Monografia Elisa Campanario
Monografia Elisa Campanario
Monografia Elisa Campanario
São Carlos, SP
Fevereiro de 2024
Agradecimentos
Ao meu orientador Leonardo Câmara, pela sabedoria contagiante e pela paciência
nessa longa jornada, mesmo nos períodos de escassez. À minha querida amiga Heloísa, que é
como um sol Nascente a iluminar minhas ideias, pelo acolhimento e incentivo quando tudo
parecia escuro. Ao meu querido amigo Sebastian, pelas trocas, dicas e pelo incentivo em
continuar estudando a psicologia analítica de Jung, que também é de seu grande interesse.
Vocês contribuíram para que, com muito custo, algumas lágrimas e alguns sorrisos, esse
trabalho finalmente ficasse pronto, e por isso sou muito grata.
Resumo
A psicologia analítica, desenvolvida por Carl Gustav Jung, tem algumas de suas bases
na psicanálise, mas criou uma vereda própria ao explorar conceitos como o inconsciente
coletivo, os arquétipos e o simbolismo, temas que são investigados neste trabalho.O estudo
desses temas nesta monografia toma como enfoque o arquétipo materno, justamente pelo
significado simbólico de criação, morte e renascimento, e também porque mãe todo mundo
tem. Considerando, então, que a experiência da maternidade existe universalmente,
representada pelas nossas próprias mães e essencialmente internalizada em todos nós, a
relevância deste tema é considerável. Para ilustrar a abrangência do arquétipo escolhido, o
texto passa pelo mito de Deméter e Perséfone, que ilustra bem as potências e ambivalências
do mesmo, tomando como metáfora os ciclos da natureza, que regem, além de nossas vidas, a
agricultura. Assim, esta monografia observa como a força dos conceitos estudados por Jung
nos atravessam enquanto seres humanos, desde nossos primórdios até os dias de hoje e
continuará afetando enquanto houver humanidade.
Palavras-chave: arquétipo; arquétipo materno; inconsciente coletivo; simbolismo; psicologia
analítica.
Abstract
The analytic psychology, developed by Carl Gustav Jung has some of its basis on
psychoanalysis, but created a way of its own by exploring some concepts like the collective
unconscious, the archetypes and symbolism, themes that are investigated in this paperwork.
The study of these themes in this monography takes as a focus the mother archetype, precisely
because of the symbolic meaning of creation, death and rebirth and also because everybody
has a mother. Considering, then, that the maternity experience exists universally, represented
by our own mothers and essentially internalized in everyone of us, the relevance of the theme
is considerable. To illustrate the coverage of the chosen archetype, the text passes by Demeter
and Persephone's myth, which illustrates well the powers and ambivalences of such, taking as
a metaphor the nature cycles, that govern, beyond our lives, the agriculture. Thereby, this
monography observes how the force of the concepts studied by Jung crosses us as humans,
since our beginnings until today and will continue to affect while there is humanity.
Key words: archetype; mother archetype; collective unconscious; symbolism; analytic
psychology
“Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n'algum lugar
Ressuscitar no chão nossa semeadura”
Gilberto Gil
Sumário
1. Introdução 3
2. O Conceito de Arquétipo 4
3. Simbolismo 7
4. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo 9
5. O Arquétipo Materno e seus Complexos 12
6. O mito de Deméter e Perséfone 16
7. Considerações Finais 19
Referências 20
3
1. Introdução
Este trabalho nasce do interesse sobre a psicologia analítica de Carl Gustav Jung
(Suiça, 1875 - Suiça, 1961) em especial seu aprofundado estudo sobre os arquétipos, essas
“formas primordiais” que habitam nossos inconscientes, tanto o coletivo como o individual.
Sendo parte da estrutura da nossa psique, os arquétipos são possibilidades de manifestação
simbólica, ou seja, fazem parte da nossa estrutura humana enquanto um poder vir a ser,
considerando a maleabilidade de suas manifestações. Esse simbolismo carrega entendimentos
basais sobre a vida humana e os mistérios do mundo. O enfoque no arquétipo materno se dá
justamente pelo seu significado simbólico de criação, morte e renascimento, e também porque
mãe todo mundo tem.
