Apostila Teoria e Crítica Literária Ii

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TEORIA E CRÍTICA

LITERÁRIA II
INTRODUÇÃO

Prezado aluno,

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala


de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar,
interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja
esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em
voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa.
Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de
atendimento que serão respondidas em tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina
é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações
propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para
isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos
definidos para as atividades.

Bons estudos!
1 ELEMENTOS DA CONSTRUÇÃO LITERÁRIA

Quando falamos em texto literário, não nos damos conta dos mecanismos
usados pelos autores para construção de suas realidades discursivas-textuais. Todo
texto (FLACH; GONÇALVES, 2018) leva consigo alguns elementos dos quais o
teórico precisa lembrar – ainda que essa relação não seja tão clara para o leitor
comum. Quando adquire um livro, seja de romance, de poesia, ou qualquer outra
produção literária, na maioria das vezes o leitor não se atente às qualidades técnicas
e literárias daquela obra, mas isso não é em si mesmo um mal, na medida em que a
maioria dos leitores ao adquirir uma obra não está preocupado com a relação que
essa produção literária tem com o seu contexto teórico. Fica, portanto, a cargo do
estudioso ou pesquisador pensar a produção literária em sua relação com a teoria ou
com a linguagem. Quando falamos de Teoria literária nos referimos a arcabouços
teóricos que nos ajuda a pensar a obra literária, em seus múltiplos gêneros e em seus
muitos contextos de produção.

1.1 Linguagem e produto literário

Como afirma Brait (2010), são muitas as relações existentes entre língua,
linguagem e literatura e essas relações podem ser estudadas sob múltiplos e variados
olhares, sejam eles verbais, visuais ou verbo-visuais. O todo que resulta dessas
múltiplas abordagens pode ser tido como as muitas vertentes de observação do
fenômeno literário. Sempre considerando o texto (em suas várias acepções) como
uma forma de conhecimento, fonte de prazer ou como uma maneira de observar e
usufruir das muitas e variadas implicações de um texto de natureza literária e, em
última instância, também observar como esses textos acabam por refletir à sua
maneira o modo como observarmos ou nos relacionamos com a vida.
O pensar a linguagem é absolutamente necessário (KIRCHOF, 2017) se
quisermos pensar na produção literária e se quisermos pensar em texto literário em
sua apreensão tanto prática como teórica, ou seja, quando pensamos na leitura do
texto literário ou quando procuramos saber sobre a produção, circulação e recepção
do texto que traz consigo uma apreensão literária das muitas realidades existentes.
Com o intuito de representar as muitas realidades a criatura humana se vale das
muitas capacidades às quais ele possui, inclusive da língua com sua centralidade na
palavra, bem como da linguagem em uma acepção mais geral.
Para Trask (2004), a linguagem é faculdade cognitiva exclusiva da espécie
humana que permite a cada indivíduo – a cada ser humano – representar e expressar
simbolicamente sua experiência de vida, suas relações com a realidade, assim como
adquirir, processar, produzir e transmitir conhecimento. Como mostra Bordenave
(1997), homens são seres muito particulares, porque teem particularmente essa
capacidade admirável de significar, isto é, de produzir sentido por meio de símbolos,
sinais, signos, ícones etc. Ou em palavras mais diretas, os sentidos são produzidos
por meio da linguagem.
Nenhum gesto humano é neutro, ingênuo, vazio de sentido. Muito pelo
contrário, ele é sempre carregado de sentidos, em suas muitas e variadas
manifestações, e cabe justamente à nossa capacidade de linguagem interpretar os
sentidos contidos em cada manifestação dos outros membros da nossa espécie.
Então, todo sistema de signos empregados pelo ser humano com o intuito de
expressar seus sentimentos e experiências e materializar seus pensamentos podem
ser chamados de linguagens.

1.2 Teoria e funções da linguagem

O responsável pela construção de um modelo de comunicação que passou a


ser usado como o melhor e mais prestigiado modelo teórico para estudar a
comunicação como uma teoria foi o estudioso russo Roman Osipovich Jakobson.
Nascido em 1896, em Moscou. Estudou no Instituto Lazarev de Línguas Orientais da
Universidade de Moscou de 1914 a 1918, onde desenvolveu seus estudos a respeito
do funcionamento da linguagem, e faleceu nos Estados Unidos em 1982. Jacobson é
hoje reconhecido como um dos maiores linguistas do século XX.
Sua influência para a linguística vai desde a teorização da linguagem na criança
até estudos que tem como elemento condutor a sistematização da linguagem e suas
várias manifestações. Os trabalhos de Jacobson, materializados em suas publicações
estão disponíveis em revistas periódicos, revistas e jornais e tratam sobre o processo
de comunicação.
No geral, podemos dizer que existe, grosso modo, uma linha condutora que
guiou os trabalhos do teórico russo, a comunicação em seu processo. Recai sobre o
teórico a responsabilidade de ter elaborado uma teoria que converse com a fonologia,
a patologia da linguagem, a antropologia, a teoria da informação, a estilística e o
folclore. Nesse sentido é possível dizer que Jacobson elaborou uma teoria que nasce
e se desenvolve da confluência entre várias outras teorias. Entre as muitas influências
que incidiram sobre os estudos do teórico está o chamado “Formalismo russo”,
movimento que procurava encontrar na forma da produção literária sua razão de ser,
ou seja, que a essência da obra literária estaria em sua formalização e não
necessariamente em uma questão de conteúdo.
Grande parte do conhecimento popular da teoria de Jacobson foi levada a efeito
por conta da sua famosa sistematização da teoria da linguagem, ou seja, pensar uma
forma de representar o processo de comunicação em termos menos argumentativos
e mais gráficos – pelo menos é assim que a maioria dos estudiosos e leitores captam
a teoria do estudioso russo. Para o próprio Jacobson (1970, p. 14) “a linguagem é um
dos sistemas de signos, e a linguística, enquanto ciência dos signos verbais é apenas
parte da semiótica, a ciência geral dos signos”.
Em outros termos, o estudioso admite que a linguagem é o tipo mais óbvio de
comunicação. Argumenta também que a ciência da linguagem (a linguística) investiga
a fabricação de mensagens verbais e de seus códigos subjacentes e que as
características estruturais da linguagem são interpretadas, em sentido pleno, a partir
das funções que elas cumprem.
Como já tivemos oportunidade de observar, Jacobson se notabiliza pela sua
vasta área de atuação como estudioso da comunicação e da linguagem, essa relação
com outras ciências fez com que o teórico se notabilizasse pela adaptação e releitura
da teoria de vários outros de seus pares também estudiosos da linguagem e da
comunicação. Como resultado da aproximação da linguística com as outras ciências
e com outros cientistas, o teórico foi cristalizando sua teoria. Essa troca de informação
e conhecimento de teorias outras, fica percebido na fala do próprio teórico quando
afirma:

É preciso reconhecer que, sob certos aspectos, os problemas da troca de


informação encontraram, por parte dos engenheiros, uma formulação mais
exata e menos ambígua, um controle mais eficaz das técnicas utilizadas, bem
como prometedoras possibilidades de quantificação. Por outro lado, a imensa
experiência acumulada pelos linguistas no tocante à linguagem e à sua
estrutura permite-lhes expor as fraquezas dos engenheiros quando estes
lidam com material Linguístico (JAKOBSON, 2008, p. 18).
O resultado dessas trocas é um termo cunhado por Jacobson, a “Linguística
matemática”, bem como o aproveitamento o enriquecimento de várias teorias já
existentes em sua época que foram tomadas por Jacobson na elaboração do seu
esquema de comunicação. De acordo com o teórico russo (JACOBSON, 2008), todo
esquema de comunicação podia ser representado por seis elementos diversos e
complementares, a saber: (1) remetente; (2) mensagem; (3) contexto; (4) código; (5)
contato ou canal e (6) destinatário. Com o passar do tempo e com estudos
complementares, esses nomes vão sendo adaptados; mas o esquema da
comunicação idealizado pelo teórico e estudioso da linguagem pode ser representado
por esses seis elementos, cada uma dos quais exercendo sua função do processo
comunicativo. O que Jacobson propõe é uma análise da comunicação e seus
processos para, em primeira análise, conhecer suas estruturas.

Figura 1 – Esquema de comunicação

Fonte: Adaptado de JACOBSON, 2008, p. 123.

Nessa representação esquemática podemos observar os principais elementos


para que haja de fato um processo comunicativo, ou seja, um processo de
comunicação. Temos, portanto, cada um dos elementos colocados de forma
sistemática com um intuito de servir como ilustração para um processo, um processo
de interação entre dois ou mais locutores que se colocam em uma dinâmica
comunicativa.
Assim, seguindo as observações de Jacobson (2008) podemos dizer que o
emissor é o responsável pela transmissão da mensagem; o receptor é aquele que
recebe a mensagem; a mensagem é aquilo que é dito ou transmitido; o contexto são
os elementos físicos ou situacionais para a compreensão da mensagem; o canal é o
instrumento usado para transmissão da mensagem é o código é o conjunto de sinais
escolhido pelo emissor na transmissão de sus mensagem.
A partir dessas observações que acabaram por se tornar preliminares,
Jacobson (1970, 2018) desenvolveu sua teoria das “Funções da linguagem”, que em
outros teóricos já havia sido chamada de “teoria da informação”. O teórico argumenta
que para cada um dos elementos da comunicação (Figura 1) existe uma função da
linguagem que para esse elemento está orientada.
Como resultado, o estudioso explica que a intenção da mensagem é o elemento
condutor para interpretação da mesma mensagem, dando a essa mensagem uma
interpretação que seja condizente com a intencionalidade do emissor. Cada função
da linguagem se apoia em um critério linguístico que dá a essa função sentido e
estabilidade.

Figura 2 – Funções da linguagem

Fonte: Adaptado de JACOBSON, 2008, p. 129.

Como nos ensina Santee e Temer (2011), o intuito primordial para o teórico
russo era perceber os elementos da linguagem que compõe o que o teórico chamou
de linguagem poética. Portanto, é preciso que se perceba que o principal objetivo era
explicar a dinâmica que rege aquilo que mais tarde será chamada de linguagem
literária.
Então, como mostrado acima temos (1) a Função emotiva (ou expressiva), cuja
principal característica é uma expressão direta de quem fala com o intuito de despertar
uma emoção; (2) a Função conativa, que tem como principal característica é a sua
construção por frases no vocativo ou no modo imperativo; (3) a Função fática, cuja
comunicação está centrada no canal e é utilizada comumente para atrair a atenção
do interlocutor e procura confirmar essa atenção constantemente; (4) a Função
metalinguística, que se caracteriza a verificação do código usado pelos interlocutores;
(5) a Função referencial (ou denotativa) é aquela que se volta para o contexto em que
a mensagem é produzida e (6) a Função poética, que, ao fim e ao cabo, era o principal
objeto de estudo de Jacobson, estuda as característica da linguagem poética, ou
como costuma-se dizer, a linguagem literária.
No quadro abaixo podemos observar como as funções da linguagem se
organizam em paralelo com os elementos do esquema de comunicação.

Figura 3 – Comunicação e linguagem

Fonte: Adaptado de JACOBSON, 2008, p. 129.

Como observaram os autores Santee e Temer (2011) em seus estudos da


teoria desenvolvida pelo teórico da linguagem, na função poética é predominante na
estrutura elaborada por Jacobson, nessa função a mensagem está voltada para sí
mesma, ou seja, na função poética o objeto do labor linguístico é a própria mensagem
em sua forma e conteúdo (ou em suas características físicas, sonoras e visuais)
fazendo uma relação formal e conteúdistica entre o mundo do texto e o mundo da
realidade.
Como apontado por Brite (2010, p. 12), linguagem e literatura são elementos
conjuntos, cujo resultado é uma “parceria inseparável” que nos permite construir uma
longa vivência entre a linguagem oral, empregada nos mais variados contextos de
vivências e na linguagem escrita, cujo produto mais refinado é a obra literária. É essa
riqueza de possibilidades, de representação e de expressão – e por que não dizer de
usos? – que nos permite falar de linguagem musical ou da música, linguagem
cinematográfica ou do cinema, linguagem teatral ou do teatro, linguagem corporal ou
do corpo, linguagem da dança, da pintura, da escultura, da arquitetura, da fotografia,
incluindo as linguagens secretas, que exigem o domínio de códigos reservados a
poucos iniciados e é sob essa mesma lógica que podemos falar de uma linguagem
literária ou uma linguagem própria da obra literária.
Como em Silva (2014), não se pode falar de literatura em suas várias
manifestações, sem falar ainda que de maneira breve da linguagem. Daí a
necessidade de antes de se voltar para os estudos do texto literário entender as
relações que os estudos da linguagem nos proporcionam na construção de uma
compreensão que elabore e reelabore uma teoria sobre a leitura de textos literários e
suas formas de manifestação. É nesse sentido que a teoria da literatura pode operar
como um “instrumento” que nos ajude a observar avaliativamente a narrativas
ficcionais.
2 ELEMENTOS LITERÁRIOS

Com o propósito de compreender a linguagem poética, ou como iremos


denominar em momento posterior da história, a “linguagem literária”, observamos que
a comunicação com suas várias vertentes e possibilidades acabou por se tornar um
elemento indispensável para compreensão do que seja a literatura e suas muitas
características. Pensamos como o teórico russo Roman Jacobson esquematizou os
elementos da comunicação, bem como aquilo que ele chamaria de as “funções da
linguagem” para compreender aquele que era o objeto primeiro de seus estudos, a
linguagem poética e suas características. Assentado em uma perspectiva teórica
estruturalista, as propostas apresentadas pelo teórico se mostraram extremamente
relevante para compreensão do fenômeno literário.

