Planeta Dos Insetos
Planeta Dos Insetos
Planeta Dos Insetos
Sverdrup-ygeson, Anne
Planeta dos insetos / Anne Sverdrup-ygeson; tradução Leonardo Pinto Silva. -
1. ed. - São Paulo: Matrix, 2019.
192 p. ; 23 cm.
Tradução de: Insektenes planet
ISBN 978-85-8230-578-2
1. Insetos - Biologia. I. Silva, Leonardo Pinto. II. Título.
19-59347 CDD: 595.7
CDU: 595.7
CAPÍTULO 2
Sexo entre seis patas
CAPÍTULO 3
Comer ou ser comido — insetos na cadeia alimentar
CAPÍTULO 4
Insetos e plantas — uma corrida eterna
CAPÍTULO 5
Moscas serelepes, besouros deliciosos — os insetos e a nossa
comida
CAPÍTULO 6
Insetos como faxineiros
CAPÍTULO 7
Da seda à tinta — produtos derivados de insetos
CAPÍTULO 8
Insights de insetos
CAPÍTULO 9
Os insetos e nós no futuro
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“Não é a natureza mais grandiosa
senão em seus seres mais diminutos.”
— Plínio, o Velho
23 - 79 d.C.
História Naturalis 11,1.4
PREFÁCIO
Para cada ser humano vivo hoje na Terra existem mais de 200 milhões de
insetos. Enquanto você está aqui lendo esta frase, entre um e dez
quadrilhões de insetos rastejam, caminham e voam pelo mundo afora. Quer
goste ou não, você está cercado de insetos por todos os lados, pois nós
vivemos, na verdade, no planeta dos insetos.
Existem tantos deles, e estão espalhados por toda a parte, que temos
di culdade para compreender essa magnitude — nas orestas, nos lagos,
nos prados, nos rios, na tundra e nas montanhas. Moscas-de-pedra voejam a
seis mil metros de altura nos Himalaias, enquanto outras habitam as fontes
termais de Yellowstone, onde a temperatura passa de 50 oC. A eterna
escuridão das cavernas mais profundas da Terra é o lar de larvas de
mosquitos que não têm olhos. Os insetos podem viver em pias batismais, em
computadores, em tanques de petróleo e entre ácido e bile estomacal de
cavalos. Eles estão nos desertos, sob a superfície de lagos congelados, na
neve e até nas narinas das morsas.
Há insetos em todos os continentes — na Antártida, é verdade, eles são
representados apenas por uma única espécie: um tipo de mosquito sem asas
que “baterá as botas” caso a temperatura ultrapasse os dez graus positivos
por um período mais longo. Até mesmo no mar, você pode encontrar
insetos. Focas e pinguins têm piolhos de vários tipos presos à pele, que não
se desgrudam nem durante os longos mergulhos. Existe até mesmo um tipo
especí co de piolho que vive no papo enorme que os pelicanos têm debaixo
do bico. E há aranhas-d’água (também conhecidas como insetos-jesus) que
passam a vida deslizando suas seis patinhas pelo oceano. Porém, os insetos
podem não ser tão grandes assim. Mas seus feitos estão longe de ser
pequenos.
Bem antes de os humanos rmarem-se em dois pés pelo planeta, os
insetos já haviam dado início à agricultura e à pecuária: cupins cultivam
fungos como alimento e formigas criam pulgões, a exemplo de vacas
leiteiras. As vespas foram as primeiras a produzir papel a partir da celulose.
Larvas de moscas-da-primavera (Trichopterae) passaram anos a o
capturando outros bichos antes de nós, humanos, conseguirmos tecer nossa
primeira rede de pesca. Os insetos resolveram problemas complexos de
aerodinâmica e navegação há vários milhões de anos, e dominaram não o
fogo, mas pelo menos a luz — que controlam dentro dos próprios corpos.
Um parlamento de insetos
Se optarmos por contar indivíduos ou espécies, sobram razões para
a rmar que os insetos são o grupo de animais de maior sucesso do planeta.
Eles não são apenas incontáveis em número; eles representam mais da
metade das espécies multicelulares que conhecemos — há cerca de um
milhão de variantes diferentes deles. Ou seja, se você tivesse um calendário
com fotos de uma espécie diferente de inseto a cada mês, ele teria 80.000
anos!
De A a Z, os insetos nos impressionam com sua riqueza de espécies: de
abelhas a zangões, passando por borboletas, cigarras, drosó las,
escaravelhos, formigas, gafanhotos, himenópteros, libélulas, mandruvás,
pulgões, saúvas e vespas.
Na Noruega há insetos que detêm o poder, de verdade. Vamos fazer um
raciocínio hipotético: para ter uma ideia de como a biodiversidade é
distribuída entre os diferentes grupos de espécies, suponhamos que todas as
espécies de insetos conhecidos na Noruega, grandes ou pequenos, ocupem
um lugar no parlamento. O parlamento caria lotado, pois mesmo se
permitíssemos a entrada de um representante de cada espécie, teríamos
43.705 “deputados”.
Agora, digamos que dividíssemos os mandatos, e desta forma os assentos
no parlamento, de acordo com a quantidade de espécies existente em cada
um dos grupos de animais. Estaríamos diante de um padrão novo e
desconhecido.
Os insetos dominariam. Teriam 44% dos assentos — e aqui contamos
apenas os insetos “puros”, não aracnídeos, centopeias. Além disso, fungos e
cogumelos dividiriam um quinto dos assentos, enquanto plantas
vascularizadas (superiores) e musgos deteriam 12% das cadeiras. Para
facilitar, imaginemos uma nova coalizão formada pelo restante dos
pequenos organismos, desde as lombrigas até os caracóis e ácaros. Eles
teriam, então, um quarto dos assentos.
Mas e quanto a nós nessa divisão? Examinando a biodiversidade com esse
critério, somos muito poucos. Ainda que nos aliemos a todas as demais
espécies de vertebrados da Noruega — isto é, animais como alces, peixes,
pássaros, cobras e rãs —, caríamos abaixo da cláusula de barreira, com
apenas 2% das espécies animais. Em outras palavras, nós, humanos, somos
completamente dependentes de uma in nidade de espécies pequenas e
anônimas, das quais os insetos compõem uma proporção signi cativa.
Mas, então, como são feitas essas pequenas criaturas com as quais
dividimos o planeta? Prepare-se para um curso relâmpago de constituição
dos insetos, no qual também aprenderemos que, apesar do tamanho
modesto, eles sabem contar e são capazes de aprender e reconhecer uns aos
outros e também a nós, humanos.
Tempo de transformação
Os insetos apresentam-se em duas variantes: aqueles que se transformam
gradativamente por meio da troca da carapaça, e aqueles que passam por
uma transformação súbita, que marca a transição para a vida adulta. Essa
transição se chama metamorfose.
Os primeiros — por exemplo, libélulas, gafanhotos, baratas e percevejos
— mudam gradualmente de aparência à medida que crescem. Um pouco
como nós, humanos, exceto pelo fato de que não precisamos nos livrar da
nossa pele para crescer. Durante a fase infantil, esses insetos são chamados
de ninfas. As ninfas crescem, trocam o exoesqueleto algumas vezes (o
número varia de espécie para espécie, mas o mais frequente é de três a oito
vezes) e cam cada vez mais parecidas com a versão adulta. Finalmente, a
ninfa faz uma última troca de casca e rasteja para fora do casulo com asas e
órgãos sexuais plenamente desenvolvidos — pronto, cresceu!
Outros insetos passam por uma transformação completa — uma
mudança quase mágica da infância para a vida adulta. No nosso mundo
humano, temos de recorrer à fantasia para encontrar exemplos de mudanças
parecidas — como o sapo que se torna príncipe quando é beijado pela
princesa, ou a personagem Minerva McGonagall, de “Harry Potter”, quando
assume a forma de um gato. Nos insetos, a mudança não depende de
fantasia ou de feitiços para acontecer. A metamorfose é controlada por
hormônios e determina a transição do estágio infantil para o adulto.
Primeiramente, o ovo é chocado e dá à luz uma larva, que não parece em
nada com aquilo em que irá se transformar. A larva costuma ter uma boca
na extremidade e um ânus na outra, e a aparência de uma bolsa comprida e
amarelada (embora haja honrosas exceções, caso de várias lagartas
tropicais). A larva passa por várias trocas de casca e ca cada vez maior, mas
mantém-se bastante semelhante ao que já é.
A mágica ocorre no estágio da pupa, um período de descanso em que o
inseto passa por uma transformação miraculosa, de um anônimo “bicho-
bolsa” para um incrível e namente elaborado indivíduo adulto. Dentro da
pupa, o inseto inteiro é reconstruído, como um Lego cujos tijolinhos
tenham sido desmontados e remontados novamente, dando forma a um
novo brinquedo. Finalmente a pupa racha e uma “maravilhosa borboleta
vem ao mundo no verão” — nas palavras do meu livro infantil favorito, Den
lille larven Aldrimett (A lagartinha esfomeada).
A metamorfose, uma transformação completa, é engenhosa e, sem dúvida,
a variante mais bem-sucedida. A maioria das espécies de insetos do planeta,
85%, passa por uma metamorfose completa. Isso inclui os grupos de insetos
predominantes, como besouros, vespas, borboletas, moscas e mosquitos.
O engenhoso disso reside no fato de que assim é possível explorar duas
dietas e hábitats diferentes como criança e adulto, tirando o máximo
proveito de ambas em cada uma dessas fases da vida. Con nadas ao chão, as
larvas são como máquinas de comer, devorando tudo que encontram apenas
para acumular energia. No estágio de pupa, as calorias acumuladas são
utilizadas e reinvestidas em um organismo totalmente novo: uma criatura
alada, dedicada à reprodução.
A conexão entre larvas e insetos é conhecida desde a antiga civilização
egípcia, mas não se tinha uma ideia clara do que acontecia. Alguns achavam
que a lagarta era apenas um feto desorientado que escapara do ovo e
rastejava de volta a ele — na forma de pupa —, para nalmente poder
nascer. Outros alegavam que se tratava de dois indivíduos totalmente
diferentes, que o primeiro morrera e ressuscitara em um novo ser.
Somente no século XVII, o biólogo holandês Jan Swammerdam pôde,
com seu microscópio, demonstrar que a larva e o inseto adulto eram o
mesmo indivíduo o tempo inteiro. Com o microscópio foi possível perceber,
seccionando cuidadosamente uma larva ou pupa, as características claras e
inequívocas do inseto adulto. Swammerdam gostava de exibir suas
habilidades de cirurgião e seu microscópio diante de uma plateia, e
apresentava-se escalpelando uma enorme larva de bicho-da-seda e
identi cando a estrutura e os padrões característicos das veias nas asas desse
inseto.
Mesmo assim, essa foi uma descoberta que não se popularizou até um
bom tempo depois. No seu diário, Charles Darwin conta a história de um
pesquisador alemão acusado de heresia no Chile, no século XIX, por alegar
que tinha o poder de transformar lagartas em borboletas. Até hoje o
surgimento da metamorfose é objeto de debates entre especialistas.
Felizmente ainda existem mistérios neste mundo.
Um enxame de bailarinas
Mais ou menos na mesma época em que viveram Osten e seu cavalo nem
tão esperto assim, vivia na Áustria um futuro ganhador do prêmio Nobel.
Karl von Frisch amava animais desde a infância e deve ter tido uma mãe
muito tolerante, que acatou de bom grado sua vasta coleção de bichinhos de
estimação. Ao longo da infância, ele registrou 129 animais diferentes em seu
diário, incluindo 16 pássaros, 20 variedades de lagartos, cobras e rãs e 27
peixes de espécies distintas. Mais tarde, como zoólogo, seu interesse foi
direcionado especialmente para os peixes e para a maneira como enxergam
as cores. Quase por acaso, uma vez que seus objetos de estudo aquáticos
tendiam simplesmente a morrer a caminho das conferências onde iria
demonstrar suas experiências, ele começou a estudar as abelhas.
