promessa de esperança. O carnaval, bastante
animado e empolgante, já desfilava seus blocos pelas ruas da cidade,
regados a muito batuque e ao som das bandinhas de sopros. Todos
acompanhavam o passar dos blocos irreverentemente pela praça da
cidade até cada qual se aninhar num local predeterminado. Cada bloco
atraía seus simpatizantes num núcleo de som e dança que contagiava. O
baile de carnaval nos clubes era para aqueles que desfrutavam de uma
condição sócioeconômica acima da média da população. Em ambas as
condições festivas, as fantasias estavam por toda parte: os personagens
da história, do mito, da literatura e do imagiário em geral. Primavam pela
bizarrice, criatividade, originalidade, exotismo, deboche. Figurinos
delirantes surpreendiam e encantavam sempre; muitas vezes chocavam,
mas, como era carnaval, as ofenças na maioria das vezes não eram
levadas às últimas consequências.
A Semana Santa desfilava suas encenações pelas ruas da cidade
em procissões que relembravam partes da vida de Cristo. Havia aqueles

200
párocos que passaram pela cidade e deixaram as marcas de suas fortes
personalidades nas suas obras. Um desses homens de Deus tinha certa
vocação para o teatro e para o cerimonioso, despendendo muitos esforços
em prol de grandes espetáculos teatrais religiosos. A cidade toda se
mobilizava diante da grandeza do evento, justificado pelos sagrados
ensinamentos. A multidão coadjuvava, participando do drama, integrando-
o e interagindo com ele enquanto público cenográfico. As procissões se
arrastavam com seus andores e personagens de época, seguidas
fervorosamente pela multidão encantada pela plasticidade bastante
expressiva do cortejo. Rita e Alex participavam tenazmente colaborando
para o engrandecimento dos eventos, fazendo doações diversas, como
transportes, madeira e mão-de-obra na construção de palcos fixos na
praça. Rita, ao longo de toda a sua vida, sempre manteve estreito
relacionamento com a igreja e os sacerdotes da matriz de Toulouse,
chegando a doar importantes imagens de santos, em gesso, advindas da
necessidade de substituição das antigas em madeira. Estas, autênticas
obras de arte, esculpidas por artistas da região e por outros de além mar,
se perderam no tempo. Os anos deram à cidade festas, jogos e esportes
em doses consideráveis, no que era agraciada por Deus, e os
toulouseanos se divertiam bastante nessas ocasiões numerosas.
Marry via passar as festividades, os jogos de futebol muito
movimentados, mas se preocupava em brincar com suas amigas da
vizinhaça: jogavam maré, brincavam de pular corda, queimada, até
brincavam de pique com os meninos. Algumas meninas conviviam com as
duas netas de Alex e tinham acesso à usina. Apreciavam descer pelas
montanhas brancas de bagaço escorregando: levavam até à completa

201
exaustão essa prática. Algumas vezes saíam em piquenique por uma das
fazendas da usina. “...A gente saía de manhã cedinho com a dona Rita.
Chegano lá ela falava com os menino: ‘Se alguém brigar a gente vai
embora na hora!, ouviram bem?’...” . Iam de caminhão pelas estradas de
chão, o que representava para os meninos um acontecimento de primeira
grandeza: todos adoravam! O almoço sempre era servido numa mesa
grande de madeira da sala de jantar da casa que era ocupada pelo
administrador da fazenda em questão. Matavam-se galinhas e/ou um
porco, ou um cabrito e colhiam-se verduras da horta que Rita cultivava em
parceria com os moradores da fazenda, que, sempre mantinham-na bem
cuidada. Depois de muita correria pelos amplos espaços bucólicos e de
muitas brincadeiras e alguns desentendimentos superficiais, chegava a
hora de regressarem a Toulouse. Rita mandava colherem verduras e
legumes da horta, mandiocas, abóboras, buchas de cerca, frutas das
árvores frondosas e levava presos víveres como patos, galinhas, alguns
leitões, perus, ou outros que já estivessem disponíveis para serem
abatidos. Simon, primo-irmão de Marry, residia com esta na casa dos avós
que tinham em comum por serem órfãos. Uma tragédia havia acontecido
mas nem é bom lembrar. Simon e seus amigos citadinos, em busca de
aventura, marchavam até a usina Jacques Ledoux, que se encontrava na
periferia da cidade. Exploravam o ambiente da indústria nem sempre até
onde lhes era permitido e descobriam mundos de engrenagens
fascinantes. Corriam dos vigias e dos delatores. Na volta para casa a
aventura ganhava proporções máximas: “...O trem parava pra descarregar
os vagão de cana que trazia de São Luiz; o trem vinha lá de Riviera. A
gente proveitava que ele parava e subia em cima do teto dele, e ficava

202
deitado escodido até ele andar. Quando ele andava, a gente levantava e
ia de pé até a praça! Quando ele ia quase parano, a gente pulava dele e
saía correno!...”
Era sonho de toda jovem ser a rainha do Clube Romano,
motivação esta que a elegia no mês de maio, solenemente num concurso,
este que levava em consideração os critérios beleza, simpatia e elegância.
Em 1955, uma prima de Marry foi eleita; dançou a valsa de abertura do
baile mais concorrido da cidade com um deputado estadual,
especialmente presente para protagonizar o evento conjuntamente com a
rainha do clube. As mulheres usavam vestidos longos e grâ-finos e os
homens exibiam ternos caros e impecáveis. Dançava-se noite inteira ao
som de uma orquestra conhecida nacionalmente, num ambiente decorado
com o bom gosto e o requinte exigido para as ocasiões especiais da
sociedade local. Nesse período, uma instituição recém-criada corroborava
para justificar as tendências sócio-culturais: a rainha da cana. O Clube de
Toulouse sediava as solenidades do evento, competido em glamour e em
credibilidade perante os cidadãos toulouseanos, com o Clube Romano na
eleição da rainha do clube. Outros bailes promovidos por instituições de
ensino também levavam os tolouseanos às pistas de dança de seus
clubes recreativos. Muitos jogos de futebol ocorriam em clima de festa e
disputa acirrada, provocando, com certa frequência, insultos e
provocações que evoluíam para contendas físicas entre dois ou mais
participantes. Certa vez, num jogo entre o time de Toulouse e o de Lídice,
na disputa para levar a taça que coroava o campeão do torneio estadual,
houve uma tal pancadaria e desordem que o jogo teve que ser parado três

203
vezes durante o segundo tempo: os ânimos estavam por demais exaltados
e alguns feridos foram levados para o hospital.
As festas juninas eram também muito apreciadas e todo ano
algumas comemorações se espalhavam pelo município. As quadrilhas, a
gastronomia, os costumes populares ganhavam asas e a criatividade
ensaiava circunstâncias divertidas, e devocionais.
Uma manifestação popular eloquente no que se refere à ironia e
sarcasmo, frente à condição humana frágil e indefesa perante as forças do
destino, era uma exibição irreverente em praça pública. Era o período em
que transcorria a festa anual dos calouros das duas escolas de primeiro e
segundo graus da cidade. Durante o dia, na praça de Toulouse, o trote era
instituído e lavrado nos corpos e nas personalidades dos calouros
indefesos da primeira série ginasial. Os homens eram submetidos à
condição de travestis, pintados e vestidos com roupas femininas, eram
obrigados pelos alunos das outras séries a desfilar nessas condições num
carro alegórico sob os aplausos e vaias da multidão ensandecida. As
mulhes desfilavam em charretes, vestidas com vestidos antigos e
rasgados e acessórios como bolsas, chapéus e bijouterias dispostos pelos
corpos de maneiras pouco comuns, de forma luxuriante e exibicionista,
demonstrando tremendo mau gosto. Era eleita uma rainha entre as
calouras, que ocupava condição de destaque no desfile portando coroa e
cetro. À noite, no baile de confraternização, sentada num trono, com todos
os calouros ajoelhados diante dela, decretava: “Como soberana e rainha
dos calouros, lanço meu primeiro decreto: Segunda-feira não haverá
aula!”...

204
Porém, o marco anual das comemorações e rituais institucionais
era a festa de formatura realizada pelas duas escolas conjuntamente.
Todas as formalidades tradicionais eram cumpridas de forma veemente,
para recompensar publicamente e legitimar solene e formalmente aqueles
que galgaram a quarta série ginasial, o terceiro ano normal e o curso de
contabilidade, oferecidos pelas duas academias. A programação do
evento rezava que na quinta-feira houvesse um jantar de confraternização
no Hotel de Toulouse, entre os formandos das duas escolas e seus
convidados. Havia um paraninfo que geralmente era uma personalidade
de destaque no cenário estadual, a quem, incumbido de fazer um breve
discurso, se estendia em elocubrações claramente exibicionistas, em
maior grau quando algum político tomava tal posição, o que era comum
acontecer, inclusive com o próprio governador do estado. Na sexta-feira,
uma missa solene na igreja matriz sacramentava perante Deus as novas
condições sócioculturais assumidas pelos formandos, culminando com a
benzição dos anéis de formatura. A Colação de Grau era no sábado no
cine-teatro, durante o dia. À noite, o baile mais concorrido do ano em
Touluose.

205
Capítulo 62
Depois de uma tempestuosa fase de chuvas: “...Eu pescava num
severo meu. Por todo lugar tinha rastro de capivara... era cada piriá! Eu
jogava milho, queijo pra eles, juntava os bicho pra comer, cotia... uma hora
um, depois o outro, sabe como é a lei da vida, né? Os mais fortes é que
mandavam...
Aquela lagoa que assoriou era muito grande! Era muito bando de
marrequinho que tinha! De tarde, eles voavam, aquela formação de vôo...
Peixe é impressionante! Sê amarra umas espigas de milho maduro no
bambu dentro d’água, e o pial vem pra comer o milho. Aí sê pega o bambu
e sacode com força pra eles largarem o milho. Aí então sê pega o anzol
com isca de lesma, tanajura, milho e joga pra pegar eles. ... Os cardumes
maiores é que mandam no poço. Eu sevava eles. Na hora que tem troca
de cardume de pial tem briga: tambaqui, pial, pacu-caranha... Um
tambaqui de dezoito quilos não permite que outros peixes comam onde ele
tá. No severo tem muita briga! No lugar em volta do pesqueiro, os peixes
ficam bateno e outros cardumes pulam pra ver se tem gente na margem:
quando tem gente, eles já ficam com medo. ... Um bom pescador senta na
margem do rio e fica quetinho. Não faz movimento brusco, não... se jogar
uma chumbada pesada em cima do peixe, ele assusta e sai. Ele é arisco,
selvagem!...”
Antes da última grande enchente, Paulo já era um pescador
experiente. Costumava se aventurar sozinho ou acompanhado de um ou
mais amigos rio abaixo, em seu barco a remo. Num dos locais onde
sazonalmente sevava cardumes de surubim, onde existia uma mata densa
nas duas margens do rio, sevava também animais de caça: capivaras,

206
cutias, pacas... “...aí eu tava pescano... era lugar de surubim, e na boca da
noite eu jogava a linha. ... Sê fisga o anzol nas costa da traíra e ela fica
nadano no fundo. Põe uma chumbada... Eu amarrei a linha no barco e
ouvi uma barulhera no mato. Aí o surubim entrou e foi tomano linha na
minha mão; eu dei linha. Ele põe a isca na boca e corre, e pára pra comer.
Ele fez tanta força que começou a furar minha mão. A onça tava em cima
duma árvore e de repente ela pulou, e eu só senti um bafo quente no
cangote, e ela me jogou dentro d’água, mas o barco não virou! Foi na hora
que eu tava lutano com o surubim já bem perto do barco. Ela caiu com o
peito em cima das costa do surubim e ela travou na guelra dele. Eu tava
sangrano nas costa por causa das patada da onça e veno ela brigano com
o peixe. Ele matou a onça porque ela pulou em cima do ferrão nas costa
do surubim. Aí eu puchei os dois, marrei num tronco na margem, chamei o
pião pra me ajudar e trouxe pra casa. Sê quer ver o couro da onça? Onça
pintada. Dá pintada! Aqui a pintada da onça!! oh!... ( e pôs a mão em seu
pênis ) há!, há!!...” Esta experiência lhe rendeu muitos pontos nas costas e
deixou uma cicatriz imensa até as nádegas.
Em seus aprendizados ao longo dos anos às margens do rio
D’Ajuda, de fartas e volumosas águas cor de barro, Paulo soube, por
intermédio de um homem experiente nos negócios da mata, a pegar
cobra. Como elas enxergam pouco e possuem um sensor que capta o
calor dos corpos, qualquer objeto que se aproxime cai sob seus
encantamentos. Com um pé à frente do outro, Paulo mirava aos olhos da
cobra, embora sentindo total repulsa, permanecia imóvel. A cobra também
imóvel, lançava seus hipnóticos olhares sobre o brilho dos olhos de Paulo,
e se estabelecia uma ligação contínua de olhares fixos um no outro. Com

207
lentidão, ele levava a mão esquerda para o lado e em direção à cobra.
Quando esta mudava seus olhares para a mão astuta que se aproximava
de seu lado, com a outra mão, a agarrava logo abaixo da boca e a
apertava com segurança, para, então, com a outra mão, segurar o rabo
dela. Assim ela estava totalmente dominada. Desse jeito, Paulo chegou a
enfrentar com sucesso algumas investidas sobre exemplares venenosos
desse réptil amedrontador, que silva pelas matas a provocar sussurros
nem um pouco desdenhosos dos caçadores e incautos aventureiros.
“...Perto dos escombros da casa velha, eu peguei duas traíra com rã. A
água do rio tava suja e eu tô veno a rãzinha chorano e ino pra boca da
cobra... ela hipnotiza a rã ou perereca, sapo... eles choram. É uma
choradera!!... Sê ouve longe! Era uma jararaca verde de um metro e
pouco. Eu apliquei a técnica, peguei a cobra, e peguei a rã pra iscar... e
sapequei meio litro de cachaça na boca da cobra e joguei ela pra lá. Aí,
depois que eu peguei uma traíra com a rã, tô sentino um trem cutucano
nas minhas costa e quando eu virei, era a cobra, com outro sapo na boca
quereno mais cachaça! Era cobra cachacera!! Há! Há! Há!!...”
O garimpo, desde a descoberta de Canela, se tornou um negócio a
partir do ouro extraído do leito dos rios. Atividade altamente predatória, se
espalhou com seus tentáculos oriundos da cobiça, devastando
ecossistemas naturais por quase toda a extenção do arquipélago. “A gente
ia batear...” ( batea: gamela de metal apropriada para garimpar ouro. )
Num dado dia, Paulo foi pescar com alguns amigos no grande rio. Só que
desta vez levaram um imenso arsenal de bebidas alcoólicas. No meio da
noite, debaixo de uma lua esfuziante, Paulo avistou uma senhora velha
pescando do outro lado da margem do rio. “...Tinha uma mulher pescano

208
do outro lado, pial, dourado... aí fui pro outro lado a nado: muchila, vara,
colete salva-vida... comecei a bater papo com ela... ela fazia severo, falou
pra eu ficar à vontade... aí joguei o anzol e peguei dourado, matrinchã,
pial... tinha uma relva bonita, uns pé de aroeira... aí juntei os peixe, joguei
na mochila, atravessei o rio e dormi no relento. Eu e mais dois caras, a
gente tava garimpano. De manhã, quando eu acordei, só achei uns
pedaço de pau dentro da caixa de isopor do gelo. Cadê os peixe?... Eu
tinha tomado muita pinga... Então um falou: ‘sê tava muito doido ontem,
né?! Sê rolou no chão e começou a conversar sozinho, e pegou uns
pedaço de pau de lenha e colocou no isopor com gelo, e nós não mexemo
com sê porque sê tava muito doido...!!’ ...”
Existem muitas histórias de aparições de discos voadores às
margens de grandes rios. Um primo de Paulo disse que havia avistado
uma luz intensa que chegou a possuí-lo e arrebatá-lo numa viagem sem
tempo; e misteriosa, por confins inimagináveis que somente deixaram em
sua lembrança rápidos flashes. Quando voltou à consciência, estava
perdido, sozinho, deitado numa pedra à margem do mesmo rio citado
anteriormente, que em uma de suas margens exibia altos paredões de
minério e, na outra, uma mata num terreno mais plano, com uma farta
população de cobras. Ele se sentia plainando e levado por inúmeras
estrelas cadentes para um reino desconhecido. Estava, de fato, dormindo.
Ao acordar, haviam-se passado três dias. Voltou para casa e levou algum
tempo para se recuperar, mas, verdadeiramente, nunca se recuperaria
totalmente.
Na divisão de gigantescas glebas de terras como sesmarias,
fazendas sem fim, depositárias de riquezas insondáveis dos reinos

209
naturais do planeta em Canela, um casarão foi erguido a cem quilômetros
de Tolouse - nesse tempo, Arraial da Boa Esperança. Fora a sede de uma
dessas sesmarias portentosas, às margens do rio D’Ajuda. Paulo conta
que seus avós paternos contavam terem visto as ruínas da grande casa,
seus alicerces de braúna, as senzalas onde dormiam os escravos. Dentre
as histórias que rondavam o passado alí vivido, consta que um escravo,
amante da escrava favorita do senhor, havia sido enforcado quando da
descoberta do conluio; a mulher fora poupada devido à atração que o
senhor sentia por ela. A casa da sede da fazenda comportava inúmeros
quartos e uma varanda comprida na parte da frente. Em seu quintal, o
chão era coberto por pedras enormes e os muros divisórios também eram
feitos com essas pedras achatadas, dispostas verticalmente no solo. Um
lugar impressionante, com imensas mesas de pedra... A água que tocava
o moínho de fubá procedia de um afluente do rio D’Ajuda, que perto dali se
juntava às águas mansas e caudalosas deste fenômeno natural, a fluir
incessantemente em direção ao oceano. Em certos locais, as corredeiras
se formavam, e o ouro que brotava do cascalho fêz com que toda uma
grande região do rio fosse considerada aurífera. A cobiça dos homens caiu
em cima, como uma praga de gafanhotos cai em cima de uma plantação
de milho: de forma devastadora! O instituto da escravidão matou inúmeros
negros africanos sob as águas desse rio. Em muitos locais houve desvios
das águas para que o leito original fosse totalmente vasculhado. Não
poucas vezes, os escravos que trabalhavam já no leito limpo do rio foram
surpreendidos por avalanches de água do próprio rio, devido ao
rompimento da barreira de contenção...

210
“...O irmão de Paulo usava roupa de borracha, escafandro. Isso em
1959... e no fundo d’água, ia com uma mão segurano a mangueira... o
mangote, enrolava ela no braço, ela ia sugano, a pressão violenta!... com
a outra mão ia tirano as pedra grande. O ar vinha jogado por outra
mangueira... Tinham dois motor de fusca, que era mais usado: um fazia a
sucção e o outro mandava ar pros escafandrista. Tinha muito roubo de
fusca por causa disso, há! Era muita gente que fazia isso... Teve muitas
mulher que ficaram com filho sem pai! ...
Essa lagoa que tem muita capivara tem muito carrapato e muito
caçador de capivara! Destruiram muito os capim canavieira, esconderijo
pras capivara, passarim, cutia... A braquiária de brejo, que foi introduzida
na região, caba com ele!... a braquiária anda muito dentro d’água, toma
conta de tudo!...” Uma região onde várias lagoas marginais ao rio
compunham um ecossistema harmonioso e profícuamente povoado por
inúmeras espécies da fauna e da flora; um oceano de ervas sibilantes as
separavam entre si: os capim-canavieira ou capim-navalha, nome esse
advindo do fato de que o contato desse capim com a pele provoca
arranhões e cortes mais profundos, se incisivamente incidir sobre a pele
frágil e exposta. Uma dentre estas preciosidades lacustres ficou intocada
até a segunda metade do século XX, uma vez que seu acesso se mostrou
demasiadamente inviável: o mar explosivo de capim-navalha, onde este
chegou às suas últimas possibilidades de desenvolvimento, formando uma
parede vegetal forte, extremamente larga e densa; desencorajava sua
exploração pelos pescadores e caçadores que também se satisfaziam
com o produto farto de suas empreitadas eficazes, antes que tivessem que
chegar lá. Ao entardecer, os bandos de inúmeros marrecos dominavam o

211
céu em revoadas, quando exibiam um azul metálico indescritível debaixo
de suas asas...
“...tinha tanto lambari que a água ficava preta! Eu sevava eles no
fubá. Sê via lambari vir de todo lado! ...tambiú, lambari chato, pratinha...
dava tanto que dava procê andar por cima deles!! há! há! há!!... um dia na
época de calor, em outubro, a gente foi plantar capineira... e vimo umas
cinquenta carpa tomano sol na flor d’água: carpa-capim, vermelha, preta...
...aí pra baixo do sr. Waldir, tem um rebojão, um remanso, onde a água vai
e vem, fica girano... tava noite estrelada, de lua nova, a gente tava
pescano... aí a gente viu um óvni: ‘levanta! levanta! Márcio, Agnaldo...!!
olha, olha lá!!’ ... uma luz forte! ...de repente sumiu!...”
O rio, abençoado lautamente pelos seus fartos recursos da
biodiversidade, continha, em seu leito, peixes que Pauloo frequentemente
pescava, tais como, dentre algumas outras espécies, pial branco e pial
vermelho, traíra, tambaqui, surubim rajado, dourado, bocarra... Num certo
dia, quando Paulo pescava numa enchente, com o rio transbordante,
pegou uma corvina. Então começou a sevá-las, jogando, no local, barro de
terra preta de minhoca. “...na água suja, o peixe nada na superfície pra
subir a corredera... ...cortei uma vara grande bem madurinha, de bambu,
de gomo curto, coloquei uma linha 120, um anzol grande no. 16, uns 40m
de linha, na boca da cachoeira. A isca era uma corvina de 40cm. Aí fisgou
um peixe. A vara tava fincada na beira do rio. Eu tava mais em cima e
quando eu ví o peixe puxano a vara eu saí correno, mas não deu tempo e
a vara foi pro rio abaixo. Aí a comporta da represa abriu, a vara agarrou
num galho duma árvore na margem. Nós saímo correno atrás da vara, eu
e mais trêis. Quando chegamo nela, ela tava muito pesada e nós não

212
conseguimo tirar o peixe da água... depois arrumamo uma junta de boi,
amarramo a linha e puxamo o peixe pra fora: ele deu uma rabanada que
tirou areia do fundo do rio, depois os boi foram puxano e ele dano muitas
rabanada... era um pexão mesmo!!... ele tava puxano os boi pra dentro
d’água!!... a cabeça dele tá lá no museu de Lídice... há! ...”

213
Capítulo 63
Sebastião da Mata era descendente de africanos, neto de escravos
e filho de trabalhadores rurais da fazenda São Vicente, pertencente à
usina de Alex. Seus pais mantinham uma considerável prole e Sebastião
era o quinto dos doze filhos. Seus irmãos mais velhos já lidavam com os
canaviais enquanto ele ainda pajeava seus irmãos mais novos. Sua
infância foi um misto de trabalho e responsabilidade e também de
brincadeiras e fantasias advindas de sua mente pueril, sem contudo ter
acesso a condições materiais que lhe permitissem ter uma educação
razoável; era o mínimo de condições materiais. Entre seus vizinhos, as
crianças forjavam uma bola de panos e meias rasgadas que, jogada ao
chão, se transformava num objeto mágico a proporcionar momentos de
êxtase quando todos saíam correndo atrás dando pontapés até em suas
próprias sombras. Todos, meninos e meninas, indistintamente, nutriam o
hábito saudável de empunhar varas de pescar, e enquanto se distraíam
fisgando os peixes do riacho que banhava a propriedade, ajudavam a
suprir a mesa escassa para as refeições diárias. Eis que num dado dia,
seu pai conseguiu com que fosse ingressar nos canaviais com uma turma
para realizar seu primeiro plantio de canas: “... a cana pra podê prantá
tinha que ter o suqui. Dispois vinha jugano o adubri, e em cima do adubri,
jugava a cana no suqui, aí vinha picano com o facão. A ponta verde
jugava fora. Aí vinha o pessoal de enxada tampano o suqui... Naquele
tempo não tinha época de prantá, não. Chovia muito!! Ela tano tampada,
só com a friage do tempo ela esperava na terra seca até a chuva vim...
contecia adubrá quando a cana não tava prosperano, intigamente...” Via-
se nos campos limpos, arados, gradeados e sulcados, as turmas de

214
homens na lida: cada um, segurando um caixote pequeno de adubo com o
braço esquerdo; e, com a mão direita, iam lançando os pequenos grãos
dentro dos sulcos. A extensão de cada sulco que deveria receber um
caixote de adubo, era medida com uma vara de dez metros. Depois de
cumprido esse período, os homens recorriam aos sacos de adubo que
ficavam dispostos espassadamente pelo terreno. A próxima adubação
somente ocorria depois da segunda ou terceira colheita, quando se via a
necessidade, mediante o desempenho do canavial. “... mais tarde, o que
trapaiô muito os canavial era o poduto que jugava, o vinhoto, ele deu força
pros colonhão, e os colonhão vinha arrasano os canavial tudo. Tinha muito
mestre estudado que não sabia nada, cabaro destruino os canavial...
quando prantava as cana través de administrador das fazenda, as cana
era boa. Quando entrô esse pessoal que tinha estudo e a gente tinha que
obedecê, ...os canavial ia acabano tudo...”
Nos locais íngremes de difícil acesso para os tratores, os sulcos
eram abertos pelos arados de boi e em locais ainda mais inclinados, pelas
enxadas dos homens. “...conforme o lugá que dava pro arado; lugá de
parandela, de muita ribancêra... aí era só jugá oiadura alí, adrubá e
tampá...” Os arados a tração animal eram utilizados também para arrancar
as canas velhas e improdutivas, no intuito de reformar o canavial. Eram
empregadas três juntas de bois fortes ou quatro de bois mais fracos.
Quando um lote de terras era replantado e a brotação de canas ficava com
uma altura de aproximadamente um metro, era passado entre as fileiras
um arado pequeno a tração animal; este revolvia e jogava a terra em cima
das mudas de cana. Logo depois, passava-se a capinadeira: um
instrumento puxado por um boi, burro, mula ou cavalo, presa a dois cabos

215
em sua parte posterior por um homem, que ia direcionando-a, -- assim
como ao aradinho --; provida de enxadas giratórias que revolviam a terra e
limpava entre os sulcos das canas. “...dispois os capinadô limpava o resto
da cana. Ês ia capinano e rancano os mato com a mão pra não machucá
as cana: se batê enxada corta os broto. Quando a cana crescia,
encontrava ponta com ponta, aí o mato era bafado... aí ela começava a
engomá... aí já vem pro lado do corte, pro lado da safra...” Depois de
realizado o trabalho de capina, dando condições às pequenas e frágeis
mudas de cana de se desenvolverem sem a concorrência das ervas
daninhas, os canaviais cresciam com força. Viam-se por toda parte os
pendões brancos se despontarem e num dado momento, havia somente
um grande tapete subindo e descendo os morros, imprimindo à paisagem
a uniformidade branca fantástica que encantava a todos os olhares. Os
canaviais nessas condições já se encontravam maduros e prontos para a
colheita. “... Nóis cortô muita cana sem quemá. As lei não consentia
quemá cana, não. A gente andava no meio daquela paiaria tudo...
escorregava, subino na prancha pra abastecer o caminhão...caía no
chão... às veis machucava, né!? Quando passô a quemá miorô. Passô a
quemá pra ficar mais fácil, porque rendia muito mais o serviço. Os canavial
tava aumentano... não tinha aquela paiaria toda pra trapaiá: fica mais fácil
pro pessoal cortá... Dispois o pessoal interressô cortá por tonelada: tinha
mais resultado assim, dava mais dinhêro. Era como uma empreitada. ...”
Os sonhos indizíveis amontoavam seus horizontes na imaginação
do adolescente que se espantava com a vastidão e incontrolabilidade da
vida. Tudo parecia absolutamente tranquilo e assombroso. Os sentimentos
se afluíam soberanos, levando a um mar de praias paradisíacas do ser

216
profundo. O barco fluía para o alto mar em busca de novas terras para
aportar: novos horizontes existenciais se abriam. Da Mata já não mais
suportava a escravidão dos canaviais: precisava enfrentar o
desconhecido. Pediu suas contas e foi para São Vicente. Dizem que havia
prosperado e acumulado muitos bens, mas o seu passado haveria de
implorar que ele o vasculhasse em busca de respostas para as
vicissitudes de sua vida familiar. Seu pai o espancava com certa
frequência na infância, quando bebia em demasia e perdia totalmente o
controle. Depois, ele havia de enfrentar o pai num duelo que o promoveu a
se impor pela força; havia sido o chefe da família até partir: sua vida no
canavial era por demais restritiva e sofrível. “...tinha uns que trabaiava com
manga cumprida, tinha ôtros que não... eu mesmo era um que não
gostava de ficá com o corpo bafado. Eu só usava o saco de mauá no
ombro... e marrava ele aqui do lado, dibado braço... pro fêxo de cana ficá
macio no ombro. Palitó de manga cumprida, tinha uns que usava. Naquele
tempo ninguém ligava pra sapato, essas coisa... o pessoal era simples. Eu
nunca gostei de tampá o pé! Só duns tempo pra cá, que me obrigaro a
botá, no trabaio, na fábrica de sapato; não gosto de meia tampano meu
pé... usava calça cumprida... usava a proteção no rosto, o pano branco
tampano os ouvido, e dava um nó dibaxo do quexo. Punha o chapéu por
cima. Massava tudo!... jugava a aba do chapéu nos óio pra mode não
pegá o sol direto... ... Aquelas cobra jararaca, encontrava demais! Parece
que elas chama a vista da pessoa... Teve um dia que eu peguei um fexo
de cana, botei nas costa e subi a prancha do caminhão e entreguei o fexo
pro outro que tava dentro do caminhão e a cobra mordeu ele! Ês levaro ele
pro médico da ôsina mesmo... tomou injeção... Graças à Deus, eu nunca

217
fui ofendido de nada!! Eu ia de quarqué manera, de braço limpo... dibaxo
das cana embanderada, tinha um enxame de escorpião! Tinha demais!!!
Lidei no meio daquele trem... Muita gente tomava mordida! Os que tava
todo encapado é que levava tinta com esse negócio. Eu nunca... há, há,
há! ... ... era jararaca, essas cobra-cipó... em antes de quemá os canavial.
Quando já quemava, mesmo cachorro do mato... acharo um todo
quemado!... quemava os bicho tudo! ... tatu, coelho, tudo enquanto é tipo
de passarinho: canarim marelo, culerim... ês fazia nim no canavial. Aqui
tinha muito canarim! Dispois pardal cabô com tudo. ...capivara andava na
bera dos córgo... até hoje...”
Os caçadores orgulhosos de suas empreitadas pelas matas e
capoeiras, eram incontáveis. Empunhavam suas espingardas atrás de
uma boa caça: tatu, paca, jacaré, etc. Estes últimos compunham uma
população de pequenos exemplares da espécie que não se mostrava
muito ameaçadora. Durante as pescarias, ouvia-se no meio dos rios o
barulho do chacoalhar veemente de seus corpos. Até mesmo estando os
pescadores dentro d’água, podiam afugentá-los ou matá-los a cacetadas.
Tinham medo dos homens.
Os caçadores se embrenhavam à noite pelas matas e canaviais,
portando suas lanternas e espingardas. Bastião não apreciava a arte da
caça e a julgava muito cruel. “...eu nunca gostei de judiá com os bicho. Se
eu vê um tatu na estrada eu dexo ele í imbora. Por mim pode ser cobra, o
bicho que fô! Ela tá queta lá.. Ela não faz nada comigo se eu passá.
Aqueles que respeita os bicho, não é mordido por bicho nenhum...”
Bastião certa vez possuía um cachorro que contraíra uma “bixeira” atrás
da orelha e que estava se espalhando pelo focinho. Soube que havia um

218
homem que benzia os animais e resolveu se aventurar; foi até a fazenda
onde o homem trabalhava e lhe apresentou seu cachorro enfermo. O
homem lançou seus encantamentos e rezas e com o praso de três dias o
cachorro teve um completo restabelecimento. Quando depois da reza
Bastião e seu cachorro iam embora, encontraram logo na porteira um
outro homem com dois cachorros bravos amarrados em coleira. Eles
rosnavam e latiam ferozmente num estado de muita exaltação e
intemperança. À medida que iam se aproximando do benzedor, se
transfiguravam em animais dóceis e amáveis. Seu dono, estranhou o
comportamento de seus cães e disse que não havia visto nada parecido;
ficou perplexo, estupefato ante à calma das duas feras abomináveis. O
benzedor também ministrava ervas medicinais a pacientes humanos.
“...A gente tirava lenha nos mato. Dava aquele dia de forga, a gente
tirava pra semana, no sábado ou no domingo... tirava com facão e punha o
fexo nas costa, em cima da cabeça com um pano pra potregê... ôcê para
no serviço, pega uns pau de lenha, joga no caminhão e vai pra casa: todo
mundo fazia isso. Intigamente o expediente era de cinco da manhã às seis
da tarde. Dispois do expediente, tirava a lenha. ...” As mulheres e suas
filhas lavavam as roupas da família nas minas d’água das fazendas da
usina. Como em suas casas não havia água encanada, tomavam seus
banhos ou nas próprias minas ou transportavam na cabeça essas águas
em latas para suas casas, quando as despejavam em bacias e se
lavavam. Sentados nas bacias, eles se enxaguavam e de pé, se
ensaboavam para logo depois irem derramando água de pequenas latas
em seus próprios corpos; os meninos eram lavados por suas mães ou
irmãos. Bastião tinha um irmão que conseguira um emprego na cidade, de

219
tomador de contas de uma estrebaria. Ele gostava de andar bem
apresentável e... “...usava uma camisa rasgada nas costa com um paletó
por cima. Só a frente da camisa é que tava boa. Ele só tinha um sapato e
tava furado: chuchava côro de bicho nos lugar da palmilha. O sapato tava
furado e não tinha dinhêro pra fazer meia-sola...”
Bastião era de Santo Antônio e foi morar na fazenda São Vicente,
numa das pequenas casas sucessivas que se divisavam entre sí pelas
suas próprias paredes, formando um pavilhão. Bastião trabalhava muito
com capinadeira puxada por um dos muitos burros da fazenda. Estes
eram revezados toda semana, devido ao grande esforço que despendiam,
dada a extensão do canavial. “...a gente era uma pessoa simples,
trabaiava na roça. Na época do tiro de guerra, os nosso pai ficava com
medo. Uma vez a gente tava lá no arto da fazenda, pareceu umas rural da
polícia. Ês ia atrás da pessoa pra servir exército, mais como ês encontrô
nóis trabaiano dispensô nóis. Parô nossas capinadera tudo e falô:
‘Amanhã cês parece lá sem farta!...’. No ôtro dia nóis foi pro lado da
prefeitura. Nóis era tudo anarfabeto... nóis tinha medo!... eu era aquele
negão arto e magrelo... sabe o que eles falava comigo?: ‘Esse vai sê um
bom sordado!’ Me deu uma tremura! Ês botava a gente em cima da
balança... ês falava: ‘Cê já tá passano da idade!... vai tomá cadeia
primero!...’ Ês fazia medo ni nóis. Nóis num sabia assiná! Nóis era
simples... aquela turma toda tirano retrato.... Aí ês falava: ‘Se não serví pra
guerra, serve pra bucha de canhão!...há, há, há!...’ Era pra fazer medo na
gente. ... Nóis ficava lá trabaiano na fazenda com aquilo na cabeça,
pensano que ês ia vortá... isso era em 1950... ês cabaro não vortano
mais!... Dona Rita judô muito...”

