HENNIGEN, Inês. (2019) - Endividado, Devo: Governo Da Vida Pelas Finanças (Artigo)
HENNIGEN, Inês. (2019) - Endividado, Devo: Governo Da Vida Pelas Finanças (Artigo)
HENNIGEN, Inês. (2019) - Endividado, Devo: Governo Da Vida Pelas Finanças (Artigo)
2019v16n3p3953
ENDIVIDADO, DEVO:
GOVERNO DA VIDA
PELAS FINANÇAS
ENDEUDADO, DEBO: GOBIERNO DE LA VIDA POR LAS FINANZAS
Inês Hennigen ∗
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO: Neste artigo, problematizo a financeirização da vida, compreendendo que a política da dívida é uma forma da biopolítica
no seio do capitalismo neoliberal. Inicialmente, discuto conceitos foucaultianos para, junto com pensadores como Deleuze,
Lazzarato, Fontenelle, Hardt e Negri, abordar a constituição da cultura do consumo e do capitalismo financeiro, configuração sócio-
política-econômica na qual advém a figura subjetiva do homem endividado em face da centralidade da relação credor-devedor.
Análises acerca da crise de 2008, materiais de pesquisas que realizei, e matérias sobre dívida pública e reformas ditas imprescindíveis
são alguns subsídios utilizados para tecer discussões que apontam para uma torção no princípio biopolítico na sociedade da dívida:
se você puder pagar, você vive; se não, pode morrer. Buscando compor uma recusa às atuais formas de governo e abrir espaço para
experiências outras, traço linhas para o desenvolvimento do que nomeio aqui uma educação quanto ao consumo e crédito-dívida.
PALAVRAS-CHAVE: Dívida. Capitalismo neoliberal. Governo biopolítico. Processos de subjetivação. Educação.
RESUMEN: En este artículo, problematizo la financiarización de la vida, comprendiendo que la política de la deuda es una forma
de la biopolítica en el seno del capitalismo neoliberal. Inicialmente, me acerco de los conceptos foucaultianos para, con pensadores
como Deleuze, Lazzarato, Fontenelle, Hardt y Negri, abordar la constitución de la cultura del consumo y del capitalismo financiero,
la configuración sociopolítica y económica en la que se produce la posición subjetiva de lo hombre endeudado debido a la
centralidad de la relación acreedor-deudor. Los análisis acerca de la crisis de 2008, materiales de investigaciones que realicé, y
materias sobre deuda pública y reformas dichas imprescindibles son algunos subsidios utilizados para tejer discusiones que apuntan
a una torsión en el principio biopolítico en la sociedad de la deuda: si usted puede pagar, usted vive; si no, puede morir. Con el
objetivo de componer un rechazo a las actuales formas de gobierno y abrir espacio para otras experiencias, trazo líneas para el
desarrollo de lo que llamo aquí una educación en cuanto al consumo y crédito-deuda.
PALABRAS CLAVE: Deuda. Capitalismo neoliberal. Gobierno biopolítico. Procesos de subjetivación. Educación.
ABSTRACT: In this paper, I problematize the financialization of life, from the perspective that debt policy is a form of biopolitics
within neoliberal capitalism. Initially, I discuss Foucauldian concepts. Next, along with thinkers like Deleuze, Lazzarato, Fontenelle,
Hardt and Negri, I approach the constitution of the culture of consumption and financial capitalism, a socio-political-economic
configuration in which the subjective figure of the indebted man is produced due to the centrality of the creditor-debtor
relationship. Analysis concerning the 2008 crisis, materials of researches I have done, and reports on public debt and the so-called
∗
Doutora em Psicologia pela PUCRS, docente do PPG em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, coordenadora do grupo de pesquisa LECOPSU: Leituras do contemporâneo & Processos de
subjetivação; e-mail: [email protected].
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essential reforms are some of the subsidies I use to discuss these issues that point to a twist in the biopolitical principle in debt society:
if you can pay, you live; if you cannot, you can die. Aiming to compose a refusal to the present forms of government and to make
other experiences possible, I outline lines for the development of an education regarding consumption and credit-debt.
KEYWORDS: Debt. Neoliberal capitalism. Biopolitical government. Subjectivation processes. Education.
1 INTRODUÇÃO
No presente artigo, problematizo a financeirização da vida, compreendendo, com Maurizio Lazzarato, que a política da dívida é
(um)a forma atual da biopolítica no seio do capitalismo neoliberal (MACHADO, 2017). E, a fim de compor uma recusa às formas
de governo que estão postas a nós no contemporâneo, de modo a buscar abrir espaço para experiências outras, traço linhas para a
constituição do que nomeio aqui uma educação quanto ao consumo e crédito-dívida. Para tanto, penso ser importante,
inicialmente, abordar algumas teorizações foucaultianas que são substratos para as releituras e articulações que vêm sendo
produzidas por diferentes autores.
No curso Em defesa da sociedade, Foucault (2010b, p. 201) aponta “[...] a assunção da vida pelo poder” como um dos fenômenos
fundamentais do século XIX. Ele assinala que, ao poder, cuja modalidade estabelecida até então era a soberania, escapavam muitas
coisas, tanto de pequena quanto de grande escala, em uma sociedade que crescia demográfica e industrialmente. Por isso, visando
recuperar o detalhe, ainda no século XVII, processou-se uma primeira acomodação, que o autor denomina organodisciplina da
instituição; já uma segunda acomodação – a mirar os fenômenos globais, de massa ou da população, mais difícil de consumar-se,
pois requeria órgãos complexos de coordenação e centralização –, a bioregulamentação pelo Estado, engendrou-se no final do
século XVIII.
