Sociologias - Revista CS

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EDIÇÃO QUADRIMESTRAL,

ANO 24, Nº 59 JAN/ABR 2022


E ISSN 1807-0337

SOCIOLOGIAS59

DOSSIÊ

Gênero e Raça:
trânsitos do Sul
em perspectiva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
E-ISSN 1807-0337

SOCIOLOGIAS
www.seer.ufrgs.br/sociologias

revsoc@ufrgs.br
SOCIOLOGIAS
[SSN 1807-0337] Revista quadrimestral do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS,
destinada a promover intercâmbio entre cientistas sociais nacionais e internacionais.
Sociologias is a four-monthly journal published by the Graduate Program in Sociology - UFRGS,
aiming to promote interaction between Brazilian and foreign social scientists
Ano 24, n. 59, jan/abr. 2022, Porto Alegre, PPGS/UFRGS.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Reitor: Carlos André Bulhões Mendes
Vice-Reitora: Patrícia Helena Lucas Pranke
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Diretor: Hélio Ricardo do Couto Alves
Vice-Diretor: Alex Niche Teixeira
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Coordenadora: Letícia Maria Schabbach
Coordenador-Substituto: Guilherme Francisco Waterloo
Radomsky
Editor Conselho Editorial
Alex Niche Teixeira Alicia Itati Palermo, UNL (Argentina)
Alberto Riella, Universidad de la República (Uruguai)
Editor Assistente Arnaud Sales, Université de Montréal (Canadá)
Enio Passiani Carlos Benedito Martins, UnB (Brasil)
César Barreira, UFCE (Brasil)
Editora Emérita Darío Salinas, Universidad Iberoamericana (México)
Maíra Baumgarten
Elisa Reis, UFRJ (Brasil)
Editora Assistente Fernanda Sobral, UnB (Brasil)
Cinara Lerrer Rosenfield Francesco Ramella, University of Torino (Itália)
Ilse Scherer-Warren, UFSC (Brasil)
Editores Assessores Jean Louis Laville, CNAM (França)
Adriano Premebida Julio Mejía Navarrete, UNMSM (Perú)
Alexandre Almeida de Magalhães Li Peilin, Chinese Academy of Social Sciences (China)
Clarissa Eckert Baeta Neves Luis Suárez Salazar, ISRI (Cuba)
Jalcione Almeida Margaret Abraham, Hofstra University (EUA)
Marília Luz David Maria Lucia Maciel, UFRJ (Brasil)
Priscilla Ribeiro dos Santos Maria de Nazareth Wanderley, UFPE (Brasil)
Rochelle Fellini Fachinetto Paulin J. Hountondji, Université Nationale du Bénin (Benin)
Paulo Henrique Martins, UFPE (Brasil)
Assessoria Editorial Pedro Hespanha, Universidade de Coimbra (Portugal)
Regina Vargas
Sabelo J. Ndlovu-Gatsheni, University of South Africa (África do Sul)
Equipe Técnica Sergio Costa, Freie Universität Berlin (Alemanha)
Projeto gráfico: Rodrigo Rosa Sujata Patel, Universidade de Hyderabab (India)
Editoração Eletrônica: Carolina Fernandes
Revisão e padronização: Liana Fernandes Fotografia Capa:
Revisão técnica: Regina Vargas Paul Arps
Amilcar Cabral wallpainting in Praia
(Santiago, Cabo Verde 2019)

Revista eletrônica, de acesso aberto, disponível em: www.seer.ufrgs.br/sociologias e em suas bases


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E-mail: revsoc@ufrgs.br
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© 2022, PPGS/UFRGS
Impresso no Brasil sob responsabilidade do PPGS/UFRGS
SOCIOLOGIAS59
ISSN 1807-0337 versão eletrônica

Edição quadrimestral, ano 24, nº 59, 2022

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
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Sociologias / Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-


Graduação em Sociologia. – v. 1, n. 1 (jan./jun. 1999)-. – Porto Alegre: UFRGS.
IFCH, 2007. – Quadrimestral. Continua: Cadernos de Sociologia. – ISSN 1517-
4522.

1. Sociologia. 2. Ciências sociais. I. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Programa de Pós-Graduação em Sociologia.

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2022, PPGS/UFRGS

Apoio:
MINISTÉRIO DA
MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA,
EDUCAÇÃO INOVAÇÕES E COMUNICAÇÕES
SUMÁRIO
TABLE OF CONTENTS

9 EDITORIAL
EDITORIAL

DOSSIÊ
DOSSIER

Gênero e Raça: trânsitos do Sul em perspectiva


Gender and race: southern transits in perspective
Organizadores: José Carlos Gomes dos Anjos e Miriam Steffen Vieira

16 Gênero e raça: trânsitos do Sul em perspectiva


Gender and race: southern transits in perspective
José Carlos Gomes dos Anjos e Miriam Steffen Vieira

24 Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada


no Gênero em Cabo Verde à sua operacionalização na
Rede Sol
The Special Law on Gender-Based Violence in Cape Verde: from
enactment to implementation by Rede Sol
Carmelita Afonseca Silva

54 Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-


verdiano no período pós-independência
Batuko: a people’s soul! Cape Verdean batuko experiences in the
post-independence
Carla Indira Carvalho Semedo
84 Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan
Healers and midwives: knowledge that challenge
Diana Manrique García

108 Traços de antinegritude em Cabo Verde


Traces of anti-blackness in Cape Verde
José Carlos Gomes dos Anjos e Eufémia Vicente Rocha

138 Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em


Cabo Verde
Kumida di tera: food and care relationships in Cape Verde
Natalia Velloso Santos e Vladmir Ferreira

ARTIGOS
ARTICLES

170 O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do


CNPq em Sociologia
The profile of CNPq’s research productivity grantees in Sociology
Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno e Quemuel
Baruque Rodrigues

200 O populismo como modelo de “democracia polarizada”: a


teoria do populismo de Pierre Rosanvallon à luz do debate
contemporâneo
Populism as a model of “polarized democracy”: Pierre Rosanvallon’s
theory of populism in contemporary debate
Le populisme comme modèle de “démocratie polarisée” : la
théorie du populisme de Pierre Rosanvallon à l’aune du débat
contemporain
Diogo Cunha e Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro
238 Entre substâncias e relações: formação e modernização do
Brasil em Raízes e Sobrados (1936)
Between substances and relationships: formation and
modernization of Brazil in Roots and Mansions (1936)
Sergio Barreira de Faria Tavolaro

Encarceramento e desencarceramento no Brasil: a


264
audiência de custódia como espaço de disputa
Incarceration and disincarceration in Brazil: The Detention Hearing
as a space for dispute
Rodrigo Ghiringhelli Azevedo, Jacqueline Sinhoretto e Giane Silvestre

Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura


296 Mobilities and ethnicity in Latin American sewing territories
Patricia Tavares de Freitas

328 Desigualdade racial na transmissão intergeracional da


herança de classe social
Racial inequality in intergenerational transmission of social class inheritance
José Alcides Figueiredo Santos

Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital


362 Disposable bodies: neosovereignty and exclusion in digital era
César Sabino

INTERFACES
INTERFACES

386 A organização das campanhas eleitorais nos municípios: o


caso de Guarulhos em 2016
Organization of municipal electoral campaigns: the case of Guarulhos in 2016
Mércia Alves
RESENHAS
BOOK REVIEWS

416 Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam


To become Beauvoir: beyond ad feminam arguments
KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2020.

Gabriel Peters

430 Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade


europeia nos Estados Unidos
Memory, narrative and ethnic subjectivity: the European ethnicity in
the United States
FODOR, Mónika. Ethnic subjectivity in intergenerational memory
narratives: politics of the untold. Nova York: Routledge, 2020. 285 p.

Lucas Voigt

BRAZIL TODAY
BRAZIL TODAY

444 Memórias políticas e resistências feministas


Political memories and feminist resistance
Danielle Tega
Sistema de justiça juvenil: disputas narrativas, produção legislativa e punição 9
EDITORIAL

http://doi.org/10.1590/15174522-124786

Gênero e raça sob


enfoque decolonial
Alex Niche Teixeira*
Enio Passiani*

A
parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e a Universidade de Cabo Verde
(Uni-CV), no âmbito das Ciências Sociais, resultou
num intercâmbio intenso de discentes e docentes e, com eles
e elas, ideias que assumiram a forma de pesquisas, círculos
intelectuais, teses, dissertações, bem como a importante Série
“Estudos Sociais Cabo-Verdianos”, uma coedição da Editora da
UFRGS com a então recém-criada casa editorial na Uni-CV,
justamente inspirada pelo modelo de editoras universitárias
brasileiras, como forma de publicizar as primeiras produções
do mestrado interinstitucional em Ciências Sociais iniciado em
2007 (Lucas; Silva, 2009). Após o primeiro volume, voltado
a pesquisas de feição etnográfica, seguiram-se edições que
trataram da dimensão política extrapartidária (Anjos; Baptista,
2010) e das sociabilidades em Cabo Verde (Rocha; Vieira, 2016).
Agora, o dossiê “Gênero e Raça: trânsitos do Sul em
perspectiva”, organizado por José Carlos Gomes do Anjos
e Miriam Steffen Vieira, composto por trabalhos resultantes
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 58, set-dez 2021, p. 9-14.


10 Alex Niche Teixeira & Enio Passiani

da cooperação acadêmica Sul-Sul, tenciona, corajosamente,


articular “tendências do feminismo do Sul Global às relações
complexas entre colonialismo e miscigenação”, de modo a
oferecer frestas que permitam pensar criticamente a modernidade
“a partir de potentes feminismos disruptivos que emergem das
experiências do Sul global americano”, tal como referem os
organizadores (Anjos; Vieira, nesta edição, p. 18 e 22).
Os exercícios analíticos que os(as) leitores(as) encontrarão
neste dossiê revelam muitas modernidades possíveis, com
todos os seus potenciais, limites e riscos. Extrapolam,
inclusive, a cooperação Brasil-África, e ampliam, assim,
os limites do Sul Global, incorporando, por conseguinte,
novos temas, problemas e perspectivas analíticas, arejando as
molduras teórico-epistemológicas e colocando-as, felizmente,
ao nosso alcance.
A seção Artigos desta edição traz trabalhos que cobrem
um leque variado de temáticas. Parte deles reflete sobre os
achados de pesquisas empíricas com foco em questões sociais de
relevância atual, outros trazem a leitoras e leitores de Sociologias
reflexões teóricas que buscam melhor compreender a realidade
brasileira. A seção abre com o artigo de Amurabi Oliveira,
Marina Melo, Mayres Pequeno e Quemuel Rodrigues, que
apresenta um estudo quantitativo sobre os bolsistas CNPq,
examina o perfil dos bolsistas da área de Sociologia, discute o
processo de acesso às bolsas de pesquisa e seus estratos.
Diogo Cunha e Paulo Henrique Cassimiro refletem sobre o
populismo, tomando por base a produção de Pierre Rosanvallon
sobre o tema e cotejando-a com outras perspectivas teóricas.
Concluem que a teoria de Rosanvallon oferece um instrumental
de maior abrangência para a análise do fenômeno, por ser
capaz de incorporar tensões e complexidades ao estudo da
democracia, das quais as demais abordagens não dão conta.

Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 58, set-dez 2021, p. 9-14.


Sistema de justiça juvenil: disputas narrativas, produção legislativa e punição 11

Sergio Tavolaro retoma as obras clássicas de Sergio Buarque


de Holanda e de Gilberto Freyre para analisar seus respectivos
olhares para os processos de formação e modernização da
sociedade brasileira, identificando entre as obras desses autores
perspectivas inconciliáveis desses processos. A partir dessa
análise, tece considerações, mobilizando uma farta literatura
da teoria social, e identificando alguns pontos de convergência
nas duas obras, sobre suas respectivas contribuições para uma
interpretação alternativa da experiência brasileira.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto
e Giane Silvestre discutem a implementação de medidas
descarcerizantes previstas na política criminal brasileira, a
partir de estudo empírico que acompanhou audiências de
custódia. A partir dos dados coletados, sugerem a influência
das concepções dos operadores jurídicos relativas ao crime, ao
perfil do criminosos e à punição sobre os padrões de escolha
de implementação ou não de medidas alternativas à prisão.
Outro estudo empírico, de Patrícia Tavares de Freitas,
examina a inserção de migrantes bolivianos no trabalho de
confecção de roupas em duas metrópoles (Buenos Aires e São
Paulo), com base na análise das redes sociais que oportunizam
o ingresso e a circulação das pessoas nessa atividade. A autora
indaga se a atividade constituiria uma economia étnica ou um
território circulatório para os migrantes. A partir dos dados
levantados por meio de entrevistas com pessoas que estiveram
envolvidas na atividade em algum momento de suas vidas,
propõe que se trata de um híbrido dessas categorias, decorrente
da existência de dois tipos de redes sociais de contratação:
um constituído das redes existentes nos locais de origem dos
migrantes e o outro de redes formadas nas cidades de destino.
A questão racial é tema do trabalho de José Alcides
Figueiredo Santos, um estudo de base estatística que examina as

Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 58, set-dez 2021, p. 9-14.


12 Alex Niche Teixeira & Enio Passiani

desigualdades raciais manifestas na transmissão intergeracional


de vantagens e desvantagens de origem de classe social. O
estudo aponta que, de maneira geral, no nível agregado, a
desigualdade racial persiste de forma marcante, no Brasil,
na transmissão da herança de classe. Além disso, os dados
indicam que, pelo menos no nível agregado, não há uma relação
direta entre o acesso à educação superior e uma redução da
desigualdade racial na transmissão da herança de classe.
Encerrando a seção, César Sabino examina o impacto das
novas formas de trabalho mediadas por tecnologias digitais,
sugerindo que a sociedade atual vive uma era de “neosoberania”
no que tange às relações de poder.
Na seção Interfaces, Mércia Alves discute a organização de
campanhas eleitorais nos municípios, a partir de um estudo de
caso da cidade de Guarulhos (SP). A autora põe o foco no processo
de profissionalização das campanhas e aponta, com base nos
resultados do estudo, para um processo heterogêneo, em que
o grau de profissionalização de cada campanha está associado
tanto à disponibilidade de recursos quanto ao perfil do candidato.
Na seção Resenhas, Gabriel Peters, em “Tornar-se
Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam” comenta a
biografia de Simone de Beauvoir, escrita pela filósofa inglesa
Kate Kirkpatrick e publicada no Brasil em 2020 pela editora
Planeta do Brasil. Peters destaca a importância dessa biografia
que, longe de ser mais uma entre as várias que privilegiam a
vida afetiva de Beauvoir, joga luz sobre a densidade filosófica,
literária e ético-política de sua obra, desfazendo o viés sexista
que a fazia caudatária do pensamento de Jean-Paul Sartre.
Lucas Voigt traz a resenha do livro de Mónika Fodor, Ethnic
subjectivity in intergenerational memory narratives: politics of
the untold, publicado pela Routledge, em 2020, e ainda sem
tradução para a língua portuguesa. O livro analisa o papel das

Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 58, set-dez 2021, p. 9-14.


Sistema de justiça juvenil: disputas narrativas, produção legislativa e punição 13

narrativas de memória intergeracional para a construção da


subjetividade étnica, a partir de estudos de identidades étnicas
europeias entre descendentes de migrantes nos EUA.
Por fim, a seção Brazil Today, que busca facilitar a
circulação internacional da pesquisa sociológica brasileira, traz
o trabalho de Danielle Tega, “Political memories and feminist
resistance”, fazendo uma síntese da pesquisa da autora, que
levantou um vasto corpus de testemunhos de mulheres que
lutaram contra as ditaduras no Brasil e na Argentina, e que
buscaram registrar suas memórias por meios diversos – diários,
relatos, ficção literária, entrevistas e outros. Registros que não
têm recebido o devido reconhecimento, o que revela o caráter
desbravador da pesquisa.
A partir desta edição, a Sociologias conta com uma nova
dupla de editores: os professores Alex Niche Teixeira e Enio
Passiani. Os desafios que se impõem atualmente à ciência
brasileira, particularmente às ciências sociais, não são poucos e
nem fáceis, mas não nos desanimam. Ao contrário, nos motivam
a seguir, a perseverar e fazer jus aos(às) editores(as) que nos
precederam e de quem somos herdeiros.

Os Editores.

Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 58, set-dez 2021, p. 9-14.


14 Alex Niche Teixeira & Enio Passiani

Referências
1. ANJOS, José Carlos G. dos; VIEIRA, Miriam S. Gênero e raça:
trânsitos do Sul em perspectiva. Sociologias, v. 24, n. 59, p. 16 – 23,
2022. http://doi.org/10.1590/15174522-124273
2. ANJOS, José Carlos dos; BAPTISTA, Marcelo Quintino G. (Org).
As tramas da política extrapartidária em Cabo Verde: ensaios
sociológicos. Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV; Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2010.
3. LUCAS, Maria Elisabeth; SILVA, Sérgio Baptista da. Ensaios
etnográficos na ilha de Santiago de Cabo Verde: processos identitários
na contemporaneidade. Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-
CV; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
4. ROCHA, Eufémia V.; VIEIRA, Miriam S. (Org.). Mobilidade
acadêmica e deslocamentos de perspectivas: Brasil/ Cabo Verde.
Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV; Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2016.

Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 58, set-dez 2021, p. 9-14.


