Cartas A Cicinato

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CARTAS A CIMNATO
ESTUDOS- CRÍTICOS

•DE SEM PRONTO


Sobre b GAÚCHO e í IRACEMA

O b r a s de S e n i o (J. de A L E N C A R )

SECUNDA EDIÇÃO
COM EXTHACTOS DK (JAUTÁS DE CltiCINN^TO
ROTAS PO AUTOR

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PERNAMBUCO
J,-W, DF. MEDEIROS. LI V R R I R O - O I T m :
79, HO A DO 1 M 1 E K A H O B , 7 9

PA1ÍI2L — V*» Í..V. A1LLAHI), G Í J I L t A r P E O


l ivreira» da Suas Magestades o Imperador do firazil e KWRei de Portugal
i7, RUA S A I N T - A I « n B É - D K S - . V R T S , 47

18 7 2
CARTAS

A GINCINNATO
MJIÀO UACON E COMI',, I t t A H EliKülilMI. 1
LITTERATURA BRAZILE1RA

CARTAS A CINCINNATO
ESTUDOS CRÍTICOS

DE SEMPRONIO
Sobre o GAÚCHO e a IRACEMA

Obras de Senio (J. de ALENCAR)

SEGUNDA EDIÇÃO
COÍI EXTRACTOS DE CARTAS DE CINCINNATO
E fiOTAS DO AUTOR

PERNAMBUCO
J.-W. D li MEDEIROS, LI VREIRO-EDITOR
79, II V A 1)0 í 31 r E II A D O II , 7 O

PAR1Z.-T-V*» ,1.-1'. A I L L A U D , G Ü I L L A R D E C»
Livreiros de Su.is Magestades o Imperador do Brazil >• El-Rei de Portugal
i7, RUA s A j N T - A N nr. IÍ-I> E S - \ n T S . V7

187'2
MEU CARO CINCINNATO,

Ahi vão as minhas e fragmentos das tuas cartas.


Na recente lavra que fizemos nos campos da critica, sempre nos
hcfuvemos com inteiro acordo quer de meios quer de fins.
O apparecer eu hoje por tanto sem ser de algum modo comtigo,
importaria crassa violência a uma solidariedade litteraria cujo
laço por mais de um motivo me apraz manter illeso.
Fazendo esta publicação cedo ao desejo de pessoas caracterisadas.
na mór parte amigos benevolos, que instam commigo para que dê
segunda edição ás minhas CARTAS.
Não quiz eu nem devia deixar de corresponder a.laes atlenções;
e., aproveitando a oecasião, tevi ligeiramente ês*cr'iptos que, tu o
sabes, caiam-me dos bicos da penna com todas as virtudes mas
também com todos os vicios da primeira inspiração.
Eis pois de novo em publico as balbuciações, por li tão libe-
ralmente alentadas, da minha tosca e frágil penna.
Tenham ellas menos ephemero echo do que supponho, sei que
ein grande parte a ti o deverei, aos teus por assim dizei' pater-
naes favores, que, sendo gloria, não deixam também de ser \álido
broquel.

Recife, 2 de Fevereiro de 1872.


'SEMPROMO.
OBRAS DE SENIO

O GAÚCHO
CARTAS

A 'CINCINlNATO

CARTA I

Meu amigo
D

Comprehendo o gaúcho assim : organisação


destemida, yasada nos moldes dos Guaycurús ou
dos Patagões, que são os primeiros cavalleiros do
mundo.
0 rebenquc e as chilenas castigam e subjugam
os Ímpetos do cavallo indomito.
Ha em sua physionomia illuminada de um es-
plendor insano, em seu animo insoffrido, o en-
lumccimento c as palpitações precipites do arrojo
semi-barbaro.
Finalmente vejo no gaúcho alguma cousa
4 LITTERATURA BRAZILEIRA.

que se pareça com Osório ou Zeno Cabral — no


espirito, fontes inexgotaveis dos maiores herois-
mos, — no sentimento a exaltação e a decisão, qüe
pôde inspirar a calida ventania das savanas, —
nas- acções, nos gestos, uma resolução firme, im-
placável — n'uma palavra, a integra personalisa-
ção da virilidade continental.
O cavallo o completa; é o seu appendice ou
antes o seu epilogo; representa o papel de seu es-
cravo, antes que o de seu amigo, e melhor o de
victima que o de escravo : o gaúcho é mais o ty-
ranno do cavallo do que senhor d'elle.
Não sei, meu amigo, si já leste uma interes-
sante historia, intitulada —O Guarany—: por Gus-
tave Aimard ? Ahi pôde estudar-se o gaúcho com
proveito. Encontra-se o typo exacto e não a fábula
rachitica. O historiador francez estudou em pessoa
os costumes da vida nômada do pampa. Escreveu
como quem viu, e não como quem idéa.
Por isso os personagens, n'essa verídica historia,
são de uma vitalidade eloqüente; lêem toda a
efflorescencia da vida; e não são pallidas visões,
creaturas disformes, descoradas, confusas e em
contraposição á verdade natural e ethnographica.
E o cavallo do pampa? Comprehendo-o d'este
modo : susceptível, vertiginoso, estremecendo de
mil inquietações a qualquer leve rumor do
deserto, arredio do homem em quem 'adivinha,
SEMPRONIO A CINCINN.4TO. r>

por instinclo e por lição, um inimigo encarniçado


de sua independência; um animal que, ao vero
gaúcho, dispara a correr, com medo de sua crueza,
por banhados e coxilhas, impellido pela exaltação,
pela investida, pelo desencadeamento dos pânicos
brutaes; um animal que só possam domar a teme-
rária audácia e a clássica pericia do gaúcho, e a
que fora licito applicar, sem risco de improprie-
dade, o nome expressivo de desespero ou furacão.
(Yid. a nota no fim da serie.)
Nem um, nem outro, nos dá Senio.
. Manoel Canho, apresentado como realisando o
ideal do gaúcho, caracterisa-se por estes signaes :
ódio eterno para com a espécie humana, frouxo e
afeminado enternecimento para com a raça hip-
pica. Senio expressa a doutrina de que o gaúcho
tem mais em si de cavallo dô que de homem; que
dizer gaúcho é querer dizer — coração para uma
raça bruta, músculo apenas para a sua própria es-
pécie e até para a sua família.
Canho morre de amores pelas éguas. Côm ellas
vive, convive e dorme. Cavallos e poldrinhos des-
pertam-lhe todos os estremecimentos do affecto
mais terno e mulherengo. Já viste maior aberra-
ção, meu amigo?
Quanto aos cavallos, vejamos como foram idea-
dos por esse autor.
São muito discretos, sensatos e reflectidos. A
G UTTERATURA BRAZILÉIRA.

baia é sensível, amorosa e ciumenta de Canhb; a


tordilha tresanda a humanidade e A piedade
christã; o alazão, o pae do lote, é polido e cumpri-
mentadorcomo um conselheiro.
A baia, em lugar de tempestade, chama-se mo-
rena. '
Ai I morenas tão decantadas, romantisádas, poe-
tísadas todos os dias e pelas melhores pennàs,
quão pouco vos deveis lisongear com o original
capricho de Senio !
Moreninha chamou Macedo a um bellò livrinho
seu, de cunho nacional, que faz as delicias do
sexo arnavel, e as estantes brazileiras recolhem
como umajdia.
Pois este signifiòativo épitheto, de tradíciorial
encanto, clássica presumpção do que ha de gar-
rido, gracioso, tentador ha mulher nacional, qua-
lifica no Gaúcho uma égua. Canho alardeia de
fazer tudo pela besta, pela mulher nada. E a propó-
sito de besta: deve saber Senio, que no Rio Grande
do Sul nunca se emprega esta voz para significar
égua, como erroneamente se faz no seu Gaúcho.
Depois da morena quem ha de seguir-se? O
Jucá. Podereis adivinhar quem seja esse moço, de
nomeinsinuantemente alterado? Não é um moçb,
é fim poldrinho ! É querer levar a espécie ao ul-
timo ludibrio.
D'ést'arte temos o tratamento amoravel, que a
SEMPRONIO A CINCÍNNATO. 7

mãe estremosadá ao filho do seu coração, o cari-


nhoso diminutivo com que a donzella chama o ir-
mão ou o primo, em signal de estima e intimidade
affavele jovial, temol-o aqui applicado ao potro.
Para se chegar a humanisar a sociedade eqüina,
não se hesita em cavallisar a sociedade dos ho-
mens.
Meu amigo : entendo não dever passar além,
sem primeiro lançar certas bases, certos preceitos
que regulem o processo analytico-litterario.
Por isso, para toda boa ordem eclarezadeidéas,
reduso a questão ao dilemma : ou Gaúcho pre-
tende as honras de um romance de costumes, ou
satisfaz-se com o ser de mera phantasia.
No primeiro caso, protesto. Longe d'isso, o
Gaúcho é desnaturado, falsissimo, apocrypho.
Tal qual foi concebido e executado, importa a
mais pungente palinodia contra a gentileza, a
masculinidade, a fama das illustres façanhas e le-
gendárias tradições do campeão das savanas
austraes.
No segundo, ha de permittir-nos Senio a fran-
queza de lhe declararmos que sua phantasia é das
mais tristes, porque importa uma corrupção do
sentimento natural e racional, o rebaixamento
vivo e indecoroso da espécie.
Raciocinemos.
SEMPRONIO.
CARTA II

Meu amigo.

Nunca tive nem terei uma palavra mais severa


para exprobrar ao moço a fraqueza, em que in-
correr, arriscando suas primeiras lutas na esca-
brosa arena das lettras.
A litteratura, como se ha dito tanta vez, é um
sacerdócio , e como todos os sacordocios tem de
ser servida por diversas ordens de religionarios. 0
neophyto, em regra, paga irremissivejmente o
natural tributo do excesso de fervor, que caracte-
risa todo o noviciado. Exigir d'elle serviço com-
pleto fora impiedade.
Não assim com os serventuários provectos, de
reputação feita e perfeita. Si desliáam do verda-
deiro trilho, é dever imperioso arguir-lhes as fal-
tas, para que não 9ucceda aos sectários inexpe-
1.
10 LITTERATURA BRAZILEIRA.

rientes seguirem o mau exemplo, na persuasão de


se estarem edificando. Ha praticas, que sendo ap-
parentemente sãs, não deixam de ser no fundo-
heterodoxas.
Não ponho em duvida os créditos e a autori-
dade, de que Senio gosa n'este gênero de labor in-
tellectual.
E justamente por estar conscio da sua autori-
dade e dos seus conceitos, é que estremeço pelas
lettras pátrias, que vejo ameaçadas de um trans-
torno inevitável, si fizerem escola as fatuas phan-
tasias de uma penna philauciosa, que abusa das
suas faculdades procreadoras, vestindo o centauro
com as roupagens da bella Juno, involvendo na
crosta côr de rosa do confeito perfumado a bryonia *
ou o tartaro.
Tanto mais me receio dos males que da aber-
ração possam provir, quanto é innegavel a espécie
de idolatria, que existe em certo circulo para com
as obras oriundas da penna de Senio. Si a confissão
d'esta verdade lhe desvanece ainda mais o des-
communal amor próprio, embora ; refocílle-se no
ingrato gozo.
Um folhetinista conceituado, referindo-se á
Pata dagazella, chegou a declarar que, por ser ella
escripta por quem fora, merecia as honras da alta
jerarchia litteraria do autor, e não podia passar
sem as salvas do estylo. Não penso oulro tanto. A
SEMPRONIO A CINCINNATO. \\

obra e só a obra—eis tudo, venha d'onde vier, seja


de quem fôr. Pego no volume, sem indagar quem
o escreveu; e si fôr anonymo, tanto melhor.
Já antecedentemente havia dito o folhetinista
que si a obra não fora filha legitima aVaquelle ap-
plaudido talento, seria justo recebel-a como um
meroaccidentena litteratura.
Haverá confissão mais flagrante da idolatria?
Isto quer dizer que, a não ser a obra de quem é,
passaria com inteira indifferença. Similhante
juizo, vindo de uma penna amiga e grata, importa
uma condemnação. Quanto a mim, o que o folhe-
tinista quiz em balde disfarçar com as filigranas
de seu luxuoso estylo, foi o seguinte conceito :
« A obra, por si só, não presta.»
E então I Pois também cá pela republica das
lettras havemos de ler oráculos indiscutíveis, au-
toridades dogmáticas'? Também por cá os divinos,
quando parece ter soado a hora dos papas e dos
pães Soulouques... Vamos ao Gaúcho.
0 romance de nacionalidade ainda por ninguém
foi melhor entendido e executado do que por
Cooper.
Walter Scott, de quem a Europa tão legitima-
mente se vangloria, ainda assim a certos respeitos
é menos recommendavel do que o soberbo escrip-
tor norte-americano.
Por exemplo : antes de Walter Scott haver em-
12 LITTERATURA BR\ZIU5IRA.

prehendido a construcção do agigantado edifício


da historiada Escossia, já outros o haviam prece-
dido n'esle mister, colhendo é recolhendo muitos
costumes, muitas superstições nacionaes, como
observa um profundo critico. Waller Scott não é,
no todo, original. Mislriss Grant, Burns, Allan-
Ramsay, Buchanan, Macpherson e outros tinham
já explorado as virgens fontes, para onde Walter
Scott não fez mais que accentuar com sua penna
arrojada vastos caminhos, descobrindo com am-
plitude perspectivas bellissimas, apenas entre-
vistas e semi-occultas. Walter Scott achou veredas
para seguir no dedalo; não podia perder-se n'elle.
Antes de Cooper porém, que observação litteraria
havia já perlustrado as seculares solidõesdo Ohio,
doMississipi, do Illinois? Que penna rasgara a cel-
lula virgem e immensa de uma natureza acima de
todos os vôos, de todas as preoccupações das mais
arrojadas phantasias, e fizera jorrar d'alli a veia
caudal da poesia americana, parainnundar mares
e continentes? Quem já havia creado e dado um
certo molde para exemplo ?
« Cooper não tem predecessor : veredas ainda
não balidas se lhe apresentam de todos os lados.
Uma inexgotavel variedade de materiaes; scenas
que exigiam um theatro; painéis que demanda-
vam um quadro; pontos de vista, que solicitavam
um pinlor : por toda a parte novidade, bizarria,
SEMPRONIO A CWCINNATO. 13

maravillias; um interesse todo moderno; um


rovo, apenassahido de suas faixas ejá poderoso;
uma historia, cujas primeiras paginas brilham de
civilisação e falam de conquista ; a singularidade
de um heroísmo tranquillo, piedoso e perseve-
rante; os nomes de Washington, de Penn, de
Franklin ; para o fundo do quadro as florestas se-
culares ; para actores, os apóstolos do Novo
Mundo, entretendo-se com os filhos do wigivam e
do calumel; os progressos da arte européa no
meio d'essas solidões sem dono; os combates de
oppressos e de oppressores, uns reclamando,
outros querendo abafar a liberdade e a tolerância;
— que digo? talvez nova éra social, fechada
para o mundo, e prestes a emanar de Philadel-
phia ! »
0 grande merecimento de Cooper consiste em
ser verdadeiro; porque não teve a quem imitar
sinão á natureza ; é um paizagista completo e fi-
delissimo.
Não escreveria um livro siquer, talvez, fechado
em seu gabinete. Vê primeiro, observa, apanha to-
dos os matizes da natureza, estuda as sensações do
eu e do não eu, o estremecimento da folhagem, o
ruido das águas, o colorido do todo; e tudo trans-
mitle com uma exactidão daguerreotypica.
Apontam-lhe o defeito de serem seus quadros
um pouco seccos, em conseqüência d'essa minu-
14 LITTERATIJRA BRAZILEIRA.

ciosa fidelidade de pormenores. Mas embora ; não


deixa de oecupar o primeiro logar, ao nosso ver,
n'essa galeria de vultos gigantêos.
Cooper é americano, Senio também o é--eis-ahi
um ponto de analogia, que os aproxima.
Ao passo porém que Cooper daguerreotypa a
natureza, Senio, á força de querer passar por ori-
ginal, sacrifica a realidade ao sonho da capri-
»
chosa imaginação; despreza a fonte, onde muita
gente tem bebido, mas que é inexgotavel, e onde
ha muito licor intacto. Para Senio a verdade, dita
por muitos, perde o encanto. Elle não ha de escre-
ver pelo ramerão; fora rebaixar-se. É preciso dar
cousa nova, e eis surge o monstro repugnante e
despresivel.
Senio não compreliende a poesia americana,
como em geral tem sido concebida por bons talen-
tos que o hão precedido, e vem dar-nos o ideal da
« poesia verdadeiramente brazileira, haurida na lín-
gua dos selvagens » na effeminada Iracema, onde
os guerreiros falam uma linguagem débil, esmo-
recida e flaccida, que não podiam de modo algum
usar em sua braveza.
Isto imporia um característico : a penna de
Senio não foi talhada para construir a epopéa ; fal-
tam-lhe azas para elevar-se nos assumptos herói-
cos, que demandam vôos excelsos do pensamento,
phraseologia máscula, jogo de paixões vehementes
SEMPR0NI0 A CINCINNATO. 15

e arrebatadas. A linguagem de Senio é dolente e


languida. No dizer de um critico portuguez, sua
penna pôde ter bom successo « na poesia dengue e
coquette, poesia arrebicada, doentia, rasteirinha,
poesia d'alcôvas e salões, complacente, piegas,
cousa de toilette, feminina... como o pó de arroz,
os vinagres aromaticos, os espíritos depetites da-
mes e de petits crevés, o Ilangyland, o bouquet
Manilha, e o cosmético Miranda. »
N'esse prurido de querer passar por original
« seus esforços de imaginação são vôos de uma
intelligencia, que quer crear, e que em sua impo-
tência cria chimeras » na phrase de um critico,
apreciando Brockden Brown. Exemplo : Diva, Pa-
ta de Gazella, Gaúcho.
Além do mais, Senio tem a pretenção de conhe-
cer a natureza, os costumes dos povos (todas essas
variadas particularidades, que sobem apanhamos
em contacto com ellas) sem dar um só passo fora
do seu gabinete. Isto o faz cahir em freqüentes
inexactidões, quer se proponha a reproduzir, quer
a divagar na tela.
Porque não foi ao Rio Grande do Sul, antes de
haver escripto o Gaúcho ? A litteratura é uma reli-
gião, e tem direito de merecer taes sacrifícios de
seus sinceros cultores. Não nos teria então talvez
dado esses esboços de physionomia fria, deculis
contradictoria, concepções hybridas, a titulo de
16 LITTERATURA BRA7ILEIRA.

figuras esculpturaes e legendárias de :ampanha.


Muita razão tinha Balzac : não fundava acção ne-
nhuma em logar que não conhecesse.
Començamo-nos : a imaginação, até a mais
viril eopíma, se esgota, cança edesfallece. Apre-
ciando a decadência dotheatrohespanhol, diz uma
autoridade, que ella teve por causa o haver-se
esquecido de que « a opulencia das mais magní-
ficas correntes exige uma renovação e uma econo-
mia na despeza. »
A renovação faz-se pela observação. A natureza
offerece cada dia um encanto novo, que a imagi-
nação sadia recolhe para dar-lhe mil feições gra-
ciosas , ainda não conhecidas. 0 fluido propria-
mente original e imaginoso é apenas applicado a
dar o tom, o equilíbrio, o reflexo esthetico ás crea-
ções reaes. Com tão comedido emprego e uso,
nunca se poderá dar a banca-rota.
A imaginação atrophiada nas cidades só pôde
procrear a mentira, a falsidade, quando quer es-
tampar acções e figuras da vida florestal ou do de-
serto. Não é a leitura isolada, embora dos mais
escolhidos modelos, que dará a expressão fiel da
natureza. É preciso contemplal-a, receber impres-
sões face a face como desconhecido, experimentar
verdadeiramente todas as sensações da inspiração
não fictícia, mas real.
0 que foi que contribuiu para ler cedo a Ame-
SEMPROMO A CINCINNATO. 17

rica do Norte uma litteratura original e grandiosa,


graças ao trabalho de poucos obreiros? Foi o não
fazerem outra cousa sinão copiarem fielmente as
grandes scenas, as magníficas perspectivas d'essas
regiões virgens, onde tudo offerecia um cunho de
originalidade tão graciosa, que não só dispensava,
porém mesmo excluía o uso da creação phanta-
siosa, por somenos aos magestosos painéis.
0 que faz Audubon? Estuda os pássaros, suas
cores, suas paixões, suas metamorphoses, pura e
simplesmente á sombra das florestas doMississipi.
« Audubon não somente comprehendeu essas har-
monias, no meio das quaes viveu e que repercuti-
ram no fundo de sua alma, porém reproduziu-as
em estylo admirável de simplicidade, cheio de sa-
bor, de seiva, de eloqüência e de sobriedade. »
Ao passo que esses illustres constructores vão
pedir á natureza os traços harmoniosos, os pai-
néis correetos, as cores vivas com que devem
erigir e adornar o pantheon das glorias da pátria,
e de sua própria immortalidade, entende Senio
que conseguirá idênticos resultados, despresando
o inexhaurivel manancial; e, cego pela vaidade,
não vê sua veia apparecer nos últimos livros de-
primida e exangue? Lamentamos do coração o en-
gano d'alma.
Na monomania de querer passar por creador ou
melhor por dizedor de novidades tem a pachorra
18 UTTERATURA BRAZILEIRA.
dè asseverar na Diva ao publico, para quem se
deve ter a gravidade e a reverencia devida a tão alto
senhor, que os termos nubil, pubescencia, olympio,
frondes, afflar e outros (já de muito consignados
nos diccionarios da lingua) são innovações suas !
e demora-se em justifical-as.
Ora, todos estes vocábulos se acham em Moraes
e Constancio, e especialmente em Fonseca, edição
de Pariz, de 1852 — volume portátil. — Nubil —
diz o lexicographo —adj. de 2 gen ; em estado de
casar, casadouro — Nubilidade,s. f. idade, estado
do que é nubil. — Pubescencia, s. f. puberdade;
(bot.) existência de pelos. — Olympico, Olympio,
a, adj. pertencente aos jogos olympicos ou ao
Olympo. — Frondes, s. m. (bot.) ramos de arvores
folhudos. — Áfflante, adj. de 2 gen. queassopra
ou bafeja. — Afflar v. a. lançar o hálito ; soprar
para alguém ou alguma cousa; (fig.) communicar
o ar como assoprando ou bafejando; -(poet.) ins-
pirar os vates.
Na Iracema diz (na carta final) que « as etymo-
logias dos nomes das diversas localidades são de
cunho original.» Entretanto os vocábulos Aracaty,
Meruoca, Quixeramobim, Pirapora, Pacatúba, e ou-
tros, vem todos no Glossário do Dr. Martins, quasi
pelos mesmos termos!
Senio tem a mania das notas. Não ha volume,
d'entre os últimos que assignalam a sua precoce
SEMPRONIO A CINCINNVTO. 19

decadência litteraria, que não seja acompanhado


de alguns d'esses enxertos, que na maioria só ser-
vem para desabonar o autor. Na Pata da Gazella
escreve Tilbure, champanhe, porque entende que
devemos imprimir certo cunho pórtugueznas pa-
lavras estrangeiras adoptadas pelo uso. Por esta
regra devemos escrever buquê, soarê, etc. Não te
parece uma extravagância?
No Gaúcho offerece-hôs hennito, com certos ares
de novidade, por não encontral-o em Moraes ou
em Constando; è crê (este crê dá ura specimen da
frivola vaidade de quem não quer áchár autori-
dade antes de si, até na própria linguá) que Fon-
seca dá hinnirehinnito.
Notável singularidade! Parece que SeniO faz
timbre de lançar a confusão nos espíritos. Qüándo
elle diz que inventou tal verbo, encontra-se o verbo
nos diccionarios mais vulgares; quando diz que
em tal diccionario vem tal termo, justamente este
termo deixa de vir no diccionario referido. E sim ;
cá o meu Fonseca, tão indiscreto e abelhudo no
afflar, na pubescencia e nos outros, está mudo
quanto áo hennito e ao liennir! Não são, porém,
vocábulos novos; Filinto Elysio empregou hin-
nitor, rinchador, e modernamente Odorico Mendes
faz o mesmo no seu Virgílio Brazileiro. Hinnus
chamam os naturalistas ao filho da burra com o
cavallo.
20 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Diz-nos ainda Senio, no inesgotável Gaúcho, a


titulo de idiotismos e gíria de campanha : « car-
neador, o que mata a rez e a esfola e mantêa a
carne ; salgador o que salga ; que serro é monte;
que lombaé ladeira; que mondorgo são tripas ; que
puldro é cria da égua. »
Não é uma mania de querer a todo o transe pas-
sar porphilólogo?
Diz-nos mais que os Yankees chamam far-west
ao que os Russos chamam steppes e os Castelhanos
sabanas — isto é, « as immensas planícies rasas
que se dilatam por aquellas regiões, e que, de
certo, no dizer dos viajantes, parecem á noite co-
bertas de um branco lençol. »
Está enganado : os Yankees chamam far-west ao
desconhecido, o inexplorado; e, talvez, mais pro-
priamente ás mattas virgens, onde ainda não pene-
trou o esforço civilisador (Vid. a nota no fim da
serie).
Com o titulo de Far-west ha um bello livro, com
autoridade e cunho de quem viu as cousas, e cuja
leitura recommendamos a Senio.
Diz-nos mais que pampa é uma palavra origina-
ria da lingua kichúa, que significa simplesmente
o plaino. Porque não declarou de onde houve esta
noticia sobre a lingua kichúa, tão pouco conhe-
cida entre nós, e que não se aprende nas acade-
mias?
SEMPRONIO A CINCISNATO. 21

A tal respeito lê-se no Guarany, de G. Aimard,


pag. 41, capitulo intitulado — O rancho — em se-
guida ao que se intitula — 0 Gaúcho :
« Le motpampa appartient à Ia langueQuichúa
(langue deslncas); il signifietextuellementpiace,
terrain plat, savane ou grandeplaine. »
Tenho-me alongado de mais n'esta carta, e re-
servo-me para a seguinte.
SEMPROKIO.
CARTA III

Meu amigo.

Aqui estou oulra vez, proseguindo em meu in-


sano, e sem duvida inglório labor.
Á luz dos princípios estabelecidos na minha
carta de hontem, estudemos o Gaúcho, como ro-
mance nacional.
Achou-se um dia Manoel Canho em um rancho
ou pousada de Entre-Rios, onde uma égua brava
tinha desbancado os mais hábeis e destemidos pi-
cadores. Ouçamos Senio :
« Fora longa e renhida a luta dos piões com o
animal, antes que lhe deitassem a mão. Em se
adiantando algum mais affouto, a égua juntava, e
de um salto espantoso se arremessava longe dis-
parando aos ares o couce terrível e encrespando o
pescoço para morder.
24 LITTERATURA BRAZILEIRA.

« Conheceram afinal que era impossível levar


a sua avante pelos meios ordinários. Foi então
laçado o animal pela garupa em um dos corcovos,
ejungidoou antes enrolado ao moirão. »
Já antes d'essa tremenda prova da indomabili-
dadeda égua, D. Romero (o dono) e mais dous ca-
maradas, que trazia, haviam empenhado, mas de
balde, os maiores esforços para montal-a. Era tal
a rapariga, que D. Romero a dava de graça a quem
a montasse, tão convencido estava de o não conse-
guirem.
Canho, que nunca vira o animal, adianta-se,
crava o olhar na pupilla brilhante da baia, solta
um murmurejo similhante ao rincho do poldri-
nho, e temos a égua rendida.
Graças a esse simples olhar amoroso, a esse ar-
rojo, Canho consegue aproximar-se e pôx'-lhe a
mão nas espadoas.
— « Só mandinga! » observa um dos da pou-
sada, attonito pelo prodígio. Não podia deixar de
ser um homem de senso, esse.
Canho cinge-lhe o collo garboso. Os olhos de am-
bos se embeberam uns nos outros. — « Que pala-
vras mysteriosas balbuciaram os lábios do gaúcho
ao ouvido do indomito animal, com a mão a titil-
lar-lhe os seios? » pergunta Senio.
« 0 bruto entendia o homem — responde elle
mesmo. — A égua estreita com o pescoço o gaúcho.
SEMPR0NI0 A CINCINRATO. 25

Houve um colloquio do bruto com o homem. Ficam


todos os rancheiros pasmados. » (Nem era para
menos.)
Mas Canho continua nos seus carinhos e blan-
dicias. Amacía as finas sedas da crina e abraça a
égua. Esta volta o rosto para ver o semblante do
gaúcho e agradecer-lhe a caricia. Domada, ou antes
rendida ao amor, a baia aproxima-se do terreiro,
sacando com gentileza e elegância.
É de tal força o milagre que os da pousada
querem crer que a égua já fora amansada, ou
fugira ha tempos de algum pasto, e outras cousas
mais.
Porém Canho, conscio do seu estupendo presti-
gio, desafia a que consigam o que elle acaba de
obter de morena. Alguns temerários, levianos, se
aproximam para outra vez tentarem cavalgar o
animal, mas foi uma tal cascata de couces, que
todos correm a refugiar-se no alpendre.
E com tudo — mirabile dictu! — morena correu
para junto do gaúcho, que estava arredío (arredado
devia dizer) e começou a roçar por elle o pescoço,
comoseoaffagasse; Manoel montou de novo, sem
que a égua fizesse o menor movimento de impaciên-
cia. (Artes do demo; não tem que ver.)
Para quem sabe o que é a égua bravia, maxime
si está recem-parida, essa transfusão de sentimen-
tos affectuosos, de que nos fala Senio, operada en-
26 LITTERÂTURA BRAZILEIRA.

tre morena e Canho, éo cumulo do absurdo, senão


do ridículo.
Perguntai, desde o sertanejo do norte até o pi-
cador da cidade, e d'este até o gaúcho da cam-
panha do sul; perguntai a qualquer pessoa de
todos os paizes, entre os primeiros povos dados á
arte de montar, mais astutos, mais férteis em ar-
tefactos e fraudes para illudir os sentidos aguçados,
levados ao ultimo acume, da égua parida, si é
possível essa scena por mera sympathia ou in-
fluencia sentimental; e todos rirão de vossa inge-
nuidade.
« Os Americanos — diz um autor — apanham
os cavallos bravos, deitando-lheso laço ao pescoço,
pondo-lhes o freio e a sella, a despeito de todos os
esforços do animal para se ver livre de taes'obstá-
culos ; um domador valente monta então o cavallo
e fal-o correr, picando-o com as suas agudas
esporas, até que o animal se cance. » Senio não
será capaz de citar, para apoio de sua concepção,
uma só opinião em favor da domesticação do ca-
vallo, pelo sentimento brando e affecluoso. Muito
menos se se tratar da égua no estado de morena,
estado em que adquirem esses animaes um tal grau
de excitabilidade e susceptibilidade que só não
desconhecem o próprio filho.
Senio parece querer de algum modo insinuar
a justificação da desnaturalidade, pelo ornêjo de
SEMPRONIO A CINCINNMO. 27

Canho imitando o rincho débil do poldrinho recém-


nascido. É uma filigrana , que cede a uma só ob-
servação : a égua certifica-se do filho, não tanto
pelo rincho como pelo cheiro d'elle. Mas ainda
assim : pegai do filho da égua e aproximai:vos'
d'ella com as mostras mais affectuosas de vossa
ternura, e duvido que a consigais abrandar. Talvez
succeda o contrario, e cada vez mais a irriteis,
com risco de a fazerdes desprezar o próprio
filho.
0 autor acha, entretanto, simples o segredo da
proeza do gaúcho. Jamais moça ardente, sôffrega
de lascivos prazeres, comprehendeu melhor um
olhar de ternura, e d'elle se deixou vencer, do que
morena do olhar de Canho.
Morena é a encarnação pois do talento racional.
Conhece as menores intenções de seu dominador
desconhecido. Torna-se em momentos o escravo
mais intelligente, submisso e dedicado do es-
tranho.
Ás vezes vem a conlradicção' dar diversão ás
idéas. Como comprehendesse o gaúcho que a égua
estava com saudades do filho, apressou-se a saíis-
fazel-a. Foi, « passara tronqueira do pasto e a
besta desfechar n'uma Corrida veloz. » (É' tran-
queira e não tronqueira.)
Pois esse animal, que assim corria instinctiva-
mente em procura da prole ausente; que devia ter
28 LITTERATURA BRAZILEIRA.

uma corrida louca, sem parar, faz alto á beira do


arroio, põe-se a retouçar os tufos da grama, e
assim fica esquecido do filho, ponto supremo de at-
tracção irresistível, que o seduzia e o arrastava por
sangas e coxilhas, galgando encostas e transpondo
barrancos?
Canho eslá deitado dentro do rancho, em quanto
a égua solta pastava. « Porque não correu selvagem
e livre, para onde a chamava o instincto com tanta
vehemencia? » pergunla o autor. Elle accode
logo : « Antevia que tinha necessidade do homem,
carecia do seu auxilio, ou antes uma força desco-
nhecida a prendia á vontade superior, que a do-
mava. » A égua tinha já adivinhado que succedêra
ao filho algum desastre, do qual só o homem o po-
deria salvar; como, pois, o deixar?
Mas emfim lembrou-se morena que não era bem
demorar-se mais a pastar; e em logar de seguir só
seu caminho, como faria qualquer outro que só
desde horas conhecesse o gaúcho, vejamos o que
ella faz. Ouçamos Senio :
« N'esse momento metteu a égua a cabeça pela
porta. Dando com o gaúcho sentado, fitou n'elle
os olhos e começou a ornejar baixinho, como para
chamar a attenção do companheiro. »
0 autor não se demora em explicar o pheno-
meno por estas palavras ;
« Era a égua um intelligente animal: e depressa
SEMPRONIO A CINCINNATO. 20

aprendera a linguagem pittoresca e symbolica, in-


ventada pelo gaúcho para suas relações sociaes
com a raça eqüina. »
Que eguasinha, hein, meu amigo!!
Em poucas horas comprehendeu a giria symbo-
lica do gaúcho. Se esta égua freqüentasse uma
faculdade, que de prodígios não operaria! Era ca-
paz de improvisar discursos, recheados de sen-
sações.
Ha por ahi talento que possa tanto?
Também não é muito para admirar, porque já
morena se rendera ao só olhar do brazileiro, e um
simples ornêjo d'este lhe vencera os ímpetos bra-
vios, quando ainda eram inteiramente desconhe-
cidos; e isto logo ao primeiro encontro.
Um folhetinista diz que o Gaúcho é um romance
primoroso, devasto alcance litterario, philosophico
e histórico (nada menos).
Espera o leitor que o profundo critico entre na
vastidão d'essa philosophia enigmática, bondhica
ou mythica, n'esse alcance litterario de logogri-
pho, e cedo cahe das nuvens, fulminado pela mais
atroz desillusão. O que o escriptor adduz para
provar suas pomposas proposições, são estas pa-
lavras :
« Tenho em mão o primeiro volume da obra.
Que belleza de imagens! que vôos audaciosos e
brilhantes! »
2.
30 MTTERATURA BRAZILEIRA.

E vai proseguindo n'esla apologia, apologia, e


nada mais que apologia!
Só a morena poderá explicar o latum, longum et
profundam do contexto.
A burra de Balaão talava, e, pelo que as cou-
sas mostram, ainda assim ficava áquem de mo-
rena.
Teriam também as orelhas da burra bíblica a
virtude de « se enrascarem como uma concha? »
As orelhas da morena faziam d'estas mágicas. Prosi-
gamos.
O que vemos agora? Duas éguas que se abraçam
e acariciam : — morena e tordilha. Fitamos junto
da gruta, onde cahiu e está agonisante o Jucá, o
filho da primeira.
Canho penetra na guéla pétrea, d'onde saca o
menino.
Ao vêl-o, a mãe soluça e ri.
A esta gentil creança havia a tordilha, na au-
sência da amiga, ornamentado por alguns dias, con-
doída do orphão. Tordilha é um portento de senti-
mentalismo : a égua parida só consente tocar-lhe
nas tetas o próprio filho; tordilha, posto que sel-
vagem, pelo contrario: é ella, de motu próprio,
que vai em soccorro de pecurrucho !
Entretanto — admirável contraste ou capricho
da natureza! — ao passo que assim procedeu com
o Jucá durante a ausência da mãe, agora, ao con-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 31

femplar com Manoel amorena deitada com a creança


eqüina, castigava a travessura do seu próprio pol-
drinho, arredando-o de si, quando elle se chegava
' para acaricial-a. « Não queria ella-— diz o autor,
— a mãe feliz, dar áquella mãe desventurada o
espectaculo de sua alegria ! »
Em seguida tira Canho o poldrinho do regaço
materno. Égua nenhuma consentiria em tal, mas
emfim morena não é uma égua humana, de senti-
mentos rebeldes e vulgares ; pertence, pelo con-
trario, ao Olympo, como o Pégaso; é uma égua
divina.
Canho chama a tordilha, que ligeira accodc of-
ferecendo as tetas para amamentar o pobresinho
desfallecido. Só então consentiu tordilha que o seu
pirralho brincasse; mas ainda assim, só ao longe,
para não acordar o camarada.
0 enternecimento da amiga de morena não fica
n'isso, e vai pressurosa chamar as selvagens cou-
delarias, para que venham felicitar a exilada pela
sua boa volta aos serros nativos.
Espantando-se com o gaúcho, que se levantara
do chão, dispararam os magotes. Morena porém
corre a dissuadil-os de seus receios, contando-lhes
tudo sem duvida : seus recentes amores, sua nova
paixão ao Canho, os sacrifícios prestados por este
a favor do Jucá, filho do pae do lote, e lá volta a
cavalhada.
53 L1TIERATÜMA BRAZIIEIRA.

Ahi então o espectaculo é edificante. O maioral


da tropa, o soberbo alasão, cumprimenla Canho ;
Canho corresponde á saudação do rei do deserto.
c Não houve entre elles affagos nem familiari-
dades » vem logo dizer-nos Senio, para que não
pensemos que elles teriam d'essas effusões, só

próprias de gente-relé, faltando á cortezã prag-


mática, mas uma demonstração grave de mutuo res-
peito e confiança.
Canho é verdadeiro heroe d'aquella festa ca-
vallar.
Rodeiam-n'o, saúdam-n'o, cada qual mais cere-
monioso, obsequioso e solicito. Pôde mesmo
suppôr-se que alli se praticou de cousas concer-
nentes á hippica genle, e falou-se compridamente
da política do paiz em intima confiança, como
n'uma sessão de parlamento. Canho parece-se com
o oráculo. Si lhe oceorresse improvisar no deserto
uma ceremonia das monarchias, lembrando o
beija-mão, todos teriam corrido, commovidos e á
porfia, a osculara pata do grande alasão.
Depois d'esse solemne cortejo, celebrado na
magestade das solidões, sente o gaúcho exigir-lhe
o coração o cumprimento do humano dever de
matar um homem — embora o assassino de seu
pae. Esse coração era a esphinge. Tão vilão para
com seu similhante, quão pródigo de impossíveis
affectos para o bruto! Homem que, tendo o senti-
SEMPRONIO A CINCINMTO. :.:>

mento tão apurado para o animal, deixasse de o


ter para a sua espécie, seria um aleijão da espécie
humana. Pois Canho era assim : desde menino,
premeditava vingar a morte de seu pae. Não fora
elle tão sensível para os cavallos e as éguas, enão
se admiraria essa resolução. Ella está até na indole
e natureza do arrebatado e vingativo gaúcho, só
não na do simulacro mais imperfeito, do arremedo
mais incompleto, da caricatura mais contradicto-
ria e desnaturada do typb.
Sois vós isso, acaso, gaúcho?
« Não se explica similhante aberração » diz-nos
o autor.
Ah! não se explica. E dá-se-nos a aberração
como otypo! Triste phantasia, a que não explica
sua própria creação.
Canho vai, emfim, partir para vingar-se.
Apanhou a rosilha, que já não tinha poldrinho
para amamentar. Nenhuma resistência fez o
animal. Todos se haviam rendido á influencia
mysteriosa do gaúcho; e todos desejavam tanto
mostrar-lhe seu affecto, que houve quasi querel-
las e arrufos de ciúmes, pela preferencia dada á
rosilha.
Morena, vendo que seu bemfeilor ia partir, ar-
rancou-se ao júbilo materno, correu para Canho e
abraçou-o. Deveria ser uma scenatoda decommo-
ver, aquelle supremo lance de despedida de dous
3í LITTERATURA BRAZILEIRA.

amantes, apaixonados. Quem dera um Raphael,para


levar á tela o quadro portentoso d'este sublime
abraço !
Não nos podemos furtar á tentação de repetir
aqui as ultimas sentidas palavras de Canho, que
fazem"cortar o coração :
— « Pensavas tu, morena, que me iria sem
abraçar-te? Adeus! Levo de ti muitas saudades.
A corrida que dêmos juntos, nunca, nunca hei
de esquecêl-a. Duvido que já alguém sentisse
prazer egual a esse. Falam outros das delicias de
abraçar uma bonita rapariga : se elles te apertas-
sem, como eu, a cintura esbelta, voando por estes
ares I »
Vade retro! Que lhe faça bom proveito, Senhor
Canho.
— « Adeus, adeus! conclue o gaúcho. Lem-
branças ao alasãosinho. »
Será lembrado. Vá com Deus. E Canho par-
tiu.
Mas apenas vencera algumas quadras, ouviu o
tropel da veloz corrida de morena, que distribuiu
quatro dúzias de couces e outras tantas dentadas
á rosilha, por haver tido a ousadia de merecer
attenções de seu amante. Manoel entendeu loo-o —
pudera não ! Eram ciúmes.
E para acabar de uma vez com esta repugnanfe
historia de hippicos amores, fique-se sabendo que
SEMPRONIO A CINCIMATO. 55

Canho montou na morena, pôz o Jucá na garupa,


e foi-se.
Santo Deus! Para onde emigraram o bom senso
e o gosto litterario do Rio de Janeiro?!

SEMPRONIO.
CARTA IV

Meu amigo.

Hoje occupo-me apenas com o pampa, cuja des-


cripção no primeiro capitulo do romance tantos
louvores tem grangeado a Senio.
Não tenho tempo para mais. Escuta !

« Como são melancólicas e solemnes, ao pino do sol, as


vastas campinas que cingem as margens do Uruguay e seus
affluentes ! »

Melancólicas as campinas, ao pino do sol! De-


feito de observação.
Que as selvas o sejam sempre, as selvas que na-
turalmente vestem aspecto sombrio, de indefini-
vel tristeza, comprehende-se. Mas campinas, em-
bora immensas, embora solitárias, porém banha-
das de luz!
38 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Não ha sítios descobertos, ao ar livre, como a


savana, que apresentem melancolia ao pino do sol.
A luz, que se diffunde como um dilúvio, esclare-
cendo tudo, imprime, ao contrario, no descam-
pado uma feição radiante ebella.
E Senio tanto parece esposar es Ia opinião que de-
clara que « ao pôr do sol, a physionomia crepuscular
do deserto é suave nos primeiros momentos, e só de
pois é que ressumbra profunda tristeza. » Oh ! Pois,
si no crepúsculo da tarde, quando uma solemne
melancolia involve toda a natureza e portanto
deve já ser triste a savana, é, pelo contrario, no
dizer de Senio., suave, isto é, aprazível, então ao
pino do meio dia, quando tudo é luz, calor e vida,
é que o pampa ha de ser melancólico ? Ainda mais:
chega elle a dizer que n'esse momento (isto é, ao
pino do meio dia) o pampa é mais pavoroso do que
a immensidade dos mares. Que pampa seria esse
que Senio observou e estudou ?
« INo seio das ondas, o nauta sente-se isolado; é átomo
involto n'uma dobra do infinito. As ondas se agitam em cons-
tante fluctuação ; tem uma voz, murmuram. No íirmamenlo
as nuvens cambiam a cada instante, ao sopro do vento; ha
11'ellas uma physionomia, um gesto. A tela oceânica, sempre
magestosa e esplendida (e porque não também o pampa ?)
ressumbra possante vitalidade. O mesmo pego, insondavel
abysmo. exhubera de força creadora; myriadas de animaes
o povoam, que surgem á flor d'agua.
« O pampa, ao contrario, é o pasmo, o torpor da natureza.
Em torno do viandante faz-se o vácuo. »
SEMPRONIO A CINCIMATO. 39

Em torno do viándante faz-se o vácuo, no


pampa? E porque não também no mar em lorno
do naula isolado?
• As myriadas de animaes que povoam o mar sur-
gem á flor dtagua ? Prodígio! N'isto nãò pôde deixar
de haver milagre de Santo Antônio de Padua. Ca-
racterístico do mar, ao pino do meio dia : os
peixes deitam a cabeça de fora.
« Lavor de jaspe, imbutido na lamina azul do céo, é a nu-
vem, D

As nuvens no Armamento do mar teem o direito


de cambiar, e no firmamento do pampa tem a nu-
vem o dever de ser-lavor imbutido, pela mesma
razão porque alli não pôde deixar de soprar o
vento, e aqui não pôde deixar de reinar a para-
lysia.
As ondas murmuram, é certo ; mas as altas her-
vas da savana não rumorejam? Pois Senio não diz
que o pampa é a pátria do tufão? Não é muito que
onde reina o tuíão, possam também soprar galer-
nos. Conclusão, que muito interessa á meteoro-
logia ; no pampa, ao pino do sol, não ha venlo.
« 0 chão simelha uma vasta lapida musgosa de extenso
pavimento. »

Ora, si a savana figura as fluctuações do mar


alleroso* como se compara a savana com a la-
pida?
40 LITTERATURA BRAZ1LEIRA.
« Para a fúria dos elementos inventou ó Creador as rijezas
cadavericas da natureza ; diante da vaga impetuosa collocou
o rochedo; como leito do furacão, estendeu pela terra as in-
findas savanas da America e os ardentes areaes da África. »

O rochedo é com effeito uma rijeza. Mas as


savanas ondulosas, os areaes movediços serão tam-
bém rijezas cadavericas da natureza ?
« Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se n'el-
las como o pôtro indómito. »

Em suas Cartas sobre a Confederação dos Ta-


moyos, estranha J. de Alencar ao poela G. de Ma-
galhães o haver « á águia dos Alpes, ao cysne da
Grécia, ao condor dos Andes, opposto por parte do
Brazil a andorinha, ave de todos os paizes. » Pois
bem : Senio compara o furacão das savanas com o
pôtro I Como assim se amesquinha um dos mais
magestososphenomenos da natureza americana?!
Quem dissera que Senio reproduzira então o pre-
ceito que devia condemnal-o hoje ?
Queres agora ver o contraste mais vivo e com-
pleto? É um escriptor americano que vai descrever
o furacão. É Audubon.
« Por sobre o continente americano — diz Audubon — não
passa o furacão sem deixar traços. Quanto a mim, que fui teste-
munha de um d'esses phenomenos terríveis, tão viva lembrança
me ficou d'elle que talvez me taxassem de exaggerado, si eu
reproduzisse a sensação de assombro que ainda me invade,
quando a memória me representa os pormenores d'essa
horrida scena.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 41
« Jornadeava eu a cavallo. Achava-me entre Shawaney e a
ponta do Canot; lindo estava o tempo ; o ar meigo; ia deva-
garinho o meu cavallo.
* Apenas entrei na garganta ou valle que separa a ponla do
Canot da d'Highland, obscureceu-se o cáo; cerração negra foi
simulando noite profunda. Parei, cheio de espanto ; sentia
ardente sede, que saciei n'um arroio próximo.
« Para logo escutei uns sons vagos, sem nome em lingua
humana, um como murmúrio longo. Sobre o fundo tenebroso
do Armamento foi-se desenhando uma faixa oval e livida.
« Os ramos superiores das arvores estremeceram ; depois
communicou-se esse movimento aos ramos inferiores. N'um
relancearde olhos, vi os troncos estalarem em pedaços, desen-
raizarem-se., fugirem ao sopro da ventania, e toda a floresta
passar ante mim como torrente de agigantados e aterra-
dores phantasmas. Esses troncos se embatiam e entrechoca-
vam em sua viagem.
(i No centro da corrente tempestuosa, viam-se os topos das
mais grossas arvores forçados a tomar uma direcção obliqua,
a vergar: abaixo e acima d'ellas, massa espessa de ramalhada,
galhos estalados, poeira erguida, tudo redemoinhava sob a
mesma impulsão. 0 espaço até ahi occupado por todas essas
arvores, nada era mais que arena vasia, ou antes coberta de
raízes, e destroços ; dirieis o leito do Meschacebe inteiramente
nú. As cataractas do Niagara não atrôam com mais violência ;
não é mais poderoso o impetò da sua queda terrível.
« Quando a sanha primeira do furacão se mostrou como que
farta ou cançada, milhões de ramos despedaçados revoavam
ainda pelo ar, e a marcha da columna densa que ia assignalando
a passagem da tempestade perdurou ainda horas, como que
determinada por não sei que força de attracçâo.
« Cobrira-se o firmamento de um véo esverdinhado e lu-
gubre ; cheiro de enxofre excessivamente desagradável im-
pregnava a atmosphera. Silencioso e pasmado, esperei que a
natureza transtornada readquirisse, sinão a fôrma primeira,
ao menos seu costumado aspecto.
42 LITTERATURA BRAZILEIRA.
d Atravessei o leito da torrente aérea, conduzindo pela brida
o cavallo, que espantavam todos esses cadáveres d'arvores
despojadas e derruidas.
« As ruinas da floresta destruída jaziam amontoadas no solo,
onde formavam tão espessa barreira, que obrigado, ora a abrir
vereda n'esse labyrintho, ora a arrastar-me por debaixo dos
ramos enlaçados, ora a transpôl-os de um salto, senti, durante
o tempo que a esse trabalho consagrei, fadiga mortal.
« Essa columna de vento, que occupava cerca de um quarto
de milha, levantou telhados, arrebatou casas, forçou rebanhos
inteiros a emigrar violentamente pelos ares. Achou-se uma
pobre vacca morta no cimo de um pinheiro para onde a levaram
as azas do furacão. Ü valle é ainda hoje um logar desolado,
coberto de musgo e de sarças, inaccessivel aos homens : os
animaes de rapina o escolheram para asylo. »

Tanto tem esta descripção de grandiosa e verda-


deira, quanto a primeira de apoucada e falsa.
Além de comparar a fúria do furacão com o
pôtro, vê, meu amigo, como Senio pinta a passa-
gem do imponente e horroroso phenomeno :
« Afinal a natureza entra em repouso; serena a tempestade;
queda-se o deserto, como d'antes plácido e inalterável. (Queria
dizer inalterado.)
« E a mesma face impassível; não ha alli sorriso, nem ruga,
Passou a borrasca, mas não ficaram vestígios. (Que insignifi-
cantes borrascas são as do sul, julgadas por Senio!)
« No tronco da arvore derreada, nos galhos convulsos, na
folhagem desgrenhada, ha uma attitude athletica. Logo se
conhece, que a arvore já lutou com o pampeiro e o venceu.»