Trata-se dos dois polos de desenvolvimento do biopoder, ambos tecnologias do corpo, que, ao contrário de se opor, alternar ou
excluir, são “[...] interligados por todo um feixe intermediário de relações [...]” (FOUCAULT, 1999, p.131), como o autor explicita
ao retomar o conceito no livro História da sexualidade I, publicado ao final daquele mesmo ano. Em um polo, designado ali como
“anátomo-política do corpo humano” (FOUCAULT, 1999, p. 131, itálico do autor), estão as disciplinas 1– concepção que permitiu
que fosse cunhada a expressão sociedade disciplinar –, que têm como foco o corpo-máquina (corpo individual dotado de
capacidades, cuja utilidade e docilidade devem ser maximizadas). No outro polo, o que está no centro de interesse é o corpo-espécie,
portanto, corpos enquanto remetidos a processos biológicos de conjunto (nascimentos, nível de saúde, duração da vida, entre tantos
outros), sendo que “tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política
da população” (FOUCAULT, 1999, p. 131, itálicos do autor).
Ao buscar avançar, no curso Segurança, território e população, a discussão sobre biopoder, o que lhe conduz ao conceito de
governamentalidade, Foucault (2008) aborda os diferentes mecanismos ou técnicas de poder (jurídico-legais, disciplinares e de
segurança 2) enfatizando que eles não se sucedem; entende sim que eles podem tornar-se mais complexos ao longo do tempo, “mas
o que vai mudar, principalmente, é a [técnica] dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos”
(FOUCAULT, 2008, p. 11, itálico meu).
De sorte que as coisas não devem de forma nenhuma ser compreendidas como a substituição de uma sociedade
de soberania por uma sociedade de disciplina, e mais tarde de uma sociedade de disciplina por uma sociedade,
digamos, de governo. Temos, de fato, um triângulo – soberania, disciplina e gestão governamental –, uma gestão
1
No livro Vigiar e punir, Foucault (2010c, p.133) observa que processos disciplinares tinham existência bem mais remota, estabelecendo uma descontinuidade ao
afirmar que o que ele conceitua como disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação no decorrer do século XVII e XVIII, quando “[...] o corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está
nascendo [nesse momento]”.
2
Foucault, em diferentes textos/passagens, emprega as expressões mecanismos, técnicas ou dispositivos ao se referir a estas três formas de exercício de poder
(preponderantes, correlativamente, na soberania, na disciplina e na biopolítica/governo/segurança); por vezes, as usa como se sinônimos fossem, noutras para marcar
uma especificidade, um deslocamento teórico-analítico, mas abordar isto em detalhe foge ao escopo deste escrito.
governamental cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança.
(FOUCAULT, 2008, p. 142-143).
No século XVIII, as duas direções de desenvolvimento do biopoder podiam ainda ser nitidamente discernidas a despeito de esforços
empreendidos para a elaboração de uma teoria geral que coordenasse tais técnicas de poder, assinala Foucault (1999), e ressalta que
não foi no nível discursivo especulativo que a articulação sobreveio, senão “na forma de agenciamentos concretos que constituirão a
grande tecnologia de poder no século XIX: o dispositivo da sexualidade será um deles” (p. 132, itálicos meus).
Foucault (1999) afirma não ter dúvidas que o biopoder constituiu elemento-chave ao desenvolvimento do capitalismo, seja por criar
condições para a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção ou em função da conformação dos fenômenos de
população aos processos econômicos. Assim, “[...] o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do
crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados
possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos.“ (FOUCAULT, 1999, p. 133).
Deleuze (2008), no texto Post-scriptum sobre as sociedades de controle, de 1990, retoma concepções foucaultianas para evocar “novas
forças que se instalaram lentamente e que se precipitaram depois da Segunda Guerra mundial” (DELEUZE, 2008, p. 219-20, itálicos
meus) de modo a mostrar que estávamos sendo algo outro e não mais sociedades disciplinares. Entendo que, menos advogar em
favor de uma sucessão (apesar de usar esse termo), o que ele estava buscando evidenciar era uma torção na correlação de forças entre
os diferentes mecanismos de poder e sua diferenciação-complexificação no contemporâneo. Ao forjar a designação sociedades de
controle para referir-se ao que passávamos a ser, parece-me que atualiza a noção de controles reguladores, que Foucault (1999)
utilizou ao delinear o conceito de biopolítica da população, lançando luz àquilo que vinha ganhando volume no corpo social e agora
mostrava condições tecnológicas (como as da informação e comunicação), conexões e incidência sem par, a se (re)conhecer e
enfrentar.
Dentre os plurais processos e características que o autor vislumbra, destaco alguns que se relacionam de modo mais direto à questão
em tela neste escrito. Primeiro, a mutação do capitalismo: o do século XIX era de concentração, voltado para a produção e de
propriedade – tendo a fábrica e a posse dos meios de produção como importantes corolários; o atual é de sobreprodução 3 uma vez
que “compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que ele quer comprar são ações”,
diz Deleuze (2008, p. 223, itálicos meus). Por outro lado, evocando o par massa-indivíduo, operante nas disciplinas, o autor sustenta
que hoje todos nós passamos à condição de “‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornam-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’”
(DELEUZE, 2008, p. 222, itálicos do autor) – nada incidentalmente, a enrobustecer o marketing, poderoso instrumento de controle
social. Outro ponto de distinção, talvez o mais expressivo, ele aventa, é o dinheiro: enquanto a disciplina tinha como referência uma
medida padrão, moedas cunhadas em ouro, “o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma
percentagem de diferentes amostras de moeda” 4 . Por fim, (um)a nova figura subjetiva:
O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve
como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos
demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a
explosão dos guetos e favelas. (DELEUZE, 2008, p.224, itálicos meus).
Tomando como ponto de partida tal elaboração do autor, em texto no qual discuto a produção da posição subjetiva endividado na
contemporaneidade (HENNIGEN, 2018), recorro à Genealogia da moral, de Nietzsche (2009), para sublinhar o fato de que ter
dívidas/estar em dívida ou, mais especificamente, a relação credor-devedor é tão antiga e primordial que, para ele, estaria no cerne
3
O que, de modo algum, excluiria a produção, o que seria inimaginável; entretanto, o laborioso processo de transformar matéria-prima em produtos e/ou
componentes desses estaria concentrado em zonas periféricas do (chamado terceiro) mundo.