Karl von Frisch fez duas grandes descobertas: provou que as abelhas
podem perceber as cores e, por meio de uma so sticada dança, dizem umas
às outras onde se encontra a comida. E por isso mesmo ele ganhou um
prêmio Nobel em 1973. Karl von Frisch sabia que quando uma abelha
encontra uma boa fonte de néctar, retorna para casa e conta às amigas onde
estão as ores. Ela faz uma dança em formato de oito, mexe a cintura numa
espécie de rebolado e vibra as asas dançando em linha reta. A velocidade da
dança revela a distância até as ores, a direção, traçando-se uma linha
perpendicular a esta, indica onde estão as ores em relação à posição do Sol.
Hoje, a linguagem da dança das abelhas é um dos exemplos mais
estudados e mais bem mapeados de comunicação do reino animal. Porém, a
história poderia ter sido diferente, pois a Alemanha de Hitler esteve perto de
interromper essa pesquisa antes mesmo de ela começar. Karl von Frisch
trabalhava na Universidade de Munique, invadida pelos simpatizantes de
Hitler na Alemanha da década de 1930, em busca de acadêmicos judeus.
Quando se descobriu que a avó materna de von Frisch era judia, ele foi
demitido e só foi salvo pelo acaso: um minúsculo parasita, que causou uma
doença que devastou as colmeias. Os apicultores e colegas acadêmicos
conseguiram convencer as lideranças nazistas de que as pesquisas que von
Frisch conduzia eram absolutamente necessárias para salvar a apicultura
alemã. O país estava em guerra e qualquer esforço para produzir comida era
essencial. Um colapso de colmeias melíferas não podia ser tolerado. Foi
assim que von Frisch pôde continuar seus estudos.
Por que os insetos tiveram enorme sucesso como grupo de animais? Por
que há tantas espécies deles e em tamanha quantidade? Em resumo, porque
são pequenos, ágeis e sedutores.
A vida no planeta abrange dez categorias de tamanho — das bactérias
microplasmáticas (bilionésimos de metro) até sequoias gigantes na
Califórnia, que podem atingir mais de cem metros de altura. Os insetos
estão em seis dessas categorias, bem na base da escala — das vespas-fadas-
anãs-sem-asas, menores que a secção transversal de um o de cabelo
humano, até bichos-pau do tamanho do seu antebraço (p. 16). Isso signi ca
que a maioria dos insetos são pequenos, precisam de um esconderijo de
tamanho reduzido para se protegerem dos inimigos e dispõem de recursos
desprezados por animais maiores.
Além disso, os insetos são incrivelmente ágeis — no sentido de serem
exíveis e adaptáveis. As asas permitem que se espalhem em longas
distâncias em relação ao próprio tamanho, e dominado o espaço aéreo
tridimensional eles têm acesso a fontes de alimento numa extensão de
quilômetros. Como a maioria dos insetos passa a infância em forma
corporal completamente diferente da adulta, eles podem se valer de hábitats
e fontes de alimento completamente diferentes ao longo do ciclo vital, e os
jovens não precisam concorrer com os adultos pela comida.
Por último, mas não menos importante, os insetos têm uma invejável
capacidade de reprodução. Deve ter sido uma mosca na parede que
sussurrou no ouvido de Deus quando Ele disse: “Sejam férteis e
multipliquem-se! Encham e subjuguem a Terra!” (Gênesis 1:28, transcrito de
https://www.bibliaon.com/versiculo/genesis_1_28/). Veja só: comece com
duas moscas-das-frutas e lhes dê condições ideais ao longo de um ano. Serão
então 25 gerações de moscas. Cada fêmea grávida põe cem ovos. Digamos
que todos eclodam e cresçam até a fase adulta, sendo a metade de fêmeas,
que se acasalam e põem, cada uma, mais cem ovos. Ao nal do ano, você
estará convivendo com a vigésima quinta geração dessa família — e só ela
terá cerca de um tredecilhão de mosquinhas-das-frutas de doces olhos
avermelhados. Um tredecilhão é o número um seguido de 42 zeros. Para
tornar as coisas mais concretas, imagine-se embrulhando todas essas moscas
num pacote bem apertadinho, no formato de uma bola, e então você terá
um objeto cujo diâmetro será maior que a distância da Terra ao Sol! Não
admira que os insetos tenham tantos inimigos, do contrário não sobraria
espaço para nós no planeta.
Felizmente podemos dizer que a maioria dos insetos nunca verá a aurora
de uma vida adulta. A maioria deles sucumbe à fome, é devorada por um
predador ou morre de outra forma bem antes de se rmar e constituir
família. É um jogo duríssimo. Com o tempo, uma variedade incrível de
adaptações foi surgindo, sobretudo em se tratando de seleção de parceiros e
reprodução. Veremos algumas dessas adaptações neste capítulo.
50 tons de bizarrices
Os sentidos dos insetos são importantes para encontrar um parceiro, e a
competição é acirrada. E a luta não termina no momento em que “ele”
encontra “ela”. Ao contrário, é aí que começa, pois ante o dilema de
transmitir seus genes da melhor maneira possível, cada sexo pode encontrar
uma resposta diferente.
Por exemplo, não é incomum a fêmea acasalar com vários machos num
curto intervalo de tempo. Isso não favorece o lado masculino, pois os
espermatozoides irão enfrentar a concorrência. Muitos insetos são, portanto,
equipados com um órgão sexual masculino que lembra bem um canivete
suíço em miniatura, com todas os acessórios possíveis: raspadores, colheres
e pás, nas suas variantes mais criativas. O propósito? Eliminar os
espermatozoides concorrentes que encontrar pela frente.
Uma caixa de ferramentas portátil assim vem a calhar caso o macho
anterior tiver usado um truque diferente, como entupir a abertura do canal
sexual da fêmea, por exemplo. Ele tenta colocar nela uma espécie de cinto de
castidade improvisado, para impedi-la de se acasalar novamente, mas o
efeito é apenas parcial. O macho número dois usa seus raspadores, picaretas
e ganchos para desobstruir o canal e depositar o seu material genético ali.
Ou seja, nada de cortejo, carinho e preliminares. É pá-pum!
Outro truque utilizado pelos machos é preencher o órgão sexual da fêmea
com o máximo de esperma possível, diminuindo o tempo que ela poderia
estar disponível para outros. Ele tenta, portanto, prolongar o acasalamento
ao máximo. Em algumas espécies, essa ideia é levada ao extremo: a cópula
do percevejo esverdeado Nezara viridula pode durar dez dias. E não faz
inveja ao bicho-pau indiano, uma espécie certamente adepta do sexo
tântrico, cujos casais foram observados em cópulas de até 79 dias de
duração!
Não é apenas a cópula que pode demorar, o macho também pode car de
olho na fêmea depois do ato. Por acaso você já não reparou em libélulas
pousadas ou voando coladinhas uma na outra? Às vezes elas cam
conectadas num formato que lembra um coração, mas aposto que não tem
nada a ver com romantismo. O propósito dessa marcação homem a mulher,
por assim dizer, é garantir que a fêmea não se acasale novamente até pôr os
ovos devidamente fertilizados (pelo macho vigilante, espera-se) na devida
planta aquática.
Diante de uma competição acirrada dessas, é sempre bom manter as
ferramentas em ordem. E ninguém é mais zeloso com suas ferramentas do
que a pequenina mosca-das-frutas Drosophila bifurca. Essa mosquinha,
parente próxima daquela que nos irrita na cozinha, é a orgulhosa detentora
do recorde do espermatozoide mais comprido do mundo, com quase 6
centímetros! Ou seja, o espermatozoide é 20 vezes maior que o próprio
animal. Para efeito de comparação, seria como se os humanos produzissem
espermatozoides do tamanho de uma quadra de futebol de salão! Como isso
é possível?
A resposta é que o espermatozoide inteiro consiste de uma cauda
níssima amarrada a um novelo. As fotos ampliadas desse espermatozoide
me fazem lembrar quando meus lhos resolvem cozinhar e põem pouca
água na panela do macarrão. O resultado é uma maçaroca. E qual o motivo
disso? Os espermatozoides compridos são a estratégia das moscas para uma
corrida para chegar ao óvulo à maneira de Usain Bolt: os maiores têm mais
chances de chegar primeiro.
E já que estamos falando de esquisitices, não podemos deixar de
mencionar os percevejos-de-cama. Esses bichinhos rastejantes se alimentam
de sangue e se escondem em rachaduras de paredes e camas de hotéis no
mundo inteiro. Quando cai a noite, eles deixam seus esconderijos e lhe
en am uma mangueira de sugar sangue enquanto você dorme. Sem dúvida
não é uma lembrança que você queira trazer consigo da viagem de férias,
mas o fato é que esses percevejos são uma praga crescente. Em parte porque
estamos viajando o mundo em demasia, em parte porque eles já são imunes
aos inseticidas utilizados para matá-los.
De qualquer forma, o ponto aqui é que em certas espécies de percevejos o
macho se atira sobre qualquer coisa que lembre a possibilidade de uma
transa. Ele nem se preocupa em encontrar a abertura sexual da fêmea,
apenas perfura os genitais em seu abdome e deixa que os espermatozoides
encontrem seu caminho sozinhos até os óvulos. Na maioria das vezes, isso
deixa a fêmea incapacitada para copular com outros machos. É assim que o
macho tenta ter certeza de que será realmente o pai de todos os seus lhos.
Em troca, a fêmea desenvolveu uma área reforçada no abdome, onde o
macho geralmente a perfura, reduzindo os danos a que é submetida.
Isso ilustra um ponto importante: a batalha entre os sexos tem duas partes
em con ito e, à luz da evolução, ambos os gêneros lutam pelo que os
bene cia.
Viva a rainha!
Não são apenas os pulgões que vivem em sociedades completamente
dominadas por mulheres. Com grande probabilidade, toda formiga,
marimbondo e abelha que você já viu na vida foi uma fêmea. Pouquíssimas
são as exceções.
Você se lembra do lme Bee Movie: a História de uma Abelha (2007)?
Sobre Barry, o macho que está cansado da vida de operário na colmeia? Do
ponto de vista biológico, está tudo errado. A propósito, em Henrique V,
Shakespeare descreve como os muitos habitantes de uma colmeia têm seus
passos vigiados por um soberano. Tudo errado. Não são as abelhas
masculinas que fazem o trabalho nas colmeias. Nem tampouco são
governadas por um rei do sexo masculino.
São as fêmeas que mandam e pegam no pesado no mundo das abelhas.
Todas as operárias são fêmeas, vassalas de uma rainha. Os machos, zangões,
vivem uma vida curta durante o outono e têm um só papel a cumprir:
acasalar-se com uma nova rainha. A abelha macho nem mesmo coleta
comida sozinha, mas é alimentada pelas fêmeas.
Agora talvez possamos fazer vista grossa a Shakespeare, à Dreamworks e a
outros que cometeram deslizes assim, pois se trata de um erro comum e
atemporal. Os antigos gregos tentaram desvendar os mistérios das abelhas,
mas não conseguiram descobrir muita coisa. Eles sabiam que as abelhas
comuns tinham um ferrão, mas não acreditavam que logo uma mulher
pudesse estar equipada com uma arma tão e ciente, certo? E se as ferroadas
fossem coisa das fêmeas, isso signi caria obrigatoriamente que aqueles
indivíduos bonachões e patuscos, que nem se davam ao trabalho de
procurar néctar, eram homens, e isso não podia ser verdade, não é? Tsc, tsc,
tsc...
