5 O Ultimo Beijo de Um Duque Contos de Natal Flavia Padula

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Copyright © Flávia Padula

1ª EDIÇÃO DIGITAL

CAPA: LA CAPAS

REVISÃO: JULIA LOLLO

DIAGRAMAÇÃO: ARAÚJO DESIGNER

Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer
semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Proibida a
reprodução, total ou parcial, desta publicação, seja qual for o meio, eletrônico ou mecânico,
sem a permissão expressa da autora Flávia Padula. Proibido para menores de 18 anos.
Com amor para Rebeca, Davi, Isaac e Alessandro.

E agradeço a Deus pelo dom que me deu de escrever!


Caso um leitor se agradar da obra, já terá valido à pena
escrevê-la.

Flávia Padula
1875. Daisy Winslet sofreu muitas auguras ainda jovem. Mas nunca
perdeu a esperança de dias melhores. Por isso, quando seu irmão
conseguiu que estudasse para ser enfermeira, ela agarrou a
oportunidade. E seu primeiro trabalho depois de formada foi como
cuidadora do Duque de Grafton, James Conway, conhecido por seu
temperamento um tanto hostil.

James está preso a uma cadeira de rodas depois de um fatídico


acontecimento e tornou-se um homem mais insuportável do que já
era. Daisy não liga para o mau humor e não é uma opção desistir de
seu paciente.

Então, o que era para ser um simples emprego vai mudar a vida de
enfermeira e paciente, a ponto de seus corações jamais voltarem a
bater sem desejarem estar na presença um do outro.
Música Trilha Sonora do livro:

Live to Tell - Madonna


Quando escrevi A Casa da Colina não imaginei que chegaria
tão longe nessa série. Esse é o quinto livro e escrevi com muito
amor e carinho. A história enlaça dos livros: Meu Querido Primo
(Série Contos de Natal 4) e O Conde de Denbigh. Assim é mais um
Spin Off. Aqui vamos encontrar a história de amor de Daisy Winslet,
e do Duque de Grafton, James Comway que foi o vilão do livro do
Conde.

É uma noveleta, mas uma das histórias mais difíceis que já


escrevi, quem acompanhou a série sabe que a história de Daisy não
é nada fácil e abordar assuntos delicados como estupro sempre
gera alguma polêmica. Por isso, não aconselho pessoas sensíveis a
lê-lo. Não há violência ou sexo neste livro. Mas há momentos em
que a personagem relembra acontecimentos do passado e sofre, o
que pode despertar gatilhos.
Esse é meu último lançamento esse ano foram no total vinte
e um lançamentos para entreter e trazer um pouco de luz para as
pessoas nesse ano tão difícil de 2020, não apenas pela pandemia,
mas também pelo atropelamento que foi em nossas vidas com
tantas mudanças radicais e a forma como ficou difícil lidar com o ser
humano que está cada vez mais intolerante.

Desejo a vocês paz. Desejo um Natal maravilhoso e um 2021


repleto de saúde. O restante a gente conquista. Mas como em todos
os meus livros, também desejo uma segunda chance para todos e
que a esperança e a fé possam preencher o vazio que tem se
tornado a vida de todos nós.

Gratidão!

Boa leitura e até 2021!

Com amor,

Flávia Padula.
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Epílogo
OUTROS LIVROS DA AUTORA
Capítulo 1

A carruagem quebrou. Senti meu corpo chacoalhar antes de


o veículo oscilar para o lado esquerdo e inclinar. O cocheiro abriu a
portinhola para me ajudar a descer também.

— Obrigada, Senhor Higher – agradeci —, o que houve?

— A roda quebrou, vou ter que consertar. – Ele lamentou.

Respirei e o vapor saiu dos meus lábios por causa do frio.


Era meados de outubro e estava nevando, o que era interessante,
geralmente a neve chegava em meados de dezembro. Mas nada na
natureza era normal nos últimos tempos. Durante a primavera e o
outono, Londres tinha todas as estações, podia ir do calor ao frio em
questão de horas. E não era diferente em Oxford onde minha família
morava.

— Não estamos muito longe do castelo de Hapton, estamos?


– Eu perguntei a ele. — Thomas Willer me escreveu dizendo que eu
saberia que estava chegando por causa do vinhedo pelo qual
passamos.

Ajeitei meu casaco. Estava muito frio e a única coisa que eu


desejava era entrar em um ambiente quente, tirar meus sapatos e
esquentar meus pés. Eu odiava sentir frio nos pés, era um trauma
de infância. E os meus estavam congelando mesmo sob as botas
quentes que havia ganhado de minha cunhada Anne.

— Talvez uns três ou quatro quilômetros de caminhada. – Ele


observou com o vapor saindo de seus lábios. — Se quiser
aguardar...

— Imagino que deva demorar – olhei para a roda quebrada,


não é a primeira vez que eu via uma —, e vamos congelar de frio.
Vou caminhando. Obrigada.

Sorri e comecei a andar pela estrada onde a lama se


misturava com a neve. Felizmente, havia parado de nevar e pude
caminhar tranquilamente. Aos poucos, os muros de Hapton surgiam
diante dos meus olhos. Altas paredes de pedras escuras
circundavam a propriedade. O portão estava aberto e passei por
eles. Um bosque de pinheiros formava o caminho um tanto sombrio,
cheguei a olhar por cima do ombro para ter certeza que estava
sozinha, eu tinha a impressão que era observada. Era apenas fruto
da minha imaginação e do excesso de histórias que ouvia minha
mãe contar sobre lugares assombrados. Eu e minhas irmãs
adorávamos, mas conforme eu caminhava pelo bosque, meu medo
não estava ajudando em nada.

Fiquei surpresa quando o belo jardim surgiu diante dos meus


olhos e por trás dele um lago tão grande que poderia caber cem
famílias tomando banho. Não sei por que tive esse pensamento, eu
sequer sabia nadar ou já tinha visto famílias nadando. Eu tentava
em vão controlar aquelas asneiras e pensamentos sem sentido que
por vezes povoavam minha mente, mas parecia inevitável.

Segui em frente admirando a bela construção de paredes


brancas e altas. Três andares com janelas grandes na frente, todas
escondidas por cortinas. Imaginei que por causa do excesso de
vidros, o vento frio devia dançar pelos corredores. Esperava que
meu quarto ao menos tivesse uma lareira quentinha, odeio sentir
frio, como eu já disse antes. Posso ser repetitiva, minha mãe
costumava me xingar por causa disso.

Respirei fundo e dei a volta para os fundos. Empregados


nunca batiam à porta da frente e eu sabia exatamente onde era o
meu lugar. A nova cuidadora do Duque de Grafton, James Conway.
Há pouco mais de um ano, o arrogante Duque sofrera um acidente a
cavalo e ficou paralítico. Desde então, uma chuva de cuidadores
passou por aquele lugar e ninguém ficou mais que uma semana, o
homem era insuportável. Diziam as más línguas que ele costumava
xingar e jogar objetos em seus empregados e passava a maior parte
do tempo mal-humorado. O único que o suportava era um tal de
Thomas, seu fiel empregado, o mordomo da casa e uma espécie de
secretário.

Aos vinte anos, eu havia estudado para auxiliar os médicos


nos hospitais. Não ganhava quase nada para isso, já que mulheres
não eram bem remuneradas, mas meu irmão Quentin me pagava o
suficiente para ter minha própria vida e ajudar em casa. Mas viver
com ele e sua família, além de minha mãe e irmãs não me fazia
bem e eu precisava partir. Foi quando fiquei sabendo dessa
proposta de emprego a qual mais ninguém queria aceitar e decidi
me aventurar.

O máximo que poderia acontecer era que eu voltasse para


casa, mas eu tinha planos de ficar. Não seria a falta de educação de
um Duque que me faria desistir de ter minha vida e recomeçar. Ao
lado de minha família eu jamais poderia ser feliz. Eles eram bons
para mim, mas estar perto deles me trazia sombras do passado que
me amarguravam e eu não sabia mais lidar com essas situações.
Precisa ir, era apenas o que meu coração dizia: recomeçar.

Levei mais tempo dando a volta pelo castelo do que


atravessando o bosque e o jardim. A edificação era enorme e
imaginei que deveriam ter milhares de empregados para manter
aquele lugar limpo e adequado. Bati na porta dos fundos e demorou
um pouco até que uma senhora com seu vestido negro e olhar
austero a abrisse e me olhasse com desdém.

O que não me acovardou. Poucas coisas na vida me


intimidavam. Olhares rudes eram apenas a sentença da própria
alma, não da minha.

— O que você quer? – Ela perguntou ríspida.

— Meu nome é Daisy Winslet, eu vim para ocupar o cargo de


cuidadora do Duque de Grafton. – Eu me apresentei.

A mulher me mediu da cabeça aos pés. Talvez desacreditada


do meu poder de trabalho visto que ninguém conseguiu ficar.

— Tem certeza? – Ela perguntou sem qualquer resquício de


humor.

Estava me dando uma chance de partir. Queria apenas


provar que eu ficaria e não estava disposta a ir embora. Não queria
voltar para casa. De alguma forma, precisava recomeçar.

— Sim, senhora.

Ela assentiu, mas não se mostrou satisfeita. Apenas ergueu


uma sobrancelha e deu um passo para o lado para que eu pudesse
entrar.

— Meu nome é Abigail Relish, sou a governanta da casa –


explicou enquanto seguíamos pela extensa cozinha vazia. — Como
é inverno, nós diminuímos o número de empregados. Eles voltam
apenas no início da primavera – dizia enquanto entravamos pelo
corredor escuro e ela pegou uma vela para descermos as escadas
estreitas e eu me segurava na parede para me equilibrar.

Parecia que a parede estava úmida e olhei ao redor,


surpresa. Era estreito e sufocante, mas logo chegamos a um
segundo corredor que parecia uma galeria de uma prisão. Nunca
estive em uma, mas era como eu imaginava depois de ler tantos
livros que falavam sobre Newgate. Ela tirou um molho de chaves e
abriu uma delas.

Usando a vela que segurava, ela acendeu as demais


espalhadas pelo cômodo escuro e logo os móveis rústicos foram
iluminados.

— Como não temos quem o faça, você terá que limpar seu
próprio quarto – avisou.

Não havia janela. Era horrível, apesar de aconchegante.


Apenas as luzes das velas iluminavam aquele lugar noite e dia. O
cheiro de mofo pairava no ar, era por isso que as paredes estavam
úmidas, era o bolor pela falta de ventilação. Senti um calafrio pelo
corpo, talvez, eu entendesse porque muitos desistiram daquele
trabalho. Aqueles cômodos de certo foram celas algum dia e as
transformaram em quartos.
Eu estava trabalhando para um sovina. Sequer quartos
decentes ele podia dar aos empregados. Imaginava que o grande
Duque, ou os que vieram antes dele, nunca deveriam ter descido ali,
ou se o fizeram, sequer notaram o horror ao qual os seus
empregados eram relegados.

— Obrigada – foi tudo o que eu disse.

— Onde estão suas malas? – Ela quis saber.

— A carruagem quebrou, assim que o Senhor Higher a


consertar, eu as terei – expliquei.

— Sim – ela concordou —, venha comigo, vou lhe mostrar o


restante do castelo.

Eu assenti e a segui subindo as escadas. Os outros


corredores estavam iluminados pelos castiçais nas paredes. Era
tudo muito requintado, chique. Algumas paredes eram cobertas por
um tecido bordado. Outras pareciam com molduras cobertas de
ouro, eu era leiga para dizer com precisão. Havia obras de arte,
principalmente de cavalos, por toda a casa.

Havia tantas salas naquele primeiro andar que eu poderia me


perder facilmente.

A escada principal divida o castelo em ala norte e sul. A ala


sul era onde ficava a cozinha, o quarto dos empregados e os
ambientes menos importantes. A ala norte era onde vivia o temido
Duque de Grafton.

— Thomas é o mordomo, ele vai treiná-la e não deve se


dirigir ao Duque a menos que ele lhe conceda tal liberdade. – Ela
avisou.

Eu já imaginava que o tratamento fosse dessa forma. Os


nobres não se misturavam com os empregados sequer quando
precisavam deles.

— Deve apenas falar quando ele falar com você e se for


necessário – ela me avisou quando começamos a subir as escadas
—, Vossa Graça é um pouco genioso e ele não gosta que o
encarem ou que se façam de tolos perto dele.

Eu apenas concordava imaginando o quanto deveria ser


difícil para um homem que fora importante e temido, agora estar
relegado a uma cama e uma cadeira de rodas. A amargura deveria
consumi-lo, eu o imaginei como um velho insuportável. Talvez,
apenas por sentir pena dele e não querer estar em seu lugar, eu lhe
daria o benefício da justiça e suportaria alguns de seus achaques.
Era normal para uma pessoa que perdera tudo, inclusive sua
dignidade, estar de mal do mundo. Eu compreendia tal assunto
melhor do que ninguém. Por isso, me sentia apta a lidar com ele.
Perdi tudo e isso me amargurou. Por isso, quando decidi me
tornar cuidadora daquele homem, eu pensei em um recomeço. Eu
ajudaria alguém que sofria como eu também suportava a dor. Não
sei se era uma espécie de penitência na qual estava me inserindo,
mas sabia que precisava estar ali e tentar. Talvez se conseguisse
ajudar aquele homem, eu me sentisse menos miserável.

A Senhora Relish parou diante de uma das portas do primeiro


andar e bateu. Um homem por volta dos seus quarenta anos surgiu
com seu uniforme polido e fez reverência. Os cabelos eram escuros,
grisalhos nas têmporas e ele possuía olheiras profundas.

— Senhor Willer – ela o cumprimentou —, bom dia. Essa é a


Senhorita Winslet, ela veio para ser a nova cuidadora do Duque.

Seus olhos escuros caíram sobre mim, observando-me com


atenção.

— A senhorita foi indicada por Lorde Conway. – Ele recordou-


se.

— Sim.

Foi o irmão do Duque, Lorde John Conway que me escolheu


entre tantas. Na verdade, foi o secretário dele, Kabir, um indiano
muito agradável e de fala mansa. Ele apenas fez algumas perguntas
e me escolheu afirmando que eu era a mais apta. Talvez fosse pelo
fato de que meu irmão Quentin era o médico pessoal de Lorde John
Conway e pela amizade que tinham, que ele permitiu que eu
ingressasse na casa de seu irmão e cuidasse do Duque.

— Já cuidou de um homem antes? – Ele perguntou sério.

— Não como auxiliar pessoal – expliquei —, apenas


ajudando meu irmão em atendimentos domiciliares e hospitais.

Ele aquiesceu. Parecia ser o suficiente. Talvez porque ele


estivesse consciente de que eu não ficaria tanto tempo como as
outras. Mas eu estava disposta a ficar. De repente, eu me desafiava
a ser diferente do que esperavam. O homem não podia ser o
demônio preso a uma cadeira de rodas, podia?

— Venha comigo. – Ele pediu.

A Senhora Relish se despediu.

— Eu estarei na cozinha a sua espera para lhe dar seu


uniforme e terminar de lhe explicar o andamento da casa. – Ela
avisou.

— Sim, senhora – assenti e segui o Senhor Willer para dentro


da sala.

— Sente-se por favor – pediu.

Eu o fiz e ele também se sentou de frente para mim.

— Seu trabalho consistirá em ajudar o Duque em tudo o que


ele necessitar durante o dia. E muitas vezes à noite. Vai depender
de sua conduta.

— Minha conduta? – Eu não compreendi.

— Na primeira semana ficará auxiliando-o apenas no


decorrer do dia, caso consiga ficar mais que sete dias permitirei que
se mude para o quarto ao lado para que zele pela saúde noturna do
Duque.

O que me fazia concluir que a oportunidade de dormir em um


quarto mais digno não foi suficiente para que os empregados
ficassem.

— Sim, senhor.

— O Duque não gosta de ser contrariado – ele avisou —, se


ficar invisível, ele não notará a sua presença, e conseguirá ficar.

— Sim – limitei a responder.

Eu sabia ser invisível melhor do que ninguém, era fato.

— Mantenha-se limpa e atenta. O Duque odeia sujeira e


pessoas distraídas – ele me explicou —, vai compreender com o
passar dos dias que não é tão difícil trabalhar com ele quando
sabemos o nosso lugar e as nossas necessidades.

— Compreendo – concordei.

— Espero que sim, Senhorita Winslet. É a quadragésima


pessoa que passa por este quarto em um ano e não consegue ficar
mais que três dias.

Respirei fundo. Caso eu não conseguisse poderia voltar para


a minha casa, minha família me aceitaria de braços abertos, mas
não era o que eu desejava. Precisava seguir em frente, custasse o
que custasse. Não respondi. O que eu poderia dizer? Que comigo
seria diferente? Eu esperava que sim, mas temia pelo pior. E se o
homem fosse um louco e me mordesse? Ou tentasse algo mais
terrível como tocar meu corpo? Esses tipos de contatos eu jamais
permitiria. E eu sentiria muito se ele agisse de forma estupida e eu
tivesse que partir.

Certa ansiedade me tomou e respirei fundo, controlando meu


medo. Eu era apenas uma cuidadora, o que aquele homem podia
fazer de ruim? Gritar comigo? Não tinha medo de gritos. Jogar algo
em mim? Saberia desviar. Ofender-me? Não me importava com a
opinião dele ou não estaria ali. Não havia outra coisa que ele
pudesse fazer sendo um inválido. Talvez sua falta de compostura
fosse apenas sua revolta, um pedido de socorro por tudo em sua
vida ter dado errado. Sentia que eu era a pessoa certa para o
trabalho.

— Quer fazer alguma pergunta? – Ele quis saber.

— Qual será minha rotina?


Thomas me explicou como iniciaríamos o dia até o horário do
jantar quando eu seria dispensada. Fácil, nada muito diferente da
rotina de um hospital.

— Começaremos amanhã cedo – ele avisou —, por favor,


não se atrase.

— Sim, senhor. – Eu me ergui.

Aparentemente, parecia fácil, mas o olhar do Senhor Willer


me dizia que eu estava confiante demais. Senti uma vontade imensa
de perguntar que horror que aquele homem poderia causar em
qualquer pessoa para estarem tão confiantes que eu não daria
conta. Atravessei os corredores da ala sul até chegar à cozinha. Em
dado momento, eu acreditei que havia me perdido, mas consegui
encontrar o caminho de volta e chegar ao cômodo onde a Senhora
Relish me esperava com meu uniforme nas mãos.

— Esta é Terence Arnold, nossa cozinheira – ela apresentou


a senhora robusta —, essa é Anne Frant, a arrumadeira, George
Ballard, o faz tudo – encolheu os ombros —, e já conhece nosso
cocheiro.

Anne e George deveriam ter a minha idade e sorriram para


mim com simpatia.

— Nós a aguardamos para o almoço – ela avisou o horário


—, seja pontual ou ficará sem.
— Sim, senhora.

— Suas malas já estão em seu quarto – Relish disse —, pode


descer e arrumar suas coisas.

— Obrigada. Com licença.

Eu sorri para todos e me retirei. Entrei em meu quarto e olhei


ao redor. Havia um balde e um esfregão à minha espera. Soltei um
longo suspiro. Grata por ter coisas para me ocupar e estar longe de
tudo que sempre me fez mal. Sabia que meus fantasmas estavam
ali, mas estava disposta a tudo para mantê-los bem longe.

Coloquei meu uniforme em cima da cama e me dediquei a


limpar o quarto.
Capítulo 2

Anne veio me chamar para o almoço.

— Eu sabia que esqueceria – Anne falou parada à porta do


meu quarto —, no primeiro dia sempre nos esquecemos dos
horários. George me alertou para chamá-la. Nós dois sabíamos que
você ficaria presa na limpeza desse quarto.

— Obrigada – olhei para mim —, preciso me limpar.

Aproximei do móvel com a bacia de água e me limpei da


melhor forma antes de segui-la pelas escadas.

— Espero que esteja preparada para seus dias de luta. – Ela


comentou por cima do ombro.

Eu segurava minhas saias e a fitei.

— Todos comentam a mesma coisa, não fico impressionada


que ninguém tenha ficado com toda essa motivação – observei com
ironia.

— Desculpe-me – Anne sorriu sem graça. Ás vezes, ela


entortava o nariz ao falar, era engraçado —, é que ninguém ficou e
temo que também não fique.

— Eu preciso ficar, Anne – confessei séria —, não tenho


intenção de voltar para a minha casa.

Ela me fitou compreensiva. Talvez tivesse uma história


parecida com a minha ou conhecesse alguém que saiu de casa para
trabalhar e não desejava voltar.

— Somente tome cuidado no primeiro dia – ela se aproximou


para sussurrar —, a última que saiu me contou que ele tem mania
de ficar nu.

Ficar nu? Eu estranhei. Era normal que uma cuidadora ao dar


banho ou limpar seu paciente, o visse nu. Mas talvez as mulheres
que passaram por ali não sabiam disso. E não havia nada de
errado, era apenas um trabalho como qualquer outro.

Como eu pensava, a cada segundo cuidar do Duque


mostrava-se um desafio. O que ele poderia fazer de tão horroroso
que colocasse as pessoas para correr dessa forma? Eu me juntei
aos demais criados e comemos em silêncio depois que a Senhora
Relish fez uma prece. Ela agradeceu pela comida e pelo trabalho e
eu disse amém na esperança que não entrasse para a estatística e
abandonasse aquela casa em menos de sete dias.

Ajudei a Senhora Arnold a lavar os pratos e deixar tudo


arrumado. Fizemos nosso trabalho em silêncio enquanto Anne
limparia o resto da casa com a ajuda da Senhora Relish.

— Não há mais ninguém para as ajudar? – perguntei quando


vi Anne sair e logo entrar na casa com um balde de água limpa.

— Uma vez por semana, a mulher do caseiro que mora na


parte baixa da propriedade vem ajudar.

— E por que não contratam mais pessoas? – indaguei


curiosa.

A Senhora Arnold olhou ao redor para se certificar que


estávamos sozinhas e então murmurou.

— Desde o fatídico dia, ele ficou insuportável – ela meneou a


cabeça —, mais do que já era e não suporta pessoas andando pela
casa. Acredito que está ficando louco, ele diz que pode ouvir os
passos de todos e isso o incomoda.

Talvez a dor e a desesperança o estivessem enlouquecendo.


Era normal. Vi muitos desses casos nos atendimentos que meu
irmão fazia. A frustração ou uma forte decepção aliada ao excesso
de solidão poderia deixar um ser humano doente. Eu senti pena
dele ao invés de raiva ou repulsa como a maioria mostrava.

Terminamos o serviço e decidi ajudar Anne. Não havia nada


para fazer em meu quarto e eu poderia organizar minhas roupas
mais tarde. Eu apenas queria ocupar meu tempo e não ter espaço
para pensar em bobagens, principalmente sobre o passado ou o
que eu havia deixado para trás.

Ela estava limpando os quartos de hóspedes da ala sul e


ficou surpresa quando eu apareci para ajudar.

— Tem certeza que quer fazê-lo? – Ela perguntou surpresa.


— Não é necessário.

— Apenas quero me ocupar com qualquer coisa – forcei um


sorriso e peguei o escovão da mão dela e comecei a passar no
chão.

Até o fim do dia havíamos limpado todos os quartos.


Estávamos exaustas, mas o cheiro de pinho pairava no ar e era
delicioso. Anne sorriu quando olhou o corredor perfumado.

— Eu levaria pelo menos uma semana para terminar tudo –


ela comentou —, obrigada pela ajuda.

— Não precisa agradecer, fiz com prazer – garanti.

Começamos a descer as escadas.


— Notei que gosta de ler, vi livros em seu quarto. – Ela
observou.

— Muito.

— Há uma biblioteca na casa que ninguém usa. – Ela


murmurou para mim como se contasse um segredo.

Aliás era um ponto em comum entre os empregados, todos


queriam falar, mas tentavam ser discretos. Imaginei que fosse por
causa de Thomas ou da Senhora Relish. Eles pareciam ser aqueles
empregados fiéis como cães de guarda.

— Durante a madrugada, pode usar. Thomas dorme com o


Duque e a Senhora Relish toma láudano para dormir todas as
noites. Ninguém vai saber.

— Obrigada.

Agradeci, mas sabia que extrair um livro da biblioteca e ser


descoberta seria o mesmo que roubar e a última coisa que eu
precisava era ser acusada de ladra. Já vi pessoas serem presas por
muito menos e não arriscaria.

Descemos para os quartos e depois de me limpar, arrumei


minhas coisas. O cheiro do quarto ainda era forte e eu precisaria
colocar o colchão no sol por alguns dias para conseguir dormir
sobre ele. Não subi para o jantar, estava muito ansiosa para
começar o dia seguinte e acabei estendendo o lençol e o travesseiro
no chão e dormi. Mas acordei várias vezes na noite, temendo perder
a hora.

Acordei antes mesmo do sol nascer, vesti meu uniforme e


subi para a cozinha carregando meu colchão. Mesmo com a neve,
se ficasse ao ar livre ele poderia perder aquele cheiro de bolor
insuportável. Deixei bem atrás do castelo, onde ninguém podia vê-lo
e duvidava que a Senhora Relish ou Thomas costumassem
frequentar.

A senhora Arnold sequer havia se levantado e eu temia ter


acordado muito cedo. Eu tomaria café da manhã mais tarde. Fui
para o quarto do Duque e aguardei na antessala por um longo
tempo até Thomas surgir. Ele se surpreendeu ao me ver.

— Bom dia, Senhorita Winslet. – Ele fez mesura e eu me


levantei.

— Bom dia, Senhor Willer – acredito que minha voz soou


mais ansiosa que o esperado.

— Venha – ele abriu a porta —, vou apresentá-la ao Duque.

Meu coração disparou e minha boca secou. Respirei fundo e


segui o mordomo para dentro do quarto escuro onde as velas
tremulavam nos castiçais sobre os móveis. O homem estava deitado
na cama e mantive a cabeça baixa enquanto me aproximava. Não
era de bom tom encarar as pessoas, mesmo que eu estivesse
curiosa para saber se ele era velho e rabugento como eu o havia
imaginado.

— Vossa Graça, quero lhe apresentar a Senhorita Daisy


Winslet, ela será sua cuidadora. – A voz de Thomas soou pelo
recinto.

— Vossa Graça. – Eu disse movendo meu corpo em uma


inclinação leve.

Silêncio. Esperei por alguns minutos e o Duque não disse


nada. Acabei levantando o olhar para Thomas que olhava para o
patrão. Meu olhar deslizou para o homem que jazia na cama com os
cobertores até a altura do peito. Ele usava um camisolão de mangas
compridas. O cabelo era negro e sedoso, os olhos eram de um azul
tão intenso que pareciam o céu de setembro, o nariz era reto, os
lábios bem feitos estavam crispados e ele olhava diretamente para
mim, a expressão severa de quem desgostou da minha presença.

Thomas me olhou aturdido e depois voltou-se para o Duque


que seguia em silêncio.

— Eu pouparia tempo mandando-a embora imediatamente –


o Duque disse severo —, ela é muito jovem, não dará conta.

Olhei para Thomas, aflita. Eu não queria e sequer poderia ser


demitida sem mostrar meu trabalho.
— Ela tem larga experiência no cuidado com doentes, Vossa
Graça. Estudou na escola de Enfermagem de Saint Thomas. – Ele
garantiu sem se abalar, embora muitos ainda não vissem a escola
com bons olhos —, além disso, foi seu irmão que a indicou através
de seu médico pessoal.

Ele me olhou de novo e desviei o olhar para as mãos. Ele era


jovem. Não deveria ter chegado aos trinta anos e era bonito. Senti
mais piedade ainda e imaginei como seria difícil para um homem tão
novo estar preso a uma cadeira de rodas por causa de um acidente
estúpido. Era terrível.

— Não me olhe assim, menina! – O Duque me repreendeu.

Eu ergui o olhar para ele e o encarei muito séria.

— Olhar como, Vossa Graça? – Eu tive coragem de


perguntar.

— Com piedade – ele falou reconhecendo meus sentimentos


—, não preciso nada de você que não seja seu trabalho, guarde sua
piedade miserável para sua própria vida.

Tive vontade de revirar os olhos. Bem típico de um homem


nobre rico e que perdeu a própria dignidade agir como um estúpido.
Eu não estava sequer surpresa.
— Sim, Vossa Graça – respondi encarando-o sem desviar o
olhar.

Ele deu um sorriso cínico. Além de mal-humorado, ele ainda


era mal-educado. Esse tipo de comportamento não me assustava.

— Pode ir, Thomas – ele dispensou o mordomo —, vejamos


como a Senhorita Corajosa se sai em seu primeiro dia de trabalho.

Era impressão minha ou ele estava me desafiando? Ele fazia


de propósito, pensei. Talvez fosse seu passatempo infernizar a vida
das cuidadoras até enlouquecê-las e vê-las partir. Realmente ele
estava entediado e precisava encontrar algo para fazer que não
fosse ficar dentro daquele quarto o dia todo.

— Com licença, Vossa Graça. – Thomas se curvou e saiu em


seguida fechando a porta.

O primeiro nervosismo passou e eu estava bem mais calma.


Ele não era um bicho de sete cabeças ou um dragão como eu
pensava. Era apenas um homem amargo e sem educação alguma.

— O que o senhor deseja fazer? – perguntei me aproximando


da cama.

Ele puxou os cobertores para o lado e seu grande corpo


escondido sobre o camisolão surgiu. Não sei se ele pensou que
aquele simples ato fosse me chocar, mas eu não vi nada além de
um corpo humano.

— Preciso fazer minha higiene, antes de me vestir. – Ele


avisou e me fitou.

Lembrei das palavras de Anne sobre a última moça que fugiu


porque o Duque ficou nu. Como eu havia pensado, ele as
assustava. Tinha prazer nisso, era um sádico. Mas não me
assustaria, eu era mais esperta e ele não era o primeiro paciente do
qual eu cuidava. Trabalhar com meu irmão havia sido bom por isso,
me deu a experiência necessária para agir em momento infantis
como aquele.

— Como quiser... – fui em direção ao móvel para pegar a


bacia com água e trazê-la para perto da cama.

Ele ficou em silêncio me observando. Puxei a cadeira e


coloquei a bacia em cima e então parei ao lado da cama. E antes
que ele puxasse a própria camisola, eu levei a mão à barra da
vestimenta. Ele arregalou os olhos.

— O que pensa que está fazendo? – perguntou perplexo.

— Sua higiene – falei o óbvio —, que partes do corpo o


senhor limpa para vestir uma roupa nova?

O Duque arregalou os olhos muito azuis.


— Pode ficar tranquilo, Vossa Graça. Não é o primeiro
homem que vejo nu e em nada ficarei comovida – garanti.

Ele foi pego de surpresa e ficou tenso antes de dizer.

— Como já viu um homem nu?

— Trabalhava com meu irmão dando banho em moribundos –


expliquei antes que ele pensasse o pior —, caso não se sinta
constrangido, poderei fazer o que me pede.

Ele pareceu pensar por alguns instantes.

— Está bem...

E então ele permitiu que eu erguesse sua camisola e o


deixasse completamente nu. Passei a peça por seus braços e
cabeça e a coloquei no chão ao lado da cama. Seu corpo era jovem
e bonito. Não havia nada de indecente, mesmo quando molhei a
tolha e comecei a limpar seu corpo. Senti que ficava tenso e olhava
para o teto da cama com dossel e por vezes mordi os lábios para
não rir.

Por fim, quando terminou, eu peguei a roupa que Thomas


havia deixado separado sobre o divã e o ajudei a colocar. Talvez um
homem deveria fazer aquilo, mas eu não me importava e não estava
constrangida. E pelo visto, assustar com sua nudez havia perdido
totalmente a graça, porque ele permanecia sério enquanto eu o
vestia.

Na verdade, para um homem orgulhoso como ele era, ter


ajuda para se vestir era uma grande humilhação. Não deveria ser
fácil acordar um dia correndo pelos campos de Hapton e no outro
acordar sem o movimento das pernas dependendo de tudo e todos
para fazer as mínimas necessidades.

Quando terminei estava exausta, ele tinha o porte físico


avantajado, era um homem pesado. Trouxe a cadeira de rodas e
coloquei ao lado da cama e o ajudei a se sentar.

— Traga-me o café da manhã. – Ele pediu.

— Sim, Vossa Graça. – Eu obedeci e saí do quarto com um


sorriso no rosto.

Havia passado pela primeira prova e estava feliz.