DOSSIÊ

Gênero e Raça:
trânsitos do Sul
em perspectiva
Coordenado por
José Carlos Gomes do Anjos e
Miriam Steffen Vieira
16 José Carlos Gomes dos Anjos & Miriam Steffen
DOSSIÊ
Vieira
16

http://doi.org/10.1590/15174522-124273

Gênero e raça:
trânsitos do Sul em perspectiva
José Carlos Gomes dos Anjos*
Miriam Steffen Vieira**

Resumo
A cooperação acadêmica com países africanos foi incrementada por editais científicos
voltados à internacionalização das universidades brasileiras, especialmente a
partir de meados dos anos 2000. Esse processo promoveu a constituição de redes
internacionais de pesquisa e a colaboração entre pós-graduações brasileiras e
africanas, especialmente com países de língua oficial portuguesa. Este dossiê é fruto
desse processo, pautando estudos cabo-verdianos, em diálogo com pesquisas e
perspectivas latino-americanas. O dossiê reúne um conjunto de textos que cruzam
algumas das tendências dos feminismos do sul global às questões das relações entre
colonialismo e miscigenação. Esses diferentes estudos apontam para inusitadas
possibilidades de se pensar a modernidade a partir de potentes feminismos disruptivos
que emergem das experiências do Sul global amefricano.
Palavras-chave: colonialismo, cooperação acadêmica, feminismos, Sul global,
Cabo Verde.

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.


** Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


Gênero e raça: trânsitos do Sul em perspectiva 17

Gender and race: southern transits in perspective


Abstract
Academic cooperation with African countries was enhanced by calls for proposals
aimed at the internationalization of Brazilian universities, especially from the mid-
2000s onwards. This process promoted the establishment of international research
networks and collaboration between Brazilian and African graduates, especially with
Portuguese-speaking countries. This dossier is an outcome of this process, presenting
Cape Verdean studies, in dialogue with Latin American research and perspectives.
The dossier brings together a set of texts that interweave some trends in feminisms
of the global South with discussions on the relationship between colonialism and
miscegenation. These different studies point to unusual possibilities of reflecting
on modernity from the point of view of powerful disruptive feminisms that emerge
from the experiences of the African global South.
Keywords: colonialism, academic cooperation, feminisms, global South, Cape Verde.

O
que o feminismo do Sul tem a ver com a questão da miscigenação?
E como miscigenação racial e a mestiçagem institucional
característica da globalização neoliberal podem ser pensadas
juntas para além de uma relação metafórica? Esse par de questões aparece
iluminado sob diferentes ângulos nos artigos que se seguem. Cabo Verde
talvez seja um ponto particularmente privilegiado para esse tipo de
indagação. Nação imaginada sob a insígnia da mestiçagem, é também
o lugar de inversão das mais diversas fórmulas institucionais associadas à
promessa de desenvolvimento e autonomia.
No afã de parecer um ordenamento disciplinado para a recepção
das melhores fórmulas institucionais do mundo globalizado visando
ao desenvolvimento, Cabo Verde não poderia deixar de ser um palco
para os ensaios do feminismo branco como “missão civilizatória”. Como
sentencia Vergès, na era de assembleias internacionais, apoio de Estados
ocidentais e pós-coloniais, mídias femininas, revistas de economia,
instituições governamentais e internacionais, fundações e organizações não
governamentais, a agenda neoliberal se reconcilia com o feminismo e faz

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


18 José Carlos Gomes dos Anjos & Miriam Steffen Vieira

uso da linguagem dos direitos, particularmente dos direitos das mulheres,


para conferir uma nova roupagem ao imperialismo numa versão feminista
(Vergès, 2020). A demonstração de como a incorporação de agendas
internacionais continua a se impor também via direitos das mulheres nos
leva a uma inquietação quanto à conjuntura em que o feminismo se torna
parte do arsenal neoliberal para modernização dos subdesenvolvidos.
Reunimos aqui um conjunto de textos que cruzam algumas das
tendências dos feminismos do Sul global às questões das relações entre
colonialismo e miscigenação. Dado esse escopo e nossa experiência na
cooperação acadêmica entre Cabo Verde e o Brasil, essa questão não
poderia deixar de estar no centro da maior parte das reflexões tecidas no
dossiê. Cabo Verde é tipicamente um desses países em que os direitos das
mulheres se tornaram um trunfo de Estado e por meio dos quais as políticas
públicas se tornam permeáveis aos ordenamentos do imperialismo global,
via versões institucionalizadas do feminismo branco. A missão civilizadora
feminista branca e burguesa encontra aqui um ponto de tensão e alguns
dos artigos mobilizados neste dossiê se ancoram em lugares de resistência
a essa nova modalidade de miscigenação imperial de mundos por meio
da mestiçagem institucional.
Chamamos de feminismo branco, na esteira de Vergès (2020), aquela
forma de feminismo que reivindica seu pertencimento à Europa e que
se relaciona com o resto do mundo segundo a mesma lógica da partilha
racializada do mundo; aquele feminismo que carrega na bagagem os
efeitos de séculos de dominação e supremacia branca. Em que pese a
série de críticas ao seu compromisso com uma concepção binária de
gênero, sua política antissexo e seu apego a uma narrativa de progresso
que sublinha a concepção eurocêntrica de civilização, esse feminismo
permanece dominante nas instituições levadas para países africanos, como
Cabo Verde, no pacote de receitas para o desenvolvimento.
Se, como sugere Vergès (2020), esse feminismo “continua a moldar as
conversas políticas e teóricas do presente oferendo certeza moral e uma
visão de mundo onde estão claramente marcados bons e maus atores”, ele

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


Gênero e raça: trânsitos do Sul em perspectiva 19

pode ser colocado de lado, em favor de narrativas menores. As referências


ao feminismo dominante são, neste dossiê, discretamente deixadas de lado,
ligeiramente deslocadas, para que não ocupem a cena central da análise, e
para que possam ceder espaço para outras histórias capazes de interromper
as narrativas dominantes sobre o gênero. Está em jogo, neste dossiê, localizar
as mulheres africanas, e indígenas nas Américas, na trama de outros eixos
de opressão além do patriarcalismo. Pode-se considerar que os artigos aqui
presentes desdobram a premissa fundamental da antropóloga nigeriana
Oyewùmí (2021), de que a categoria mulher não é universal e não faz parte
de todas as configurações sociais da mesma maneira. É dessa premissa que
parte o artigo de Natalia Velloso e Vladmir Ferreira nesse dossiê.
Quando as decisivas lutas contra o colonialismo, em sua articulação
com o racismo e o patriarcalismo, se degeneram em ideologia neoliberal dos
direitos das mulheres, Carmelita Silva responde analisando a interferência
de agendas globais sobre decisões locais. Seu artigo busca entender como
se construíram os consensos em que se aprovou um projeto de lei sobre
a violência de gênero em Cabo Verde. É como se a missão civilizadora
tivesse agora se travestido na linguagem dos direitos, e o feminismo branco
se presta à modulação de ONGs “que em suas intervenções podem levar à
reprodução das agendas globais ao invés de traduzirem as reais expectativas
daquelas(es) que demandam pela justiça” – nos sugere a autora no artigo
“Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero em
Cabo Verde à sua operacionalização na Rede Sol”. O que a análise permite
depreender é o modo como um feminismo civilizatório se constitui como
parte da arte neoliberal de governo mundial.
Em outro momento do dossiê, um deslocamento etnográfico passa a
ocupar o lugar e desaparece o embate frontal. É o modo como procede
o artigo de Carla Indira Semedo, ao reconstruir as narrativas das mulheres
que protagonizam um dos gêneros músico-coreográficos mais populares
em Cabo Verde, o batuko. Suas interlocutoras lhe permitem perceber
o efeito das narrativas hegemônicas de conformação da identidade da
nação, mas Semedo segue além, mostrando como as vivências do batuko

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


20 José Carlos Gomes dos Anjos & Miriam Steffen Vieira

permitem a essas mulheres se inscreverem num projeto profissional: vir a


ser artista profissional.
Um deslocamento similar, em relação às versões dominantes do
feminismo, acontece com o artigo “Curanderas y parteras: saberes que
reivindican y tensionan”. Nele, Diana Manrique García expressa um
dos possíveis desdobramentos de uma perspectiva feminista de política
decolonial, que se coloca sob uma nova etapa do processo de descolonização
representada pela indisciplina dos corpos.
Todos os trabalhos aqui reunidos de algum modo se colocam na esteira
das críticas ao chamado feminismo civilizatório e, ao se deslocarem, colocam
em perspectiva, além da mestiçagem racial, a mestiçagem institucional do
momento globalista do imperialismo. Quando os programas de ajuste
estrutural encontram no feminismo universalista seu ponto de ancoragem
para a mestiçagem institucional, Carmelita Silva expõe como o protagonismo
do Estado, em detrimento dos sujeitos de direitos, e a imposição de um
modelo global limitam a agência dos atores/atrizes sociais envolvidos(as)
nos processos de problematização da violência baseada em gênero.
Em todo o dossiê está subjacente uma luta por justiça epistêmica que,
por vezes, se inscreve no plano de um feminismo decolonial que tem como
horizonte uma reapropriação científica e filosófica da capacidade de narrar
e das possibilidades de fazê-lo de outro modo. Trata-se de narrar de modo
a trazer aos de cima o fato de que as mulheres do Sul permanecem no lugar
de reparadoras dos imensos danos das novas modalidades de imperialismo
baseado no controle das fronteiras. É nessa esteira que Eufémia Vicente
Rocha e José Carlos Gomes dos Anjos articulam a posicionalidade de mulher
negra ao plano do mais assombroso dos desterros: o plano da própria
humanidade. Asseguram os autores que “a condição mais fundamental da
mulher negra num mundo antinegro é a de portadora de um natimorto, de
alguém cuja condição de humano se dissolve no próprio gesto da demanda
de verificação”. Os constrangimentos impostos pelos serviços de fronteira
aos imigrantes africanos é o plano em que o ser do negro se imbrica ao ser
do feminino como um buraco negro em que o ser se dá como impasse entre

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


Gênero e raça: trânsitos do Sul em perspectiva 21

a civilização e a incivilidade permanente. A perpetuação da supremacia


branca planetária e a exploração da antinegritude se fazem gritantes quando
governos do sul global buscam tirar partido da situação de apartheid global
posicionando como “uma fortaleza para si e como parte da muralha que
deve estancar o afluxo de negros pobres aos países afluentes”.
Quando o feminismo branco se tornou o álibi das novas modalidades
do imperialismo, o maior deslocamento pode ser o de nem mesmo tocar
no feminismo e nas questões de gênero, mesmo se o que está em jogo é
o cuidado através da alimentação. Natalia Velloso e Vladmir Ferreira se
apoiam em Bellacasa (2015) para expor uma ética do cuidado acionada
através de práticas de ecoativismo na permacultura. O cuidado da horta
como cuidado de si coletivo aparece como força de resistência à lógica
colonial e ao produtivismo contemporâneo. Percursos afirmativos intensivos,
descritos com sensibilidade acurada, permitem visualizar o constante
processo de tessitura de outros mundos neste mundo.
Quando a mulher migrante toma a palavra para denunciar a antinegritude
cabo-verdiana, essa voz pode ser conectada às práticas de cuidado e cura
de uma comunidade indígena da Amazonia Boliviana protagonizadas por
mulheres? O que está subjacente a esses textos diferentes é o horizonte de
um feminismo que articula a crítica ao patriarcado, aos direitos migrantes e
à luta contra o capitaloceno racial. São exploradas neste dossiê as respostas
ao momento global em que as portas do ocidente se fecham e a feminização
do Sul eclode enquanto políticas locais de empoderamento das mulheres
do Sul. Existem outras estratégias e elas não dependem desses marcos de
um feminismo global que se apresenta como missão civilizatória.
A reunião desses textos é caudatária das rotas transnacionais de
transferências de experiências que fizeram com que os organizadores deste
dossiê estivessem entre o Brasil e Cabo Verde, em trabalhos de orientação
de dissertações e teses que, de algum modo, tocavam nesses temas. Esta
proposta visou reunir textos sobre a produção de conhecimentos decorrente
da cooperação Sul-Sul brasileira com universidades africanas de língua
oficial portuguesa e explorar dimensões comparativas no campo dos estudos

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


22 José Carlos Gomes dos Anjos & Miriam Steffen Vieira

feministas. A circulação de pessoas, conceitos e teorias aparece em diferentes


artigos questionada desde perspectivas generificadas, e são colocados de
novo em tela os processos de crioulidade e de mestiçagem que cristalizaram
o processo de constituição de imaginários nacionais latino-americanos e dos
países lusófonos africanos, agora intensificados pelos processos migratórios.
Os artigos aqui propostos, ao reverem feminismos hegemônicos, apontam
para inusitadas possibilidades de se pensar a modernidade a partir de
potentes feminismos disruptivos que emergem das experiências do Sul
global amefricano (Gonzalez, 2020).
A partir dos anos 2000, a cooperação acadêmica com países africanos
foi incrementada por editais científicos voltados à internacionalização das
universidades brasileiras. Esse processo promoveu a constituição de redes
internacionais de pesquisa, a criação de grupos de pesquisa voltados aos
estudos africanos e a colaboração entre pós-graduações brasileiras e africanas,
especialmente com países de língua oficial portuguesa. Desta cooperação,
resultou uma significativa produção de conhecimento, seja de etnografias e
estudos empíricos em contextos africanos, seja de pesquisas comparativas
com Brasil e América Latina. Este dossiê decorre desses trânsitos. Mais
especificamente, exploramos aqui as brechas por onde se cruzam feminismos
afro-lusófonos e afro-latino-americanos nas bordas desse acontecimento vital
que é a intensificação do processo migratório dos países outrora colonizados
por potências latinas. A circulação internacional de conceitos, teorias e
imaginários no modo como informam e limitam as perspectivas feministas
amefricanas e impõem uma “extraversão” na produção de conhecimentos
sobre relações de gênero nesses países africanos e latino-americanos é o
eixo estrutural comum a diversos dos artigos aqui propostos.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


Gênero e raça: trânsitos do Sul em perspectiva 23

Referências
1. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções
e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
2. OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano
para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
3. BELLACASA, Maria P. de la. Making time for soil: Technoscientific futurity and
the pace of care. Social Studies of Science, v. 45, n. 5, p. 691-716, 2015.
4. VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e
Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 16-23.


24 Carmelita Afonseca
DOSSIÊ
Silva
24

http://doi.org/10.1590/15174522-121421

Da emergência da Lei Especial contra a


Violência Baseada no Gênero em Cabo
Verde à sua operacionalização na Rede Sol
Carmelita Afonseca Silva*

Resumo
Neste artigo, procuro refletir sobre o contexto de emergência da lei que torna público
o crime da Violência Baseada no Gênero (VBG) em Cabo Verde, ou Lei de VBG, como
é vulgarmente conhecida, e sobre o enquadramento dos casos de violência conjugal
nas estruturas da Rede Interinstitucional de Atendimento às Vítimas de Violência
Baseada no Género (Rede Sol). Para tanto, recupero, num primeiro momento, os
temas/questões que permearam os diferentes momentos de discussão (na Comissão
de seguimento do projeto-lei e no parlamento: violência contra as mulheres versus
violência baseada no gênero, (in)constitucionalidade, desestabilização da família
e interferência de agendas globais sobre decisões locais. Num segundo momento,
busco entender como se construíram os consensos e se aprovou o referido projeto-
lei. Por fim, apresento reflexões sobre esse processo de construção de legalidades
de equidade de gênero considerando dimensões globais e locais.
Palavras-chave: maus-tratos, violência baseada no gênero, família, Rede Sol.

* Universidade de Cabo Verde, Praia, Santiago, Cabo Verde.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 25

The Special Law on Gender-Based Violence in Cape Verde:


from enactment to implementation by Rede Sol
Abstract
The article presents the context in which the law that criminalizes Gender-Based
Violence (GBV) in Cape Verde, or the GBV Law, as it is commonly known, emerged
and examines the framing of cases of marital violence within the structures of
Interinstitutional Network for Assistance to Victims of Gender-Based Violence
(Rede Sol). To that end, at first, the themes/questions that permeated the different
moments of discussion (in both the advisory commission and in the parliament) of
the Bill are considered: violence against women vs. gender-based violence, (un)
constitutionality, destabilization of the family and interference of global agendas on
local decisions. Secondly, I seek to understand how consensus was built and the
aforementioned bill was approved, and, finally, I present reflections on this process
of construction of gender equality legalities considering global and local dimensions.
Keywords: abuses, gender-based violence, family, Rede Sol.

Introdução

D
esde a década de 1970, por influência de diferentes movimentos
feministas, a violência doméstica, em especial, a exercida por
homens contra as mulheres, deixou de estar restrita ao domínio
da privacidade familiar, para constituir-se, inicialmente, em (i) uma das
principais lutas feministas e/ou de organizações não governamentais (Ongs)
que atuam no campo da promoção da igualdade de gênero; (ii) temas de
pesquisas nos mais diversos campos de produção de conhecimento; e (iii)
objeto de produção de legalidades e de políticas públicas em inúmeros
países do mundo.
No contexto de Cabo Verde, à semelhança de Brasil, Moçambique e
Espanha – países tomados como referência na concepção da Lei Especial
Contra Violência Baseada no Gênero – os processos de construção social
das violências foram marcados por “pressões” de organismos internacionais
e de Ongs que atuam no campo da promoção de igualdade de gênero. Em

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


26 Carmelita Afonseca Silva

paralelo a esse movimento – que se impõe, sobretudo, a partir do norte


global –, observa-se também o desenvolvimento de um campo teórico-
metodológico cujo foco de discussão se desloca das noções de maus-tratos,
violência doméstica e violência contra a mulher (entre finais da década de
1990 e finais da década de 2000),1 para se centralizar na violência baseada
no gênero (VBG) (a partir da década de 2010).
Os primeiros debates privilegiaram, portanto, o conceito de violência
doméstica, tipificado, no âmbito do primeiro Código Penal de Cabo Verde
(de 2004), em seu artigo 134º, como crime os maus-tratos físicos, psicológicos
ou tratamentos cruéis infligidos a cônjuge ou a pessoa com quem se está
unido de fato. A partir desse instrumento jurídico, as violências no âmbito
de conjugalidades se deslocam do naturalmente aceito para se constituírem
num crime de natureza semipública2 (Artigo 376º do Código Penal). Nesse
período, as discussões eram muito vinculadas à ideia do patriarcado como
operador das desigualdades sociais – uma proposta de análise centrada
na naturalização da desigualdade de gênero e, portanto, marcada pela
matriz do pensamento ocidental. Tal abordagem não só apresentava as
mulheres como vítimas exclusivas das violências perpetuadas pelos homens,
como invisibilizava os significados particulares que os envolvidos (homens
e mulheres, enquanto sujeitos particulares de direitos) nas situações de
violências construíam dessas práticas.
Embora, para o momento em que se vivia, a tipificação dos maus-tratos
representasse um passo importante no processo de desnaturalização das
violências contra a mulher, o instituto responsável pelas políticas de promoção
da mulher (Instituto da Condição Feminina – ICF) e as Ongs feministas do país
entendiam que a complexidade do fenômeno da violência perpetrada contra
as mulheres não apenas demandava o deslocamento do foco do debate
do núcleo de relações (a família) para os sujeitos particulares de direitos
1
Vale referir que esse deslocamento não significou a extinção do artigo 134º do CP que
tipifica os maus-tratos aos cônjuges. O referido artigo aplica-se ainda hoje nos casos em
que o desequilíbrio de poder não constitui a motivação para a violência entre os cônjuges.
2
O procedimento penal passa a depender do desejo da vítima ou de pessoa com autoridade
legitimamente reconhecida para o registro da queixa.