Sendo assim, foi somente no nal do século XVII, com a invenção do
primeiro microscópio, que se pôde a rmar com certeza que as zelosas
abelhas operárias e suas rainhas eram do sexo feminino, e que os
preguiçosos zangões é que eram os machos.
Ainda haveriam de transcorrer mais duzentos anos para compreender
com precisão como as abelhas nasciam, porque ninguém jamais havia visto
uma praticando sexo. A teoria prevalecente na época era que os machos, isto
é, os preguiçosos zangões, faziam tudo a certa distância, fertilizando sua
rainha com o que se chamou de maneira muito criativa de “odor de
esperma”.
Foi só no nal do século XVIII que se descobriu que a abelha-rainha
voava para fora da colmeia e retornava do passeio com o órgão sexual
masculino preso aos próprios genitais. Eram os restos do sortudo vencedor
do enxame de zangões que tentaram copular com a rainha. A rainha
costuma se acasalar também com vários outros. Ela guarda todos os
espermatozoides (até 100 milhões deles) numa espermateca interna e faz uso
deles de acordo com a necessidade, pelo resto dos seus dias.
Para o zangão, no entanto, copular é a última coisa que faz na vida. A
inoculação dos espermatozoides é simplesmente explosiva — tão violenta
que o órgão sexual descola-se e rasga o abdome do macho em pedaços, e ele
morre pouco depois, ilustrando na prática o ditado popular: “Para cima é
um sofrimento, para baixo todo santo ajuda”.
É uma cópula tão violenta que até mesmo os jornais acham espaço para
noticiá-la em suas colunas, como esta manchete do tabloide sensacionalista
inglês e Sun: “Male bees testicles EXPLODE when they reach orgasm”
(Testículos dos zangões EXPLODEM quando eles atingem o orgasmo).
A incredulidade de Darwin
Muitos insetos pertencem à categoria que chamamos parasitoides, isto é,
parasitas que por m matam seu hospedeiro. Muitas vezes o hospedeiro é
consumido por dentro — a larva do parasitoide eclode do ovo nas entranhas
do animal — de outro inseto, por exemplo — e devora lentamente suas
entranhas. É um processo muito bem urdido. A larva poupa os órgãos vitais
do hospedeiro e os deixa para comer por último — como que guardando o
melhor para o nal! Em geral, o hospedeiro acaba morrendo quando a larva
do parasitoide está pronta para a vida adulta.
Teólogos e naturalistas do século XIX arrancaram os cabelos quando
descobriram isso. Não era coisa que calhasse na criação de um Deus bom e
generoso. Até Darwin lutou contra essa ideia e escreveu para seu colega
norte-americano Asa Gray, em 1860: “Não posso me convencer de que um
Deus bom e onipotente teria criado as vespas parasitas com o propósito
muito claro de devorar as entranhas de lagartas vivas”.
Mal sabia ele... Há coisas muito piores que essas vespas.
Caroneiros audaciosos
Alguns insetos vivem de devorar as crias alheias. Os audazes escaravelhos
da família Meloidae, que secretam uma substância corrosiva quando se
sentem ameaçados, comem larvas de besouros e mesmo assim pegam
carona com os pais até a creche onde estão.
Num dia qualquer de maio eu aproveitava o sol primaveril, quando vi um
besouro rechonchudo caminhando na mesa do jardim. Parecia que tinha
pegado emprestado um sobretudo pequeno demais para ele. O abdome
estava tão cheio de óvulos que se esparramava para além das asas. Era um
desses escaravelhos. Também chamados de besouros de primavera, de maio
ou de Páscoa, essas criaturas têm denominações à altura das adaptações que
fazem para sobreviver.
A escaravelha gorducha traz consigo uma passageira clandestina muito
estranha. Em breve, escavará um buraquinho no chão para depositar ali seus
ovos, talvez até uns 40 mil. Os ovos eclodirão e darão à luz pequenas e
agitadas larvinhas de seis patas. Elas se assemelham a piolhos ou moscas
sem asas, mas são cheias de energia e não param quietas. As larvas de
triungulina, como são chamadas, acabam se ajuntando em ores e esperam
o dia da sorte grande chegar.
Para sobreviver, essas larvas precisam chegar ao ponto certo, e para tanto
dependem de uma carona. Agarram-se ao primeiro inseto que pousa na or
na qual estão — mas é preciso pegar carona com a abelha certa, do contrário
é m de jogo. Por isso mesmo são necessários tantos ovos desde o início:
somente para aqueles que se aventurarem como passageiros clandestinos no
transporte certo o futuro está garantido.
As triungulinas do escaravelho Meloidae amontoam-se numa or e
formam uma gura que parece uma abelha. Além disso, exalam um odor
que imita o de uma abelha melífera solitária. Logo aparece um macho para
lhe fazer companhia. Enquanto ele tenta acasalar com uma gura que lhe
parece ser uma abelha-rainha, ela desaparece e as larvas de triungulina
montam em seu corpo. O zangão retoma o voo, desiludido, e com sorte
encontrará uma abelha-rainha. É aqui que as larvas saltarão sobre ela,
abandonando o navio que está naufragando e garantindo o bilhete para
chegar aonde querem: o ninho da rainha.
As triungulinas agradecem pela carona e mudam novamente o formato
corporal, assumindo a forma de larvas sem patas. Ficam quietinhas no
ninho, surrupiando todo o néctar que conseguem. De sobremesa, podem até
comer as larvas de abelhas que moram ali. Quando estão satisfeitas,
transformam-se em pupas e esperam a primavera chegar. E o ciclo então
recomeça.
Na Noruega, os escaravelhos da família Meloidae são chamados de
“besouros-petróleo”, pois expelem um líquido viscoso semelhante ao
petróleo. Ele contém cantaridina, um dos venenos mais poderosos que
conhecemos. Uma quantidade correspondente ao peso de um único grão de
arroz é o bastante para matar um ser humano.
Por alguma razão, algumas pessoas (erroneamente) acharam que a
cantaridina tinha poderes afrodisíacos. Besouros secos da espécie conhecida
como mosca espanhola (Lytta vesicatoria), encontrados no sul da Europa e
no Oriente, foram usados para estimular o desejo sexual nos homens. Diz-se
que Lívia, a astuciosa amante do imperador Augusto (conhecido pelo relato
bíblico da Natividade), recorria a eles. Lívia teria polvilhado moscas
espanholas na comida dos seus convidados — na esperança de que
perdessem o comedimento e o autocontrole e zessem coisas que mais tarde
poderia usar contra eles.
Na verdade, a substância desses insetos, se ingerida, causa pústulas
dolorosas em contato com a pele e inchaço no trato urinário. Além disso, a
quantidade entre uma irritação e o efeito letal é mínima. Não é coisa com
que se brinque.
Esses besouros se adaptaram para emergir na mesma época do voo
solitário das abelhas que irão parasitar, por isso só podem ser vistos no
início da primavera. A melhor coisa a fazer, caso você tenha a sorte de
avistá-los alguma vez, é deixá-los viver sua estranha vida em paz.
Swarmageddon
Imagine um exército de insetos de olhos vermelhos aproximando-se
devagar, emergindo do chão. Cada inseto tem o tamanho do seu polegar, e
eles surgem em quantidades que lembram um lme de terror classe B sobre
o m dos tempos. Estamos falando de uma densidade de cerca de três
milhões de insetos, numa área correspondente a um campo de futebol. Só
que não se trata de cção cientí ca barata, nem de profecias do Apocalipse.
É apenas o Swarmageddon (de “swarm”, enxame, e “armageddon”, Dia do
Juízo Final), o criativo apelido que recebeu o ciclo vital de 17 anos das
cigarras na América do Norte.
Esses insetos sugadores de seiva vegetal passam 16 anos consecutivos
abrindo mão da vida ao ar livre, escondidos em becos escuros e muquifos
debaixo da terra, tranquilos, esperando pacientemente. De vez em quando
bebem um coquetel de seiva de raízes por meio de um canudo xo na boca.
Então, no décimo sétimo ano, eles reúnem o bando inteiro para uma festa de
arromba.
Multidões de indivíduos de um tom acastanhado brotam das profundezas,
em silêncio e sem asas. A multidão silenciosa sobe nas árvores e realiza sua
última troca de pele, marcando a transição das cigarras para a fase adulta e
reprodutiva. E então, tchan! De dentro da velha casca surge um ser alado,
em vestido de festa e pronto para arrebentar. O amor está no ar, o namoro
está liberado e acabou-se o tédio. Se você passar 17 anos debaixo da terra,
terá acumulado uma energia e tanto. Para nós, humanos, o canto da cigarra
é um som intenso, de alta frequência e irritante. Multiplique então por
milhões de cigarras macho cantando. Daí vai ser fácil entender por que há
pessoas que sofrem danos auditivos ao passar muito tempo ao ar livre
quando o baile das cigarras começa. O volume do ruído pode bater os 100
decibéis. Embora as cigarras que completam 17 anos com essa festa
ensurdecedora não ferroem ou causem maiores danos, os norte-americanos
se veem obrigados a cancelar eventos ao ar livre, como casamentos e
batizados em jardins, porque se torna impossível falar ao ar livre tamanho é
o ruído.
Em compensação, a balada das cigarras não dura muito. Depois de terem
passado 17 anos e 99% da vida sob a terra, sua vida adulta não passa de três
a quatro semanas. Depois do canto vem o acasalamento, depois do
acasalamento, novos ovinhos de cigarras. Os ovos eclodem semanas depois,
e as pequenas ninfas se arrastam pelo galho onde nasceram até caírem no
chão, depois se enterram para esperar os próximos 17 anos na escuridão.
Bem antes de eclodirem os ovos, as ninfas, seus pais e mães já estarão
mortos — já cumpriram seu papel. Tudo que resta a quem agora assistiu ao
baile é arrumar vassouras e pás e limpar quilos e quilos de cascas de cigarras
mortas dos jardins e esperar a próxima aparição delas, em mais 17 anos.
Na verdade, esse tipo de cigarra é o inseto mais longevo que se conhece,
ao lado de sua prima, a cigarra cujo ciclo de vida é de 13 anos. Há várias
espécies delas, cujas ninhadas podem emergir em períodos diferentes, em
diferentes partes dos Estados Unidos. Não é de estranhar que esses insetos
intrigantes tenham recebido o nome cientí co de Magicicada.
Um problema espinhoso
Nós, humanos, há muito tempo nos bene ciamos da relação sólida entre
insetos e plantas, e entre insetos predadores e herbívoros. Escritos antigos
chineses, provavelmente de cerca de 300 d.C., discorrem sobre como o
agricultor deve transportar certos formigueiros − cujos ninhos lembram
papel − para os pomares de frutas cítricas, a m de afastar pragas. Também
era recomendável construir “pontes suspensas” de bambu entre os cítricos,
para que as formigas pudessem passar de árvore para árvore mais facilmente
e manter as pragas afastadas. Possivelmente temos aqui um dos primeiros
exemplos do que chamamos de controle biológico — o uso de organismos
vivos no combate a pragas como alternativa ao uso de inseticidas químicos.
Já deslocamos espécies por toda a parte do globo, muitas vezes
intencionalmente, com resultados muito variados. Algumas vezes deu tudo
errado. Como na Austrália, no século XVII. Alguém teve a brilhante ideia de
começar a fabricar o corante carmesim (p. 133), importando alguns lotes de
cactos do México. A produção de carmesim fracassou, e o cacto se alastrou
por toda a parte. Em 1900, os cactos cobriam uma área do tamanho da
Dinamarca. Vinte anos mais tarde, essa área havia sextuplicado. Um
território do tamanho da Grã-Bretanha estava completamente imprestável
para a agricultura ou pecuária, por estar inteiramente tomado por cactos
espinhosos. A crise se instaurou. As autoridades prometeram uma
recompensa polpuda a quem encontrasse uma maneira de combater o cacto.