220
Quando acabava o serviço nos canaviais da fazenda São Vicente,
um caminhão transportava as turmas desta fazenda para outras, também
da usina. O caminhão cabecete chegava sempre muito cedo no campo,
quando a névoa gelada ainda encobria a paisagem. Alguns personagens
motoristas desses caminhões já morreram, como o senhor Anísio, que
dirigiu o primeiro caminhão da usina, quando estas máquinas ingressaram
definitivamente na lavoura. Os homens iam na carroceria, em pé
segurando nos fueiros, ou sentados no fundo, encostados nas paredes
laterais.
Às seis da manhã, as turmas chegavam nos canaviais de
caminhão. Se a cana já não estivesse sido queimada na noite anterior,
alguns homens ateavam fogo ao canavial, ou somente em alguns lotes
pré-determinados que apresentavam condições propícias para serem
colhidos. O fogo passava a imperar como meio de limpeza dos canaviais.
Os aceros sempre eram empreendidos; contudo, o fogo às vezes
surpreendia, saltando para outros lotes de cana, ou pastos ou terrenos de
capoeiras. Quando isso acontecia, todos se mobilizavam para combater o
mais letal dos inimigos, inclusive as turmas das outras fazendas, que
deixavam o corte e o carregamento das canas dos canaviais onde
estavam trabalhando para irem imediatamente socorrer o canavial ou os
canaviais lesados inadvertida e acidental, ou às vezes criminosamente.
Havia uma imperiosidade em transpostar imediatamente as canas
queimadas do campo para a usina, para serem moídas, sempre
justamente por causa do processo de perda de sacarose que ocorria
rapidamente, inutilizando a matéria-prima em poucos dias. ”...Dispois que
o sole ia embora, o fogo não tem aquele alvorozo atacá... quando ia pô

221
fogo, juntava umas dez pessoa assim..., por aí afora, né?! Agora, quando
o fogo sartava... as caminhonete tinha buscar gente pra todo lugá! Até
caminhão... a Co. trabaiô muito de caminhonente, aquês chefe de
cultura... era as caminhonete chevrolet e tinha jeep tamém. Tinha já uns
quinze caminhão internacional cabecete: punha sete, oito tonelada de
cana...! Ês subia nos morro tudo!... começô a esbarrá quando pareceu
Mercedes, e tinha um ôtro do fucinho curto... os Mercede era mais fraco,
não subia muito.... Era Deus que potregia a gente; não tinha acidente,
não!... e a gente tamém não doecia, não!...” Depois de o fogo ter realizado
o trabalho fulminante e rápido de limpar as canas, os homens entravam
por sobre o tapete de cinzas que aveludava o chão para cortarem-nas.
Com uma de suas mãos, seguravam a haste de cana e, com a outra, um
facão, que golpeava a cana, rente ao chão. Algumas investidas e a cana
se desprendia de suas raízes, e logo depois a parte de cima da cana era
estirpada pelo facão, com algumas folhas verdes pequenas na
extremidade, que resistiam à fúria da queimada. Então, a cana era jogada
no chão e permanecia horizontalmente disposta; por sobre ela, outras se
juntavam: como diziam, iam sendo ‘embandeiradas’... “...O caminhão
vinha, encostava e a gente enchia o caminhão. A gente ficava tudo sujo!
Tinha o saco de linhage, furava os buraco dos braço e da cabeça e vestia
ele igual a uma camisa. Outros fazia assim: Pegava o saco de mauá,
jugava ele na cana, enrolava ele no fexo, braçava aquilo e jugava no
ombro... a gente subia na prancha e dava pra um homem que ficava lá
dentro arrumano as cana no caminhão; ia encheno a carroceria do
caminhão. Quando ela tivesse mais ou menos pela metade, a gente é que
rumava as cana. Aí colocava os fuêro. A gente tirava ês do fundo do

222
caminhão vazio e jugava ês no chão pra modenchê o caminhão. ... a gente
trabaiava tudo sastifeito... pra nóis tudo tava bão!...”
As moléstias sérias e contundentes jamais ameçaram a maioria
daquela gente. Eram corpos saudáveis e mentes tranquilas, embora o
mundo não lhes tivesse reservado um lugar de destaque entre seus
personagens. As perturbações advindas de crises endêmicas eram
tratadas com ervas medicinais extraídas das próprias matas da região. O
maior patrimônio da terra: sua vida vegetal e animal, já nem tão
exuberante. Havia a figura arquetípica daqueles que eram proclamados
curandeiros. Eram os erveiros, os benzedores e magos da sugestão.
Encantavam de tal forma seus pacientes que estes vinham a se curar
efetivamente. “...Teve uma vez que a gente tava com uma gripe de arriá,
tudo de cama! A mamãe foi num home curador: ‘Ó dona, a senhora
conhece guiné? Pega trêis foia de guiné, espreme elas na mão, põe elas
dentro da xícra, vem com uma água ferveno por cima... e joga trêis pingo
de sal, por trêis dia... não pode levantar de noite, não. ...’ ...Até hoje eu
faço com meus menino. Não tem cumprimido que cura!...”
Em três das propriedades rurais da usina de Alex, haviam
moradores que lidavam nos canaviais, mantendo o ciclo de produção de
canas para a indústria do açúcar. Habitavam os barracões, denominação
usualmente empregada para o conjunto de moradias de um andar,
dispostas sucessivamente, onde uma acabava, começava a outra,
divididas pela mesma parede. A fazenda Santa Catarina era a maior e
mais populosa: nela residiam... “...quarenta cabeça de gente, pra lá!...
Tinha casa espaiada pelos arto dos morro, nas grota... a água corria que
era uma beleza!... no meio das taboa...” Já com o advento do século XXI,

223
ainda existiam daqueles que usavam das taboas um modo de sobreviver,
mediante a venda de tapetes, esteiras, que manufaturavam a partir das
fibras dessa planta nativa que abundava pelos brejos da região.
A mãe de Sebastião se levantava de madrugada com a missão de
fazer o almoço de seus então três filhos, que lavoravam nos canaviais.
Depois de pronta, a comida era disposta dentro de um pequeno caldeirão
de alumínio, com a boca afunilada e uma alça; sua tampa era sempre
amarrada com barbantes, pedaços de corda ou elástico para que a comida
não derramasse com o transporte. “... tinha aquelas lata de óleo de coco...
tinha uns que carregava a cumida lá, e tava sastifeito ainda!... ...
intigamente, a gente proveitava os pé-de-boi. A mamãe ia no açogue,
comprava aquês pé-de-boi... a gente cuzinhava ele bem cuzidim e jugava
ele no feijão!... na hora do armoço, o ôtro pensava: ‘o quê que o ôtro
levô?’... O Zé levantava o garfo no pé-de-boi... nego corria o zói no garfo...
eu levantava ele e falava: ‘Lá é pro lado de Lídice ou Cruzília?’... o povo
ria!!... ele tava fazeno hora com o povo!... falava que era pé-de-porco... o
pessoal era alegre! ...o bombero quentava o cumê tudo!... a gente
armoçava alí memo. Até hoje... eu custumei. Eu gosto de comê no
calderãozinho!... sento numa cadera... uns quarenta minuto pra armoçá...
fico à toa parado esperano aquele cumê descê no estômago... ... Aquelas
moça que trabaiava cortano cana... elas cantava no arto dos morro... Eu
até hoje passo a mão na bicicreta e fico andano à toa, recordano os
tempo. ...” Era difícil de se comer carne, por ela ter sido um bem
inacessível a esse segmento social. Atualmente, a oferta vertiginosa de
todo tipo de produto invade nossas mentes incautas, nos persuadindo a
consumir a marca X ou Y, muitas vezes nos submetendo a verdadeiras

224
“lavagens cerebrais”, utilizando, dentre outros meios, propagandas na
mídia, agressivamente invasoras de nossa privacidade. “...esse negócio tá
enfraqueceno o pessoal... muito remédio que ês dão pros boi, pras
galinha... as carne tão envenenada... Intigamente a gente criava as
galinha caipira no terrero, sorta, aquilo demorava seis mêis pra formá uma
galinha!... a gente engordava os porco e cumia. Não levava remédio,
não!...”
Na época das capinas, muitos rumores invadiam os canaviais: em
meio às canas, homens e mulheres conversavam, cantavam,
sussurravam, ao longe... As ervas daninhas, às vezes já bem
desenvolvidas, egolfando as canas, davam um sinal da premência em
serem extirpadas das carreiras; que ficavam à mercê dos coloniões, dos
outros capins e outras formações vegetais advindas de outras famílias,
gêneros, espécies. Esses inimigos vegetais da cultura da cana-de-açúcar
surgiam alimentados pelas chuvas e se proliferavam velozmente por toda
a terra. “...Às veis tinha um canavial pertado pra dá uma capina, ês
mandava a capinadera. Nóis era umas déis pessoa pra trabaiá com as
capinadera. Cada um pegava um taião. ... ...a gente chegava em casa, na
fazenda, às seis hora, dispois do serviço, porque era longe, né!?... e
chuvia memo!... ...agora a chuva tá sumida!...”
Aos domingos nos arredores da fazenda São Vicente, muitos
senão todos se entregavam de corpo e alma à pesca, que exercia a dupla
função de entreter e alimentar. “...usava aquês balai de bambu...cê ia
jugano ele por baxo das moita de angola e levantava: uma carninha mais
forgada que a gente cumia... batia saco: rumava um saco cumprido e abria
ele; e colocava uma vara de bambu dum lado e a ôtra do ôtro, e o saco no

225
mei segurano... a gente sigurava numa vara e o otro na otra e saía bateno
nos córgo...”
Nas festas, nos bailes, os homens solteiros muitas vezes andavam
pelos quatro cantões das imediações. A luz da lua os iluminava pelas
estradas e atalhos. Havia um que se apossara de um violão, um outro que
comprara um pandeiro, outro um tamborim... E iam pela estrada afora
cantando e tocando. Num belo dia foram surpreendidos por uma invenção
que mudaria suas vidas: o rádio. “...nóis andava longe pra ouví o rádio.
Tinha um tal de sr. Fizico, ele pôis um geradô de muê míi e pôis luz
elétrica. O rádio era fixo. Subia aquele tanto de gente morro afora pra ouví
o rádio!... hoje é tv.”
Muitos se juntavam maritalmente e esperavam uma oportunidade
para que o enlace matrimonial se fizesse com a bênção de Deus. Alguns
missionários da igreja casavam-nos. À medida do possível, os casamentos
eram realizados durante o final do período de safra. Depois da cerimônia,
nas fazendas da usina, havia bailes, embalados na maioria das vezes por
uma sanfona de oito baixos, juntamente com dois violões, pandeiro e
atabaque, como comemoração. Os netos de Alex apareciam durante
essas festas e se misturavam aos trabalhadores, como forma amistosa de
surpevionar os acontecimentos e participar dos mesmos. “...tinha tocadô
de cavaquinho calanguero... saía tudo de lá memo!... no tempo de
bandera de cana. Cabô o canavial de lá ês falava: cabô a bandera. Aí
rumava a ôsina e nóis ia tudo pra lá. Era pão com salame, carne muída,
carne de porco... guaraná, coca-cola... ... ...era tudo católico mais ninguém
ia pra missa porque era muito longe... nos domingo era visita pros
colega... ês mandava um caminhão... sr. Orlando, todo sábado! Quem

226
quiria vim pra cidade vinha no caminhão, dispois ele levava de vorta. Aí só
no ôtro sábado pra podê passiá na cidade ôtra vêis. Dia de Sábado,
trabaiava até duas hora mais ou menos; aí, no ponto de cinco hora, o
caminhão chegava pra trazê nóis pra rua. Oito, oito e meia, nóis vortava
ôtra vêis.... ... ... Dispois eu tô morano aqui onde eu tô. Já tem mais de
trinta ano! Meus fíi tão virano aí... eu comprei essa casinha de têia muito
vagabunda...”

227
Capítulo 64
O sr. Jean Jack Dubois Neves, nascido na cidade vizinha de Lídice,
amigo do administrador de uma fazenda da usina de Alex, foi convidado
para ser também administrador de outra fazenda da usina, a Angico
Vermelho. Fazia-se o ano de 1953, quando Alex adquiriu esta
propriedade, que já conhecia as plantações de cana, uma vez que seu
antigo proprietário fornecia esta matéria-prima para a usina Jaques
Ledoux, e que só se dispôs da terra porque mudou-se para Besançon por
motivos familiares. “...Depois que Alex comprou a fazenda, fui pra lá no
final do ano de 1953. Já tinha um barracão grande com cinquenta morada
pros empregado efetivo. Tinha luz própria... um moinho... um gerador. Em
todas as morada tinha água e luz. Os efetivo era uns 70 a 80 e na colheita
da cana, uns 120, 130. Tinha uns déis alqueire de mato. Nóis morava na
sede...” Rita mantinha parceria numa horta que o sr. Jean Jack cultivava,
como também nas plantações de arroz que todos plantavam à meia com
ela. Quase sempre seu caminhãozinho D-30 despontava depois das
montanhas que divizavam com o terreno da fazenda, e ela, sozinha,
dirigindo, ou com seu motorista, paravam em frente à casa-sede da
fazenda. “...Ela punha uma porção de balaio dentro da carroceria do
caminhão... e ela tinha umas vaquinha de leite tamém pra dar leite pros
filho dos empregado; e vendia o leite tamém, na rua... vinha com um
bulhão de vinte litro, ou dois ou até trêis, dependeno se o pasto tava bão...
punha uns crioulo pra rancar mandioca, tinha verdura de folha...” Havia
bailes periodicamente, quando improvisavam uma grande coberta de
madeira com folhas de bananeira, e o sanfoneiro adentrava à noite
tocando, acompanhado de violão, cavaquinho e pandeiro. Numa noite de

228
inverno rigoroso, com o céu intensamente estrelado, uma tragédia se
anunciou: um assassinato. Como era de costume, muitos homens se
compraziam em jogar cartas, à guiza de entretenimento, mas sempre
haviam aqueles de espírito indomável, que não gostavam de perder no
jogo. Eis que num dado momento, dois sujeitos, ambos empregados da
fazenda, se desentenderam pelo fútil motivo de um deles, que estava
ganhando o jogo, ter agido com ironia e sarcasmo, humilhando o
perdedor. Este, indignado, imediatamente num impulso descontrolado de
ira, desembainhou sua adaga e desferiu uma facada cuja lâmina riscou o
ar e resvalou de raspão no rosto de outro homem. Começava então uma
contenda que terminaria em três tiros de revólver e três mortos. “... sr. Alex
falava: ‘Se tiver briga aqui por causa de cachaça... o que morrer eu mando
enterrar, e o outro que viver, eu mando prender!’... peguei muito revólver,
espingarda, porrete... eu tomava deles. Teve um casamento que um
negão tomou uma enxadada na cabeça... rachou a cabeça dele... eu vi o
miolo dele rolano pro chão, coitado!... o irmão dele sacou da arma e matou
o cara com um tiro no peito! ...até as polícia que ia lá tinha medo!... tinha
muita briga, eles não entendia o que a gente falava. Alex falou conóis pra
gente falar do jeito deles: ‘O que eles falar, cês tem que falar tamém!’...”
Nos dias de pagamento, chegava o pagador à cavalo com uma bolsa onde
estava o dinheiro. Apiava, e subia a pequena escada que dava acesso à
varanda da casa-sede da fazenda. Sr. Jean Jack dispunha uma mesa com
uma cadeira para o homem realizar o pagamento, e reunia todo o
contingente de trabalhadores que se posicionavam em fila indiana. Um a
um, iam percebendo seus salários e assinando, ou melhor, rubricando
uma folha, como prova do recebimento, ou imprimindo suas impressões

229
digitais. “...Tinha turma de moça e criança tamém: menino e menina de
oito a doze ano embandeirano cana... é pegar e aleirar, fazeno aqueles
feixo... não tinha máquina, não: pegava os feixo, jogava nas costa, subia
no caminhão em cima de uma táboa... muita gente ficou aleijada ali... nego
quebrava braço, caía da táboa e ficava de braço quebrado e não recebia
nada. A usina dava remédio, médico... ainda não tinha Previdência...”

230
Capítulo 65
Juca Aleida Bonfim, tocador emérito de sanfona, que morava numa
das fazendas da usina São Marcos, morreu assassinado numa
emboscada na zona rural. Diziam que havia despertado grande antipatia
por parte de alguns, cujas esposas ou amantes, teriam caído em sua lábia
doce e feroz, sucumbindo aos seus encantos. Este era bem magro e alto,
de cabelos pretos e lisos. Fazia amizade facilmente. Seu único irmão por
parte de mãe, que herdara algumas terras de gado, montou uma
fabriqueta de cachaça, que o levou às últimas instâncias do delírio
alcoólico, até falir; arrastou atrás de si algumas dívidas que foram
assumidas por Juca, antes de morrer.

231
Capítulo 66
Era tradição católica louvar Maria, mãe de Cristo, promovendo
coroações da santa rainha pelas meninas da cidade, vestidas de anjinhos.
Esta festividade e ato de fé teve início em meados dos anos trinta. Era
costume presentear as meninas vestidas de anjinho que cortejavam Nossa
Senhora e acompanhavam a coroadeira, depois da coroação, com um
saquinho contendo algumas guloseimas: chamava-se cartucho. As
famílias mais abastadas despendiam recursos fartos para embelezar e
enaltecer o evento, providenciando os mais belos fogos de artifício; e as
mais pomposas ornamentações para os altares das igrejas; compunham
cartuchos mais elaborados. As coroações se estendiam pelas capelas das
cercanias da cidade. Algumas meninas iam coroar a Santa nessas capelas
desses lugarejos e ruados, por motivações diversas, inclusive existindo
forte conotação política. Em Santa Cecília havia uma capela onde se
comemorava o evento tradicionalmente; a capela do Barro Preto de trás
também era agraciada pelo privilégio das comemorações, e outras
localidades na zona rural do município e municípios adjacentes.
Outra tradição se fez presente a partir do término da Segunda
guerra: São José e Santo Antônio eram reverenciados e festejados pelos
meninos. Quando chegava-se o tempo, um menino levava uma palma de
flores para um dos dois Santos, em altares também preparados
exclusivamente para o evento, nas igrejas. Isso acontecia durante as
novenas dedicadas aos dois Santos, e dependia em muito da boa vontade
e do entusiasmo do pároco da cidade; Monsenhor Euclides nutria forte
vocação para os grandes eventos e, além de promover as procissões da

232
Semana Santa, realizava outras comemorações e representações como
as ligadas aos dois santos.

233
Capítulo 67
Alex Bourdon, que teria trabalhado arduamente por toda a sua
vida, obsecado pelas responsabilidades e vicissitudes, viajou muito, foi um
homem culto, e, até certo ponto, erudito. A soma de suas habilidades e
talentos era surpreendente. E nunca teria sido reduzido à ignomínia do
covarde e do traidor. Era justo e racional, embora, em certos momentos
infelizes, a razão teria imperado arrogantemente sobre a consideração e a
temperança, no caso, mais cabíveis que a fria análise dos fatos e o
julgamento sob uma premissa puramente intelectualizada, incisivamente
fria, capaz de destruir o aconchego de um relacionamento. Por causa de
sua percepção de mundo, talvez excessivamente intelectualizada, nunca
teve muitos amigos. Seu relacionamento extra-conjugal de longo prazo foi
rompido aos poucos, à medida que o envelhecimento se apresentava
gradativamente, limitando seus passos. Ela havia ficado com uma fazenda
que Alex comprou especialmente para legá-la, garantindo assim sua
subsistência. Queria que seus filhos seguissem seus passos e dessem
continuidade à vida da empresa. Em vão. O destino preparou para todos
caminhos distintos e dispersou a irmandade pelo mundo. A empresa
acabou sendo vendida para um grupo empresarial italiano interessado no
açúcar. Júlio, com sua parte do dinheiro recebido do negócio, foi morar na
França, com seu avô e seu pai, que recebiam periodicamente
correspondência postal de parentes saudosos. Rita estava adorando a
vida em Lyon e a Europa ficaria pequena para sua vontade de conhecer e
descobrir lugares novos, mesmo estando já na terceira idade. “Uma cigana
leu minhas mãos e me disse que vou viver muito ainda, fazer muitas
viagens para o exterior, conhecer muitas culturas e escrever livros

234
também, e que estes serão traduzidos para vários idiomas...” Isso tudo,
mais a frente no tempo.
Alex deixou dois livros, dois volumes da mesma obra intitulada “O
negócio do açúcar e do álcool na região de Toulouse”, onde expõe sua
luta para sobreviver em meio a um ambiente hostil e ameaçador, com
poucas oportunidades. Foi uma obra muito comentada em nível nacional,
sobretudo sob o enfoque humano pelo qual se primava, muito do qual fora
decisivamente influenciado por Rita. As relações humanas no trabalho e
fora dele sempre formaram o cerne da questão de uma boa administração
para Alex, cujos olhos de águia podiam antever problemas reais no
processo industrial se alguns de seus empregados falhassem em
desempenhar bem suas atribuições. Todo o processo produtivo dependia
da harmonia entre os setores envolvidos diretamente. Quantas vezes
acidentes ocorriam comprometendo o andamento do processo de
fabricação do açúcar, emperrando todo o maquinário, devido a falhas
humanas? Fatores diversos em torno dos quais o comportamento de seus
empregados oscilava, se constituíam para Alex um dos grandes desafios a
conhecer, compreender e intervir de forma positiva, procurando favorecer
a todos os envolvidos. Sua mentalidade se revelou além de seu tempo,
naturalmente, pelo seu próprio jeito original e criativo de ser, somados à
sua forte personalidade capaz de decidir questões de forma lógica e
responsável. Seu espírito humanizado por Rita, sua diligência no trabalho
e alguns outros atributos importantes como persistência e sagacidade, o
faziam um líder visionário e concretizador ao mesmo tempo.
Porém, não fosse por ela, talvez não tivesse forças suficientes para
levar à cabo seus sonhos empreendedores, à consequências em sua

235
maioria, edificantes. Seu exemplo enquanto ser humano fê-lo eleito um
homem ímpar, respeitado e admirado por muitos, que reconheciam sua
incontestável ascendência intelectual, que exercia sobre a maioria das
pessoas as quais era posto em contato pelo destino indelével. Seus
pensamentos inventivos o tomavam de assalto em locais e circunstâncias
insuspeitadas, ocasionando muitas vezes, uma certa estranheza por parte
das pessoas com quem estivesse conversando, o que lhe rendeu também
o estigma de excêntrico. A opressão sob quaisquer de suas formas o
incomodava, sendo que nunca teria resolvido em seu íntimo a questão
central entre o capital e o trabalho, a “mais valia”... questões que o
incomodavam profundamente e o conduziam a comportamentos
paradoxais, consternado ante a sua insolubilidade, tão danosa à
coletividade. Porém, nunca teria permitido que sua ideologia e sua
compaixão enfraquecesse sua autoridade a ponto de comprometer o
andamento de seus empreendimentos. Era, acima de tudo, um homem
realista e se conformava mesmo que parcialmente com as circunstâncias
de fato: a dureza, a rudeza, a inexorabilidade das circunstâncias que se
impunham frente à necessidade de se forjar um lugar ao sol, uma posição
na vida que lhe rendesse o respeito e a liberdade de escolhas que certa
situação econômica lhe apresentava. Apesar do desenvolvimento de um
ideário amplo e humanista, ao longo dos tempos, ainda era um capitalista,
e esta dualidade o incomodava, mas não era forte o suficiente para que
ele abdicasse de seus direitos adquiridos a favor de outrem. Se doava
sem se prejudicar, e sem chegar ao ponto de assumir declaradamente sua
inclinação mais tardia para o comunismo, do qual era um entusiasta quase

236
que secreto, para não manchar sua reputação de homem de negócios que
visava acima de tudo, o lucro.
Rita levou uma vida exemplar, na qual teria poucos episódios com
os quais se debateria internamente fruto de arrependimentos. Foi uma
mulher que prestou muitos serviços sociais a sua comunidade e era vista
por todos como uma pessoa compassiva, paciente e caridosa. Ajudou a
muitos que careciam das mais básicas assistências mundanas e
espirituais. Muito religiosa, cumpria suas obrigações com a ortodoxia da
igreja, a favor da exaltação dos santos e de seus mandamentos
fundamentais. Partiu para a França com o coração pesado por ver seu
povo tão oprimido pelo sistema de produção capitalista. Não concebia que
neste mundo já tivesse havido períodos de escravização do homem pelo
próprio homem, apesar de ter vivido cercada por seus serviçais mais
íntimos, esses, como se fossem seus escravos, dada a tamanha
dependência daqueles para com esta. Mas sua ascendência sobre eles
não chegava às raias do sacrifício desumano: ela os adulava com sua
maneira típica de alguém que realmente se preocupava com seus
semelhantes: sabia que estavam a sua total mercê e responsabilidade.
Por outro lado, era um forte fardo que carregaria por toda sua vida, fardo
esse que muitas vezes a tirava o lucro porque tinha que cuidar de sua
“prole”, despendendo muitas vezes de recursos que lhe subtraíam ganhos
mais volumosos. Seus parentes mais próximos também se beneficiavam
de sua generosidade: ela quase sempre os recebia em sua casa para
almoços e jantares fartos, e os presenteava em seus aniversários, quando
não tivesse que despender de suas economias em prol de algum
empregado seu em situação imperiosa.

237
Capítulo 68
O açúcar agora produzido era vendido em Toulouse e imediações,
mas em sua maior parte escoava direto para uma grande refinaria
exportadora em Besançon. Novos caminhões surgiam no mercado
nacional; provinham dos EUA e Europa. Apareciam sempre mais
imponentes e grandiosos no pátio da usina, e arrebatavam quantidades de
carga crescentes. Os carros-de-boi ainda abasteciam a usina, como as
carroças já em grandes proporções; estas depois passaram a competir em
quantidade de unidades com os caminhões que a cada novo dia se
acrescentavam mais e mais. Nesse tempo, os carros e carroças-de-boi
eram pesados e descarregados somente na parte da manhã. Os
fornecedores que possuíam seus próprios caminhões, passavam a deixá-
los carregados à noite no pátio da usina. Isso os fazia sair mais cedo da
lida nos canaviais e nas estradas, ao deixarem para descarregar sua
última viagem do dia, no dia seguinte, e também se beneficiavam em não
enfrentar a grande fila que se formava durante todo o dia em direção à
balança.
Pelas manhãs cobertas de úmidas neblinas de inverno, até mesmo
antes do amanhecer, a movimentação se iniciava. Ainda quando o fogo
lambia algum canavial de forma inesperada, quando saltava para outro
levado pela ventania, entravam em ação os cortadores de cana de todas
as fazendas, que eram acionados num esforço conjunto para recolher as
canas em tempo hábil, de forma que elas não perdessem suas
características indispensáveis à produção do açúcar e não se perdessem.
A safra, que comportava o período de maio a outubro-novembro, se
desenrolava em sua maior parte durante o inverno: a umidade excessiva

238
do ar dificultava a colocação do fogo à noite nos canaviais, mas, nem por
isso, ele deixava de resplandecer magnificamente pelo céu, reduzindo o
brilho das estrelas, em imensas labaredas de fogo. E foi inexorável para
um homem, sr. Argentino, nesse turno. Ele estava entre os quatro
encarregados de atear fogo a um canavial na fazenda Berro D’água, de
propriedade de um fornecedor de canas da usina S. Marcos. O trabalho
era realizado à noite, preparando-se o terreno para a colheita da manhã
seguinte. Muitas vezes, por falta de um planejamento eficaz e amplo,
muitos lotes de um grande terreno plantado em canas era perdido, não
como consequência das queimadas, mas sim por não ter sido colhido
dentro do tempo necessário e previsto. Argentino no local, foi ocupar um
lugar de modo que os quatro homens incubidos desse serviço, em
posições distintas, colocassem o fogo simultâneamente. Distraído,
acendeu logo sua tocha de papel e correu. Ao fazer uma curva num
terreno inclinado, não havia observado que sua brincadeira irresponsável
o teria traído: de seu facho saiu uma fagulha que ficou no pé de uma
tosseira de cana com palha farta e seca. Foi um ambiente propício para
que o fogo logo se espalhasse e ganhasse dimensões incontroláveis. Mais
à frente onde estava já podia ver as línguas de fogo se levantarem em
labaredas sempre mais encorpadas e altas. Quando se deu conta, o fogo
estava por todo lado, exceto do lado que ficou para Argentino acender.
Era o que pensava, não contando com o fato de que o seu fogo já estaria
alto em fúria, onde a fagulha havia saltado sem o seu conhecimento. De
repente, ele se viu cercado por todos os lados, e o pânico tomou conta de
seu ser. Gritava a esmo, implorando socorro! Dois outros o ouviram, mas
não puderam fazer nada a não ser rezar pela sua pobre alma. Argentino,

239
em convulsões delirantes de desespero, quando não havia mais para onde
se refugiar, saltou para dentro da fornalha e tentou correr, em vão. A
temperatura altíssima da combustão rápida das palhas do canavial,
somadas ao tapete de carvão em brasa da recém combustão, havia sido
contundente. O horror instalara-se. Sua alma se purificara. O que teria
feito tal criatura para que fosse indignada dessa forma perante a natureza,
como se houvesse o maior dos tributos a ser pago? Seus companheiros
choraram e se apiedaram até de si próprios ante à possibilidade do
mesmo acontecer com eles. O corpo foi retirado do local completamente
carbonizado.

240
Capítulo 69
Francisco era chefe de cultura, ou seja, administrava os trabalhos
na lavoura da cana. De posse de um jeep, galgava muitas vezes sozinho
as estradas de chão inóspitas e traiçoeiras, sobretudo em épocas de
chuva. Nesses vaivéns já havia pegado com suas próprias mãos inúmeras
rãs que cruzavam a estrada, atropelado intensionalmente alguns tatus,
matado com chumbo de espingarda muitos exemplares de várias espécies
voadoras, anfíbias... Toda a riqueza da fauna e flora remanescente
apareciam a sua frente, instigando seus sentidos cotidianamente.
Portando uma espingarda que era enchida pelo cano com pequenas bolas
de chumbo misturados à palha de milho, disparava tiros quase sempre
certeiros contra bandos de marrecos nas lagoas perenes e sazonais que
permeavam as estradas; atentava sempre contra bandos de pássaros
diversos e todo tipo de animais como preás, cutias, pacas, coelhos... Era
um caçador que sentia de longe o cheiro da caça, tinha um forte faro para
a perseguição somado a uma astúcia fulminante. Um predador.
“... O serviço na roça de plantio da cana era seis boi que puxava
um arado de ferro. Tinha um homem no cabo do arado pra direcionar ele e
outro na frente candiano os boi. Cada fazenda tinha dois ou trêis arado e
os boi, ês alugava mais boi e mais arado pra ajudar. Começava a arar e
gradear a terra em janeiro e fevereiro. A grade era de ferro tamém, depois
sulcava a terra com o sulcador de ferro...” Durante os anos sessenta, uma
nova lei passou a exigir que as usinas tivessem engenheiros agrônomos.
José Afrânio de Oliveira Rio, recém formado, seria empossado. Depois de
pouco tempo, mudar-se-ia para Lídice a fim de gerir umas terras ganhas

241
por sua esposa de herança; daí, então, somente assinaria os papéis para
preencher as formalidades - não mais estaria no front.