2.1 Fenômeno literário

Como nos ensina Silva (2014), conviver com a literatura em suas várias
manifestações é entrar em um mundo de histórias, paixões e sensações. Aquilo que
comumente é chamado de fenômeno literários, em outro momento da história –
durante tempo áureo do formalismo russo – já foi chamado de literalidade, ou, em
outros termos, as características daquilo que é literário. Acreditou-se que, por ser uma
forma de escrita que carrega consigo algumas características que são a ela
particulares, o fenômeno literário era diferente de outras formas de linguagem na
medida em que na literatura a expressividade e o uso da palavra se faziam perceber
facilmente, sem grandes dificuldades para o homem de cultura letrada.
O primeiro filosofo a colocar em prática uma sistematização da linguagem foi
Aristóteles (384-322); para ela a linguagem humana poderia ser estudada sobre duas
vertentes; a “retórica”, que poderia ser definida como a arte de falar bem e convencer
a outros, e a “poética” que seria a linguagem literária em todas as suas manifestações.
Para os gregos do tempo de Aristóteles a palavra poética era aplicada a todas as artes
que usavam a palavra como um instrumento de beleza e encantamento. As reflexões
do filósofo sobre a arte poética continuam a mover estudos em todas as partes do
mundo considerando seus ensinamentos. Ao refletir sobre a tragédia, o filosofo
inaugura o uso de um termo que acompanhará a trajetória dos estudos acadêmicos
acerca da literatura em todos os lugares do mundo, o termo mimesis. De acordo com
o filosofo:

A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão,


numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas
partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão
(eleos) e do temor (phobos), provoca a purificação (katharsis) de tais paixões
(ARISTÓTELES, 2008, p. 24).

Como nos ensina Pereira (2008), Aristóteles em suas reflexões tenta


sistematizar como a narrativa opera para conseguir despertar sentimentos no seu
espectador. Segundo ela o filósofo em sua obra descreve as partes constitutivas de
uma tragédia ou de uma obra literária como enxergada em seu tempo.
Assim, as partes constitutivas de uma obra poética seriam (1) o enredo
(mythos), (2) os caracteres (ethe), (3) a elocução (lexis), (4) o pensamento (dianoia),
(5) o espetáculo (opsis) e (6) a música (melopoiia). Ao caracterizar todos esses
elementos da obra poética, o filósofo coloca-se entre aqueles que primeiro tentaram
estudar e caracterizar uma obra literária e perceber sua influência sobre o público
espectador daquela produção literária. Uma relação de purificação, compaixão e
temor.
Figura 1 – O filósofo Aristóteles

Fonte: Brasilescola.com.
O texto de Aristóteles, A Poética, por sua relevância e pioneirismo, acabou por
se tornar um marco da teoria que trabalha com a produção literária. Segundo Pereira
(2008), pesar de sua transmissão para as gerações futuras não ser tranquila, mas
conturbada, os pressupostos acabaram por se tornar uma obra unânime na
compreensão do sistema literário ocidental. Alguns já disseram que todos os
elementos contidos na Poética é uma resposta à desvalorização revelada pelo mestre
de Aristóteles, Platão, à obra literária. Em sua obra, A República, o filósofo se colocou
em contrário a toda e qualquer forma de imitação da realidade, inclusive aquele tipo
de imitação que se caracterizava pela imitação da realidade em forma de literatura,
de narrativa.

2.2 Mito e sua importância

Em sua doutrinação ou sistematização, Aristóteles destaca as partes da


tragédia e, entre essas partes está, o mythos (mito), ou seja, a narrativa em si ou o
enredo. Esse era a concepção original que o mito tinha na teoria do filósofo. Mas a
ideia de mito sofreu no decorrer dos tempos muitas e variadas conceituações. Em
palavras do próprio Aristóteles (2008, p. 50) o mito é “o princípio e como que a alma
da tragédia”. Não é difícil perceber que essa concepção é, flagrantemente,
diferenciada daquela concepção que temos hoje a respeito do termo “mito”.

Portanto, assim como nas outras artes imitativas a um só objeto corresponde


uma só imitação, também o enredo, como imitação que é de uma ação, deve
ser a imitação de uma ação una, que seja um todo, e que as partes dos
acontecimentos se estruturem de tal modo que, ao deslocar-se ou suprimir-
se uma parte, o todo fique alterado e desordenado. Realmente aquilo cuja
presença ou ausência passa despercebida não é parte de um todo […] Pelo
exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu
mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o
princípio da verossimilhança e da necessidade (ARISTÓTELES, 2008, p. 53-
54).

Para o filosofo a grande diferença existente entre o poeta e o historiador é


justamente essa relação entre história inventada e história real, ou seja, no poeta
temos uma narrativa daquilo que não é ou deveria ser enquanto que na relação do
historiador e seu texto temos a narrativa daquilo que verdadeiramente aconteceu.
Temos, portanto, que justamente a diferença entre o poeta e o historiador é o fato de
que um narra aquilo que poderia acontecer e outro aquilo que realmente acontece.
“Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História.
É que a poesia expressa o universal, a História o particular” (ARISTÓTELES, 2008, p.
54). Filosoficamente temos a seguinte definição para o mito:

Além da acepção geral de "narrativa", na qual essa palavra é usada […] do


ponto vista histórico é possível distinguir três significados do termo Mito: [1]
como forma atenuada de intelectualidade; [2] como forma autônoma de
pensamento ou de vicia; [3] como instrumento de estudo social. […] O Mito
não é definido segundo determinada forma do espírito, como p. ex. o intelecto
ou o sentimento, o que acontece nas duas interpretações precedentes, mas
em relação à função que desempenha nas sociedades humanas: função que
pode ser esclarecida e descrita com base em fatos observáveis. […] Mito
demonstra a impossibilidade de relacioná-lo, com base em seu teor, com esta
ou aquela forma espiritual, indicando que, ao contrário, é preciso estudá-lo
em relação à função que exerce na sociedade humana (ABBAGNANO, 2007,
p. 674-675).

Com relação a função que o mito exerce na sociedade humana, de forma geral,
e como ele pode ser instrumentalizado pela teoria da literatura, de forma específica,
temos Monfordini (2005) que explica como o mito, ou sua conceituação, sofreu
diversas mudanças em diferentes momentos da história. Segundo a autora o advento
das novas tecnologias que possibilitaram o uso mais frequentes de registros gráficos,
acabaram por possibilitar novar abordagens para aquelas narrativas que se faziam
oralmente em momentos passados da história da humanidade. Nas sociedades
arcaicas o mito trazia consigo a representação de uma história verdadeira que servia
para explicar os fenômenos que acontecia naquela sociedade.

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no


tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento:
uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
(ELIADE, 1978, p. 11)

Ao olhar para o uso do mito em esfera religiosa, Eliade (1978) percebe que
para os povos antigos o mito funcionava como uma narrativa verdadeira que explicava
como as coisas vieram a existir, bem como os motivos pelos quais os deuses criaram
aquelas coisas e os motivos pelos quais elas se mantém. O mito, nessa perspectiva,
descreveria coisas que diziam respeito ao ser humano. Assim, o que se tem nos mitos
é um modelo exemplar e narrativo de toda a atividade humana, visto a partir da
perspectiva do sagrado, do mundo dos deuses.
2.3 Um instrumento avaliativo

A partir das considerações e estudos acerca das narrativas mitológicas em


suas várias versões e manifestações, surge a necessidade de uma ciência que tenha
como principal objeto de estudo a obra literária em sua manifestação dupla, ou seja,
a manifestação literária em verso (o poema) e a manifestação literária em prosa (a
narrativa) que se caracterizam como que dos braços do mesmo rio, a produção
literária universal.
Ao observar a recente história da teoria literária como ciência, Silva (2014)
lembra-nos de que essa é uma ciência relativamente novo que tem como principal
objeto para desenvolvimento de suas investigações a obra literária. Para o leitor
comum uma teoria que estude a obra literária em suas muitas e variadas
manifestações, não se constitui algo de muita importância; uma vez que para esse
leitor a escola do livro a ser lido por ele não é uma escolha técnica, mas uma escolha
que tenha a ver com gostos momentâneos. Até meados do século XX a literatura não
tinha o tratamento diferenciado – como se vê em nossos dias.
Como vimos, o tratamento dado a literatura era o mesmo dado a outras artes.
Até porque aqueles que se debruçavam sobre a arte literária para lhe apontar
característica eram, primordialmente, os filósofos, como tivemos a oportunidade de
verificar.

É estimulante, de qualquer modo, que numa era pós-moderna na qual se


espera que o significado, a exemplo de tudo o mais, seja instantaneamente
consumível, existem pessoas que acham que vale a pena adquirir novas
maneiras de falar sobre a literatura […]. Devidamente compreendida, a teoria
literária tem em suas bases um impulso democrático, nunca elitista; e, a este
respeito, quando ela realmente mergulha no empoladamente ilegível, está
sendo desleal para com suas próprias raízes históricas. (EAGLETON, 2006,
p. 9)

Eagleton (2006), propõe uma caracterização da teoria literária como um


instrumento de promoção da democracia, na medida em que faz com que a obra
literária se torne um objeto acessível a todas as pessoas.
Ainda segundo o crítico, não existe, necessariamente, uma um corpo teórico
que se origine da literatura e que seja, exclusivamente, aplicada a ela, pois a literatura
é feita para todos. Na pós-modernidade é cada vez mais urgente a necessidade de se
falar da produção literária sem as amarras do academicismo; criando assim novas
maneiras de abordar o assunto da literatura em seus vários níveis.
Durante muito tempo, ainda segundo Eagleton (2006), entendeu-se que a
literatura era um estudo que estava à disposição de poucos afortunados que tinham
em si “valores literários”; a quebra desse paradigma, a partir da década de 1960,
acabou por trazer uma nova forma de elaborar reflexões acerca da literatura em que
cada pessoa pudesse contribuir com seus conhecimentos, sem ter que ser,
necessariamente, um especialista em Teoria da literatura. Foi nesse intercurso que a
teoria passou a utilizar como ferramenta de análise outras ciências como a Psicologia,
a Filosofia, a Semiótica, etc.

Figura 2 – Capa do Filme Tróia

Fonte: Adorocinema.com

Um marco para os estudos de Teoria da literatura foi a publicação, em 1917,


de um artigo chamado “Art as Device” do russo Vítor Sklovski (1893-1984) no qual ele
defendia a popularização da arte sob o argumento de que o propósito principal da arte
(incluindo a literatura) é promover sensações e não fazer uma descrição a respeito de
como as coisas são.
Essa tomada de posição, acabou por mudar a forma pela qual a literatura era
percebida em sentido extenso pela maioria das pessoas, inclusive por alguns críticos
e estudiosos da própria literatura. Refletindo sobre as problemáticas que envolve o
uso da teoria literária como ferramenta para pensar a literatura como produção
cultural, Eagleton (2006) afirma que:

Uma “educação literária” certamente não é o caminho mais indicado para


estimular o pensamento analítico, mas a teoria literária de fato não é mais
difícil do que muitas outras formas teóricas de investigação, sendo mesmo
muito mais fácil do que algumas delas […] Alguns estudantes e críticos
também objetam que a teoria literária “se interpõe entre o leitor e a obra'”. A
resposta mais simples a esta observação é a de que sem alguma forma de
teoria, por menos consciente e implícita que seja, não saberíamos, em
primeiro lugar, como definir uma "obra literária'', ou como deveríamos lê-la
(EAGLETON, 2006, p. 12).

Não obstante o posicionamento de alguns teóricos mais tradicionais, pode-se


dizer que o uso da Teoria literária (BRAIT, 2010) como um instrumento para a
avaliação da ficção literária é, não somente necessária, mas inestendível se
quisermos refletir sobre a necessidade e as muitas formas de análise do produto e do
processo de construção de uma obra literária. Uma reflexão acurada e séria a respeito
desses elementos, acabem por popularizar o conhecimento da obra como produto,
mas também os mecanismos que garantes esse processo de criação e circulação da
obra literária em seus variados contextos.
3 ELEMENTOS DA NARRATIVA

Uma das questões fulcrais para a Teoria da literatura é poder definir seu objeto
de estudo, ou seja, definir o que é literatura. Com o passar dos tempos, porém, essa
questão acabou por tomar outras proporções na medida em que foram percebendo
que o elemento primordial para compreensão da obra literária era, sem dúvida, o seu
efeito subjetivo sobre o leitor. Essa secularização – por assim dizer – não desobriga o
estudioso da literatura a se pergunta o que ela é e como é possível estuda-la. Para
estudar a obra literária, um dos caminhos possíveis é desmembrá-la em seus
elementos constitutivos com vistas a analisar aquela obra e sua forma de
funcionamento. De onde surge o caminho de analisar a narrativa partindo de seus
elementos de constituição, como por exemplo, o narrador, as personagens, o tempo,
o espaço, etc.