Essa recompensa nunca foi paga.
Finalmente, depois de uma Guerra Mundial e do muito desespero que se
seguiu, a solução surgiu por meio de um inseto sul-americano. Uma espécie
de mariposa do gênero Cactoblastis, cujas larvas mastigam o cacto, foi
testada, introduzida e se reproduziu em larga escala. Cem homens, divididos
em sete caminhões, percorreram todos os territórios de Queensland e Nova
Gales do Sul distribuindo rolinhos de papel com ovos de Cactoblastis para os
fazendeiros. Em cinco anos, de 1926 a 1931, mais de 2 bilhões de ovos foram
distribuídos.
O sucesso foi espetacular. Já em 1932, as larvas de mariposas haviam
mastigado cactos inteiros em boa parte do território infestado. Este também
é um exemplo pioneiro de controle biológico.
Mas sempre há os dois lados da moeda. Depois do sucesso na Austrália, a
mariposa foi usada no controle biológico de cactos em vários outros lugares,
incluindo as ilhas do Caribe. Dali a mariposa Cactoblastis espalhou-se para a
Flórida, onde agora ameaça erradicar espécies de cactos endêmicos e únicos.
1 A autora se refere, nesse caso, aos abelhões (ou mamangabas), não às abelhas melíferas. (N .T.)
CAPÍTULO 5
Você não gosta de insetos? É isso mesmo? Então também não deve gostar
de chocolate, maçã e morango, não é? O fato é que todos eles, assim como
uma série de outros alimentos, dependem dos insetos para ser produzidos
no volume e na qualidade a que estamos acostumados. Estamos falando,
claro, sobre o trabalho que os insetos desempenham na polinização.
As mudas de até 80% das plantas silvestres da Noruega bene ciam-se das
visitas dos insetos às suas ores. Também um grande número de plantas da
lavoura é dependente dos insetos.
Embora lavouras agrícolas polinizadas pelo vento (arroz, milho e cereais
variados) sejam responsáveis pela maior parte do nosso consumo
energético, frutas, bagas e nozes polinizadas por insetos constituem
importantes suplementos energéticos e, não menos importante, são fontes
de uma dieta variada. E sabemos que neste particular a diversidade de
espécies é crucial. Em um estudo de 40 plantas alimentícias diferentes
dispersas por todo o planeta, constatou-se que a visita de insetos silvestres
resultou no aumento da colheita em todos os casos.
Estamos cultivando cada vez mais espécies vegetais que precisam de
polinização — de acordo com o Painel da Natureza (IPBES), o volume
dessas culturas agrícolas triplicou nos últimos 50 anos. Ao mesmo tempo, o
número de espécies polinizadoras diminuiu, tanto em números absolutos
como em diversidade. Na Noruega, 11% das espécies de insetos
considerados polinizadores estão listados como ameaçados.
A polinização pelas abelhas também resulta em um subproduto muito
apreciado, mais precisamente o mel, um adoçante natural com séculos de
história. Agora, se você está considerando investir em proteínas
ambientalmente corretas na sua dieta, que tal comer os próprios insetos?
Eles são fonte nutricional importante, consumidos normalmente na dieta de
boa parte do mundo, exceto no Ocidente. Examinaremos mais
detalhadamente o papel dos insetos no nosso suprimento alimentar neste
capítulo.
Mel alucinógeno
Em Cuevas de La Araña, na cidade espanhola de Valência, existem
pinturas rupestres de 8 mil anos de idade que ilustram a coleta de mel. Elas
mostram um homem pendurado numa corda ou cipó, com uma mão
segurando um cesto e outra a colmeia, rodeado por um enxame de abelhas.
Na Ásia ainda há vestígios de culturas baseadas nas abelhas e no mel,
tanto para ns de alimentação quanto para ns econômicos e culturais.
Duas vezes por ano, o povo do mel, que habita o sopé da Cordilheira dos
Himalaias, coleta o mel da Apis dorsata laboriosa, a abelha melífera asiática,
a maior do gênero. É uma tarefa árdua e perigosa, que exige escalar picos
íngremes com andaimes e cordas, com milhares de abelhas furiosas
zumbindo em volta. Atualmente, a curiosidade dos turistas para
testemunhar o fenômeno está causando uma exploração excessiva das
colmeias, ao mesmo tempo a erosão e a diminuição das áreas selvagens
alteram a paisagem e causam ainda mais danos às abelhas.
Não bastasse isso, jornalistas descobriram que uma variedade de mel
coletado nas montanhas do Nepal possui efeitos alucinógenos, isto porque
as abelhas coletam o néctar de plantas como o rododendro, o alecrim-do-
pântano (Andromeda polifolia) e de outras plantas da família das ericáceas.
Neste caso, o mel pode conter uma substância chamada graianotoxina, que,
além de acelerar a pulsação e causar náuseas, pode causar alucinação.
Na verdade, o “mel louco” é um fenômeno conhecido também no
Ocidente. Escritos datados de 400 a.C. relatam uma campanha militar em
que milhares de soldados gregos, de passagem pela atual Turquia,
consumiram mel silvestre. Mesmo sem inimigos à vista, o acampamento
militar converteu-se em um verdadeiro campo de batalha. Segundo
Xenofonte, comandante militar da Grécia Antiga, os soldados pareciam
bêbados, enfureceram-se e perderam a razão. Acessos de vômito e diarreia
tomaram conta do acampamento, e somente depois de dias os soldados
puderam car de pé e marchar de volta para casa.
Outras fontes antigas descrevem o uso de mel alucinógeno como arma de
combate. Qual soldado faminto e exausto resistiria a alguns favos de mel de
rododendro largados displicentemente à beira da estrada? Não vai demorar
muito para ele ser presa fácil para o inimigo.
Esse tipo de mel ainda hoje é produzido comercialmente em partes da
Turquia, sob o nome de Deli Bal. Mas não se preocupe: você não vai ser
envenenado se provar o tal “mel louco”. A concentração da toxina no
produto comercial vendido hoje é mínima, e é pouco provável que vai lhe
causar algum sintoma grave. Felizmente.
O efeito bactericida do mel também é conhecido há bastante tempo. Ele
era usado em feridas, e até para preservar corpos, como teria sido o caso de
Alexandre, o Grande, que morreu na Babilônia com apenas 33 anos − ele
teve o caixão preenchido com mel para que o corpo fosse preservado e
transportado para Alexandria, dois anos depois, onde nalmente foi
sepultado. Vai ser difícil saber ao certo se o relato é mesmo verdadeiro.
Doce colaboração
Um caso verídico, ainda que pareça pouco crível, é a história do pássaro-
indicador, cujo nome em latim não deixa dúvidas sobre o que faz: Indicator
indicator. Esse pássaro africano nos ajuda a encontrar mel. O pássaro adora
favos e mel, e não é de recusar larvas de abelhas. Ele é conhecido por seu
comportamento singular, avisando os humanos e outros animais onde está a
colmeia. Em troca, ca com sua parte do butim quando a colmeia é pilhada
por uma criatura maior e mais forte que ele próprio.
Enquanto a maioria dos pássaros voa para longe quando nos
aproximamos, o indicador faz o contrário. Ele assedia os humanos, canta e
saltita de um lado para o outro, como se convidasse a ser seguido. Pesquisas
recentes mostram que os pássaros respondem a certos sons humanos. O
povo moçambicano Yao ainda encontra mel com a ajuda do indicador.
Quando pesquisadores produziam sons idênticos ao chamado do povo Yao,
um pássaro-indicador, aparecia e os conduzia ao local onde havia uma
colmeia, aumentando a probabilidade de 16% para 54% de encontrar mel.
Este é um dos poucos exemplos de cooperação ativa com benefícios mútuos
entre animais e seres humanos.
Essa estranha colaboração é conhecida desde o século XIV, mas alguns
antropólogos a rmam que pode remontar aos tempos do Homo erectus.
Estamos falando de mais de 1,8 milhão de anos, e isso diz muito sobre
quanto esse produto dos insetos é importante tanto para animais quanto
para nós, humanos.
Mingau de insetos
Do ponto de vista ambiental, não estamos falando de polvilhar a salada
com formigas fritas, nem decorar o bolo de chocolate com confeitos de
gafanhotos.
Chefs de cozinha que servem pratos com insetos apelam a uma
curiosidade natural do público, e são uma novidade passageira.
Assim como não comemos um carneiro envolto na própria lã, os insetos
também precisarão ser processados para serem oferecidos como alimento. E
será preciso oferecer um produto nal barato, de preparo fácil e acessível a
qualquer pessoa. Somente assim produtos como farinha de grilo e
hambúrgueres feitos de larvas de caruncho podem vir a ser alimentos do dia
a dia.
A “segunda-feira sem carne” é uma tendência que veio para car. Quem
sabe a próxima seja “terça-feira com insetos...”
Pode demorar um pouco até pensarmos nos insetos como um alimento
comum. Mas que tal desenvolver ração para gado ou para peixes baseada em
insetos? Insetos que cresceram e chegaram à vida adulta ajudando a eliminar
o lixo orgânico que produzimos? Dessa maneira poderíamos alimentar o
salmão produzido em fazendas marinhas com insetos, em vez de soja
plantada no Brasil, e isso, felizmente, já é objeto de pesquisa hoje.
Há certos desa os no uso de insetos como alimento humano. Insetos têm
sua cota de parasitas e doenças que precisamos controlar, se pensarmos
numa produção em larga escala. Algumas pessoas têm alergia a insetos, e a
legislação sobre alimentos para consumo humano precisará ser atualizada.
É igualmente importante garantir que essa seja uma iniciativa de fato
sustentável, numa perspectiva de longo prazo. Não adianta gastar uma
grande quantidade de energia para manter uma “fazenda” de insetos.
Gafanhotos não são como ovelhas, que resistem a um inverno rigoroso. Eles
não toleram o clima frio e será necessário aquecer criatórios de dimensões
gigantescas para que cresçam e se reproduzam rapidamente.
Resta ainda um desa o importante, a saber, a aceitação do consumidor.
Os consumidores precisam estar dispostos a comprar e comer produtos
alimentícios com insetos porque este é um tema relevante, e devem
considerá-los interessantes e saborosos. Talvez isso seja rapidamente
superado assim que uma boa farinha de insetos, acessível e saborosa, chegue
às gôndolas dos supermercados. Nós podemos fazer isso. Basta querer.
A nal, não aprendemos a comer peixe cru em poucos anos? Quem sabe os
insetos sejam o novo sushi.
Dar nomes a essas novidades também é importante — é preciso batizar
produtos com nomes que resultem em associações positivas. Gafanhotos e
grilos, que tantas pessoas consomem em boa parte do mundo, podem muito
bem ser comercializados como “camarões terrestres”. Podemos fazer
associação dos nomes com a crocância do seu exoesqueleto, e larvas podem
ser chamadas de mushi (“inseto”, em japonês, e uma boa contrapartida,
inclusive sonora, ao sushi).
Pode ser engraçado, mas não é brincadeira. Na Noruega, o Conselho
Nacional do Idioma Norueguês já está pesquisando nomes para alimentos à
base de insetos, usando inclusive dialetos e palavras derivadas do antigo
idioma nórdico.
Se você não consegue derrotar o inimigo, coma-o.