4
Não custa lembrar que o padrão-ouro clássico (libra-ouro), teorizado já em meados no século XVIII, vigorou entre 1870 a 1914; o do pós-Segunda Guerra (dólar-
ouro) é estabelecido em 1944 e conhece seu fim em 1971. Desde então, qualquer correspondência de moeda-ouro é absolutamente impraticável.
da organização social mesma – e que as faces financeira e moral da dívida estão amalgamadas no seu engendramento desde o
começo.
Contrair/ter dívidas, o que (pode) implica(r) toda uma série de problemáticas, não é exclusividade de nosso tempo, contudo hoje a
relação credor-devedor vem adquirindo feições talvez mais nefastas. O premiado romance modernista brasileiro Os ratos, de
Dyonelio Machado (2004), publicado nos idos de 1935, traz as agruras experimentadas por um funcionário público endividado, ao
longo de um dia de sua vida, indo de agiota em agiota, de modo a obter algum recurso para seguir (sobre)vivendo.
Fora do mundo da ficção, em pesquisa com pessoas em situação de superendividamento 5 que realizei em 2010, essas, além de referir
privações, sentimentos de vergonha, culpa e impotência, de relatar sintomas como insônia, angústia e agravos físicos e relacionais
na esfera familiar e do trabalho, trouxeram narrativas como estas: “É aquela coisa: tu tira um empréstimo pra pagar o outro, e tira
outro pra pagar outro, e tu nunca consegue sair daquela bola de neve, né?”; “Na seleção, a recrutadora falou: ‘quem estiver no SPC não
precisa nem preencher a ficha’… Aí um monte de gente foi embora!” (HENNIGEN; BORGES, 2014, itálicos meus).
Assim como o drama ficcional, as narrativas dos participantes da pesquisa remetem a corpos individualizáveis, pessoas que, por
variadas circunstâncias, acabaram endividadas, sendo que, no Brasil, elas caracterizam/integram também, conforme definição do
campo do direito, um coletivo – faceta massificante, os consumidores superendividados.
Não raro, indivíduos, quando endividados inadimplentes, ao ter o CPF registrado no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) tornam-
se divididos, divíduos, sendo que tal “traço-condição”, a despeito de quaisquer outras, passa a ser o que “importa”. Apesar de vedado
legalmente, na prática, muitas vezes, estar neste banco de dados funciona como uma senha que fecha portas; quem o indivíduo é,
suas qualificações e trajetória profissional tornam-se irrelevantes ao buscar pleitear uma vaga: não adianta nem preencher ficha.
Hardt e Negri (2014, p.22) afirmam que, “[...] atualmente, ter dívidas está se tornando a condição geral da vida social [...]”. Neste
contexto, em que se verifica o aprofundamento da financeirização da vida, cabe interrogar a afirmação deleuziana: será que ainda
há os que sejam pobres demais para a dívida?
Por um lado, a crise de 2008, que teve como estopim os empréstimos sub-prime, que fizeram crescer e depois explodir a bolha do
mercado imobiliário estadunidense, com repercussões mundo afora, mostrou que, mesmo para pessoas qualificadas pelo sistema
financeiro como NINJA 6 (DOWBOR, 2009) – “pobres” demais? –, foi não só possível, mas estimulada a contratação de
empréstimo/hipoteca, logo, contrair dívidas (que, primeiro, buscaram pagar, depois não conseguiram mais e, no final, perderam
tudo). Os credores não eram “bons samaritanos” a viabilizar moradia aos “menos favorecidos”, mas operavam em sincronia com a
lógica da busca máxima de rendimentos e lucros, evidentemente respaldados por mecanismos de securitização 7.
Entretanto, há outra faceta, que não deixa de estar relacionada à anterior, que se afigura como ainda mais nefasta; em face da
correlação de forças que temos hoje, no capitalismo financeiro neoliberal, mesmo quem não tem dívidas (financeiras, contraídas
individualmente), torna-se (moralmente) endividado – em função das dívidas públicas, em prol da “imperiosa” necessidade de
5
Marques (2006) apresenta o nomeado superendividamento do consumidor como um “fenômeno social e jurídico” cuja definição se dá nos seguintes termos:
“impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo” (MARQUES, 2006, p. 256,
itálicos meus).
6
Em inglês, No Income, No Job, No Assets, que, em uma tradução livre, seria: sem renda, sem emprego, sem bens e/ou dinheiro em depósitos bancários.
7
Para uma melhor compreensão do processo, recomento o artigo de Dowbor (2009, paginação irregular.), que diz: “O banco, ao ver o volume de ‘sub-prime’ na sua
carteira, decide repassar uma parte do que internamente qualifica de ‘junk’ (aproximadamente lixo), para quem irá ‘securitizar’ a operação, ou seja, assegurar certas
garantias em caso de inadimplência total, em troca evidentemente de uma taxa. [...] empurram os papéis mais adiante. No caso, o [alvo] ideal é um poupador sueco,
por exemplo, a quem uma agência local oferece um ‘ótimo negócio’ para a sua aposentadoria, pois é um ‘sub-prime’, ou seja, um tanto arriscado, mas que paga bons
juros. [...] O mercado de imóveis fica saturado, os preços caem mais ainda, pois cada agência ou particular procura vender rapidamente antes que os preços caiam
mais ainda. A bolha estourou. O sueco que foi o último elo e que ficou com os papéis – agora já qualificados de ‘papéis tóxicos’ – é informado pelo gerente da sua
conta que lamentavelmente o seu fundo de aposentadoria tornou-se muito pequeno. ‘O que se pode fazer, o senhor sabe, o mercado é sempre um risco’ O sueco
perde a aposentadoria, o Ninja volta para a rua, alguém tinha de perder. Este alguém, naturalmente, não seria o intermediário financeiro. Os fundos de pensão são o
alvo predileto, como o foram no caso da Enron”.
manter a “saúde/sustentabilidade” do sistema financeiro global, e outras retóricas associadas. Para uma série de analistas, a crise de
2008 fez perceber melhor o relevo da relação credor-devedor para a governamentalidade neoliberal e expansão capitalista: passamos
a ser governados e conduzir nossa vida, escolhas, trabalho, condutas de modo a pagar a dívida, que é infinita (pois sempre crescente,
renovada). Não há quem seja pobre demais para essa dívida; ao contrário, os mais pobres, em virtude de cortes orçamentários e
descontinuidade de políticas públicas, talvez sejam aqueles para quem a “fatura” tenha o peso mais insuportável.