Pois se em* conseqüência das lutas com o pam-


peiro é que a arvore fica derreada,ve seus galhos
convulsos, e sua folhagem desgrenhada, como é
SEMPRONIO A eiNCINNATO. 45

que passou a borrasca e não ficaram vestígios ? Si


não foram esses vestígios poder-se-hia conhecer
que a arvore lutara com o pampeiro e o ven-
cera?
Mas a arvore lutou com o pampeiro e venceu-o!
Que arvore ! e que pampeiro ! Já visle arvores co-
lossaes passarem arrebatadas,'estranguladas nas
azas do furacão, como acaba de nos referir Audu-
bon. Senio porém affirma que a arvore do pampa
(não falando nas altas hervas, a vegetação lenhosa
do pampa é fraca e acanhada, sem proporções,
nem solidez para resistir ao furacão) não só resistiu
a este, porém vencen-o !
« A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote ;
eil-o que se vai retouçando alegremente babujar a grama do
próximo banhado.
« Nas margens do Uruguay, onde a civilisação já babujou a
virgindade primitiva, etc. »

Uma das manias que perdem Senio é querer


passar por outro Colombo, descobridor de mun-
dos novos, por mares nunca dantes navegados. In-
siste, demora-se n'essas novidades, com a intenção
de imbutil-as no idioma vigente. Quer a todo o
transe introduzir na linguagem moderna—nomen-
clatura, phraseologia, que se attribua á sua ini-
ciativa e sapiência.
O vocábulo babujar é empregado freqüentes ve-
zes no volume. Os diccionarios da lingua não o
U LITTERATURA BRAZILEIRA.
trazem e sómenle babugem, vocábulo este muito
usado pelos nossos homens do campo, para tam-
bém significar a grama rasteira, que aponta com
as primeiras águas. Senio não seconlenta sómenle
com dizer que o poldro babuja; e sem se importar
com o simile pouco lisongeiro a que dá logar seu
vaidoso capricho, faz também a civilisação babu-
jar (como cavallo) a virgindade primitiva das re-
giões. Aqui não temos simplesmente o rebaixa-
mento do homem ao nivel de irracional, idéa fixa
e capital de Senio em sua obra : temos mais que
isto : o phenomeno supremo e providencial da
humanidade, a civilisação, exerce a funcção do
bruto—babuja.

i Tal é o pampa — conclue Senio. — Esta palavra, origi-


naria da lingua kichúa (kechúa escreve o Dr. Martins em seu
Glossário, dando-lhe a significação de campo) significa sim-
plesmente o plaino; mas sob a fria expressão do vocábulo
está viva e palpitante a idéa. Pronunciai o nome, como o povo,
que o inventou. (Como havia de ser que elle o pronunciaria ?)
Não vedes no som cheio da voz (ha pouco, a expressão do vocá-
bulo era fria, agora ha cheio som de voz) que rebôa e se vai
propagando expirar no vago, a imagem fiel da savana a dila-
tar-se por horizontes infindos ? Não ouvis n'essa magestosa
onomatopéa repercutir a surdina profunda e merencoria da
vasta solidão ?»

Aqui já a solidão, isto é, o pampa tem uma voz,


a surdina murmura. Está claro que não ha de ser
ao pino do meio dia.
¥
.SEMPRONIO A CINCINNATO. - 45

Não ha duvida queé muito significativo o termo


pampa. Por mais, porém, que o queiramos, não
podemos ver n'elle um som (e os sons também se
vêem?) querebôe e se vá propagando, e muito me-
nos descobrir-lhe onomatopéa.
Que indica tudo isto? 0 fructo agorentado e
fanadinho de uma imaginação, farfa em bagagem
de cores vivazes para pintar os quadros da natu-
reza real, mas que só produz, inteiramente entre-
gue a si, pallidos e contradictorios desenhos, onde
sobresai a confusão árida.
Lendo-se a descripçãodo pampa por Senio, vê-se
que « essas solidões não lhe serviram de gabinete
de trabalho; que elle não percorreu os vastos de-
sertos ; que não respirou o ar carregado de emana-
ções da vegetação primitiva » como fez o grande
ornithologo das margens do Mississipi e do Ohio.
0 espectaculo verdadeiro do pampa está desfi-
gurado no Gaúcho.
Aquella nuvem não estáimbutida no céo, divaga ;
aquella campina não é melancólica, mas expande-se
e sorri; aquella savana não é o torpor ou o pasmo
ou a paralysia, agita-se ; aquelle chão não se parece
com a lapida do claustro ou do túmulo, sinão corri
as sinuosidades do vasto oceano ; aquelle furacão
não se espoja como o pôtro, mas subleva-se, con-
torce-se, revolve-se, devasta e tala o deserto como
vórtice ou cataclysmo. A natureza protesta conlra
3.
46 LITTERATURA BRAZILEIRA.
o panorama traçado á custa do prolongado esforço
estéril.
Queres ver, meu amigo, um painel vivo e na-
tural? É a descripção suave do pampa por G. Ai-
mard.
Aqui não se escreveu para encher um capitulo.
São pinturas rápidas, mas incisivas, próprias de
penna modesta e despretenciosa. Por via de regra,
para dar-se noticia d'esta natureza meridional, que
é portento de magnificência e formosura, não se
ha mister de longos desinvolvimentos. prejudi-
ciaes sempre ao vigor e effeito das scenas.
« A campanha em torno de mim — diz G. Aimtrd — estava
deserta e plácida como no dia da creação.
« Os cães, vigilantes sentinellas,.que durante a noite nos
haviam velado o repouso, levantaram-se ao ver-me, e vieram
festejar-me com latidos alegres.
« 0 aspecto do pampa é dos mais pittorescos, ao nascer do
sol.
« Silencio fundo paira por sobre o deserto ; dir-se-hia que a
natureza se recolhe e recupera as forças, ao desabrochar do
dia que enceta.
o Tremula docemente a fresca brisa matinal, por entre os
altos macegaes que ella inclina em ondeados e leves movi-
mentos.
« Por aqui, por alli, erguem os veados as cabeças, tomados
de espanto, e circumvagam olhares temerosos.
(i Os passarinhos, encolhidos de frio sob as ramagens, pre-
ludiam por algumas notas tímidas o seu matutino hosannah.
< Sobre os montículos de areias, formados pelas tocas das
vigonhas, poisam curujinhas indolentes e immoveis, como sen-
tinellas; em sua meia somnolencia, deslumbradas pelos raios
SEMPRONIO A CINCINMTO. 47
do astro do dia, escondem as redondas cabeças na plumagem
do pescoço.
« Lá pelqs alturas, urubus ecaracarás bordejam em círculos
alongados, librando-se negligentemente, á feição do vento, á
espera da presa sobre que hajam de cahir de súbito, com a
celeridade do raio.
« Assimelha-se o pampa n'este momento a mar de verdes e
calmas ondas, cujas margens se occultem lá por detraz das
dobras do horizonte. »
Eis-ahi em rápidos traços o pampa. Opulento ou
pobre de encantos, é isto. É a natureza copiada
com fidelidade photographica.
« A imaginação dos homens de gênio, observou um critico,
reproduz, as paixões e os quadros do mundo, como espelho fiel
e brilhante repete bella campina, ou rosto regular ; a imagi-
nação falsa assimelha-se porém a esses vidros obliquos, que
o óptico dispõe de modo que não apresentam reflexo algum
exacto ; ahi tudo nos apparece ou diminuído ou desmedida-
mente dilatado. Uma está para a outra na mesma proporção'
do retrato para a caricatura. »
No Gaúcho nota-se uma pompa, uma demasia
palavrosa, sacrificando o pensamento á fôrma.
Pede-se ahi de mais á imaginação estanque.
E que succede, afinal? Se ha hi fôrma que scin-
tille, é scintillar de lentejoilas; é lustro de ouro-
pel; é casquinha de brilho fictício e fallaz : mal
roçardes o artefacto, conhecereis o inferior quilate
da quinquilharia.
Desculpa, meu amigo, a prolixidade, e per-
mitle-me voltarão assumpto.
SEMPRONIO.
CARTA I
CINCINNATO A SEMPRONIO

Sempronio amigo.
Agradeço cordialmente as admiráveis cartas em que me
tens ido fazendo a analyse do famoso Gaúcho, com inlelli-
gencia e gudeza critica tal, que me parece a tua penna,
modelo para similhantes estudos, e digna de appreciação
de trabalhos de vulto. Sim, pennas, como a tua, devem tei-
mais alta missão, mas emfim, bem haja quem foi origem
de lucubrações tão valiosas, na essência e na fôrma, como
estas cartas são.
Mandas-me, com a tua 4a carta, um exemplar do Gaúcho,
para que eu, confrontando-a com o documento original, te
diga se és severo ou justo. Já que me permittes, dir-te-hei
que me não pareces justo nem severo : em vez de rigor, ha
ahi brandura; longe de justiça, ha favor nos teus julga-
mentos : affigura-se-me que ainda concedes ao escriptor
qualidades imaginárias, em desconto de seus peccados.
Agora que li o tal livreco, tenho para mim que no seu au-
tor venerarei de boa mente uma excellente pessoa; mas
como escriptor, isto não é mais que um operário da com-
muna litteraria, demolidor feroz, petrolisador intellectual,
digno membro do directorio da Escola Coimbra.
50 LITTERATURA BRAZILEIRA.
N'esta tua 4* carta, dissecas brilhantemente o 1* capitulo
do Gaúcho, e ainda assim saltas por sobre mil bellezas, pro-
vavelmente porque, para aquilateral-as todas, houveras pre-
cisado os CO volumes in-folio da Encyclopedia methodica.
Concordo comtigo : este escrevedor tem a mania da novi-
dade; il luifaut du nouveau quand il rtij en aplus; logo no
prôemio d'esta cousa, nos diz elle que na novidade é que
elle acha o sainete; é da rara dos taes que não hesitarão em
descrever o mar como encarnado, e o circulo como bicudo,
só para conquistarem a gloria de ceifar estranhezas, e dar
á luz novidades ; foi quem aconselhou Alcibiades a cortar
o rabo ao cão. Onde a imaginação lhe parece frouxa, ou de-
senfreada, pouco importa ; acceita-se tudo : ás maiores
loucuras, chama-se originalidade; o devaneador é chefe de
escola, e já que não pôde brilhar pelo senso commum,
contenta-se com o pechisbeque da casa :
Quand on n'a pas cc que l'on aime,
II faut aimer ce que l'ori a.

Tens carradas de razão em quanto ponderas, mas reconheço


que muito te arriscas, porque, segundo parece, até este Deus
tem seu pagode, com os competentes adoradores ou pagodeiros.
>'o L. 4o de varia Historia da índia Oriental cap. 8, escreve o
Padre Fr. João dos Santos, que nas terras do Malabar, de que
é senhor o Çamori, rei de Calecut, ha um pagode a que em
certos dias de festas, açodem uns en.diabrados devotos, .cha-
mados Amoucos, e mettem-se pelo meio da gente, apostados
a matar quantos poderem, em honra e louvor do seu nume,
até morrerem na contenda, como de ordinário succede de-
pressa, porque, como sua vinda é sabida e esperada, ha muita
vigia que lhes sai logo ao encontro, e peleja até dar cabo
d'elles; e com esta barbara solemnidade se celebram as festas
d'este pagode. Fernão Mendes diz que se untam com o un-
guento minhamundy. Ouço que alguém se anda por ahi mi-
nhamundyzando, mas por ora ainda a cousa se reduz a incensos
e genuflexões ; e isto é innocente; agora quem, em dia de
CINCINNATO A SEMPRONIO. 51
festa, fôr fazer das suas no pagpde, muda o caso de figura.
Continuando pois, direi que o tal capitulinho, a melhor
cousa da melhor obra do melhor autor, ebjecto dos espantos
de espantadiços, tem, nas poucas linhas de que se compõe,
outras muitas curiosidades, além das que notaste. Bem as viste
certamente, mas não te abaixaste a indicai-as. Permitte que
eu te aponte para algumas d'entre tantas outras.
Basta, basta! Um capitulosinho de 120linhas de Iettragar-
rafal, apontado como a melhor cousa e pórtico da obra, deu
margem para a tua carta magnífica, e deixou-me estes sobejos,
ficando ainda intacta matéria para outras tantas observações.
Tens pois razão ás carradas, repilo. Eis-ahi as bullas com
que certos escriptores se collocam a si mesmos em nichos no
pantheon litterario. Também os phariseos affectavam ser ni-
miamente severos, pagavam o dizimo, e ostentavam observar
as ceremonias da lei; mas acharam quem lhes desmascarasse
o orgulho e a hypocrisia, e os expulsasse, Deus sabe como,
do templo. Tomaram elles continuar a ter força para condem-
nar ao supplicio da cruz.
Teu leal amigo
ClNCINRATO.
CARTA V

Meu amigo.
ov

No que fica apontado até aqui ha sufficienle


material para se basear um juizo ácêrca do Gaúcho.
Permilte-me, porém, não concluir sem te chamar
a attenção para uns pedacitos não menos precio-
sos, cuja apreciação mais detida deixo inteira-
mente á conta do bom senso, que te adorna.
Em seu capitulo inf itulado O Páreo, diz o Gaúcho:
« Para ter geito de montar, afrouxou o paraguayo o laço
que prendia os quartos do animal (a morena) ao tronco; e
ajustando as rédeas, pôz o pé na soleira do estribo.
« Immediatamente aos olhos dos campeiros attonitos pas-
sou uma cousa subitânea, confusa, estrepitosa ; uma espécie
de turbilhão, pura o qual só ha um termo próprio; foi uma
erupção. »
E adiante :
« Retrahiu-se o flaneo sobre os quadris agachados, em
54 L1TTERATURA BRAZILEIRA.
quanto a taboa do pescoço arqueou, dobrando a cabeça ao
peito entumecido. De súbito, esse corpo que se fizera bomba,
estourou. »

De que espécie seria essa erupção estrepitosa que


mais abaixo estourou? Aqui ha malícia.
No capitulo seguinte :
« Suspensa na ponta dos rijos cascos,, longos e delgados,
de cabeça levantada, cruzando a ponta das orelhas finas e ca-
nutadas, com o pello erriçado (ados, ada, adas, ado !) e a
cauda opulenta a espasmar-se pelos rins, parecia, etc. »

Os cavallos no Gaúcho teem um singular carac-


terístico : arripiam-se como fazem os gatos e os
cães. Nunca ouvi dizer, meu amigo, que cavallo
erriçasse o pello ao sentir uma commoção, por
mais intensa que fosse, em condição, nenhuma.
Mas com que se parecia a égua assim erriçadal
Ao lêres esse pomposo lanço, calculado para
dar idéa do estado de excitação da égua, e quando
o autor, próximo de terminar, diz que o animal
parecia.... não suppozeste, meu amigo, que a
morena ia ser comparada com um animal legen-
dário, de grandiosos Ímpetos, animal imponente
pela força, pela fereza, pelo animo descommunal?
Illusão, que rápido se desvanece ! A morena pare-
cia.. . o animal prestes a desferir a corrida veloz. Um
animal era morena, e estava prestes a galopar. Para
que preveniu Senio o espirito do leitor, fazendo-o
depois cahir das nuvens?
SEMPR0M0 A CINCINNATO. 55
No capitulo subsequente :
« Havia entre o Gaúcho e os cavallos verdadeiras relações
sociaes. Alguns faziam parte de sua família; outros eram seus
amigos; aos mais tratava-os como camaradas e simples co-
nhecidos, D
Canho tinha dedo para as hieràrchias.
« Com os irmãos e amigos vivia em perfeita intimidade ;
consentia que lhe roçassem a cabeça pelo hombro, ou lam-
bessem-lhe a face. »

Já ouvistes dizer algures que algum cavallo lam-


besse a face a alguém, assim á moda da vacca que
lambe ofilho?
« Muitas vezes comiam em sua mão ; andavam constante-
mente soltos; não havia cabresto, nem soga para elles; eram
corseis livres. »

Grande novidade. Um cavallo comer na mão!


Quanto a andarem constantemente soltos, não an-
dam elles de outro modo na campanha, a não ser
algum parelheiro de grande estimação.
« Aos camaradas não consentia o Gaúcho aquellas familia-
ridades; ao contrario os tratava com certa reserva. Sauda-
vam-se pela manhã ao despontar do dia; e á noite, na occasião
de recolher. »

Assim devia fazer quem era tão zeloso obser-


vador das distancias sociaes.
« Commummente se encontravam na hora da ração: comiam
juntos, os brutos no embornal, o homem na palangana. »

Tem lá palangana, um Gaúcho, que come o


56 LITÍERATURA BRAZILE1RA.

churrasco com o punhado de farinha, e muitas


vezes a carne á escoteira ?
« Na opinião de Manoel, o cavallo e o homem contrahiam
obrigação reciproca ; o cavallo de servir e transportar o ho-
mem ; o homem de nutrir e defender o cavallo. »

Isto não é só na opinião do Canho; todo o se-


nhor conhece o dever, que lem, por próprio inte-
resse, de nutrir e defender seu animal.
« Não passava elle por um logar onde visse um cavallo en-
fermo ou estropeado que se não apeasse, fosse embora com
pressa, para o soecorrer. Sangrava-o, se era preciso: caule-
risava-lhe as feridas, etc. »

Teriam muito que esperar os cavallos que um


gaúcho siquer do Rio Grande, á excepção do Canho,
tivesse para elles taes attenções.
« Tinha comprado alguns cavallos que os donos arreben-
tavam de mau trato, unicamente para lhes dar repouso e
assegurar-lhes velhice socegada.»

As justiças do município deviam dar um cura-


dor a Canho, como pródigo, nos termos da Orde-
nação.
« Não via o Canho castigarem barbaramente um animal,
sem tomar o partido d'este. »

Esta humanidade não constitue uma especiali-


dade do heroe de Senio. Geralmente fica-se
indignado, ao testemunhar especfaculos brutaes.
E os jornalistas uma hora por outra estão ahi a
SEMPROMO A CINCINNATO. 57
clamar contra os carroceiros que castigam immo-
deradamente seus animaes ; e as municipalidades
impõem multas em suas posturas a quem assim
os castiga.
« Por isso affirmavam que era elle o gaúcho mais popular
entre os quadrúpedes habitantes das verdes coxilhas. »

Cabem aqui os versos :


« Que cavallos tão bregeiros,
E que Canhos tão sendeiros ! »

Continua Senio :
« Em qualquer ponto onde estivesse, precisando de um ca-
vallo não carecia de o apanhar a laço; bastava-lhe um signal
e logo apparecia o magote alegre a festejal-o, offerecendo-se
para seu serviço. 0 trabalho era escolher e arrèdar os outros,
pois todos queriam prestar-se, como seus amigos que eram,
uns por gratidão, outros por sympalhia. »

De similhante popularidade só o Canho se po-


deria lisongear na campanhacomeffeito ! E o Ira-
balho na escolha havia de ser cousa de dar o váo
pela barba. E se todos os magotes eram assim
compostos de amigos por sympalhia e por grati-
dão, onde estavam os simples conhecidos, aquelles
a quem apenas saudava pela manhã e á noite, e
que tratava com certa reserva ? Ah ! Senio, qu« te
dementia ccepit? !
« Quando partia, o acompanhavam algumas quadras, cur-
veteando a seu lado, como demonstração de amizade. Afinal
paravam para seguil-o com a vista, até que sumia-se por de-
traz das coxilhas. »
58 LITTERATURA BRAZ1LEIRA.
« Taes eram os contos, que referia a gente da campanha.
(Bellos contos, não ha duvida.) Verdadeiros ou não, todos n'elles
acreditavam (que gente crédula!); e até aponlavam-se pes-
soas que tinham sido testemunhas dos factos. » Senio estará
contemplado n'este numero ? Duvido.
Apezarde ter pressa de concluir esle juizo, con-
sente que eu faça ainda por ultimo umas ligeiras
observações, em ordem a firmar mais a cri-
tica.
D'onde vinha o ódio do Manoel Canho á espécie
humana e até á sua própria família, ou mais par-
ticularmente á sua própria mãe? De haver esfa
casado segunda vez. Parece incrível que quem
tinha tão bom coração, tivesse tão maus bofes.
Digam-me o que me disserem : Canho é uma
triste concepção de Senio. Por mais que este se
haja estendido e esbaforido por justificar o repug-
nante aleijão, tanto peior; cada vez o monstro
mais se accentúa e caracterisa.
A historia das segundas nupeias, senão a ori-
gem do tremendo ódio, conta-se em poucas pa-
lavras :
Um negociante do Alegrete, Loureiro, perseguido
por Castelhanos, refugiou-se em casa de João
Canho, pae do Manoel. Os Castelhanos não res-
peitaram a casa, e depois de defeza renhida, epor
uma traição, suecede ser assassinado o João,
em quanto o Loureiro escapava em fuga, a unhas
de cavallo.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 59

A noticia da morte de João chegou a Loureiro,


que se penalizou em extremo com aquella desgraça
de que elle fora causa. Lembrou-se da viuva, que
ficara ao desamparo com dous filhos menores ; e
sentiu-se obrigado a amparar a família orphã.
Estás vendo, meu amigo, que o Loureiro não era
um mau próximo, cujo consórcio com Francisca,
a viuva, se devesse reputar uma desgraça ou um
aviltamento para a família. Portanto não procede
o ressentimento do Manoel, a não haver outra
razão.
Loureiro diz a Francisca estas textuaes expres-
sões :
— Fui eu, sem querer, a causa da desgraça que a se-
nhora soffreu, perdendo seu marido. Si pudesse restituil-o,
sem duvida que o faria. Não podendo, faço quanto está em
mim, offereço-lhe, para 6 substituir, outro que ha de esti-
mal-a tanto ou mais.

A uma amiga de Francisca, que affirmára ao


Manoel ser verdade o casamento, atirára-se elle
com furor, rasgando-lhe a roupa e arranhando-
lhe o rosto com as unhas. 0 Canhinho era
onça!
Um dia, em que Loureiro passeava pelo campo,
o Manoel se lhe apresenta trazendo empunhada a
faca do Canho (pae). Pergunta^lhe o noivo, re-
cuando que o travesso menino viesse a ser victima
da arma :
60 LITTERATURA BRAZILE1RA.

— Para que é esta faca, Manoel?


— Para te matar.
— A mim ? Que mal lhe fiz eu, meu filho ?
— Não sou teu filho! gritou a creança, que-
rendo ferir.
Sabendo Francisca do occorrido, quiz castigar
o filho, e o faria sem a intervenção de Loureiro,
que em face de taes circumslancias teve escrúpulos
e receios de contrahir o casamento. Vai sempre
notando, meu amigo, que não tendo o Loureiro
um mau caracter, mas revelando até ser homem
de senso, generoso, compadecido, sensível e hu-
mano, nada justifica o ódio do menino, e muito
menos o de Senio, para dar-lhe tão desastroso fim,
qual o de morrer de uma qüéda do murzeilo, ca-
vallo que fora do Canho velho. O murzeilo, senhor
das intenções, do ódio do menino, jurou também
auxilial-o em sua gratuita vingança ; e com effeito
dá com o negociante no chão, e corre para Manoel
saltando e gineteando de contente, por ter desem-
penhado o seu papel com tal successo.
Vejamos agora, não já o menino, porém o ho-
mem a tomar a vingança do assassino do pae, c
revelando um grau de perversidade admirável e
rara. É galante o modo como Senio pretende justi-
ficar o Manoel. Reproduzo as palavras :
. * 0 gaúcho não tinha ódio ao Barreda (o assassino do velho).
A vingança da morte do pae não era para sua alma a salisfa-
SEMPROMO A CINCINNATO. 61
cão de um profundo rancor; mas o simples cumprimento de
um dever. Elle obedecia a uma intimação que recebera do céo
(o céo mandando malar gente!); á ordem d'aquelle que sem-
pre tinha presente á sua memória. E obedecia friamente,
com a calma e impassibilidade do juiz, que pune em obser-
vância da lei. É boa ! »

Depois da renhida luta entre o Manoel e o Bar-


reda, correu este a refugiar-se em casa, onde sua
mulher chorava; mas não o conseguiu porque
seu conlendor atirou-lhe as bolas, e o inimigo
. cahiu. 0 que segue são textuaes palavras de
Senio:
« — Pede perdão a Deus, que chegou tua hora.
« A mulher do Barreda prostrava-se n'esse momento aos
pés de Manoel, implorando compaixão para o marido. Riu-se
o gaúcho com dureza e escarneo :
« — Virá outro marido para a consolar.
« Arredando a de'sgraçada mulher, chegou o ferro da lança
aos olhos do Castelhano.
« Conheces?... É a lança com que ha doze annos ferisle
meu pae á traição. Eu jurei que havia de craval-a em teu
coração, mas depois de vencer-te em combate leal.
« Com uma calma feroz, espetou o ferro da lança no corpo
do assassino de seu pae, atravessando-lhe o coração, como
faria com uma folha secca.
« Murzeilo, que se conservara immovel ao lado durante
esta scena, avançou a um signal do senhor, pisou com a pata
a face conírahida do moribundo, que ainda estremeceu ante
essa derradeira affronta.
« Em quanto a victima se debateu nas vascas da agonia,
Manoel a contemplou friamente. Quando se apagou o ultimo
vislumbre de vida, se afastou sem lançar-um olhar de com-
paixão á mulher desmaiada. »
4
62 L1TTERATURA BRAZILEI11A.

Que tinha a pobre mulher com o crime de seu


marido, para não inspirar compaixão a um cora-
ção tão sensível como o do Manoel? si Canho, de-
pois de haver perpetrado a sua vingança, se vol-
tasse para a viuva, compadecido d'ella, daria,
sim, prova de coherencia com o tal simples cum-,
primento do seu dever; e tanto mais quanto já
uma vez, tendo elle vindo para matar o Barreda e
achando-o doente, medicou-o e tratou-o, posto que
para tomar uma desforra mais cynica e solemne.
Como tudo isto é edificante ; não é, meu amigo.
Mas ainda não é tudo. De repente ouve o Manoel
o rincho da morena seguido da detonação de um
tiro. O tiro fora disparado contra Manoel por um
negro da estância , onde o Barreda era capataz. A
morena, que estava contemplando de longe a
scena do combate, presentira que apontaria, feita
pelo pião, ameaçava a existência de seu amigo, e
disparara como uma bala, e, passando por junlo
do negro, desfechara-lhe nas costas um couce que
o atirara sobre a macega! Ouvindo o nitrido, Ma-
noel adivinhou ás primeiras notas o sossobro do
temor e a angustia, pela tremula vibração da voz,
sempre limpida e argentina.
Em face detaes cousas, pergunto-te, sem a me-
nor intenção hostil para com o autor, que posso
dizer estimo, admiro e respeito : será um romance
de costumes o Gaúcho? líomance brazileiro — diz
SEMPRONIO A CINCINNATO. (i",

o frontispioio da obra; logo não ha duvida de que o


autor o deu como tal.
Tudo quanto conheço, por leitura de viagens e
por informações pessoaes, concernente a esta face
ainda tão pouco explorada da America Austral,
importa a negação mais completa do que nos dá
Senio. Peza-me dizel-o, mas força-me ao sacrifício
a consciência.
E ainda bem que temos em opposição au Gaúcho
autoridades que nos evitarão no estrangeiro o ri-
dículo queattrahe esta obra sobre os costumes da
campanha do Rio Grande do Sul, tão interessantes
e romanescos, mas não tão arredados da decência
e da razão publica.
Ha ahi um drama de autor portuguez, que não
deixa de encerrar muita exactidão sob este aspec-
to. 0 drama inlitula-se — 0 Monarcha das Co-
xilhas — e é original de César de Lacerda, que
esteve no Rio Grande e estudou os costumes.
Quanto a mim, tem um grande defeito o trabalho
de Lacerda : é personalisar o typo do gaúcho em
um portuguez, o que só explica o excessivo espirito
de nacionalidade do autor. Além deste defeito de
essência, contém outros que entendem meramente
com a fôrma litteraria; em todo o caso porém o
trabalho é plausível.
Como se explica pois, a antilhese?
0 autor nacional afasta-se, em quanto os
04 LITTERATURA BI1AZILEIRA.

estrangeiros se aproximam da verdade das


cousas.
Não te parece isso um infortúnio para as nossas
lettras, para a nossa terra tão fértil em talentos,
entre os quaes o resoluto talento de Senio?
Como é triste fazer em publico taes confissões!
Mas urge fazel-as para que lhe succeda a emenda
com o que temos de infalliveimente ganhar, se-
gundo o espero.
Confio muito na nossa pleiade de novéis litte-
ratos, e devo dizer-fe com franqueza, confio muito
no próprio bom Senso reparador de Senio.

SEMPROMO.
CARTA II

CINCINNATO A SEMPRONIO

Continuo a metter-me a taralhão: não venho, amigo, caçar


nas tuas terras ; está bem entregue o Gaúcho ao teu braço se-
cular, mas faz-me gosto servir-te de camarada; tu és Ma-
rechal do Exercito; eu serei Tambor; mas o certo é que
ambos pertencemos á mesma milícia. Continuemos a cam-
panha.
Vejo que já pareces ir aproando para terra, por conside-
rares sufficiente o que tens dito. Seja assim; mas como me
deste o gáudio de mimosear-me com um exemplar do livro
monumental, quero agradecer-t'o, provando que não deitaste
água em cesto roto, e que, tendo eu convidado a Senio para
preceplor, vou proscrever todas as noções que tenho do idio-
ma, substituindo-o por uma lingua incógnita, nova, moderna,
triumphante, conquistadora e fresca, a que darei o nome de
Senial. Passo também a impregnar-me nat> phrases, imagens,
descripçces e locuções, não menos Seniaes, e espero poder vir
a arremedar o gênero pantafaçudo, porque onde me faltar a
idéa, buscarei uma phraseologia onomatopaicamehle campa-
nuda, phraseologia pâàâmpa, com que porei os meus admi-
4.
C6 LITTERATURA BRAZILEIRA.

radores boqui-abertos e zonzos. Seguirei a moda coimbrã ;


seguirei a moda,- já proclamada pelas Cacholelas :

Hoje é moda estylo abstruso;


enrodilhar palavrões.
iNunca perde por confuso
quem lizer allocuções.
E' moda que tem pegado,
porque vem de autor graúdo,
que devera dar ao estudo
o tempo mal empregado
em tecer, por modo novo,
os discursos nebulosos
de que se ri todo o povo.

Como não hei de escrever 10 volumões para analysar 2 vo-


voluminhos, vou só apontado o dizimo das bellezas que esfer-
vilham por toda esta biblia do bom gosto.

Nas impagáveis notas á Iracema, com q u e talvez me di-


virta u m dia, diz o Sr. Alencar :
— « Aquelles q u e c e n s u r a m m i n h a m a n e i r a de escrever,
saberão (assim o t e n h a m entendido, e o façam executar) que
não provém ella, mercê de Deus (esta baforada, esta mercê
de Deus vale quanto pesa) da ignorância dos clássicos, mas
de uma convicção profunda (pobres clássicos, mais vos valera
nunca terdes nascido) a respeito da decadência d'aquella es-
cola. » « O velho estylo clássico destoa no meio xTestas flo-
restas seculares, d'estas catadupas formidáveis, d'estes pro-
dígios de u m a natureza virgem, que não podem sentir nem
descrever as m u s a s gentis do Tejo ou do Mondego. »
Sim Sr. ; é assim m e s m o . Ora, comparemos estes moder-
nismos Seniaes com as intoleráveis antigualhas dos clássicos,
e abramos u m d'estes ao acaso, e m paginas o n d e t a m b é m se
descrevam raparigas catilas, e o effeito que ellas produzem
em corações masculinos. Caiu-me, por exemplo, debaixo das
mãos, a Eufrosina, como poderia cair q u a l q u e r outro j a r r e t a .
Lê :
CINCILNNATO A SEMPRONIO. 67

— d Passando agora pela portada minha rapariga, achei-a


falando com uma nossa vizinha ao pé da escada de dentro;
eu como n'estes casos súbitos mostro minha sufficiencia, e
ando sempre provido de cautelas para os taes recontros, por-
que occasião de fazer bem nunca se ha de perder, levo do
tudesco para traz, comocortezão soldadesco, é chegando-me
ao limiar da porta, perguntei-lhe se era ahi o senhor seu pae?
A rapariga estava bonita como o ouro de sua vasquinha ama-
rella quartapisada, em mangas de camisa, seus cabellos ata -
dos com uma fita encarnada, tão de verão que vos ride vós
de mais sereia pintada, e por mais ajuda, em me vendo, ficou
fraca, e dizendo-nie» é fó.ra da cidade, virá amanhã por
noite — » ao despedir fez-me uma misurá com ura recacho,
que me aleijou; e assentai que é um camafeo de pequena em
fora : e eu com isto venho espirrando, lançando mais faiscas
de amor que estrellas com suão.
...E estando assim, erguia, de quando em quando, uns
olhos verdes claros, humidos, orvalhados de alegria soce-
gada, tão grandes e graciosos como todo primor das Charites
(por maneira que com razão se pôde chamar a 4 a Graça); e
pondo-os em mim, a tempos furtados, com um olhar que-
brado surrateiro e brando, atravessam-me... Já sabeis que
sou perdido por olhos quebrados, que fazem furtos no ar...
Quando contemplo comigo que estive á fala, rosto por rosto,
com a senhora Eufrosina, e que ouvi aquellas doces palavras
de delicada pronuncia, aquellas razões brandas e discretas,
aquelles risos, aquelles temores honestos, os favores escassos
da vontade liberal... e n'isto juntamente os olhos que farão
clara a noite escura, os cabellos entrançados que representa-
vam todo o thesouro do mundo, aquelle rosto, aquella pre-
sença, aquelles ais frautados quando se maguava... por certo
eu me espanto como não abafei em tanta gloria, e perdidos
os espíritos... E d'outra parte, quando cuido que tive coração
para me apartar d'ella, fico frio, e nunca homem commetteu
tal ousadia. »
Levo mão d'estas transcripções. Que homem de gosto ha
08 UTTERATÜRA BRAZILEII1A.
ahi, que a dizer tão singelo, elegante, vernáculo, altractivo,
prefira os inqualificáveis estylos de um Senio, com os seus
Canhos escanhoados, e as suas Catitas acatingadas!
Esta guerra aos clássicos, para certos escrevedores, é pre-
cedida do manifesto da raposa, inimiga da uva. As obras dos
mestres, os eternos modelos tornam-se objecto do escarneo
dos innovadores, capazes de deslhronar os Demóslhenes e
Homeros. Tivemos a escola da antigüidade; depois, certo
numero de regras tradicionaes; mais proximamente, a'eman-
cipação de todas as normas, proclamando-se typo único a na-
tureza ; agora, surgem os ministros do bello, sacerdotes do
ideal,demolidores do sensocommum, despresadores de quanto
merece veneração, e que não produzem senão monstros lit-
terarios, sem alcance ou de alcance detestável, sem fôrma ou
com tauxia das mais incongruentes fôrmas.
Uma sub-divisão d'esta casta de autores comprehende a
dos caçadores de effeitos. Conheci eu em Ouro Preto um ratão,
que desejou industriar-se na caça; levou 6 mezes aprendendo
a carregar a espingarda, e um anno diligenciando passari-
nhar ; afflígia-se porém com o estampido do tiro, de modo
que, quando puxava o gatilho, virava a cara, a bala seguia
para o norte, o passarinho deitava a rir para o sul, e o meu
caçador, encarando então a sua façanha, exclamava invaria-
velmente : « Brava! fugiu. » Os laes caçadores litterarios
imitam toda esta operação, só coma differença de que, quem
exclama o « Brava! fugiu » é o publico.
O processo, n'este caso, é singelo. Proclama-se o poder pes-
soal da excentricidade, embora ridícula; da originalidade,
embora extravagante; da novidade, embora absurda; e
quando se tem assim embrulhado desatinos e puerilidades
em esfarrapado manto de vascosa linguagem vasconça, ima-
gina-se subir em carro ebúrneo ás glorias capitolinas. Arago,
na sua Astronomia popular, fala de um tal Dr. Elliot, sapien-
tissimo, e ainda mais excêntrico, e que havia demonstrado,
entre outras novidades (e com a mesma evidencia com que o
estudante de um observatório astronômico demonstrou haver
CINCINNATO A SEMPROMO. 69
ratos na lua), que o sol era habitado. Adergou que um dia
em que o doutor estava com os seus azeites, matou, n'um ac-
cesso de cólera, missBoydell. Não teve o advogado, Simmons,
mais que expor ao tribunal a theoria do sapientissimo, para
lhe obter .a absolvição, por unanimidade. Que a theoria do
doutor fosse nova, concordo, mas que egualmente nova fosse
a mania do homem, isso é que não, pois remonta lá até os
tempos do incêndio do templo deDelphos.
Participo-te que. o leu Carlos está com escarlatina; as fe-
bres andam assanhadas.
Teu leal amigo

ClNCIKNATC.
CARTA VI

Meu amigo
D v

Tencionava concluir n'esta carta as minhas con-


siderações sobre a obra de Senio, mas, chegando-
me ás mãos o segundo volume, não quero deixar
de o chamar á fala, ou antes de o receber com as
honras do estylo.
O autor vem sangrando-se na veia da saúde
com estas palavras da sua nota final:
« Não íallará quem increpe o livro de inverosimil, na parte
relativa ao cavallo. Duvidar hoje, depois de tantos factos ede
lão respeitáveis testemunhos, dos resultados admiráveis do
inslincto dos animaes, é uma excentricidade, que não vale a
pena de refutar. Demais, n'este livro, a maior parte dos actos
intelligentes praticados pelo cavallo são antes attribuidos pelo
Gaúcho ao animal, do que altcstados pelo cscriplor. »

O que não vale a pena de refutar é a filigrana de


72 UTTERATURA BliAZILEIRA.

se eximir da responsabilidade d'esses actos o au-


tor, a titulo de serem elles attribuidos pelo Gaúcho
aos animaes, e não attestados pelo escriptor.
Longe de importar isto uma justificação, aggrava
a situação do escriptor, que não encontra em si
mesmo razões para confirmar os devaneios de sua
phantasia.
Quanto a nós, é cousa que a boa critica menos
tem que indagar, si as asserções são attestadas
pelo autor da obra, si são deixadas á mera conta
dos personagens.
N'uma obra em que o escriptor se limite a fazer
as descripções meramente essenciaes de tempo e
logar, deixando esclarecer-se o mais á conta do
dialogo, nem por isso terá elle menos responsabi-
lidade moral e litteraria.
Pelos diálogos, pelas idéas n'elles emittidas e
travadas, é que principalmente se ha de conhecer
o caracter década figura. Não será do que o autor
affirma ex auctoritate sua que se deduzirá a excel-
lencia ou inferioridade da concepção.
Si um autor preconisar e exaltar muito os me-
recimentos de um personagem, que no desinvol-
vimento da acção não corresponder pelas suas
obras ás premissas, não prevalecerá a recommen-
dação do auíor, sinão o que se deduzir do papel
desempenhado pelo personagem.
E quando o escriptor se propõe a dar um lypo
SEMPRONIO A CINC1NNATO. 73

nacional e verdadeiro, com maioria de razào não


se pôde de boa fé abstrahir d'essa responsabili-
dade legitima e intuitiva. Se o Senio nos declarara
dar no seu Gaúcho o typo de um contador de pelas
para divertir a gente, calar-nos-hiamos; no caso
contrario, não ; tenha paciência.
Demais, confestamos que a maior parte d'esses
aclos intelligentes seja attribuida pelo gaúcho aos
animaes ; não, a maior parte é attestada pelo au-
tor; abre, meu amigo, qualquer dos dous volumes,
e vêl-o-hás.
Mas disse-nos Senio que NÃO VALE A PENA refutar
a excentricidade de quem duvida dos admiráveis
resultados do instinctodos animaes; certamente, e
muilo menos nós o duvidaremos. Urge, porém es-
tabelecer a devida distincção; uma cousa é o re-
sultado do puro instincto animal, e outra a funcção
reflectida, judiciosa , da faculdade humana de
conhecer, ou do entendimento.
Todos os actos que increpamos ao primeiro vo-
lume do seu Gaúcho não só importam operações
da razão, mas de uma razão esclarecida e sã —
conquista de civilisação adiantada, e também do
sentimento mais humano, mais justo, mais apu-
rado, sempre presidido pela consciência da mais
fina moral, antithese do Canho.
Não me demorarei em fatigar a tua paciência,
repetindo os trechos que ficam desinvolvidamente
5
74 LITTERATÜRA BRAZILEIRA.

apreciados e julgados. No entanto, como comple-


mento ás notas já adduzidas, citarei ainda os se-
guintes passos do ultimo volume do Gaúcho, que
agora mesmo acabo de ler :
I o o reconhecimento do Lucas pelo Murzeilo,
pag. 37 ; 2o a Baia recear que o fogo desse signal
ao inimigo, pag. 116 : 3o ficar escondido na res-
tinga cada animal da tropilha, á espera, que o
Canho fizesse o signal de chamal-os, pag. 106 e
141 ; 4o sentir o Jucá ter sido reconhecido; não
ter por isso necessidade mais de emmudecer, e
soltar o nitrido, pag. 210 ; Jucá e Morena repara-
rem no movimento do Canho, farejarem o chão, e
ao sahir da villa já conhecerem a pista do cavallo
de D. Romero tão bem como o gaúcho, pag. 226.
Já o Gaúcho conhecer o rasto de um animal que
elle vira poucas vezes tem o que se lhe diga.
Haverá quem creia que todas estas operações de
uma razão activa e previdente, desinvolvida e
perspicaz, sejam actos de instincto animal? Senio
o dirá de boa fé? Quem melhor se quizer conven-
cer do prodígio, leia a obra.
Declaro que muito poderia produzir ainda para
prova das impugnações, o que deixo de fazer por
já me achar em extremo fatigado e até enojado da
matéria, por si mesma tão pouco agradável para
quem quer que fôr deter por mais tempo. Seja-me
porém, licifo aventurar uma apreciação synthe-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 75

tica da obra, encarando-a ao mesmo lempo sob


oulro aspecto.
Diz Senio em sua alludida nota ultima que « o
o
I volume é o desenho de um grande scenario, o
esboço de um caracter vigoroso, cuja exuberância
ainda não foi revolta e propellida pelo esto da
paixão ; que no 2o. volume começa o drama.
Não é assim : a obra divide-se em quatro livros,
intitulados — I o 0 Pião; 2o Jucá; 3o Morena; 4o
Huppa! Os três primeiros, o autor gastou-os em
preparar a acção, que verdadeiramente não apre-
senta interesse algum sinão no ultimo livro. Antes
d'esle não ha movimento que seriamente preoc-
cupe o leitor, posto que algumas circumstancias
destacadas não deixem de o impressionar.
Por exemplo : um sujeito que joga a amante
no pacáu, cousa não só pouco verosimil, como de
mau gosto, sob o aspecto esfethico! a collocação
de uma cruz sobre a sepultura de um cavallo,
como se fora a de um christão ! uma velha que está
ainda de camisa á beira do rio, com medo de en-
trar no banho 1 a Catila a pôr em seu regaço a
cabeça da Morena e cobril-a de carinhos e lagri-
mas ! Outra vez a Catila a arrostar a voracidade
dos cães chimarrões por amor da égua, e que seria
victima dos molossos, um dos quaes já começara a
despedaçar-lhe a saia, si não passa providencial-
mente uma vacca ferida, que os attrahiu para
76 LITTERATURA BRAZILEIRA.

longe 1 finalmente o grande amor do Canho a Ca-


tita, tendo só e absolutamente só por origem aaf-
feição da moça á Morena. Si a moça não trata da
égua, o Canho a não amara nunca ! Não podia ter
fim diverso do que teve um amor, que nascera sob
taes auspícios.
Has de permittir-me, meu amigo, que trans-
creva aqui as palavras sentidas de Canho, que as
proferi(o de joelhos ao lado dp corpo da Morena fe-
rida. Admira esle rasgo do sentimento épico e sen-
sato do gaúcho, que não se pôde ler sem se senti-
rem as lagrimas àcudir aos olhos :
« — Assim devia ser ! — balbuciaram seus lábios frouxos.
- Vivemos juntos, morreremos juntos, no mesmo dia.
Murzeilo, nosso velho amigo, foi o primeiro ; deixou-nos esta
manhã. Nós ficámos para vingal-o; elle deve estar contente.
(Porque não? Si estava no céo... Vid. a pag. 172.) Jucá,a
esta hora talvez já esteja com o padrinho (quem era esse he-
roe ?); já terá conhecido o pae e o mano. A bala sem duvida
traspassou-lhe o coração, porque não soltou um gemido, nem
chamou por ti nem por mim ; foi mais íeliz; não solfreu
como tu, Morena! »

Conheces typo de idiota mais perfeito do que


este Canho ? !
Continua a lamentação do bravo e másculo
gaúcho :
« — Foste tu quem te mataste, amiga, e para salvar-me 1
A bala em vez de atrazar a carreira te deu azas; sentiste que
me perseguiam,e voaste para me pôr fora do alcance do ini-
migo. E nem um gemido, nem um signal por onde conhe-
SlíMPRONIO A CI.NCIN.NATO. 77
cesse que estavas ferida ! Ah! se eu adivinhasse ! Para que
fugirmos ? Melhor era morrermos ambos, combatendo, e vin-
gando o nosso Jucá! Eu só, não terei forças nem coragem !
Que vale um homem meio morto? eu já morri no Murzeilo,
já morri no Jucá : quando acabar de morrer em ti, que fico
sendo ? Uma cabeça sem corpo (nego ; um corpo sem cabeça
como sempre foi); uma mão sem braço! Então melhor é dor-
mirmos juntos no seio da terra. »

Estás alagado em pranto, meu amigo ?


O segundo volume veio esmagar os mais res-
plandecentes castellos; dissipar as mais brilhantes
esperanças dos folhetinistas benevolos, conce-
bidas por sympathia sem duvida ao autor, com a
publicação do primeiro.
Um d'esses escriptoresdisse :
« 0 episódio, que constilue o romance de Manoel e Calila,
acha-se apenas esboçado; provavelmente no segundo volume,
que ainda não appareceu, ficará accentuado aquillo que já se
entrevê.
« Com que mimo e delicadeza é apresentada a travessa me-
nina, que consegue domar a indomável natureza do filho dos
pampas!

Outro disse :
« O perfil de Catita, o lyrio do matto, apparece no meio
d'aquellas contorsões, combates, perigos e lagrimas, como
o vulto de uma estrella límpida resplandecendo na tempes-
tade. »

Engano de ambos. Não foi a travessa menina


quem domou a indomável natureza do gaúcho; o
autor negou a este desgraçado Canho a miseri-
78 LITTERATCRA BRAZILEIRA.

cordia de um sentimento sublime, despertado


exclusivamente pela mulher; o gaúcho amou Ca-
tila, porque Catita mostrou compadecer-se da
égua.
Também Catita não é o lyrio do matto, a
estrella límpida resplandecendo na tempestade.
É uma mulher vaidosa, que acceita a corte de Ro-
mero, que com elle conversa á janella, e por
quem se perde afinal.
É ainda astuta e velhaqueta, que pretende illu-
dir o Manoel com os versos de sentido dúbio ou
duplo, que se applicam também ao castelhano :
« Ai, não fuja, não, meu bem,
ii Que me mata esse desdém. »

Conclusão : não havia sinceridade no amor de


Catita; não havia espontaneidade nem exclusi-
vismonoamor de Canho. Miserrimas concepções!
Cada qual mais triste e deplorável !
Disseram mais os escriptores referidos :
« Tratando de Bento Gonçalves, que, adivinha-se, terá de
representar um grande papel no seu romance, José de Alencar
dá-lhe um caracter épico e esculplural, cobrindo de venera-
ção o grande homem do seu paiz.
« 0 perfil do coronel Bento Gonçalves, que vai formar a
base primordial do segundo volume do Gaúcho, está delineado
com mão de mestre. »

Engano de ambos. Nem Benlo Gonçalves repre-


senta um grande papel no romance, nem Benlo
SEMPRONIO A CINCIiSNATO. 79

Gonçalves vai formara base primordial do segundo


volume do Gaúcho.
O autor passa por cima do nome e das tradi-
ções, e, posso até dizer, da historia do grande
brazileiro, como gato por brazas. Sempre o defeito
caracleristico ; despreza a fonte perenne, para ir
pedir algumas gotas ao arroio estanque; deixa-se
a historia e a natureza, esoccorre-se ao apoucado
capricho e á imaginação exhausta.

« Quanto á parte histórica, o autor foi mais sóbrio do que


desejava, e quiçá do que esperava o leitor; limito-me a atra-
vessar de relance o prólogo da revolução rio-grandense. » Foi
Senio que acabou de falar.

Todos ficam boqui-abertos, menos o que es-


creve estas linhas. Atravessar de relance o prólogo!
Nem, ao menos, teve em consideração as previ-
sões e as espectativas do publico para dar algum
desinvolvimento á parte histórica. Tudo quanto
põe ligeiramente em scena com relação á revolu-
ção é incompleto, minguado e deprimido.

« A isso o obrigaram seus escrúpulos; trinta e cinco annosC


menos de meio século, não bastam para archivar factos e per-
sonagens tão ligados ainda ao presente pelos vinculos das
paixões e da família » eis a razão dada por Senio.

Uma cousa te digo, meu amigo, vem a ser : que


poucos se julgarão com pulso para pôr a mão
nVssa ceara, d'onde ha épicos fructos a colher.
80 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Ninguém dirá que o Gaúcho não seja uma es-
piga.
Mas devo declarar-te com franqueza : os fruc-
tos pecos e fanados só servem para mais sensível
nos tornarem o damno da abundantíssima e excel-
lente messe, que se perde nos campos nalaes, á
mingua de um segador idôneo.
O tempo no-lo trará de certo. Não desanimemos.

SEMPROMO.
CARTA VII

Meu amigo
ov

Acabo de ler o Gaúcho e pergunto á memória ou


ao sentimento, si houve no decurso d'essa histo-
rieta rasgo que me deixasse duradoura impres-
são no espirito ou no coração. Embalde!
Nada, meu amigo 1 Nem um lance de mestre
em 499 paginas ! Por mais que se queira, não se
encontra uma scena completa, que verdadeira-
mente commova e arrebate, ou deixe traços no
animo do leitor que sobrevivam á leitura. Si tudo
não é pallido e frio, e n'alguma cousa ha cores e
calor, esse calor é incongruente, esse colorido é
desvairado.
Senio não escreve para explorar o sentimento.
Preoccupado inteiramente com os enfeites, com
os arrebiques, com as exterioridades de inadmis-
5.
82 L1TTERATURA BRAZILEIRA.
sivel estylo, pouco se importa com pintar ou não
a vida.
No ultimo livro, que é onde apparece certo mo-
vimento dramático, situações ha que offereceriam
ensanchas para um effeito commovedor ; entre-
tanto, passam frias ou com calor medíocre; o
leitor adivinha, comprehende que o lance aspira
a força, mas não o sente; desperdiçam-se d'est'arte
occasiões solemnes, d'onde uma penna proporcio-
nada á altura das circumstancias poderia apro-
veitar mais de um brilhante successo.
Recuemos ao livro 3 o . Sabes que Senio encarece
aos quatro ventos o seu Canho. Forma d'elle idéa
agigantada, que se perde nas alturas do zenith;
reputa-o typo, grandeza cabal — organisação es-
culptural e athlética.
Um folhetinista comparou o Gaúcho ao « Cid
Campeador, que se destaca das paginas do livro, á
similhança dos bustos de mármore nas mãos ar-
tísticas de Pradier. » E a propósito : busto é de
certo o Canho, isto é uma organisação mutilada,
amputada, que de homem só tem o rosto, e longe
está de exprimir a energia varonil em toda a sua
inteireza.
São tantas as cousas a dizer que só um volume
bastaria.
Vejamos como acorda aquelle coração « cujo
despertar devia ser violento, uma explosão; cujo
SEMPRONIO A CINCINNATO, 83

amor nasce no meio dos combates sanguinolentos


« como nos refere o aulor. »
Entre parenthesis : que combates sanguinolen-
tos são esses, no meio dos quaes nos diz Senio ter
nascido o amor de Manoel ? 0 leitor apenas e diffi-
cilmente os poderá presuppôr, não que o autor
os tenha pintado para fazer vivo, natural e gran-
diosamente original o rebentar do affecto. O
gaúcho não era mais que um bombeiro, qualidade
que o impedia de empenhar-se em lutas serias;
era um espia, e como tal o vemos escondendo-se no
matto, fugindo ao ver troços inimigos, conduzindo
cartas a Rosas, etc. Onde os combates sanguino-
lentos, no meio dos quaes brotou a paixão á Ca-
tita ?
Ah ! bem diversa se passou a transição. A
paixão resultou de uma circumstancia accidental
para elle — a de encontrar a Catita abrigando no
regaço uma égua agonisante.
« — Morta ! — disse elle, precipitando-se.
« — Não ! balbuciou Catita.
« Os olhos do gaúcho, encontrando os da rapa-
riga, não se desviaram, como outr'ora. Quem elles
viram não era mais a mulher bonita e seductora,
e sim um coração, que entendia e partilhava sua
dôr; uma alma que n'aquelle momento solemne
entrava na santa communhão de suas affeições. »
(Vid. pag. 129 e seguinte.)
84 LIÍTERATURA BRAZILEIRA.

