Monografia Elisa Campanario

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Universidade Federal de São Carlos

Centro de Educação e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia

Elisa Villaça Campanario

O arquétipo materno sob a luz da psicologia analítica de


C.G. Jung

Monografia apresentada ao Departamento de


Psicologia da Universidade Federal de São
Carlos como requisito parcial para obtenção do
grau de bacharel em psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Leonardo C.P. Câmara

São Carlos, SP
Fevereiro de 2024
Agradecimentos
Ao meu orientador Leonardo Câmara, pela sabedoria contagiante e pela paciência
nessa longa jornada, mesmo nos períodos de escassez. À minha querida amiga Heloísa, que é
como um sol Nascente a iluminar minhas ideias, pelo acolhimento e incentivo quando tudo
parecia escuro. Ao meu querido amigo Sebastian, pelas trocas, dicas e pelo incentivo em
continuar estudando a psicologia analítica de Jung, que também é de seu grande interesse.
Vocês contribuíram para que, com muito custo, algumas lágrimas e alguns sorrisos, esse
trabalho finalmente ficasse pronto, e por isso sou muito grata.
Resumo
A psicologia analítica, desenvolvida por Carl Gustav Jung, tem algumas de suas bases
na psicanálise, mas criou uma vereda própria ao explorar conceitos como o inconsciente
coletivo, os arquétipos e o simbolismo, temas que são investigados neste trabalho.O estudo
desses temas nesta monografia toma como enfoque o arquétipo materno, justamente pelo
significado simbólico de criação, morte e renascimento, e também porque mãe todo mundo
tem. Considerando, então, que a experiência da maternidade existe universalmente,
representada pelas nossas próprias mães e essencialmente internalizada em todos nós, a
relevância deste tema é considerável. Para ilustrar a abrangência do arquétipo escolhido, o
texto passa pelo mito de Deméter e Perséfone, que ilustra bem as potências e ambivalências
do mesmo, tomando como metáfora os ciclos da natureza, que regem, além de nossas vidas, a
agricultura. Assim, esta monografia observa como a força dos conceitos estudados por Jung
nos atravessam enquanto seres humanos, desde nossos primórdios até os dias de hoje e
continuará afetando enquanto houver humanidade.
Palavras-chave: arquétipo; arquétipo materno; inconsciente coletivo; simbolismo; psicologia
analítica.

Abstract
The analytic psychology, developed by Carl Gustav Jung has some of its basis on
psychoanalysis, but created a way of its own by exploring some concepts like the collective
unconscious, the archetypes and symbolism, themes that are investigated in this paperwork.
The study of these themes in this monography takes as a focus the mother archetype, precisely
because of the symbolic meaning of creation, death and rebirth and also because everybody
has a mother. Considering, then, that the maternity experience exists universally, represented
by our own mothers and essentially internalized in everyone of us, the relevance of the theme
is considerable. To illustrate the coverage of the chosen archetype, the text passes by Demeter
and Persephone's myth, which illustrates well the powers and ambivalences of such, taking as
a metaphor the nature cycles, that govern, beyond our lives, the agriculture. Thereby, this
monography observes how the force of the concepts studied by Jung crosses us as humans,
since our beginnings until today and will continue to affect while there is humanity.
Key words: archetype; mother archetype; collective unconscious; symbolism; analytic
psychology
“Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n'algum lugar
Ressuscitar no chão nossa semeadura”
Gilberto Gil
Sumário

1. Introdução 3
2. O Conceito de Arquétipo 4
3. Simbolismo 7
4. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo 9
5. O Arquétipo Materno e seus Complexos 12
6. O mito de Deméter e Perséfone 16
7. Considerações Finais 19
Referências 20
3

1. Introdução

Este trabalho nasce do interesse sobre a psicologia analítica de Carl Gustav Jung
(Suiça, 1875 - Suiça, 1961) em especial seu aprofundado estudo sobre os arquétipos, essas
“formas primordiais” que habitam nossos inconscientes, tanto o coletivo como o individual.
Sendo parte da estrutura da nossa psique, os arquétipos são possibilidades de manifestação
simbólica, ou seja, fazem parte da nossa estrutura humana enquanto um poder vir a ser,
considerando a maleabilidade de suas manifestações. Esse simbolismo carrega entendimentos
basais sobre a vida humana e os mistérios do mundo. O enfoque no arquétipo materno se dá
justamente pelo seu significado simbólico de criação, morte e renascimento, e também porque
mãe todo mundo tem.
Além disso, sendo a psique o principal objeto de estudo da psicologia, há que se
considerar o contexto e as influências externas, remotas e inconscientes que atuam no
desenvolvimento do nosso psiquismo, sendo o arquétipo materno um grande pano de fundo
sobre o qual se desenrolam nosso crescimento e relações. Assim, para estudar o arquétipo
materno, o presente trabalho abordará alguns conceitos básicos de Jung, como arquétipo,
simbolismo, inconsciente coletivo e complexos. Para exemplificar a potente influência dos
arquétipos (em especial o materno) na vida humana desde tempos incontáveis, partiremos do
mito grego de Deméter e Perséfone.
4

