Escatologia e Missao

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Escatologia e Missão

Profa Regina Fernandes


Biblioteca Virtual Intuitiva
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Escatologia e Missão
Profa. Regina Fernandes

Trata do tema da escatologia


a partir da América Latina e
do ponto de vista da missão da
Igreja.

Um dos temas da teologia mais adequados para o contexto latino-americano é o


da Escatologia. Falar de escatologia é falar da esperança da restauração da criação, da
celebração apocalíptica que já manifesta seus sinais em cada culto realizado nas mais
diversas línguas, cores, jeitos e representações humanas, onde a liberdade e a
criatividade humana refletem a criatividade divina e a biodiversa beleza do mundo. De
fato, pensar em Escatologia é visualizar-se no centro da floresta amazônica ao som do
barulho dos animais imaginando o salmo 104 em pleno acontecimento.
Escatologia não é exclusivamente para onde caminhamos e o que aguardamos,
mas o que vivemos hoje e a relação disso com a vontade divina. Vivemos o tempo
escatológico de Deus, as últimas coisas, que se iniciaram em Jesus Cristo com a
inauguração do seu Reino e caminham para sua plena realização.

Escatologia e Esperança

Muitos cristãos e cristãs têm, ao longo da história, buscado enquadrar os planos


de Deus dentro de esquemas interpretativos acerca das últimas coisas. Esses esforços
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resultaram em linhas
escatológicas divergentes e
que representam uma
abordagem conservadora
da escatologia, como: pré-
milenismo (histórico e
dispensacionalista), pós-
milenismo, amilenismo e
seus desdobramentos. No
entanto, tais teorias, já tem
sido postas em revisão na
atualidade, principalmente
pelas teologias chamadas de contemporâneas. São esforços humanos de compreensão
e pré-visão do futuro, portanto, sempre sujeitas a falhas e revisões críticas. É em vista
disso e da exaustão desse modelo de escatologia, que não nos ocuparemos dela.
Partimos da compreensão que essa história aguarda seu desfecho em um
momento que vai além dela mesma, onde a criação encontrará seu sentido final e sua
realização plena na conformidade com o Reino de Deus, e se concretizará o que foi
anunciado em I Cor. 15.28: “E, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então o
próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja
tudo em todos.”
Juan Stam adverte sobre o perigo de se tratar da escatologia à parte da teologia
em geral, e o comprometimento do seu sentido histórico e missionário:
Quando a Escatologia (a “profecia”) se separa do resto da teologia, da história
da salvação e da missão da Igreja, de fato perde seu sentido ou assume um
sentido errado. Em vez de serem a consequente culminância de um longo
processo de fé e missão, os “eventos do futuro” se reduzem a espetáculos
sensacionalistas, sem o sentido profundo de que se revestem na Palavra de
Deus. (STAM, 2003, p. 09.)
Ele ainda chama a atenção para as tendências de espetacularização do conteúdo
escatológico e como isso não corresponde ao conteúdo bíblico.
... os grandes acontecimentos do futuro, que a Bíblia anuncia, não são meros
fenômenos espetaculares nem ocorrências exóticas e inoportunas à lógica do
processo histórico. Ao contrário, são a mais profunda revelação do sentido da
história e da lógica da salvação. (STAM, 2003, p. 14).
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Conheça mais:
Leia mais sobre Escatologia Latino-americana no Blog de Juan Stam

Caso não compreendamos isso, nossa escatologia pode orientar erroneamente


toda nossa teologia, conduzindo a um fatalismo histórico e à negação tanto dessa
realidade e sua importância para Deus, como de tudo aquilo que Ele criou.
A satisfação de Deus não está na destruição, mortes, pragas e sofrimento, ainda
que isso faça parte da realidade humana. O que de fato deve nos impressionar
“escatologicamente” é a salvação humana levada às suas últimas consequências, a
redenção da criação e a vitória final de Jesus Cristo sobre todos os poderes e forças que
contrariam a vontade libertadora de Deus. Essa é nossa esperança, que já se realiza de
certo modo na história.
De acordo com Timóteo Carriker a literatura apocalíptica realmente anuncia os
sofrimentos dos finais dos tempos:
... sofrimento agudo e transformação cataclísmica no caminho para o fim
(Mateus 24.13; Marcos 13.13; 2ª. Timóteo 2.12; Tiago 5.11), pois as
calamidades se agravarão cada vez mais. Contudo, o fim será, sem dúvida,
salvífico, pois Deus terá a palavra final. (CARRIKER, 1992, p. 259).
A esperança escatológica, portanto, tem a ver com a vida e a liberdade em sua
realização plena, não com vingança e morte. Isso é tão verdadeiro que Paulo afirma
que a morte será o último inimigo a ser destruído, até mesmo porque ela já foi vencida
na ressurreição de Jesus Cristo (I Cor. 15.26). Isto torna a mensagem do evangelho
uma mensagem também de esperança, não de morte, medo ou desejo de destruição. É
o anúncio da vida em Jesus Cristo.
Mas, a própria escatologia em realização na história nos convoca a também viver
a esperança na nossa vida no mundo. O fatalismo é contra a esperança e é sua mais
veemente negação. A esperança nos leva a verificar (tornar verídico), em nosso
contexto, que em Cristo todos somos vivificados (I Cor. 15.22), e em sua ressurreição
a morte foi vencida, portanto, não domina mais. Em sua missão no mundo, a Igreja é
aquela que denuncia a morte onde quer que aconteça nas suas mais diversas formas.
Tudo o que é sinal de morte é contra Jesus Cristo e sua obra salvadora no mundo, é
contra o Espírito Santo e sua obra vivificadora. Em relação a isso, lembramos Paulo
ao anunciar a destruição de todo domínio, autoridade e poder (15.24), referindo-se à
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todas as forças (espirituais e não espirituais), à parte de Deus, que imperam no mundo
e promovem a morte.
Paulo encerra sua reflexão em I Cor. 15 mostrando que se não há esperança não
há sentido para o sofrimento da exposição a perigos, à perseguição na luta pelo
evangelho e pelos irmãos. Se a ressurreição e a vida eterna não são verdadeiras, resta-
nos viver de qualquer forma a vida e, ao final, nos entregar nos braços da morte eterna.
Mas, ele admoesta “voltem à sobriedade”, pois as coisas não são assim e, então, nos
chama à esperança: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre
atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não é inútil.” (I Cor.
15.58)