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Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 27

(a mulher e o homem), mas que era igualmente necessário autonomizar e


tornar público o crime das violências. Para tanto, a partir do final da década
de 2000, conjugaram-se vários esforços – da sociedade civil organizada, do
Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG),
de parlamentares, das lideranças dos partidos políticos, com o apoio dos
organismos internacionais – que possibilitaram a aprovação da Lei número
84/VII/11, instrumento que torna público, amplia3 e autonomiza o crime
da “violência com base no gênero”. Somente a partir desse diploma é que,
efetivamente, redefinem-se os lugares de masculinidades e feminilidades
em Cabo Verde. Ou seja, que a VBG passa a ser entendida como resultado
do exercício de poder, reforçando as representações sociais em torno do
que se entende por “ser homem” e por “ser mulher” (ICIEG, s.d).
A mudança do eixo da promoção da família – no quadro da lei que
versa sobre os maus-tratos –, para a igualdade de gênero, no âmbito da Lei
Especial contra violência baseada no gênero, também foi acompanhada
de deslocamentos na abordagem do problema. Se, até o final da década
de 2000, os trabalhos em torno da violência doméstica centralizaram a
análise no patriarcado, reduzindo as mulheres à condição de “vítimas”
das determinações históricas, e os homens a autores exclusivos dessa
prática, sustentando a análise na abordagem da dominação masculina4
e da dominação patriarcal,5 a partir de 2009 começa-se a perceber o
deslocamento de um discurso “vitimista”, em especial relacionado à mulher,
para uma abordagem relacional, que permite trazer à discussão narrativas de
mulheres e homens em situação de violências (Silva, 2009; Furtado, 2016).
Nesse processo “classificatório” ou de “deslocamento semântico” de
“maus-tratos a cônjuges/violência doméstica” para a “violência baseada no
gênero”, observa-se um deslocamento tanto teórico como de objeto de
intervenção. Se, na primeira categorização, as discussões evidenciaram a
3
Com a entrada em vigor da lei n. 84/VII/2011, a VBG deixa de se circunscrever exclusivamente
ao espaço doméstico e àquelas situações que ocorrem na relação conjugal, para alargar seu
âmbito às situações que acontecem nos espaços públicos, como no meio laboral.
4
Refiro-me à dominação masculina, no sentido usado pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1999).
5
A abordagem da dominação patriarcal é aqui referenciada a partir das contribuições da
socióloga feminista Heleieth Saffioti (1995).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


28 Carmelita Afonseca Silva

família como bem jurídico a proteger, na segunda, destaca-se a necessidade


de proteger os direitos individuais das pessoas, mulheres e homens, envolvidas
em situações de violências. A violência passa, portanto, a ser pensada como
prática que afeta tanto mulheres como homens, ainda que de modo desigual.

Contexto de emergência do projeto-lei de VBG


Os avanços globais no campo do reconhecimento dos direitos das
mulheres, possibilitaram a criação, a partir da década de 2000, do primeiro
Código Penal de Cabo Verde, que tipificou, em seu artigo 134º, os maus-
tratos a cônjuges como crime semipúblico. Não obstante essa mudança no
ordenamento jurídico interno, as desigualdades e violências continuam a
permear as relações entre homens e mulheres (Silva, 2009). Conforme o
jurista Carlos Reis,6 a própria gravidade de certos casos de violência que
davam entrada no Ministério Público (MP) e a forma como as mulheres que
procuravam esse serviço para denunciar situações de violência expressavam
suas subjetividades evidenciavam a necessidade de um novo enquadramento
jurídico para esses casos.
No trecho que se segue, o jurista explicita, a partir de duas situações
de violência que deram entrada no MP, entre 2005 e 2006, numa altura em
que exercia o cargo de procurador na Ilha do Fogo, os limites operacionais
do artigo 134º, e destaca algumas das estratégias que têm sido usadas para
garantir que os casos cheguem a julgamento. Como afirma,

na primeira [situação], a mulher, na faixa etária dos 25/26 anos, que tinha sido
agredida pelo marido com uma garrafa que lhe deixou hematomas na cabeça,
apresentou a queixa. No dia do julgamento, quando chegaram, sentaram-se
juntos e eu perguntei à senhora: “vocês já se reconciliaram?” e ela me disse
que sim; e o procurador lhe perguntou: “você quer desistir da queixa?” e
ela disse “não, não quero desistir da queixa, eu quero que o tribunal decide
e se ele for condenado a alguma coisa, posso até ajudar, mas eu quero que
ele aprenda a lição para que isso não volte a repetir. Nós já estamos bem em
casa, ele até, regra geral, é um bom marido, assume responsabilidade pelo
nosso filho, mas eu não quero desistir da queixa.
6
Informações concedidas em entrevista realizada em janeiro de 2016.

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Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 29

Na segunda (...) situação, oposta a essa, era de uma senhora que era agredida
pelo marido com quem tinha dois filhos. Um deles já um adolescente que
até intervinha e ameaçava-o por conta da agressão que exercia sobre a mãe.
Ela então, ao sair da casa deles para ficar em casa de uma irmã, não levou
os filhos porque não havia espaços, mas deixava que o marido saísse de casa
para trabalhar e voltava para a casa, limpava, cozinhava e voltava a sair para
não entrar em contato com ele; isto depois de várias agressões/atitudes muito
violentas. Queixava-se, e quando o processo ia ao Ministério Público (MP),
havia desistências. Desistiu na primeira, segunda, com o mesmo procurador
e na terceira vez, o procurador, lhe disse, “minha senhora, desse jeito você
corre o risco de eu estar a fazer o seu levantamento de cadáver ...”. A senhora
se sentiu até ofendida pelo que disse o procurador. Mais tarde, quando eu
entrei em contato com esta situação, foi num episódio em que o companheiro
chega mais cedo à casa e encontra a mulher... e já estava bêbado e agride-a
de tal forma que parte-lhe uma costela, perfurando-lhe um pulmão, e ela
foi evacuada para a cidade da Praia e o procurador disse... “neste caso, nem
vou apresentar como crime de maus-tratos, vou enquadrar como crime mais
grave – ofensas agravadas porque, assim, ela não vai poder desistir da queixa
no MP”. (Carlos Reis, entrevista concedida em janeiro de 2016).

Esses dois casos evidenciam os limites da lei de “maus tratos a cônjuges”


diante da complexidade das situações de violência que vinham ocorrendo
no país, e chamam a atenção para as necessidades: (i) de o procedimento
criminal não depender da manifestação do desejo da vítima em denunciar
e manter a queixa; (ii) de autonomização do crime da violência; e (iii) de a
punição dos casos não depender da habitualidade e do vínculo conjugal,
o que deixava impunes os agressores.
Essas situações fizeram com que o ICIEG, em articulação com
seus parceiros, começasse a refletir sobre a necessidade de um novo
enquadramento jurídico para o problema das violências. Uma demanda
que, embora não tenha sido protagonizada por movimentos feministas à
semelhança do que aconteceu no Brasil (Vieira, 2013) e noutras paragens,
não ocorreu de forma isolada. Assim como a criminalização dos maus-
tratos, também o processo de concepção da Lei Especial VBG, formalmente
iniciado entre 2009 e 2010, resultou de um trabalho articulado com os
organismos internacionais e Ongs que atuam na promoção da igualdade de

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30 Carmelita Afonseca Silva

gênero. Trata-se, portanto, de uma questão que faz parte da agenda interna,
ao mesmo tempo em que conjuga demandas internacionais e regionais.
Com efeito, embora desde 2004,7 quando acompanhava o processo
de elaboração do primeiro Código Penal cabo-verdiano (CPC), e em 2005,
na sequência da publicação dos resultados do II Inquérito Demográfico e de
Saúde Reprodutiva (IDSRII), o ICIEG já tivesse manifestado sua preocupação
face à necessidade de tornar público o crime de VBG, o processo de
concepção do Projeto-lei somente viria a ser formalizado entre 2009 e
2010. Importa, contudo, salientar que a introdução do módulo “violência
doméstica” no IDSRII, que reforçou a necessidade da criação da referida
lei, resultou de uma exigência da Organização das Nações Unidas (ONU).
Conforme o referido organismo internacional, a introdução da categoria
“violência doméstica” como indicador adicional no processo de seguimento
do Objetivo do Desenvolvimento do Milénio (ODM3) e a constar no relatório
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDAW) devia, necessariamente, passar pela assunção
do compromisso de Cabo Verde em dar a conhecer as estatísticas nacionais
sobre o fenômeno.8 Além de chamar a atenção para a necessidade de pensar
uma proposta de lei que autonomizasse e ampliasse o âmbito do crime da
violência doméstica contra as mulheres,9 dados recolhidos e sistematizados
a partir do IDSRII estimularam a elaboração do I Plano Nacional contra a
Violência Baseada no Gênero (PNVBG).10
7
Importa referir que a proposta de uma lei que torna público o crime de violência doméstica,
em especial a exercida contra as mulheres, foi uma iniciativa da Associação de Mulheres
Juristas (AMJ), na sequência de recomendações saídas do estudo Proteção às vítimas de
crimes violentos (em particular as mulheres): Relatório provisório de 2002, produzido pela
mesma associação (AMJ) sob coordenação do jurista, Jorge Carlos Fonseca. A não implicação
dos outros parceiros, nacionais, regionais e internacionais, fez com que a proposta não
chegasse, conforme referem os juristas, Carlos Reis e Dionara Anjos, a ser apreciada pelo
governo (entrevistas realizadas em janeiro e fevereiro do ano 2016, respetivamente).
8
Os dados apontavam para a maior representatividade da violência física (16%), seguida da
psicológica (14%) e da sexual (4%); constatou-se que a maioria das vítimas se concentrava
no meio urbano (24%), que uma em cada cinco mulheres era vítima da violência por parte
de companheiro ou ex-companheiro; 19% das mulheres admitiram ser vítima de mais de
um tipo de violência.
9
Para mais informações a esse respeito ver Relatório de Avaliação do estágio de implementação
da lei nº 84/VII/11 de 2017.
10
Plano que operacionaliza um dos eixos estratégicos do Plano Nacional de Promoção da
Igualdade de Gênero (PNIEG – 2005/2009).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 31

Processo de concepção e aprovação do Projeto-lei VBG: da


divergência de perspectivas à construção do consenso
Concepção e socialização do Projeto-lei junto à comissão de
seguimento dos trabalhos
O projeto-lei contra VBG surgiu da harmonização de duas propostas
apresentadas ao concurso lançado pelo ICIEG para a elaboração da lei
contra a violência.11 Uma proposta tomava como referência a Lei Maria da
Penha (LMP) do Brasil, que propunha seguir a CEDAW e outros instrumentos
da Organização das Nações Unidas (ONU), e que entendia a violência
baseada no gênero como sinônimo de violência contra a mulher. A outra,
apoiava-se na Plataforma de Ação de Beijing, propondo uma abordagem
mais ampla sobre o fenômeno da violência, que não circunscrevia gênero
a uma perspectiva dicotômica homem/mulher, mas buscava pensá-lo como
construção social independentemente do sexo, percebendo a violência
como prática relacional.
Para apoiar o processo da harmonização das duas propostas, o ICIEG
integrou mais um consultor nacional. Conforme salienta a jurista Dionara
Anjos, em entrevista concedida em 2016, não se tratou apenas de harmonizar
as duas propostas de projeto-lei,12 mas também de tentar equilibrar a
posição das Ongs membros da Rede Sol que faziam parte da comissão
de acompanhamento do projeto-lei.
Segundo a jurista, entre as Ongs se podia, igualmente, perceber duas
correntes. Uma delas, embora reconhecendo as mulheres como “vítimas”
preferenciais das violências perpetradas pelos homens, defendia que, para
um combate a médio e longo prazo, era necessário formular uma lei contra
11
Foram selecionadas duas equipes de consultores. Uma equipe constituída por duas
juristas, uma brasileira, graduada em Direito e doutorada em Direitos Humanos, e uma
cabo-verdiana, graduada em direito e inscrita na Ordem dos Advogados de Cabo Verde
(OACV). A outra equipe era formada por dois juristas, ambos de nacionalidade cabo-
verdiana, um membro fundador da Rede Laço Branco, Cabo Verde e deputado das
bancadas parlamentares do Movimento para a Democracia (MPD) e do Partido Africano da
Independência de Cabo Verde (PAICV).
12
Além de suas propostas serem influenciadas pelos organismos internacionais – ONU,
em particular –, também se poderia notar influências derivadas do tipo organizações
da sociedade civil e da política de pertença de consultoras(res) e das universidades que
frequentaram, sem se esquecer das marcas de gênero.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


32 Carmelita Afonseca Silva

a violência baseada no gênero. A outra corrente, fundamentada na ideia do


desequilíbrio histórico de poder em desfavor das mulheres, entendia que se
deveria avançar com um projeto-lei sobre a violência contra as mulheres.
Portanto, não havia entre as Ongs o consenso quanto ao bem jurídico a
proteger. Se, na primeira corrente, a tônica era colocada na necessidade de
assegurar a efetiva igualdade entre homens e mulheres como princípio de
combate às desigualdades históricas de poder e, por conseguinte, a VBG,
na segunda, a mulher é apresentada como bem jurídico a proteger.
Gerir as diferentes perspectivas, seja dos consultores, seja das Ongs e,
ao mesmo tempo, levar em consideração os compromissos internacionais
do Estado e estratégias de mobilização de deputados e deputadas das duas
bancadas com maior assento parlamentar, MPD e PAICV, levantou algumas
suspeições no núcleo de trabalho. Como refere o jurista Clóvis Silva,

nós tivemos que fazer um trabalho entre nós para justificarmos perante o núcleo
e as nossas colegas consultoras que era importante que nós analisássemos
essa perspectiva [gênero como relação]. Por quê? Porque isto não estava
nos termos de referência. A ideia não era criar uma lei de violência do
gênero, [a ideia] foi construída pela equipa… não havia… portanto... não
era esta a ideia inicial. Tanto que, se for aos rascunhos… vai ver que não há
esta abordagem, esta abordagem foi criada posteriormente. E acho que na
segunda ou terceira versão, já confluímos… já aparece essa construção de
gênero, já aparece essa construção despida da ideia de que a mulher é a
vítima exclusiva e nós aprendemos muito nesse processo e acho que foi um
golpe de sorte nós termos estado naquele lugar, naquela hora… (Clovis Silva,
entrevista concedida em março de 2017).

Em sentido semelhante, o jurista Carlos Reis expressa que

apesar de ter sido difícil dizer: “nós não vamos fazer uma lei para as mulheres,
mas uma lei em prol da igualdade de gênero” (...) lembro da coordenadora
da Rede Sol a chegar a uma determinada altura em que a discussão estava
acalorada, ela disse: “Bom, minha gente, eu quero é garantir que: 1, temos
a lei e 2, que a lei puna os agressores. Se, na prática, os agressores são
tendencialmente homens e as vítimas tendencialmente mulheres, é um bocado
indiferente a lei dizer se especificamente ou não, vai favorecer as mulheres”.
Portanto, é como eu digo, teríamos discussões muito complicadas relativamente
à constitucionalidade da lei. Se haverá que proteger as mulheres e teríamos

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 33

uma discussão sobre a discriminação positiva, se podia ou se não podia; o


princípio da igualdade, a questão das relações homossexuais, colocar-se-ia,
pois é como eu digo, se a LMP, protege mulheres ainda que tendo uma relação
homossexual, mas não protegendo homens na mesma relação, você não pode
configurar a representação dos papéis do gênero num casal homossexual
composto por duas mulheres e não configurar essa possibilidade num casal
de homossexuais formado por dois homens ... e isso seria um ponto muito
complicado ultrapassar. Daí que esta foi também uma boa justificação, para
convencer esta comissão de acompanhamento a submeter um projeto desta
natureza... (Carlos Reis, entrevista concedida em janeiro de 2016).