Eis-ahi como nasceu a paixão do Hercules eu-


nucho, [do preconisado centauro com coração de
pomba-rola.
Depois d'isto elle não tem o primeiro abraço
para Catita, mas para o alazão. « Só então abraçou
o alazão, à quem na véspera julgara morto. »
(pag. 130.)
No meio d'esse doloroso transe, vem o Lucas
chamal-o, e parte, sem dizer á Catita : « Aqui te
ficam as chaves » e lá se foi ouvir, três discursos,
um de Ortis, outro de Verdun, e o ultimo do for-
riel » (pag. 132.)
Apresentou, porém, certa duvida para não se
guir os correligionários, não em attenção á Catita,
mas á morena, que estava enferma.
« — Porque razão não quer você ir comnosco,
Manoel ?
« — Algum dos senhores abandonaria seu ir-
mão e seu amigo, quando elle está a expirar ?
« — Acima de tudo a pátria I
K — Minha pátria é a campanha onde corre meu
cavallo. »
Nada ainda de grande para com a moça, nem
também para com a pátria, como vês.
Por fim como houvesse extrahido a bala da fe-
rida da égua, o gaúcho « apertou ao seio o corpo
tremulo da moça e desappareceu.
Encontrou-a depois montada na égua.
SEMPRONIO A CIKCINNATO. 85

— Manoel! disse Catita.


—"Viva! balbuciou o gaúcho. (Pag. 145.)
Foi então que « Manoel colheu a flor dos seus
lábios mimosos, que soluçaram n'um beijo » Todo
entregue aos seus cavallos e ás suas éguas desde
creança, saberia acaso o Canho que existia no
mundo uma cousa a que se chamava — beijo ?
Soubesse ou não, eis como despertou aquelle
immenso coração. Ainda procuro a explosão e não
acho. Por um olhar, por um amplexo, por um
beijo principiam quasi todas as paixões e até as
mais comezinhas e triviaes. 0 que nos deu, pois,
Senio de excepcional e magestoso no despertar do
amor do Canho?
Entremos agora no õ° e ultimo livro.
Ha duas situações enérgicas n'este livro, mas
imperfeilas : a primeira, quando Manoel volta,
creio que para casar com a Catita, e a encontra
viclima de sua perfídia ; a segunda, quando depois
de haver assassinado o Castelhano, e de o arrojar
ao abysmo, dá com a moça a fazer-lhe mil pro-
testos.
Na primeira, lá andou o autor assim assim;
ahi talvez interesse ao leitor, posto que só empre-
gando a linguagem do silencio. Ha muito quem
seja tido por eloqüente e até sábio, por guardar
silencio.
Na segunda, falta o autor á lógica, deixando
86 LITTERATURA BRAZILEIRA.

o gaúcho tolerar a mulher lançar-se á garupa da


morena e com ella desapparecer na corrida deses-
perada pelo deserto a dentro.
Em situação nenhuma o Canho caiu tanto, como
n'esta, da qual podia ter tirado o autor o melhor
partido, que ella a isto se prestava.
N'aquelle auge, um homem de gênio vertiginoso,
de caracter arrebatado, não teria piedade para a
mulher, que o trahira na primeira, na única
excelsa paixão de sua vida. Uma vez « abarcando
na cabeça da moça as longas trancas negras, revol-
tas pelo sopro da tempestade » devia arremessal-a
ao abysmo, onde se achava o Chileno. Pathetica
verosimilhança haveria n'esse assomo de vingança
bravia!
, Senio desdenha, porém, a naturalidade para
favorecer o romance.
Lá vai Catita correndo sob todos os mil azor-
ragues do pampeiro, agarrada ao Canho; e per-
dem-se ambos na immensidade do desconhecido.
Vão viver muito bem, talvez, muito felizes nas
esplendidas obscuridades do deserto.
Pobre Canho!
Ha um typo conseqüente: é o de Felix, que se
suicida quando vê escapar-lhe o gaúcho, de quem
elle morria de ciúmes, por causa da Catita.
E o pampeiro ?
Quando conhecíamos apenas o primeiro volume
SEMPRONIO A CINCINNATO. 87

da obra, censurámos a Senio a descripção min-


guada c caricata, que fizera do furacão do pampa.
Agora que, no segundo, consagra especialmente
um capitulo á pintura do pampeiro, apreciemol-o.
Desenhando a savana ao pino do meio dia em
seu primeiro volume, abstrahe de toda a crealura
animada que habita n'essas solidões, e chega a
dar a estas a denominação de pasmo, de torpor.
Acha mais natuial e verosimil surgirem os peixes
á flor da água no mar para denunciarem ahi a vida,
do que correrem e relincharem os cavallos, pas-
tarem as rezes, apparecerem veados e outros ani-
maes, voarem aves no pampa, com ofimde deduzir
d'ahi uma supposta immobilidade ou paralysia
para a natureza. Tudo por amor de um contraste !
Em quanto assim faz relativamente á savana,
vemol-o cahir no excesso opposto fazendo « arre-
metterem no pampeiro cem touros selvagens (bas-
tava um para dar idéa da braveza dos elementos)
escarvando o chão ; senfir-se o convólvulo de mil
serpentes, que estringem as arvores colosmes e as
estilhaçam silvando (que arvores colossaes essas,
que as serpentes estilhaçam com seu convólvulo!) ;
uivar a matilha a morder o penhasco d'onde ar-
ranca lascas da rocha (do penhasco ou da rocha. ? )
como lanhos da carne palpitante das victimas:
tombarem os tigres de salto sobre a presa com um
rugido espantoso ; finalmente ouvir-se o ronco
88 LITTERATURA BRAZ1LEIRA.

medonho da sucury brandindo nos ares a cauda


enorme e o frêmito das azas do condor, que rue
com horrido estridulo. »
Já Senio tinha dito : » O pampeiro é a maior
cólera da natureza ; o raio, a tromba, o incêndio,
a inundação, todas essas terríveis convulsões dos
elementos não passam de pequenas iras, compara-
das com a sanha ingente do cyclone, etc. »
Depois de assim pomposamente apregoado o
pampeiro como a cólera maior da natureza, ante
a qual são pequenas iras as terríveis convulsões dos
elementos, o que é que vai constituir a magestade
original, a descommunal grandeza do phenomeno
meteorológico? O arremesso do touro, o aperto da
serpente, o uivo do cão, o salto do tigre, o ronco
da sucury, as azas do condor.
Ainda mais : o pampeiro é também a cauda da
sucury brandindo nos ares!
E as gargalhadas do raio ? E a alma do Canho a
crispar-sel E as tempestades fugindo pavidas com
medo do pampeiro, como um bando de capivaras
ouvindo o berro da giboial! !
« Únicos, no meio d'essa horrível subversão,
aquelle homem e aquella mulher não se aperce-
biam dos furores daprocella. » Estavam cadáveres,
não ha que ver. 0 Canho não via siquer os relâm-
pagos cingindo de uma aureola fulmínea o sem-
blante da moça !
SEMPRONIO A CINCINNATO. 80

Não; « dentro de. suas almas lhes tumultuava


outra furiosa tormenta, que as devastava com
sanha mais terrível que a do mio. »
Ainda assim não era motivo para se não aperce-
berem dos furores da porcella. Daria o autor mais
verdade e força ao lance, si fizesse esse homem e
essa mulher tirarem novas energias e novos estí-
mulos da própria medonha luta, lendo porém
d'ella clara consciência.
Nota-se n'essa descripção luxo depalavrosidade,
vigor de phrases retumbantes, cyclones, athletas,
gigantes, cobras, touros, tigres, cães, e até demô-
nios, que*vem do báralhro, porém na verdade
muito pouca cousa do real desabrido embate da
v
matéria.
Depois de se haver admirado a descripção do
furacão por Audubon, não pôde ler-se sinão para
ficar-se contristado, mormente si se é brazileiro,
a descripção do pampeiro por Senio.
Meu amigo: não quero mais alongar-me n'esta
fatigante analyse.
Amanhã dar-te-hei minha ultima palavra sobre
o Gaúcho.
SEMPRONIO.
CARTA VIII

Meu amigo.

Viste que o Gaúcho não pôde pretender as honras


de romance de cosíumes, fim que aliás aspira,
merilo de que faz alardo.
Senio não se parece com John Crevecoeur, aulor
do Agricultor, obra, onde « paizagens, costumes,
linguagem, sentimentos, tudo é essencialmente
americano; onde não se encontram somente os
objectos, mas também as sensações e as idéas de
um paiz recente. »
Não se parece com Washington Irving, que
apezar de « dever seu renome á imitação graciosa
da litteratura ingleza » apezar de « só para a Ingla-
terra dirigir seus pensamentos » como a critica o
atacasse, peneirou nas tribus bravias, explorou e
estudou as floreslas, os campos, os rios, e deu-nos
Ü2 L1TTERATÜRA BRAZILEIRA.

o seu magestoso livro — A planície — (The


Prairie).
Menos se parece com Fenimore Cooper, como já
se disse, o autor do — Ultimo dos Mohicanos —
obra para a qual debalde procurarão um paral-
lelo em toda a bibliotheca de romancistas. »
Menos ainda se parece com Audubon, que um
critico colloca superior a Ruffon, e com o qual
« mais variado que Irving, mais colorido e puro
que Fenimore Cooper se completa o que se pôde
chamar a primeira época litteraria dos Estados-
Unidos. » P. Chasles.
Transportemo-nos.
Senio também se não parece com Walter Scott,
« que soube haurir nus fontes da natureza e da
verdade um gênero desconhecido ; allia á minu-
ciosa exactidão das chronicas a majestosa grandeza
da historia, e o interesse instante do romance,
gênio poderoso e curioso que adivinha o passado,
pincel verdadeiro que traça um retrato fiel por
uma sombra confusa, e nos força a reconhecer
até o que não vimos ; espirito flexível e solido que
se impregna do sèllo particular de cada século e
de cada paiz como cera branda, e conserva essa
marca para a posteridade, como bronze indelé-
vel. » V. Hugo.
Não se parece com Chateaubriand » que deu ás
paixões innocencia que ellas não comporiam ou
SEMPRONIO A CINCINNATO. 03

que não lem sinão uma vez. Em Atala, as paixões


são cobertas por longos véos brancos. »
Não se parece com B. de Saint-Pierre que no seu
Paulo e Virgínia « sabe escolher o que ha mais
puro e opulento na lingua ; cujo estylo, se assi-
melha a esse famoso melai, que, no incêndio de
Corintho, se formara da mistura de todos os ou-
tros rnetaes. » J. Joubert.
Não se parece com Balzac, que « toma corpo a
corpo a sociedade moderna, arranca a todos al-
guma cousa, a uns a illusão, a outros a esperança,
a csles um grito, aquelles a mascara ; que esqua-
drinha o vício, disseca a paixão ; que cava e sonda
o homem, a alma, o coração, as entranhas, o cére-
bro, o abysmo que cada um possue em si mesmo. »
V. Hugo.
Todavia de uma grande obra de Balzac — Le
Dernier cies Chouans — obra que prima « pelo
piltoresco, pelo cunho dramático, pelos caracteres
verdadeiros, pelo dialogo feliz » diz Sainte Beuve
que « a imitação de Walter Scott e de Cooper é
evidente. » E a Sainte Beuve chama não sei si
Paulo Raynol, que agora bem me não lembro,
« eminente juiz das cousas do espirito. »
Com quem se parece, pois, Senio no seu Gaú-
cho — por ventura arremedo remoto, caricato e
illógico do Homo e do Ursus, do Homem que ri?
Não seria difficil dizêl-o, mas não o quero fazer,
94 LITTERATURA BHAZILEIRA.

limitando-me apenas a dizer com quem penso que


Senio se não parece; e não é pouco.
0 que fica fora de toda a duvida, quanto a mim,
é que o Gaúcho não passa de uma producção cache-
tica, de que a litteratura brazileira pouco se deverá
lisonjear.
« Ha duas maneiras de ser sublime — diz um
critico francez : — pelas idéas ou pelos sentimen-
tos. No segundo eslado tem-se palavras de fogo
que penetram, que arrastam. No primeiro não se
lem sinão palavras de luz,' que pouco aquecem,
mas que deslumbram. » No Gaúcho o sentimento
é frouxo e frio, a idéa descorada e infeliz; é por
isso que o estylo nem deslumbra, nem arrasta.
Si estudamos o Gaúcho em seu caracter histó-
rico, tanto peior; é tudo vago, indeciso, maxime
insignificante. Lendo-o, não se fica tendo uma idéa
da revolução rio-grandense. Não ha um traço
vigoroso que se deixe demorar no animo do leitor.
A revolução apparece, em uma atlitude fugaz,
fungível como a sombra do quadro — a luz per-
tence aos cavallos, ou aos arroubos da imaginação
delirante.
Entendeu Senio que, cilando taes e taes nomes,
que figuraram no movimento, e dizendo que este
caminho vai ter a Jaguarão, aquelle a S. Borja,
tinha, preenchido e satisfeito a parte histórica da
obra. Erro ou illusão !
SEMPRONIO A CINCINNATO. 9

O espirito do tempo, o cunho varonil e incisivo


do acontecimento, sua acção moral ou política,
tudo deixa addiado para d'aqui a um século talvez
« quando já os personagens não se achem tão liga-
dos ainda ao presente pelos vínculos das paixões
e da família. »
Que família, que paixões ? Pois tem alguma
cousa que ver com isto o escriptor profundo, cons-
ciencioso, o critico justo e severo, que não tran-
sige com espécie alguma de interesse, e só se dirige
a attingir o alvo exceiso da verdade histórica?
Frivola gaze esta que não encobre os defeitos, as
nodosidades do arcabouço repulsivo !
Falando de Alexandre Herculano, como roman-
cisla-historico, diz um dos bons talentos críticos
modernos da Península : « Nos romances historico-
nacionaes, nunca tanto como alli talvez, se eleva
o escriptor a urna idealisação característica, pes-
soal, critica e philosophica.
« Em geral fica com Walter Scott na chronica
romantizada. E esplendidamente romantizada. A
historia é escrupulosamente tratada : estudam-se
a época, os costumes, as tendências, as ambições^
os homens. »
Fez acaso outro fanlo Senio no seu Gaúcho, para
pretender com razão um logar na ordem dos ro-
mancistas históricos? Si acaso se não acha ainda .
inaugurada no paiz a escola, não ha de ser de
í>6 L1TTERATURA BRAZILEIRA.

certo a obra de Senio que servirá de modelo, tão


certo é faltar-lhe a possança e a firmeza de acção
e de critica imprescindíveis em trabalhos taes de
iniciativa no gênero.
Si conchegamos o Gacúho ás formulas geraes da
plástica, aos preceitos da arte e do bello, ao pu-
rismo da linguagem castiça, não se ressente elle
v de menos deslizes com feições de defeitos que
difficilmente se poderão escusar.
A neologismomania pullúla e palpita a cada pa-
gina, infastia. A titulo de enriquecer-se a lingua,
já de si tão opulenta, inventam-se vocábulos por
mero arbítrio.' A prevalecer o abuso, quem se en-
tenderá d'aqui a pouco ? O direito, que tem Senio
para introduizir na lingua vernácula termos no-
vos ex auctoritatequascribit, muitostambemo lêem;
e onde iremos parar, si todos esses se deixarem
dominar pelo mesmo erro e vaidade de inventa-
rem por conta própria ?
A contar da Diva para cá, justamente a obra que
assignala o principal período de decadência de
Senio, não ha trabalho seu que se possa ler, de re-
cheado, que vem, de quanta innovação lhe occorre
fazer, como si isso denunciasse grande mereci-
mento intellectual, e demandasse alto esforço e
superioridade no escriptor ! De um verbo deriva
Senio um substantivo ; de um substantivo deriva
um verbo — e eis a que se reduz a grandiosa pro-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 97

creação philologica de Senio. Quem é que não po-


deria fazer outro tanto, sem, de mais a mais,
suppôr ter descoberto a pólvora, ou se julgar por
isso com jus ao respeito e á admiração de presen-
tes e pósteros?
E que razão de necessidade poderia determinar
taes innovações? Por ventura Senio cria idéas tão
sublimemente originaes, que não encontre na
inexgolavel riqueza da lingua nacional termos
que lhes correspondam e que as exprimam? Serão
essas idéas creanças de septe braços para quem
seja mister talhar camisas de septe mangas? Não
será difficil na verdade deparar em nossas ultimas
lettras com aleijões de tal ordem.
Em um caso irremissivelmente seria preciso in-
ventar uma lingua própria: no de querer fazer o
homem entendido em seus mais recônditos phe-
nomenos psychicos pelos cavallos, e de entendel-os
elle egualmente; mas então inventem uma língua
novaT e não queiram aviltar na infima funcção
a illustre e heróica lingua dos Barros e dos
Vieiras.
Longe me levaria esta ordem de considerações,
e eu lenho pressa de terminar a série, apezar do
muito que me fica ainda por dizer. Aguardarei
" outra occasião, em que farei a apreciação da Diva,
da Iracema como romance typico-indiano-brazíleo,
c da Pala da Gazella, se antes d'isso nos não der
o
98 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Senio cousa mais nova, como promettem os arau-


tos e passavantes.
Segundo vês, meu amigo, seja encarado o Gaúcho
sob o aspecto, ethnographico, ou seja-o sob o esthe-
tico, ou philologico, urge que os que sinceramente
se interessam pelo lustre das pátrias lettras façam
cruzada para que elle não consiga abrir escola.
Discutamol-o entretanto, e ao correr da penna,
em terreno diverso, isto é considerado como ro-
mance de phantasia, segundo te promelti em
minha primeira epistola.
Não condemno este gênero da litteratura român-
tica. 0 Han d^Islandia é horrivelmente bello. A
Ondina, de Fouqué, é sublime. Também não deixa
de ser interessante o Diabo coxo, de Lesage, posto
que plágio do Diablo cujuelo, de Guevara. E mui-
tos outros, que ahi fazem as delicias dos dilettanti
da lilteratura do impossível e do sonho ou da fá-
bula. Não condemno pois in limine o romance de
phantasia.
Parecendo-me, porém, que o romance tem in-
fluencia civilisadora; que moralisa, educa, forma
o sentimento pelas lições e pelas advertências;
que até certo ponto accompanha o theatro em suas
Vistas de conquista do ideal social—prefiro o ro-
mance intimo, histórico, de costumes, e até o rea-
lista ^ ainda que este me não pareça caracterisfico
dos tempos que correm.
SEMPR0NI0 A C1NCINNATO. 99

Em uma palavra prefiro o romance verosímil,


possível, quero « o homem junto das cousas »
definição da arte por Bacon.
E é justamente por isso que o Lazarillo de Tor-
mes, de Don üiego H. deMendoza, exerceu tão con-
siderável importância não só na historia política
da Hespanha, sinão lambem na historia litteraria
de toda a Europa — como diz Viardot. « 0 pe-
queno Lázaro de Tormes é um engeitado, que passa
de senhor em senhor, que se vinga de os ter ser-
vido exprobrando-os desapiedadamente,eque, em
cada condição nova, faz a critica amarga de uma
classe da sociedade. » E' um monumento em nove
capitulos.
Mas o Gaúcho não é um romance de phantasia,
nem pensa em tal, desde que localiza sua acção
n'um theatro verdadeiro, e n'ella pretende offe-
recer a pholographia dos costumes de uma socie-
dade conhecida e contemporânea, dando ás pes-
soas eás cousas seus próprios nomes.
0 Gaúcho pretendia ser de costumes, mas depra-
vou-se na aberração. « A pretenção de excessiva
novidade não pôde dar em resultado sinão uma
triste mistura de comedia grotesca e de grandeza
phantastica que se não encontra em livro algum »
diz Philarète, apreciando as Viagens d' Herman
Melville. Dir-se-hia que o profundo critico francez
talhou n'estas palavras a carapuça de Senio.
-100 L1TTERA1URA BRAZ1LEIRA.

Terei sido acaso severo, meu amigo ? Não, de


certo, pelo que me parece.
E' preciso dizer abertamente a Senio que poucos
podem ser Dumas ou Voltaire. A fertilidade pro-
veitosa só é partilha dos gênios. Non omniapossu-
mus omnes : e a Coryntho não vai quem quer.
Os graves encargos de conselheiro de Estado,
de politico, de advogado, de parlamentar, de oppo-
sicionista, e de muitas cousas mais, não permit-
lem aos talentos litterarios produzir sinão abor-
tos, se querem dar creanças em menos de nove
mezes.
Quando Senio era simples advogado, e não
queria campar de philologo abalizado, politico
profundo, nem concebera ainda a vaidade de pas-
sar espichas nos clássicos e de arvorar-se em
mestre de escola, tudo ia bem.
Chegava-lhe o tempo para applicar-se ás lettras
amenas, compor seus trabalhos com vagar, corri-
gil-os, á luz do gosto e do bom senso, até onde
este lhe chegava também. A prova temol-a nós no
Guarany, na Viuvinha, e no Demônio Familiar. 0'
têmpora !
Hoje, porém, como tudo está mudado ! Os elo-
gios immoderados apodreceram cedo o talento
útil, fazendo-o infunar-se da presumpção de ser
gênio. Prejuízo para a litteratura natal ! porque
em vez de recolher mais duas ou três producções,
SEMPRONIO A CINCiNNATO. 101

dos quilates da Viuvinha ou do Guarany, temos


uma bagagem de volumes, que não valem o ar-
roubo dos — Cinco minutos.
Metta a mão em sua consciência, e diga Senio
si não temos razão.
Mas nada de desacoroçoar. E' ainda occasião de
recuperar o tempo gasfo em pura perda, e repa-
rar o mal que tem feito ao seu nome e ás lettras
brazileiras.
Tenho concluido, meu amigo. Pede por mim
desculpa ao publico, e a /Senio que me não queira
mal.

SEMPROMO.

6.
CARTA III

DO ROCEIRO C I N C I N N A T O A S E M P R O N I O

Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1871

Querido amigo.

Forçaram-me a trocar as políticas pelas litteraturas. Em


qualquer d'esses campos, sou eu um curioso muito inválido,
mas emíim tudo serve : quem não pode brandir clava, descar-
rega piparole, e as minhas aspirações não sobem a mais.

Agora, algumas palavras mais, sem applicação, como sim-


ples generalidade, e em que só repetirei o já dito pelos regu-
ladores do gosto.
Nada, na arte de escrever, demanda mais cautela do que o
uso dos tropos,figurase imagens. Os mais sublimes e patheticos
passos dos mais admirados autores, em prosa e verso, acham-
se expressos no estylo mais simples e sem figuras. Pôde, por
outro lado, abundar uma composição em ornamentos estudados,
em linguagem artificiosa, esplendida, figuradissima, e ser no
todo affectada e glacial. Quem não falar ao espirito e ao cora-
ção, por mais gymnasticas de estylo a que se abalânce, se este
104 LITTERATURA BKAZILEIRA.
fôr ostenloso, esquisito, presumpçoso, impróprio ou obscuro,
poderá lançar poeira aos olhos do vulgo, mas nunca aprazer
a juizo dos competentes.
As imagens e figuras acceitaveis hão de adaptar-se natural-
mente ao objecto : suggere-as a imaginação, quando altamente
excitada, produzindo melaphoras e comparações ; suggere-as
a paixão, quando o peito se commove, gerando então proso-
popeas e apóstrophes. Está perdido quem deixa o curso do pen-
samento para se ir á caça das figuras ; não apanha leões nem
veados, mas sombras impalpaveis e ridículas. — Erra quem
pensa que ornamentos de estylo se cosem á composição como
a golaácasaca. Eis como o Visconde de Seabra verte um trecho
da Epístola aos Pisões :

A começos magníficos mil vezes


se alinhavam de purpuras remendos,
que ao longe brilham, como quando os meandros
da água que gira pelo ameno prado,
de Cynthia o bosque, as venerandas aras,
o Rheno, ou o arco pluvial, se pinta...
mas era do togar impróprio o quadro.

Os ornamentos verdadeiros não são arrebiques, ou esforçosde


imaginação enferma; devem correr no mesmo álveo por onde
se desliza o pensamento. Ha de se falar como se sente, e não
pedir emprestado o effeito. Quando invita, a Minerva vinga-se.

E por sobremesa, para gratificar o teu paladar delicado, lê


agora comigo este final do cap. 3o do liv. IX de Quintiliano:
« Autores, que até os argumentos dão por figuras, é fugir
d'elles. Estas, mesmo quando verdadeiras, se adornam o es-
tylo, postas a propósito, tornam-se mais que ineptas, empre-
gadas sem moderação. Taes ha que se julgam summos artífices,
porque, sem curarem da essência das cousas, nem da solidez
dos pensamentos, amontoam palavras sem sentido, e ridicu-
CINCINNATO A SEMPRONIO. 105
lamente se empenham em procurar gesto onde não ha corpo.
Até no uso das cousas legitimas, é mister cautela: a expressão
do rosto, o vibrar dos olhos, muito ajudam ao orador; mas se
o vires contorcer esquisitamente a bocca, e trazer testae olhos
em movimento desesperado, deitas ás gargalhadas. A oração
tem também a sua face natural; nem immobilidade cadaverica,
nem o movediço da careta. Nímio cuidado no palavrorio gera
desconfiança ; e sempre que se ostenta artificio, tudo parece
mentira. »

Caro Sempronio meu, tu has de reconhecer sem duvida que


que não é possível ser mais brando, mais dócil, mais submisso
do que eu o sou para com Senio. Desde o principio d'esle
dize-tu direi eu, que o trato com as formas mais blandisonas
e mellífluas, e não alcanço nada; quanto mais molle acha,
mais carrega. Tomara eu que tu me ensinasses o modo de o
amansar; eu bem procuro fazer-lhe a vontade, e estou alé
prompto para proclamar que Deus, que se não cançou em
fazer o mundo em uns poucos de dias, levou depois muitas
semanas para invental-o a elle, e ficou estafado ; mas nada:
pelo que collijo das Palestras, dictadas pelo Senio, e editadas
pelo companheiro, o "irado Jove Tonitruante não larga da
dextra o trisulco. Eslou bem servido !
Ora escuta aqui uma historia :
Havia na Bahia um homem, chamado o Sr. Gabriel, muito
mal encarado, cujas delicias eram bater na pobre mulher. Dous
annos supportou a infeliz a sua cruz, levando quotidianamente
boa conta de pauladas á toa.
— Ah ! tu deixaste-meesfriar ojantar... Toma lá.
— Não deixei, menino, que está bem quente.
— Ah ! tu respingas! toma lá.
E assim approveitava todas as razões para repetir a anti-
phona. Deu-lhe uma amiga um conselho: « Diga teu marido
o que disser, não contraries. Mande o que mandar, faze logo.
Assim lhe tirarás os pretextos. » Chega o Sr. Gabriel :
106 LITTERATURA BRAZII.EIRA.
— Maria, descalça-me as botas!
— Prompta.
— Maria, está aquella janella aberta para entrar o sol?
(Era noite.)
— Eu vou fechal-a.
— Maria, dá cá aquelle chicote.
— Elle aqui está.
— Maria, está muito calor; vai fazer-me a cama no quintal!
Foi a mulher, e fez o que se lhe mandava. Deitou-se o bom
do homem, e, passado um instante, levantou-se a bater-lhe.
— Que tens tu, meu maridinho ?
— Ainda m'o perguntas, cachorra ? Foste-me pôr a cama
logo por baixo da estrada de Santiago : se por lá tropeça um
macho e cai, vem-me logo cair no toutiço.
Assim parece accontecer comigo. Se eu não estivesse certo
do meu sexo, julgar-me-hia mudado em D. Maria; todavia,
para teu socêgo, asseguro-te que tens sempre em mim
0"teu velho e cordial amigo
ClNCIKNATO.

CARTA IV
CINCINNATO A SEMPRONIO

Meu iIlustre critico.

Recebo a tua caria, interessante como quanto sai da tua


penna. N'ella me dás a noticia de que applicarás mais algumas
horas vagas ao exame das producções litterarias de Senio, com
o que sem duvida teremos todos muito que aprender.
Com a tua carta, recebo a de um nosso distincto amigo
C1NCIINMT0 A SEMPRONIO. 107
commum que, referindo-se também a cerlo escriptor (quem
seja, não vem ao caso) se exprime d'est'arte: « Folgo com um
tão completo desbarato da fôfice, da pedantaria, do orgulho
petulante, e das bullas falsas... Com effeito sempre lhe achei
ares excêntricos, fôrmas hybridas, contornos monstruosos,
plano^ disformes, lavor irregularissimo, míngua de gosto e
senso artístico, ambição impotente de effeitos ridículos. Depois,
vindo a vez do politico, manifestou-se-me eüe um ambicioso
vulgar, um acabado especulador, que armava tão somente
ao próprio interesse, e que se desmascarou, no dia da pro-
va, etc. etc. »
Mas emíim, isto nada tem com a matéria que tratamos,
e portanto continuemos com a anályse das Palestras; e pre-
ciso, antes de tudo, pôr bem claro um ponto. Saem estas
palestras de debaixo do telhado de Senio ; assume a paterni-
dade d'ellas um senhor homem que se senta á mesma car-
teira que o primoroso escriptor ; esta, e outras circumstancias
me convencem de que, embora o estylo seja exclusivo e
característico do dito senhor homem, as partes da oração
são-lhe ministradas pelo companheiro Senio. É conseguinte-
mente com este, que eu me entretenho: se tivesse a persua-
são de que o senhor homem era p autor do que copia e
aduba, passaria de largo respeitosamente, e silencioso deixaria
brilhar á vontade.
O finado Senador Theóphilo Ottoni narrava com summa
graça numerosas particularidades dos usos e costumes dos
selvagens do Mucury. Lembro-me bem de lhe ouvir esta his-
tória, —• « Para um Botecudo, toda a sua idéa de superiori-
dade e prioridade funda-se no vocábulo : Capitão. A mim
chamam-me Capitão Pogirum, que quer dizer : Homem de
posição elevada e de mãos brancas. A um Francez.do Mucury,
chamavam Capitão Ouioui, por que era de raça branca, e
repetia freqüentemente a palavra oui; e assim os mais. 0
curioso porem é que o termo applica-se não menos a cousas
inanimadas ou não humanas; por exemplo : de um renque
d'arvores, a primeira é a arvore-capilão; no delta formado
108 MTTERATÜRA BRAZILEIRA.
por aves de emigração, a primeira é o passaro-capitão; de
uma vara de cochinos o que vai adiante é o porco-capitão. »
Sempre me lembra o Senador Oltoni, quando ouço d'estas;
e, longe de contrariar a asserçâo, concordo em que Senio é o
orador-capitão, 'o advogado-capitão, o politico-capitão, o litte-
rato-capitão, o Gaichista-capitão, o jurisconsulto-capitão, o
laureado-capitâo, o filho que dá orgulho-capítão, o caracter
capitão, finalmente o centurião, o capitãozarrão, o capitão
general dos capitães. Que mais querem? Prestemos-lhe todos
este preito e homenagem.

Teu obediente criado


CINCINNATO.

CARTA V
DO R O C E I R O C I N C I N N A T O AO C I D A D Ã O FABRICIO

Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1871.

Caro amigo.
Passei hontem o dia em Andarahy, e por isso não pude
palestrar comtigo. Sai agora d'aqui o Tício, que me trouxe
a 2* e 5*. Palestra, publicadas hontem e hoje.
Lemos juntos aquellas duas peças de architectura, e discu-
timos largamente se era licito tomar em consideração escriplos
redigidos com iórmas tão baixas, que é duvidoso merecerem
resposta. Estas pugnas litterarias tem seu que do duello : ac-
ceitarias tu um repto para te bateres, não com armas licitas,
CINCINPiATO A SEMPROMO. 109
mas com punhados de lodo ? Eu já nem me presto a copiar as
palavras e expressões, que esta casta de adversários julga ad-
missíveis em taes polemicas; embora seja simples transcripção,
ha certo pudor que veda reproduzir com a nossa penna lingua-
gem que só se aprende nas tabemas e nos açougues. O sal
áttico d'estes senhores, é sal de cosinha, e do mais ordinário.
0 idioma é em todos os gêneros tão opulento que nada
houvera mais fácil do que a uma insolencia responder com dez
insolencias, a uma brutalidade com cem brutalidades ; mas
ainda quando o adversário nada mereça, merece muito o
publico, e a nossa própria dignidade.
Depois de lidos estes dous artigos, tinha um de três arbí-
trios a tomar:
Io. Responder na mesma afinação, ou meio tom acima.
Seria seguir um vergonhoso exemplo ; transformar contro-
vérsia em pugilato; desrespeitar o leitor e a mim mesmo.
2o. Em vista de tamanho descomedimento, guardar silencio,
por não julgar decente polemica de espécie alguma com taes
contendores. Seria deixar campear impune o desacerto boccal,
e autorisal-o a proclamar irrespondíveis os seus delírios.
3o. Fechar olhos a tudo quanto em taes artigos reveste a
fôrma brutal, extrahir d'elles lealmente o que aspire a foros
de argumentação, e aquilatal-a, como se fosse proferida com
decência e compostura, e por quem tivesse em mente, não a
injuria, mas a apuração de doutrinas controvertidas. Por ex-
clusão de partes, entendi que era esta' a marcha que eu tinha
de seguir.
Deixarei pois, de boamente, a Senio a gloria do seu voca-
bulário. Não reciprocarei os piegas, Mainante, salsinha litte-
rario, charlatão, casmurro, palhaço, critiqueiro, cacas-
seno, etc, etc. Acceito tudo, e pago-lhe, dizendo que nada
d'isso me demove da posição de justiça e plena rectidâo em
que me colloquei, nem me %autorisa a represálias, que em
laes termos seriam indignas do publico, de mim... e do pró-
prio Senio.
Não ha quem tenha esquecido a luta entre J. A. de Macedo
7
110 LITTERATURA BRAZILEIRA.
e Bocage, no fim do século passado. Aquelle começou a sua
excellente satyra por estes versos:
Sempre, ó Bocage, as satyras serviram
para dar nome eterno e fama a um tolo.
A satyra monumental em que Bocage analysou aquella,
principiou assim:
Satyras prestam, satyras se estimam,
quando n'ellas calumnia o fel não verte...
quando forçado epitheto affrontoso
[tal que nem cabe a ti) não cabe aquelles
que já na infância consultavam Phebo.
Eis-ahi, ao menosn'este ponto da satyra, um bello exemplo.
Bocage tinha um arsenal provido: quem lhe chamava tolo,
dava-lhe o direito de redarguir com egual energia: parvo,
néscio, asno, tolambana, basbaque, asneirâo, estólido, fátuo,
papalvo, parvoalho, inxovêdo, inepto, insensato, parvoeirão,
tolaz, patau, simplório, sandêo, tolão, simpleirão, estulto,
ignorante, lorpa, zote, bestial, pateta das luminárias, amenle,
mentecapto, lunático, tresvariado, demente, tonto, parvoínho,
alarve, alvar, animal, bobles abobles, bolonio, camelo, caturra,
orate, despropositado, estouvado, estúpido, patola, e mais
duas dúzias de variantes, que se aprendem na praça do Mer-
cado. Tal não fez: começou logo reconhecendo, não obstante
a ira que o inflammava, não ser aquelle epitheto applicavel
a quem lh'o applicava; como não faria outro tanto, eu, em
quem taes, violências não geraram agastamento, mas simples
compaixão ?
Deixarei pois aquellas energias de linguagem para quem
precisar lançar poeira aos olhos; eu, que só preciso racioci-
nar sem vituperios, dispenso esses tristes recursos da impo-
tência.
Pelo que vejo, abandonaram ao braço secular o poder pes-
soal, o orador, o estadista, o escriptor. Só defendem o ro-
mancista. Vamos a isso. Sempronio consagrou 40 paginas á
analyse do Gaúcho; não se atreveram com elle: eu rabusquei
GmCINNATO A SEMPRONIO. 111
na vinha que o hábil vindimador deixara, consagrando apenas
duas cartinhas ao meu supplemento de analyse, e é sobre
mim que Senio cae desapiedadamente, por me saber mais fraco.
Faz lembrar César em Dyrráchio, investindo o campo de Tor-
quato, por suppôl-o mais fácil de derrotar do que se atacasse
as forças de Pompeo. Resigne-se cada um á sua sorte, e vamos
a isso.
É um tanto difficil conquistar attenção sobre assumptos já
cançados, e que naturalmente saciam. Sempronio fez uma
primorosa analyse do Gaúcho; eu comecei-lhe um insignifi-
cante additamento; agora o tal Senio disseca-me a mim; eu
vou dissecar a sua dissecçâo..., de modo que isto vem a ser
analyse da analyse do additamento á analyse da obra. Fora
mister muito mais alto mérito litterario em mim, e no meu
instigador, para ser isto supporlavei; todavia cumpra-se o
dever, inteiro e com lealdade.
Teu velho amigo,
ClNCIKNÀTO.

CARTA VI
DE C I N C I N N A T O A S E M P R O N I O

jftib, 9 de Novembro de I8Í1

Respeitável Sempronio;
tehhb a estulta manha de multas vezes discursar de alhos
quando se trata de bugalhos; e se tae cae a talho de foice
uma leitura que me quadra, transcrevo logo, embora venha
112 LITTERATURA BRAZILEIRA.
despropositada; e como d'istojá agora me não emendo, por-
que quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita, lá vae uma
das taes leituras, sem atilho nemvencílho.
Celebrava-se antigamente em algumas egrejas do Norte,
por fins de Dezembro, uma festa denominada Libertas decem-
brica, ou, mais commummente, do Papa fatuorum. No tempo
dos officios divinos, saíam da cathedral os clérigos emmasca-
rados, ou em trajos mulherís, ou vestidos de bobos e choear-
reiros, dançando e saltando e correndo, com grandes alari-
dos. Juntos no coro, cantavam cantigas deshonestas, faziam
dos altares mesas, com grandes comesanas e galhofas, deita-
vam solas de ehichellos nos thuribulos, e com fétido fumo
incensavam as paredes, e com outras sacrilegas extravagân-
cias, procediam á eleição do seu Pontífice, que tinha por titulo
0 Papa dos fátuos. Foi continuando este bárbaro escândalo,
até que, em 1444, os theologos da faculdade de Pariz, com
a circular que dirigiram aos prelados de França, e que depois
foi dada á luz por João Savaro, extinguiram a festa do Papa
fatuorum. Fizeram muito bem, e estou convencido de que
nunca mais se restabelecerá o ridículo protopapado.
Emfim, deixemos os assombrosos costumes da edade media,
lão outros dos actuaes, e continuemos a nossa pratica litte-
raria.
Uma folha d'esta capital, de aspirações adiantadissimas, dá
ao orbe intellectual a fausta noticia de que ás suas columnas
coube a gloria de serem escolhidas para uma nova brilhatura
romântica do Sr. José d'Alencar, o conservador. Ha de chamar-
se-lhe... 0 TU! e justificar a qualificação, já dada ao seu
autor, de chefe da litteratura brazileira. Podes imaginar
com que anciedade é esperado o novo parlo da fecunda musa,
para gloria nacional, orgulho e desvanecimento da pátria
(sic).
— Fiquei com o espirito tão desenxabido, pela insipidez da
materia,que para o consolar peguei n'um livro ao acaso, e caiu-
me debaixo das mãos a Euphrosina. Findo esta carta com uma
transcripçào dVlla, como com outra transcripção principiou,
CINCINNATO A SEMPRONIO. 113
apezar de nem uma nem outra ter a mínima ligação com o
assumpto, porque emfim eu não creio que isto sejam umas
galés, ou que fossemos condemnados a não nos occuparmos
senão de um. Diz o bom do clássico:
« Guarde-vos Deus de ira do senhor e de alvoroço do povo
— de doidos em lugar estreito — de moça adivinha e de mu-
lher latina — de pessoa signalada, e de mulher três vezes
casada — de homem porfioso — de Iodos em caminho e de
longa enfermidade — de official novo e de barbeiro velho —
de amigo reconciliado, e de vento que entra por buraco —
de hora minguada e de gente que não tem nada — de phy-
sico experimentador, de mathematico doutor, e de asno or-
nejador. »
Recebe as expressões da respeitosa admiração do teu reve-
rente amigo,
CIKCINHATO.

CARTA VII
DE C I N C I N N A T O A S E M P R O N I O

Rio, 24 de Novembro de 1871.

Illuslrado amigo.
Recebo a tua preciosa carta, de 10 do corrente, na qual me
dizes que talvez te divirtas com o testa de ferro de Senio, pa-
recendo-te porém mais methodico esperar que elle despeje o
seu vasto arsenal de conhecimentos, expressos em linguagem
apropriada. Accrescentas : «Far-se-ha então uma aprecia-
ção synthetica, epôr-sè-ha a nu a intelligencia do critico. Crê
114 LITTERATURA BRAZILEIRA.
tu que o Gaúcho me offerece matéria para outra longa série
de cartas, e não estou longe de escrevêl-a. Entretanto, para
mudar de assumpto por agora, vou entreter-me com a Ira-
ctma. »
Escuta cá, meu amigo. 0 anonymo das Palestras declarou
depois que depunha a mascara, com o que ficou mais ano-
nymo que d'antes!

Já esmerilhei as criticas do pimpão. Prometteu esmagar-te


a ti, e a mim; mas depois subverteu-se pelo chão abaixo, di-
zendo apenas que ia fazer uma viagem, e ha pouco accrescen-
tou que estava já de volta, e apparelhado para amarrotar-nos.
Ficámos com o juizo suspenso, o que é muito incommodo, visto
que um juizo pendurado tanto tempo, acaba por cançar.Roeu
a corda; remetteu-se ao silencio, segundo a doutrina da es-
cola Senial. Promettre et tenir sont deux. Também não vae
longe o dia em que o Sr. José de Alencar ameaçou com a hor-
ripilante publicação de um livro do futuro, que ficou para as
kalendas gregas, como as criticas do Sr... o anonymo.
Yisto, porém, que o senhor quem quer que seja se esbofa
por convencer-nos de que as suas estupendas lucubrações são
realmente suas, e nenhuma necessidade vejo de o desmentir,
acho mais curial que de ora avante o deixemos, tu e eu, em
santa paz. Já demonstrou o que sabe e o que.vale aquelle
senhor homem. Se o senhor homem imagina que, por si,
tem direito de ser por nós contrariado, engana-se de meio a
meio. Se elle é elle, parce sepultis. Não contribuiremos para
as suas glorias, nem mesmo Erostráticas. Fica-lhe camço
livre para repetir, sem receio de mais resposta, as suas
brilhaturas.
Quem está na berlinda não é nem poderá nunca ser ne-
nhum phantastico senhor. Poderia tolerar-se o officio de caça-
tigres, mas nunca o de mata-carochas. Sempre suppuz que
alguém assignava de cruz o que o Espirito Santo lhe dictava,
ou que pelo menos esse alguém tocava as suas variações sobre
o thema do mestre, de cuja altaintelligencia julgavam todos
CINCINNATO A SEMPRONIO 115

dimanarem aquelfoutras preciosidades. Teima-se em que


estas não são authenticamente do inspirado; n'essecaso, faço
meia volta, e passe por lá muito bem o delicado Palestreiro.
Algumas outras decididamente aulhenticas hei de achar. 0 Im-
perador Justiniano deixou-nos nas suas Constituições as Au-
thenticas; por fortuna da humanidade também nós temos as
nossas Authenlicce seu Novellce Constituciones domini nostri
Alencaris, maximi magistri atque sacratissimiprincipis. Pa-
rabéns á pátria : estas Authenticas Constituições (visto que o
oes lem um til) chamam-se o TIL.
Tu, que estás longe, talvez queiras andar em dia com a
monumental historia d'este monumento; eu te conto o que
sei.

Eis-ahi tens tu o que seja a carta introductoria do novo r o -


mance 0 Til: como sempre, uma baforada, uma arrogância,
uma injuria.
Segue-se falar no começado, apregoado, assoprado, engran-
decido, celebrado, hyperbolizado, encarecido, exaltado e e n -
thronizado romance. Está-me caindo da penna um verso de
Boileau, mas não quero, não senhor.

Teu respeitoso amigo,.

ClNCINNATO.
NOTAS

SOBRE AS CARTAS DE CINCINNATO

Os ligeiros extractos que temos feito e ainda para diante fare-


mos de cartas de Cincinnato quer a Sempronio quer ao cidadão
Fabricio sobre esta questão litteraria, mal dão idéa do quanto
ellas valem na sua integra.
Sendo em geral escriptas com summa graça, algumas ha, para
não dizermos todas, na altura de servirem de modelos de polemica
pela erudição bem digesta, sal áttico, senso critico e pureza de
estylo em que primam.
Tel-as-hiamos de boamente trasladado inteiras das imperece-
douras QUESTÕES DO DIA para as paginas do presente livro se para
tanto não fosse mister dar a este proporções que não entraram no
plano da impressão.

SOBRE AS CARTAS DE SEMPRONIO


CARTA I, PAG. 3

Além do Guarany de Gustave Aimard podem ser consultados


sobre os costumes do pampa o interessante livro de d'Orbigny,
Voyage pittoresque clans les deux Amériques, p. 291 e seguintes,
e a formosa historia de Mme Eduarda M. de Garcia, Pablo ou Ia
vie dans les Pampas.
1.
118 LITTERATURA BRASILEIRA.
Cabe aqui agradecer ao meu joven amigo Francisco Magarinos
de Souza Leão o grande serviço de haver collocado á minha dis-
posição para cima de CO volumes de autores conceituados que
teem escripto sobre os costumes e povos de ambas as Amé-
ricas.
Especialmente a litteratura indiana pôde contar nesse esperan-
çoso joven um apreciador estrenuo.

CARTA II, PAG.

A respeito do Far-West de que se trata no final d'essa CARTA,


copiamos do bello livro de Xavier Eyma que se nomeia Les Peaux-
Rouges, as palavras com que abre o dito livro , e são estas:
« Le Far-West, en. Amérique, represente matériellement, ou
plutòt géographiquement parlant, des vastes conirées qui on
semblé longtemps impénétrables au travail et à tout le cortége de
Ia civilisation. A Ia vérité, on ne croyait pas avoir besoin d'aller
trouver de sitòt, jamais peut-être, les solitudes grandioses de ces
forêts que Ia hache des pionniers a ravagées, de ces prairies,
abri de troupeaux sauvages, et que Ia cbarrue a labourées et fer-
lilisées, de ces fleuves et de ces lacs majestueux dont les flots se
sont ouverts sous Ia proue des steamboats.
« Plaçons-nous au point de vuedes premiers colons qui vinrent
peupler 1'Amérique du Nord, et demandons-nous si leur regard
a pu être assez ambitieux pour oser, alors, pénétrer à travers ces
terres inconnues etatteindre des bords de i'Allantique aux cotes
du Pacifique, de 1'embouchure du Delaware à 1'embouchure du
Colômbia, d'une limite à 1'autre d'un continent tout entier.
<r Non certes! derrière Ia borne du champ cultive, à dix lieues
(out au plus des bords de Ia mer, a dü commencer, pour les
hommes de cette époque, le Far-West, c'est-à-dire 1'inconnu, le
mystère, 1'oeuvre et Ia conquête de 1'avenir.

« Le Far-West a été comme ces horisons que dessine en pleine


mera 1'ceil du voyageur lajonction iüusoire du ciei avec lesfiots,
et qui semblent marquer le terme du voyage. A mesure que le
navire s'en approche, cet horison s'éloigne ; on se trouve au point
ou le regard s'arrêtait tout à 1'heure comme à Ia limite extreme
du monde, et Ia ligne est encore là, toujours à Ia même distance,
comme si elle avait reculé avec une"vitesse uniforme à Ia marche
du navire. Puis enfin, derrière ces brouillards insondables, se
dresse tout à coup Ia terre qu'on poursuit, et le mystère disparait.
Ainsi en a-t-il été du Far-West en Amérique. II a reculé devant
NOTAS. HO
Ia civilisation à chaque pas que celle-ci faisait. II est évident que
ce qui a été le Far-West pour les fondateurs des colonies est au-
jourd'hui un pays riche, cultive, silloné de ralways et de steam-
boats.
« Ce qui étaitle Far-West il y a cinquante ans, ily a trente ans,
il y a dix ans, ne 1'est plusauJourd'hui.
« Pourmieux dire, le Far-West, à leprendre dans sasignification
primitive, n'existe plus. Ilimpliqúait une terre à découvrir, elle
est découverte ; un mystère à pénétrer, Ia lumière en a illuminé
.toutes les ténèbres; un continent à ouvrir aux conquêtes et aux
bienfaits de Ia civilisation, de 1'embouehure du Delaware à 1'em-
bouchure du Colômbia, Ia circulation est assurée, sinon encore
facile. »
Já sabe Senio o que é o Far-West, ?
ORRA

DE J. DE ALENCAR
A IRACEMA
S1SR. REDÀCTOR DAS « QUESTÕES DO DIA

Do excellente escriptor Sempronio recebo, com outras, a


caria inclusa, destinada á publicidade, e não posso enviar-
lha, desacompanhada de duas ponderações.
A primeira é que, dignando-se V. acceítar as minhas gara-
tujas, poderá parecer vaidade ou insania transcreverem-se
nas mesmas paginas enc.omios á minha pessoa, aliás exclusi-
vamente devidos á cega benevolência de protectora amizade.
Repito porém o que já tive precisão dereflectir, e que me ser-
virá de salvaguarda, se porventura alguma outra vez me
achar em eguaes condições : Vejo-me entre a espada e a pa-
rede. Que fazer ?
— Deixar de publicar estes escriptos? Seria defraudar os
leitores d'estes modelos de critica ; abusar de honrosa con-
fiança ; corresponder a uma delicadeza com uma Vascon-
cellice.
— Publical-os, operando-lhes alterações e cortes? Seria
desfigurar a producção; arvorar-me em censor, sem direito ;
superpor a minha penna rude á aparada de quem a maneja
muito melhor do que eu.
— Dal-osá luz, intactos ?Por exclusão, é o único expediente
licito, supplicada, como fica, para este e todos os casos aná-
logos, a desculpa do leitor, a Jquem rogo me considere su-
jeito enlãoa força maior.
Venhamos a outro ponto.
124 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Na carta que vae ler-se, abaixa-se Sempronio a tomar em
consideração, embora seja para esmagal-o, ao Palestreiro do
Diário do Rio. Está longe o conspicuo escriptor. Pensa elle,
como todos tinham pensado, que eram ou dictadas ou in-
suffladas por Senio as tristes Palestras, que lhe imitam o
estylo; que lhe reproduzem a argumentação; que se sabe
sairem de debaixo do mesmo telhado e de sobre a mesma
mesa em que Senio escreve.
Foi exclusivamente esta convicção que levou a mim e a
Sempronio, a descermos ao ponto de discutir com o Pales-
treiro, guardadas sempre as devidas distancias de linguagem,
isto é, brandindo nós espada de aço contra espada de canna
temperada em lodo.
Surge porém um quidam, encoberj.0 sob o pseudonymo
Vasconcellos, bradando ser elle, e não Senio, o autor da Nova
Tripa Virada, e a reclamar para si certo privilegio, de que
affirmam usava uma Viscondessa da Lourinhã.
Quer, a toda a força, celebrizar-se; é o que os Francezes
chamam reclame; quer que façamos falar n'elle; quer que
annunciemos aos taberneiros o seu escriptorio de advocacia.
Perde o tempo.
Quanto a mim, já avaliei a importância do critico, e pode
esbofar-se, que lhe não darei mais attençâo a quantas inep-
cias escrevinhar, em linguagem de prostíbulo ou de açôugue.
Nada, não senhor. Eróstrato era um parvo obscuro, a quem
atormentava o delírio da celebridade. Queria immortalizar-se
fosse como fosse, e com o petróleo de Epheso queimou aquelle
Rochefort o Velho uma das 7 maravilhas do mundo. Isso foi lá
com elle ; mas eu, simples cidadão, e respeitador da lei.cur-
vo-me á que promulgaram os Ephesianos, quando prohibiram
expressamente que se proferisse o nome do incendiario. Por
isso, surrindo, o vejo voltar ao Diário do Rio (ha folhas, que,
em se lhes pagando, publicam tudo ; tomam a sua missão por
uma tigella da casa jornalística), fazendo-me tregeilos e vi-
sagens, e dizendo que o Sr. José d'Alencar E' SOL (de quem
já obteve, e aspira a mais... certo calor que nós sabemos), e
CINCINNATO. 125

outras bajulações tão nojentas como as diatribes com que


sonha fulminar-nos. Coitado, requiescat inpace.
O que é lamentável, porém, é que Sempronio se curvasse
a enxergar similhante escrevinhador, a quem faltam todos os
dotes de sciencia, consciência, intelligencia, gosto, estudo,
educação, e senso commum. Entretanto, submelta-se Sempro-
nio aos ossos do officio: isto é o «Lembra-te que és homem!» do
romano triumphador. Quando o general victorioso, ia reves-
tido da túnica palmata e da pintada toga, coroa de louro na
fronte, ramo de louro e eburneo sceptro nas mãos, pouco
importava que ao pescoço levasse uma nomina contra a inveja:
atraz d'elle, no carro magnífico de marfim, puchado por 4 al-
vos corseis, ia um escravo ébrio,descompondo-o e insultando-o,
e desde o Campo de Marte até á Porta Carmental e ao Clivo Ca-
pilolino, confundia-se a voz do truâo com o Io triumphe! das
multidões.
Cada um occupe o seu lugar, e Sempronio triumphe!
Desde que, porém, nos querem convencer de que Senio
não é o autor das Palestras, persuado-me que o distincto es-
criptor fará devida justiça a si mesmo, condemnando ao des-
preso a insolente, analphabeta e chata escripta de um V.
Sempronio vae encetar o estudo da Iracema e da Diva.
Acaba de sair á luz uma seqüência de producções estupendas'
incontestavelmente do Sr. José de Alencar; para que se ha de
brigar com phantasmas, quando ante nós temos o corpo?
Ahi está fresquinho o impagável TU. Temos o 2° tomo do,
Tronco de /pê(que osthuribularios do costume já proclamaram
famoso, eloquenle, de fôrma rara e mais que apreciável etc,
nada menos). Ha muito por onde esmerilhar, sem que se nos
saia ao encontro com hesitações sobre authenticidades.