Capítulo 3

Thomas arregalou os olhos quando cheguei à cozinha


pedindo o café da manhã do Duque. A Senhora Relish parou ao
lado dele e ambos me fitavam como se eu fosse uma miragem.

— O que ele disse exatamente? – Thomas perguntou


desconfiado.

Eu encolhi os ombros.

— Traga-me o café da manhã – repeti as palavras do Duque.

O mordomo e a governanta se entreolharam, surpresos.


Terence me entregou a bandeja recheada de comidas deliciosas e
meu estômago roncou. Eu sequer havia comido nada desde a noite
anterior, mas conseguiria segurar até que o Duque terminasse sua
refeição e então eu pudesse descer para fazer meu desjejum.

— Algum problema? – perguntei séria.


— Nenhum. Acredito que se passou pelo momento de vesti-
lo, com certeza, conseguirá dar-se mais algumas horas. – Thomas
respondeu forçando um sorriso. — Precisarei me ausentar por
algumas horas e qualquer coisa que necessitar peça à Senhora
Relish.

— Sim, senhor – eu sorri —, mas ele está bem, não se


preocupe!

Thomas respirou aliviado. Deixei a cozinha e estava no


corredor quando Anne surgiu ao meu lado e tirou uma uva da
bandeja e enfiou em minha boca.

— O que pensa que está fazendo? – indaguei brava


enquanto andava, mas meu estômago agradeceu por aquele
pedaço de fruta.

Antes que eu falasse outra vez, ela pegou uma bolacha e


enfiou em minha boca.

— Pare! – mandei. — Se alguém nos ver, posso ser mandada


embora!

— Por que acha que as outras cuidadoras foram embora? –


Ela me questionou enquanto subíamos as escadas e me fez comer
mais uma bolacha olhando ao redor e se certificando que Thomas
ou Abigail estavam por perto. — Esse homem é louco! Ele vai tratá-
la como uma escrava e não conseguirá fazer sua refeição antes do
jantar!

Meu estômago roncou apenas por pensar nisso.

— E estará tão cansada que acabará dormindo sem comer e


no outro dia desejará nunca ter entrado nessa mansão! – Ela me
aconselhou e colocou outra uva na minha boca.

E pelo pouco que havia sentido do gênio daquele Duque, era


perceptível que ele odiava sua própria vida e fazia um inferno na
vida dos outros. Principalmente de seus empregados. Era óbvio que
Thomas estava exaurido. Não deveria ser fácil servir a um homem
arrogante e insatisfeito.

— Coma. – Ela aconselhou mais uma vez quando chegamos


ao topo da escada e ela seguiu para a ala sul e eu fui para o quarto
majestoso do Duque.

Engoli tudo e me certifiquei que não havia resquício de


comida em minha roupa ou rosto e entrei no quarto. O Duque estava
sentado diante da mesa em frente à janela da varanda. Ao menos,
ele teve a atitude de girar as rodas da cadeira e se posicionar onde
desejava. Coloquei a bandeja diante dele e aguardei.

— O que é isso? – Ele perguntou visivelmente irritado.

— Seu café da manhã, Vossa Graça – respondi tranquila.


— Não pedi nada disso...

E antes que eu pudesse argumentar, ele lançou tudo ao


chão. Aquilo foi um choque para mim. Em minha casa nunca
tivemos esse tipo de atitude grosseira, contudo, o tempo que
moramos com meu tio Winslet vi atitudes tão depreciativas quanto
aquela. Talvez fosse uma característica comum entre os senhores
mais abastados.

Eu abaixei, virei a bandeja e comecei a depositar tudo o que


restou em cima dela, antes de colocá-la de volta sobre a mesa.
Lorde Conway olhou para a bandeja, indignado.

— Eu disse que não quero esse café da manhã! – Ele


esbravejou como uma criança mimada.

— Eu ouvi, Vossa Graça. Em minha família não temos


problemas de audição – respondi com atrevimento.

Os olhos azuis se arregalaram diante da minha audácia.

— Como ousa...

— Este é seu desjejum – eu o avisei apontando para a


bandeja —, foi o mesmo de ontem e dos outros dias, Terence é uma
excelente cozinheira e empregada dessa casa e tenho certeza que
ela não erraria de propósito!

— Menina insolente! – Ele me xingou.


Eu tive vontade de rir ao ver os olhos dele brilharem
perigosos. Uma vez cuidei do Senhor Johnson, paciente de meu
irmão, era um granjeiro viúvo abandonado pela família que possuía
uma ferida na perna direita que nunca cicatrizava, impedindo-o de
ter convívio social ou mover-se sozinho. E apesar do homem ter
quase setenta anos na época, tinha a mesma atitude irascível do
Duque.

Então decidi agir com o Duque da mesma forma que fiz com
o Senhor Johnson, embora soubesse que o risco de perder meu
emprego era grande, contudo, sentia que era hora de alguém lhe
dizer umas verdades.

— Ninguém virá trazer outro desjejum – disse firme —, e não


há empregados suficientes na casa para que alguém o ouça caso
resolva gritar. – Eu me afastei e fui me sentar na cadeira mais
próxima —, portanto, ficaremos aqui até que termine seu desjejum,
eu não trarei outro.

— Está demitida! – Ele gritou como era esperado.

— Tenho certeza que sim – forcei um sorriso —, mas não


iremos a lugar algum até que tome o seu desjejum, ou podemos
ficar com fome o dia todo. Não me importo!

Ele girou a cadeira para mim.


— Com quem pensa que está falando? Uma palavra minha e
não conseguirá emprego sequer no outro continente! – Ele ameaçou
girando as rodas e movimentando a cadeira em minha direção.

— Tenho certeza que sua palavra é poderosa, Vossa Graça!


– respondi com uma calma invejável —, mas o senhor não é o
primeiro paciente que age de forma execrável e nada do que disser
vai me abalar!

A cadeira parou diante de mim e nos encaramos. Ele queria


me matar, eu sabia disso. Contudo, era uma reação normal do
paciente que não aceitava sua própria situação.

— Não vou permitir que fale assim comigo, senhorita! – Ele


disse com o dedo em riste.

— E o que vai fazer? Me demitir? – encolhi os ombros. — E


permitirá que venha outra cuidadora para fazer sua higiene e acatar
seus gritos novamente? Gosta desse desfile de empregados em sua
casa?

Ele não esperava por esse argumento, mas continuei.

— Não me importo que o senhor me demita, desde que


esteja consciente de que vai ter que passar essas humilhações
todos os dias, sempre com uma pessoa diferente – argumentei
segurando minhas mãos que tremiam —, sei o quanto deve ser
difícil...
— Fique quieta!

Eu o ignorei.

— Sei o quanto deve ser difícil para um homem importante


como o senhor passar por essa situação e depender de alguém até
mesmo para suas necessidades mais básicas, mas essa é sua
realidade. Ou a enfrenta, ou sempre sairá alguém por essa porta
que não é digno de sua confiança e espalhará o quanto se tornou
um selvagem! – falei com coragem e me ergui.

— Saia! – Ele gritou —, agora!

— Não vou sair! – falei com petulância e como se estivesse


diante de uma criança malcriada —, vim aqui para trabalhar e
apenas saio quanto meu trabalho estiver concluído! – apontei para a
mesa —, o senhor não terminou seu desjejum!

— Saia! – Ele ordenou por entre os dentes —, está demitida!

— Ninguém virá aqui – falei segura andando até a mesa de


café —, o senhor está tão acostumado a tratar as empregadas com
gritos e imprecações que duvido que alguém invada essa porta
preocupado com seu bem-estar! Devem estar aguardando que eu
desça chorando, mas não o farei!

Ele me fitou com tanto ódio que tive que comprimir os lábios
para não rir. Não pensei que eu faltaria com respeito ao meu patrão
e falaria palavras tão atrevidas, mas ele merecia. Não esperaria que
a situação ficasse pior para que ele me demitisse. Aquele homem
precisava entender que não era o único aleijado no mundo e que
sua dor não permitia que tratasse as pessoas de classes mais
baixas com descaso. Apesar de toda minha coragem, eu estava
tremendo.

— Ainda sobrou alguma coisa – disse e me voltei para ele.

Ele empurrava a cadeira até a porta e a abriu gritando por


Thomas.

— Pode gritar o quanto quiser, Vossa Graça – eu disse


petulante —, Thomas saiu e ninguém terá coragem de se aproximar
do quarto, foi ordem sua, não foi? Que ninguém se aproxime do
quarto além de Thomas ou sua cuidadora?

Ele fechou a porta com força, comprimiu os lábios e estreitou


o olhar para mim.

— Isso não vai ficar assim! – ameaçou com o dedo em riste


outra vez.

— Claro que não. Vamos ficar aqui até que o senhor entenda
que estou aqui para ajudá-lo a ter uma vida mais digna e não vou
admitir que me trate como um animal! – Eu o informei séria e
apontei para a mesa. — E enquanto não tomar o café, não trarei o
almoço e ficaremos os dois aqui em cima com fome!
Ele ficou vermelho de raiva.

— Não vou apenas demiti-la, vou me certificar...

— Vossa Graça está sendo repetitivo – eu o cortei deixando-o


boquiaberto —, deve ser pelo fato de ficar trancado o dia todo
dentro desse quarto. Qual foi a última vez que visitou seu jardim?

— Sua insolente! – Ele esbravejou e gesticulou nervoso.

— Há quanto tempo está preso aqui? – perguntei me


aproximando de sua cadeira. — Esse excesso de reclusão causa
mal-estar em qualquer pessoa, é bom ver além de sua janela –
apontei —, o que acha de chegar até a sua varanda? Qual foi a
última vez que o senhor sentiu o vento no rosto e...

— Cale a boca! – Ele gritou furioso e eu me assustei. —


Tomarei o maldito café se calar sua boca funesta!

Eu engoli em seco me recuperando do susto.

— Tudo bem – respirei fundo tentando não transparecer


minha raiva por ele ser tão grosseiro —, eu faço meu trabalho e o
senhor cumpri com os seus deveres de Duque.

Fiz menção de empurrar a cadeira, mas ele fez que não.

— Posso me locomover sozinho! – rosnou e girou as rodas


em direção à mesa ficando de costas para mim como uma criança.
Eu sorri ao notar que conquistei minha primeira vitória. Dera
certo com o Senhor Johnson e daria certo com o Duque, embora o
Senhor Johnson não gritasse como um louco, apenas resmungava
sob as minhas ordens. Fiquei de pé olhando-o comer devagar o que
sobrara de seu café. Não buscaria outro, ele que se contentasse
com sua própria insignificância ao jogar tudo no chão daquela forma
grotesca.

Provavelmente quando Thomas retornasse eu estaria


demitida, mas pelo menos aquele homem teve o que merecia. Uma
lição de que nem todas as pessoas tinham medo dele e de sua cara
feia. Ele terminou de comer e foi para perto de sua escrivaninha
sem dizer uma palavra ou me dirigir o olhar.

— Vossa Graça precisa de algo? – perguntei.

— Que fique de boca fechada e fora do meu caminho! – Ele


mandou mexendo nos papeis em cima de sua mesa.

— Como quiser – respondi e fui tirar a bandeja de cima da


mesa —, voltarei logo.

Deixei o quarto e finalmente respirei com tranquilidade. O


homem era um descontrolado sem educação alguma. A amargura o
deixara furioso e não introspectivo como acontecia a maioria das
vezes. Coloquei a bandeja sobre a mesa e a Senhora Relish notou o
desarranjo por sobre ela, me olhando em seguida com curiosidade.
— Ele jogou tudo no chão – expliquei.

Ela assentiu.

— Era o esperado – comentou.

Quase revirei os olhos.

— E o que mais devo esperar? Que ele me morda? –


perguntei, mas depois me arrependi.

— É por isso que a maioria desiste, Senhorita Winslet. O


Duque sabe ser um homem insuportável. – Ela foi solidária comigo.

— E eu sou uma enfermeira implacável – argumentei


erguendo o meu nariz —, não vou embora se é o que ele quer. Não
estudei por anos para que um homem me faça desistir do que nasci
para fazer!

A Senhora Relish me olhou com compreensão.

— É a primeira que decide ficar depois de dois eventos


tempestuosos – ela comenta —, todas desistiram durante a higiene
da manhã.

— É o meu trabalho, senhora – disse mais calma quando


Terence me trouxe o copo com água —, e ele não vai me impedir de
fazê-lo. Talvez as outras foram embora porque não tinham
conhecimento suficiente para entender que uma pessoa doente
pode ter seus achaques e temos que contornar a situação e não a
transformar num circo.

— É uma mulher corajosa. – Terence observou.

Olhei para ela e sorri.

— Não, sou apaixonada pelo que faço e lidar com pessoas


doentes nunca é fácil – argumentei —, ninguém gosta de estar
entrevado em uma cama. Duvido que alguém tenha dito ao Duque
que a vida dele não acabou.

Elas me fitaram surpresas. Ao invés de sentir raiva dele, eu


me compadecia de sua dor. Suas atitudes, eu podia lidar com elas.
Era adulta o suficiente para isso e como disse antes, não tinha
medo de cara feia. Contudo, ver a dor que ele escondia com tanta
fúria era o que tocava meu coração. Um dia eu também fui como ele
e entendia o quanto era difícil lidar com as próprias frustrações e
cicatrizes.

— Voltarei para buscar o almoço mais tarde – avisei e deixei


a cozinha em direção ao inferno em que o Duque se esforçava para
viver.
Capítulo 4

Quando voltei para o quarto, ele permaneceu em sua


escrivaninha ignorando a minha presença. Fiquei olhando pela
janela achando tudo tão agradável, já que eu dissera o que estava
preso em minha garganta, possuía a certeza que ele pensaria duas
vezes antes de tratar-me como um lixo. Pensei nos livros da
biblioteca que Anne se referira, poderia estar lendo um agora, mas
não podia pegá-los sem autorização do dono que no momento
queria me ver pelas costas.

Ele ficou horas escrevendo e depois foi ler o jornal antes que
eu descesse e trouxesse seu almoço. Deixei sobre a mesa que eu
mesma havia limpado, bem como o chão.

— Seu almoço, Vossa Graça – avisei.

Ele olhou por cima do ombro enquanto eu ia em direção à


porta.
— Aonde a senhorita está indo? – Ele me questionou.

— Vou deixá-lo fazer sua refeição – avisei para escapar.

Meu estômago roncava de fome e me arrependi de não ter


pelo menos beliscado algo como Terence me ofereceu quando
peguei o almoço do Duque.

— Sente-se comigo – ele mandou —, não quero comer


sozinho.

Ele não fez isso por carência, fazia para me punir, para que
eu não almoçasse. Fui uma tola em ter pensado que ele facilitaria as
coisas para mim. Olhei para a cadeira que ele indicava enquanto se
aproximava da mesa. Aquele era o meu castigo por ter lhe dito
palavras severas? O homem era mais imaturo e arrogante do que
eu pudesse supor.

Sem escolha, voltei para perto da mesa, me sentei de pronto


e ele começou a sua refeição que cheirava maravilhosamente bem.
E comeu no mais perfeito silêncio sem dizer uma palavra enquanto
eu olhava pela janela diante dos meus olhos tentando não pensar
na comida em cima da mesa.

Quando finalmente terminou, fiquei aliviada, meu estômago


estava desesperado de fome e minha cabeça doía. Eu me ergui
para pegar a bandeja.
— Não é necessário – ele disse para o meu desespero —,
pode deixar tudo em cima da mesa. Tenho outra tarefa para a
senhorita.

Minhas mãos tremeram e me lembrei das palavras de Anne


sobre ele deixar as cuidadoras com fome até a hora do jantar.
Aquele homem era doente. Mas para a minha sorte, passar o dia
com fome não era uma novidade. Antes de morarmos com meu
irmão, Quentin, muitas vezes eu e minhas irmãs passávamos o dia
todo com fome. Fazíamos apenas uma refeição ou quando
fazíamos. Não seria um desafio novo para mim, contudo, eu me
sentia tentada a me vingar daquele homem de uma maneira
inesperada. Ele provocava o que havia de pior em mim.

Compreendi que as palavras ditas naquela manhã foram


apenas pérolas jogadas aos porcos. De nada serviram para ele ou
para sua consciência. Se é que ele tinha uma.

— Sim, Vossa Graça – assenti deixando a bandeja onde


estava.

— Sabe ler? – Ele perguntou.

— Sim, é necessário saber ler para estudar na escola para


enfermeiras. – Eu disse com sarcasmo. Não consegui evitar.

Ele ergueu uma sobrancelha.


— É muito petulante para uma simples cuidadora. – Ele
observou.

— É um defeito do qual não consigo me apartar – devolvi


com mais educação, porém, não menos irritada.

— É notório – ele garantiu sem qualquer humor —, preciso


que faça algumas coisas para mim...

Até chegar a hora do jantar fiquei organizando os objetos


pessoais do Duque. Todos. Ele me fez tirar seus pertences do baú e
reorganizá-los. E quando havia anoitecido e pensei que estaria livre,
ele dispensou a refeição e pediu que eu lesse para ele. Não apenas
uma página, mas um capítulo inteiro de um livro interessante sobre
sociologia e se não fosse o assunto tão importante que falava sobre
as diferenças sociais e que o meio influenciava as pessoas, eu teria
chorado de fome. Estava no meu limite.

Batidas à porta interromperam minha leitura.

— Entre – o Duque autorizou.

Quando Thomas surgiu, eu senti um alívio tão grande que


quase corri para abraçá-lo.

— Pode se retirar, Senhorita Winslet. – O Duque autorizou.

Eu me segurei para dizer: essa é a sua forma de demonstrar


poder? Então o senhor é tão insignificante quanto sua forma de
demonstrá-lo. Rei de um quarto e não da própria vida!

As palavras não saíram dos meus lábios, mas quando nossos


olhares se encontraram tenho certeza que ele enxergou cada letra.
Fiz mesura antes de deixar o livro sobre a mesa e me retirar. Meu
corpo todo doía e quando cheguei à cozinha não havia mais
ninguém, já havia passado a hora do jantar. Terence surgiu já
usando seu camisolão sobre o roupão.

— Eu sabia que ele agiria de forma ignóbil. – Terence falou e


abriu o armário para tirar leite e biscoitos e colocar diante de mim.
— Sente e coma, você está pálida como um papel.

Sequer agradeci, estava faminta. Eu me sentei e devorei as


bolachas. Ela se sentou do outro lado da enorme mesa de madeira
e apoiou o queixo na mão para me fitar.

— Vai partir amanhã? – Ela quis saber.

Balancei a cabeça em negativa.

— A não ser que ele me demita – encolhi os ombros. — Não


pretendo ir embora!

— Você é obstinada. – Ela sorriu admirada.

— Somente não quero voltar para casa, Terence.

— É tão ruim assim?


— Ao contrário, é o melhor lar que alguém pode ter –
assegurei.

— Então, por que não quer voltar? – Ela estranhou minha


atitude.

— Não posso – respondi —, não faço parte daquele mundo


mais. Preciso de um que seja apenas meu.

— E trabalhar para um Duque arrogante é o seu mundo?

Ela não entenderia, ninguém poderia compreender o motivo


da minha fuga. A dor que nunca sarava. A ferida que sangrava
todos os dias. Estar em casa era me recordar todos os dias do que
acontecera. O Duque arrogante e mal-educado era o menor dos
males. Era uma forma de me manter ocupada e apenas não pensar.

— Sim – admiti. — Preciso cuidar de alguém que precise de


mim.

Ela arregalou os olhos claros e enrugados com surpresa. Eu


jamais a julgaria. Terence não poderia entender algo que não sabia.
Thomas surgiu na cozinha e levei um susto, seu olhar sério me fez
pensar que ele estava ali para me demitir depois das palavras que
eu disse ao Duque e por tê-lo obrigado a tomar o café da manhã
que caíra no chão. Pensando agora com mais clareza, isso era mais
do que suficiente para ser mandada embora no meio da noite e com
o frio lá fora, tendo que caminhar até a estação de trem que ficava
no mínimo a cinco horas de distância.

— Boa noite, senhoritas. – Ele nos cumprimentou.

Prendi a respiração e pedi aos céus por um milagre, apenas


um e eu prometia ser mais contida e educada, além de me ater ao
meu lugar e não ofender um Lorde que era meu patrão e pagava
meu salário. Embora ele merecesse.

— O Duque pediu para lhe informar, Senhorita Winslet...

Meu coração batia descompassado e o fitei comprimindo os


lábios.

— Que a senhorita deve estar em seu quarto amanhã uma


hora mais cedo do que lhe foi informado. – Ele avisou.

Um alívio profundo atingiu minha alma e eu agradeci em


silêncio por mais essa chance em provar que estou ali para cuidar
dele e não para educá-lo. Embora ele merecesse a lição que lhe dei.

— Sim, senhor – respondi.

Fiquei curiosa para saber se o Duque havia comentado com


Thomas sobre o episódio do café da manhã, mas algo me dizia que
o orgulho de meu patrão o impediria de relatar que foi tratado com
tamanha descortesia por uma empregada da casa.
— E não se atrase – pediu com o dedo em riste. — Amanhã
o Duque receberá visitas.

— Não me diga que terei que cozinhar para um bando de


nobres arrogantes que vão reclamar da minha comida? – Terence
perguntou brava.

Thomas deu um meio sorriso para ela.

— Sim e pelo visto Lorde John Conway estará presente. –


Ele anunciou.

Falavam do irmão mais novo do Duque.

— Aquele maldito libertino! – Terence reclamou e riu como se


tivesse carinho por ele. — Pobre, Anne. Terá seu coração partido
mais uma vez.

— Cuide da comida – Thomas a precaveu —, os outros


assuntos não são problema seu!

— Cale a boca, velho arrogante! – Ela mandou e ele saiu


com um sorriso no rosto.

Ela riu e olhou para mim.

— Conheceu o irmão do Duque? Lorde John?

— Não – fiz que não —, quando fui entrevistada foi pelo


Senhor Kabir, o secretário dele.
— Kabir é um santo. Um santo indiano. Trabalha para aquele
maldito libertino desde que Lorde John viajou para a Índia e passou
longos três anos por lá quando era bem jovem, deveria ter seus
dezoito anos quando entrou para a marinha...

— Marinha? – fiquei surpresa.

— Oh, sim. Quando o Duque pai deles era vivo, ele os


mantinha com rédeas curtas. Tanto Lorde James quanto Lorde John
eram terríveis não apenas em personalidade como em conduta – ela
riu outra vez. Eu podia sentir o carinho que nutria por eles —, mas
John sempre foi o mais terrível, ele chega a ser insuportável. É
bonito e desprezível como o demônio!

— Parece que é um traço de família – comentei com ironia.

Ela riu.

— Oh, sim! O Duque é bonito, não é? – Ela perguntou e eu


concordei afirmando com a cabeça —, é uma pena o que lhe
aconteceu.

— O que houve? – perguntei curiosa.

Não deveria, mas ao ver a atitude fria e indiferente daquele


homem, com toda sua amargura, foi inevitável querer saber mais
sobre ele.
— A história é bem interessante – ela garantiu e olhou ao
redor se certificando de que não éramos ouvidas —, Lorde James
se apaixonou pela Senhorita Nora Howard, uma rica herdeira. Eles
tiveram um caso para dizer a verdade, mas o pai dele a adorou e
queria que o filho se casasse com ela. Mas Lorde James estava em
uma fase de pular de cama em cama. Então, antes de morrer o pai
dele fez algo impossível, deixou tudo o que possuía para Nora.

— O quê? – perguntei levando as mãos aos lábios e


arregalando os olhos.

— Inclusive o título.

— Mas é impossível! Mulheres não herdam títulos! –


contestei.

— Estou dizendo que o homem era louco – ela riu da


situação —, lembro-me como se fosse hoje, Lorde James quebrou
tudo na sala onde foi feita a leitura do testamento em que dizia que
ele apenas teria o título e toda a fortuna de volta se casasse com
Nora.

Ela fez uma pequena pausa.

— Contudo Nora estava prometida ao Conde de Denbigh,


Lorde Ethan Parker – ela prosseguiu com a história —, e parece que
os dois se apaixonaram. Desesperado, Lorde James a chantageou,
mas por fim, ela se casou com o Conde e devolveu tudo para Lorde
James desde que ele nunca mais ousasse atravessar o caminho
dela ou de seu marido.

— É a história mais absurda que já ouvi! – admiti.

— Mas a história não acaba aí. – Ela garantiu.

— Não? – perguntei perplexa. O que mais poderia ter


acontecido?

— Lorde John havia se deitado com a irmã do Conde de


Denbigh e ela acabou grávida – ela fofocou —, mas se casou com
outro homem que lhe deu um bom nome e um casamento feliz.

— Mas isso é maravilhoso...

— Seria, se Lorde John não resolvesse se engraçar com a


jovem novamente durante uma festa em Londres e o marido não
gostou...

— Era esperado que não gostasse – retorqui.

— No dia seguinte, o marido ofendido foi tirar satisfações


com Lorde John e então depois de uma discussão, o homem tirou a
arma para atirar em seu inimigo. O homem atirou, mas Lorde James
se colocou na frente do irmão e o tiro pegou em suas costas.

— Então, ele não caiu do cavalo? – perguntei estarrecida.

— Infelizmente, não. Ele salvou a vida do irmão, Senhorita


Winslet.
— Pode me chamar de Daisy – pedi.

— Lorde James ficou paralisado da cintura para baixo e isso


o amargou completamente. Apesar de ser um libertino e um homem
frio, ele era bom, tanto que a maioria de seus empregados estão na
casa há anos, nós o vimos crescer, ele nunca demonstrou carinho,
mas sempre teve grande respeito por nós... – ela explicou
emocionada —, os meninos perderam a mãe muito cedo. Ela se
matou.

E eu pensando que minha vida fosse uma tragédia.

— Depois disso o Duque pai nunca foi o mesmo e os


meninos cresceram revoltados, mas unidos. Eles são
completamente arrogantes e frios, mas se amam de uma forma
intensa, dariam a vida um pelo outro...

Fiquei surpresa com aquelas revelações, não esperava ouvir


tais palavras.

— O pai deles foi enlouquecendo, é fato. A perda da esposa


o deixou fora do eixo...

— Sabe por que ela se matou? – Eu me afundei na


curiosidade.

— Dizem as más línguas que foi por causa de um amante


que a abandonou – Terence balançou a cabeça de um lado para o
outro —, mas não se sabe da verdade.

Eu estava sem palavras.

— Você vai notar o amor que os irmãos têm um pelo outro. É


bonito – ela finalmente sorriu —, mas eles são terríveis, tanto como
personalidades fortes e impetuosas, quanto seus comportamentos.
Eles colecionam amantes, e não se apegam a nada.

— Eles não podem se apegar àquilo que não gostam,


Terence – comentei. — Não foram ensinados a amar...

— Talvez seja... – Ela bateu de leve sobre a minha mão. — É


melhor se deitar, amanhã será um dia longo. Vou deixar o armário
aberto para que tome seu café da manhã.

— Está bem, obrigada por tudo – agradeci com sinceridade.

Ela se levantou e se retirou. Soltei um grande suspiro e olhei


para a janela da cozinha onde a escuridão dominava lá fora. Minha
mãe sempre dizia que ninguém era ruim por acaso. Sempre havia
um motivo. E quando li para o Duque sobre o meio influenciar as
pessoas, diante da história dele, tive certeza que sim. Aquele
homem era fruto de um lar sem amor.
Capítulo 5

Mal consegui dormir ansiosa para o segundo dia. Meu corpo


estava dolorido. Havia me esquecido do meu colchão do lado de
fora e ele congelou, tive que dormir no chão. Teria que me lembrar
de colocá-lo para dentro quando descesse para pegar o almoço do
Duque ou seria mais uma noite mal dormida. Tomei meu café da
manhã e subi para o quarto.

Thomas sorriu ao me ver. Eu não havia partido. E agora que


sabia a verdadeira história sobre o acidente do Duque, dificilmente
não compreenderia suas atitudes ou partiria.

— Bom dia, senhor – cumprimentei Thomas.

— Bom dia, Senhorita Winslet. – Ele respondeu. — Peço que


tenha paciência essa manhã. Quando o Duque recebe visitas, ele
costuma ficar mal-humorado.
Mais? Eu me perguntei.

Não deveria ser fácil para ele receber todas aquelas pessoas
saudáveis que o olhavam com pena.

— Sim, senhor – disse.

Ele se retirou e entrei no quarto que estava escuro. As


cortinas estavam cerradas e apenas a luz das velas iluminava o
ambiente. O Duque estava sentado contra os travesseiros e seus
olhos azuis se ergueram para mim. Senti uma vontade de me sentar
na beirada da cama segurar sua mão e dizer:

— Eu compreendo sua dor, tenho uma igual dentro de mim!

Mas eu não havia perdido o juízo, não por completo.

— Bom dia, Vossa Graça – eu fiz mesura —, posso começar


meu trabalho?

— Sim. – Ele limitou-se a responder.

Assenti e fui buscar a bacia. Eu a coloquei sobre a cadeira


como fiz no dia anterior. Interessante porque dessa fez quando
passei a esponja molhada em suas costas, vi a marca da bala que
Terence dissera. Hesitei por um instante.

— Algum problema? – Ele perguntou.

— Não. – Eu limitei a responder.


Terminei de limpá-lo e fui buscar sua roupa para ajudá-lo a se
vestir. Eu não conseguia parar de pensar que ele estava assim
porque salvou a vida do irmão. Um homem tão bonito e honrado
deveria estar casado com uma linda mulher e tendo filhos tão
bonitos quanto eles. E não entrevado em uma cama.

Mas infelizmente, cada um tinha uma cruz para carregar


nessa vida.

Quando terminei de fechar sua casaca e o fitei havia lágrimas


em meus olhos, mas me controlei. Contudo, notei que ele percebeu,
mas felizmente não teceu qualquer comentário. Acreditava que não
interessava a um Duque por que sua cuidadora estava à beira de
chorar como uma tola.

Busquei o café da manhã e ele tomou sem reclamar ou jogá-


lo no chão. Ao menos uma vitória. Levei a bandeja e quando
retornei, ele mandou que eu me sentasse à escrivaninha.

— Vou ditar algumas cartas e quero que escreva para mim. –


Ele mandou.

Não havia um por favor. Notei que pelo fato de ele estar
pagando por meu trabalho era o suficiente para que eu o fizesse
sem agradecimentos ou cortesia.

— Como quiser. – Eu me sentei.


Ele ajeitou a cadeira ao meu lado e começou a ditar. A
primeira carta era para um de seus sócios em que ele dizia que o
preço das especiarias havia caído consideravelmente, então, na
próxima leva que trouxesse da Índia, ele deveria aumentar o preço
do produto final. Também escreveu uma carta a um outro Duque
falando sobre os negócios com navios e que esperava uma visita do
tal homem para que discutissem os acertos para a nova frota da
marinha britânica.

Depois ele ditou um texto em que discutia política com um


professor de Oxford e essa demorou mais de uma hora para
terminar, meus dedos doíam porque ele falava depressa e eu fazia
de tudo para acompanhá-lo.

Eu mal terminei a carta e um grito ecoou pelo ambiente. A


porta foi aberta e um homem alto e loiro chamou por Lorde James.
E como Terence dissera, ele era bonito como o demônio, eu diria
anjo, mas preferia acreditar nas palavras de Terence, ela o conhecia
melhor do que eu.

John Conway era simplesmente perfeito em sua aparência.


Os irmãos se pareciam, os olhos eram exatamente iguais e o jeito
de sorrir. Porque um lindo sorriso iluminou o rosto do Duque quando
viu o irmão. Virou a cadeira para ele e John se aproximou para
abraçá-lo.
— Como está irmão? – James perguntou satisfeito em vê-lo.

Eu pensei em me retirar, mas Lorde John notou minha


presença e me olhou. Abaixei meu olhar para as mãos. Não
conseguia encará-lo mesmo que quisesse.

— Uma nova cuidadora? – John perguntou ajeitando a


postura.

— Essa é a Senhorita Winslet – James me apresentou. —


Senhorita Winslet, esse é meu irmão Lorde John Conway.

Ele se aproximou e me fitou atentamente. Não gostei dele,


algo em seu olhar me fazia lembrar tempos ruins de minha vida e
não consegui encará-lo.

— Lorde Conway – fiz mesura.

— Olhe para mim. – Ele pediu.