Além disso, sendo a psique o principal objeto de estudo da psicologia, há que se
considerar o contexto e as influências externas, remotas e inconscientes que atuam no
desenvolvimento do nosso psiquismo, sendo o arquétipo materno um grande pano de fundo
sobre o qual se desenrolam nosso crescimento e relações. Assim, para estudar o arquétipo
materno, o presente trabalho abordará alguns conceitos básicos de Jung, como arquétipo,
simbolismo, inconsciente coletivo e complexos. Para exemplificar a potente influência dos
arquétipos (em especial o materno) na vida humana desde tempos incontáveis, partiremos do
mito grego de Deméter e Perséfone.
4
2. O Conceito de Arquétipo
imagens ou padrões que são produzidos quando determinadas condições internas e externas se
manifestam. Embora possam ser identificados traços básicos que se repetem na recorrência
dos arquétipos, cada manifestação é única e depende de fatores individuais e históricos
(Jacobi, 1957/2016).
Dessa forma, é possível afirmar que o arquétipo não é uma representação fixa e
imutável, mas sim uma possibilidade de manifestação - dada por imagens, símbolos e
pensamentos - que pode ser atualizada e diferenciada de maneira incomensurável,
considerando a influência da cultura conforme a passagem do tempo na humanidade. Nesse
sentido, é importante compreender que a recorrência dos arquétipos não implica em uma
identidade total entre eles, mas sim em uma semelhança que se manifesta através de traços
básicos. Por isso, a interpretação dos arquétipos requer uma constante renovação e
atualização.
7
3. Simbolismo
A psicologia analítica de C. G. Jung tem nos símbolos uma forte base. De acordo com
Jacobi (1957/2016), estudiosa de Jung, o ser humano tem uma necessidade natural de
compreender o mundo de maneira simbólica, além da percepção sensorial concreta e realista.
Esse tipo de compreensão é uma aspiração espontânea que enriquece a vida humana com
outra dimensão, a esfera do espiritual2, e é a raiz da criatividade. Essa força simbólica não é
1
O arquétipo per se é sempre um símbolo potencial
2
Segundo Brigitte Dorst, na introdução de Espiritualidade e Transcendência (Jung, 2015), a religiosidade, termo
mais usado na época que “espiritualidade”, é outro tema basilar na obra junguiana, uma vez que a experiência
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alimentada por sublimações, mas pela força dos arquétipos, que operam no fundo da psique.
Logo, é essa energia arquetípica que move nosso simbolismo, nos conectando com o
espiritual e permitindo tanto a tradução do físico para o psíquico quanto a conversão do
processo psíquico em imagem, pois “o arquétipo não provém de fatos físicos, mas descreve
como a alma experimenta o fato físico” (Jung apud Jacobi, 1957/2016, p. 61).
Considerando a relação primordial do simbolismo com o arquétipo, e reiterando a
qualidade pré-formativa do psíquico, Jung (1959/2014) escreve:
cada uma de suas funções também o é, especialmente as que derivam diretamente
das disposições inconscientes. A estas pertence a fantasia criativa. Nos produtos da
fantasia tornam-se visíveis as “imagens primordiais” e é aqui que o conceito de
arquétipo encontra sua aplicação específica (p. 86).
religiosa é considerada um fenômeno psíquico por Jung. No Dicionário Junguiano (2022) encontramos a
definição de religião/religiosidade como atitude de crer. Esse pensamento de algo além deste mundo “é religioso
exatamente porque se refere a algo que se experimenta enquanto desestabiliza a vida consciente”. No decorrer da
teoria analítica, entende-se que a função transcendente é uma forma de desestabilização da vida consciente, uma
vez que seria a transposição da fronteira entre consciente e inconsciente, a união desses opostos complementares.
9
3
Numinoso, segundo o Dicionário Junguiano (2022), indica o caráter com que uma coisa, cujo sentido é
ignorado ou ainda não conhecido, se transforma em força que fascina a consciência do sujeito.
12
4
O Ouroboros é outro arquétipo que carrega tais características de ciclicidade e renascimento.
13
humana, tendo por isso povoado os Olimpos de todas as religiões” (p. 90). A oração “Ave
Maria” é um bom exemplo para se observar como o arquétipo materno aparece no âmbito da
religião que adentra o cotidiano dos devotos, e mesmo dos que não acreditam, mas foram
criados em uma cultura cristã: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois
vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus,
rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém”. A mulher mãe, de aspecto
divino, gracioso, a que dá à luz e também a que vela na hora da morte, a que perdoa a tudo e a
todos, a que roga, a que acolhe.