2. O Conceito de Arquétipo

O conceito de arquétipo é fundamental na psicologia analítica de Carl Gustav Jung e


está intimamente relacionado com a ideia de inconsciente coletivo. Embora muitos atribuam a
Jung a criação do conceito de “arquétipo”, sua origem remonta a tempos muito anteriores e a
localidades diversas, talvez justamente por ser fruto do inconsciente coletivo. De qualquer
forma, o estudo aprofundado acerca dos arquétipos, do inconsciente coletivo e do universo
que os cerca, é uma marca no trabalho de Jung que o diferencia da psicanálise como existia
até então, abrindo espaço para a psicologia analítica, que ele próprio fundou (Bonfatti et al.,
2018). Após passar muitos anos referindo-se a “dominantes do inconsciente coletivo” e
“imagens primordiais”, o autor passa a utilizar a palavra “arquétipo” a partir de 1927
(Jolande, 1957/2016).
Influenciado pelas ideias de Platão e Kant, Jung (1959/2014) explica que a expressão
"arquétipo" já existia na Antiguidade e era sinônimo de "ideia" no sentido platônico. Havia,
aqui, algo como uma noção rudimentar do que veio a se transformar, em grande parte por
causa da teoria junguiana, no conceito de arquétipo que usamos atualmente. Da filosofia
kantiana, Jung adota a noção de que a estrutura individual inata da psique pré-consciente e
inconsciente é um fator apriorístico em todas as atividades humanas. Esses conceitos
filosóficos que consideram que há algo dado no humano são aprofundados por Jung no
desenvolvimento de sua teoria dos arquétipos, considerando que esses fatores influenciam
instintivamente nossa maneira de viver.
Para a compreensão deste conceito, é importante o entendimento de que todos os
animais possuem uma psique pré-formada, característica de sua espécie. O humano também
tem a sua própria. Da mesma forma acontece com as “imagens primordiais” ou arquétipos,
uma vez que, como traz Jung (1959/2014), grande parte do que é psíquico é pré-formado.
Sendo então o arquétipo uma condição estrutural da psique, é possível dizer que os arquétipos
são, de certa maneira, uma potencialidade inata para a forma da sua representação. Ou seja, há
no humano uma estrutura psíquica que permite que certos conteúdos emerjam representados
através de uma mesma estrutura arquetípica. O que é herdado, portanto, não são as ideias, mas
a forma de representação das ideias, que se dá pelos arquétipos. Esses padrões arquetípicos
influenciam nossa percepção e interpretação do mundo e moldam nossa experiência. Essas
formas, ou estruturas, também correspondem aos nossos instintos e determinam nossa
resposta aos estímulos do ambiente.
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Os instintos são, na psicologia analítica, além de impulsos fisiológicos percebidos


pelos nossos sentidos, “fatores impessoais, universalmente difundidos e hereditários, de
caráter mobilizador” (Jung, 1959/2014, p.52) e frequentemente afastados da consciência.
Formam uma rigorosa analogia com os arquétipos, uma vez que as suas manifestações, que se
dão através de imagens simbólicas na nossa fantasia criativa, são os próprios arquétipos
(Jung, 1964/2021). Assim, os arquétipos acabam por representar o comportamento instintivo.
Segundo Jung (1959/2014), uma imagem primordial só pode ser determinada em
termos de seu conteúdo quando se torna consciente e é preenchida com material da
experiência consciente. Isso ocorre porque tudo o que vem do inconsciente para o consciente
é uma representação. Daí a necessidade, que Jung ressaltou diversas vezes em sua obra, em
especial em seu ensaio O Espírito da Psicologia, de 1946, de saber diferenciar o arquétipo
“em si”, potencial, do arquétipo perceptível, “representado” (Jacobi, 1957/2016). O arquétipo
"em si" é o que repousa no inconsciente coletivo e, portanto, não pertence à psique individual
do indivíduo. Já o arquétipo perceptível é aquele que é representado pela consciência do
indivíduo, preenchido com materiais individuais de sua experiência e tornado, assim, imagem.
Considerando-se, então, a potencialidade inerente ao arquétipo, é possível dizer que o mesmo
é um poder vir a ser e, uma vez que toma forma na consciência, já não é mais o que era antes,
então mera possibilidade facilitada pela estrutura.
Hoje muitas vezes usado de forma conceitualmente inadequada, a ideia de arquétipo
realmente não tem uma definição fechada, até porque os conteúdos manifestos se reinventam
sempre (Jacobi, 1957/2016), assim como o modo de viver em sociedade. No entanto, é
compreensível o uso cotidiano do termo para referir-se a padrões que são associados a certos
modos de estar no mundo. Sua própria etimologia contém essa ideia: “arque” significa
origem, causa, e “tipo” significa protótipo, forma, imagem (Jacobi, 1957/2016). Quando
pensamos em arquétipos, sem aprofundar no estudo do conceito, provavelmente vem à mente
da maioria das pessoas um conjunto de características clássicas que todos reconhecem de
alguma maneira. Isso porque confundimos o padrão estrutural dos arquétipos com os
conteúdos a partir dos quais eles se manifestam e que, às vezes, se repetem. E repetem-se
porque é no ato de ser humano que desenvolvemos nosso mundo simbólico e nosso
imaginário, tanto individual quanto coletivo. É também por essa repetição que surgem muitos
dos enganos acerca dessa teoria.
De acordo com Jung, o arquétipo é uma possibilidade latente presente na estrutura
psíquica do indivíduo, que pode ser atualizada de diferentes maneiras conforme a vida
exterior e interior de cada um (Jacobi, 1957/2016). Essa atualização ocorre sob a forma de
6

imagens ou padrões que são produzidos quando determinadas condições internas e externas se
manifestam. Embora possam ser identificados traços básicos que se repetem na recorrência
dos arquétipos, cada manifestação é única e depende de fatores individuais e históricos
(Jacobi, 1957/2016).
Dessa forma, é possível afirmar que o arquétipo não é uma representação fixa e
imutável, mas sim uma possibilidade de manifestação - dada por imagens, símbolos e
pensamentos - que pode ser atualizada e diferenciada de maneira incomensurável,
considerando a influência da cultura conforme a passagem do tempo na humanidade. Nesse
sentido, é importante compreender que a recorrência dos arquétipos não implica em uma
identidade total entre eles, mas sim em uma semelhança que se manifesta através de traços
básicos. Por isso, a interpretação dos arquétipos requer uma constante renovação e
atualização.
7