Não podia, que jeito mais estranho de conhecer alguém


pedindo que o fitasse. Apertei minhas saias, e simplesmente não
consegui levantar o olhar. Ele deu um passo para mim e eu dei outro
para trás. Lorde John parecia se divertir com a minha atitude porque
o ouvi rir.

— John deixe-a em paz! – O Duque ordenou.

O homem ainda hesitou, mas acabou se afastando e soltei o


ar dos pulmões devagar.
— Veio sozinho? – James perguntou ao irmão.

Eu não conseguia olhar para eles, estava envergonhada com


minha reação. Há muito tempo não me sentia tão intimidada na
presença de um homem. Durante muito tempo, eu simplesmente
não conseguia ficar, mas conseguia me controlar. Até agora.

— Lady Williams veio comigo. – Ele informou.

— Novamente está com a Condessa de Baltimore? – James


o reprovou.

— Ela é irresistível – John debochou —, e eu queria apenas


uma companhia feminina, mas havia me esquecido que em sua
casa posso ter mais agradáveis.

Ao ouvir aquelas palavras, eu me senti sufocada. Precisava


sair dali ou teria um ataque histérico.

— Com licença – pedi e me retirei para a sala adjacente


fechando a porta.

Aproximei da janela e olhei a paisagem tentando esconder os


pensamentos que me atormentavam. Respirei fundo várias vezes
até meu coração se acalmar. Por sorte, aquele homem ficaria
apenas alguns dias e eu poderia conviver com ele sem chorar como
uma criança ferida. Quando a porta foi aberta, ele surgiu e me voltei
para ele, mantendo a cabeça abaixada.
Por sorte, o Duque veio logo em seguida, girando as rodas de
sua cadeira.

— Venha conosco, Senhorita Winslet. – O Duque mandou.

Eu os segui pelos corredores. Quando chegou no topo da


escada, Thomas e George já os aguardava e o mais jovem pegou o
Duque no colo e desceu com ele as escadas. Notei que o mordomo
desceu a cadeira em seguida. Eu os acompanhei até a sala de
visitas onde uma linda senhora os aguardava.

— Condessa. – James a cumprimentou.

— Lorde Conway – ela o cumprimentou estendendo a mão


para que ele a beijasse —, como sempre está muito bonito.

Ela disse sem poder deixar de notar a cadeira e sorrir forçado


para esconder seu desprezo por um Duque aleijado.

— Fizeram boa viagem? – James perguntou enquanto


Thomas lhe servia o uísque.

— Cansativa, mas agradável no fim das contas – olhou com


malícia para John.

Lorde John correspondeu com o mesmo sorriso malicioso


para ela. Eu me segurei para não revirar os olhos. Era tão
indecoroso ela falar daquele jeito, mesmo que fossem amantes, a
discrição era parte da educação das pessoas. A Condessa se
sentou na cadeira e Thomas lhe serviu vinho antes de vir e ficar
parado ao meu lado. Preferia mil vezes estar lendo para o Duque a
vê-lo conversar com aquela mulher falsa e dissimulada.

Nada nela era agradável, sequer seu vestido caro ou suas


palavras sempre muito lisonjeiras como se pudesse assegurar
dessa forma a admiração de um homem. Senti que era observada e
olhei para o lado, John Conway me fitava atentamente e desviei o
olhar para as mãos. Ele me deixava nervosa.

— Preciso mesmo ficar aqui? – murmurei para Thomas.

— Sim. Até que Vossa Graça a dispense – ele avisou


discretamente —, e pode apostar que isso não vai acontecer.

Quando me predispus a ser cuidadora, não imaginei que


estaria na lista de tarefas assistir nobres falando sobre futilidades e
sendo agradáveis quando não queriam ser. Felizmente chegou a
hora do almoço e fui dispensada até que terminassem a refeição no
salão principal.

— Deveríamos comemorar. – Anne falou enquanto


almoçávamos.

Thomas e Abigail estavam no salão principal servindo aos


donos da casa.
— Comemorar? – Terence perguntou indignada —, trabalhei
como um cão para deixar o almoço pronto a altura da Condessa!

— Daisy está em seu segundo dia de trabalho e não está


chorando. – Anne comentou.

Eu sorri e os outros riram. Até mesmo o cocheiro de Lorde


John. Pelo visto, todos sabiam do que acontecia naquela casa.

— E pretendo ficar mais – afirmei e todos debocharam.

— É porque ele ainda não lhe jogou nada na cabeça. –


George zombou.

Anne o cutucou e eles riram.

— O quê? – perguntei perplexa.

— A última cuidadora, a Senhora Dickens teve um corte na


cabeça, o Duque lhe jogou o livro. – Anne contou.

— Mesmo? – questionei sem acreditar —, e ela contou o


motivo pelo qual ele fez isso?

— Não, apenas pegou suas coisas e saiu correndo daqui


com a testa sangrando. – Terence contou. — O que quer que tenha
provocado a ira desse homem, não precisa ser muita coisa.

— Não realmente. – Anne concordou.


Eu estava trabalhando para um louco. Talvez não fosse
apenas a doença que o atormentasse deixando amargo, o Duque
talvez tivesse herdado a loucura do pai. Seria triste vê-lo definhar
como um louco.

Não demorou para que Abigail entrasse na cozinha e nos


mandasse parar de fofocar.

— Acredito que cada um tem seus afazeres – ela afirmou —,


temos visitas e há muito o que fazer nessa casa já que o número de
empregados está reduzido.

Todos começaram a se levantar. Thomas entrou em seguida


e se aproximou de George.

— Leve o Duque para cima. – Ele mandou e o rapaz saiu em


seguida e então ele voltou-se para mim. — Vá até a biblioteca e
pegue esses livros – ele me entregou um bilhete —, o Duque quer
que leia para ele durante sua sesta.

— Sim, senhor.

Peguei o papel e me dirigi para a biblioteca. Quando entrei,


senti meu coração disparar. Era um imenso salão, as cortinas
estavam afastadas e as janelas cobriam a parte exterior da parede
que dava para os jardins cobertos de neve. Uma mesa de madeira
atravessava o lindo cômodo com suas cadeiras que pareciam ter
sido desenhadas e não esculpidas pelo carpinteiro. Tudo naquele
castelo parecia uma obra de arte.

As outras paredes eram cobertas por livros, do chão até o


teto e eu me perguntei como encontraria os livros. Aproximei das
estantes e passei os dedos pelos livros. Eram lindos e sorri para
eles me sentindo bem-vinda. Não havia lugar mais magnífico de
estar do que uma biblioteca. Por sorte, os livros estavam dispostos
em ordem alfabética e pude usar a escada para alcançá-los.

Sorri satisfeita quando coloquei o último volume sobre a pilha,


mas meu sorriso desapareceu quando a porta foi aberta e Lorde
John Conway entrou. Fiquei tensa e peguei os livros colocando-o
contra o meu peito como um escudo. Abaixei a cabeça novamente
enquanto ele se aproximava em silêncio.

— É impressão minha, Senhorita Winslet, mas sinto que


minha presença a incomoda – falou sério.

— É impressão, Lorde Conway – respondi e engoli em seco.

Meu coração batia apressado, mas não era uma coisa boa.
Eu queria apenas que ele ficasse longe de mim.

— Eu preciso ir, com licença – passei por ele, mas o homem


cometeu o erro de tocar em meu braço. Desvencilhei dele e derrubei
os livros no chão. — Não me toque! – Eu gritei. O som soou mais
como um apelo de socorro engasgado, como em um pesadelo.
Ele ficou espantado com a minha reação.

Sem explicar e constrangida por minha atitude inesperada,


abaixei para pegar os livros e em seguida praticamente corri para
fora da biblioteca deixando o homem estupefato. Acredito que eu
era a primeira mulher que mostrava intenso asco por sua presença.

Bati a porta tentando controlar minhas pernas que estavam


trêmulas e me dirigi ao quarto do Duque. Ajeitei meu vestido e entrei
quando ele autorizou. Precisava me controlar, embora parecesse
impossível.
Capítulo 6

Eu li mais para mim do que pare ele, porque por fim, ao


observá-lo, sentia que não prestava atenção em uma palavra do que
eu dizia. Estava distraído olhando pela janela, vendo a neve cair
levemente. George havia acendido a lareira e o calor do quarto era
agradável. Não queria sequer imaginar como estaria no meu e com
aquele colchão gelado depois de ficar mais de um dia sob a neve.

Sabia qual era o meu lugar, mas as palavras saíram da minha


boca sem que eu pudesse evitar.

— O senhor está bem, Vossa Graça?

Ele ouviu a minha pergunta e franziu o cenho como se não


acreditasse que eu havia interrompido sua divagação. E para falar a
verdade, eu mesma não cria que fora tão audaciosa.
— O que perguntou? – Ele estava passando os dedos pelo
queixo e parou ao olhar para mim.

— Perguntei se Vossa Graça está se sentindo bem – repeti.

O Duque ficou me observando por alguns segundos antes de


falar.

— Pareço não estar bem? – Ele me questionou.

— Sim – respondi com sinceridade. — O senhor parece


distraído, não ouviu uma palavra do que eu disse.

Ele ficou de mau humor quando eu proferi tais palavras. O


Duque não era um homem risonho ou de feições simpáticas, mas
era notável quando o mau humor tão comum piorava. Ele enrugava
a testa e estreitava o olhar.

— Realmente é muito atrevida para uma cuidadora – ele me


reprovou —, não sabe o seu lugar?

Não me intimidei.

— O trabalho de uma cuidadora é zelar por seu paciente. E é


o que estou fazendo – defendi minhas razões. — O seu bem-estar
me preocupa acima de todas as coisas.

— É o seu trabalho. – Ele falou o óbvio.

— Sim – concordei.
— Tem medo que eu morra e perca seu emprego? – Ele
debochou.

— Vossa Graça não parece propenso ao óbito – retorqui. —


Mas como a morte não tem prazo, caso venha ocorrer, tenho
certeza que encontrarei outro moribundo para cuidar.

— Não vou me esquecer de colocar em sua carta de


recomendação sua língua afiada. – Ele falou me encarando.

Eu não sorri, apenas olhei para o livro que segurava.

— Gosta de filosofia? – Ele quis saber.

— Sim, embora não seja minha leitura preferida.

— E qual é?

— Prefiro os livros de medicina – contei.

Ele arregalou os olhos surpreso.

— E como tem acesso a esse tipo de literatura?

— Meu irmão é médico e professor em Oxford – respondi.

— Verdade. Meu irmão John comentou que foi atendido por


ele em uma consulta em Oxford e elogiou seu trabalho. – O Duque
observou. — É muito interessante que tenha curiosidade em saber
tanto sobre o assunto.
— Talvez se me fosse dada a chance de estudar medicina,
eu o faria – contei.

— Ainda é muito jovem, o que sabe que a vida lhe reserva...

E ele também era. Um desperdício ver um homem tão jovem


e viril preso à cadeira de rodas.

— Posso fazer uma observação, Vossa Graça? – perguntei.

— Adiantaria se eu dissesse que não? – Ele retrucou sério.

— Eu pensei que talvez fosse mais propício que se mudasse


para um dos quartos do térreo, assim poderia passear pela casa ou
pelo jardim e não ficaria relegado ao quarto ou à ajuda de outros
para descer as escadas – falei com coragem.

— É muita petulância da sua parte me dizer o que fazer. – Ele


me reprovou.

— Não estou me intrometendo, Vossa Graça – garanti. —


Apenas um conselho que seu médico deveria ter lhe dado.

Ele balançou a cabeça, incrédulo.

— Acredita que sabe mais que o meu médico? – Ele me


desafiou.

— Claro que não – concordei. — Mas seu médico não está


aqui todos os dias cuidando de Vossa Graça e vendo-o definhar
dentro deste quarto.
— Definitivamente, eu deveria mandá-la embora! – Ele falou
com irritação.

Algo me dizia que ele não faria. Ou eu já não estaria dentro


daquela casa. Sentia que ele não se incomodava de verdade por eu
falar o que pensava. Ao contrário, parecia satisfeito por ter alguém
com quem conversar ou até mesmo discutir. Segurei para não sorrir
diante das palavras dele, mas meus olhos o fizeram por mim.

— Eu disse algo engraçado?

— Pareço estar rindo?

— Está se divertindo comigo, senhorita? – Ele girou as rodas


da cadeira saindo da frente da porta da varanda e se aproximando.
— Sou motivo de riso para o seu dia?

Podia sentir a sua frustração. Aquelas palavras não eram


dirigidas a mim, mas à Condessa. O orgulho o impedia de dizer
umas verdades para sua convidada, mas não para sua cuidadora,
uma simples plebeia.

— Não estou achando engraçado o que diz. – afirmei.

— Então o que a faz rir? O fato de que um Duque está preso


em uma cadeira de rodas e não consegue cuidar de si mesmo ou
descer as escadas? – Ele esbravejou.

Meu humor sumiu completamente.


— Estou apenas pensando o motivo pelo qual ainda não me
mandou embora – confessei para surpresa dele.

— É inverno e Thomas me convenceu que seria difícil


encontrar outra cuidadora nessa época do ano – respondeu sem
hesitar. — E, infelizmente, esse ano meu mordomo passará as
festas com a família em Essex.

Então, ele era obrigado a me suportar. Meu emprego estava


garantido até Thomas voltar das festas e eu esperava que
demorasse bastante por lá para que eu pudesse provar que podia
fazer meu trabalho bem feito.

— E não sorria outra vez! – Ele mandou quando meus olhos


inevitavelmente brilharam de satisfação.

Meus olhos eram castanhos muito escuros e grandes, era


difícil esconder meus sentimentos, afinal, se tornavam bem
expressivos pelo meu olhar.

— Não farei, Vossa Graça. – Minha voz soou séria.

— Está fazendo! – Ele apontou o dedo em riste.

— Talvez minha satisfação seja algo incontrolável nesse


momento – admiti.

— Não quer ser demitida? – Ele me questionou.

— Claro que não...


— Então controle sua língua e tudo dará certo entre nós! –
avisou.

— Vou controlá-la – falei encarando-o como se fizesse uma


importante promessa.

Ele estreitou os olhos azuis:

— Por que algo me diz que não vai fazer o que pedi?

Sempre haveria em mim aquele lado rebelde que não se


curvava às autoridades. Era um grave defeito, eu sabia. Tentava
controlá-lo ao máximo, mas por vezes, eu me pegava desafiando
quem quer que fosse. Inclusive um Duque.

— Talvez seja um traço de minha personalidade o qual tenho


que dominar com mais veemência. – Eu me limitei a discursar.

— Quantos anos tem?

— Vinte.

— Ainda tem muito o que aprender da vida – ele limitou-se a


dizer —, não faz ideia do que o destino é capaz de aprontar quando
menos se espera. – A voz soou amarga.

— Talvez eu saiba – respondi sem pensar e depois me


arrependi.

— Não me diga que já sofreu tristes auguras terríveis? – O


tom de voz dele era carregado de zombaria.
Pela primeira vez em todos aqueles anos, eu senti vontade
de falar sobre o que ocorrera. Uma única vez o fiz para minha
família e nunca mais. Até agora. Mas eu não queria contar e chorar,
meu desejo era gritar com aquele homem, dizer o mal que me
infligiram e como isso destruiu a minha alma. Um bolo de ódio e
rancor se formou na minha garganta. Almejei chocar o Duque e lhe
contar que minha dignidade foi usurpada de forma violenta apenas
para deixá-lo sem palavras e nunca mais zombar de quem quer que
fosse.

Mas as palavras permaneceram na garganta e eu as engoli


outra vez, escondendo-as no mais profundo do meu ser. Aquela dor
pertencia a mim e não permitiria que um homem arrogante e sem
alma, que não se importava comigo, caçoasse do meu sofrimento.

— Quer que eu continue a ler? – mudei de assunto tomando


uma postura mais séria.

O Duque me estudou por alguns instantes.

— Não respondeu a minha pergunta, senhorita. – Ele insistiu.


— Já sofreu algo inimaginável?

Olhei para as páginas do livro. Minha história permaneceria


guardada em mim, aquele homem ou qualquer outra pessoa não
precisava saber.
— Todas as pessoas têm uma história triste para contar,
Vossa Graça – limitei a dizer.

— Conte-me a sua. – Ele pediu.

— Não seria de bom tom – garanti.

— Quero ouvir – exigiu.

Nós nos encaramos. Quem ele pensava que era para exigir
que eu lhe abrisse o meu coração e rasgasse a minha alma? Eu mal
o conhecia... A resposta estava na ponta da língua quando batidas à
porta nos interromperam.

O Duque praguejou e mandou que entrasse.

— Seu irmão e a Condessa o aguardam para o chá da tarde.


– Thomas avisou.

— Havia me esquecido desses detalhes absurdos! – falou


impaciente. — Chá da tarde! Era mais fácil John subir ao meu
quarto para conversarmos do que eu descer para a sala de chá!

Eu o fitei e respirei fundo, mostrando que eu tinha razão


quando dizia que o quarto dele deveria mudar para o térreo. O
Duque ergueu uma sobrancelha ao notar minha presunção.

— Diga a eles que vou me trocar e estou descendo –


informou a Thomas.

— Sim, Vossa Graça. Com licença. – E se retirou.


Sem que ele precisasse dizer uma palavra, eu me ergui e
deixei os livros sobre o móvel, e fui para perto de seu armário de
onde tirei a roupa que ele deveria usar. Ele girou a cadeira e o
ajudei a sentar-se na cama e comecei a tirar sua roupa. Ele não
estava tão tenso como no dia anterior ou aquela manhã.

Terminamos e o ajudei a sentar novamente na cadeira.

— Vai querer que eu o acompanhe, Vossa Graça? –


perguntei quando ele se ajeitou na cadeira.

— Sim. – Ele afirmou.

Pensei que ele diria não e eu ficaria longe da presença


nefasta de seu irmão, mas parecia tolice acreditar que eu ficaria livre
de ver aquele homem repugnante. Assenti e empurrei sua cadeira
para fora do quarto até chegar ao topo da escada onde George e
Thomas nos aguardavam.

Fomos para o salão de chá e o casal insuportável nos


aguardava. Quer dizer, aguardava ao Duque. Eu fiquei parada de pé
perto da porta enquanto Thomas os servia e a Condessa falava
como era lindo o campo nessa época do ano, embora fosse de
conhecimento geral que ela quisesse apenas agradar. Estava
odiando tudo aquilo.

— Sabe quem perguntou sobre você, James? – Ela


perguntou ao Duque e ele fez que não. — A Condessa de Denbigh.
Levantei a cabeça naquele momento e olhei para o Duque
para avaliar a sua reação. Ele ficou tenso e apertou o braço da
cadeira até os nós dos dedos ficarem brancos. James não pareceu
satisfeito com o rumo daquela conversa.

— Não faço ideia por que Lady Parker tocaria no meu nome –
James disse com uma frieza ímpar.

A Condessa fingiu não notar a indiferença na voz de James.


Afinal, todos sabiam que ele e Lady Parker tiveram um caso e por
pouco não se casaram.

— Ela não disse diretamente a mim – a Condessa falou


coquete —, na verdade, quem me contou foi Lady Klark. – Ela olhou
para John. — Nora confidenciou que se preocupa com seu estado
de saúde.

— Deve ser pelo laço de amizade que uniu nossas famílias –


John interviu na conversa. — Tenho certeza que meu irmão terá
prazer em escrever uma carta para a Condessa agradecendo sua
preocupação.

Algo me dizia que o Duque preferia ir para o inferno a


escrever tal carta, mas os nobres eram educados demais para
tecerem comentários sinceros e francos. Preferiam a mentira ou,
como a Condessa, a falsidade velada. Ela me dava nos nervos.
Naquele momento, Lorde John olhou para mim e desviei o
olhar para minhas mãos. Fiquei alguns segundos assim e quando
levantei o rosto, o Duque também me olhava e fitou o irmão em
seguida para depois me lançar um olhar reprovador. Lorde John se
divertia com a minha aversão a ele. Enquanto eu não fazia ideia do
que se passava pela cabeça do Duque, embora ele tivesse notado o
interesse do irmão por mim.

Eles terminaram o interminável chá e novamente subimos


para o quarto do Duque. Dessa vez, ele não disse uma palavra.
Fiquei em silêncio sentada na cadeira no canto do quarto enquanto
ele sentou-se em sua escrivaninha e redigiu cartas até a hora do
jantar quando novamente se arrumou e descemos as escadas com
aquele mesmo ritual. Não acreditava que ele se agradava de ser
carregado o tempo todo. Estava me dando nos nervos ele não
aceitar a ideia de que mudar-se para o piso inferior seria melhor
para todos.

Dessa vez, ele fez questão que eu o acompanhasse no


jantar. Estava exausta e com fome. Minha última refeição havia sido
o almoço.

— Por que não convida sua cuidadora para se sentar


conosco, James? – A voz de Lorde John quebrou o ambiente.

Todos os olhares se voltaram para mim. Por que ele fez isso?
A Condessa levou a mão ao rosto e ergueu uma sobrancelha
como se me desafiasse. Thomas e Abigail me fitavam esperando
que eu dissesse alguma coisa. O que eu poderia dizer? Engoli em
seco.

— Ela é uma empregada, John! – A Condessa debochou. —


Sabe que não precisa que ela se sente à mesa para se divertir com
ela mais tarde...

Sequer acreditava que aquela mulher dissera algo tão


grosseiro. Sem pensar nas consequências, eu saí correndo e fui
para o meu quarto. Mesmo ouvindo o chamado de Thomas. Não me
importava, as lágrimas rolavam pelo meu rosto e eu não queria que
ninguém me visse chorando. Tranquei a porta e me joguei sobre a
cama fria. Ouvi batidas à porta um tempo depois, mas me recusei a
abrir. Na manhã seguinte, eu lidaria com as consequências. Naquele
momento, eu só queria ficar sozinha e suportar meus próprios
traumas.
Capítulo 7

Eu mal dormi. Fiquei rolando na cama a noite inteira, tive


pesadelos, acordei chorando. Quando consegui me levantar, parecia
que um trem havia passado por cima de mim. Vesti meu uniforme e
me arrumei, embora não pudesse esconder as olheiras profundas e
o quanto estava abatida.

Quando cheguei à cozinha, Terence já estava de pé


preparando o desjejum e Anne passou apressada com o balde de
água na mão.

— Todos caíram da cama hoje? – perguntei me sentando à


mesa quando ela colocou o copo com leite e um pedaço de pão
diante dos meus olhos.

— O Duque decidiu mudar o quarto dele para o andar


debaixo. – Terence me contou.
— Mesmo?

— Parece que ficou farto de ser carregado escada acima –


ela encolheu os ombros —, enfim, hoje teremos trabalho em dobro.

Novamente não sorri, mas meus olhos brilharam de


satisfação. Com o quarto dele naquele andar poderia passear com
ele no jardim e tirá-lo um pouco de dentro do quarto. Estava
satisfeita porque ele ouvira o meu conselho e se mudara antes da
partida de Thomas. Terminei meu desjejum e subi as escadas para
poder auxiliar na mudança. Quando me viu, Thomas me deu bom
dia e se aproximou de mim.

Pensei que ele fosse me exortar por ter saído daquela forma
da sala de jantar, mas ao contrário, ele não disse nada.

— O Duque a aguarda no quarto de hóspedes – ele avisou


—, enquanto fazemos a mudança toda.

— Sim, senhor – assenti.

Ele me indicou a porta e me dirigi para lá.

Encontrei o Duque recostado nos travesseiros lendo um livro.


Ele abaixou o volume quando me viu entrar.

— Está atrasada, Senhorita Winslet! – Ele me reprovou.

— Não estou – respondi sem pensar.


— Caso não tivesse saído de forma tempestuosa da sala de
jantar ontem à noite, teria ouvido minha ordem para chegar mais
cedo – ele me contrapôs com aquela arrogância exacerbada que lhe
dava certo charme.

Pensei em mil coisas para me desculpar. Mas não o faria.


Não havia sentido. Eu fui ofendida, não havia ultrajado ninguém.

— E pelo visto, não adiantou nada se recolher mais cedo,


está com uma péssima aparência!

Deveria estar mesmo, mas a palidez notável mudaria com um


pouco de pó no rosto, mas eu não usava maquiagens. Não
respondi, apenas fui para o móvel pegar a bacia e levá-la para perto
da cama. Sem dizer nada, puxei os cobertores e comecei meu
trabalho. Quando terminei de ajudá-lo a se vestir, sua voz soou
plácida aos meus ouvidos:

— Sinto muito pelo comportamento da Condessa na noite


anterior – falou.

Ergui o olhar para seu rosto bonito, surpresa. Não imaginava


que ele pudesse pedir desculpas. Não combinava com seu jeito
austero.

— Não se preocupe – respondi ajeitando sua casaca,


olhando para os botões que fechava.
— Não seja orgulhosa – ele mandou —, olhe para mim
quando estiver falando com a senhorita!

Eu o fiz e dei um passo para trás para encará-lo.

— Não vai voltar a acontecer. – Ele garantiu.

Apenas assenti. Mas estava feliz por ele reconhecer que a


Condessa passara de todos os limites da decência.

— Obrigada – agradeci com certo constrangimento.

— Não me agradeça – falou ríspido. — Posso ter muitos


defeitos, mas há muito tempo aprendi que limites são importantes.

— Sim, Vossa Graça.

Ele me estudou por um instante antes de dizer.

— Sinto também que a presença de meu irmão a constrange.


– Ele observou.

Não queria dizer nada desagradável, ainda mais depois que


Terence me contou que a relação de Lorde John e o Duque era
inabalável, a união deles era forte.

— Peço desculpas se passei essa impressão. – Eu disse


desviando o olhar para as mãos.

— Talvez eu deva demiti-la. – Ele disse depressa.

Ergui os olhos assustada com sua colocação.


— O que a fez permanecer nesse emprego nos últimos dias
foi sua sinceridade e não suas mentiras. – Ele salientou.

Fiquei envergonhada por mentir, mas não havia como


explicar a situação. O Duque não compreenderia meus motivos,
mesmo se eu contasse a verdade.

— Diga-me a verdade. – Ele exigiu.

— Eu me sinto incomodada – confessei de uma vez.

— Notei a forma como John a fitava – ele observou —, mas


não se preocupe, ele é inofensivo a maior parte do tempo.

Como se as palavras dele me confortassem.

— Meu irmão é tão inconsequente quanto um dia eu fui – ele


falou amargo —, contudo John jamais tomaria uma mulher contra a
sua vontade.

Precisei virar as costas quando ele proferiu tais palavras.


Comecei a esfregar as mãos uma na outra e senti um ímpeto de
fugir. Mas respirei fundo controlando as batidas do coração e me
dizendo que estava tudo bem.

— Vou ajudá-lo a sentar-se em sua cadeira – avisei e fui para


perto dele.

O Duque me olhava atentamente e eu mantinha o olhar longe


de seu rosto. Não suportaria que ele enxergasse meu desespero,
embora estivesse nítido.

— Vou buscar seu desjejum – avisei e saí do quarto


apressada.

Caminhei pelos corredores onde ajudantes carregavam os


pertences do Duque para o andar debaixo. Aquela caminhada até a
cozinha e o retorno me fez ficar mais calma. Quando retornei,
infelizmente, Lorde Conway estava no quarto.

— Bom dia, Lorde Conway. – Eu o cumprimentei.

— Senhorita Winslet. – Ele respondeu ao cumprimento.

Coloquei a bandeja sobre a mesa e me afastei esperando a


ordem para sair ou ficar. O Duque se aproximou da mesa e fez sinal
para que o irmão se sentasse ao seu lado. John sentou-se e eu
fiquei ali parada. Decidi me ocupar com a arrumação do quarto
levando a roupa suja para fora. Era atributo de Anne, mas ela
estava ocupada limpando o quarto lá embaixo.

— Onde pensa que vai? – O Duque perguntou.

— Levar a roupa suja para fora – mostrei as peças em


minhas mãos.

— Tem quem faça isso – ele falou ríspido —, deixe-as aí.

Respirei fundo me controlando. Qual era o problema de


ajudar outra colega? Acreditei que ele me chamava a atenção
apenas pelo prazer de colocar defeito em algo que eu fazia.
Realmente, ele estava entediado. Deixei a roupa sobre o baú e fui
me sentar na cadeira perto da porta. Peguei um livro para não me
ater à conversa e não prestar atenção ao olhar de Lorde John sobre
mim.

— Tem certeza que vai dar certo, John? – James lhe


perguntou. — Já mandei cancelar a compra de especiarias. O preço
caiu muito e não tem valido a pena a exportação.

— Sim. Vou levar a mercadoria para Boston – John


respondeu —, e passarei os próximos anos na América.

— Parece tão sem sentido. – James comentou tomando seu


chá.

— Sem sentido é ficar na Inglaterra chata. – John comentou


olhando para o irmão. — Sempre as mesmas pessoas, as mesmas
conversas. Estou entediado.

— E a sua Condessa? – James perguntou com sarcasmo.

— Ela não é minha, graças a Deus, e tem o marido para fazer


com que esqueça meu nome antes do sol nascer. – Ele argumentou
e eles riram.

— Se é o que quer, eu o apoiarei – o Duque garantiu —, sabe


disso.
— Talvez uns três anos e estarei de volta. – John falou sério.
— Sabe como sou, me entedio facilmente com tudo.

— Fará muita falta aqui. – O Duque assegurou.

— Mas escreverei todas as semanas, prometo.

Eles sorriram em cumplicidade um para o outro. Então, o


irmão libertino partiria. Senti um alívio tão grande que tive que
comprimir os lábios para não suspirar. Eu trabalharia naquela casa
pelos próximos anos sem conviver com aquele homem. O dia que
amanhecera ruim começava a ficar ensolarado em meus
pensamentos.

Logo, eles terminaram o desjejum, mas ainda conversaram


um pouco, antes de Thomas surgir e avisar que o quarto estava
pronto.

— Decidiu mudar de repente para o andar debaixo – John


comentou empurrando a cadeira enquanto eu seguia atrás —, foi
uma excelente ideia.

O Duque olhou por cima do ombro e me pegou sorrindo.


Fiquei séria, mas era tarde demais, era óbvio que eu estava
satisfeita com sua decisão.

— Eu fiz porque Thomas vai tirar férias e como George


costuma ir para a casa dos pais no Natal, ficarei preso no andar de
cima – explicou. — Achei mais prudente mudar-me e facilitar a vida
de minha cuidadora. Ela tem aparência frágil e mal consegue me
ajudar a sentar na cadeira.

Ele estava reclamando? Por Deus, que homem insuportável!


Eu fazia tudo com maestria, ajudava-o sem hesitar. Era de se
esperar que ele colocasse defeito em alguma coisa para não admitir
que a excelente ideia foi minha. Descemos para o quarto que ficara
idêntico ao anterior. Se estivesse sozinha, eu poderia rodopiar de
alegria por ele ter me ouvido.

— Vou deixá-lo com sua cuidadora. – Lorde John olhou para


mim e novamente evitei seu olhar. — Vou encontrar minha
acompanhante.

Eles se despediram e o homem saiu, mas não sem piscar


para mim, me fazendo sentir ofendida com sua atitude atrevida.

— Parece estar satisfeita com a mudança. – O Duque disse


chamando minha atenção.

— Sim – um sorriso escapou de meus lábios —, fico


contente.

— Talvez exista bom senso em seu atrevimento. – Ele


encolheu os ombros. — Gostaria que escrevesse algumas cartas
para mim. – E apontou a escrivaninha.
— Com o maior prazer. – Eu disse com sinceridade e me
sentei.

O silêncio pairou sobre nós e eu olhei para ele. Talvez minha


empolgação e minhas últimas palavras tenham sido mal
interpretadas.

— Algum problema? – perguntei sem compreender o motivo


de seu silêncio.

— Não é nada. – Ele disse me olhando de forma estranha.

Voltei a atenção para o papel e ele começou a redigir.


Novamente paramos somente na hora do almoço. Ele não almoçou
com o irmão e a Condessa, preferiu ficar no quarto e no período da
tarde li para ele como havia acontecido nos outros dias. Para minha
surpresa, ele também não jantou na companhia do irmão e me
dispensou. Apenas quando entrei na cozinha, eu soube que Lorde
John havia partido para Londres a fim de levar a Condessa embora.

— Uma visita rápida. – Anne comentou bebendo seu vinho.

— Ele nunca fica muito tempo. – Terence observou servindo


meu prato de comida.

— Estou exausta. – Anne esticou as costas.

— Eu também – George terminou de comer e empurrou o


prato —, todo inverno o trabalho dobra.
— Eu preciso de umas férias. – Anne falou com um sorriso
travesso.