Em sua análise das formas dominantes de subjetividade no âmbito da crise social e política corrente – o endividado sendo uma delas,
Hardt e Negri (2014, p. 22) chamam a atenção para o fato de que “a rede de segurança social passou de um sistema de bem-estar
social para um de endividamento, pois os empréstimos se tornaram o principal meio de satisfazer as necessidades sociais”.
Neste sentido, por exemplo, em um tempo no qual entrar no mercado de trabalho é cada vez um desafio maior, a formação superior
é propalada necessidade de primeira hora. Nos Estados Unidos, aponta Lazzarato (2017), chega a 37 milhões o número de pessoas
que se endividam por financiar seus estudos (dois terços dos diplomados), sendo o montante devido da ordem de 904 bilhões de
dólares em 2012, o equivalente à metade da dívida pública de Itália ou França à época. Por isto, o autor aponta as universidades
estadunidenses como, ao mesmo tempo, modelos de empresas financeiras e da atual economia/sociedade da dívida. E levanta a
questão: “que preparação melhor para a lógica do capital e para suas regras de rentabilidade, de produtividade e de culpa do que
entrar no mercado de trabalho endividado?” (p. 63). A pressão pelo reembolso faz com que todo e qualquer trabalho passe a ser uma
(mesmo que não atraente, a possível) opção. Assim, a política da dívida passa a governar a vida, que vai sendo tecida de modo a
buscar fazer frente ao seu reembolso.
Se, para os estadunidenses, o endividamento acontece de forma importante via empréstimo imobiliário e estudantil, no contexto
brasileiro, a se guiar pela Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (CONFEDERAÇÃO NACIONAL
DO COMÉRCIO, 2018), o cartão de crédito desponta, correspondendo, em novembro de 2018, a 77,4% das dívidas (estando em
primeiro lugar desde o início da pesquisa, em 2010), seguido por carnê (14,8%) e financiamento de carro (10,2%); já o financiamento
de casa tem índice de 8,7% e o estudantil nem é arrolado.
Assinale-se que, enquanto a taxa básica de juros no Brasil está na casa de 6,5% a.a., números disponibilizados pelo Banco Central do
Brasil (2018) revelam que, para a pessoa física, as taxas de juros para cartão de crédito, modalidade rotativo em curso normal, oscilam
entre 51,5% e estratosféricos 664,70% a.a. De acordo com levantamento divulgado por Cardoso (2018), em meados de 2018,
considerando os cinco principais bancos, a média chegava a 231% ao ano nessa modalidade; em um rol de 41 países, o Brasil é último,
com as taxas mais elevadas, sendo que no 40º, Argentina, a taxa máxima é de “módicos” 53,2%.
Diante disso, não há como discordar de Lazzarato (JUNGES; CHAVES, 2015, p. 1): “carregamos dentro de nossos bolsos a relação
credor/devedor, pois ela está inscrita no cartão de crédito. Cada compra paga com cartão de crédito nos introduz no circuito
financeiro”. Ao que cabem duas observações: com tais patamares de juros, a referência à “bola de neve”, recorrente nas entrevistas
que realizei para a pesquisa acima citada, é imagem perfeita para a dívida infinita, pois só faz avolumar-se, tornando-se impagável;
por outro lado, diferente da compra de casa ou de financiamento estudantil, é pertinente supor que as dívidas com cartão sejam
relativas ao consumo ordinário ou ao eventual, compondo cenário mais problemático ainda.
Mas, como chegamos, globalmente, a constituir uma economia da dívida? Uma via de compreensão possível é enfocar como o
consumo colocou trabalho/produção em segundo plano e passou a forjar nossa subjetividade, ou seja, o modo como foi se
engendrando uma cultura do consumo. Fontenelle (2017, p.52) situa entre as últimas décadas do século XIX e meados dos anos 40
do século XX sua primeira fase, cujo gradual estabelecimento implicou a conjugação de fatores que concorreram “[...] para a
formação de certo ‘espírito de época’ que legitimasse uma nova forma de viver, pautada pela lógica do consumo”. Além das
condições materiais que alavancaram a produção e ampliação de tipos de mercadorias postas para consumo, processou-se uma
crucial transformação de mentalidades. Para tanto, dois fatores foram determinantes: a invenção do marketing e do crédito ao
consumidor.
O primeiro foi certeiro em nos apresentar um mundo (de objetos, “distinções”, experiências) a se desejar e buscar obter. Contudo,
era preciso reunir recursos para comprar tudo que se descobria existir. Apoiada em estudos de historiadores, a autora refere que a
invenção do crédito ao consumidor mostrou-se decisiva para abalar uma cultura ordenada pela ética do trabalho e do viver a partir
dos seus próprios meios; assim, foi sendo “[...] possível que uma sociedade que vivia sob a lógica da parcimônia e da poupança se
voltasse para a gratificação imediata fornecida pelos produtos” (FONTENELLE, 2007, p. 52-53).