3. Simbolismo

A psicologia analítica de Jung é uma teoria que explora a estrutura e o funcionamento


da mente, bem como os processos psicológicos que influenciam o modo humano de estar no
mundo. Dentro dessa área de interesse, o simbolismo, como “o conjunto dos processos de
representação que aparecem na consciência remetendo a conteúdos ou eventos distantes desta
e, portanto, inconscientes” (Simbolismo, 2022), é um conceito importante que ajuda a
entender como o indivíduo constrói sua subjetividade, como elabora suas experiências
internas, e como isso influencia suas vivências e relações interpessoais. Além disso, é um
conceito fundamental para compreender os arquétipos.
A psique humana possui a capacidade intrínseca de criar e interpretar símbolos, sendo
que a base deles é uma forma arquetípica dada pelo inconsciente1, e a imagem manifesta vem
a partir de ideias que o consciente adquiriu. Ou seja, qualquer representação arquetípica com a
qual temos contato, só o é por causa dos símbolos, que são considerados essência e imagem
da energia psíquica (Jacobi, 1957/2016). Jung (1964/2021) explica que, por mais que o
símbolo possa remeter a elementos que nos são familiares no cotidiano, ele implica em algo
além do seu significado evidente, algo vago, desconhecido ou oculto para nós.
Há uma diferença investigativa entre o que Jung considera um símbolo morto e um
símbolo vivo; para explicar isso, ele faz uma diferenciação de signo e símbolo. Enquanto um
signo pode ser considerado um símbolo morto, pois que indica algo já conhecido, um símbolo
vivo “é a expressão de uma coisa que não poderia ser caracterizada de melhor forma” (Jacob,
1964/2021, p. 103), já que foge dos limites objetivos da consciência. No Dicionário
Junguiano (2022), o verbete “Símbolo” traz:
Não é casual que, ainda no texto de 1921, Jung aproxime de modo indireto o
‘símbolo vivo’ à gravidez de uma mulher. A mulher, enquanto se encontra nessa
condição, remete a algo ainda não presente e cognoscível mas, ao dar à luz ao filho,
de um lado leva a termo e, portanto, à definição aquilo que antes, talvez, já existia
em potência, mas ainda de forma incompleta, e de outro cessa a tarefa de ocultá-lo
à percepção.

A psicologia analítica de C. G. Jung tem nos símbolos uma forte base. De acordo com
Jacobi (1957/2016), estudiosa de Jung, o ser humano tem uma necessidade natural de
compreender o mundo de maneira simbólica, além da percepção sensorial concreta e realista.
Esse tipo de compreensão é uma aspiração espontânea que enriquece a vida humana com
outra dimensão, a esfera do espiritual2, e é a raiz da criatividade. Essa força simbólica não é

1
O arquétipo per se é sempre um símbolo potencial
2
Segundo Brigitte Dorst, na introdução de Espiritualidade e Transcendência (Jung, 2015), a religiosidade, termo
mais usado na época que “espiritualidade”, é outro tema basilar na obra junguiana, uma vez que a experiência
8

alimentada por sublimações, mas pela força dos arquétipos, que operam no fundo da psique.
Logo, é essa energia arquetípica que move nosso simbolismo, nos conectando com o
espiritual e permitindo tanto a tradução do físico para o psíquico quanto a conversão do
processo psíquico em imagem, pois “o arquétipo não provém de fatos físicos, mas descreve
como a alma experimenta o fato físico” (Jung apud Jacobi, 1957/2016, p. 61).
Considerando a relação primordial do simbolismo com o arquétipo, e reiterando a
qualidade pré-formativa do psíquico, Jung (1959/2014) escreve:
cada uma de suas funções também o é, especialmente as que derivam diretamente
das disposições inconscientes. A estas pertence a fantasia criativa. Nos produtos da
fantasia tornam-se visíveis as “imagens primordiais” e é aqui que o conceito de
arquétipo encontra sua aplicação específica (p. 86).

Isso significa que as imagens primordiais, ou arquétipos, são expressas na fantasia e


podem ser acessadas através dela. Portanto, a fantasia criativa se mostra um meio importante
para compreender a mente humana e seus processos psicológicos, já que é uma manifestação
dos nossos instintos que se faz presente através da rica simbologia das imagens arquetípicas.
A importância dos arquétipos para a vida humana se dá, também, no equilíbrio entre
os opostos, ou melhor, na união dos opostos, que Jung chamou de “sizígia”. Uma força de tal
magnitude, que carrega energias ancestrais e provém do inconsciente, é o contrapeso da
consciência fixada ao pensamento racional do ego. Para o racional fazer sentido, o irracional é
necessário, assim como para a vida existir, é preciso a morte. Sendo essa a lógica da natureza,
manter-se consciente da existência do mundo dos arquétipos, mesmo que não se o entenda, é
tarefa essencial para o homem, “pois nele o homem ainda é natureza e está conectado a suas
raízes” (Jung, 1959/2014, p. 99).

religiosa é considerada um fenômeno psíquico por Jung. No Dicionário Junguiano (2022) encontramos a
definição de religião/religiosidade como atitude de crer. Esse pensamento de algo além deste mundo “é religioso
exatamente porque se refere a algo que se experimenta enquanto desestabiliza a vida consciente”. No decorrer da
teoria analítica, entende-se que a função transcendente é uma forma de desestabilização da vida consciente, uma
vez que seria a transposição da fronteira entre consciente e inconsciente, a união desses opostos complementares.
9

4. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo

Só é possível entender o conceito de inconsciente coletivo através do conceito de


arquétipo e vice-versa. Em Psicologia do Inconsciente (Jung, 1916/2013), Jung traz a ideia de
que os arquétipos permitem a distinção e a caracterização de duas camadas do inconsciente.
Uma seria o inconsciente pessoal e a outra, o inconsciente supra-pessoal ou coletivo, que é
também impessoal, pois seus conteúdos são universais. Ainda sobre a diferenciação dos
inconscientes, ele adiciona, em uma nota de rodapé do mesmo livro, que “o inconsciente
coletivo representa a parte objetiva do psiquismo; o inconsciente pessoal, a parte subjetiva”
(p. 91, n. 4), isso porque o inconsciente pessoal é recheado de experiências muito particulares
de cada indivíduo, como traumas e toda sorte de conteúdos recalcados.
O inconsciente coletivo, pelo contrário, possui um alcance e conexão mais direto com
todos os seres humanos. Não à toa, em diversas culturas e épocas, rituais que surgem
espontaneamente e que são realizados a partir de rica simbologia arquetípica, sejam
relacionados a instituições ou não, tocam multidões. Costumes tão antigos, presentes no
homem desde o princípio da humanidade, como os ritos de iniciação ou sagração do homem,
que correspondem à aspiração de elevação espiritual, ou os ritos que marcam a passagem da
criança para a vida adulta, acabam se tornando uma espécie de mecanismo instintivo, já que
se reinventam sem nenhuma exigência externa, pois são hábitos que estão soterrados no
inconsciente, em forma de imagem primordial (Jung, 1916/2013). Destarte, Jung observou
que tais similaridades formais dos ritos não poderiam ser acasos; pelo contrário, indicavam a
presença de uma formação psíquica inata, a qual ele denominou arquétipo.
Disso, temos duas observações principais: o inconsciente coletivo tem vida própria, e é
a essa esfera que o arquétipo “em si” pertence, uma vez que é a esfera objetiva do
inconsciente. A partir do momento que o arquétipo passa pelo inconsciente pessoal, subjetivo,
ele adquire outros contornos, como já dito. Jacobi (1957/2016) recupera uma boa definição
que Jung deu para o termo em seu escrito Seelenprobleme:

O inconsciente coletivo, como totalidade de todos os arquétipos, é o


depósito de toda experiência humana, remontando aos seus primórdios mais
obscuros, não um depósito morto – como se fosse um campo de ruínas
abandonado –, mas sistemas vivos de reação e prontidão que, por caminhos
invisíveis e por isso tanto mais eficazes, determinam a vida individual (p.
48).
A referida experiência humana é a experiência psíquica da humanidade. E a
característica de guardião dessas experiências diz mais sobre a forma que seus conteúdos, já
que é a forma que tem a característica de ser universal e hereditária, sendo apenas seus
10

conteúdos atualizados a nível pessoal, de forma autônoma. Por isso a impessoalidade do


inconsciente coletivo, exposta por Jung. Jacobi (1957/2016) deixa claro que seus conteúdos só
adquirem valor e posição na confrontação com a consciência. Devido a isso, só é possível ter
um conhecimento indireto da essência e atividade do inconsciente coletivo, uma vez que
nosso encontro com os arquétipos se dá pelas suas manifestações na psique. Assim ocorre
com qualquer conteúdo inconsciente que passa para a consciência. É importante acrescentar
que esse conhecimento nunca é direto e terminado, uma vez que é "impossível conhecer a
natureza das disposições psíquicas inconscientes” (Jung, 1959/2014, p. 85) e, por isso,
também é impossível explicar completamente um arquétipo. A possibilidade dessas
movimentações de conteúdos inconscientes em direção à consciência é justamente o que
reforça o reconhecimento da existência de uma vida psíquica complexa, com diferentes níveis
de acessibilidade (Jung, 1959/2014).
Experiências humanas universais que persistem no ciclo da vida desde seus primórdios
e insistem em deixar sua marca em uma instância psíquica ampla, que conhecemos a partir da
experiência e da intuição, e que nos influencia e nos rege, quase que dando “dicas” da arte do
viver: essa é a base dos conceitos até aqui expostos de arquétipo e de inconsciente coletivo,
que podem se manifestar de muitas maneiras. O inconsciente coletivo é recheado de
arquétipos, e esses podem se manifestar através dos ritos, da mitologia e dos sonhos, por
exemplo. O inconsciente pessoal, por outro lado, é povoado pelos chamados complexos
afetivos que podem manifestar, através deles, um núcleo arquetípico provindo do inconsciente
coletivo (Jacobi, 1957/2016).
Para a psicologia analítica de Jung, os complexos fazem parte da estrutura da psique,
podendo ou não se tornar patológicos. Esses complexos podem ser descritos como pontos
nodais de alta carga energética na estrutura da psique, nos quais se acumulam conteúdos,
formando uma psique parcial autônoma que se contrapõe ao ego. Quando a esses pontos
nodais se juntam conteúdos inconscientes recalcados, não aceitáveis pelo ego consciente,
ocorre uma perturbação da consciência (Jacobi, 1957/2016). Dito de outra forma, esse
desequilíbrio ocorre quando, por motivos de história pessoal, a pessoa é mobilizada de tal
forma por um arquétipo que ele acaba existindo de maneira independente e então invadindo e
atrapalhando o equilíbrio psíquico. Assim, os complexos atravessam todas as instâncias
psíquicas descritas por Jung, mesmo que a pessoa não saiba de sua existência. Isso porque o
complexo surge do inconsciente pessoal, mas existe em torno de um arquétipo que provém do
inconsciente coletivo. No decorrer de sua obra, o autor desenvolverá mais sobre os
complexos para explicar os arquétipos.
11