Peço desculpa de haver dado a estas linhas de introducção


e justificação maiores dimenções que projectava, e permitta
subscrever-me
(SlNCIHNATO
EPÍSTOLA A PARTE

SEMPRONIO A CINCINNATO

fnclito amigo.

Tenho sido de uma descortezia atroz.


Três cartas tuas até hoje sem resposta ! E que
cartas! onde a liberalidade mais cavalheirosa con-
funde o ignorado escrevinhador de provincial três
primores de engenho e de arte, padrões de verna-
culidade, erudição e atticismo.
Mil perdões.
Tu tambor, emquanto eu marechal do exercito!
Não te lembres d'isso.
Eu, sim, é que me apresso a reconhecer em ti
o mestre, capaz de me dar lições, ricas de ensino
para viagens de instrucção n'este labyrintho inex-
tricavel da critica. Não sou senão justo, prestando-
te do coração o culto a que teem indisputável di-
128 LITTERATURA BRAZILEIRA.

reito os teus múltiplos e fecundissimos talenlos,


as tuas graciosas e castiças lettras.
Acabo de chegar do arrabalde, onde a minha de-
teriorada saúde me deteve cerca de quatro mezes.
Tranquillísa-te, porém ; eslou disposto e preparado
para a esgrima.
Vi as minhas frandulagens sobre o Gaúcho.
Agradecido.
Mal pensara eu, quando tive de escrevêl-as, a
instâncias reiteradas de um amigo que chegara
havia pouco da campanha do Rio Grande, que Se-
nio, em resposta e sem ter em consideração a ex-
cellencia do intuito, nem o comedimento e selec-
tos modos da minha compostura, viria, arrojado
e infrene, assacando-nos d'estas fidalguissimas
amenidades :
« Tomo, para começar, a I a carta em que Cincin-
nato, á laia de amigo, se dirige a um Sempronio,
AMBO FLORENTES, não na edade, poisque o de lá
ainda está na espiga e o de cá já chegou ao sabugo,
mas com certeza ARCADES AMBO; e bom será que
se saiba que ha diversas espécies de ARCADIOS, sendo
estes dous d'aquelles de que trata Juvenal sat. VII
v. 160 : QUOD LJIVA PARTE MAMILLOE SALIT
JUVENI ARCADICO, quando faz allusão a certos
OBELHUDOS de bom volume, que pastavam a relva
da Arcadia. » "l» •
Diz uma autoridade em lettras : « Quando a
SEMPRONIO A CINCINNATO. 120

alma é elevada, as palavras vem do alto, e a ex-


pressão nobre acompanha sempre o nobre pen-
samento. » Faze a applicação.
Orelhudo só pôde ser filho de burra. Ora d'esta
espécie de animal nunca figurou, que eu saiba, na
minha, posto que plebléa, estyrpe. Para onde se
voltou, pois, Senio, quando quiz achar a finíssima
allusão ?
A vista de lão polido exordio hesitei, a princi-
pio, como tu, se devia ou não travar contenda com-
quem assaz mostrou só saber tornear á gaúcha.
Ora, nunca me empenhei em taes lutas — ver-
dadeiros exercícios bárbaros. De meus pães, de
meus mestres, da boa sociedade, da civilisação (da
nossa civilisação que não babuja, como a de Senio)
aprendi a pleitear com as armas do pensamento
— pela palavra, esse escudo sonoro, e pela penna,
essa tersa lança do brioso lidador.
Mas deixar de accudir áintimação! isso nunca.
Dou-me lambem por citado, e venho á lide para dis-
cutir, se o quizerem, e nunca para... rebaixar-
me. É falar em bom portuguez.
Quizesse eu combaler á gaúcha, nada mais fácil,
apezar da minha falta de hábitos, de gosto e de
aptidão, coníesso-o, para esta espécie de pugna
gentilica: o amigo, de quem acima te falei, tem
ainda em seu poder um rebenque e umas chile-
nas, que de bom grado me prestaria ; e até um
130 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Juca acharia eu defronte de mim para o cavalgar.


Mas renuncio para outros a gloria de sobresair
n'este páreo. O publico da cidade, que não con-
funde, como Senio', o homem com o bruto, vae
tendo o bom senso de antepor ás corridas ferozes
as nobres justas do raciocínio, únicas que ins-
truem e dão triurnpho sem molestarem.
Para prova de que estou disposto a discutir, vou
occupar-me com a continuação da gaúchada de
Senio.
« Prometlo continuar — diz elle — logo que re-
gresse, pois que para concluir a tarefa, que tomei
sobre os hombros, inda me resta debicar um pouco o
Sr. Sempronio, que também se metteu a criticaço, e
pinoteou pela campanha da litteratura, para mos'
trar ao vivo como comprehende o cavallo do Gaúcho.»
Duas observações :
1." Senio não abandonou ainda o estylo eqüino^
Vae-lhe a phantasia tão recheiada de visões hip-
picas, que as imagens que lhe occorrem não são
de outro gênero. Pinoteou pela campanha da litte-
ratura. Que gentileza de metaphora ! A litteralura
convertida em campanha, onde se pinoteia 1 É da
mesma ordem da civilisação que babuja. Desco-
briu-se o Chiarini da lilteratura.
2 / 0 que eu disse foi como comprehehdia o
éavallo do p^ampa-, e não d cavallo do gaúcho ; são
idéas bem differentes. É preciso1 que Senio, por
SEMPRONIO A CINCINNATO. 131

amor de si mesmo, tenha presente o seguinte;


que á improbidade litteraria dos palestreiros je-
suítas deveu Pascal em grande parte o seu majes-
toso triumpho.
Accrescenta o nosso fidalgo oppositor :
a Ora, Sr, Sempronio ! Vá esbrugar os seus índios
do Jaguaribe, e quando lhes tiver tirado o cas-
cão, etc. »
Boa duvida ! Grande achado 1
Que os taes índios tinham cascão, e do mais es-
pesso, foi o autor o primeiro que o declarou,
alto e bom som. Leiam a nota I a no final do
vol. Io.
Sempronio, provinciano bronco e obscuro,
nunca pretendeu ser tido por grande cousa, por
formador de escQla, litlerato inatacável, philó-
logo inerrante, sábio illuminado. De taes velleida-
des não se accusa. Escreveu, garatujou aquillo
por mero desenfado. E ficará em excesso agrade'
cido ao pio leitor, ao próprio Senio, se se dignar
indicar-lhe os erros, porque não sendo elles irre-
mediáveis, promette tentar emendal-os conforme
puder na 5a edição, caso resolva dal-a. Ghateau-
briand, dócil ás lições dos críticos, nunca se des-
presou de corrigir suas obras. É elle mesmo
quem nos confessa que* sendo reimpressa a Atala
onze vezes, se confrontassem essas onze edições,
apenas encontrariam duas inteiramente simi-
152 LITTERATURA BRAZILEIRA.
lhantes. É que pelo menos dez vezes, a Aía/ctteve
cascão, Antes quero pensar com Chateaubriand do
que com Senio (perdôe-me elle a preferencia), que
emperrou, emperrou.
Sempronio estava uma vez muito caladinho no
seu canto, quando recebeu o 1" numero da Repu-
blica (diário que se publica n'essa corte) trazendo
um formoso e obsequiosissimo juizo critico sobre
os indios. Era da penna do Sr. Silva Maia, cava-
lheiro que o autor não tinha nem teve ainda a for-
tuna de conhecer.
O Sr. Silva Maia, julgando da acção, dizia o se-
guinte :
« É esta porventura um pouco arrastada e
longa, e interrompida não poucas vezes por in-
cidentes, tal vez alheios ao seu movimento e desin-
volvimento, ele. »
Sempronio toma o livro, folheia-o, medita, e
conclue confessando á sua consciência, como ao
publico o declara agora, que o Sr. Silva Maia tem
carradas de razão. Eis-ahi.
Acceilar com reconhecimento e gáudio salutares
instrucções e advertências, por mais elevada que
seja a posição que se oecupe, sempre foi próprio do
escol dos espíritos. 0 que me parece triste, e das
mediocridades desabridas, é perseverar volunlaria
e obstinadamente no erro por amor de preconcei-
tos vãos.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 133

O mundo é uma escola, onde se pratica, não o


elogio, senão censino mutuo, com esta circums-
tancia porém — que não ha magisler super omnes.
Firme n'estes princípios é que Sempronio irá
lambem esbrugar e dissecar a Iracema e a Diva,
que, segundo alguns, teem moléstia na pelle (ele-
phancias de estylo), e, segundo outros, talvez mais
bem avisados, o principal defeito está em alguma
mielite ou alguma viciosa disposição da espinha
(destemperos de acção e de caracteres), d'onde
vem os corcovos e as suluras ósseas, que lhe dão
a figura de monstrengos.
Notarei: nas delicadas operações, que vou con-
tinuar, nunca os erros, as fragilidades, os arrou-
bos disformes, os caprichos frivolos do autor farão
Sempronio deixar de ter para com Senio as atten-
ções devidas á sua edade, posição social, admirá-
veis talentos, illustre pessoa, e particular carac-
ter. Senio precisa mais deter quem lhe diga certas
verdades proveitosas do que de pão para a bocea.
Hei de dizer-lh'as, apoiado na minha boa fé, em
meu desinvolvido espirito de rectidão.
Não é de hoje, não é no interesse de quem quer
que seja, que reajo em nome das lettras nataes. As
minhas cartas sobre o Gaúcho, posto que só agora
publicadas, foram escriptas ha perto de um anno,
e, o que é mais, estiveram todo este tempo ahi na
corte. Sei que de tudo isso tem Senio noticia.
134 L1TTERATURA BRAZILEIRA.

Bepito : estou plena e profundamente conven-


cido de que, procedendo assim, presto serviço ao
Brazil. A critica, que se preza de justa e indepen-
dente, é inquestionável agente do progresso; põe
diques (deixem lá falar) aos extravasamentos das
imaginações superabundantes, alimenta e aguça
os estímulos, produetivos, apura o licor das boas
fontes sem eslancal-as.
Não são mais brazileiros do que eu, os que só
lêem o incenso que embriaga, e nunca uma pala-
vra de judiciosa e firme admoestação. Muita vez o
applausoédesserviço, e quando perenne, converte-
se em nojenta e nociva idolatria. Admira que os
mesmos que alardeiam querer espancar o cha-
mado fetichismopolitico, estejam alimenlando o fe-
tichismo litterario, real, funesto e enervador.
Serão da injustiça mais injuriosa e acerba, se
me tacharem de iconoclasta de imagens da terra;
o que faço é, do fundo da minha obscuridade,
apontar a eiva ao idolo, e pedir que o reparem,
para que não caia aos pedaços.
Quem souber commover-se e orgulhar-se com
as grandes cousas da pátria não o ha de saber
melhor do que eu ; estão enganados t Quando J. de
Alencar, simples neophyto nas lettras^ escrevia
desabridas cartas contra um Brazileiro, em todos
os sentidos illustre e respeitável, verdadeira glo-
ria do Brazil, o conselheiro Gonçalves de Magalhães^
SEMPRONIO A CINCINNATO. 155

nlguem o chamou de iconoclasta de imagens da


terral Pelo contrario : houve de sobra quem o
applaudisse e acoroçoasse. É' que ha homens que
nascem sob üm signo inteiramente feliz : J. de
Alencar é d'estes.
Pois bem : não faço mais do que seguir o edi-
ficante exemplo de J. de Alencar.
Fico com o escalpello sobre a Iracema.
Teu amigo e admirador sincero,

SEMPKOMO,
CARTA I

Meu respeitável amigo :

Visto que estas cartas se devem entender conti-


nuação das outras sobre o Gaúcho, não me deterei
em nova exposição de motivos. Encontrarás nas pri-
meiras com que supprira deficiência das ultimas.
Entro, pois, sem mais tardançana matéria.
Bepresenta o Gaúcho o ponto extremo da deca-
dência de Senio até hoje.
D'entre todas as obras da série que encetou sob o
novo pseudonymo, nenhuma, quanto a mim ca-
racterisa melhor o esvaecimento das illusões ju-
venis ou viris, a sua litteraria senectude.
Acha-se o autor de tal fôrma identificado com
esle sentimento, tão regelada, despovoada e erma
conhece a sua phantasia, tão decrépita a flor dos
sonhos outr'ora vivazes e resplandecentes, — que
138 LITTERATURA BRAZILEIRA.

o appellido que adopta é o de Senio. Confessa-se


velho, quando a litleratura natal tinha o direito de
o suppôr moço ainda. Trisle destino o da pá-
tria !
Estas nossas conjecturas não são arbitrarias.
Deprehendem-se das phrases repassadas de an-
gustia, de acerba descrença que precedem a Pata.
da Gazella, e se repetem ipsis verbis no Gaúcho, e
talvez se reproduzam ainda ipsis virgulis no Til,
pomposamente annunciado e com antecedência
applaudido como um primor. Dir-se-hia qvte o au-
tor, persistindo em não desligar das obras tão
solemne e significativa confidencia, quer fazer
crer que o sopro, que acaba de lhe crestar as mais
intimas e pulchras illusões da phantasia, desceu-
lhe deveras certeiro ao coração, onde foi afogar-
lhe a fé mais viva, e derrocar-lhe de uma vez
para sempre os mais esplendidos e agigantados
castellos !
Mas se o Gaúcho exprime o ponto extremo, a
Iracema, com que me vou occupar, é, pelo con-
trario, o ponto de partida da queda do aslro,
que descamba em marcha rápida para o occaso,
quando não espargira ainda luz sufficiente para
que se presumisse ter já chegado ao zenith.
Não encontraremos, pois, aqui aquella copiosa
messe do Gaúcho, capaz de fazer, por si, a eterna
fortuna de um vindimador hábil, paciente e des-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 139

frutador. Todavia teremos já muito que respigar.


O campo promette.
Qual a razão da differença de feição e de orga-
nisação, entre os dous filhos do mesmo progeni-
lor? Explica-se bellamente : são seis annos antes
de decadência que vão do primeiro ao ultimo.
Este, posto que ataviado das lentejoilas de um •
estylo deslumbrante e fallaz, logo á primeira vista
é a mole de disformidade, que nada pôde disfar-
çar ou illudir, porque o volume é descommunal e
enorme. Com o primeiro já se não dá o mesmo; é pre-
ciso que o observador conscienciosose approxime
de perto, e estude aquelle caraòter esquisito e
todo de mera creação phantaslica. Mas não vacil-
leis,receiando acaso não achardes com que cevar
a boa critica. Pelo contrario encontrareis sem
grande custo as tortuosidades ou as depressões da
débil e pallida creatura.
Sabes, meu amigo, que a Iracema tem a preten-
ção confessa de realizar o typo da poesiabrazileira!
0 autor, na carta final dirigida a um amigo, as-
sim se exprime; «Este livro é, pois, um ensaio ou
antes amostra. Verárealisadasn'elle as minhas idéas
a respeito da litteratura nacional, achará ahi poesia
inteiramente brazileira, haurida na lingua dos sel-
vagens. »
Se a carta precedesse a obra, o leitor entendido
teria de cair das nuvens, lendo esta. Ella importa-
140 LITTERATURA BHAZILEIRA.

ria o esmagamento formal da espectativa concebida


com a pomposa promessa do autor.
Como, porém, a carta segue o volume, e si
pôde ser lida quando já o leitor deve ter formado
idéa mais ou menos aproximada d'esse poema in
anima prosaica, involuntariamente sobr'estará, e
attonito e perplexo inquirirá a si mesmo :
« — Pois é esta a poesia eminentemente brazi-
leira, offerecida como padrão de belleza e de ver-
dade? »
Não se dissipam as mil hesitações. O leitor fecha
o livro e perde-se-lhe a mente n'um mar de con-
jecturas. O que elle sente distinctamenle é que
tem o espirito cançado e oppresso, depois da lei-
tura da obra-modelo.
A poesia do selvagem deve ser simples, e aquella
é um artefacto dé múltiplas combinações.
Deve ser singela, e aquella ostenla vaidoso ap-
paralo.
Deve ter certo cunho de energia, certa expressão
de braveza, e aquella tem a feição e o requebro de
uma poesia flaccida e feminil.
Deve ser espontânea, desegual nas suas fôrmas,
e aquella é forçada, que se mede e bate a com-
passo.
Deve arrebatar, e aquella acabrunha eprostra
o espirito.
Como! Pois alli pôde estar o selvagem brazi-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 141

leiro? Em vozes taes a sua linguagem ? N'aquella


tibicza a sua masculinidade? N'aquelles frigidos os
seus fogosos sentimentos?
A Iracema foi localizada nos sertões do Ipú,
d'aquem Ibyapaba. Deixando, portanto, a savana,
parece que tive de dar um salto mortal: não é
assim, meu amigo ?
Pois nem por isso. A transição foi fácil, embora
desnatural. Os extremos tocam-se.
A impressão, que experimentei, ao entrar no
pampa, segundo os desenhos desvairados de Senio,
foi a de quem penetrasse n'um cemitério. Lembro-
me alé que Senio compara a savana com a vasta
lápida.
E sim. Surprehende-se ahi a raça humana re-
baixada á ultima degeneração animal — abysmada,
desapparecida, morta. 0 pampa é uma necrópoli.
Se, porém, das solidões do pampa retrahindo-
nos um pouco vamos ter ás solitárias florestas e
planícies dos tabajáras, o espectaculo muda, a im-
pressão é diversa, sim, mas congênita. As exten-
sissimas paragens que rios bordam e florestas
delimilam, figuram leitos de um hospital immenso,
sombrio e merencorio! Contempla-se alli seis an-
nos antes, ainda a raça do homem, victima de mor-
bidez e consumpção.
Ora entre o hospital e o oemiterio só ha um
passo:
142 LITTERATURA BRAZILEIRA.

« Bem poucos passos vão da vida á morte » diz o


poela. O que ha de notável a fazer aqui, é dar esse
passo... para traz.
E sim. Nas savanas austraes, homens e cavallos
identificam-se, confundem-se, vasam-se uns nos
outros ; nas extensões do septentrião os homens,
posto que selvagens, o que quer dizer — a personi-
ficação do arrojo, da petulância, do ardimentoda
correnteza ou do vórtice — tresandam a effemina-
ção e a molleza e não são mais do que a negação
completa da gentileza tradicional de Ararigboia ou
de Jaguarary !
Resumamos: Da raça colossal do norte fez J. de
Alencar um... enfermo; da raça esculptural do^ul
fez Senio um... cadáver! 0 que resta — dize-me
tu — d'essas immensas e originaes grandezas,
d'essas pomposas e estupendas herculeidades,
nunca assaz exaltadas, do Brazil ?
Tão intensa e verdadeira é a pena que me punge,
ao meditar um pouco sobre estes estranhos capri-
chos da sorte, que a afflicçãome vence e cae-mea
penna da mão.
SEMPRONIO.
CARTA II

Volto ainda á faina trazendo o animo contrislo.


Corno porém, o caso é de consciência, tudo soto-
ponho, e vou para diante.
Disse-le na minha precedente (se bem me lem-
bro) que na Iracema, o absurdo, o paradoxo, quer
de substancia quer de fôrma, não fere logo a vista,
como no Gaúcho. Ter-me-hiaacaso enganado?
Affigura-seme que o autor não passava ainda
enlão por cima de cerlas decencias litterarias.
Guardava as apparencias. Como que lhe fazia peso
uma cousa que se chama — opinião, que elle se
interessava antes em atlrahir para apoio seu, do
que diligenciava concitar em seu desfavor.
É que a sua reputação não estava consolidada.
Aquelle nome ainda não era um prestigio, um
oráculo, como hoje. Os créditos, que se esboça-
144 LITTERATURA BRAZILEIRA.

vam, podiam ser varridos c apagados pelo sopro


de qualquer accommettimento feliz. Não existia o
forle partido, que mais tarde apavorasse e tor-
nasse in limine impossível a manifestação de toda
critica, por mais espontânea e conscienle de sua
serventia que fosse. Por isso refreava o autor,
como podia, as petulancias da insolente phantasia.
Tenha, porém, o leitor da Iracema olhares de-
sinteressados e perscrutadores, e altenle para
eslas flores mágicas; ha de perceber o fervilhar
do verme, ameaçando corroer-lhes a juvenil co-
rolla.
A planta está em plena primavera, e no seu
matiz se adivinham pegadas do antecipado ou-
tomno. Mais tarde nos primeiros fruclos, conhece-
se quejá trabalham estragos de corrupção. Aquella
deslumbrante florescência, aquelles fulgidos po-
mos não passam de produclos de uma vegetação,
cuja seiva, uma vez em contacto com os gazes de-
letérios da trefega phantasia, principia a conta-
minar-se.
O escriptor propende para a aberração ; a enor-
midade o tenta. Queres a prova? Eil-o mais logo
a offerecer-nos na donzella do salão seleclo a
creação brutesca da amante que esbofeteia o ob-
jecto das suas affeições, e a quem só verdadeira-
mente ama depois que se sente por elle injuriada
c(aviltada, depois que d'elle apanha, como se fora
SEMPRONIO A CINCINNATO. 145

vil escrava— é a Diva; ou então um pé nojento,


abominável, immundo, servindo de protogonisla
da obra, causando horror e asco ao pio leitor, e
que dirias uma baixa miniatura excogitada do
Quasimodo — é a Pata da gazella; ou então o
hippocentauro chalo, informe, indecoroso, repul-
sivo, como typo de costumes brazilios — e temos
finalmente o Gaúcho.
Eis-nos na actualidade. 0 escriptor lem chegado
á phase mais coruscante e mais elevada do seu
império de vaidade e anomalia; isto é, temattin-
gido o período decisivo da mais formal deca-
dência.
É o chefe da litteratura brazileira, um gemo
talvez, porque crea a torto e a direito, seja o que
fôr, não imporia o que ; crea visões; crea dis-
formidades ; crea uma linguagem nova; crea vo-
cábulos já creados, velhos, encanecidos ! Quando
eu leio que no século XVII a primeira condição do
candidato a gênio consistia em quebrar copos na
taberna do deboche; que no século XVI o homem
de gênio esgrimia maravilhosamente, embriaga-
va-se todos os dias, e sujava de tinta e de vinho
i: paginas do seu Pindaro ; quando leio que Mon*
aigne, Calderon, calmo e sereno, prazenteiro e
modesto, Cervantes ingênuo e natural, Shakes-
peare, que não o era menos, não realisava, ne-
nhum d'elles, o typo do gênio, e a « todos se
9
146 L1TTERATURA BRAZILEIRA.

fechavam ultrajantemenle as portas da gloria »


comprehendo então que se possa no século XIX
ser tido como tal, por pintar-se a natureza ina-
nimada com a feição da imbecilidade ou da lou-
cura ; por fazer-se de grandiosas e giganleas raças
vis caricaturas ou repugnantes monstros; por
converter-se a lingua mais opulenta n'uma sac-
cola de pedinte!
Estamos em pleno império dos Marc Lasphyse,
dos Dubartas, dos Jodelle « triste innovador, ado-
rado do seu tempo. » Com este Jodelle innovador e
adorado do seu tempo, bem se vae parecendo J. de
Alencar.
Hoje em dia entre nós, o candidato a gênio deve
fazer Versos escabrosos e horripilantes, comédias
hybridas, discursos lumidos, anasarcos, roman-
ces loucos. O que se exige de mais peso, é certo
apparente arranjo na estruclura para illudir os
incautos, e poder, impune e liberrima, cabecear á
vontade a idéa mais paradoxal. Os romances, re-
passados de sabor local, adubados do mais fino
sal attico, sensatos, naturaes, moralisadores, que
são uma fiel photographia da nossa sociedade,
esses com que cada dia nos dota a penna habilis-
sima de Macedo, não são da iguaria, que mais
gratifica o paladar. E o Brazil tem um patriarcha
e uma litteratura ! 0 que o Brazil infelizmente
tem é um baixo império nas lettras. Isto sim.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 147

Admira-se, exalta-se a imaginação de J. de Alen-


car. Admirável é, não ha duvida; agora exaltavel,
isso é que não.
Deve-se festejar e applaudir a imaginação que
reproduz com encantos novos e novas vivacidades
os grupos, os accidentes, as attitudes, as scenas
da natureza; que faz esses grupos interessantes,
esses accidentes pittorescos, essas attitudes gra-
ciosas, essas scenas animadas e felizes. Isto é ima-
ginar, no uso rigoroso e didactico da expressão.
D'ahi vem que, quanto mais se apropria o escrip-
tor dos matizes variados da creação, ou das sen-
sações e phenomenos da vida, e tanto mais fiel-
mente os retrata ou reproduz, impregnados do
cunho da • sua pessoal idealisação, tanto mais se
diz ser elle original, tanto mais gênio.
« Abusa-se da elasticidade de linguagem,
quando se ousa falar de intelligencias creadoras.
Em definitiva não ha creação; reproduzir, imitar,
eis quanto nos cabe. Se Homero, Cervanles,
Ariosto, Byron, tivessem vivido encerrados n'um
ergastulo, o que teriam podido imaginar? Que
creação teriam dado ao mundo? » Logo, a natu-
reza em primeiro logar, e depois; complexa e com-
pleta observação — eis os dois elementos, as duas
possantes azas do gênio.
Ê conseqüente com estes principies que o-es-
criptor define a memória na esphera da esthe-
148 LITTERATURA BRAZILEIRA.

tica « — thesouro de lembranças, cuja indigencia


importa o que se chama o idiotismo, cuja confusão
dá em resultado a extravagância, cuja riqueza e
plenitude constituem o gênio. »
Não sou relógio de repetição, como dizes tu;
mas nunca é ocioso adduzir certas considerações
adequadas ao assumpto. Perdoa, pois, a diffusão.
Paulo e Virgínia é um monumento na liltera-
tura, justamente porque o theatro descriplo, c
amor sonhado, a ingenuidade, a pureza, o devo-
tamento dos typos estão na própria natureza,
dentro das suas amplíssimas raias e múltiplas
possibilidades.
Atala é um primor, justamente porque os senti-
mentos, os suavíssimos entrechos, a paixão plá-
cida e morna, as manhãs e as tardes bravias e
bellissimas, a expressão particular dos carac-
teres, a feição geral do conjuncto, tudo é condigno
e próprio do mundo e das circumstancias do as-
sumpto, que faz o poema.
O Guarany, de J. de Alencar, agrada algum
lanto e interessa ao leitor, justamente porque as
descripções parecem brazileiras. A natureza alli
não pecca por tão demasiado artificial, como no
Gaúcho. O leitor acha no indio modos, brio, im-
perterrito valor, sagacidades e recursos vários,
dedicação sem limites, que não destoam de uma
raça, que as florestas embalaram no seu berço
SEMPRONIO A CINCINNATO. 149

liberrimo de trepadeiras e de folhagens, que os


calores do equinoccio retingiram, e a cuja tempera
os riscos das vicissiludes, as emboscadas do ini-
migo ou da fera, as conspirações da natureza
deram a tensão mais apurada e ampla.
Pery parece-se com o índio do Brazil. Bessum-
bram do seu lodo, que é o ponto commum entre
duas nacionalidades, da mesma sorle que a Evan-
gelina de Longfellow, energia barbara e affectos,
digamo-lo assim, cultos, que encantam. Selvagem,
realisa o prodígio; adventicio de uma sociedade
civilisada, pratica virtudes limadas.
Nesse tempo o demônio da vaidade não tentara
ainda J. de Alencar. Elle não pretendia então,
(pelo que parece) conquislar nomeada senão como
escriptor de cunho nacional, e não a de gênio
creador, no sentido em que alguns hoje o conside-
ram e que é licito ajuizar pelas suas ultimas
obras. Tinha, seguramente, por muito honroso e
acertado vollar-se para o espectaculo grandioso da
natureza, e pedir-lhe alguns traços-de seus pai-
néis de eterna poesia, alguns ligeiros matizes da
sua pomposa e perenne efflorescência.
Eis que uma nuvem de desgraça empana esse
nome e a face resplandecente da litteratura natal,
que espargira tão auspiciosos brilhos. O escriptor,
longe de cultivar a mina, que a natureza tornara
capaz de enriquecer um mundo, longe de exerci-
150 LITTERATURA BRAZILEIRA.

tar-se e aprimorar-se no gênero, despreza-o, talvez


por consideral-o sediço ou commum ?
Franklin, Washington, Jefferson, Governador
Morris, Quincy-Adams, teem medo da imaginação
« dom magnífico e perigoso. » « Em face das ver-
des savanas, das florestas virgens, dos lagos que
são mares, dos rios cujas margens escapam á
vista, as másculas virtudes dos beroes puritanos
engrandeceram, e sua imaginação permaneceu
muda. » J. de Alencar, porém, espirito então
ainda novo, ainda não feito, e quiçá inexperiente,
dá costas á mansão virgem, que nada pôde egualar
na sua majestade esplendorosa, e deixa-se arrastar
para o ponto procelloso — indicio certo de pró-
ximo e cabal naufrágio — com que lhe acena o
clarão carregado da turbida phantasia. Sua pri-
mavera foi fugaz. O Guarany não tem irmão. As
faculdades creadoras estão embotadas e corrompi-
das ; José de Alencar está Senio.
Quando correu que elle tinha em mãos uma
obra destinada a dar o padrão da poesia verdadei-
ramente brazileira , os leitores, que o haviam
apreciado no Guarany, tiveram de sentir grata
commoção.
Pareceu-lhes que o typo não estaria muito
longe; só, sim, despojado, estreme de toda mescla
de elemento estrangeiro, a coisa realisaria o puro
ideal da poesia nativa. A decepção foi tão esma-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 151

gadora, quando appareceu a obra, como lisonjeira


tinha sido a espectativa alimentada durante a deses-
peradora gestação.
Se por litteratura nacional se deve entender
aquella em que « se reflecte o caracter de um
povo, que dá vida ás suas tradições e crenças, a
harpa fremente em cujas cordas geme, como um
sopro, a'alma de uma nação, com todas as dores
e júbilos, que, alravez dos séculos, a foram retem-
perando ; » se « cada povo tem suas paixões como
cada indivíduo, e essas paixões constituem a alma
de cada poesia; » parece de bom aviso, que o can-
didato a realisador do typo da litteratura propria-
mente brazileira, quando já não era possível estu-
dar no vivo as paixões de uma raça quasi
desapparecida, ou, pelo menos, decaída da sua
primitiva grandeza, se voltasse para a historia e
para o estudo dos mestres, feito sobre o índio
colonial, e d'ahi apanhasse a expressão complexa
e fiel d'este, seus costumes, suas inclinações, sua
poesia emíim.
Já havia alguns modelos realisados sobre o
thema indígena. Santa Bita Durão , Basilio da
Gama, Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães,
tinham quasi todos batido nas mesmas sendas.
Não, não podiam haver tomado»a nuvem por Juno
esses illustres engenhos, alguns dos quaes tiveram
occasião de estudar o índio em original. Podiam
152 LITTERATURA BRAZILEIRA.

falhar ou desvairar-se os pormenores, nunca po-


rém a essência, de modo que devesse sercondem-
nadaa velha escola como apocripha.
Dir-se-hia, pois, com justo fundamento que a
escola estava inaugurada, a incógnita descoberta,
resolvido o problema. Fora licito acreditar que
não restava n'este ponto, a quem ambicionasse
colher novos laureis para si, e proporcionar novo
realce á pátria, mais do que alargar esses cami-
nhos, afastar o mais possível esses horisontes,
para que surgisse na máxima plenitude a inexhau-
rivel mansão de encantos. Não é o que faz J. de
Alencar.
Principia, contrapondo-se aos mais autorisados
meslres. Sem nunca haver lido occasião de estu-
dar efficazmente o elemento de que se presume
conhecedor, nutre a vaidade de suppôr que achou
o caracter d'este na sua mesa de estudo e sem
duvida mediante os subsídios, devidos aos mesmos
escriptores, contra os quaes rompe.
« O conhecimento da lingua indígena é o me-
lhor critério para a nacionalidade da litteratura,»
diz-nos elle na sua carta final. Ora, como ha de
conhecer essa lingua quem não penetrou nas tri-
bus, quem não se achou em contacto com o povo,
quem a não estudou nos tempos primevos, porque
era impossível fazel-o, nem mesmo nos tempos
actuaes em que já o verdadeiro caracter indígena
SEMPRONIO A CINCINNATO. 155

decahiu e se corrompeu ? Ha de forçosamente es-


tudal-a nas obras e diccionarios que nos deixaram
os nossos predecessores. Pois bem : elle acha que
« de quantas producções se publicaram sobre o
thema indígena, nenhuma realisava a poesia na-
cional ; » e quanto aos diccionarios é o primeiro a
tachal-os de « imperfeitos e espúrios. » Ao pró-
prio G. Dias nega o condão de realisador da poesia
americana. Diga-nos quem puder e quizer : onde
foi J. de Alencar buscar esse molde de poesia
selvagem, fora dos diccionarios, que « são espú-
rios, w fora das producções publicadas, que « não
a realisam, » fora dos modelos dos mestres que
«só exprimem idéas próprias do homem eivili-
sado, e que não é verosimil tivesse no estado de
natureza? » No seu gabinete de improvisador.
Ah! justamente por não havel-o encontrado em
parte nenhuma foi que elle adoptou e nos ofiereceu
como o verdadeiro padrão essa poesia pedantesca
e diffusa que se esparrama nas paginas da sua
Iracema.
Meu amigo, estou-te escrevendo estas cartas
por honra da firma. Se já m'o promettêra a mim
mesmo, e se ultimamente t'o prometti também a
ti... o promettido é devido. Mas, á fé, que estudos
em que só se teem de apreciar desaires e não su-
blimidades e formosuras, cançam afinal, e não
podem deixar de levará monotonia.
9.
154 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Quando rabisquei, ha mezes, as minhas cartas


sobre o Gaúcho estava com disposição para a coisa.
Também era a primeira ceifa, e em que campo! Era
dar para a esquerda e para a direita, e cair espiga.
Mas também pelo muito que se vindimou, sobre-
veiu o tédio para a repetição das operações.
Se aquellas cartas tivessem sido dadas á im-
prensa em tempo, já a analyse da Iracema, da Diva
e da Pata da Gazella estariam feitas , porque ,
aproveitado o bom humor do momento, um só e
mesmo fôlego abrangera tudo.
Mas foi o contrario. Quando eu esperava" rece-
bel-as publicadas, chegavam-me noticias, dando-
me formal desengano. Lá ficaram por mezes ; já
não me lembrava d'ellas, e tinha- as até por extra-
viadas (que talvez fosse o melhor).
Eis que vem a questão do elemento servil, o pa-
recer da commissão da câmara dos deputados, os
discursos parlamentares de J. de Alencar, as tuas
magníficas cartas a Fabricio, e finalmente as
Questões do Dia.
Ora, durante todo esse tempo, estive eu cui-
dando dos meus verdadeiros interesses (que isto de
lettras, entre nós, não dá para mandar ao açou-
gue) como fossem algumas questões forenses, al-
gumas garatujas para gazetas políticas, etc. Nem
me lembrava mais de Senio, senão como um politi-
co, eeste velho, descrente como elle mesmo se diz.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 155

A inspiração do momento foi-se. Veiu depois a


doença, que me forçou a retirar-me para o campo,
d'onde, quando menos o esperava eu, vejo ressus-
citarem no teu periódico as minhas defuntissimas
cartas. -
Foi quando tive de voltar á cidade, e agora já
não pareceria de bem que eu deixasse de cumprir
a palavra , que imprudentemente empenhei ,
a pezar de não ter « primeiro calculado das forças
mínimas para empreza tão grande. »
, Pois bem : peço-te permissão para tomar fôlego
e continuar na seguinte. Até lá.
Teu amigo e admirado/,

SEMPRONIO.
CARTA III

A Iracema teve por fim desempenhar o com-


promisso que o autor commetteu a imprudência
(palavras suas e não disse mal) de contrahir,
quando escreveu algumas cartas sobre a Confede-
ração dos Tamoyos.
Ora, a Confederação dos Tamoyos pretende as
honras não só de poema, porém de poema épico.
Sinto não ter esta obra, que li ha tempos, para
agora averiguar a minha asserção. Quer-me, to-
davia, parecer que não estou em equivoco.
J. de Alencar, criticando-a, disse que « as tra-
dições dos indígenas davam matéria para um
grande poema, que talvez um dia alguém apre-
sentasse sem ruído nem apparato. » Quando che-
gará esse dia?
Suppozeram que o autor se referia a si, e per-
158 LITTERATURA BRAZILEIRA.

guntaram-lhe varias pessoas por elle'. Tanto bas-


tou para que se mettesse em « brios litterarios,
e começasse a obra com tal vigor que de um fôlego
a levou ao quarto canto? »
(Vid. a carta final, na pag. 193.)
Depois, por cerlas considerações, que não vêm
ao caso recordar, foi o autor levado a dar « ura
ensaio das suas idéas sobre a poesia verdadeira*
mente brazileira in anima prosaica. » Tal a Ira-
cema.
Pergunta-se : o que é licito conjecturar em face
de todas estas circumstancias e precedentes, a
saber — depois de uma critica feita a um poema
candidato a épico, depois de uma solemne
promessa de apresentação de um grande poema,
por julgar o critico que aquelle não realisava a
verdadeira poesia brazileira, e depois finalmente
da amostra em prosa d'essa promettida e pergun-
tada obra? Seguramente que esta amostra pre-
tende offerecer ao mundo não só o typo d'aquella
poesia, senão também o de um poema épico em
contraposição ao que foi julgado incapaz de.satis-
fazer aquelle desideratum. Com effeito !
Ha um grande nome na litteratura hespanhola
— Don Juan Ruiz de Alarcon y Mendoza, que um
autor colloca acima de Moratin, de Montalvan,e
immediatamente depois de Lopez de Vega e de
Calderon.
SEMPRONIO, A CINCINNATO. 159

Era elle «infernalmente orgulhoso » na phrase


do crítico a quem peço estas noticias. Em um dos
seus pVefacios se leem'eslas memoráveis palavras
allusivas ao publico (ai volgo): « Canalha, animal
feroz, dirijo-me a ti; nada digo aos gentis-homens,
que me tratam melhor do que desejo ; entrego-
te as minhas peças ; faze d'ellas o que fazes das
boas coisas — sê injusto e estúpido, como é teu
costume. Elias te encaram e te affrontam; seu
desprezo para comtigo é soberano. Se as achares
ruins, tanto melhor—é que são boas. Se te agrada-
rem, tanto pêior — é que para nada prestam.
Paga-as, e folgarei de te haver custado alguma
coisa. »
J. de Alencar dá poemas e romances de costumes,
sem ter estudado a natureza nem os povos, e con-
demnando além d'isso os estudos dos mestres e
os diccionarios existentes, que chama « espúrios. »
Essas obras, elle as dá do fundo do seu gabinete,
assim a modo de quem expede avisos para um
império inteiro. Espécies de encyclicas litterárias,
trazem o cunho da autoridade dogmática e in-
fallivel : são matéria de fé. Houve de certo im-
mensa modéstia, quando nos disse que a Iracema
era uma experiência ou amostra. É que foi isso
ha seis annos antes a esta parte, e têmpora mu-
tantur. Hoje, com a sem ceremonia de quem co-
nhece o terreno onde pisa, suas palavras para com
160 LITTERATURA BRAZILEIRA.

o publico seriam talvez estas : Canalha imbecil,


corja de idiotas ou de boçaes, que só tens tido
um lans perennis para os meus caprichos, a minha
fatuidade e as minhas aberrações, toma lá esta...
Iliada brazileira. Os que conhecem os meus erros
e defeitos tratam-me melhor do que seria para
esperar. Graças ao seu silencio, filho do pouco
caso ou da cobardia, a minha reputação pânica
transpôz já os umbraes da posteridade, e perde o
tempo ou é parvo quem tenlar apear-me do meu
pedestal. Paga tu a obra, e elogia-a por toda a
parte, como tem sido teu costume. »
Haveria n'estas amabilidades alguma coisa
parecida com as de Alarcon, mas só n'isso pareceria
com este o J. de Alencar, porque o autor hespa-
nhol era de tanto gênio, que Corneille vasou o seu
Menteur no molde da Verdad Suspechosa, obra
que denomina « a maravilha do lheatro, e para á
qual não se acha, como elle diz, nada comparável,
quer entre os antigos quer entre os modernos.»
Infelizmente as coisas são muito diversas, em re-
lação ao caso actual. 0 Brazil de hoje está tão
distante da Hespanha do século XVI, e do século
XVII, quando forneciaassumptos á Itália, á França,
á Inglaterra, a Corneille e a Shakspeare! 0 nosso
compatriota, posto que muito illustre e respei-
tável, está tão afastado physica, chronologica e
litlerariamente de Alarcon ! E depois accresce :
SEMPRONIO A CINCINNATO. 161
J. de Alencar não teria razão para se queixar do
publico : só Alarcon — perspicaz e profundo —
desconfiaria d'esse perenne acolhimento ás suas
obras. Desçamos ao nosso assumpto.
Tu, que és mestre e entendes tão bem da coisa
como nem ouso pretendel-o eu, achas que a poesia
brazileira tenha encontrado o seu ideal na Ira-
cema9
A poesia de um povo, que fazia das guerras sua
principal, senão única, fonte de paixões, não podia
ter essa expressão de flaccidez e de languor, que
faz a feição completada ob/a citada.
Anhelos tumultuosos, affectos desenfreados,
prazeres lubricos , sensações intensas e bravías,
costumam traduzir-se em linguagem de outra pos-
sança ; isto é o que nos parece dizerem o senso
critico e o estudo das primitividades de todos os
povos do mundo. O poeta, interprete d'essa poesia,
não tem mais que apanhar o colorido ardente, e
com elle velar as impudicicias ou as fealdades da
natureza brutal.
Cumpre mais accrescentar que a fôrma de tal
poesia, particularmente bebida na fonte grosseira
dos sentidos, devia tender mais ao plástico, ao
material, do que a uma idealisação que de modo
nenhum cabe em similhante natureza. Um moderno
archeologo e sábio inglez, Lubbock, estudando os
costumes dos aborígenes da America do Norte,
162 LITTERATURA BRAZILEIRA.
diz que o « estylo da sua musica é magro e sem
arte. » Sabe-se que a monotonia faz também um
característico das festas, das danças e dos cantos
dos selvagens em geral; e com relação aos do
Brazil, é fácil deprehender do que dizem os com-
petentes, que lambem era traço distinctivo da sua
linguagem certo cunho de varonilidade, reper-
cussão do estylo com que celebravam suas paixões
tumultuarias.
Só duas fontes vejo onde o poeta achasse para
beber o caracter da poesia brazileira, a saber:
specime7is na própria lingua vernácula, ou, na
falta d'estes, o dizer dos historiadores. Ora, a pri-
meira é sabido que nos falta; não só os índios não
escreviam, mas também quem o podia fazer « não
se deu ao trabalho de recolher ou verter em lingua
portugueza os cânticos dos índios » como diz um
litterato contemporâneo. Besta, portanto, a segun-
da, que, longe de autorisar, condemnaa pertensa
escola, inaugurada por J. de Alencar.
Em verdade, basta uma interprelação aproxi-
mada da historia para vermos a medida d'essa
poesia. Um povo dado principalmente ás lutas
violentas, d'onde derivava os seus mais assíduos
passatempos e labores não havia de sêl-a frouxa e
débil, quando é certo que a poesia é o reflexo
mais animado, firme e substancial das paixões de
um povo.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 163
Mas o que nos dizem os historiadores? Veja-
mos.
Simão de Vasconcellos diz, — tratando dos can-
tos : « Cantam no mesmo tom arengas de suas
valentias efeitos de guerra com taes assobios, pal-
mas e pateadas que atroam os valles. »
Ferdinand Denis diz, occupando-secom omesmo
assumpto : « Cantavam alternadamente as suas
façanhas em tom grave e compassado. » E refe-
rindo-se a uma certa dansa accrescenta que « do
seio da multidão se levantava um coro harmo-
nioso, que celebrava a gloria dos antepassados e
incitava os bravos a novos feitos de honra. »
Verdade seja que G. Dias nos observa : « Entre
os Tupys era tudo musica e poesia — o nasci-
mento e a morte — a guerra e as festas — o amor
e a religião — a linguagem e a vida — era tudo
poesia... Na sua linguagem harmoniosa e quasi
toda labial, travada e intercalada de vogaes —
imitavam o ciciar da brisa a correr sobre as ondas
espalhadas do oceano, a agitar levemente a igára
derivando á tona d'agua, e a enredar-se pelas
folhas dos bosques, que aromatizam o littoral. »
Para apoiar esta opinião declina a de diversos
autorisados escriptores, como o padre Figueira,
Laet, Vasconcellos, Du Montei, os quaes todos
são acordes em que a lingua geral era muito rica,
suave e elegante.
164 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Devo entretanto produzir duas rápidas obser-
vações.
Primeiramente, historiadores também ha, não
menos abalisados, que, no dizer de D'0rbigny,
suppõem que « quasi todas as linguas americanas
eram pouco extensas, grosseiras, e careciam ab-
solutamente de termos para exprimir um pensa-
mento, uma idéa delicada, ou mesmo a paixão.»
Se coubesse nos estreitos limites de uma carta,
escripta de relance, algum desinvolvimento sobre
matéria sem duvida transcendente, eu reproduzi-
ria com Lubbock, Forster, Ellis, Cook, Kolben,
Thunberg, Harris e muitos outros, factos e con-
siderações que avigoram esta opinião.
Em segundo logar direi que, mesmo admittida
a opinião esposada por G. Dias e pelos outros cita-
dos historiadores, essa suavidade, opulencia e
elegância, longe de se contraporem á these, que
resalta da historia, mais a accentuam e corrobo-
ram. Quanto mais opulenta e elegante fôr a lingua,
tanto mais em condições de ostentar fidalgura e
gentileza, quer de fôrma, quer de essência. E tanto
assim é que o próprio G. Dias não vasou as suas
poesias americanas em outro molde.
Se dos cantos passamos ás dansas, o que ve-
mos? Refere o próprio Dias : « Essas mesmas
dansas não eram mero exercício de força ou simples
distracção. Simulavam (os guerreiros) nos passos
SEMPRONIO A CINCINNATO. 165

choreographicos, já o caçador em altitude


virileameaçadora.... já, mais enérgicos, imitavam
combates de homem contra homem, em que se
succediam as palavras aos golpes, etc. » Confir-
mando esta affirmativa , ajunta F. Denis : « Era
antes (a mais solemne das dansas) uma ceremonia
marcial que uma dansa propriamente dita. »
Eis, pois, ainda aqui caracterisada a poesia
selvagem pela energia e fortaleza, que embutiam,
digamol-o assim, na linguagem, nos gestos, nas
acções, as diversas fôrmas, sempre elevadas, de
decantar assumptos grandiloquos, como as bata-
lhas, os convívios em honra das barbaras proezas,
os exercícios e noviciados bellicos.
Penso, pois, assim : ou a poesia tivesse de
exprimir motivos de essência épicos — as lutas
giganteas, as glorias marciaes; ou motivos melo-
dramáticos, os prazeres eróticos, as magnificen-
cias da natureza enanimada, os encantos da vida
florestal; ou de referir-se ás suas praticas e cren-
ças religiosas — em qualquer d'estes casos ser
lhe-hia impossível abstrahir do cunho de vivaci-
dade, do colorido vigoroso, próprio do sentimenlo
universal de braveza e do modo geral de dizer que
especialmente os assignalava e que era como as
tintas predominantes de todos os seus phenome-
nos sociaes e moraes.
Pensando assim estou de acordo com os dois
166 LITTERATURA BRAZILEIRA.
primitivos patriarchas da poesia brazilica, Basilo
da Gama e Santa Rita Durão, e também com os
grandiosos engenhos do Dias e do Magalhães, que
nos tempos actuaes tamanho impulso deram á
escola nascente, apezar de ser de data colonial.
O Dias foi infatigavel, verdadeiro propagador d'essa
escola, que cultivou como o sacerdote mais es-
trenuo , autorisado e feliz. É elle indisputavel-
menfe o nosso primeiro poeta, e difficilmente terá
um successor que se lhe aproxime, se a ingrata
sorte arrebatar cedo á pátria o estro mágico de Fa-
gundes Varella, que, no meu fracoentender, é o vate
mais genuino, opulento e mavioso da moderna
pleiade nacional.
Ora, se pego agora mesmo do Uruguay e o abro
ao acaso, o que encontro ? É o ponto em que o
índio, Cacambo, se apresenta ao general como
parlamentario* Ouçamol-o.

<t Ú general famoso>


« tú tens á vista quanta gente bebe
« do soberbo Uruguay a esquerda iriargem.
« Rem que os nossos avós fossem despojo
« da perfídia de Europa, e d'aqui mesmo
« co' Os não vingados ossos dos parentes
« se vejam branquejar ao longe os vallés,
« eu, desarmado e só, buscar-te venho.

« As campinas que vês, e a nossa terra


sem o nosso suor e os nossos braços
de que serve ao teu rei? A qui não temos
SEMPRONIO A CINCINNATO. rô7
« nem altas minas, nem os caudalosos
« rios de areias de oiro.