— Todos irão para casa no natal. – A Senhora Relish entrou


na cozinha e ouviu parte da conversa.

— Eu não vou. – Eu disse.

— O quê? – A Senhora Relish ficou surpresa.

— Ficarei com o Duque – avisei. — Todos irão e eu ficarei


aqui para cuidar dele. Foi o que ele decidiu, por isso se mudou para
o quarto debaixo, para facilitar meu trabalho e não precisar que
alguém suba e desça com ele pelas escadas.

Era o mais óbvio e tenho certeza que essa seria a decisão do


próprio Duque. Não haveria quem cuidar dele e de todas as outras
coisas com todos os empregados fora. Talvez as pessoas não
vissem tal atitude com bons olhos, afinal, uma mulher sozinha com
um homem dentro da casa. Mas nossas limitações nos invalidavam
de qualquer escândalo: ele estava preso a uma cadeira de rodas e
eu aos meus traumas. E acredito que todos pensaram sobre as
limitações dele e não questionaram.

— Pelo visto você não tem planos de partir realmente. – A


Senhora Relish observou se sentando ao lado de Anne.
— Estou aqui há três dias e tudo tem parecido bem para mim
– expliquei e comecei a comer.

— Ainda faltam quatro para a prova de fogo. – Anne me fez


recordar.

— Não sinto que possa ficar pior – disse a verdade.

Eles se entreolharam e começaram a rir.

— Você ainda não o pegou em seu pior dia. – George


garantiu.

Não ri. Não havia graça no sofrimento de James Conway.


Aquelas pessoas o enxergavam apenas como o patrão déspota. Eu
o divisava como o homem que carregava um sofrimento profundo
que havia moldado sua alma no último ano. Um homem que foi
capaz de dar sua vida em troca de seu irmão e ao sobreviver pagou
um preço alto. Eu distinguia o homem que estava preso a uma
cadeira de rodas e tinha que lidar com seu ego e orgulho quando as
pessoas riam de sua desgraça e se apiedavam dele.

Eu o compreendia e era difícil explicar para todos os


presentes. A mesma dor que eu levava comigo, aquele homem tinha
com ele e isso me fazia entender seus motivos para ser amargo.

Mas houve um tempo em que também fui assim, mas desde


que minha cunhada Anne surgiu em minha vida, ela me fez ver que
havia uma segunda chance para que eu continuasse a viver.
Duvidava que qualquer um presente ou até mesmo Lorde John
tenha dito isso ao Duque. Não estava com pena dele, apenas me
solidarizava com sua dor.

Depois do jantar desci para o meu quarto. Sentei à


escrivaninha e comecei a escrever uma carta para Anne. Comecei
perguntando sobre a saúde de todos e que sentia saudades.

Eu estou bem. Hapton é uma linda propriedade ao sul de


Londres e tem feito bastante frio, embora eu goste do inverno e do
tom melancólico que dá a tudo. Sinto que encontrei meu lugar.
Embora todos falem sobre o Duque e seu mau humor e aspereza,
eu compreendo sua amargura porque ela é igual a minha, Anne.
Lembra-se de quando me conheceu? O quanto eu era triste e não
acreditava que a vida poderia valer a pena? É o que enxergo nesse
homem e que as pessoas tanto debocham.

Ele está ferido como eu sempre estarei. A diferença é que


mascaro minha dor tentando sobreviver. Ele grita por ajuda, por
alguém que o compreenda. Posso fazê-lo, sinto que posso ajudá-lo
mais do que qualquer outro poderia. Eu me simpatizo com ele.
Tenho certeza que o destino não me trouxe aqui por acaso.
Parece loucura? Mas talvez apenas você compreenda o que
estou dizendo. Você Anne que tanto sofreu e se sacrificou de tal
maneira em sua vida, saiba que de alguma forma encontrei um lugar
para ficar e estou gostando daqui.

A vida nos dá oportunidades e acabo de agarrar a minha


segunda chance de recomeçar.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto quando fechei o


envelope. Anne me ensinara que um dia de cada vez tinha que ser
vivido quando estávamos feridos. A pressa era uma inimiga mortal
de quem precisava acreditar em si mesmo novamente. E eu queria
dizer isso ao Duque, e sentia que em algum momento haveria
oportunidade para mostrar a ele que sua vida não estava presa
àquela cadeira de rodas.
Capítulo 8

E o Duque não acordou de bom humor no dia seguinte.


Enquanto o ajudava nas primeiras horas do dia, eu o sentia tenso,
irritado. Quando terminou o desjejum apenas me mandou tirar a
bandeja, contudo, seu silêncio era um grito desesperado de um
homem que não tem a quem recorrer.

— Vossa Graça não gostaria de dar uma volta pelo jardim? –


Eu ofereci.

Ele ergueu o olhar furioso para mim.

— Desde quando eu lhe dou liberdades de me oferecer uma


questão a qual não lhe foi atribuída? – A voz dele se alterou.

Ele queria brigar, talvez uma noite mal dormida.


Pensamentos incoerentes e obsessivos que o faziam odiar a
situação em que vivia e por fim, a si mesmo. E uma vontade de
morrer quando na verdade, apenas quer seguir em frente e
encontrar a paz em si mesmo mais uma vez. Contudo, não é
possível. Sempre estamos lutando contra alguma coisa dentro de
nós, em maior ou menor intensidade.

— Faça seu trabalho apenas! – mandou.

— Sim, Vossa Graça. – fiz uma pequena pausa —, mas


acredito que seria bom o senhor sair um pouco de dentro dessa
casa. Seu médico não lhe recomendou passeios? – insisti.

Ele ergueu os olhos azuis para mim. Acredito que ele


quisesse me matar, minhas palavras mexiam com o desconforto
emocional que ele vivia.

— Deveria tê-la mandado embora no primeiro dia! – Ele me


alertou.

Mas ele não mandaria. Nós sabíamos disso, por algum


motivo, talvez minha língua afiada e minha coragem em enfrentá-lo,
tudo isso o fazia querer que eu ficasse.

Então tomei coragem e disse com petulância.

— Prometo não empurrar sua cadeira dentro do lago. – E saí


com a bandeja antes que ele respondesse.

Quando voltei, estava receosa que ele fosse me xingar por


meu atrevimento, mas ao invés disso ele estava em sua
escrivaninha escrevendo cartas. Não me pediu para ditá-las, fiquei
sentada em uma das cadeiras perto da janela e peguei um de seus
livros para folhear. Anne entrou logo em seguida para retirar as
roupas sujas e trocar a roupa de cama.

Sorrimos uma para a outra e então notei que ele me


observava. Sua expressão era impassível e desviou o olhar para as
cartas e eu segui lendo. Anne terminou o trabalho e trouxe mais
água limpa. Quando ela saiu, ele disse:

— Pegue meu casaco, vamos dar uma volta no jardim –


avisou e girou a cadeira em minha direção.

Eu me ergui tentando não sorrir.

— Não adianta comprimir os lábios, Senhorita Winslet – ele


ergueu uma sobrancelha —, seus olhos denunciam suas emoções e
sei que está feliz.

Tive que me controlar para não rir e bater palmas de


satisfação. Mais uma vitória.

— E não estou fazendo isso porque me pediu – falou severo.


— Mas porque há muito tempo meu médico recomendou e tenho
protelado.

Aquele orgulho dele era um charme inevitável.

— Sim, Vossa Graça.

Mentiroso. Ele jamais admitiria que minhas ideias o


empolgavam a sair de sua rotina horrível. E que hábito
desesperador era ficar trancado dentro daquelas quatro paredes.
Sempre fui uma pessoa caseira, mas tinha que admitir que era
enlouquecedor para qualquer ser humano se limitar apenas a viver a
um cômodo da casa. Não era à toa que aquele homem rosnasse
como uma fera selvagem presa em um reduto minúsculo.

Eu o ajudei a vestir o grosso casaco e depois coloquei um


cobertor sobre suas pernas. Fui buscar meu casaco e todos se
surpreenderam ao me ver subir vestida de meu quarto.

— Vai sair? – A Senhora Relish perguntou surpresa.

Thomas estava tomando seu desjejum, lendo o jornal e


ergueu o olhar para mim.

— Vou levar o Duque para um passeio no jardim – avisei


terminando de ajeitar minhas luvas.

Todos ficaram boquiabertos e até mesmo Terence deixou cair


a colher de pau e abaixou-se para a pegar.

— Eu preciso ir, com licença. – E fui em direção à entrada


onde o Duque me aguardava.

Abri a porta e ele passou por ela. Sentimos o vento frio, mas
não me intimidei e ele também não. Tive vontade de perguntar qual
havia sido a última vez que ele saíra por aquela porta, mas sabia
que ele me xingaria de alguma forma.
Segurei na parte de trás da cadeira e comecei a empurrar
pelo caminho livre que nos levaria até o lago. Tudo em volta era
neve, não havia muito o que admirar, mas eu gostava daquele tipo
de paisagem. Respirei fundo sentindo o ar puro do campo. Ainda
bem que todo o caminho até o lago estava livre para passarmos,
não queria que nada atrapalhasse aquele momento sublime de
liberdade para mim e para ele. A cada vitória conseguida, eu me
sentia mais forte por ele.

Parei diante do lago e apoiei a cadeira antes de me colocar


ao lado dele. O lago estava congelado dando um aspecto tão bonito
àquela paisagem que se estendia diante dos nossos olhos. Mais
adiante, as árvores altas dos pinheiros estavam brancas cobertas de
neve.

— Parece que esse ano vai fazer muito frio. – Ele quebrou o
silêncio.

— É o que parece – concordei. — Está nevando antes do


tempo.

— Meu pai costumava dizer que quando a neve chega antes


é um bom sinal – comenta olhando para frente.

— De quê? De mais lareiras acesas e grossos casacos sobre


os ombros? – perguntei e rimos.

Em nada o excesso de frio era bom.


— Não é à toa que tomavam meu pai por louco – comentou
com certa amargura.

Eu queria perguntar sobre o pai dele, saber se era realmente


um homem lunático ou apenas gostava de fazer o que queria e sua
excentricidade era considerada loucura. Conheci algumas pessoas
que foram internadas em sanatórios desnecessariamente apenas
porque elas não se enquadravam nas regras sociais por sua
rebeldia e não por terem perdido o contado com a realidade.
Contudo, não havia intimidade entre nós para que eu tomasse esse
tipo de liberdade.

— A senhorita tem família?

— Sim. Tenho minha mãe, três irmãs e um irmão. Além de


minha cunhada e... – hesitei pensando se mentia ou dizia a verdade.
Preferi a mentira —, e dois sobrinhos.

Embora eu me sentisse mal por mentir, era o melhor.


Havíamos montado uma farsa quanto ao nascimento das crianças.
Uma história longa e tenebrosa que eu infelizmente queria esquecer,
mas jamais poderia.

— Deve estar ressentida de não passar o natal com eles,


afinal, vai trabalhar. – Ele ergueu o olhar para mim em desafio.

Era como se ele estivesse me castigando. Tive vontade de rir


da sua forma de me testar.
— Eu não quero passar o natal em casa, Vossa Graça –
respondi tirando toda sua felicidade em me provocar tristeza. — Por
isso, aceitei o trabalho em sua propriedade.

Ele franziu o cenho.

— Está fugindo? – Ele inquiriu.

Eu o encarei. Era errado encarar um homem daquela forma,


ainda mais sendo ele meu patrão, mas sentia necessidade de
enfrentá-lo.

— Quem de nós não está fugindo de alguma coisa?

Perguntei e ele estreitou o olhar, sabia que ele estava me


chamando de insolente novamente e meus olhos brilharam de
satisfação antes de desviar novamente para a paisagem. Ficamos
ali por um longo tempo, depois demos a volta ao redor do lado, ele
quis me mostrar o outro lado da propriedade.

— Aqui os jardins ficam mais bonitos durante a primavera,


mas pelo visto, vai demorar para notar isso. – Ele comentou.

Sorri diante das palavras dele. Isso significava que ele


esperava que eu ficasse até a primavera. Para os primeiros dias, eu
deveria me considerar uma vitoriosa.

Voltamos para dentro da casa satisfeitos com nosso passeio.


A partir daquele dia, os passeios pela manhã se tornaram
uma regra. O Duque tomava seu desjejum, ditava as cartas e logo
saíamos para o passeio, que a cada dia se tornava mais longo
apesar do frio. Algumas vezes voltas mais longas ao redor do lago
congelado. Outras vezes, apenas ficávamos sentados olhando a
paisagem em silêncio. Eu não precisava de mais nada além aquela
vida, tinha certeza disso.

Voltávamos e o Duque almoçava antes de começar a leitura


da tarde. Escrevia uma carta por semana para Anne e me
surpreendi quando escrevi a quarta. Quando estávamos satisfeitos,
o tempo passava sem que percebêssemos. A rotina, apesar de
cansativa, me agradava imensamente.

Em uma das tardes, logo após o almoço quando retornei ao


quarto, o Duque me interpelou.

— Sabe jogar xadrez, Senhorita Winslet? – Ele quis saber.

Fechei o livro e o fitei.

— Sei, mas não muito bem...

— Perfeito – ele girou a cadeira em direção à porta —, há um


tabuleiro na sala adjacente a esta, e deve estar entediado por há
muito tempo não ser manuseado.
— Como quiser – coloquei o livro sobre o móvel e empurrei
sua cadeira até lá.

O lindo tabuleiro estava sobre uma mesa solitária em um


canto. As peças feitas de madeira em preto e marrom brilhavam
quando parei a cadeira de rodas bem em frente e os olhos do
Duque brilharam de satisfação. Puxei uma cadeira e começamos a
jogar. E era óbvio que nas primeiras vezes ele venceu, eu não
estava acostumada às regras e precisaria de tempo para voltar a
jogar como antes. Embora eu tivesse que admitir que nunca fui uma
boa jogadora.

O Duque ria a cada vitória. Era impressionante como ele se


tornava bonito quando estava satisfeito ou feliz. Os olhos azuis se
estreitavam e brilhavam de uma forma intensa. Além disso, ele tinha
o sorriso perfeito e sedutor. Fiquei imaginando quantas mulheres
não se apaixonaram por aquele sorriso.

— Precisa treinar mais, Senhorita Winslet. – Ele me


aconselhou.

— Tenho que admitir que sou uma péssima jogadora.


Acredito que ninguém na história da Inglaterra levou cinco xeque-
mates em menos de três horas.

— Não está perdendo para me agradar, não é? – Ele


perguntou desconfiado.
— Vossa Graça me ofende fazendo tal pergunta – respondi e
ele sorri satisfeito.

— Aprendeu a jogar com suas irmãs? – Ele quis saber.

— Sim. Passamos um tempo na casa de meu tio Rickman


Winslet e ele tinha um enorme tabuleiro de cristal que
costumávamos jogar quando ele não estava em casa – confessei.

— Então tem o costume de mexer nos pertences dos outros?


– Ele perguntou com bom humor. — Vou anotar tal atitude.

Não consegui deixar de rir e ele também. Então foi naquele


momento, entre o jogo de xadrez e seus primeiros comentários
simpáticos que eu senti meu coração bater mais forte ao fitá-lo. Ele
não era apenas bonito, mas sabia ser agradável. E estava sendo
comigo como não era com o restante dos empregados.

Eu me ergui depressa tentando esconder a forte emoção que


me tomou.

— Deve estar com fome – comentei indo para trás de sua


cadeira. — Vossa Graça não se alimenta desde a hora do almoço.

— O tempo passou e sequer notamos. – Ele comentou


enquanto eu colocava a cadeira em movimento.

Olhei para ele. Minha boca secou sob aquele olhar intenso.
Desviei o olhar para a porta e o deixei no quarto para buscar seu
chá da tarde.

— Pensei que ele a tivesse proibido de comer esta tarde. –


Terence comentou quando entrei na cozinha.

A bandeja para o chá estava pronta.

— Deixe-me colocar chá quente, esse esfriou. – Ela avisou e


foi trocar a xícara de porcelana pintada à mão por um famoso
artista.

Era engraçado como os nobres se atentavam para aqueles


detalhes. Porcelana cara, uma roupa feita por um alfaiate famoso.
Tudo para eles precisava de destaque para ostentar o que
possuíam, para dizer que podiam mais que os outros. Contudo, no
fundo, eram como nós os plebeus. O Duque era a prova disso. Seu
dinheiro não podia lhe devolver o movimento das pernas ou a
felicidade de viver.

Ela devolveu a xícara.

— Não vai comer nada? – Ela perguntou preocupada.

— Estou sem fome – respondi.

— Deveria se alimentar melhor, Daisy. – Ela me aconselhou.

— Eu estou bem – garanti e peguei a bandeja e fui para o


quarto do Duque.
Quando entrei Thomas estava falando com ele. Coloquei a
bandeja sobre a mesa diante da janela e me afastei para a porta.

— Senhorita Winslet. – O Duque me chamou.

— Sim, Vossa Graça. – Eu me voltei e caminhei até eles.

— Acredito que isso é para a senhorita. – Ele aponta o


envelope nas mãos de Thomas.

Noto a tensão no rosto de Thomas e pego o envelope


abrindo-o depressa, mas dou as costas para eles. É uma nota de
Anne. Levo a mão aos lábios enquanto leio.

— Aconteceu algo grave? – O Duque perguntou preocupado.

— Minha mãe não está bem – eu me volto para ele —,


parece que sofreu um desmaio e desde então sofre de febres altas.
Meu irmão decidiu me avisar porque não acredita que ela sobreviva
mais que alguns dias.

Engulo em seco. Não quero chorar ou me desesperar. Mas


meu coração se encolhe.

— Providencie a carruagem para que leve a Senhorita


Winslet, Thomas. – O Duque ordena imediatamente.

— Sim, Vossa Graça. – Thomas faz reverência e sai em


seguida.

— Não é necessário – digo.


— Não seja orgulhosa ou burra! – Ele diz ríspido —, acaso
vai a pé?

Claro que eu não poderia ir a pé. Não queria deixar meu


trabalho, mas uma situação como aquela exigia minha atenção.

— Além disso ainda não recebeu todo o seu salário. – Ele


observou. — Thomas vai lhe pagar por essas três semanas para
que possa usar o dinheiro caso seja necessário.

Três semanas. Isso significava que estávamos entrando em


dezembro. Eu mal vi o tempo passar. Estava adorando meu trabalho
e queria voltar.

— Farei de tudo para não me ausentar muito tempo – falei


ansiosa.

Por que estava com medo que ele desse meu emprego a
outra pessoa? Balancei a cabeça tentando recuperar a ordem dos
pensamentos. Estava apenas abalada com o estado de saúde de
minha mãe. Ficamos nos encarando um longo tempo e meu coração
bateu mais forte. E sinto que bateria assim toda vez que o fitasse.

— Fique o tempo que precisar. – Ele falou e girou a cadeira


em direção à mesa.

— Obrigada, Vossa Graça. – Eu disse e saí do quarto


depressa.
Podia jurar que quando saí ouvi a bandeja ser jogada no
chão. Fiquei imaginando por que ele estaria tão nervoso a ponto de
agir daquela forma estúpida outra vez. Com certeza, em sua
arrogância, ele não aceitava que seus empregados tivessem
problemas pessoais e minha saída mudaria sua rotina.

Mas eu precisava ir, minha mãe precisava de mim. Embora


aquela ansiedade em ficar me tomasse.
Capítulo 9

Minha mãe não estava nada bem e por dias tememos por sua
vida. Vê-la deitada frágil em sua cama e receando pela própria
morte me deixou muito preocupada. Felizmente a febre baixou e
meu irmão considerava que um milagre acontecera.

— Não irei tão cedo. – Adelina Winslet disse com orgulho de


si mesma quando meu irmão Quentin a examinou e constatou que
ela estava bem.

— Pelo visto não vai mesmo – Quentin sorriu satisfeito e


olhou para mim e Anne —, podem ficar felizes, sinto que a Senhora
Winslet passará mais um natal conosco.

Sorrimos um para o outro e eu e Anne deixamos o quarto


enquanto meu irmão terminava de conversar com minha mãe. As
crianças brincavam ao redor da enorme árvore de natal: Bryan e
Adam riam com Elsie, encantados com os enfeites de natal.
Bryan era loiro como minha cunhada Anne, tinha a beleza
angelical de sua família. Contudo Adam lembrava muito ao pai dele,
meu falecido primo Travis Winslet. O mesmo sorriso e a beleza de
Travis foram moldadas no rosto de nosso pequeno e inocente filho.
Fiquei sentada na cadeira olhando para ele um longo tempo
enquanto Anne ajeita algumas coisas na cozinha.

Eu gostaria de ter sido uma boa mãe para ele. Mas o destino
quis que ele se tornasse filho de meu irmão, para ter um futuro mais
digno e honrado do que o estigma de bastardo, resultado de um ato
impróprio e desumano. Era um segredo que juramos guardar para
sempre, eu, Anne, Quentin e minha mãe. Morreríamos sem deixar
que Adam soubesse como ele fora concebido. Pensaria ser o irmão
gêmeo de Bryan.

— Não tivemos tempo para conversar. – Anne comentou. —


Desde que chegou velou por sua mãe todos os dias.

Era verdade. Fiquei tão preocupada que não permiti que


outra pessoa cuidasse dela. Quentin tinha seus compromissos e
não podia ficar o tempo todo com ela. Por isso, me despus a cuidar
como merecia. Minha mãe fez tanto por nós, sua história não fora
fácil depois da morte de meu pai. Mas ela nunca desistiu e nos
ensinou que a honra era o único caminho a seguir. Eu apenas
buscava a minha.
— Sim. – Eu me ergui e fui para perto dela.

Poderiam passar cem anos e eu não me acostumaria a ver


Anne, a filha de um Conde, cozinhando como nós plebeus. Mas ela
estava feliz. Desde que ela e meu irmão se casaram a vida da
jovem Lady mudou completamente e ela se tornara a esposa de um
médico, mãe de dois filhos lindos aos quais cuidava com todo o
carinho do mundo. Eu sabia que Adam estava bem e seria feliz ao
lado daquela linda família. Mesmo que meu coração se encolhesse,
era o melhor. Não havia outro caminho.

— E como está o trabalho? – Ela perguntou enxugando as


mãos no avental.

Seus cabelos loiros estavam arrumados num coque e o


vestido azul a deixava mais bonita do que já era. Anne poderia estar
vestida com trapos que sempre seria atraente aos olhos de qualquer
um. Eu a adorava e era como uma irmã, tínhamos a mesma idade e
passamos por situações difíceis e ela me ajudou muito. Uma vida
toda não seria suficiente para agradecer sua benevolência em criar
meu filho como se fosse seu.

— Está bem. – Eu me aproximei e comecei a ajudá-la a


guardar as vasilhas que havia lavado no armário.

— Dizem que o Duque de Grafton é um homem insuportável


– comentou com bom humor.
— Ele consegue ser – admiti. — Nos primeiros dias foi difícil,
como eu lhe contei nas cartas. Ele me provocou até o último nível
para que eu pudesse partir. Mas lhe disse umas verdades e quando
pensei que estivesse tudo perdido, ele se simpatizou com o meu
trabalho.

— E como ele está? – Anne perguntou curiosa. — Lembro


que sempre foi um homem muito bonito, charmoso e sem dúvida
atraente.

Pensei no Duque e concordei com tudo que Anne disse. Mas


ele era mais que um homem belo, ele era forte e determinado.
Apesar de toda sua dor e amargura, nada parecia abalá-lo e ele
enfrentava a tudo com uma força incomum.

— Ele é... – pigarreei procurando a palavra certa. — Ele é um


homem agradável de se olhar.

Anne franziu o cenho para mim.

— Quem é agradável de se olhar? – Quentin perguntou


entrando na cozinha e roubando uma uva sobre o balcão para jogá-
la na boca.

— O Duque – respondi sem hesitar. — Estava contando para


Anne como foram os primeiros dias de trabalho.
— E está gostando? – Ele se aproximou de Anne e ficou de
frente para mim.

Meu irmão era parecido comigo, com exceção dos olhos. Os


meus eram escuros e grandes. Os dele eram pequeninos e
brilhavam toda vez que sorria.

— Estou – sorri com sinceridade. — Eu me encontrei


trabalhando para o Duque. Sinto que é minha missão ajudá-lo a
encontrar a paz que precisa.

— Tem que pensar se ele quer ter paz. – Quentin


argumentou.

— Todos precisamos de paz, Quentin – contrapus. — Ele


sofreu uma grande perda e ninguém lhe disse que ele não precisa
se afundar na própria dor.

— Temos a salvadora de moribundos. – Quentin debochou e


olhou para Anne. — Vou atender o Coronel Stewart, mas volto logo.

Eles sorriram um para o outro com cumplicidade.

— Está bem. – Ela concordou e o beijou no rosto antes dele


sair.

O amor deles era tão bonito de se ver. Era verdadeiro, forte.


Também nasceu em meio a tanta dor e eles se agarraram um ao
outro para sobreviverem na tempestade que os assolava. Durante
muito tempo, eu não acreditei no amor. Minha dor não me permitia
aceitar que ele existisse. Contudo, ao conviver com minha cunhada
e irmão, eu tive certeza que era impossível que o amor não
existisse.

Na verdade, tal sentimento intenso estava nas pequenas


coisas. Como no fato de que abri mão de ser mãe de Adam para
que ele tivesse uma vida melhor. Meu coração sangrava toda vez
que me recordava do sacrifício que tenho que fazer todos os dias
em deixá-lo para trás, mesmo sabendo que ele está bem e é
amado. Se isso não for amor, eu não sei que nome dar.

Por esses pequenos, mas tão intensos motivos, eu sabia que


o amor existia. E não tinha nada a ver com paixão. Era o ato de se
doar em nome de algo maior.

— E você vai ficar para o natal? – Anne perguntou tirando os


pães do forno e colocando sobre a bancada.

— Não, vou voltar. – Eu respondi e ela me fitou por cima do


ombro, surpresa. — Todos os empregados do Duque vão para as
festas com a família e ficarei com ele.

— Apenas vocês dois? – Ela inquiriu chocada.

— Sim, qual é o problema? – perguntei sem entender.


— Ele é um homem e você uma mulher, não é bom para sua
reputação que fique a sós com ele. – Ela me advertiu.

— É o meu trabalho, sou uma enfermeira, estou cuidando


dele – argumentei.

— Mas não é o que as pessoas comentarão com maldade! –


Ela me fez notar.

— Talvez em outras circunstâncias eu concordaria com você


– disse não querendo aceitar o óbvio: não era de bom tom que uma
mulher solteira ficasse a sós com um homem solteiro, mesmo que
fossem de classes diferentes e nunca houvesse a possibilidade de
ficarem juntos.

— E qual seria o empecilho para a maldade? – Ela se voltou


para mim com uma das mãos na cintura.

— Eu jamais... – Não consegui falar.

E Anne compreendeu.

— Perdoe-me – ela se aproximou de mim e segurou minha


mão —, fui extremamente indelicada ao dizer tais palavras. Esqueci
completamente de sua situação. Sinto muito.

— Não tem que lamentar – garanti com um sorriso triste. —


Mas não há nada nesse mundo que faça com que eu permita que
um homem se aproxime de mim outra vez, Anne.
— Eu sei – ela respondeu depressa —, vamos esquecer esse
assunto. O importante é que faça seu trabalho e esteja feliz.

— E estou. Embora ele seja um homem amargo, sei que


posso ajudá-lo –– argumentei. — Por causa dos meus conselhos,
ele se mudou para o quarto do andar térreo e passeamos pelo
jardim todos os dias – um sorriso surgiu em meus lábios sem que eu
pudesse evitar —, ele voltou a jogar xadrez e a sair daquele castelo
que parece um mausoléu.

— Isso é maravilhoso! – Anne ficou feliz por mim.

— Claro que é! – apertei mais a mão de Anne. — Um dia


você me mostrou que seguir em frente valia a pena Anne e eu
acreditei. Voltei a estudar e me tornei uma enfermeira e desde que
coloquei os olhos em Hapton tenho certeza que é minha missão
ajudar esse homem.

— Dizem que foi um acidente de cavalo. – Anne comentou.

Não me senti no direito de desmentir. Se ele queria guardar o


segredo de que salvara a vida do irmão, eu o manteria. Tal atitude
apenas o fazia admirá-lo mais.

— Sim, foi o que aconteceu – afirmei.

— Deve ser muito triste. Ainda posso me lembrar dele


rodopiando pelos salões dos bailes com suas belas senhoritas nos
braços – Anne recordou-se —, e senhoras também. Todas as
mulheres eram loucas pelos irmãos Conway.

— Você não? – perguntei por simples curiosidade.

Ela sorriu e fez que não ao se afastar para tirar os pães da


forma.

— Eu estava de olho em outro Duque – falou amarga. — Mas


dos dois, infelizmente, eu teria prestado atenção em John Conway.

— Eu o conheci – contei. — Em muito ele me lembra Travis.

Ela me encarou por alguns segundos e meneou a cabeça.

— Pensando nos dois agora, sinto que tem razão – ela voltou
a atenção para os pães —, eles têm o mesmo jeito atrevido de ser.

— E o mesmo jeito de me olhar – contei sentindo um nó na


garganta.

— Ele fez alguma coisa com você? – Ela perguntou


preocupada.

— Não – assegurei para seu alívio. — Ele foi passar uns dias
em Hapton com uma convidada e se mostrou grosseiro. Mas o
Duque o cortou quando notou meu incômodo e me prometeu que
jamais voltaria a acontecer.

— James Conway sempre protegeu o irmão. – Ela comentou


me deixando interessada. — Desde muito cedo, eram um pelo
outro. Chegava a causar inveja essa cumplicidade exacerbada.

Tão forte ligação que James deu a vida pelo irmão. Não a
perdeu, mas não a vivia mais completamente.

— Enfim. John fazia a sujeira e James passava limpando –


continuou a contar. — John tem vários filhos espalhados por aí e
James sempre deu um jeito de resolver a situação de forma que o
irmão saísse ileso.

Exatamente o que Terence contara.

— De qualquer forma, ele me pareceu repugnante e o ouvi


dizer que vai para a América passar alguns anos por lá. Portanto
sinto que poderei trabalhar para o Duque em paz.

— Pretende ficar tanto tempo? – Ela sorriu satisfeita ao ver


minha determinação.

— Sim – meu sorriso sumiu —, infelizmente, não posso ficar


dentro da mesma casa que Adam e não ser sua mãe.

Havíamos discutido tanto aquele assunto. Ter meu filho por


perto sem poder ouvi-lo me chamar de mamãe era a morte para
mim. Eu teria inveja de Anne por ter essa sorte e por fim odiaria
minha cunhada. E nenhuma de nós tem culpa do que o destino nos
reservou. Apenas encontramos uma maneira de resolver tudo para
o bem das crianças e o bom nome de minha família.
— Eu sei. – Ela colocou um pão diante de mim. —
Experimente, tenho me aperfeiçoado na cozinha.

Eu sabia o quanto ela tentava ser uma boa mãe e cuidar da


casa. Havia minha mãe e Alene para ajudar. Gale estava casada e
morava longe e Jacklyn era freira e vivia reclusa.

— Quentin já ofereceu para contratar ajudantes – lembrei-a.


— Não precisa se matar de trabalhar.

— Vou deixar que ele faça isso depois das festas. – Ela
revelou. — Quanto mais as crianças crescem, mas tem ficado difícil
cuidar de tudo sozinha. E sua mãe, apesar de me ajudar bastante,
tem tido esses desmaios estranhos.

— Quentin disse que quer levá-la a um médico excelente


aqui em Oxford – comentei.

— Sim e esperamos que ele descubra o que está


acontecendo com ela.

A porta da sala se abriu e Alene entrou tirando suas luvas


enquanto sorria.

— Está muito frio lá fora? – Anne perguntou com carinho.

— Sim – ela sorriu e passou as mãos pelos cabelos claros —,


há um homem lá fora que deseja falar com você, Daisy.
— Comigo? – Eu estranhei antes de colocar um pedaço de
pão na boca.

— Sim, está em uma linda carruagem e seu nome é Thomas


Willer.

— O mordomo do Duque? – Eu me perguntei estranhando.


— Vou atendê-lo, eu já volto.

E pegando meu casaco ao passar pelo cabideiro, eu deixei a


casa.
Capítulo 10

Terminei de fechar o casaco e saí para encontrar Thomas me


esperando diante da carruagem.