Assim como os arquétipos, os complexos também fazem parte da estrutura psíquica


inconsciente dos indivíduos, mas enquanto os primeiros provêm do inconsciente coletivo, os
complexos permeiam o inconsciente pessoal (Jung, 1959/2014). A princípio, Jung definiu os
complexos como grupos de representações acentuados por sentimentos/afetos e capazes de
perturbar o curso psíquico normal (Jung, 1959/2014). Ou seja, esses aglomerados de
conteúdos de forte carga psíquica, provindos do inconsciente pessoal, são capazes de interferir
nos processos conscientes de pensamento, acabando por afetar também o modo de estar no
mundo. Esses complexos têm autonomia e podem se originar tanto da disposição pessoal do
indivíduo quanto por fatores externos, ambientais. Jacobi (1957/2016) completa informando
que “proporcionalmente à sua distância da consciência, os complexos no inconsciente
mantêm, pelo enriquecimento de seu conteúdo, um caráter arcaico-mitológico e, assim, uma
numinosidade3 crescente” (p. 21). Eles, no entanto, podem ser assimilados pelo consciente e,
assim, perder seu caráter compulsório e incontrolável - esse seria um processo fundamental a
ser buscado na terapia. Assim, quando Jung (1959/2014) afirmou que “um complexo só é
realmente superado quando a vida o esgota até o fim. Aquilo que afastamos de nós devido ao
complexo, deveremos tragá-lo junto com a borra, se quisermos desvencilhar-nos dele" (p.
104), o autor reafirmou que é através dessa relação do complexo inconsciente com a
consciência, na integração dos seus conteúdos, que se cria espaço para uma solução e se chega
mais perto de um equilíbrio de energia psíquica.

3
Numinoso, segundo o Dicionário Junguiano (2022), indica o caráter com que uma coisa, cujo sentido é
ignorado ou ainda não conhecido, se transforma em força que fascina a consciência do sujeito.
12

5. O Arquétipo Materno e seus Complexos

Como já foi dito, os arquétipos podem se manifestar de inúmeras maneiras, mas


sempre carregam características que permitem sua identificação, algumas mais objetivas,
outras nem tanto, algumas mais positivas, outras negativas. Para explorar ainda mais o
conceito de arquétipo na psicologia analítica de C.G. Jung, o estudo do arquétipo materno se
mostra interessante por todo o simbolismo de criação, destruição e a potência do renascimento
e da transformação que carrega, como um ciclo infinito que se repete4. Sendo a psique o
principal objeto de estudo da psicologia analítica, há que se considerar o contexto e as
influências arquetípicas que atuam no desenvolvimento da mesma, seja através do
inconsciente pessoal ou do coletivo. Além disso, o arquétipo materno é um grande pano de
fundo sobre o qual se desenrolam nosso crescimento e relações desde a mais tenra infância.
A partir de uma perspectiva junguiana, é interessante pensar que a relação do
inconsciente materno com o ego e a consciência da criança não são sistemas separados um do
outro, mas determinados por este laço indissolúvel entre mãe e filho, que recria a situação
original do retentor e do retido. Assim se inicia a relação do arquétipo feminino com a criança
(Neumann, 1955/2015):
A portadora do arquétipo é, em primeiro lugar, a mãe pessoal porque a
criança vive inicialmente num estado de participação exclusiva, isto é, numa
identificação inconsciente com ela. A mãe não é apenas a condição prévia
física, mas também psíquica da criança. Com o despertar da consciência do
eu, a participação é progressivamente desfeita, e a consciência começa a
tornar-se sua própria condição prévia, entrando em oposição ao
inconsciente. A partir disto o eu começa a diferenciar-se da mãe e sua
particularidade pessoal vai-se tornando cada vez mais distinta. Assim, todas
as qualidades fabulosas e misteriosas desprendem-se da imagem materna,
transferindo-se à possibilidade mais próxima, por exemplo, à avó (Jung,
1929/2014, p. 107).

Ao tratarmos de arquétipo materno, é indissociável falar também em arquétipo


feminino. Para tal, retomamos o arquétipo do Ouroboros, que possui características muito
semelhantes ao arquétipo materno, mas que dele se diferencia por um fator fundamental: esse
arquétipo da cobra que morde seu próprio rabo é símbolo do estado psíquico original, no qual
a consciência e o ego do homem não eram desenvolvidos e, portanto, a maior parte da psique
era inconsciente (Neumann, 1955/2015, tradução da autora). Conhecido também como “A
Grande Roda”, o Ouroboros é símbolo da origem e dos opostos contidos nele (Neumann,
1955/2015, tradução da autora). Aqui, os extremos se aproximam: a cabeça engole o próprio

4
O Ouroboros é outro arquétipo que carrega tais características de ciclicidade e renascimento.
13

rabo. Assim, feminino e masculino, positivo e negativo, consciência e inconsciente estão,