Apesar de a concessão de crédito ao consumo ser operação introduzida em 1878 em Chicago/EUA, foi com o advento dos planos
de financiamento para a compra de automóveis, nas primeiras décadas do século XX, que o crédito começou a perder o duplo
estigma de pobreza e prodigalidade (MOREIRA, 2011); na sequência, e cada vez mais, a compra parcelada de (praticamente
quaisquer) bens e produtos passou a ser um expediente cada vez mais utilizado, alavancando um mercado que segue prosperando
extraordinariamente.
A segunda fase da cultura do consumo, de acordo com as análises de Fontenelle (2017), se processou entre o segundo pós-guerra e
os anos 90 do século XX, época em que se verificou um excepcional crescimento econômico (mormente no contexto estadunidense
até os anos 70, os chamados “anos dourados” do capitalismo fordista). A publicidade vivia um “momento de ouro” e o crédito ao
consumo seguia sendo o combustível necessário para consolidar a cultura do consumo ao descolar a aquisição de produtos, bens e
serviços da posse do dinheiro para sua efetuação. Nos idos de 1968, Baudrillard (2006, p.165) já afirmava que o crédito “[...] é
subentendido como um direito do consumidor e no fundo um direito econômico do cidadão”.
Com a já referida crise de 2008, a questão do crédito e do endividamento adquiriu maior visibilidade e passou a ser alvo de análises
mais amplas, que trouxeram sua dimensão sócio-histórica. Guttmann e Plihon (2008) mostram o quanto – desde a retomada
econômica nos anos 1930 com o New Deal, passando pelo boom do pós-guerra, até chegar ao vertiginoso crescimento e colapso do
mercado imobiliário estadunidense – a economia era (e segue sendo) dependente de patamares cada vez mais elevados de
endividamento (de consumidores, empresas, nações). Eles referem as reformas monetárias no âmbito do New Deal e a ampla
desregulamentação do sistema bancário nos anos 70/80 (primeiro nos EUA e depois em países europeus) como condições para a
constituição de uma economia do endividamento e, na sua esteira, para o que chamam de capitalismo conduzido pelas finanças. Os
autores assinalam que a progressiva estagnação dos salários, verificada nos anos 1970-1990, contribuiu sobremaneira para o avanço
do endividamento dos consumidores, já que reduzir o consumo estaria fora de questão, pois na contramão do American way of life,
difundido mundo afora.
Bauman (2010, p.28) pontua que na sociedade de consumidores a finalidade dos negócios não é satisfazer necessidades, mas ampliá-
las, sendo função da oferta criar demanda; “[...] os empréstimos não são uma exceção: a oferta de empréstimos deve criar e ampliar
a necessidade de empréstimos”. O autor também assinala que a introdução dos cartões de crédito no mercado 8, cujo sedutor slogan
propalava o não adiamento da realização dos desejos, revelou-se operação financeira assaz lucrativa, mormente a partir do “serviço”
continuado das dívidas (e isto que ele não se referia às taxas de juros brasileiras), cuja renovação, através da ampliação dos “limites”
disponíveis era e continua a ser bastante usual.
Apesar de ter enfocado até aqui mais a questão do crédito, pela relação direta com a figura do homem endividado, cabe relembrar,
com Deleuze (2008, p. 223), que o que o capitalismo atual “quer comprar são ações”. Assim, o que temos hoje é, na visão de Chesnais
(2001, p. 8) uma economia “dominada pela procura do lucro, reduzido ele próprio ao ‘valor para o acionista’”, economia que
movimenta livre e seletivamente investimentos à procura de rentabilidade máxima, pois se apresenta como a atividade mais
importante da sociedade e, sendo assim, teria legitimidade para impor suas leis (ou seja, o credor dita as regras do jogo).
8
Eles surgem nos EUA nos anos 1920, mas voltados para um grupo absolutamente restrito de pessoas/clientes; só nas últimas décadas do século XX que aparecem
as grandes bandeiras, quando começa a sua gradativa e crescente penetração e adoção internacional; no Brasil, a expansão da bancarização e a difusão do uso dos
cartões de crédito acontecem de forma mais ou menos sincrônica a partir do Plano Real.
O que se teria então é a concretização da passagem da forma do capital industrial (M-C-M’) à fórmula mais desterritorializada do
capital financeiro (M-M’), sendo que, diferente do que propõem análises mais conservadoras, para Lazzarato (2017, p.131-132), tal
movimento não se configura como uma “degenerescência” do capitalismo (cuja face “seria” industrial e comercial), mas “[...]
representa a forma mais pura e geral da apropriação, cuja hegemonia se instalou a partir dos anos 1970” 9. Nesta configuração sócio-
econômico-política – em que se poderia ver em ação um dispositivo da financeirização –, o governo biopolítico acontece, para esse
autor, via política da dívida.
Embora óbvio, cumpre assinalar que a relação credor-devedor se organiza em torno da propriedade – no caso, possuir e dispor 10 ou
não de dinheiro. Com a gigantesca, e cada vez mais aprofundada, desigualdade de riquezas no mundo, esta relação, que é
inerentemente assimétrica, e sua decorrência direta, a dívida, se tornou crucial na (bio)política contemporânea, pois passou a dizer
respeito à possibilidade de pessoas, empresas e mesmo nações – seus trabalhadores, cidadãos – (sobre)viver ou (falir, perder os
últimos resquícios de soberania nacional) morrer.
Como Nietzsche (2009) já demonstrou há muito tempo, o crédito implica a constituição de um sujeito capaz de prometer, instaura
uma memória da dívida a ser honrada e, desse modo, empenha e condiciona o futuro, o porvir. Neste sentido,”[...] o sistema
dívida/crédito não é apenas motor econômico, mas também uma técnica para governar as condutas dos indivíduos. O sistema da
dívida (financeira e moral, cuja origem, segundo Nietzsche, é a mesma) faz circular, por sua vez, a culpa e a ‘responsabilidade’ entre
os governados. (LAZZARATO, 2009, p. 88).