— Senhor Willer. – Eu o cumprimentei fazendo mesura.

— Senhorita Winslet. – Ele se curvou levemente.

— Aconteceu alguma coisa?

— O Duque me pediu para vir até aqui e perguntar se ainda


tem interesse no emprego – informou.

Como o Duque ousava me questionar? Eu estava fora há


menos de uma semana e ele exigia que eu voltasse depressa?

— Claro que tenho – respondi.

— Ele pediu para avisá-la que está em Oxford, e a senhorita


deve imediatamente voltar ao trabalho. – Thomas me informou.
— Ele está em Oxford? – perguntei surpresa.

— Sim. Ele teve alguns assuntos importantes de negócios


para tratar e acreditou que assim, a senhorita poderia cumprir com
suas obrigações e aos mesmo tempo estar próxima de sua mãe.

Eu sequer sabia o que dizer ou o que pensar. Aquele homem


sabia como impressionar uma pessoa no seu modo mais egoísta de
ser.

— Está bem, eu voltarei amanhã – avisei.

— Perfeito – Thomas concordou —, mandarei a carruagem


vir buscá-la, visto que a propriedade do Duque fica do outro lado da
cidade, em Belford.

— Sim, como quiser – assenti.

Thomas entrou na carruagem e partiu. Fiquei olhando o


veículo desparecer na rua coberta de neve antes de voltar para
dentro de casa.

— Quem era? – Anne perguntou visivelmente curiosa.

— Thomas Willer, o mordomo do Duque – respondi me


aproximando dela. — Ele está em Oxford, mas exatamente em sua
propriedade em Belford.

— Belford? – Anne se surpreendeu. — É um lugar cheio de


propriedades caras.
— Não poderia ser diferente se tratando do Duque –
assegurei —, a verdade é que voltarei ao trabalho amanhã.

— Amanhã? – Anne arregalou os olhos claros com surpresa.


— Ele é realmente exigente.

— Sim, ele é – concordei encolhendo os ombros e fui me


sentar com Adam e Bryan para brincar com eles.

Mas não conseguia deixar de imaginar que tipo de negócio


fizera aquele homem sair de sua reclusão pela primeira vez em um
ano! De qualquer forma estava ansiosa para reencontrá-lo e voltar
ao trabalho. A verdade é que mal consegui dormir e quando a
carruagem chegou para me buscar, eu estava parada à porta
esperando.

A propriedade de Belford não era tão suntuosa quanto


Hapton, mas a mansão era tão grande quanto. Não havia o lago,
mas sim um belo jardim que embora estivesse coberto pela neve,
possuía caminhos pelos quais poderíamos passear. Thomas me
aguardava na porta quando a carruagem parou. Ele me ajudou a
descer e fui em direção aos fundos da casa.

— Senhorita Winslet – ele me chamou —, aonde está indo?

— Ora, para os fundos da casa entrar pela cozinha como os


empregados devem fazer.
— A volta é muito grande e o Duque está ansioso por vê-la. –
Ele avisou movendo as mãos para que eu o acompanhasse.

Resignada, eu o segui pela porta da frente. Passamos pelo


vestíbulo e ele pediu o meu casaco antes de seguirmos em frente.
Agradeci e notei que a casa era mais simples do que o castelo,
porém não menos suntuosa com seus detalhes em arte e móveis de
madeira maciça que reluziam de tanto que brilhavam.

— A Senhora Relish veio também. – Ele avisou enquanto


atravessávamos o imenso corredor de tapete vermelho.

— Oh, sim? – fiquei surpresa. — Imagino que deva ter sido


uma decisão de última hora, ele não comentou nada.

— Sim, foi. – Ele respondeu e abriu uma porta para que eu


entrasse.

Meu coração bateu mais forte ao vê-lo recostado nos


travesseiros lendo o jornal. Seu olhar arguto se ergueu para mim e
vi uma insatisfação única passar por seu semblante. Tinha certeza
que nenhum outro homem ficaria de mau humor mesmo quando
estava satisfeito.

Aproximei da cama escondendo meu sorriso de felicidade por


estar de volta e por ele me querer ali.
— Bom dia, Vossa Graça. – Eu me curvei levemente antes de
pegar a bacia e me aproximar da cama.

— Bom dia, Senhorita Winslet – respondeu deixando o jornal


de lado. — Como está a sua mãe?

— Ela melhorou, já não tem febre, mas não descobrimos o


que tem lhe causado o mal-estar – eu disse puxando os cobertores
—, e o senhor, como passou esses dias?

— Péssimo! – respondeu de mal humor. — Como acha que


passei enquanto você brincava de ser a boa filha?

Eu não contive o sorriso.

— Não seja ranzinza, é muito jovem para isso, Vossa Graça.


E eu estava cuidando de minha mãe!

— Mas eu também preciso de cuidados! – Ele argumentou.


— E ainda a pago para isso!

Apenas balancei a cabeça em alento. O mau humor dele


sequer me ofendia mais. Eu senti falta de estar ali, cuidando dele.
Estava feliz de novo e quando busquei seu desjejum, ele já estava
diante da mesa. Deixei a bandeja e fiz menção de ir para o outro
lado do quarto quando ele disse:

— Sente-se, Senhorita Winslet. – Ele mandou.

— Aqui? – apontei para a cadeira.


— Não, no chão! – Ele disse impaciente. — Claro que é na
cadeira!

Ele esperou que eu me sentasse antes de colocar o


guardanapo sobre o colo. Que homem grosseiro!

— Diga-me como foi seus dias cuidando de sua mãe – Ele


pediu.

Eu o olhei surpresa por querer saber sobre a minha vida.


Talvez ele quisesse apenas ser educado.

— Foi tranquilo – respondi.

— Apenas isso? – Ele ficou impaciente. — Não fez mais nada


além de cuidar de sua mãe?

— Oh, sim! Eu matei a saudade de minha irmã Alene –


contei.

— Quantas irmãs tem?

— Somos em quatro mulheres e um homem – respondi. —


Alene é a única que ficou em casa. Claro, além da pequena Elsie
que está com treze anos agora.

— Minha mãe se casou com meu pai quando tinha essa


idade. – Ele contou.

— Muito jovem, minha irmã ainda é muito infantil para


assumir a responsabilidade de uma família – observei com cuidado.
— Tenho certeza que minha mãe também era, mas entre as
famílias nobres não há muita escolha quando os pais decidem por
um casamento.

— Acredito que seja assim em qualquer nível social, Vossa


Graça – falei séria. — A mulher é vista pela família ou como um
investimento ou como um peso. E cabe a ela fazer o que querem ou
estar fadada ao esquecimento. E ninguém quer ser um peso ou um
problema para a própria família.

— Fala isso com conhecimento de causa?

— Oh, não! – sorri levemente. — Minha mãe jamais me


obrigaria a me casar com quem quer que fosse. Até mesmo meu
irmão mais velho. Tanto que minha irmã Jacklyn se tornou freira.

— Freira? – Ele se mostrou surpreso. — Em uma Inglaterra


protestante isso é uma surpresa.

— Sim, mas sempre foi o sonho dela e está feliz. É o que


importa.

— E a senhorita segue sendo feliz trabalhando como


enfermeira. – Ele deduziu.

— Muito – admiti e o sorriso se ampliou. — Eu gosto do que


faço, de ajudar as pessoas, de vê-las bem.
— Então o que faz por mim é um ato altruísta? – Ele
perguntou de bom humor.

A conversa estava tão agradável. Eu não queria que


terminasse nunca.

— Sim, eu faria por qualquer um – falei com sinceridade.

— O altruísmo é uma inclinação instintiva da qual nunca sofri.


– Ele apenas comentou o óbvio.

Depois do que Terence me contara, senti que não seria


mesmo. O Duque não conhecia o amor ou a benevolência. Fora
criado cercado pelo egoísmo e loucura de seu pai.

— Há tempo para tudo – cogitei.

Ele terminou de comer a uva e me fitou:

— Começo a acreditar que a senhorita tem uma forte


tendência a acreditar que o mundo é bom... – Ele falou com ironia.

— E não é? – retruquei.

Ele balançou a cabeça levemente e um sorriso surgiu no


canto de seus lábios.

— Infelizmente, Senhorita Winslet o mundo é intolerante e


desagradável. – Ele garantiu.
Meu coração acelerou quando ele disse tais palavras. Afinal,
um dia eu estive amarga como ele estava e sabia exatamente o que
se passava em sua mente e coração. Talvez em proporções maiores
ou menores, mas era o que eu sentia.

— Eu também pensava assim. – Eu disse com coragem.

O Duque ergueu uma sobrancelha e apoiou o antebraço


sobre a mesa para me encarar.

— Um dia eu também senti raiva do mundo e de tudo que me


cercava – falei de uma vez e minha boca secou.

Era muito atrevimento da minha parte igualar a minha dor a


dele. Acreditava que de todas as coisas ofensivas que disse a ele
no começo de nossa convivência e até mesmo palavras malcriadas
que escapavam dos meus lábios no decorrer da semana, aquela
última frase foi a mais forte e inesperada. Não sabia qual seria a
reação dele por estar sendo tão atrevida.

— E posso saber o motivo pelo qual odiou o mundo,


Senhorita Winslet? – Ele perguntou com sarcasmo.

Com certeza estava com raiva por meu atrevimento. Quem


era eu para dizer que nossas dores eram parecidas?

— Eu... – hesitei. — Não consigo falar sobre o que aconteceu


– admiti e fiz que não com a cabeça. — Mas posso lhe dizer com
toda a certeza do mundo, que me feriu de uma forma avassaladora,
a ponto de me fazer desejar a morte.

Seus olhos azuis brilharam surpresos. Tenho certeza que ele


sequer sabia o que dizer diante de minha confissão.

— E durante algum tempo eu me senti miserável – continuei


a falar já que ele permanecia em silêncio. — Mas então, minha
cunhada Anne entrou em minha vida e me fez enxergar que tudo é
passageiro e temos o direito de tentar ser feliz outra vez. Eu
acreditei e ao invés de tirar a minha vida, estou aqui.

Ele ficou ali olhando para mim, como se eu fosse um


fantasma.

— Temo em dizer que se tudo o que me diz é verdade,


Senhorita Winslet, a senhorita conseguiu um milagre.

Sei que minhas palavras mexeram com ele. Mas a culpa era
toda dele, eu apenas falei porque ele disse que queria conversar.

— Acho melhor levar a bandeja para a cozinha e voltar


depressa. Tenho algumas cartas para ditar – avisou, empurrou a
cadeira para trás e depois a virou em direção à escrivaninha.

— Sim, Vossa Graça. – Eu me ergui e fiquei olhando para


suas costas largas e que ainda carregavam o peso do mundo nas
costas, inclusive toda a dor por ter salvado a vida do irmão.
Queria falar mais, dizer a ele que ficaria tudo bem, mas havia
um limite entre o fato de eu ser apenas uma serva e ele o nobre.
Não era necessário ser amigo de alguém ou ter intimidade para lhe
dizer a verdade. Mas era necessário respeito e acredito que minhas
palavras aquela manhã foram suficientes.

Peguei a bandeja e deixei o quarto. Quando cheguei à


cozinha, a Senhora Relish sorriu com satisfação.

— Ou você é um anjo ou não sei o que é. – Ela disse para


minha surpresa.

— Por que está dizendo isso? – perguntei colocando a


bandeja sobre a mesa.

— O fato de o Duque ter saído de casa depois de tanto


tempo – ela comentou —, não sei o que fez naquelas três semanas
em que ficou com ele em Hapton, mas depois que se foi o humor
dele tornou-se mil vezes pior e acreditávamos que ele mataria
Thomas ou qualquer outro que se aproximasse daquele quarto que
não fosse você.

— O jeito de o Duque mostrar que está infeliz é esbravejando


– comentei.

— Mas posso dizer com toda a certeza do mundo que ele


nunca ficou tão insatisfeito como ficou quando você se foi...
— Deve ser porque sou a primeira cuidadora que não ligou
para a sua cara feia – brinquei e ri.

Ela sorriu também.

— Fico feliz que tenha dado certo no trabalho. – Ela


comentou pegando o bule de chá da bandeja e colocando sobre o
balcão. — O desfile de entre e sai de pessoas do castelo unido aos
comentários maldosos estava se tornando insuportável.

— As pessoas sempre têm que falar – eu comentei —,


principalmente falar mal. O ser humano tem prazer em destruir a
imagem de quem quer que seja. Como se fôssemos todos perfeitos
e não possamos cometer erros.

Ela me olhou com admiração.

— Fico feliz de ver alguém tão jovem com pensamentos tão


sábios. – Ela falou se voltando para mim.

— A vida ensina, Senhora Relish. Reclamar e lamentar


apenas nos atrasa para onde termos que chegar. E falar dos outros
nos impede de olhar para nós mesmos e sermos melhores – encolhi
os ombros —, foi o que aprendi.

— Um belo aprendizado. – A mulher garantiu.

— Tenho que voltar, ele quer que eu redija algumas cartas –


avisei. — Com licença.
Voltei para o quarto e ele já me aguardava impaciente.

— Posso apostar que estava na cozinha fofocando com a


Senhora Relish. – Ele falou assim que fechei a porta.

— Claro que sim – admiti para surpresa dele —, que graça


pode ter a vida se não fofocar? – perguntei com sarcasmo.

Roubei um sorriso dele antes de me sentar à escrivaninha e


ele começar a ditar suas cartas. De repente, eu senti que a voz do
Duque era melodia aos meus ouvidos.
Capítulo 11

Os passeios passaram a ser logo após o almoço. Ficou mais


confortável para o Duque e estava mais quente que as manhãs
geladas. Encontramos um banco de frente para o jardim e eu me
sentava nele enquanto o Duque parava sua cadeira ao meu lado. E
ali, no silêncio de nossas dores nós ficávamos contemplando a
bucólica paisagem.

— A senhorita disse certa vez que seu pai morreu quando


ainda era muito jovem – comentou. — Recorda-se dele?

— Muito pouco, apenas o quanto ele era indiferente a mim ou


as minhas irmãs. Com Quentin ele sequer falava...

— Outro dia estava tentando lembrar de minha mãe – ele


ficou sério e olhou para o jardim enquanto eu observava seu perfil
bonito —, ela morreu muito jovem.
— Mães são seres especiais – constatei com carinho.

— Lady Conway era graciosa – comentou se lembrando. —


Delicada, pouco falava, foi educada para ser a esposa de meu pai.
Eles foram prometidos quando a minha avó engravidou dela.

— Mesmo? – fiquei surpresa.

— Meu pai tinha dezoito anos. Ele esperou que ela


completasse quatorze e a desposou – relatou com certa amargura.

— Creio que isso o incomoda...

Ele me olhou perplexo por eu notar seus sentimentos com


relação ao assunto.

— Ela era uma criança, o que sabia da vida? Meu pai tinha
trinta e dois anos. Acredito que ela engravidou logo para ter ao que
se apegar.

— Nós plebeus olhamos a vidas dos nobres e pensamos que


por terem dinheiro e status são felizes – comentei.

— Ledo engano, Senhorita Winslet. Qualquer pessoa que


venha a esse mundo, rica ou pobre, está fadada a encontrar o
sofrimento de alguma forma. – Ele observou pensativo.

— Sim – concordei. — Importa-se de me contar o que houve


com sua mãe? – perguntei com certo receio.
Esperava que ele fosse negar, mas de repente, ele parecia
ansioso para falar sobre isso, como se buscasse uma brecha para
colocar para fora. Seus olhos estavam tristes.

— Ela se apaixonou pelo cocheiro e quando meu pai


descobriu o caso deles, o matou. Minha mãe se matou no dia
seguinte – falou sem emoção na voz. — Eu tinha sete anos e a
encontrei morta no próprio quarto.

Senti um aperto no peito e pensei naquele garotinho de sete


anos que amava a mãe e a viu morta, sem poder ajudá-la ou trazer
de volta à vida. Meu querido Duque jamais superaria tal trauma.
Ninguém poderia. Uma morte simples já era sufocante, imagine uma
trágica e da pessoa que você mais amava no mundo.

Não me contive e segurei sua mão sobre o braço da cadeira.


Ele olhou para as mãos unidas e senti toda a tristeza do mundo por
ele. Eu queria mais que tocar sua mão, almejava abraçá-lo e dizer
que sentia muito. De verdade. Lágrimas arderam em meus olhos e
então notei que estava fora de mim. Tirei a mão da sua e fiquei sem
fala por alguns segundos sentindo minha pele queimar pelo contato.

— Perdoe-me, eu não queria tomar tamanha liberdade. – Eu


me desculpei.

— Não precisa sentir pena, Senhorita Winslet. Eu não preciso


dela. – Ele disse seco.
— Não estou com pena, Vossa Graça. Mas se eu tivesse
perdido minha mãe da forma como perdeu a sua, estaria
dilacerada...

Respirei fundo e me ergui antes que ele fizesse algum


comentário malcriado como era de costume.

— Vamos andar mais um pouco?

— Gostaria que me levasse ao estábulo. – Ele pediu.

— Estábulo?

— Pedi que trouxessem meu cavalo, vou montá-lo...

— Montar?

— A senhorita ficou burra ou sofre de algum mal que repete


tudo que digo? – perguntou impaciente —, empurre a cadeira, estou
com pressa – mandou.

Comecei a empurrar e perguntei:

— Pensei que não pudesse cavalgar – comentei.

— Diziam que eu não podia, mas antes da senhorita vir a


trabalhar em minha casa, recebi a visita de um treinador de cavalos
que ajuda pessoas com deficiência, seu nome é David Masterson –
contou.

— Mesmo? Vossa Graça não comentou nada...


— Não estava entusiasmado com a ideia – explicou enquanto
eu empurrava a cadeira em direção à edificação de madeira escura.
— Mas recebi a carta de um tal de William Macquinn. Ele é escocês,
tem as mesmas limitações que eu, e através do auxílio de
Masterson ele voltou a cavalgar normalmente.

— Fico feliz que esteja tentando sair de dentro do quarto –


comentei.

— Se puder cavalgar já será o suficiente para que eu fique


satisfeito nessa vida – ele comentou —, era o que eu mais gostava
de fazer.

— Nunca cavalguei antes – comentei.

Ele me olhou por cima do ombro.

— Como pode passar uma existência sem cavalgar,


Senhorita Winslet?

— Fui criada na cidade – encolhi os ombros e meneei a


cabeça. — E gosto de caminhar.

— Pois terá que aprender a cavalgar agora que é minha


cuidadora. – Ele sentenciou.

— Eu?

— O que a senhorita tem hoje? Parece que não está ouvindo


bem! – Ele até riu da situação.
Chegamos ao estábulo e um homem alto e bem-apessoado
veio nos cumprimentar.

— Senhor Masterson, esta é minha cuidadora Senhorita


Winslet. – Ele nos apresentou.

Pensei que o Senhor Masterson fosse um homem mais


velho, mas não deveria ter mais que uns vinte e poucos anos. Tinha
os cabelos castanhos brilhantes, os olhos eram de um castanho
claro quase verdes e seu sorriso era simpático e bonito. No
conjunto, era um homem agradável de olhar.

— Como vai, Senhorita Winslet? – Ele moveu a cabeça


levemente.

— Bem, e o senhor?

— Estou ótimo. – E ficou olhando para mim de forma intensa


e interessada.

Fiquei constrangida e então olhei para o Duque que nos


observava.

— Vamos começar? – Ele perguntou com uma frieza ímpar


que eu conhecia tão bem.

— Sim, Vossa Graça. – O rapaz voltou a atenção para o


Duque.
Nas horas seguintes, eu fiquei sentada em um banco do
estábulo repleto de baias vazias. Apenas cinco cavalos as
ocupavam. E um deles era um belo Puro Sangue de pelo brilhoso
que me fazia ter vontade de tocá-lo. Tinha a impressão que os pelos
do animal eram mais bem cuidados que os meus cabelos.

Masterson ajudou o Duque a montar juntamente com


Thomas. Ele gemeu quando foi colocado sobre a sela e tiveram que
passar sua perna por cima do cavalo para atrelá-la à sela de forma
que ele não caísse. Podia ver que ele estava suando e sentia dor,
tive vontade de mandar que parassem, que o deixassem descansar.
Mas ele era forte e aguentou toda a tortura até ficar ereto sobre a
sela enquanto o treinador lhe passava um grosso cinto em volta dos
quadris e barriga que era preso por tiras na sela.

Então depois de todo esse trabalho ele deu os primeiros


passos com o cavalo.

— Os comandos passam a ser sob o som de sua voz. –


Masterson explicou a ele. — Use o chicote apenas quando cavalo o
colocar em perigo.

— Sim. – O Duque gemeu.

Ele aguentou os primeiros passos de seu cavalo dentro do


estábulo mesmo, porém acabou pedindo para ser tirado. Eles o
fizeram com cuidado e o colocaram na cadeira de rodas.
— Amanhã tentarei de novo. – James avisou.

— Como quiser – Masterson se curvou levemente e olhou


para mim —, Senhorita Winslet. – Ele despediu-se curvando a
cabeça e me olhando mais do que era permitido.

Acenei com um leve mover da cabeça e ele se foi. Thomas


começou a empurrar a cadeira.

— Amanhã a senhorita também vai montar – o Duque me


avisou —, e não há outra senhorita aqui, portanto não pergunte: eu?
– Ele falou com certo deboche.

Eu senti o medo me tomar: e se eu caísse de cima do cavalo


e me ferisse? De longe esses animais eram lindos e atraentes, mas
de perto me faziam sentir as pernas fraquejarem.

— Não sei se é uma boa ideia, Vossa Graça.

— Por que não?

— Acredito que darei trabalho, eu sinto medo – respondi.

— Então deixaremos algo bem claro entre nós, Senhorita


Winslet: se a senhorita não tentar, eu também não tentarei! –
chantageou.

— Isso é um absurdo! O senhor não pode deixar de fazer o


que deseja por minha causa! – tentei não aceitar aquela imposição.
Não tinha o menor sentido.
— Está avisada! – Ele não retrocedeu.

— Mas, eu sequer tenho vestimenta apropriada! – tentei


justificar.

— A senhorita é minha cuidadora, tem que me acompanhar


onde quer que eu vá! – ele seguiu falando —, então uma das
exigências é que cavalgue!

Respirei impaciente.

— Não pode me obrigar a fazer algo que não almejo! –


respondi petulante.

— Mas não estou obrigando-a a nada! – Ele falou como se


fosse o ser mais inocente do mundo. — Apenas disse que se não
fizer, eu também não farei!

— Há momentos em que o senhor me dá nos nervos! –


reclamei.

— Acostume-se, tal atitude me dá prazer! – Ele sorriu e


Thomas seguiu empurrando-o enquanto eu parei alguns instantes
para recuperar o fôlego.

Homem insuportável! Não queria cavalgar, mas ele me


colocava em uma situação complicada e constrangedora e ainda
tinha prazer nisso! Eu os segui e logo estávamos no conforto do
quarto.
— O que vamos ler hoje? – Eu perguntei.

— Por que a senhorita não escolhe? – James disse para


minha surpresa. — Dessa vez permito que escolha algo
interessante do seu gosto e leia para mim.

— Não sei se meus gostos o agradariam – comentei sem


graça.

— Se eu me enfadar pode apostar que a mandarei se calar. –


Ele avisou. — Vá até a biblioteca, ou melhor – ele olhou para
Thomas que ainda estava no quarto —, acenda a lareira da
biblioteca, eu e a Senhorita Winslet faremos a leitura lá.

— Sim, Vossa Graça. – Ele disse e se retirou.

— Tem uma biblioteca em cada propriedade que possui?

— Sim. – Ele admitiu e sorriu. Não sabia se estava brincando


ou falando sério.

— Já leu todos os livros? – perguntei com deboche.

— Claro que não, mas muitos deles. A biblioteca é a alma de


uma casa, todos deveriam ter uma.

Eu queria bater palmas de felicidade por ouvir tais palavras.

— Livros são caros, Vossa Graça. Sequer todos têm o prazer


de comprá-los. Ainda mais em uma sociedade em que ler e escrever
é a vantagem de poucos – discursei.
— Mas me diga a verdade, há prazer maior do que estar
dentro de uma biblioteca? – Ele perguntou com um sorriso
devastador que fez meu coração acelerar.

Até mesmo esqueci de nossa peleja por causa de cavalgar


ou não.

— Não! – admiti e levei as mãos à boca para rir com vontade.


— Uma biblioteca pode roubar o coração de uma pessoa
completamente.

Ele moveu a cabeça interessado em minhas palavras.

— Roubaria o seu, Senhorita Winslet?

— Oh, sim! Mais que qualquer outra coisa. Eu poderia morar


dentro de uma biblioteca que não reclamaria nenhum pouco!

— Vejo que realmente tem paixão por livros! – Ele observou


admirado.

— E com não ter, Vossa Graça? – Eu me sentei na cadeira


ao lado dele. — Através de um livro conhecemos mundos
diferentes, histórias maravilhosas que nos são contadas por
pessoas especiais.

— Pelo visto a senhorita admira o trabalho de um bom


escritor – comentou.
— Oh, sim! E muito. Deve ser fantástico sentar-se à frente de
uma mesa e junto de sua caneta e papel descrever situações
maravilhosas que eu jamais imaginaria – falei empolgada. — E os
filósofos? Pensamentos inteligentes que nos fazem questionar
nossas razões e a própria existência! Há algo mais sublime que
isso? Se há por favor me conte, eu nunca vi! Ou ouvi falar!

— Suas palavras são contagiantes, Senhorita Winslet.


Jamais conheci uma pessoa que fosse tão apaixonada por livros!

— E como não ser? Os livros são distração, mas ao mesmo


tempo me deram força para seguir em frente, me faziam sentir
menos miserável!

Ele ficou me olhando de uma forma diferente, quase fraternal


e disse:

— O que quer que tenha lhe acontecido, a senhorita venceu.

— E que escolha eu tinha? – perguntei e me ergui.

Podia passar o tempo que fosse, eu jamais estaria preparada


para falar sobre tal assunto. Era melhor deixar no ar. Apenas por ele
admirar minha superação, eu sabia que meu trabalho estava sendo
bem feito. Que ele podia se espelhar em mim para seguir em frente
e recomeçar sua vida. Ele era jovem e merecia ser feliz.
— Vou escolher um livro bem interessante para lermos –
prometi e fui para trás de sua cadeira empurrá-la.

— Espero que não seja um romance bobo. – Ele avisou.

Eu ri com vontade.

— Eu não o ofenderia dessa forma, Vossa Graça.

Fomos para a biblioteca e Thomas nos deixou a sós.

— Pode me ajudar a sentar-me na poltrona? – Ele pediu.

Deixei o livro sobre a mesa de centro e fui ajudá-lo. O Duque


nunca pedia auxílio, ele apenas se movia e eu já sabia do que ele
precisava. Estávamos avançando em sua boa educação. Talvez ele
apenas estivesse mostrando quem realmente era. Abaixei para
passar o braço por debaixo de seus braços e ficamos com o rosto
de frente um para o outro.

Foi uma sensação estranha, senti como se meu estômago se


encolhesse e eu me perdesse no brilho daqueles olhos azuis.
Aquela nova sensação foi mútua, mas despareceu quando terminei
de ajudá-lo e me voltei para pegar o livro e sentar na outra ponta.

— Está bem acomodado? – perguntei preocupada.

— Estou bem assim.

— Quer que eu buque o cobertor? – indaguei.


— Não é necessário – ele garantiu —, agora sente-se e
comece a ler.

Eu o fiz. O pior de todas as coisas era saber que estava


gostando de lidar com o mau humor dele. O terrível foi a voz da
minha consciência me dizendo que eu estava me sentindo muito
bem ao lado do Duque e um estranho sentimento nascia em meu
peito.
Capítulo 12

O café da manhã foi tranquilo até que Thomas me segurou


na cozinha e me disse que havia algo para me dar.

— Para mim?

— Sim, senhorita – fomos até a sala de estar e ele me


entregou um pacote.

— É um presente do Duque. – Ele me avisou.

Olhei surpresa para ele e meu queixo caiu.

— Presente? – Eu peguei e olhei o pacote que não era


pequeno.

— Quer abrir? – Ele apontou para a mesa. — Acredito que


vai ser útil hoje mesmo.

— O que é? – perguntei me aproximando da mesa e abrindo


o pacote. Não poderia ficar mais maravilhada ao ver a linda bota de
couro de cano alto. Eu jamais tive uma, eram caras e nunca havia
dinheiro para comprar para todas as filhas.

E em seguida peguei no vestido de montaria. Era num tom de


verde, minha cor preferida. Meus dedos deslizaram pelo tecido
macio e eu não contive o sorriso de satisfação.

— O que achou? – Thomas quis saber.

Eu controlei as lágrimas. Não era pelo presente, era pelo ato


de altruísmo e vindo de um homem tão egoísta e arrogante, eu me
sentia querida. Olhei para Thomas:

— É o presente mais lindo que já ganhei! – falei com


sinceridade.

Não era pelo valor, mas pela atitude.

— É melhor se vestir, o Duque quer cavalgar mais cedo hoje.

— Mesmo? Ele não disse nada...

— Tenho certeza que ele não diria – garantiu.

Ou seja, se fora Thomas a me entregar o presente era


porque o Duque não queria agradecimentos e me ver toda boba.

— Vou me vestir – avisei e fui para a cozinha pedir a ajuda da


Senhora Relish. — Poderia me ajudar, os botões são nas costas,
por favor.
— Claro que sim. – Ela sorriu e me acompanhou até o quarto
dos empregados.

Apesar de ter menos saias que os outros vestidos, não era


menos complicado de se vestir. A Senhora Relish fez uma trança
em meus cabelos e então me olhei no espelho.

— Está perfeita, Senhorita Winslet! – Ela elogiou.

Vesti as luvas de couro e me fitei surpreendida com o


resultado. Nada que um bonito vestido e cabelos arrumados não
pudessem mudar a aparência de alguém. Tinha que admitir que
jamais estive tão arrumada.

— Obrigada – agradeci constrangida.

Saí do quarto e fui encontrar-me com o Duque que já me


aguardava na entrada da casa.

— Perdoe-me pela demora – eu me desculpei —, mas


precisei de ajuda para me vestir.

Quando parei o olhar nele, notei que me fitava como se


nunca tivesse me visto antes. Os lábios estavam entreabertos e
seus olhos arregalados. Olhei para mim mesma e perguntei:

— Há algo errado?

— Não – ele soltou a respiração de uma vez e franziu a testa


—, está muito bonita, Senhorita Winslet.
Olhei para ele, constrangida. Sabia que um elogio vindo
daquele homem significava muito. Fiquei sem reação e olhei para as
minhas mãos em busca de qualquer palavra, mas sequer um
obrigada eu conseguia emitir.

— Pelo visto a senhorita não tem o costume de receber


muitos elogios – comentou com sarcasmo.

Eu o fitei e encolhi os ombros:

— Da mesma forma que o senhor não gosta que agradeçam


pelo presente que dá – retruquei.

Roubei um sorriso bonito de seus lábios mais uma vez. Eu


havia perdido as contas de quantos sorrisos ele dava para mim.
Estava ficando mais à vontade na minha companhia e aos poucos
mostrava seu lado bom.

— Acredito que deva ter gostado – ele me olhou dos pés à


cabeça provocando um arrepio em meu corpo quando nossos
olhares se encontraram —, está usando.

— A verdade é que nunca ganhei algo tão bonito – disse


sincera. — Não sei como expressar minha gratidão, Vossa Graça.

Vi que ele engoliu em seco e forçou um sorriso, como se


estivesse constrangido com minhas palavras:
— Aprenda a cavalgar e será o suficiente – afirmou. —
Vamos?

— Claro. – E comecei a empurrar a cadeira dele.

Quando chegamos ao estábulo, o Senhor Masterson nos


aguardava com seu sorriso jovial e energia de quem está disposto a
trabalhar o dia todo. Thomas também já aguardava e começaram o
trabalho para colocar o Duque sobre o cavalo. Novamente,
Masterson colocou a enorme cinta no abdômen do Duque e a
prendeu na frente e atrás da sela para garantir a estabilidade. As
botas foram amarradas ao estribo. Depois de um longo tempo, o
Duque conseguiu ficar ereto, mesmo comprimindo os lábios pela
força que fazia. Mas ele se manteve firme e não reclamou.

— É a sua vez. – Ele olhou para mim.

Masterson trouxe um cavalo amarelo, bonito.