Apesar da dificuldade inicial em gerir as diferentes perspectivas, as


relações entre os(as) consultores(as) e Ongs representadas na comissão de
acompanhamento dos trabalhos não foram marcadas por conflitos. Havia
consenso em que a aprovação do projeto-lei num parlamento como o
nosso, constituído maioritariamente por homens13, demandava equilíbrio
de gênero e de representação de partidos com maior assento parlamentar,
na constituição da equipa de consultores e que, o gênero fosse concebido
numa perspectiva relacional, envolvendo homens e mulheres.
Embora o processo de concepção, discussão e socialização da proposta
do projeto-lei na comissão de acompanhamento tivesse como preocupação
a definição de estratégias políticas internas que pudessem garantir sua
aprovação no parlamento – fato que exigiu o redirecionamento daquilo
que inicialmente se previa –,14 a preocupação central era pensar uma
proposta de lei que levasse em conta as expectativas de homens e mulheres
cabo-verdianos(as) e que traduzisse a realidade do país. As narrativas da ex-
presidente do ICIEG e dos juristas que estiveram implicados na concepção
do projeto-lei VBG revelaram essa preocupação.
Para Cláudia Rodrigues, ex-presidente do ICIEG,
13
O processo de elaboração do projeto-lei ocorreu no período da VII Legislatura (2006,
2011). Nessa legislatura, o parlamento era composto por quarenta e um (41) deputados
do Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV), partido que suporta o
governo, 29 do Movimento para a Democracia (MPD) e os outros dois são representantes
da União Cabo-Verdiana Independente e Democrática (UCID). Em termos de gênero, havia
11 deputadas contra 61 deputados.
14
Para mais informações, ver o Caderno de Encargos para a elaboração do projeto de
lei (ICIEG, 2009).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


34 Carmelita Afonseca Silva

restringir a violência baseada no gênero à violência contra as mulheres não dava


resposta às necessidades locais, mesmo porque não se incluiria a homofobia e o
Instituto estava, naquele momento, implementando um projeto de salvaguarda
dos direitos LGBT, tendo sido importante permitir a integração da homofobia
no contexto (Claudia Rodrigues, citada em Anjos, 2015, p. 305).

Rodrigues deixa explícita na sua narrativa a necessidade de uma lei


que levasse em conta as particularidades de Cabo Verde, destacando a
homofobia como uma prática violenta que deveria ser incluída no projeto-lei.
O jurista Carlos Reis considera, por sua vez, que se a VBG fosse conduzida
à semelhança do disposto na Lei Maria da Penha, do Brasil, para uma
situação em que as “vítimas” fossem única e exclusivamente as mulheres,

estaríamos a deixar de fora um certo número de situações em que se pode


constatar violência de gênero em relação a homens, meninos e rapazes,
onde a VBG tem uma configuração muito mais específica (...) se repararmos,
a VBG, em relação às nossas crianças, aos meninos e rapazes, que começam
na sua formação enquanto homem, nas suas afirmações de masculinidade
fundamentadas em estereótipos que, normalmente, os incita a terem uma
atitude mais agressiva e eventualmente até mais violenta perante obstáculos
de vida (entrevista Carlo Reis, entrevista concedida em janeiro de 2016).

Segundo o jurista, em Cabo Verde, pensar uma proposta de lei sobre


violências que proteja exclusivamente os direitos das mulheres, à semelhança
das leis do Brasil, Espanha e Moçambique, seria excludente e, portanto,
redutor a médio e longo prazos. Mesmo que, no caso de Cabo Verde, a
proposta busque ampliar o conceito de gênero, aproximando-o da ideia
de papéis sociais de gênero e do desequilíbrio de poder, é importante ter
presente que os papéis sociais não são fixos e se constituem na relação
(Scott, 1995). Se assim é, tanto homens como mulheres podem se constituir
como autores(as) e “vítimas” de VBG.
Algumas situações observadas e relatos escutados durante o nosso
trabalho de campo15 demonstraram, a título de exemplo, que o papel de
15
Trabalho realizado entre 2016 e 2017, no âmbito do projeto de tese intitulado “A Rede Sol
e a Lei Especial contra Violência Baseada no Gênero: processos institucionais e narrativas de
mulheres e homens em situação de de violências conjugais em Cabo Verde”.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 35

provedor da família, antes atribuído quase que exclusivamente aos homens,


pode, em função das mudanças ocorridas no domínio laboral e no plano
cultural, passar a ser assumido por muitas mulheres. O que não significa,
necessariamente, a existência de uma relação de dominação por parte das
mulheres. Os casos de Sónia e de Abel são bastante reveladores.

(...) ele chegou a ficar desempregado por um ano e, nesse período, eu é que
cuidava da casa e me responsabilizava pelas despesas da família. Precisavas
ver o comportamento dele, todo mansinho! Há cerca de um mês que voltou
a trabalhar como chefe da guarda municipal, transformou-se completamente,
é outra pessoa.... nunca esperava que ele fosse capaz de me agredir… ontem
agrediu-me de todas as maneiras: com a cadeira, pedaços de vidro dos objetos
que partia enquanto brigávamos, bofetadas, socos na cabeça, mordeu-me no
pescoço, como se não bastasse, pegou num cinto e tentou me estrangular...
(Sónia, professora, 30-35 anos, notas de campo, novembro de 2014).

Já passei de tudo com esta mulher... é possessiva, ciumenta, ou doença


mesmo!!? Não sei, talvez!! Quando fiquei desempregado, comi o pão que
o diabo amassou. Me obrigava a fazer tudo, inclusive lavar suas cuecas... era
humilhação e controlo demais para uma pessoa. Entrei em estado profundo
de depressão... Há 20 dias que comecei a trabalhar de novo, e quase todos os
dias ela vai no meu trabalho, cria casos... faz escândalos. É basta me ver com
uma colega, que logo pensa que é a minha mulher... (Abel, Técnico superior,
30-35 anos, notas de campo, novembro de 2014).

Embora os relatos evidenciem alguma relação entre o papel de


provedor da família e o exercício da violência, é importante perceber,
tal como defendem Ortner e Whitehead (1981), que as relações de
gênero não podem ser entendidas como simples reflexo da divisão
sexual do trabalho e que, portanto, o papel de provedor da família não
é uma prerrogativa dos homens. As atividades de mulheres e homens
são, conforme Henrietta Moore (1997, p. 12),16 “informadas por uma
multiplicidade de discursos de gênero e relações de gênero, eles próprios
produzidos e reproduzidos por meio dessas mesmas atividades, que
16
Tradução de Júlio Assis Simões, exclusivamente para uso didático. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/269229/mod_resource/content/0/henrietta%20
moore%20compreendendo%20sexo%20e%20g%C3%AAnero.pdf.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


36 Carmelita Afonseca Silva

refletem as mudanças no entendimento da cultura”. As narrativas de


Abel e de Sónia enfatizam o poder como elemento central no exercício
da violência, não como algo fixo e que se impõe apenas a partir do polo
masculino da relação, à semelhança do que sugere Pierre Bourdieu
(1999), mas como elemento que circula nas relações de gênero, podendo
igualmente ser exercido pelo polo feminino.
Diante dessas narrativas, que chamam a atenção para a necessidade
de o projeto-lei ser pensado para e com cabo-verdianas e cabo-verdianos,
respeitando suas particularidades, chegou-se ao consenso de que o foco
do debate não deveria centrar-se exclusivamente no eixo “vitimista” e
na penalização e responsabilização da parte agressora, mas que também
se deveria pensar no tratamento dessas pessoas e, logo, que se deveria
deslocar o eixo da “promoção da mulher” como bem jurídico a proteger
para o da “igualdade de gênero”.
Após o consenso de que a judicialização dos conflitos de gênero
deve focar nas relações de gênero, o ICIEG iniciou um intenso processo
de advocacy junto às entidades que teriam influência e poder de decisão
na aprovação da lei.17 Essa ação contou com a participação da Rede de
Mulheres Parlamentares de Cabo Verde (RMPCV) e apoio das agências da
ONU no país. Portanto, também nessa etapa as ações continuaram a ser
protagonizadas pelo ICIEG e outros setores (magistrados e parlamentares),
Ongs e não por movimentos sociais organizados, como tem sido prática
no Brasil (Vieira, 2013) e outros países (Espanha, Moçambique), cujas leis
serviram de inspiração à Lei Especial contra VBG de Cabo Verde (questão
que será desenvolvida mais à frente).
Não obstante o consenso, notamos, ao longo do trabalho de campo,
que as medidas de políticas continuam focadas na proteção dos direitos
das mulheres. Situação que Wânia Pasinato pondera derivar-se
17
Antes da sua discussão no Parlamento, o projeto-lei foi socializado com o Presidente
da República, o presidente da Assembleia, o Procurador da República e representantes
dos partidos políticos com assento parlamentar. Com essa ação se pretendia sensibilizar
personalidades influentes para apoiar a aprovação da lei.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 37

do reconhecimento de que tratar da desigualdade de gênero, significa colocar


o foco sobre a persistência daquelas práticas, medidas, ações ou omissões que
afetam de forma desproporcional as mulheres em razão de sua condição de
gênero (Pasinato, s/d. p. 4).

Numa perspectiva semelhante, a então Coordenadora Nacional da Rede


Sol alude que promover a igualdade é “proteger aquele que, por alguma
razão, em dado momento, se encontre numa situação de desequilíbrio de
poder”.18 Portanto, ainda que não esteja explícito na lei, o que, em termos
práticos parece estar em jogo quando se pensa a VBG, é a necessidade
de estabelecer medidas de discriminação positiva que permitam garantir
a efetiva igualdade entre homens e mulheres.
Apesar de a equipe de consultores para elaboração da proposta
do projeto-lei estar integrada por homens e mulheres de nacionalidade
cabo-verdiana, de todo o processo de discussão e socialização da
proposta contar com a participação de instituições e Ongs que atuam na
promoção de igualdade de gênero no país, e de, ao longo do processo
de discussão conceitual notar-se um esforço em pensar categorias que
estejam mais próximas da realidade cabo-verdiana, importa ter presente
que essas circunstâncias não necessariamente revelam que a proposta
de lei traduza a realidade do país. Levando em consideração que o
projeto-lei se sustenta no paradigma científico dominante ou na matriz
do pensamento eurocêntrico, pode-se, à semelhança do que adverte
Edward Said, notar que há uma relação de dominação legitimada pelo
discurso do conhecimento, que se torna ainda mais profunda do que a
militar/política, pois persiste mesmo depois da colonização estrito senso
(Said, 2003). Portanto, seria difícil para os consultores terem reflexões
fora desse referencial teórico eurocêntrico.
Questões que envolvem a interferência do global no local continuaram
a nortear as discussões do projeto-lei, a nível do Parlamento. Para os
propósitos do item que se segue, procuro discorrer sobre a forma como

18
Informações concedidas em entrevista, realizada em novembro de 2016.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


38 Carmelita Afonseca Silva

os parlamentares percebiam o projeto-lei: que implicações sua natureza


pública teria para a família pensada a partir do modelo ocidental e que
efeitos produziria sobre outros ordenamentos jurídicos internos.

Da discussão e votação do projeto-lei especial


contra VBG no Parlamento
O processo de discussão e aprovação na íntegra do projeto-lei sobre
a violência baseada no gênero, decorrido em julho de 2010, permitiu que
fossem aprofundadas com o parlamento nacional e os partidos políticos
questões relacionadas com o estado de implementação da CEDAW e a
necessidade de reforço do quadro legal para a efetivação da igualdade de
gênero e a eliminação de situações de discriminação contra as mulheres.
Apesar de os membros da comissão de acompanhamento alcançarem
consenso, durante o processo de discussão e socialização do projeto-lei
em que a igualdade de gênero deve ser o bem jurídico a proteger, a
audiência pública para a aprovação do projeto-lei VBG no parlamento
trouxe novamente à discussão: (i) a necessidade da proteção da família
como finalidade última da produção de leis no campo das violências; (ii) a
questão da inconstitucionalidade; e (iii) a interferência de políticas globais
na definição de medidas internas.
Relativamente à primeira questão, importa referir que, embora a
proposta de lei submetida ao parlamento conte com o apoio de todos os
partidos com assento parlamentar,19 a análise dos discursos proferidos pelos
deputados das diferentes bancadas parlamentares durante a audiência
pública remete a posições divergentes e, por vezes, contraditórias no que
se refere à natureza pública da proposta de lei. Se, para alguns deputados,
em particular os da bancada parlamentar do MPD (partido da oposição,
à época), não se deveria avançar com a aprovação de um projeto–lei em
que vários artigos punham em causa a estabilidade familiar, tomando como
19
Importa lembrar que o projeto-lei foi submetido ao parlamento pela Rede de Mulheres
Parlamentares de Cabo Verde, uma rede presidida por uma deputada do partido no poder,
na época, o PAICV, e tendo como vice uma deputada do partido da oposição (MPD). Além
disso, a rede integra deputadas da bancada parlamentar de todos os partidos com assento
parlamentar (PAICV, MPD e UCID).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 39

modelo a família nuclear, para a maioria deles, a transformação da violência


em um problema social, ao invés de desestabilizar a família, contribuiria para
a sua segurança e proteção. Em ambas as posições, a preocupação central
parece ser a de garantir a proteção da família. As mulheres e homens em
situação de violência não eram vistos como sujeitas(os) de direito, ou seja,
suas demandas e expectativas particulares não foram objetos de discussão.
A esse respeito, os discursos dos deputados Rui Figueiredo e Rui
Semedo, das bancadas parlamentares do MPD e PAICV, respectivamente,
são bastante reveladores. Para Figueiredo, deslocar a natureza do crime de
violência de semipúblico para público pode gerar a instabilidade familiar.
Nesse sentido, alerta,

será que todos nós nos demos conta de que transformando este crime em
crime público não há sequer a possibilidade de desistência? e que qualquer
pessoa, uma escaramuça, ou ouvindo determinadas tomadas de posições ou
discussões ou violências... se temos violências entre casais, qualquer pessoa
pode fazer essa queixa, o Ministério Público deve oficiosamente agir e que
não há possibilidades de desistência de queixa, que muitos casais homens e
mulheres correm o risco de verem sua família mais em perigo que atualmente.
Quer dizer há questões básicas que devem ser discutidas. Devia ver com o
máximo de serenidade esta questão, reformular o diploma, trazê-lo no mês
de outubro e certamente teríamos votos unânimes desta casa parlamentar.
Se não, se insistimos em fazê-lo agora, corremos o risco de não ter consenso
na aprovação na generalidade (...) [o que] não me parece uma boa prática
parlamentar (Deputado Rui Figueiredo, audiência pública de discussão do
projeto-lei contra Violência Baseada no Gênero).

Ao questionar o fato de o projeto-lei protagonizar o Estado, em


detrimento da família, abrir a possibilidade para interferência na gestão
dos problemas privados e de impossibilitar a desistência da queixa, o
deputado defende a ideia da reprivatização da violência conjugal. Por sua
vez, ainda que partilhe a ideia de proteção da família, o deputado Rui
Semedo não considera que deslocar a natureza semipública da lei para
pública contribua para a desestabilização da unidade doméstica. Assim,
sobre o questionamento do deputado Figueiredo, o deputado Semedo
lança novas questões.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


40 Carmelita Afonseca Silva

Será isso [a violência] saudável, para a família, para a criança que vive neste
ambiente de escaramuça, sem que ninguém da sociedade possa ter possibilidade
de intervir para eliminar essa anomalia social? Porque aí, esta tomada de posição
estaria a dizer: sim senhor, é normal haver alguma violência entre a família
(...) não ir para a questão de transformamos em crimes públicos teríamos essa
outra face da moeda também. (Deputado Rui Semedo, audiência pública de
discussão do projeto-lei contra Violência Baseada no Gênero).