242
Capítulo 70
Apesar do santo padroeiro da cidade ter sido São Marcos, um outro
santo era muito festejado desde outros tempos: São João Batista. As
festas com fogueiras e tudo o mais que a tradição mandava, no dia 24 de
junho de cada ano, eram tradicionais. Os três netos de Júlio, já
adolescentes, tinham acesso livremente a esses festejos, ao passo que as
meninas eram levadas por suas mães. Na usina São Marcos como esta
data não passava despercebida... “...Ia muita gente quentano fogo e
conversano. Passava muita gente na fogueira! Meia noite desmanchava
ela e o povo passava e não queimava o pé! Queimava nada! Eu passava,
ia e vortava. Mas se ocê vortar e encontrar alguém tem que cumprimentar
e vira compadre!...” Assava-se batata doce na fogueira e distribuía paro
povo. As seis da tarde, a missa campal e depois a procissão. Os meninos
adoravam tudo e se divertiam bastante. Jean-Paul: “...eu já subi no pau-
de-sebo, lambuzei tudo! Eles passava graxa no pau e colocava lá em cima
o dinheiro. Costumava um subir na cabeça do outro... aí arriava todo
mundo!... Depois na praça tinha forró. Tinha calangueiro: um canta, o
outro responde; ficava a noite inteira lá, e eles ficava rouco...” Romulo: “...
A gente tinha um medo danado do sr. Júlio. A gente sempre andava com
os neto dele só fazeno bagunça, ficava com medo dele mandar embora os
nossos pais. Se ele tivesse sentado na sala da casa dele na usina, nem
perto a gente passava!... Quando tinha circo ou parque na cidade a gente
roubava ferro velho na usina e vendia pra poder ir. Às vêis era parque-
teatro: sombrinha, cavalinho, jogo, roleta... que ficava segurano o povo até
o teatro no final da noite. Era bão... a gente passava debaixo do pano sem
pagar! Entrava por baixo daquelas táboa lá e sentava como se tivesse

243
pagado ingresso: era palhaço, trapezista que dava salto triplo! Nossa
Senhora! Naquele tempo tinha circo que não tinha nem rede! Se caísse lá
de cima, tava morto!...quando parecia um leão na cidade, era farra! Tinha
o globo da morte que a gente ficava com medo, roeno as unha tudo...”
Em dado momento de sua terceira idade, Rita acometida por um
impulso de aquisição, fez com que um empregado seu levasse para
vender num armazém da cidade, um saco de açúcar. Subreptíciamente,
sem que ninguém desconfiasse, manteve essa prática por algum tempo. O
que ela nem suspeitava era o que estava ocorrendo: eram dois gêmeos
idênticos que trabalhavam para ela nesse período e um deles é que ficava
encarregado de toda semana levar um saco de açúcar ao dono do
armazém. Só que o outro gêmeo também levava outro saco e o vendia
para o mesmo homem, tentando ocasionar uma sombra no negócio pelo
fato de os dois se parecerem bastante. O dono do armazém acabava
comprando os dois sacos pensando que Rita é que os tinha mandado a
ambos. O dia que Rita foi ter com o dono do armazém, a farsa foi
desmascarada e ela ficou furiosa! Se sentiu ultrajada. Seu primeiro
impulso foi fazer um escândalo, até que seu bom senso a prevenisse de
que estava em condições ilegitimas também: ninguém poderia saber o que
fazia. Depois desse dia, tudo voltou a ser como antes e Rita nunca mais
se aventuraria dessa forma.
Jean-Paul, seu irmão Alexandre, seu primo Ricardo e mais alguns
amigos, se divertiam muito durante a safra. Tão logo as carroças-de-boi
apontavam no alto do morro, saíam correndo em direção à elas. Romulo:
“... Aí ajudava a descarregar e voltava com a çarroça vazia, e até carreava
a carroça, dava guiada nos boi... Jean-Paul chegou a ir nas fazenda ajudar

244
carregar as carroça de cana no canavial... ... A gente gostava de pular nos
monte de bagaço, era grande, de 4, 5m de altura... ês não gostava porque
espalhava... Sê brincava de quem pulava mais alto...” Essa geração como
as anteriores também cultivava o hábito de jogar futebol nos campinhos de
terra da cidade. Havia um logo depois da ponte, ao lado da usina de Júlio,
onde os meninos pelavam. Depois da pelada, se jogavam no rio Ululu e
ficavam conversando descontraidamente em suas margens. Quase
sempre desses colóquios saíam idéias de afanar frutas principalmente,
que eram logo implementadas. Essa geração pode ainda usufruir dos
fartos recursos naturais da região, sendo uma das últimas a ter o prazer
de se banhar em seus rios. Numa certa ocasião, Jean- Paul e seus amigos
pularam a cerca do quintal ao lado da usina, cujo pomar carregado de
frutas cítricas maduras enchiam os olhos dos meninos. No centro do
pomar um cachorro amarrado num pé de manga latia furiosamente. Os
moleques iam conduzindo o cachorro de jeito que ele fosse dando voltas
na árvore e acabou por ficar preso rente ao tronco, com a corda toda
enrolada na árvore. Todos se fartaram então. Waldo: “... Todo dia a gente
nadava no rio. Eu tinha que pegar lenha, mas eu ficava nadano e quando
chegava em casa mãe falava: ‘Por que que ôcê não vêi armoçá?’ E me
botava de castigo. Na época de enchente, ficava muita lenha na beira do
rio, deu uma enchente e nós conseguimo tirar uma tora de dentro d’água.
Fomo na usina, pegamo uma táboa e pregamo em cima dela e fizemo um
pranchão, um trampolim. Dona Vera passou e viu e falou: ‘Vou dar um
jeito nisso já, já!’ Ela desceu com um machado e picou o pau todo,
estragou o nosso trampolim. Dessa vez a ponte foi arrastada e foi parar
bem longe...” Estes meninos assim como aconteceu com os das gerações

245
anteriores, também desciam o rio de jangada. Em tempos de seca e
calmaria, subiam o rio utilizando grandes varas de bambu para
impulsionarem-na. Quando ainda mais novos, jogam bola em frente ao
portão da usina, descalsos, arrebentavam os dedos dos pés. Depois
sentavam e contavam casos, descascando as canas com os dentes.
Ficavam com suas bocas pretas de carvão, e enquanto estas não doecem
bastante, não paravam de chupar canas. Estes infantes travessos, lá pelos
dez anos de idade, em média, construíram uma cabana na floresta de ipês
e angicos que Alex Bourdon havia plantado décadas antes. De folhas de
bananeira, galhos de árvores, servia-lhes de abrigo, onde ficavam horas a
fio conversando e fumando. Levavam uma vasilha com açúcar e água,
cigarros, fósforos...Chegaram a construir outra cabana anexa, que servia
de quarto de dormir. À partir de certo dia, alguém passou a sabotá-los: “...
ele ia seguino a gente depois roubava tudo, ou então cagava lá dentro,
fazia uma bagunçada danada!...”
Jean-Paul e Alexandre possuíam, cada um, um cavalo: um, negro
e impetuoso e, o outro, pintado e manso, respectivamente. O Estrela, de
Jean-Paul, agressivo e desassossegado, levou muitos aventureiros
impulsivos ao chão e teve caso em que ele chegou a sapatear por cima de
um rapaz. O outro cavalo, manso e de marcha picada, ia longe com seu
batido e, apesar de ter também levado ao chão alguns incautos, era o
preferido da maioria: Boneco. Saía-se aos tapas para disputar uma volta
ou uma corrida com os dois cavalos.
Quase sempre depois das voltas de cavalo à tarde, em dado
momento, criou-se o hábito de Jean-Paul e Alexandre frequentarem a
casa de um empregado da usina, aos fins de noite. É que eles eram

246
amigos dos filhos do sr. Altair, que trabalhava na usina como ronda, por
um bom tempo. Quase sempre depois de findar as peladas ou os piques
no bairro, lá pelas dez, onze horas da noite, Jean-Pau e Adriano se
despediam dos outros companheiros e se dirigiam à casa do sr. Altair
juntamente com os filhos deste. Jean-Paul e seu irmão davam uma
contribuição ou em espécie ou em algum mantimento, como macarrão ou
sardinha para que se desenrolasse uma alquimia no fogão de dona Maria
Madalena. Logo depois do farto jantar, ainda se recorriam às histórias do
ronda da usina até quase de madrugada, quando então muitas vezes D.
Maura saía ao encalço dos filhos, de forma nada amigável. Essas histórias
quase sempre deixavam seus ouvintes sem dormir. Por seu conteúdo
sobrenatural, impressionavam os meninos e os levavam a estados de
pavor, para prejuízo de dona Maura, que sérias vezes advertiu ao ronda
sobre isso. Em vão, porque os ouvintes queriam ouvir essas histórias em
primeiro lugar. Importunavam o ronda até que ele tivesse que inventar
alguma nova.
“... Quando começava a época de manga, tinha muita manga nos
fundo da usina. A gente subia nos pé, Jean-Paul adorava subir nos pé de
manga!... derrubava as manga e escondia debaixo do capim. A gente
vendia elas tamém pra arrumar uns trocadinho pra gente ir no cinema... D.
Rita vendia broa de fubá, café com leite pro pessoal da usina...Um dia nós
roubamo uma melancia grande da horta dela e a Maria chamou ela pra
ver. No outro dia eu tive que ir lá pro Zé, meu tio: ‘D. Rita, o Zé mandou
pegar com a senhora um canecão de leite e uns rebenta-peito!’ Ela não
sabia que o pessoal chamava essa broa dela de rebenta-peito, e falou: ‘

247
Cês rouba as minhas fruta e ainda chama minha broa de rebenta-
peito?!’...”
Os meninos cresciam saudáveis à mercê de um ambiente que
favorecia a vida ao ar livre, o contato direto com a natureza. Aos dezoito
anos, Jean-Paul assumiu o cargo de gerente da oficina metalúrgica na
usina. Funcionava no pavilhão, separada da sacaria por uma parede alta.
Detinha algumas ferramentas e máquinas importadas, com o tempo havia
se transformado numa unidade de negócio autônomo, fabricando
equipamentos e máquinas da indústria açucareira e vendendo-as para
outras usinas de Canela. Alex usava uma boina e sempre andava por toda
a indústria, mas já não dava ordens - Júlio havia tomado a dianteira dos
negócios, desde que se desentendera com suas irmãs e seus cunhados,
que se mudaram para Toulouse.
Com a idade de vinte anos, Jean-Paul assumiu a presidência da
Usina São Marcos e um ano depois seria eleito prefeito da cidade. A partir
daí, não fosse sua morte prematura, galgaria os mais altos graus de
realização profissional. Ainda como gerente da empresa, conseguiu um
empréstimo bancário para “alavancar” os fornecedores de matéria-prima,
refazendo assim os canaviais, depois de um período de descrédito por
parte destes com relação à administração da usina, e de compromissos
mal cumpridos por parte desta com aqueles. Contudo, voltemos à dois
anos antes deste momento: “... Nós entramo pro Tiro de Guerra e o Jean-
Paul ajeitou com o sargento pro Zé Roberto não servir... Jean-Paul ia
pouco lá! Às veis, com a cara toda inchada! O sargento botava ele pra
fazer chamada. Ele botava presença pra todo mundo!... Dia de domingo
eu nem ia lá! Já sabia que era o Jean-Paul que ia fazer chamada! Teve

248
um dia que veio outro sargento e fez a chamada. Era 60, faltaram mais de
20! Deu bronca no Jean-Paul. ...aí a gente saía pra fazer a marcha, mais
ou menos uns 20km, parava um caminhão da usina e nós ia de caminhão!
Há, há!!...” Jean-Paul se revelaria um político dinâmico e um humanista,
um homem forte, único, sem medo; causava sim, medo em alguns.
Todavia, revelou-se, em sua adolescência, um farrista inveterado, o que
deixaria um pouco de ser, dado os compromissos que assumiria com a
usina e a comunidade. “... A diretoria do Clube Romano suspendeu ele e
não dava pra ele brincar o carnaval. Sabe o que ele fez? Do lado era o
prédio da Associação dos Bancários: ia passar o carnaval em cima da
lage! Arrumou uns eucalipto grandão e botou lona e ia fazer o carnaval
dele ali, com geladeira e tudo! Acho que Deus não quis. Deu uma
tempestade e derrubou tudo no chão!! Aí eles liberaram pra nós entrar no
Clube. ...a gente suviava pras namorada atrás dos muro, Jean-Paul não
sabia suviá, comprou um apito pra poder suviá! ...” Em outro momento foi
novamente impetrar sua vingança: fez com que um amigo seu fosse até a
zona rural da cidade e lhe trouxesse alguns ovos chocos de galinha. Uma
vez de posse desse objetos extremamente mal cheirosos, fez com que
eles fossem jogados para dentro do clube, enquanto um baile estava em
andamento. Rivaldo: “... Um ovo desses caiu nimim. Cabô com o paletó do
meu terno, né!? Eu fiquei muito puto!! O cheiro daquele troço
empreguina... O baile cabô! O cheiro tava demais! ...”
Jean-Paul apreciava muito as pescarias, embora não detivesse
nenhum dote específico nesta área. Contudo alguns de seus amigos e
companheiros eram exímios pescadores. Saíam vez por outra para
aventuras pesqueiras em rios bons de peixe, quase sempre em 5 ou 6 ou

249
mais, em sua maioria, funcionários da usina. Seguiam num caminhãozinho
de carroceria aberta, contendo um isopor de gelo, engradados de cerveja,
litros de pinga, pães, carnes e as indumentárias específicas, estradas de
chão afora. Poucos destes homens, versados na arte de pescar, enfiavam
suas mãos desprotegidas nas locas dos peixes às margens do rio, e nem
sempre por insistência, traziam à tona algum exemplar de espécies que
ocorriam nessas regiões. Também usavam um saco de mauá para trazê-
los à superfície, e outros meios eram largamente utilizados como tarrafas,
redes, anzóis e as armadilhas feitas de bambu. Divertiam-se muito. Era
um meio eficaz de acabar com o estresse e, apesar de dormirem todos os
dias embriagados, descansavam a mente e retornavam aptos para a lida
cotidiana. Usava-se muito nessas pescarias os arrastões com pesos nas
duas extremidades inferiores, puxados por dois homens que seguravam
em dois pedaços de pau, dispostos verticalmente sobre e sob o rio, um em
cada lateral. Iam encurralando os peixes em suas locas nas margens.
Esses materiais eram confeccionados artesanalmente com fio fiurso,
utilizado largamente. O pescado ainda era farto: pial, cascudo, bagre,
corvina de água doce ( esta espécie, segundo alguns pescadores, possuía
a particularidade de ter uma pedra azul dentro da cabeça ), traíra, lambari,
sardinha... Nessas ocasiões, nos acampamentos não era raro aparecer
algum caçador profissional, inadvertidamente. Depois de alguma conversa
e entretenimento, este saía com a incumbência de regressar com alguma
carne de caça.
“ ... Jean-Paul era muito namorador. Todo baile ele rumava uma
namorada. Era fortão e brigão: rumava sempre briga porque ele tomava as
namorada dos outro. Era corajoso e bem disposto... ele pensava só na

250
cidade, tinha um ideal muito grande... a cidade perdeu muito com a morte
dele. Ele fazia sem dinheiro, todos ajudavam, os amigos, a usina... Se
fosse levantar a dívida da prefeitura com a usina...” No início dos anos
sessenta, o bar Lua Nova, era o mais bem frequentado da cidade. Situava-
se ao flanco de uma colina atrás da igreja matriz: lugar aprazível, de onde
se avistava boa parte da cidade. Os casais dançavam sobre o tablado
embalados pelo som de um toca-discos, único dentre todos os bares.
Numa noite enluarada, eis que chega Jean-Paul ao bar com alguns
amigos e se depara com uma pretendente sua, enamorada de outro
indivíduo, já de há algum tempo. O indivíduo em questão se embriagou
demasiadamente, a ponto de ficar escornado num sofá, semi-acordado.
Percebendo a oportunidade, Jean-Paul se aproximou e lançou seus
encantamentos por sobre a pobre vítima, que foi parar em seu carro,
estacionado mais ao longe. Renan, o namorado da incauta, foi acordado
por alguns amigos e levado ao banheiro para lavar o rosto; deu logo falta
dela. Depois de exaustivas buscas por toda parte, surpreendeu-os dentro
do carro em posições nada amistosas. Imediatamente logo após identificá-
la, sacou de sua arma e lançando impropérios contra ambos, atirou
diversas vezes para o alto. No momento em que Jean-Paul atinou para o
que estava ocorrendo, saiu do carro apressadamente, sem roupas, e se
embrenhou no mato sob a mira vacilante de seu detrator. Renan, após ter
sido abordado por seus amigos, num ímpeto de fúria, ainda atirou contra o
bar, sendo agarrado bravamente para que soltasse a arma. O tumulto
estava então armado: todos saíram correndo do bar. Jean-Paul estava
também acompanhado por alguns amigos, que logo tomaram para si, suas
dores. Começaria daí então uma rixa que levaria a seus contendores a

251
estados de lesões corporais diversas. A força policial foi acionada, assim
como a única ambulância do hospital. Jean-Paul, que desapareceu no
meio do mato, foi visto com alguns galhos de árvore a tampar as partes
baixas do corpo, correndo atravessando as ruas da cidade em direção à
casa de seus pais. Teria sido indiciado como causador da contenda não
fosse a influência e a diplomacia de Júlio e de alguns de seus amigos
influentes. Porém, os comentários se estenderiam no tempo e no espaço,
às cidades vizinhas, mesmo tendo sido “abafado” pelas autoridades locais.
Roberto entraria para a usina de Júlio na primeira metade da
década de sessenta: como auxiliar de escritório. Este, situava-se na
primeira parte do grande pavilhão que dava para a rua Luiz Bertrandt. Não
havia forro no prédio e quando adentrava alguém ,via-se o grande espaço
vazio do interior acima das mobílias, fruto do pé direito bem alto. Existia
um único segundo andar acima de uma repartição que dava para a rua,
local de depósito de papéis oriundos da burocracia. Roberto: “... Os
funcionários escondiam do trabalho naquele sótão, onde eu ia muito
quando eu era menino: a sobreloja, que era o arquivo. A gente matava um
servicinho lá veno revista pornográfica... ...depois do almoxarifado fui pra
garagem e depois pro departamento agrícola tomar conta da área dos
fornecedor de cana. Eram sitiantes com pedaços pequenos de terra. Eles
é que plantavam e cuidavam da cana. Muito pouca gente é que mexia com
adubo. Eu corria as cidades vizinhas tudo, de jeep...”
Depois do casamento dos filhos de Júlio e Maura, a família
começou a crescer com o aparecimento dos netos. Aparentemente, era
uma família sem problemas de convivência, mas, na realidade, as
mulheres não se suportavam. As esposas de Jean-Paul e de Alexandre,

252
Sofia e Michelle, respectivamente, não se davam bem. Elas se
desentendiam sempre, sobretudo em ocasiões quando toda a família se
reunia, como quando em recepções a algum político ou mesmo em
reuniões esporádicas de família. D. Maura sempre que possível poupava
seus netos dessas e de outras contendas internas entre os “adultos”.
Como o espírito de Jean-Paul era o mais forte, impulsivo e decidido do
que os dos outros dois homens da família, os irmãos Alexandre e Patric
não ousavam aborrecê-lo continuamente. “...Como prefeito, ele
revolucionou. Implantou nova sistemática política, fazia muitos contatos...
...já tinha feito amizade com o famoso deputado federal Armando Vincent
de Oliveira Júnior, e com o governador Albuquerque de Farias. Ele
quebrou a oligarquia política dos Baretti...”
Com a ascensão de Jean-Paul à presidência da usina, esta passou
a se expandir e os ventos do progresso sopraram como nunca. Um fato
terrível se anunciaria pondo fim nessa efervescência empresarial e
política: seu falecimento inesperado.

253
Capítulo 71
Aristeu chegou a levar Jean-Paul a Porto Seguro algumas vezes a
fim de buscarem dinheiro emprestado do Banco Nacional para
implementar a safra: com juros baixos e carência de dois anos, fazendo
juz ao tempo necessário para plantar, cuidar, colher as canas e fazer o
açúcar. Levavam-se oito horas de Toulouse a metade do caminho por uma
estrada de chão. Então, chegavam em Lille e pegavam o asfalto que
descia por uma serra com muitas curvas sinuosas até ganhar a planície
oceânica. Sandro: “... A gente ia pro banco com um saco de algodão de
açúcar vazio, punha os maço de nota graúda e muita nota miúda pra fazer
pagamento de pessoal. A gente marrava o saco e punha ele no porta-
mala. Ia um guarda do banco conóis dentro do carro até a raiz da serra. Aí
o guarda ganhava um trocado pra pegar um táxi e vortar pro banco. Só
que ele vortava era de ônibus, né?!... Às vez ele queria parar num boteco
pra ficar um tempo bebeno uma, mas eu não deixava e ele ficava com
raiva de mim...”
Jean-Paul se candidataria à prefeitura da cidade, também devido
aos fortes apelos dos amigos. “ ... A campanha dele começou, que a
cúpula do Partido Democrático não queria que ele fosse candidato a
prefeito... e depois ficaram do lado dele. Aí ele ganhou no peito e na raça
na convenção do partido. Ele era forte mesmo! Virou a cabeça de todo
mundo... Nosso quartel general era na fazenda do Capitão Ulisses de
Araújo Machado. Lá era cabrito, leitoa, cachaçada e reuniões violentas...
´Jean-Paul na prefeitura, água com fartura!’, era um dos lema, porque
mesmo com chuvarada que dava, tinha farta de água pra população nas
casa... Fizemo uma carreata pra buscar ele na fazenda quando ele

254
ganhou... a nossa amizade cresceu. Despois da morte dele, na usina as
coisas foram só piorano...” Os comícios se sucediam e no fim da disputa,
quando os votos começaram a ser contados, nosso candidato retirou-se
para o sítio de Halejandro, um de seus amigos inseparáveis. Foi acolhido
pela maioria da população. Ao saber da vitória, se dirigiu para Toulouse.
Bem antes da praça central, uma multidão o retirou de dentro do carro e
ele foi carregado nos ombros de alguns até a prefeitura. Fez um breve
pronunciamento e depois foram todos comemorar. Esperava-se muito
dele. Sua morte repentina meses depois causou imensa comoção na
cidade. Seu enterro, diziam ter sido o segundo maior de Toulouse,
seguindo o da mulher santa milagreira.
No dia da votação que elegeria Jean-Paul, seus ajudantes-
correligionários, acordavam cedo: 3, 4, 5hs da manhã e se empenharam
em “puxar” os eleitores. Cobriam toda a região pertencente ao município,
orientando-os sobre como votar, enquanto rumavam para o grande curral
eleitoral no pátio da Usina S. Marcos, de caminhão, de carro, de charrete.
Sandro: “... O pessoal da usina cordava e ia ajudar a puxar eleitor de
caminhão. Ia pra todo canto de roça... o curral era no pátio da usina, tudo
fechado: os eleitor chegava e ia conversar com Jean-Paul que ficava o dia
inteiro lá. Era servido um lanche de café com leite e pão com salame. O
cabo eleitoral ia companhano um bando de eleitor de caminhão ou de
carro até o lugar da votação. Tinha muita marmelada!... Ês entregava as
cédula com os nome dos candidato na boca da urna...” Era o trabalho
corpo-a-corpo do boca-de-urna, quando os cabos eleitorais abordavam a
todos os que chegavam nas sessões eleitorais para votar e lhes
entregavam as cédulas com os nomes dos seus candidatos. Aos

255
indecisos, jogavam toda a capacidade de persuasãoque possuíam e
muitas vezes, surtia os efeitos esperados. Sandro: “... Toulouse tinha uns
seis curral eleitoral. O eleitor que era trazido da roça passava primeiro no
curral eleitoral. Ele tomava um lanche e ês segurava bastante o sujeito pra
fazer a cabeça dele direitim. O título de eleitor já tava preso. Aí reformava
o compromisso de voto e levava o eleitor pra votar... ... Jean-Paul gostava
muito de viver, de pescar, de tomar sua cervejinha... era alegre por
natureza. Era de muita saúde, muito atirado, resorvia as coisa memo!!
No sítio Riacho Manso já levamo muitas mulher, muita gente
despois dos baile... Ele assumiu a usina quebrada, mas ele queria crescer,
tinha muita confiança nele mesmo. Dava uma risada boa!...”
Era tachado de louco por ter um espírito visionário e inteligência
privilegiada. Queria diminuir os custos de produção e chegava a
vislumbrar modificações mecânicas em certos maquinários problemáticos.
Queria aumentar as vendas, mas sob os ímpetos de seu gênio impulsivo e
imediatista não realizava os planejamentos necessários. “... Ele pensava e
queria que fizesse na hora, o que ele achava e tinha a idéia... sr. Júlio e
dona Maura não deixava, ele ficava puto! Ele era franco e direto e falava
na cara do sujeito...”
Antes do acidente fatal que tiraria Jean-Paul do convívio de todos,
ainda quando ele se submetia ao serviço militar, Pietro o chamava todas
as manhãs às 4, 5hs, exceto quando ele não queria se apresentar ao Tiro
de Guerra; então dormia na casa de amigos. D. Maura também acordava,
fritava dois bifes para os recrutas, e colocava-os em pães servindo-os
juntamente com café e leite. Jean-Paul se encontrava em pleno período de
ascensão nos negócios, devido à sua crescente vivacidade, perspicácia e

256
tenacidade: ia atrás do que queria com uma determinação imbatível. Seu
ideal seria seguir a carreira política por causa da usina e de Toulouse.
Ajudava muito seu povo, detinha um grande círculo de amizades. Paulo:
“... Assim começou a vida dele, ele engarrafava álcool e vendia. Eu fiz
amizade com ele e ele resolveu engarrafar álcool num barracão da usina,
uma dispensa. Era eu, ele e uma moça que morava no alto do morro do
Calvário. Essa moça lavava as garrafas e eu engarrafava...”
Zé Bode: “... Ele chegava na usina de madrugada e supervisionava
tudo! Numa noite ele mandou um crioulo daqueles pegar dois queijo
dentro do carro que o café tava saino. Ele comia com a gente e deixava o
resto pra nóis. Ele andava de terno branco nos fim de semana, bem
arrumado. Na safra, ele pegava no pesado, dormia pouco...” Depois de
transcorrido o período da entressafra, quando fazia-se a manutenção dos
maquinários, iniciava-se a moagem. Escalava-se todo o pessoal para cada
posto de trabalho. Marcava-se o dia e a hora de começar; antes porém,
eram enviadas cartas aos fornecedores e aos carreteiros, depois de
realizadas análises dos canaviais. No momento em que a indústria iniciava
suas atividades e ganhava vida, eram soltos fogos de artifício em
comemoração, assim como quando dava-se início à entressafra e as
máquinas paravam.
Jean-Paul, apesar de ter sido um boêmio inveterado, não permitia
que suas atividades na empresa fossem prejudicadas; muito pelo
contrário, sua ampla inteligência e dinamismo foram cruciais para que ela
sobrevivesse. Estavam ele e certos amigos num ford 29 na estrada Lídice-
Toulouse, quando numa curva apareceu um tatu cruzando a estrada. Ao
vê-lo, Jean-Paul, que estava dirigindo, sacou de sua arma e atirou no

257
animal seguidas vezes, sem que o acertasse; conseguiu, sim, com que o
carro caísse numa valeta e lá permanecesse. Tiveram que cumprir o resto
do trajeto a pé. Como era muito impulsivo, vez por outra sacava de seu
revólver e atirava para se divertir. Sempre o levava em sua companhia
quando saía da cidade, mas, nos bailes, o deixava no carro. Numa noite
quente de verão, após o término da safra de 1965, chamou seus amigos
de trabalho mais íntimos e se dirigiram para Lídice para, dentre outras
conversas, fazerem um balanço do ano que se findava. Esta reunião
descontraída regada à cerveja, cachaça e tira-gosto, durou até
aproximadamente dez da noite, quando então retornaram. No meio do
caminho um pneu do carro furou. Antero o trocou, e, como ficou com suas
mãos muito sujas, Jean-Paul tomou a direção do carro para si e partiram.
Havia uma carroça-de-boi carregada de canas encostada na estrada
esperando mais um tempo para se dirigir à usina. Eram as primeiras a
serem descarregadas; portanto, já dormiam com suas cargas para
partirem bem cedo. Os caminhões iam chegando depois. No momento em
que Jean-Paul avistou a carroça, aproximava-se em sentido contrário um
caminhão. Para se desviar, acabou entrando debaixo deste. As duas
rodas traseiras de um lado do caminhão foram arrancadas pelo violento
impacto. Alguém que passou pela estrada logo em seguida prestou
socorro às vítimas do acidente, mas Jean-Paul chegou ao hospital já
desfalecido. O volante do carro entrara em seu peito e o esmagara.
Leonardo ficou com sequelas pelo resto da vida: teve que conviver
somente com um braço a partir deste dia fatídico. Os outros dois
companheiros tiveram ferimentos sem gravidade. Estavam todos bêbados.

258
Alice estava dormindo quando o alto-falante da igreja matriz
anunciou mesmo antes de amanhecer o falecimento do prefeito. Ela
acordou atônita e balançou o marido dizendo: ‘Sê tá ouvino isso? Que
loucura!’ Manoel bem cedo ia para o trabalho na usina S. Marcos quando
encontrou um amigo que lhe relatou a tragédia e ambos retornaram para
suas casas porque não haveria trabalho naquele dia. A usina e toda a
comunidade estavam de luto. Através de um canal de rádio de Porto
Seguro que gozava de muita audiência no país, muitos tomaram
conhecimento. Para o enterro, pessoas se deslocaram de regiões das
mais diversas, utilizando os meios de transporte disponíveis, como aviões,
carros e caminhões, cavalos e muitos chegaram à casa de Jean-Paul,
onde seu corpo estava sendo velado, a pé, depois de percorrerem
significativas distâncias. “... Jean-Paul era formidável, entusiasta! Eu
ajudei muito na eleição dele. Eu trazia de Porto Seguro caderno, lápis,
boné, chaveiro, camisas, pra campanha política. Meu irmão teve a
infelicidade de trazer sr. Júlio e dona Maura de Besançon até Toukouse;
sr. Júlio tava muito bêbado, coitado. Eu tava ino devagar até Valência,
quando o Osvaldo me tomou a direção do carro e tocou mais depressa.
Quando chegamos foi aquela choradeira, aquela tristeza!...” Fato é que
Jean-Paul era um tanto quanto imprudente e corria demais. Muitos lhe
pediam para que não corresse tanto e ele brincava: ‘Quando eu bater, tem
que juntar os esparadrapos todos de Toulouse pra me juntar...’ O cortejo
fúnebre, quando saiu em direção à igreja e ao cemitério, foi seguido por
uma multidão avassaladora! O pranto era generalizado porque ele
representava uma esperança de progresso para a cidade, que até então
nunca tinha visto com tanto fervor a eleição de um prefeito. Júlio e Maura

259
já não seriam mais os mesmos, carregariam consigo uma revolta e uma
mágoa pela perda irreparável até o fim de suas vidas.

260
Capítulo 72
“... Cada fazenda tinha um diministrador com a turma da fazenda.
As cana era forte e bonita. Despois que cabô com os diministrador,
contrataro técnico agrícola: as cana miô...” A safra que se seguiu ao
falecimento de Jean-Paul transcorreu normalmente: a usina continuou
contratando o reforço humano indispensável à sua realização. Entravam
em ação os turmeiros com suas turmas para implementarem o corte e o
carregamento das canas para os carros-de-boi, para as carroças e os
caminhões. Cada turmeiro se posicionava ao lado de sua turma para vigiá-
los e pressioná-los a cortar e carregar as canas com agilidade. Quanto
mais canas houvessem cortado e carregado, mais remuneração o turmeiro
ganharia. Portanto, escolhia sua turma sob o critério do melhor
rendimento. Assim, os mais ágeis e fortes eram preferidos e aqueles que
com o tempo se tornavam lentos e pesados eram sumariamente
preteridos. Todos indistintamente não gozavam de quaisquer direitos
previdenciários, conquistas mais tardias. Aos empregados da indústria,
Júlio dispensava certos cuidados; já os lavradores ficavam por conta da
boa vontade e das parcas condições dos turmeiros e também de suas
próprias sortes, aqueles que não pertenciam às fazendas da usina S.
Marcos. Os anos setenta entretanto beneficiaram-nos com uma legislação
que garantia atendimento médico-ambulatorial e odontológico. Uma
farmácia bem montada foi erguida e uma unidade móvel atendia os
lavradores no próprio campo, prestando-lhes serviço. Quando algum
trabalhador fosse vítima de doença grave ou que não tivesse condição de
ser devidamente atendido na usina, a ambulância da empresa o levava
para a capital do estado. Passou a ser estipulado por lei que certa

261
porcentagem de cada tonelada de cana fosse destinada à saúde e à
educação dos trabalhadores e à de suas famílias. Surgia a legislação
trabalhista que obrigava aos trabalhadores assumirem vínculos
empregatícios com seus empregadores, tirando-os da informalidade e
assegurando-os diversos direitos. Na usina S. Marcos houve, então,
grande movimentação para legitimar os trabalhadores em seus postos de
trabalho. D. Maura tomou a frente da empreitada e foi pessoalmente às
fazendas, a fim de persuadir aos lavradores a formalizarem suas relações
de trabalho. Em todas, entretanto, os homens e mulheres fugiam dela e se
escondiam, desconfiados e envergonhados. Eram tímidos, retraídos,
receosos. Ela chegava de mansinho e lhes explicava acerca dos
benefícios que receberiam.
As canas nos canaviais já eram queimadas como meio de facilitar a
colheita. As árvores bem próximas dos canaviais desapareceriam num
crescendo de sua destruição sistemática, já que as canas eram
queimadas para serem colhidas. Os lavradores ficavam à mercê todo o
tempo do lenho impiedoso do sol que os surrava constantemente. Os
recursos naturais do solo e da flora e fauna nativas, pagaram alto tributo
pela nova fase da economia açucareira em Toulouse. Os canaviais
lançavam em suas imediações a fuligem das canas que caía por sobre as
casas, os quintais, as ruas da cidade. Somados a isso, o bagaço seco,
que alimentava as caldeiras, saía pela chaminé em forma de flocos de
carvão, que se espalhava por toda parte. Quando se iniciava a nevasca
negra, as mulheres e seus filhos corriam para seus quintais a fim de
tirarem as roupas dos varais; quando as esqueciam, encontravam-nas
todas manchadas de preto; o carvão também entrava pelas janelas e

262
sujava o interior das casas. Até que o carvão proveniente dos canaviais,
por se consistir de flocos maiores dos que os da chaminé da usina,
acabava sujando menos a cidade, mas as duas fontes de neve negra
somadas causavam transtornos maiores. Negra também era uma praga
que afetava os canaviais: vulgarmente chamada de “carvão”, porque a
parte alta da planta ficava negra e se desfazia. Com o vento, as outras
canas e outros canaviais acabavam sendo contaminados também.
A usina S. Marcos já possuía oito fazendas. Numa delas, a sede
havia caído porque era muito velha e também por falta de manutenção.
Em três delas havia um barracão em cada uma, onde moravam os bóias-
frias em pequenas casas que se divisavam entre si pela mesma parede.
Nesse tempo, por exigência legal, existiam escolas que atendiam aos
filhos dos trabalhadores e aos filhos das famílias das propriedades
vizinhas. Cada fazenda continha um espaço para atender aos infantes
estudantes. A usina produzia carteiras de madeira para dois alunos, que
servia suas fazendas. “... Na fazenda Santa Júlia tinha trêis ou quatro
cômodo pra guardar os arreamento dos boi, os arado... Em um dos
cômodo era pra escola, os professor tinha a chave... ...os boi do plantio e
capina com capinadeira era alugado e dormia nos pasto das fazenda. Uma
fazenda ajudava a outra e o pessoal limpava os corgo tudo! Teve uma vez
que uma enchente braba levou as oiadura, adubo, mão-de-obra, perdeu
tudo!... Ês ainda não tinha carteira assinada e ganhava menos que o
salário. Ês ganhava pouco e era muito explorado nas venda das roça.
Quando Jean-Paul assumiu a usina, com o próprio caminhão que ia fazer
o pagamento no sábado ês vinha pra rua e deixava ês perto dos armazém
que fazia preço bom pra ês. O caminhão deixava ês lá por volta das 2:30,

263
3h e vortava pra buscar as 5h com as compra já feita. Foi uma vantagem
pros trabalhador que passaram a poder comprar mais mantimento e a
comer carne... Deixava de comprar gordura de porco em lata pra comprar
o toicim pra fazer a gordura e o torresmo...”