3.1 A Personagem

A dinâmica de criação do jogo artístico-literário, segundo Brait (2017), acaba


por entrelaçar todos aqueles que estão de certa forma envolvido nesse jogo. Essa
perspectiva resulta em uma apreensão de todos os elementos que configuram uma
narrativa literária. Mas esses elementos não são apenas contemplados pelo leitor,
eles exercem sobre o espectador-leitor as mais variadas respostas, como ódio, amor,
lealdade e expectativa.
Um dos elementos essências para a atividade estética (a obra literária) é a
personagem. Na crítica contemporânea são muitas e variados as teorias que
procuram olhar para a personagem em uma perspectiva que busque contemplar
nessa construção linguístico-literária sua caracterização exata; mas isso não é algo
fácil se proceder, em especial quando pensamos que na criação de uma personagem
existem várias consciências envolvidas. Acompanhando Candido (2016) é possível
dizer que: bicicreta
Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos,
organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma impressão
praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente
nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que
vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino — traçada
conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de
ambiente (CANDIDO, 2016, p. 51)
Assim, podemos dizer que logo que acompanhando uma história contada,
sempre que acompanhando um enredo sendo desvelado, fazemos isso levados pela
mão por uma personagem, geralmente a personagem principal da história – o
protagonista. As personagens são, dentre os elementos da narrativa, aquelas que são
mais atuantes. Em se tratando de produção textual literária, essa relação de
apreciação da personagem como elemento essencial na construção narrativa só vira
a se fortalecer em meados dos séculos XVIII, XIX e XX.
Como afirma Candido (2016), apesar de sua força de construir mundos e
realidades outras que não aquelas em que estamos inseridos, a personagem é “um
ser fictício”, ou seja, ele não existe de fato. O lugar de personagem um uma narrativa
pode ser ocupado por uma figura humana, por um animal ou até mesmo por um objeto,
nesse sentido é possível dizer que “a personagem vive o enredo e as ideias, e os torna
vivos” (CANDIDO, 2016, p. 52). E o autor continua dizendo que:
Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados
fundamentais do problema é o contraste entre a continuidade relativa da percepção
física (em que fundamos o nosso conhecimento) e a descontinuidade da percepção,
digamos, espiritual, que parece frequentemente romper a unidade antes apreendida.
No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a convivência espiritual mostra
uma variedade de modos-de-ser, de qualidades por vezes contraditórias (CANDIDO,
2016, p. 52)
O Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (versão On-line) olha para a ideia
de personagem em sentido mais etimológico e coloca a sua definição de maneira mais
clara e popular e organiza essas informações de modo topicalizado nos seguintes
termos:
• Pessoa fictícia de uma obra literária ou teatral;
• Papel desempenhado por um ator;
• Pessoa considerada em sua aparência, em seu comportamento;
• Representação de um ser humano em uma obra de arte;
• Personagem influente. Pessoa importante ou célebre.
• Personagem muda: Pessoa que, em qualquer ato, representa um papel.
Segundo Brait (2017) tanto o conceito que se pode observar de personagem
quanto sua relevância no discurso estão vinculadas a mobilidade criativa daquele que
escreve a narrativa com suas características literário-discursivas. As reflexões acerca
dos modos de existência desses personagens, portanto, estão veiculados a essa
mesma característica de criatividade autoral.
É comum em muitas narrativas a forma da personagem que tradicionalmente
seria para ser odiada pelo grande público, passa a receber maior atenção do público
leitor, no caso de narrativas livrescas ou do telespectador, no caso dos que
acompanham novelas de TV, por exemplo.
Apesar de ser imaginada pelo autor como vilão a personagem, escapando de
sua tipologia original, pode cair da “graça do povo” e se tornar mais importante no
enredo do que a personagem protagonista. É possível tipificar as personagens da
seguinte forma:

• A personagem protagonista - é considerado o personagem principal de uma


trama é com ele que se desenvolve uma história, sendo que na grande parte
das vezes ele é um herói, podendo existir, em alguns casos, mais de um
protagonista;

• A personagem antagonista - é a personagem, grupo de personagens ou uma


instituição em uma obra que se apresenta em oposição ao protagonista, à
personagens principais sendo seu rival;

• As personagens secundárias - é também conhecido como coadjuvante, é a


personagem que tem por função oferecer suporte para os personagens
principais;

• As personagens figurantes - é um personagem que não tem importância


primordial para a trama, serve apenas para ilustrar o lugar ou espaço
retratados;

• A personagem herói – é um personagem que possui atributos para superar


problemas que possuem dimensões épicas.

Ainda Candido (2016, p. 58) procura caracterizar as personagens em duas


categorias que, segundo ele, abarca todas as características das personagens em
todas as narrativas, em todos os temos, a saber, “1) como seres íntegros e facilmente
delimitáveis, marcados duma vez por todas com certos traços que os caracterizam; 2)
como seres complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm
certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o
mistério”.
Em outra abordagem, e sob outras bases teóricas, o autor fala das
“personagens de costumes”, que são aqueles que se caracterizam pela simplicidade
das características pessoais e “as personagens de natureza”, são aqueles cujas
características tendem mais às profundidades psicológicas da natureza humana.
Em tempos mais recentes, Forster (1998) entendeu que as personagens de
ficção poderiam ser organizadas em dois grupos para análise. Aqueles personagens
que forma denominados de “personagens planos” e “personagens esféricos”.
Enquanto estes se destacavam por suas características complexas aqueles se
destacam por suas características simples de personalidades. Nas palavras do próprio
crítico literário:

As personagens planas eram chamadas temperamentos (humours) no século


XVII, e são por vezes chamadas tipos, por vezes caricaturas. Na sua forma
mais pura, são construídas em torno de uma única ideia ou qualidade; quando
há mais de um fator neles, temos o começo de uma curva em direção à
esfera. […] Tais personagens “são facilmente reconhecíveis sempre que
surgem”; “são, em seguida, facilmente lembradas pelo leitor. Permanecem
inalteradas no espírito porque não mudam com as circunstâncias […] A prova
de uma personagem esférica é a sua capacidade de nos surpreender de
maneira convincente. Se nunca surpreende, é plana. Se não convence, é
plana com pretensão a esférica. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida, —
traz a vida dentro das páginas de um livro (FORSTER, 1998, p. 67, 75).

Apesar das inúmeras tentativas de caracterizar de maneira didática as


personagens, pesquisas recentes, em especial na área da Linguística do texto e de
Análise de discurso, acabaram por impor novos desafios para os estudantes da
narrativa, de forma geral, ou nos estudos das personagens, de forma específica. Outro
elemento da narrativa que nos coloca diante de grandes desafios na
contemporaneidade é o espaço, objeto de nosso próximo tópico.

3.2 O Espaço

Por um longo período de tempo (SILVA, 2014), o espaço da narrativa foi visto
como algo que poderia ser estudado em separado em relação aos personagens; mas
essa preposição não tem sido apoiada pela maioria dos teóricos da narrativa. Em
sentido prático, podemos dizer que o espaço é considerado um dos elementos
estruturantes da narrativa, ao lado do tempo, dos personagens e do enredo, dentre
outros. As acepções mais usuais do senso comum e de maior sobrevivência tratam
deste conceito como algo que se aproxima em maior ou menor grau da ideia de
cenário tal como concebida pela dramaturgia clássica, ou seja, o espaço está para a
narrativa da mesma forma que o cenário está para o teatro.
A primazia do espaço em narrativas, dependerá do gênero que estiver
estudando discursivo a partir do qual estão se entendendo a obra literária. Em uma
narrativa de mistério, em uma narrativa de fantasia ou em uma narrativa dramática o
espaço terá maior ou menor importância dependendo da intenção do autor no
desenvolvimento de sua história. “A intensidade, a frequência e a densidade com que
os lugares geográficos se impõem no conjunto da obra literária estão relacionadas
intimamente às outras tantas características do enredo, em uma relação simbiótica de
difícil mensuração do que vem primeiro” (MOISÉS, 2014, p. 136-139).
Portanto, a função do espaço em uma obra literária não é de mera
contextualização. Sua importância vai muito além de situar banalmente as ações das
personagens. O espaço, muitas vezes, estabelece com as personagens e com as
tramas uma interação genuína e indissociável, influenciando atitudes, pensamentos e
emoções. Boa parte das eventuais transformações pelas quais os indivíduos ficcionais
passam ao longo da narrativa e muitas das reviravoltas que ocorrem na trama são
provocadas pelas características geográficas (GANCHO, 2014, p. 27).
Modernamente (MOISÉS, 2014) tem se verificado uma diversificação do
espaço no que diz respeito a sua nomenclatura e no que diz respeito à sua prática de
uso em narrativas; ou seja, tem se considerado espaço na narrativa não apenas os
espações que seja uma transposição de espaços geográficos, mas também outras
categorias de espaço. Mesmo considerando suas grandes categorizações, é
importante não confundir o espaço narrativo com ambientações geográficas. No
espaço narrativo, temos um recurso usado pelo narrador para incrementar a enredo.
Estão falando hoje em outras espécies ou categorização do espaço:

• Espaço físico, que é um lugar geográfico descrito e instrumentalizado pela


narrativa;
• Espaço social, é um lugar sociocultural no qual as ações da narrativa podem
acontecer;
• Espaço psicológico, é um espaço fictício que é criado e visitado pelo
personagem na narrativa.

As ações do enredo podem se desenrolar em um ou vários desses espaços,


tanto de forma separada ou de forma uníssona. Temos, então, que o espaço pode
ser vivido e percebido tanto pelos personagens da trama como pelos leitores da
trama de forma diversificada. Assim, como explica Moisés (2014):

De forma simplista, os espaços podem ser qualificados de duas maneiras:


abertos (ações realizadas nos campos e em praças, ou seja, em locais ao ar
livre) ou fechados (em igrejas, em cômodos residenciais e em salas
empresariais, portanto, em locais internos); e urbanos (quando as ações se
passam nas cidades) ou rurais (enredos construídos em fazendas, pequenas
cidades provincianas ou em meio à natureza). Porém, outras associações
também são possíveis, dependendo do interesse específico do analista
literário e das características espaciais de onde a obra se passa (MOISÉS,
2014, p. 136-139).

Não se pode negar a importância do espaço para a narrativa (SILVA, 2014);


contudo o conhecimento de suas características agrega aos estudiosos da obra
artístico-narrativa perspectivas e possibilidades sem as quais não seria possível uma
análise acurada daquilo que chamamos de “elementos da narrativa”. Entender cada
um desses elemento proporciona ao analista maior possibilidade e maior capacidade
para as possíveis relações entre esses elementos, a intencionalidade autoral e as
possíveis leituras a respeito de determinadas narrativas ficcionais.

3.3 O Tempo

Uma parte importante no estudo de narrativa, segundo Nunes (1988), é a


indagação acerca de como “o tempo” é representado naquela narrativa. Nesse
sentido, um dos primeiros movimentos que podem fazer aqueles que querem estudar
o tempo na narrativa é pensar sobre o que ele é e como ele aparece em obras de
narração. Podemos afirmar que sem uma observação acurada de como o tempo se
manifesta, não é possível ler satisfatoriamente uma narrativa, seja ela de que gênero
for.
O tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também
pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles,
de tal maneira que será capaz de dilata-los indefinidamente ou de contraí-los
num momento único, caso em que se transforma no oposto do tempo,
figurando o intemporal e o eterno (NUNES, 1988, p. 14)
Quando falamos de tempo narrativo, queremos nos referir à duração da ação
contada em uma certa passagem narrativa e como essa colocação de tempo tende a
nos ajudar a perceber o desenrolar dos fatos históricos. Sobre isso, podemos dizer
que o tempo na narrativa pode se apresentar como:

• Tempo cronológico, quando se trata de contar o tempo de forma material e real;


• Tempo psicológico, quando se refere as vivências e lembranças das
personagens;
• Tempo metafísico (mítico), esse é aquele tipo de tempo em o mítico é
considerado.