Analisando o discurso dos dois deputados, percebe-se que, embora


ambos defendam a necessidade de garantir a estabilidade familiar, como
núcleo constituído por mãe, pai e filhos partilhando o mesmo espaço,
em detrimento da defesa dos direitos individuais dos sujeitos, apresentam
percepções distintas sobre a mesma questão. Para o primeiro, a estabilidade
familiar aparece associada à ideia da naturalização da submissão da
mulher à dominação masculina, enquanto, para o segundo, a estabilidade
significa ausência e não silenciamento da violência por parte da vítima.
Com efeito, a garantia de direitos dos sujeitos se dá, tal como referem
Rifiotis e Vieira (2012, p. 19, 74), pela garantia do “bem social”, o que
acaba por destituir “o sujeito de seu poder de decisão, transferindo para
o Estado o protagonismo das lutas sociais”. Situação que, segundo os
autores, pode levar a um descompasso entre os objetivos e práticas dos
operadores da lei e as demandas e expectativas das mulheres e homens
em situação de violência.
Essa situação foi bastante evidenciada durante o trabalho de campo,
realizado no Gabinete de Apoio à Vítima de VBG e na Procuradoria da
Comarca da Praia, para a questão da VBG e da família. A partir da escuta de
relatos em sala de espera e de atendimento/audiência nessas duas instâncias da
Rede Sol, pude perceber que muitas mulheres e homens que procuravam esse
serviço para denunciar situações de violência não desejavam procedimento
criminal do caso, mas apenas o aconselhamento ao(à) parceiro(a), para
retomarem a relação não marcada pela violência – desejo que a natureza
pública da lei não permitia que fosse atendido. Feita a denúncia, a instrução
do processo não dependerá da vontade da(o) denunciante.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 41

O mesmo não se pode dizer em relação a alguns dos serviços prestados


nas Casas do Direito (CD). Refiro-me, neste particular, à mediação enquanto
forma alternativa de resolução de litígios, cuja realização e procedimento
dependem do desejo das partes envolvidas em conflitos de participarem nas
sessões. Ainda que se possa verificar algum descompasso entre as expectativas
dos envolvidos em situação de conflitos e da equipe de mediação, sendo
uma ação extrajudicial, as pessoas denunciantes podem desistir a qualquer
momento, sem que se incorra em qualquer penalidade.
Pude, a partir da participação em sessões de mediação entre casais,
perceber que, embora as partes aceitem participar da mediação, podem
não encontrar soluções que contemplem e satisfaçam seus interesses,
e, por conseguinte, chegar a um acordo. Conforme o mediador da
CD de Terra Branca, mesmo nos casos em que se chega a estabelecer
o acordo, ele nem sempre é cumprido pelas partes e não existem,
naquela instância, mecanismos que obriguem o seu cumprimento e/ou
o julgamentos de acordos.
De certa forma, a mediação aproxima-se do que propõem Rifiotis e
Vieira (2012) para superar os limites da centralidade no sistema judiciário:
“o deslocamento do debate em termos do direito dos sujeitos para o
sujeito de direito”. Com efeito, ao invés de pensar o direito a partir de uma
perspectiva normativa e prescritiva, que protagoniza o Estado, anulando a
possibilidade de agência dos sujeitos e desvalorizando outras formas de ação
social, os autores propõem que o direito seja pensado com os sujeitos, ou
seja, tendo em consideração “suas experiências, dilemas e modalidades de
enfrentamento da violência, apropriação que fazem dos discursos e práticas
judicializantes” (2012, p. 17-22). Longe de pretender negar a importância
da constituição de uma “cultura de direitos humanos”, o que os autores
recomendam é que tal “cultura” seja construída com os sujeitos sociais
e não por uma via exclusivamente judicializante/criminalizante (Rifiotis;
Vieira, 2012, p. 74).
Posição essa não partilhada por Guita Debert e Filomena Gregori (2008),
para quem, resultando os direitos das demandas dos movimentos sociais,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


42 Carmelita Afonseca Silva

eles refletem, desde logo, os interesses e as demandas dos sujeitos. O que


consideram problemático não é a centralidade no direito, mas a forma como
este é materializado no sistema brasileiro (questão que retomarei mais à
frente, quando abordo sobre influências externas na aprovação da lei VBG).
Outra questão que norteou as discussões, por ocasião da aprovação
do projeto-lei no parlamento, foi a da inconstitucionalidade e interferência
de políticas globais na definição de medidas internas. Para o deputado Rui
Figueiredo, as ações do Estado devem ser definidas internamente e regidas
pela constituição. Nesse sentido, antes da sua declaração de voto, lançou
o seguinte apelo à mesa da Assembleia Nacional,

(...) que os deputados exerçam o seu mandato em perfeita liberdade e sem


qualquer condicionamento. (...) As pessoas nas galerias, sejam elas quem
forem, não podem levantar-se para observar com ar de desafio deputados
nesta casa parlamentar. Eu, da minha parte, exercerei sempre o meu mandato
em perfeita liberdade e em consciência. (...) apesar de ter dúvidas no início,
dispunha-me a votar favoravelmente. Essas dúvidas foram grandemente
agravadas com o parecer das comissões especializadas e com isto não me senti
em condições de, mesmo apesar das dúvidas, votar favoravelmente; acabei
por votar abstenção em relação a este importante diploma (...) O projeto como
este, do meu ponto de vista, enferma de graves inconstitucionalidades (...)
impedem a aprovação na generalidade neste momento (...) e por isso mesmo,
é que eu propus que se fizesse aqui, que se procedesse ao cancelamento da
iniciativa e retomar esta iniciativa, tirando do diploma as normas que podem
ser consideradas inconstitucionais. Compromissos externos não podem marcar
a agenda parlamentar, (...) nenhum compromisso nos deve levar a alterar a
agenda parlamentar (Deputado Rui Figueiredo, audiência pública de discussão
do projeto-lei contra Violência Baseada no Gênero no parlamento).

Esse discurso chama a atenção, tal como alude o sociólogo Cláudio


Furtado (2017), para a necessidade de os governantes assumirem uma
perspectiva crítica em relação às agendas globais que tendem a se impor
sobre as decisões locais, não respeitando as particularidades de realidades
concretas/demandas internas. Embora, no contexto de Cabo Verde, a
demanda por criminalização da violência leve em consideração as demandas
das Ongs que atuam nesse campo, a insuficiência de recursos faz com que

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 43

tendencialmente se busque “encaixar” as agendas nacionais àquelas de


organismos internacionais. É notável o esforço do governo em desenvolver
e/ou apoiar iniciativas que ajudem o país a assumir seus compromissos
internacionais e/ou a atingir as metas/objetivos traçados por esses organismos
para um determinado período.
Nesse caso, antes de questionar se as demandas das Ongs e do
ICIEG traduzem os interesses particulares dos sujeitos, é importante,
como referem Celeste Fortes (2013), Miriam Vieira (2013) e Cláudio
Furtado (2017), questionar se tais demandas expressam os problemas que
efetivamente constituem prioridades locais. Ainda que as demandas pela
institucionalização da lei contra VBG resulte da necessidade de atender
as demandas internas da sociedade civil organizada, iniciadas desde a
independência do país em 1975, elas refletem, igualmente, a necessidade
de o país assumir seus compromissos firmados quando da ratificação de
instrumentos internacionais e regionais de promoção da igualdade de
gênero, em especial os direcionados ao combate à VBG.20 Assim, a Lei
VBG é resultado não apenas do processo histórico do país, mas também
de sua abertura ao mundo (Anjos, 2015).

Dos critérios aos limites de enquadramento dos casos


pelos operadores da lei
A lei especial contra VBG, diferentemente das leis de Espanha, Brasil
e Moçambique, tomadas como referência em sua concepção, desloca
o debate da vitimização exclusiva das mulheres, para pensar a violência
como prática relacional, um pouco na linha do que defendem Miriam
Grossi e Joana Pedro (1998), Filomena Gregori (1993) e Guita Debert e
Filomena Gregori (2008). A pretensão deixou de ser a de tratar somente a

20
No âmbito internacional, destacam-se: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra a Mulher de 1979 – CEDAW, o Protocolo Opcional à Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; e, em nível
regional: Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Protocolo à Carta Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos, relativo aos Direitos da Mulher em África.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


44 Carmelita Afonseca Silva

violência doméstica ou familiar exercida contra as mulheres, à semelhança


do que aconteceu nas legislações do Brasil e de todos os países pilotos do
Programa Juntos na Ação21 da ONU,22 para centralizar no exercício desigual
de poderes em razão de gênero.
Como refere Miriam Vieira (2013), a criminalização das modalidades
[física, psicológica, sexual, patrimonial e assédio sexual]23 de violências, em
Cabo Verde, deixou, diferentemente do Brasil, de assentar-se nas hierarquias
de gênero – focadas nas mulheres –, para privilegiar a categoria gênero,
abordando homens e mulheres.
Ainda que a lei de VBG não abra a possibilidade para pensar as
violências fora do quadro dos estereótipos de gênero, derivados de uma
cultura machista e patriarcal, não se pode excluir a possibilidade de
“vitimização” dos homens, se pensarmos que os papéis sociais não são
fixos e que, dependendo da própria dinâmica de transformação social,
podem ocorrer situações de inversão/ transitoriedade de papéis (Furtado;
Anjos, 2016 apud Silva; Vieira, 2016).
Durante minha pesquisa de campo no Gabinete de Apoio à Vítima de
Violência Baseada no Género da Esquadra da Polícia Nacional de Achada
Santo António, na capital, Praia, enquanto acompanhava o registro de uma
queixa na sala de audiência, fomos bruscamente interrompidos por uma
senhora muito aflita, pedindo apoio para retirar a filha de seis meses que
tinha deixado em casa, na sequência da briga com o companheiro. Para
atender o pedido, foi acionado o Serviço de Piquete24 que, acompanhado da
presumível vítima, conseguiu recuperar a criança e proceder à sua entrega
em casa da avó materna, conforme as indicações da mãe (denunciante).
Em seguida, conduziram o companheiro da denunciante para a esquadra,25
21
Para o continente asiático: Vietnã e Paquistão; Continente Africano: Moçambique,
Ruanda, Tanzânia e Cabo Verde; continente europeu: Albânia; e, finalmente, na América
Latina e Caribe, foi escolhido o Uruguai.
22
Importa registrar que Ruanda constituiu uma exceção.
23
Para uma definição dos diferentes tipos de violências, ver Artigo 3º, i), ii), iii) e iv) da Lei
Especial Contra Violência Baseada no Gênero.
24
Serviço de emergência da Polícia Nacional.
25
Estrutura de atendimento policial, correspondente à delegacia no Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 45

onde foi ouvido pelo agente da polícia nacional e a coordenadora do GAV.


Nesse interrogatório, o acusado relatou sua experiência de vida marcada
por sucessivas agressões, sobretudo psicológicas, resultados da assunção,
pela mulher, do papel de provedora da família.
Os dois exemplos demonstram o caráter dinâmico e descentralizado
das relações de poder e rejeita a condição da mulher como vítima passiva
na relação conjugal violenta, casos que também podem ser analisados
à luz das ideias de Guita Debert e Filomena Gregori (2008), quando
referem ao agenciamento das mulheres, realçando sua capacidade de
resistência aos arranjos opressivos em diferentes contextos e/ou recorrendo
à proposta de Manuela Furtado (2016) quando refere que o acesso e
controle dos recursos pelas mulheres podem potencializar o exercício de
poder sobre os homens, exigindo-lhes que ajam de acordo com o que
deles espera a sociedade. Não obstante o fato de homens e mulheres
estarem no papel de autores e vítimas de violências nas relações de
gênero, no quadro da Lei de VBG importa referir que são formas distintas
de vitimização e exercício de poderes. Logo, não podem ser colocadas
no mesmo patamar analítico.
Conforme Wânia Pasinato e João Delgado, ainda que, historicamente,
a configuração dos papéis sociais de gênero coloque as mulheres na
condição de submissas e os homens, de dominantes, ambos podem,
dependendo da posição que ocupam na relação, ser autores e/ou vítimas
de violências. A violência de gênero contra os homens é, na perspectiva
desses autores, exercida para pressioná-los a ser mais ambiciosos,
assumirem e desempenharem “os papéis designados aos homens em
nossa sociedade, tanto no espaço público como no privado...” (Pasinato;
Delgado, 2013, p. 13).
Portanto, tomar o gênero e o desequilíbrio de poder como categorias de
análise não exclui a possibilidade de pensar homens e mulheres em situação
de violência. Dados da nossa pesquisa de campo revelam que os homens
apareciam, quase sempre, como “vítimas” de violências exercidas por suas
companheiras em reação às sucessivas agressões a que as submetiam, mas

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


46 Carmelita Afonseca Silva

também, em alguns casos, como “vítimas” de sucessivos comportamentos


violentos, de iniciativa das mulheres. Os casos de Pepe26 e de Roger,27
que a seguir apresento, são bastante reveladores de situações de violência
enquanto práticas relacionais.

Vivemos juntos há cerca de 18 anos e até bem pouco tempo a nossa relação
caminhava bem, mas depois, por causa de ciúmes, os conflitos começaram
a surgir e se tornaram frequentes. Tudo começou no dia 24 de dezembro,
em que trabalhei no táxi toda a noite; em seguida fui ajudar o meu irmão a
resolver uns assuntos, chegando em casa por volta das 5 da manhã... uma
amiga disse à minha mulher que tinha uma “rapariga” e que havia passado
a noite com essa menina... enquanto eu dormia, ela [a minha companheira]
me deu um soco no pescoço. Levantei e perguntei o que estava a passar ...
ela foi apanhar uma faca e tentou me agredir e aí, tive que me defender. Dei
um soco no braço dela (...) a partir daquele dia ganhou confiança para me
bater. Passou a me tratar como uma criança (...) fazia várias ameaças que me
dava com faca, água quente, que me tocava fogo com gasolina enquanto
dormia... (Roger, taxista, 35-40 anos).

Lembro de um dia ter ido buscar a minha filha, e ela recusou determinadamente
que não deixaria... depois de muita insistência, sem resultado, decidi pegar
a criança à força. Aí, ela [ex-companheira] apanhou um copo, quebrou e em
seguida me acertou na costa... Quando vi que estava a sair muito sangue, acabei
por descontrolar um pouco, parti também para a agressão... Não fui para o
hospital e nem quis denunciá-la na polícia. Não queria parecer de ridículo!
Sou homem! Mas tive que vir, porque ela se queixou de mim e pior do que
isso, a queixa foi encaminhada para o tribunal e ela consegui convencer todo
o mundo que ela simplesmente reagiu às minhas agressões e evitado que a
matasse, em sua própria casa. Alguns vizinhos que chegaram praticamente
no final daquela cena, testemunharam contra mim, acrescentando que estava
bêbado... Fui condenado a um ano e quatro meses de pena suspensa convertida
em multa (Pepe, condutor GRP, 25-30 anos).

Esses dois casos mostram os limites de pensar o gênero pela representação


do sexo biológico, determinada pela ideia de papéis sociais como fixos e

26
Um dos interlocutores, que declara experienciar situações de violência conjugal e aceita
partilhar sua experiência no Gabinete de Apoio à Vítima de VBG, recusando, entretanto,
proceder ao registro da queixa, alegando o fato de “ser homem”.
27
Um dos interlocutores cuja experiência de violência me foi partilhada na Casa do Direito
de Terra Branca.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 47

de analisar os sistemas de desigualdades, expressos em razão do sexo e


do gênero, exclusivamente pela ideia do patriarcado. Ainda que, como
refere Grossi (1994, p. 478), o lugar de passividade possa fazer parte do
jogo relacional, ele “não necessariamente remete a uma visão estática
de um feminino a-histórico e a-cultural”. A esse respeito, a proposta de
Gayle Rubin (1993, p. 24), de pensarmos a subordinação, em especial das
mulheres, não como reflexo do patriarcado, mas como “um produto das
relações por meio das quais sexo e gênero são organizados e produzidos”,
parece-me adequada para a análise desses casos. Mesmo que essa proposta
lhe tenha permitido desnaturalizar a opressão das mulheres, ela não foi
suficiente para a compreensão das relações de gênero e a problematização
do caráter sociocultural do sexo.
Embora a proposta de deslocamento da violência doméstica – como
sinônimo de violência contra as mulheres – para a violência baseada no gênero,
implicando homens e mulheres, esteja expressa nos textos da lei e dos vários
manuais e materiais de apoio à sua implementação (Silva, 2009), é visível a
dificuldade dos operadores do direito na análise e enquadramento dos casos
pelo eixo das relações do poder. Mesmo sendo essa lei, no contexto de Cabo
Verde, conforme refere o jurista Carlos Reis, possivelmente aquela que mais
medidas de sensibilização produziu, as dificuldades no enquadramento dos
casos pelos operadores jurídicos continuam um desafio a vencer. Dificuldades
essas que, conforme pude verificar durante o acompanhamento da denúncia
de casos nas diferentes instâncias da Rede Sol, estavam relacionadas não apenas
ao desafio de encontrar elementos de prova, mas à própria operacionalização
dos conceitos de gênero e poder. Assentar o enquadramento dos casos de VBG
na construção de relações de poder desiguais baseadas nos estereótipos de
gênero e não apenas na existência de uma relação de intimidade, afetividade,
casamento ou situações análogas, é um aspecto inovador que, entretanto,
parece complexificar o problema.
Se, por um lado, o conceito de gênero trazido no corpo da lei28 não
consegue dar conta da realidade em permanente transformação, por centrar-
28
“Representação social do sexo biológico, determinada pela ideia de tarefas, funções e
papéis atribuídos a mulheres e aos homens na sociedade e na vida pública e privada, bem
como da relação que se desenvolve entre eles” (Lei Especial Contra Violência Baseada no
Gênero, Artigo n. 3º a).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


48 Carmelita Afonseca Silva

se na ideia de papéis sociais, por outro, uma das grandes dificuldades na


operacionalização do conceito de VBG prende-se ao fato de a lei não
esclarecer o conceito de poder e suas dimensões. A não definição da
categoria poder no texto da lei abre a possibilidade para o enquadramento
de casos dependendo do entendimento que cada técnico/operador da lei
faz desse conceito.
Além de problemas conceituais, a falta de elementos de prova
(constituição de testemunhas, guia de exame direto e fotografias) e o
silêncio da pessoa denunciante são outros constrangimentos que se colocam
ao procurador no enquadramento dos casos e, consequentemente, na
aplicação de medidas no quadro da lei VBG. Tal situação, como pude
verificar durante o trabalho de campo na Seção de Crimes de VBG e Contra
a Família (SCVBGF), fez com que muitos casos fossem considerados passíveis
de ser enquadrados em outras tipologias de crimes e/ou arquivados.
Nesse sentido, a narrativa da Dionara Anjos é bastante reveladora.
Conforme ela assegura,

para facilitar sua vida, os magistrados não estão enquadrando o crime como VBG
e estão colocando tudo como ofensa, porque aí diminui o trabalho. É a forma
mais fácil, que dá menos trabalho. É uma lástima, mas é isso que estou vendo
na Praia. Há algum tempo estava se fazendo uma coisa horrorosa, o julgamento
coletivo de casos de VBG. Uma situação muito constrangedora para as vítimas...
(Jurista Dionara Anjos, em entrevista concedida em fevereiro de 2016).