— Aproxime-se dele – Masterson indicou —, deixe que ele


sinta seu cheiro e se acostume com a senhorita.

Ele fez menção de pegar minha mão, mas eu a tirei depressa


e o fitei tensa.

— Por favor, não me toque – pedi com certa rispidez.

Masterson ficou um tanto constrangido.

— Eu peço desculpas. – Ele se afastou um pouco.


Deslizei a mão no pelo macio do animal e sorri. Depois deixei
que ele cheirasse minha mão e se acostumasse comigo e gostei de
estar perto dele, era manso e me fazia bem.

— O nome dele é Horse. – O Senhor Masterson me avisou.

— Um cavalo que se chama Horse? – Eu ri.

Ele também riu para mim.

— Não é nada original. – Ele sibilou.

— Ou talvez seja – argumentei e o olhei.

Os olhos dele brilhavam sobre mim e desviei o olhar.

— Monte, Senhorita Winslet – o Duque disse impaciente —,


não temos o dia todo!

— Sim, Vossa Graça – respondi e respirei fundo buscando


paciência. Subi na escanda e sem dificuldade alguma montei de
lado e me ajeitei na sela. Apesar de não ter feito isso antes, cansei
de ver as outras senhoritas fazendo. Não era tão difícil assim.

O Duque saiu num galope devagar e eu o segui para fora do


estábulo. Ele estava sorrindo e o vento bateu contra os seus
cabelos e também sorri ao vê-lo feliz. James esqueceu que eu
estava ao lado dele e seguiu pela trilha aberta até chegarmos ao
campo. Senti que ele não havia corrido com o cavalo porque ainda
se sentia inseguro. Imagino que não deveria ser fácil se manter
estável sobre a sela sem o apoio das pernas.

— Não há nada melhor no mundo do que cavalgar. – Ele


falou respirando fundo e parando o cavalo para vislumbrar o campo.

O sol entre as nuvens batia de leve sobre a relva, mas logo


desapareceu. Cavalgamos mais um pouco e então e ele decidiu
voltar.

— Está gostando do passeio? – Ele quis saber.

— Talvez eu tivesse que ter aprendido a cavalgar antes –


comentei. — É adorável.

— Melhor que livros? – Ele debochou de mim.

— Não – sorri tímida.

Ele sorriu com charme.

— Mas está gostando?

— Muito, obrigada – agradeci outra vez e ele me encarou por


alguns instantes fazendo meu coração acelerar.

Desviei o olhar para as rédeas e o segui de volta ao estábulo.


Enquanto eu desmontava, o Senhor Masterson e Thomas tiraram o
Duque e voltamos para casa em silêncio.
— Vou me trocar, eu já volto – avisei e fui para os fundos da
casa onde poderia entrar pela cozinha.

Mas a verdade era que eu precisava de alguns segundos


sozinha. O olhar do Duque quando voltávamos do campo mexeu
comigo de uma forma que eu não sabia explicar. Ao mesmo tempo
que eu acreditava que não era de bom tom que ele me olhasse
daquela forma, também queria que me fitasse novamente me
fazendo sentir especial.

— Não faça isso, Daisy! – eu disse a mim mesma —, você é


apenas a cuidadora desse homem!

Respirei fundo e entrei na casa. A Senhora Relish me ajudou


a tirar o vestido e quando voltei para o quarto já trazia a bandeja de
com o almoço do Duque.

— A senhorita já almoçou? – Ele quis saber.

— Não, Vossa Graça – respondi. — E o farei quando


devolver sua bandeja.

— Então busque seu almoço e coma aqui comigo. – Ele


mandou.

— O que disse? – perguntei dando um passo para ele.

— Se a senhorita soubesse como me irrita essas perguntas


quando lhe dou uma ordem! – falou impaciente. — E tenho certeza
que me ouviu bem, vá e pegue suas coisas e traga para almoçar
comigo!

— Não sei se seria prudente, Vossa Graça.

— Quem decide o que é prudente em minha casa, sou eu! –


Ele falou ríspido. — Faça o que pedi!

— Está bem – concordei e saí.

Quando cheguei à cozinha, Thomas e Abigail almoçavam


tranquilamente. Em silêncio e constrangida pelos olhares que eu
receberia, peguei meu prato e me servi antes de pegar outra
bandeja e colocá-lo em cima.

— Vai a algum lugar? – A Senhora Relish quis saber.

— O Duque quer que eu almoce com ele – contei tão


constrangida que senti meu rosto ficar vermelho de vergonha.

— E por que ele faria isso? – Ela perguntou perplexa. — Ele


jamais nos convidou para tamanha intimidade!

Ela apenas piorava a minha situação. O que queria que eu


dissesse?

— Ele não me deu escolha – salientei.

— E como dono da casa, ele pode fazer o que aprouver. –


Thomas olhou para Abigail de forma reprovadora e ela se calou.
Depois olhou para mim. — É melhor ir antes que a comida dele
esfrie. E sabemos que ele não é tolerante com comida fria.

— Sim, senhor – acatei, peguei minha bandeja e saí.

Cada vez mais o Duque me colocava em situações


constrangedoras. Mas talvez eu tenha criado essa situação quando
o tratei com descortesia, lhe dizendo algumas verdades e isso abriu
precedentes para liberdades maiores. E era inevitável admitir que
com o passar das semanas, eu ficava mais afeiçoada a ele. Por sua
história, por ter salvado a vida do irmão e por saber que ele não era
de tudo ruim. Havia uma parte boa ali em sua alma ansiosa por sair
e eu estava disposta a ajudá-lo.

Voltei para o quarto e deixei a bandeja sobre a mesa antes de


me sentar.

— Assim está melhor. – Ele falou sério. — A partir de agora,


fará suas refeições comigo.

Coloquei o lenço sobre meu colo e o fitei sem poder acreditar


em suas palavras.

— Talvez seus empregados possam interpretar tal atitude de


maneira equivocada – apontei.

— Equivocada? – Ele franziu o cenho e ergueu uma


sobrancelha. — Seja mais específica em suas palavras.
— Ora, Vossa Graça, temo em dizer que possam surgir
comentários maldosos sobre me dar presentes ou me pedir para
que almoce com o senhor em seu quarto – expliquei como se
arrancasse uma pedra que estava presa em minha garganta.

Ele me estudou por alguns instantes, aqueles olhos azuis


brilhando perigosos como se quisesse avançar em meu pescoço
tamanha sua impaciência.

— Vou deixar algumas coisas claras por aqui. – Ele deixou o


garfo e a faca sobre a mesa. — Primeiro: meus empregados não
são pagos para falar, e eles sabem que se houver qualquer
comentário sobre o que realmente faço, todos são demitidos. – Ele
falou sem emoção alguma na voz. — Segundo: acredita mesmo que
depois das coisas terríveis que já fiz, eu me importo com
comentários alheios?

— Eu sei que...

— Não sabe! – Ele me contou. — Infelizmente, ainda não


compreendeu quem eu sou ou o poder que tenho, Senhorita
Winslet!

— Então me esclareça! – pedi sem saber por que também


estava irritada com ele.

— Fui criado por um lunático e sempre fiz o que me bem


entendia, eu invento as minhas regras e para minha sorte sou primo
da rainha e ela tem um apreço enorme por mim e John. Nada nos
atinge, a não ser as auguras do destino que são maiores que o
poder de um monarca! – garantiu exasperado.

— E o que mais? – Eu o incentivei a prosseguir.

— Não é o suficiente? – Ele respirou fundo.

— E isso significa que o senhor pode fazer o que lhe


aprouver sem se importar com o que eu sinto? – retruquei.

— E o que a senhorita sente? – Ele me questionou. — Diga-


me! Qual o sentimento que a aflige por estar aqui comigo e deixar
meus empregados preocupados a ponto de fofocarem?

Pega na própria armadilha, pensei desesperada.

— Para mim não há problema... – gaguejei.

— Então o acordo está fechado. A partir de hoje a senhorita


fará as refeições comigo e ponto final! – Ele sentenciou. — Agora
coma e relaxe.

Não havia outra alternativa e eu peguei o garfo para começar


a comer.

— Espero que tenha gostado de sua cavalgada, daremos


uma volta todas as manhãs enquanto estivermos em Oxford. – Ele
avisou.

— Mesmo nos dias mais frios? – Eu o questionei.


— Sim.

Eu precisaria de um casaco mais grosso, embora depois de


estar sobre o cavalo e cavalgar o frio diminuísse um pouco com o
exercício.

— O senhor pretende ficar na cidade por quanto tempo?

— O tempo que for necessário. – Ele limitou-se a responder.


— Por que, algo lhe aflige?

— Bem... – hesitei e acabei falando.

— Quer passar o natal perto de sua família? – Ele me


questionou.

— É que eles vão fazer uma ceia e me perguntaram se eu


estarei aqui quando o natal chegar – expliquei.

Ele mastigou a comida por um tempo enquanto me


observava antes de responder.

— Talvez seja possível, mas não prometo nada. Tudo


depende do tempo que levará para que meus negócios se realizem
– avisou.

— Obrigada – agradeci com um sorriso terno e ele fechou


mais a cara.

Aquele homem era impossível e eu não conseguia admirá-lo


menos por causa disso.
Capítulo 13

Os dias foram ficando mais frios, mas o Duque insistia em


cavalgar todas as manhãs. Notei que o Senhor Masterson não se
aproximou mais de mim desde aquela manhã em que lhe disse para
não me tocar. Mas por vezes, sentia que James lhe dissera alguma
coisa. Nós nos conhecíamos há pouco mais de sete semanas, mas
eu já notava sua satisfação no olhar, o brilho diferente quando
estava exultante com qualquer coisa.

E havia notado outros detalhes: a forma como a veia no


pescoço saltava quando estava no limite para explodir em alguma
situação. A forma como comprimia os lábios quando estava lendo
algo muito importante, ou quando ele mesmo era obrigado a redigir
uma carta que exigia mais sua atenção. O modo como o sorriso
surgia primeiro no canto esquerdo de seus lábios, quando não
queria sorrir, mas acaba cedendo à situação. Como a franja pendia
em sua testa de forma atraente.

Ele não gostava de romances ou livros bobos, como ele


gostava de dizer. Preferia histórias dramáticas e intensas ou a pura
filosofia. Sua maior paixão eram os cavalos e ter voltado a cavalgar
o fazia se sentir vivo, mesmo que depois a dor nas costas fosse
insuportável, ele estava no outro dia se erguendo para seguir em
frente e essa perseverança era um exemplo para mim. Foi nesses
detalhes que pude notar que ele não desistiu de viver, mesmo que
odiasse e desprezasse a forma como vivia, ele não pensara no fim.

Ao contrário, ele era mais forte do que eu podia supor. E


admirá-lo passou de inevitável para uma situação normal em minha
vida. Não o apreciar agora, não fazia sentido. Enquanto eu ouvia
todos ao meu redor terem uma história pronta para denegrir sua
imagem, eu conhecia esse seu lado humano que me tratava tão
bem que me fazia sentir querida e bem-vinda à sua vida. E pensar
que diziam que eu não duraria sete dias, já passara sete semanas,
e quem sabe chegariam a meses ou anos, eu não estava disposta a
partir.

— Hoje está mais frio. – James comentou quando chegamos


no alto da colina.
A cada dia de cavalgada, seguíamos para mais longe e os
passeios eram mais demorados. E eu não podia reclamar, porque
me peguei gostando de cavalos e de seus passeios. Talvez fosse a
companhia e todo o conjunto da obra.

— Sim, está. Vossa Graça quer voltar? – perguntei


preocupada.

— Acredito que seja melhor. Perdemos a noção do tempo –


ele sorriu —, e deve estar com fome.

— Não se preocupe, eu estou bem – garanti.

— Preocupar-me com a senhorita tem sido algo bem comum


em minha vida nos últimos dias – confessou.

O vento atrapalhou seus cabelos e eu o fitei sentindo o peito


arder em enlevo. Ele não podia estar falando sério. Deveria estar
brincando comigo como sempre fazia. Mas James não desviou o
olhar e senti dificuldade em respirar. Precisei piscar várias vezes até
conseguir desviar a atenção para as minhas rédeas e dizer:

— É melhor irmos – disse e virei o cavalo.

Não podia aceitar aquela intensidade em seu olhar e me


iludir. Tinha a impressão que a cada dia era impossível ficarmos
sem nos mirar de forma mais intensa, vez ou outra. Ou deixar
palavras ao vento, embora eu nunca as dissesse, apenas se
perdiam em minha mente que divagava se seria possível que eu
nutrisse pelo Duque mais do que um mero sentimento fraternal e
piedade por sua condição.

De repente, escutei o relincho de seu cavalo e olhei para trás.


O Puro Sangue se erguia bravo com as patas dianteiras e descia
sem parar. Ele havia se assustado com uma cobra e isso fez com
que James chacoalhasse o corpo sem conseguir se firma sentindo
dores. O cavalo saiu em largo galope e vi que o corpo do Duque
pendia para frente. Mesmo sendo inexperiente, eu sabia que o
cavalo poderia machucá-lo ainda mais e bati minha bota contra a
anca do cavalo correndo o mais depressa até alcançá-lo e segurar
suas rédeas.

Minhas mãos doíam pela força que tive que fazer e eu tremia
sem parar.

— Vossa Graça. – Eu o chamei, mas ele não respondeu. —


Oh, meu Deus!

Fiquei com medo que o pior tivesse acontecido. Levei a mão


ao seu pescoço e senti sua pulsação. Possivelmente a dor o fizera
desmaiar, era o que meu coração angustiado esperava. Voltei para
o estábulo e Masterson e Thomas o tiraram de cima do cavalo e o
levaram para dentro.
— Por favor, vá até a cidade e chame por meu irmão – eu
disse a Masterson dando-lhe o endereço —, ele é médico e poderá
atender o Duque.

— Sim, senhorita. – Masterson acatou meu pedido.

Ele tinha mais perícia com o cavalo para ir e voltar à cidade


rapidamente. Fui para o quarto e ajudei Thomas a ajeitar o Duque
sobre a cama. Ele permanecia desacordado e senti uma vontade
imensa de chorar como uma tola. Caso algo lhe acontecesse, eu
jamais me perdoaria. Os minutos pareceram séculos até Quentin
surgir por aquela porta e examinar o Duque.

Thomas e eu nos retiramos para que meu irmão pudesse


examiná-lo e eu andava de um lado para o outro em terrível
angústia. Eu sabia que fora um acidente, mas como sua cuidadora
deveria ter dito para não exagerar. Balancei a cabeça em desalento
até que a porta se abriu e Quentin surgiu.

— Como ele está? – perguntei sentindo lágrimas arderem em


meus olhos.

— Ele está bem. – Quentin garantiu. — Precisará ficar alguns


dias de repouso para se recuperar. Pedi que fique alguns dias
deitado completamente. Não temos noção do estrago que o
acidente pode ter feito à sua coluna, portanto repouso é a melhor
maneira de deixar o corpo descansar e se recuperar.
— Oh, meu Deus! – disse aflita. — Ele está acordado?

— Sim e pediu que entrasse. – Quentin me avisou.

Eu praticamente o empurrei e entrei no quarto me


aproximando da cama e vendo um Duque pálido, mas consciente.

— Eu fiquei tão preocupada, Vossa Graça! – Eu disse


parando ao lado da cama.

Ele riu e gemeu em seguida.

— Sente dor? – perguntei receosa.

— No corpo todo. – Ele admitiu.

— O senhor é tão teimoso! Não deveria ter exagerado na


cavalgada. Deixou-me tão angustiada!

Ele bateu a mão na beirada da cama.

— Sente-se aqui, pequena tola. – Ele falou com afeição.

Eu estava tão aflita que fiz sem pestanejar. James segurou


minha mão. Era a primeira vez que um homem me tocava desde o
que me ocorrera e eu não sentia aversão. Ao contrário, senti que ele
era a tábua de salvação para a minha angústia e seu toque me
causava um bem-estar inexplicável.

— Obrigado por salvar minha vida, Senhorita Winslet.

— Eu teria feito...
— Seu irmão me disse que correu atrás de meu cavalo
quando ele saiu em disparada. Masterson disse a ele no caminho –
ele me fitava sério —, eu estaria morto agora se aquele cavalo não
fosse contido.

Aquela ideia me aterrorizava.

— Não fale assim, Vossa Graça! – pedi. — O senhor é jovem


e tem muito o que viver!

— Entrevado em uma cadeira de rodas?

— Oh, sim! – Ele tentou tirar a mão e eu a segurei com


firmeza. — O senhor tem que cavalgar muito, tem que esperar seu
irmão voltar da América para tirá-lo das enrascadas que ele se
mete, tem que cuidar dos negócios e de seu ducado e sinto que
nenhum outro poderia fazer com a mestria com a qual faz! – Eu falei
como um trem descarrilhado e hesitei. — E terá que me suportar por
mais tempo, porque não posso perder meu emprego.

Ele olhou para as mãos unidas e depois para mim:

— É uma mulher bem peculiar, Senhorita Winslet. – Ele disse


de uma forma que me fez arrepiar dos pés à cabeça.

— Espero que peculiar não signifique que minha demissão é


eminente – brinquei para tirar o clima tenso que se formou.
— Eu não seria tolo de demitir a única cuidadora que
conseguiu passar de uma semana em minha casa. – E aquele
sorriso torto surgiu em seus lábios aquecendo meu coração.

Não sabia o que faria se não pudesse mais ter aquele sorriso
todos os dias. Notei que se algo ruim houvesse acontecido a ele,
como a morte, eu me sentiria arrasada. Estava nutrindo pelo Duque
um forte sentimento que tinha medo de nomear.

— Ficará alguns dias na cama e encontraremos uma forma


de se distrair – prometi mudando de assunto. — Eu vi um tabuleiro
de xadrez na outra sala. Poderíamos jogar.

— Sim – concordou.

— E talvez eu leia um romance bem romântico para que o


senhor faça força de se levantar dessa cama depressa.

— Por favor, não me torture. – Ele pediu com um sorriso


fraco.

— É melhor descansar agora. – Eu aconselhei. — Vou pedir


para a Senhora Relish fazer uma sopa deliciosa, assim, o senhor
poderá dormir melhor.

— Faça sopa para sua avó, Senhorita Winslet – ele avisou


com ironia —, eu quero comida de verdade.

Eu ri.
— Está bem – concordei.

Somente então notei que nossas mãos ainda estavam


unidas. Olhei para elas e ele também e depois nos encaramos. Meu
coração bateu tão acelerado que acredito que ele sentiu o tremor
em meu corpo. Eu queria abraçá-lo, essa era a verdade. Deitar-me
ao seu lado até que ele ficasse bem.

— Meu irmão deve estar me esperando – desculpei e soltei


sua mão quebrando aquela deliciosa energia que nos unia. — Com
licença, Vossa Graça.

E saí do quarto tentando me controlar e sabendo que se eu


permitisse que aquele sentimento me tomasse, eu finalmente
tivesse encontrado o amor. E um sorriso de felicidade brotou em
meus lábios.
Capítulo 14

— Como você sabia que estava apaixonada por meu irmão,


Anne?

A pergunta a pegou de surpresa. Eu a estava ajudando a


guardar as roupas recém-tiradas do varal. Minha mãe já estava
andando pela casa, cuidando das crianças e dizendo que aquele
seria o natal mais feliz de sua vida porque Deus havia lhe dado uma
segunda chance. Eu podia ouvir os gritos das crianças por
brincarem com a avó no quintal da casa.

Anne meneou a cabeça.

— Acho que me apaixonei por seu irmão quando o vi pela


primeira vez sendo um arrogante insuportável! – Ela riu. — Ele
pensou que eu fosse a arrumadeira da casa, acredita?
— Mesmo? – Eu ri. Era bem a cara de Quentin agir de forma
irracional quando estava irritado.

— Não posso culpá-lo. Seu tio o provocou de uma forma


absurda – ela fez que não ao se lembrar —, mas por que está me
perguntando isso?

Encolhi os ombros.

— Acho que estou amando alguém – confessei a ela porque


sabia que podia confiar.

Ela parou tudo o que fazia e se voltou para mim.

— Isso é maravilhoso, Daisy. Quem é o felizardo?

Eu hesitei e ela me olhou estupefata.

— Não me diga que se apaixonou por James Conway?

Não precisei responder.

— Daisy! – Ela me reprovou.

— Alguma vez teve controle sobre suas emoções?

— Com tantos homens no mundo...

— Você conseguiu escolher por quem se apaixonar? – insisti.

— Claro que não. – Anne respirou fundo e me puxou em


direção à cama para que sentássemos. — É que fico receosa,
porque minha experiência com os homens nunca foi muito boa –
falou com certa amargura na voz.

— Sinto que gosto dele, de estar com ele, de cuidar dele...

— Será que não está confundindo zelo com amor? – Ela me


questionou.

Respirei fundo, eu havia me feito essa pergunta diversas


vezes. Mas sabia que não. Era diferente de um sentimento fraternal
ou daquelas paixões que corrompem a alma e levam ao desespero.
Não havia como nomear tal sentimento, mas eu sabia que a ideia de
o perder foi assustadora.

— Não – falei convicta. — Eu o admiro de todas as formas,


não apenas por sua história de vida, mas pelo que ele é. Gosto até
mesmo de seu mau humor pela manhã, a forma como ele cuida de
mim, zela por mim. Eu o acho o homem mais atraente que já
conheci e dividimos as mesmas paixões.

— Oh, Daisy! – Ela disse feliz. — Amar é muito bom..., mas


ele corresponde aos seus sentimentos?

Uma parte de mim acreditava que sim, mas outra tinha


certeza que não. Como um Duque vivido e que mesmo sobre aquela
cadeira conseguiria a esposa que almejasse poderia se interessar
por uma simples serva? Contudo, não era isso que meu coração
dizia pela forma como ele me olhava, como sorria para mim nas
últimas semanas, o ciúme que vi estampado em seu rosto quando
Masterson se aproximou de mim.

— Provavelmente não. – Eu preferi dizer.

— E como vai viver uma vida amando um homem que não a


quer?

— Eu não sei – senti meus olhos arderem em lágrimas. —


Mas é o que sinto, Anne. E aconteceu de uma forma inesperada. O
acidente me fez ver o quanto ele era importante para mim e eu não
queria perdê-lo.

— Dê um tempo, talvez seja passageiro. – Ela tentou me


consolar.

Mas não queria ser consolada, eu queria amar.

— Não quero que seja – eu a encarei com firmeza —, amá-lo


me faz bem. É a primeira vez que permito que um homem toque
minha mão e não sinto repulsa – confessei e uma lágrima escorreu
do meu rosto.

— Oh, Daisy! – Ela me puxou para um abraço. — Eu sinto


muito...

Não deixei que ela me abraçasse e a empurrei devagar.

— Não sinta pena, Anne – eu pedi —, acredite, eu sabia


desde o momento que vi o castelo de Hapton que precisava estar ali
e pode ter certeza que nada é mais certo do que esse sentimento
que cresce em meu peito.

— O que posso dizer? – Anne perguntou sem graça.

— Como as outras pessoas, você tem que parar de ver


desgraça no amor. Cada pessoa ama da maneira que pode e como
pode. Se houver respeito e admiração, tudo é possível. Vivemos em
uma sociedade tão vazia de amor, e ainda tem tempo para colocar
regras de como o amor dever ser como se fosse uma receita de
bolo...

— A verdade é que me preocupa que machuque seu


coração, afinal ele é um Duque e você sua cuidadora...

— A verdade, Anne, é que eu não escolhi amá-lo. E você


pode me garantir que se eu tivesse me apaixonado pelo cocheiro
que é de minha classe social, eu serei feliz? – Eu a questionei. —
Você é a filha de um Conde, se apaixonou por um Duque e acabou
casada com um simples médico, e me diga, há regras para o amor?

— Não. – Ela admitiu também emocionada.

— Não me importo se o Duque não corresponde aos meus


sentimentos. Minha dignidade foi usurpada da pior forma possível e
em quatro anos é a primeira vez que me sinto bem ao lado de
alguém de verdade. E ele não me pede nada, sequer tentou me
seduzir, ou fez algo indecoroso, ele apenas existe e vive tal como é.
— Você tem razão, colocamos regras demais para o amor,
mas ele acontece nos lugares mais improváveis...

— Talvez amanhã, eu não esteja mais trabalhando para ele.


Mas enquanto estiver e se esse sentimento prosseguir em meu
coração, que o caminho seja ao menos belo para que eu tenha
intensas lembranças para me apegar quando a velhice chegar e não
restar nada mais que a saudade...

Anne deixou as lágrimas caírem por seu rosto e dessa vez fui
eu que a abracei.

— Posso saber o motivo de tanto choro? – Quentin perguntou


entrando no quarto.

— Conversas de mulher. – Anne se afastou de mim e olhou


para ele. — Pensei que daria aulas na faculdade hoje.

— Sim, mas um dos tutores de grande prestígio faleceu e


tivemos um dia de luto...

— Gosto tanto quando está em casa comigo. – Anne se


ergueu para abraçá-lo.

Olhei aquele momento com carinho. A filha de um Conde e


um médico bastardo. O amor mais improvável. Não espero que
James corresponda aos meus sentimentos, mas se ele o fizer, serei
a mulher mais apaixonada e feliz de toda a Inglaterra.
Quando chego na manhã seguinte para o trabalho, ele está
mais sério. Seu bom dia foi arrastado. Ele finalmente consegue se
sentar na cama, mas sente tanta dor que me faz ficar preocupada.

— Vou pedir a Quentin que venha vê-lo – avisei.

— Não é necessário. – Ele gemeu quando se acomodou


junto aos travesseiros.

— Eu sei o que é necessário! – respondi e ele me olhou de


soslaio. — Está sentindo dores e isso não é normal!

— O que quer que o médico diga? – Ele perguntou


impaciente.

— O que está acontecendo! – gesticulei. — Devemos saber o


que está provocando mais dores.

— Tem horas, Senhorita Winslet, que eu me arrependo de


não a ter demitido quando derrubou aquela bandeja de café e me
fez comer tudo! – Ele disse por entre os dentes.

Eu ri dele.

— Mas não demitiu e aqui estou – apontei para mim.

James balançou a cabeça desolado.

— É a empregada mais insolente e chata que já tive! – Ele


reclamou, mas não havia nenhum traço de raiva ou mau humor.
— E tenho certeza que foi a única que suportou sua
personalidade irascível – afirmei com convicção. — Os outros
fugiram se me lembro bem.

Um sorriso surgiu no canto dos lábios.

— Por favor, deixe-me chamar Quentin para vê-lo – pedi séria


parada ao lado da cama. — Do contrário, ficarei angustiada a cada
gemido que der.

Ele assentiu.

— Está bem. – Ele concordou.

— Ótimo. Vou avisar Thomas e já volto.

Quando voltei, coloquei a mesa de café sobre a cama e a


bandeja em cima. Embora ele não precisasse de ajuda para comer,
sentei na beirada e fiquei ali, e nenhum de nós se incomodou com a
minha intimidade, ao contrário, era como se eu tivesse feito isso a
vida toda ou trabalhasse para ele há anos.

— A senhorita gosta do natal? – Ele perguntou de repente.

— Um pouco, embora eu tenha me amargado com as últimas


celebrações...

— Amargou-se? Por qual motivo?

Fiquei sem graça.


— Fatos desagradáveis que ocorreram no passado – tentei
explicar.

— Tais fatos são os que a impedem de deixar que homens se


aproximem?

A pergunta era íntima, eu deveria me ofender, mas ao


contrário, fiquei surpresa por ele ter notado.

— Foi assim com Thomas, com meu irmão, com o Senhor


Masterson – ele falou depois de tomar o chá —, não gosta que a
toquem?

Abaixei a cabeça e olhei para as mãos.

— Não gosto – respondi séria.

— Alguém a machucou, não foi? – E antes que eu


respondesse, ele disse: — não precisa responder, Senhorita
Winslet. Vivi muito para compreender que poucos motivos fazem
uma mulher detestar o contato masculino. E um deles é a violência
ou a agressão.

Engoli em seco e senti a mão gelar, não conseguia falar.

— Há alguns anos, eu me envolvi com uma mulher, seu


nome era Nora. Fomos amantes, na verdade.

Voltei a olhar para ele me recordando do que Terence me


dissera.
— Nós seguimos nossos caminhos e meu pai morreu. Qual
não é minha surpresa que o louco havia deixado tudo para ela, até o
título, mas nós sabemos que isso não é possível, mas existe o
testamento que comprova a loucura de meu pai – contou com ironia.
— Eu estava desesperado. Apenas teria minha fortuna de volta se
me casasse com Nora e apesar de gostar dela, usei de todos os
meios para tê-la como minha esposa, apenas por causa do dinheiro.
Fui mal, eu a chantageei, enganei, menti. Mas eu nunca feri a alma
de Nora ou de qualquer outra mulher que tenha atravessado meu
caminho. Todas as mulheres que frequentaram a minha cama foram
de livre e espontânea vontade.

Ele tirou a mesa da frente dele e colocou ao lado. Gemeu ao


fazer tal esforço, eu tentei ajudá-lo, mas ele foi mais rápido. Então,
ele segurou minha mão. Olhei para as mãos unidas, a dele era
quente e grande deixando a minha escondida e acolhida. Devagar
levantei o olhar para ele e lágrimas voltaram a arder em meus olhos.
O semblante dele estava tranquilo e seus olhos fitavam diretamente
os meus.

— Não sei o que aconteceu com a senhorita e não desejo


saber se não puder compartilhar comigo, mas eu lhe garanto que
jamais voltará a acontecer, eu não vou deixar, Senhorita Winslet! É
uma promessa...
Nunca pensei que ouviria tais palavras vindas dele. Respirei
fundo, mas o nó que estava em minha garganta se soltou e as
lágrimas tomaram vida própria escorrendo sem parar. Levei as mãos
ao rosto para esconder meu pranto e para minha surpresa, James
segurou meu braço, me puxou contra seu peito, onde encostei a
cabeça e ouvi as fortes batidas de seu coração.

Chorei do fundo da minha alma e pela primeira vez em todos


aqueles anos desde que fui atacada, eu não me sentia
miseravelmente sozinha. Se eu dissesse que expurguei toda a dor
que sentia naquelas lágrimas seria mentira. A cicatriz ainda
demoraria a se fechar, mas eu me sentia segura.

Quando finalmente me afastei, respirei fundo.

— Gostaria de ser cavalheiro e lhe oferecer um lenço, mas no


momento não consigo me levantar dessa maldita cama! – Ele falou
bravo. — Poderia fazer a gentileza de pegar um para mim e dar a si
mesma?

— Sim! – Eu sorri entre lágrimas e fui na gaveta e peguei um


voltando para perto dele.

— Sente-se melhor? – Ele quis saber com afeição na voz.

— Sim, obrigada – respirei fundo.


Olhei para ele e tentei sorrir, mas havia algo que eu sentia
vontade de falar. Talvez fosse a única chance que eu tivesse.

— Foi meu primo – contei.

James franziu o cenho.

— Seu primo? – Ele devolveu incrédulo.

— Eu estava em casa sozinha com minha irmã de dez anos


Elsie – foi tudo o que consegui dizer.

— E onde ele está, agora?

— Morto – contei. — Afogou-se no lago enquanto tentava


usurpar a dignidade de outra moça!

— Mais do que merecido! – James garantiu. — Ou eu teria o


prazer de afogá-lo. E não pense que a cadeira de rodas me
impediria de conseguir.

— Eu sei que não – garanti. — Vossa Graça é determinado


demais para que qualquer coisa possa impedi-lo de conseguir o que
deseja.

— Acredita nisso? – Ele perguntou surpreso.

— Não tenho sombra de dúvida... – garanti sabendo que meu


rosto deveria estar todo vermelho por causa do choro.
Ele segurou minha mão outra vez. Sorriu e num gesto
impetuoso a levou até os lábios e a beijou. Meu coração saltou pela
boca e senti dificuldade para respirar. Mas não era pânico, era outra
sensação algo como desejo, e era bom e não queria me apartar.

Nós ficamos nos encarando e por algum motivo louco


aproximei meu corpo do dele. James moveu o corpo para frente, os
olhos azuis brilhando de forma perigosa e então... batidas na porta
interromperam aquele momento de enlevo e completamente sem
sentido.

Eu me ergui da cama depressa e Thomas entrou em seguida.

— O Doutor Winslet está aqui, Vossa Graça – ele avisou da


porta —, e trouxe um colega para vê-lo também, perguntou se o
senhor tem alguma restrição?