Importante diferenciar as dívidas móveis e finitas da dívida infinita. As primeiras, de acordo com Deleuze e Guattari, referidos por
Lazzarato (2017), eram características das sociedades arcaicas, sendo a dívida infinita tributária do surgimento dos Impérios,
Estados e também das religiões monoteístas, que lhe associaram a culpa. Para o autor, o capitalismo, tendo introduzido o infinito
na economia e na produção, continuou e prolongou tanto a dívida quanto a culpa infinita.
O capitalismo financeiro intensificou ainda mais essa tendência. Ele instalou a finança e a moeda de crédito no
coração da acumulação capitalista. A dívida é seu motor. O capitalismo financeiro fez da dívida uma promessa
que se deve honrar, a fim de contrair outras sem jamais poder interromper a fuga para frente. (LAZZARATO,
2017, p. 75, itálico meu).
A observação final do autor descreve, em termos teóricos, o que pessoas em situação de superendividamento relatam e, de modo
cínico e ardiloso, a publicidade do crédito propaga insistentemente: faça um empréstimo para pagar (?!) suas dívidas. O que se
enuncia, conforme pesquisa que analisou 46 folders de 21 diferentes instituições financeiras, é que dívidas se pagam com dívidas, ou
seja, nunca efetivamente se sai da condição de endividado, e a tal “bola de neve” só faz crescer. Cabe referir que, em um folder, a
retórica das vantagens de se contratar um empréstimo transforma-se em sarcasmo, uma vez que figura no seu topo a seguinte frase:
“O servidor do RS sempre sai no lucro na Spina” (HENNIGEN; BONAZZA, 2014, p. 229, itálico meu).
Cabe distinguir, ainda a partir de Lazzarato (2017) as funções ou o poder econômico e político do capital financeiro. Referindo
Lênin, o autor aponta duas sequências de dominação do capital financeiro: entre 1870 e 1914, quando se desenvolve o processo
completo do capital, ou seja, industrial, comercial e financeiro; e a partir dos anos 70 do século XX, quando há uma reconfiguração
da relação entre economia e política a nível mundial. O período keynesiano-fordista é descrito como uma exceção, uma vez que se
caracterizou “pela neutralização do poder político de um capital financeiro que, reduzido à simples função ‘econômica’ de
9
Recordando que o padrão-ouro deixa de existir em 1971, o que “libertou” a(s) moeda(s) de quaisquer amarras.
10
Diferentes autores, entre os quais Srnicek (2017), trazem dados acerca dos valores colossais que são transferidos por grandes empresas, principalmente
tecnológicas, para os chamados paraísos fiscais, dinheiro que “sai” do mercado, não alimenta produção e/ou colabora para o aumento da qualidade de vida; “existe”,
mas não está disponível.
financiamento de um capital industrial, foi ‘administrado’ por um compromisso político entre os capitalistas e os sindicatos sob o
controle do Estado” (p. 202, itálico meu).
Assim, na sociedade contemporânea, a dívida (que se afigura infinita, impagável) constitui técnica “capital” para a produção do
homo economicus neoliberal, pois “impõe um aprendizado de comportamentos, de regras de contabilidade e de princípios de
organização usualmente colocados em funcionamento no seio de uma empresa” (LAZZARATO, 2017, p. 67). Entretanto, para o
autor, por ser uma relação de poder universal, ninguém está em posição de exterioridade: mesmo os que “são pobres demais para
terem acesso ao crédito devem pagar juros a credores pelo reembolso da dívida pública; até mesmo os países pobres demais para se
dotarem de um Estado de bem-estar social devem pagar suas dívidas” (JUNGES; CHAVES, 2015, p.1, itálico meu).
O futuro está empenhado! Em diferentes partes do mundo se fazem cálculos sobre quanto cada cidadão (ou bebê, ao nascer),
hipoteticamente, deve: no Brasil, este número (obtido pela divisão simples do montante da dívida pública nacional pelo número de
brasileiros) seria da ordem de R$ 27 mil em outubro de 2016 (MACHADO, 2016) 11.
Pontue-se que o uso estratégico do valor total da dívida ou do resultante do dimensionamento per capita vão em direções que podem
ser bem antagônicas. Por um lado, em entrevista, a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, ressalta a
abusividade das taxas de juros praticadas aqui e coloca luz sobre uma série de mecanismos contábeis, de constitucionalidade
questionável, que vem contribuindo para a explosão da dívida interna brasileira, que disparou, entre 1995 e 2015, de R$ 86 bilhões
para R$ 4 trilhões, apesar do expressivo superávit primário alcançado no período. E concluiu: “portanto, não será cortando gastos
sociais e fazendo reformas da previdência que se controlará o endividamento, pois a dívida cresce em função de uma dinâmica
própria” (BORGES; CUNHA, 2017, p. 770).
Contudo, posições como esta não só tem circulação restrita, mas precisariam também perfurar a barreira do onipresente, sistemático
e estrondoso discurso da imperiosa, imediata necessidade de corte de gastos sociais e das decantadas reformas estruturais, entre as
quais a reforma previdenciária desponta. Por exemplo, Fraga e Tafner (2018, paginação irregular) iniciam sua argumentação em
prol dessa reforma dizendo que “hoje, cada brasileiro nasce devendo R$ 70 mil à Previdência”. Como chegaram a tal cifra, muito
superior àquela estimada a partir da dívida pública total, não entra em questão. Parece que o objetivo não é fazer conhecer melhor a
complexidade do processo/mecanismos de endividamento público, mas, instigando o medo do futuro, convencer que não há saída;
afinal, são lançadas ameaças veladas: “como nossos jovens podem conseguir bons empregos e empreender em um cenário como
esse?”.