Para Gancho (2014), o “tempo cronológico” está intimamente associado a um


período histórico no qual todas as ações da narrativa acontecem e o “tempo
psicológico”, por seu turno, caracteriza-se por uma desobediência ao tempo
cronológico, no sentido em que no tempo psicológico não há e não pode haver uma
obediência à contagem do tempo. Na mesma esteira, podemos dizer que o “tempo
metafísico” é aquele no qual a contagem e a percepção temporal é fantasiosa, no
sentido lato da palavra. Para Moisés (2014):

O tempo metafísico, ou mítico, é o tempo do ser. Acima ou fora do tempo


histórico ou do tempo psicológico, embora neles possa inserir-se ou por meio
deles relevar-se, é o tempo ontológico por excelência, anterior à História e à
Consciência, identificado com o Cosmos ou a Natureza. […] tempo reversível,
em circularidade perene, tempo original, primário, sempre idêntico, tempo dos
arquétipos (Jung) […]; tempo sacro, tempo eterno, sem começo nem fim
(MOISÉS, 2014, p. 109)

Quando se fala em tempo ontológico, devemos lembrar que o termo


“ontológico” é tomado emprestado da filosofia e tem o sentido de “aquilo que diz
respeito à natureza do ser”, em outros termos, aquilo que é referente a nossa
existência ou natureza como seres humanos. Podemos afirmar, então, que esse tipo
de tempo quando aparece na narrativa tem como principal objetivo mostra a natureza
das personagens em sua percepção acerca das realidades que os cercam.
Para o teórico russo Mikhail Bakhtin (1997) na narrativa, seja ela de que
natureza for, o tempo e a narrativa devem ser estudados como uma só unidade ou
categoria de análise. Ao compreender que eles são unidades inseparáveis, o teórico
criou uma nova terminologia para se referir a análise que se deveria fazer acerca das
marcações de tempo e de espaça na narrativa; essa junção desses dois elementos
foi chamada por ele de cronotopo, ou análise de tempo-espaço. Uma só categoria que
poderia ser usada para analisar a manifestação do tempo e do espaço num só golpe
de análise.
Assim, como afirma Brait (2017), se quisermos uma leitura mais aprofundada
de narrativas, uma leitura que fuja daquelas ideias os analises muitos marcadas e
determinadas, devemos conhecer os elementos da narrativa e, a partir dos
conhecimentos desses elementos, pensar nessa produção narrativo-discursiva de
forma mais crítica, de forma mais responsável e inovadora. Conhecer, portanto, a
funcionalidade da personagem, do espaço e do tempo em narrativas, nos capacita a
lançar novos olhares sobre aquele tipo de produção artística, escapando de um
determinismo interpretativo.
4 FOCO, VOZ E SENTIDOS NA NARRATIVA

Toda narrativa é uma história em que alguns elementos são constitutivos a ela.
A personagem, a respeito de quem se fala na história; o espaço, lugar físico ou
psicológico no qual a história se desenrola; o tempo, o momento em que o enredo é
desenvolvido e o espaço, lugar geográfico ou psicológico no qual as ações são
desenroladas; além desses e outros elementos que estão presentes na narrativa,
podemos observar outras características do fenômeno literário.
Em sentido mais elementar, falaremos agora em outros elementos da narrativa
dos quais ainda não tratamos. Tratar de tais elementos nos ajudam a fazer e
desenvolver modos de análise de narrativas que nos auxiliam na leitura da vasta
produção literária que está à nossa disposição sob vários aspectos contextuais. O
foco narrativo; a voz narrativa e construção de sentido são os elementos nos quais
focaremos.

4.1 O foco narrativo

Para Kirchof (2017), uma das tarefas principais do avaliador de literatura e de


narrativas é fazer uma clara diferenciação entre autor e leitor, que são figuras de
realidade e que podem ser avaliados no mundo material, e do narrador e do narratário,
que são figuras subjetivas resultantes da criação literária.
Não fazer essa distinção necessária é incorrer em o perigo de ser conduzido a
fazer uma análise que nada tem a ver com análise de cunho literário. Analisar
narrativas é, antes e acima de tudo, considerar as características do texto narrativo,
com suas características e suas necessidades de sentido. Nas palavras de Culler
(1999) é necessário compreender em que se está pensando quando se fala em teoria
da narrativa e quais as implicações dessa forma de pensamento. Segundo o autor:

A teoria da narrativa poderia, então, ser concebida como uma tentativa de


explicar detalhadamente, tornar explícita, essa competência narrativa, assim
como a linguística é uma tentativa de tornar explícita a competência
linguística: o que os falantes de uma língua sabem inconscientemente ao
saber uma língua. A teoria aqui pode ser concebida como uma exposição de
uma compreensão ou conhecimento cultural intuitivo (CULLER, 1999, p. 85).

Assim, tomando-se em conta a consideração da teoria da narrativa em como


principal objetivo explicar detalhadamente das competências narrativas, podemos
falar de variadas competências narrativas, ou seja, os muitos artifícios usados pelos
escritores para criar uma narrativa que, ao mesmo tempo que seja verossímil, possa
ser considerada como uma história que valha a pena ser lida, uma grande história.
Dentre essas competências, colocaremos em relevo, em um primeiro momento, o
chamado “foco narrativo”.
Segundo Culler (1999), podemos dizer que foco narrativo é o elemento
intrínseco da narrativa no qual aquele que narra a história coloca o seu ponto de visto,
ou seja, o foco narrativo é o ponto de vista ou perspectiva daquele que narra a história.
Nesse sentido podemos dizer que o foco narrativo do contador da história se
apresenta ao leitor de duas formas primordiais: o foco narrativo (ou ponto de vista)
pode ser apresentado em terceira pessoa, quando aquele que conta a história não
participa dela; ou pode ser apresentado em primeira pessoa, quando aquele que conta
a história também participa dela.

• O foco narrativo é o ponto de vista do narrador acerca de uma história;


• O foco narrativo é apresentado em primeira pessoa e em terceira pessoa;
• O foco narrativo trata da perspectiva dos acontecimentos narrados.

Foco narrativo não é o mesmo que enredo. No enredo (KIRCHOF, 2013) tem-
se a história contada, no foco narrativo tem-se o modo como essa história é contada.
O modo ou a perspectiva a partir da qual a narrativa é contada chama-se de foco
narrativo; essa narrativa pode ser contada por um dos personagens da história – então
teremos a narrativa em primeira pessoa – ou essa narrativa pode ser contada por um
narrador que não participa da história – então teremos uma narrativa em terceira
pessoa.
Figura 1 – Modos de narrativas e suas características

Fonte: Deficwriterparaficwriter.com.

Para Leite (2002) a relação entre o narrador e o seu público compara-se a


relação, nos tempos passados, entre o orador e os seus espectadores. Na medida em
que, em épocas passadas, o orador tinha a função de encantar os seus ouvintes com
suas prédicas, do mesmo modo o narrador tem como principal elemento de
subsistência o narra para encantar um leitor que, ao acompanhar a sua história,
coloca-se como que um ouvinte de uma voz que lhe condiz por acontecimentos que
estão acontecendo “diante de seus olhos”.
Em uma narração “os sentimentos dos homens comuns e não as aventuras dos
heróis — perde a distância, torna-se íntimo, ou porque se dirige diretamente ao leitor,
ou porque nos aproxima intimamente das personagens e dos fatos narrados”,
segundo Leite (2002, p. 12). É nesse sentido que se pode falar de envolvimento do
leitor com uma história e, como vimos esse envolvimento pode ser maio ou menor
dependendo de como (em primeira ou segunda pessoa) essa narrativa é contada pelo
seu narrador.
4.2 Voz e sentido da narrativa

Quanto à necessidade de análise de narrativas e de sua real objetividade


prática, podemos dizer como Leite (2002, p. 17) que ao refletir sobre a necessidade
de categorizar elementos de uma narrativa, afirma que “aproveitando aquelas
categorias e classificações mais operacionais para a análise dos textos, verificar como
elas nos ajudam a esclarecer a sua organização”. Em outras palavras é possível dizer
que as categorizações não são apenas possíveis, elas são necessárias se quisermos
perscrutar os sentidos da narrativa literária. Uma dessas categorizações é saber como
a voz do narrador é apresentada em uma narrativa.
A voz narrativa, para Kirchof (2017), é representada textualmente pelo
narrador. A presença do narrador em uma história pode ser variada dependendo da
posição que este assume para narrar os fatos com os quis o autor-pessoa pretende
trabalhar. Em algumas narrativas a figura do narrador é tomada como fundamental,
muito importante, para o desenvolvimento da história em outras, porém, a figura do
narrador é atenuada para que a ênfase recaia sobre outro (ou outros) elementos da
narrativa.
Daí as duas classificações e suas diferenças. Por um lado, temos uma telling
(narrar), que pode ser percebido quando existe um forte grau de interação entre o
narrador, o leitor e sua história contada, e por outro lado temos uma showing (mostrar),
que pode ser notado quando existe menos interação entre o narrador e o leitor de sua
história – há um distanciamento proposital no contar da história.

As obras de literatura exploram as configurações ou categorias dos modos


habituais de pensar e frequentemente tentam dobrá-las ou configurá-las,
mostrando-nos como pensar algo que nossa língua não havia previsto
anteriormente, nos forçando a atentar para as categorias através das quais
vemos o mundo irrefletidamente. A língua é, dessa maneira, tanto a
manifestação concreta da ideologia - as categorias nas quais os falantes são
autorizados a pensar - quanto o espaço de seu questionamento ou
desfazimento (CULLER, 1999, p. 63).

Como em Trask (2004), compreender a relação do narrador com a história


contada, nos capacita a perceber as ideologias subjacentes na narrativa, mas nos
ajuda, também, a pensar como o autor da obra literária usa a figura do narrador para
fomentar possibilidades de leitura de realidades variadas com as quais aquele autor
pretendeu trabalhar. Assim, podemos dizer que o narrador é uma intendida não real
que está a serviço do autor para materialização de ideias.
O narrador segundo Silva (2014), pode ser heterodiegético (narração em
terceira pessoa) autodiegético (personagem principal da narrativa) ou homodiegético
(personagem secundário da narrativa). Quanto a sua posição ideológica, o narrador
pode ser objetivo (apenas narra os fatos) ou subjetivo (narra os fatos e faz
comentários). Quanto a consciência que o narrador tem da história contada, ele pode
se um narrador onisciente (conhecimento ilimitado dos fatos), pode ser um narrador
com focalização interna (assume o ponto de vista de uma personagem) ou pode ser
um narrador com focalização externa (apresenta os fatos como eles podem ser
observados). Vejamos essas nuances do narrador de forma sistematizada:

Figura 2 – Posição do narrador

Fonte: Adaptado de Amaro, 2017.

Considerando Culler (1999), pode-se dizer que só é possível indagar sobre o


sentido de um texto ou uma narrativa literária quando consideramos suas várias
características e suas várias operações organizativas a partir das quais se pode
atestar acerca do sentido ou do significado de determinado enunciado literário. Esses
sentidos do texto podem ser procurados em três dimensões diferentes desses textos,
o sentido das palavras que estão no texto, os sentidos de elocuções (ou ênfases) que
estão presentes no texto e o sentido discursivo do próprio texto, aquilo que que ele
fala em sentido discursivo.

Não podemos apenas indagar a respeito do "sentido", portanto. Há pelo


menos três dimensões ou níveis diferentes de sentido: o sentido de uma
palavra, de uma elocução e de um texto. Os possíveis sentidos das palavras
contribuem para o sentido de uma elocução, que é um ato de um falante. (E
os sentidos das palavras, por sua vez, vêm das coisas que elas poderiam
fazer nas elocuções). Finalmente, o texto, que aqui representa um falante
desconhecido proferindo essa elocução enigmática, é algo que um autor
construiu, e seu sentido não é uma proposição, mas o que ele faz, seu
potencial de afetar os leitores. Temos tipos diferentes de sentido, mas uma
coisa que podemos dizer em geral é que o sentido se baseia na diferença
(CULLER, 1999, p. 60).

Olhar, ler e compreender narrativas, segundo Brait (2010) não é apenas um


exercício de compreensão textual; é também um exercício de compreensão de nós
mesmos. Uma vez que nos colocamos diante de um texto literário para compreender
os sentidos que nele estão, nos colocamos, em consequência, em relação direta com
uma obra literário que atravessou o tempo ensinando a gerações sem número de
pessoas sobre ideias e reflexões e respeito da vida, de valores e de realidades a
respeito das quais nada saberíamos caso não fosse a criatividade e genialidade
desses autores.
5 AUTOR E LEITOR IMPLÍCITO E ESTRANHAMENTO

A análise de obras literárias, bem como seu posicionamento e sua importância


na história não é determinado por um único e exclusivo fator, mas repousa na
apreciação de vários fatores dentre os quais estão: reconhecimento da crítica,
aceitação do público leitor, diálogo com outras artes como cinema e televisão, dentre
outros. Essa relação acaba por elevar a obra literária a posição, ainda que isso seja
motivo de acalorados debates, de uma obra de referência naquele contexto ou período
históricos. Não é por acaso que obras consideradas basilares à literatura brasileira,
em tempos recentes, vem sofrendo todo tipo de ataques que denigrem sua imagem
e, consequentemente, força os estudiosos a repensarem sua posição em relação
àquela produção cultural e literária.

5.1 O Estranhamento

Toda obra de arte, seja ela literária ou não, tem como principal intuito causar
uma espécie de releitura do mundo com suas formas e não formas. A esse tipo de
releitura deu-se o nome de estranhamento. Assim, “Estranhamento” é um recurso
usado pelas artes em geral que tem como principal intuito causar admiração naquele
que observa a produção artística; é causar incómodo no espectador a ponto de ele
admitir um desconforto diante daquela realidade artística que se coloca diante dele. É
se posto diante de uma realidade da qual não se estava consciente.
É, diante do espanto causado por uma nova forma de contemplar a realidade,
ter um agradável incomodo por adquirir uma nova percepção diante de um fato que,
apesar de conhecido, se mostra com outras possibilidades de percepção. Estranhar,
nesse sentido, é portanto, espantar-se, é não achar normal uma determinada maneira
se ser, de agir ou de perceber os fatos no mundo. O trabalho primordial do artista é
causar esse estranhamento por meio de sua produção artística. Nas palavras do
teórico russo Chklovski (1990),

O objetivo da arte consiste em dar a sensação das coisas enquanto visão e


não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento de
“остранение” [estranhamento] das coisas e o procedimento da forma
dificultada, que aumenta os obstáculos e a duração da percepção, pois, em
arte, o processo da percepção é o próprio fim e deve ser prolongado; a arte
é uma maneira de viver o fazer-se das coisas, e aquilo que está pronto não
importa na arte (CHKLOVSKI (CHKLOVSKI apud GUERIZOLI-KEMPINSKA,
2010, p. 64).