264
Capítulo 73
Joaquim de Oliveira Matodentro, por dois anos fez pagamento aos
trabalhadores rurais no fim da década de sessenta. Subia e descia morro
num caminhãozinho ford velho. “... O caminhão enguiçava, tinha que tocar
a manivela na frente dele... Teve um dia que a chuva tava armada! A
gente saía ao meio dia porque ês no sábado parava às duas da tarde. Não
era um envelope pra cada um como foi depois, não. Era um livro fino,
grande, de capa dura, com o nome e o valor pra todo mundo. O
trabalhador assinava na frente do nome e recebia o dinheiro, ês metia era
a impressão digital. Muitas vez faltava dinheiro... e a gente chorava com o
sr. Júlio... eu mesmo fui perdoado por ele por trêis vez! A gente pagava a
mais e o cara não devolvia, né?! Muitos tava já me esperano na Santa
Luzia debaixo dum galpão de boi. Eu coloquei o dinheiro em cima da mesa
e acendi uma lamparina a querosene. A chuva vinha quente! Eu tava
afobado, com pressa. Aí, quando já tinha pagado só uns dois cara, veio
um vento forte e levou o dinheiro! Eu pavorei e me perguntei: ‘Como é
que eu vou pagar...?!’ Aí vêi o diministrador, outros que morava mais perto
e trouxeram muitas lamparina e vela. Aí tiraram os boi que tava deitado no
meio da bosta, nas madeira, e vieram e me entregaram o dinheiro que ês
acharam: quase nada, a tempestade tinha levado tudo!...”
Giacomo nasceu na fazenda Santa Júlia em 1950. Seus pais,
empregados efetivos, viviam para cuidar dos canaviais da usina, assim
como os outros que também moravam lá com suas famílias. Os meninos
cresciam vendo seus pais e mais outros tantos trabalhadores colherem as
canas... “... às nove da manhã era o armoço dês, e muitos levava a
comida numa lata de óleo de coco de 2kg, de uns vinte por uns trinta

265
centímetro de artura: macarrão e angu, só. E outros tamém que não tinha
condição, era só mingau de couve: esse não tinha quase nem arroz dentro
de casa. Muita gente passava fome memo!! ...ês era magro, tinha os dente
podre. Era sacanage, muita gente tabaiava doente porque não podia fartá;
se fartava, era descontado do dia dês... Sr. Afrânio nunca usou um sapato
na vida! Morreu de friage. O pé dele era grosso, ele pisava no mêi do
espim e não feria o pé. No final da vida, ele foi levado pro asilo de Jean-
Paul. ... A mulher do feitor, Rita, porque tinha nascido no dia da santa,
mulher boa, só sê veno! Deixaro de levar ela pro médico, ela ficou lá no
barracão, doente, a usina não liberou guia pra ela... quando chegou a
liberar, quando chegou no Corgo Fundo, ela morreu dentro da ambulância,
e ês vortaro com ela pra trás...”

266
Capítulo 74
Joaquim, na fazenda Riacho Doce, da usina de Júlio, onde morava,
havia tomado duas pingas, fumado dois baseados, recém-aparecidos por
aquelas bandas, e começou a preparar a garrucha que era carregada pela
boca. O trajeto da fazenda à venda mais próxima, que sempre fazia, era
permeado de perigos. “...era um monte de chumbim com paia de míi, nego
colocava até cabeça de prego... tinha de tudo lá dentro. Na estrada, era
um breu!!...” Essa arma servia para o caso de se encontrar algum animal
feroz e faminto no meio da estrada fechada por canas, em seus dois
lados. As canas crescidas tombavam e as inviabilizavam para o trânsito de
carros e caminhões, exceto para cavalos e charretes que conseguiam
passar. Era mês de junho, tempo do cruzamento dos cachorros do mato,
que ficavam muito agressivos e atacavam a quem encontrassem pelo
caminho ermo e todo tomado pelos canaviais. “ ... ês não corria da gente,
não! O canavial fechado, ês ficava à vontade nas estrada. Quando eu vi o
bando, mirei no olho de um e puxei o gatilho! Aquilo deu uma explosão!!
...aquela fumaçada ...eu fiquei chêi de sangue, o sangue escorreno... Era
de manhã, o cara que tava comigo foi no pasto pegar o cavalo pra me
levar, relâmpago comeno embalado no céu e chuva em cima! Na roça,
colocou pano queimado pra parar o sangue e açúcar. ...” Em localidades
adjacentes à fazenda Riacho Doce, durante os meses de maio de cada
ano, realizavam-se comemorações de cunho religioso, quando veneraram
Maria, mãe de Cristo. Os meninos participavam juntamente com os
adultos, e saíam todos para se reunirem e se confraternizarem. “...
Quando nóis ia pra Ponte Nova, tinha uma pinguela que era atai pra nóis,
e era fundo o poço. Nóis saía em bando pra lá. A bebida era canelinha,

267
bermeinha, dava um fogo! Tinha leilão e alguém rematava, e bebia todo
mundo. A reza cabava quando já tava todo mundo de fogo. Nóis andava
na frente dos tonto pra poder tirar os guarda-mão da pinguela pra nego
cair dentro d’água: a gente entocava e ficava oiano. A gente só ouvia:
tibum!! ...frio pra caramba! Meia-noite, uma hora... a noite ficava toda
branca de sereno e fríi; assim nego ficava rasgado e prantava dentro
d`água, há, há!! ... Nóis ia atrás das menina nas reza. A gente pegava o
Cipó-de-São-João e marrava de um lado até o outro do tríi a uns quatro
dedo do chão. Ês vinha mamado e tropeçava e o mergulho no poço era
certo! Morreu tudo sem saber que era nóis... Na hora que nóis vortava da
reza, nóis rebentava arame farpado, rebentava das cerca e marrava todas
as porteira e ninguém conseguia desmarrar no escuro... trançava tudo, aí
nego tinha que pular porteira, muié véia, menino... marrava as tronqueira
tudo, há, há,há!!...”
...Todo diministrador de fazenda tinha um terrereiro pra fazer
mandado, rachar lenha, limpar o terreiro, cerca... Nóis tava nadano no
moim, sr. Zé pegou as nossas roupa e nóis fomo pelado pra casa! Pai não
gostava que nóis fosse nadar... tinha muito poço lá. A enchente era
pesada e fazia buraco no rio, inundava a vage, rastava as táboa da ponte
ou a ponte toda! Em dezembro, toda chuva que vinha era pesada. No dia
de Santa Bárbra era enchente direto! A chuva mais forte do ano...”
Na fazenda, as meninas que ainda não tinham ingressado no
trabalho duro dos canaviais, de bacias nas cabeças, repletas de trouxas
de roupa, se dirigiam em direção à mina d`água que jorrava na frente das
casas dos trabalhadores. Lavavam as roupas, esfregam-nas, batiam-nas
nas pedras e cantavam. Colhiam capim-vassourinha, que era usado para

268
varrerem os terreiros: arrancavam do chão os pés do capim e os
adaptavam ao diâmetro de uma lata de massa de tomate; enfiavam no
meio um cabo selecionado, amarravam tudo e pronto. Com um único
exemplar, varriam-se casas e quintais. Perdurava por dois dias em média,
varrendo tudo.
O convívio com as bestas de carga era bastante estreito. Cada
animal possuía seu próprio nome e uma “personalidade individualizada”.
Necessário era utilizar uma psicologia diferenciada no trato com cada qual.
Estamos falando dos bois, especificamente, embora isso se aplique aos
felinos, caninos... “... Os nome dos boi: Bordado, Horizonte, Triunfo. Esse
tinha um chifre quebrado, pegava igual a um cão depois que sortava ele
no pasto. Partia em cima memo! O Rochinol era um chifrudo preto, manso.
O Bordado era muito pesado e gordo, largo, um pescoção... até hoje eu
não vi boi forte igual aquês, uma saúde danada! Os mais forte tabaiava no
pé do arado. Era só menino que candiava boi e pastorava ês, porque era
de menor, ganhava menos, e tinha que ajudar a mãe em casa. Zé teve
que candiar boi muito tempo pra ajudar a vó dele, teve que parar de
estudar... Tinha o Ouro Fino, valente, muita disposição! Era tudo boi de
estatura pra guentar o serviço. Os bichão ia tudo pro pé do arado... Pra
passar no barro os bicho sofria, tolava tudo, ia até no mêi da roda! Os boi
bufava, babava... os dois boi de cabeçalho sofria!...”
Pela manhã, a neblina densa consumia a paisagem e aos poucos
ia se desfazendo. Tomava-se cuidado para que o corpo não se molhasse
ao contato com o canavial que absorvia a umidade do ambiente. Em
janeiro, época do começo do plantio, os bois eram solicitados das sete às
quatorze horas; depois, liberados nos pastos, pois somente suportavam

269
essa carga diária de jornada. À hora do almoço, o sol bravio já castigava
impiedosamente a todos, que não tinham como se proteger eficazmente
dele. Como não havia árvores onde pudessem se refugiar, ficavam à
mercê de sua lâmina aguda, esfuziante. Mister era que se consumissem
muita água, pois o suor contínuo de seus corpos tratava de desidratar a
todos. Não havia sequer uma árvore no meio da plantação monocultural,
e, quando chovia, todos ficavam igualmente desprotegidos. Vida árdua,
trabalho insalubre. Os bombeiros, homens que abasteciam a todos de
água, eram avidamente requisitados todo o tempo: dois bombeiros para
servir de quarenta a sessenta pessoas. A demanda pela mão-de-obra
explorada nas lavouras era farta, havia trabalho a ponto de muitos se
deslocarem de lugares distantes para se integrarem à essas frentes.
Trabalhavam com seus corpos encharcados de água de suor ou de água
da chuva por todo o dia, dia após dia. Se começassem a faltar ao serviço,
inicialmente eram punidos com uma suspensão de dois dias não
remuneráveis; depois, caso reincidissem algumas vezes, erram
exonerados sumariamente. Marinho: “ ...aí dois cara discutiu um com o
outro, o cara deu uma enxadada no meio da cabeça do outro... ele só foi
socorrido depois de duas hora... pirou! Ficou louco!... um negão forte!... o
cara que deu a enxadada era muito mau. Acho que deixaro ele no
manicômio. Quarquer coisa tava dano facada, porretada nos outro! Dia de
sábado era difícil não ter briga de facada e paulada! Baile no barracão...
vinte minuto... nego comeno o outro na facada e no porrete lá no canto,
gente de tudo enquanto é lado... O sanfoneiro parava, porretada até zunia
nos ouvido dos outro!...” Um homem de meia idade tomou tantos socos na
região do plexo solar que foi levado à morte, também por ter sido atendido

270
somente no dia seguinte. Os homens sempre prometiam ao administrador
da fazenda que não se envolveriam em contendas com seus iguais, mas
ao calor dos momentos embalados pela embriaguez da cachaça eram
facilmente levados à intemperança, à explosão de seus temperamentos
nem sempre dóceis, à luz de uma vida embrutecida e quase levada à
mendicância. Seus braços e troncos torneados pelo trabalho pesado e
contínuo, quase sempre se prestavam à luta, à exposição de sua força
física contra o mundo hostil exterior; sendo que em alguns poucos casos,
essa força e indignação se manifestavam para dentro, levando-os ao
suicídio. Não raro, via-se alguém correr para dentro do canavial,
quebrando as canas no peito, seguido por outro alguém supostamente
ferido física ou moralmente de forma irremediável. Sem escolaridade, sem
perspectivas de um futuro melhor, explorados como forma de mão-de-obra
barata, entregavam-se às vezes impensadamemente, à rispidez de seus
caráteres mal formados, ou seja, fragilizados pela aridez da vida que
levavam. Seus meios escassos de comunicação e persuasão, quando não
os levavam a essas contendas com seus pares, os faziam extremamente
submissos, esquivos e envergonhados. Os que chegavam aos sessenta,
setenta, oitenta anos de idade, ainda empunhavam suas enxadas pela
imperiosidade do ganho para sustentarem, mesmo que parcamente, suas
numerosas famílias. “... Esgotamento de brejo, de rio... todo mundo
descalso. Não tinha sapato, nada, a usina tamém não dava... ... ...Tinha
uma quantidade certa de produção de açúcar. Assim que terminava a
safra, as cana que sobrava secava no canavial. Os morador das fazenda
levava pra casa pra queimar. Pega fogo bão igual bambu! Dava o fogo dês
de manhã...”

271
O futebol aos domingos nos campos das fazendas da usina ou em
outros na vizinhança era a única forma de entretenimento. Se houvesse
algum ferimento advindo dessa prática, o empregado que ficasse
impossibilitado para o trabalho incorria seriamente na possibilidade de ser
irrevogavelmente demitido. Trabalhavam então mesmo contundidos, ou
em estado febril, dissimuladamente, sob forte receio de perderem o
emprego. Usavam remédios caseiros como chás de ervas medicinais,
compressas... Houve um engenheiro agrônomo que, ao tomar posse do
cargo, passou a exigir mais dos lavradores: “ ...era um carrasco, covarde,
bosta pros empregado! Cara ruim, exigia muito, não confiava... os
empregado não gostava dele. Piorou muito pra usina tamém... Na roça
ficava a guia pra nego ser atendido pelo médico na cidade. Aí ês
passaram a ter que ir na usina pra pegar guia... Ês foram muito
sacrificado...” O salário que percebiam ficava quase todo no armazém que
a usina passou a manter para abastecê-los com mantimentos mais
baratos. Chegavam em suas mãos sacos já amarrados com os
comestíveis, cada qual com o nome de seu destinatário. O pouco dinheiro
que sobrava era gasto em jogos de baralho também, como truco,
marimbo, dourado e caçarimba (jogo de dados). Durante a década de
setenta surgiram outros jogos como escopa e douradão. “ ... Depois que
nóis mudou pra cidade... Nóis jogava no bar do Manelão. Era uma
começão de gato do Zé Alceu, Miguel e Armando! Pegava o gato na rua e
levava pra padaria pra assar. Ês chegava no bar toda noite e já tinha um
gato assado pra comer com pinga. É uma carne diferente, difícil de
desfazer na boca. Miguel morreu de cachaça, levou ele pro túmulo!... A
gente jogava pif-paf, escopa... vício filho da puta! Todo dia, jogo. Chegava

272
de noite, até sonhava com carta. O Manelão véi não gostava de perder,
não! Ficava nervoso! Não podia gozar ele, sê tinha que rir baixo e sair sem
olhar pra trás!
...Aqui no bairro tinha muito cavalo sorto, a gente pegava ês com
cipó e andava no pelo. Tomei um tombo uma vez... e não podia falar com
o pai, que apanhava: porque tava andano no cavalo dos outro... Dormi
gemeno, banhano a perna com água de sal...”
Os meninos elegiam certas figuras da cidade, por serem diferentes
dos demais, para serem objeto de zombaria e escárnio, como bode
expiatório. Havia o Lebi, homem que lidava com o carregamento dos
sacos de açúcar para os caminhões, um chapa, que diziam ser meio
doido, xingava muito. O Mula, um senhor branquelo, aleijado, tinha uma
das pernas amputadas, andava claudicando pelas ruas, escorado num
pedaço de pau. Chorava e ficava muito aborrecido quando algum menino
o dirigia a palavra: ´Ôh Mula-Manca!’ Nesse momento, furioso, desferia
muletadas pelo ar e corria atrás dos meninos sem, contudo, os alcançar. A
Maria-Pau-D´água, pescadora, adorava uma cachaça e ficava com todos
os homens que a quisessem....
Alcir e Almir, dois irmãos gêmeos de temperamento tímido, não se
divertiam como os outros moleques do bairro às custas da desgraça
alheia: preferiam ir para os canaviais - gostavam do campo. Nélio,
carreteiro, saía com seu caminhão às 3:30hs da madrugada para os
canaviais e apanhava os irmãos em sua casa para que fossem com ele.
Mantinha sempre um litro de pinga atrás da poltrona, ao qual recorria a
todo momento até chegarem por volta das seis. Chegava sempre bêbado,
enquanto deixava que os trabalhadores enchessem a carroceria de seu

273
caminhão de canas. Tomava somente antes de sair de sua casa meio
copo de café e dois ovos crus. “ ...no canavial, o feitor era um carrasco! Se
ôcê tivesse trabalhano e cansasse e parasse um pouco, ele já vinha
balangano os beiço... o feitor ganhava muito mais, e o sujeito precisava do
serviço. Tinha que fazer do jeito que ele falava: fizesse o contrário pra ver!
Tava posto na rua. Só tinha a usina...”

274
Capítulo 75
“... Comecei a trabalhar com doze ano na usina Jackes Ledoux.
Fazia o que os homem fazia, ganhava salário de homem na lavoura:
cortava cana, capinava, ainda era cana crua. Em 57 já começou a
queimar. Os fornecedor não podia queimar senão tirava uma porcentagem
deles; a usina podia. Eles tinha que provar que o fogo saltava da outra
propriedade pra dentro do canavial deles, pra poder não pagar. Trabalhei
com o aradinho, capinadeira... Era esses arado de bico-de-pato, um burro
só que puxava, é só pra chegar a terra na tosseira de cana. O pra prantá
era trêis junta de boi. Quando terminava a safra, contratava gente pra
ajudar a prantá, capiná; só o pessoal das fazenda não dava conta... A
máquina ia de manhã pra levar os vagão, chegava aqui na Ponte Nova,
que tinha um desvio, pegava cana de outras fazenda da usina e de
fornecedor particular. Era mais carro-de-boi que levava as cana pro
picadero. O picadero é uma área livre, e vai empinano as carroça uma
atrás da outra. Nos carro-de-boi, tinha que tirar os boi e fazer força nas
roda pra empiná; já na carroça, é igual a um caminhão vasculante...
...só trabalhei na usina Jacques Ledoux. Imendava aquele monte
de carreta, tinha uns trator grande pra levar dez, doze carreta cheia de
cana pra usina. Na decida, o frei não guentava; aí ele esfregava a roda do
trator no barranco pra ajudar o frei. As carreta, engatava uma atrás da
outra, sai empurrano tudo!... Depois fui pra usina, pro armazém, empilhar
saco de açúcar, carregar caminhão. Depois fui pro engenho, pro breque
em cima da moenda ...teve um acidente que tava limpano a caldeira,
voltou a cinza em cima do rapaz, sufocou ele, deu um jato! Ficou dois dia
internado no hospital, depois morreu. ...Fui pro laboratório, pra

275
evaporação... No laboratório trabalhei com o sr. Silviano... ele pegava o
álcool na destilaria e tomava com café...
As linha de trem parou na época do Carlos Squottili, ele vendeu os
trilho, os vagão, as máquina. Tinha os trem pagador, que fazia pagamento
nas fazenda. O dinheiro já ia dentro de um envelope... Teve um acidente
quando um homem fazia manobra. Os vagão chega carregado da lavoura
e fica esperano pra ser descarregado de noite. Só tinha um guindaste.
Tinha uma maquininha que puxava os vagão carregado do depósito pra
descarregar. Tinha diversos desvios... era umas quatro linha. Aí ele pegou
dois vagão e levou pra descarregar. Tinha um rapaz que engatava esses
vagão, ele foi engatar dois vagão cheio de cana, as cana tava tudo meio
pra fora, ele entrou pra engatar e bubiô: esses cara da roça, que não tem
muita maldade... mais a iluminação ruim... O rapaz ficou prensado no meio
dos dois vagão, o corpo dele todo furado de cana, ficou preso no meio das
cana que furaram ele. O operador da máquina ficou diferente e depois ele
doeceu. A mulher dele morreu. Eu não sei o que é que deu na cabeça
dele, que ele suicidou, enforcou na varanda de trás da casa.
Meu Irmão: “...Eu tinha quinze ano, trabalhava no Hotel Avenida.
Tinha um movimento bom, era ponto de almoço e janta, coisa que
Touluose teve toda vida, comida boa de hotel, Hotel Avenida e Toulouse
Grande Hotel. Vinha gente de Besançon, o trem parava, eles almoçava e
ia embora. Era ponto de janta tamém. O trem ia só subino, era só linha de
trem, não tinha estrada. Nos vagão carregava galinha, boi, e tinha a
primeira classe, segunda classe... A muiezada de São Januário era pra
frente, era uma beleza. Os maquinista morava tudo em São Januário.
Filho de funcionário não pagava passagem. Um dia nós fomo num baile

276
em Vila Velha e saimo depois do almoço. Na volta o trem passava às
quatro da manhã e só passou dois dias depois às cinco da tarde! Ficamo
tudo passano fome!, Aí pedimo os outro umas moeda e comemo pão com
pão...”
Zé Pedro: “...Eu nasci num ruado de casa da usina Jacques
Ledoux, meu pai posentou lá. A gente de menino passava pra pegar cana,
às vez a gente ia pegar açúcar, dava aquelas pedra nos monte, a gente ia
pegar. Tinha dois ruado, tinha vaso sanitário e chuveiro, muito, do lado de
fora do pátio da usina, ês tomava banho depois do trabaio, ês trazia
sabonete, toaia. Pai trabaiava no vácuo, eu levava café pra ele, enfiava no
buraco do portão. Eu ia e vortava rodano um arco no mêi da rua, era a
diversão dos menino...
O pai posentou, ele tinha que entregar a casa, aí eu sumi o lugar
dele na empresa e na casa. Eu trabaiava na fazenda Santo Antônio, da
Usina Jacques Ledoux, esgotamento de brejo, cortar cana, concertar
cerca, tomar conta de turma, trabaiar de pedreiro... Me enche de orgulho
tá lá: “trabaiador rural” na minha carteira de trabaio. Eu conheço a terra,
nasci mexeno com ela, sei como pranta um feijão, um arroz, uma cana,
quando é que põe calcário...”.

277
Capítulo 76
A morte de Jean-Paul havia sido estúpida e inesperada. Suas
seqüelas e flagelos se impuseram com uma força descomunal, mas
deixou atrás de si uma série de instituições e pessoas beneficiadas pela
sua curta existência. O maior órfão de Jean-Paul foi o povo de Toulouse,
que seria fatalmente considerada como cidade modelo, dadas as
melhorias em todos os setores cruciais ligados à comunidade, que foram e
principalmente que seriam implementadas. Convênios foram firmados com
várias instituições, inclusive, em âmbito internacional. Um programa de
distribuição de leite, para a população carente, por toda a zona rural e
urbana foi consolidado, com a presença constante do alimento lácteo
vindo da Argentina para Besançon, de onde era levado a Toulouse via
caminhões da usina, que iam buscá-lo. Países como Itália e Alemanha
foram sendo contatados com perspectivas de se firmarem acordos de
cooperação... Uma série de obras simultâneas surgiram, como a reforma e
o aumento das dependências do colégio municipal, a construção de uma
rede de esgoto fundamental para acabar com o problema crônico do
alagamento da principal avenida da cidade em tempos de chuva. Um asilo
foi construído para abrigar os idosos abandonados por suas famílias e
pela comunidade; dormiam ao relento debaixo da marquise da estação de
trem. Máquinas necessárias a várias reformas e a novos
empreendimentos foram adquiridas...
Alguns anos depois da ausência de Jean-Paul, a família toda
reunida resolveu que seria por bem vender a usina para um grupo italiano
interessado, que havia feito uma boa oferta de compra. Havia muitos
desentendimentos em família por causa da gestão da empresa, e Júlio e

278
Maura sofriam muito como consequência. Somados a isso pensavam que,
na falta dos pais, os filhos se degladiariam pela usina, uma vez que, desde
a algum tempo, não vinham se entendendo, e essas contendas vinham se
agravando. Os italianos estavam comprando “todo o arquipélago”, se
encantaram pela exuberância tropical de suas terras e mares. Dois netos
de Alex detiveram ações dessa nova empresa binacional. O resto da
família, cada qual com sua respectiva cota-parte de ações em dinheiro, se
espalhou pelo mundo; porém, a maioria se dividiu entre os países da
Península Ibérica, a França e a Itália.

279
Capítulo 77
No final dos anos sessenta e início dos anos setenta, uma
companhia de teatro de Porto Seguro, realizaria uma encenação pelas
suas ruas de Toulouse que marcaria toda a população, dada à sua
grandeza na produção, e dada ao seu conteúdo excelsamente espiritual. A
Semana Santa cristã: sua representação. A Procissão de Ramos no
Domingo, saía da Praça dos Pracinhas da Segunda Guerra, com Jesus
montado num jumentinho encenando sua entrada triunfal em Jerusalém.
Muitos figurantes com figurinos de época, Hebreus e seus filhos, soldados
romanos. O povo da cidade se misturava com os atores e figurantes que
envolvidos na dramatização, se sentiam contracenando, fazendo parte
integrante, que de fato estavam, do espetáculo. Era então consumado o
Ofício de Ramos, com a presença de vários padres. Nesse próprio
Domingo havia a procissão e Depósito de Nossa Senhora das Dores na
Capela do Curral. Na Segunda-feira era a vez da Procissão do Senhor dos
Passos para a igreja de São Francisco, partindo da Matriz. A imagem do
Senhor dos Passos, carregada em andor, era cortejada por vinte e nove
cavaleiros romanos. Os cortejos se arrastavam pelas ruas principais da
cidade celebrando a vinda do Salvador e seu sacrifício por nós. Dia após
dia, até o Domingo de Páscoa. A cidade romperia o limiar do século XXI
sem ter presenciado tão honorável feito estético.
Roberto: “... Chegava em casa com uma mala cheia de dinheiro,
ela dormia debaixo da minha cama. Quando acordava no meio da noite,
passava a mão debaixo da cama pra ver se a mala tava lá mesmo. Eu
acordava de madrugada e ia pra lavoura fazer o pagamento. Era debaixo
do sol mesmo... De vez em quando ventava muito, o dinheiro saía voano

280
pro meio do canavial e todo mundo ia correno atrás dele pra mim...” Este
pagamento, continuava sendo feito aos sábados. Agora, cada um recebia
em mãos um envelope com o dinheiro em espécie, remetido as estas
próprias pessoas titulares. Este procedimento ocorreu até o momento em
que todos os trabalhadores rurais passaram a ser registrados em carteira
de trabalho profissional. Assim feito, receberiam seus salários
mensalmente, ainda nos campos. Mais alguns anos e caminhões iriam
pegá-los nas fazendas e levá-los até o pátio da usina. Com suas
carrocerias abertas ao vento, ao sol e a chuva, à poeira da estrada,
seguiam sentados em táboas que se estendiam de uma extremidade a
outra da carroceria. Mais adiante, novas normas legais exigiriam que se
pusessem toldos nas carrocerias dos caminhões, no que ficariam mais
adequados para o transporte de pessoas, proporcionando maior
segurança aos passageiros. Posteriormente, ônibus seriam utilizados para
este fim. A hierarquia de funções e responsabilidades no setor agrícola da
empresa assim se constituía, da mais alta para a mais baixa: engenheiro
agrômono, técnico agrícola, administrador de fazenda, encarregado de
turma ou turmeiro ou feitor, trabalhador braçal. “... O feitor dava ordem pra
turma. Tem que tomar conta do pessoal... ...alguém fala: ‘Vou no mato!’, e
fica muito tempo, matano serviço... precisava do feitor que olhava e
marcava o serviço. Por exemplo, vamo supor que precisava fazer uma
capina pesada. Então ele selecionava o trabalhador... as mulher não ia
esgotar um brejo... e tinha os potregido dos feitor, que ês botava pra fazer
um serviço mais leve... ... O agrônomo passava pro técnico agrícola que
passava pro diministrador de fazenda... era quatro técnico agrícola ou

281
mais. Tinha técnico agrícola que era só pro setor de oiar dreno,
topografia... o quadro de funcionário da usina era muito capaz. ...”
Argemiro, era terrereiro na casa de Júlio e Maura. Bebia em
demasia, diziam que conseguia ingerir um litro de cachaça e ficar firme,
como se nada houvesse acontecido. “... Ele saía pra fazer mandado e
demorava... e sempre rumava uma desculpa. Um dia sr. Júlio quis mandar
ele de volta pra fazenda Esperança, da usina, de onde ele veio... mas
dona Maura gostava dele e mandou ele pro serviço de aguar as flor, cuidar
do jardim, da horta, do galinheiro... Ele ia pegar o jornal e o jornal não
parecia por causa da cachaçada dele. Um dia, véspera de natal, tinha um
peru grandão no terreiro e mandaram sr. Argemiro ir pegar, mas a
empregada falou que precisava de dar pinga pro peru pra amaciar a carne.
Aí sr. Argemiro foi comprar a cachaça... e demorou muito. Dona Maura ia
sair atrás dele e, quando abriu a porta, viu ele caído no chão e o peru
tonto em cima dele! Ela levou ele pro hospital. Ele depois contou que dava
um gole pro peru e tomava um golim. Aí o povo começou a falar que o
peru com o sr. Argemiro era melhor.... D. Maura contava o caso pra todo
mundo e todo mundo ria! Depois ele morreu afogado numa mina d’água:
tonto, caiu e ficou. ...” Seu filho Maurício também apreciava a bebida, mas,
socialmente. Sobressaía-se como jogador de futebol do Esporte Clube S.
Marcos, da usina de Júlio, assumindo a posição de centro-avante.
Provocava euforia na galera, principalmente no público feminino, que se
exaltava quando ele driblava ferozmente algum jogador do time
adversário, sua especialidade. De porte atlético, meio baixo, gozava de
invejável saúde e corria como ninguém, o que lhe valeu o apelido de “The
Flash”. Canhoto, jogava de ponta esquerda e seus cruzamentos para a

282
área eram temidos, quando não chutava direto no gol com sua canhota
possante. Goleador, não tardou que o levassem para a capital do estado.
“...Nós jogava nos campeonato da região e fomo campeão algumas vez.
Da última vez que eu joguei pro S. Marcos antes de ir embora nós
perdemo o campeonato porque o juiz roubou muito!...” Alemão: “... O
futebol começou com campeonato interno: fazenda versus fazenda...
fornecedor, motorista, garagem, escritório, marcenaria, almoxarifado...
bilheteria aberta, de graça! Chamava ‘portão aberto’, não tinha polícia... Aí
esse campeonato interno passou a ser de ‘portão fechado’, vendeno
ingresso, passou a ser semi-profissional. Chegou a contratar profissionais
de fora! Os jogadores de São Marcos eram da usina e recebiam pra jogar
na folha de pagamento. Isso durou pouco. Ficou caro pra usina. Outras
usinas maiores, em Canela, tinham patrocínio, né?! ... No sábado, fazia
um rasta-pé, sanfona, cavaquinho... Todo domingo tinha jogo em algum
lugar. Quando a gente ia jogar nas fazenda da usina, o pessoal tratava a
gente bem, mas na hora do jogo... empurrão, chute... briga! Tinha os
vendedor de laranja, suco, mixirica, milho verde, pipoca, na beira do
campo, tinha batuque... era uma festa!... Era um jogo por domingo. E
tinha, antes do jogo principal, um jogo preliminar, dos reserva, pra eles
não ficar só na reserva, não dá ne?! Desses jogo tudo saiu a seleção, o
escrete que jogava com as outras cidades. Quando a gente jogava em
Toulouse, os estádio ficava cheio! Essa Liga de São Marcos ficou
famosa...”.