O Duque olhou para mim em busca de uma explicação.

— Meu irmão não me disse nada, Vossa Graça – falei com a


voz um pouco alterada, talvez por causa do que ocorreu entre nós.

— Diga ao Doutor Winslet para entrar. – O Duque ordenou.

Eu aproveitei a oportunidade para fugir.

— Senhorita Winslet. – James me chamou de volta.

Estava próxima da porta e me segurei a ela para me voltar


sem demonstrar todo o constrangimento do mundo.
— Sim, Vossa Graça?

— Onde vai?

— Levar a bandeja de café para a cozinha – respondi e saí


depressa fechando a porta.

Dei alguns passos e notei que estava sem a bandeja nas


mãos. Respirei fundo e voltei par dentro do quarto com um sorriso
amarelo. Fui pelo outro lado da cama para pegar a bandeja e então
deixar o dormitório. Podia jurar que ouvi a risada dele e tal som
aqueceu meu coração.
Capítulo 15

Meu irmão trouxera um ortopedista especializado em


paralisias. Seu nome era Doutor Horton Morson e atendeu o Duque
por mais de uma hora. Como sempre fiquei do lado de fora do
quarto tomada pela ansiedade. Dessa vez, Thomas trouxe uma
cadeira para que eu me sentasse. E embora estivesse preocupada,
não conseguia deixar de pensar no que ocorrera dentro daquele
quarto.

Eu podia jurar que se Thomas não tivesse batido à porta, eu


e o Duque... Nós... Oh, meu Deus! Um beijo teria acontecido entre
nós! O que eu estava fazendo? Uma coisa era me apaixonar por
ele, amá-lo em segredo. Outra era permitir dar vazão ao impossível.
Anne tinha razão em uma situação, eu era a empregada e ele um
Duque, não fazia o menor sentido. Era impossível.

Tentei não pensar no toque de suas mãos nas minhas, ou de


seu olhar sobre o meu. Mas era inevitável. Quando meu irmão saiu,
levantei-me depressa e Thomas surgiu não sei de onde para saber
as novidades. Naquelas semanas notei que eu não era a única
pessoa naquela casa que zelava pelo bem-estar de James. Na
verdade, Thomas o enxergava como a um filho.

— E então, Quentin? – inquiri ansiosa.

O outro médico surgiu ao lado dele e eles se entreolharam


antes do meu irmão se voltar para mim e dizer:

— Existe uma possibilidade de o Duque voltar a andar –


contou.

Soltei um grito de felicidade e bati as mãos.

— Mas isso é maravilhoso! Como é possível? – perguntei


eufórica.

— Eu não sei explicar sobre milagres, Senhorita Winslet – o


Doutor Morson falou comigo —, mas o que sei é que essas dores
que ele sente são um sinal de que a sensibilidade das pernas está
voltando. Talvez a bala tenha se alojado provocando a paralisia, e
então com o acidente, ela se moveu, é difícil dizer.

Olhei para Thomas que estava com um sorriso bobo nos


lábios.

— A partir de amanhã, eu virei visitá-lo e começaremos um


novo tratamento. – Morson avisou. — É um tratamento longo,
doloroso e necessitará muito esforço da parte dele. Não será
amanhã ou em poucos meses, pode levar anos..., mas já vi tantas
situações que são consideradas impossíveis acontecerem que
acredito que esse homem estará andando antes do prazo previsto!

— Não tenho palavras para expressar minha felicidade –


disse emocionada. — Vou falar com ele, com licença.

E fui para o quarto deixando os homens conversando. Ele


sorriu quando eu entrei e moveu a mão para que eu me
aproximasse. Meu coração batia acelerado por mil motivos
diferentes, mas principalmente, porque havia a possibilidade de ele
voltar a andar e isso é maravilhoso. Ele voltaria a ser o mesmo
homem de antes e poderia seguir com sua vida em frente.

— O Doutor Morson me disse que existe uma possibilidade –


eu disse parando ao lado da cama —, acredito que seja a melhor
notícia que ele poderia ter dado.

— Sim. – James respirou fundo. — Nunca acreditei em


milagres, mas ele disse que o acidente de dias atrás provocou
alguma reação em meu organismo. Talvez eu possa voltar a andar...

— Isso é maravilhoso! – dei mais um passo para ele, mas me


segurei. Depois da intimidade que havíamos alcançado me
aproximar demais não era uma boa opção.
Apesar de amá-lo de todo o meu coração e desejar pular
sobre aquela cama e abraçá-lo depois de dar-lhe beijos por todo o
rosto, eu sabia qual era o meu lugar.

— Acha mesmo? – Ele perguntou surpreso.

— E por que não seria? – Não compreendi a decepção dele.

— Se eu voltar a andar, vai perder o seu emprego. – Ele


cogitou.

Eu sabia e foi o primeiro pensamento que me assolou quando


Quentin me deu a notícia, fiquei um pouco sem chão, mas como o
Doutor Morson dissera, ainda levaria um tempo, então haveria uma
convivência de meses entre nós e eu poderia estar perto dele de
alguma forma.

Desde o momento em que descobri estar apaixonada por ele,


eu sabia que jamais seria possível. Mas meu coração tolo acreditou
que estaria próxima dele para sempre, cuidando e amando em
silêncio. A vida saudável do Duque era o fim da nossa relação.

— E quem se importa com emprego quando o senhor vai


voltar a ficar saudável? – perguntei forçando um sorriso para
esconder minha tristeza.

Não podia permitir que o amor me tornasse egoísta. A saúde


dele estava em primeiro lugar. Ele pareceu não gostar da minha
resposta.

— O importante é ver o paciente bem, não é? – Ele


perguntou com a voz fria e indiferente.

— Sim – eu me forcei a concordar —, é o que aprendemos


na escola. Uma enfermeira deve ver sempre a saúde de seu
paciente.

Era verdade. Então por que eu estava com vontade de


chorar? Havia uma bola presa em minha garganta e meu coração
estava acelerado com vontade de dar um passo à frente e dizer a
ele que eu me importava sim e depois que eu partisse meu coração
sangraria em saudade até o fim dos meus dias. Mas eu sabia meu
lugar e comprimi os lábios e permaneci com aquele sorriso tolo.

Ele balançou a cabeça como se eu estivesse cometendo um


erro. O que ele realmente esperava? Que eu estivesse me
declarando? Não era possível!

— Já que está tão animada para me ajudar a melhorar – ele


falou como se estivesse mastigando marimbondos —, sente-se
naquela maldita escrivaninha, vou ditar uma carta para meu irmão
John.

— Como quiser, Vossa Graça – assenti e fui para a


escrivaninha.
Ele escreveu para o irmão contando a novidade e dizendo
que aguardava sua visita em Oxford antes da partida dele para a
América. Isso significava que eu o encontraria também e a simples
ideia me provocava calafrios. Terminei a carta e ele redigiu mais
algumas relacionadas aos negócios. A notícia de que voltaria a
andar não o havia deixado de bom humor, pelo visto. Mesmo depois
do almoço, ele não quis que eu lesse, preferiu ler sozinho e ficamos
em silêncio dentro daquele enorme quarto a tarde toda.

Parti para a minha casa no início da noite sem sequer


despedir-me dele.

— Como ele está? – Thomas quis saber.

— Está de mau humor – avisei.

Thomas bufou.

— Por quê? – Eu quis saber.

— Eu e a Senhora Relish vamos entrar de férias, o Natal está


próximo. – Ele me fez recordar.

Passou tão depressa, eu sequer poderia ter notado que o


tempo se esvaiu como água entre as mãos. Acredito que quando
estamos felizes não contamos os dias, eles passam como o vento.

— Eu sequer notei a chegada do Natal – falei a verdade.


— A senhorita se importaria de dormir aqui esses dias? Virá a
Senhora MacGregor para cozinhar todos os dias, no dia vinte e seis
estaremos de volta.

— Claro que não me importo – avisei com sinceridade. Eu


adoraria usufruir do pouco tempo que teríamos juntos dali para
frente. Conhecendo o Duque como conhecia tinha certeza que ele
se esforçaria o máximo para voltar a andar, e o faria em poucos
meses.

— Ótimo! – Ele disse satisfeito. — A carruagem a aguarda lá


fora. Vou falar com ele.

E bateu na porta do quarto antes de entrar.

Parti e mesmo quando fiz minha pequena mala para ficar na


casa do Duque aquelas noites, eu me sentia miseravelmente
sozinha, como se estivesse na eminência de perdê-lo para sempre.
Que tola! Ele nunca fora meu.

— Vai passar o natal com ele? – A voz da minha mãe soou


ao meu lado.

Olhei para ela e apenas assenti.

— De qualquer forma eu ficaria na propriedade em Londres –


respondi. — Foi a sua convalescência e a dele que nos prenderam
em Oxford.
— A Senhora Person, nossa vizinha disse que o Duque tem
fama de conquistador – falou se sentando na cama e olhando para
mim.

Fitei minha mãe rapidamente. Ela envelhecera muito devido a


sua amargura. Sua história era triste, fora abandonada pelo homem
que amava e ainda grávida. Levou uma vida miserável ao lado do
meu pai que sempre a tratou mal por ter se deitado antes do
casamento com o irmão dele. E tal amargura fez com que a relação
dela com as filhas fosse distante e indiferente. Ela nos amava de um
modo diferente, sem abraços, carinho ou qualquer expressão de
afeto. E estava admirada de ela estar ali conversando comigo. Ela
nunca o fazia. Sequer em casos extremos, o silêncio era seu
sobrenome em todos os casos.

— É o que dizem – eu concordei com ela —, tanto ele quanto


o irmão são considerados libertinos.

— E ainda assim vai ficar sob o mesmo teto que ele. – Ela
me reprovou.

Eu fechei minha mala. Sabia que ela não me procuraria para


uma conversa a não ser que quisesse me enxotar. Jamais uma
palavra de incentivo, não me recordo de minha mãe perguntar uma
vez sequer se eu estava bem. Ela nunca se preocupou de verdade
como andava a minha alma. Ainda mais depois do que me ocorrera.
Ela se distanciou mais.

— Não há outro empregado que fique na casa, além da


cozinheira e do cocheiro – expliquei —, além disso, o irmão dele virá
para o natal.

— O que piora toda a situação! – Ela se ergueu indignada.

— Qual situação? – perguntei com calma.

— Sua honra e o bom nome de sua família! – Ela disse com o


dedo em riste. — Vamos dizer a verdade, esse seu trabalho é uma
vergonha! Em toda Oxford se fala da mulher que inventou de ser
enfermeira e está tendo um caso com o Duque!

Eu sequer poderia imaginar que diziam tal asneira, mas eu


não me importava. Embora amasse James em segredo, ele sempre
fora respeitoso comigo e fiz meu trabalho com honra e dignidade.
Não aceitaria que o preconceito de minha mãe difamasse o meu
trabalho como enfermeira.

— Quanta bobagem! – relutei em aceitar.

— Você coloca a mão no corpo dele, o vê nu! Acha que não


vão comentar? Deveria se dar ao respeito! – ela estava fora de si.

— Acredito que se preocupar com minha honra é muito tarde!


– respondi sem hesitar. — E depois de tantos problemas e
escândalos que tivemos, nosso bom nome é apenas uma máscara e
não nossa realidade!

Sem que eu esperasse, ela me deu um tapa no rosto.

— Como ousa falar assim comigo? – Ela se alterou.

Levei a mão ao rosto e Alene entrou no quarto, preocupada


ao ouvir a discussão.

— Pode me bater o quanto quiser! – falei com mágoa —,


nada vai mudar as escolhas que fez! A culpa não é minha!

Ela ergueu o braço para me bater de novo, mas dessa vez


Quentin entrou no quarto e segurou seu braço. Ao vê-lo, ela ficou
chocada. Seu querido filho preferido a estava impedindo de cumprir
com seu dever de mãe?

— Nada de agressões dentro da minha casa – ele falou sem


hesitar e soltou o braço dela —, além disso, chega de descontar a
sua frustração em suas filhas.

Adelina levou as mãos aos lábios e lágrimas arderam em


seus olhos. Quentin jamais falara assim com ela. Meu irmão sabia
ser tão silencioso quanto a própria mãe. Não era um homem de
muitas palavras, mas era justo e amoroso. Tanto que arriscou sua
licença médica fingindo ter feito o parto de crianças gêmeas apenas
para que meu filho tivesse um nome.
— Quentin! – Adelina falou incrédula.

— O trabalho de Daisy é digno e ela não é uma prostituta,


mãe! – Ele falou sério se colocando entre nós —, e mesmo que
fosse uma cortesã, ela merece respeito. Da mesma forma como eu
a respeito mesmo depois de ter agido sem pensar em seu passado!

— Nunca imaginei que jogariam a verdade em minha face! –


Ela se vitimou.

— Eu não o faria se a senhora não tentasse amargar sua


filha depois de tudo o que ela sofreu. – Ele falou com uma frieza que
eu nunca tinha visto antes. — Deixe-a viver a vida dela do jeito que
ela acredita ser correta. Tudo lhe foi tirado, não vou permitir que
destrua o pouco que ela tem.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto ao ouvir as palavras


compreensivas de meu irmão. Quentin sempre seria meu ídolo, um
exemplo a ser seguido.

— Eu só... eu não... – Adelina não conseguia falar.

— Quando tomou suas decisões não perguntou a ninguém se


era certo ou não – ele prosseguiu —, não jogue sua frustração sobre
sua filha. Mesmo que ela estivesse errada, seu papel é amá-la e
conversar e não a fazer se sentir miserável.

Os lábios de Adelina tremeram de raiva.


— E se ela trouxer outra criança para essa casa? – Adelina
perguntou agarrando-se ainda a sua própria vergonha.

— Nós a criaremos com todo amor do mundo. – Ele


sentenciou.

— Pelo visto, todos vocês gostariam que eu tivesse morrido


naquela cama, não é? – Ela se alterou e saiu do quarto empurrando
Anne que estava parada à porta.

Alene fez menção de ir atrás dela, mas Quentin a impediu.

— Deixe-a com seus próprios fantasmas, está na hora de ela


superar o que fez e parar de julgar as próprias filhas. – Ele mandou
e Alene ficou onde estava.

Quentin se voltou para mim e sorriu segurando a minha mão.

— E você tenha juízo – ele aconselhou —, o Duque está


sobre uma cadeira de rodas, mas ainda tem um coração que pode
conquistar o seu.

Forcei um sorriso.

— Vai ficar tudo bem. – garanti. — Ele me trata com respeito


e estamos nos dado bem.

— Mas esse é o problema, Daisy, saber separar a afeição


que tem por seu paciente das necessidades reais dele – lembrou-
me. — Mas acredito que foi o que mais disseram na escola para
enfermeiras. Pacientes vêm e vão e nosso coração fica, precisa
mantê-lo protegido ou vai sofrer por todos os pacientes que cuidar.

Forcei um sorriso e controlei para não soltar um suspiro


dolorido. Eu estava envolvida com aquele homem mais do que era
permitido e em nenhum momento me recordei da ética de trabalho
que dizia que devíamos separar o homem do paciente. Era tarde
demais para lamentar.
Capítulo 16

— O que aconteceu em seu rosto?

Eu estava distraída arrumando as roupas limpas do Duque no


baú quando sua voz interrompeu minhas divagações. Havia partido
de casa sem despedir de minha mãe e me sentia mal, mas ela
estava trancada em seu quarto e eu não quis piorar a situação
forçando-a a falar comigo. Levei a mão ao lado esquerdo do rosto
aonde o hematoma se formara.

— Não foi nada... – limitei a dizer.

— Se não fosse nada, não haveria um hematoma aí. – Ele


insistiu.

Respirei impaciente.

— Briga de família – limitei a dizer.

— Foi seu irmão? – O tom de voz dele soou irritado.


Olhei para ele, chocada com seu comentário.

— Quentin? Ele não faria mal a uma formiga – garanti. E


antes que ele tirasse conclusões precipitadas ou continuasse
fazendo perguntas, resolvi contar: — foi minha mãe. Ela se
incomodou com o fato de que vamos ficar sob o mesmo teto
sozinhos e me enxotou quando joguei em sua cara seu passado.

— Então, sua mãe tem segredos. – Ele disse com um traço


de diversão.

— Alguma família não tem?

— Todas têm – ele garantiu —, tenho certeza que conhece os


segredos de minha família, eu já lhe disse alguns, mas não sei nada
sobre a sua.

Era constrangedor demais falar sobre o que ocorrera em


minha família.

— Tenho certeza que vai acabar dormindo antes que eu


termine a primeira frase – assegurei.

— Porque sempre desdenha de sua história? Eu estou


interessado em conhecer mais sobre a senhorita...

Eu o encarei. Aqueles olhos azuis que brilhavam para mim,


ele estava sério, não estava rindo ou se divertindo as minhas
custas, ao contrário, ele realmente desejava saber mais.
— Tenho certeza que a vida de uma plebeia não deve ser
interessante quanto as que está acostumado a ouvir das mulheres
de seu nível social – argumentei tentando me esquivar da conversa.

— A senhorita não me conhece se pensa assim. – Ele me


cortou. — Agora seja boazinha e venha até aqui me contar tudo.

Eu queria ir, mas ao mesmo tempo sabia que não seria de


bom tom ficarmos tão próximos. Não havia futuro para o amor que
eu sentia e também para aqueles olhares sedutores que ele me
lançava toda vez que estávamos próximos um do outro. Perguntei o
que ele faria se soubesse que fiquei grávida e deixei meu filho com
meu irmão para que ele tivesse uma vida digna. Olharia para mim
com a mesma admiração de antes?

É o que eu descobriria em poucos minutos. Ele queria saber


a verdade, eu lhe contaria.

Aproximei da cama e sentei na beirada devagar. Tinha


vontade de acariciar seu rosto e beijar seus lábios antes de deitar
minha cabeça em seu ombro. Jamais eu tive qualquer pensamento
assim por qualquer outro homem que conheci, portanto, eu tinha
certeza que o Duque de Grafton era especial. Ele despertava em
mim sentimentos e emoções que eu não sabia que sequer existiam.

— E então? – Ele perguntou. — Como começou a história de


sua família?
Encolhi os ombros e o encarei. Minhas mãos tremiam e as
apertei contra as saias para arranjar coragem para o que estava
prestes a fazer.

— Bem – respirei fundo —, minha mãe é filha de imigrantes


irlandeses e conseguiu o emprego em uma fábrica de tecidos em
Manchester. Adelina se apaixonou pelo chefe de produção Rickman
Winslet que, na época estava em ascensão na empresa. Acredito
que ela o amou, mas a ganância de Winslet era maior que o amor
que ele sentia e quando minha mãe ficou grávida ele lhe deu
dinheiro para se desfazer da criança...

— Por que ele não se casou com ela? – O Duque indagou.

— Ele estava noivo de Audrey Evans, a filha do dono da


fábrica e não abriria mão de um casamento promissor para ficar
com uma pobre, não é?

— Ele não se casou com sua mãe...

Fiz que não com a cabeça.

— Não. Ele pagou o próprio irmão, Antony Winslet para se


casar com ela. E foi o que aconteceu. Quentin nasceu e tão logo
teve a idade para entender, Antony lhe disse a verdade. E minha
mãe teve quatro filhas com Antony antes de ele morrer e deixar o
filho com o cargo de terminar de criar a família que ele desprezava...
— E o que aconteceu com seu tio?

— Bem, ele teve um filho e a esposa morreu no parto.

O silêncio caiu pesado sobre nós.

— O filho dele morreu afogado, não foi? – Ele deduziu o


óbvio.

— Sim – limitei a responder.

— E seu tio? Que fim teve?

— Bem, meu irmão herdou tudo que era dele e devolveu ao


antigo dono Richard Evans. Meu tio ficou na miséria e vivendo em
sua propriedade que há pouco tempo foi leiloada pelo Estado por
causa das dívidas. Meu tio foi levado para um sanatório em Londres
onde vive preso em sua própria loucura – contei.

— Ele sabe o que o filho fez com você?

— Não – fiz que não. — Minha mãe impediu de contar e por


fim achamos melhor que ninguém soubesse.

— Por quê? Não acha que ele deveria saber o monstro que o
filho se tornou? – Ele me questionou.

A hora da verdade. Com certeza depois do que eu lhe


contasse, James me repudiaria até o fim da vida. Mas pelo menos
não cairia em tentação e eu também não.
— Apaixonou-se por seu algoz? – Ele perguntou incrédulo.

— Eu fiquei grávida – contei e um nó se formou em minha


garganta. — E minha cunhada também estava grávida na época.

Um silêncio pesado caiu entre nós e ele estreitou o olhar.

— Seu irmão cria o seu filho, não é? Afinal, você disse que
tinha sobrinhos...

— Sim. – Eu o encarei.

— Ele me disse que tinha filhos gêmeos, não foi difícil deduzir
já que nunca falou de seu filho...

— Ele sempre será meu filho! – falei com carinho. — Mas


está melhor como filho de Quentin, tem um nome. Sabe o que eles
fazem com bastardos? São tratados como mendigos, Vossa Graça.
A eles não são dados sequer empregos decentes ou o direito de se
casar com quem lhe aprouver. Não quis isso para o meu filho,
apesar de todas as circunstâncias sobre sua concepção, ele era um
anjinho e não tem culpa do mal que o cerca mesmo antes de
nascer.

James ficou em silêncio. Sabia que ele não compreenderia,


imaginei que toda a verdade seria demais para seu falso
puritanismo. As pessoas podiam cometer seus pecados, mas não
podiam aceitar o dos outros. Eu precisava ficar sozinha para chorar
minha dor, não por Adam, meu menino estava feliz. Mas por saber
que o que Travis fizera comigo repercutiria onde quer que eu fosse.

Fiz menção de sair da cama, mas o Duque segurou minha


mão e me puxou de volta, me fazendo cair mais próxima a ele. O
que aconteceu no instante seguinte foi muito rápido. Ele me segurou
pela nuca e me beijou. Meu primeiro beijo. A primeira vez que os
lábios de um homem se uniam aos meus. Eram quentes e firmes e
me beijavam com uma intensidade febril. Eu não conseguia respirar,
apenas sentia intensamente aquele momento sublime.

O Duque estava beijando Daisy Winslet. Meu coração


acelerou, minha boca secou e fiquei zonza. Quando ele se afastou,
apenas o suficiente para me fitar nos olhos, eu perguntei:

— Por que fez isso? – murmurei.

— Eu poderia dizer mil desculpas, mas a única que vem a


minha mente é que desde a primeira vez que cruzou aquela porta,
eu quis fazer...

— É insano! – murmurei contra seus lábios sem muita


convicção.

— Devo discordar com veemência. É adorável, Daisy...

Ele disse meu nome com tanta paixão que meu bom senso
se perdeu.
E me beijou outra vez e não encontrou nenhuma resistência.
Deixei que ele me beijasse permitindo que todos os problemas
deixassem de existir e restasse apenas James e Daisy. Beijar era
bom e eu estava feliz por conseguir fazê-lo sem entrar em pânico,
era um verdadeiro milagre.

Ouvi o som de vozes e me afastei depressa saindo da cama


e ficando de pé. Passei a mão pela roupa me certificando que
estava tudo em seu lugar, quando a porta foi aberta e um John
Conway surgiu segurando o chapéu nas mãos e procurando pelo
irmão.

— Por Deus! Por que está sem empregados nessa casa? –


Ele perguntou avançando pelo quarto enquanto eu permanecia de
cabeça baixa.

Não conseguia olhar para o Duque ou para seu irmão


intrometido que atrapalhou o momento mais inesquecível da minha
vida.

— Senhorita Winslet, como vai? – John Comway perguntou


parando diante de mim.

— Senhor – eu fiz mesura —, se me dão licença, tenho


coisas para fazer.

E sem esperar que o Duque fizesse qualquer comentário saí


do quarto a passos largos. Na verdade, eu fechei a porta e corri até
a cozinha o mais depressa que pude para tomar um copo d’água e
tentar respirar com mais calma, embora fosse impossível.

Ele me beijou!

Ele me beijou!

Levei a mão trêmula aos meus lábios e fechei os olhos ainda


sentindo seu gosto. Então esse era o sabor do amor? Tão leve e
poderoso que havia arrancado as minhas forças e me fazia desejar
por mais?

Higher surgiu na cozinha e me fez dar um pulo de susto.

— Perdoe-me, Senhorita Winslet, mas onde devo colocar os


pertences do Senhor Conway?

Então o irmão insuportável ficaria mais que algumas horas?

— Pode colocar no quarto em frente ao do Duque, por favor –


pedi.

— Sim, senhorita.

Higher saiu e eu me perguntei quem cozinharia para aquele


homem? A Senhora MacGregor teria que me ajudar, ou eu não daria
conta de tudo. E certamente os dias seguintes foram agitados. John
Conway era o furacão em pessoa e tudo parecia ficar mais intenso
com a sua presença, embora dessa vez ele se mantivesse distante
e em nenhum momento me olhou da forma lasciva como fez antes.
Ele fazia as refeições com o irmão e passavam o dia juntos, o
que me deu certa folga para lavar e fazer os outros deveres da casa
com ajuda da Senhora MacGregor. Faltavam dois dias para o natal
quando ele decidiu partir para Londres onde comemoraria as
festividades com os amigos antes de partir para a América.

— Provavelmente quando voltar, eu estarei andando. –


James falou orgulhoso de si mesmo.

— Você poderia ir comigo, convidar esse médico ou ele lhe


daria uma indicação de alguém que poderia auxiliá-lo na América. –
John supôs.

— A América não é para mim, livre em demasiado – ele


reclamou —, apesar da vida errante que levei, ainda sou um homem
à moda antiga.

Eu estava organizando os pertences do Duque enquanto eles


conversavam.

— Agora que vai voltar a andar choverá de mulheres ao seu


redor. – John supôs. — E logo terá um herdeiro, já pensou nisso?

Sequer havia pensando. Talvez no primeiro dia imaginei que


seria a consequência de voltar a andar, mas por outro lado pensar
sobre isso novamente causou-me um ciúme para o qual não estava
preparada para lidar. E com certeza haveria milhares de jovens da
nobreza que dariam um fígado para ter a atenção de um Duque. E
beijá-lo.

Fui pegar a bandeja do café, mas ao virar esbarrei no móvel


e tudo caiu no chão. Comecei a pegar nervosa e John começou a
me ajudar.

— Não precisa. – Eu disse.

— Faço questão. – John afirmou e terminou de catar tudo ao


notar que eu tremia.

Para minha surpresa, ele se ergueu com a bandeja na mão e


disse solene:

— Vou levá-la para a senhorita, está trabalhando demais


enquanto o sovina do meu irmão poderia contratar mais
empregados. – Ele o reprovou.

Sequer sabia o que dizer e fiquei constrangida.

— Não é necessário! – falei indo em direção a ele.

— Fique aqui, eu já volto! – Ele piscou para mim e saiu do


quarto.

Fiquei tensa. Era a primeira vez em dias que eu ficava a sós


com o Duque. Desde o beijo, eu sequer permitia trocar olhares com
ele, me mantinha distante.
— Ganhar uma piscadela de John é como ganhar o dia,
dizem as mulheres! – O Duque comentou ciumento.

Eu me voltei para ele.

— Ainda bem que não sou essas mulheres, Vossa Graça! –


Eu disse por entre os dentes.

Ele sorriu finalmente. Aquele sorriso encantador que fazia


meu coração saltar de alegria.

— Fico feliz que não esteja interessada. – Ele comentou.

Ele me fitava daquele jeito diferente de novo. Aquele olhar


que me fazia sentir borboletas no estômago e querer abraçá-lo.

— A verdade é que não estou interessada em quem quer que


seja! – garanti sentindo meu orgulho ferido.

— Mesmo? – havia surpresa em sua voz.

Eu não me declararia para ele. Não faria um papel tão


ridículo. Ele tinha esperanças de formar família e eu seria apenas a
cuidadora que passou um dia por sua vida. Deveria saber qual era o
meu lugar.

— Sim, Vossa Graça. E peço perdão se em algum tempo


passei a impressão errada! – falei guardando meu coração no mais
profundo da minha alma. Ele não poderia alcançar e quebrá-lo —,
com licença.
— Senhorita Winslet! – Ele me chamou. — Daisy!

Sua voz soou alterada quando fechei a porta. Mas eu não


podia deixar ir mais além. Eu seria a única a me magoar.
Capítulo 17

A primeira sessão de exercícios com o Doutor Morson deixou


o Duque de mau humor e cansado. Quando o médico partiu, ele
estava praguejando. Tenho certeza que se andasse, estaria
caminhando de um lado para o outro, xingando e quebrando coisas.
Seria a primeira de muitas e senti nele a vontade de desistir.
Imaginei que não deveria ser fácil sentir dores pelo corpo e ainda
lutar para mover aquilo que parecia impossível, que não obedecia à
ordem simples de seu cérebro.

Era a primeira vez que ele deixava a cama em dias e recusou


a voltar. Para completar, John Conway partiu no fim da tarde. O
Duque o acompanhou até a porta apesar do frio intenso.

— Caso mude de ideia, ainda dá tempo de partir comigo. Irei


alguns dias após o Natal – John disse ao irmão.
— Vai passar o ano novo longe de Londres? – James
perguntou surpreso.

— Será o mesmo tédio de sempre, garanto! – disse seguro


antes de colocar seu chapéu e olhar para mim. — Convença-o a vir
para a América, Senhorita Winslet, e terá meu coração para sempre.
Adeus!

— Adeus – respondi.

Ele ainda abraçou James mais uma vez e como se relutasse


em deixar o irmão, partiu. Quando a carruagem desapareceu, eu
empurrei a cadeira do Duque para dentro.

— Posso fazer sozinho. – Ele disse de mau humor e se


empurrou para dentro.

Revirei os olhos e o segui fechando a porta. A casa estava


fria, apenas o meu quarto e o dele tinham as lareiras acesas.

— Vossa Graça gostaria de fazer alguma coisa?

— Quero ficar sozinho! – respondeu atravessado e foi para o


próprio quarto.

Como não havia nada para fazer até o jantar, eu fui para o
meu quarto ler. Sentei em frente à lareira e o calor agradável me
ajudou a relaxar, acabei cochilando. Sonhei que eu e James
cavalgávamos nos campos verdes e então descíamos do cavalo e
ele já andava e vinha até mim e me beijava com ardor... e acordei
com um Duque parado ao meu lado.

— O que faz aqui? – perguntei confusa e estiquei os braços.

— Acredito que passou da hora de jantar e estou morto de


fome. – Ele respondeu.

— Mesmo? Acabei dormindo...

— Acho que notei. – Ele ironizou.

Joguei o cobertor para o lado e me levantei.

— Já vou preparar sua comida, Vossa Graça – avisei e


passei por ele.

— Vou com a senhorita para a cozinha. – Ele falou me


seguindo com a cadeira.

— O quê? – Eu me voltei parada à porta.

— O que foi? Um Duque não pode visitar a cozinha de sua


própria casa?

— Deve estar frio lá – argumentei. Não havia sentido ele me


seguir onde quer que eu fosse.

— Por que não quer que eu vá? – Ele me questionou me


empurrando para fora do quarto com a cadeira e saindo atrás de
mim. — Escondem corpos lá?
— De jeito nenhum – respondi.

Ele então riu por eu acreditar em sua pergunta.

— É uma ironia, Senhorita Winslet.

— Ah... vejo que o mau humor se evaporou – comentei


enquanto começava a caminhar pelo corredor e ele seguia ao meu
lado.

— Não sei do que está falando. – Ele desconversou.

— Estou falando do seu humor do cão desde que o médico


esteve aqui – comentei.

— A senhorita não desejava que eu reagisse com bom humor


depois de sentir-me um inútil?

— O senhor não é um inútil! – contestei. — Está lutando por


sua saúde, por que seria um inútil?

— Porque é muito difícil constatar que posso lutar muito e


não chegar onde quero. – Ele confessou.

Eu parei de andar e me voltei para ele.

— É um risco – admiti —, mas se ficar parado também não


vai saber se podia ter dado certo.

— A senhorita e as suas frases prontas! – Ele reclamou.

— Estou errada? – O questionei.


Ele bufou antes de responder.

— Não ao que parece. – Ele respondeu. — Mesmo assim, eu


gostaria que fosse menos positiva hoje e respeitasse meu luto
quanto a minha frustração.

— Isso soa tão infantil para um homem do seu tamanho –


falei e voltei a andar.

Ele me seguiu.

— E suas palavras são tão impertinentes quanto. – Ele


retrucou.