Seguindo os passos de outras traduções em línguas diversas, o termo cunhado


pelo escritor russo foi traduzido de forma deferente em línguas variadas. Em francês
o termo “странный” (strannyi) foi traduzido por “singularidade”; no inglês há traduções que
colocam o termo como “desfamiliarização”. Quando considerado como uma
superação do automatismo na percepção da obra de arte, o termo também foi
traduzido por “desautomatização”. Contudo a tradução que mais ficou conhecida para
o trabalho do crítico foi, realimente, o termo estranhamento.

Figura 1 – Relativiteit (Estranhamento).

Fonte: Históriaarte.com. M.C. Escher, 1953.

Cercado por um contexto turbulento da história russo e seguindo o caminho


aberto por vários outros teóricos russos, Viktor Borissevich Chklovski (1893-1984),
crítico literário e escritor, elaborou o conceito de estranhamento que, a princípio, se
constituía como uma ruptura dos limites entre a realidade da vida e a realidade
mostrada em uma obra artística. Costuma-se dizer que o estranhamento é impensável
sem o livre diálogo entre a literatura e outras formas de arte. Para Chklovski (1990),
as palavras exercem um importante papel no que diz respeito à tarefa de traduzir
conceitos, em especial aqueles conceitos que podem ser considerados novidadeiros
em nível popular e comum.

As palavras – porque usadas pelo nosso pensamento no lugar dos conceitos,


no papel de, por assim dizer, signos matemáticos, devendo ser desprovidas
de caráter metafórico, porque usadas na linguagem de todos os dias, em que
não as falamos nem as ouvimos até o fim, tornaram-se comuns e tanto sua
forma interior (metafórica) quanto exterior (fonética) deixou de ser vivenciada.
Nós não vivenciamos o habitual, não o vemos, apenas o reconhecemos. Nós
não vemos as paredes de nossos quartos, temos dificuldades para ver um
erro de impressão em uma cópia a corrigir, sobretudo quando se trata de um
texto escrito em uma língua bem conhecida, porque não podemos nos forçar
a ver, a ler, e não “reconhecer” a palavra habitual (GUERIZOLI-KEMPINSKA,
2010, p. 65).

Segundo o autor russo, o propósito de toda expressão artística era promover a


sensação a respeito das coisas como elas são percebidas e não a verificação das
coisas como elas são conhecidas, ou seja, a ideia de que a arte pode promover uma
nova forma de percepção das coisas do mundo real. A teoria de Chklovski, acabou
por influenciar não apenas os estudos literário, mas os estudos das artes em geral.
Outras áreas do conhecimento também acabaram adotando a ideia do teórico russo,
como a psicologia freudiana, por exemplo.

5.2 Autor implícito

No estudo de narrativas, principalmente no que diz respeito a sua organização


funcional, temos que fazer uma distinção clara entre aquilo que chamamos de
narrador e aquilo que vamos referir como “autor implícito”. Em termos práticos, é
possível dizer que o narrador é aquela voz que guia o leitor nos caminhos e
descaminhos da história; enquanto que o autor implícito é o sujeito da estratégia
narrativa, é aquele que aparece como uma presença oculta na narrativa. Não é sem
sentido a afirmativa de que o implícito diz respeito aquilo que está contido ou envolvido
na e pela narrativa, mas que não é expresso claramente nela e por ela, o autor
implícito está subtendido na narrativa.
Partindo da ideia da narrativa como retórica, o estudioso Wayne Booth (1980)
empregou pela primeira vez o conceito de autor implícito para significar uma presença
oculta pela narrativa e que pode ser situado entre o narrador e o autor real, entre o
autor-pessoa e o autor-narrador. O autor não concebe o autor implícito como uma
ficção, mas enfatiza que ele é manifesto pela própria narrativa e por sua retórica.

Enquanto escreve, o autor não cria, simplesmente, um “homem em


geral”, impessoal, ideal, mas sim uma versão implícita de “si próprio”, que é
diferente dos autores implícitos que encontramos nas obras de outros
homens [...] Quer adotemos para este autor implícito a referência “escriba
oficial”, ou o termo recentemente redescoberto dor Kathleen Tillotson – o
“alter ego” do autor – é claro que aquilo de que o leitor se apercebe nesta
presença são os efeitos mais importantes do autor. Por impessoal que ele
tente a ser, o leitor construirá, inevitavelmente, uma imagem do escriba oficial
que escreve desta maneira – e, claro, esse escriba oficial nunca será neutral
em relação a todos os valores. A nossa reação a seus vários compromissos,
secretos ou a descobertos, ajudará a determinar a nossa resposta à obra
(BOOTH, 1980, p. 88).

O autor afirma também que o autor implícito é aquele que veicula um “valor”
principal na obra, que pode ser percebido não apenas por essa imagem narrativa, mas
em cada personagem, em cada cena narrada até que esse autor implícito se constitua
como um todo harmônico. Nesse interim, podemos observar o teórico (BOOTH, 1980,
p. 91) quando diz que “o sentido que temos do autor implícito inclui não só os
significados que podem ser extraídos, como também o conteúdo emocional ou moral
de cada parcela de ação e sofrimento de todos os personagens”. Assim, “o principal
valor para com o qual este autor implícito se comprometeu, independentemente do
partido a que pertence na vida real – isto é, o que a forma total exprime”

Figura 2 - Representação autoral

Fonte: Ensayistas.org.
Temos assim que o autor real é a pessoa que escreve a história, o nome que
aparece na capa do livro; o autor personagem é aquele narrador que participa da
história como um personagem dela; enquanto que o narrador é aquele que nos faz
conhecer a história, participe ele da narrativa ou não e o autor implícito é aquela
“imagem de narrador” que nos é criada e fornecida pelo próprio texto, pela própria
narrativa.

5.3 Leitor implícito

É preciso que concordemos com a maioria dos teóricos (KIRCHOF, 2017)


quando afirmam que todo texto literário é uma obra artística é cuja a significação é
sempre múltipla e não una; daí a necessidade de vários instrumentos de aproximação
e análise da obra literária. Uma leitura de uma obra literária, por isso, não pode ser
dissociada de outras produções artísticas, travando com elas uma série de relações
dialógicas.
Forma relativamente estável de análise de narrativas em seus múltiplos
significados e em seu dialogismo é a análise estética encabeçada, dentre outros
estudiosos por Wolfgang Iser (1926-2007) e a chamada Escola de Constança, que
tiveram como objeto de pesquisa a reformulação da tríade autor-texto-leitor.
Até os estudos de Iser e de sua escola, não se dava muita primazia à figura do
leitor, só havia preocupação com as figuras do autor e do texto. Dessa preocupação
com o terceiro elemento da tríade (o leitor) nasce uma nova forma de acompanhar a
recepção do testo em suas variadas significações e aplicações. Essa nova forma de
estudar a recepção do texto pelos seus leitores ganhou o nome de Teoria da recepção.
Outro teórico que ganharia projeção com os estudos da teoria de recepção foi
o escritor e crítico literário Hans Robert Jauss (1921-1997), que construiu uma teoria
do efeito estético dando aos estudos da recepção novos elementos de investigação;
dentre esses elementos estão o diálogo entre o contexto do leitor e o contexto do
texto, a existência da liberdade de interpretação textual e, em momento posterior,
postula a existência de um “leitor implícito”, em um momento histórico em que se dava
muita importância ao autor e as texto e pouca ou nenhuma importância os leitor. Como
explica Comapgnon (2006):

A estética da recepção tem uma primeira vertente, ligada à fenomenologia,


interessada no leitor individual, é representada por Iser, mas também uma
segunda vertente, onde a tônica recai sobretudo na dimensão coletiva da
leitura. Seu fundador e porta‐voz mais eminente foi Hans Robert Jauss, que
pretendia renovar, graças ao estudo da leitura, a história literária tradicional,
condenada por sua preocupação excessiva, senão exclusiva, com os autores
(COMAPGNON, 2006, p. 156).

Nesse sentido, a estética da recepção tinha como propósito renovar a história


literária onde se propunha modos diferenciado de olhar para o texto literário e seus
componentes constitutivos (autor-texto-leitor). Para Iser e Jauss, tanto a obra literária
como a obra artística de modo geral, ganham sentido em função do seu público.
Assim, para Jouve (2002):

A teoria do ‘leitor implícito’ de Iser, por sua vez, data de 1976. Enquanto Jauss
se interessa pela dimensão histórica da recepção, Iser se volta para o efeito
do texto sobre o leitor particular. O princípio de ser é que o leitor é o
pressuposto do texto. Portanto, trata‐se de mostrar, por um lado, como uma
obra organiza e dirige a leitura, e, por outro, o modo como o indivíduo reage
no plano cognitivo aos percursos impostos pelo texto (JOUVE, 2002, p. 14).

A proposta primordial de Iser é a de que o leitor é uma construção textual –


assim como acontece com o autor implícito. Ou outros termos o que o teórico está nos
dizendo é que no mesmo sentido em que o texto cria um autor que está implícito nele,
o texto também cria uma figura de leitor que está implícito nele, essa figura é o que
chamamos de “leitor implícito”.
Nas palavras do próprio Iser (1996), o leitor implícito é uma criação textual, uma
estrutura textual, para contar com expressões mais usuais, que tem a função de
antecipar a presença do leitor real do texto, pois, segundo ela toda obra literária
oferece determinadas figurações do seu leitor que são previstas pelo autor do texto
no momento de sua escrita.

Esses papéis mostram dois aspectos centrais que, apesar da separação


exigida pela análise, são muito ligados entre si: o papel de leitor se define
como estrutura do texto e como estrutura do ato. Quanto à estrutura do texto,
é de supor que cada texto literário representa uma perspectiva do mundo
criada por seu autor. O texto, enquanto tal, não apresenta uma mera cópia
do mundo dado, mas constitui um mundo do material que lhe é dado (ISER,
1996, p. 73).

A contribuição da estética da recepção, bem como dos autores que iniciaram


seus estudos podem ser observadas não relações que contemporânea que se trava
com o texto literário e o seu público leitor. Todas essas novas formas de se aproximar
do texto literário acabam por abrir novas possibilidades de leitura e de interpretação
da produção literária. Essas relações e possibilidades acabam por abrir um caminho
vasto na apreciação do texto em geral.

6 FIGURAS DE LINGUAGEM E RETÓRICA

A necessidade de expressão da criatura humana (BRAIT, 2010), acabou por


fazer com que o homem (o ser humano) elaborasse formas não estanques para
realização da sua comunicação. Essas formas de expressões vão desde as artes
plásticas, passando pela literatura e chegando até as chamadas linguagem gestuais.
No uso da retórica (GUERIZOLI-KEMPINSKA, 2010), ou das palavras em contextos
variados, os homens acabaram por utilizar recursos que a linguagem em uso colocou
à sua disposição; dentre esses recursos da linguagem que estão à disposição do
usuário da língua estão as chamadas Figuras de linguagem; que em círculos variados
recebem outros nomes, mas sempre sob o objetivo de ser uma auxiliar da
expressividade humana.

6.1 Figuras e linguagem

Seguindo as reflexões de Cereja e Magalhães (2016), linguagem é o uso


sistemático da língua e que pode ser percebida pela sua dupla caracterização básica
ou níveis de linguagem, a saber, linguagem verbal e linguagem escrita. No que diz
respeito a linguagem verbal, os recursos utilizados na linguagem para a produção de
sentidos são chamados de figura de retórica; no que diz respeito a linguagem escrita,
os recursos utilizados na construção argumentativa de significados chamamos de
figuras de linguagem. Assim, figuras de linguagem é “uma forma de expressão que
consiste no uso de palavras em sentido figurado, isto é, em um sentido diferente
daquele em que elas são empregadas normalmente” (CEREJA; MAGALHÃES, 2016,
p. 517). Ela – a figura de linguagem – é, portanto, um modo especial de uso da língua
com intuito de causar uma espécie de estranhamento ao leitor ou ouvinte.
Figura 1 – Resumos de figuras de linguagem

Fonte: Coggle.it.

Olhando para Cegalla (2008), podemos dizer que os estudos a respeito das
figuras de linguagem são estudados por uma área da gramática que é chamada,
comumente, de estilística, seção que estuda os recursos expressivos da língua. Em
outros termos, “figuras de linguagem, também chamadas figuras de estilo, são
recursos especiais de que se vale quem fala ou escreve, para comunicar à expressão
mais força e colorido, intensidade e beleza” (CEGALLA, 2008, p. 614). Ainda segundo
o estudioso, as figuras de linguagem podem ser classificadas em três tipos ou
espécies:

• Figuras de palavras ou tropos, que trazem um desvio (trópos) no uso das


palavras;
• Figuras de construção ou de sintaxe, quando os usos se afastam da estrutura
regular das frases;
• Figuras de pensamento, processos estilísticos nos quais, na construção da
frase, intervém fortemente a emoção, sentimento.