Ou persuadir que a “saída” seria justamente (empoderar ainda mais) o capital financeiro. Nos primeiros dias de 2019, o novo
governo federal lança a ideia (que não é nova, mas retorna em momento estratégico) e, assim, busca inserir no jogo político e no
imaginário da população uma modalidade previdenciária que faz recair sobre cada um a responsabilidade de arcar com sua
aposentadoria: eis a proposta do regime de previdência por capitalização 12. A princípio pensado para a classe média, cada
trabalhador teria sua própria poupança e investiria em títulos, ações e outros papéis, não contribuindo mais para um fundo comum
(o regime atual, gerido pelo INSS). Para seus idealizadores, “esse sistema democratizaria o acesso ao mercado de capitais, permitindo
que os brasileiros, de diversas profissões, façam aplicações que rendam mais” (RESENDE; FERNANDES, 2019, paginação irregular,
itálicos meus).
Uma rápida análise deste fragmento de reportagem mostra como a expressão democracia e suas derivações tornaram-se vazias e
mistificadas: o acesso ao mercado de capitais é livre a todos, ao menos a quem é bancarizado, que certamente é o caso da classe
média; então, “fora” o fato de que é preciso ter dinheiro (disponível) para investir, cumpre indagar como tal sistema o
democratizaria. A rigor, pelas informações já divulgadas, o sistema imporia o mercado de capitais aos trabalhadores da classe média
11
Existem outros valores projetados a circular na internet; optei por este porque referido por uma advogada integrante do Núcleo São Paulo da Auditoria Cidadã da
Dívida.
12
Se se trata de mera “cortina de fumaça” para atemorizar e, com isso no horizonte, tornar aceitável uma reforma dura no que tange à perda de direitos e coberturas,
o tempo mostrará.
como única alternativa para reunir algum recurso para aposentadoria. Por outro lado, o aceno com um maior rendimento faz
lembrar as análises de Dowbor (2009), referidas na introdução, quanto à crise dos sub-primes loans e os fundos de
pensão/aposentadoria: promessa de bons negócios, no mercado financeiro, quer dizer maior risco – e, se alguém tiver que perder,
não será o intermediário financeiro, mas o (pequeno) investidor que não foi esperto/ágil para “ouvir” o mercado.
Em suma, tal proposta está em total sincronia com o que observa Lazzarato (2009, p. 85): “[...] as finanças são uma máquina de guerra
que transforma os direitos sociais em dívidas, em seguros individuais e em rendimento (de ações na bolsa)”. Assim, em um
contemporâneo marcado por políticas neoliberais, o que testemunhamos, já há um bom tempo, são pressões e investidas que visam
transformar as mais variadas esferas da vida: em vez de direitos trabalhistas e empregos formais, somos “motivados” a criar,
empreender, investir em negócio próprio; no lugar de direito à moradia, crédito imobiliário; ao invés de aumentos salariais, a
concessão de mais e mais crédito ao consumo; no lugar da mutualização das cotizações para a aposentadoria, fundos de pensão ou
de previdência privada; ao contrário da garantia do direito (constitucional) à saúde e escola pública de qualidade, (seu sucateamento
em prol da) “liberdade” de escolha e “eficiência” dos planos de saúde e das escolas privadas, cujos custos seriam investimentos (em si,
nos filhos).
E assim, chega-se à torção ou atualização no princípio biopolítico na sociedade da dívida: se você puder pagar, você vive; se não,
pode morrer. Nessa, a posição subjetiva endividado atravessa todas as outras: o cidadão-consumidor endividado deve gastar o
máximo possível para manter ou alavancar o crescimento econômico do seu país; já o trabalhador-empreendedor de si endividado
deve engajar-se em uma formação “infinita”, deve aceitar salários mais baixos e/ou trabalho precário/temporário para reduzir o
“custo-trabalho” e/ou deve criar oportunidades de negócios para gerar renda; os usuários de serviços sociais endividados devem
esforçar-se mais para deixar de sê-lo, sair da condição de “peso” para o Estado e para a economia.
Retornando uma última vez às provocadoras palavras de Deleuze (2008, p.224): que parcela da população é/foi mantida ou
gradativamente vem sendo empurrada para a miséria (financeira, social, relacional, subjetiva) seria importante saber melhor, mas é
certo que “a explosão dos guetos e favelas” a sociedade de controle já está tendo que enfrentar.
Análises do presente podem provocar certo “alento” na medida em que se coloca ou se vê colocado em palavras o mal-estar sentido,
que então pode ser discutido com outros, enfrentado coletivamente, mas também levar a uma “aflição” redobrada, ao percebermos
melhor a operação de forças poderosas que buscam conduzir nossas condutas, governar nossas vidas. Talvez um diferencial seja
atentar à palavra realçada: buscam. Por mais que, por vezes, as possibilidades de resistência pareçam quase nulas ou bem débeis,
podemos sim buscar constituir modos de existência éticos que alarguem nosso grau de liberdade (FOUCAULT, 2010a).
A partir da análise que fazem das figuras subjetivas da crise, no que concerne ao endividado, Hardt e Negri (2014, p. 51-2, itálicos
dos autores) propõem que “[...] o processo de subjetivação começa com uma recusa. Não quero. Não queremos pagar sua dívida.
Recusamo-nos a ser despejados de nossas casas. Não nos submetemos às medidas de austeridade. Em vez disso, queremos nos
apropriar de sua – ou, na realidade, nossa – riqueza”.
Engajar-se em tal recusa não que dizer, na perspectiva dos autores, romper vínculos sociais e relacionamentos legais, embrenhar-se
em algum terreno individualizado, apartado e árido. Tal movimento torna-se potente se é para “dar novo significado aos termos
obrigação e dívida, e para descobrir novas relações sociais” (HARDT; NEGRI, 2014, p. 52, itálico dos autores). Destituir as obrigações
indexadas ao dinheiro e “endividar-se” uns com os outros, sustentar obrigações se forem sociais, esta pode ser uma posição (ética)
interessante; adentrar no campo do comum, onde vigem a cooperação e a interdependência produtiva, sugerem os autores.