283
Capítulo 78
Uma série de obras simultâneas foram necessárias com o
crescimento da firma. Todas elas ligadas às atividades da usina, como
elétricas, mecânicas, químicas, administrativas, agronômicas... Fernando
começou aos doze anos como aprendiz de hidráulica, trabalhando com
seu primo mais velho: “... Nós fizemo muita canaleta pra fazer drenagem
pra saída de água. Nós achava esses dormente de linha de trem, de
madeira, vinha os carro-de-boi na chuva, a gente jogava ês pra não
garrar... ...a gente jogava tudo dentro do brejo. Achava muita vasilha
velha, pinico, bule, esmaltado... Um dia nós tomamo um chá de cogumelo,
ficou todo mundo doido. O Rei ficou pelado... Nego descia o morro
patinano...” Seu pai havia morrido nas vésperas dele completar dez anos e
teve então que trabalhar duro para ajudar no sustento de sua mãe, de
suas quatro irmãs e de seu irmão, o mais novo. Moravam num bairro da
periferia da cidade e somente de vez em quando, se reunia com os
meninos do bairro S. Marcos, para usufruir de seus divertimentos como
nadar e roubar frutas dos quintais, bater pelada, soltar papagaio. Com o
passar do tempo, seu irmão se revelaria um homossexual bastante
atirado, que chegou a andar com muitos meninos da cidade. Aos vinte e
cinco, se destacaria como excelente domador de cavalos no que era muito
requisitado. Fazia parte do quadro de atendedores da “ casa de
viadagem”, onde mantinha estreito relacionamento com os seus
frequentadores, lugar também de jogo de baralho, onde as noitadas não
tinham fim. Seu outro irmão Isaías, que o recriminava mas que não
deixava de aparecer na casa supra dita, quase sempre levava mulheres
da vida para lá, o que era admitido. Tinha contato físico também com os

284
meninos. Todavia, gostava mesmo era de seu melro, um pássaro preto de
canto alto e estridente que o acompanhava pela cidade afora, solto,
voando. Era como que uma extensão de seu corpo. Seu único primo
Osvaldo, que trabalhava com afinco e dedicação como auxiliar de
marceneiro na usina S. Marcos, foi considerado certa vez como um
empregado modelo, ganhando uma condecoração de Júlio Bourdon em
solenidade para a escolha daqueles que haviam se destacado. Apreciava
os delírios alucinógenos do chá de cogumelos e teve uma vez que ficou
por demais sobressaltado, a ponto de arrebentar com o próprio peito uma
cerca de arame farpado, quando cismou que estava sendo perseguido
pela polícia. Tocador exímio de pandeiro, sempre muito requisitado nas
boas rodas de samba, cultivava um bigode imenso que causava repulsa e
admiração a muitos. Seu inseparável amigo João Sinval, viu-se certo dia
vilipendiado por alguém o qual sustentava relações comerciais estreitas,
com ouro. Sutil e insidiosamente, o emboscou. Não sabia, porém, que
também seria sacrificado. José Pedro, o irmão do que foi assassinado,
jurou vingança; e esta contenda duraria décadas e envolveria nessa
sinistra senda algumas vidas. Osvaldo, contudo, após perder o fiel
companheiro nessa trama diabólica, se afastaria de sua família.
Aos vinte anos, Fernando ainda não sabia nadar, mesmo tendo
sido criado às margens do Ululu, como seus iguais. Tempos depois de
inaugurada uma piscina no Colégio São Marcos, esta ficou por algumas
gestões, desativada. Nesse período, nos verões de muito sol e chuva, era
frequentada clandestinamente pelos adolescentes, sobretudo da cidade.
Fernando foi empurrado e começou a afogar, até que lutou com tanta
bravura que as águas foram vencidas; daí nasceria um nadador. Fernando

285
desde menino gostava de pescar e de nadar, e seu pai e seu avô se
consagraram exímios pescadores. Não deixaria por menos: na margem do
rio Ululu que divisava com o terreno da usina: “ ... Inventaram um jeito de
pegar os peixe pelas costa. Um dia eu e o Zé fomo entremeio as duas
bomba. Quando olhamo, nós vimo tudo escuro dentro d’água; era de
manhã. Eu falei: ‘Deixa eu jogar o anzol’. Era só cará, umas cará grande!
A gente jogava o anzol e pegava pelas costa, pelo mêi... Aí a gente saía
com aquelas fieira grande!. Tá sumino muitos peixe. Sê não vê mais um
curimba, bocarra, os dourado cabô, mandi, até os cascudo tá meio
sumido. Nesse rio do Cruzeiro pegava pial de mais de um quilo; hoje tem
muita pouca água. Tão soltano curimba, tambaqui, tilápia... nas lagoa.
Hoje quando chove, dá muito peixe! Não aqui no Ululu, que tá demais... a
pouca água dele tá preta! Perto da Serra da Anta dá muito é cascudo, de
quilo, na pedra, pial... É um cascudo que sê tem que limpar ele na hora! É
bão sê tá pescano e alguém limpano, é o da barriga podre. Aqui tem o
marelo, dava uns grande, bonito, todo marelado... esse é que é o bão, fica
na pedra e no barro. ...”
Alceu: “... na época da cana crua, que não é queimada, o açúcar
era melhor. O fogo no canavial trapaiava bem a produção... tinha muita
água nas fazenda.. córgo, riozim...
O pessoal usava camisinha pra ir pra zona. Eu mesmo já usei
muita! Era um tipo de camisinha mais grosseira. ...teve uma época que
teve muita doença venérea! Isso foi em 1960... gonorréia, dois tipo: tinha
uma preta que era um perigo! Tinha o cancro... eu vou te falar, graças a
Deus eu nunca peguei uma doença, e fui em muito puteiro!... Pobre não
usava camisinha: era dez, doze fíi: era igual a rato! Não sabia fazer outra

286
coisa! Não tinha televisão, rádio pouca gente é que tinha. Os fíi nascia de
parteira, eu mesmo nasci de parteira à setenta ano atrás. E o povo era
muito de reza...
As fazenda da usina, todas elas tinha morador, cortador de cana...
Despois foi fracassano, o povo foi largano... a lavoura ficou sem gente pra
trabaiá! Ninguém quer saber de roça não, vem diminuino a mais de vinte
ano... Aí vêi os trator, o sistema de carregadeira... a usina já tinha umas
duas máquina dessa. O caminhão carregado na mão, sê trazia um
caminhão com até nove tonelada. Na máquina dava umas seis, seis e
quinhentas... Aí o caminhoneiro deixou de ganhar. Quando passou a
carregar com a máquina passou a receber menos, e tinha ainda o custo
com combustível, com o caminhão...”

287
Capítulo 79
Maria Clara era mulher de valor, guerreira, não rejeitava serviço.
Criou seus filhos com muito sacrifício, tendo o marido fiel e trabalhador ao
seu lado: Lucas, um homem bonito, alto, de olhos claros e cabelo liso,
preto. Ao se casarem, ganharam dos tios de Lucas uma pequena gleba de
terra toda ainda plantada em café. Tiveram que arrancar as velhas e
quase improdutivas tosseiras, amarradas à correntes puxadas por
algumas juntas de boi. O terreno todo ganhou as plantações de cana que
se proliferavam. O canavial ficou bonito, o verde forte das folhas aos
poucos foi substituído pelos formosos e quase etéreos pendões brancos,
as canas entousseiradas dobravam sobre si mesmas, até que Lucas,
acompanhado sempre da esposa, levou seu primeiro caminhão, que havia
comprado há algum tempo, e pago, já inteiramente, para a usina,
transbordante de canas. A terra nem precisava de adubação, por causa da
forte gama de matéria orgânica que continha, um manto espesso, que com
o tempo foi se desgastando. A usina passou a exigir que as palhas das
canas fossem totalmente retiradas ao serem levadas dos canaviais para
as moendas; os homens do campo tiveram que se esmeirar com seus
facões, isso no tempo quando ainda não punham fogo nas canas. Depois,
estas passaram a ser queimadas para se retirar totalmente as palhas. Os
canaviais arderam nas altas labaredas. Lucas queimava o tanto que dava
para escoá-las em dois dias, para que não secassem e se perdessem.
Durante certos anos, passou a tomar prejuízo com alguns caminhões que
tinham que dormir nas duas filas imensas que dobravam quarteirões, para
ajudar a abastecer a usina S. Macos com sua matéria-prima; as canas
começavam a secar, mas o negócio ainda compensava . Chegou a ter

288
quatro caminhões e a alugar mais alguns para entregar toda sua
mercadoria. Adquiriu também mais duas outras propriedades rurais que
logo ganharam a cultura canavieira. Sua prosperidade o levou a dois
tratores que substituíram os bois no trato com a terra e tempos depois
algumas capinadeiras, que desempenhavam o duplo trabalho de capinar e
de jogar terra nos pés das canas. Lucas: “... Eu tinha um empregado, que
ele cortava cana pra dois, o pessoal não gostava de cortar junto com ele.
Um capeta, morou na minha terra e me deu muito trabalho, não quis sair
de lá, não! Acabei dano um terreninho pra ele porque ele era um homem
bão de serviço e tranquilo ...” Lucas e Maria Clara andavam a cavalo e de
jeep e nesses deslocamentos topavam quase sempre com algum animal
no meio da estrada; e como Maria Clara se identificava muito com o ato de
caçar, levava consigo diuturnamente uma garrucha para essas ocasiões,
quando vez por outra levava a melhor sobre a caça, regressando para
casa com algum vívere. Contudo, Lucas é quem sabia prepará-los,
versado que era na arte da gastronomia. Gostava de comer bem, o que o
levou a ter íntimo contato com o preparo da comida em seu dia-a-dia,
acumulando receitas tradicionais da culinária nacional: um tipo cinestésico
convicto, autoconsciente, gostava de tocar os objetos, cheirá-los e prová-
los. Maria Clara já tinha gosto pelo contato com os animais mais do que
com as plantas, não descuidando nunca, obviamente, dos seus canaviais.
Amava profundamente seus dez cachorros de pura raça dálmata, aos
quais despendia muita atenção, não mais porém que às suas quatro filhas,
que foram educadas para se casarem e se destacarem como excelentes
donas de casa. Aprenderam a cozinhar, a bordar, a cuidar das criações
dos terreiros, a cuidar de jardins... Meninas prendadas que não teriam

289
dificuldade para se arranjarem com maridos de “bom partido”. Lucas, que
vivia sob a temeridade de sofrer um ataque fulminante do coração advindo
de sérios problemas cárdio-vasculares, não tardou muito a falecer,
cumprindo sua própria e sinistra previsão. Maria Clara teve que
administrar as terras com o auxílio de um genro casado com sua filha mais
velha de apenas dezesseis anos de idade, Clotilde. Esta passou a cuidar
mais de perto de suas irmãs, com onze, doze e quatorze anos.
No sítio onde a família residia, havia um estábulo que abrigava os
bois e cavalos: “... A gente improvisava lá uma mesa grande, limpava bem
tudo e fazia um almoço pra todos os nossos empregado, isso pro caso de
vim uma chuva, o tempo quando tava nublado; quando o tempo tava bão,
a gente fazia a mesa debaixo das árvore e servia o almoço: cabrito, porco,
mandava as menina ir na padaria do sr. Amaro buscar bolo, goiabada em
barra, outros doce... era uma farra! Ês ganhava tamém calça e camisa,
agasalho... chamava um sanfoneiro e enfeitava o terreiro com os pendão
branco das cana. Ês tomava um banho depois da entrega do último
caminhão de cana e a gente pegava ês na estrada e levava pra festa, ês
bebia e comia à vontade... Eu fazia os molho de pimentão, tomate,
pimenta, temperava as carne. O fogão à lenha não parava, não! De noite,
espalhava os lampião a querosene e chegava os amigo da cidade e a
festa ia a noite toda. De manhã tinha sempre uns tonto caído em cima dos
banco, até no chão ou no meio do caminho... Êh tempo bão que não volta
mais! ...” Essa comemoração ocorria todos os anos ao findar da safra, em
muitas propriedades rurais.

290
Capítulo 80
O pai de Eduardo era tratorista em épocas de plantio. Arava e
gradeava a terra nas fazendas da usina de Júlio. Muito habituado com seu
trabalho, possuía habilidade ao manipular a máquina, destreza e um olhar
clínico, no que tange à realização dos afazeres em curva de nível. Não
fosse um homem forte e corpulento, estaria fatalmente morto num dia em
que sua mente falhou em muitos sentidos. Estava deverasmente
preocupado, com sérios problemas familiares. Sua filha solteira e
desimpedida deixou-lhe transparecer uma barriga de gravidez; e, como se
não bastasse, ela não sabia ao certo quem era o pai da criança.
Consternado, marchou para o trabalho sem suspeitar sobre o que o
esperava. Distraído, depois de uma hora em cima da máquina que
manejava como ninguém, foi traído por uma manobra escusa e de repente
se viu empinando involuntariamente o trator e indo parar debaixo dele!
Pensou que estava morto e, quando abriu os olhos, achou que ia morrer.
Não conseguia gritar e mesmo que o fizesse, seria em vão: estava sozinho
numa grota imensa. Devagar, sob os olhares de Deus, implorava pela sua
vida e dizia a si mesmo que ainda não tinha chegado sua hora. Queria e
precisava viver para cuidar de seu neto órfão de pai. Depois de certo
tempo vendo toda sua vida passar como um filme em sua mente
extenuada, decidiu que deveria se mexer. Lentamente foi se libertando,
nem sabendo como, das ferragens pesadas sobre seu corpo sacrificado; e
se arrastou até à várzea onde havia uma lagoa. Não demorou e alguém
surgiu. A pessoa ao vê-lo levantando as mãos para o céu, invocando
Nossa Senhora, o acalmou e logo foi buscar socorro, apavorado com o
que havia visto. Os olhos esbugalhados foram postos em suas órbitas

291
pelas próprias mãos, os braços parcialmente esmagados assim como a
cintura e parte das pernas, sangravam e certos ossos despontavam ao sol
escorchante. Seus pensamentos subiam e desciam a alturas e
profundezas insofismáveis. Estava só, fitando a face de Deus, com quem
conversava e implorava por continuar vivendo. Depois de ter sido
submetido a várias cirurgias reparadoras, ganhou uma armação de metal
na cintura, nos joelhos e nos braços. Não fosse pela mulher e os filhos que
lhe dispensaram atenção e cuidados especiais, incondicionalmente, não
teria conseguido. Depois desse episódio traumatizante para toda a família,
Eduardo que almejava seguir a carreira do pai, se afastaria para sempre
dos tratores e se ingressaria no trabalho de manter funcionando a caldeira,
na usina S. Marcos:
“ ... Comecei como ajudante, depois passei a operador. Trabalhava
doze hora. Era muito calor, vapor, apito alto! Não tinha proteção nenhuma.
Quando limpava a fornalha, pegava um calor!... Como é que cê vai pegar
uma enxada com cabo de ferro quente? Depois do acidente com o cara
que morreu debaixo das cinza quente, veio uma roupa de amianto que
coçava muito, mas podia encostar numa chapa quente...”
O ciclo de vida da cana que era de um ano, passou a ser também
de um ano e meio e novas e crescentes variedades eram apresentas à
usinas de Canela, provenientes da Ásia e da Europa. No entanto, as
variedades tradicionais continuaram a ser plantadas, conjuntamente com
algumas novas, que foram implantadas.
François foi nascido e criado em São Marcos, numa das fazendas
da usina de Júlio, e desde os treze anos trabalhava nas lavouras de cana,
pelos idos de 1969. Quando olha para suas mãos diz: “ ... Eu tenho essas

292
marca nos dedo porque limpava as cana, assim, de cima pra baixo, na
época que não tinha fogo nos canavial... Quando o diministrador me viu
espaiano oiadura com os outro menino, viu meu desenvolvimento e falou
que eu ia ganhar igual a um homem. ... Tabaiava o ano intero na lavoura,
cabava a coiêta e começava o plantio. Os caminhão buscava a gente nas
fazenda, sem banco, sem nada, a gente ia em pé na carroceria, segurano
nos fueiro, até o local de trabaio. Despois vortava conóis até a sede da
fazenda, aí a gente ia à pé até as nossa casa. Tinha um motorista que
gostava que só eu rumava o caminhão dele, eu ficava na carroceria
pegano as cana que os outro trazia: ´Aquele menino é que sabe rumar o
caminhão e não entorna nem uma cana até chegar na usina`. ...”
Pouco tempo depois, François conseguiu, por influência de
parentes que trabalhavam na usina, um emprego lá. Precisava ajudar sua
família, onde nasciam um após o outro. Chegou a ter vinte e três irmãos,
era o terceiro mais velho; alguns haviam caído no mundo. Fez sua
primeira safra como ajudante geral e, com o tempo, tornou-se um dos
chefes de departamento, aposentando-se assim. Certa noite, quando os
maquinários funcionavam a todo vapor na produção do açúcar, estava
subindo a escada de ferro que dava acesso aos andares superiores, eis
que foi surpreendido por uma visão nada comum. Patric Bourdon naquele
momento estava lá, sentado numa cadeira ao lado da escada, numa
passarela. François o viu, mas como estava exausto pelo esforço
despendido no trabalho (estava quase na hora de deixar seu posto e voltar
pra sua casa), não atinou instantâneamente para o que havia se sucedido.
Logo depois de subir mais um andar é que deu por si: ao olhar pra baixo,
Patric o olhava também e fixamente nos olhos. Tomou como que um golpe

293
no peito, ficou paralisado. Havia acabado de conhecê-lo por fotografia
através de Alex. Ao olhar novamente não encontrou ninguém. Desceu a
escada meio ressabiado e, ao chegar no local exato onde ele estava, não
havia nada, nem a cadeira onde Patric estava sentado. Parou e ficou a
refletir por um tempo sem acreditar no que acontecera. Nunca falaria isso
com ninguém, a não ser pra sua esposa, que passou a acender velas para
o falecido na varanda da cozinha de sua casa, três vezes por semana.
Maurício era técnico em Química e chefiava o departamento
responsável pelas análises das canas, o laboratório. Muito temperamental,
chegou a se demitir algumas vezes, mas, Júlio não aceitava e o mandava
buscar de volta, sempre lhe oferecendo um aumento de salário:
sobressaía-se pela competência e seriedade. Única pessoa que
professava sua fé cristã de modo diverso de todos, sendo espírita
cardecista. Havia alguns poucos devotos das religiões afro-brasileiras,
mas a maioria era católica. Por esse motivo, olhavam-no com
desconfiança. Apesar do tremendo preconceito de que era vítima, e
também apesar de sua personalidade forte e impulsiva, conseguia manter
um círculo de amizades restrito, porém fiel. Seus amigos o persuadiam a
realizar certas misturas que lhes proporcionassem um álcool consumível,
já que eram amantes da bebida e seus salários, insuficientes para lhes
garantir um suprimento capaz de manter seus vícios. Sustentava três
mulheres e uma prole considerável de filhos e netos, alguns dos quais
viviam na zona rural e se beneficiavam por possuírem pequenas glebas de
terra plantadas em cana. Em certo momento se revoltou inapelavelmente
e se mudou para São Caetano com sua esposa oficial, abandonando o
resto de sua extensa família. O estopim que o incendiou, que o fez tomar

294
essa atitude um tanto drástica, foi o fato de levarem uma vida sacrificada
pela carência material, agravada, em certa medida, pelas novas
transformações que se sucederam na usina. Arrimo de família, seus
ganhos se dividiam entre os filhos e os netos, que passaram a não mais
terem em suas casas no campo os mantimentos mais baratos que a usina
fornecia. Por causa de extrema pressão do comércio da pequena cidade,
que girava em torno da economia açucareira, a empresa teve que extinguir
a instituição das “cestas-básicas” que eram oferecidas aos camponeses a
preços menores do que os praticados pelo comércio local. Houve grande
rebuliço e protestos por parte de todos os envolvidos diretamente, a ponto
de muitos adoecerem pelo desgosto e desilusão a que foram submetidos.
Mas os comerciantes foram mais fortes e venceram a batalha para
infelicidade de muitos, que passaram a pagar mais caro pelos alimentos
que se habituaram a consumir. Fosse no período em que Jean-Paul ainda
estivesse vivo, certamente que as coisas não chegariam a esse ponto
lastimável sem que alguma medida compensatória eficaz fosse forjada.
Maurício não mais suportava as pressões dos familiares, somadas às
contendas internas que se acirraram; e acabou por deixá-los de vez, por
suas próprias contas e risco. Estes, apesar de terem perdido o esteio que
os sustentava unidos, convivendo entre si mesmo que precariamente,
continuaram a levar suas vidas, “como Deus quis”, amparados pelas
pequenas propriedades que lhes rendiam o sustento.
Jean-Paul fundou pouco antes de morrer uma casa de assistência
às crianças e mães carentes: “... Vinha do Canadá aquelas roupa boa,
material escolar... ...eu ia buscar leite, adorava ficar sentada naquelas
cadeirinha branca esperar a soja. D. Maura fazia umas muchilinha pras

295
mãe carregar nas costa... era tudo organizado. Tinha idade que parava de
tomar o leite, né!?, o pessoal devolvia as muchila direitinho. No natal, dia
da criança, D. Maura dava presente pra todo menino. ...”
Pietro: “...precisava de servente de pedreiro, aí rumou pra nóis.
Nóis cheguemo e fomo fichado na fazenda dos Ipê. Aí trabaiei trêis ano
como servente de pedreiro. ...quem trabaiava na ôsina, com aquês
uniforme verde, tinha um crédito na cidade... porque a ôsina pagava
memo! Ela dava um saco de açúcar de sessenta quilo pra todo
funcionário, todo fim de safra. ... Despois trabaiei na marração em cima
dos caminhão engatano os cabo-de-aço nos guindaste pra ês levar. Eu
fiquei trêis ano sem férias, o Odilon (gerente) perguntou se eu tava
gostano, eu falei que tava. ... Era quatro mil e quinhentos fornecedor de
cana, nóis moía dia de domingo até as seis da tarde, era muita cana! ...”
Zé acordava com o apito de navio da usina às cinco e trinta da manhã e ia
para a lida. Seu cunhado, diziam ter ficado louco por causa do serviço que
desempenhava: caldeireiro, puxava as cinzas de dentro da caldeira e se
submetia ao calor intenso, seu maior inimigo, que penetrava pelas suas
narinas e boca arfantes até “cozinhar seu cérebro”. Um amigo bem
próximo, empilhador de açúcar, ao vacilar e ser pego pela esteira, seu
pescoço ficou preso na engrenagem e sua cabeça estirpada. Uma cena
terrificante! Haviam sido então dois casos idênticos em toda a história da
usina: o deste rapaz e o de outro, anos atrás. “ ... Batia cartão ino e
vortano. Às quinze pras seis da manhã eu já tava na ôsina, eu ia pegar às
seis. Só sortava o cara despois, às quinze pras seis. Quando ia trocar de
turno, tinha uns quinze minuto diantado pro cara tomar um banho... Aquês
que bebia cachaça e não podia ir lá fora, botava o álcool no melaço e

296
bebia. Nóis bebia aquilo seis meis. Quando fomo ver, foram esvaziar o
depósito, a gente via osso de gambá lá dentro... Nóis bebeu aquele trem,
sô!...
Toda sessão na ôsina é dois: se é marrador é mais, é quatro, se é
guindaceiro é dois, se é ajudante de caldeira é dois; e assim vai. ...”

297
Capítulo 81
A colônia recebeu com o eclodir da segunda guerra mundial,
considerável contingente de famílias de várias localidades da Europa.
Desde a descoberta desse paraíso tropical distante, Canela já revelava
sua vocação para o universal, sendo uma fonte de miscigenação racial,
fruto da convergência de algumas etnias. Apesar de comportar várias
localidades cuja concentração étnica e cultural propiciasse a continuidade
se suas culturas, a língua francesa mantinha sua obrigatoriedade formal
por todo o país. A língua portuguesa porém continuava a ser falada
sobretudo pelos mais idosos, e também porque já havia intercâmbio
comercial e cultural entre Canela e certas ilhas do arquipélago de domínio
português.
Nas horas de pouca folga, sobretudo durante a conserva, Júlio não
se dedicava mais quase que somente à leitura de obras que o instruíam a
respeito do universo açucareiro, passou a ler obras de literatura para se
distrair e continuar absorvendo conhecimentos. Sua biblioteca invejável,
que havia herdado de seu pai Alex Bourdon, composta por altas estantes
dispostas pelas paredes de um aposento de sua casa, lhe servia de
refúgio e deleite. Com o passar do tempo cada vez mais assim, como os
passeios à pé, vespertinos e à tardinha, quando o sol baixava por detrás
das montanhas. Sempre em companhia de Tião, seu serviçal de absoluta
confiança.

298
Capítulo 82
João José trabalhou como administrador de uma das fazendas da
usina tendo também assumido outras funções. Quando ainda era
adolescente, conduzia uma das seis charretes de aluguel de seu tio, irmão
de seu pai. Em 1944, a guerra explodia na Europa e aqui em Toulouse os
carros não pararam; não tiveram que ser postos na garagem pelo fato de
ter faltado gasolina. O álcool fabricado pelas usinas os moveu, bastando
para tanto alguns acertos mecânicos em seus motores. E também
entraram em ação a recém descoberta que se expandia por toda parte, a
charrete. Cada uma era puxada por dois cavalos. João José: “...eu
trabalhava na praça levano os médico no hospital... era três médico. Eles
ia guiano os cavalo e eu ia a pé. Chegava lá, pegava a charrete e voltava
pra praça; às oito da manhã. Depois panhava eles às onze hora: eles
vinha na charrete e eu voltava a pé. Eles voltava pro hospital às duas da
tarde... levava os administrador da usina Jaques Ledoux e o advogado,
pra usina... e tamém levava doente das casas dele pro hospital, ou levava
os médicos nas casa dos doente...”
João José da Silva... um bom administrador e um bom servidor: era
correto e trabalhador. Só não conseguia manter um único relacionamento
amoroso. Era polígamo: três mulheres, três famílias. Como conseguia
suportar tal situação praticamente insustentável!, três famílias, e na
mesma cidade? Essas famílias se conheciam, porém, não se
relacionavam, até que um dia num futuro que não estará neste livro...
João José: “... quando entrei na garagem, tinha oito caminhão da
usina pra puxar cana com oito chofer, seno que quatro era fixo e os outros
quatro era contratado só pra época da safra, era o meu caso. Quando

299
cabava a safra, isso em 1957, 58, 59... os quatro chofer fixo, fazia o
serviço de buscar areia na Serra Bonita pra usina usar nas fazenda, na
reforma das casa... eles tamém ia buscar lenha que era comprada, dos
matos... ainda tinha mato...”. Os montes de bagaço que eram acumulados
ao lado das caldeiras, abasteciam-nas mas eram insuficientes. Havia,
então, a necessidade de maiores esforços: os quatro caminhões
transportavam pequenas toras de madeiras, que eram extraídas das
escasseantes matas da região. “... tirava muita lenha dos mato, por isso
que tá isso aí hoje do jeito que tá!...” O pai de João José havia sido
convocado por Júlio para administrar uma das fazendas da usina. Sua
família então se mudaria para lá, e ele, que durante a safra trabalhava
como motorista de um dos caminhões da usina, na conserva: “...em 1950
ainda não tinha trator. O serviço do plantio de cana era feito por seis boi
que puxava um arado de ferro. Eu ficava no cabo do arado pra direcionar
ele e um ia na frente candiano os boi. Cada fazenda tinha dois ou trêis
arado e seus boi... e mais outros boi que era alugado com outros arado
pra ajudar no plantio. Começava a arar a terra em janeiro e fevereiro, e
gradear tamém. Era arado e grade de ferro e depois sulcava a terra com o
sulcador de ferro. Não tinha o arado de disco de ferro que ia levantano a
terra puxado por trator...”

300
Capítulo 83
Carlos Alberto: “Comecei a tabaiá com cinco ano! Eu judava meu
pai numa ceva de porco... era um terrenão! Cercado com régua de madera
serrada, as estaca era de braúna e arame farpado. ... tinha árvre de
braúna grande memo! Aí sortava os porco pra criá e dava míi pra ês,
capado era fubá. Não tinha ração, não! Era escuma de garapa... Matava
porco de vinte arroba!... Prantava muito míi! Uns morro ficava tudo verdim
de míi, dispois vinha as espiga. Eu era criança e dibuiava míi no paiol
Teve um dia que a paia tava mexeno... ela vinha no meu caminho... ela vêi
quase na minha perna e não me pegô: era ua jararaca! Dispois eu fui
candiá boi: nóis levava cachaça pra Estiva, Santo Amaro, Machado... a
fabricação era crandestina: muito fiscalizado! ... Eu tabaiei na fazenda
Ponte Alta candiano boi, puxava boi na capinadera, era aquela que tinha
umas faca que ia cortano o mato... era com boi, burro, mula... ... ...bom, a
qualidade era várias! Tinha a javinha, uma cana fininha, mêi preta,
levinha... dava muita cana!... umas duzentas cana na tossêra! Era muita
cana que dava! A rainha, uma cana branca, grossa... a lisié, a
pernambuco... e otras, várias! ... Quando foi em 45 eu tabaiava lá na ôsina
Jaques Ledoux, fazia todo serviço braçal: capinava cana, prantava, inchia
vagão... a linha do trem ia até Gororoba... era só da usina! Era muita terra!
Enquanto o arado era feito com boi e o transporte da cana tamém, não
istragava o terreno. À partir do momento em que colocaro trator,
compatava a terra e prejudicava a cana. Em otras etapa da diministração
da usina, viero com outras coisa... aí essa otra diministração que vêi,
inchia o suco de cana, botava cinco, seis cana com paia no suco, aí vinha
o primero corte e dava umas caninha michuruca... o segundo dava umas

301
vassora, fazia uma bola assim de raiz, que não penetrava na terra... esses
home não intendia nada de lavora!.. só tinha um gerente de lavora. ... A
vida era pertada mais era boa. O patrão tinha confiança no empregado!
Dispois, com o sindicato, vêi muita lei, cabô com tudo! Quando a gente
não tinha direito era mió pra viver. Quando o patrão não gostava da gente,
ia pra otro serviço... dispois, ês passô a não dá serviço... queria sabê, né?!
... ... No tempo que a máquina puxava cana, eu e otro companhero, a
gente panhava dizoito carro de cana por dia, carro-de-boi. Dava pra
encher trêis vagão... Não punha fogo no canavial, não! Era cana crua.
Muié e minino tabaiava tamém. Todo mundo era alegre!...”
Com seu chapéu branco entre as mãos, seus oitenta e cinco anos
imperavam sobre seu corpo e mente resistentes. Preferira sentar num
banco, do que se recostar numa cadeira de balanço. Diante da mesa
branca larga, talhada nas pontas, como que um bordado na madeira, o
senhor que contava o que vinha à sua lembrança ainda vívida e lúcida.

302
Capítulo 84
“... Na década de sessenta tinha candomblé, umbanda... Ês falava
que o candomblé era a umbanda negra. O cardecismo vêi pra cá... Aqui
em Toulouse tinha muitos terreiro: da Maria, do seu Zé, dia de sexta-feira
ês batucava. Era mais era candomblé memo, dos brabo, no alto do pasto,
era até quatro hora da manhã... com tambor e tudo mais; ês usava fazer
muita magia negra: um tinha raiva do outro e corria lá pra fazer! O outro ia
lá no outro pra tirar... e dinheiro em cima! Tinha um rezador, ele pegava na
sua mão e falava o que ôcê tinha. Ia bastante gente!
A Bastiana do Marreco é que deixou esse congado que tem aí
hoje. Quando eu era menino eu via ês com um violão, um pandeiro, uma
viola e um cavaquim. Ês carregava uma bandeira... era trêis dia direto. Ês
saía e ia rodano, enfiava noite adentro, tocano e cantano, a bandeira
entrava nas casa... a pessoa colocava uma nota na bandeira, uma esmola,
era uma doação. Quando ês tava passano a pessoa vinha e grampeva
uma nota na bandeira, aí ês cantava pra pessoa. Era só oito pessoa na
época: dois que pulava com a espada e ia cantano, outro ia carregano a
bandeira... Era no centro e na roça. Ês ia andano, onze, meia-noite,
encostava na casa de um, armoçava na casa de outro, jantava na casa de
outro... O dinheiro que ês recadava ia pra igreja. Ês encerrava na igreja.
Sr. Mariano fez Folia de Reis e depois quis montar o Congado: 13
de maio. Os antigo na Folia de Reis, esses oito, saía com roupa branca,
uma capa vermelha, um capacete de papelão, revestido com fita vermelha
e uns espêi colado em cima. Quando o sol batia dava reflexo pra tudo
enquanto é lado. O capacete era branco com umas fita vermelha...