Sorri por cima do ombro:

— Mas nós dois sabemos que o senhor não vai me demitir –


disse e entramos na cozinha.

A Senhora MacGregor havia deixado o fogão aceso e o


ambiente estava quente graças a Deus. Logo esquentei a comida e
fiz os dois pratos.

— Vai querer comer aqui ou no quarto? – perguntei ao Duque


que ficou parado me observando agir.

A única coisa que ele fez para me ajudar foi pegar o cesto de
pão. Mas não por preguiça e arrogância, infelizmente, a cadeira não
permitia que ele fizesse mais.
— Aqui mesmo – ele concordou —, gostaria de beber vinho
durante o jantar. – Ele avisou.

— Algum em especial? – perguntei abrindo o armário


recheado de garrafas.

— Qualquer um. – Ele empurrou a cadeira e se colocou no


lugar dela.

Entreguei a garrafa a ele e o saca-rolhas e enquanto ele


abria, busquei pelas taças de vinho e dispus os pratos na mesa.
Então finalmente me sentei. Não costumo beber, mas naquela noite
eu me daria o direito de experimentar do melhor vinho que já tinha
visto.

— Eu recebi uma carta interessante de um amigo. – Ele


começou a falar quebrando o silêncio.

— Mesmo? – perguntei por perguntar.

— Sim, o Conde de Jersey, Lorde Allan Belmont – explicou.

— Não vi a carta dele nas que chegaram do correio –


comentei.

— John a trouxe para mim – ele prosseguiu —, e se tratava


de um assunto interessante.

— Vossa Graça pretende compartilhar ou vai fazer mistério


durante todo o jantar? – indaguei com certa impaciência.
Um sorriso surgiu no canto dos lábios e ele me fitou para
dizer:

— Ele está com problemas sentimentais.

Achei interessante que ele comentasse comigo tal assunto. O


que eu poderia entender sobre vida sentimental? Nunca tive um
relacionamento e desde o que me ocorreu sempre fugi dos homens
como o diabo foge da cruz. Deveria ser a necessidade mesmo de
conversar com alguém sobre o assunto e havia apenas eu. Aliás,
pensando bem desde o dia em que cheguei ali, ele conversou
apenas comigo. Imaginei como fazia antes da minha chegada.

— Espero que tenha uma solução – comentei.

— Foi por isso que ele me escreveu, quer saber a minha


opinião. – Ele detalhou.

— Ora, muito bem – fiquei orgulhosa —, não sabia que o


senhor era um conselheiro amoroso.

— Talvez o faça para me distrair devido minhas condições ou


porque antes de ficar preso a esta cadeira, eu era conhecido como
um libertino. – Ele se explicou.

Sorri diante do charme com o qual ele abordou o assunto.


Imaginei quantas mulheres não se derreteram por aquele sorriso. E
quantas não morreriam para vê-lo tão perto como eu tinha o prazer
no momento. Gostaria de saber desenhar para poder reproduzir
exatamente o que via e assim guardar para sempre um pedaço dele
comigo.

— Decidi compartilhar com a senhorita, porque acredito que


nesse caso a visão de uma mulher pode ajudar muito mais do que a
de um homem – relatou.

Gostei de ele querer a minha opinião.

— O senhor bem sabe que não sou experiente nesses


assuntos – garanti.

— Mas não custa tentar. Não consegui formar uma opinião


sobre o assunto e talvez sua visão feminina possa me ajudar a dar
uma resposta digna para ele – justificou.

— Pode dizer...

— O fato é que Allan se apaixonou por uma jovem. Ele deve


estar na casa dos trinta anos e ela deve ter vinte anos. É fato que
ele é um Conde e ela uma plebeia que mora aos arredores de seu
condado.

— Um grande empecilho visto que nobres não se casam com


plebeus – eu interferi —, apenas nesse ponto já vemos que o
homem acarreta para si um grande problema.

— Grande problema? – O Duque não compreendeu.


— Veja bem – eu tentei me explicar —, a rainha e seus
súditos não veem com bons olhos casamentos desse tipo e todos
sabem o quanto ela pode ser intolerável quando as regras são
quebradas.

— Mas ele a ama – o Duque explicou —, disse na carta que


não consegue pensar em outra mulher desde que a viu pela
primeira vez, que ela é dona de seus pensamentos, de suas
vontades. Que como um homem experiente e vivido, ele nunca
esperou encontrar o amor da forma como fez. Mas o reconheceu
quando aconteceu.

A intensidade com a qual ele falava as palavras fez meu


coração estremecer. Senti inveja da tal camponesa por ser amada
de forma tão apaixonada.

— Ele teve sorte, mas se deseja ficar com ela tem duas
opções, enfrentar a todos correndo o risco de sofrer represálias
sociais por sua escolha – eu encolhi os ombros e pensei por um
instante —, ou fazer como seu irmão e partir para a América e
casar-se do outro lado do mundo com ela e se um dia voltar para
casa, enfrentar o escândalo que o aguarda.

— De qualquer forma a senhorita me garante que ele terá


que se submeter ao escândalo ou ficar sozinho. – Ele ponderou.

— É o mais provável...
— E quanto a jovem? – Ele me questionou.

— O senhor nada disse sobre a tal jovem – pontuei.

— Ele apenas floreou em elogios – pensou por alguns


instantes e me encarou. Aqueles olhos azuis que brilhavam
perigosos —, ela é tão bonita que toda vez que ele a encontra,
perde o fôlego. Ela é a inspiração para ele para os dias difíceis, e
quando a conheceu ele estava farto da vida e disposto a tirar a
própria, porque já não a suportava mais tal como era.

— Oh! – Eu me compadeci do Conde. Pela forma como o


Duque falou, eu pude sentir a solidão do tal homem. — Perdoe-me a
curiosidade, mas o que ele sofria para desistir da própria vida?

— Não entrou em detalhes, mas deve ser algo bem sério –


ele franziu o cenho e pigarreou —, ele também disse que ela o fita
com os olhos brilhando de paixão e por alguns segundos ele
vislumbra o amor, mas não tem certeza.

— Ele nunca conversou com ela? – perguntei curiosa.

— Várias vezes – assegurou afirmando com a cabeça —,


inclusive ele a acha a mulher mais inteligente que conheceu, dona
de uma alma ferida e caridosa, que o faz ter vontade de cuidar dela
para sempre, de fazê-la feliz.
— Bem – meneei a cabeça. — Se o Conde é tomado por
tamanho sentimento, deve encontrar um modo de viver o que sente,
ou se arrependerá se ela for de outro.

— Mas não acredita que se ela o amar não conseguirá olhar


para outro homem? – Ele indagou.

— Sim. Mas não sei as condições as quais ela vive. As


mulheres não têm muitas escolhas, elas são obrigadas a se
casarem ou se tornam um peso para a família. Portanto, se o Conde
a ama, deveria enfrentar o mundo para ficar com ela.

— Mesmo a fúria da rainha e a exclusão social? – Ele me


questionou.

— Ele prefere o amor ou a solidão em bailes intermináveis? –


devolvi com um sorriso.

— Se ele me pediu o conselho, com certeza está disposto a


vivenciar esse amor. – Ele afirmou com convicção.

— Será que ele tem dúvidas quanto ao que sente? – Eu


perguntei pensativa.

— Acredito que ele está mais preocupado se ela está


disposta a ficar ao lado dele e enfrentar todos esses escândalos em
nome do amor. – Ele garantiu.

Sorri amistosa.
— Acredito que se amam tal como diz, eles enfrentarão
qualquer coisa para ficarem juntos – concluí.

— É o que vou escrever para ele. – Ele afirmou.

— Diga a ele que as mulheres têm maior dificuldade em


expressar o que sentem, foram criadas acreditando que esconder
seus sentimentos é educado e decente – eu o aconselhei baseada
nas minhas próprias atitudes —, e que por serem de diferentes
classes, ela tenha consciência do quão é impossível ficarem juntos,
por isso, ela mantém o amor escondido sob o silêncio.

O Duque me encarou por algum tempo, os olhos brilhando


daquela forma indecente que me fazia arrepiar até mesmo o couro
cabeludo. Quem me dera ser essa jovem e ele o Conde, e James
estivesse disposto a lutar por nosso amor. Eu estava lendo
romances demais, pensei com amargura.

Desviei o olhar para o vinho e tomei minha taça que me fez


sentir um calor insuportável. Não imaginei que uma simples taça de
vinho me faria soluçar.

— A senhorita está bêbada? – Ele perguntou enquanto eu


empurrava a cadeira de rodas para o seu quarto um tempo depois.

— Não – eu ri —, é só o efeito do vinho – garanti.


Prometi que não beberia mais em minha vida, tive que fazer
um esforço sobre-humano para ajudá-lo a vestir o pijama, eu estava
mais lenta do que de costume. Estava sonolenta e meus olhos
estavam pesados. Quando terminei de ajeitar o cobertor sobre ele, o
bocejo foi inevitável.

— Perdoe-me – eu disse —, é o efeito do vinho.

— Está perdoada. – Ele sorriu.

E eu sorri para ele.

De repente, só senti o Duque segurar minha mão e me puxar


para frente. Foi o suficiente para que nossos lábios se tocassem.
Aquele toque maravilhoso, mas que fez meu sangue correr
depressa e todo o sono passou, inclusive o efeito do vinho. Eu me
afastei depressa e tirei a minha mão da dele. Aquele contato
queimava a minha pele.

— Vossa Graça! – Eu o reprovei.

— Boa noite, Senhorita Winslet – ele me dispensou —, e não


vá sonhar comigo, por favor.

— Eu jamais faria isso! – disse me afastando da cama.

— Mas era o meu nome que a senhorita chamava enquanto


cochilava – falou.
Parei onde estava e o fitei por cima do ombro. Não saiba se
ele estava se divertindo ou era verdade. Fiquei receosa que fosse
real o que ele dissera. Apenas empinei o nariz e deixei o quarto a
passos largos batendo a porta com força. Entrei em meu quarto e
recostei-me na porta. O pior era saber que eu sonharia com ele, não
apenas aquela noite, mas o resto da minha vida.
Capítulo 18

Acordei na manhã seguinte e a Senhora MacGregor já estava


a todo vapor trabalhando.

— O Duque pediu para preparar um jantar especial para a


noite. Terá convidados.

Fiquei surpresa. Ele não havia dito nada naquela manhã


enquanto o ajudava a se vestir.

— Mesmo? – perguntei cansada. — Ele disse quem era?

— Não. Apenas que talvez venha uns seis adultos mais ou


menos. – Ela respondeu.

— Trabalho dobrado – reclamei me sentando à mesa.

— Final de ano é assim mesmo, Senhorita Winslet – ela


avisou —, mas logo que ele voltar a andar, tenho certeza que
deixará que contratem mais empregados e tudo voltará ao normal.
Mas eu não estarei mais aqui, pensei triste.

— Essa casa cheia é outra coisa – ela falou enquanto mexia


na panela no fogão —, cheia de vida.

— Ele vinha muito para Oxford?

— Muito, ele gosta dessa casa, não sei dizer o motivo. Mas
ficava aqui mais do que em Londres ou no castelo de Hapton. – Ela
contou.

Era uma novidade para mim. Levantei e peguei a bandeja


com café e fui para o quarto. Ele estava diante da mesa, olhando
através da janela o manto branco que se estendia pelos jardins da
propriedade. A neve aumentara um pouco. Que tipo de convidados
sairiam do conforto de sua própria casa para estarem ali naquela
noite fria? Apenas um bando de puxa-sacos. Minha vontade era de
bater a bandeja em cima da mesa e derrubar chá quente em sua
roupa impecável.

Servi as duas xícaras e me sentei ao lado dele para


tomarmos o café.

— O jornal de hoje não traz nada de interessante. – Ele falou


olhando para mim e depois tomando seu chá como sempre fazia.

— O que diz?
— Apenas morte e morte. – Ele apontou para o periódico em
cima da mesa. — Oxford está se tornando perigosa tanto quanto as
outras cidades que crescem diante da revolução industrial.

— O êxodo rural e o desemprego nas grandes cidades geram


uma população miserável, que infelizmente acredita que tem que
usurpar a dignidade dos outros para sobreviver – discursei.

Ele se mostrou surpreso com minhas palavras.

— É a velha frase que uns tem muito e tantos tem pouco –


completei.

— Deveria ser professora, Senhorita Winslet.

— Prefiro ser enfermeira – afirmei.

— E cuidar de velhos loucos a ensinar crianças?

— Gosto do que faço, embora note que o senhor não


entenda...

James me fitou como se notasse que eu estava de mau


humor.

— Vou receber alguns convidados essa noite. – Ele


finalmente contou.

— Mesmo?
— Acredito que já lhe disse como me irrita essa mania de
responder com perguntas tolas. – Ele pontuou.

— Mesmo? – Eu ironizei.

— Está tentando me irritar? – Ele perguntou incrédulo.

Outro mesmo ficou preso em minha garganta, mas não o


soltei, comprimi os lábios. Era natal e eu que guardasse meu
ressentimento para mim. Afinal, eu era apenas a cuidadora e não a
dona da casa para que ele me desse satisfações de seus atos.

— E o senhor precisará de minha ajuda, suponho – respondi


retomando minha postura fria e indiferente.

Lembrei das palavras de meu irmão. Ele era apenas um


paciente e eu sua enfermeira. Ou eu me apaixonaria por todos os
meus pacientes? Claro que não. Depois de James Conway meu
coração jamais seria o mesmo e não poderia olhar outro homem
com a mesma adoração que eu lhe devotava.

Ele esticou o braço e pegou um pacote em cima do móvel e o


colocou diante de mim depois de afastar minha xícara.

— O que é isso?

— Um momento especial pede uma roupa mais formal –


avisou. — É um presente.

— Eu... eu...
— Abra logo! – Ele falou impaciente. — Não temos o dia todo
e a senhorita tem coisas para fazer antes que meus convidados
cheguem.

Eu tirei a tampa da caixa rosa e afastei o papel de seda para


me deparar com aquilo que já desconfiava que fosse. Um vestido.
Toquei o tecido na cor azul e meus dedos deslizaram. Era macio e
adorável. Tive que me levantar para tirar o vestido da caixa e olhá-lo
com atenção. Era conforme a moda e do meu tamanho. Jamais tive
um vestido tão bonito em toda a minha vida e tão caro.

— E se olhar lá dentro, há a sapatilha para combinar.

Olhei para dentro da caixa e vi as sapatilhas da mesma cor.


Para uma mulher da classe do Duque deveria ser algo comum
ganhar um vestido como aquele, mas era um sonho para mim. Não
apenas por ser bonito, mas pelo valor sentimental, ele fizera para
que eu estivesse à altura de seus convidados e não me tratassem
com diferença. Como não me apaixonar por esse homem?

— Eu sequer sei como agradecer – murmurei emocionada.

— Apenas use essa noite. – Ele pediu satisfeito.

— Usarei – prometi e guardei o vestido.

Ele segurou minha mão quando fiz menção de pegar a caixa


para me retirar. Meu corpo todo vibrou com aquele simples toque.
Aquele homem não tinha ideia do quanto mexia com meu íntimo, do
quanto me fazia querer ficar ao seu lado mais e mais. E como seria
dolorido dizer adeus um dia?

— Essa noite é importante para mim, Senhorita Winslet. Por


favor, faça com que seja perfeita...

Senti uma pontada de inveja dos seus convidados. Queria ser


tão acarinhada como eles seriam.

— Sim, Vossa Graça – respondi e ele soltou minha mão.

Eu poderia não ter seu amor, mas havia uma cumplicidade


única entre nós. E durante o restante do dia me dividi entre cuidar
dele e ajeitar o salão principal para o Natal. Higher me ajudou a
colocar os enfeites de natal pela sala e deixar tudo mais
aconchegante e com o espírito de Santa Claus como o Duque
queria. Fiquei satisfeita quando vi tudo pronto. Não havia uma
árvore de natal, mas havia presentes ao redor da lareira enfeitada e
isso foi o suficiente para deixar tudo mais bonito.

A mesa já estava posta e preparada para receber os


convidados. Dessa vez, o Duque permitiu que Higher o ajudasse a
se vestir para que eu pudesse me arrumar. A primeira coisa que fiz
foi ajeitar meus cabelos. Não entendia muito do assunto, mas tentei
imitar minha cunhada Anne que sempre estava bonita com aqueles
coques perfeitos em seus cabelos lindos. Depois de muito tempo
consegui prendê-los deixando cachos caírem ao redor do rosto.

Mas a mágica toda aconteceu quando coloquei as sapatilhas


e depois o vestido por cima das intermináveis saias. O decote
generoso se fundia nas mangas bufantes que iam até o meio do
meu antebraço. O tecido brilhava para mim, me fazendo sentir
especial. Mas havia um terrível detalhe, os botões eram na parte
detrás e não havia para quem eu pedir que os fechassem. Não
podia pedir para Higher, quanto mais para o Duque. E a Senhora
MacGregor havia partido há horas. Tentei de todas as formas, mas
não era possível.

Batidas à porta apenas me deixaram mais aflita. O que eu


poderia fazer?

— Está viva, Senhorita Winslet?

Logo os convidados do Duque chegariam e eu não estava


pronta. Abri a porta apenas para colocar a cabeça para fora.

— Estou com um problema – tive que confessar.

— É muito sério? – Ele perguntou preocupado. — O vestido


não lhe serviu?

— Ao contrário, ficou perfeito – garanti. — Mas é que os


botões são atrás e não consigo fechá-los, sozinha.
James ficou aliviado.

— Saia do quarto e vire-se, eu o farei pela senhorita. – Ele


garantiu.

— Não posso fazê-lo! – assegurei constrangida.

— E por que não? Acaso vai receber meus convidados com


as costas nuas?

— Não! – respondi ofendida.

— Senhorita Winslet – ele disse tentando ser paciente —, por


favor, seja sensata. Logo os convidados chegarão e é melhor que
esteja adequadamente vestida, mesmo que eu tenha que fechar os
botões de seu vestido, do que eles a verem seminua e pensarem
absurdos sobre nós.

Posto daquele modo, eu estava vencida.

— O senhor não pode olhar – condicionei.

— Mas se eu não olhar, como vou saber qual botão fechar? –


A pergunta dele era bastante coerente.

— A próxima vez que for comprar um vestido para mim, olhe


esses detalhes! – pedi nervosa.

— Então espera mais presentes meus? – Ele zombou.

— Não está facilitando para mim. – Eu o reprovei.


— Saia logo e deixe-me fechá-los, prometo que farei com
todo o respeito do mundo. Dou minha palavra de cavalheiro.

Como ele mesmo dissera, não havia outra alternativa, havia?

Resignada, eu abri o resto da porta e saí. Os olhos dele


brilharam de uma satisfação ímpar e eu lhe dei as costas. E como
havia prometido, ele foi respeitoso, embora tenha demorado mais do
que o respeitável para fazê-lo. Quando terminou, ele disse:

— Vire-se. – Ele mandou.

Eu me virei para ele e passei as mãos enluvadas na barriga.

— Como estou? – perguntei com certa insegurança.

Mesmo vestida com aquele vestido caro, eu sabia que muitos


notariam que eu não era uma nobre, eu jamais teria a classe que
Anne possuía de forma natural.

— É a mulher mais linda que já vi, Senhorita Winslet...

Apesar das palavras dele terem soado doces como o mel, eu


sabia que o fazia para me deixar mais tranquila. Como sempre, o
Duque era um perfeito cavalheiro.

— Obrigada – respondi nervosa —, o que quer que eu faça


agora?

Ele pegou o envelope que estava sobre o seu colo e me


mostrou.
— Acredito que já lhe disse que sou querido pela rainha. –
Ele voltou a frisar.

— Sim, o senhor disse.

— Eu mandei uma carta para ela há algumas semanas e


obtive resposta. – Ele me contou. — Gostaria que lesse para mim
antes que os convidados chegassem, seria possível?

— Claro – concordei.

Ele deixou o envelope outra vez sobre o colo e rodou a


cadeira em direção à sala arrumada. Fomos para perto da lareira e
ele me pediu que sentasse na poltrona. Eu o fiz e ele me entregou o
envelope.

— Na verdade foi o secretário de Victoria que respondeu sob


as ordens dela, então a carta será um pouco informal.

Eu assenti.

— Pode pular a parte dos cumprimentos, é chata. – Ele


pediu.

— Sim – forcei um sorriso e meus olhos deslizaram pela bela


caligrafia. — Vossa Rainha fica feliz em saber que está bem e se
recupera e ficou bastante intrigada com seu pedido. Vossa Graça
discorrera sobre sua vida no último ano e na solidão que se
encontrava a ponto de desejar a própria morte por não ver saída
para a dor que sentia no corpo e na alma. Até que um milagre
aconteceu. Deus lhe enviou um anjo para que cuidasse do senhor e
então descobriu que havia uma segunda chance apesar de tudo e
seguir em frente já não era tão difícil. O senhor também diz que
esse anjo o salvou de morrer afogado na própria amargura e o fez
compreender que o amor acontece da forma mais absurda e
improvável. Vossa Graça também relata que sabe das hierarquias
que existem acerca de nossa sociedade e o quanto desagrada
nossa rainha casamentos entre pares de classes diferentes. O
senhor perguntou: seria possível o casamento entre um Duque e
uma plebeia, sua cuidadora? E então a rainha lhe responde: deve
perguntar a Deus, meu primo, se é possível que ele permita que o
senhor se case com o anjo que fez o milagre que Ele concedeu...
Que a futura Duquesa seja seu primeiro beijo de amor e o último
beijo de um Duque, meu querido primo.

Minha voz ficou estrangulada e eu já não conseguia ler mais


nada. Levei as mãos aos lábios para abafar o soluço que saiu da
garganta. Ele falava dele, de mim, de nós. Não era possível! E a
resposta da rainha foi tão bela que me roubou todas as emoções
conflitantes que sentia.

Quando ergui o olhar, James segurava uma pequena caixa


de veludo aberta com um anel e emocionado me perguntou:

— Quer se casar comigo, meu anjo?


Era loucura, era loucura. Então toda aquela história que ele
contou no dia anterior entre o Conde e a plebeia, foi sobre nós. Era
a maior loucura da minha vida, mas eu aproveitei para dizer:

— Acho que estou disposta a viver um grande escândalo ao


seu lado – respondi.

Eu me ergui e sem qualquer decência me sentei em seu colo


e o beijei.

— Com tantas mulheres lindas e importantes, o senhor foi se


apaixonar pela mais sem graça delas, Vossa Graça? – perguntei ao
me afastar.

— Com tantos homens bonitos e saudáveis, a senhorita foi se


apaixonar pelo mais mal-humorado e inválido deles?

— Oh, James, eu o amo tanto... – falei sem pensar.

— Eu também a amo, minha querida. Do mais profundo da


minha alma e espero fazer por você tudo que tem feito por mim...

Nós íamos nos beijar quando ouvimos o sino da porta.

— Acredito que os convidados chegaram... – ele avisou.

Eu me ergui da cadeira e ajeitei o vestido. Ele puxou a minha


mão direita e colocou o anel.

— Para que todos saibam que é minha noiva e nos


casaremos o quanto antes...
Olhei para aquela joia que era o símbolo do nosso amor.

— É sempre tão dominador? – perguntei indignada.

Mas a resposta foi abafada pela entrada dos convidados:


Quentin e Anne com as crianças. Minha mãe. E todas as minhas
irmãs, inclusive meu cunhado.

— Minha família? – olhei para ele.

— Meu presente de natal!

Tive que me segurar para não o beijar outra vez. Emocionada


agradeci.

— Obrigada. – Eu disse a ele antes de correr para a minha


família e abraçá-los.

Até mesmo minha mãe que estava chateada comigo, sorria


como nunca. E fora a noite mais memorável da minha vida. Os anos
passam e eu custo a acreditar que conquistei o coração de pedra
daquele Duque. Mas de tudo que é inacreditável foi meu milagre de
natal. O amor que ganhei de presente quando pensei que tudo
estava perdido.

Milagres acontecem onde menos se espera, apenas não


podemos perder a esperança e acreditar em dias melhores.
Epílogo

Porto de Londres, 1881.

O homem alto e loiro desceu pela rampa do navio, sorrindo e


olhando ao redor como se fosse dono do mundo. Pelas cartas
enviadas ao longo daqueles seis anos, conheci mais sobre meu
cunhado e posso dizer que ele era um libertino incorrigível e estava
para nascer a mulher que roubaria o seu coração. James estava de
pé ao meu lado apoiado em sua bengala. Depois de anos de
tratamento, ele conseguia andar sozinho, mas precisava da bengala
como apoio porque ainda mancava. Foram anos de luta e
tratamento, mas nós vencemos juntos cada dia e mesmo quando
ele queria desistir, eu o lembrava que se eu houvesse desistido não
estaríamos juntos agora e então ele seguia em frente. Para um bem
maior eram necessários sacrifícios.
— Nada como Londres fedendo a peixe podre já pela manhã.
– Ele reclamou com deboche e parou diante de James. — Em pé
como um guerreiro. – Ele abraçou o irmão com imenso carinho.

James também o abraçou.

— Tenho certeza que Londres não foi a mesma sem a sua


presença. – James disse ao irmão.

— Tenho certeza também – John sorriu e olhou para mim —,


não vou abraçá-la porque sei o quanto James é ciumento, minha
irmã.

Ele apenas me segurou pelos ombros e me deu um beijo nas


bochechas e se afastou.

— Não sou ciumento! – James ergueu uma sobrancelha.

— Talvez quando não está dormindo! – John olhou para mim


e começamos a caminhar em direção à carruagem.

O verão estava delicioso em Londres e o sol já estava alto no


céu. Meu cunhado tinha voltado para a cidade no tempo certo de
divertir-se com o início da temporada. Eu e James éramos
convidados a todos os bailes, mas não íamos a nenhum. No
primeiro ano de casado, ele fez questão de levar em todos para
chocar a sociedade quando entravamos pelos salões enquanto eu
empurrava sua cadeira. Nós nos divertíamos com a expressão de
desespero dos nobres pelo Duque inválido e a plebeia que o
seduzira oportunamente, era isso que diziam nas nossas costas.
Mas não nos importávamos, Hapton era nosso mundo e ali nos
mantinhos escondidos, mesmo depois que ele voltou a andar.

— Sabia que ele me ameaçou quando estive da última vez na


casa em Oxford? – John me questionou.

— Não – olhei para o meu marido. — Você não me disse que


ameaçou seu irmão.

— John! – Ele o reprovou.

John o ignorou.

— Ele me chantageou e disse que me mataria se eu me


aproximasse da senhora! – confidenciou.

— Mesmo, querido? – perguntei a James.

— Ele estava apaixonado – John respondeu no lugar do


irmão —, e cego de amor.

Eu ri e James apenas praguejou antes de entrarmos na


carruagem e seguirmos para a propriedade de Londres.

Mas fora exatamente assim. Estávamos tão apaixonados um


pelo outro que logo nos casamos e seguimos morando em Hapton,
onde a vida reclusa fazia bem a nós dois. A ele por sua frustração
por não poder andar e a minha por ser tratada como uma plebeia
que invadira o mundo dos nobres. Eu era quase considerada uma
criminosa se não fosse pelo fato de que a Rainha Victoria abençoou
nossa união e as pessoas resolveram nos deixar em paz. Eu a
conheci anos mais tarde em uma visita a Buckingham, era uma
mulher admirável e muito respeitável.

E eu amava meu marido e lhe devotava toda a minha vida.


Seguíamos vendo Adam crescer, mas James concordou comigo que
trazê-lo para morar conosco colocaria a carreira de Quentin em
risco. Seria para o meu filho a melhor mãe do mundo, mesmo que à
distância.

— Está feliz? – James me perguntou quando nos recolhemos


em nosso quarto depois de jantarmos com John na propriedade em
Londres.

— E por que não estaria? – Eu perguntei me voltando para


ele.

— Seu silêncio me incomoda. – Ele comentou.

— Estava pensando em Adam – falei novamente.

— Vamos visitá-lo antes de voltarmos para Hapton. – Ele


garantiu e beijou minha testa.

— Obrigada, meu querido.


Eu era feliz ao lado do meu marido e acreditava no amor e no
poder desse sentimento inexplicável. Mas de todas as coisas que
aprendi com as auguras da vida era que jamais deveria perder a
esperança de dias melhores. Nós não falávamos em filhos. O
médico não sabia dizer o quanto o acidente havia afetado James
quanto ao fato de conceber filhos, mas deixamos a cargo de Deus,
Ele quem fazia milagres e não nós. Assim, sofreríamos menos.

— Sabe um detalhe que nunca lhe contei? – Ele perguntou


dando seu lindo sorriso.

— Pensei que não tivéssemos segredos – enfatizei.

— Não temos – ele garantiu. — Talvez eu tenha mantido esse


detalhe escondido por orgulho.

— Orgulho? – Eu ri.

— Quando sua mãe adoeceu e fazia três semanas que


trabalhava para mim, recorda-se disso?

— Claro que sim!

— Então... O detalhe está aí...

— Conte-me logo ou vai me matar de curiosidade!

Ele riu antes de dizer:

— Eu fui para Oxford por sua causa – ele confessou.


— Mesmo?

— Tanto quanto a senhora ainda tem mania de fazer


perguntas a cada afirmação que faço. – Ele segurou meu rosto entre
suas mãos. — Quando fiquei sozinho em Hapton, eu soube que
minha vida não seria a mesma sem a sua.

Ele se aproximou para um beijo fazendo meu coração bater


mais depressa e o corpo buscar pelo seu num abraço intenso.
James sorriu ao sentir minha paixão e se afastou:

— Gostaria de ler para mim enquanto nos deitamos? – Ele


perguntou.

— Sim, vou escolher algo interessante para nós...

— Eu sei que vai. – E piscou para mim roubando mais um


sorriso atrevido.

Eu amava James profundamente e nada mudaria até o fim


dos nossos dias. Às vezes, quando eu estava sozinha e recordava
tudo que vivemos naquele natal de 1875, a certeza de que milagres
aconteciam era real, palpável.

Peguei o livro em cima do móvel e então um envelope caiu.


Eu o reconheci como aquele com a resposta da rainha. Se eu
pudesse escrever um romance acerca da minha história com James
eu diria que meu maior prazer na vida foi ser o último beijo de um
Duque.
Flávia Padula é mineira e formada em jornalismo, paixão que
deixou de lado muito tempo para cuidar dos filhos e da família.
Acabou desviando pelo caminho profissional na área da
administração, onde tem formação acadêmica, mas acabou
retornando para a escrita, que é sua paixão desde a infância.
Escreveu o primeiro livro aos 12 anos, e continuou sua trajetória
com publicações acadêmicas e artigos de filosofia e
relacionamentos em blogs especializados. O primeiro romance
publicado veio apenas em 2015, com o livro O Duque que
inesperadamente foi abraçado pelos leitores e tornou-se
Bestseller pela Amazon. Hoje, Flávia tem mais de sessenta
trabalhos publicados, entre romances, novelas e contos. É uma
leitora ávida, e não tem preferências, lê de tudo e acredita na
diversidade da literatura.
OUTROS LIVROS DA AUTORA

Livro Jornalístico:

Quisisana, uma história, uma vida

Romance de Época:

O Duque

O Yankee

O Plebeu

A Casa da Colina

De Volta à Casa da Colina

O Cavalheiro de Shetwood

Meu Querido Primo

O Último Beijo de um Duque

O Pirata e a Prisioneira

A Carta

Conde de Denbigh

Sublime

A Força do Amor

O Poder do Amor

A Glória do Amor

O Fora-da-lei
O Vingador

O Justiceiro

Danior

Vladimir

Xavier

Gustav

Heron

Fúria Cigana

A Maldição do Rei

O Feitiço da Princesa

Caçada de Mestre

O Destino de Sarah

Desejo

Paixão

Coragem

Solidão

A Farsante

A Noiva e o Russo

Como Sequestrar um Duque

Cartas para o Conde

A Preferida do Duque

A Preferida do Marquês

A Preferida do Conde
A Preferida do Lorde

Contemporâneo:

Uma Segunda Chance

O Falcão do Deserto

O Amante Espanhol

Escolhas

O Pescador

O Vira-lata

O Playboy

Ralph

Duplamente CEO

Egor

Clube de Swing

O Baile de Carnaval

Fim de Semana com o Chefe

Prazeres de Uma Noite

Quero Me Casar

O Editor

Tentação e Cobiça

Guto

Áthila

Falcon

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