O entomologista britânico Vincent M. Holt preocupava-se especialmente
com a nutrição, sobretudo nas classes menos favorecidas. Ele acreditava que
as classes operárias deveriam prestar mais atenção nos insetos como uma
rica fonte de alimento. Ainda em 1885, ano em que a Estátua da Liberdade
foi erguida em Nova York, Holt escreveu um provocativo pan eto intitulado
“Por que não comer insetos?”. No seu texto, tomou a liberdade “poética” de
incluir caracóis (que são moluscos) e tatuzinhos-de-jardim (crustáceos) no
conjunto dos insetos.
Holt fez uma defesa apaixonada dos insetos na alimentação,
argumentando que são “saudáveis” e “úteis”, sustentando que poderiam
diversi car a dieta miserável dos operários naqueles dias.
“Que o jardineiro coma as pragas do campo no almoço, que a dieta dos
lenhadores consista em gordas larvas que caem das árvores que derruba”,
sugeriu Holt. Em outras palavras, seria uma situação de ganha-ganha.
O divertido opúsculo de Holt inclui algumas receitas. Infelizmente, talvez,
a receita de sopa de caracóis e linguado frito ao molho de tatuzinho não caiu
no gosto popular. Talvez uma melhor escolha de matérias-primas, além de
métodos de preparo contemporâneos, possa corrigir a falta de entusiasmo
por insetos como alimento. Trata-se, aliás, de um tema que vem sendo
discutido com toda a seriedade na ONU e em outros organismos
multinacionais.
No futuro é bem possível que Holt tenha razão no nal: “Embora esteja
certo de que eles jamais se negariam a nos comer, estou igualmente certo de
que, tão logo descubramos o quão deliciosos são, iremos prepará-los e
comê-los com prazer”.
CAPÍTULO 6
Carvalhos grandes e velhos são algumas das coisas mais belas que
conheço. Eles se erguem orgulhosos, um legado de outra era. Árvores que
brotaram e cresceram bem antes do surgimento da luz elétrica e das mídias
sociais, um tempo em que trolls eram seres míticos que habitavam as
orestas, não as páginas da Internet.
Os enormes carvalhos de hoje em dia preservaram essa mágica. Neles,
onde Pippi Meias Longas, personagem do clássico infantil de Astrid
Lindgren, ia buscar seu suco de framboesa, nós, pesquisadores, procuramos
por insetos raros. No interior dos troncos de carvalho existem cavidades
ocas, nas quais a madeira apodrece lentamente. O interior parece um pouco
assustador, mas não é inteiramente escuro, cheira a mofo e umidade, com
um quê da brisa de outono que traz o aroma das folhas mortas. Ao mesmo
tempo, recende também um leve toque de madeira, como a primavera. Aqui
dentro você encontrará outro mundo, um mundo no qual tempo e espaço
ganham outro signi cado. O tempo passa mais rápido, pois uma geração
inteira de besouros cumprirá seu ciclo de vida num único verão. Aqui, uma
camada de fungo avermelhado, recendendo a mofo e umidade, exalando o
cheiro da impermanência da vida, é um universo para um pseudoescorpião
de um milímetro de comprimento.
Dentro do tronco habitam ácaros coloridos e besouros pálidos,
escaravelhos adultos e outros insetos minúsculos. Vida e morte, drama e
sonhos, lado a lado, em escala milimétrica.
A busca por velhos carvalhos e seus hospedeiros me levou a muitas áreas
de oresta por onde jamais eu teria me aventurado, e me deu a
oportunidade de testemunhar a natureza de uma maneira única e
inesquecível. Acampamentos nas colinas nuas e rochosas de Vestfold, com
vista para as montanhas azuladas no horizonte, noites de primavera em
Telemark, voltando para o carro depois de um dia de trabalho, tendo por
companhia apenas o pio da coruja e o brilho da lua. Escarpas íngremes e
escorregadias em Agder, que mal consegui escalar sob a chuva torrencial.
Rochedos imensos na costa oeste da Noruega, onde todos os carvalhos têm
no tronco as marcas das intempéries e dos tempos de penúria, quando deles
se colhiam as folhas para servir de ração animal no inverno. Becos,
pastagens, árvores no meio de lavouras, jardins privados. Na maioria das
vezes, sozinha — mas nem tanto, pois no interior desses troncos o número
de habitantes é maior que toda a população de Oslo.
Um tronco de carvalho oco é como um castelo. Um palácio de
biodiversidade, pura e simplesmente. A casca da madeira de carvalho
resistente protege contra a chuva, o sol e os pássaros as centenas de
diferentes espécies de insetos que vivem ali. O tronco retorcido, que evoca
esculturas barrocas sacras, tem vãos que permitem o crescimento de
líquenes minúsculos. Alguns cogumelos vivem em estreita coabitação com
as raízes da árvore, e outros ajudam a decompor a madeira que tomba.
Boa parte dessas espécies tem uma razão de existir na oresta: o bolor da
madeira, uma mistura vivi cante composta de restos de madeira podre, os
de fungos, talvez um ou outro ninho de pássaros e um pouco de guano
(fezes de morcego). O fungo da madeira é uma espécie de restaurante
so sticado para insetos. Ali eles encontram um pouco de tudo que
apreciam. Na escuridão tênue de um oco de carvalho, centenas de insetos
diferentes podem viver. O eterno ciclo da natureza move-se lentamente,
convertendo árvores imponentes em um substrato de fungo e solo onde
novas nozes de carvalho podem brotar.
Á
Árvores mortas são condomínios de besouros
Quando mamãe inseto está em busca de um lar na oresta, encontra
coisas que não estamos acostumados em reparar. Tome o exemplo de
besouros que habitam árvores mortas: nós temos repulsa por casas com
umidade e podridão, e eles acham isso o máximo: signi ca uma geladeira
abarrotada de comida para as vorazes crianças da família.
A senhora besouro vem então fazer uma visita ao imóvel. Com suas seis
patinhas, pousa suavemente numa árvore morta. Com as antenas e os
dedinhos dos pés ela sente o gosto e o cheiro para saber se ali é o melhor
local para inaugurar um jardim de infância de besouros. Se car satisfeita,
rapidamente depositará ali mesmo seus ovos, numa fenda da madeira, e
alçará voo novamente à procura de outra árvore que precise de um batalhão
de limpeza.
Do ovo sairá uma minúscula larva, que corajosamente abre seu caminho
mastigando a casca e a madeira do tronco. Uma tarefa hercúlea, que ela
felizmente não precisará fazer sozinha. Milhares de larvas de besouros
podem coexistir numa árvore morta, contando com a ajuda de bactérias e
fungos.
A madeira recém-tombada é um festim: contém seiva abundante em
açúcar logo abaixo da casca, que começa a fermentar e deixa os convivas
com o apetite aguçado. Para os besouros, cada espécie de madeira é um
prato diferente e irresistível. Os besouros que se alimentam da casca são um
exemplo. Só que é preciso ser rápido. Passado o verão, as panelas estarão
vazias — todo o açúcar delicioso que estava ali já terá desaparecido.
Madeira morta e seca, entretanto, não é um banquete tão apetitoso. Para
os insetos, celulose e lignina, dois dos principais ingredientes da madeira,
são tão saborosos e digeríveis quanto para nós seria um saco de ração. Neste
caso, é bom que alguns cogumelos tenham uma verdadeira paixão por
celulose e outros, por lignina. Eles atiram seus os fúngicos e tornam a
madeira ainda mais atraente para os besouros, aumentando seu conteúdo
nutricional e tornando-a mais acessível. Além do que, como
acompanhamento eles têm as bactérias. Alguns besouros têm até pequenos
parceiros no corpo que ajudam a extrair os nutrientes das partes menos
digeríveis da árvore. Em geral, um conjunto de vários organismos está
envolvido na decomposição de madeira morta.
Cocô multiuso
O esterco pode ter diversas nalidades. Muitas culturas ainda usam
esterco seco de vaca como combustível ou argamassa de construção.
Também no mundo dos insetos podemos encontrar exemplos de uso
criativo dos excrementos. Que tal uma peruca de cocô, por exemplo? O
besouro Hemisphaerota cyanea vive em palmeiras-anãs na Flórida e em
estados vizinhos. Enquanto a larva mastiga a folha da palmeira, uma série de
cachos dourados vai se formando no seu extremo oposto. A larva acomoda
esses cachos nas costas e vai formando uma peruca, bem semelhante ao
topete do presidente Donald Trump. O objetivo da tal peruca é obviamente
defender-se de predadores — mesmo que esteja com fome, você não vai
querer encher a boca de cabelos, muito menos de cabelos feitos de cocô.
Larvas de vários besouros usam técnicas parecidas; em vez de se cobrirem
de cachos dourados, procuram na verdade assustar o inimigo. A Cassida
viridis, besouro verde-claro semelhante a uma joaninha, é bastante comum
na Noruega. Suas larvas vão acumulando pele e bolinhas pretas de esterco
até formar uma espécie de tenda ou guarda-sol, que mantêm preso ao corpo
por uma espécie de “garfo anal” — “anal fork”, na expressão inglesa. Se um
inimigo se aproximar, a larva aponta o guarda-sol de cocô na sua direção, e é
melhor que ele mantenha distância. O guarda-sol também pode conter
substâncias tóxicas que a larva produz a partir das folhas que ingere.
Os besouros da subfamília Cryptocephalinae são ainda mais so sticados.
Seus lhotes são equipados com o que parece ser um trailer feito de dejetos:
a mãe põe os ovos em um belo recipiente que constrói a partir das próprias
fezes. Quando os ovos eclodem, as larvas esticam o pescoço e as patas e
assim podem levar consigo a própria moradia por onde forem. À medida
que defeca, a larva vai aumentando a casa de modo a que não lhe falte
espaço. Quando é hora de se tornar uma pupa, tudo que precisa é voltar para
dentro do trailer e fechar as portas. Ali dentro ela estará em segurança até se
transformar em um besouro adulto e começar tudo outra vez.
Afundando na merda
Em 1788, a primeira vaca pôs seus quatro cascos em território australiano.
Chegou acompanhada de uma comitiva bem heterogênea, integrada por
39.184 homens, mulheres e crianças — a maioria presos sentenciados —,
bem como 87 galinhas, 35 patos, 29 ovelhas, 18 faisões e outros bichos em
menor quantidade. Com isso, os 40 mil anos de isolamento dos aborígenes
chegava ao m, e também o isolamento da vida animal e vegetal — apartada
no continente australiano desde a separação da Antártida, ocorrida entre 40
e 85 milhões de anos atrás. Assim sendo, a Austrália estava repleta de
espécies que não existiam em nenhum outro lugar do planeta — 84% dos
mamíferos e 86% das plantas australianas eram únicos.
As quatro vacas e os dois bois transportados na primeira nau europeia
pegaram carona no meio do percurso, mais exatamente na Cidade do Cabo,
e eram da raça zebu, acostumada ao clima quente. A responsabilidade de
cuidar dos animais cou a cargo de um prisioneiro chamado Edward, que
recebeu a recomendação expressa de não deixá-los sumir de vista. Porém,
poucos meses depois, as vacas desapareceram. Sumiram do mapa enquanto
o encarregado de cuidar delas jantava.
Foi uma grande catástrofe. As quatro vacas serviriam não apenas como
matrizes, mas também forneceriam leite, e os recém-chegados não
conheciam nenhuma planta comestível na Austrália. Embora tivessem
trazido sementes, não tinham experiência alguma com lavouras e não
estavam particularmente interessados em aprender. Nem mesmo pescar
sabiam direito. As provisões diminuíram aceleradamente, mesmo diante do
racionamento severo.
Grande foi a alegria quando, poucos anos depois, encontraram as vacas —
que, entretanto, haviam se tornado um rebanho inteiro. Elas se deram muito
bem nos pastos australianos.