« Pobres choupanas, e algodões lecidos,


« e o arco, e as settas, e as vistosas pennas
« são as nossas phantastiças riquezas.
i

« Que mais queres de nós ? Não nos obrigues


« a resistir-te em campo aberto. Pôde
« custar-te muito sangue o dar um passo;
« não queiras ver se cortam nossas frechas;
« vê que o nome dos reis não nos assusta. »

Mais já não quero este assumpto que podem


tachar de forte em si mesmo, e vou ter a outro de
diversa ordem — o amor. Abro o Caramurú, e não
éjá um guerreiro, porém sim uma simples mu-
lher quem fala, Paraguassú, promettendo a Diogo
Alvares baptisar-se e ser sua esposa :

« Esposo —- a bella diz — teü nome ignoro,


« mas não teu coração-, que no meu peito,
« desde o momento em que te vi, que o adoro i
« não sei se era amor já, se era respeito;
« mas sei do que então vi, do que hoje exploro,
« que de dois corações um só foi feito :
« quero o baptismo teu, quero a tua egreja
« meu povo seja o teu, teu Deos meu seja.

« Ter-me-has, caro, ter me-has sempre a teu lado,


« vigia lua, se te occupa o somno:
« armada sairei, vendo-te armado;
« tão fiel nas prisões, como n'um throno.
a Outrem não temas que me seja amado :
168 LITTERATURA BRAZILEIRA.
« lu só serás senhor, tu só meu dono ; »
« Tanto lhe diz Diogo, e ambos juraram ;
« e em fé do juramento as mãos tocaram.»

Pois bem n'esse mesmo, assumpto não lia


frouxidão nem molleza na expressão ; pelo con-
trario : a linguagem do affecto não se deturpa,
não se abastarda, não despe, nos lábios da moça,
da selvagem louçania sempre, em brio e garbo,
na altura condigna.
Becorro ao Dias, não no lampejante Canto do
guerreiro, não no Y-Juca-Pyrama modelo de
pundonor e de ufania barbara, nem no Tabyra
eminentemente marcial e athletico, mas n'uma
poesia de insinuante sentimentalismo e amor — o
Canto do índio. Tu bem sabes com que pujança de
idéa e galhardia de linguagem o poeta exalta em
' notas plangentes o amor grandioso do selvícola.
Ouve:
« Õ virgem, virgem dos christãos formosa,
« porque eu te visse assim, como te via,
« calcara agros espinhos sem queixar-me,
que antes me dera por feliz de ver-'.e.
O tacápe fatal em terra estranha
sobre mim sem temor veria erguido ;
dessem-me a mim somente ver teu rosto
nas águas, como a lua, relralado
Passara a vida inteira a contemplar-le,
sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
sem que o som do boré que incita á guerra
me iuíiltrasse o valor que me has roubado..
SEMPRONIO A CINCINNATO. 169
« Escuta, ó virgem dos christãos formosa.
« Odeio tanto aos teus, como te adoro;
« mas queiras tu ser minha, que eu prometto
« vencer por teu amor meu ódio antigo,
^ « trocar a maça do poder por ferros,
« e ser, por te gozar, escravo d'elles. »

Esta magnificência, este primor comprehendo


eu como o echo da paixão sumptuosa do selva
gem. Esta, sim, se não foi, presume-se que po-
deria ser a verdadeira poesja brazileira. As sensa-
ções e as idéas, os estímulos altivos como o
coração , que se expandia nas lutas eternas,
que ás eternas solidões ainda mais solemnes e
majestosas faziam, teemn'estas suavíssimas, sem
deixarem de ser seguras e másculas vozes, um
echo fiel e íntimo, que vae coando na alma. O
selvagem tupy, víctima da paixão como soe brotar
em ânimos de tal tempera, ou fala assim, ou não
fala.
Quem ha ahi que não conheça a poesia intitu-
lada — Leito de folhas verdes — do mesmo inspi-
rado poeta ? Aquella viração da noite, aquelle ru-
morejar do bosque, a mangueira altiva, a flor do
tamarindo, o doce aroma do bogari, valles e
montes, lago e lerra, a arasoya, a brisa da manhã,
tudo nos fala da natureza virgem, e dos « rendez-
vous no malto, tão simples e prosaicos em si mes-
mos, mas que não obstante deram assumpto a
uma das mais bellas e graciosas composições do
10
170 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Sr. G. Dias, no dizer de J. F. Lisboa. O poeta tira
da paleta onde guarda as mimosas cores da sua
elegante phantasia , as mais apropriadas ao de-
senho, e combinand'o-as com as amenissimas galas
da natureza, entretece o sendal de variegadas illu-
sões com que encobre o fundo material, e quiçá
abjecto do motivo. O leitor haure, como um de-
leite, esses esplendidos versos, sabe o facto que
elles decantam, facto em si mesmo simples e pro-
saico, e nem uma palavra sequer lhe vem estre-
mecer a placidez d'esse veo de decência e de
poesia, que se diria cobrir o puro leito da inno-
cencia. E comtudo não ha exageração, o mínimo
desvaire no quadro. As cores são vivazes, a pin-
tura é verosimil.
O contrario se dá na Iracema. 0 estylo em geral
pecca por inchado, por alambicado. As imagens
succedem-se, atropellam-se. Ha um esbanjamento
de imaginação, que, desde a primeira vista, se nota
que está muito longe de aproximar-se da ver*
dade; para que os personagens podessem falar
assim, n'essa perenne figura, fora preciso suppôr
n'elles o talento, e talvez a cultura do próprio
autor, tão custoso e trabalhado se conhece ter
sido aquelle arranjo oslentoso. De repente,
porém, o que succede, para ainda mais desa-
bonar, o pincel do artista? 0 artefacto de rou-
pagens supérfluas contrahe-se, e desnuda em
SEMPRONIO A CINCINNATO. 171
plena luz a mais deslavada materialidade. Exem-
plo:
Abro o poema na pag. 71. Martim tem passado
a primeira noite com a índia na cabana de Araken.
Apezar de ter o moço « enchido sua alma com o '
nomee a veneração do seu Deus-Christo ! Christo!»
(como diz o autor) o seu Deus não o preservou
de commetter a vilania (quea foi) na « cabanahos-
pedeira. »
Depois de ter o autor contado o tal infortúnio
da moça, que da noite para o dia deixara de ser
digna de guardar os sonhos da jurema e de merecer
os affectos e as considerações do seu velho pae,
com que chave de oiro achas que se sairia o au-
tor para fechar este primoroso capitulo ? Ouve:
« As águas do rio depuraram o corpo casto da
recente esposa ! » (São textuaes.)
Considera, meu amigo, que o autor despendeu
uma nota inteira, a pag. 169, em justificar a de-
nominação de —Acaraú — que deu ao rio —Aca-
racú — dizendo ter « usado alli da liberdade ho-
raciana, com o fim de evitar em uma obra littera-
ria, obra de gosto e artística, um som áspero e
ingrato.
Que contradicção flagrante é esta?! No trecho
citado, não ha só a aspereza e ingratidão de um
som; ha um periodo inteiro, offerecendo ao espi-
rito do leitor uma idéa vil, expressa por palavras
172 LITTERATURA BRAZILEIRA.
indecentes: depois da baixeza, a índia foi tomar
banho no rio para ficar limpa.
Como isso é de gosto e de arte! E sobretudo,
que fina e edificante poesia !

Teu amigo certo,

SEMPRONIO.
CARTA VII

CINCINNATO A SEMPRONIO

Rio, 15 de Dezembro de 1871.

Talentoso amigo1
e
Onde estávamos nós ? Ah, já me lembro: no Til. Admirá-
mos os mil modos interessantes empregados para activar a
venda do livro monumental, tão superior a qualquer outra
producção como o til o é ás palavras a que se superpõe.

É mania d'esta penna a creação. Tudo para elle sae do


berço, do nada, para só viver quando bafejado por seu divino
sopro. Caracol da maledicencia, baba quanto o precedeu; e
assim como, na Relação do inferno, Rhadamanto sentenciava
feitos, assim chama á sua barra os clássicos, os puros, os
escriptores, os romancistas, os jurisconsultos, os estadistas,
brandindo sobre todos a ferula caricata.
Já nos proclamou que .havia de ensinar o que era a poesia
brazileira, a política brazileira, a jurisprudência brazileira ;
agora diz que nos ensina o que seja o romance brazileiro.
10.
174 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Conquistou o universal monopólio de todas as especialida-
des ! . . . . Teem-se visto d'estas aberrações : contam que o
poeta Accio, de tão acanhadas dimensões que orçava por pig-
meu, elevou, no templo das musas, a sua estatua, represen-
tando-o gigante, e dedicou-a á Eternidade.
Não é possivel levar a maior evidencia que tu o tens feito,
que nada ha nos romances brazileiros do Sr. Alencar que re-
presente uma litteratura particular d'estas regiões. 0 pensa-
mento de todas as obras de imaginação, nem tem pátria nem
parallelo ou meridiano. Pode-se sentir com mais ou menos
energia, ser-se mais ou- menos impressionado pela natureza
ambiente, proceder de modo diverso segundo a educação ou
grau de civilisação; mas affigura-se-me que o homem não
varia tanto como se affirma, e que o coração dos trópicos
não tem auriculos nem \ entriculos differentes do das regiões
polares. E todavia, concordo em que a poesia de cada zona
possa offerecer matéria prima especial aos respectivos pro-
ductores, encanto especial aos respectivos-consummidores.
Applicando esta regra ao Rrazil, em que deverá consistir a
poesia local, a merecedora de menção, a que se não limite a
uma caricatura ignóbil, a que commova, instrua e arrebate,
a digna dos applausos dos entendidos e das turbas?
Parece-me que essa especialidade lem de compôr-se de
muitos elementos: — a religião dosincolas, com todos os seus
dogmas, liturgias, bellezas, usos e superstições — ss tra-
dições d'elles, com suas historias, lendas e mylhos — a sua
poesia nativa, com seus arrojos ou singelezas, com suas har-
monias ou discordancias — os seus costumes, com suas ge-
nerosidades ou baixezas, dedicações ou vilanias — as suas
Índoles, com as competentes virtudes ou vícios, dignidade ou
servilismo — a sua natureza, com as peculiaridades d'ella,
com os seus phenomenos, as suas grandezas, os seus rios-
mares, catadupas, florestas monumenlaes, e o seu admirável
reino animal, e as infindas opulencias que encerra o seio
d'et>te magnífico torrão. Finalmente cumpre applicar a obser-
vação mais attenta ao estudo de quanto a mesma natureza
CIWCINNATO ASEMPRONIO. 175
offerece próprio, ingenito, e ao de quanto a raça humana
apresenta de excepcional em seu temperamento, compleição,
gênio, condlçãOj tendências e historia.
Quem não se sentir com pulso para erguer tamanho peso,
não se ostente creador, nem procure naturalisar producções
desvairadas, em paiz que as não conhece nem tolera. Tudo
aquillo demanda muita applicação, cultura, estudo, e não
certas noções superficiaes, hauridas de outiva, e tão pingues
e gordas que, do mesmo modo que nas águas abetumadas
do lago Asphaltites, tudo boia na superfície, nada nada até o
fundo.
Não ha n'este romance do Sr. Alencar (ao menos no que
tenho lido) cousa que justifique a ambiciosa qualificação.
Caracteres mal desenhados, pessimamente sustentados, des-
cripções sempre defeclivas, diálogos impróprios, personagens
repugnantes, linguagem muitas vezes abaixo de plebéa (não*1
só nas falas postas em bocca das figuras, mas freqüentemente
nos dizeres do autor), deficiência de senso moral e de alcance
do enredo magro e descosido, effeitos mal preparados, e
perenne artificio impotente. Imagina este escriptor que, por
dar, aqui e acolá, os nomes de umas terras ou cousas do
Brazil, dá romance brazileiro! É um venerando achaque do
espirito.
Não chegou ainda o tempo de avaliarmos o romance syn-
theticamente, porque está no principio, e não sei de quantos
volumes (de 15 paginas) virá a compôr-se. Conseguiu temente
o que posso é chamar a tua attenção para o chorilho de
bellezas de estylo, de grammatica, de sciencia, e de verna-
culidade, que pullulam n'este vasto fremedal. É o que farei
nas seguintes cartas.
Creio que o corollario será que ao nobre mestre conviria
retirar-se da scena para aprender primeiro o muito que lhe
falta, para poder ensinar. Faria bem de transportar-se para a
sua soledade-charneca, ou para a sua Thebaida. Da separação
de toda a sociedade ociosa sairàm os Zoroastros, os Orpheos,
os Epimenides, e outros famosos contemplativos, que passa-
176 LITTERATURA BRAZILEIRA.
dos alguns annos reappareceram cheios de scienciase virtudes,
Faria bem em epimenizar-se.
Portanto para a outra vez proseguiremos na analyse mais
miudinha das façanhas linguisticaí do Til.
Teu sincero respeitador,

ClNCIMNATe.
CARTA IV

Meu amigo.
oK

Para verdadeiramente dizer-te, é esta a vez que


me sinto com melhor disposição de conversar
sobre a Iracema. Quando a gente leu um livro, de
que não gostou, atira-o para um canto, nunca
mais pega n'elle ; as impressões passaram, e se
pretende reexperimental-as e relê a obra, é um
engano!
Isto me acconteceu com a lenda sertaneja de
J. de Alencar, e admira-me que ella já me tenha
dado margem a Ires epístolas, das quaes algumas
crescidinhas.
Não imporia. Aproveito o bom humor e... con-
versemos.
Quando tive occasião de ler, em livro de autor
estrangeiro, um benigno juizo critico sobre a Ira-
178 LITTERATURA BRAZILEIRA.

cêma, duas impressões meassaltaram — oppostas,


postoque congênitas — uma de prazer, outra de
pezar.
Se o escriptor (que reputo competente) se hou-
vesse limitado a festejar, pura e simplesmente, o
illustre nome brazileiro, e só a isso, á fé te digo
que, na qualidade de brazileiro, que também sou,
ter-me-hia exclusivamente regozijado com tão
fidalgas finezas; e, sem descer a indagar se seriam
em si justas ou se filhas de mera vontade de fra-
ternisar com o, por assim dizer, co-irmão nas
lettras, riem mesmo de relance com ellas meoccu-
paria na presente occasião. Sou muito cordato, e
sei bem até onde deve ir o espirito de naciona-
lidade.
Mas não succedeu assim. D'involta com as mei-
guices e delicadezas, prodigalisadas a quem certa-
mente conta títulos a attenções e acato, tópicos se
destacam que injustamente desfavorecem reputa-
ções feitas, em que a pátria se revê com legitimo
orgulho — reputações que já baixaram da região
dos problemas para receberem a consagração pra-
tica do reconhecimento, do respeito e da admira-
ção nacional. Fora covardia não defender esses
numes, sacrificados em honra de um idolo que,
se tem seu valor (o que ninguém contesta), não
está comtudo na altura de merecer que se lhe im-
molem taes hóstias.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 179

Leem-se, por exemplo, n'esse livro, pedaços


como este, tratando-se de Gonçalves Dias :
« Não conhecendo esse poema (os Tymbiras),
não posso formar juizo sobre elle; mas outros
poemetos indianos, publicados no volume de versos
do grande poeta brazileiro, edição de Leipsick,
autorisam-me a suppôr que a morte ceifou Gon-
çalves Dias antes d'elle ter inaugurado verdadei-
ramente a litteratura nacional do Brazil, e que á
Iracema do Sr. José de Alencar pertence a honra
de ter dado o primeiro passo affoito na selva in-
trincada e magnificente das velhas tradições. »
0 Sr. Pinheiro Chagas já tem dito antes que
« Gonçalves Dias e Magalhães sulcaram o formoso
lago d'uma poesia estranha ás regras eaos hábitos
europeus, mas como o cysne alvejante que só pro-
cura semear de pérolas a cândida plumagem, e
que receia enlodar na vasa do fundo o collo nitido
e correctamente airoso, a aza branca e lisa, a ca*
beca graciosa e fina. o
Tem dito egualmente que « desde o Caramurú
de Santa Rita Durão , os poetas brazileiros teem
entrevisto a mina riquíssima, d'onde podem ar-
rancar diamantes litterarios, tão fulgurantes como
as pedras preciosas que resplandecem por entre as
areias de Tejuco, mas até agora nenhum se em-
pregou bastante n'essa inspiração selvática. » E
conclue dizendo que « a Iracema está destinada a
180 LITTERATURA BRAZILEIRA.

lançar no Brazil as bases d'uma litteratura verda-


deiramente nacional. »
É desculpavel, n'um escriptor estrangeiro (pos-
toque de talento seductor, e postoque já tenha
pisado, segundo cremos, n'estas terras brazileiras,
e nos haja brindado com a sua Virgem Guaraciaba)
cair em enganos, que bem explicam quanto ainda
entre preprios irmãos está desconhecida no seu
justo valor a nossa nascente, mas já accentuada
litteratura. Cumpre, porém, declarar que o engano
do Sr. Pinheiro Chagas é evidente, e devido talvez
a impressões instantâneas, deixadas por uma per-
functoria leitura da Carta com que J. de Alencar
fecha o seu livro.
Colhe-se com effeito do dizer do Sr. P. Chagas
que os talentos, que precederam J. de Alencar na
exploração da mina, coisa nenhuma apanharam
ou apenas insignificancias, n'esses campos esmal-
tados de encantadoras' galas, — n'essas selvas so-
lemnes, regiões immarcesciveis da poesia mais
melancólica e mais pathetica — n'essas mon-
tanhas majestosas, e n'esses valles sombrios onde
ainda se parecem ouvir echos de uma raça de
Atlantes— n'esses rios giganteos, que uma vege-
tação descommunal borda e veste de eterno viço,
de louçania perenne.
Parece que tudo estava ainda por fazer, que a
poesia dormia na immensidade inexplorada dos
SEMPRONIO A CINCINNATO. 181

ermos, ou que, assim a modo de jaguar ou de


ophidio venenoso se recolhia em antros profundos,
d'onde os antecessores de J. de Alencar só a tinham
pedido exhumar completamente desfigurada ou
morta, ou antes onde não haviam logrado pene-
trar. Bom é comtudo advertir que alguns d'esses
primeiros exploradores, a quem tão peremptória-
mente se recusam sagrados direitos adquiridos e
reconhecidos, tiveram, mais de uma vez, occasião
de se acharem em immediato contacto com a
natureza virgem, de contemplal-a em pessoa,
perscrular os seus augustos mysterios e de receber
d'elladirectos influxos e inspirações. Póde-se acaso
dizer outro tanto de José de Alencar, que, como é
sabido, arrancou essa pretensa poesia brazileira
do fundo da sua phantasia palaciana, e lhe deu
fôrma sobre a sua mesa de cortezão?
Se o escriptor portuguez conhecesse melhor as
coisas de nossa terra; se soubesse que ao passo
que Gonçalves Dias percorria o Brazil do sul ao
norte, penetrando nas entranhas das tribus do
Ceará, do Maranhão, do Pará, do Amazonas, atra-
vessando rios caudalosos, margens invias, estu-
dando costumes e dialectos vários, colhendo mil
noticias e tradições, José de Alencar escrevia folhe-
tins impregnados de essências de salões, freqüen-
tava os passatempos da corte, sonhava louras
visões de luvas de pellica e de crinoline na rua
li
182 LITTERATURA BRAZILEIRA.

do Ouvidor ou no Carceller, n'uma palavra hauria


a vida puramente de cidade, de filigranas, de ex-
citações procuradas, de estimulantes fáceis e á
mão; se soubesse que, á proporção que ellerumi-
nava, talvez entre uma chavena de café e um deli-
cioso havana, sob a abobada caricata de um
kiosque artificial, a poesia também artificial e
brunidinha da Iracema, Gonçalves Dias combinava
na sua grande imaginação, á sombra de um gi-
gante da floresta, ou á margem inundada de ema-
nações aquáticas, ou no pincaro de uma serra a
topetar com a immensidade, a poesia musculosa
e farta, que se percebe palpitar natural, vehe-
mente e livre do menor vencilho nas paginas im-
mortaes do Y-juca-pirama e dos Tymbiras; se
soubesse, finalmente qual o juizo incontrastavel
da universalidade brazileira n'este ponto, certo
não teria aventurado idéas que não acharam, por'
que não podiam nem deviam achar, a menor gua-
rida entre nós.
Se houve já alguma obra de J. de Alencar, a
cujo respeito se não demorasse a manifestar-se,
sem hesitação, o juizo publico, está certamente em
lal caso a Iracema; e esse juizo não lhe foi favo-
rável.
Segundo já tive occasião de observar n'uma das
precedentes cartas, o apparecimento da lenda ser-
taneja, longe de corresponder á espectativa sus-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 183

citada pelo Guarany, do mesmo autor, fêl-a


despenhar-se na mais amarga e rude decepção.
Geral frieza a recebeu, e quer-me até parecer que
apreciações autorisadas lhe recusaram os direi-
tos, que também agora lhe contesto, de filha da
terra.
Nem era de esperar o contrario, porque a poesia
brazileira estava já então verdadeiramente inaugu-
rada no paiz. Nem é outra senão a que nos deixa-
ram esplendidamente ensaiada Basilio da Gama e
Santa Rita Durão, e que deve ao portentoso pin-
cel de Gonçalves Dias os contornos acordes, os
toques magistraes, as linhas correctas, as cores
feiticeiras e primorosas com que se decora, n'uma
palavra as sólidas e inabaláveis bases em que hoje
a vemos definitivamente firmada. O que J. de
Alencar nos deu na sua Iracema foi uma poesia de
sua invenção, como de sua invenção nos tem que-
rido dar uma lingua, uma natureza humana e
uma natureza inanimada ao avesso, A poesia de
Um povo não se inventa a mero arbítrio, e dizemos
que o typo da Iracema é de pura ficção do autor,
porque elle não se apoia na lettra ou espirito da
historia, nem nos modelos e estudos dos mes-
tres.
Fique sabendo o Sr. P. Chagas que no Brazil
não se conhece outro padrão de litteratura indiana
com foros para interpretar fielmente o caracter
18i LITTERATURA BRAZILEIRA.

local, senão aquelle que o paiz deve ao prestimoso


gênio do Dias.
Esse typo já recebeu o sagrado baptismo das
populações e dos entendidos, e é o único destinado
para perdurar e transmittir-se á posteridade,
porque foi bebido nas fontes authenticas do estudo,
mais conscientemente feito, do nosso aborígene.
Pois bem : d'esse typo é tão essencialmente di-
versa a Iracema, quanto a água do vinho.
Explica-se o desacerto de J. de Alencar, empre-
hendendo contrapor á verdade a ficção da sua
phantasia.
Ha organisações que a máxima generosidade
prejudica primeiro do que beneficia. Guarany
tinha visto a luz, e tendo só direito a ser festejado
na razão de 10, foi-o na razão de 100. Ora, o espi-
rito d'esse autor não é d'aquelles que as mais
exaggeradasovaçõesnão despojam nunca da majes-
tosa calma da consciência, o brilhante realce das
grandes organisações moraes. Sopitada a chamma
intima a prelenção mais desbragada tomou o
logar á razão e ao bom senso. O homem reputou-
se logo com sufficiente autoridade e cabedaes para
demolir o que a edade e o gênio tinham custo-
samente construído. Mas demolir, sem ao mesmo
tempo edificar, não era decente nem plausível. E
depois era preciso, antes de tudo, mostrar que o
novo estava muito acima dos velhos architectos;
SEMPRONIO A CINCINNATO. 185

d'ahi a idéa de inaugurar escola, que transmit-


tisse á posteridade o nome do seu fundador. E
então, bom Cincinnato? Não podia, como vês, ser
mais modesta a aspiração. Loucura! loucura!
Nem ao menos reflectiu esse homem que o seu
Guarany tinha principalmente agradado, porque
mostrava certo acordo com a conhecida feição
histórica e tradicional do aborígene brazilico !
J. de Alencar escreveu então as suas celebres
cartas sobre a Confederação dos Tamoyos. Á som-
bra dos folhetins, e principalmente do Guarany
(que se não foi publicada antes das cartas, o foi de
certo, se bem me recordo, simultaneamente com
ellas), fizeram carreira e, como é natural, visto
que ninguém quiz antepôr-se-lhe, novos créditos
vieram recommendar o lalenfo do esperançoso
escriptor.
Suppondo este, por illusão de óptica da sua
vaidade, haver suterrado o nome, consolidado já,
do poeta Gonçalves de Magalhães, com que insania
presumes tu que seria agora tentado? Presta
attenção!
Barreira ingente interrompia o vôo aquellas já
descomedidas audacias. Essa barreira era o nome
prestigioso do Dias — o pae nunca assaz pran-
teado da poesia brazileira, como Cullen Bayant,
Waldo Emerson e Henry Longfellow o haviam
sido da poesia da America do Norte — do Dias
186 LITTERATURA BRAZILEIRA.

que conquista elogios « não encommendados »de


A. Herculano, e que Wolff applaude.
Pois bem, meu amigo. Não ha respeito, não ha
consideração, que o detenha. Eil-o que se arroja
contra o colosso formado, gotta a gotta, e dia a
dia — stalactite inaccessivel e sublime do gênio,
consolidado no conceito de mais de uma nação;
somente o assalto é dirigido com mais geito,
estratégia e arte : em vez de simples critica offe-
rece uma obra com todas as seducções da novi-
dade ; em logar de modos desabridos, principia
dizendo que « Gonçalves Dias é o poeta nacional
por excellencia, e ninguém lhe disputa o conhe-
cimento da natureza brazileira e dos costumes
selvagens » para concluir, declarando que « en-
tretanto os selvagens do seu poema (os Tymbiras)
-falam uma linguagem clássica e exprimem idéas
próprias do homem civilisado, e que não é vero-
simil tivessem no estado da natureza. » Ora dize-
me : que poeta nacional por excellencia é esse;
que conhecimento da natureza brazileira e dos
costumes selvagens pôde fazer crer que tem
aquelle que faz dos seus selvagens não só homens
civilisados, mas até falando linguagem clássica?
Não se vê que a proposição inicial só leve por fim
illudir a agrura, sem diminuir-lhe a intensidade,
da proposição final? Que o pomo contém verme
corrosivo, e a flor veneno mortífero? Opportuna-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 187
mente tocaremos n'esse presumido classismo e
civilisação dos selvagens dos Tymbiras .
Em resumo : eis-ahi duas importantes autori-
dades, duas grandes cojumnas do nosso modesto
templo de lettras, victimas do camartello do ver-
dadeiro iconoclasta dos nossos primeiros numes.
Ah! não são somente estes dois sustentaculos,
que padecem golpes de destruição cruel : J. de
Alencar tem o descôco de dizer, mediante aquelle
seu estylo insidioso, que apparenta o melhor desin-
teresse e cordura, mas em realidade arteiro e
malfazejo, que das « producções que se publica-
vam sobre o thema indígena, nenhuma realisava
a poesia nacional, tal como lhe apparecia no es-
tudo da vida selvagem dos autochthones brazilei-
ros; que muitos peccavam pelo abuso dos termos
indígenas accumulados uns sobre outros (havemos
de ver se elle não caiu n'este abuso), o que não
só quebrava a harmonia da lingua portugueza
(quem defende a lingua!) como perturbava a
intelligencia do texto; que outras eram primorosas
no estylo e ricas de bellas imagens, porém certa
rudez ingênua de pensamento e expressão (e a Ira-
cema satisfez estas condições?), que devia ser a
linguagem dos indígenas, não se encontrava alli. »
Logo, meu amigo, a aggressãonãosecircumscreveu
a Gonçalves Dias e a Gonçalves de Magalhães :
Porto Alegre, Basilio da Gama , Fr. Santa Rita
188 LITTERATURA BRAZILEIRA.
e todos quantos (passados e modernos) tinham
escriplo sobre o thema indigena, a Iodos esses se
dirigem os projectís d'aquella machina de arre-
messo, forjada pela mais descommunal philaucia
litteraria de que haja noticia entre nós.
Chegamos emfim a este extremo : antes de J. de
Alencar, ninguém ! 0 bello nacional estava ainda
encolhido no ovo e o ovo escondido, como em
ninho enorme, dentro do regaço opaco da natureza.
Os mais beneméritos e qualificados engenhos
tinham até então doidejado por fora da colmeia
immensa, e nada de atinar com a entrada e extra-
hir algumas gottas de mel virgem. 0 próprio Sr.
Pinheiro Chagas diz que haviam sulcado o lago
« como o cysne alvejante, que só procura semear
de pérolas a cândida plumagem, e que receia en-
lodar na vasa do fundo o collo nítido. »
Moderno Colombo, J. de Alencar, depois do seu
mergulho nas entranhas dormentes e até então im-
penetradas do desconhecido, assoma á superfície,
mostrando-nos um mundo, ou uma maravilha.
As pallidas sombras dos nossos avós são evocadas
aos túmulos das edades pelo boato, pela divulgação
do milagre; e resurgem enfiadas de vergonha as
illustres figuras dos nossos primeiros épicos, que a
inquietude do ciúme impelle, como tremulas
paginas de nevoas para o logar da exhibição.
O que é que vedes,'vultos venerandos? A exem-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 189

pio das miragens do deserto, o sonho dissipou-se


e esvaeceu-se. Ah! foi tudo de certo um sonho,
ou um delírio de louca phantasia. Perdoae a pro-
fanação, que foi imprudentemente despertar-vos
dos volsos jazigos seculares. Foi tudo uma farça,
e eterno perdão vos peço para quem a desem-
penhou.
Que novo portento de estatuaria nos offerecia
J. de Alencar, em substituição ás columnas camar-
telladas, mas não alluidas do templo? Vê bem,
meu amigo. 0 « mergulhador de Schiller » tinha-
nos trazido, não pérolas ou coraes raros, mas
justamente a vasa enlodadora do fundo, que
G. Dias, Magalhães, Porto Alegre e outros tiveram
a fidalguia de não levantar para nos pouparem um
triste presente. 0 que se vê na Iracema é uma
composição enfezada e anêmica, postoque con-
gesta de serosidades e flalulencias, para que não
haveria remédio, a não ser a morte. E na verdade
tão depressa nasceu como depressa morreu. A
tentativa abortou. 0 ovo estava goro. Não fosse
elle posto por « aquelle applaudido talento » e já
d'elle não restaria sequer a dilacerada casca.
0 escriptor portuguez, referindo-se á Iracema,
accode:
« Pela primeira vez apparecem os índios falando
a sua linguagem colorida e ardente ; pela primeira
vez se imprime fundamente o cunho nacional
il.
190 LITTERATURA BRAZILEIRA.

n'um livro brazileiro; pela primeira vez são des-


criptos os selvagens com aquelles toques delica-
dos, que dão realce tão vivo aos typos do roman-
cista da America do Norte. »
Não peço venia, não !
Pela primeira vez apparecem os índios falando
uma linguagem banzeira e esmorecida ; pela pri-
meira vez são descriptos os selvagens com toques,
com tintas da affectação mais visível, mas tintas
lymphaticas, quando o selvagem é simples e sin-
gelo na sua majestosa grandeza.
Falta-lhes o colorido próprio, expressivo, inte-
ressante. O que aquella linguagem tem, são de-
masias de arte. Debaixo da agglomeração fastidiosa
de comparações, as mais das vezes fora de villae
termo, e que haviam deter custado bom trabalho
ao próprio autor, a natureza subverteu-se como
n'úm abysmo. A pallidez visivelmente se mostra
atravéz das cores postiças, fugaces e precárias.
0 que me parece que se devia achar na Iracema,
para que se podesse dizer que n'ella estava funda-
mente impresso o cunho nacional, e era ruido de
grandes embates, repercussão de magnânimas
acções e gentilezas, tanto no amor como em
tudo.
Quizeramos ver ahi o caracter do índio , pri-
mando na heroicidade e no valor tradicional.
Quizeramos se nos deparassem scenas patheti-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 191

cas, e não episódios grutescos e abaixo do nivel


de uma raça que qualidades verdadeiramente su-
periores tornaram legendária.
Quizeramos ver travar-se a paixão com força
ingente, o sentimento (principal motor da acção)
rasgar situações grandiosas, surprehendentes e
dramáticas; mas só achámos entrechos triviaes e
insignificantes, perfeitas bagatellas, que admira
como tenham preoccupado um instante a phanta-
sia de um espirito elevado.
Quizeramos que o modo de expressar essas
lutas, essas energias profundas, esses thesouros
insondaveis de affectos e de sensações barbaras,
fosse impetuoso e arrogante, correspondendo ás
ousadias intimas, e traduzindo cabalmente as
expansões abruptas. Mais uma vez o diremos :
J. de Alencar não tem pulso para escrever a
epopéa.
A linguagem dos gigantes das selvas primitivas é
qual se fora a de degenerados pigmeus — pallida
efria, sem alentos, nem vibração.
0 amor da índia é um amor chorão, enervado,
piegas. A sua compleição physiologicatem alguma
coisa de inane, que repugna á organisação desa-
brochada em pleno trópico, recebendo fluidos de
todas as abundantes fontes da mais soberba natu-
reza do mundo. Se quiz modelar a Iracema pela
Atala, errou em claro ; os sentimentos modestos,
192 . LITTERATURA BRAZILEIRA.

por assim dizer impalpaveis, d'esta ultima são


devidos á influencia poderosa do christianismo, e
por tanto diversissimos no caracter e até no ser
do caracter e ser bravio da Iracema ardendo
perennemente em todas as chammas brutáes da
natureza.
Passando do amor ás batalhas, o desmorona-
mento do gênio indígena é completo, desperta
compaixão.
O guerreiro é poltrão e molle. Está ausente a
investida eloqüente do animo, que tanto o recom-
menda e parlicularisa sempre que põe em contri-
buição o seu brio e as suas glorias.
0 Sr. Pinheiro Chagas ha de afinal convir com-
migo em que, apezar do seu extenso olhar critico,
andou errado.
Pois é pena : faço o mais vantajoso conceito do
seu elegante talento.

SEMPRONIO.
CARTA Y

'>»->)(
Meu caro amigo.
D^

Chegou a dilação das provas e não a perco; é


entretanto ao Sr. Pinheiro Chagas que me estou
4

dirigindo, porque tu já sabes de tudo isto.


Vou dar-me ao trabalho, insano por certo, de
copiar ipsis verbis um capitulo integral da Ira-
cema, em que se descreve um combate de índios.
Martim, Poty e Iracema vão sendo perseguidos
pelos guerreiros tabajáras. Aproveito a occasião
para arriscar algumas palavras sobre o primeiro.
Diz J. de Alencar, na pagina 93, que vendo esse
heroe « os verdes mares e as alvas praias, onde as
ondas murmurosas ás vezes soluçam e outras rai-
vam de fúria, rebentando em frocos de espuma, seu
peito suspirou, porque esse mar beijava também
as brancas areias do Potengi, seu berço natal, onde
194 LITTERATURA BRAZILEIRA.

elle vira a luz americana. » E mais adiante, na


pagina 180, em nota : « Potengi — rio que rega a
cidade do Natal, d'onde era filho Soares Moreno.»
Tenho minhas duvidas, com o devido respeito.
Southey, Lisboa, Constancio, Pompeo e outros não
dizem que Martim Soares Moreno fosse natural
do Rio Grande do Norte. Pelo contrario, alguns
até declaram que Martim eraparente do sargento-
mór Diogo de Campos Moreno (portuguez), o que
de algum modo faz presumir que Martim pertencia
á mesma nacionalidade. O general A. eLima, cuja
autoridade não se pôde com boas razões contes-
tar, diz posivamente na sua Synopsis, á pagina 70,
que Diogo de Menezes « contentou-se com enviar
ao Ceará um official portuguez, Martim Soares Mo-
reno, que tinha accompanhado a Pedro Coelho,
etc. »
São taes e tantos os testemunhos autorisados
n'este sentido, que não será fácil recusar-lhes fé.
Chego um momento, quando vejo contrariado
pelo Sr. Alencar o facto, a suppôr que este Sr.,
dispondo d'amplos recursos, e achando-se n'uma
corte, onde ha um Instituto Histórico e uma rica
Bibliotheca Nacional, bebe todas estas novidades.
em fontes abundantes e satisfactorias, de que o
pobre bisonho provinciano não pode nem de leve
provar. Mas occorre-me logo a anecdota da inven-
ção do verbo afflar; da etymologia dos nomes das
SEMPRONIO A CraulNNATO. 195

diversas localidades do Ceará, e outras galantes


graçolas d'esta ordem, e sou levado a crer que o
Sr. Alencar na Iracema é o mesmo Sr. Alencar da
Diva, do Gaúcho, da Pata da Gazella, etc. Então
digo commigo, a sós, depois de fundo cogitar :
— Só se o Alencar (assim se diz na ausência)
achou isto, ou aquell'outro nas chronicas incó-
gnitas, .onde também achou a sua poesia bandeira,
os seus selvagens mandriões. Sendo assim estou
calado,
Mas não. E que J. de Alencar não quer fazer
somente uma nova lingua, uma nova natureza,
uma nova poesia: quer fazer também uma nova
historia. E se o homem diz que inventou o que
está claro e velho nos lexicógraphos, que mais é
que dê a Martim uma pátria a seu geito, quando a
historia não é tão positiva n'este ponto quanto
fora para desejar? Temos, pois, este grande ser-
viço mais a agradecer ao Sr. Alencar : o ir expli-
cando e completando por serdes vós quem sois a
historia pátria, no que ella tiver de duvidoso ou
pouco preciso. Faz muito bem. E quem fôr homem
de sangue no olho que lhe vá ao encontro. Melta-
se n'isso!
Desculpa a digressão, e volta commigo ao campo
dos tàbajáras ; já não é o dos tabajáras, mas sim o
dos pytiguáras.
Vae Iravar-se a pugna gigantea, tremenda entre
196 LITTERATURA BRAZILEIRA.

duas tremendas e giganteas hordas inimigas.


Prepara-te para assistires a uma epopéa digna de
v
Atlantes. Attenção!
« Treme a selva com o estampido da carreira
do povo tabajára.
« O grande Irapuam, primeiro, assoma entre as
arvores. Seu olhar rubido viu o guerreiro branco
entre nuvem de sangue; o grito rouco do tigre
rompe de seu peito cavernoso.
« 0 chefe tabajára e seu povo, iam precipitar
(pôde deixar de dizer-se : precipitar-se? aqui o
verbo precipitar é verbo activo ? onde está o pa-
ciente? é verbo reflexo) sobre os fugitivos como a
vaga encapellada que arrebenta no Mocoripe.
« Eis late o cão selvagem.
« Poty solta o grito da alegria :
— O cão de Poty guia os guerreiros de sua taba
em soccorro teu.
« 0 rouco búzio dos pyliguáras estruge pela
floresta. O grande Jacaúna, senhor das praias do
mar, chegava do rio das garças com seus melhores
guerreiros.
« Os pytiguáras recebem o primeiro Ímpeto
inimigo nas pontas erriçadas de suas frechas, que
elles despedem do arco aos molhos, como o coandú
(fábula!) os espinhos do seu corpo. Logo após sôa
a pocêma, estreita-se o espaço, e a luta se trava
face a face. »
• SEMPRONIO A CINCINNATO. 191
Quando vejo esses pytiguáras despedindo do
arco frechas aos molhos, como o coandú os espi-
nhos do seu corpo, lembro-me do trecho de um
critico apreciando o Washington, de Robert
Payne, autor norle-americano. Robert Payne
lambem dá a pomposa qualificação de epopéa na-
cional á sua obra, que elle foi levado a compor,
despeitado por Channing haver dito que os Es-
tados Unidos não possuíam uma litteratura na-
cional. « Robert Payne — diz o critico — repre-
senta Washington de pé, repellindo com o peito
os trovões e empunhando a espada nua —a modo
de conduetor electrico, para dirigir o raio para o
oceano, onde vae apagar-se. Este heroe pára-raio
é a obra-prima da poesia-machina. » Assim tam-
bém esses heroes-coandtts parecem-me o nec plus
ultra da Tpoesia-mandriice. Continuemos.
« Jacaúna atacou Irapuam. Prosegue o horrível
combate que bastara a dez bravos, e não esgotou
ainda a força dos grandes chefes. Quando os dois
tacápes se encontram, a batalha toda estremece,
como um só guerreiro, até ás entranhas.
« 0 irmão de Iracema veiu direito ao estran-
geiro, que arrancara a filha de Araken á cabana
hospedeira ; o faro da vingança o guia ; a vista da
irmã assanha a raiva em seu peito. O guerreiro
Cauby assalta com furor o inimigo. »
Então? Já sei que estás tremendo de medo da
198 LITTERATURA BRAZILEIRA.

tamanha peleja. A coisa está mesmo feia. Mas 'em-


fim coragem, bom Cincinnato, que havemos de
contar da festa sem o minimo arranhão.
« Iracema, unida ao ílanco do seu guerreiro e
esposo, viu de longe Cauby e falou assim :
« — Senhor de Iracema, ouve o rogo da tua
escrava; não derrama (!!) o sangue do filho de
Araken. Se o guerreiro Cauby tem de morrer,
morra elle por esta mão, não pela tua.
« Martim pôz no rosto da selvagem olhos de
horror:
« — Iracema matará seu irmão ?
« — Iracema antes quer que o sangue de Cauby
tinja sua mão que a tua ; porque os olhos de Ira-
cema vêem a ti, e a elle não. (É uma razão, como
qualquer outra).
« Travam a luta os guerreiros. Cauby combate
com furor; o christão defende-se apenas ; mas a
setta embebida no arco da esposa guarda a vida do
guerreiro contra os botes do inimigo. '
« Poty já prostrou o velho Andira e quantos
guerreiros topou na lula seu válido tacápe. Mar-
tim lhe abandona o filho de Araken, e corre sobre
Irapuam.
« — Jacaúna é um grande chefe; seu collar de
guerra dá três voltas ao peito. O tabajára pertence
ao guerreiro branco.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 199
« — A vingança é a honra do guerreiro, e Ja-
caúna ama o amigo de Poty.
« 0 grande chefe pytiguára levou além o formi-
dável tacápe. O combate renhiu-se entre Irapuam
e Martim. A espada do christão, batendo na clava
do selvagem,,fez-se em pedaços. 0 chefe tabajára
avançou contra o peito inerme do adversário.
« Iracema silvou como a boicininga (pois a
mulher silvou?!), e se arremessou ante a fúria
do guerreiro tabajára. A arma rígida tremeu na
dextra possante do chefe e o braço caiu-lhe des-
fallecido.
« Soava a pocêma da victoria. Os guerreiros py-
tiguáras, conduzidos por Jacaúna e Poty, varriam
a floresta. Os tabajáras, fugindo, arrebataram seu
chefe ao ódio dafilhade Araken que o.podia abater,
como a jandaia abate o prócero coqueiro roendo-
lhe o cerne. (Onde foi que o Sr. Alencar viu jan-
daia botar coqueiro abaixo?.)
« Os olhos de Iracema estendidos pela floresta,
viram o chão juncado de cadáveres de seus ir-
mãos ; e longe o bando dos guerreiros tabajáras
que fugia em nuvem negra de pó. Aquelle sangue
que enrubecia a terra era o mesmo sangue brioso
que lhe ardia as faces de vergonha.
« 0 pranto orvalhou seu lindo semblante.
« Martim affastou-se para não envergonhar a
tristeza de Iracema. Deixou que sua dôr nua se
200 LITTERATURA BRAZILEIRA.
banhasse nas lagrimas. » (Uma dôr nua a banhar-
se»em lagrimas!)
Acabou-se a batalha, e o capitulo, e, como vês,
sãos e salvos ficámos ; ainda bem.
Ora, eis-ahi ao que se pôde chamar um modelo
de descripção de combates de índios. E um mo-
delo devia de ser um combate entre chefes taes
como Irapuam (Mel Redondo), Jacaúna, e o
Camarão; reconheces aqui o grande, o insigne Ca-
marão ?
Muito levianos, senão mais que isso, eram esses
historiadores da conquista. Chegarem a dizer que
«'estes americanos são tão encarniçados nas suas
guerras, que, emquanto podem mecher com per-
nas e braços não recuam, nem dão as costas, com-
batem incessantemente, e isto é n'elles a coisa
mais natural. » Qual! historias da carochinha.
Esses supra mencionados guerreiros, até os mais
afamados, não passavam de guerreiros, coandús.
E a prova está n'esse mesmo Irapuam, tão illustre
na historia pela sua braveza e perseverança, que
principiou aqui vendo tudo côr de sangue, e deu
costas como sendeiro. Tabajáras de uma figa, co-
vardes tabajáras 1 De que vos servia serdes — o
povo SENHOR ? Poty, Jacaúna, Iracema e Martim,
isto é, três homens e uma mulher vos puzeram a
trote, a ver estrellas ao meio dia. Verdade é dizer-
nos o autor que Jacaúna viera com seus melhores
SEMPRONIO A CINCINNATO. 201
guerreiros. Mas também não se presume que Ira-
puam viesse com os peiores.
Contraponhamos agora a esta descripção, feita
por quem desceu ao fundo do lago e foi ter « ás
flores maravilhosas que desabrocham nas cavernas
de coral » « aos recifes demadreperola que ex-
pandem na,carados reflexos sob a transparência
das águas » a descripção de quem não passou da
superfície «receiando enlodar o collo nitido, e a
aza branca e lisa, a cabeça graciosa e fina » e veja-
mos quem na verdade se enlodou na vasa, quem
extrahiu as pérolas e os coraes. É Gonçalves Dias
que vae pintar uma lula entre dois guerreiros
(nenhum dos quaes de valor histórico). Attenção.
Travaram luta fera os dois guerreiros.
Primeiro ambos de longe as setías vibram.
Amigos manitós, que ambos protegem,
nos ares as desgarram. Do Gamella
entrou a frecha tremula n'um tronco
e só parou no cerne; a do Tymbira,
ciciando veloz, fugiu mais longe, ,
roçando apenas os frondosos cimos;
encontram-se as tacápes, lá se partem;
ambos, o punho inútil rejeitando,
estreitam-se valentes, braço a braço.
Alentando açodados, peito a peito,
revolvem fundo a terra aos pés, e ao longe
rouqueja o peito arfado'um som confuso. »

Tudo aqui é natural, meu amigo. A luta vae-se


desinvolvendo gradualmente. Principiam os guer-
202 LITTERATURA BRAZILEIRA.

reiros despedindo as frechas: depois brandem os


tacápes, porque aquellas foram desgarradas pelos
manitós (magistral applicação da tradição ou da
crença selvagem); e finalmente, partindo-se estas
ultimas armas, estreitam-se, conchegam-se corpo
a corpo, e rugem no agigantado esforço e revol-
vem a lerra com os pés. Parece-nos estar vendo a
pugna de dois só, mas miriíica.

Scena vistosa! quadro apparatoso !


Guerreiros velhos, á victoria affeitos,
tamanhos campeões vendo na arena,
e a luta horrível, e o combate acceso,
mudos quedaram de terror tranzidos.
Qual d'aquelles heroes ha de primeiro
sentir o egrégio esforço abandonal-o ?
perguntam; mas não ha quem lhes responda.

São ambos fortes: o Tymbira hardido,


esbelto como o tronco da palmeira,
flexível como a frecha bem talhada,
ostenta-se robusto o rei das selvas ;
seu corpo musculoso, immenso e forte,
é como rocha enorme, que desaba
de serra altiva, e cae no valle inteira ;
não vale humana força desprendel-a
cfalli, onde elle está; fugaz corisco
bate-lhe a calva fronte sem partil-a.

Separam-se os guerreiros um do outro,


foi d'um o pensamento... a acção foi d'ambos.
Ambos arquejam : descoberto o peito
arfa e estua eleva-se e comprime-se,
e o ar em ondas sôfregos respiram.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 203
Cada qual, mais pasmado que medroso,
se estranha a força que no outro encontra,
a mal cuidada resistência o irrita.
— « Itajuba! Itajuba ! os seus exclamam.
Guerreiro, tal como elle, se descora
um só momento, é dar-se por vencido »
O filho de Jaguar voltou-se rápido.
D'onde essa voz partiu ? quem n'o aguilhôa?
Raiva de tigre annuviou-lhe o rosto,
e os olhos côr de sangue irados pulam.

« — A tua vida a minha gloria insulta! —


grita ao rival — e já de mais viveste.»
Disse, e como o condor, descendo a prumo
dos astros, sobre o lhamá descuidoso,
pavido o prende nas torcidas garras,
e sobe audaz onde não chega o raio....
vôa Itajuba sobre o rei das selvas,
cinge-o nos braços, contra si o aperta
com força incrível, o colosso verga,
inclina-se, desaba, cae de chofre,
e o pó levanta e atrôa forte os echos.
Assim cae na floresta um tronco annoso,
e o som da queda se propaga ao longe!

O fero vencedor, um pé alçando*


« Morre ! — lhe brada — e o nome teu comtigo! »
O pó desceu^ batendo a arca do peito
do exanime vencido: os olhos turvos
levou, a extrema vez, o desditoso
aquelles céos de azul, aquellas mattas;
doces-cobertas de verdura e flores!
Depois, erguendo o esquálido cadáver
sobre a cabeça horrivelmente bello,
aos seus o mostra ensangüentado e torpe;
Então por vezes três o horrendo grito
204 LITTERATURA BRAZILEIRA.
do triumpho soltou; e os seus três vezes
o mesmo grito em coro repetiram.
Aquella massa emfim vôa nos ares;
porém na dextra do feliz guerreiro
dividem-se entre os dedos as melenas,
de cujo craneo marejava o sangue ! »

Ora, diga-me sinceramente o Sr. P. Chagas, com


o cavalheirismo que o distingue : em qual d'estas
duas descripções está fundamente impresso o
cunho nacional — na de J. de Alencar, ou na de
G. Dias ! Acha o illustre critico portuguez que uma
pugna sangrenta, de vida e morte, entre gigantes
da floresta, inimigos sanhudos e feros, como se
presume que seriam Irapuam e Toty, ou Mel-Re-
dondo e Camarão, havia de correr d'ess'arte plá-
cida e desenxabida, e sobretudo teria aquelle de-
senlace mesquinho e ridículo ? Attenda-se mais;
que á precedente inimizade entre ambos accres-
cêra a recente fuga de Iracema, devida a Martim,
de Iracema, que « turbara o somno do primeiro
guerreiro tabajára » que o fizera descer « do seu
ninho de águia para seguir na várzea a garça do
rio. » (Vid a pag. 26.)
Mas diz-nos o Sr. P. Chagas que « não conhe-
cendo os Tymbiras (d'onde fizemos o extrac o
supra), não pôde formar juizo sobre elle. »
Pois não seja esta a duvida ; temos tanto as
Obras Posthumas do grande poeta, como os seus
Cantos (edição de Leipsick), como suas Poesias
SEMPRONIO A CINCINNATO. 205
(edição novíssima de Pariz, do Sr. Garnier, prece-
dida da biographia do autor pelo Sr. conego
Fernandes Pinheiro.)
Abro o volume dos Cantos, a mesma edição que
tem o Sr. Pinheiro Chagas, e encontro na pagina
155 outra descripção de um combate de índios.
É na poesia intitulada Tabyra.

Eis que os arcos de longe se encurvam ;


eis que as settas aladas já voam ;
eis que os ares se cobrem, se turvam,
de frechados, de surdos que são.
novos gritos mais altos rebôam,
entre as hostes se apaga o terreno,
- já tornado apoucado e pequeno,
já coberto de mortos o chão !
• • >

Mas Tabyra! Tabyra! que é d'elle?


onde agora se esconde o pujante?
Não n'o vedes ?! Tabyra é aquelle
que, sangrento, impiedoso, lá vae !
Yêl-o-heis andar semp^te adiante,
larga esteira de mortos deixando
traz de si, como o raio cortando
ramos, troncos do bosque onde cae.

« Tem um olho de um tiro frechado !