303
...os macumbeiro era temido... fulano é macumbeiro! Todo mundo
fugia dele, tinha medo dele lançar feitiço! Eu conheço hoje uma pessoa
que tem pobrema no braço por causa disso. Ela fez um trabaio pra uma
pessoa, a outra lá descobriu e fez um pior ainda pra ela! Ela tropeçou e
caiu e quando foi saber, era o outro que tinha lançado o feitiço de vorta.
Por causa disso ele botou uma pratina no braço.
O Preto Véi é um daquês escravo de idade que tá no outro plano:
‘Hum.. hum.. mizifí!’ Era uma conversa simples, toda trapaiada, porque ês
não tinha leitura nenhuma, mas tinha coisa boa na cabeça porque era
puro, sem mardade. Tem uns Preto-Véi que fala bastante enrolado: ‘Ôcê
tá preocupado, né, meu fíi? Com o seu rodador, né?’ Carro é rodador,
chinelo de dedo é pé de cachorro, cachaça é marafa, cuia pra servir ele é
cabaça, mureco é rapaz, jovem, criança... Argumas coisa até que
resolveu, sabe? Mas a gente tem que creditar no que tá fazeno... ...às vez
cê tá com um copo d’água e fala que a água que vai curar, e cura! De
tanto a gente pensar em coisa ruim a gente acaba ficano doente. O
pessoal tinha respeito pelas macumba... ês ainda era do tempo de mula-
sem-cabeça, lobisomem, que aparece na quaresma. Em Cantagalo meu
pai comentava que ês nem saía de casa, porque determinada hora da
noite aquilo parecia e saía pela rua afora... Toulouse já era mais diantado:
ês tinha mais era respeito pelos morto. Ês achava é que os morto ficava
em cima dos muro pra cercar... Depois da meia-noite ninguém passava...
No Morro do Calvário, ês dizia que os enforcado parecia! Eu não passava
lá de jeito nenhum! Dava vorta lá pela Rua dos Compadre. Isso é porque
lá por vorta de 1910 ainda existia aquelas coisa de escravo. Ês enforcava

304
escravo alí. Errou, vai pro pau. O braço da forca não tinha mais, era só o
encaixo dele... eu lembro disso tudo aqui chão ainda, terra batida...
Na década de cinquenta ês fazia nuito trabaio no mato. Os Filho de
Santo é que levava, lá em cima ês matava aquês animal, aquela coisa
toda, tinha uns que bebia sangue... Muita das vez eu vi muita cura:
mancha de pele, empolação no corpo, ferida mesmo. Os Preto-Véi pegava
aquês mato dês e ia passano em cima e rezano e sarava! A reza, é muito
boa mais se agente conhecer um pouco de pranta... é o remédio mió que
tem, é natural.
Aqui no Barro Preto eu vi muitas cura assim desse tipo. O pessoal
chegava lá gritano de dor, os Preto Véi rezava lá, mandava ês ir pra casa.
No dia seguinte ês vortava lá só pra agradecer. É tipo um passe, com mão
na cabeça da pessoa... e ia rezano... outra hora colocava a mão onde tava
o pobrema, né? E través da mão ês tirava as coisa ruim... ês pegava e ia
jogano pro lado... e rezano pra tirar o mal, e curava! Eu memo tava com
uma dor nas perna forte e ês realmente tiraram, través das reza dês lá...
era um encosto. Existe muita gente que não quer ver a gente bem, né? As
vêis cê consegue arguma coisa, o outro não, ele coloca um olho grande
em cima, isso prejudica a gente... O Preto Véi falava: ‘Cê passou perto de
uma pessoa hoje assim, assim...’ E eu ia falano as pessoa, quando eu
lembrava daquela ele falava: ‘É essa aí memo!’ É como se fosse uma
leitura de pensamento. A pessoa só pensa e ês fala o pobrema.
Antigamente tinha muita coisa pesada! Ês matava galinha, cabrito,
no arto do pasto, só pra poder tirar o sangue, e largava aquilo pra lá... e
ninguém pegava porque tinha medo! Ês fazia ceia memo! Aquela mesa
com fartura! Ês levava pra encruziada e botava aquelas toalha sempre

305
branca, e botava farofa, marafa, as galinha que ês matava, cabrito... um
cabrito inteiro! Ês já saía do terreno no mato e ia direto pra essas
encruziada pra fazer essas entrega pros Exu: Capa Preta, Exu da Mata...
hoje tem aí o Zé Pilintra, Zé Malandro, São Cipriano... tudo Exu que o
pessoal tem respeito e bota respeito nos terreiro. Cada um apresenta de
um jeito: vem com bengala, espada. Tem tamém as Pomba-Gira: Maria
Padilha, Maria Mulambo... e mais uma infinidade de pomba-gira, que as
muié que recebe; os home recebe os exu. Tem casos opostos... Ês usa
elas pra armar uma encrenca, uma confusão dentro da casa de alguém...
Ês fala: ‘Vou te dar uma cachaça, um wisk, uns cigarro, procê passar na
casa de fulano e fazer um fusuê lá...’
Sê tá cassano namorado, marido: ‘Sê usa o sabonete, o perfume
assim, assim, sê compra isso, aquilo... que vai parecer uma pessoa procê’
Tinha uma menina aqui na Ponte Caída que ela queria casar, mas o rapaz
não queria. Aí ela foi no Centro, chegou recramano do namorado, que a
mãe dele não queria que ele casasse... e começou a fazer o trabaio:
pegou o nome dele, colocou perto do santo... e aí foi. O rapaz começou a
frequentar a casa dela, fez o pedido de casamento... Ele não ficou sabeno,
não, que foi feita arguma coisa pra marrar ele pra casar: ‘Sê presta tenção,
se não der certo não tem como desfazer!’
No Salão Nobre do Colégio, na gestão do Jean-Paul, foi colocado
taco de marfim... Ele era muito popular, conversava com todo mundo.
Chegava lá em casa pra comer, o que tinha era o que ele comia! Na
campanha dele era assim, entrava pra dentro de casa, sentava no fogão a
lenha do pessoal... e a gente gostava de ver o pessoal contar: ‘Jean-Paul
foi lá em casa, tirou comida do fogão... tava na hora do armoço, ele foi lá

306
dentro e tirou comida e comeu. Ele não tá lá pra saber se foi bem feita ou
não, tava é mandano pra dentro!’ O angu era feito com esse fubá de míi
de moim d’água, era tudo massado na pedra, então o angu ficava mais
grosso. Do fubá fazia a broa do café, fazia cuz-cuz e angu, uma fazia o
cuz-cuz com rapadura, outros com queijo... isso vinha de longe... no fubá
encontrava de tudo! Pra fazer um cafezinho de manhã, quem não tinha
condição de fazer broa, fazia o fubá suado ou cuz-cuz. Tinha o cuzcuzeiro,
uma panela de barro toda furada no fundo. Pegava uma panela de ferro,
enchia ela de água e botava em cima do fogão e vinha com o cuzcuzeiro,
encaixava na boca da panela e rematava por fora o angu. Enchia a
zuzcuzeira com fubá com rapadura, queijo, e deixava aquilo lá cozinhano.
Depois revirava em cima dum prato e desinformava, ficava aquela coisa
bonita, tipo um bolo. Usava isso nos ano 50 até 60, por aí afora. Hoje usa
fubá mais farinha de trigo.
...Era tudo madeira: soalho, forro... é ipê-marelo... pra fazer porta,
janela, régua pra taco... peroba tamém. A peroba era a mais cara, peroba-
rosa, usava pra fazer móvel, jacarandá... na época existia tanta madeira
que a gente ficava perdido! As mata era tudo mata nativa! Tanto que aqui
em Toulouse fazia frio ainda, hoje não faz frio mais, não!...”

307
Capítulo 85
“ ... Meu pai nasceu em Toulouse, ele era marceneiro. Depois
trabalhou na usina com o sr. Alex, de mecânico e de marceneiro. Aí fui
cresceno, e não tinha trabalho, né? Era difícil. Vinha muita gente e ficava
esperano no portão da usina pra arranjar um lugar. O Bastião falava: ‘Não
tem lugar aqui procê hoje, não!’ Aí consegui um emprego no armazém de
abastecimento, que não durou muito: pressão do comércio. Ês vendia pros
empregado por um preço melhor... Eu tinha que atender o pessoal da
usina e o pessoal da roça: tinha que ser de acordo com o que ês tinha pra
receber. Beneficiou muito o pessoal da lavoura, esse pessoal só comprava
fiado e coisa ruim, nas venda das roça... era muita gente!... Ês falava que
parecia gente morta lá, a noite, né? Eu credito mas nunca vi.
Cabou que eu fui trabalhar no almoxarifado. Lá tinha que dar a
entrada na mercadoria e a saída. Fazia as ficha e a pessoa dava uma
requisição pra panhar a mercadoria e dava baixa na ficha. Tinha uma
bomba de gasolina tamém. A gasolina era pra bastecer os carro da firma e
pros carreteiro tamém; descontava na foia dês, ês assinava pra descontar
do pagamento. Era só caminhão, todo tipo, e tudo a gasolina. Era um
caminhão tanque por semana. Dona Maura viajava muito, e o chofer dela
vinha me buscar em casa qualquer hora pra abastecer o carro pra viajar.
Quebrava qualquer coisa lá, eu ia pegar a peça...
Eu é que enfeitava a imagem de São Marcos que saía na
procissão. Ela ficava guardada comigo no almoxarifado. Precisava do
Geraldo porque mexia tamém com eletricidade. Primeiro tinha a missa no
pátio da usina, fogueira, muita banderinha... na procissão tinha fogo-de-

308
bengala, a usina dava vela, a banda de música ia tocano, era uma beleza!
Ia todo mundo.
Uma vez fui perseguido por um prefeito e quase me mandaram
embora, fiquei muito borrecido. ... Sempre gostei de fazer poesia. Ês me
procurava pra falar coisa bonita pra alguém... ou numa festa... O povo de
Toulouse não apoia, os artistas não animam... Igual meu tio que é pintor,
pinta muito as casa antiga de Toulouse, faz retrato de prefeito,
personalidade... ele já fez algumas exposições aí na cidade, mas o povo
não gosta... ele já vendeu muitos quadros pra muita gente que vinha de
fora visitar os parente... hoje...

309
Capítulo 86
“... Alí naquele bairro... alí tinha um buraco e lá embaixo umas
casinha muito pobre... só mulher de última categoria. Alí no Beco da Tia
Rita era a Zona. Tinha seis casa alí. Tinha muita mulher. Tinha na Praça
da Concórdia, uma casa de mulher tamém. Em Lídice era melhor, tinha
muito viajante, né?! Chegava, escolhia a mulher, tomava alguma coisa e ia
pro quarto....” André: “Nós entrava lá, era menino, ela botava nós pra
fora... A gente ficava curioso...” Pietro: “Numa ocasião eu cantei uma
menina na rua, ela não quis me dar... depois eu vi ela na Zona, mas tinha
chegado uma menina nova e eu fiquei de olho nela...”
Zé Chico: “Aqui em Toulouse pareceu um juiz filho de alemão,
chegou brabo aqui, rapaz! Botano tudo quanto é processo pra fora,
desenrolano memo! Jogo de Bixo, ele cabou com tudo. Quando deu
quinze dia, alguém soprou no ouvido dele pra ele calmar: dinheiro! Ele
falou: ‘Cês pode fazer, mas não deixa eu ver, não. ...”
Romario: “Meu tio morreu de pau duro, saco inchado! Foi uma
doença no pau dele, inchou o saco...”
Edgar: “O meu tio morreu queimado! Foi acender o gás, o fogo
pulou no pano que tava no pescoço dele com álcool...”

310
Capítulo 87
“... Acontecia muito os defeito nas engrenagem. Um dia tinha uma
moenda com o eixo trincado. Aí deu um estouro e voou moenda pra todo
lado! Aí foi aquele desassossego!! É um corre-corre... muita pressa!
Porque no campo tinha muita cana já cortada e no depósito tamém. Eu
ficava a noite inteira na usina e não sabia quando sair. Vida amarga, vida
doce: dos funcionário do escritório... o cão que tá lá dentro da usina fica de
óleo até o pescoço, sem tempo pra sair...
Durante o tempo de reparação, era cinco mes pra fazer a
reparação toda, cê via o material que eu pedia, chegar. A turma era muito
boa, ia selecionano... Aí, ‘Vai começar a moagem!’ A gente fazia uma
verificação de tudo, e segunda-feira as seis hora... O boca-de-caldeira já
tava lá, esquentano caldeira! A gente ia pra lá cheio de entusiasmo... a
pressão de vapor das caldeira tava boa, chamava o auxiliar pra dar
descarga na rede de vapor... a gente sentia bem, gostava. Teve época
muito boa, quando o sr. Júlio acompanhava o movimento. Era positivo,
enérgico, mas conhecia o empregado de valor. Isso era muito bom: o
reconhecimento pelo trabalho.
...chegou então a época que eu exigia do pessoal que trabalhava
comigo, mas a recompensa era baixa! A gente pedia aumento e não dava!
A gente ficava desmotivado. Era muita responsabilidade! A equipe tava
mal tratada, aborrecida, como cê vai exigir da equipe?
Numa ocasião a turbina disparou e empenou o eixo das faca,
empenou o mancal, danificou todo o sistema de... em plena safra! Tivemo
que trabalhar só com um jogo de faca e o desfibrador. Aí a produção caiu

311
e houve perda de cana nos canaviais e na usina, as cana que já tava no
depósito. Trabalhamo sem as faca... dias muito difíceis de moagem...
Arlindo: “... Tinha um rapaz que morava lá no Alto da Cruz, coitado,
o acidente foi na entressafra... ele tava fazeno manutenção, colocano
táboa, trocano táboa quebrada na empiadera de açúcar... e ele enfiou a
cabeça... a chave de reversão ligou e estourou a cabeça dele! ...e jogou os
miolo tudo pra fora! ...eu peguei os miolo dele no chão...
eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!teve muito acidente!...
Jean-Paul e Toledo batia nesses polícia aí tudo! Isso antes dele
ainda ser vereador. Jean-Paul era barra pesada! Ele andava muito com
pobre. Tampava na cerveja nos boteco por aí afora! Ele tratava com o
pessoal da usina num boteco em frente a usina, mandava fritar pastel... eu
já tocava violão, Dionísio tocava sanfona...”

312
Capítulo 88
“...Jean-Paul foi uma coisa incrível e triste! Ele tinha realmente
condições de fazer, ele fazia acontecer mesmo! Com ele era oito ou
oitenta, a coisa ia pra frente ou não ia! Ele tinha uma força de vontade de
ferro e ái de quem puxasse ele pra baixo!... a não ser a família dele... cê
sabe como é que é família, né?!...” Não era homem de dissimulações e
hipocrisia, cumpria sempre sua palavra, que tinha força de sentença. Não
recuava, ia até o final em tudo. Tinha fiéis seguidores, como também
aqueles que sempre se aproveitavam clandestinamente das benesses que
distribuía, não sem uma certa dose de licenciosidade e excesso de
confiança de sua parte.
Maurício: “...Carlos era muito amigo de Jen-Paul, amigo de copo,
de viagem, de briga, de tudo. Eles iam pra Lídice e arrumavam uma
brigaiada danada!... Jean-Paul e uns amigos dele uma vez, enfiaram uma
garrafa de cerveja no cú de um homem bêbado que jurou eles todos de
morte. Acabou por matar um da turma e caiu no mundo, ninguém nunca
mais ouviu falar nele... A mulherada era doida com ele e não podiam ver
ele que voavam em cima!...”
Ele chegou a fazer a té dois comícios por dia na época de sua
campanha política. No caminhão que servia de palanque, eram instalados
de três a quatro auto-falantes, recém surgidos na época, à bateria, nas
localidades onde não havia eletricidade. No bar da grota dos angicos e
dos ipês, era o lugar de encontro com seus correligionários; todos os dias
rumavam para lá a fim de traçarem planos adequados para fazer frente
aos adversários políticos. Quando discutiam exaustivamente as táticas e
estratégias a empregar, terminavam as noites bebendo e se discontraindo.

313
Capítulo 89
“... Jean-Paul era valente e muito bom, ajudou muita gente. Ele
chegava no Palácio do Governo do Estado de Jardin e falava: ‘Fala com o
governador que é Jean-Paul que tá aqui!’ O governador recebia ele na
hora! Ele deu comida pra muita gente, bolsa de estudo... No período que
ele era vereador a prefeito, ele conseguiu um convênio com o exterior,
vinham caminhões de leite em pó, descarregava em Besançon, aqueles
casaco chique... As roupas eram desmanchadas pra fazer roupa de
menino. A distribuição de leite era pra todo mundo. Em todas as zonas
rural tinha um posto pra distribuir. No pouco tempo que Jean-Paul ficou na
prefeitura, o Colégio de Toulouse tava em pedaços! Ele em poucos meses
deu uma super reforma! Reestruturou tudo! Fez as salas de aula do
segundo pavimento... Ele comprou uma máquina importante pra fazer
serviço nas estrada de chão da cidade...
Sr. Alex recebia na casa dele na usina e depois na praça,
governador, vice-governador, deputado federal, estadual... Era muito bem
relacionado!...”
Gustavo: “... Teve uma época que a usina deu uma decadência...
mais ou menos em1957, ninguém queria mais plantar cana! Ela ficou sem
cana pra moer. Não sei o que que Jean-Paul arrumou, ele entrou como
gerente. Arrumou dinheiro emprestado num banco, emprestou dinheiro
pros agricultor tudo, arrumou olhadura, trator, tudo! Aí todo mundo plantou
mesmo! Ficava cana até perdida no meio do mato.
Ele era dinâmico na política, fora de série, um homem sem medo.
Ou ele fazia medo nos outro. Qualquer coisa não assustava ele, não. Nos
comício ele ficava bravo no palanque, depois descia e abraçava todo

314
mundo. Hoje ele seria governador. Tinha muita idéia, muito peito pra fazer
as coisa. Na época da campanha ele ia lá pra casa, tomava uma lá,
contava um caso... tinha leitoa, outra hora um cabritim... pra ele tudo tava
bão!
Dona Geralda: “... Dona Maura não queria que Jean-Paul fosse
prefeito: ele era muito levado, namorador... aí eles pegaram o carro e
começaram a dar volta no jardim anunciano a candidatura dele. Eu era
muito ligada a ele; eu corria todas as urnas... eu apostava com os outro,
quantos eleitor ele tinha em cada urna... foi uma campanha muito bonita,
nós fizemo muita bandeirinha: ‘Para prefeito Jean-Paul’. Todo comício eu
ia. Ele teve uma votação de lascar! A gente ia pra todo lugar... nós tomava
galope de cachorro, boi, pedino voto... Não tinha hora pra ele não! Se ele
tivesse vivo... depois a usina ficou na mão de empregado. Dona Maria do
Carmo, que ele fez a nomeação dela no grupo... mandava rezar missa pra
ele toda semana...
João: “... Na casa de Jean-Paul tinha uma janelazinha, na época
que ele foi candidato a prefeito, onde ele dava um vale pra pessoa pegar
um presente na rua... e ele dava um risco no título de eleitor pra saber que
aquela pessoa já tinha ganhado o presente. Eu conheço um camarada
que foi outra vez e Jean-Paul falou: ‘Eu vou fazer procê um vale menor,
mas cê já vêi aqui. Aqui tá seu risco. Cê tentou tirar ele com vela... mas tá
dano pra ver. Não volta mais, viu?!’...”

315
Capítulo 90
Em 1959, o escritório da usina, ao lado da balança, funcionava
num cômodo simples. Contava com os seguintes funcionários: Máximo,
tesoureiro; Gumercindo, contador e chefe do escritório; Manoel,
responsável pela entrada e saída do açúcar e do álcool; Nélio, auxiliar de
contabilidade. Depois entrou Mario, na parte das finanças e Waldemir, no
departamento pessoal. Estes funcionários, sentavam cada um numa
cadeira preta de madeira, pesada, com uma mesa também preta de
madeira, de um metro por um metro e meio cada. Sr. Mario possuia em
cima de sua mesa uma máquina de escrever, e o sr. Waldemir, outra. Nas
mesas de ambos ainda continha uma outra máquina de fazer contas, com
um teclado numérico e uma alavanca do lado que era acionada cada vez
que se queria obter o resultado de alguma operação. Este narrador,
menino, sempre adentrava ao escritório e acabava mexendo em tudo, era
neto de Júlio. Abria todas as gavetas, revirava a papelada, passeava por
baixo das mesas, obviamente, quando os funcionários saíam para o
almoço. Peralta, não obedecia a ninguém, exceto ao próprio avô, a quem
pouco encontrava na usina, pois fugia dele quase sempre quando o via.
Ficava sob suas próprias vontades, como se tudo lhe fosse permitido.
A venda de açúcar era efetivada principalmente com o sr.Fontes
Neves, forte comprador. O melaço, como era muito usado para a
alimentação do gado bovino, era muito vendido, inclusive pra fora de
Toulouse. Sr. Rachid levava muito melaço da usina para fora da cidade,
como revendedor.
Jean-Paul e seus amigos frequentavam o Tênis Clube de Lídice e o
Alberto’s Bar, onde festejaram seu último aniversário:“...Um dia nós tava

316
nesse bar, ...e quando a gente tava ino embora, ele atirou nas placas
luminosas de propaganda do posto de gasolina. No dia seguinte, o
delegado de polícia, Dr. Armando, veio à Toulouse receber o prejuízo do
sr. Júlio...
O Geraldim, muito amigo de Jean-Paul, pegou a motocicleta do
Marcelo, dessas grandona, importada, chique, e subiu a escada com ela e
acabou com o baile no clube... Deixou a moto no meio do salão. Ele era
doidão!
Jean-Paul, com o pouco tempo que foi prefeito, fez muita coisa...
Começou tamém o calçamento com paralelepípedo na Liberdade...
Depois da morte dele, na usina, as coisas foram só piorano...”

317
Capítulo 91
O elenco de figuras proeminentemente exóticas, para não dizer,
bizarras, folclóricas, engraçadas, portadoras de alguma séria anomalia
mental e corporal, que vivia na cidade, era considerável. Alguns até diziam
jocosamente que Toulouse era uma fábrica de loucos. Um desses
indivíduos, que não saía dos portões da usina, já na segunda metade da
década de oitenta: Zé Bezerro, cognome adquirido porque tomava conta
de gado no pasto, depois de certo tempo, viveu somente perambulando
pelas ruas da cidade catando papéis para vendê-los. Arrecadava uma
quantia razoável e poupava o que podia, guardando suas economias
debaixo do colchão de sua cama, ao invés de colocá-las num banco, por
medo de ser roubado. Branco, alto, de cabelos amarelos, andava bem
inclinado porque sua coluna sofria um desvio proeminente: um corcunda.
Ria alto e abundantemente. Alceu quis roubá-lo depois de saber que ele
guardava dinheiro debaixo do colchão. Zé reagiu e tomou uma facada!
Alceu pegou o dinheiro e saiu correndo. Não fosse pelo vizinho que ouviu
os suplícios de Zé, este teria se esvaido em poças do próprio sangue,
indelevelmente. Porém seu falecimento aconteceu de forma inesperada,
por causa física, de saúde, desconhecida. Sofria de uma certa arritmia
cerebral. Não conseguia manter um diálogo sem que divagasse e
deixasse a outra pessoa falando sozinha.
Tarcísio: “...Tinha o João, de Lídice. Sê chamava ele de Tartaruga
de Lídice, ele ficava uma fera e xingava até a alma do caboco! Ele ia
devagar com os pé cheio de calo, cravo! Pisa e dói! Parece uns espim...
Ele tocava uma flauta que alguém fez pra ele, executava mesmo! Aí nego
roubou a flauta dele. Ele ficou pra morrer! Sr. Caboco deu uma novinha

318
pra ele. Ele voltou. O pessoal dava comida pra ele; não dava dinheiro não,
ele não sabia o que é dinheiro. Tinha dia que ele dormia na rua, tinha dia
que ele ia pra cada dele... Teve um dia que ele tava perto da minha casa,
eu convidei ele pra comer comigo, almoçar, e fui comer perto dele e ele
falou: ‘A comida tá fria. Quem come comida fria é porco!’ Largou a comida
e saiu balangano beiço!...”
Tarcísio: “...Teve um dia que o Marcelo da Carminha chegou aqui
na casa do Tõe, muito doido, conversano muito e mexeu comigo, pra eu
dizer alguma coisa que prestasse. Aí eu tinha visto o perú qualhado de
piolho no quintal e falei com ele: ‘Eu duvido que cê abraça esse perú e dá
um beijo nele!’ Ele foi então rodeando o perú, pegou ele no colo e deu uns
beijo nele. Quando ele soltou o bicho, começou a coçar todo e a dar tapa
no corpo e começou a xingar: ‘Tarcísio, filho da puta!’ Nós rimo demais!...”
Esse personagem cheirava muita cocaína e se tornou uma figura
incomum, de compleição um tanto monstruosa, olhos esbugalhados e
respiração ofegante.

319
Capítulo 92
O elenco de figuras proeminentemente exóticas, para não dizer,
bizarras, folclóricas, engraçadas, portadoras de alguma séria anomalia
mental e corporal, que vivia na cidade, era considerável. Alguns até diziam
jocosamente que Toulouse era uma fábrica de loucos. Um desses
indivíduos, que não saía dos portões da usina, já na segunda metade da
década de oitenta: Zé Bezerro, cognome adquirido porque tomava conta
de gado no pasto, depois de certo tempo, viveu somente perambulando
pelas ruas da cidade catando papéis para vendê-los. Arrecadava uma
quantia razoável e poupava o que podia, guardando suas economias
debaixo do colchão de sua cama, ao invés de colocá-las num banco, por
medo de ser roubado. Branco, alto, de cabelos amarelos, andava bem
inclinado porque sua coluna sofria um desvio proeminente: um corcunda.
Ria alto e abundantemente. Alceu quis roubá-lo depois de saber que ele
guardava dinheiro debaixo do colchão. Zé reagiu e tomou uma facada!
Alceu pegou o dinheiro e saiu correndo. Não fosse pelo vizinho que ouviu
os suplícios de Zé, este teria se esvaido em poças do próprio sangue,
indelevelmente. Porém seu falecimento aconteceu de forma inesperada,
por causa física, de saúde, desconhecida. Sofria de uma certa arritmia
cerebral. Não conseguia manter um diálogo sem que divagasse e
deixasse a outra pessoa falando sozinha.
Tarcísio: “...Tinha o João, de Lídice. Sê chamava ele de Tartaruga
de Lídice, ele ficava uma fera e xingava até a alma do caboco! Ele ia
devagar com os pé cheio de calo, cravo! Pisa e dói! Parece uns espim...
Ele tocava uma flauta que alguém fez pra ele, executava mesmo! Aí nego
roubou a flauta dele. Ele ficou pra morrer! Sr. Caboco deu uma novinha

320
pra ele. Ele voltou. O pessoal dava comida pra ele; não dava dinheiro não,
ele não sabia o que é dinheiro. Tinha dia que ele dormia na rua, tinha dia
que ele ia pra casa dele... Teve um dia que ele tava perto da minha casa,
eu convidei ele pra comer comigo, almoçar, e fui comer perto dele e ele
falou: ‘A comida tá fria. Quem come comida fria é porco!’ Largou a comida
e saiu balangano beiço!...”
Tarcísio: “...Teve um dia que o Marcelo da Carminha chegou aqui
na casa do Tõe, muito doido, conversano muito e mexeu comigo, pra eu
dizer alguma coisa que prestasse. Aí eu tinha visto o perú qualhado de
piolho no quintal e falei com ele: ‘Eu duvido que cê abraça esse perú e dá
um beijo nele!’ Ele foi então rodeando o perú, pegou ele no colo e deu uns
beijo nele. Quando ele soltou o bicho, começou a coçar todo e a dar tapa
no corpo e começou a xingar: ‘Tarcísio, filho da puta!’ Nós rimo demais!...”
Esse personagem cheirava muita cocaína e se tornou uma figura
incomum, de compleição um tanto monstruosa, olhos esbugalhados e
respiração ofegante.

321
Capítulo 93
Quando menino, Nélio era do tipo bastante travesso, e pregava
peças desconcertantes à todos os que caíam vítimas de suas trapalhadas
inconsequentes. Gostava de assustar as pessoas mais velhas, esperando-
as passar displicentemente; apreciava muito todo tipo de situação onde
estivesse envolvida muita adrenalina. Nos dias de procissão, se
posicionava com alguns amigos em pontos previamente escolhidos e
privilegiados, e ficavam a esperar. Quando a rua fervia de gente em fila
rezando, ele e seus coniventes lançavam ovos nas pessoas. E ficavam a
dar gargalhadas, até que um dia foram surpreendidos em flagrante delito
por dois policiais que os levaram presos. Sob os momentos de reflexão à
que foram submetidos compulsoriamente, se endireitaram por algum
tempo, retomando as mesmas práticas nada recomendáveis socialmente;
então, na verdade, Nélio, pelo menos não se redimiria dessa tendência
embusteira e agressiva, até se passarem longos anos.
Este, trabalhava na amarração, mas cumpria outros tipos de
função, quando não raro era deslocado de seu posto para ocupar outro,
dada a necessidade e à possibilidade de remanejamento dos recursos
humanos: “...ajudante de produção... quando faltava alguém eu ia, ficava
guiano os sacos de açúcar na esteira pra eles não cair dela... armazém,
laboratório e amarração...”. Numa segunda-feira, estava em cima de um
pacote de canas no depósito, lançando um cabo-de-aço para seu
companheiro no chão, quando tomou uma descarga elétrica de um
relâmpago que o balançou. Chovia torrencialmente. O companheiro que
testemunhou tudo, prestou-lhe socorros, desferindo-lhe socos no peito,
quando observou que a vítima havia sofrido uma parada cardíaca. Ficou

322
por alguns segundos desacordado. Mudou permanentemente de função
depois desse incidente. Seu pai também certa vez nesse mesmo
ambiente, caiu de cima do último pacote empilhado uns sobre os outros,
num dos muitos corredores que separavam uma pilha da outra. Caiu no
chão do alto da pilha de cinco pacotes! Por sorte não sofreu sequer um
arranhão. Aqui já eram três pontes, três guindastes móveis. A primeira e a
terceira alimentavam o depósito, a segunda alimenta o engenho. A terceira
ponte era, ao contrário das outras duas, destituída de cobertura, ficava à
céu aberto. Nos dias de chuva porém, os amarradores usavam capa-de-
chuva, sapato de couro anti-choque elétrico, luvas e protetor para a
cabeça. Nélio fazia parte do contingente que era admitido somente
durante a safra, neste momento, em25 de abril e demitido em 10 de
dezembro.
Sempre dois amarradores recepcionavam os caminhões na
plataforma para descarregar, até as dez da noite, outros dois
permaneciam no depósito amarrando os pacotes de cana recém
chegados. As canas das fazendas da usina, transportadas nos caminhões
da mesma, alimentavam a moenda diretamente, enquanto que as de
propriedades particulares, iam para o depósito. Os caminhões chegavam e
eram pesados na balança, em seguida se dirigiam para o laboratório que
ficava mais à frente. Introduzia-se um aparelho nalgumas canas e retiva-
se delas amostras do líquido para exame. Então ganhava a plataforma
para que o guindaste levasse a carga. O dito caminhão-toco comportava
onze toneladas de canas e o trucado, quinze.
Nélio, quando na labuta nas lavouras de cana: “...Eu adubava cana
com o pacote nos braço, espalhano o adubo, que era uns grão finim, com

323
a mão nua! Depois teve equipamento, mas eu não gostava; a maioria
usava. Era brabo! Um pacote de adubo de cinquenta quilo no braço,
semeano... Tinha uns mocoronga que não guentava acompanhar o ritmo,
não!, ficava na piranga, com os pacote de dez, vinte quilo... Aí a gente
falava: ‘Sê vai ficar na piranga!’ Na brincadeira, a hora passava. ... O
trabalhador rural sofre muito, é um povo sofredor. A gente pegava o
caminhão na Rua Velha às cinco hora da manhã e chegava às cinco da
tarde: doze hora no ar! Era caminhão pau-de-arara que chamava. Nego
gritava: ‘Olha o pau-de-arara aí!’ O caminhão inteiro xingava os nome mais
cabeludo!...: ‘É a mãe, filho da puta!...’ Gente de respeito, gritava: ‘Ôh pau-
de-arara!’ E escondia. Os menino é que mais gritava. Eu que tava dentro
do caminhão não gostava, ficava puto! Ninguém gostava!... Nas época de
frio, pegava os feixe de cana gelado, no ombro! Há! Congelava! Há! Tinha
que tomar uma cachaça mesmo! No frio, um inverno severo... o pessoal
da lavoura usava dois agasalho, luva de latex, facão, o rango num
embornal nas costa, um vidrim de café, camisa de manga comprida, calça
comprida, chapéu de palha e enrolava uns pano, vulgo cachicol rural... a
empresa não fornecia nada disso. Eu ia de chinelo de dedo, não tinha
medo de cobra nem de escorpião, que tinha muito! Não tinha juízo! Minha
família era da fazenda S. Sebastião, da usina. Lá tinha um campo de
futebol muito bem cuidado. Tinha campeonato, jogo todo fim de semana...”
A empresa prestava serviço de atendimento médico-ambulatorial e
odontológico aos seus empregados. Havia duas unidades móveis que
percorriam as fazendas atendendo aos necessitados e realizando um
trabalho preventivo e educativo.

324
A comida era levada, geralmente, para as frentes de trabalho, num
caldeirãozinho de alumínio e alguns também portavam uma garrafa de
café. Geralmente comiam arroz, feijão, angu e ocasionalmente carne.
Nélio: “...O pessoal que trabalhava no canavial era revoltado, sofrido! Uma
vez eu levei um macarrão, ele azedou. Eu mandei ele pra dentro de
qualquer maneira! Tava com fome! Um colega meu levou uma cachaça e
eu tomei um gole pra abrir o apetite... Quem pudesse levar café , levava
um pão com salame, biscoito, angu doce... fubá suado, cansei de levar. Às
veis tamém quando tava muito brabo, farinha torrada de fubá e feijão
inteiro. O fubá suado é assim: joga muncado de fubá na panela. Primeiro é
o óleo e o tempero, depois é o fubá com um copo de água, em fogo
brando. Tampa a panela e deixa suar, com cinco minuto tá pronto! Fica um
fubá farofado. É comida de, como diz o outro, sertanejo...” Encerrava-se o
expediente de trabalho às quatro horas da tarde, com quarenta minutos de
almoço às dez horas e vinte minutos para o café às duas. Para fazer suas
necessidades fisiológicas, mister seria comunicar ao feitor: “Vou fazer uma
viagem!” Adentrava-se ao canavial e em qualquer lugar defecava-se e
urinava-se. Também fazia-se sexo. As mulheres escolhiam seus
pretendentes e se insinuavam. Com ordem do feitor, se afastavam por
alguns minutos.
Nélio ajudou a tomar conta de seus irmãos mais novos, de uma
prole de oito, enquanto seus pais se mantinham na lida dos canaviais. Aos
nove anos, iniciou-se como cortador de canas na colheita. “...Eu fazia a
comida do dia seguinte, à meia-noite, o básico. Tinha muitos que fazia na
hora da janta, cada um fazia do jeito que achava melhor. Eu fazia o arroz,
o feijão, almeirão... verdura não faltava, pegava folha de serralha,

325
mostarda, almeirão chicória, no barranco, quando a gente ia buscar lenha
de noite, à luz de lamparina. A fumaça da lamparina dentro de casa
manchava as parede de preto... Nós trocava feixo de lenha a troco de pé-
de-boi, canela-de-boi, bucho... A lenha era farta, mas longe. Tinha que ir
pro meio do mato, às vez encontrava michirica selvagem, azedinha,
miudinha, palmito... Tinha um mato preservado com muito macaquinho...”
Nélio realizava o trabalho na zona rural com distinção, se
destacava dada à sua esperteza e compleição física saudável e robusta.
Ganhava sempre os prêmios de produtividade e era o preferido do feitor,
em sua turma. Quando chegava um caminhão para adentrar ao canavial e
ser preenchido de canas, diziam: “Bota o caminhão na paia!” Pois, um
destes caminhões ao ser carregado manualmente, ao ligar o motor e sair
do lugar onde estava, chocou seu eixo contra um sulco de canas e tombou
com dois homens em cima da carroceria. Um deles ficou ferido: ao cair, as
canas foram de encontro ao seu corpo que ficou bastante lesionado.
Faleceu quando estava sendo colocado dentro da ambulância, havia
perdido muito sangue. Algum tempo depois chegou ao local outro
caminhão e uma máquina que pegava os feixes de cana e os depositava
em sua carroceria. Estas máquinas substituiriam o esforço braçal com o
tempo, contudo, não chegariam a ganhar os canaviais dos proprietários
privados.