Alguns séculos depois, a alegria deu lugar ao desespero. A nal, o que
fazem as vacas? Comem, mastigam, arrotam e defecam, sem parar, em
quantidades enormes. Uma vaca produz até nove toneladas de esterco por
ano — e aqui consideramos o esterco seco. Em um ano, o cocô de uma única
vaca é su ciente para cobrir uma área correspondente a cinco quadras de
tênis. Quando as vacas vão bem, elas se reproduzem, e com isso vão
cobrindo de esterco tudo ao redor.
Por volta de 1900, havia mais de um milhão de cabeças de gado na
Austrália. Mas quem iria limpar a sujeira que faziam? Chegamos aqui ao que
interessa nesta história: não havia besouros na Austrália que pudessem
decompor as fezes das vacas. Sim, claro que havia besouros nativos que se
alimentavam de esterco — mas durante milhões de anos acostumaram-se a
lidar apenas com fezes secas, de marsupiais. Eram besouros que não tinham
o menor gosto por um prato estrangeiro, como o cocô fresco e pastoso dos
zebuínos.
As únicas que demonstravam apetite pelo cocô eram as moscas. Na
Austrália vive uma espécie que lembra a nossa mosca doméstica, exceto por
não viver em casas, mas em outros locais, especialmente onde há um
verdadeiro tapete de cocô forrando o chão. O que se seguiu foi uma enorme
proliferação dessas e de outras espécies de moscas, que adoram infernizar a
vida tanto dos animais domésticos como de seres humanos.
Vale mencionar que essas moscas não enterram as fezes, elas continuam
espalhadas pelo chão; as fezes ressecam, criando uma crosta que impede a
germinação até de capim. Como resultado, a cada ano uma área agrícola de
até 2 mil quilômetros quadrados tornava-se deserta e infértil. Na década de
1960, quase dois séculos depois da introdução da primeira vaca na Austrália,
extensos lotes de terra estavam abandonados devido ao esterco que não era
decomposto.
Foi aí que outros besouros entraram em cena. Elaborou-se um plano de
larga escala, nanciado pelo governo e pelos pecuaristas. Ao longo de quinze
anos, entomologistas australianos estudaram uma grande quantidade de
espécies e, depois de testes rigorosos, liberaram na natureza 1,7 milhão de
indivíduos de 43 espécies de besouros rola-bosta.
O projeto foi um sucesso, e mais da metade das espécies conseguiu se
estabelecer no território. O esterco desapareceu e a praga das moscas
diminuiu dramaticamente. Antes, apenas uma fração (15%) do nitrogênio
do esterco era devolvido ao solo. O batalhão de insetos lixeiros conseguiu
elevar esse número para 75%. Esse exemplo mostra didaticamente a
importância dos insetos decompositores para a natureza e para nós,
humanos.
É importante mencionar que para o grupo dos besouros coprófagos (que
se alimentam de fezes) as coisas não vão tão bem. Globalmente falando, 15%
dessas espécies estão ameaçadas de extinção. Na Noruega, mais da metade
dos besouros coprófagos estão na lista vermelha, isto é, estão ameaçados ou
correm risco de extinção, e 13 espécies provavelmente já desapareceram da
face da Terra. É especialmente no sul do país que os besouros noruegueses
agonizam — hábitat de espécies que dependem de fezes frescas, aquelas
largadas na areia ou num pasto, durante um dia de sol quente de verão. A
mudança nos métodos agrícolas é a grande responsável pelo
desaparecimento desses besouros, uma vez que os pastos vêm deixando de
ser utilizados e acabam cobertos por capim.
Outro problema é o vermífugo de amplo espectro Ivermectina, aplicado
em vacas em todo o mundo. Sabe-se que o princípio ativo acaba indo parar
nas fezes do gado e mata os coprófagos em busca de alimento, com sérias
implicações tanto para a biodiversidade como para a decomposição do
esterco.
Asas de cera
Abelhas melíferas fazem mel, é claro, como mencionamos no capítulo 5.
Mas também produzem cera, uma massa macia que tem origem nas
glândulas especiais que têm no abdome. A cera é utilizada para construir
berçários para as larvas e depósitos para guardar o mel. Além disso, a cera
de abelha tem diversas aplicações para nós, seres humanos, e é protagonista
numa narrativa da mitologia grega bastante conhecida.
Dédalo e seu lho Ícaro escapam da ilha de Creta com a ajuda de asas que
Dédalo construiu colando penas de pássaros com cera de abelha. Antes de
partir, Dédalo adverte o lho sobre o perigo de dois vícios: soberba e
preguiça. Se não se esforçar o bastante, Ícaro voará muito baixo e as ondas
do mar o engolirão. Se for tomado pela húbris, excesso de autocon ança, e
não se der conta dos próprios limites, ele voará muito alto e o Sol tratará de
derreter a cera de abelha que mantém suas asas inteiras (um psicólogo talvez
diga neste trecho que caberia melhor ao pai dizer exatamente ao lho o que
fazer, em vez de especular sobre caminhos que levariam à catástrofe). De
todo modo, naquele tempo os jovens tampouco davam ouvidos ao que
diziam os pais. Ícaro aproximou-se demais do Sol, a cera derreteu e ele
espatifou-se no mar. Em sua memória existem o mar Icário, um trecho do
Egeu, e a ilha Icária.
Hoje em dia não fazemos asas com cera de abelha, mas sim velas e
cosméticos. Historicamente, a igreja católica foi uma grande consumidora
do produto, pois as velas usadas durante a missa tinham, obrigatoriamente,
de ser de cera de abelha. A vela de um branco pálido simbolizava o corpo, e
o pavio no meio representava a alma de Jesus. A chama que arde no pavio da
vela acesa nos dá a luz, enquanto a cera queima e se esvai — a exemplo de
como Jesus deu sua vida por todos os seres humanos. Apenas a mais pura
das ceras podia ser usada para a fabricação das velas, e aqui os insetos
levavam a melhor: uma vez que seu acasalamento nunca era observado,
acreditava-se que as abelhas eram virgens em perpétua abstinência sexual.
Somente no século XVI esse mal-entendido foi esclarecido, mas ainda hoje
as normas da igreja católica dizem que as velas precisam conter pelo menos
51% de cera de abelha.
Na indústria cosmética, o uso de cera de abelha tem aumentado. Cremes,
pomadas, loções e cera de depilar. O mel também é bastante usado em
cosméticos. Se você está pensando em fazer uma máscara caseira no rosto à
base de mel, saiba que está em companhia muito nobre: Popeia, esposa do
imperador romano Nero, que não tinha acesso aos re nados cosméticos
franceses de hoje em dia, elaborava suas máscaras faciais misturando mel
com leite de jumenta. Neste caso, não havia problema se um pouco do
creme escorresse sobre os lábios. De fato, a cera de abelha é um excelente
bálsamo labial quando misturada a óleos vegetais.
A cera de abelha também contribui para deixar maçãs, laranjas e melões
maduros e apetitosos por mais tempo, além de realçar seu brilho. Assim
como a laca (p. 137), a cera de abelha, mais conhecida na indústria
alimentícia como E901, é aplicada sobre as frutas, nozes e até mesmo sobre
pílulas de suplementos alimentares. Atualmente, boa parte da cera de abelha
retirada de colmeias é reutilizada em tábuas para construir colmeias, uma
espécie de mimo para retribuir o trabalho das valorosas abelhas.
Pendurado por um fio
Entre os insetos, as lagartinhas do bicho-da-seda não são as únicas que
sabem tecer. Essa habilidade pode ter surgido mais de vinte vezes ao longo
da história da evolução, e apenas nos insetos: as Chrysopidae prendem seus
ovos a pequenos bastões de seda. Parecem pequenos cotonetes com os ovos
na extremidade, longe do alcance de formigas e outros insetos. As larvas de
tricópteras tecem redes de seda ao longo de cursos d’água, nos quais
capturam pequenos animais para comer. As larvas de certas variedades de
mosquitos também tecem teias de seda que usam para coletar esporos
fúngicos ou até capturar pequenos insetos. Algumas dessas larvas são
inclusive bioluminescentes e emitem uma luz verde-azulada, ainda que não
saibamos exatamente por quê. Ao contrário das larvas de mosquitos
luminescentes nas cavernas da Nova Zelândia, predadoras que usam a luz
para atrair a comida para suas redes, as espécies europeias de Keroplatus
contentam-se em obter a proteína de que precisam de esporos de fungos,
sem que se saiba por que precisam de luz para isso.
Os machos das moscas-dançarinas (Empididae) usam a seda para embalar
um “presente” para o desjejum das fêmeas. Os machos não são sequer
predadores — vivem paci camente com uma dieta de néctar —, mas o que
não são capazes de fazer por suas amadas ávidas por um pouco de proteína
animal? Sim, eles capturam um inseto (preferencialmente outro macho, para
reduzir a competição pelas fêmeas — e assim matam duas moscas com um
só golpe, por assim dizer), e embalam a presa lindamente num pacotinho da
seda que produzem em glândulas nas patas dianteiras. Um pretendente
levando um presente que ele mesmo cuidou de embalar... Que romântico!
Mas, na prática, não é nada disso. Esse comportamento ilustra apenas a
evolução atuando, como de costume. Uma teoria diz que quanto maior o
presente e, logo, quanto maior a embalagem, mais tempo durará a cópula, ou
seja, mais espermatozoides serão transferidos e maior será a chance de o
macho perpetuar seus genes. Para a fêmea, vem muito bem a calhar uma
quantidade extra de proteína, pois a postura de ovos implica em grande
dispêndio de energia.
Mesmo assim, sempre há aqueles que querem levar vantagem sem fazer o
menor esforço. Alguns machos dão de presente um balão de seda vazio, e aí
se apressam em copular antes que a fêmea descubra a trapaça.
2 Em português, essa associação cou marcada no próprio nome “vermelho”, derivado do latim
“vermiculu” (“vermezinho”), a cochonilha. (N. do T.)
CAPÍTULO 8
INSIGHTS DE INSETOS
Terapia larval
Sempre co feliz quando vejo roupas ou joias com estampas de insetos.
Não é tão frequente, mas aqui e ali vejo uma borboleta ou uma abelha
decorando uma peça de roupa. Mas raramente vejo moscas. Certa vez z um
experimento altamente cientí co: pesquisei na Internet por “joias com
borboleta” e obtive cerca de mil resultados. Escrevendo “mosca” no lugar de
borboleta, o resultado é zero.
Pensamos na mosca doméstica como disseminadoras de doenças, mas
esses insetos podem realmente nos curar comendo nossas feridas infectadas.
Parece repugnante, mas é uma novidade bem antiga. Gengis Khan foi um
imperador mongol do século XI que fundou um império tido como o maior
de toda a história, uma área que se estendia da Coreia à Polônia. E não o fez,
digamos, abusando da diplomacia: naquele tempo, o que valia era a guerra,
brutal e implacável. Diz a lenda que Gengis Khan sempre levava consigo
para a batalha uma carroça cheia de larvas de moscas. As larvas eram
colocadas nas feridas para que cicatrizassem logo e os soldados voltassem à
ativa mais rápido.
Essa terapia larval também foi utilizada nas guerras napoleônicas, na
Guerra Civil Americana e na Primeira Guerra Mundial com grande sucesso.
Depois de descobertas as propriedades fantásticas dos antibióticos, a terapia
larval cou nos livros de história. Nos últimos tempos voltou a ganhar
relevância, não só por causa das bactérias multirresistentes.