Em contraposição à psicanálise freudiana, que enxerga na mãe pessoal um papel
determinante na construção da psique infantil, Jung atribui à mesma um papel mais limitado,
mostrando que o arquétipo que lhe é projetado tem mais influência para lhe conferir
autoridade e numinosidade do que somente a mãe em si. Dessa forma, as sequelas traumáticas
na vida dos filhos podem surgir tanto de experiências diretamente vivenciadas com a mãe
quanto da projeção fantasiosa da criança (Jung, 1959/2014).
Como já foi comentado, os complexos podem surgir a partir de um atravessamento
pessoal intenso de um arquétipo na vida de alguém, perturbando seu psiquismo. Tendo como
base o arquétipo materno, os diversos tipos de complexo materno nos filhos são explorados
por Jung (1959/2014), diferenciando, primeiro, os complexos do filho homem e da filha
mulher. Segundo ele, os complexos no filho homem não são puros, pois o arquétipo da anima5
está presente, se misturando com a imagem da mãe. Também nos filhos, os complexos
maternos causam uma sexualização anormal no instinto masculino. No caso da filha, o
complexo é mais puro, mas nem por isso menos ou mais importante, e pode causar
exacerbação ou inibição excessivas do instinto feminino.
É interessante reparar que diversos arquétipos e possibilidades de complexo são
encontrados nos mitos antigos. O arquétipo materno, por exemplo, se faz presente no mito
grego de Réia (Cibele)6 e no mito de Deméter (Ceres) e Perséfone (Proserpina), reafirmando a
influência e a importância dos arquétipos na nossa vida psíquica. Réia é reverenciada como
Grande Mãe, simbolizando a energia escondida no seio da terra e fonte primordial de toda
fecundidade. Foi fecundada por Cronos, deus do tempo, e gestou os deuses dos quatro
elementos (Brandão, 1986), entre eles Deméter, deusa da agricultura e mãe de Perséfone, que
revira os mundos atrás de sua filha raptada, criando, assim, as estações do ano. Os mitos
5
Anima corresponde à parte feminina dentro da psique masculina, sendo uma ligação ao Eros, o princípio da
psique feminina. Já animus corresponde à parte masculina dentro da psique feminina, sendo uma ligação ao
Logos, o princípio da psique masculina.
6
Entre parêntesis, o nome romano
15
também reforçam que os diversos complexos que serão apresentados possuem seus aspectos
positivo e negativo.
Retomando a influência do complexo materno no filho, o mesmo pode resultar em
homossexualidade, no qual o componente heterossexual fica preso à figura da mãe
inconscientemente, ou em “dom-juanismo”, no qual a mãe é procurada inconscientemente em
cada mulher (Jung, 1959/2014). A relação mãe e filho traz um componente de sexualidade,
pois sendo a mãe a primeira mulher que o filho, um futuro homem, tem contato, ela acaba
aludindo à masculinidade do filho de alguma forma, de modo que o funcionamento do filho
em relação à identidade ou resistência à diferenciação se dá na forma de atração ou repulsão
eróticas (Jung, 1959/2014).
Já no caso da filha mulher, o complexo materno pode desencadear a hipertrofia dos
instintos femininos e, consequentemente, do aspecto maternal, o que acaba gerando uma
inconsciência da personalidade da filha por ela mesma, já que ela vive para e pelos outros e
tem como propósito máximo se tornar mãe. Também é possível ocorrer a atrofia dos instintos
femininos, que acontece a partir de uma identificação com a mãe, isto é, quando a filha
projeta seus próprios instintos e desejos na mãe, dependendo da mesma para realizar os seus
próprios desejos. Já a defesa contra a mãe causa uma atitude de negação à supremacia da mãe
e é um exemplo típico de complexo materno negativo, pois isso passa a ser o objetivo da vida
dessa mulher, ao invés de viver a própria vida (Jung, 1959/2014).
Em suma, cada indivíduo carrega uma disposição arquetípica única, o que também é
válido para os complexos. Jacobi (1957/2016) aponta que os complexos não são sempre
prejudiciais ou perturbadores do equilíbrio psíquico, mas que, a depender de como a
consciência lida com eles, compreendendo, assimilando e integrando seus conteúdos, seu
papel na vida do indivíduo muda.