Como podemos então – em um contemporâneo perpassado pelas lógicas do consumo, do investimento e da dívida, marcado por
individualizações responsabilizantes, distinções hierarquizantes e descartabilidade de tudo que “não dá lucro” – encontrar formas
de nos apropriar de nossa riqueza?
Penso que o espaço escolar pode se configurar como um potente lócus de discussão, produção de saberes e engendramento de
experiências outras quanto ao consumo e crédito-dívida, tomando experiência como “a possibilidade de que algo nos aconteça ou
nos toque”, o que requer pensar mais devagar, suspender o automatismo da ação, “cultivar a arte do encontro” (LARROSA
BONDÍA, 2002, p. 24).
Pode parecer descabido apostar nesta instituição – máquina disciplinadora por excelência para muitos, a ser (de uma vez por todas)
desmontada – como espaço em que algo vital possa ganhar existência. Sem pretensão de defender sua redenção, pois não seria o
caso, junto com Larrosa Bondía (2017, p. 205), compreendo que a escola “tem um papel público no sentido de dar acesso à esfera
pública”, em que é possível dispor as coisas como coisas comuns, onde há lugar para bons encontros, para descobrir e criar novas
relações sociais.
Não se trata aqui, portanto, de sugerir ou indicar um “programa” quanto às temáticas consumo e crédito-dívida a ser implementado
como componente curricular standard, mas de propor, a quem tem circulação e/ou atuação em escolas, algo que seria da ordem da
provocação a um pensar “mais demorado”, ao compartilhamento do vivido, sentido, de dúvidas, posições, desconfortos, estratégias,
(des)informações e conhecimentos no que diz respeito a estas questões, que perpassam seu cotidiano e podem ser articuladas às
mais variadas situações educativas. Neste sentido, importante marcar a diferença em relação a concepções e ações (por vezes, de
caráter meramente instrumental) de educação para o consumo e/ou de educação financeira.
Certas iniciativas, como as de PROCONs, que visam dar a conhecer direitos e deveres no que tange às relações de consumo, de
modo a ampliar a proteção dos consumidores diante de posturas e estratégias comerciais não legalmente respaldadas, e, deste modo,
objetivam tornar o consumidor mais consciente, têm sua relevância (PROCON PORTO ALEGRE, [2006?]). Contudo, elas me
parecem ter efeitos bastante circunscritos, pois as injunções colocadas aos sujeitos na cultura do consumo e na sociedade da dívida
certamente extrapolam a esfera dos mecanismos jurídico-legais (apesar de descartá-los ser um equívoco).
Como a apropriação (de riquezas, saberes, potenciais etc.) é basilar no capitalismo, não surpreende que se tire proveito justamente
do mote “formar consumidores conscientes”, que surge como um movimento de resistência, para, como mostra Mutz (2013),
colocar em curso toda uma pedagogização do consumo, que nada tem de recusa ou transformação, mas de maior captura mesmo,
pois se forja em consonância com enunciados como: aprender a comprar bem, para comprar sempre; consuma sem consumir o
mundo; e seu consumo transforma o mundo. Colocar em questão ditos como esses, re-conhecer processos, instâncias e mecanismos
de incitamento a um “mais-consumir” (produtos, crédito, experiências, pessoas, ambientes, etc.), atravessar “pechas” como “pessoas
consumistas” e entender os processos de produção capitalísticos que as constituem, enfim, buscar politizar e tensionar
naturalizações na esfera do consumo e crédito-dívida, frequentemente referidas como do âmbito da escolha/liberdade individual e
do aumento da qualidade de vida, são possibilidades para constituir um outro tipo de educação, que poderia desenvolver-se nas
mais variadas formas, desde que permitissem fazer mais perguntas do que apresentar respostas/verdades.
No que concerne mais diretamente ao crédito-dívida, após a crise de 2008, ganha visibilidade no Brasil a ideia da necessidade de
desenvolver projetos de educação financeira. Em dezembro de 2010, é publicado o Decreto 7.397 que institui a Estratégia Nacional
de Educação Financeira (ENEF), cuja finalidade é “promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o
fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos
consumidores” (BRASIL, 2010, itálicos meus).
Cabe pontuar que já naquele momento, não por acaso, financeiro e previdenciário foram articulados na Estratégia Nacional. E,
apesar de não ser surpreendente, não deixa de impactar o fato de que o nome do site que abriga a ENEF seja
www.vidaedinheiro.gov.br (BRASIL, 2018). Se se considera que a coordenação e a execução dos programas estão a cargo da
Associação de Educação Financeira do Brasil – AEF-Brasil, instituída/composta por quatro representantes “de peso” do mercado
financeiro 13, nada mais “natural”, embora bem inquietante, pois mostra a direção estratégica e a expertise que se quer ver na sua
condução.
Entendo que provocar o pensar sobre consumo e crédito-dívida, enquanto proposta educativa, não se alinha à ideia de formação,
no sentido clássico de ensinar “conteúdos” como, neste caso, organização de orçamento doméstico, modos “inteligentes” de gerir o
dinheiro, ou mesmo como se tornar um operador financeiro (mais) sagaz a fim de obter maiores rendimentos e vantagens na
atuação no mercado. Diferente do que, por vezes, é apregoado, o mercado/capitalismo financeiro não é e jamais será um jogo de
“ganha-ganha”.
Recusando e subvertendo a colagem feita na nomeação do site “vidaedinheiro”, talvez o mais importante hoje seja lançar luz sobre
as diferentes dimensões do atual governo biopolítico pela dívida e, assim, desconstruir a máxima vidaédinheiro, que vem recebendo
acento.
Por fim, pertinente assinalar que, para qualquer proposta educativa que se queira ética, na acepção foucaultiana, é crucial escapar
das armadilhas da lógica do melhor desempenho, da fragmentação e simplificação do que tem existência plural, complexa e
interconectada, da aridez das fórmulas instrumentais prontas – de modo a criar espaços em que se possa produzir uma vida mais
singular e potente, uma vida (em) comum.
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13
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