Para superar essas dificuldades no enquadramento dos casos e


possibilitar a uniformização dos procedimentos no atendimento, o ICIEG
vem investindo na produção de instrumentos específicos para cada setor.
Essa ação não tem, necessariamente, permitido a resolução do problema,
pois a questão não se limita à inexistência de instrumentos, mas, sobretudo,
à sua não aplicação pelos respectivos técnicos/operadores. Durante a
pesquisa de campo nas estruturas da Rede Sol, pude observar que técnicos e
técnicas desconheciam a existência de manuais de procedimentos ou outros
instrumentos, ou, na maioria dos casos, consideravam-nos impraticáveis
no contexto específico em que atuavam.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 49

Considerações finais
No contexto de Cabo Verde, a busca crescente pelo direito como forma
de organização social tem sido uma demanda interna impulsionada pelas
Ongs feministas – em estreita parceria com as instituições do Estado, em
particular com o Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de
Gênero – e reflete o comprometimento do país em assumir os protocolos
internacionais e regionais. A análise dos processos institucionais e das
narrativas de operadores do direito permitiu-me compreender que a luta
pelo reconhecimento de direitos dos sujeitos no campo das violências de
gênero é uma questão tanto local quanto global. Essa espécie de gestão
tripartida no combate às desigualdades de gênero e na definição de medidas
políticas, em especial no campo das violências, evidencia não apenas o
protagonismo do Estado em detrimento dos sujeitos de direitos, como
revela, também, a imposição de um modelo global que limita a agência
dos atores e atrizes sociais envolvidas nos processos em questão.
Para abordar essa questão do lugar subordinado que mulheres e
homens da sociedade cabo-verdiana ocuparam na produção do direito
em torno das violências no país, tomei como referência a promulgação,
na década de 2010, da lei que torna público o crime das violências com
base no gênero. A análise dessa lei permitiu-me perceber que, tomar como
referência as recomendações da ONU e as leis de Brasil, Moçambique e
Espanha, por serem países onde persistia a cultura patriarcal, não permitiu o
reconhecimento de mulheres e homens como sujeitas(os) de direitos. Duas
questões foram importantes para considerar que o projeto-lei privilegiou o
debate em torno dos direitos dos sujeitos e não dos sujeitos de direitos: a
representação dos homens e das mulheres em situação de violências pelas
Ongs feministas do país e a universalização de direitos.
Em relação à primeira, observo que não basta o instrumento jurídico
resultar das demandas dos movimentos sociais ou das Ongs, e de tais
demandas serem construídas a partir dos problemas enfrentados pelos
atores sociais, para que traduzam os interesses particulares dos sujeitos.
Percebendo que essas Ongs tendem a representar esses atores tomando

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


50 Carmelita Afonseca Silva

como referência outros espaços de enunciação, isto é, que partem da


episteme eurocêntrica, e que suas ações dependem, em grande medida,
de financiamentos externos, considero que suas intervenções podem levar
à reprodução das agendas globais, ao invés de traduzir as reais expectativas
daqueles(as) que demandam justiça na Rede Sol.
Mesmo para algumas Ongs, como a Organização das Mulheres de
Cabo Verde (OMCV) e a Associação Cabo-verdiana de Autopromoção da
Mulher (MORABI), que costumam adotar o sistema de microcréditos como
estratégia para garantir a sua autonomia financeira, coloca-se o problema
da representação efetiva dos atores sociais em suas especificidades. É
interessante, aqui, destacar o fato de que o combate às desigualdades
de gênero e violências se dá numa estreita articulação entre as Ongs e o
governo, o qual se compromete a apoiar iniciativas que auxiliem o país a
assumir seus compromissos internacionais e/ou a atingir as metas/objetivos
por esses traçados, enquanto as Ongs tendem a “encaixar” suas demandas
às agendas de organismos internacionais, afastando-se, por vezes, daquilo
que efetivamente constituem as prioridades do país. Nesse sentido, o
compromisso pelo governo de assumir uma perspectiva crítica em relação
às agendas globais que tendem a se impor sobre as decisões locais revela-
se muito importante.
Em relação à universalização, destaco que o problema, nesse processo
de garantia de direitos como estratégia de enfrentamento das violências
baseada no gênero, não está unicamente na forma como a lei se configura,
mas também na ambiguidade do sistema penal cabo-verdiano na resolução
dos conflitos que ocorrem nas relações. Esse sistema universaliza os
direitos, ocultando desigualdades de classe, conjugalidade, gerações,
regiões, tipologias de famílias e, por conseguinte, reproduz a violência nas
relações de gênero. Nesta pesquisa, procurei focalizar as relações sociais
de dominação a partir das interseccionalidades e da construção de um
feminismo de resistência às diferentes formas de opressão, como forma de
visibilizar as mulheres e homens de diferentes localidades e ilhas do país.
Apesar de a proposta de deslocamento da violência doméstica como
sinônimo de violência contra as mulheres para a violência baseada no gênero,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 51

implicando homens e mulheres, estar expressa no texto da lei, em termos


de operacionalização se verifica quase que um retorno às leis e convenções
referenciadas na concepção do projeto-lei contra violência baseada no gênero.
Centrando a análise/enquadramento dos casos de violências nas hierarquias
de gênero e/ou nos valores da cultura patriarcal, as ações dos operadores da
lei, as campanhas de sensibilização, programas de empoderamento e mesmo
os debates em torno da igualdade de gênero têm focado nas mulheres, e
não na dimensão relacional do gênero, como previsto na lei.
Portanto, mesmo perante o esforço do país em pensar leis, programas
e medidas que vão ao encontro das particularidades locais e que, portanto,
traduzam as demandas e expectativas dos(as) cabo-verdianos(as), sua
vulnerabilidade econômica (do país) tem limitado a implementação de
uma agenda endógena de promoção da igualdade de gênero e de uma
cultura da não violência no país.
A necessidade de criar as condições materiais e técnicas para a
operacionalização da lei – e vencer, portanto, desafios que fazem parte do
próprio processo político de construção da igualdade entre homens e mulheres
– como um tema da agenda social e política do país, continua premente.

Carmelita Afonseca Silva é Doutora em Antropologia Social, professora na Universidade


Pública de Cabo Verde e pesquisadora do Centro de Investigação e Formação em Género
e Família (CIGEF).
 carmelita.silva@docente.unicv.edu.cv

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


52 Carmelita Afonseca Silva

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Caderno de encargos: Projeto-lei sobre a violência baseada no género, Praia:
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Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero... 53

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partir da percepção das mulheres que vivenciam o drama. Dissertação (Mestrado
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mulheres no Brasil e em Cabo Verde. Ciências Sociais Unisinos, v. 49, n. 1, p. 90-
96, 2013. https://doi.org/10.4013/csu.2013.49.1.11

Recebido: 7 jan. 2022


Aceito: 26 abr. 2022

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 24-53.


54 Carla IndiraDOSSIÊ
Semedo
54

http://doi.org/10.1590/15174522-120602

Batuko: alma dum povo!


Vivências do batuko cabo-verdiano no
período pós-independência
Carla Indira Semedo*

Resumo
Batuko, gênero músico-coreográfico de Cabo Verde – país localizado na costa
ocidental africana, criado pelos africanos negros escravizados, após a independência
do país em 1975 – passou por um processo de revalorização e vem sendo visto pelas
batukadeiras como possibilidade de se tornar um projeto profissional. Neste artigo,
viso reconstruir as múltiplas dinâmicas sociopolíticas do batuko entrecruzadas com
dois momentos socio-históricos e políticos da historiografia oficial de Cabo Verde,
tendo como material as narrativas e trechos de vivências das batukadeiras do coletivo
de São Martinho Grande, resultantes de pesquisa etnográfica realizada em 2008.
O primeiro momento se centra no período pós-colonial, após a independência
de Cabo Verde em 1975. E, o segundo, no período pós-abertura política com a
democratização do sistema político-partidário a partir de 1991 e, com isso, a criação
de bases para a revalorização e circulação das artes musicais tidas como tradicionais.
Sinalizo que as narrativas das minhas interlocutoras permitem perceber não só o
efeito das narrativas hegemônicas de conformação da identidade da nação nas suas
vivências do batuko, mas também os efeitos nos modos como se inscrevem como
mulheres batukadeiras e almejam o projeto profissional: vir a ser artistas profissionais.
Palavras-chave: batuko, Cabo Verde, batukadeiras de São Martinho Grande,
empresarialização do batuko.

*
Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, Praia, Cabo Verde.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 55

Batuko: a people’s soul! Cape Verdean batuko experiences in


the post-independence
Abstract
Batuko, a musical-choreographic genre from Cape Verde, a country located on
the west coast of Africa, created by enslaved black Africans after the country’s
independence in 1975, underwent a process of revaluation and has been seen by
batukadeiras as a possibility for professionalization. In this article, I aim to reconstruct
the multiple sociopolitical dynamics of batuko intertwined with two socio-historical
and political moments in the official historiography of Cape Verde, having as
material narratives and reported experiences of batukadeiras of the collective of
São Martinho Grande, which stem from an ethnographic research carried out in
2008. The first moment focuses on the post-colonial period, after independence
of Cape Verde in 1975. The second one, on the period following political opening,
with democratization of the political party system as of 1991, which set the bases
for revaluation and circulation of traditional musical arts. The narratives of my
interlocutors reveal not only the effect of hegemonic narratives that conform the
national identity in their experiences of batuko, but also the effects on the ways they
see themselves as batukadeiras women and aspire to become professional artists.
Keywords: batuko, Cape Verde, batukadeiras of São Martinho Grande, of batuko.

Introdução

O
batuko1 foi criado em Cabo Verde2 pelos negros em condição
de escravos durante o processo de colonização e se enraizou na
Ilha de Santiago. Segundo estudos históricos, em Cabo Verde, a
escravidão esteve vigente até meados do século XIX e, conforme as literaturas
histórica e folclorista, a convivência da prática do batuko protagonizado
pelos negros escravizados com os brancos europeus e, particularmente,
com a Igreja enquanto instituição reguladora das práticas dos sujeitos, não
1
Para mais aprofundamentos sobre Batuko, cf. Semedo (2009, 2013, 2020).
2
Cabo Verde, país africano, composto por dez ilhas, sendo nove habitadas, encontra-se
localizado a cerca de 500 km da Costa Ocidental Africana. Descoberto em 1460 pelos
portugueses, o país conquista a independência em 1975. Atualmente, conta com 498.063
habitantes e, com mais homens (250.262) do que mulheres (247.801 mulheres) (INE, 2021).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


56 Carla Indira Semedo

foi em nenhum momento pacífica (Gonçalves, 2006; Nogueira, 2015). Ao


invés, relações de repressão e de proibição permeavam a convivência, numa
tentativa de aniquilar, apagar os traços diacríticos do coletivo colonizado e
instituir as lógicas do colonialismo e do imperialismo português. Há registros
da publicação de um edital no Boletim Oficial nº 13, de 31 de março de
1866, cuja finalidade visava a proibição da prática do batuko e da tabanka
por serem formas de

divertimento que se opõe à civilização atual do século, altamente inconveniente


e incómodo, ofensivo da boa moral, ordem e tranqüilidade publica, sendo
de toda a conveniência social reprimir de uma vez para sempre aqueles, na
maior parte praticado por escravos, libertos e semelhantes, tanto por que tal
divertimento do povo menos civilizado, não convém que seja presenciado
por pessoas honestas e de bons costumes, aos quais chamaria ao campo
da imoralidade e da embriaguês; como porque incomoda os habitantes
pacíficos que se querem entregar durante a noite ao repouso e sossego em
suas habitações (Cabo Verde, 1866).

Gênero músico-coreográfico associado a mulheres e homens de coletivos


populares, o batuko caracteriza-se por um canto antifonal acompanhado por
fortes e ensurdecedoras percussões numa espécie de tambor – o tchabeta – que
dão pulsão ao ku torno. Ku torno consiste na dança que as mulheres/homens
fazem no momento auge do batuko e, que se traduz pelo requebrar da cintura,
dos quadris, das coxas, do baixo corporal. Ao fazerem a dança requebram
e realçam a parte inferior do corpo feminino e, como o termo diz “dão com
o torno, com a cintura”. Raramente os homens se encontram a dar ku torno
e, quando tal acontece, reações de várias índoles desembocam. Se, para
alguns (tanto homens quanto mulheres), há uma demarcação dos limites de
territorialidade da atuação masculina no fazer batuko – eles podem participar
tocando alguns instrumentos musicais (cimboa, violão) ou cantando, mas não
podem dar ku torno –, para outros (homens e mulheres), é aceite o trânsito
dos homens no batuko, ao ponto de, algumas batukadeiras verem o ku torno
dado pelos homens como mais bonito e melhor do que o das mulheres. Em
relação à configuração espacial e corporal, essa é caraterizada por mulheres e

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 57

homens que se sentam em círculo ou arco com o tronco um pouco inclinado,


pernas esticadas e cruzadas. A disposição na roda não se dá em função de
um estatuto social no coletivo ou uma escolha individual, mas pelo tipo de
sonoridade produzido: bambam ou rapicada. A fim de se obter e conservar
um equilíbrio entre as sonoridades do tchabeta, da cantadeira e o compasso
do ku torno, os ritmos percussivos são alternados: bam-bam, rapicada, bam-
bam, rapicada, bam-bam ad infinitum (Semedo, 2009, 2013, 2020).
O olhar da igreja sobre a dança ku torno3 e sua sensualidade, tidas
como “uma obscenidade”, era visível quando do recurso ao poder simbólico
do batismo: salvar almas pecaminosas para sancionar os que praticavam o
batuko. O poder dessa violência simbólica perpassava todos os setores da
vida social cabo-verdiana. Exemplo é o fato de a produção historiográfica
cabo-verdiana sobre o batuko ser ainda bastante escassa. Paulatinamente,
foram se historicizando gêneros musicais e de dança como a morna,
considerada aquele mais representativo da cultura cabo-verdiana antes e
pós-independência. Quando da minha pesquisa etnográfica,4 era notória a
quase inexistência de dados bibliográficos sobre batuko quando sobre morna
abundavam. Segundo Tavares (2006, p. 40) “nunca se tentou explicar com
profundidade as origens do batuco (…) e de outros estilos desaparecidos
e ainda outros possivelmente existentes, mas desconhecidos do grande
público. Toda controvérsia gira em torno da busca da origem da morna”. De
realçar que, a morna tem sido, desde o início do século XX um objeto por
excelência de investigação seja nos estudos5 históricos ou nos folcloristas.
3
A expressão é produzida dentro do léxico e da gramática do crioulo cabo-verdiano, a
língua de conversação usada em Cabo Verde, cuja tradução para o português seria: dar com
o torno. O ku torno remete à parte coreográfica do batuko, pois este é composto pelas partes
melódica e coreográfica.
4
O artigo recupera os dados da pesquisa etnográfica, realizada no âmbito do mestrado em
Antropologia Social da autora.
5
Vide Tavares (2006), Mariano (1952), Lopes (1974), Martins (1989, 1990), Rodrigues e
Lobo (1996). Recentemente, morna foi objeto de pesquisa antropológica (Braz, 2004), na
qual a pesquisadora buscou trazer os sentidos que os gêneros musicais e de dança (morna e
coladeira) adquirem nas práticas e discursos identitários cabo-verdianos, nas diversas formas
de sociabilidades, particularmente na Cidade de Mindelo, Ilha de São Vicente. De frisar que,
em 2019, a morna foi consagrada a Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


58 Carla Indira Semedo

Em relação aos modos de narrar o batuko, os textos do século XIX e


XX se encontravam formatados pelo regime colonialista:

Em 1841, um dos primeiros textos a falar do batuque considera lascivos e


voluptuosos os movimentos das dançarinas e o ímpeto das batuqueiras. Em
1964, o divertimento é denegrido como sendo praticado por servos negros que
desviam instrumentos civilizados para produzirem sons discordantes (Peixeira,
2003, p. 164, grifos acrescidos).

Segundo registros da história oficial, o batuko teria existido noutras


ilhas, mas, com o decorrer do tempo e em função da sua não reatualização
nas práticas quotidianas, teria se extinguido, permanecendo unicamente
na Ilha de Santiago. Junto com o batuko, outras práticas musicais
“vibrantes e sensuais – de origem africana” (Peixeira, 2003, p. 69) tais
como Finaçon, Funaná, Coladeira teriam, igualmente, permanecido na
Ilha de Santiago. Nas outras ilhas, mais a norte do arquipélago, em
decorrência da presença menos intensa dos negros africanos escravizados,
outras práticas musicais mais europeizadas teriam se afirmado: entre as
quais, Morna “dolente e nostálgica, ao som do violino, do violão e do
cavaquinho (...)” (Peixeira, 2003, p. 69).
A pesquisa etnográfica6 de embasamento a este artigo foi realizada no
primeiro semestre de 2008, com o coletivo “Batukadeiras de São Martinho
6
Esse estudo sobre as redefinições das noções de gênero no coletivo de batukadeiras de São
Martinho Grande (Ilha de Santiago, Cabo Verde) visou, a partir de suas trajetórias pessoais/
profissionais, etnografar as performances das corporeidades femininas no batuko e no ku
torno, bem como analisar as narrativas musicais do coletivo. A etnografia apresentada
ancorou-se no argumento de que nessas performances emergem formas diferenciadas
de se pensar os corpos femininos e masculinos e as relações de gênero, em direção a
uma possível subversão das relações de poder entre homens e mulheres. Igualmente, a
etnografia discorreu sobre como os modos estéticos do fazer batuko e tchabeta permitem
pensar os sentidos múltiplos dados ao batuko na relação entre as corporeidades de gênero
e a realização do projeto individual de ser batukadeira profissional. Dentre os coletivos de
batuko existentes na Ilha de Santiago, escolhi o das batukadeiras de São Martinho Grande,
inicialmente pelas razões que levaram com que, de certa forma, não fizesse parte de uma
lista de agremiações dessa natureza feita pelo então Instituto de Promoção Cultural: por
ser na altura um coletivo ainda muito novo, recém-criado em inícios de 2007 e pouco
conhecido no mercado de Showbiz dos coletivos de batuko.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 59

Grande”.7 O coletivo, constituído na altura por dezesseis mulheres e dois


coordenadores, começou a dar mostras de existência em meados de
2006, mas só viria a se constituir enquanto um grupo coeso em 2007,
com a vinculação à associação da comunidade: a Associação para o
Desenvolvimento de São Martinho Grande (ADSMG). Faziam parte do
grupo: Claudia (35 anos), Lúcia (30 anos), Nair (30 anos), Marta (35 anos),
Neta (42 anos), Laurinda (40 anos), Laura (15 anos), Isabel (22 anos),
Elsa (13 anos), Vany (13 anos), Lúcia (29 anos), Ana (40 anos), Nany (29
anos), Marina (28 anos), Solange (30 anos), Mana (62 anos) e Fátima (63
anos). No coletivo de São Martinho Grande, normalmente as adolescentes
davam ku torno e as mulheres mais maduras faziam percussão, tchabeta,
pois a percussão, por exigir maior desenvoltura corporal, era reservada
exclusivamente às mais maduras. E, na ausência das adolescentes, seja na
animação do ensaio seja nos shows, qualquer uma poderia dar ku torno,
uma vez que, todas sabiam e poderiam fazê-lo a qualquer instante que
fosse necessário, conforme me esclareceram.
A primeira atuação do coletivo foi em 2006, e foi nesse evento
que Marcos, o então Presidente da ADSMG,8 teve o “conhecimento das
potencialidades” e das integrantes do coletivo e resolveu convidá-las a se
integrarem na Associação local de São Martinho Grande, permitindo mais
visibilidade e maior circulação do coletivo nos espaços e eventos musicais.
7
São Martinho Grande, espaço rural, situa-se na Ilha de Santiago, na região Sul, a
aproximadamente 10 km da Praia, capital do país e faz parte do município de Ribeira
Grande. Conforme os dados do Censo 2000 (INE) São Martinho Grande tinha na altura uma
população aproximada de 689 habitantes, sendo que a proporção de homens e mulheres é
a mesma, oscilando em cerca de 1 a 2% para os homens. Do total de 689 habitantes, 492
pertencem a famílias chefiadas por homens e 197 por mulheres, sendo que para ambas,
o tamanho médio do agregado familiar oscila entre 5,1 e 5,3 indivíduos. Ainda que São
Martinho Grande tenha uma população jovem, a maioria dos habitantes na altura tinha a
escolaridade baixa (escola primária) implicando, com isso, que as atividades econômicas
realizadas fossem atividades informais como: mecânico, pedreiro, peixeira, prestadores de
serviços gastronômicos, artesanato, criação animal (suína e avícola).
8
A Associação para o Desenvolvimento de São Martinho Grande, associação comunitária,
foi criada em meados dos anos 2000, visando dinamizar o desenvolvimento local, buscando
parceiros nacionais e internacionais além de possibilidade uma maior visibilidade à
comunidade local.