Ainda nos lembrando do estilo, como defendido por Bechara (2009, p. 523),
quando afirma que “entende-se por estilo o conjunto de processos que fazem da
língua representativa um meio de exteriorização psíquica e apelo”. Se considerarmos
a estilística como a parti dos estudos da linguagem que se ocupa do estilo, pode-se
afirmar também que estilo é “a solução para se fazer a língua da representação
intelectiva servir às funções não intelectivas da manifestação psíquica e do apelo, é
naturalmente levado a “deformar” os fatos gramaticais quando por eles aquelas
funções não poderiam figurar” (BECHARA, 2009, p. 524). É preciso lembra que a
estilística é um campo de estudo extremamente vasto que contempla todas as
nuanças da linguagem. Como ensina Bechara:

O estudo da Estilística abarca, semelhante à Gramática, todos os domínios


do idioma. Lembremos a lição de Bally: ‘Todos os fenômenos linguísticos,
desde os sons até as combinações sintáticas mais complexas, podem revelar
algum caráter fundamental da língua estudada. Todos os fatos linguísticos,
sejam quais forem, podem manifestar alguma parcela da ida do espírito e
algum movimento da sensibilidade. A estilística não é o estudo de uma parte
da linguagem, mas o é da linguagem inteira, observada de um ângulo
particular. Nunca pretendi (isto é para responder a umas críticas que me
fizeram) que a linguagem afetiva existe independentemente da linguagem
intelectual, nem que a estilística deva estudar a primeira excluindo a segunda;
o que faz é estudá-las ambas em suas relações recíprocas, e examinar em
que proporção se aliam para compor este ou aquele tipo de expressão’
(BECHARA, 2009, p. 527)

Quando nos referimos aos campos da estilística, podemos entender que esses
campos estão claramente definidos pelos muitos estudos que se prestam a estudar
essa parte da linguagem desde os tempos mais remotos da civilização humana, desde
os tempos áureos da filosofia antiga, passando pela filosofia medieval e chegando até
a filosofia moderna. Os campos de estudo da estilística podem ser determinados ou
descritos da seguinte forma:

• Campo fônico – que procura indagar sobre o valor expressivo dos sons;
• Campo morfológico – que sondam o uso expressivo das formas gramaticais;
• Campo sintático – que procura explicar o valor expressivo das construções;
• Campo semântico – que olha o valor ocasional de certas palavras.

Como nos ensina Cereja e Magalhães (2016), cada tipo de linguagem, em seus
muitos usos e modos de expressão, apresentam uma unidade básica diferente. A
linguagem verbal, por exemplo, é aquela cuja unidade básica é a palavra; a linguagem
não verbal possui unidades básicas diferentes da palavra, como os gestos, a nota
musical, o sinal de transito, etc. Existe também aquela linguagem que é chamada de
multimodal ou mista que combina unidades de diferentes linguagens. Mas todos esses
modos de linguagem têm como principal intuito o convencimento, ou seja, a levar o
leitor ou telespectador a uma toma de posição em relação aquilo que é dito ou
mostrado. Esse mesmo princípio proposital aplica-se às figuras de linguagem.

6.2 Outras figuras

Assim, sempre que usamos os variados tipos de linguagem (KIRCHOF, 2013),


buscamos interagir com as pessoas modificando, quando possível, a visão e
comportamento delas em relação à determinada coisa ou fato. Nesse sentido,
podemos dizer que as figuras de linguagem são recursos expressivos da língua com
os quais intenta-se mover o outro a uma tomada de posição por meio da
argumentação estilisticamente construída para esse fim. Usemos como exemplo um
tipo linguagem multimodal.

Figura 2 – Linguagem multimodal

Fonte: Todamateria.com.br.

Como afirma Bechara (2009), mesmo considerando as figuras de linguagem


como um poderoso recurso linguístico na construção de significados, ou na produção
de sentidos, é preciso fazer uma diferenciação, ainda que didática, entre análise
literária (tema de nossa unidade temática) e a análise estilística. Enquanto uma se
preocupa com a construção estilística de enunciados literários a outra se preocupa
com elementos de construção de narrativas e das várias formas e instrumentos para
sua análise.

[…] Não se há de confundir análise literária com análise estilística, pois que,
trabalhando num mesmo trecho, tem preocupações diferentes e utilizam
ferramentas também diversas. Em que pese à autoridade de nossos
programas oficiais para ensino de Língua Portuguesa, o que deve ser,
primordialmente, objeto da tarefa do professor de língua é a análise estilística
(ainda que elementar, como reza a letra deste mesmo programa), e não a
análise literária, que é da alçada do professor de Literatura. Ensinando-se a
língua portuguesa, nada mais natural do que, num texto literário ou não,
ressaltar o sistema expressivo e sua eficácia estética no idioma ou nas
particularidades idiomáticas de um autor literário ou de um simples falante.
Para a estilística, interessa tanto a depreensão dos traços estilísticos da
língua oral como da escrita, do falante comum e do literato. Com razão disse
Vossler [1872-1949] que na linguagem de um mendigo vagabundo há
gotinhas estilísticas da mesma natureza que todo o mundo expressional de
um Shakespeare (BECHARA, 2009, p. 524).

As figuras de linguagem são comumente classificadas tomando como ponto de


partida a sua função ou sua funcionalidade intencional. Tem-se chamado de
funcionalidade a razão ou função que uma expressão, frase ou palavra exerce na
construção dos sentidos (JAKOBSON, 2008). As figuras de palavras, são aquelas que
trazem mais expressividade a comunicação das pessoas; as figuras de pensamento,
trazem a expressividade pela combinação de ideias; as figuras de sintaxe, produzem
expressividade por meio da inversão, repetição ou omissão na construção de frases
e as figuras de som, produzem expressividade por meio de recursos sonoros, da
sonoridade. Temos, então, as seguintes proposições:

Figura 3 – Organização primária das Figuras

Fonte: Todamateria.com.br.

Como se pode observar, não é fácil conceituar aquilo que chamamos de figuras
de linguagem; e muito dessa dificuldade é percebida quando se coloca de forma
comparativa as falas de vários autores com suas várias perspectivas. Sejam elas de
ordem de concepção teórica, sejam elas de práticas discursivas (CULLER, 1999). O
fato é que as figuras de linguagem, não importa a classificação que demos a elas
despontam como poderosos recursos linguísticos na produção de sentidos. Vejamos
resumidamente como cada uma dessas figuras podem ser conceituadas:

Metáfora – “É o desvio da significação própria de uma palavra, nascido de uma


comparação mental ou característica comum entre dois seres ou fatos” (CEGALLA,
2008, p. 614). Exemplo: "O pavão é um arco-íris de plumas" ou “Que negro segredo
guardava no porão da alma?”. A metáfora é a mais importante e frequente figura de
linguagem que é usada e, geralmente, aparece no texto aliada a outras figuras.
Comparação – Na figura de linguagem que leva o nome de comparação, temos
também, como na metáfora, uma comparação entre dois termos quando se empresta
características de um ao outro; mas na comparação essa união de termos sempre é
mediada por nexos comparativos (como, tal qual, assim como, da mesma forma, etc.)
Metonímia – acontece quando se usa uma palavra em substituição a outra
(uma palavra por outra). De acordo com Cegalla (2008, p. 616), temos uma metonímia
nas seguintes construções:
a) o efeito pela causa: Os aviões semeavam a morte;
b) o autor pela obra: Nas horas de folga lia Camões;
c) O continente pelo conteúdo: Tomou uma taça de vinho;
d) o instrumento pela pessoa que o utiliza: Ele é um bom garfo;
e) o sinal pela coisa significada: Que as armas cedam à toga;
f) o lugar pelos seus habitantes ou produtos: "A América reagiu e combateu”;
g) o abstrato pelo concreto: A mocidade é entusiasta;
h) a parte pelo todo: Ele não tinha teto onde se abrigasse;
i) o singular pelo plural: O homem é mortal;
j) a espécie ou a classe pelo indivíduo: "Andai como filhos da luz", recomenda-
nos o Apóstolo (para dizer São Paulo);
k) o indivíduo pela espécie ou classe: Os mecenas das artes (protetor), Os átilas
das instituições (destruidores).
Catacrese – acontece quando se emprega um termo por outro que sirga para
melhor descrever uma determinada ação. Exemplo: “Bala perdida”; “Embarcou há
pouco no avião” (embarcar é o termo usado para aqueles que entram em um navio).
Sinestesia – acontece quando acontece uma associação proposital de
sensações expressas por órgãos do sentido diferentes. Exemplo: “Ela me olhou com
aquele olhar frio”.
Perífrase ou antonomásia – acontece quando há a substituição de uma ou mais
palavras por outra que possa lhe servir de sinônimo. Exemplo: “O rugido do rei das
selvas é ouvido a uma distância de 8 quilômetros” (O rugido do leão é ouvido a uma
distância de 8 quilômetros).
Hipérbole – acontece quando se usa propositalmente uma palavra que conota
exagero. Exemplo: “Quase morri de estudar”, “Estou quase morrendo de fome”, “Comi
até morrer”.
Gradação – acontece quando uma sequência de ideias dispostas em sentido
ascendente ou descendente. (A gradação ascendente denomina-se também clímax,
e a descendente, anticlímax). Exemplos:
"O primeiro milhão possuído excita, acirra, assanha a gula do milionário."
“Ele foi um tímido, um frouxo, um covarde. Um ser limitado, uma ínfima criatura,
um grão de pó perdido no cosmo, eis o que o homem é”.
“Uma palavra, um gesto, um olhar bastava para despertar suspeita”.
Eufemismo – acontece quando uma expressão “consiste em suavizar a
expressão de uma ideia triste, molesta ou desagradável, substituindo o termo
contundente por palavras ou circunlocuções amenas ou polidas” (CEGALLA, 2008, p.
626). Veja exemplo na charge abaixo:

Figura 4 – Charge que exemplifica um eufemismo

Fonte: Todamateria.com.br.
Figuras de som – acontece quando se usa a sonoridade das palavras com
intuito expressivo em uma frase. Essas figuras de linguagem também podem ser
chamadas de figuras de sonoridade. Encaixam-se nessa definição a Aliteração, a
Assonância, a Onomatopeia e a Paronomásia. Vejamos resumidamente como cada
uma dessas figuras operam:
• Aliteração é a repetição de consoantes ou sílabas;
• Assonância é a repetição de vogais;
• Onomatopeia é a imitação de sons produzidos por animais, natureza, objetos
ou pessoas;
• Paronomásia é o uso de palavras semelhantes, mas com significados
distintos.
Figuras de construção – As figuras de construção podem ser consideradas
como um recurso linguístico-discursivo que o autor de uma frase usa para causar um
maior estranhamento do seu leitor; trazendo a ele um maior sentido expressivo. Dentre
as figuras de linguagem de sintaxe temos o pleonasmo, a respeito da qual se diz que
“ela precisa ser usada com cuidado” e com muito conhecimento de causa para que
não se corra o risco de, na intenção de melhorar o texto, acabar piorando a produção
textual. Segundo Bechara:

Há de se ter presente para não usá-lo sempre que possível o pleonasmo


léxico que resulta do esquecimento do verdadeiro significado de certas
expressões portuguesas ou estrangeiras: decapitar (por decepar, já que
decapitar só pode referir-se à cabeça) a cabeça, exultar de alegria, panaceia
universal, esquecimento involuntário, desde ab aeterno (ab aeterno é
expressão latina que já indica desde a eternidade), desde ab initio, tornar a
repetir, prever de antemão, antídoto contra e tantos outros. Alguns, usados
pelos melhores escritores, já correm com alguma despreocupação diante da
crítica mais severa, como é o caso de suicidar-se. Já está incorporada a
repetição do prefixo e preposição de mesmo significado, como: incorporar
em, coabitar com, coincidir com conformar-se com, etc. (BECHARA, 2009, p.
495)

Observemos abaixo as figuras de construção e seus usos mais comuns para


verificarmos, quanto ao seu funcionamento, o modo como elas operam na construção
frasal:
Figura 5 - Figuras de sintaxe

Fonte: Coggle.it.

Todas as figuras de linguagem trazem consigo um forte traço estilístico


(BOOTH, 1980) e, nesse sentido, podemos dizer que a percepção desses traços
estilísticos se mostrar mais vívido, sobretudo, nas figuras de som. A partir dessa
observação preliminar, podemos entender as observações de Bechara (2009, p. 524)
ao dizer que “o conjunto de particularidades do sistema expressivo para eficácia
estética recebe o nome de traços estilísticos. São numerosos os traços estilísticos –
e há um avultado número deles cujo valor ainda está para ser analisado – em todos
os compartimentos de um idioma”. E essa assertiva aplica-se também a nossa língua
portuguesa com seus traços estilísticos característicos.
7 FIGURAS DE LINGUAGEM E RETÓRICA

Ao crítico literário (CULLER, 1999) coube a difícil tarefa de balizar (e averiguar)


a produção literária de períodos diferentes da história da humanidade. Essa relação
sincrônica e diacrônica que o profissional das letras trava com os vários fenômenos
literários em momentos diversificados da história. Em termos práticos é possível dizer
que um crítico literário é “aquele que julga, avalia, comenta ou investiga” obras de
cunho literário. Mas, como toda definição, essa também traz em seu escopo alguns
problemas de ordem prática e semântica. O E-Dicionário de Termos Literários (2009)
aponta, em citação direta, que:

A função do crítico deve concentrar-se em três pontos: (1) estudar o artista


exclusivamente como artista, e não fazendo entrar no estudo mais do homem
que o que seja rigorosamente preciso para explicar o artista; (2) buscar o que
poderemos chamar a explicação central do artista (tipo lírico, tipo dramático,
tipo lírico elegíaco, tipo dramático poético, etc.; (3) compreendendo a
essencial inexplicabilidade da alma humana, cercar estes estudos e estas
buscas de uma leve aura poética de desentendimento.”