nele, amalgamados. É a partir desse arquétipo, que carrega o simbolismo da totalidade, que se
torna possível identificar o arquétipo feminino, do qual deriva o arquétipo materno da Grande
Mãe.
Neumann (1955/2015, tradução da autora) trabalha o Feminino a partir de duas
características fundamentais: um atributo designado como elementar, e outro transformativo.
Em ambos, é notável algo de maternal. Do primeiro atributo, é a tendência, assim como no
Ouroboros, de agarrar rapidamente tudo que floresce de si e cercar isso como uma substância
interna. Tudo que é nascido dela, a ela pertence e dela permanece sujeito. Há, nesse atributo,
algo de conservador, que quer manter as coisas no mesmo estado de existência. A outra
característica do feminino é transformativa, que destaca, ao contrário, o elemento dinâmico da
psique: movimento, mudança e transformação. Só assim é possível crescer. Essas
características são ambivalentes, mas não antitéticas, combinando-se entre si de inúmeras
maneiras. Por mais incoerente que pareça, mesmo quando a transformação ocorre, o caráter
conservativo curva tudo o que muda de volta à sua eterna mesmice.
Essa força do caráter elementar é também responsável por explicar a associação da
qualidade “feminino” ao inconsciente (Neumann, 1955/2015, tradução da autora). É
observável, na relação entre ego e inconsciente, uma “gravitação psíquica”, a tendência do
ego de retornar ao seu estado original inconsciente, seguindo o mesmo princípio da atração
gravitacional de corpos que têm mais massa.
Algumas qualidades do arquétipo materno são: o maternal, a sabedoria para além da
razão (quase instintiva), o cuidador, o que nutre (alimento), o que possibilita o crescimento, a
fertilidade, o renascimento, o secreto, o mistério, o mundo dos mortos, o devorador, o fatal, o
sedutor, o venenoso. E algumas das formas com que esse arquétipo pode se manifestar são: a
Lua, as águas, o mundo subterrâneo, a mãe de Deus, a Virgem, a meta da nostalgia da
salvação (Paraíso, Reino de Deus, Jerusalém Celeste), a Igreja, a fonte, a flor como recipiente
(lótus), qualquer recipiente oco, a vaca, o coelho, a bruxa, a serpente, o caldeirão, além da
própria mãe, que pode ser também sogra, filha, avó, madrasta, amas de leite (Jung,
1959/2014). Reforçamos que esses atributos e imagens arquetípicas não se limitam a esses
exemplos, e podem sempre serem vistos pelo aspecto belo ou nefasto, a depender da situação
e da experiência pessoal de cada um.
Fica nítido também o aspecto divino tão ligado a esse arquétipo, e de forma geral os
arquétipos como um todo possuem uma relação íntima com o divino, através das religiões. De
fato, Jung (1959/2014) afirma que o arquétipo “pertence aos mais supremos valores da alma
14

humana, tendo por isso povoado os Olimpos de todas as religiões” (p. 90). A oração “Ave
Maria” é um bom exemplo para se observar como o arquétipo materno aparece no âmbito da
religião que adentra o cotidiano dos devotos, e mesmo dos que não acreditam, mas foram
criados em uma cultura cristã: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois
vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus,
rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém”. A mulher mãe, de aspecto
divino, gracioso, a que dá à luz e também a que vela na hora da morte, a que perdoa a tudo e a
todos, a que roga, a que acolhe.
Em contraposição à psicanálise freudiana, que enxerga na mãe pessoal um papel
determinante na construção da psique infantil, Jung atribui à mesma um papel mais limitado,
mostrando que o arquétipo que lhe é projetado tem mais influência para lhe conferir
autoridade e numinosidade do que somente a mãe em si. Dessa forma, as sequelas traumáticas
na vida dos filhos podem surgir tanto de experiências diretamente vivenciadas com a mãe
quanto da projeção fantasiosa da criança (Jung, 1959/2014).
Como já foi comentado, os complexos podem surgir a partir de um atravessamento
pessoal intenso de um arquétipo na vida de alguém, perturbando seu psiquismo. Tendo como
base o arquétipo materno, os diversos tipos de complexo materno nos filhos são explorados
por Jung (1959/2014), diferenciando, primeiro, os complexos do filho homem e da filha
mulher. Segundo ele, os complexos no filho homem não são puros, pois o arquétipo da anima5
está presente, se misturando com a imagem da mãe. Também nos filhos, os complexos
maternos causam uma sexualização anormal no instinto masculino. No caso da filha, o
complexo é mais puro, mas nem por isso menos ou mais importante, e pode causar
exacerbação ou inibição excessivas do instinto feminino.
É interessante reparar que diversos arquétipos e possibilidades de complexo são
encontrados nos mitos antigos. O arquétipo materno, por exemplo, se faz presente no mito
grego de Réia (Cibele)6 e no mito de Deméter (Ceres) e Perséfone (Proserpina), reafirmando a
influência e a importância dos arquétipos na nossa vida psíquica. Réia é reverenciada como
Grande Mãe, simbolizando a energia escondida no seio da terra e fonte primordial de toda
fecundidade. Foi fecundada por Cronos, deus do tempo, e gestou os deuses dos quatro
elementos (Brandão, 1986), entre eles Deméter, deusa da agricultura e mãe de Perséfone, que
revira os mundos atrás de sua filha raptada, criando, assim, as estações do ano. Os mitos

5
Anima corresponde à parte feminina dentro da psique masculina, sendo uma ligação ao Eros, o princípio da
psique feminina. Já animus corresponde à parte masculina dentro da psique feminina, sendo uma ligação ao
Logos, o princípio da psique masculina.
6
Entre parêntesis, o nome romano
15

também reforçam que os diversos complexos que serão apresentados possuem seus aspectos
positivo e negativo.
Retomando a influência do complexo materno no filho, o mesmo pode resultar em
homossexualidade, no qual o componente heterossexual fica preso à figura da mãe
inconscientemente, ou em “dom-juanismo”, no qual a mãe é procurada inconscientemente em
cada mulher (Jung, 1959/2014). A relação mãe e filho traz um componente de sexualidade,
pois sendo a mãe a primeira mulher que o filho, um futuro homem, tem contato, ela acaba
aludindo à masculinidade do filho de alguma forma, de modo que o funcionamento do filho
em relação à identidade ou resistência à diferenciação se dá na forma de atração ou repulsão
eróticas (Jung, 1959/2014).
Já no caso da filha mulher, o complexo materno pode desencadear a hipertrofia dos
instintos femininos e, consequentemente, do aspecto maternal, o que acaba gerando uma
inconsciência da personalidade da filha por ela mesma, já que ela vive para e pelos outros e
tem como propósito máximo se tornar mãe. Também é possível ocorrer a atrofia dos instintos
femininos, que acontece a partir de uma identificação com a mãe, isto é, quando a filha
projeta seus próprios instintos e desejos na mãe, dependendo da mesma para realizar os seus
próprios desejos. Já a defesa contra a mãe causa uma atitude de negação à supremacia da mãe
e é um exemplo típico de complexo materno negativo, pois isso passa a ser o objetivo da vida
dessa mulher, ao invés de viver a própria vida (Jung, 1959/2014).
Em suma, cada indivíduo carrega uma disposição arquetípica única, o que também é
válido para os complexos. Jacobi (1957/2016) aponta que os complexos não são sempre
prejudiciais ou perturbadores do equilíbrio psíquico, mas que, a depender de como a
consciência lida com eles, compreendendo, assimilando e integrando seus conteúdos, seu
papel na vida do indivíduo muda.
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6. O mito de Deméter e Perséfone

