Economia Da Atencao

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114 E-pístol@s

A ECONOMIA DA

Cristiane Costa
Jornalista

N
em o petróleo, nem a água, nem mesmo ele- queda de seu preço e ao aumento do número de prestações
mentos tão difíceis de serem encontrados na oferecido pelo mercado de eletroeletrônicos.
natureza como o nióbio. O tempo está se tor- Três historiadores do livro, da imprensa, das técnicas
nando o artigo mais raro e valioso para uma de leitura e das bibliotecas nos guiam nesse labirinto tec-
sociedade acelerada na qual as opções de distração se mul- nológico, que vai das inscrições em pedra e argila, passan-
tiplicam vertiginosamente, na exata proporção em que as do pelos rolos de pergaminho e códices manuscritos, até
horas vagas parecem desaparecer. Diante da abundância de chegar ao livro impresso tal qual o conhecemos hoje. Roger
informação, o livro precisa se reinventar para competir di- Chartier, Robert Darton e Umberto Eco foram pioneiros ao
retamente com a internet, as mídias sociais, os aplicativos e traçar um panorama das mudanças que o conceito de livro
os games. Sob este ângulo, a concorrência não é mais com vem sofrendo ao longo dos séculos.
outros editores, mas com toda a indústria de entretenimen- Apocalípticos ou integrados, para eles, não há dúvida:
to, incluindo aí o cinema, a televisão e as novas mídias que vive-se hoje uma revolução nas formas de produzir, trans-
vierem a ser criadas no futuro. mitir e armazenar informação. Uma revolução que torna
Por isso, em vez de lamentar e especular sobre um su- incerto o futuro do livro e das livrarias, questiona a noção
posto fim do livro impresso, devemos nos preparar para vi- de autoria, abala as bases da indústria editorial e promete
ver a nova realidade dos dispositivos eletrônicos de leitura. mudar completamente a forma com que o leitor se relacio-
Mesmo em países como o Brasil, em que a exclusão digi- na com os livros. A ponto de ser possível questionar se no
tal é uma realidade econômica, os jovens buscam cada vez futuro ainda vamos usar a palavra livro para nos referir-
mais formas de burlar a falta de um computador pessoal e mos, indiferenciadamente, tanto aos conteúdos impressos
do acesso à internet, apelando para lan houses e netbooks quanto aos digitais.
mais baratos. Smartphones, computadores e tablets têm se Ao explorar as possibilidades narrativas oferecidas pelas
popularizado nas classes mais baixas em direta proporção à tecnologias já na sua concepção, os novos livros, por enquan-

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to chamados de enhanced books ou enriched books (livros Os pesquisadores hoje se dividem entre enxergar a li-
enriquecidos ou turbinados),1 distinguem-se das versões di- teratura eletrônica como parte integrante da tradição lite-
gitalizadas de obras originalmente escritas para serem pu- rária ou algo capaz de expandir as fronteiras desse campo
blicadas como livros de papel, como a maioria dos e-books a tal ponto que seja preciso repensar se ainda deve ser cha-
vendidos nas livrarias virtuais. mada de literatura.
Nascidos digitais, os novos livros podem prescindir Afinal, cinema e fotografia também são artes nascidas
da leitura linear, integrar-se à internet, misturar palavra, do desenvolvimento de novas tecnologias. E daí geraram
vídeo, foto, som e animação, como os vooks (uma corrup- uma linguagem própria. Seria justo chamá-las de teatro ou
tela de vídeo e book),2 e mesmo literalmente explodir em pintura enriquecidos ou expandidos?
3D nas telas com cenários em realidade aumentada.3 Nesse A própria teoria da literatura seria capaz de se expan-
novo livro, real e virtual não são mais mundos separados. dir para dar conta de experiências com games como My Life
Objetos tridimensionais saltam das páginas para interagir with Master5 ou Façade?6 Obras assim poderiam ser consi-
com movimentos do leitor e cenários reais. A tecnologia que deradas literatura? Como se enquadrariam nos valores que,
mostra que tanto a realidade pode ser aumentada quanto embora tenham se alterado significativamente ao longo dos
a virtualidade diminuída. Tudo é uma questão de grada- séculos, consolidaram-se no que hoje identificamos como
ção, assim como abaixar e aumentar o som da televisão. sistema literário, com seus padrões estéticos, paradigmas
Os novos livros podem ainda ser reescritos por seus lei- de estilo, gêneros, filiações etc.?
tores, em experiências interativas e colaborativas que colo- Novas tecnologias, dispositivos, plataformas, progra-
cam em questão o conceito de autoria e propriedade intelec- mas e aplicativos vêm possibilitando constantemente a
tual. Romances epistolares passam a ser e-pistolares, com criação de novos formatos que algumas vezes incorporam
símbolos de SMS substituindo os travessões. Coordenadas a taxonomia literária tradicional; em outras, a reinventam
geodésicas podem transformar um clássico, como A volta ao e hibridizam, como é o caso das hipernovelas, webnovelas,
mundo em 80 dias, de Julio Verne, numa página de Google blognovelas e wikinovelas7 que fazem parte da Biblioteca
Maps. Com direito à visualização dos cenários descritos, tal Digital Miguel de Cervantes.8 Já a Electronic Literature
como se encontram nos dias de hoje. Ou ainda pegar velhas Organization, outra instituição que se dedica ao levanta-
histórias, como o nascimento de Jesus, e contá-las por meio mento e à catalogação de narrativas digitais, fornece um
das mídias sociais.4 quadro diferente do que seriam os novos gêneros e-literá-
rios em sua página:
Literatura expandida ou outra coisa?
Gradativamente, o livro impresso deixa de ser um mo- • E-books, ficção hipertextual e poesia digital, dentro e
delo absoluto também para o escritor, uma vez que hoje fora da web.
narrativas sem papel, ou até mesmo híbridas, podem se • Poesia animada por Flash e outras plataformas.
utilizar de vários suportes para sua “publicação” (no sen- • Instalações de arte computadorizada que pedem leitura
tido original de “tornar público” e não no do senso co- aos espectadores ou possuem aspectos literários.
mum: imprimir). Mas uma nova tecnologia não garante • Personagens conversáveis, também conhecidos co-
automaticamente o aparecimento de um novo experimen- mo chatbots.
to autoral. Por vezes, ferramentas ficam disponíveis por • Ficção interativa.
muito tempo até que nossa imaginação perceba como de- • Romances que tomam a forma de e-mails, SMS, men-
vem ser usadas. sagens ou blogs.
• Poemas e histórias que são gerados por computador,
1. http://www.youtube.com/watch?v=kdiIaIUTBEc&feature=related.
2. http://vook.com. 5. http://www.halfmeme.com/master.html.
3. http://augmentedrealityoverview.blogspot.com.br/2011/03/living- 6. http://www.interactivestory.net.
-bookmetaio.html. 7. http://bib.cervantesvirtual.com/portal/literaturaelectronica/obras.jsp.
4. http://www.youtube.com/watch?v=vZrf0PbAGSk. 8. http://www.cervantesvirtual.com.