7.1 Crítica literária

Tomando como base as reflexões de Venâncio (2002), é possível afirmar que,


no que diz respeito ao seu modo de apreensão das coisas, e também em seu modo
de apresentar as coisas ao seu leitor/ouvinte, o crítico é o profissional que no âmbito
das letras mais se parece com um filósofo; no sentido em que, como o filósofo, o crítico
se preocupa em compreender um determinado fenômeno e com esse fenômeno trava
uma espécie de luta cognitiva, ou seja, ele olha para um fenômeno literário e tenta
entender suas características e sua ambiguidades naturais. É nesse sentido que
segundo Ceia (2009):

Existe, pois, um outro tipo de crítica a que chamarei de investigação, que


nada tem a ver com estas condições definidas para a atividade específica da
recensão. A crítica de investigação só eventualmente estará comprometida
com uma instituição (geralmente, a universidade e só quando se transformam
trabalhos académicos em estudos de crítica literária ou vice versa), não tem
obrigatoriamente que dirigir o objeto de investigação para obras publicadas
recentemente, devendo inclusive ser responsável pela institucionalização da
possibilidade de uma dada obra não recente poder manter uma certa
atualidade; estará sempre sujeita, na sua situação ideal, à disciplina do
interrogatório e da refutação do sistema de crenças do texto que investiga,
bem como das próprias proposições que vai desenvolvendo a partir daí; não
utiliza juízos judicativos, porque o seu objetivo é a sabedoria prática aplicada
aos textos literários e não a doxa ou prescrição sobre eles, por isso,
preferindo os juízos problemáticos, que exigem uma revisão constante das
suas possibilidades de sentido e aplicação.

Não há, portanto, nesse sentido um aspecto que não seja explorado por esse
filósofo dos estudos literários (SILVA, 2014). Essa investigação que o crítico literário
oferece e ele mesmo opera pode ou não está ligado a uma instituição de ensino. Mas
o importante para o investigador da obra literária é essa preocupação em entender o
objeto último do seu trabalho, a produção artística de cunho literária.
Ainda de acordo com Venâncio (2002, p. 274), “a crítica literária não foi feita,
parece, para sossegar os espíritos. Onde houver opiniões sobre literatura, aí se instala
o conflito. E isso é bom. A polémica dá colorido ao mundo das letras. Não é aquilo que
fica, mas é seguramente o que mais ajuda a ficar”.
Uma pergunta que pode ser feita a respeito dos motivos pelos quais alguém iria
se preocupar com algo como a literatura, algo que aos olhos da maioria das pessoas
não passa de um aglomerado de história cujo principal objetivo seria trazer
entretenimento e diversão aos seus leitores. Mas nada pode estar mais distanciado
da realidade da obra literária, como bem ensinado por Lukács (1968, p. 213). Segundo
o autor:

[…] A humanidade, isto é, o estudo apaixonado da constituição humana do


homem, pertence à essência de toda literatura, de toda arte; em vínculo
estreito com isso, toda boa arte, toda boa literatura é nessa medida
humanista, pois ela estuda não só o homem, a essência real de sua
constituição humana, mas ao mesmo tempo defende apaixonadamente a
integridade humana do homem contra todas as tendências que a atacam, a
rebaixam, a distorcem.

Nesse sentido, é possível dizer que toda produção artística de cunho literário
pode ser considerada como objeto dos estudos da crítica literária; bem como a
humanidade e suas representações por meio de narrativas que tendem a contar a sua
história, seja em forma de poesia, seja em forma de prosa. A humanidade (KIRCHOF,
2013) sempre esteve preocupada em contar a sua história, suas crenças, seus mitos,
seus feitos.
A forma mais antiga para comunicar relatos, sejam eles históricos ou
mitológicos é a poesia; por meio dela os homens do passado e do presente resolveram
registrar os feitos de seu povo, de sua cultura, de sua gente. Compreender a forma e
as funções da poesia, tanto na antiguidade como no tempo presente, é o tema da
nossa próxima divisão.
7.2 Poesia Antiga

Não existe possibilidade de falar em poesia antiga sem falar em duas das obras
mais conhecidas da humanidade, Ilíada e da Odisseia, do poeta grego Homero
(século IX ou VII). Essas obras são consideradas as mais antigas produções literárias
da humanidade (FLACH; GONÇALVES, 2018). Quando analisadas do ponto de vista
do gênero, essas obras são consideradas como Narrativas Épicas, ou seja, narrativas
que podem ser caracterizadas pela contagem de histórias heroicas de um povo, no
caso específico o povo grego. Essa narrativa também pode ser caracterizada pela
presença constante e marcante de um herói, que geralmente se torna o símbolo
libertador daquele povo ou nação.
Pesquisas mais recentes têm apontado, porém, a epopeia de Gilgámesh (2000
a. C) como a mais antiga representante do gênero épico na história da humanidade.
De acordo com especialistas, essa narrativa é de origem mesopotâmica e conta como
o herói principal da narrativa venceu os povos inimigos na construção de sua nação.
A Epopeia de Gilgámesh é de autoria anônima, mas seu desenvolvimento acompanha
o desenvolvimento de outras narrativas de mesmo gênero, ou seja, narrativa das
vitórias de um povo sobre seus inimigos; presença constante de um herói vitorioso;
elementos místicos presentes em toda a narrativa. Com tradução de Jacyntho Lins
Brandão os primeiros versos da narrativa podem ser lidos da seguinte forma:

Proeminente entre os reis, herói de imponente físico,


Valente rebento de Úruk, touro selvagem indomável:
Vai à frente, é o primeiro,
Atrás vai e protege os irmãos.
Margem firme, abrigo da tropa,
Corrente furiosa que destroça baluartes de pedra.
Amado touro de Lugalbanda, Gilgámesh perfeito em força,
Cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun.
Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:
Abriu passagens nas montanhas,
Cavou cisternas nas encostas do monte,
Atravessou o mar, o vasto oceano, até onde nasce Shámash
[...]
Como é característica da poesia épica – também chamada de epopeia – a
narrativa é feita de forma poética e essa poesia é organizada em forma de cantos que
por sua vez segue uma estrutura pré-determinada que dá a essa poesia/narrativa suas
características próprias.
As epopeias (BRAIT, 2010) são, portanto, divididas nas seguintes partes:
prólogo, indicação do tema e apresentação do herói-personagem; invocação, quando
o narrador da história pede a um ser divino inspiração para contar sua história;
dedicatória, o momento em que o poema é dedicado a alguém com importância social;
narrativa, que são os relatos propriamente ditos em que se conta a história do herói e
suas aventuras e a conclusão, momento em que se dá o desfecho da história.
Exemplo dessa dinâmica pode ser visto na Odisseia, de Homero, com tradução de
Manoel Odorico Mendes.

Ulisses ao vestíbulo descansa:


Em cru taurino coiro estende peles
De imoladas ovelhas, e por cima
Eurínoma lhe deita espessa manta;
Lá, na vingança meditando, vela.
[...]
Bate nos peitos e cogita: “Cala,
Meu coração! mais suportaste quando
O atroz Ciclope devorou-me os sócios:
Com prudência da cova te livraste,
Onde supunhas trucidado seres.”
Assim reprime o palpitar interno,
Tem-se; mas anda pela cama às voltas.
Figura 1 – Glgámesh, herói mitológico

Fonte: Mundoeducacao.uol.com.br.

Na história, as epopeias de Homero foram melhor acolhidas que outras


epopeias que também contavam histórias de lutas e conquistas de povos antigos.
Homero foi, em Roma, e em todo o império greco-romano, lido, ouvido, acolhido e
imitado por vários outros poetas que vieram depois dele e por seus contemporâneos.
Apesar de ser um gênero pouco usado por poetas modernos em sua inteireza,
abriu caminhos que forma seguidos por outros escritores modernos, como Luís de
Camões, poeta português que contou a história do seu povo em “Os Lusíadas”; o
poeta inglês John Milton que escreveu “Paraíso Perdido”. Sob influência de um gênero
e dos autores que popularizaram esse gênero, nasceu e se fortaleceu a expressão
“façanhas homéricas” usadas para se referir a grandes feitos de uma pessoa ou de
um povo.

7.3 Poesia moderna

A poesia, em suas várias manifestações históricas e formais, sempre teve em


seus representantes um esteio a partir do qual pode se desenvolver como produção
artística literária. Se usarmos uma terminologia corrente e se considerarmos
historicamente, podemos dizer que a poesia moderna é assim considerada se essa
poesia foi escrita em anos posteriores a 1848 quando Charles Baudelaire (1821-
1867), poeta francês, começa a publicação de sua produção literária. Ele é conhecido
como o percursor do simbolismo e reconhecido como fundador da tradição de poesia
moderna.
A dinâmica poética iniciada por Baudelaire culminou, no século XX, com
expressões artísticas tais quais o Expressionismo, o Futurismo, o Surrealismo e o
Cubismo, movimento que ganhou muitos adeptos da literatura pós-modernista no
Brasil. Seguindo a esteira dessa mesma poesia está o brasileiro Manoel de Barros
(1916-2014), com sua poesia com tendência ao moderno.
Caracterizado pela rejeição de formas pré-estabelecidas, a poesia moderna se
coloca como um desafio aos sentidos, como, por exemplo, o movimento poético do
“imagismo”, representado pelo trabalho de Ezra Pound (1885-1972) e outros poetas
que entenderam que a poesia precisava quebrar com padrões estabelecidos pelos
antigos. É nessa esteira que surge o trabalho do francês Guillaume Apollinaire (1880-
1918) importante representante do cubismo.

Figura 2 – Caligrama de Guillaume Apollinaire

Fonte: Antoniomiranda.com.br.
Tal rejeição à poética tradicional ganhou o nome, no Brasil, de “passadismo”,
aquela poesia que se fazia no passado. As expressões poéticas contemporâneas (que
procuravam romper com os padrões deixados pela antiguidade clássica), em muitos
casos, procuraram juntar a força da palavra com a clareza das imagens para formar
um todo harmônico que possibilitasse ao leitor ter uma sensação tríplice (lendo,
ouvindo e vendo) ao ler um poema. O caligrama acima exposto, pode ser lido (com
tradução de Álvaro Faleiros) da seguinte forma:

reconheça
essa adorável pessoa é você
sem o grande chapéu de palha
olho
nariz
boca
aqui o oval do seu rosto
seu lindo pescoço
um pouco
mais abaixo
é seu coração
que bate
aqui enfim
a imperfeita imagem
de seu busto adorado
visto como
se através de uma nuvem

Como representantes dessa poesia que procurava novos caminhos para a


manifestação artística poética está o português Fernando Pessoa (1888-1935), que
inovou não apenas na forma de se fazer poesia, mas também no modo de se fazer
poesia moderna com seus heterônimos, dentre os quais está Álvaro de Campos, “um
alarme para a vizinhança”, que é considerado pelos críticos como o representante
virtual criado por pessoa como representante de uma poesia que possa ser
considerada moderna.
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Entre as características da poesia moderna, alguns pontos, além daqueles que


já foram expostos, podem ser retomados ou revisitados para que tenhamos um quadro
geral daquilo que caracteriza essa geração de poetas. São elas: (1) fim da versificação
tradicional; (2) valorização da força visual da palavra; (3) linguagem objetiva; (4) apego
a temas sociais e (5) busca por um novo caminho expressivo. Essas e outras
características são prevalecentes da poesia moderna, em especial naquela poesia
que queria romper com os padrões tradicionais que forma marcas da produção
poéticas desde a epopeia, com sua busca pela valorização do herói e de formas
padronizadas de expressão.
8 DIALOGISMO E GÊNERO

Na literatura (KIRCHOF, 2013), a organização dos textos em famílias mais ou


menos semelhantes é uma pratica que remonta à Antiguidade clássica que procurou
analisar as formas de expressões, passando pelos modos de argumentação e
chegando até aquilo que chamamos comumente de Retórica moderna. Assim, esses
modos de tratamentos do texto e suas relações com a compreensão humana e a
construção de sentidos foram estudadas de diferentes formas e sob diferentes
correntes teóricas em um largo período de construção científica (SILVA, 2014). Em
momentos maia próximo dos nossos tempos, tem se tornado comum o estudo das
relações entre a Literatura e outras artes que são a ela correlatas ou não; essas outras
artes vêm sendo estudadas sob características que englobam desde a pintura,
chegando até à arte composta por inteligência artificial.