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60 Carla Indira Semedo

Foi somente após esse firmamento de laços com a associação local, que o
coletivo se constituiu enquanto um grupo coeso e articulado. Depois desse
evento, participaram noutros, num dos quais viriam a conhecer Octávio,
que veio a constituir-se empresário e coordenador do coletivo, buscando
convites e negociando as formas e modos de pagamento financeiro. Tanto
Marcos como Otávio residiam nos arredores da Cidade da Praia, tinham
escolaridade superior (Marcos, bacharelado, e Otávio, licenciatura),
além de situações socioeconômicas e posição social acima da média das
batukadeiras. Essas tinham nível escolar muito baixo, sendo que algumas
não eram alfabetizadas, o que as condicionava a atividades econômicas
remuneradas de peixeiras, venda ambulante de frango, domésticas,
faxineiras e vendas informais ambulantes, além de serem, na maioria, as
únicas responsáveis pela manutenção e sobrevivência do agregado familiar,
o qual variava de 3 a 5 filhos por mulher. Assim sendo, essa disparidade
entre as condições socioeconômicas e de escolaridade perpassava as
narrativas das batukadeiras, Marcos e Otávio e as situações de tensão
eminentes resultantes dos acordos estabelecidos tacitamente em relação
aos papéis de cada um.

Nu bai Somada um 18, mas kantu nu tchiga Otávio fla ké pa subi na palco
só 13 e, só 13 ki dadu dinhero e kés ki ka dadu nada, fica chateadu. Dipos
el bem flanu ma ki é scodji kés ké odjaba na kel spetacul na Várzea. Nakel
dia ki nu fazi runion, tcheu de nós papia de kel cusa li, de ma nu sta ta fazi
batuko a toa, sem dadu nada! Ami um ka ta concorda, pamodi nu sta ta
prendi, inda falta tcheu pa nu fica bom e dipos anos nu mesti djudadu pa
nu conhedu. Si crê nu ka ta dadu dinhero, é um manera de otus guentis ba
ta conchenu9. (Ana).
9
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Fomos 18 para Assomada, mas Otávio disse que
só 13 iam subir no palco e depois só essas 13 que receberam remuneração e as outras
ficaram com raiva por não terem subido, nem recebido nada. Ele depois veio a explicar
que escolheu as que tinha visto no espetáculo na Várzea. Naquele dia que fizemos
reunião, muitas colocaram esta questão de não estar recebendo nada e que por isso não
iam continuar mais. Eu não concordo, pois estamos aprendendo ainda nos falta muito
para ficarmos bons e depois nós precisamos de apoio para aparecer e as pessoas irem nos
conhecendo. Por isso mesmo não tendo dinheiro temos de fazer, é uma forma de outras
pessoas nos irem conhecendo”.

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 61

Otávio sta djudanu tcheu, é ta djudanu na fazi tchabeta. El é bom


e é midjor pa nós si é ka larganu. Kantu nu bai Somada dá confuson e
Otávio fla mé sta sai de grupo, ma Solange fla mé ka ta sai, pamodi sé pé
sai, kenha ki sta incomodadu ki ta sai. Ma nu ta rocha li mé. Si Marina ka
acha sabi é só pé sai!10 (Neta).
As narrativas de Ana e Neta reatualizam as tensões internas existentes
e como essas iam sendo negociadas pelos intervenientes – as batukadeiras
e os mediadores externos, Otávio e Marcos – no intuito de maximizar
suas potencialidades em nome de um projeto individual que se tornava
também coletivo: o de ser artista. Um projeto individual, por ser algo
construído e performatizado pelos sujeitos conforme suas potencialidades
de agenciamento, e que, também, possuía um amparo sociocultural
que permitia um compartilhamento, já que o fazer batuko no presente
(diferente do que foi anos trás) era construído no imaginário social na
altura como possibilidade de entrada no mundo artístico, de circular nos
espaços (nacionais e/ou internacionais) de cenas musicais. Assim, mais que
o simples fazer batuko no instante aqui e agora, havia posições pragmáticas
de constituírem-se artistas em um presente futuro. Igualmente, as narrativas
são elucidativas da forma como elas lidavam com as tensões internas e do
olhar delas sobre as figuras de Marcos e Otávio como mediadores políticos
nesse espaço de produção comercial de música, no qual elas não tinham
agenciamento, mas, através dos dois, tencionam ter uma posição. Por outro
lado, revelam a presença de polifonias e discursos díspares internamente.
Se algumas batukadeiras ansiavam por um retorno imediato do capital pela
prática realizada, outras o adiavam para um futuro a longo prazo, buscando
e criando garantias de permanência no espaço artístico.
10
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Otávio tem nos ajudado muito, ele nos dá muitas
dicas e formas de melhorarmos tchabeta. Ele é muito bom e é bom que ele não nos largue.
Tivemos um problema com a ida para Assomada, pois fomos todas e Otávio só pediu 13
que eram as que ele tinha visto no show que participamos na Várzea. As que não subiram
ao palco e não receberam gratificação, cerca de 5 ou 6 pessoas, ficaram chateadas e uma
saiu. Fizemos reunião, Otávio disse então que ia sair e Solange disse que não, que ele não
ia sair, que saísse então outras pessoas. Assim, Marina saiu”.

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62 Carla Indira Semedo

Em relação à escolha dos integrantes do coletivo, conforme Solange


quando do recrutamento, tal fora divulgado na comunidade. Se no
início fora Fátima quem estimulara a criação de um grupo articulado,
gradativamente todo o processo centrou-se em Solange e nos sujeitos
que transitavam em suas redes sociais direta ou indiretamente. Dentre as
batukadeiras, Solange era a única que saía da sua casa e se dirigia à casa
das outras para relembrá-las do ensaio. Quando eu perguntava a uma
ou outra batukadeira se haveria ensaio, mostrando-se incertas, elas me
orientavam a confirmar com Solange. A liderança desta consolidava-se não
só em função da legitimidade que as outras batukadeiras lhe conferiam,
mas principalmente por ser a única que fazia a mediação política com os
coordenadores e mediadores intelectualizados: Otávio e Marcos. Solange,
na mediação política com o meio externo, com o então Presidente da
ADSMG (Marcos), com o mediador Otávio e com as redes informais
envolvendo sujeitos vinculados aos municípios e às associações. Fátima, por
sua liderança decorrente do seu saber fazer do batuko, da sua experiência
nos momentos áureos do batuko nos anos 80-90 e por ela ser vista como
guardiã da memória local do fazer batuko.
Destarte, neste artigo viso reconstruir as múltiplas dinâmicas sociopolíticas
do batuko entrecruzadas com dois momentos socio-históricos e políticos
da historiografia oficial de Cabo Verde, tendo como material as narrativas e
trechos de vivências das batukadeiras do coletivo de São Martinho Grande,
resultantes da pesquisa etnográfica realizada em 2008. O primeiro momento
se centra no período pós-colonial, após a independência de Cabo Verde em
1975. O segundo, no período pós-abertura política com a democratização
do sistema político-partidário a partir de 1991 e, com isso, a criação de
bases para a revalorização e circulação das artes musicais tidas como
tradicionais. Sinalizo que as narrativas de minhas interlocutoras permitem
perceber não só o efeito das narrativas hegemônicas de conformação da
identidade da nação nas suas vivências do batuko, mas também os efeitos
nos modos como se inscrevem enquanto mulheres batukadeiras e almejam
o projeto profissional: vir a ser artista profissional.

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 63

Batuko nos anos oitenta


Se, durante a colonização, o batuko e a tabanka foram bastante
reprimidos pelas ações do governo colonialista português, na tentativa de
aniquilar as práticas populares african(as)izadas, com a independência de
Cabo Verde, outras vivências do batuko e da tabanka foram sendo criadas
(Furtado, 2008). O momento de revalorização do batuko e da tabanka,
ambas reprimidas no período colonial, tinha iniciado em concomitante com
o processo de luta por libertação de Cabo Verde, a partir dos anos 1960,
com a intervenção do então Partido Africano para Independência de Guiné
e Cabo Verde (PAIGC), partido de índole socialista. O ideário de Amílcar
Cabral,11 figura central no engajamento político pela independência de Cabo
Verde e Guiné-Bissau, enfatiza o papel central da cultura como uma arma de
resistência e a “luta de libertação como um ato de cultura”, de construção
da Identidade Nacional Cabo-Verdiana e Guineense (Furtado, 1987).

A nossa resistência cultural consiste no seguinte: enquanto liquidamos a cultura


colonial e os aspectos negativos da nossa própria cultura, no nosso espírito, no
nosso meio, temos que criar uma cultura nova, baseada nas nossas tradições
(Cabral, s/d apud Cruz, 2001, p. 191).

Quer no período colonial (ainda que sob jugo da repressão portuguesa),


quer no pós-independência, o batuko materializava-se num ritual realizado nas
celebrações de nascimento, de batismo e, sobremaneira, nas de casamento:
nas três noites anteriores e no dia oficial, concomitante com a realização das
atividades dos preparativos, “brincava-se o batuko” – exclamava a Mana.
E, a despeito das tentativas de repressão e de apagamento, o batuko foi
se constituindo como ação de resistência, de luta para a manutenção da
cultura. Cultura essa tida menos como reificadora das desigualdades sociais
e homogeneizadora de coletivos sociais e mais como possibilidade de os
coletivos se constituírem enquanto tais e produzirem identidades socioculturais
11
Uma das personalidades políticas de referência da história colonial e dos movimentos de
luta por libertação das então colônias portuguesas – Cabo Verde e Guiné Bissau – e um dos
fundadores do Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Nos
anos oitenta, a fusão Guiné-Bissau e Cabo Verde se rompe, e cria-se o Partido Africano para
a Independência de Cabo Verde (PAICV).

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64 Carla Indira Semedo

na relação com o colonialista. Assim, se nesse período se percebe tentativas


de repúdio e apagamento do batuko enquanto traço diacrítico da identidade
cabo-verdiana, sua prática resiste e, com a independência de Cabo Verde,
em 1975, é reatualizada no quotidiano dos sujeitos como um dos elementos
de construção da identidade e da nação cabo-verdiana, no contexto global
do ingresso de Cabo Verde na modernidade.
Desse modo, a centralidade da cultura estava, a todo instante, sendo
enfatizada nas estratégias do PAICV e nas suas bases populares, nos vários
movimentos sociais que foram tendo lugar, enquanto objeto geopolítico de
construção da identidade da nação de Cabo Verde, em concomitante com
a identidade jurídico-territorial adquirida com a independência. A música,
sendo um dos elementos diacríticos da cultura cabo-verdiana, foi ganhando
espaço, seja durante a luta por libertação, como elemento de resistência e
forma de fortalecer as estratégias de luta contra o colonialismo, seja após a
independência como uma das práticas culturais de constituir o Estado-nação.
Por conseguinte, multiplicavam-se ações políticas direcionadas ao povo,
atividades socioculturais visando disseminar e consolidar a ideologia do
partido, acopladas ao discurso de valorização das práticas culturais e populares
de matriz africana reprimidas durante o período colonial, particularmente, o
batuko e a tabanka. Buscando o fortalecimento e materialização do ideário
de Amílcar Cabral, tanto na construção da identidade nacional e da nação
cabo-verdiana quanto na criação do Estado enquanto entidade jurídico-
política (Furtado, 1987), procedeu-se à realização de concursos musicais,
atividades recreativas e festivais musicais.
Nesse período, foram realizados concursos de batuko, na Ilha de
Santiago, a fim de se eleger os melhores coletivos desse gênero musical. A
organização dos concursos produzia dinâmicas no batuko, pois, na época,
perpassava a ideia de que ter um coletivo de batuko articulado e organizado
era condição para realizar tal prática. Como sinalizam Nogueira (2001) e
Furtado (2008), o momento pós-independência foi marcado, do ponto
de vista musical, por uma intensa dinâmica e revalorização sociocultural,
particularmente na vivência do batuko e do funaná. Sendo que, no caso do
batuko, é perceptível uma dinâmica nas temáticas musicais e na tentativa
de constituir coletivos musicais

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 65

por temas fortemente datados e politizados e (...) por um certo número


de conjuntos, novas composições e a entrada sistemática nos saraus de
números constituídos (…) numa tentativa de revalorização e elevação cultural
(Nogueira, 2001, p. 175).

As narrativas de Fátima e de Mana – as únicas batukadeiras anciãs


do coletivo e que nele ocupam um lugar central por conta da experiência
nos modos de fazer batuko do período antes da independência, sendo
acionadas quando duma apresentação pública conforme os moldes ditos
“tradicionais do fazer batuko”12 – remetem a momentos que traduziam
formas diferenciadas de vivenciar o batuko. Fátima, de 63 anos, na altura
responsável pela feitura das narrativas musicais do coletivo, rememora,
um pouco nostálgica, que na sua infância batuko era diversão, mas que
aos poucos foi se enfraquecendo, pois as pessoas que praticavam batuko
foram limitando o espaço de atuação, circunscrito unicamente a momentos
de festa, de casamentos e não noutros momentos do quotidiano. Mais
do que os outros, as festividades de casamento perfaziam espaços de
sociabilidade por excelência, nos quais o batuko era performatizado
e aparecia como elemento central de natureza lúdica e ritualística. A
batukadeira Mana, de 62 anos, responsável também pela feitura das
narrativas musicais bem como da harmonização dos ritmos percussivos do
coletivo, sinaliza que nos três dias anteriores à cerimônia de casamento,
os familiares, a vizinhança e a comunidade realizavam os preparativos
permeados pelo batuko, por ser socialmente aceite e esperado que no
casamento houvesse batuko, como narra:

nu tinha ki fazeba cumida, cochi midjo pa fazeba kés cumidas de casamento


e, pa nu ka durmi e pa nu sta cu afinco na trabadjo, tudu noti nu ta brinka
batuko ti manchi, na kés 3 dias antis de casamento e na dia di casamento,
nu ta brinka batuko també.13
12
Para mais desdobramentos, vide Semedo (2009, 2013).
13
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Como tínhamos que preparar a refeição, pilar o
milho para fazer pratos tradicionais do casamento, para não dormirmos e estarmos sempre
prontas para as tarefas, durante a noite brincávamos batuko até o amanhecer, durante 3 dias
seguidos, até o dia mesmo do casamento”.

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66 Carla Indira Semedo

Outro aspecto é a proveniência social do coletivo que fazia batuko,


ou de quem lhe tinha como elemento fundante da construção do seu
quotidiano. Se, no período colonial, batuko aparecia associado aos
negros africanos na condição de escravos, com a independência e com
a descolonização, a estrutura social da sociedade cabo-verdiana mudou,
fazendo com que outros coletivos sociais ganhassem presença. Com o
investimento na educação, as classes sociais acrescentaram à dimensão
econômica, a dimensão educacional (o nível de instrução), fazendo com
que a “conformação das elites cabo-verdianas” (Anjos, 2006) se constituísse
acoplada a esse referencial que se traduzia também em estilos de vida, em
formas de sociabilidades e, particularmente, em estilos e gêneros musicais.
Assim, batuko foi se constituindo como parte do quotidiano das classes
populares, dos coletivos sociais de baixa renda e de baixa escolaridade, ou
seja, do “povo”, diferente da morna (em especial) que foi conquistando
outros espaços sociais, os quais lhe auferiam outra posição e, por conseguinte,
um elemento de distinção social.
As relações de poder e de distinções sociais nas artes de fazer dos
gêneros musicais são resultantes do imaginário social de que, por um lado,
batuko é um legado dos negros africanos escravizados e, por outro, a morna
reencontra-se no fado português. Cada gênero se associava a um legado do
evento colonial – o colonizado e o colonialista –, construindo e reificando
lógicas dominantes e violência simbólica: África e Europa.
Como nos mostram Fernandes (2002) e Anjos (2006), o debate sobre
a construção da identidade nacional em Cabo Verde foi sendo construído
num alicerce em que a África, o continente africano, era “diluída”, era
renegada ao ponto de se afirmar a identidade racial como resultado da
identidade da nação e do Estado: “ser cabo-verdiano e não ser africano”,
ao mesmo tempo em que se projetava eventualmente uma aproximação
Cabo Verde – Europa.