As larvas da mosca-dourada (Lucilia sericata) são as mais comumente
utilizadas. Essa mosca é encontrada ao ar livre em boa parte do sul
norueguês. Para o uso medicinal, é importante que as larvas sejam
esterilizadas antes de serem colocadas sobre a ferida, portanto elas são
cultivadas em laboratórios próprios. Costuma-se usá-las dentro de uma
espécie de saquinho de chá, dessa forma impedindo que escapem e se
concentrem fazendo o trabalho que lhes cabe. E o trabalho consiste de várias
etapas. As larvas inibem o crescimento das bactérias, produzindo
substâncias semelhantes a antibióticos e a outras que alteram o pH da ferida.
Além disso, simplesmente devoram o tecido necrosado. Em alguns casos,
descobriu-se também que produzem substâncias que promovem o
crescimento de novos tecidos. As larvas comem apenas tecido morto e pus,
não tocam o tecido vivo ao redor da ferida.
Entre as tentativas mais criativas de usar moscas domésticas está o “Rei da
Larva”, um inglês que no início do século XX achava saudável respirar cheiro
de larvas de moscas. O sujeito tinha tuberculose, mas estava convencido de
que as larvas que cultivava como iscas para suas pescarias eram o que o
mantinha vivo, e fazia questão de compartilhar isso com outros doentes.
Todo verão, portanto, o Rei da Larva recebia toneladas e toneladas de
carcaças de animais mortos, às vezes provenientes até de zoológicos, que
deixava ao relento até que se cobrissem de larvas de moscas. Em seguida, as
transportava em vasos para locais abrigados, que chamou de “magotoriums”
(de “maggot”, larva em inglês). Eram galpões de madeira onde os pacientes
podiam ler, jogar cartas ou apenas jogar conversa fora ao lado de montes de
larvas de moscas e carne apodrecida — era o tipo de empreendimento que
realmente não cheirava bem.
O mau cheiro da fazenda do Rei da Larva podia ser sentido a quilômetros
de distância, e não havia nenhum embasamento cientí co para o negócio.
Embora vários pacientes tenham de fato mostrado evidências de melhora na
saúde após uma visita aos galpões de carne podre, inspirar vapores de larvas
de mosca nunca se tornou exatamente um sucesso comercial, mas talvez o
futuro prove que o Rei da Larva não estava tão errado assim. As larvas de
moscas domésticas provavelmente exalam substâncias gasosas que inibem o
crescimento de um parente da bactéria da tuberculose, uma variante não
patogênica muito usada em experiências. Enquanto as pesquisas não trazem
resultados de nitivos, a rmar que as larvas de moscas não são apenas iscas,
mas também têm ns medicinais, não é história de pescador.
Grilos como animais de estimação
Insetos também podem ajudar a melhorar a nossa saúde mental. É bem
sabido que ter um animal de estimação pode deixá-lo mais feliz e saudável, e
há milhares de anos, em países do Oriente, existe o hábito de ter insetos
como animais de estimação. Especialmente na China e no Japão, é comum
manter grilos em gaiolas, pelo som agradável que produzem, mas no século
XI era muito popular criar grilos de combate. Ainda hoje, campeonatos de
grilos são realizados na China, um dos vários festivais tradicionais chineses
relacionados a insetos.
Entre as crianças japonesas não é raro brincar de capturar (ou, se vivem
na cidade, comprar) besouros machos e organizar lutas entre eles. Estamos
falando aqui de algumas das maiores espécies existentes, com chifres
poderosos ou mandíbulas protuberantes, que os machos usam para lutar. No
Japão, assim como nos Estados Unidos, é comum organizar passeios para
apreciar vaga-lumes dançando pela noite em determinados locais.
Hoje em dia, insetos estão sendo testados como animais de estimação no
cuidado de idosos — na Ásia, é claro. A nal, que mal haverá se os idosos da
Coreia tomarem gosto de cuidar de grilos numa gaiola?
Cerca de cem coreanos de mais de 70 anos foram examinados quanto a
fatores psicológicos, como depressão, percepção, nível de estresse, distúrbios
de sono e qualidade de vida. Em seguida, o grupo foi dividido em dois.
Ambos receberam orientações sobre estilos de vida saudáveis e telefonemas
de acompanhamento semanal, mas apenas um dos grupos recebeu uma
gaiola com cinco grilos canoros. Aqui nos referimos à espécie Teleogryllus
mitratus, um grilo de jardim que vive no Sudeste Asiático, dono de uma
“voz” muito bela e cativante.
Depois de dois meses, os participantes do experimento foram novamente
examinados e entrevistados. Quase todos tomaram afeto pelos seus grilos e,
em um terço deles, cuidar dos insetos contribuiu para melhorar a saúde
mental. Os resultados do teste também mostraram um efeito discreto e
positivo em vários dos fatores medidos — especialmente na redução de
depressão leve e na melhoria da qualidade de vida.
Uma gaiola de grilos é barata e requer poucos cuidados. Os idosos não
precisam levá-los para passear, cortar suas unhas ou aparar o pelo. Ainda
assim, pode ser grati cante car assistindo os grilos passeando e cantando
na gaiola, e ter a obrigação de lhes dar um pouco de comida de quando em
quando. O grilo precisa de um dono, o que é algo muito bom. Cuidar de um
grilo pode ser aquele pouquinho que faltava para dar sentido à vida
cotidiana de pessoas com problemas de saúde, que passam muito tempo em
casa, sozinhas.
Plástico no menu
A cada minuto uma quantidade de plástico correspondente à carga de um
caminhão de lixo é jogada no mar. A mesma quantidade acaba indo parar
em aterros sanitários, que não param de crescer, pois somos apaixonados
por plástico.
Plástico é um material conveniente e barato. Fabricamos e consumimos
uma quantidade anual de plástico vinte vezes maior que há 50 anos, porém
menos de 10% desse total é reciclado. O restante acaba indo parar em
aterros, em terrenos baldios ou no mar. Um relatório da Fundação Ellen
MacArthur estima que, se isso continuar, em 2050 haverá mais plástico do
que peixes no oceano, isso porque o plástico se decompõe muito devagar na
natureza. Portanto, é uma notícia sensacional a descoberta de que vários
insetos podem digerir e decompor o plástico.
Tome o poliestireno como exemplo. Nunca ouviu falar de poliestireno?
Posso apostar que você já pegou nele, na forma de embalagem de comida ou
de copo para bebidas quentes. O poliestireno, também chamado de isopor, é
justamente um material utilizado para manter alimentos e bebidas
aquecidos. Somente nos Estados Unidos, 2,5 bilhões de embalagens de
poliestireno são descartadas a cada ano — e estamos falando de um material
que não é biodegradável. Isto é, até agora, pois parece que as larvas do
caruncho mastigam o poliestireno como se fosse ração.
Nos Estados Unidos e na China, larvas de caruncho foram alimentadas
com poliestireno em um experimento. Todas pertenciam à espécie Tenebrio
molitor, que também ocorre na natureza no sul da Noruega e pode aparecer
em restos de farinha úmida esquecida no armário por muito tempo. Elas
digeriram o isopor em tempo recorde, as larvas tornaram-se pupas e
resultaram em besouros adultos normais. Ao longo de um mês, 500 larvas
de caruncho chinesas comeram um terço dos 5,8 gramas de isopor que
tinham à disposição, deixando como resíduos um pouco de dióxido de
carbono e de cocô de besouro, que por sinal pode ser utilizado como adubo.
A taxa de sobrevivência de besouros que comeram outros alimentos foi a
mesma daqueles com a dieta de poliestireno, mas não se trata de um
superalimento. Longe disso.
Em outro experimento foram comparados três grupos: as larvas
alimentadas com isopor, outras alimentadas com ocos de milho e outras
que não receberam comida. As larvas que comeram ocos de milho
engordaram 36%, enquanto as que comeram isopor mantiveram o mesmo
peso, um resultado ainda assim melhor do que as pobres larvas que
passaram fome, que perderam um quarto do peso durante as duas semanas
do experimento.
Não são os próprios insetos que fazem o trabalho de decompor o plástico,
mas os bons inquilinos que eles carregam na barriga. Se as larvas recebem
antibióticos que matam a ora intestinal, o plástico deixa de ser degradado.
A decomposição do plástico depende, provavelmente, do esforço combinado
entre o besouro e as bactérias.
É preciso promover mais pesquisas para saber se essa descoberta pode nos
ajudar a combater o problema do plástico nos oceanos, pois os carunchos
não gostam de meter as patas na água e não estão preparados para lidar com
o ambiente marinho. Mas na terra há plástico de sobra, e talvez possamos
contar com a ajuda desses besouros para nos livrar dele.
Os carunchos não estão sozinhos. Há outros insetos que podem
contribuir para solucionar o problema do plástico. A mariposa-da-cera é
considerada uma praga por apicultores porque se alimenta das placas de
cera das colmeias − a cera de abelha tem uma estrutura muito parecida com
outro plástico, o polietileno, o das sacolas de supermercado. Essa mariposa
pode fazer furinhos em sacos plásticos e transformar polietileno em
etilenoglicol, uma substância anticongelante utilizada em motores de
automóveis. Novamente, não é mérito apenas da lagarta, mas de uma
combinação de esforços com as bactérias que habitam seu intestino.
Os pesquisadores estão se debruçando sobre essas novas descobertas para
tentar encontrar um princípio ativo que possa ser produzido em escala
industrial para, em longo prazo, usá-lo a m de nos ajudar a eliminar o lixo
plástico.
Mosquitos astronautas
Falando em expectativa de vida e envelhecimento, que tal alguns truques
para nos ajudar em viagens interplanetárias? Talvez os insetos possam
também dar sua contribuição nesse assunto. Um mosquito não hematófago
chamado Polypedilum vanderplanki é um verdadeiro aspirante a astronauta e
já sabe como hibernar durante longos períodos.
O mosquito vive na África e sua larva habita poças d’água que secam
constantemente. Porém, enquanto um ser humano pode morrer se perder
14% dos líquidos do corpo, e a maioria dos organismos suporta uma perda
de no máximo 50%, a larva desse mosquito tolera uma desidratação de até
97%! No estágio mais seco, essas larvas aguentam todo tipo de provação:
você pode cozinhá-las, mergulhá-las em nitrogênio líquido, embebê-las em
álcool, expô-las à radiação cósmica durante anos ou apenas deixá-las quietas
— o recorde de sobrevivência até hoje é de 17 anos.
Quando é chegada a hora de despertar, é só adicionar água e zás! Elas
incham igualzinho àqueles pedacinhos de carne de sopas instantâneas e
voltam ao tamanho normal. Uma hora depois estarão se alimentando como
se nada tivesse acontecido.
A larva do mosquito pode, assim, entrar em estágio de animação suspensa
e car entre a vida e a morte, aparentemente sem sofrer dano algum. A
única coisa de que precisa é um tempo para se preparar. A chave para
sobreviver é substituir a água do corpo por um tipo de açúcar cha- mado
trealose. Este açúcar tem apenas metade do dulçor do açúcar comum e
existe em baixas concentrações no sangue dos insetos. Aliás, ele é assim
chamado em alusão às secreções larvais de um gorgulho encontrado no Irã,
chamado trehala no idioma persa, amplamente usado na medicina
tradicional local.
Quando o mosquitinho acha que os tempos de estiagem estão por vir,
começa a fabricar mais trealose no corpo, aumentando o teor dela no sangue
de 1% para 20%. O açúcar protege as células e as funções do corpo de várias
maneiras.
Existem vários organismos que dominam a arte de ser um morto-vivo —
incluindo bactérias, fungos (fermento seco, por exemplo!), lombrigas,
tardígrados e tatuzinhos-de-jardim. O interessante é que eles não usam as
mesmas técnicas. Nos tardígrados (ou ursos d’água), por exemplo, não há
acúmulo de trealose.