Já foi dito que os mitos são uma das formas de expressão arquetípica que provêm do
inconsciente coletivo, ou seja, expressões simbólicas do inconsciente. Ao contrário dos
sonhos, que expressam o que se passa em um indivíduo, os mitos dizem respeito à sociedade e
à cultura (Johnson, 1987/1991). Sem datas e informações precisas sobre como e quando
surgiram, os mitos seguem influenciando nossas vidas até hoje, apesar da negação de muitos,
que os consideram como algo primitivo e/ou da ordem do falso, do inventado. Johnson
(1987/1991) explica bem ao dizer que um mito é verdadeiro não no sentido exterior, físico,
mas como expressão certeira da condição interior da psique. É algo verdadeiro por dentro,
mas não por fora. Assim também é possível diferenciar signo de símbolo, já que o primeiro é
uma manifestação concreta de algo, enquanto o último é uma imagem sensível de algo ainda
desconhecido, sem explicação lógica (Jacobi, 1957/2016).
Para exemplificar e aumentar o estudo do arquétipo materno, trabalharemos com o
mito grego de Deméter e Perséfone, a partir dos volumes 1 e 2 da obra Mitologia Grega,
escritos por Junito de Souza Brandão. Deméter pertence à segunda geração divina, sendo filha
de Cronos (Saturno), deus do tempo, e Réia (Cibele). É irmã de Héstia (Vesta), Hera (Juno),
Hades (Plutão), Poseidon (Netuno) e Zeus (Júpiter). Deméter é a deusa e mãe da terra
cultivada, cultuada como deusa dos grãos (em especial o de trigo), da agricultura, da
fertilidade dos solos, a terra-mãe, o grão da vida (Brandão, 1986). Se é grão, é também o
início de tudo, é transformação, como o grão que vira planta ou o trigo que vira pão, e pode
também ser fim, como a planta que produz novos grãos, e assim por diante. Deméter é, além
disso tudo, mãe de Core/Perséfone. Essa informação é fundamental, como coloca Brandão
(1986) ao esclarecer que “tanto no mito quanto no culto, Deméter está indissoluvelmente
ligada à sua filha Core, depois Perséfone, formando uma dupla quase sempre denominada
simplesmente As Deusas” (p. 290).
Da união de Deméter com Zeus, seu irmão - deus do luminoso céu, do Olimpo - nasce
Core. A jovem filha dos dois é raptada pelo tio Hades, que a desejava, com a ajuda do próprio
pai, que lhe atrai com uma flor até um penhasco, donde a terra se abre para o mundo ctônico
onde reinava Hades, o terrível. O mito gira em torno do rapto de Core/Perséfone e todo o
sofrimento de Deméter é contado no Hino Homérico a Deméter, texto sem autoria conhecida,
que data de cerca do século VII a.C. Assim que Core desce ao submundo e se torna esposa de
Hades, passa a ser Perséfone, não mais uma jovem inocente. Sem saber o que aconteceu,
Deméter passa então a procurar exaustivamente a filha, privando-se, no que poderíamos
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considerar como um comportamento autodestrutivo, de alimento e água. Quando descobre


sobre o rapto, Deméter abdica do Olimpo e permanece na terra até que lhe devolvessem a
filha.
Nesse meio tempo, Deméter, se fingindo de velha, acaba entrando em contato com a
família do rei Céleo. Requisitada para cuidar do filho menor dos monarcas, Deméter começa a
fazer rituais para torná-lo imortal. Isso é lido como uma possível vontade de ter outro filho ou
como uma provocação para os deuses do Olimpo, já que ela tentava trazer características
divinas a um humano. Um dia, Metanira, a mãe de Demofonte, o caçula, flagra o ritual e,
assustada, começa a gritar, obrigando Deméter a interromper o rito. Nesse momento, ela se
revela deusa e, raivosa com a ignorância dos homens, manda erguer um templo em sua
homenagem, onde ela própria ensinaria aos mortais seus mistérios.
Após a construção do templo, Deméter se recolhe nele e, tomada pela tristeza ante a
distância da filha, começa a secar a terra. Sem vegetação, a humanidade entra em risco e Zeus
pede interferência da deusa. Ela recusa-se, a menos que lhe devolvam sua filha. Zeus, então,
requer que Hades liberte Perséfone, ao que ele concede. No entanto, antes que Perséfone
pudesse subir ao reino dos vivos, seu marido lhe obriga a comer uma romã, o que quebra o
jejum imposto naquela terra e a prende, para sempre, ao marido. Zeus decide que Perséfone,
então, poderá ficar oito meses com sua mãe e os quatro restantes com Hades. O retorno de
Perséfone marca também o retorno do verde que cobria a terra. Com o reencontro das duas
deusas, Deméter retoma seu lugar no Olimpo e passa, então, a transmitir seus misteriosos ritos
aos humanos, no que ficou conhecido como a instituição dos Mistérios de Elêusis.
Esse mito permite a reflexão sobre a grande influência do arquétipo materno na vida
humana desde tempos remotos, tendo seu sentido indissociável à relação mãe (Deméter) e
filha (Core/Perséfone). O arquétipo materno inevitavelmente possui seu sentido atrelado a
esse tipo de relação, considerando que há sempre um fruto, uma cria, algo que provém dessa
mãe, física ou simbolicamente, algo a ser zelado e cultivado, assim como Deméter passou aos
homens o conhecimento sobre o trigo, desde o grão até virar pão. São nesses processos
ambivalentes que se mostram as características conservativas e transformativas do feminino,
uma por vezes mais presente que a outra, mas ambas sempre presentes, não anulando-se. Se
Deméter é a mãe, a criadora, Perséfone faz as vezes de grão e sua descida é uma morte
simbólica, como um grão que “morre” na terra para se transformar em uma nova planta. Se
Deméter é filha de Cronos, senhor do tempo, ela sabe o momento certo de maturação de cada
coisa, é ela quem estabelece, a partir dessa história, as estações do ano.
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Deméter, assim como toda mulher que vira mãe, encarna o processo inteiro de uma
vida. Nascimento, transformação e morte. É a mãe (a deusa) quem gera a semente, o grão da
vida. Também é ela que permite a esse grão se transformar em planta, a partir da nutrição, ou
que permite que o trigo vire farinha e, depois, pão. Esse processo de virar mãe é, também,
uma espécie de morte, já que a mulher abdica de sua vida anterior para dedicar-se
integralmente a outro ser. Deméter abdicou de sua posição e quase fez morrer a Terra com o
objetivo de achar sua filha. O pão que foi feito, é comido. E Core morre para virar Perséfone.
E é apenas quando as duas se reencontram, ambas mudadas, mortas e renascidas
simbolicamente, que os Mistérios são iniciados. De todas as transformações pelas quais as
duas passaram, a força materna, que puxa para perto tudo que dela sai, na tentativa de
conservar um mesmo estado das coisas, age para que as duas se reencontrem e tudo volte a ser
como era, mesmo diante da impossibilidade real de isso acontecer.
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7. Considerações Finais