« Quebra as seitas que os passos lhe impedem,
« e do rosto, em seu sangue lavado,
<( frecha e olho arrebata sem dó !
« e aos imigos, que o campo não cedem
« olho e frecha mostrando extorquidos,
« diz, em voz que mais eram rugidos:
« — Basta vis, por vencer-vos um só ! »
n
206 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Pois estas três estrophes não valem, falando sin-
ceramente, cem vezes mais que o capitulo inteiro
do Sr. Alencar?
Ao ler-se este episódio do Tabyra, arrancando
o olho com a frecha que o cravara, e que parecerá,
talvez, exaggerado, como em caso análogo se tem
dito de Lucano, lembro-me de uma historia que
nos conta Audubon, muito em harmonia com
aquelle episódio. ,
« Defronte de mim, diz o naturalista americano,
estava um índio, com os cotovellos encostados aos
joelhos, e a cabeça ás mãos. Segundo o uso dos
indigenas da America, não se moveu ao chegar-se-
lhe o homem civilisado.
« Os viajantes não teem deixado de interpretar
como indicio de preguiça, de estupidez, de apathia,
esse silencio nascido do mais altivo orgulho.
« Via-se, encostado á parede, um -grande arco,
muitas frechas e pássaros mortos espalhados pelo
chão. O índio não se mechia; nem parecia respN
rar. Dirigi-lhe a palavra em francez, idioma de
que a mór parte dos índios d'esses logares sabe ao
menos alguns termos. Levantou a cabeça, mos^
trando-me com o dedo um dos olhos saidos da
orbita, e o sangue correndo sobre o rosto ; depois,
com o outro que lhe restava lançou em mim um
olhar singularmente significativo.
« Depois soube eu que, liavendo-se a frecha do
SEMPRONIO A CINCINNATO. 207
seu arco quebrado no momento em que a corda
estava tesa, um dos pedaços da arma partida re-
surtira contra o olho do índio e n'elle se era •
vara.
« Soffria calado. A despeito da viva dôr, con-
servava imperturbada a dignidade altiva. Era bem
feito, ágil, bem disposto"; physionomia intelligente
e cândida.
« Admirei esse valor do selvagem estoico do
deserto, e estoico sem vaidade. »
Como se vê, G. Dias e Audubon estão acordes;
quem se separa e fica só, é o Sr. Alencar.
Conhece-se n'este trecho o índio. Ha notável
firmeza e verdade no pincel do mestre, que viu o
original das estampas que esboça, e não tem a
vaidade de pintar figuras de sua exclusiva con-
cepção. Rápidos contornos e cores ligeiras desta-
cam o desenho, a que só falta o movimento da
vida. Nem uma d'essas linhas ou tintas provoca a
menor contestação.
Mas, voltando ao assumpto : o que é que vemos
no capitulo do Sr. Alencar, com o cunho nacional
fundamente impresso? Aboicininga (á similhança
da qual silva Iracema), o tigre, o coandú.
Mas nos versos do Dias vemos o condor, o lhama,
também o tigre. Dirão : o condor e o lhama não
são propriamente do Brazil. Responderei: também
o tigre e o coandú não são exclusivamente d'este
208 LITTERATURA BRAZILEIRA.

paiz — o primeiro encontra-se na Guyana e


Surinam, e o segundo na Guyana e no México.
Logo...
Estou fatigado em extremo. Continuarei.

Teu, do coração,
SEMPRONIO.
CARTA YIÍI

CINCINNATO A SEMPRONIO

Rio, 29 de Dezembro de 1871.

Respeitável amigo. *'<

Nosso Senhor te dê muito boas festas na alma e no corpo,


gloria, paz de espirito e prebendas largas. Se nada d'isto te
constitue felicidade, consulta Varro, o qual desinvolve 288
opinões sobre o verdadeiro constitutivo d'ella; e a que mais
te aprouver para estréa de novo anno, essa te desejo.
Tenho lido com inexcedivel interesse as tuas optimas car-
tas, relativas á Iracema. Pena é que tão magistral dicção,
tamanha competência, tão intelligente critica, se não applique
a mais dignos assumptos: o estudo dos escriptores de boa
nota, a apreciação de seus defeitos e suas bellezas, está in-
vocando, em proveito das lettras, a tua attenção: e affigura-
se-me que uma brilhante pagina te será reservada na nossa
historia critica. Por ahi, o uso é deprimir vagamente e sem
analyse a flbra do autor antipathico; ou também passar ca-
landra sobre o panno mais bruto para lustral-o, e applicar ao
livro mais pífio certos termos encomiasticos e bombásticos,
12.
210 LITTERATURA BRAZILEIRA.
taes como: estupendo primor; esmalte de eloqüência e bel
leza; auge de perfeição ; -fecho de abobada litteraria: non
plus ultra da sapiência; cinta, capitei e coroa da columna
das lettras
Ora, toda esta algaravia, esta cascalheira, o que significa é
o dialecto do elogio mutuo, ou uma bajulação torpe, ou uma
ignorância philauciosa com que vãos sons pretendem encobrir
deficiência de idéas e incompetência de julgamento.
Por isso, quando as palavras de um critico, honesto e in-
telligente, allegam e provam, dissecam e patenteiam, argu-
mentam e julgam, estudam e ensinam, para logo se tornam
convincentes e autorisadas , e a sua sentença é confirmada
pelo Supremo Tribunal de Justiça da Opinião. Taes são os
triumphos reservados a pennas como a tua.
A minha canoa ahi vae singrando na alheia da tua nau.
Onde eu atiro um piparote, disparas tu o teu canhão Krupp.
Vamos continuando este divertimento pyrotechnico, e abra-
mos novamente o Til.
Já agüentei a leitura do que o autor chama I o volume, em
15 folhetinsinhos. Para indigeslâo, já basta, e direi mal aos
meus peccados, quando tiver de encetar o denominado 2o.
É isto um acervo de erros e defeitos, que nem por des-
cuido resgata o bruxulear de uma sombra de belleza.
0 enredo é chato. 0 dialogo desnatural, impróprio, forçado.
As imagens são uma incrível profusão de disparates. A gram-
matica mais elementar geme a cada linha. Os caracteres dos
personagens são todos repellentes, mal trajados e peior traça-
dos. Aqui os velhos são creanç^s, e as creanças são velhos.
Descobre-se a cada momento o inaudito tratear da imagi-
nação para gemer sem produzir senão monstros, como seio
exhausto que, ao ser sorvido, só deita sangue. A linguagem
compõe-se de uns archaísmos inhabilmente extrahidos de
elucidarios, e de gallicismos de palmatória, tudo caldeado
com uns neologismos que se não comparam com coisa al-
guma senão com a escola senial, na qual não ha senão um
mestre e um discípulo... que é elle mesmo. A invocação a
CINCINNATO A SEMPRONIO. 211
similes, das sciencias, não faz senão revelar permanente-
a mais fundamental impericia em todas ellas.
De quanto precede, e de muito mais, fácil fora dar provas
aos cachos. O autor terá lá uns méritos quaesquer; é de
crer; mas da lingua em que escreve, do instrumento que
toca, nem a escala conhece : e pretender alturas épicas quem
carece de conhecimentos rudimentares, é o mesmo que as-
pirar a tocar variações de Thalberg em tambor ou berimbau.
0 perfeito manusear de um idioma é tão indispensável con-
dição, para quem affronta a luz publica, que nos diz o
mestre:
Em summa, sem a língua, o mais divino autor,
faça elle o que fizer, é péssimo escriptor.

Que será, quando á ignorância da lingua se une a incohe-


rencia das idéas, e o perenne insulto ao senso comimim ?!
Esta nossa tarefa ha muito se pudera dar por finda, se se
tratasse somente da penna analysada; mas a escola do
mau gosto, e do absurdo ataviado com o nome de modernice,
vae indo de foz em fora, e importa que se ponha dique a um
proselytismo estullo e, com capa de progressista, tremenda-
mente retrógrado. Se ficarem cegos, sejam só os da peor
espécie : os que se obstinam em não querer ver.

Eis-ahi, parece-me, sufficientes amostras do modo como


o nosso romancista retrata as suas personagens. Quanto nes-
sas transcripções se admira apparece logo no introito do seu
Til, e as outras figuras vão sendo pintadas, já se vê, com aná-
logas tintas. Toma elle por observação fina, imagens elegan-
tes, descripção pittoresca, o que não é senão esforço impo-
tente, falso dizer, orientalismo degenerado, portuguez-tupy.
0 Sr. José de Alencar nunca retrata senão figuras congêne-
res, as quaes são todas vasadas no mesmo cadinho. Seus pin-
céis occupam-se mais dos accessorios, e esses geralmente
grutescos. Faz lembrar a mania do tempo de Luiz XV : o^ re-
tratistas pouco se importavam com a símilhança ou com a
'212 LITTERATURA BRAZILEIRA.
natureza: todas as mulheres tinham olhões, boquinhas, e faces
redondas onde a saúde lhes rebentava no encarnado; só se
conheciam as differenças em estarem trajadas á Diana;á Flora,
á Juno, ou á Amphitrite, como os homens á Marte, á Achil-
les, ou á Automedonte : ficavam não retratos, mas painéis
ridículos.
O nosso Apelles litterario julga que para o romance, para
a historia imaginaria de um viver corrente, ha de sempre ex-
hibir-nos figuras desnaturaes, impossíveis, o que é antipoda
dos preceitos da arte. Ao que elle aspira é a descrever sempre
umas monstruosidades humanas. Nero, se Plinio não mente,
teve a phantasia de mandar que o pintassem n'uma tela de
120 pés de altura, colosso que um raio destruiu. As perso-
nagens do Sr. Alencar são telas Neronianas, fulminadas pelo
gosto e pela opinião.

Teu respeitoso admirador,


ClNCINNATO.
CARTA VI

Meu generoso amigo,

Nas suas Reflexões a respeito dos Annaes Histó-


ricos de Berrêdo, diz G. Dias estas palavras : « Hei
de ser mais extenso, mais diffuso, do que talvez
conviesse, porque quero ser comprehendido e por-
que escrevo para todos. 0 que fôr de sobra para
alguns, será apenas sufficienle para outros. »
Assim eu. Cincinnato de minha alma. Tem pa-
ciência.
Mostrei ao Sr. Pinheiro Chagas, que G. Dias
voltara das suas excursões submarinas trazendo
só pérolas e coraes, ao passo que J. de Alencar
viera do seu mergulho no lago com muito cara-
mujo e muito lodo aquático. 0 que o primeiro
não extrahiu, não foi porque o não tivesse visto,
214 LITTERATURA BRAZILEIRA.

senão porque o não achou digno de apanhar e


erguer á altura da superfície.
Verdadeiramente falando : pôde-se presumir
que G. Dias « a quem ninguém se avantaja na
opulencia da imaginação e no conhecimento da
natureza brazileira e dos costumes selvagens »
(palavras do próprio Sr. Alencar), ignorasse que
existia no Brazil o prudente tamanduá, e quantos
animaes, reptis, peixes, arvores, flores e objectos
nossos se vêem com profusão inexcedivel aponta-
dos na Iracema? É que o seu tacto delicadissimo
percebia logo onde existia o bello, e nem um ins-
tante se demorava onde não podia haver senão o
trivial ou o grutesco.
E o cunho nacional de uma obra consistirá em
reproduzir ella quanto se acha em a natureza,
nos costumes do povo, nos preconceitos e fragili-
dades de uma raça?
Se assim fosse, custaria pouco a ser grande
poeta ou o primeiro romancista de uma nação. Se,
não se exige principalmente, para que se goze de ^
taes foros, que se colha e se exhiba o que pôde
fazer o publico deliciar-se sem comtudo fazêl-o
molestar-se ou córar; se o pincel, que se molha
nas tintas finas e elevadas, deve, para ser tido
por completo, chafurdar também nos residuos
barrentos e grosseiros, n'este caso é certo que
faço das litteraturas a idéa mais errônea possivel.
SEMPRONIO A CINCINNATO. . 215
Segundo penso, meu amigo, e me parece re-
commendar a esthetica, o artista não tem o direito
de perder de vista o bello ou o ideal, posto que
eombinando-o sempre com a natureza.
Não fora talvez descabido aqui externar o meu
humiílissimo parecer sobre o modo de ver de al-
guns (muito autorisados) que entendem que a
arte é a imitação, e de outros que opinam ser ella
a interpretação da natureza. Ficará para logo, se
me sobrar tempo e me aprouver deter-me n'este
ponto.
Mas o que ainda ninguém se lembrou de pôr
em duvida é que, ou interpretando-a, ou imi-
tando-a, o artista se dirige sempre ao alvo de bel-
leza ideal, que debalde se procuraria n'essa lenda
fertaneja, mais parecida com um catalogo de
zoologia e de botânica cearense, do que com uma
obra d'arte.
Li um precioso livro, intitulado — A Sciencia
io Bello— por Levèque, obra que mereceu ser
"ftfoada por três Academias da França. Nunca mais
me esqueci de um pedacito que lá vem, conce-
bido n'estes termos : « Se o romancista não é
senão o arrolador (greffier) da vida de Iodos os
dias, quero antes a vida em si mesma, que é viva,
e onde me não demorarei com a vista senão sobre
o que me interessar. »
Ah! mas eu esquecia-me que eslou dissecando
216 LITTERATURA BRAZILEIRA.

um poema, e não um romance. Pois bem ; se se


trata da poesia, a coisa muda de figura, sim,
porém para condemnar ainda mais a producção
do Sr. Alencar. « A poesia engrandece todos os
caracteres; entre suas mãos o bravo torna-se
valente, o prudente torna-se sábio, o falante torna-
se eloqüente, o guerreiro um heroe, o heroe um
semi-deus. » Tudo vae precisamente ao inverso
na Iracema; o guerreiro, que devia affigurar-se
heroe, não passa deimbelle, pusillanime; o heroe
da historia, que devia na poesia assumir as pro-
porções do semi-deus, está abaixo do nivel do
guerreiro. É sempre este destroço dos caracteres
e da harmonia artistica.
Ah! mas eu esquecia-me que se trata da mais
sublime manifestação da poesia — a poesia épica.
a Iracema não seinculcauma amostra no gênero?
Pois bem : quanto mais nos elevamos na escala da
arte, tanto mais desce esse bastardo filho de um
talento, que a vaidade perdeu como o orgulho a
Satan.
Sempre que vem á baila falar da epopéa, lem-
bro-me da Iliada como o modelo por excellencia.
Homero é o primeiro poela épico, desde que o
mundo é mundo,
E poderia acaso a Iliada servir de modelo a um
poema americano? A vida selvagem encerra em si
bastante interesse, bastante grandeza, bastante
SEMPRONIO A CINCINNATO. 217

maravilhoso, para sustentar movimentos d'aquelle


fôlego e magestade? D'aquelle não direi; mas se
tivéssemos um Homero, a mina para as suas ex-
plorações não seria outra. Essa raça, seu passado,
suas superstições, é tudo de tamanho e vigor des-
communal. O gentilismo tem a sua face pomposa
e formidável. A epopéa barbara não pôde deixar de
ser uma insigne epopéa.
Um dos primeiros elementos de grandeza da
Iliada é o maravilhoso, symbolisado na crença
paga. Também os nossos índios tinham do ma-
ravilhoso, e á farta. As suas superstições —eis,
no meu fraco entender, o músculo d'essa poesia;
e esse músculo, força é dizêl-o, não tem sido
desinvolvido e distendido, como acaso cumpriria,
pelos nossos épicos.
0 Homero brazileiro acharia na nossa raça pri-
mitiva typos parecidos com Achilles e Reitores,
Priamos e Meneláos. Até encontraria uma Helena,
sem outro trabalho mais que o de abrir a historia.
Fernando Diniz diz : « Os Tupinambás depois de
haverem tomado o recôncavo, dividiram-se tam-
bém, dando logar á discórdia no meio d'estepovo
um drama egual ao que originou a Iliada. Uma
rapariga de certa tribu da ilha de Itaparica foi
raptada pelos habitantes do local onde depois se
ediíicou a cidade da Bahia; e d'ahi accendeu-se
uma guerra terrível. »
13
218 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Seguramente esse Homero não havia de enten-


der a poesia nacional, e muito menos a poesia
épica, segundo a entendeu — vã e facticia —
J. de Alencar.
Sim, elle iria bebêl-a nas tradições dos índios,
mas nas tradições que, pingues e plenas, as
tinham, nos painéis summos e monumentaes das
suas batalhas, que eram batalhas titanicas. Desde
a cilada ao inimigo até o incêndio, desde o he-
roísmo nas lutas até o heroísmo das hostes,
tudo offerecia elevação própria, que não destoaria
do drama nem da epopéa.
Bebêl-a-hia principalmente nas superstições,
susceptíveis dos episódios mais robustos, de agi-
gantados prodígios, de que a historia dá idéa que
se vê que é pallida, mas que bastante colorido en-
cerra para nos fazer conhecer que tinham o calor
e a importância de verdadeiras maravilhas.
Bebêl-a-hia no que o caracter selvagem tinha
de esculptural, predominante, e athletico, e não
no que podia ter de mesquinho, ridículo ou acci-
dental.
De dentro das soturnas cavernas, do seio dos
valles intermináveis, de cima dos rios oceânicos,
dos recessos da mansão opaca das selvas, acor-
daria os echos de dramas tremendos que ahi
jazem adormecidos na necropole de séculos, evo-
caria as visões mysteriosas, mythicas da sua theo-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 219

gonia, as sombras das suas divindades, dos seus


lemures, que faria representar papeis pavorosa-
mente grandes, quaes os representa no Hamlet o
espectro de Banko.
Assim como o poeta grego fazia tremer o Olympo
com um movimento da cabeça de Júpiter, o poeta
americano faria abalar-se a solidão nos seus fun-
damentos com o simples tanger do maracá do sa-
cerdote inspirado, representante de Tupan.
Faria emfim dos guerreiros heroes; dos heroes
semideuses; da crença religiosa a primeira fonte
do poema — tudo em ponto grande, compatível
com a pujança de üma raça, indubitavelmente
capaz dos commettimentos mais altanados.
Ou escreveria assim, ou de certo não escreveria
um poema. Agora envergonhar a pátria com uma
concepção sem altura de motivos, sem elevação
de vistas, sem movimento, trajada de gallas ephe-
meras, de lentejoilas impossíveis, falando lin-
guagem affectada, frouxa e futil, o que tudo im-
porta uma antithese da poesia heróica e do gênio
colossal do nosso aborígene, isso é que não. Te-
ria o bom senso e a generosidade de o não fazer.
Longe me tem levado a divagáção, e é tempo de
troceder ao assumplo.
Mostrei o abysmo que ha entre uma descripção
de combate de índios por G. Dias, e outra por
J. de Alencar. Provei que a deslumbrante e har-
220 LITTERATURA BRAZILEIRA.

dida poesia das batalhas falta na Iracema, quando,


pelo contrario, se encontra, já não digo nos Tym-
biras ou no Tabyra, mas no Uruguay e Caramurú,
que são dos tempos da colônia.
Por exemplo, lê-se* no Uruguay :

« Fez proezas Cepé n'aquelle dia.


« Conhecido de todos, no perigo
<( mostrava descoberto o rosto e o peito,
a forçando os seos co' o exemplo e co' as palavras.
« Já tinha despejado a aljava toda,
« e, destro em atirar e irado e forte,
« quarilas settas da mão voar fazia,
« tantas na nossa gente ensangüentava.
« Seitas de novo agora recebia,
« para dar outra vez principio á guerra.
« Cepé, que o viu, tinha travado a lança,
« e, alraz deitando a um tempo o corpo e o braço,
« a despediu. Por entre o braço e o corpo
« ao ligeiro hespanhol o ferro passa:
« rompe sem fazer damno, a terra dura,
« e treme íóra muito tempo a hastea ;
« mas de um golpe o Cepé na testa e peito
« fere o governador e as rédeas corla
« ao cavallo feroz. Foge o cavallo,
« e leva involuntário e ardendo em ira
« por todo o campo o seu senhor ; e ou fosse
« que regada de sangue aos pés cedia
« a terra, ou que pozesse as mãos em falso,
« rodou sobre si mesmo, e na caída
« lançou longe a Cepé. — Rende-te ou morre!
« grila o governador; e o Tape altivo.
« sem responder, encurva o arco, e a setta
ti despede, e n'ella preparara a morte.
« Enganou-se esta vez. A setla um pouco
SEMPRONIO A CINCINNATO. 221
« declina, e açouta o rosto a leve pluma.
« Era pequeno o espaço, e fez o tiro
« no corpo desarmado estrago horrendo.
« Viam-se dentro pelas rotas costas
« palpitar as entranhas. Quiz três vezes
« levantar-se do chão, caiu três vezes;
« e os olhos já nadando em fria morte
« lhe cobriu sombra escura e férreo somno. »

Lê-se no Caramurú:
« Já se avistava bárbaro tumulto
« das inimigas tropas em redondo ;
'Í e antes que empr'endam o primeiro insulto

« levanta-se o infernal medonho estrondo;


« os marraques, napés, e o brado inculto,
« todos um só rumor juntos compondo,
« fazem tamanha hulha na esplanada
« como faz na tormenta a trovoada.
« Mas quando tudo com terror fugia,
« o bravo Jacaré se lhe põe diante:
« Jacaré, que, se os tigres combatia,
« tigre não ha que lhe estivesse avante.
« Treme de Jararaca a companhia,
« vendo a fôrma do bárbaro arrogante,
« que, com pelle coberto de panthera,
« ruge com mais furor que a própria fera.

« Em quanto a selva passeava escura,


« de immortaes arvoredos rodeada,
« foi Jararaca, que a cuidou segura,
« ferido sobre o pé de uma frechada.
« Ficou-lhe a planta sobre a terra dura
d em tal maneira com o chão cravada,
« que por mais que- arrancal-a d'alli prove
« despedaça-se o pé, mas não se. move.
222 LITTERATURA BRAZILEIRA.
« Corre a turba a salval-o, e em continente
« voam mil settas desde a espessa rama,
« e cad' arvore alli no bosque ingente
« um chuveiro de tiros lhe derrama:
« cada tronco é castello : ao lado e frenle
« a occulta multidão bramindo clama;
( eo resto, que em cavernas se escondia
« ao rumor da victoria concurria.

Do que fica ahi copiado verá o illustre Sr. Pi-


nheiro Chagas que, até antes de G. Dias, já se achava
nas composições dos primeiros épicos brazileiros
fundamente impresso o cunho nacional. Elles não
tinham só « entrevisto a mina; » tinham-n'a ex-
plorado e com largueza e successo.
Como seguramente o critico portuguez deve
saber, o visconde de A. Garrett, ajuiza do pri-
meiro poema do seguinte modo : « O Uruguay,
de José Basilio da Gama, é o moderno poema qne
mais mérito tem, na minha opinião. Scenas natu-
raes mui bem pintadas, de grande e bella execu-
ção descriptiva; phrase pura, sem affectação;
versos naturaes, sem ser prosaicos, e, quando
cumpre, sublimes sem ser guindados; não são qua-
lidades communs. Os brazileiros principalmente
lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que n'elle
é verdadeiramente nacional, e legitima americana. »
E Fernando Diniz, falando do Caramurú, diz :
« É uma epopéa nacional brazileira que interessa
e enleva. » Copiámos estes extractos da noticia que
SEMPRONIO A CINCINNATO. 225

vem annexa a estas duas obras, impressão de


Lisboa, 1845.
Portanto, não pertence a J. de Alencar (sem
querer falar em G. Dias) « a honra de ter dado o
primeiro passo affoito na selva intrincada e ma-
gnificente das velhas tradições. »
Não; não só não lhe pertence similhante gloria,
como até lhe pertence exclusivamente a triste cele-
bridade de haver offerecido ao mundo como pa-
drão da poesia brazileira, um misto de vulgaridade
ede burlesco, que será sempre reconhecido por
quem não fôr demasiado benevolo ou demasiado
sectário, como contraste vivo da historia.
Meu amigo : desejando aproveitar o vapor (que
está prestes a largar) não vou além por hoje.
Ha tanto ainda que dizer, quanto á policia da
lingua, notas, carta final!...
Mas hei de levar, a missão ao cabo.
Ha n'isso alguma coisa de consciência e de pa-
triotismo. Digo : PATRIOTISMO!
Como sempre
Teu fraco, mas leal amigo,
SEMrROMO.
CARTA VII

Sem mais preâmbulo.


Diz J. de Alencar que Martim Soares Moreno era
filho do Rio Grande do Norte (Iracema, pag. 93 e
180).
Diz mais que « em 1603, Pero Coelho, homem
nobre da Parahyba, partiu como capitão-mór de
descoberta, chegou á foz do Jaguaribe, e ahi fun-
dou o povoado, que teve nome de Nova-Lisboa »
(pag. 159); e que « n'esta primeira expedição
(porque houve segunda, a de João Soromenho,
segundo diz J. de Alencar) foi do Rio Grande do
Norte um moço, de nome Martim Soares Moreno,
que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos
índios do littoral, e seu irmão Poty » (pag. 160).
Ora, que em 1603 partiu Pedro Coelho para co-
lonisar o Ceará, e que em sua companhia foi Mar-
13.
226 LITTERATURA BRAZILEIRA.

tim Soares Moreno, dizem-n'o todos os historiado-


res e chronistas do tempo. Pois bom; guarda tn
bem em memória, que em 1603 Martim Soares
Moreno estava no Ceará com Pedro Coelho.
Mas pergunto eu : em que «data se fez a con-
quista do Rio Grande do Norte? Vae responder por
mim um historiador :
« 1597—N'este anno fez-se a conquista do Rio
Grande do Norte por ordem de Philippe I, com o
intuito de impedir aos Francezes a exportação do
pau "brazil, e de domar os Potyguaras, que des-
truíam todas as plantações dos moradores da Pa-
rahyba, e estorvavam o progresso d'esta colônia.
« D. Francisco de Souza, Governador e Capitão
General do Estado do Brazil, contribuiu com todas
as despesas, á custa da Real Fazenda. A esquadra
que se aprestára em Pernambuco, levando um Je-
suíta por engenheiro e um Franciscano por inter-
prete da lingua dos indígenas, navegou destina-
damente á emboccadura do Rio Grande, que era
o porto mais visitado pelos corsários.
« A empresa teve principio com um fortim de
madeira, junto ao logar onde hoje está a forta-
leza dos Reis, e cujo primeiro commandante, Je-
ronymo de Albuquerque, teve muitos e renhidos
combates com os indígenas por mais de um anno,
até que travando amizade com um dos chefes,
chamado Sorobabé, por mediação de um índio ai-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 227

liado, teve a opportunidade de lançar os funda-


mentos da cidade, que tomou o nome do Natal,
por se encontrar a inauguração da sua maíriz com
a festividade do nascimento do Redemptor no
anno de 1599. » (Deducção Chronoligica, do Gene-
ral J. I. de Abreu e Lima, pag. 62).
Do que acabo de citar, o que é que. se eviden-
cia? Que antes de 1597 não existia no Rio Grande
do Norte o menor indicio de colonisação, e muito
menos portugueza; que só n'esse anno foi que
ahi teve principio o primeiro estabelecimento, con-
sistente em um fortim de madeira; e que, graças
á mediação de um índio alliado, que se relacionou
com o chefe Sorobabé, foi que teve Jeronymo de
Albuquerque opportunidade de lançar os funda-
mentos da cidade do Natal. Cumpre advertir, antes
de tudo, que esses mesmos fundamentos só os
poude Jeronymo de Albuquerque lançar em 1599,
porque de 1597 até essa ultima data levou elle
cm renhidos combates com os índios. 0 mesmo
autor, na pag. 64 da sua citada Deducção,.diz :
« 1599. — Feste anno começou Jeronymo de
Albuquerque, natural de Pernambuco, a fundar a
cidade do Natal, hoje capital da província do Rio
Grande do Norte. »
Admittida por tanto a hypothese (inadmissível,
como se provará) de haver Soares Moreno nascido
no Rio Grande, este facto de modo nenhum pode-
228 LITTERATURA BRAZILEIRA
ria ter tido logar antes de 1597, porque d'este
anno para traz o Rio Grande estava em pleno do-
mínio dos selvagens Potyguáras, que, se algumas
transacções tinham, era com Francezes, « que
« vinham traficarem pau brazil », como faziam
na Parahyba. O autor citado refere a pag. 52 o
seguinte : « Os Potyguáras, naturaes da Parahyba,"
unidos com os Francezes, que vinham traficar em
pau brazil, faziam graves damnos aos povoados de
Itamaracá e de Iguarassú, etc.
Ora, ainda admittida a primeira hypothese, fora
necessário que, ou a mãe de Morems houvesse ido
na tal esquadra de Jeronymo de Albuquerque, o
que não é comtudo muito presumível, porque o
guerreiro devia anteceder á família e preparar-
lhe os necessários commodos e garantias; ou que
fosse ella natural do logar, o que, em todo o caso,
só poderia acontecer depois de 1597.
Mas não seja esta a duvida; dêmos de barato
que a mãe de Moreno fosse na expedição guerreira
de Albuquerque, e até que já fosse em estado de
adiantada gravidez, de sorte que logo nos pri-
meiros dias da chegada tivesse o seu bom successo.
Combinando as datas, a que conclusão chega-
remos? Á seguinte que não deixa de ser curiosa e
sobretudo digna do talento inventivo do chefe da
nossa litleratura : que Martim Soares Moreno,
nascido em 1597, tinha necessariamente em 1603,
SEMPRONIO A CINCINNATO. 229

quando acompanhou Pedro Coelho ao Ceará, 6


annos de edade. Será isso crivei? Examinemos
bem a coisa.
0 citado historiador, na pag. 70, diz que Diogo
de Menezes « contentou-se com enviar ao Ceará
(em 1610) um official portuguez, que tinha acom-
panhado a Pedro Coelho (em 1603) e se havia
conduzido bem com os índios, etc. » Logo, temos
Martim aos 6 annos de edade feito official, e aos
6 annos conduzindo-se bem com os índios. Esse
cheíe da nossa litteratura, se continuar assim dá
decididamente com a pobresita em pantana! Com
a litteratura só? Com a historia também, para glo-
ria sua.e dos idolatras.
Mas dirá o Sr. Alencar (digo, alguém por elle),
que, abrindo o 2o vol. das Obras de J. F. Lisboa
(que substanciou os dizeres dos mais acreditados
historiadores) se acha na pag. 74, o seguinte tó-
pico em seu favor :
« Tinha Diogo de Campos um próximo parente,
ao qual de mui tenra edade fizera acompanhar a
expedição de Pedro Coelho. »
Sim, senhor; vi ahi essa mui tenra edade. Mas,
peço-lhe venia para continuar a ler o mesmo
autor, na mesma pagina e no mesmo ponto, e
veremos quem tem razão.
« Tinha Diogo de Campos um próximo parente
ao qual de mui tenra edade fizera acompanhar
230 LITTERATURA BRAZILEIRA.

a expedição de Pedro Coelho, afim de que apren-


dendo a lingua dos indígenas, e estudando os seus
costumes, se fizesse seu ião familiar, que elles o
tivessem como amigo, parente ou compadre, se-
gundo usam de chamar ás pessoas a quem criam
affeição. »
Primeiramente o fim que teve em vista Diogo
de Campos, mandando Moreno na expedição de
Coelho, foi fazêl-o aprender a lingua dos indíge-
nas, e estudar os seus costumes. Pois. bem ; nin-
guém incumbe um menino de 6 annos de tareía
tal, evidentemente fora do alcance ainda do mais
hábil n'esta edade. A historia declara ter sido
Martim hábil e industrioso. Mas, apezar d'isso,
não é crivei que em tão verdes annos, o entregasse
a si sómenle Diogo de Campos, homem de aviso;
e muito menos que confiasse em que, em taes
circumstancías, surtisse effeito o expediente.
Logo as palavras mui tenra edade se devem enten-
der muito moço, ou rapaz, ou joven, e não menino
de 6 annos. N'aquelle$ tempos, em que as empre-
sas arriscadas só eram confiadas a espiritos ma-
duros, a homens feitos e proveclos, deveria não
só despertar certo reparo expôr-se um moço a taes
provas, como também ser pelos chronistas consi-
derado de mui tenra edade que talvez se achava
em plena puberdade.
Em segundo logar, cumpre ainda dizer que o
SEMPRONIO A CINCINNATO. 231

próprio citado historiador confirma em seguida


esta interpretação, nos seguintes termos :
« Houve-se o mancebo, chamado Martim Soares
Moreno, com tanto aviso e discrição, que, mallo-
grada a expedição de Pedro Coelho, e repellidos
depois os dois padres jesuitas, elle só continuou
a conservar a affeição dos índios, um dos quaes,
o principal, Jacaúna, até o nomeava filho, e o
acolheu com grandes alvoroços e satisfação,
quando chegou ao Ceará, despachado capitão pelo
Governador geral. »
Ora, primeiramente não é verosimil que uma
creança de 6 annos se houvesse com esse apre-
goado aviso e discrição; e tanto não era creança,
que o historiador lhe dá o nome de mancebo; e
depois, releva observar que também inverosimil
se affigura que o nomeasse capitão-mór do Ceará
o Governador geral se elle tivesse 13 annos, edade
que, a prevalecer a opinião do chefe da nossa litte-
ratura, devia ter Martim, pois que recebeu essa
nomeação em 1610.
Sempre desejara que fosse o próprio Sr. Alen-
car quem explicasse estes impossíveis, e não nin-
guém por nenhum.
Mas não é tudo. Dêmos ainda de barato que
Martim acompanhasse a Coelho para aprender, a
lingua e estudar os costumes dos índios, com 6 an-
nos ; que com 6 annos se houvesse com,todo aquelle
232 LITTERATURA BRAZILEIRA.

aviso e discrição, levando as lampas ao pratico


aventureiro Pedro Coelho ; que com 15 obtivesse
do governo geral a nomeação de capitão- mór do
Ceará, e que com 14 tivesse aqui fundado o presi-
dio de Nossa Senhora do Amparo. Isto é um impos-
sível contra a razão, mas nada será em face do
impossível contra a natureza, como se vae ver.
Tendo Pedro Coelho ido colonisar o Ceará em
1603, ahi só se achou até 1604 porque, usando
de perfídia com os índios e até os aluados, teve de
ceder ás insidias e represálias d'estes, pondo os
pés em polvorosa com sua família para a Parahyba,
fuga em que perdeu dois filhos de menor edade
(Vid. a Historia do Brazil por Constancio, por Sou-
they, etc).
Pergunta-se : Martim Moreno, que viera em
companhia de Coelho, acompanhou-o na fuga
para o primeiro estabelecimento d'este aventu-
reiro na Parahyba? Diz-nos o Sr. J. de Alencar, que
não (Iracema, pag. 10 e 11.) Ouçamol-o :
« O estrangeiro disse (â índia) :
« — Sou dos guerreiros brancos, que levanta-
ram a taba nas margens do Jaguaribe, perlo do
mar, onde habitam os Pytiguáras, inimigos de
tua nação. Meu nome é Martim que na tua lingua
diz como filho de guerreiro : meu sangue o do
grande povo que primeiro viu as terras da tua pá-
tria. Já meus destroçados companheiros voltaram
SEMPRONIO A CINCINNATO. 233

por mar ás margens do Parahyba d'onde vieram :


e o chefe (Pedro Coelho), desamparado dos seus,
atravessa agora os vastos sertões do Apody. Só eu
detentos fiquei, porque estava entre os Pytiguáras
do Acaraú, na cabana do bravo Poty, etc. »
Ora, se no momento em que Martim está fa-
lando (agora, diz elle) Pedro Coelho atravessava em
fuga os vastos sertões do Apody, está-se mettendo
pelos olhos que a data em que Martim falava á
índia era 1604.
Logo, quer nos parecer que se Martim nasceu
no Rio Grande em 1597, ese em 1605 tinha 6 an-
nos, em 1604 devia necessariamente contar 7.
Será isto lógico? Talvez ponham em duvida os vo-
luntários cegos.
Pois bem : com 7 annos de edade, Martim Soa-
res Moreno pelejava como guerreiro consummado,
desbancava o famoso chefe Mel Redondo, conquis-
tava a índia Iracema, e tinha d'ella um filho! Com
7 annos!
Explica-me a coisa, Cincinnato, com as tuas tão
escolhidas facecias. Faz-me essa obra de caridade.

Teu sempre fiel amigo,


SEMPRONIO .
CARTA VIII

Illustre e douto escriptor: Parece-me haver pro-


vado, de modo irrecusável, carecer a Iracema do
vigor e brilho, que a genuína interpretação da
historia attribue á poesia indígena brazilia.
Provei, cotejando capítulos inteiros da obra de
J. de Alencar, com extractos dos nossos primeiros
modelos, que essa falta se lhe nota-, até quando
menos o fora de esperar, isto é quando se trata
das próprias guerras — foco principal, senão úni-
co, das paixões d'esse povo. E como não havia
de ser assim, se isso mesmo entrou nos planos do
Sr. Alencar — assignalar essa poesia — obra sua
— pelo caracter que lhe dá em todas as condi-
ções, circumstancias e assumptos da vida selva-
gem? Fallaz illusão, que só o mais desregrado a
balofo orgulho explica.
236 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Eis o que encontro n'um historiador :


« Tudo nos Tupys (os índios que figuram na Ira-
cema são todos d'esta raça) respirava guerra : o
nascimento, a educação, o casamento e a morte,
os seus hábitos, as suas idéas e a sua religião. Se
a mãe chorava com as dores da maternidade,
aquellas lagrimas podiam cair sobre o coração do
menino e tornal-o covarde : convinha portanto
matal-o. (Laet, Ind. Occ, L. 17, cap. 15.)
« Apenas nascidos, eram pintados com as cores
da guerra, ourucú e o genipapo, como se o negro
e o vermelho d'aquellas tintas symbolisassem o
sangue e o lucto; a seu lado depositavam um arco
e frechas, que os acompanhariam meninos, jo-
vens, adultos, guerreiros, e depois de velhos, e
depois de mortos.
« Apenas saidos da infância, um baptismo de
sangue os aguardava; furavam-lhes os lábios eos
lobulos das orelhas, e davam-lhes um nome que
com aquella provança mereciam (Relation du
voyage deRoulox Baro, Trad. deMorau, pag. 233).
« Cresciam no meio de exercícios physicos que
lhes desinvolviam todas as forças do corpo, torna-
vam-se homens no meio de fadigas, e só eram re-
cebidos guerreiros á força de martyrios. Para o
casamento era preciso conquistar uma mulher, e
fazer um prisioneiro, ou levar a palma aos outros
em força e agilidade; na morte só os grandes iriam
SEMPRONIO A CINCINNATO. 237

para além das altas montanhas, onde os seus


maiores amigos e parentes os esperavam na deli-
ciosa beatitude do ócio entremeado dos prazeres
da caça e da pesca.
« Um cântico de guerra os acompanhava do
berço á sepultura, e fabricavam as suas armas ao
som de cantigas que narravam os aggravos recebi-
dos dos seus em tempos anteriores, e como todos
aquelles que prezam em primeiro logar as forças
physicas e a coragem. » (G. Dias, Obr. Post.,
vol. VII, pag. 204 e 205).
*,0ra, se « entre os Tupys era tudo poesia » e se,
por outro lado, « tudo n'elles respirava guerra »
como concejaer-se que pretenda realizar o legi-
timo typo uma poesia que, além de forçada, é im-
bellee molleirona, qual a da Iracema?!
Porém não é só n'isso que o autor tem em
pouco, sem autoridade nem razão, a historia.
Adoptado o dissolvente systema de demolir ou in-
novar quand même, leva adiante o sacrilégio con-
tra o legado que os tempos nos transmittiram, não
para que o profanássemos, senão para que lhe
rendêssemos a veneração, legitimamente devida
ás relíquias augustas do engenho e da observação;
não para que apagássemos a lâmpada, mas para
que nos servisse ella de pharol, tanto no presente
como nas edades vindoiras.
Mas o que queres, meu amigo? Se o Sr. Alencar
238 LITTERATURA BRAZILEIRA.

entende, por ser quem é, que em tudo tem carta


branca para devaneiar Se até na jurisprudên-
cia criminal, de natureza puramente positiva —
(stricti júris) tem elle a singular pachorra de de-
duzir, do silencio da lei, pena de prisão...! Já viste
espirito mais liberal e elevado'! Ha de ser difücil.
Lê-se na Iracema, pag. 5 :
« Ergue a virgem os olhos, que o sol não des-
lumbra; sua vista perlurba-se. Diante d'ella, e
todo a contemplal-a eslá um guerreiro estra-
nho, etc. (É Martim).... Foi rápido, como o olhar o
gesto de Iracema. A frecha, embebida no arco,
partiu. »
Lê-se na pag. 27 :
« A virgem retrahiu d'um salto o avanço e vi'
br ou o arco. »
Lê-se na pag. 45 :
« A virgem, avistando a figura sinistra de Ira*
puam, saltou sobre o arco, etc. »
Lê-se na pag. 85 :
« ... O christão defende-se apenas; mas a setta
embebida no arco da esposa, etc. »
Esse constante uso que faz a -índia das armas
guerreiras é desmentido pela historia. Só entre
os Tapuyas, mais embrutecidos e bárbaros, se
permittia ás mulheres usal-as. Entre os Tupys,
porém, « ciosos da sua dignidade », ás mulheres
não era licito trazerem armas; não caçavam e
SEMPRONIO A CINCINNATO. 239
muito menos pelejavam. O Sr. Alencar ignora isso?
Não ignora, mas não acceita, está acabado.
Lê-se na pag. 24.
« Iracema sentiu que sua alma se escapava para
embeber-se no osculo ardente. »
' E na pag. 53 :
« Iracema tomou a mão do guerreiro branco e
beijou-a. »
Recorrendo-se ao Glossário do Dr. Martius, en-
contra-se com effeito o verbo tupico piter (ou pê-
têra, segundo o muito acreditado Vocabulário do
Padre M. J. S., lente de Lingua Geral no Seminá-
rio Episcopal do Pará) com a accepção de — bei-
jar. Esta accepção é, porém, evidentemente figu-
rada, ou adoptada na.carência do termo primi-
tivo; a própria é chupar, sorver, vindo de pêtêma
oupetum ou pitum, tabaco, fumo, como se disses*
sem — sorver, aspirar a fumaça.
Isto me confirma a crença de que, no puro es^
tado selvagem, os nossos índios não conheciam o
beijo, e que este lhes foi transportado e ensinado
pelos colonisadores; muito menos como signal de
reconhecimento, digo de gratidão, qual o em-
prega o autor na segunda das passagens citadas.
« 0 beijo — diz-nos uma grande autoridade no
assumpto — se nos apresenta como a expressão
naturaí da affeição; todavia elle era inteiramente
desconhecido dos habitantes do Taiti, dos Neo-
240 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Zelandezes (D'Urville, vol. II, pag. 561), dos Pa-


puás (Freycinet, vol. I, pag. 56), dos aborígenes
da Austrália, dos Esquimaus (Journal de Lyon,
pag. 353.) » E porque não dos selvagens do
Brazil?
Lê-se na pag. 79 :
« A virgem pendeu a fronte-; velando-se com as
longas trancas... recolheu em seu pudor. »
E na pag. 70 :
« Quando veiu a manhã, ainda achou Iracema
alli debruçada... Em seu lindo semblante accendia
o pejo vivos rubores, etc. »
Rubor, pejo? Têl-os-hiam acaso?
N'uma sociedade, em que os instinctos e senti-
mentos da honestidade feminil se gastavam desde
os mais verdes annos, ao attrito e ao espectaculo
permanente da vida licenciosa, que esgotava toda
a sorte de abominações e turpitudes, poder-se-hia
levar á puberdade o que só o recato alimenta e
guarda? Por outra : podiam elles ter o que não
tinham por essência da sua própria sociedade?
G. Dias, de todos os historiadores de índios o que
mais os favorece, e ameniza a sua rudeza e fragi-
lidades, diz (e é sabido) que « as mulheres em
solteiras se prostituíam facilmente. » Fala-nos elle
— é verdade — de um chamado pudor; mas em
que consistia este? Eis o que refere o illustre es-
criptor : « 0 seu pudor (falando das mulheres)
SEMPRONIO A CINCINNATO. 241

revelava-se na honestidade dos gestos e maneiras,


e no mais consistia em não mostrarem nunca
signaes de... que, ou não tinham pelo freqüente
uso de banhos, etc. »
Não se vê que aqui o pudor, esboçado com co-
res tão vagas e indistinctas, parece antes generosa
concessão do poeta?
Mas observa o Sr. Alencar na sua carta final :
« 0 estudo da lingua indígena, é o melhor crité-
rio para a nacionalidade da litteratura. Elle nos
dá não só o verdadeiro estylo, como as imagens
poéticas do selvagem, os modos do seu pensa-
mento, as tendências do seu espirito, e até as
menores particularidades da sua vida. »
Entre parenthesis : esta idéa não é do Sr,
Alencar, bem que só elle lhe haja dado tamanha
latitude. Humboldt, que o Sr. Alencar não quiz
citar, sem duvida por não conhecer autoridade
acima de si nem mesmo Humboldt, (que loucura!)
disse : « Creio que se tossem bem estudados os idio-
mas dos selvagens, achar-se-hiam n'elles mais ri-
queza, e gradações mais delicadas, do que se devera
esperar do estado inculto dos que falavam. » D'0r-
bigny abunda na mesma opinião, queécommum a
muitos outros historiadores. Caberiam aqui ou-
tras ordens de considerações sobre alguns pontos
mais da carta do Sr. Alencar, que todavia nos re-
servamos para produzir quando tragarmos espe-
14
242 LITTERATURA BRAZILEIRA.

cialmente da referida carta, por assim o acon-


selhar a melhor distribuição da analyse.
Abro o Glossário e encontro com effeiloo vocá-
bulo pouçú, trazendo a seguinte significação : res-
peitar com algum pejo; e esfoutro — poçúçaba,
naturalmente derivado do primeiro com a signifi-
cação de — acatamento. Á excepção d'estes dois
vocábulos, nenhum outro ha, que eu saiba, da
lingua geral, exprimindo a idéa do attributo
moral.
Mas pergunta-se : pelo simples facto de virem
consignados ahi estes termos, devem ser elles re-
cebidos sem quarentena? Ninguém dirá que sim,
porque ahi também vem vocábulos evidentemente
intercalados na lingua dos selvagens pelo trato
d'estes com os europeus; por exemplo : coaracu-
rangába, relógio de sol, coatiçáva, escrivão, imirá-
rerecoára, meirinho, imirarereoçú, ouvidor, e
muitos outros. Logo, cumpre fazer a devida
digestão.
Primeiramente, a nossa razão indaga se a idéa
expressa repugnava, ou se, pelo contrario era
compatível com o estado moral da sociedade dos
incolas primevos. Com bons argumentos ninguém
dirá que tal idéa o era.
Em segundo logar, sendo assim, somos incl^
nados a presumir que os vocábulos foram, como
tantos outros introduzidos pelos colonos estran-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 243

geiros. Além dos motivos já expendidos fortale-


cem-me a crença de serem esses vocábulos oriun-
dos da necessidade de exprimir idéas advenlicias,
estas duas considerações : I o o dar o Dr. Martius
o termo pouçú na qualidade de duvidoso ou in-
certo, perguntando se será portuguez; 2o o vir este
termo (somente escripto d'este modo — possú) no
Vocabulário já referido, com as accepções de — '
respeitar, ter respeito. Ora, respeito não é o mesmo
que pej.o; e a idéa de respeito não só não repugna
como a outra, se não que é toda conforme com
qualquer sociedade barbara. Quanto a mim, pois,
é manifestamente preferível a accepção trazida
pelo Vocabulário, obra de autor nacional, mais
no caso por isso de ter estudado melhor a lingua!
, Mas diz o Sr. Alencar que « os diccionarios são
imperfeitos e espúrios » (a idéa não é d'elle, como
provaremos opportunamente.) Quem nos dará,
pois, a solução do problema? O Sr. Alencar não
nos ensina o meio de sairmos d'esta difficuldade,
mas ensinam-nol-o a razão e o bom senso.Voltemos-
nos para aquelles, que teem estudado as raças sel-
vagens no meio d'ellas; e os seus estudos nos ser-
virão de guia ou de phanal n'este oceano de duvi-
das e incertezas. Monalt, nas suas Becherches et
aventures chez les insulaires des Andaman, diz que
estes selvagens são « destituídos de todo senti-
mento de pudor, e muitos dos seus hábitos assi-
244 LITTERATURA BRAZILEIRA.
melham-seaosdo bruto. » O capitão Cook em sua
Voyage au pôle sud diz que os habitantes do Taiti
são absolutamente carecedores de toda a idéa de
decência, ou antes de indecência. » » Sem duvida
-— accrescenta Lubbock, que cita Cook — isto pro-
vinha em parte de serem as suas habitações aber-
tas, e não divididas em compartimentos separa-
dos » (como eram as dos nossos índios). Gabriel
Soares no seu Roteiro diz : « Como os pães e as
mães vêem os filhos com meneios para conhecer
mulher, elles lh'a buscam, e os ensinam como a
saberão servir : as fêmeas muito meninas, esperam
o macho, etc. » N'este sentido haveria ínnumeras
citações que fazer, cada qual mais autorisada.
Onde, pois, a idéa de pudor? e, se a não havia nem
n'um nem n'outro sexo, como existiria o termo,
senão depois do trato com os europeus ?
O Sr. Alencar disse que o pejo accendeu vivos
rubores na Iracema. Como rubores? Não se encon-
tra n'esses mesmos espúrios diccionarios termo
que signifique — córar. No Vocabulário acha-se o
verbo pucanú com esta accepção, mas é erro, por
— curar. Tanto é erro, que no Glossário vêm os
termos poçanoug epocanga, o primeiro exprimindo
— curar, e o segundo — medicina. Spix e Martius
asseguram que os nossos índios « não sabiam o
que era córar, e que somente depois de longas re-
lações com os europeus foi que a côr se tornou —
SEMPRONIO A CINCINNATO. 245

entre elles o indicio de uma commoção da alma. »


(Reise in Brazilien, vol. I, pag. 376.)
No diccionario da lingua tupy-austral, encon-
tra-se o vocábulo — córar, mopyranyapó — (fazer
vermelho). Mas, além de se presumir importado,
como se demonstrou, accresce que não era esta
lingua a que se falava entre os índios do Ceará.
Devo declarar, meu amigo, que, se desço a taes
minudencias, que talvez pareçam exaggerado ri-
gor, e que eu de certo não teria senão para o chefe
apregoado e decantado de uma litteratura, é por-
que êlle diz que os seus selvagens teem a « rudez
ingênua de pensamento e expressão, que devia ser
a linguagem dos indígenas. » Está enganado; não
a teem tal, não só no que fica dito, como também
no que a seu tempo se dirá.
.Lê-se na pag. 31 :
« — Teu hóspede fica, virgem dos olhos negros :
elle fica para ver abrir em tuas faces a flor da
alegria, e para colher, como a abelha, o mel de
teus lábios.
« Iracema soltou-se dos braços do mancebo,
e olhou-o com tristeza :
« — Guerreiro branco! Iracema é filha do Pagé,
e guarda o segredo da jurema. O guerreiro, que
possuísse a virgem de Tupan morreria.
« Martim torna a si e responde :
« — Os guerreiros de meu sangue trazem a
14.
246 LITTERATURA BRAZILEIRA.

morte comsigo, filha dos Tabajáras. Não a temem


para si, não a poupam para o inimigo. Mas
nunca fora do combate elles deixaram aberto o
camocin da virgem. »
Dize-me uma coisa ; se tu não soubesses o que
em lingua geral significa — camocin, depois d'a-
quelle introito do dialogo, que idéaíicarias fazendo
d'esse camocin aberto da virgem?
E a pia leitora como não córaria até que verifi-
casse o sentido do vocábulo túpico?