Se pudermos entender o que exatamente determina a mudança para o
estado de animação suspensa, podemos usar o mesmo processo para
preservar células, tecidos ou até mesmo indivíduos desidratados. Quem sabe
encontraremos num mosquitinho africano a chave para viagens
interplanetárias no futuro.
Abelhas-robôs
Enquanto esperamos que os insetos nos ajudem a viajar pelas estrelas, que
tal ajudá-los a passear entre as ores? Quem sabe eles nos ajudem a polinizá-
las em contrapartida... Para isso já existe, sim, abelhas-robôs. Pelo menos em
laboratório. Na forma de um pequeno drone, decorado com pelos e uma
na camada de gel elétrico para que possam carregar o pólen. Foram
testados pelos de cavalo, de bra de carbono e de náilon de uma escova de
rímel (sim, é sério). Embora o cavalo não seja exatamente conhecido por ser
um animal polinizador, seu pelo parece ser o que funciona melhor. Com
isso, a versão 0.1 da abelha-robô cou pronta para o teste. Na Internet você
pode assistir a um vídeo do drone voando de um lírio para o outro no
laboratório japonês onde foi criado. Um voo um tanto desajeitado, é
verdade, mas pilotagem de drone não é disciplina curricular na universidade
— ainda.
O uso mais imediato desses drones vai para as plantas alimentícias
dependentes de polinização em estufas. Com isso, poderemos limitar o uso
de espécies de abelhas naturais, que tendem a escapar das estufas e se
espalhar na natureza. Por enquanto, as abelhas-robôs não são muito e cazes,
pois precisam ser controladas manualmente. As baterias precisam ser
recarregadas a todo instante, mas talvez no futuro possam navegar
autônomas, com a ajuda de GPS ou controladas por inteligência arti cial,
equipadas com baterias de longa duração.
Mesmo assim, vamos acreditar que nosso mundo não será obrigado a
recorrer à mecânica moderna para substituir os recursos in nitamente
avançados da natureza. Mais de 20 mil espécies diferentes contribuem para a
polinização de ores silvestres e plantas cultivadas, e as pesquisas mostram
que a polinização é mais e caz tanto maior for a variedade de espécies, cada
uma com sua especialização. Sabemos que a interação entre inseto e or vem
sendo namente ajustada ao longo de mais de cem milhões de anos, e que a
polinização da natureza é muito mais complexa e engenhosa do que
qualquer coisa que possamos copiar. É mais fácil e mais barato cuidar das
soluções que a natureza nos oferece.
Quando se trata de obter novos insights de insetos antigos, tenha em
mente que jamais saberemos quais espécies serão úteis. Carunchos, moscas-
das-frutas, baratas, formigas ou mosquitos.
Nós, humanos, somos rápidos em distinguir espécies de acordo com o
grau de utilidade ou de transtorno que nos causam, e queremos nos ver
livres daquelas que se encaixam neste último grupo. Mas a natureza é algo
delicadamente inter-relacionado e, à medida que aumentamos o
conhecimento dela, não cessamos de fazer novas e so sticadas descobertas.
Há uma razão pela qual é tão importante cuidar da natureza e de todas as
espécies que existem, quer as percebamos como úteis ou não.
CAPÍTULO 9
Erradicar os ratos?
No dia 15 de junho de 1918, o vapor SS Makambo, carregado de frutas e
vegetais, encalhou ao largo da ilha Lord Howe, no meio do Pací co tropical,
um território do extremo leste australiano, cujos poucos habitantes estavam
isolados do continente principal por mais de 600 quilômetros de mar. Nesse
relato não há os que morreram, mas os que de fato alcançaram a terra rme:
os ratos. Ao longo dos nove dias que levou o conserto do navio, um número
desconhecido de ratos-pretos conseguiu nadar até a ilha Lord Howe, que se
mantivera isolada no mar durante milhões de anos. Ali espécies únicas
evoluíram; espécies jamais encontradas em qualquer outro lugar do mundo.
Mas os ratos não foram lá para relaxar na praia. Lembra-se do livro A
lagartinha esfomeada que mencionei anteriormente? Ela, que comia uma
maçã na segunda-feira, duas peras na terça e terminava engolindo laranjas,
salsichas inteiras, sorvete e bolo de chocolate antes do m de semana
chegar? Foi mais ou menos isso que zeram os ratos na ilha Lord Howe, que
devoraram não um exemplar, mas espécies singulares inteiras, uma atrás da
outra. Durante os primeiros anos, estima-se que os ratos deram cabo de pelo
menos 5 espécies de pássaros e 13 animais de pequeno porte desconhecidos
em outras partes do mundo.
Um desses animais era o bicho-pau gigante, igualzinho àqueles insetos
amarronzados que parecem um graveto seco. Mas este não era um graveto
seco. Era um inseto muito especial, o mais pesado da sua espécie, do
tamanho de uma salsicha, escuro, brilhante e sem asas, apelidado de “tree
lobster”, isto é, “lagosta arbórea”. Ou Dryococelus australis, se quiser
enriquecer seu latim. Esse inseto, como se viu, foi um verdadeiro banquete
para os ratos esfomeados. Já em 1920, a espécie foi declarada extinta, um
efeito colateral atrasado do naufrágio ocorrido dois anos antes.
Mas essa história teve uma reviravolta. Aquele território isolado tinha
outra fronteira. A cerca de 20 quilômetros de distância da ilha Lord Howe
ca a Pirâmide de Ball, um estreito e escarpado rochedo marítimo,
equivalente a um arranha-céu de 500 metros de altura, que atraiu alpinistas
aventureiros ao longo de décadas. Depois que o rochedo (junto com a ilha
Lord Howe) adquiriu status de patrimônio mundial em 1982, somente
expedições cientí cas são autorizadas a visitá-lo. Como persistia o boato de
que haveria “lagostas arbóreas” por lá, uma grande leva de alpinistas,
disfarçados de entomologistas, obtinha permissão e acorreu para a ilhota a
pretexto de “realizar pesquisas”, não em busca do raro bicho-pau, mas
apenas com o objetivo de escalar até o pico da escarpa. Por m, o
encarregado de emitir as permissões cansou-se da brincadeira e decidiu pôr
m aos rumores de uma vez por todas.
Em 2001, dois pesquisadores, acompanhados de dois assistentes, visitaram
o rochedo com esse m. Escalaram a parede íngreme sem avistar nenhuma
“lagosta arbórea”, mas ao descer descobriram um pequeno arbusto do
mesmo tipo que servia de alimento para o inseto, espremido numa fenda da
escarpa. Ali mesmo também avistaram alguns excrementos, que pareciam
recentes. Por mais que procurassem, não conseguiram encontrar nenhum
bicho-pau, então só havia uma coisa a fazer: repetir a escalada à noite, pois
os maiores insetos-pau do mundo são conhecidos por terem hábitos
noturnos.
Equipados com lanternas e câmeras, os pesquisadores testemunharam o
que parecia ser um sonho. Lá, no meio do que seria o único arbusto em todo
o rochedo, caram cara a cara com 24 enormes insetos-pau.
Ninguém sabe dizer como foram parar ali desde a ilha Lord Howe, onde
foram extintos em 1920. Quando não se pode voar ou nadar, uma travessia
de 20 quilômetros em mar aberto é um desa o e tanto. A melhor hipótese é
que um ovo ou uma fêmea grávida tenha pegado carona num pássaro ou em
alguma vegetação à deriva, e os insetos conseguiram a façanha de sobreviver
por pelo menos 80 anos no inóspito penhasco marítimo, quase sem
vegetação.
Os trâmites burocráticos que se seguiram é melhor nem mencionar.
Depois de dois anos de vaivém de documentos, foi autorizada a retirada de
dois machos e duas fêmeas do penhasco para se dar início a um programa
de repopulação da espécie. Dois desses exemplares (batizados de Adão e
Eva, naturalmente) resistiram por um o e hoje há uma razoável quantidade
desses insetos-pau em vários zoológicos, inclusive na Europa.
Mas eis que surgiu a questão de recolocá-los na ilha Lord Howe, onde a
espécie de fato pertencia, pois um rochedo com um único arbusto não é
local adequado para estabelecer uma população viável do bicho-pau. Na
ilha, no entanto, permanecia a ameaça representada pelos ratos. Sem que
fossem eliminados, não haveria por que reintroduzir os insetos. Aliás, o
bicho-pau não seria o único bene ciado com o extermínio dos ratos. Além
dele, 13 espécies de aves e répteis estão ameaçadas de extinção caso os ratos
se mantenham ali. Por isso, as autoridades puseram em prática um plano
para acabar com os ratos de uma vez por todas, e para tanto serão tomadas
medidas extremas. Quarenta e duas toneladas de cereais envenenados serão
despejados na ilha por helicópteros, uma missão nada simples de ser
executada.
Primeiramente, outros animais e não só os ratos podem ingerir os cereais;
entre eles, pássaros que se quer proteger. Portanto, a ideia é capturar as
espécies de aves mais vulneráveis numa espécie de Arca de Noé provisória e
só soltá-las novamente depois da chuva de cereal venenoso. Mas quais
consequências isso terá, por exemplo, para a diversidade genética das aves,
uma vez que não será possível capturar todos os indivíduos?
Algumas pessoas estão preocupadas. Há apenas 350 almas vivendo na
ilha, mas nem todas querem que chova cereal venenoso sobre suas cabeças,
embora as autoridades assegurem que isso não será feito próximo às casas.
Outros simplesmente acham que o bicho-pau é tão repugnante e merecedor
de ser exterminado quanto os próprios ratos. Para a biologia da conservação,
o que pensamos e sentimos tem tanto valor como as espécies que estamos
tentando preservar.
Ao longo dos anos, foram muitas as boas conversas que tive sobre insetos
e temas relacionados. Agradeço à supercolega Tone Birkemoe, da NMBU
(Universidade Norueguesa de Ciências da Vida), por seu entusiasmo
inesgotável, pelas conversas inspiradoras e pelos comentários sobre o texto.
Um viva para todos do grupo Ecologia de Insetos da NMBU, que
contribuem para uma defesa entusiasmada dos insetos e para um ambiente
de trabalho divertido. Obrigada aos velhos colegas do NINA (Instituto
Norueguês de Pesquisa da Natureza, onde ainda tenho o prazer de ter um
assistente) — representados aqui pelo diretor de pesquisas Erik Framstad —
pelas conversas estimulantes sobre absolutamente tudo que há entre o céu e
a terra.
Obrigada a minha família, tanto aos mais próximos como aos mais
distantes. Meus pais me ensinaram a ser curiosa sobre tudo que se move ao
ar livre, na natureza. Tenho a impressão de que minha mãe leu, ouviu, viu e
disse palavras positivas sobre todas as ideias de divulgação cientí ca que tive
nos últimos anos. Agradeço ao meu querido Kjetil pela paciência, pelo chá e
biscoitos recém-assados servidos nas longas noites de escrita. Quero
agradecer também aos nossos lhos, Simen, Tuva e Karine, por todas as
alegrias que compartilhamos, e fazer um agradecimento especial a Tuva,
pelo olhar sempre aguçado para o meu texto e pelas ilustrações que fez.
Por m, quero dizer que escrever este livro foi incrivelmente divertido. Foi
uma imensa satisfação ter aprendido tantas coisas e ter recebido o apoio da
minha editora em todos os instantes. Sou grata por tudo isso e também pelo
apoio recebido do De faglitterære fond (Fundo Literário de Não Ficção).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Capítulo 1
Alem, S., Perry, C. J., Zhu, X. et al. (2016). Associative Mechanisms Allow for Social Learning and
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