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Já foi dito que os mitos são uma das formas de expressão arquetípica que provêm do
inconsciente coletivo, ou seja, expressões simbólicas do inconsciente. Ao contrário dos
sonhos, que expressam o que se passa em um indivíduo, os mitos dizem respeito à sociedade e
à cultura (Johnson, 1987/1991). Sem datas e informações precisas sobre como e quando
surgiram, os mitos seguem influenciando nossas vidas até hoje, apesar da negação de muitos,
que os consideram como algo primitivo e/ou da ordem do falso, do inventado. Johnson
(1987/1991) explica bem ao dizer que um mito é verdadeiro não no sentido exterior, físico,
mas como expressão certeira da condição interior da psique. É algo verdadeiro por dentro,
mas não por fora. Assim também é possível diferenciar signo de símbolo, já que o primeiro é
uma manifestação concreta de algo, enquanto o último é uma imagem sensível de algo ainda
desconhecido, sem explicação lógica (Jacobi, 1957/2016).
Para exemplificar e aumentar o estudo do arquétipo materno, trabalharemos com o
mito grego de Deméter e Perséfone, a partir dos volumes 1 e 2 da obra Mitologia Grega,
escritos por Junito de Souza Brandão. Deméter pertence à segunda geração divina, sendo filha
de Cronos (Saturno), deus do tempo, e Réia (Cibele). É irmã de Héstia (Vesta), Hera (Juno),
Hades (Plutão), Poseidon (Netuno) e Zeus (Júpiter). Deméter é a deusa e mãe da terra
cultivada, cultuada como deusa dos grãos (em especial o de trigo), da agricultura, da
fertilidade dos solos, a terra-mãe, o grão da vida (Brandão, 1986). Se é grão, é também o
início de tudo, é transformação, como o grão que vira planta ou o trigo que vira pão, e pode
também ser fim, como a planta que produz novos grãos, e assim por diante. Deméter é, além
disso tudo, mãe de Core/Perséfone. Essa informação é fundamental, como coloca Brandão
(1986) ao esclarecer que “tanto no mito quanto no culto, Deméter está indissoluvelmente
ligada à sua filha Core, depois Perséfone, formando uma dupla quase sempre denominada
simplesmente As Deusas” (p. 290).
Da união de Deméter com Zeus, seu irmão - deus do luminoso céu, do Olimpo - nasce
Core. A jovem filha dos dois é raptada pelo tio Hades, que a desejava, com a ajuda do próprio
pai, que lhe atrai com uma flor até um penhasco, donde a terra se abre para o mundo ctônico
onde reinava Hades, o terrível. O mito gira em torno do rapto de Core/Perséfone e todo o
sofrimento de Deméter é contado no Hino Homérico a Deméter, texto sem autoria conhecida,
que data de cerca do século VII a.C. Assim que Core desce ao submundo e se torna esposa de
Hades, passa a ser Perséfone, não mais uma jovem inocente. Sem saber o que aconteceu,
Deméter passa então a procurar exaustivamente a filha, privando-se, no que poderíamos
17
Deméter, assim como toda mulher que vira mãe, encarna o processo inteiro de uma
vida. Nascimento, transformação e morte. É a mãe (a deusa) quem gera a semente, o grão da
vida. Também é ela que permite a esse grão se transformar em planta, a partir da nutrição, ou
que permite que o trigo vire farinha e, depois, pão. Esse processo de virar mãe é, também,
uma espécie de morte, já que a mulher abdica de sua vida anterior para dedicar-se
integralmente a outro ser. Deméter abdicou de sua posição e quase fez morrer a Terra com o
objetivo de achar sua filha. O pão que foi feito, é comido. E Core morre para virar Perséfone.
E é apenas quando as duas se reencontram, ambas mudadas, mortas e renascidas
simbolicamente, que os Mistérios são iniciados. De todas as transformações pelas quais as
duas passaram, a força materna, que puxa para perto tudo que dela sai, na tentativa de
conservar um mesmo estado das coisas, age para que as duas se reencontrem e tudo volte a ser
como era, mesmo diante da impossibilidade real de isso acontecer.
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7. Considerações Finais
Referências
Bonfatti, P.; Carvalho Nogueira, C.C.; Almeida Telles, K.M; Campista Sousa, M.A. (2018).
Acerca do conceito de arquétipo na psicologia analítica: breves considerações. Analecta, v. 4
(4), pp. 533 - 548.
Jung, C. G. (2021). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins. (Originalmente
publicado em 1964).
Neumann, E. (2015). The great mother - an analysis of the archetype. Princeton: Princeton
University Press. (Originalmente publicado em 1955).
Pieri, P. F. (2022). Simbolismo. Em Dicionário Junguiano. 1. ed. São Paulo: Vozes. E-book.
Disponível em: https://plataforma.bvirtual.com.br/