326
Capítulo 94
Fala Anderson: “...O melhor lugar que já trabalhei foi a usina, por
causa da liberdade de trabalho... era muito gostoso a gente trabalhar,
mesmo a diretoria tano distante, eu trabalhava com carinho. Todos tinham
consciência de que tinha dado resultado o trabalho, não tinha cobrança.
Havia um carinho dos funcionários com a usina...”
Em meados da década de setenta, foi comprada pelo grupo
italiano, com suas terras, a usina. Estava parcialmente sucateada. Houve
a necessidade de um período maior de entressafra, para que entrasse em
atividade. Houve uma sobrecarga de trabalho para todos os funcionários
do parque industrial.
Alcebíades, depois que havia almoçado, teve uma indisposição que
o levou displicentemente à cair dentro de um caldeirão de ácido,
fulminantemente. Alguns outros acidentes ocorreram sem maior
gravidade, somente mais dois casos na zona rural, de picadas de cobra
jararaca e de escorpiões, também fatais. Houve um mecânico que perdeu
sua mão esquerda quando estava fazendo reparos numa das pontes
rolantes. Inadvertidamente mandou o guindaceiro mover o guindaste para
que pudesse observar alguma possível avaria. Sem perceber, as duas
rodas de ferro de uma das extremidades da ponte passou por cima de sua
mão esquerda e a extirpou. Aposentou-se.
Anderson ocupava um posto no grupo de manutenção corretiva
durante a safra: estragou, concertou. E na entressafra seus serviços eram
requisitados para a manutenção preventiva de todo o maquinário;
desmontava-se bombas, motores redutores, turbinas, para a reparação
dos desgastes sofridos. “...Tem muito desgaste na usina, é um lugar muito

327
agressivo, tem problemas na safra mesmo preveno... quebra de rodete
que é montada no eixo das moendas... a solda modifica a estrutura do
aço... muita coisa quebra na safra...” Num momento dado, quando
Anderson estava desempenhando sua função no concerto dos
equipamentos, armou-se uma tempestade. Ele foi se esconder no
almoxarifado com mais alguns. Os fortes ventos anunciaram uma chuva
grossa de granizo e o telhado de amianto foi arrancado pela surra de
pedras somada à velocidade do vento. Um raio caiu numa das paredes do
cômodo, ocasionando um estrondo e uma claridade que atordoou aqueles
que se encontravam no recinto. Como se toda a experiência terrificante
não bastasse, Anderson enxergou um vulto de um homem índio alto e
magro, ao lado de outro homem negro e parrudo. Tomou verdadeiro pavor
por tudo o que havia acontecido e pediu para voltar ao seu posto de antes.
“...O final da safra era triste. No último dia, que passava a última
cana na moenda, a usina apitava por cinco ou dez minutos avisano o fim
da safra. Alguns funcionários choravam...
A usina nova tinha banheiros terríveis! Teve que ser tudo
reformado. Antes era cuba – onde fica agachado para fazer necessidade-.
Os banheiros não duravam um ano! Eles quebravam as torneiras e
quebravam os vasos e sujavam tudo demais! Nós botamo um faxineiro
que não dava conta!...” Com o advento do ano de1980, a empresa passou
a fornecer uma sexta-básica a todos os trabalhadores, mensalmente; este
se revelou um período de progresso, de produção intensa e progressiva
expansão. As variedades de cana se sucediam, e a chamada cana
manteiga foi marcando seu desaparecimento dos canaviais. Já não era
como antes, como quando os meninos da cidade subiam em cima dos

328
caminhões que transportavam-nas, mesmo estando eles em movimento.
Numa tarde quase noite de poucas nuvens no céu, Giusepe Bortello dirigia
seu caminhão repleto de canas manteiga, um dos últimos a transportá-las,
atento aos fatídicos ataques dos meninos. Quando chegou à fila, observou
que o caminhão que estava imediatamente à sua frente havia quebrado e
permanecido obstruindo a passagem para os que viessem depois.
Giusepe não teve muito tempo para pensar e quando resolveu virar o
caminhão e voltar para pegar outro acesso, observou que atrás de si já
haviam alguns outros, enfileirados. Havia ficado preso com sua carga
preciosa. De temperamento expansivo e explosivo, não tardou achar
conflito. Alguns meninos ficaram rodeando o caminhão, e de vez em
quando algum ataque acontecia. Num desses, um menino foi pego
grudado no pacote de canas e lançado ao chão por Giusepe. O pai desse
jovem se encontrava passando no momento e presenciou o final da cena.
Houve uma ameaça de embate físico, mas outras pessoas apartaram.
“ ...quando tinha fila muito grande, os caminhão com cana
manteiga passava na frente dos outro e guardava a vez do lado de dentro,
no pátio da usina.. Se deixasse por conta dos menino, eles jogavam era
muita cana no chão mesmo! Eles ficavam em cima do caminhão jogano
cana pra baixo, pros outros meninos...”
Samir transportava em seu caminhão de sete, oito toneladas, sua
própria cana. Fazia questão de que as canas fossem bem acomodadas na
carroceria para que pesassem mais com menos volume. Se se estivesse
precisando da matéria-prima, a balança ficava aberta de seis da manhã às
oito da noite, caso contrário, de seis às seis. As filas ultrapassavam um
quilômetro, se arrastavam. A usina mantinha determinada área de uma de

329
suas fazendas para cultivar cana-planta, ou seja, as canas destinadas a
serem plantadas, de janeiro a março, para isso, despendiam de atenção
especial. Abasteciam de mudas também os fornecedores da usina, os
proprietários rurais. “...A gente pegava olhadura com a usina, a gente
mesmo ia lá, cortava e levava. Cada época eles faziam em uma fazenda,
a despesa era paga na safra, naquele mesmo ano... No início, quando
entrei, era com boi que arava e sulcava a terra. Arava primeiro pra terra
ficar limpa, depois fazia a sulcação. Conforme a terra, tinha que limpar
antes com facão ou até queimar... se fosse terra com roça de milho, não
precisava não....” Os pequenos proprietários se ajudavam mutuamente
sobretudo nas colheitas. Somente depois que os canaviais começaram a
ser queimados é que os trabalhadores passaram a usar, quase todos,
algum calçado e um pano em volta do rosto para protegerem seus cabelos
e ouvidos das cinzas; luvas também foram introduzidas na indumentária.
Camisas feitas com sacos de açúcar alvejados e tingidos ainda eram
muito usuais. “... Prantava míi, arroz, feijão... Algumas roça tinha máquina
de beneficiar arroz, míi... se precisava de comprar cereal e outras coisa, lá
na roça tinha venda, hoje não tem mais; hoje quase nem tem gente na
roça! ... O povo engordava porco-de-banha e vendia naquelas venda lá...
A gente matava o porco e depois fritava o toicim, fazia torresmo e
guardava o resto numa lata e num caldeirão de alumínio grande, aí a
pessoa tinha gordura pra dois, trêis meis, dependeno do tamanho do
porco. ... A maior parte era católico. Tinha um ou outro assembleísta...
Hoje é que cresceu muito, tem várias religião...” Os casais eram casados
na igreja matriz durante os fins de semana, também batizavam seus filhos.
Os partos tradicionais realizados por parteiras foram aos poucos sendo

330
orientados e executados por médicos, e no raiar da década de noventa,
somente nos rincões mais distantes é que dava-se à luz sob os comandos
de alguma parteira remanescente.
O período que compreendeu de 1978 a 1990, foram rentáveis para
os fornecedores de cana da usina. Com o limiar dos anos noventa, com o
incentivo governamental em prol da produção de álcool para combustível,
havia uma oferta espantosa de canas e esse excesso passou a ser
preocupante, gerando instabilidade. A forte concorrência fez a margem de
lucro dos agricultores baixar consideravelmente. Somado à isso, a mão-
de-obra excasseava, já haviam novas fontes de emprego na cidade, como
pequenas indústrias. Contudo, o governo financiava o plantio a juros
baixos. Zé: “...Comecei a fornecer cana com poucas tonelada e terminei
com mais de quatro mil, quando a usina fechou... começou a atrasar o
pagamento... inclusive tenho um dinheiro que eu não recebi até hoje. Foi
embora muita gente sem dinheiro e sem receber... muita cana foi perdida
nos canavial...”

331
Capítulo 95
Zeca tinha um casal de melros que o acompanhava
constantemente, numa gaiola. Quando não estava em trânsito, soltava-os
e eles ficavam nas imediações, isso quando saíam de perto de seu dono.
Às vezes, Zeca pegava o carro e disparava por ruas a fio a título de testar
a esperteza e a fidelidade dos pássaros para com ele. Nunca se
decepcionava. Via-se os melros voando em direção ao carro e o
alcançavam, Zeca parava o fusca e os recolhia em sua gaiola. Só não
levava seus amigos emplumados para o trabalho na usina e nas noites
quando saía com os amigos. Numa dessas noites, se prepararam para ir
numa festa, tomando copadas de chá de cogumelos, estes surgiam dos
estrumes de bois depois de alguma chuva. Eles os pegaram num pasto e
os colocaram para ferver e dois rapazes comeram alguns no próprio local,
minimizando o gosto ruim com um pouco de leite condensado. Quando
saíram desbaratinados da casa de Alfredo, cujos pais haviam viajado,
passaram por um pasto adjacente a fim de andarem um pouco em campo
aberto para tomarem ar e apreciar o céu estrelado. Estavam bastante
exaltados e gritavam e gargalhavam. Um dos rapazes começou a correr e
não mais parou até que arrebentasse a cerca de arame farpado
transpassando por ela, rasgando-a em seu peito. Obviamente sofreu
alguns ferimentos mas felizmente, nada grave. Todos se assustaram e se
refrearam um pouco. Chegaram ao baile e na porta do clube
testemunharam uma cena horrível de um tiroteio. Um homem morreu
baleado porta do clube, o baile foi suspenso. Naquela noite já haviam
passado por maus momentos e como se não bastasse, um dos rapazes
da turma de Zeca, ainda sob o efeito do chá de cogumelos, caiu num

332
bueiro aberto e sofreu algumas escoriações, leves, felizmente. Depois de
toda essa confusão, se reuniram e decidiram andar por uma estrada de
chão, ao léu, conversando e apreciando o céu.
Outros bailes se sucederam. Da estação saía sempre às seis da
tarde o último trem em direção a S. Sebastião. Zeca e seus amigos
subiam sorrateiramente em cima do trem quando ele começava a se
movimentar e ficavam deitados no teto, quietos. Quando ele ganhava
velocidade, os rapazes se levantavam e andavam e pulavam de vagão em
vagão brincando de far-west. Quando eram descobertos, o trem parava.
Numa dessas vezes, ficaram no meio do trajeto e tiveram que andar o
resto do percurso. Não desprezavam os bons exemplares de cogumelos
que achavam fortuitamente e os levavam para casa sequiosos de os
utilizar na feitura dos chás alucinógenos. Os bailes em S. Sebastião e em
Toulouse eram marcados pelas contendas entre seus jovens. Havia uma
forte animosidade entre eles. Na verdade, essas brigas eram comuns em
todos os bailes da região. Os cidadãos do lugar onde o baile acontecia se
viam sempre ameaçados pelos conquistadores de suas conterrâneas, que,
não raramente apreciavam os assédios dos rapazes das cidades vizinhas.
Estas, não frequentavam muito os bailes fora de suas cidades, uma vez
que a moral vigente não permitia que donzelas desacompanhadas por
varões se aventurassem dessa maneira, como os homens. Num desses
bailes, Zeca, que fugia das frequentes contendas, se viu inesperadamente
no meio de uma briga que envolveu uma quantidade considerável de
rapazes e fugiu aterrorizado, saindo pela porta da frente do clube. Ao
pegar seu carro e passar em frente às essa mesma porta, viu um de seus
conterrâneos ser empurrado para fora e cair no chão. Imediatamente

333
partiram para cima dele alguns jovens enfurecidos, mas, este conseguiu
sair correndo. Alguns contendores partiram atrás dele. Este corria dando
tudo de si, mas seria apanhado não fosse por Zeca que parou o carro e se
dirigiu ao rapaz. Este pulou impulsivamente direto para o banco de trás,
vazio, isso ainda com o vidro da janela ainda meio levantado. O rapaz
resvalou o nariz no vidro e se machucou. Ao cair no banco do carro,
vomitou e desmaiou. Zeca saiu em disparada com os rivais quase a lhes
alcançarem. Alguns ainda lhes atiraram pedras e uma delas quebrou o
vidro de trás do carro e caiu por sobre o rapaz desmaiado.

334
Capítulo 96
O pai de Zeca era sarará, cabelo todo branco, cidadão nato de
Toulouse. Sua mãe, de tez branca, provinha de rincões distantes. Ele
tocava um negócio de aluguel de estacionamento para charretes e
cavalos, possuía uma cocheira. Fala Zeca: “...Do lado da usina, tinha
umas casinha velha, uns pé de manga... meu pai nasceu alí. Quando ele
começou a trabalhar na usina, eu não era nem nascido ainda. Ele
trabalhava lá em cima, com as caldeira...” Isso, na Usina S. Marcos, por
volta da década de sessenta.
Zeca: “...Eu era muleque catarrento, como diz o outro, buscava
leite, sopa... Ficava na esquina da rua as mulher da vida... muito
oferecida... O sr. Geraldo ficava muito com essas mulher, dono do terreno
do lado da usina, quando foi construir um muro do lado do rio ele falou:
‘Quando eu construo nem Deus e nem o Diabo derruba!’ Quando veio a
noite, teve uma enchente que derrubou o muro, há! Ele passa e nem
cumprimenta a gente...
Teve um dia que eu fui num comício na roça com o Lobão, locutor
da cidade, muito popular! Ele tinha uma vemaguete que tinha dois alto-
falante em cima. Eles tombaram o carro dele, ele passou no meio do
comício do outro, do adversário! E eu lá dentro, pensei que ia morrer! Aí
eles deixaram o carro tombado e chutaram e amassaram o carro todo. Ele
ficou na ativa por muito tempo. Às cinco hora da manhã cê pudia ligar o
rádio que ele tava lá. Era radialista, locutor de futebol, de programa...”
Possuidor de um senso de humor privilegiado, contava piadas, conversava
sempre rindo com os ouvintes e fãs que o telefonavam no ar. Era
homossexual e atraía para suas garras muitos pretendentes que se

335
deixavam enveredar pelas suas conversas amistosas e envolventes. Seu
irmão, uma figura ímpar, tremendamente inteligente e perspicaz,
heterosexual, muito mulherengo, se divertia e chamava bastante a tenção
para si em suas empreitadas eletrônicas. Os cidadãos da cidade eram vez
por outra, surpreendidos com a figura do rapaz na tela da tv, por alguns
minutos. Falava umas palavras incompreensíveis, do mesmo jeito que
fazia nos rádios. Quando muito furioso, sobretudo devido a alguma
desilusão amorosa, apagava as luzes da cidade, que chegou a dormir
algumas vezes no escuro por sua causa. Certo dia, discutiu com um
homem no meio da praça da cidade e tomou um tiro no peito, falecendo
instantâneamente.
Da infância à adolescência, Zeca levou a vida que qualquer menino
da cidade levava, pelos campinhos de futebol, nadando nos rios,
brincando e fazendo traquinagens. Algumas experiências o marcaram,
como quando subiu no telhado de uma grande casa e de lá não conseguiu
descer. A vizinhança toda foi mobilizada dado o escarcel que aprontou. De
uma outra vez sofreu a descarga de tiros de uma arma de fogo em sua
direção, quando jogava pedras em cima dos carros que passavam, de
cima de um morro juntamente com alguns amigos. Um carro foi atingido e
o motorista parou imediatamente e começou a desferir disparos de sua
pistola tresoitona. Saíram todos correndo. A turma, saía quase sempre de
bicicletas alugadas nos fins de semana para recantos distantes e muitas
vezes se deixavam tentar por empreitadas um tanto perigosas e
desgastantes, como insistir em subir e descer de bicicleta lugares quase
inacessíveis. Como não era de se espantar, haviam se embebedado
tomado álcool puro no dia da inauguração da destilaria, na usina, com a

336
presença do governador do estado e outras autoridades; isso durante a
primeira metade dos anos oitenta Canela havia firmado um convênio de
cooperação com o Brasil e foi beneficiada com a entrada no país, da
tecnologia de fabricação do álcool para combustíveis que supririam a frota
de veículos automotores, pouco a pouco, se adequando à nova realidade
do advento de um combustível que provinha de fontes renováveis. E
divaga: “...Quando completei uns sete ano fui vender picolé. Era uma caixa
de isopor que pendurava no pescoço. E fui. Tava um calorão do caramba!
Eu tava no campo dos Bourdon. Quando cheguei fui pra sombra... mas os
picolé derreteu tudo! Tinha até ainda uns pedaço de picolé, e eu ví e
acabei chupano... seu Zé me cobrou os picolé e aí eu voltei só no dia
seguinte, paguei e ganhei um pouco ainda, por fora!...” Zeca chegou a
acompanhar alguns caçadores, escondido de seus pais, quando numa
dessas empreitadas avistou uma onça e ficou paralisado; não mais
voltaria. Invariavelmente os grupos de meninos brincavam pelo bairro de
jogar pião, de jogar birosca, havia as peladas nos campinhos, caçavam
com atiradeiras... “...A gente pegava passarinho e comia: tizil frito!...
coleirinho, rolinha, pomba, não acaba não... ...Todo canto tinha uma
pelada! Quando não tinha bola, fazia uma bola de meia e enchia de pano.
Quantas vezes eu cheguei em casa com os dedo tudo grosso! ...” E a
catação de tanajura, nego fazia farofa com aquilo! Era bom! Gostoso
demais! Carcava uma garapa pra dentro da garganta... ia uma atrás da
outra! Eu como! Tempo bão! Se tiver uma garapa eu tô comeno!... Teve
um dia que eu tava descalço e pisei em cima de uma abelha. Que dor que
deu! Se eu tivesse a bosta bamba eu tinha cagado! Doeu o corpo
inteirim!...” Os meninos adoravam o cinema: filmes como: Zorro, Tarzan,

337
Sansão e Dalila, far-west como Django, Dólar Furado, alguns espetáculos
musicais e teatrais vez por outra também estreavam, isso lá pelo fim da
década de sessenta. Em primeiro lugar exibia-se o jornal na tela e em
segundo, um desenho animado de um rato espacial que ficava correndo
dentro de uma grande espaçonave... Os filmes eram mudos e em preto e
branco, legendados. Antes das sessões começarem instalava-se uma
verdadeira euforia que desencadeava uma anarquia generalizada.
“...Nego dano tapa na cabeça do outro, jogano saco de pipoca no outro,
pregano chicletes nas cadeiras e esticano fio...” Um outro divertimento
fantástico era o circo: “...Tinha o circo do Bicanca, brasileiro, que era um
palhaço, usava um sapato enorme! Ele andava na ponta do sapato! Tinha
um taxi maluco, sê ligava ele e ele arrebentava tudo! Tinha o homem que
comia fogo, os trapezistas, o domador de feras e outras coisas...”. A
cidade foi visitada por diversas companhias de circo, nacionais e
internacionais. Já as touradas eram patrocinadas pela região e causavam
verdadeira temeridade e fascínio.
Zeca na sua adolescência, uma vez em sua vida, conseguiria
realizar uma façanha: subir no pau-de-sebo. Na festa junina do dia 24
mais famosa e movimentada da cidade, existiam tradicionalmente as
barraquinhas que vendiam quentão, chocolate quente, canjica, amendoim,
pipoca, pé-de-moleque, os carrinhos ambulantes de venda de bijus,
maçãs-do-amor, dentre outras guloseimas e iguarias típicas. Haviam as
barracas de jogos como pescarias, tiro ao alvo, cartas, roletas, etc. Logo
depois, o espaço destinado à quadrilha que se apresentava às onze horas
e adentrava à noite. O pau-de-sebo, situava-se num canto do terreno perto
do portão de entrada. “...Nego usava areia, bolsa de areia, pra ir subino...

338
usava tamém caco de vidro pra raspar. Depois que muita gente que tinha
ido na frente limpano o pau, ele conseguia. Só quem era bobo que ia
primeiro! Que queria lambuzar os outros: ficava lambuzano a mão no pau
e depois saía correno atrás dos outros. Tinha muita bandeirinha... e a
fogueira que nego passava descalço na brasa, à meia-noite! Tinha um
leitãozinho que eles colocava graxa nele todo e soltava ele. Nego saía
atrás do leitão... A música era sertaneja nas caixa de som espalhada pelo
pátio todo...”
Mauro, amigo inseparável de Zeca e Pardal, era o que mais
frequentava a moenda da usina para beber garapa, também sempre
levava para casa uma pequena garrafa e misturava-a à cachaça. Seu pai
também bebia muita pinga e sempre guardava longe dos olhos dos oito
filhos, suas garrafas. Mauro, acompanhado de Zeca e Pardal, vez por
outra fazia uma vistoria minuciosa no quarto de seu pai, já viúvo, ao
encalso de algum litro de marafa. O pai, conhecedor das artimanhas do
filho, gostava de descobrir vestígios dessas devassas em seu quarto, uma
vez que surpreendia a todos com algum litro de água. Eles iam ávidos
para degustar a “dolorosa” e cuspiam água indignados. Haviam dois
frequentadores da venda da esquina, aposentados por inaptidão ao
trabalho, depois de certo tempo em atividade. Todos os dias depois do
almoço lá estavam eles bebendo cerveja e fumando, a tarde toda,
recostados no balcão conversando com os conhecidos e amigos. Se
divertiam em pagar um copo cheio de pinga para os da turma de Zeca,
mas, sob a condição de o agraciado ter que tomar tudo de uma só vez.
Zeca: “...Sê faz o Nome do Pai... pega um giló com sal e pimenta e manda
pra dentro, que até arde os zói! E depois a bebeção d’água?!... Pardal:

339
‘Ontem sê sentou num poste e dormiu lá, falô?! Eu quis te levar pra casa,
sê não quis sair do lugar!’ Depois eu fui, graças à Deus! Chegou o Pardal
e o Tomás e me levantaram. Eu fui escorar no poste e errei e caí no chão.
Eles me levantaram e caíram tamém, eles tavam muito tonto! Aí nós fomo
escorado um nos outro...” Num outro dia Pardal extremamente bêbado, já
espojado na arquibancada do campo de futebol, onde transcorria o jogo
final de um campeonato, todo urinado, foi resgatado por Zeca, que o jogou
nas costas como um saco de açúcar. Nesse dia, havia urinado bastante e
como estava escornado na arquibancada do campo, parte alta, sua urina
se transformou num pequeno riacho que escorreu formando um caminho
sinuoso em meio à multidão sentada que se esquivava. As pessoas se
espremiam mas davam passagem para o filete amarelado, ficando um
espaço aberto por onde ele passava. Ao ser reclinado nos ombros de
Zeca, Pardal vomitou e como aquele não deu conta do ocorrido, este
ainda importunou as pessoas que estavam por perto com esguinchos de
vômito. Somente quando saiu da multidão é que Zeca percebeu que
estava todo lambuzado. Zeca: “...Uma vez nós fomo pescar na fazenda...
Dona Maura levou a comida, frango com quiabo, arroz, tutu e faca pra
cortar... Eu colocava a faca prum lado, o negócio escorregava, apertava a
faca assim, o negócio escorregava do outro lado. Eu falei: ‘Dona Maura,
vou comer com a mão mesmo!’ Aí todo mundo comeu com a mão,
lambeno os dedo... Dona Maura adorou! Isso foi em 1974. ...A gente
pescava lambari de dia pra pegar traíra de noite...
... Meu tio tinha um bigode grande, preto, bigodão mesmo! O bicho
era respeitado e ái de quem mexesse com ele! ...o pessoal que trabalhava
na usina: Marlos tocava um pandeiro que nossa mãe! Ele deu um pandeiro

340
pra mim e depois ele sumiu, nego me roubou ele...” Os anos oitenta foram
profícuos em termos de acontecimentos culturais. Criou-se na cidade dois
movimentos importantes que fizeram acontecer eventos artísticos
memoráveis: Grupo Artístico Estudantil e Movimento Municipal Recreativo.
Estes promoviam festas, bailes, festivais de música, de artes plásticas.
Nascidos sob a égide de partidos políticos rivais, que quiseram se destruir
mutuamente, fizeram por sucumbir as duas entidades, sob seus fogos
cruzados.
O único tio de Zeca por parte de pai: João Doido, um personagem
das ruas da cidade, um mendigo, tratado por todos com certa tolerância e
respeito, como uma pessoa a quem se deveria prestar atendimento se
solicitado. Um excepcional que fazia suas necessidades fisiológicas onde
bem entendesse e claro, muitas vezes aos olhares de muitos transeuntes
citadinos. “...Ele caga onde ele quiser, mija no meio da rua... outro dia ele
sentado no meio fio em frente ao banco, tirou o pinto pra fora e mijô alí
mesmo, com todo mundo veno. Eu falei com ele pra ele sair e ele falou:
‘Não enche o saco, deixa eu mijar aqui!’...”

341
Capítulo 97
Geraldo nasceu numa fazenda distante, no município de Toulouse.
Seus pais possuíam uma gleba de terras onde plantavam culturas da
região como meio de subsistência. Perto da casa havia uma mina que
escorria sua água pelo terreno.
Sentia verdadeira paixão pela política e admirava muito o deputado
federal da região que apoiava o candidato concorrente de Jean-Paul. E
diz: “... esse camarada que candidatou a prefeito da outra chapa contra o
Jean-Paul, não capinava nem a porta da casa dele, como é que eu podia
votar nele? Votei no Jean-Paul. Perdi um lote que eles iam me dar, mas
acabei ganhano outro...” D. Maura não via com bons olhos Geraldo, que
manifestava suas preferências partidárias abertamente e a contradizia.
Assim que resolveu abraçar a causa de Jean-Paul, disse a ela que fosse
até a sua casa para ver o retrato deste na parede da sala, como prova de
que ele o havia apoiado. “...No dia que ele ganhou eu fui esperar ele lá em
cima... aquela farra danada! Todo mundo carregano ele, pulando em cima
dele!... depois eu falei: ‘Pode começar a dar roupa pra nós!’ Um dia
quando eles tavam bêbado no sítio dos Ipês, eu falei com Jean-Paul: ‘Vai
pra prefeitura arrumar essas estrada!’...” Um certo candidato a deputado
estadual que se julgava eleito, teve uma triste surpresa ao abrir das urnas.
Geraldo havia votado nele e o alertado acerca de que as pessoas eram
muito traiçoeiras, que não confiasse nas suas promessas de voto, nos
seus sorrisos simulados. Este valoroso senhor, sairia irremediavelmente
da política, absolutamente desgostoso por ter angariado uma soma de
votos irrisória, ficou envergonhado e chocado, dada às suas expectativas.
O filho mais novo de Geraldo: “...a gente, de menino, gostava era da

342
farra... No dia que o Jean-Paul ganhou, eles ia trazeno ele levantado,
sentado numa cadeira, no meio da multidão... A gente gostava de pegar
aquelas bandeirinha com o nome dele escrito...”
“...Nós fomo pescar uma vez... ele não deixava a gente dormir... eu
ia pra longe, debaixo de uma pedra, mas ele ia lá com o Silvino e jogava
um balde d’água ni mim. Noutra vez era guerra de barro... Jean-Paul era
bom pra gente, mas quando tinha que falar ele falava mesmo! Nesse
tempo a usina tava meio fracassada e com ele tinha que trabalhar mesmo!
Com ele era assim: toda semana, pescaria. No dia que ele morreu eu tava
fazeno uns barraco numa fazenda da usina. Uns dia depois eu fui
concertar umas coisas na casa dele e quando eu abri o guarda-roupa, vi a
roupa dele toda ensanguentada... saí correno! Aquela roupaiada dele
cheia de sangue! Ele corria demais, teve um dia que ele vêi de lá rápido e
quase bateu ninóis! Ês tava tão bêbado no dia da morte dele, que o
homem do botequim falou: ‘Vai ter quatro morto hoje!’ Tava tudo muito
tonto!...” Geraldo foi descoberto ainda rapaz por um senhor aficcionado
por pescaria, quando nadava a largas braçadas no rio Cipó, o mais
caudaloso da região. Depois desse dia, passou a acompanhar o senhor
Anacleto em suas aventuras por rios também de grande expressão
nacional. “...Nós temo um barraco no rio Jaguariúna... levei muita gente lá!
Depois que o Anacleto morreu eu deixei rede pra lá, tarrafa... deixei de
pescaria, né?! Até no Cipó eu parei. Tinha cada um dourado que fazia
gosto!: jogava a tarrafa... no meio alí tem uma pedra, é onde o dourado tá,
ele fica esperano os peixe passar. A primeira tarrafada foi dois douradão!
Eu fui lá na pedra, no fundo e desengatei a tarrafa. Eu e mais um ou dois é
que entrava, o resto ficava fazeno farra. O Wander era muito gordo! Ele

343
encharcava a cara de pinga e depois a gente ia rolano ele com uns pau,
pra cama. Nós era muito abusado demais!...” Fernando, funcionário de
respeitabilidade e confiança, era um que gostava de gritar “Ôh pau-de-
arara!” para os caminhões que transportavam os trabalhadores rurais, e
quando nas pescarias, lançava todo o seu humor ferino e sua malícia nas
brincadeiras com os demais. Quando no escuro, em lentos movimentos
nalgum terreno à margem do rio, lançava um grito de advertência: “Olha a
cerca de arame farpado aí!”, e todos se abaixavam. Pura mentira. Quando
pôs sua mão numa cobra, ao subir um pequeno barranco, ficou
traumatizado e passou a não mais seguir os incautos pescadores de perto,
atrás de suas presas, esperava-os no acampamento. Essas empreitadas
pesqueiras sempre logravam êxito: dourados, grumatás, piaus, surubins...
Lulu tinha verdadeira ojeriza por peixes. Comparecia de vez em quando à
essas noitadas somente pelo encontro, pela descontração e pela
bebedeira com os companheiros. Não deixava de ser alvo, obviamente, de
embustes por parte dos outros.
Geraldo trabalhava na empresa, de pedreiro, de encanador e até
de serralheiro, não enjeitava serviço. Trabalhou alguns anos sem carteira
assinada até que se recusou a continuar daquele jeito, quando legalizaram
sua situação empregatícia. “...sr. Júlio era muito bom, viu! Ele conhecia o
serviço só no olhar, sabia se o sujeito trabalhava bem. Ele comprou a
fazenda S. Antônio por trinta contos. No mesmo ano, ele plantou arroz pra
todo lado e o dinheiro do arroz deu pra pagar o terreno! Aí dei uma
reformada geral, coberta pro engenho, casinha pro empregado e fui fazer
a sede. Ela era toda avarandada por fora, eu é que fiz. A outra, sr. Júlio
pelejou com ela mais de seis meis. Eu falei com ele pra meter o machado

344
nela, ele não acreditou. A cabiúna tava toda comida de cupim. Foi D.
Maura que mandou derrubar. Depois fez uma planta grande e eu fiquei a
noite inteira refazeno a planta... Ela e a D. Hortência até carregava tijolo!...
Eu era um empregado que às vez trabalhava até vinte e quatro hora...”
O pai de Geraldo e seus tios, eram fogueteiros. Nas festividades de
S. João, como herdeiro da tradição familiar, era encarregado de soltar
fogos durante todo o dia e com o andar da procissão. “...A coroa no chão,
cê bota fogo nela e o morteiro explodia lá em cima!...” Um dos tios de
Geraldo ficava posicionado no alto de um morro adjacente ao centro da
cidade, de onde lançava várias espécies de fogos de artifício, colorindo o
céu com o fabuloso espetáculo. Sofreu um ferimento numa das pernas
que o fez permanecer numa cadeira de rodas pelo resto da vida. Um
sobrinho seu também foi atingido e perdeu uma das mãos, certo dia.
Histórias de mutilação eram comuns nessa família, não somente, mas
também histórias de esplendores e maravilhas pelos céus, que
encantavam. Nas coroações de Nossa Senhora nas igrejas, por seus
filhos e netos, Geraldo realizava proezas. Muita gente comparecia para
assistir ao espetáculo pirotécnico mais marcante dessa ocasião. Num
dado momento especial destes, um dos morteiros se extraviou e foi cair na
varanda da casa de uma senhora viúva. Houve uma explosão que
arrebentou as vidraças da grande janela que havia e os estilhaços voaram
para dentro da sala. Por sorte estavam a mãe com suas filhas do lado de
fora da casa apreciando o show, somente se assustaram. “...Teve uma
neta minha que foi coroar na roça e quando eu soltei os foguete não ficou
nenhum cavalo amarrado, saiu tudo correno! Numa outra coroação, antes
eu entrei dentro da venda cheia de gente e botei fogo num estopim... saiu

345
gente correno pra todo lado, em cima do balcão, há!... mas não era
bomba, era só pra assustar os outro...”
O filho mais velho de Geraldo, Zé Carlos, desde cedo na vida já
havia demonstrado à todos os frutos de sua personalidade determinada e
responsável, não obstante sua conduta de menino travesso na infância.
Se criou dentro da usina, brincando de esconderijos por entre as
engrenagens da indústria. Os meninos se escondiam também dentro das
casas dos trabalhadores que moravam dentro do grande pátio da usina.
Os rios e riachos que banhavam a cidade generosamente, serviam de
piscina para os habitantes jovens da cidade. Num certo lugar onde
compareciam muitas meninas estudantes da Escola Municipal, Zé Carlos
e alguns de seus amigos costumavam se refrescar em mergulhos no poço
de um córrego farto de águas cristalinas. Durante a década de sessenta,
houve a inauguração da primeira piscina do Clube Romano, Zé não tardou
a comprar uma cota do clube por influência direta de Júlio, que o admirava
pelo trabalho perspicaz como aprendiz que foi, à partir dos doze anos, de
mecânica pesada, pela qual nutria verdadeiro fascínio. Quando começou a
nadar no clube, abandonou quase que por completo os poços dos rios.
Durante a adolescência: “...pegava empregadinha na zona... num dia em
S. Caetano, ela cobrou caro e não acreditava que eu tinha dinheiro pra
pagar, pegou a navalha... Dei a maior sorte! Eu ia pular a janela, mas tinha
grade. Aí por fim amancei ela e os meus colegas me emprestaram um
dinheiro por debaixo da porta. Fui com o Maurinho, ele era um ‘boy’ daqui
de Toulouse, hoje é um boi, gordão, rechunchudo. ...tinha um monte de
zona por aí!...” O sonho que Zé Carlos acalentava desde criança, era ter
seu pedaço de terra para cultivar. Quase todo o dinheiro que recebia de

346
seu trabalho na usina, era poupado no intuito de adquirir uma pequena
propriedade rural: dos doze aos vinte e quatro anos. À partir do momento
em que realizou seus intentos, passou a fornecer canas para a usina. “...O
pagamento era sábado de tarde, direto em dinheiro. Quando acabava o
corte, matava um bezerro, fazia uma festa, era todo mundo... nos terreiros
das fazendas. Saía às cinco horas da fazenda, com o caminhão
carregado, pra usina. Voltava e ia direto pra palha. Deixava o caminhão lá,
demorava uma hora pra encher, dez pessoas encheno. Almoçava, dormia,
descansava. Pegava o caminhão de novo: era uma viagem de manhã,
outra a tarde e uma de noitinha; chegava na usina, o portão fechado, era
uma merda! Tinha que ficar do lado de fora, na fila. Era caminhão pra
caralho! Aí nesse tempo já era só caminhão. Antes aparecia uns carro-de-
boi no meio dos caminhões, mas acabava ino pra rabeira... O dinheiro da
cana dava pra eu viver por um ano...”
Geraldo, idoso, lamenta não poder empunhar uma vara de pescar
sequer e tem muita saudade de seu tempo de pescaria e de trabalho na
usina.