Escatologia e a restauração da criação

Para iniciarmos essa discussão destacamos um texto do teólogo reformado


latino-americano Emilio A. Núñez:
A mensagem da providência de Deus é bíblica, teológica e missiológica. Nos
ensina que o Deus da criação é também o Deus da providência; que Ele é
transcendente e imanente em relação com o que foi criado; que Ele se
interessa pelos pequenos e grandes detalhes de nossa existência pessoal; que
Ele pode guiar-nos no caminho de sua vontade agradável e perfeita; que Ele
tem um propósito para nossa própria vida, para todos os seres humanos, e
para toda a criação sem excluir o mundo físico. Este propósito se cumprirá
plenamente na renovação que está por vir. Todavia, Ele segue trabalhando em
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seu mundo (Jo. 5.17) e convidando-nos a colaborar com Ele na realização de


seu plano soberano. (NÚÑEZ, 1997, p. 132.)
Para Núñez o tratamento acerca das coisas que hão de vir passa por um bom
entendimento da providência divina. Ele ainda afirma “... a providência divina dirige
nosso olhar para a criação dos céus e da terra, e a constante atividade de Javé Elohim,
no devir de séculos e milênios, para preservar o que Ele mesmo tem criado” (Núñez,
1997, p. 129.).
Juan Stam também observa que não há como entender a salvação,
principalmente seu conteúdo escatológico, sem uma clara compreensão da criação:
De fato, sem a criação é impossível entender corretamente a salvação nem a
missão; por isso urge uma teologia da criação. O propósito redentor de Deus
não é somente “salvar almas” tampouco redimir pessoas. A meta de todo o
plano de salvação é restaurar, amplamente e em versão melhorada, o que a
primeira criação não cumpriu nas intenções divinas. O grande propósito de
Deus é “fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas
as coisas (Ef. 1.10). Toda a criação vai em direção a essa “glória vindoura”,
que é a meta final da história da salvação. (STAM, 2003, p. 95).
A redenção visa à restauração da criação. Restauração, no exemplo da arte, não
é um simples concerto de algo quebrado ou desgastado pelo tempo, mas tem a ver com
a tarefa de torná-la próxima ao modelo original. Para isso, os restauradores utilizam o
mesmo material ou outro de melhor qualidade da peça original e buscam corresponder
à inspiração do primeiro artista. O mesmo acontece com a criação. Não há bases
bíblicas para se afirmar que Deus desistiu dela ou a abandonou à própria sorte e a
conduzirá à destruição, ao contrário, percebemos todos os dias o cuidado redentor de
Deus sobre aquilo que Ele criou. Essa restauração é percebida também na ação
missionária da Igreja, quando ela cuida da vida e luta para reerguer a cana quebrada e
reacender o pavio que fumega, ou seja, fazer a vida ressurgir onde parecia que já havia
esvaído. De fato, o amor missionário da Igreja em cooperação com a ação vivificadora
do Espírito Santo, desencadeia a capacidade de resiliência da criação dada pelo próprio
Deus.
A restauração como consequência da ação redentora de Deus, já se efetiva na
história por meio da missão da Igreja, mas terá na parusia sua manifestação final e
perfeita.
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Escatologia e Reino de Deus