Teu leal amigo e respeitoso admirador,

SEMPRONIO.
CARTA IX

Meu amigo.
b v

Comprimento-te, e continuo.
Lê-se na pag. 84 da Iracema : « — .... Se o
guerreiro Cauby tem de morrer, morra elle por esta
mão, e não pela tua.
« Martim pôz no rosto da selvagem olhos de
horror :
«Iracema matará seu irmão ? — Iracema antes quer
que o sangue de Cauby tinja sua mão que a tua;
porque os olhos de Iracema vêem e a ti, a ella
não. »
Explica-me esta filigrana, que o Sr. Alencar
não achou planta exótica n'uma sociedade, onde o
sangue, longe de infamar, exaltava, porque era
prova de gentileza e bravura.
Entretanto, ao passo que tinha tal fineza para o
248 LITTERATURA BRAZILEIRA.

amante, não vacillava diante do extermínio da


tribu inteira, que uma palavra sua poderia salvar.
Assim, lê-se na pag. 52 :
— « 0 estrangeiro está salvo (diz ella); os
irmãos de Iracema vão morrer, porque ella não fa-
lará. »
N'estes irmãos, além de Cauby, estava compre-
hendido o próprio pae, o pagé. Será tudo, muito
poética, muito romântica, menos lógica, similhante
sensibilidade.
Não só isso, como também o que se segue, é
prova de que ella não sentia lá grande affecto a
esse pae, apezar de a estimar elle em tanto. Assim,
lê-se na pag. 143 :
— « Ainda vive Araken sobre a terra? (pergun-
tava a índia a Cauby, que fora ter com ella ás
praias do mar).
« PENA ainda; . depois que tu o deixaste,
sua cabeça VERGOU para o peito, E NÃO SE ERGUEU
MAIS.

— « Dize-lhe que Iracema é morta já, para que


elle se console. »
E foi preparar a refeição, armar a rede, etc.
Para não offender Martim, que ella, como se
tem visto, superpunha ás mais naturaes affeições,
deixou de chamar aos Potyguáras (a cuja tribu
pertencia Poty, amigo de Martim) Potyuáras,t
nome quedavam os Tabajáras (dil-oo Sr. Alencar)
SEMPRONIO A CINCINNATO. 249
aquelles por escarneo, significando comedores de
camarão (Vid. a pag. 51).
Mas, se ella observava tal delicadeza, que faria
inveja a muita gente civilizada da sociedade em
que vivemos, onde não só nos offendem na pessoa
dos nossos amigos, mas até nos assacam a nós
próprios pelos diários toda a sorte de doestos (nós
temos sido d'estas victimas), como não evitava a
Martim a protecção impertinente que o desgos-
tava (pag. 45), dando logar a Mel-Redondo dizer a
elle: « — Vil é o guerreiro, que se deixa proteger
por uma mulher » (pag. 28) ? Se se mostrava tão
tina e escrupulosa alli, tratando-se de um amigo
do amante, como não o fazia quando aqui se tra-
tava do pundonor, do brio (que era tudo entre os
selvagens) d'elle próprio ? Ah ! Iracema, tu foste o
primeiro fructo, absono já, da arvore estranha,
que devia mais tarde produzir a Diva, et reliqua !
Em mais de um passo se notam arranjos de
phrase, que se affiguram só próprios da linguagem-
polida. Assim, lê-se na pag. 21 :
— « Iracema... nunca sentiu a FRESCURA DO SEU
SORRISO. »

Sei que possuíam os Tupys o vocábulo yroiçang,


frescura, viração. Mas não obstante, ninguém
contestará que frescura de sorriso seja um dizer
figurado, só possível na linguagem de uma socie-
dade de outra ordem, que não a dos selvagens,
2S0 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Entre nós mesmos, só nas classes mais elevadas se
poderá usar de tal melindre e belleza de pensa-
mento e de expressão.
Ha um grande erro de fôrma na obra do Sr.
Alencar : Essa linguagem, sempre figurada, que
elle põe a cada instante na bocca dos bárbaros,
como se fossem todos poetas.
Está enganado; o uso, que faziam dos tropos,
era determinado tão somente pela necessidade,
quando tinham de exprimir as idéas abstractas,
para as quaes lhes faltavam termos. Fora d'isso, o
seu modo de exprimir-se havia de ser grosseiro,
rústico e simples, porque a-mais lhes não permit-
tia subir o estado de embrutecimento intellectual
e moral, em que o seu espirito jazia immerso. É
o que dizem todos os autores.
Lê-se na pag. 12 :
« — Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva.
E ella que guarda o segredo da jurema e o mysterio
do sonho. Sua mão fabrica para o pagé a bebida de
Tupan. »
E na pag. 32 :
« — O guerreiro, que possuísse a virgem de Tupan,
morreria. »
Inverosimil, porque a virgindade enlre elles
nunca foi signal de dislincção ou valia, de sorte
que a perda d'ella importasse opprobrio ou me-
nosprezo ; e ainda porque, se o fabrico da tisana
SEMPRONIO A CINCINNATO. 251

da jurema era segredo d'alta importância, pois que


d'elle dependia o prestigio do pagé, não lh'o teria
este confiado. Os pagés, por isso que eram im-
postores, deviam necessariamente ser, e o eram,
também muitíssimo ciosos da sua autoridade, e a
a não exporiam (como anão expunham) ámulher,
ente reputado vil entre elles. Falando dos pagés,
diz G. Dias : « Eram anachoretas austeros, que ha-
bitavam cavernas hediondas, nas quaes, sob pena
de morte, não penetravam profanos. » (Prim.cant.,
nol.) E mais : « Fugindo d'essa tal qual sociedade
que tinham, retiravam-se a cabanas affastadas e
obscuras, aoôco das arvores, á lapa dos rochedos
ou ás cavernas tenebrosas, onde nenhum guerreiro
entrava, e de cuja vizinhança se abstinham. »
(Obr. Post.) E mais : « Os segredos, que possuiam,
obtidos pela observação e experiência, ou herdados
dos seus antecessores, eram como o sello da sua
autoridade, e o característico do seu valimento
para com Deus. » (Ibid.) Como, pois, entregaria
Araken a outrem (fosse quem fosse| a alma da sua
impostura, que se poderia converter de chofre em
arma contra elle próprio?
Se o Sr. Alencar entendeu poder justificar a ano-
malia com o que refere G. Dias n'estes termos :
« Um prestigio de tal ou qual consideração rodeava
as mulheres no seu eslado de virgindade, porque
só ás virgens era permittido mastigar a mandioca
252 LITTERATURA BRAZILEIRA.

para fabricar o cauim » enganou-se; primeiramente,


o próprio G. Dias cita Dobrizhoffer, que « tratando
do çhiçha, que é uma espécie de cauim, parece in-
dicar que só as velhas o fabricavam» : em segundo
logar cumpre dizer que se os homens remettiam
esse direito, ou melhor essa obrigação para as
mulheres, era porque, segundo dizLery «julgavam
elles que isso lhes fazia mal, e o reputavam indi.
gno do sexo. » Mas o mesmo se poderia acaso en-
tender do fabrico da bebida de Tupan, que encerrava
o mysterio do sonho?
O que, porém, principalmente admira, meu
»
amigo, é, já não digo achar-se senhora dos segredos
do sacerdote uma mulher, mas ser a cabana d'este
accessivel a profanos, estrangeiros, e até ini-
migos
Por exemplo : na pag. 44 lê-se :
« Araken viu entrar na sua cabana o grande chefe
da nação tabajára. » 0 chefe não só entrou, como
n'ella ameaçou o pagé; é o que se vê da pag. 46 :
« — ... « tu que ameaças em sua cabana o velho
Pagé. »
Mas emfim, como se trata do chefe, o grande
Irapuam, dou de barato que o fizesse, bem que os
historiadores não ossignalem excepção de espécie
nenhuma, e digam positivamente, como se viu,
que incorria em pena de morte quem ousava pene-
trar na habitação do sacerdote de Tupan.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 253

Com espanto vemos o próprio sacerdote dizer á


filha, na pag. 54 :
« — Se os guerreiros de Irapuam vierem contra
a cabana, levanta a pedra e esconde o estrangeiro
no seio da terra. » >,*
Devo dar algumas explicações. Quando Irapuam
invadiu a cabana de Araken, com o fim de apo-
derar-se de Martim, de quem tinha ciúmes, pela
Iracema, o velho « avançou até o meio da cabana
(palavras do Sr. Alencar), e alli ergueu a grande
pedra e calcou o pé com força no chão : súbito,
abriu-se a terra. Do antro profundo saiu um
medonho gemido, que parecia arrancado das en-
tranhas do rochedo.
0 Sr. Alencar explica o prodígio em nota a
pag. 175. Eis as suas palavras : « Todo esse
episódio do rugido da terra é uma astucia, como
usavam os pagés e os sacerdotes de toda a nação
selvagem, para imparem á imaginação do povo. A
cabana estava assentada sobre um rochedo, onde
havia uma galeria subterrânea que communicava
com a várzea por estreita abertura ; Araken tivera
o cuidado de tapar com grandes pedras as duas
aberturas, para occultar a gruta dos guerreiros.
N'essa occasião a fenda inferior estava aberta e o
Pagé o sabia; abrindo a fenda superior, o ar en-
canou-se pelo antro espiral com estridor medonho,
e de que pôde dar uma idéa o susurro dos cara-
15
ôí LITTERAT URA BRAZILEIRA.

mujos. O facto é pois natural; aapparencia, sim, é


maravilhosa. »
Vemos, portanto, que essa astucia, que devia
ter custado a Araken, e que estava no seu interesse
manter mysteriosa e imperscrutavel, afim de
impôr-se á imaginação do povo, de repente a des-
venda elle próprio, e a entrega a um desconhecido,
que, saindo d'alli, poderia ir apregoar a impos-
tura, dando logar a decair do publico conceito
quem só a ella devia o prestigio, que o fazia
respeitado e terrível. Certamente os pagés, posto-
que selvagens, não cairiam em tamanha indiscri-
ção, que importaria o suicidio de seu maravilhoso
poder.
Mas emfim, não só Araken ordenou á filha que
escondesse o estrangeiro na caverna, senão que o
estrangeiro chegou a penetrar effectivamenten'ella,
como se vê da pag. 60 : « Iracema cerra a mão do
guerreiro, e o leva á borda do antro. Somem-seambos
nas entranhas da terra. »
D'est'arte os preconisados sigillos e mysterios
das cavernas dos pagés e dos seus ritos, de que
positiva e terminantemente nos dá noticia a his*
toria, ficam sendo mera burla em face do capricho
doSr. Alencar. Como comprehendeu mal o Sr. Alen-
car as tradições e crenças dos índios, de que fez
tamanho alarde nas suas Cartas sobre a Confede-
ração dos Tamoyos ! Profanos e estranhos penetram
SEMPRONIO A CINCINNATO. 255

nos recônditos recessos, vedados sem excepção a


todos, menos ao sacerdote, representante de
Deus; Iracema leva o estrangeiro ao bosque sa-
grado (pag. 26); dá-lhe a beber do licor presti-
gioso, reservado aos guerreiros (pag 23); o que
mais resta? Está tudo aniquilado. Engano-me;
ha coisa ainda mais aggravante. Queres ver, meu
amigo?Pois é já.
Lê-se na pag. 65 •.
«Iracema e o christão, perdidos nas entranhas
da terra, descem á gruta profunda. Súbito uma
voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus
ouvidos. »
De quem avalias tu que seria a voz que profana
a gúélla de Tupan? De algum guerreiro de Irapuam ?
Não. De alguma mulher? Não. De algum desconhe-
cido ou forasteiro, como Martim ? Também não.
Ouve tu :
« — O guerreiro do mar escuta a fala de seu
irmão?
« — É Poty, o amigo de teu hóspede — disse o -
christão para a virgem. »
Sim, meu amigo, era Poty, o grande chefe
Potyguára, Poty, o implacável inimigo dos Taba-
járas, Poty« cuja íama (textual) subiu das ribeiras
do mar ás alturas da serra » ; Poty contra quem
« rara é a cabana onde já não rugiu o grito de
250 LITTERATURA BRAZILEIRA.

vingança, porque em quasi todas o golpe do seu


válido tacape deitou um guerreiro labajára em seu
camocim. » (pag. 52.)
Eis o pagé exposto, desmascarado o seu embuste,
por terra o seu encanto e poder, exposta também a
tribu, na pessoa do seu sagrado ministro! Tudo
estava nas mãos do inimigo. Eis ao que dá logar
fazer-se de uma mulher (contra o uso inveterado)
acolyto do sacerdote, ou iniciarem-n'a nos so-
lemnes eprofundos arcanos de Tupan!
E, em definitiva, quem é que tem a culpa da
rude inversão, tão estranhamente operada nos
estylos, quer civis, quer de religião, da família
barbara ? Se não é sempre o amor, não deixa de ser
elle em grande parte. 0 amor de Iracema a Martim
leva-a a estanca rosangueque ella mes ma derramo u
da face do guerreiro, e no mesmo instante em que
o fez (não muito natural); a vibrar, em sua defeza,
o arco e a frecha (contra os usos) ; a dar-lhe a
beber a tisana do sonho, a peneirar com elle no
bosque do sacrifício, e, por consenso e até por
ordem do pagé! na furna sagrada (contra o
rito).
0 Sr. Alencar parece ter a paixão de demolir.
Basta pertencer ao passado para provocar as suas
iras; basta ser venerando para leval-o ao sacri-
légio. Que índole! Que' natureza! E chama-se
aquillo conservador!
SEMPRONIO A CINCINNATO. 257

Queres tu saber, meu amigo, o que entendo


que se deveria fazer, no caso do autor da Iracema?
Ouve lá.
Entendo que se deveria pôr o amor em lula com
a superstição — a paixão barbara bracejando com
a crença barbara ; Iracema loucamente amando,
mas firmemente respeitando a liturgia gentilica.
D'ahi, que embates de sentimentos, que acerbos
desesperos, acções grandiosas, episódios tremen-
dos, sacrifícios inauditos, satisfações inéffaveis!
— « Guerreiro branco (diria a índia a Martim), a
gruta do sacerdote é absolutamente inaccessivel e
impenetrável; alli está o segredo do prestigio edo
poder ; a ninguém é dado, nem mesmo a Irapuam,
sondar o mysterio do abysmo! Se lograsses re-
colher-te n'esse asylo, estarias salvo ; quem se
atreveria a ir disputar-te a Tupan? Ah ! mas como
não se viola impunemente, o rito tremendo, eu
expiarei por ti a profanação sem egual; salva-te,
que Iracema te irá esperar na deliciosa mansão
das montanhas azues. » Isto, sim, estava naindole
ena paixão decidida, heróica, estoica, da selvagem,
que soífria o sacrifício rindo e cantando.
Não seria mais lógico e talvez mais bello, do
que a relaxação, que se nota do sentimento reli-
gioso da parte do próprio, que tinha interesse em
cada vez fortalecer mais o elemento da super-
stição ?
258 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Responde-me : está ou não aniquilada, na obra


do Sr. Alencar, a theogonia dos Brazlsl Quem
matou o gaúcho, infirmou se não matou também
o índio !
Mil attenções do

Teu amigo certo,


SEMPRONIO.
CARTA X

Meu amigo :

Na minha 5a carta falei-te da villania commet-


tida por Martim na cabana hospedeira.
Sabes como a coisa se passou? Sonhando, meu
amigo, sonhando.
Elle tomou o elixir para gozar sem abusar, mas
foi peior a emenda que o soneto; tão depressa o
enguliu, quanto prestes a rola (até então arisca —
pag. 32) correu sôfrega a cair entre as garras do
milhafre, que, por estar adormecido e inerte, nem
por isso foi menos carniceiro. Nunca tão facil-
mente « perdeu Tupan uma virgem na terra dos
Tabajáras ». Prodígio da jurema!
Queres que te diga uma coisa? Alli houve íinura
do Martim. Lá que o homem tinha sabereíes, tinha-
os ; para se disfarçar na facção dos bárbaros que
260 LITTERATURA BRAZILEIRA.

abordou a nau hollandeza, chegou a coatyar-se!


(O túpyismo é do Sr. Alencar—Vid. a pag. 185.)
Mas.... discutamos. Poder-se-hia exercer no
espirito do homem culto a influencia da droga do
gentio? Tenho minhas duvidas.
Reconheço que só á sciencia competiria proferir
a ultima palavra na questão. É, porém, de crer
que n'este, como em tantos outros pontos, a ima-
ginação dos selvagens, dada á exaltação e ao ma-
ravilhoso, avultava effeitos, que, quando muito,
seriam narcóticos.
Sabe-se que os vegetaes que tinham d'esta pro-
priedade, eram estimados em muito apreço pelos
índios. Aspirando o tabaco era que Caraíbas e Pagés
transmittiam aos guerreiros o « espirito da força. »
Não proclamavam os agoiros, nem celebravam as
suas mais solemnes festividades ou ceremonias,
abstrahindo do uso d'esta planta.
Sem duvida, uma vez conhecido que ella pro-
duzia o somno, tornando assim possível occorrerem
os sonhos, que eram entre elles da mais alta impor-
tância, passou a ser considerada agente de sobre-
naturaes virtudes e a ter esta lata applicação. Da
identidade de presumo é licito seguramente ori-
ginar o conceito em que era tida a acácia jurema.
Quem tinha « feitiços, que as mais das vezes
não passavam de osso de algum animal carnívoro,
de uma aranha dissecada, dos membros de sapo,
SEMPRONIO A CINCINNATO. 261

ou mesmo de alguma producção mineral ou ve-


getal sem presumo, como semvirtude» não admira,
que, depois de haver bebido uma preparação apre-
goada pelos pagés e reputada por todos miraculosa,
possuísse ou fruisse em sonho, ou antes em três-
vario, aquillo que, em seu juizo—anhelava.
Cabe todavia notar que, tanto para mim como
para muitos, a quem tenho ouvido, é inteiramente
novo o mérito attribuido pelo Sr. Alencar aquella
mismoseacea — de fazer a pessoa fruir no sonho
melhor do que na realidade. Nunca ouvi referir á
beberagem da jurema outro mister que não fosse
ode — fazer o índio ver no futuro. Para mais força,
declino a autoridade de Pompeo, que ninguém
dirá não ser competente : « — Jurema preta —
planta commum em todos os taboleiros e várzeas
do sertão. Sua casca é tônica, de natureza estupe-
faciente : os índios preparavam com ella uma ti-
sana narcótica, e com o seu uso caiam em uma
espécie de magnetismo, em cujo estado pretendiam
vero futuro. » (Ens. Est. do Ceará, vol. I, p. 173.)
OSr. Alencar não só lhe attribue a virtude de fazer
gozar-se em sonho o que se almejava, como pre-
cisamente a de fazer ver e reviver no passado :
Martim, tendo bebido do elixir bárbaro, « sentiu
perpassar nos olhos o somno da morte; porém
logo a luz inundou os seios da alma; a força exhu-
berou no coração. Reviveu os dias passados melhor
15.
262 LITTERATURA BRAZILEIRA.
do que os tinha vivido : fruiua realidade de suas
bellas esperanças. » (Iracema, pag. 23.)
Outra observação me occorre adduzir : os selva-
gens fundavam, em geral, as suas usanças nas
analogias; um exemplo : « Para os homens esco-
lhiam nomes que exprimissem aforça, arobustez,
a coragem; era a anta, o tigre, o ipê, a palmeira,
a frecha, o arco;—para as mulheres os dos
objectos mais brandos, mais doces, mais delicados
— das aves, dos fructos e das flores : era o romper
d'alva, o. cipó flexível, a junça do brejo.» Não
deixa pois de ser estranhavel que, para se trans-
migrarem a bizarras delicias usassem de uma
bebida de sabor amargo- e de cheiro acre e nau-
seabundo, quando tinham o cauin — o seu licor
por excellencia—, e outros muitos vinhos, de
que, no dizer de Fernando Denis « se não contavam
menos de trinta e duas castas. » A operação de
adivinhar era árdua, arriscada e de grave com-
promettimento; não admira, antes é lógico, que
se servissem, para entrarem no espiritoprophelico,
de uma bebida desagradável, que fosse tida como
á conta de provação para conseguirem o grandioso
fim. Mas poder-se-ha dizer o mesmo da operação
de gozar?
Como quer que fosse, prevaleça a opinião isolada
e inexplicável do Sr. Alencar, ou a de Pompêo,
que está de acordo com a geral tradição e com a
SEMPRONIO A CINCINNATO. 263

a lei invariável das analogias entre o objectivo e o


subjectivo, o que parece dever presumir-se fora
de toda a duvida é que taes effeitos (quaesquer que
fossem) não se exerceriam senão no espirito vi-
sionário, carregado de abusões innumeras do
índio.
Martim não estava n'eslecaso; era espirito mais
ou menos culto e sobretudo forte; não é natural
que participasse de boafé do fetichismo e crendices
dos bárbaros. Entretanto do que nos previne a seu
respeito o Sr. Alencar? Além do que consta da
citada pag. 23, offerece-nos o seguinte, que repro-
duzo por extenso para toda clareza :
« Quando Iracema foi de volta, já o Pagé não
estava na cabana. (Pagé parece que quiz mesmo
favorecer o estellionato, porque, estando a prin-
cipio « no recanto escuro e tendo soltado um ge-
mido quando o estrangeiro premia (apertava) ao
seio a moça» (pag. 67) retirou-se depois adeshoras
e a propósito, deixando-os sós e á vontade). Tirou
do seio o vaso, que alli trazia occulto sob acarioba
de algodão entretecida de pcnnas. Martim lh'o
arrebatou das, mãos (que gana!), e libou as gotas
poucas do verde e amargo licor. Não tardou que
a rede recebesse seu corpo desfallecido.
«Agora podia viver com Iracema, e eolher nos
seus lábios o beijo, que alli viçava entre risos,
como o fructo na corolla da flor. Podia amal-a, e
264 LITTERATURA BRAZILEIRA.

sugar d'esse amor o mel e o perfume, sem deixar


veneno no seio da virgem.
« 0 gozo era vida, pois o sentia mais vivo e in-
tenso; o mal era sonho e illusão, que da virgem
elle não possuía mais que a imagem. » Não en-
tendo.
« Iracema se affastára oppressa e suspirosa.
« Abriram-se os braços do guerreiro e seus lá-
bios; o nome da virgem resoou docemente; etc,
ele, etc. (pag. 69) » 0 capitulo conclue-se com
estas significativas palavras : « A jandaia, não tor-
nou á cabana. Tupan já não tinha sua virgem na
terra dos Tabajáras. » A jandaia, conforme se vê,
parecia ter mais sentimento moral do que a índia
(que não quiz guardar.a fé do seu cargo), do que
o porprio Martim (que abusou, é verdade que em
sonho, da confiança e da hospedagem).
Com effeito, depois da cafastrophe, a tal ave-
sinha emigrou e foi-se, até que uma vez reappa-
receu," quando « a formosa filha de Araken se la-
mentava á beira da lagoa da Mocejana Iracema
lembrou-se então que tinha sido ingrata para
a jandaia, esquecendo-a no tempo da felicidade. »
(pag. 126.) Admira que, reputando-se ingrata para
a jandaia, não se reputasse tal para seu pae e os
seus, tanto que « não se arrependera ainda de os
ter abandonado. » (pag. 125) « A linda ave não
deixou mais sua senhora; ou porque depois da
SEMPRONIO A CINCINNATO. 265

longa ausência não se fartasse de a ver, ou por-


que adivinhasse que ella tinha necessidade de quem
a acompanhasse em sua solidão » (ibí.) Não parece
que a penna que lançou estas idéas, teria mais
tarde de lançar estas outras, senão as mesmas e
nas mesmas expressões, referindo-se a uma égua :
« Antevia que tinha necessidade do homem, care-
cia do seu auxilio, etc. »? (Vide Gaúcho.) Voltemos
a Martim.
Eil-o, pois, presa também das abusões dos sel-
vagens, crendo nos sonhos, nos feliches, nos ma-
nitôs sem duvida, nas pernas da aranha e nos
membros de sapo. .
Não colhe o dizer o Sr. Alencar em a nota a
pag. 165 : « Desde já advertimos que não se es-
tranhe a maneira porque o estrangeiro se exprime
falando com os selvagens; ao seu perfeito conhe-
cimento dos usos e lingua dos indígenas, e sobre- •
tudo a ter-se conformado com elles a ponto de
deixar os trajos europeus e pintar-se, deveu Mar-
tim Soares Moreno a influencia que adquiriu entre
os índios do Ceará. » Não colhe, repetimol-o por- -
que todos sabem que, assim fazendo, não teve
Marlim em mente senão captar a confiança e a
amizade d'elles em favor dos seus reservados fins.
Sendo assim, todos teem razão de estranhar que
o Sr. Alencar pintasse o Portuguez (que nada linha
de simplório, e sim tudo de sagaz) crédulo ao
266 LITTERATURA BRAZILEIRA.

ponto de beber a jurema, e ver e gozar no imagi-


nário sonho, o que só com os selvagens se poderia
dar por força da superstição grosseira em que
jaziam immersos.
Oradize-me : não seria pelo contrario verosimil
que, em logar de ser bebida a tisana só por Mar-
tim, o fosse também pela índia? Que Martim,
encontrando da parte d'ella objecção na cir-
cumstancia de ser filha do pagé e guardar o se-
gredo dajurêma (vid. a pag. 32) afizessecrer que,
tomando egualmente com elle do elixir, fruiriam
em sonhos sem risco o que ambos anhelavam e
n'este enlevo a possuísse? A servillão, villão com
a verosimilhança e com a natureza.
Meu amigo : visto que estou enchendo alguns
claros deixados em cartas precedentes, por não
querer tornar-me então demasiado extenso, passo a
fazer agora uns ligeiros extractos, no sentido de
mostrar mais uma vez, quão mal o Sr. Alenca
comprehendeu o amor bárbaro, quer na linguagem,
quer nas acções dos lypos. E ainda antes de
começar a operação, quatro palavras, que se
devem entender complemento de quanto disse
na minha ultima carta com relação á theogonia
tupy.
Fala-se se n'esta Iracema, poema selvagem
brazilio, de um bosque sagrado, de vasos de sacri-
fício, de uma virgem consagrada a Tupan, etc.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 267

Parece que o autor tresleu, se não sou eu que


estou treslendo.
Não ha, que eu saiba, um só escriptor de quan-
tos se teem occupado com a matéria, que atteste
a existência de taes ritos entre os selvagens bra-
zilicos, quer da lingua geral ou Tupys, quer Ta-
puyas.
Pelo que respeita a estes últimos (índios da lin-
gua travada, para me servir da expressão de
Theberge) chegou a parecer a autores de nota e a
viajantes que com os taes conviveram e tiveram
occasião de observal-os de perto, que elles desco-
nheciam inteiramente uma religião. É que a que
tinham era « mui pouco complicada » no dizer de
G. Dias, e reduzia-se ao « ridículo tabernaculo, de
importância immensa, sob o nome de maracá,
emblema symbolico da divindade » na phrase de
Fernando Denis. Quanto aos Tupys « em quem
admiraremos um tal ou qual desinvolvimento
metaphysico, que parece caraclerisal-os » o seu
Tupan « divindade grande, magestosa, tremenda»
que tinha por, essência o bem « não carecia de
preces para inclinar-se á compaixão, nem o
sangue mancharia os seus altares, quandos os ti-
vesse... Se algum culto lhe tributavam, era somente
o interno. » Para dizer de uma vez : tanto Tupys,
como Tapuyas, tinham seus pagés ou videntes, o
maracá, os manitôs, Tupan, etc. São estas as idéas
268 LITTERATURA BRAZILEIRA.

geralmente assentadas a respeito dos nossos abo-


rígenes.
Onde foi portanto buscar o autor da Iracema
esse bosque sagrado, essa virgem, espécie de sacer-
dotiza, etc. ?
A religião dos Quixúas, o culto dos Incas, de
certo lhe não deram insanchas para isso. Nãoserá,
mais presumível que os tivesse ido pedir á religião
dosGallos?
Lendo-se os Mysterios do Povo, encontra-se ahi o,
episódio da virgem da ilha de Sên, com o qual é
muito parecido em mais de um ponto, o poema
do Sr. Alencar. Lá é a tribu de Karnak; aqui é a
tribu dos Tabajáras; lá Hêna, filha de Joel, aqui
Iracema, filha de Araken ; lá o bosque sagrado dos
carvalhos, cá o bosque sagrado das juremas ; lá'a
druidica deHésus, cá... a sacerdotiza de Tupan;
lá um desconhecido, que fora recebido como
transviado em casa do pae de Hêna, é o Chefe dos
cem valles; aqui um desconhecido que se perdera
e fora dar á cabana do pae de Iracema— é Martim.
Singular e pasmosa analogia! (Vid. Myst. do
Povo, vol. III.)
Mas quem suppozera que tamanha similhança
havia de terminar pela contraposição maisfoimale
surprehendente?! Hêna, por esse heroísmo innato
e patriótico do bárbaro, e por esse fervor lógico da
natureza contemplativa, offerece-se em holocausto
SEMPRONIO A CINCINNATO. 269

a Hésus para que livre a Gallia, sua pátria, do


jugo dos Romanos. « — A filha de Joel — cantou
ella com uma voz pura como sua alma — a
filha de Joel e de Margarida vem com alegria sacri-
ficar a Hésus ! Ó Todo-Poderoso.... livra do estran-
geiro a terra dos nossos pães ! Gallos da Brelanha,
vós tendes lança e espada ! A filha de Joel e de
Margarida" não possue mais que o seu sangue;
offerece-o VOLUNTARIAMENTE a Hésus ! 0 Deus omni-
potente, torna invencíveis a lança e a espada
gallas ! Ó Hésus... acceita meu sangue, pertence-
te... salva nossa santa pátria! »
Isto é heroísmo, bem que feroz e cruento, nem
por isso menos admirável e grande; e sobretudo
de naturalidade, de lógica irrefragavel. Ao passo
porém, que a vestal das Gallias se dá como hóstia
para que sua pátria seja livre do jugo do « estran-
geiro » a impossível vestal do Sr. Alencar é a pri-
meira que em bem do estrangeiro profana com a
presença d'este a majestade do bosque sagrado,
viola o segredo imperscrutavel da gruta do druida
tópico, aniquila e calca aos pés a theogonia pa-
ganica mais venerada do seu povo! É o bello de-
fronte do horrível; a elevação, a nobreza barbara
diante da vileza, da turpitude selvagem !
Ha um abysmo irnmenso, insondavel, eterno,
entre os Mysterios do Povo e a Iracema, entre Eu-
gênio Sue, gênio cheio de liberdadee de amor, que
270 LITTERATURA BRAZILEIRA.

escrevia em nome da humanidade, e José de


Alencar... que escreve em nome do seu nome.
Ninguém ignora que é incerta a origem dos
nossos autocthones; que alguns os fazem descen-
der das tribus de Israel; outros de um cataclismo
que houvesse separado o único continente terrestre
em porções diversas, dando logar á disperção de
famílias, á variedade de fôrmas e á mulüplicidade
de línguas, e não sendo os differentes povos do
globo senão contemporâneos, entre si mesmos;
outros dos índios da Ásia, dos Egypcios, dosCartha-
ginezes, dos Lacedemonios ; outros dos Germanos,
com quem acham a maior similhança possível.
Dever-se-ha acaso suppôr que o Sr. Alencar;
querendo como de costume offerecer-nos uma
theoria que se diga sua sobre a matéria, apezar de
já tão elucidada, tivesse em mira, ao dar-nos
numa lenda túpica-cearense esse mutilado arre-
medo da mythologia galla, insinuar que os nossos
aborígenes vieram da Gallia? Sma'difficil justi-
cal-o, em face do estado actual da sciencia, e prin-
cipalmente depois de se ter lido esse magnífico ca-
pitulo de Herder, que se inscreve sob a epigraphe
— Organisação dos Americanos — (Vid. este autor,
Philosophie de Vhistoire de Vhumanité vol. I,
pag. 296.)
Viria aqui a pello tratar da questão — se os
Americanos caminhavam para o progresso ou
' SEMPRONIO A CINCINNATO. 271

para a decadência, no tempo da conquista ; mas,


além de repulal-a do maior peso para os meus
humillissimos hombros, accresce que já te tenho
roubado muito tempo por hoje, e urge concluir.
Peço-te comtudo venia para só o fazer, depois de
haver transcripto as seguintes palavras, de um
eminente sábio moderno :
« A opinião commum — diz esse autor — é
que os selvagens não são, em these, senão mise-
ráveis restos de nações outriora mais civilisadas;
mas, posto que existam casos bem estabelecidos
de decadência de nações, nada nos aütorisa scien-
tificamente a admittir que conslitua isso o caso
geral.
« Sem duvida, ha muitos exemplos de nações,
que, outr'ora progressivas, não somente cessaram
de avançarem civilisação, mas até recuaram. E
comtudo, se comparamos as relações dos pri-
meiros viajantes com o estado de coisas actual-
mente existente, não achamos prova em apoio da
theoria de um geral declínio.
« Os Australianos, os Boschimanos e os natu-
raes da Terra do Fogo viviam, ao tempo em que
pela primeira vez foram observados, quasi exacta-
mente como vivem hoje.
« Em muitas tribus selvagens achámos até
traços de progresso; os Bachapinos, quando Bur-
chell os visitou, acabavam de introduzir em seu
272 LITTERATURA BRAZILEIRA.

seio a arte de trabalhar no ferro ; o maior edifício


do Taiti foi construído pela geração contemporânea
da visita do capitão Cook, e tinham, havia pouco,
renunciado a pratica do cannibalismo (Forster,
Observ. devoyag. autour du monde, pag. 372); e se
certas raças, como por exemplo muitas das tribus
americanas, retrogradaram, este resultado é talvez
menos devido a uma tendência inherente que ao
mau effeito da influencia dos Europeus. »
No meu fraco pensar, seria indispensável para
quem pretendesse dar-nos o typo de uma poesia
« verdadeiramente nacional, haurida na lingua dos
selvagens » assentar idéas n'este sentido : se elles
progrediam ou se decaiam, quando foi do desco-
brimento. D'ahi se projectaria grande somma de
luz sobre a procedência ou não do pretenso typo ;
a poesia, tanto na fôrma como na essência, de um
povo que progride, não pôde ser a mesma que a de
um povo que decae.
Entretanto o Sr. Alencar, tendo de romper
contra o padrão secular da poesia brazileira, tido
è havido, quer por nós, quer pelo estrangeiro,
como o genuino e puro nosso, nem de relance
mostrou ter meditado, instantes sequer, sobre o
assumpto; não nos disse d'onde veiu, como se se
não fizesse mister sabêl-o para bem ter-se idéa da
sua marcha e do seu destino. (Vid. a CARTA, no fim
da Iracema.) Singular modo de fazer escola, este !
SEMPRONIO A CINCINNATO. 273

E comtudo um forte apoio se offerece para quem


quizesse desinvolver um estudo mais vasto e mais
seguro a respeito do caracter dos nossos abo-
rígenes, do seu estado social, da sua acanhada
industria, do seu progresso emfim na escala da
humanidade ; é a archeologia.
Se applicassemos ao exame das toscas obras e
instrumentos que nos deixaram os nossos selva-
gens, os processos e methodos d'esta sciencia, pa-
rece-nos que poderíamos sem contestação classi-
fical-os na epocha « neolithica » ou « edade das
pedras polidas », isto é na segunda das grandes
edades, conforme a divisão feita pela archeologia
moderna.
Ha quem diga positivamente com Ioda autori-
dade estas palavras : « É evidente que alguns
povos, taes como os naturaes da ilha do Fogo e os
das ilhas d'Audaman, estão ainda presentemente na
edade de pedra. »
As edades da archeologia ante-hislorica dividem-
se em quatro, a saber : primeira, a do dilúvio ou
« paloeolithica » ; segunda, a das pedras polidas ou
« neolithica »; terceira a edade de bronze; e
quarta a edade de ferro.
Posto que alguns archeologos opinem que a pe-
dra, o bronze e o ferro íoram simultaneamente
empregados no fabrico das armas einstrumentos,
a classificação acima parece-nos tão consentanea
274 LITTERATURA BRAZILEIRA.

com oinstincto do progresso ascensional e gradual


dos povos, que a adoptamos de plena convicção.
Ora, prevalecendo essa classificação, é fora de
duvida que os nossos selvagens (do Brazil) se
achavam ainda na edade de pedra, como os habi-
tantes do Paiz do Fogo, segundo o provam os instru-
mentos de que se serviam, e a sua inteira igno-
rância do metal, a não ser o ouro ou a prata, de
que não faziam caso; logo, é também innegavel
que elles iam em marcha ascendente, e não des-
cendente, na escala da humanidade.
A hypothese de tamanha decadência, que hou-
vessem completamente esquecido o uso do ferro e
do bronze, é inadmissível; primeiramente, porque
não consta ter-se encontrado d'elles o menor
objecto fabricado de algum d'estes metaes, o que
certamente teria succedido se houvessem existido,
ainda da mais remota antigüidade; em segundo
logar porque, por muito que descesse um povo em
todos os sentidos, nunca perderia o uso deobjectos
e instrumentos tão immediamente ligados ás prati-
cas materiaes e necessárias da vida.
Longe, pois, de pensarmos com G. Dias, collo-
cando-se entre Martius e Chateaubriand, o pri-
meiro que reputa os nossos índios decaídos de um
alto grau de cultura, e o segundo que opina es-
tarem ainda por dar os primeiros passos no ca-
minho da civilisação * confessamo-nos inteiramente
SEMPRONIO A CINCINNATO. 275

de acordo com este ultimo, que nos parece


mais verdadeiro e mais lógico em sua conjectura
histórica.
E sem me ter apercebido, meu amigo, ia-me
arriscando no inextricavel labyrintho,e desviando-
me do assumpto, que prende com o objecto da
presente carta!
Desculpa. 0 estudo das antigüidades tem para
mim tal seducção, apezar do nada, do verdadeiro
nada (crê que sou sincero) que me reconheço ser
n'isso, como em tudo mais...!
Vou concluir por esta vez.
Tivessem, ou não, vindo os nossos índios dos
Scythas, dos Phenicios, ou mesmo dos Gallos, o
que não pôde duvidasse é que elles não possuíam
bosque sagrado nem sacerdotisas, e muito menos
úrgens-\otaâas a Tupan.
LogOj a Iracema n'este ponto, como em outros,
nao passa de mero enxerto, filho de uma imagi-
nação dada a arrojos que nada justifica, porque'
não precisa transplantações exóticas quem tem,
como nos, a mais guapa e inexhaurivel flora.
Teu amigOj
SEMPRONIO.
CARTA XI

Meu caro amigo.


o

Fiquei de mostrar-te ao vivo como o Sr. Alen-


car concebeu o amor bárbaro abaixo das forças
da natureza e prejudicando usanças e reputações
históricas, de subido valor. É esta a occasião.
Abrindo o poema... « prosaico » (experiência
ira anima prosaica o chama o autor) na pag. 25,
leio :
« — Iracema! exclamou o guerreiro, re-
cuando. »
« — Anhanga turbou sem duvida o somno de
Irapuam, que o trouxe perdido ao bosque da
jurema, onde nenhum guerreiro penetra sem a
vontade de Araken. » Só Martim, estrangeiro e
desconhecido, teve d'este privilegio.
« — Não foi Anhanga, m3S a lembrança de Ira-
16
278 LITTERATURA BRAZILEIRA

cêma, que turbou o somno do primeiro guerreiro


tabajára. Irapuam desceu de seu ninho de águia
para seguir na várzea a garça do rio. Chegou, e
Iracema fugiu dos seus olhos. » Devia ser um
grande amor este, que fazia o próprio chefe tentar
contra o rito — coisa inaudita entre taes povos!
— Vejamos porém que de prodígios fará esse
amor.
« — As vozes da taba — continou elle — con-
taram ao ouvido do chefe, que um estrangeiro era
vindo á cabana. »
« A virgem estremeceu. O guerreiro cravou
n'ella o olhar abrazado.
« — 0 coração, aqui no peito de Irapuam, ficou
tigre. Pulou de raiva. Veiu farejando a presa. 0
estrangeiro está no bosque, e Iracema o acom-
panhava. Quero beber-lhe o sangue lodo ; quando
o sangue do guerreiro branco correr nas veias do
chefe tabajára, talvez o ame a filha de Araken. »
Um chefe, dos quilates de Irapuam, ou antes qual-
quer guerreiro, que sentisse para com a sacerdo-
tisa vehemente paixão , ao ponto de postergar
n'isso o preceito religioso, já estaria em face do
feliz rival.
« Apupilla negra da virgem scintillou nas trevas,
e do seu lábio borbulhou como gotas do leite
cáustico da euphorbia, um sorriso de desprezo »
0 que seria natural é que ella se aterrasse, e ne-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 279

gasse o facto : a culpa, e em condições tão graves,


sempre acovarda o espirito que pela primeira vez
commette o crime.
« — Nunca Iracema daria seu seio, que o
espirito de Tupan habita só; ao guerreiro mais vil
dos guerreiros tabajáras! Torpe é o morcego,
porque foge da luz e bebe o sangue da victima
adormecida! « Que razão thavia para tal desabri-
, mento ?
« — Filha de Araken! Não assanha o jaguar ! »
(Estava um jaguar muito discreto e tolerante este).
« 0 nome de Irapuam vôa mais longe que o goaná
do lago, quando sente a chuva além das serras.
Que o guerreiro branco venha, e o seio de Iracema
se abra para o vencedor. » 0 pseudo-heroe só tinha
vistas eparolas.
« — 0 guerreiro branco é hóspede de Araken.
(Então, por ser hóspede, tinha carta branca para
fazer das suas?) A paz o trouxe aos campos do Ipú.
Quem offender o estrangeiro, offende o Pagé.' » E
quem offendesse a religião, não offenderia também
o Pagé?
« Rugiu de sanha o chefe tabajára:
« — A raiva de Irapuam só ouve agora o grito
da vingança. O estrangeiro vae morrer. » Beaucoup
de bruit pour rien.
« — A filha de Araken é mais forte que o chefe
dos guerreiros, disse Iracema, travando da inubia.
280 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Ella tem aqui a voz de Tupan, que chama o


seu povo. » O reo convertido em juiz e com que
poderes?!
« — Mas ella não chamará ! respondeu o chefe,
escarnecendo.
« — Não, porque Irapuam vae ser punido
pela mão de IracemaJ Seu primeiro passo, é o
passo da morte.
« A virgem retrahiu dura salto o avanço que to-
mara, e vibrou o arco. » (Lembro-me d'aquelle
trecho do gaúcho : « A égua retrahiu o flanco
sobre os quadris agachados, e esse corpo, que se
fizera bomba, estourou »). O chefe cerrou ainda o
punho do formidável tacape ; mas pela vez pri-
meira sentiu que pesava ao braço robusto. O golpe
que devia ferir Iracema, ainda não alçado, já lhe
trespassava, a elle próprio, o coração. » Mesmo
depois do que via e ouvia? Chefeimbelle, guerreiro
maricás !
Afinal Irapuam desappareceu entre as arvores,
e Iracema voltou a proteger o somno do estrangeiro
no bosque sagrado.
Pensas tu, bom Cincinnato, que esse chefe que
surprehendera assim o nefando sacrilégio; que
tantas provas recolhera, até uma declaração con-
fessa da sacerdotisa, de que o desconhecido estava
no bosque onde era vedado penetrar; que, além
do mais, se devia reputar atrozmente ultrajado
SEMPRONIO A CINCINNATO. 281

pelo desprezo infligido ao seu desvairado amor, e


pela preferencia tributada ao forasteiro; pensas tu
que esse chefe saisse d'ahi para dar o grilo de
alarma, delatar o crime, exigir a punição imme-
diata dos delinqüentes, ser fervorosamente coad-
juvado (como fora de esperar) na applicação dos
castigos tremendos para cabal desaffronta dos pre-
ceitos postergados e exemplo estrondoso a presentes
e posteros? Qual, meu amigo! Vaes ver o que
aconteceu.
Irapuam coisa nenhuma communicou ao pagé
até á tarde seguinte, quando, com cem guerreiros,
foi tomar o estrangeiro ao Cauby, irmão de Ira-
cema. Seguramente o chefe ter-lhe-hia contado (ao
ultimo) os successos da noite; mas longe de ficar
este como era natural, escandalisado, na dupla
qualidade de guerreiro e de irmão da moça, suas
palavras foram estas :
« — Matae Cauby antes ! »
Eis rebôa o rouco som da inubia pela matta; os
tabajáras estremecem, reconhecendo n'esse an-
nuncio a voz inimiga do búzio dos Pytiguáras.
Abandonam Martim e seu protector, balem as
mattas, procuram, esmerilham, e nada encon-
tram.
- Suppõe com razão Irapuam que o aviso falso
fora ardil de Iracema para fazer diversão ao ódio
d'elle, e entrementes dar escapula ao amante; e só
16.
282 LITTERATURA BRAZILEIRA.

então procura o Pagé para referir-lhe o acontecido.