347
Capítulo 98
Tião nasceu nas imediações da antiga usina Jacques Ledoux que
depois passou a pertencer aos Bourdon. Seu pai havia se aposentado
depois de uma vida de trabalho lá. Quando ainda menino, o que mais
gostava de fazer era pegar e se deliciar com as pequenas pedras dos
montes brancos de açúcar. Havia dois ruados de moradores que
trabalhavam na usina, do lado de fora da fábrica, além de seus muros. Do
lado de dentro antes do segundo portão de saída, havia uma estrutura
física de um imenso banheiro com chuveiros, vasos, pias. Depois do
trabalho, suados e cansados, os trabalhadores se banhavam e iam para
suas casas refrescados. “...Pai trabalhava na caldeira, eu levava café pra
ele, enfiava no buraco do portão...” Os meninos brincavam com um arco
de madeira ou de outro material, rodando-os rua afora com uma vareta
curvada na ponta.
Havia somente um grande monte de açúcar. Os homens troncudos
enchiam os sacos de sessenta quilos com suas pás, em cima de uma
balança. Depois outros homens costuravam-nos. Por volta do final dos
anos sessenta o açúcar saía por um funil direto para dentro do saco e
costurado por um sistema mais eficiente que não o manual. Com a
aposentadoria de seu pai, Tião assumiu o seu lugar no trabalho e na casa,
como de costume, senão o velho teria que entregá-la. “...Eu trabalhava na
fazenda S. Sebastião, da usina, fazia esgotamento de brejo, concertava
cerca, cortava cana, tomava conta de turma, trabalhava de pedreiro... Me
enche de orgulho tá lá na minha carteira: ‘trabalhador rural’! Eu conheço a
terra, nasci mexeno na terra, como planta um feijão, um arroz, uma cana,
quando põe calcário... eu descarregava as carroça na mão! O carvão, as

348
roupa no varal, as muié chingava: elas falava aquilo da boca pra fora, não
do coração; a mãe nossa era a usina... era uma família, todo mundo
trabalhava lá, 24hs na safra. Na usina nós não tinha problema de hora-
extra, nós recebia...”
Na segunda metade da década de setenta, Tião saiu da zona rural
e ocupou um quarto pequeno numa casa de uma senhora viúva que
alugava os aposentos da casa, tanto para angariar algum dinheiro quanto
para não permanecer sempre sozinha. Entrou para o trabalho na
amarração, na usina, período em que já haviam três guindastes para içar
as canas dos caminhões. Os caminhões pequenos, suportavam o peso de
oito a dez toneladas aproximadamente. Ele participou de alguns, e
presenciou inúmeros acidentes. Feito o trabalho de engatar os cabos-de-
aço com argolas nas extremidades, que passavam pelo fundo do
caminhão repleto de canas, aos ganchos das correntes do guindaste, para
que este içasse o grande pacote de canas da carroceria do caminhão, o
amarrador se afastava. O guindaste começava a levantar as canas e as
posicionava a uma determinada altura, para que pudesse passar sobre os
pacotes que estivessem armazenados. A ponte rolante do guindaste
andava até um local onde pudesse ser descarregado o peso, sob o teto
coberto da estrutura. Achava um lugar entre os inúmeros outros pacotes
de cana e o descarregava. As pilhas consistiam de cinco, seis pacotes. Se
contudo no ato de levantar as canas um dos cabos arrebentasse, o que
não era raro acontecer, quase sempre nesses casos, os outros cabos
também arrebentavam-se, o pacote de canas caía de onde estivesse. Se
caísse em cima da carroceria do caminhão, esta ficava bastante
danificada, o chacis... Certa vez dois cabos arrebentaram quando o

349
guindaste passava por sobre um amarrador que o esperava passar para
colocar o pacote no lugar por ele indicado, para que pudesse
desacorrentá-lo quando ele estivesse bem assentado – o guindaste então
sairia livre para pegar outro -. Repentinamente ouviu-se os estalos da
ruptura dos cabos e o homem que estava debaixo não pode fazer nada:
somente lançou alguns gritos sufocados. As canas desceram quase todas
de uma vez e o esmagaram. O guindaceiro, que presenciou a tragédia,
ficou atônito e teve que ser substituído por alguns dias.
Tião trabalhou depois na sacaria e em seguida ganhou o contato
com as moendas. Era brequista, aquele que controlava a entrada de
canas nas moendas. O controle era feito na máquina à vapor, em seguida,
apenas por um botão, automático. Tião: “...Quando o depósito tava cheio,
cê desligava o automático dela e... quando dava bucha, tinha que socar as
cana com um pilão de madeira, às vez tinha que enfiar um pau dentro da
moenda pra fazer ela pegar. Ela ficava girando sem conseguir moer, as
cana ficava muntuada na boca e a moenda não pegava. As faca da esteira
picava demais as cana e as moenda não pegava: era 10.
O Jean-Paul é que era federal! Meu tio era pucha-saco dele e ele
era pucha-saco do meu tio tamém. Meu tio gostava muito do Jean-Paul, foi
um guarda-costa dele. Um dia meu tio vai e come uma menina, deu um
rolo danado! O pai dela era metido a brabo! O homem falou que o meu tio
tinha sido o primeiro... Jean-Paul armou com ela e o assunto morreu...”
Diziam que a turma de Jean-Paul numa noite chuvosa, amarrou um
bêbado num poste e que abusaram sexualmente do rapaz. Que eles
aprontavam autênticas arruaças na cidade, desde andarem de carro
buzinando exibindo algumas bundas coladas nos vidros, até serenatas

350
muito barulhentas, anarquiadas, até que os moradores chamassem a
polícia..
Corciano, inimigo político de Jean-Paul, esfaqueou um homem
numa contenda por causa de uma mulher. Foi preso em flagrante delito,
quando desferia o golpe. O delegado o levou imediatamente para a sela
na cadeia e permaneceu com ele dentro do recinto. Deu-lhe uma faca e o
incitou até que ele avançasse. Quando isso aconteceu, este tomou uma
surra dos punhos do delegado até quedar com muitos ferimentos. Tião:
“...Jean-Paul era zangado igual a um cachorro! Ele saía correno atrás das
mulher... as mulher ficava doida! Ele não tava nem aí. Tava muito novo, o
negócio dele era gandaia. Trabalhava mesmo, mas fazia muita gandaia!...”

351
Capítulo 99
Pelo curto período que Cacá esteve na balança da usina S.
Marcos, durante a década de sessenta, quando saía de lá, demonstrava
claramente por todo o seu corpo, o estado de exaustão e estresse à que
era submetido. Não poderia haver sequer um momento de parada, dado o
excesso de caminhões em fila. “...Eu falava com a minha mulher pra não
mandar nem peixe nem carne com osso. Não tinha prazo pra tirar espinho
do peixe... tinha que ser um frango desfiado... o estômago da gente quase
embrulhava: doze horas de trabalho, depois tomava um café lá... às vez a
gente levava alguma coisa pra comer...”
Havia o escultor, que apreciava muito o desenho mas que acabava
por realizar mais esculturas. Presenteava aos companheiros de trabalho
um prato de cerâmica por ele mesmo forjada com o rosto do presenteado
em alto relevo. Era sua distração, seu talento, sua forma de expressão
artística. Fez uma escultura de tamanho natural, em 1972, de uma pessoa
que havia aparecido algumas vezes em seus sonhos, desconhecida, uma
mulher sóbria, mas envolvente, em madeira. Enquanto ele estava às
voltas com a obra, ela aparecia, mas quando a obra chegou ao fim, ela o
deixou para sempre. Outras vezes: “...Ele ia olhano procê e ia te
desenhano. E quando cê saía ele falava: ‘Cê esqueceu seu retrato
aqui!?’...”
Cacá também trabalhou com o bombeiro chefe que inspecionava e
reparava os estragos de todo o sistema hidráulico e de esgoto. “...Quando
dava enchente, tinha que parar de moer! A água invadia o pátio da usina
todinha, ia água perto da caldeira! As bomba que jogava água do rio pra
usina, ficava na beirada do rio... entupia tudo!...” Alex Bourdon instalou um

352
pára-raios no alto da segunda chaminé erigida em meados do século,
depois de um trágico incidente em que um raio caiu numa das casas da
usina em frente à esta, do outro lado da rua. Havia na casa a mãe com
seu bebê, que foram calcinados: um incêndio se formou e restaram
poucos vestígios do que havia dentro da casa. Cacá sentia verdadeiro
pavor em noites de chuva torrencial, mas nunca haveria de ter problemas
com os relâmpagos. Se ressentia de uma fraqueza pelas canas-mantiga e
assediava os caminhões que ficavam estacionados no pátio aguardando a
hora de descarregar. Quase sempre se desentendia com algum dono de
caminhão que o flagrava retirando algumas unidades da carroceria. “...A
cana era muito boa, quase sem dente cê chupava ela... o dono do
caminhão ficava igual um doido... era bonito o movimento, dava gosto,
ninguém reclamava... circulava o dinheiro, o comércio funcionava. ...
Sempre teve muita bicicleta, mas agora em 1980, na usina que era
chamada Jackes Ledoux, tinha mais. O sujeito chegava pro trabalho, tinha
uns cavalete que prendia a roda da bicicleta... cada um com seu cadiado...
e bicicleta nova, né?! O dinheiro aparecia no final do mês mesmo, então o
sujeito fazia dívida... O movimento de caminhão tamém era grande, saía
com açúcar e com melaço... fazia fila pra carregar açúcar e álcool...”
Cacá, trabalhador do parque industrial da usina, que havia
encerrado suas atividades permanentemente, recebeu algum dinheiro
durante alguns meses, que lhe foram de grande valia, ante à situação de
insolvência da empresa, mediante acordo firmado em Juízo. Antes de sair
do trabalho em definitivo, Cacá via e empresa se esvaindo, o movimento
de pessoas diminuindo, as atividades sendo suspensas. Saques de toda
maneira surgiram em meio à falta de uma liderança, instalou-se o espírito

353
da máxima “salve-se quem puder”, isso já na primeira metade dos anos
noventa. Quando percebeu o caos se apropriando de tudo, resolveu
abandonar seu posto de trabalho, temeroso de ser envolvido em conluios
e situações ingratas, já que se primava pela discrição e pelo cumprimento
de seu dever. Um período de guerra dominou as relações empregatícias
da empresa, somando a isso, a carência de recursos para se sustentarem,
os muitos empregados que já não recebiam seus salários, meses à fio.
Todos sofreram muito, a lentidão dos acontecimentos que gritavam por
ajuda imperiosa, sufocava, reduzia à esses dezassistidos a uma condição
de penúria, uma vez que dependiam dos recursos que recebiam por seus
trabalhos, para se manterem e às suas famílias. “...sofri muito, todo mundo
recebeno atrasado... recebia um pagamento e a hora que chegava no
açougue ou na venda, não dava nem pra pagar as dívida, ficava tudo
acumulado!... oh! tempo!... não sei como é que alí dentro não deu um
desespero... Nossa Senhora! Eu tava com esses menino aí tudo
pequeno... lá na usina, quando o sujeito abria a marmita, dava dó!! Se ele
tivesse comida, deixava em casa pros menino... Fazia farinha suada,
aquilo inchava o estômago, com água... A Maria falava que aquilo era vida
de cachorro!...”

354
Capítulo 100
A primeira metade dos anos sessenta trouxe uma forte
necessidade de se economizar os recursos disponíveis, na usina Jackes
Ledoux; um período de crise financeira se instalou. A nova administração
comprou uma máquina de trem, à óleo, muito pesada, que fez com que
ocorressem vários acidentes. Arlindo: “ ...a linha não guentou. Passou a
tombar, caía as cana... Num dia, ela caiu num buraco, ês amolô e vendeu
os trilho de linha, as máquina, os vagão... e botô carreto e caminhão, trator
puchano... e aumentou a mão-de-obra tudo! Aumentou as despesa de
particular tudo! O carreto era mais caro e pra encher os caminhão tamém.
... O lugar de por a cana era o picadeiro. A máquina largava os vagão num
trilho do lado. Um homem sozinho enchia o dia inteiro, enchia até trêis
vagão por dia. Panhava dezoito carro de cana sozinho, por dia. Trabaio
não mata, não, viu?!...”
Com o advento dos caminhões, depois do reinado das carroças, o
transporte de canas encareceu e a oferta de trabalho no campo foi
reduzida. Alguns requisitos essenciais eram necessários para que uma
pessoa pudesse exercer a função de carregar de canas os caminhões. A
força e a disposição físicas eram qualidades obrigatórias, o que
descartava as pessoas mais velhas e os menos vigorosos. Uma máquina
que surgiu nos anos oitenta, cujos tentáculos erguiam e depositavam
dentro das carrocerias dos caminhões, os feixes de cana dispostos no
chão, depois de cortados, contribuiu muito para o desaparecimento de
muitos postos de trabalho. A usina S. Marcos passou a prestar esse
serviço de mecanização para as lavouras de seus fornecedores,
barateando-lhes a colheita. O pagamento do serviço à usina era

355
descontado do pagamento que esta faria pela compra das canas aos seus
proprietários.
Pelo final dos anos oitenta, a lacuna de uma direção eficiente e
fiscalizadora, de forma prolongada, havia fabricado seus vícios de
comportamento dentro da empresa. No campo, Wander: “...depois que os
Bourdon compraram a usina Jackes Ledoux, apareceu uns carro correno
as lavoura... os homem ficava era conversano e matano serviço ...tinha os
bombeiro... eles ficava à toa o dia inteiro!... era a esperteza... o sujeito
ativo, capinava aqui em baixo e lá em cima o bom capinador fazia o
trabaio bem feito... e o pagamento era na base da produção. Uma
produção que era no prejuízo, né?! O camarada que não capinava direito,
o colonião muntava em cima!... Antes só tinha o capim angola. O colonião
cabou com tudo! Cê vai nessas beira de rio cê não vê mais um pé de
angola! Daqui a Lídice, na beira do rio, é puro coronhão!... ... Já me
chamaram pra servir de testemunha falça em processo contra a usina e eu
não fui, não! Eu não gosto de falar mentira! Eu sou um homem honesto.
Trabaiei até o último dia com a saúde que Deus me deu e depois posentei.
Criei quatro filho e dois adotivo. Teve uma vez que eu doeci e nós ficamo
quase na miséria. Quase fiquei pelado, sem roupa pra vestir!... Foi duro!
Meus filho é que ajudaram, trabalhano nas duas usina...” Depois de certo
tempo, pela sua esperteza, discernimento e bom relacionamento com
todos, foi promovido ao setor de atendimento ao fornecedor, no pátio da
Co.. Fazia coleta de dados dos terrenos dos proprietários rurais para que a
empresa pudesse incentivar o plantio de canas, portando todos os dados
possíveis para conhecimento de cada situação em particular. Quando se
estabeleceu uma condição de atraso de pagamento aos funcionários,

356
tempos ruins se anunciavam. Propostas de escambo foram feitas aos
fornecedores de cana pela usina: em toca de certa quantidade de canas,
um saco de açúçar. Alguns se rebelaram sob argumentos calcados no
conhecimento que tinham das condições relapças da direção da empresa
quanto à fiscalização em todos os seus aspectos, internamente. Sabiam
quanto à desvios de materiais de toda espécie, fraudes, que provocavam
as crises dentro da instituição. Ameaçavam mudar de culturas, mas
quando viam que precisavam vender suas canas, aceitavam as regras da
usina e repassavam os sacos para as mercearias e armazéns da cidade.
Giusepe havia conquistado a simpatia de Giuliano, o administrador
italiano, da empresa, depois de sua venda para estes; e se tornou seu
amigo de conversas depois de seu expediente de trabalho, às vezes, ou
quase sempre, tomando umas cervejas num bar próximo à casa de
Giusepe. Este, passaria a ser um espião de Giuliano, para lhe contar o
que descobrisse sobre a empresa, informalmente. A primeira surpresa que
aquele teve, foi saber que o porteiro, antigo, batia cartão para alguns
funcionários que não compareciam. Sr. Gaspar, quase aposentado,
recebeu a visita alertadora de Giusepe: “...Sê arregala os zói, que D.
Arlete vai botar o pé no seu rabo!...” Os italianos proprietários da empresa
passavam por um período de sérias divergências pessoais e isso refletiu
contundentemente na administração geral, fazendo com que a derrocada
do império sucro-alcooleiro fosse fatal. Todos os envolvidos, desde os
trabalhadores até os donos, passaram por sérias dificuldades. Houve
alguns suicídios motivados pelas condições precárias à que foram
submetidos, isso, em todos os escalões, os trabalhadores, indefesos ante

357
às graves circunstâncias que culminaram na liquidação total da
Companhia.

358
Capítulo 101
Um dia um rapaz caiu dentro da canaleta de vinhoto quente perto
da destilaria, somente não queimou a cabeça, que conseguiu manter fora
do líquido ardente. Sofreu queimaduras de segundo e terceiro graus, mas,
sobreviveu. Haviam vários tanques de melaço e álcool, o maior de álcool
comportava dez milhões de litros. Fala Marcondes: “...Todo dia eu subia
nos tanques... Um dia tava choveno muito, deu faísca, descarga elétrica e
o fogo pegou, foi aquela explosão! Formava gases alí... Chegou eu e mais
uns caras, tava aquele fagaréu! Meu irmão correu e fechou o registro da
destilaria que mandava o álcool pro depósito. O fogo podia ir pelo
encanamento... aí chegou o corpo de bombeiros e jogou água...” Por toda
a pequena cidade podia-se ver o clarão nos céus e uma nuvem de fumaça
gigantesca, algo fenomenal.
“...Teve um dia que cheguei em casa e ... já tinha trêis enxame de
abelha na casa, aí fui ver, as abelha tinha matado galinha, macaco... o
beiço do meu irmão ficou desse tamanho, oh! De noite, eu e meu irmão
fizemo duas bucha com gasolina e queimamo tudo!...” Marcondes ainda
tomaria algumas boas picadas de abelha onde trabalhava, no parque
industrial. Dois enxames se criaram à revelia dos predadores de toda
espécie e foram ficando fortes. Em certo momento desferiram um ataque
generalizado e todos num raio próximo foram vítimas das ferroadas.
“...Tomei muita picada! Ês tiraram da minha cabeça... Nego correu
mesmo! O Manoel ficou rolano no chão...”
A água destinada a refrigerar os condensadores era proveniente do
rio Ululu. Um canal artificial adentrava ao pátio da usina e levava a água
até as bombas da destilaria de álcool. As leis em prol da questão

359
ambientalista, disciplinado as atividades, chegaram tarde demais. Na
descida da água do canal, pegava-se muitos peixes. As águas do rio
foram diminuindo e para que elas atingissem as bombas foi necessário
instalar um sistema de comportas. Com o passar dos anos as águas
continuaram baixando...
Paulo: “...Eu aposentei em 1989. Eu fiquei até os últimos dias da
usina. Aí tentaram fazer mais uma safra... no fim, ninguém decidia nada...
ninguém sabia o que fazer, ficava todo mundo parado. Depois acertou
com todo mundo na Justiça... Tem muita gente que foi prejudicada com
isso, não só o pessoal da usina, mas do comércio da cidade. Era 3500
pessoas cortano cana. Teve o manifesto do Partido do Povo e teve
algumas greves: por melhor salário... esse pessoal é que iludiu ês... ês
foram muito manipulado pela politicagem da época. ...depois que o
pagamento parou o pessoal aguentou um mês. Ês ia, batia cartão e não
fazia nada. Aí venderam fazenda pra pagar nóis... ...o fim foi dramático!
...até hoje eu sinto falta da usina, o ambiente era legal. Eu chegava às
cinco da manhã... mas ês me chamava à qualquer hora por causa de
algum problema... cê precisava de ver que o pessoal trabalhava é com
prazer mesmo! Era uma boa vontade, coisa impressionante! Esse pessoal
daqui dava show no pessoal lá de fora! O ambiente lá fora é só pra te
entragar. Ês acha que cê chega pra pegar o lugar dês.! É horrível!... ...o
pessoal trabalha tudo amarrado aí fora. Uma vez quando vêi um pessoal
de Porto Seguro pra visitar a usina, ês achava que sabia de tudo, ôh
pessoal convencido! ... Eu cheguei a trabalhar numa outra usina, o dono
tinha doze filho... lá ês milindrava a gente! Era uma fofocaiada danada!...”
Capítulo 102

360
Alfredo foi chefe da destilaria por seis meses: “...Eu não gostava de
conversa fiada e nem que nego saísse do posto... O Onório tinha uma
saúde muito ruim, pulmão, o estômago... eu via ele com as mão na
cabeça: dor-de-cabeça. Morreu de uma hora pra outra, coitado, ainda
bem, é melhor do que ficar penano...”
O irmão de Alfredo, Rômulo, começou aos dezesseis anos na
usina, trabalhando com os cristalizadores. Foi para a moenda e ganhou
em pouco tempo a oficina de aprendizagem de rolamento de motores e
oficina elétrica. O chefe da manutenção de motores, não ensinava seu
ofício em particular à ninguém, com medo dos concorrentes certos.
Trabalhava aos domingos durante a safra realizando reparos,
substituições de peças. “...Sempre tinha dois de plantão. Quando ês não
dava conta, ês buscava a gente onde a gente tava, ês tinha que saber
onde a gente tava. Dava muito problema de turbina. Ês chamava a gente
duas da manhã, trêis, no período de safra. As turbina eletrônica dava
sempre problema...” Com a aquisição da usina Jackes Ledoux pela usina
S. Marcos, esta, passou a dar nome àquela, que passou a receber todo o
maquinário da antiga, que desapareceria. “...Eu fui transferido pra outra
usina. Mandaram embora muncado de gente. Todo mundo recebeu em
cima do direito. Quando acabou a usina S. Marcos, o comércio sofreu
muito... muita gente desempregada...” Flávia: “...Esse povo não pensa na
história de todo mundo, que era a usina... Deviam ter deixado os
maquinario velho da usina S. Marcos pra contar a história. Imagina que
beleza cê entrar na usina e ver aquilo tudo lá... Ia servir de ponto turístico
de Touluose, mas... esse país não tem memória!...”

361
O pai de Alfredo e de Rômulo trabalhava na usina e foi criado nas
suas imediações: “...O ronda metia canada na gente! Ele ficava doidinho!
Era um ronda só. A gente mandava a turma pros caminhão que tinha cana
ruim e ia pro outro de cana manteiga... Ês passava em frente ao portão de
casa. Uma vez nós ficamo de castigo, aí o pai levava cana pra nós... não
podia entrar na usina, mas a gente entrava assim mesmo...” Os meninos
surrupiavam peças e fios de cobre na oficina elétrica e vendiam para o
comércio de ferro-velho. Havia alguns motores grandes que queimavam e
de onde eram retirados de vinte a trinta quilos de cobre, bronze... Ainda
menino Rômulo presenciou um fato que o perturbou por muito tempo. Um
dia quando estava chegando com uns amigos perto de uma bomba, no
pátio da usina, às margens do rio, observou, assim como todos também,
um homem correndo apavorado, em sentido oposto. Gritava que nunca
mais voltaria àquele lugar .Disse à quem encontrou que havia avistado um
homem todo de branco atravessar o rio sobre suas águas, a flutuar.
Tiveram que substituí-lo porque não mais voltaria ao lugar da aparição.
Silvério: “...Sr. Júlio subia as escadas lá e ficava veno os homens fabricar
açúcar... isso em 74... à noite sempre, duas, trêis hora da manhã, tava ele
lá conóis lá... em época de chuva desarmava muito a distribuidora, tinha
que ir lá rearmar. Quando começava a relampejar, a gente já ia correno...
... Jean-Paul me deu muita coisa, jogo de camisa... A gente ia e
pedia, ele dava o vale e a gente ia pegar.. No domingo a gente tava de
uniforme novo, bola nova... Ele deu muita coisa pros outros. A casa dele
ficava cheia de gente. Ele era muito popular. Se cê tinha apelido, ele
chamava ocê pelo apelido. Pra ele tudo tava bão! Ele batia papo com a
gente, cê parava ele no meio da rua... Procê falar com Pierre, tinha que ir

362
no escritório dele e marcar horário. Ele era fechado... bebia e dormia
demais. O Jean-Paul jantava sempre fora com os colega dele, da usina...”
Antes havia um time profissional da usina, que disputava os
campeonatos regionais. Essa forma de abordar o esporte do futebol foi
abandonada em prol de um campeonato interno, da própria usina. Houve
incentivos no sentido de que cada fazenda montasse seu time para
disputar entre si. “...Era muitos time, tinha time bom. O negócio pegava
fogo! O pessoal das fazenda vinha e voltava pras fazenda de caminhão da
usina. Ês pegava jogador de todo lugar e enxertava, pra ganhar...” Num
dado domingo quando haveria um jogo muito disputado e esperado pela
torcida, eis que o céu anunciou chuva. Uma imensa nuvem densa
acinzentada escureceu o campo, se aproximando lenta e pesadamente
como se fosse desabar. Relâmpagos e trovões riscavam o céu em meio à
ventania que se formou. Começou a chover pingos grossos e em pouco
tempo caíam pedras de granizo de vários tamanhos. O tumulto foi geral e
quando a tempestuosidade cessou haviam muitos feridos e alguns mortos.
As pedras de gelo se espatifaram no chão e aqueles que não conseguiram
se esconder foram esmagados pela violência da chuva.
Certo dia, passando perto do depósito de canas, Silvério assistiu a
uma cena desalentadora. Um dos amarradores que se posicionava de pé
sobre um pacote de canas, este, sobre dois outros, dava sinal para o
guindaceiro descer o pacote que o guindaste segurava suspenso. De
repente, os cabos-de-aço se arrebentaram e a carga pesada caiu sobre o
homem. Nove toneladas. Os companheiros que presenciaram o fato
imediatamente correram para lhe prestar socorro. Puxaram-no entre as
canas e chamaram a ambulância. O homem ferido gravemente não

363
resistiu aos ferimentos. Num outro acidente da mesma espécie, as canas
do guindaste caíram em pé, porque alguns cabos não cederam e o pacote
de canas foi caindo vagarosamente. O homem que recebeu essa chuva de
canas caindo verticalmente sobre ele, sofreu uma lesão irreversível num
dos olhos, mas depois de algum tempo, retornou ao trabalho. Rômulo não
se dava bem com Lauro: “...Era muito sistemático! Seco, ninguém
conversava com ele, só no trabalho. Ele trabalhava na evaporação. Não
aceitava brincadeira, não! Cê conversava, ele respondia, só. Êh sujeito
difícil! Ele não ajudava a gente: ‘...esse problema é seu, eu não tenho
nada com isso’... já o sr. Dirceu era gozador demais, falante! Ninguém
apelava com ele porque ele era velho de casa...” Alguns empregados
levavam para suas casas em suas vasilhas de almoço, certa quantidade
de açúcar, às vezes contando com a conivência do porteiro do turno.
Muitas vezes, para adoçar o café. Quando essa prática se popularizou, foi
coibida peremptoriamente. Alguns outros mais astutos e ousados,
escondiam sacos de açúcar nos caminhões de borra – subproduto do
açúcar e do álcool – e cruzavam os portões do pátio da usina. Na época
dos franceses, na Usina Jackes Ledoux, os sacos eram jogados por cima
do muro e colocado sobre as plataformas dos carros-de-boi, que os
levavam embora. Quando os Bourdon compraram essa usina, além de
sucateada, seus funcionários ficaram cinco meses sem receber seus
ordenados. O açúcar passou a valer como forma de pagamento, era
trocado por mantimentos nos armazéns da cidade, ou vendidos. Com a
usina, seguiu-se uma dívida trabalhista devido à falta de pagamento dos
empregados por alguns meses, resolvida com acordo entre as partes,
mediado pela Justiça. Seus donos antigos, se apressaram em retirar os

364
objetos dignos de sua atenção nas casas, dependências da indústria e
terrenos adjacentes. Uma vez acertados os pagamentos, aqueles
selecionados para continuarem trabalhando, não alteraram seu cotidiano e
em pouco tempo foram agraciados pelo Banco do Estado de Jardim, com
talões de cheque. Isso haveria de ser um episódio infeliz, os cheques sem
fundos apareciam volumosamente. Quando o banco se deu conta de que
deveria suspender a emissão de talões de cheques para esses
trabalhadores, o fez rapidamente.

365
Capítulo 103
Eustáquio entrou na usina no princípio da década de noventa,
como soldador e depois passou a caldeireiro. “...Fazia a tubulação pra
açúcar, ... vapor, esses troços... de garapa...” Não aguentaria o trabalho
pesado na indústria, permaneceria por dois anos somente. “...No final de
semana, o camarada pegava o caldeirãozinho dele alí e comia uma
comida sem carne... era triste!...” Pouco antes de sair, Eustáquio foi
apresentado a um homem que o administrador italiano havia contratado
em Bela Vista para conter gastos e economizar ao máximo os recursos da
empresa. Este quis que Eustáquio fizesse uma lista de pessoas que não
eram imprescidíveis naquele momento, nas funções que exerciam, para
que fossem exoneradas. Foi repelido com violência. Esse foi o estopim
que deflagrou sua saída da empresa. “... Nunca fui dedo-duro!... e meus
amigo antigo de trabalho...” Muitos outros funcionários também foram
obrigados a deixar a usina, inclusive aqueles antigos, em contagem
regressiva para se aposentarem. Este homem na verdade era um
tremendo vigarista, que acima de tudo, enxergava os meios pelos quais
poderia lesar a empresa, surrupiando-a. Astuto e dissimulado, sem o
menor escrúpulo, roubava o que fosse susceptível de ser carregado, na
primeira chance. Ocasionou prejuízos de várias espécies... Antes de ser
descoberto simplesmente desapareceu.
“...No princípio de 1990, a turbina deu um disparo e não desarmou
no automático! Ela adquiriu tamanha rotação que o eixo estourou e
danificou o conjunto todo de nivelador. Voou estilhaço pra todo lado! Ainda
bem que não tinha ninguém por perto!...”

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Não obstante o processo falimentar da usina ter-se dado pelas
mãos dos italianos seus proprietários, o interesse de seus patrícios por
Canela aumentava à cada ano. As inesgotáveis regiões de litoral foram as
mais requisitadas. Por toda parte, via-se levas de italianos chegarem e
abarcarem quantidades de terras crescentes. As praias de todo tipo
produzidas por Canela fascinaram estes imigrantes sazonais, que
chegavam nos períodos de verão e assambarcavam-nas sequiosos de
suas belezas naturais. Diz Arlindo: “...Agora os italianos tão comprano
tudo em Canela!...”

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