Baseado no estudo da teoria dos arquétipos de C.G.Jung, em especial do arquétipo


materno, este trabalho se apresenta como mais uma vírgula nessa história que não para de ser
escrita. Ao trazer um mito, que é uma expressão clássica dos arquétipos formados no nosso
inconsciente coletivo, tentamos fazer uma aproximação simbólica do que conscientemente
tomamos por “materno” com nosso inconsciente, que se movimenta, dentre outros, pelo
arquétipo feminino que, vale reiterar, todos manifestam. É a partir do feminino que o
arquétipo materno se mostra, sendo ambos indissociáveis, já que diversas qualidades
“maternais” são intrínsecas ao feminino. Para uma compreensão ainda mais abrangente, o
estudo do arquétipo masculino, sem dúvida, há de ser interessante e enriquecedor para o tema.
A partir do mito de Deméter e Perséfone apresentado, foi possível trabalhar com as
ambivalências do arquétipo materno, tais como os extremos nascimento-morte, os aspectos
transformativo-conservativo, além de observar a potência geradora que o símbolo maternal
carrega. Para além disso, a relação mãe-filha, criadora-criação também se coloca como
fundamental no entendimento desse arquétipo, que se faz tanto mais complexo conforme se
entende a amplitude do mesmo, que não está restrito à maternidade real. O mito, aqui, pode
ser visto como uma analogia à capacidade humana de gestar, transformar e até mesmo matar
com um objetivo que só se faz por meio de uma relação com o que criamos. Talvez seja
ousado, mas muito interessante, poder olhar para a humanidade como portadora, também, das
características divinas do Olimpo.
Assim como os arquétipos, a pesquisa sobre esse assunto pede revisão constante, uma
vez que nossa subjetividade se transforma com o decorrer do tempo. De maneira limitada,
este estudo pode contribuir para desmistificar (por mais irônico que pareça o uso desse termo
aqui) o conceito de arquétipo, que parece ter sido sintetizado pelo mercado de maneira a
perder a riqueza de seu simbolismo e suas infinitas potências. Ademais, a investigação do
arquétipo materno pode enriquecer discussões nos mais variados aspectos de nossas vidas,
quando entendemos que seu simbolismo vai para muito além do que entendemos por “mãe”.
O estudo desse tema também pode servir à prática clínica, na qual é possível observar, através
das palavras, de que forma os arquétipos se manifestam a partir de cada história individual.
Que o conhecimento seja sempre a favor de instigar novas perguntas e abrir novos horizontes.
Nascer, crescer e morrer vale para tudo nessa vida, até para as nossas certezas.
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Referências
Bonfatti, P.; Carvalho Nogueira, C.C.; Almeida Telles, K.M; Campista Sousa, M.A. (2018).
Acerca do conceito de arquétipo na psicologia analítica: breves considerações. Analecta, v. 4
(4), pp. 533 - 548.

Brandão, J.S. (1986). Mitologia grega, volume 1. Petrópolis: Vozes.

Brandão, J.S. (1986). Mitologia grega, volume 2. Petrópolis: Vozes.

Jacobi, J. (2016). Complexo, arquétipo e símbolo na psicologia de C.G. Jung. Petrópolis:


Vozes. (Originalmente publicado em 1957).

Johnson, R. A. (1991). We - A chave da psicologia do amor romântico. São Paulo: Mercuryo.


(Originalmente publicado em 1987).

Jung, C. G. (2021). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins. (Originalmente
publicado em 1964).

Jung, C.G. (2013). Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes. (Originalmente publicado


em 1916).

Jung, C.G. (2014). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes. (Originalmente


publicado em 1959).

Jung, C. G. (2015). Espiritualidade e transcendência: seleção e edição de Brigitte Dorst. São


Paulo: Vozes. (Textos originalmente publicados entre 1875 e 1961).

Neumann, E. (2015). The great mother - an analysis of the archetype. Princeton: Princeton
University Press. (Originalmente publicado em 1955).

Pieri, P. F. (2022). Simbolismo. Em Dicionário Junguiano. 1. ed. São Paulo: Vozes. E-book.
Disponível em: https://plataforma.bvirtual.com.br/

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