Carlos Del Pino (pastor e teólogo brasileiro) esclarece que a ideia de Reino de
Deus é compreendida no Antigo Testamento no uso do termo malkuth, que possui o
sentido de “rei”, “reino”, “domínio”, conforme suas variações. O termo foi utilizado
em vários textos para se referir ao reinado de Deus e seu amplo domínio, como é o caso
de Salmo 5.3, 47.3, 18.51, Dt. 33.5. No Novo Testamento o termo utilizado é basiléia,
que também se refere à reino, autoridade e domínio. Ele aparece nos sinóticos em
referência à Jesus Cristo e sua condição messiânica. Conforme Del Pino:
Jesus empregou a frase Reino de Deus ou Reino dos Céus para indicar aquela
ordem perfeita das coisas, às quais ele estava para estabelecer, onde as
pessoas de todas as nações que cressem nele, seriam reunidas numa sociedade
dedicada a Deus e intimamente unidas a Ele, feitos participantes da salvação
eterna. É descrito como um
reino que começou agora, que
sua fundação já fora
estabelecida por Cristo e seus
benefícios realizados entre os
homens que crêem nele (Mt.
11.12; 12.28). (PADILLA,
DEL PINO, 1998, p. 13).
A presença do Reino
de Deus na terra e na
história humana é a
escatologia em
acontecimento, a
penetração do kairós
(tempo de tempo) no chronos (tempo humano). Tanto quanto não dá para dissociar
criação de salvação e missão, não há como separar a escatologia da ideia de Reino de
Deus. Pois este se refere tanto à dinâmica da ação de Deus no mundo, como ao seu
pleno domínio no final dos tempos.
O conceito de Reino é apropriado pois tem a ver com governo, nesse caso,
governo de Deus. A Palavra de Deus afirma que Deus é justo, no sentido amplo e
perfeito do termo. Concluímos então que o Reino de Deus se caracteriza pela justiça e,
por conseguinte, se contrapõe à toda forma de injustiça que há no mundo, nos seus
governos e mesmo em toda a sua organização social. Se a Igreja é a comunidade do
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Reino, ela é necessariamente a comunidade da justiça, tanto em sua vivência interna


como na realização da missão.
Padilla esclarece que tratar de Reino de Deus é também tratar da redenção da
criação e da própria missão da Igreja no mundo, que se dá em relação a ele.
Falar de Reino de Deus é falar do propósito redentor de Deus para toda a
criação e da vocação histórica que a Igreja tem com respeito a este propósito
aqui e agora, “entre os tempos”. É também falar de uma realidade
escatológica que constitui simultaneamente o ponto de partida e a meta da
igreja. A missão da igreja, consequentemente, só pode ser entendida à luz do
Reino de Deus. (PADILLA, 1992, p. 198).
Ele ainda descreve como características da presença desse Reino no mundo:

... o Reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível por meio de sinais
concretos que mostram que Jesus é o Messias. É uma nova realidade que
entrou no centro da história e que afeta a vida humana não somente moral e
espiritualmente, mas também física e psicologicamente, material e
socialmente. Em antecipação da consumação escatológica do final dos
tempos, ele foi inaugurado na pessoa e obra de Cristo... A consumação do
propósito de Deus se realizará no futuro, mas aqui e agora é possível
vislumbrar a realidade presente do Reino. (PADILLA, 1992, p. 199).
Ainda de acordo com Padilla, o Reino de Deus atua no mundo através do Espírito
Santo, o mesmo Espírito que faz existir a Igreja e que impulsiona sua missão no mundo.
No entanto, como sinal concreto do Reino ela deve demonstrar os sinais desse reino.
Isto significa a denúncia do mal, onde quer que ele se manifeste; a prática da justiça
não como opção, mas como aspecto da sua própria natureza; a manifestação no mundo
como comunidade querigmática, adoradora e terapêutica, enfim, a comunidade do
reino.
Quanto à celebração da nova criação como desfecho da história da salvação, é
muito bem comentada por Juan Stam, com o qual encerramos este estudo:
... especialmente na adoração vivemos a esperança da nova criação. O tema
da criação é central em todo o Apocalipse e é expresso de forma suprema no
culto celestial de Ap. 4-5... O trono de Deus está sob o signo do arco-íris (Gn
12-17). Os quatro “seres viventes” são os mais próximos do trono divino, e
os 24 anciãos (dignitários) louvam aquele que está sentado por ter criado
todas as coisas (Ap. 4.10). O culto culmina com a adoração a Deus e ao
Cordeiro por toda a criação no céu, sobre a terra e debaixo da terra (Ap. 5.13).
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Em nossa adoração, nós unimos nossas vozes ao coro celestial. No culto,


adoramos a Deus doxologicamente pela primeira criação e antecipadamente
pela nova criação. Antecipamos e celebramos as realidades prometidas e nos
comprometemos a viver de acordo com elas (Ap. 5.14). (STAM, 2003, p. 98).
A realização do Reino de Deus remete para o culto do povo do reino, que é uma
forma de antecipação daquela grande festa escatológica onde todas e todos, no conjunto
da criação, adorarão ao Criador.

Bibliografia
CARRIKER, Timóteo. Missão Integral - Uma Teologia Bíblica. São Paulo: Sepal,
1992.
NÚÑEZ, A. Emílio. Hacia Una Misionología Evangélica Latinoamericana. Miami,
EEUU: Editorial Unilit, 1997.
PADILLA, René. Missão integral: ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo: FTL
– Temática, 1992.
PADILLA, René; DEL PINO, Carlos. Reino, Igreja e Missão. Goiânia: Seminário
Presbiteriano Brasil Central, 1998.
STAM, Juan. Profecia Bíblica e Missão da Igreja. São Leopoldo: Sinodal, 2003.

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