8.1 Teoria dialógica

Todo gênero é discursivo (BOOTH, 1980), uma vez que lida com articulação da
fala mediado por um contexto de relações que envolvem tanto o indivíduo quanto a
sociedade na qual aquele indivíduo está inserido. Essa percepção do gênero e do seu
uso na modernidade vem sendo desenvolvido a partir dos estudos acerca do filósofo
da linguagem Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) cujas estudos em muito
contribuíram para o desenvolvimento dos estudos da linguagem.
Em Brait (2010), temos largos estudos os quais podem ser observados para a
composição de uma “teoria dialógica do discurso” que acabou por influenciar vários
campos do saber, dentre os quais a literatura com seu principal objeto de estudo.
Bakhtin, e suas ideias acerca do discurso e do gênero e suas manifestações em várias
esferas da comunicação humana, evocam uma série de conceitos e modos de
percepção que ainda estão influenciando os estudos linguísticos, literários e em outras
ciências humanas (JAKOBSON, 2008). Essa gama de conhecimentos foi agrupada
naquilo que se denominam hoje de pensamento bakhtiniano. Assim o pensamento de
Bakhtin e daqueles intelectuais que o ajudaram a formular seus pensamentos – que
ficaram conhecidos como o Círculo de Bakhtin – deram forma a uma teoria que ficou
conhecida no Brasil como Teoria dialógica ou Dialogismo.
Para compreender o que [o pensamento bakhtiniano] significa da perspectiva
epistemológica, metodológica, teórica e também humana, histórica e
contextual, é preciso considerar as especificidades das obras que constituem
esse pensamento, que chegaram ao Ocidente de maneira não cronológica, e
alguns aspectos relativos às origens dos pensadores que edificaram essas
ideias em seu dia-a-dia profissional (a maioria lecionava para ganhar a vida
e atuar na educação e na cultura do país), marcado pelo difícil cotidiano dos
anos revolucionários. Desde 1918, na cidade de Niével, e de 1924 a 1929,
nas cidades de Vítesbk (atualmente Bielo-rússia) e Leningrado, Bakhtin e
outros intelectuais bastante próximos a ele, de consistente formação
filosófica, literária, científica e/ou artística, participaram de um esforço para
construir uma sólida e diferenciada posição diante da linguagem e da vida,
dialogando polêmica e produtivamente com a linguística, o formalismo, a
psicologia, a filosofia, o marxismo ortodoxo (BRAIT, 2010, apresentação)

O pensamento desse grupo de intelectuais era sobremaneira variado e tenha


uma abrangência também variada que ia da Filosofia (ética e estética), passando pela
Literatura (antiga e moderna) e chagando até a linguagem com todas as suas
variações. No que diz respeito a linguagem as pesquisas de Bakhtin e do Círculo é
usada principalmente naquela área do saber que foi denominada de Estudo do
gênero.
Como é comum falar muito do discurso e suas características, é preciso dizer
que para Bakhtin o discurso poderia ser conceituado como a “a língua em sua
integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido
por meio de uma abstração absolutamente necessária de alguns aspectos da vida
concreta do discurso” (BAKHTIN, 2008, p. 207). Ainda segundo o autor:

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da


linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse
uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é
claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua
efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
(BAKTHIN, 2003, p. 261).

Não há possibilidade de compreensão do pensamento bakhtiniano sobre


linguagem sem pensar no diálogo, categoria que foi usada pelos intelectuais do
Círculo não apenas em sua versão de dicionário, ou seja, como “fala em que há a
interação entre dois ou mais indivíduos”, mas também como uma espécie de metáfora
na qual vozes diferentes se encontram na constituição de um enunciado. Para Bakhtin
(2008, p. 292), “a palavra do herói e a palavra sobre o herói são determinadas pela
atitude dialógica aberta face a si mesmo e ao outro”. Essas muitas palavras que se
encontram no romance, são as vozes dialógicas que interagem para a formação de
uma compreensão dialógica.
O próprio Bakhtin chamou sua teoria de “metalinguística”, um estudo do
discurso que ultrapassa os limites da linguística. Para o estudioso russo “a linguística
e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e
multifacético – o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos
de visão” (BAKHTIN, 2008, p. 207).
Uma das áreas que mais sofreu influência dos estudos de Bakhtin tem sido os
estudos a respeito dos gêneros, que até então vinha sendo compreendido apenas
como “uma família de textos”. Como bem indicado por Brait (2010), quando
observamos os mecanismos usados pelos intelectuais que participaram do Círculo,
pode-se afirmar que a suas posições filosóficas, literárias, estéticas e linguísticas
procuravam espelhar um conhecimento que dialogava com várias correntes do
conhecimento, o que acabou por, também, moldar o modo como esses teóricos
entendiam o fenômeno do gênero e suas manifestações linguísticas e sociais.

8.2 Gêneros literários

Sob influência da Teoria dialógica, os PCN’s (1998) entendiam gênero


discursivos como elementos de primordial importância no processo de ensino-
aprendizagem, na medida em que eles (os gêneros discursivos) podem ser utilizados
como mecanismos discursivos e linguísticos para modelar os textos e desenvolver a
capacidade de construção de argumentações que sejam coerentes e coesas; bem
como capacitar o estudante para uma leitura formal e conteúdistica de variados textos
e gêneros que a ele se apresente (CULLER, 1999). Nesse sentido e considerando as
afirmações acima, acompanhando ainda os PCN’s quando afirmam a importância do
gênero na leitura de textos, sejam eles de que natureza forem, afirmam:

Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das


intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos
discursos, as quais geram usos sociais que os determinam. Os gêneros são,
portanto, determinados historicamente, constituindo formas relativamente
estáveis de enunciados, disponíveis na cultura […] A noção de gênero refere-
se, assim, a famílias de textos que compartilham características comuns,
embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula,
tipo de suporte4 comunicativo, extensão, grau de literalidade, por exemplo,
existindo em número quase ilimitado (PCN, 1998, p. 20, 21)

Além de suas características históricas, culturais e linguísticas, os gêneros


possuem características que são intrínsecas a eles como conteúdo temático, aquilo
que se torna compreensível por meio do gênero; construção composicional, as
estruturas particulares dos textos e estilo, configurações específicas da língua
desempenhadas por um locutor.

Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza


temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes
a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do
texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. Nessa perspectiva,
necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e
gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo
fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de
diferentes formas (PCN, 1998, p. 23)

Mais do que pensar na ideia de gênero como elemento constitutivo daquilo que
Bakhtin (2003) chamará de “comunicação discursiva”, ou seja, aquela comunicação
que tem como elemento principal o dialogismo, o diálogo entre duas consciências em
uma relação de troca que resulta em enunciados mais ou menos estáveis aos quais o
autor dá o nome de gênero. Ainda segundo o teórico russo, os gêneros discursivos
podem ser divididos em duas espécies, os gêneros primários, aqueles que são
formados a partir da linguagem oral e os gêneros secundários, aqueles que surgem a
partir da comunicação escrita, da linguagem textual.

O discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente por meio de


textos. O produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo
significativo, qualquer que seja sua extensão, é o texto, uma sequência verbal
constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir da
coesão e da coerência. Em outras palavras, um texto só é um texto quando
pode ser compreendido como unidade significativa global. Caso contrário,
não passa de um amontoado aleatório de enunciados (PCN, 1998, p. 20).

Diante dos desafios de conceituação dos gêneros, segundo Trask (2004), uma
contribuição importante foi dada pelos estudiosos do texto, aqueles que se voltaram
para a linguística textual para entender a relação entre texto e discurso. Além de
pensar na relação entre texto e discurso, esses estudiosos encabeçaram ricas
reflexões acerca da tipologia textual. Essa tipologia pode ser vista no quadro abaixo.
Figura 1 – Gêneros textuais

Fonte: Viacarreira.com.

É nesse sentido que podemos dizer (CEGALLA, 2008) que a língua, mais do
que um instrumento para a comunicação pessoal, é um sistema de signos, um
fenômeno social, no qual por meio da sua abstração em uso é possível conhecer a
cultura e o outro inserido nessa cultura para a construção de realidades discursivas,
como indicado por Trask (2004).
Assim, a língua em seus muitos usos deve ser compreendida como um
conjunto de maneira de fazer e maneiras de falares nos quais o enunciador volta-se
para o outro, por meio das palavras, e tenta expressar-se a esse outro emoldurando
seus pensamentos em forma de gêneros e nessa dinâmica, dialógica por natureza,
acontece o dialogismo.
8.3 Literatura e outras artes

Se considerarmos que toda a relação entre as formas de linguagem é uma


relação dialógica, teremos que apreciar a relação entre a Literatura (grafada com
maiúscula para diferenciá-la de produções secundárias) e outros campos artísticos,
na medida em que não é preciso muito esforço para perceber empiricamente que essa
relação está mostrada em quase todos os lugares. Em especial porque a literatura
sempre esteve em diálogo constante com outras formas de apresentações artísticas,
como a música, o cinema, as artes plásticas, etc.
Partindo de uma interpretação sua das ideias fornecidas pelo teórico russo, M.
M. Bakhtin, Julia Kristeva, eclode com sua clássica definição de intertextualidade na
qual concebe o texto como um mosaico de outros textos. Segundo a autora “[…] todo
texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação
de um outro texto” (KRISTEVA apud TRASK, 2004, p. 64). A intertextualidade,
segundo essa concepção, pode ser entendida como algo inerente à língua e serve
como um recurso para produção de outros textos em sua concepção mais extensa,
como produção artística do intelecto humano.

O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma ‘primeira’


vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página
com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto
quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe
vestígios, a invenção, nunca tão nova que não se apoie sobre o já-escrito.
(SCHNEIDER, 1990, p.71)

Alguns teóricos têm estudado essa forma de relação sob o tema de dialogismo,
ou seja, quando uma produção artística dialoga com outra; outros teóricos, contudo,
preferem usar o termo intertextualidade, quando um texto (seja ele literário, fílmico ou
artístico) faz menção direta ou indireta a outro texto. Outros críticos, contudo,
defendem a ideia de que não é possível falar de intertextualidade ou diálogo sem que
o interlocutor tenha consciência da dinâmica em que um texto faz menção de outro
texto.

• Paródia: perversão do texto anterior que aparece geralmente, em forma de


crítica irônica de caráter humorístico. Do grego (parodès) a palavra “paródia” é
formada pelos termos “para” (semelhante) e “odes” (canto), ou seja, “um canto
(poesia) semelhante à outra”. Esse recurso é muito utilizado pelos programas
humorísticos.

• Paráfrase: recriação de um texto já existente mantendo a mesma ideia contida


no texto original, entretanto, com a utilização de outras palavras. O vocábulo
“paráfrase”, do grego (paraphrasis), significa a “repetição de uma sentença”.

• Epígrafe: recurso bastante utilizado em obras, textos científicos, desde artigos,


resenhas, monografias, uma vez que consiste no acréscimo de uma frase ou
parágrafo que tenha alguma relação com o que será discutido no texto. Do
grego, o termo “epígrafhe” é formado pelos vocábulos “epi” (posição superior)
e “graphé” (escrita). Como exemplo podemos citar um artigo sobre Patrimônio
Cultural e a epígrafe do filósofo Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.): "A cultura é o
melhor conforto para a velhice".

• Citação: Acréscimo de partes de outras obras numa produção textual, de forma


que dialoga com ele; geralmente vem expressa entre aspas e itálico, já que se
trata da enunciação de outro autor. Esse recurso é importante haja vista que
sua apresentação sem relacionar a fonte utilizada é considerado “plágio”. Do
Latim, o termo “citação” (citare) significa convocar.

• Alusão: Faz referência aos elementos presentes em outros textos. Do Latim, o


vocábulo “alusão” (alludere) é formado por dois termos: “ad” (a, para) e “ludere”
(brincar).

Existem inúmeros exemplos de diálogo entre uma manifestação de arte


específica – como os desenhos em quadrinhos – podem ganhar outras versões em
outras mídias, sempre mantendo com a produção original uma relação de diálogo (ou
de intertextualidade). É possível observar essa dinâmica no quadrinho Batman que
nasce como desenho, ganha versões seguidas no cinema e que, mais recentemente,
tem sua história reproduzidas em videogames, mas sempre seguindo o script básico,
em linhas gerais, da produção artística original.
Figura 2 – Batman: quadrinhos e filme

Fonte: Batman-news.

Apesar de uma percepção não muito difícil das diferenças entre as


caracterizações das personagens e de sua expressão representativa, é possível notar
como a intertextualidade (ou diálogo) se apresenta nessas representações – uma em
desenho em quadrinhos e uma fílmica – sempre levando em conta e reproduzindo
algumas características básica que se repete em relação ao personagem principal, o
Batman. A relação entre o enunciado e outro é percebido pelo interlocutor por meio
dessas características que se repetem. Assim, todas as vezes que um texto faz alusão
direta ou indireta a outro texto, temos o diálogo entre textos, sejam eles textos literários
e de outras artes quaisquer.
Compreender o diálogo que uma obra literária trava com outra obra de ser
tempo ou de um tempo anterior àquele em que uma determinada obra literária foi
escrita é uma rica oportunidade de análise, a respeito da qual vale apena um
aprofundamento maior, independente da teoria que for usada para as análises e
relação entre uma obra e outra.
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