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tanto os interativos como os baseados em parâmetros pre- gredo de sua atratividade para o público jovem. Esse leitor
viamente estabelecidos. tem o poder de modificar a história de forma colaborativa.
• Escrita colaborativa de projetos que permitem aos lei- Ou explorativa, quando o autor permite ao leitor/jogador
tores contribuir com o texto de uma obra. traçar o próprio trajeto de leitura a partir de fragmentos de
• Performances literárias on-line que desenvolvem no- textos (lexias) hiperlinkados.
vos modos de escrita. Mas se nos games isso funciona muito bem, com cente-
nas de milhares de jogadores conectados no mundo inteiro
Muitos autores de literatura eletrônica estão mapeados em universos paralelos, como os de World of Warcraft,10 a
nessas bibliotecas ou antologias de obras digitais, como The eficácia da hiperficção explorativa ainda está para ser com-
Electronic Literature Collection,9 que teve seu segundo vo- provada em narrativas com pretensões literárias. A ques-
lume lançado recentemente. A nova coleção abriga 63 obras tão é: um coletivo seria capaz de produzir uma voz ficcio-
de países, produzidas com programas que vão do Flash ao nal coerente?
Processing e C++. São trabalhos que incluem categorias E um computador? Nos LGOs (sigla para literatura ge-
emergentes de e-lit, como remixes e mash-ups, geolocaliza- rada por computador), a elaboração dos textos feita por
ção, codework, assim como outras mais tradicionais, como algorítimos pode ser randômica (quando as palavras são
hipertexto e multimídia. embaralhadas ao acaso) ou contar com a participação do
Antigos critérios conceituais e classificatórios, base- leitor/autor. Basta escolher algumas variáveis (um par de
ados na divisão de campos artísticos, mostram-se inca- adjetivos e o nome de uma pessoa) e apertar a tecla enter.
pazes de dar conta das múltiplas possibilidades abertas Em poucos segundos essa espécie de karaokê das letras vai
por essa escrita digital, que não tenta mimetizar o texto gerar um poema a partir de palavras usadas por Clarice Lis-
impresso, mas criar novas estratégias discursivas. E que pector11 ou de um parágrafo de Jorge Amado.12 E até mesmo
pode ser encontrada tanto nas bibliotecas eletrônicas usando o Fabuloso Gerador de Lero-lero,13 um ensaio talvez
quanto no YouTube. tão razoavelmente consistente quanto este.
Entretanto, ser ou não ser literatura pode ser uma ques- Parece uma grande brincadeira, mas há toda uma teo-
tão irrelevante no novo contexto. Dentro da perspectiva de ria por trás da escrita generativa. A partir de banco de da-
economia da atenção, não se deve buscar o que haveria de dos e algorítimos que mapeiam palavras mais usadas e es-
valor literário em videogames, por exemplo, mas quais as tilos literários, cria-se um diálogo entre linguagens verbais
estratégias usadas por esses representantes contemporâne- e não verbais.
os da arte narrativa para engajar seus jogadores, chamados
também de interatores. Afinal, se gastamos milhões de reais Assustador?
em programas de incentivo à leitura, nunca se falou em pro- Para os escritores/leitores/programadores/interatores/
grama de incentivo ao game. Indiferente à publicidade ou às jogadores, ou como venham a ser chamados no futuro, ape-
verbas governamentais, esta é a indústria cultural que mais nas mais uma ferramenta a ser explorada na fantástica caixa
cresce no mundo, desbancando até o cinema. Seria possível aberta pelas narrativas em mídia digital.
criar viciados em livros, como existem viciados em games,
em internet, em mídias sociais? 10. http://us.battle.net/wow/en.
11. http://www.telepoesis.net/amorclarice/v2.
O jogo tem sido mais do que uma metáfora para nar- 12. http://www.mundoperfeito.com.br/index.php?option=geratexto.
rativas produzidas para o meio eletrônico. Games possuem 13. http://suicidiovirtual.net/dados/lerolero.html.
três das características que tradicionalmente distinguem
uma obra digital da impressa – o hipertexto, os recursos
multimídia e a interatividade. Eles exigem um leitor ativo A articulista é professora e coordenadora do curso de Jornalismo da
na construção da narrativa. E talvez seja este o principal se- ECO-UFRJ.

9. http://collection.eliterature.org. [email protected]

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