« — Araken, a vingança dos tabajáras espera o
guerreiro branco, Irapuam veiu buscal-o. »
Queres saber a resposta do sacerdote, instituído
para velar perennemente pelo rito e impedir por
todos os meios ao seu alcance que elle chegasse a
ser de leve estremecido? Ouve lá.
« — 0 hóspede é amigo de Tupan; quem offen-
der o estrangeiro ouvirá rugir o trovão. »
Que dizes a isto? Ora quero confundir esse pagé
remissoe refractario, que não sabe exercer o seu
officio, com uma lição que me ministra G. Dias,
ensinando como era entendida a hospedagem entre
os verdadeiros índios — a hospedagem, que o Sr.
Alencar tornou elástica, ao ponto de fazêl-a ab-
sorver um dos mais accentuados caracteristicos
do povo bárbaro — a veneração das suas praticas
religiosas. « Hospitaleiros para com os estranhos—
diz o historiador — os seus próprios inimigos
achavam acolhimento e gazalhado nas suas
tabas » E mais adiante : « Desconfiado o índio com
os estranhos, principalmente quando n'elles per
cebia deslealdade (é o caso), um indicio, um
vislumbre de intenção sinistra, bastava muitas vezes
para o tornar suspeitoso, e da suspeita, sem mais
exame, precipitava-se na traição. » Ora, vê lá se
com índios d'esta ordem, Martim e Iracema teriam
feito sete montes!
SEMPRONIO A CINCINNATO. 283
Mas emfim, Irapuam torna a Araken :
« — O estrangeiro foi quem offendeu a Tupan,
roubando a tua virgem, que guarda os sonhos da
jurema.
« — Tua bocca mente como o ronco da giboia
— exclamou Iracema. »
0 chefe insta e insiste pela vingança ; até que
« Araken ergueu a grande pedra e calcou o pé com
força no chão » e ouviu-se o ronco de Tupan. Ira-
puam, por outro lado, bem merecia d'isso, attenta
a suafrouxidão. Dois ensejos, cada qual mais pro-
picio, perdeu de dar de garra ao estrangeiro— um
no bosque, onde, se este penetrou, com maioria
de razão poderia penetrar aquelle que ia punir um
sacrilego, e a quem a opposição de uma fraca
mulher, principal culpada, não deveria deter,
outro, quando, tendo cem guerreiros de seu lado,
o foi encontrar só com Gauby. Eis-ahi o cacique
esculptural da Ibyapaba ! Que amor o seu, que sen-
timento de vingança, que denodo, que desvelo
peladefeza do rito! Uma mulher (que elle já de-
via então odiar) o ameaçava, eil-o tolhido ; encon-
trava o rival (que não era só isso, mas também
profanador da liturgia sagrada) a sós com o irmão
da mulher que o ultrajara, e tanto bastava para
frustrarem-se os seus ímpetos, apezar de achar-se
acompanhado de cem guerreiros !
Na batalha em que mais tarde se empenha com
284 LITTERATURA BRAZILEIRA.

os Pityguáras, como já vimos, não faz maiores pro-


dígios de bravura; e, para encurtar razões, lá se
foram sem um arranhão Martim e a índia ; e esse
preclaro cabecilha , que nos dizem as chronicas
mandar sobre mais de 30 aldeias, que nos diz o
próprio Sr. Alencar « tantas vezes ter guiado os
seus guerreiros ao combate, quantas á victoria
(pag. 61) » volta cabisbaixo e derrotado, dando o
mais formal e vergonhoso desmentido ao passado
renome! Eis como são reduzidos a zero typos co-
lossaes, que o valor e o poder illustraram nas
guerras da conquista! O Sr. Alencar pôde jactar-se
de entendedor da historia, e de chefe da nossa
litteratura. Tem dedo!
0 typo de Poty, posto que menos falso que-o
de Mel Bedondo, fica ainda assim muito somenos
á grande figura, que subsiste e perdurará indelé-
vel entre os brilhos de homerico heroismo nas
nossas paginas da restauração.
O que faz, na verdade, Poty, na lenda do
Sr. Alencar, que se mostre na altura das altas fa-
çanhas d'esse braziliano, no período da guerra
hollandeza? Acompanhemol-o, desde que appa-
rece até ao fim da lenda.
Martim está na cabana do pagé. « Levanta-se
no resomno da noite um grito vibrante, que re-
monta ao ceo (pag. 51). » É o grito da gaivota,
que três vezes resôa (pag. 55), ou antes é a voz
SEMPRONIO A CINCINNATO. 285

de Poty, que dentro do tanque da aldeia dava


signal a Martim.
Nos sertões do Ipú não ha gaivota, tanto que a
índia desconhece esse grito, o que Martim acha
muito natural, visto como a gaivola é « a garça
do mar; » ao passo que Iracema é « a virgem da
serra, que nunca desceu ás alvas praias (pag. 51.) »
Mas se o grito da garça do mar era desconhe-
cido da índia, presume-se que também o fosse dos
guerreiros tabajáras em incessantes guerras com
os pityguáras, e senhores dos seus costumes e
modos de annunciar-se? De certo que não. Ora,
se o não era, presume-se que Poty, prudente e
matreiro, se arriscasse de tal modo « no resomno
da noite » e ao alcance immediato dos inimigos?
E isso, quando a aldeia suspeítosa deveria estar
de sobr'aviso. depois do facto de haver soado « o
búzio guerreiro dos Pityguáras » que horas antes
a tinha alarmado (pag. 42)? 0 verdadeiro Cama-
rão não se teria mettido em tal giqui*. E é tão ver-
dade que em tal situação estava exposto o pru-
dente abaeté, que a índia « foi direita ao logar
d'onde partiu o grito e chegou á borda do tan-
que (pag. 55). » Se a índia foi, como não iriam
os índios? > <%<•
D'aqui o vamos achar no combate na floresta, do

1
Armadilha selvagem de pegar camarão.
286 LITTERATURA BRAZILEIRA.

qual já te dei noticia na minha 5a carta, e que,


sem embargo de ser travado entre figuras tão le-
gitimamente afamadas, taes como Mel Redondo,
Jacaúna, Camarão e Moreno , apresenta, como
viste, a feição burlesca da caricatura (é o termo).
O que fez de certo digno de si o Camarão n'esse
prelio de athletas? O Sr. Alencar o vae dizer :
t « Poty já postrou o velho Andira e quantos guer-
reiros topou na luta seu válido tacape. Verdade
é que conclue n'estes termos : « Martim lhe aban-
dona (a Poty) o filho de Araken, e corre sobre Ira-
puam. » 0 filho de Araken, — Cauby — é certo
— parece que era um guerreiro moço e valoroso ;
mas também certo é que Poty lhe não levou grande
e cabal vantagem, pois que o vemos apparecer de-
pois nas praias do Ceará, onde foi ter com a irmã
são como um pêro (pag. 152). Logo, em rigor e
substanciando, em que se resumem os grandes fei-
tos ou proezas do Camarão n'esse renhido combate
ou antes em toda a lenda? Em prostrar o velho
Andira. O velho! Terás idéa aproximada do va-
lor d'este, pelas seguintes palavras de Irapuam,
que o invectivou com acerbo menoscabo, quando
elle votou contra o combate : « — Fica tu, escon-
dido entre as igaçabas de vinho, fica, velho mor-
cego, porque temes a luz do dia, e só bebes o san-
gue da victima que dorme (pag. 19). » Eis-ahi
quem Poty prostrou.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 287

E depois d'isso, nada mais occorre na altura de


recommendar este ultimo. Vemol-o pintar Martim
com os « riscos vermelhos e prelos, que orna-
vam a grande nação pityguára (pag. 113), » fre-
char o camoropim de cima do coqueiro, ou do
morro do Mocoripe, etc. Coisas d'estas. E acabou-
se. Será este o próprio Camarão grande, ou o Ca-
marão, le petit? Que houve diversos Camarões,
dil-o a historia.
Antes de fazer ponto por hoje, permitte-me
trasladar ainda uns ligeiros extractos.
Lê-se na pag. 10 do poema :
« — Bem vieste! O estrangeiro é senhor na ca-
bana de Araken. Os Tabajáras tem mil guer-
reiros. »
E na pag. 52 :
« — Não vale um guerreiro só contra mil guer-
reiros. »
Se o vocábulo — mil — foi empregado aqui na
accepção de — grande numero, muitos, passe;
mas se o foi na accepção de dez vezes cem — seria
isso tão grosseiro erro, que d'elle não reputo ca-
paz o Sr. Alencar.
Os nossos índios só para os números 1, 2, 3
e 100 tinham termos próprios, a saber : um,
oiepen; dois, mocoin; três, moçapoêr; cem, pa-
paça. De quatro a dez contavam compondo os nú-
meros com os três primeiros, d'este modo; quatro
288 LITTERATURA BRAZILEIRA.

mõcoin — mõcoin; cinco, põ (mão, ou cinco dedos;


seis, moçapuer — moçapuer; etc. (Vide o Vocabu-
lário do padre M. J. S.)
A lingua Kechua tinha o vocábulo huaranca, mil;
mas seria erro usar do termo entre índios que fa-
lavam a lingua geral, como os tabajáras, ou me-
lhor como todos os nossos aborígenes.
O Sr. Alencar, seguramente seguindo n'isso
d'Orbigny, que opina haver em toda a America
meridional uma só religião — a dos Quichúas, in-
tercala nas pragmáticas barbaras dos índios do
Ceará praticas que eram evidentemente peculia-
res aos Incas, que professavam esta religião. A
supposta festa que nos dá, sob o nome sonoro e
pomposo de festa « á lua das flores » está n'este
caso.
Os chronistas não falam de tal instituição entre
os autochthones brazileiros. Ainda aqui, portanto,
o corajoso e temerário romancista quiz dar-nos
um mero producto do seu-gênio inventivo ou
creador.
Mas, além do mais, foi infeliz na letlra do
hymno, que saiu chilro e chocho, como vaes ver :
« Veiu no ceo a mãe dos guerreiros; já volta
o rosto para vêr seus filhos. Ella traz as águas,
que enchem os rios e a polpa do caju.
«Já veiu a esposa do sol; já sorri ás virgens
da terra, filhas suas. A doce luz accende o amor
. SEMPRONIO A CINCINNATO. 289

no coração dos guerreiros e fecunda o seio da jo-


ven mãe (pag. 72). »
E mais não disse.
A qualificação de esposa do sol applicada á lua,
é propriamente da religião dos Incas, segundo a
qual « Paçhacanac, deus invisível, creador de todas
as coisas, tinha o poder supremo, imperava sobre
o sol e a lua sua mulher. »
Como a coisa não vae também a morrer, não
me deterei mais no texto e passo ás notas.
Teu leal amigo, e admirador,
SEMPRONIO.
CARTA XII

Meu amigo :

Não entro no argumento histórico da lenda, nem


na questão da nacionalidade do Camarão.
Do primeiro já disse quanto se me offerecia, em
referencia a Martim Soares Moreno; quanto á se-
gunda, dou-me por suspeito, com o fim de me
poupar uma collisão.
Explico-me : de um lado, sou natural da pro-
víncia para a qual reclama o-Sr. Alencar a gloria
de haver dado o berço ao Camarão, do outro, vejo
no commendador Mello, que ao Ceará contesta essa
gloria, além de uma autoridade, um amigo, cuja
illustre ancianidade, litteraria como política ,
desde muito me acostumei a venerar.
Se não tivermos attenções para esses últimos
Abencerrages das priscas eras da pátria — lumes
292 LITTERATURATjGRAZILEIRA.

serenos, que o] sopro impiedoso da morte está


ameaçando apagar-nos a cada instante, quem nol-
as merecerá melhor? Acaso fachos improvisados
de hontem, cuja chamma afogueada por insólito
egoísmo, antes nos desvaira do que nos guia nos
parceis da historia? Não vou para ahi.
A primeira nota que se nos depara, inscreve-se
sob a epigraphe — Onde canta a jandaia. N'ella
agita-se a questão de saber d'onde veiu a palavra
Ceará. Já disse a esse respeito em outro logar o que
é escusado repetir aqui.
Do verbo rugitar, que o autor compôz, como
declara, autorisado pelo exemplo de Filinto Ely-
sio, que creou ruidar (de ruído) tratarei quando
houver de arriscar tímidas considerações sobre a.
policiada lingua. Hoje o meu despretencioso exame
limita-se á parte propriamente indígena; e d'esta
aquelles lermos que devem ao Sr. Alencar etymo-
logia com que me não conformo. Principiemos.
Lê-se:
« Gará — Ave paludal, muito conhecida pelo
nome de Guará. Penso eu fque esse nome anda
corrompido de sua verdadeira origem que é — ig,
água — e arâ arara, arara d'agua, pela bella côr
vermelha. »
A esta opponho as opiniões autorisadas do Mar-
tius e do Dias.
Diz o primeiro :
SEMPRONIO A CINCINNATO. 293

aGuará Confracção de Gua, variegado, e


Guira : Guagufrá, ave multicolor, porque, pequena,
cobre-se de pennas brancas, adulta depennas pre-
tas, e por ultimo de encarnadas. »
Agora o Dias :
« Guará, ave : nasce branca, torna-se preta, e
por fim, de um encarnado vivíssimo. »
Se é certo que a ave passa por todas estas trans-
formações, d'ella caracteristicas, quem nos auto-
risa a desprezar a etymologia que cabalmente as
exprime para ir buscar outra, errônea, além do
mais? De ser ella errônea, fornece-me prova o
próprio Alencar na nota seguinte, para à qual
chamo a tua attenção :
« Ará — periquito. Os indígenas como augmen-
tativo usavam repetir a ultima syllaba da palavra
e ás vezes toda a palavra — como murémuré. Mure
— flauta— murémuré grande flauta. Arara vinha
a ser pois o augmentativo de ará, e significaria a
espécie maior do gênero. »
Se elles dobravam a syllaba, e até a palavra,
quando queriam exprimir augmentativo, segue-se
que n'este caso querendo exprimir — arara d'água,
diriam garára, isto é dobrariam ará, que singela
significa simplesmente — periquito : e não diriam
gará, com o que só teriam — periquito d'agua.
0 Sr. Alencar morre com as suas próprias armas.
Na vã preterição do tudo poetisar no seu aborto
294 LITTERATURA BRAZILEIRA,
de poema (succede o contrario as mais das vezes)
a caminhos directos e fáceis prefere tortuosos ro-
deios. Não foi outro seguramente o motivo que o
levou a engendrar a etymologia de Pity-guáras,
quando o nome evidentemente verdadeiro é o de
Potiguáras ou — guerreiros do Camarão. Lê-se :
« Pitiguáras. — Grande nação de índios que
habitava o littoral da província e estendia-se desde
o Parnahyba até o Rio Grande do Norte. A ortho-
graphia do nome anda mui viciada nas differentes
versões, pelo que se tornou difficil conhecer a
etymologia.
« Iby significa terra; iby — tira veiu a significar
serra, ou terra alta. Aos valles chamavam os in-
dígenas iby — tira — cua cintura das montanhas.
A desinencia jára, senhor, accrescentada, formou
a palavra Ibyticuára — que por corrupção deu
Pityguára — senhores dos valles. »
Não procede, ao nosso ver, a combinação. De
Iby — tira — cua — jára (como fica a palavra
composta, e não Iby — ti — cua — ra, como diz
o escriptor) vae grande differença para Pity-guára;
nada menos que absorver o I inicial, mudar o b
em p, supprimir a syllaba ra de tira, mudar o c
de cuá em g para dar guá, supprimir a syllaba ja
de jára. Só bem se executam taes absorpções e
mutilações no gabinete, onde a penna corta im-
pune e á vontade; o povo, até mesmo o selvagem,
SEMPRONIO A CINCINNATO. 295

é mais respeitador do que parece das relíquias


do passado.
Accresce, que devo lembrar : a opinião do es-
criptor levaria ao contrasenso. Ibitiracuá, signifi-
cando — cintura da montanha, não podia signifi-
car valle, porque valle nunca foi cintura de mon-
tanha.
0 que é valle? « Planicie junto, ao pé de monte,
ou entre montes » diz o lexicographo. Se é ao pé,
como pôde ser cintura, que dá idéa de meio de
coisa ou pessoa? Ao valle chamavam elles Ibyty —
goâya ou ibyitygoaia e não Ibytiracuá.
O Sr. Alencar quiz dar origem de sua lavra, e
fez esta confusa e inadmissível combinação, que
não traz gloria, porque não fora difficil, com dic-
cionarios e folga e sobretudo fama, preparar taes
enxertos. Queres tu vêr quantas combinações ar-
rumo n'um momento sem o minimo esforço, sem
folga, sem fama e sem grandes recursos philolo-
gicos sobre a pretendida origem da palavra. Pity-
guára ou Potyguára? Ouve lá.
Py — pé, tycoâra — misturar com água, ou
pés molhados, por freqüentarem esses selvagens
os rios, visto como «'habitavam as praias, e vi-
viam em grande parte da pesca » segundo diz o
próprio J. de Alencar na pag. 170. Não se faça
beiço á denominação de — pés molhados, poí
quanto havia os índios Motuys — ou àepés virados.
296 LITTERATURA BRAZILEIRA.

Pó — mão e tycuâra, ou índios de mãos molha*


das, na mesma conformidade.
lpy — primeiro, iby terra e guára senhor, ou
primeiros senhores da terra, na accepção de prio-
ridade de dominio, ou de supremacia de valor
guerreiro.
Ipy e tecuâra, ou os que estão primeiro.
Iby — terra, teco — poder, e uára senhor, ou
poderosos senhores da terra.
Quando sejam illegitimas taes raizes, não o se-
rão mais do que a raiz do Sr. Alencar. Mas ainda
que o fossem, poderiam caber no caso, á vista das
seguintes palavras de um historiador de nota :
« Não é possível entenderem-se os escriptores
ácêrca dos nomes próprios das hordas selvagens
do Brazil, tão variados são e discordantes entre
si. 0 certo éque Potyguarés, Putyguáras, Pitigua-
rés ou Pitagoares, tão diversos em suas escriptu-
ras, são comtudo uma e a mesma casta de Ín-
dios, que habitavam desde Pernambuco até o
Piauhy, e ainda além, como querem alguns
Só por isto se pôde ver quão estúpida não é a prc-
tenção do tal que queria submetter todos
estes nomes a uma escriptura sua, inventando com
estes fim uma orthographia selvagem : tão certo
é que ha no mundo gente para tudo. »
Lê-se :
SEMPRONIO A CINCINNATO. ~ 297

« Boiáninga — é a cobra cascavel: de boia,


cobra, e cininga, chocalho. »
Referindo-meeu n'outra occasião e n'outro logar
a esta nota da Iracema, tive de ajuntar a observa-
ção seguinte : « Entretanto diz G. Dias que o vocá-
bulo boia, na composição,precede o adjectivo, epos-
põe-se ao substantivo; e dá exemplo : arara—boya,
cobra de arara, boia-pinima, cobra pintada. Ora,
por esta regra o termo cininga não pode significar
chocalho, edeve ser adjectivo para que se posponha
á boia. Ignoro o termo cininga etc. »
Não tinha eu então o Glossário, onde agora se
me offerecem elementos para decifrar o enigma.
« Cobra tinnidôra » a chama o Glossário, de
boia e ocinim, tinnir.
Tive, de mais, occasião de ver que no tupy-
austral (d'onde vem ocinim ou antes ôsinim) o
termo boicinim significa : assobiar. D'onde, pois,
se originou em definitiva a expressão ; do cascavel
ou do silvo da cobra?
Devo afinal declarar que se confirma a regra
estabelecida por G. Dias; cininga pospõe-se a boya,
porque, longe de significar chocalho, como erra-
damente diz o Sr. Alencar, isto é longe de ser
substantivo, é adjectivo com a accepção de coisa
que tine.
Lê-se :
« Potyuara — comedor de camarão de poty —
17.
298 LITTERATURA BRAZILEIRA.

e uára. Nome que por desprezo davam os ini-


migos aos pitiguaras, que habitavam as praias e
viviam em grande parte da pesca.
« Este nome dão alguns escriptores aos pity-
guáras, porque os receberam de seus inimigos. »
0 Sr. Alencar foi sem duvida levado a conceber
taes idéas, depois de ter lido no Glossário
(pag. 525) o seguinte :
« Potiguares, Potijáras, Potyuáras — Índios da
gente de Tupi, que comem poti. »
Fosse então lógico, e não restringisse ao nome
Potyuára a qualidade que indistinctamente se
attribue não só a este, como também aos dois pri-
meiros termos. Mas discutamos a etymologia.
Guará, yara ou iara, jara ou uara jamais teve
a significação de comedor, mas sim a de guer-
reiro, ou senhor, ou habitante : Potiguára —
guerreiro de Poti; Tabajára ou Tabayára ou Ta-
baiára, senhor da aldeia; Paráuára, habitante do
Pará, e Capiuára habitante do Capim. (Vid. o Dic-
cionario Tupy).
Mas se quer dizer que a palavra se compõe de
Poty, o verbo u comer, e a partícula pospositiva
ara, ainda assim está em erro, porque a esta par-
ticula sempre se junta um ç : Gapiçára, o que
penteia actualmente. (Vid. o Diccionario).
Convém ainda notar que, no final dos verbos,
ella sempre indica a pessoa que na actualidade
SEMPRONIO A CINCINNATO. 299

exercita a sua significação, como no exemplo


dado. >A\
Assim, pois, para que procedesse a errônea in-
telligencia dada pelo Sr. Alencar — de comedores
de camarão — aquelle nome, deveria elle ser es-
' cripto. —' Potyuçâra; e fora além d'isso mister
que os ditos índios levassem Ioda sua vida a co-
mer camarão, porque, como já se disse, a partí-
cula indica exercício actual da pessoa a que se dá
o nome. Ora isto é o cumulo do absurdo.
Mas, ainda quando, com postergação flagrante
dos preceitos da lingua, se applicasse a denomi-
nação aos guerreiros do chefe Poty, d'onde, ou de
quem houve o Sr. Alencar a noticia de que tal de-
nominação lhes era applicada pelos inimigos em
mostra de desprezo?
0 que se presume com toda razão é que o fariam
com o fim simplesmente de caracterisal-os como
era de costume entre elles.
Tão plausíveis nos parece serem taes conjectu-
ras que o próprio chefe da tribu não se desdoi-
ra a de chamar-se — o Camarão.
Lê-se :
«Senhor do caminho — assim chamavam os
indigenas ao guia de py — caminho, e guará
senhor. »
Abro o diccionario do idioma vulgar — tupy, e
vejo que ao caminho chamavam — pê.
300 LITTERATURA BRAZILEIRA.

No dialecto dos índios Apiacás chamavam-n'o


pea. %
No dialecto dos Cayowás pe.
No dos Omáguas o mesmo. '
No da lingua geral por G. Dias, idem.
No diccionario da lingua Tupy pelo Martius,
idem.
Porque, pois, ha de o Sr. Alencar dizer pyguára
e não peguára! O terem-n'o já outros dito antes
de si não é razão para o não acceitar, e menos para
attribuir ao vocábulo significação que não tem.
Py significa pé, e não — caminho.
Lê-se : -
« Giboia. Cobra conhecida : de gi machado, e
boia cobra. O nome foi tirado da maneira porque
a serpente lança o bote, similhante ao golpe do
machado; pôde traduzir-se bem, cobra de arre-
messo. »
Parece-me forçada esta etymologia.
O arremesso ou bote, além de ser commum a
muitas castas de cobras, não é a qualidade que
mais distingue o indivíduo em questão. Seu prin-
cipal característico é enlaçar a viclima ; esta es-
pecialidade não podia escapar aos índios para que
deixassem de deduzir d'ella a correspondente ex-
pressão.
Duas combinações offereço em substituição.
Primeira : ig — água, e boya ou — cobra
SEMPRONIO A CINCINNATO. 301

d'agua, por ser insigné nadadora. (Ver Hist. Nat.


Pop. por Austet.)
Segunda : jeby — affogar, apertar, e boya, ou
cobra que aperta, que affoga. A corrupção pode-
ria haver dado, sem ser admiração, jeboia, como
alguns escrevem, ou mesmo jyboia.
Esta se me affigura d'entre todas a mais exacta
etymologia.
Lê-se :
« Sucury — A serpente gigante que habita nos
grandes rios e engole um boi. De Suu, animal, e
cury ou curu, roncador. Animal roncador, porque
de feito o ronco da sucury é medonho. »
Pois quem diz — animal roncador — dá idéa
da sucury? Porco será sucury?
Acho manifestamente errônea, não só no sen-
tido como nos termos. Curu e menos cury, é pa-
lavra que não conheço na lingua geral (1).
Cururúca, sim; é o verbo neulro — rosnar,
rugir, roncar.
Não virá melhor de çoo, animal, acú de açú
grande, e hy água, ou grande animal ou monstro
do rio ou das águas? É curioso quanto ácêrca
d'este ophidio vem nas scenas de viagem do te-
nente A. dé Taunay, pag. 96.
Eis-aqui, para concluir por agora os nomes das
1
G. Dias dá este vocábulo com a significação de t tinta com
que no Pará pintam as cuyas. i
502 LITTERATURA BRAZILEIRA.
diversas localidades que o Sr. Alencar diz serem
de cunho original, e que entretanto se encontram
no Glossário, e alguns também no Ensaio Estatís-
tico da Província do Ceará, por Pompêo.
« lpú. — Chamam ainda hoje no Ceará certa
qualidade de terra muito fértil, que forma gran-
des coroas ou ilhas no meio dos taboleiros e ser-
tões, e é de preferencia procurada para a cultura.
D'ahi se deriva o nome d'essa comarca da pro-
víncia. (Iracema, pag. 164.)
« Estes terrenos chamam-se vulgarmente Ypús,
e são d'um barro preto, massapê, que tem muito
húmus vegetal, ou decomposição vegetal e ani-
mal, que as águas acarretam das serras, e por
isso muito substancioso. É n'estes Ypús ou valles,
que se fazem as maiores plantações de cannas. »
(Ens. Etat, vol. I, pag. 140.)
« Hypaua, Ipaúe corr. e hypabe, tudo água;
d'onde os Brazileiros usam da voz paúes para
qualquer água, estanque ou alagadiça. » (Gloss.,
pag. 502.)
« Aracaty. — Significa este nome bom tempo :
de ara e catú. Os selvagens do sertão assim cha-
mavam as brisas do mar que sopram regular-
mente ao cair da tarde, e correndo pelo valle do
Jaguaribe se derramam pelo interior e refrigeram
da calma abrazadora do verão. D'ahi resultou
chamar-se Aracaty o logar d'onde vinha a mon-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 303

çío. Ainda hoje nôlcó o nome é conservado á brisa


da tarde, quesòpra do mar. » Irac. pag. 171.)
« Aracaty.— Ara tempo, catú bom; vento do
Norte, etc. » (Glos. pag. 491.)
« No sertão, principalmente no valle do Jagua-
ribe, reina um vento forte em tempo de seca que
se chama — Aracaty — e apparecé ao cair da
noite quasi de repente. Este vento é uma provi-
dencia para os habitantes do paiz, porque vae re-
frescar a atmosp.hera elevada a um alto grau de
calor etc. » (Ens. Estat. pag. 123, vol. I.)
« Meruóca. —> De mera, mosca, e oca, casa.
Serra junto de Sobral, fértil em mantimentos. »
(Irac. pag. 180.)
« Meruóca (Ceará, Serra.) — merui — oca, casa
de moscas. » (Glos. pag. 515.)
« Uruburetama — pátria ou ninho de urubus :
terra bastante alta. » (Irac. pag. 180.)
« Uruburetama. (Ceará, Serra)—urubu reté taba
— casa de muitos urubus. » (Glos. pag. 532.)
« As saborosas trahiras. — É o rio Trahiry
trinta léguas ao norte da capital. De trahira, peixe
eyrio. Hojeé povoação e districto de paz. » (Irac.
pag. 180.)
« Trahiri (Ceará, Povoação) — taraira — hy
(rio das Tarairas » (Glos. pag. 550.)
« Pirapora — Rio de Maranguape, notável pela
frescura de suas águas e excellencias dos banhos
304 LITTERATURA BRAZILEIRA,

chamados de Pirapora, no logar das cachoeiras.


Provém o nome de Pira peixe, pore salto ; salto
do peixe. » (Irac. pag. 183.)
« Pirapora (Minas, etc.) — pirapore salto de
peixe ou porá habitante — Logar onde os peixes
saltam ou habitam. » (Glos. pag. 522.)
« Pacatuba de paca e tuba, leito ou couto das
pacas. Recente, mas importante povoação em um
bello valle da serra daAratanha. » (Irac. pag. 184.)
« Pacatuba — (Sergipe, Aldeia) paca tyba — lo-
gar do animal Paca » (Glos. pag. 517.)
Vem na Iracema uma nota, que não quero
deixar passar sem reparo.
« Guayuba (diz o autor.) — De goaia, valle, y,
água, jur, vir, be, por onde; por onde vem as
águas do valle. Rio, que nasce na Aratanha, etc. »
Onde foi que o Sr. Alencar achou goaia signifi-
cando valle? Valle é ibytigoaia. Por si só, goaia
serve de desinencía, que entra na composição da
palavra; sem iby ti nunca teve a accepção de
valle.
A que veiu este jur? Para favorecer a denomi-
nação poética (já se vê) que lhe approuve dar ao
rio — por onde vem as águas do valle? Que pre-
juízo!
Porque não ha de o Sr. Alencar perder o mau
costume de improvisar, com mostras e tom de
sapiência? Isto não acredita nem eleva.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 305
A etymologia exacta é a que vem no Glossário,
que o Sr. Alencar não teve razão de desprezar,
n'este, quando tanto se tem d'elle servido em ou-
tros muitos vocábulos.
Jacarecanga — Morro de areia na praia do Ceará,
afamado pela fonte de água puríssima. Vem o
nome de Jacaré, crocodilo e acanga cabeça.» (Irac.
pag. 187.)
« Jacaracanga (Bahia, Povoação) — Jacaré cro-
codilo, acanga cabeça. Cabeça de jacaré. » (Glos,
pag 507.)
« Bahia dos Papagaios — É a bahia da Jerícoa-
cara, áejeru, papagaio, cua, várzea, coara, buraco
ou seio, enseada da várzea dos papagaios. É um
dos bons portos do Ceará. » (Irac. pag. 188.)
« Jericoacara (Ceará : Enseada, Morro, Povoa-
ção) — jerú, ajerú ave, papagaio, guâ variada,
coara buraco. Morada de variegados papagaios. »
(Glos. pag. 510.)
Onde foi que o Sr. Alencar achou cua signifi-
cando várzea? Significa cintura e portanto não
cabe aqui; o que cabe é guâ como diz Martius. Para
que improvisa?
Não posso mais. Estou exhausto.
A principio não me pareceu haver tanto que
colher. Enganei-me. Podes crer que a mina é ina-
cabavel.
Quanto mais me detenho n'estes ligeiros estu-
506 LITTERATURA BRAZILEIRA.

dos, mais o illustre autor desce no meu con-


ceito.
Má hora em que me resolvi a emprehendel-os.
Teem-se-me ido tantas illusões...!
Teu de veras,
SEMPRONIO.
CARTA XIII <{•

Preclaro e douto Cincinnato :

Fora crassa injustiça deixar de comprimentar-


te pelas ultimas missivas com que me tens brin-
dado e ao publico, todas na altura dos teus firma-
dos créditos.
É sempre a mesma áurea penna, fazendo-se
cada dia mais credora de cordiaes parabéns pelas
lucubrações que nos vae dando com inexcedivel
originalidade e mestria. Deus te infunda, meu
caro Cincinnato, se é que as não tens, longam
dade tersa, perseverança sem limites, paciência de
Job; e por cima d'isso ouvidos surdos a vituperios.
Se a critica, segundo penso, é apostolado, tem de
necessariamente lutar com Scribas e Phariseus
Resignação!
Falas-me do Til, na tua QUINTA CARTA, cornos)
308 LITTERATURA BRAZILEIRA.
fosseelle inteiramente alheio ao meu conhecimento.
Não é assim. Tenho-o acompanhado, numero a
numero. Poderia eu perder o que se diz estar pre-
destinado a « dar ao mundo occasião de admirar
um prodigio » naphrase de Ossian?
Para prova chamo a tua attenção sobre o poli-
dissimo dialogo travado entre uma negra da
fazenda, um pagem e mais um caipira ou ar-
reeiro.
Amores de senzala, ciúmes decavalhariça, trál-
os José de Alencar á sala ou ao gabinete do des-
prevenido leitor, a quem os offerececomo cos-
tumes edificantes de S. Paulo !
Suppôz de certo que para entabolar palestra?
com visos de natural ou verosimil, entre persona-
gens d'essa laia, tinha rigorosa obrigação de usar
de deshonestas palavradas. Que pobreza!
E o tal marmanjo que entornava pela camisa a
tigela de café? Hão de ver que d'aquelle bicho se
fará um arremedo (caricato já se vê) do Rocam-
bole. A lobrega e lubrica imaginação dePonsondu
Terrail devia inspirar a musa-mãe do paradoxo no
Brazil; o Til já o vae mostrando. Pois que venha a
rocambolada.
Ora esta! Sem me sentir, ia invadindo os teus
domínios, onde tanto e tão efficazmente já tens
colhido, posto que só agora nos começos da vin-
dima. Não tivesse também eu por cá tão gorda
SEMPRONIO A CINCINNATO. 509

safra, com certeza te acompanharia na ceifa, que


o campo de lá se me affigura uberrimo e a pro-
ducção de espantar. Porém não. Volto á minha
seara.
A tua ultima, de 8 d'este, como todas interes-
sante, veiu suggerir-me uma resolução, que para
logo adoptei: pôr termo á presente serie com esta
carta, afim de sobrar-me tempo e espaço para
votar algumas linhas ao exame do Tronco do Ipé,
que Senio chama ipê contra a geral phonographia.
Não admira ; é a febre, ou antes a concupiscencia
da innovação.
Mas perguntar-me-hastu :
— Que é das outras promessas que falta
cumprir : tratar da policia da lingua, e apreciar
a carta final?
Pelo que respeita a esta ultima, quem tiver lido
as minhas precedentes não ignorará que a tenho
apreciado quasi toda, pouco mais havendo que
dizer. Quanto aos neologismos e gallicismos, e o
que mais lhes fôr affim, parece até mais próprio
tractar d'elles, quando houver de occupar-me com
a Diva, onde o Sr. Alencar faz praça da sua auto-
ridade e sabença n'esta matéria, como se verá do
famoso Postcríptum, addido á obra.
Reservando portanto a questão de philologia
para essa occasião, adduzirei comtudo na presente
510 LITTERATURA BRAZILEIRA.
o que resta acaso que adduzir sobre-a carta, e re-
matarei.
De uma coisa me occorre dever prevenir quanto
antes o leitor, para que lhe não paire no espirito
sequer leve sombra de desconfiança ácêrca da
lealdade e justeza com que tenho procedido n'este
juizo.
Não ignoro que Iracêmajá conta segunda edição.
Se pois tenho feito este estudo pela primeira, houve
n'isso caso pensado, e dou os motivos : I o a con-
veniência de me guiar pela mesma edição exami-
nada pelo critico, a quem respondi; 2o por entender
que os papas não erram, porque são infalliveis.
Emendar ! elle ! seria desluzir-se.
Verdade é que se lêem na carta palavras como
estas.
« Depois de concluido o livro, e quando o reli
apurado na estampa, conheci que tinham escapado
senões que poderia corrigir, se não fosse a pressa
com que o fiz editar ; noto algum excesso de com-
parações, certa similhança entre algumas imagens
e talvez desalinho no estylo dos últimos capítulos,
que desmerecem dos primeiros.
« Se a obra tiver segunda edição, será escoi-
mada d'estes e de outros defeitos que lhe descu-
bram os entendidos. » Modéstia. Emendar! Seria
desluzir-se.
Accresce : se qualquer polimento versasse
SEMPRONIO A CINCINNATO. 311
sobre a fôrma, seria inefficaz, quando a sede do
mal está na substancia, como se tem provado
e ainda se provará. Producções taes, ou intei-
ramente se refundem, ou não adianta pôr-se-lhes
a mão.
Acaba de ler-se que, no pensar do autor, os
« últimos capítulos desmerecem dos primeiros. »
Pois enganou-se redondamente. Em todo o livro
não se conta senão um passo que possa acordar
algum sentimento muito escasso, fugacissimo, no
leitor; e este vem no penúltimo capitulo. É o que
passo a citar (por concessão):
« —Enterra o corpo de tua esposa ao pé do co-
queiro que tu amaste. Quando o vento do mar
soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz
que fala entre os seus cabellos.
« O lábio emmudeceu para sempre; o ultimo
lampejo despediu-se dos olhos baços.
« Poty amparou seu irmão em sua grande dôr.
Martim sentiu quanto um amigo verdadeiro é pre-
cioso na desventura; é como o oiteiro que abriga
do vendaval o tronco forte e robusto do ubiratam,
quando o broca o cupim.
« 0 camocim recebeu ú corpo de Iracema, em-
bebido em resinas odoriferas; e foi enterrado ao
pé do coqueiro, á borda do rio. Martim quebrou
um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o
no jazigo de sua esposa.
312 ' LITTERATURA BRAZILEIRA.

« A jandaia poisada no olho da palmeira re-


petia tristemente : • 'í
« — Iracema!
« — Desde então os guerreiros pytiguáras que
passavam perto da cabana abandonada e ouviam
resoar a voz plangente da ave amiga, se afastavam,
com a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde
cantava a jandaia. »
Também o final da lenda :
« «As jandaias cantavam ainda no olho do co-
queiro ; mas não repetiam já o mavioso nome de
Iracema.
« Tudo passa sobre a terra »
Quer saber o Sr. Alencar, porque razão estas
duas insignificancias valem todo o seu poema? Jus-
tamente pela razão de não estarem empadas da
vaidosae forçada gala, queordinariamenteredunda
em detrimento da genuína expressão do desenho
ou narrativa.
E como diz faltarem taes pavezes aos últimos
capitulos, pensa que desmerecem estes dos pri-
meiros. O Sr. Alencar tem realmente uma esthetica
suigeneris!
Afora esses dois extractos, provoco a que me
apontem outros em que o sentimento não esteja
de todo ausente. Não são capazes, apezar de haver
situações que deveriam naturalmente conduzir a
similhante resultado, se a penna do escriptor, tão
SEMPRONIO A CINCINNATO. 313

atrevida e idônea para achar a anomalia, soubesse


vibrar a corda mágica dos affectos. Infelizmente
n'este particular o autor da Iracema, Gaúcho et
reliqua tem-se ultimamente mostrado de penúria
tal, que será difficil encontrar egual em autor de
medianos créditos. Pois bem : em matéria de arte,
quem não tem sentimento não produz senão
visões macilentasedesharmonicas. Tirae a Cooper,
a Raphaeí, a Phidias esse dom admirável, e só
achareis nas suas obras descripções enfadonhas,
quadros desbotados, estatuas monótonas, e em
qualquer d'essas producções illuso o ideal, que
debalde procurarão onde não houver os superla-
tivos toques da paixão. Podeis afoitamente rasgar
essas paginas, inutilisar essas telas, quebrar esse
mármore; a arte vos não quererá mal por isso,
nem exigirá de vós indemnisação.
Se abrirdes qualquer composição das moder-
nissimas de J. de Alencar, o Tronco do Ipé por
exemplo, achareis ahi melhor confirmada a minha
asserção.
Lêde-a desprevenido. Figurae-vos ser de um in-
cógnito Senio a obra, enão do afamadoconselheiro
José de Alencar. Não achareis — conscientemente
falando — uma scena quente, uma situação vivaz,'
um lance verdadeiramente com honras de com-
mover.
Esgotaes pagina a pagina os dois tomos, e, sem
18
31& LITTERATURA BRAZILEIRA.

terdes n'um ponto sequer experimentado' o


minimo abalo, acabareis por vos sentir ab orrido
da assidua semsaboria.
Chegareis a suppôr que o espirito inspirador do
livro foi antes o da ganância que o dobello, de que
nada alli se adivinha e menos se annuncia que o
editor especulou não sobre o mérito da obra, mas
sobre o prestigio do nome, n'esta terra onde o
nomeé tudo.
Mas em verdade — convictamente o digo — não
se deve somente ao intuito do lucro aquella deplo-
rável inopia.
É que principalmente no insentimento tem esse
escriptor a sua qualidade predominante, que sobe
de ponto todas as vezes que, arroubado na aza da
fofice se divorcia absolutamente do coração, para
fazer illegitimo connubio com a phantasia. Novo
ícaro, precipita-se então em mar de gelos eternos)
onde só pôde achar monstros, como no oceano
glacial só se encontra a phoca e o urso branco. Vob-
temos-nos para a carta.
Diz J. de Alencar que « os selvagens do poema
de Gonçalves Dias (Tymbiras) falam uma linguagem
clássica e exprimem idéas próprias do homem civi-
lisado. >> Nâo é nosso desígnio analysar aqui as
producções do primeiro poeta do Brazil, e inaba-
lável chefe da nossa litteratura indiana; e menos
defendèl-o de uma accusação vaga, que não deter-
SEMPRONIO A CINCINNATO. 315

mina os pontos do delicto. Apresentem porém em


termos o libello âcousatorio, e o mais inhabil ad-
vogado falará em nome de uma das mais abalisadas
glorias da nossa terra.
Diz que muitas das producções que se publica-
vam sobre o thema indígena « peccavam pelo abuso
dos termos indígenas, accumulados uns sobre ou-
tros. » Cabe aqui o adagio chulo : « Ri-se o roto
do remendado, e o sujo do mal lavado. »
Abro ao acaso a pag. 5. Leio : « A graciosa ará,
sua companheira e amiga... remexe o urú de
palha. » Ao acaso a pag. 10 : « A virgem lançou
de si o arco ea viraçaba... entrou com aigaçaba. »
Ao acaso a pag. 62 : « 0 jaguar, senhor da floresta,
e o anajê, senhor das nuvens. » Ao acaso a pag. 32 :
« O camocim da virgem. » Para amostra já basta;
e não quero falar nas vozes tupi cas mais conhecidas,
quaes pagé, Tupan, tacápe, inubia, e quejandas.
Pôde em vista d'isso o Sr. Alencar atirar a primeira
pedra? Abusou muito mais do que seus predeces-
sores, que censurara.
Do que tenho considerado até o presente, com
relação ao poema do Sr. Alencar, que conclusões
será licito extrahir? Que resultado deu a dissecção ?
A moléstia está na pelle ou na espinha, na fôrma
ou na substancia?
Ninguém o negará de boa fé : ha grandes vicios
de estylo, os maiores defeitos de caracteres, a
316 LITTERATURA BRAZILEIRA.

peiordisposição na acção da lenda. 0 mal nSo eslá


somente n'este ou n'aquelle membro, mas esparso
e ramificado por todo o organismo, interessando
as partes mais importantes e vitaes do indivíduo.
Como ser viável similhante feto ?!
É falso o typo de Martim, deixando-se dominar
das usanças e abusões mais grosseiras dos bar
baros, como se fora outro que tal, quando se sabe,
muito pelo contrario, que elle apenas contempo-
risava com esses preconceitos no seu interesse, e
para attingir fins a que se propunha.
Está ainda eivado, pelo que respeita á edade e
nacionalidade, segundo ficou demonstrado. Mar-
tim, sobre ser Portuguez, ou, pelo menos, sobre
não ser de modo algum natural do Rio Grande do
Norte, não podia contar 6 para 7 annos de edadei
quando se achou çom Pedro Coelho no Ceará e
travou relações com o Jacaúna e o Camarão.
Não desculpará o autor o dizer-se que é per-
mittido aos poetas o anachronismo; sabemos d'isto;
Chateaubriand usou d'elle nos Natchez, Lamartine
no Jocelyn. Mas aqui o caso é muito differente. 0
Sr: Alencar não só incorreu n'esse vicio fora da
ficção, isto é não só affirma a nacionalidade do
Moreno n'uma nota, seguramente no presupposto
de afastar toda duvida, (vid. a pag. 180) como até,
referindo-se ao Camarão no seu argumento histórico
a pag. 161, faz alardo de não ser de modo algum
SEMPRONIO A CINCINNATO. 517

infiel áverdade histórica; d'onde se deduz de duas


uma; ou que está plenamente convencido de ter
sido o Rio Grande o berço de Martim; ou que,
conscio do contrario, finge acredital-o e fala n'a-
quelle tom firme e pedagógico para induzir os
incautos a seguirem-n'o, com que interesse não
sei.
É falso o typo de Araken o pagé, relaxando as
rígidas usanças, transgredindo os severíssimos
ritos, que outra coisa não importa o franquear ao
estrangeiro delinqüente o accesso na gruta, e sal-
val-o com o prejuízo de pragmáticas, sempre entre
esses povos respeitadas e invioladas.
É falso o typo de Mel Bedondo, imbelle, e sub-
versor das crenças admittidas ; apoucado diante
do grande amor, que devera ser apanágio do sel-
vagem.
É falso o typo de Poty, porque apparece inepto,
denunciando-se de dentro do tanque aos figadaes-
inimigos, ou arriscando-se a cair em cilada quando
pela própria gruta do pagé se dirigiu a Martim.
É falso o typo de Iracema, guardando os sonhos
de Tupan, e o mysterio da jurema; convivendo
com o pagé na caverna, que só elle devia habitar;
virgem e pura no meio da usual devassidão; tibia
no guardara fé ao cargo, que (contra a historia)
occupava.
É falsa a linguagem de todos; são fajsos aquelles
18.
318 ' LITTERATURA BRAZILEIRA.

affectos e aquelles ódios, affectos sem calor, ódios


sem intensidade.
Sempronio não diz estas coisas aos presentes;
tem apretenção de escrever para o futuro. 0 pre*
sente é a exaltação da idolatria pessoal; o futuro,
porém, que não conhece nenhuma das duas partes^
costuma sempre decidir, inspirado dos dictames
da mais justa e inflexivel rectidão.
Ha comtudo na actualidade espiritos indepen-
dentes e desinteressados; indivíduos que não
devem obrigação de espécie nenhuma ao Sr.
Alencar, nem amam a têl-o nas suas fileiras; que
passam perfeitamente na obscuridade ou na es-
phera em que giram (qualquer que ella seja) sem
o calculo de serem agradáveis a deuses espúrios,
mas só com os olhos postos no verdadeiro Deus —
o da justiça, e do pundonor. Para esses rabisca
Sempronio estas suas garabulhasque, quando suc-
ceda peccarem por importunas e rudes (o que não
seria novidade) nunca peccarão de certo por op-
postas á orthodoxia litteraria.
Por outro lado, tem ouvido o Sr. Alencar, e ouve
a cada instante, aqui e até no estrangeiro! tão
rasgados elogios que, enojado naturalmente d'elles,
é de crer encontre delicia, ainda que seja por mero
desfastio, em ouvir algumas notas, perturbando o
concerto de atroadora louvaminha.
A lei dos contrastes está na natureza das coisas.
SEMPRONIO A CINCINNATO. 519
Não ha sem ella bellezas physicas nem moraes,
nem artes, nem politica. A vida não.é uma só
commoção, nem a musica uma só nota. Se a pin-
tura constasse somente de claros ou somente de
sombras não seria senão um borrão, escuro ou es-
plendido, conforme o intuito do quadro.
Assim também os maiores talentos aberram,
apoucam-se, perdem-se, quando são objecto, ou
só de adorações ou só de complacencias. Mirabeau
na assembléa nacional teria sido um ponto, em
vez de uma luz, se não fora Cazalés.
Discussão, opposição, critica — seja na littera-
tura, seja nas sciencias, como na artedos governos,
são legítimos agentes da verdade, conductores
idôneos da boa doutrina. Devem-se estimar e bem-
dizer, e nunca levar-se a mal.
Achar-me-hão sempre firme n'estes lúcidos
princípios , que esposo com a força de convicção,
só inferior ao desejo depor qualquer meio ao meu
alcance ser útil ao meu paiz.
Se tomarem á má parte1 procedimento tão
confessavel embora ! nem por isso mo hão de aco-
vardar.
Termino aqui a autópsia. Adeus, meu amigo.
Teu leal admirador,
SEMPRONIO.

FIM DAS CARTAS DE SEMPRONIO.


CARTA I

DE C I N C I N N A T O A C U J A C C I O

Illustrado Cujaccio.

Dizes tu que lês habitualmente as Questões do dia, e n'essa


publicação te chamam a attenção de um modo muito parti-
cular as eruditas cartas de Sempronio. Accrescentas que re-
centemente viras n'uma d'ellas um trecho, que deixa em du-
vida os conhecimentos jurídicos do venerando Sr. Alencar,
tão apregoados, ao menos por elle mesmo. Perguntas-me
sobre esta matéria a minha opinião, e, embora desautori-
sada, não devo occultar-fa.
Persuado-me eu que, tendo-se aquelle senhor applicado a
tanta coisa, foi victima de uma lei da physica : o que ganhou
em superfície, perdeu-o em profundidade. Não se pôde accu-
mular a universalidade das superioridades, porque essa per-
feição só pertence ao Ente Supremo, e elle ainda o não é,
posto para lá caminhe. Terá de contentar-se com ser estu-
pendo romancista, e litlerato, e prosador, e poeta, e drama-
turgo, e jornalista, e politico, e orador. Como a jurisprudência
322 LITTERATURA BRAZILEIRA.
lhe ficou para as horas vagas, n'ella a cada passo claudica e
esbarra.
São innumeraveis as provas, que vão ahi por todo esse foro,
da infelicidade do perito jurisperito. Admira não teres seguido
também, pela imprensa, algumas das polemicas jurídicas, em
que o nosso causídico tem sido aniquilado por muito mais
habilitadas pennas.
Não alludirei aqui a pontos controvertiveis. Não só as
sciencias positivas se prestam freqüentemente a boa susten-
tação de theses oppostas, mas um advogado obrigado a de-
fender o seu cliente, nem sempre tem convicção da sua
justiça absoluta, ed'est'artevê-se obrigado a sustentar doutri-
nas, pelo menos duvidosas.
Concedendo porém tanto á profissão de advogado, ha uma
barreira que lhe não é licito ultrapassar. Nem pôde contra-
riar os princípios elementares do direito, nem ignorar coisas
sabidas por qualquer triste fiel de feitos. Não sei se o dis-
tíncto lettrado não estará n'este caso. E como tenho o habito
do allegado e provado, Vejamos alguns factos, ou desconheci-
dos, ou já tratados pela imprensa. E como d'estes mostras
não ter notícia, por elles começarei.
Ainda ha poucos mezes se agitou pela imprensa uma dis-
cussão jurídica entre o Sr. Alencar e outro muito mais va-
lente e competente contendor, o Sr. Lafayette Rodrigues Pe-
reira. O epílogo d'esta polemica foi um artigo em que se re-
sumia o que do debate resullára, e que o Sr. Dr. Lafayette
formulou nas seguintes palavras:
... « Explosão da vaidadeoffendida ; é oodre que arreben-
tou. 0 sábio conselheiro que, de ha annos a esta parte, traz
ás costas um pesado fatras litterario, andava a campar de
jurisconsulto de polpa. A discussão rompeu-lhe as falsas bul-
las, que, é verdade, se tinham tornado um pouco suspeitas,
depois da publicação de uns celebres projectos de reforma
judiciaria, que a esta hora já terão sido aproveitados para
alguma encyclopediana.
« As estupendas heresias jurídicas que o sábio conselheiro;
SEMPRONIO A CINCINNATO. 323
com invejável gravidade, denomia fructos de meditação, sub-
sídios da sciencia, puzeram patente a doutos e a indoulos
uma verdade pungente, e que fora melhor se conservasse
occulta; a saber : que S. Ex. não andava muito familiarisado
com as Pandectas.
« Nunca me passou pela mente desconhecer os sublimes
talentos do sapientissimo conselheiro, como folhetinista,
poeta, romancista e autor de dramas. E, para prova da minha
sinceridade, aproveito a occasião para lhe dizer que desde
muitos annos professo a mais viva admiração pelos monstrengos
moraes que ornam a sua linguagem litteraria, e pela lingua
divina que falam, lingua que a nós, míseros mortaes, pôde
parecer bárbara estropiada. »
Ja vês, amigo, como um distincto jurisconsulto avalia a
sciencia do Sr. Alencar. Nem se diga que apenas alludia a
uma dissidência em ponto de doutrina. Quem argúe a outrem
de proferir heresias jurídicas, de campar com bullas falsas,
de desconhecer as Pandectas, etc, caracterisa a sciencia
d'esse outrem em matérias geraes de direito , e não em
qualquer especialidade.
Foi o referido artigo resposta ao ultimo do Sr. Alencar, in-
titulado Simples advertências, repleto das mais audaciosas
baforadas, e onde apparecem dos taes dizeres, que são pro-
priedade exclusiva d'este senhor. Por exemplo:
— «O amor próprio e o despeito são fumo-do coração,
que tolda o espirito e obscurece o entendimento. » Rravo !
Temos aqui obscurecido um entendimento que não é espírito,
e toldado um espirito que não é entendimento, e tudo isto
defumado pelo despeito, que é fumo , e fumo de que ? do
coração. Impagável!
Diz que « Ovidio entre os Getas escreveu ESTE VERSO :
Barbarus ego sum, quia non intelligor Mis »
como se Ovidio fizesse versos errados: sendo este vêso de
nunca citar certo, um dos elementos da minha convicção de
que o famoso V., das Palestras, não era mais que um copista
do patrão.
524 LITTERATURA BRAZILEIRA.
Emfim deixemos essas minúcias, e venhamos ao assumpto,
que então se agitou.
Involvia elle muitas circumstancias em que a controvérsia
era tolerável, mas um ponto ha que doutos e indoutos re-
conhecerão prima fade, que o Sr. Alencar errou desastrada-
mente.
Um devedor hypothecario, não satisfazendo o seu debito,
foi executado ; procedeu-se a avaliações, que se dizem exag-
geradas, dos respectivos immoveis, os quaes por quantia
muito superior ao debito foram adjudicados ao credor que
não quiz consignar o valor do denominado excesso, no praso
que lhe foi marcado.
Queria o Sr. Alencar que o credor adjudicatario fosse levado
á prisão, e n'ella permanecesse até que entregasse o tal cha-
mado excesso!
Existe alguma lei no Império que tal coisa prescreva ?
Não; mas o liberalismo do actual neophyto republicano é
assim: liberdade do cidadão é para elle uma insignificancia,
um brinco; deroga a constituição: estabelece umas theorias
cerebrinas, que se convertem em praticas inquisitoriaes; en-
carcera.... por analogias! A detenção corporal, a pena, sus-
ceptível sim de restringir-se, nunca de ampliar-se, o novo
Torquemada a fulmina arbitraria, despotica, tyrannicamente,
sem sombra de legislação em que se estribe. Se o legislador,
excepcional e raramente, preveniu algum caso de commina-
ção de prisão, circumscreveu-o, limitou-o, definiu-o. Se em
dadas hypotheses, a lei permittiu esse meio contra depositá-
rios e arrematantes, nunca o autorisou contra os adjudica-
tarios, que nem arrematantes nem depositários são.
Tudo isto é elementar; mas o Sr. Alencar, que já nos seus
projectos de reforma judiciaria se patenteara adorador dos
cárceres, masmorras e ergastulos, quiz ir já fazendo expe-
riências in anima vili de um cidadão. Para elle, a liberdade
natural é um abuso, ou pelo menos uma mercê de S. Ex.,
que assim pôde ad libitum coarctal-a!
Para honra do paiz, cumpre declarar que não houve uma
SEMPRONIO A CINCINNATO. 52n
só voz no fôro, no paiz, nos tribunaes, que fizesse coro com
a menos inquisitonal que absurda doutrina. Consultados, todos
o.s advogados unanimemente clamaram contra a estulta prelen-
ção ; egual uniformidade se repetiu nos tribunaes ; egual, na
opinião dos sabedores de direito, e até dos mais estranhos
ao estudo da jurisprudência. Ficou S. Ex. collocado na menos
invejável unidade ; foi o pur si muove do absurdo.
Por hoje aqui me fico ; proximamente trarei outras brüha-
turas do digno jurisperito ao teu conhecimento.

Teu respeitoso amigo,

ClHCINNATO.

FIM DAS CARTAS DE CINCINNATO.

1*1
NOTA

SOBRE AS CARTAS DE SEMPRONIO

Para indemnisar-me do dissabor que me deixou a leitura da


IRACEMA, reli os NATCHEZ, e pude melhor ver que o Sr. Alencar es-
crevendo a sua lenda, tentou seguir na senda de Chateaubriand,
o inspirado revelador da litteratura indiana na Europa. Desgra-
çadamente para nós o poema nacional é o contraste mais vivo e
(lagrante do poema francez.
Comparae a india Iracema com Celuta, a amizade de Utugamy a
René com a de Martim a Poty, esse magnífico Livro décimo em
que se narra um combate de guerreiros inimigos, com o capi-
tulo XVIII, reproduzido na minha caria 5", e vereis que não ha
termo de comparação entre o desenho, e a caricatura. É certo que
não se pretende impunemente imitar Chateaubriand tão puro.
tão natural, tão rico de sentimento quanto de observação, tão suf-
ficiente quanto cordato e razoável.
Se lerdes o maviosissimo hymno que intòam índios e índias á
liia na Segunda parle da obra, conhecereis ainda mais quanto
mesquinho é o que traz a IRACEMA na pag. 72.
E tudo o mais assim.

FIM
ÍNDICE

Carta-prulogo «
DE SEMPIIONIO A ClNflINNATO SOBRE O « G A Ú C H O . II

Carla 1 3
Carta II ' 9
Carta III 25
Carta IV . . . 57
Carta V 5r,
Carta VI 71
Carta VII 81
Carta VIII. . . . . . . . . 9 1
DE CINCINNATO A SEMPRONIO. — (EXTIIACTOS).

Carta I. . . . ._ 49
Carta II. . . . .' 65
Carta III 10o
Carta IV 106
Carta V (de Cincinnato ao cidadão Fabricio) 108
Carta VI 111
Carta VII 113

NOTAS
Sobre as cartas de Cincinnato. . . . . . 117
Sobre as cartas de Sempronio 117
330 ÍNDICE.

DE CINCINNATO AO REDAOTOR DAS « QUESTÕES DO DIA. »

Carto. 12.*»

DE SEMPRONIO A CINCWNATO SOBRE A « IRACEMA. »

Epístola á parte 127


Carta I . . . 137
Carta II 145
Carta III 153
Carta IV 177
Carta V 193
Carta VI. . . . 213
Carta VII . . . . 225
Carta VIII 235
Carla I X . . . . ". ' . 247
Carta X 259
Carta XI 277
Carta XII " ' . . . . ' 291
Carta XIII 507

DE CINCINNATO A CDJACCIO.

Carta I. . 321

NOTA
Sobre as cartas de Sempronio 327

FIM no ÍNDICE.

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