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 67

Do lúdico ao showbiz…
Volvidas décadas, após a abertura político-partidária em 1991, o
lugar da música e das artes dentro no discurso político-governamental
ganhou outras dinâmicas. Com a assunção do partido Movimento Para a
Democracia (MPD) ao poder, a cultura adquiriu outras ressignificações, já
não enquanto objeto geopolítico de construção da identidade nacional,
mas na edificação da identidade nacional direcionada ao âmbito exterior
e internacional. Ou seja, ainda que a cultura continuasse sendo objeto
geopolítico, o foco, o público-alvo e as estratégias subjacentes tornaram-se
doutra natureza. Uma das estratégias visava a abertura de Cabo Verde para
o mundo, para o exterior, diferentemente do período pós-independência,
cuja estratégia central era a construção e a consolidação da nação e do
Estado (Costa, 2001).
Para a abertura ao exterior, definiu-se um conjunto de estratégias,
nas quais havia uma aproximação com a Europa em simultâneo com um
afastamento da África. Assim, novos horizontes foram se abrindo. Se, durante
o período pós-independência, Cabo Verde e Guiné-Bissau mantiveram
a mesma bandeira e hino nacional, após a abertura política, em 1991,
foram introduzidas mudanças estruturais no país, as quais mudaram a
história e as narrativas mnemônicas da população cabo-verdiana. Foram
introduzidas, igualmente, reformas no sistema educacional e manuais
escolares com pouquíssima alusão ao legado africano e à luta contra o
colonialismo. Tais mudanças criaram e vieram a sedimentar as condições
para o apagamento paulatino da história colonial e escravocrata de Cabo
Verde e de todo legado africano no imaginário sociocultural cabo-verdiano,
e para um retorno à Europa como a herança mais próxima da história de
Cabo Verde (Costa, 2001).
Na bandeira e no hino nacional adotados no período pós-independência
havia uma estratégia política de enfatizar as cores (vermelho, verde, amarelo
e preto) e temáticas da “África Mãe”, do legado africano, da história vivida
de repressão e da luta por libertação. Diferentemente, na bandeira e no hino

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68 Carla Indira Semedo

pós abertura política, que permanecem até hoje, outros desdobramentos


tiveram lugar. A liberdade associada à abertura político-partidária tornou-se
“palavra de ordem” (silenciando os efeitos socio-históricos da colonização)
e a nova bandeira exibe cores e estrelas que se assemelham à bandeira da
União Europeia. Se, durante o governo do PAICV, de 1975 a 1990, havia um
discurso para revalorização da cultura cabo-verdiana, para a aproximação
da África a Cabo Verde, com a virada dos anos noventa, todos os governos
que vieram nos períodos políticos posteriores têm definido metas e relações
políticas, nas quais a África vai se distanciando gradativamente e a Europa
fica mais próxima a Cabo Verde (Costa, 2001).
Novos horizontes foram se desenhando para a cultura cabo-verdiana
e para o batuko. Inicialmente, em relação aos anos oitenta e noventa, as
narrativas de Fátima e Mana remetem para um momento no qual havia
indícios de uma “potencial espetacularização” do batuko, nas várias sessões
de concursos populares, com diversos coletivos de batuko organizados
a concorrer para o título, tendo em conta a performance, a habilidade
da cantadeira e das dançarinas do ku torno. Teve início um processo de
modernização das relações no campo da cultura, trazendo com isso novas
dinâmicas no batuko: o show, a produção musical em CD/DVD.
Por toda Ilha de Santiago, nos vários bairros, coletivos de batuko
articulados foram criados para entrar nesse mundo de produção musical
que, a priori, parecia garantir melhoria de condições de vida às mulheres
que faziam batuko, pois havia possibilidade de realização de um projeto
individual que vinha ganhando força: o ser artista, o vir a se tornar artista
por meio do batuko. Em concomitante, houve a emergência do empresário
ou coordenador do coletivo de batuko, que permitiria o trânsito das
mulheres batukadeiras no mundo de criação e produção musical. A
figura do empresário e do coordenador torna-se central nessa mediação
e encontro político-musical, sendo o coordenador, na maioria, senão em
todos os coletivos, um homem com nível de instrução (muito) superior
ao das batukadeiras.

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 69

O exemplo etnográfico do coletivo de São Martinho Grande constituía


uma realidade vivenciada por vários coletivos de batuko, uns com mais
agenciamento e alguma circulação no mundo de produção musical, outros
com menos agenciamento, vivenciando situações de tensão em função
das artes de fazer do batuko, na expectativa da concretização imediata do
projeto de vir a ser artista. Percebe-se que as possibilidades dos coletivos
de batuko para a realização desse projeto, de vir a tornar-se artistas,
estavam articuladas às estratégias definidas para a maximização do projeto.
Contudo, a mensuração passava por vários graus: desde fazer shows na
comunidade, em nível regional, circular pela Ilha de Santiago, em seguida
para um grau nacional – participação em festivais musicais noutras ilhas
do arquipélago. Sendo, o pico desse projeto, a circulação internacional
com participação em shows realizados noutros países. De realçar que,
nesse caminho gradativo, estaria a produção de CD/DVD, trazendo maior
visibilidade e a consolidação do coletivo.
Isso ficou visível no campo, nas várias vezes em que Fátima, Neta,
Mara, Mana narraram, com felicidade e entusiasmo, o momento áureo
do coletivo: as viagens que fizeram para outra ilha do país. Por conta da
participação nos concursos de batuko, circularam por vários bairros (urbanos
e rurais) da ilha de Santiago, pois não tinham meios financeiros para custear
viagens pelas outras ilhas, em função do seu nível socioeconômico e do
baixo rendimento auferido pelas atividades econômicas realizadas – a
circulação dependia de patrocínio conseguido pelo empresário.
Destarte, o batuko ia sendo apropriado enquanto prática musical que
garantisse ou pudesse abrir caminho de entrada no mundo artístico, no
showbiz por meio da produção do CD/DVD, abrindo outros campos de
possibilidades no que concerne à melhoria das condições socioeconômicas
das batukadeiras. Um batuko que até os anos noventa se restringia ao
espaço presencial passou, a partir dos anos 2000, a circular pelos espaços
físicos como realidade audiovisual e virtual. Para assistir ou escutar um
show já não seria necessário um deslocamento físico e social dos sujeitos,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


70 Carla Indira Semedo

dado que o mundo audiovisual e digital lhes permitia outras formas de


acessibilidade e visibilidade do batuko. Ao mesmo tempo, permitia aos
cabo-verdianos da diáspora (EUA, Europa e África) fazer circular em formatos
digitais o que, em matéria de produção musical, tem sido feito em Cabo
Verde e na diáspora cabo-verdiana.14 Em simultâneo, essa modernidade
(circulação de CD/DVD de outros coletivos) permitia aos sujeitos (re)pensar
sua performance, no sentido de torná-la mais eficiente e mais elaborada. Em
vários momentos do campo, presenciei algumas batukadeiras a colocarem
DVD de outros coletivos de batuko e darem ku torno, justificando fazê-lo
devido à necessidade de treinar o corpo para dar ku torno, de fabricar
o corpo, a fim de desenvolver performances corporais e corpos artistas.
Em outros momentos, por meio dos registros audiovisuais, comparavam
as performances corporais, o estar no palco de cada coletivo, o dar ku
torno, o vestuário, fazendo, assim, emergir noções estéticas múltiplas
que conformavam o fazer do ku torno e do batuko, para além de certa
moralidade sobre o que devia ou não ser trazido como temática das letras
de músicas: “o que deve ser ou não cantado”.15
Como propõe Geertz (1999), toda forma artística se encontra inscrita
dentro de um sistema cultural que lhe permite tornar-se um idioma, contendo
significados, não se reduzindo a uma mera performance de autoria individual.
Por conseguinte, o batuko vai sendo construído pelas minhas interlocutoras
como um espaço povoado por experiências e modos de vida, atravessado e
costurado em múltiplas temporalidades e espacialidades. Como nos sinaliza
Gonçalves (2006), quando o batuko vai se tornando uma manifestação de
palco e não mais unicamente um momento lúdico no espaço domiciliar,
desenha-se um caminho que depois viria a ser denominado pelos estudiosos
da música “a estilização do batuko” ou “batuko em orquestra”.
14
Para além da produção de CD/DVD’s, vários coletivos de batuko nacionais têm sites, nos
quais divulgam os grupos, shows, discografias, fotos. Por outro lado, redes sociais tornaram-
se recursos midiáticos de divulgação das práticas musicais e de danças cabo-verdianas para
o público não cabo-verdiano, para os cabo-verdianos residentes no país e para a diáspora.
15
Para mais desdobramentos sobre essa questão, vide Semedo (2020).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 71

Actualmente com o trabalho de recriação através dos instrumentos eletrónicos


(…) o batuko passou a constituir um novo género no panorama musical cabo-
verdiano. Este novo género, ‘batuko em orquestra’, desenvolveu-se sobretudo
devido às composições do jovem Orlando Pantera, popularizadas pela nova
geração de cantoras, como Mayra Andrade e Lura. Devido ao sucesso deste
novo género (batuko em orquestra), neste ano de 2004 em que finalizamos
este trabalho, registra-se um renascimento do ‘batuko tradicional’, com a
criação de muitos grupos e gravação de disco. (Gonçalves, 2006, p. 27)

“Quando faço batuko, fico alegre, feliz”16:


das sociabilidades e agenciamentos femininos
São Martinho Grande, 13 de janeiro de 2008.

Estavam sentadas em roda, prontas para fazer tchabeta. Como, antes da Lara
chegar, eu estava no círculo vendo as batukadeiras fazendo batuko, Lara olhou
pra mim e, enquanto ia tirando os sapatos, disse-me se as batukadeiras não
me tinham ensinado que para fazer tchabeta tem que ser descalça. Cruzou
e esticou as pernas, colocando tchabeta entre as coxas. Outras imitaram-na
e tiraram os sapatos. Lara justificou dizendo que tem que ser ‘terra-terra’,
como manda a tradição santiaguense. Instantes depois, Claudia, Lúcia, Isabel
e Dina chegaram juntas com outras moças que não eram do coletivo, as quais
ficaram assistindo junto comigo. Lara pediu a uma adolescente que fosse
buscar um licor para elas beberem. Esta trouxe uma garrafa de cinco litros com
licor pela metade e copinhos descartáveis. Dina foi colocando nos copinhos
e distribuindo pra todo mundo, mas teve uma hora, Solange reclamou que
não tinha recebido ainda, Dina pediu desculpas e lhe passou um copinho.
Solange fez um jeito de quem não iria aceitar, mas no fim sempre aceitou.
[Já tinha reparado que em outros momentos, a bebida alcoólica era um fator
presente nas batukadeiras, no mundo artístico cabo-verdiano em geral. E, nesse
caso, nas mulheres é um elemento importante para elas se concentrarem,
ganharem o impulso para fazer batuko, lembrei que Claudia me dissera que
pra fazer batuko tem que se ter brio]. Minutos depois, Fátima chegou gritando
com os braços levantados e dando ku torno, desencadeando nas que estavam
fazendo tchabeta, um frenesi e gritando junto com ela. Todas faziam tchabeta
com uma intensidade máxima e o som do bater das mãos ficou alto, muito
bom de se ouvir. Enquanto iam fazendo tchabeta, iam bebericando o licor.

16
Originalmente no crioulo cabo-verdiano: “Oras ki u’fazi batuko, u’ta fika sabi, filiz”.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


72 Carla Indira Semedo

O círculo de terreru começava com Ana, Solange, Lara, Isabel, Nair, Claudia,
Lúcia, Nany e Fátima. Quando Fátima chegara, depois de ter parado de dar
ku torno, ela ficou de pé, entre Isabel e Lara, com o casaco amarrado na
cintura, cantando e batendo as palmas das mãos, já que ela não tinha tchabeta
(dera à Lúcia). Lara começou a cantar uma cantiga delas e fizeram tchabeta,
mas não deram ku torno. Em seguida, Lara cantou uma cantiga que cantam
no coletivo dela em Portugal. Nisto, Solange entra no círculo, e amarrando
sulada na cintura começa a dar ku torno, foi uma intensidade de sons, ela
requebrava as ancas, com fortes flexões dos joelhos e mantinha as mãos pra
cima, a cadera requebrava intensamente. Depois que pararam batuko, ela
parou e sentou alegando que tinha cansado. O pano que ela usou era da
Nany. Seguidamente, Lara levantou e pegou sulada na Solange, amarrou
na cintura e entrando no círculo, começa dar ku torno ao som da voz da
Claudia e ao som da tchabeta. Intensificaram batuko, ku torno, com gritos.
Lara vibrou intensamente a cadera, as ancas, os quadris... Passou o pano à
Isabel que passou à Claudia que levantou e deu ku torno. Cada uma tem um
jeito particular de dar ku torno, ora com as mãos levantadas, ora em cima da
cabeça, cada uma com um jeito diferente de requebrar a cadera, de dar ku
torno. Antes da Claudia entrar na roda, uma adolescente pegou no pano e
amarrando na cintura deu ku torno. Ela não era do coletivo, veio junto com
Lara. Ela tinha um jeito diferente de dar ku torno. (...) Já no fim do ensaio,
Lara ficou falando para as outras batukadeiras como no coletivo em Portugal
no qual ela era integrante, também tinham o problema de não ensaiarem
antecipadamente. Que iam ensaiando no caminho para os shows e iam
aprendendo. Ela termina dizendo que ainda bem que elas tinham boa cabeça
e aprendiam rápido, pois no dia a dia todo mundo estava nos seus afazeres.

A pesquisa etnográfica com o coletivo de São Martinho Grande sinaliza


como o batuko perfaz um espaço de sociabilidade feminina, quer enquanto
um espaço lúdico, de poder criar linhas de possibilidade de viver, em meio
da dureza e das precariedades de chefiar uma prole na ausência da figura
parental, permeadas de alegrias, afetos. Igualmente, o ato de criação das
narrativas constitui um momento de escuta e partilha de vivências, acoplado
às trajetórias individuais e quotidianas. Tanto Lara quanto Nany, a partir
da forma como demarcavam o espaço do batuko do dia a dia, mostram
como jogam com as condições sociais a partir da possibilidade de o batuko
oferecer um momento de diversão e, por conta disso, permitir-lhes outras
possibilidades de viver e existir.

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 73

Na dia-a-dia é trabadjo, kasa. Oras ki nu ta fazi batuko, nu ta fica juntu ta


konvive, é um manera de prubremas pa fora! É sabi, nu ta divirti! Kada kenha
ta tra musika ki ta papia de sé dia-a-dia, ta ba ta desabafa!17 (Lara).

A narrativa de Lara sinaliza como o batuko, entremeado pelo almejar


do projeto de profissionalização, conservava ainda modos de sociabilidades,
pois, permeando o batuko, a performance corporal do ku torno e as narrativas
musicais, havia modos de viver e de existir que povoavam o quotidiano das
batukadeiras, dos seus coletivos de pares e daqueles que faziam parte de
suas redes de sociabilidades. Essa gramática ancorava-se nos modos cabo-
verdianos, no que conforma as práticas, as interações sociais, em nível macro,
no espaço cabo-verdiano, e em nível local, no espaço de São Martinho
Grande. Segundo minhas interlocutoras, ainda era construído como uma
forma de estar no mundo cabo-verdiano e na cena artística, resultante das
narrativas musicais, das habilidades coreográficas e das gramáticas morais e
afetivas que povoavam esse mundo músico-coreográfico. Corpos dançantes,
sujeitos criando narrativas de falar do seu mundo e, que nesse processo
se constroem enquanto corpos femininos: mulheres cabo-verdianas e da
comunidade de São Martinho Grande, definem estratégias de um vir a ser,
também, batukadeira e kutornadeira profissional.

Oia, oia, ó mós ami ma mi djan pari 3 filho cu bo


Bu ka dan nada, bu ka registra, ma bu ta torna bem pa fazi 4
Ó mós pó destrançam di pé, pamodi gosi un cré fazé nha vida.18

A narrativa musical “Oia, oia” retrata a situação de várias famílias em


Cabo Verde, onde não só não temos a família nuclear como o modelo
de família, com a figura do pai, a relação pai/filhos é bastante diluída na

17
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “O dia a dia é só trabalho e casa. Quando fazemos
batuko, ficamos reunidas no convívio e é um desabafo! É divertido! Cada qual a partir das
letras vai falando do seu dia a dia e desabafando!”.
18
“Ó rapaz, já tive três filhos contigo / Não me ajudaste no sustento das crianças, não as
registraste e agora estás voltando de novo com ideia de fazer 4. / Ó rapaz, saí do meu
caminho, porque agora quero fazer minha vida”.

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74 Carla Indira Semedo

relação mãe/filhos. O modelo de família cabo-verdiana seria, em algum


momento, marcado por famílias reconstruídas e famílias monoparentais,
chefiadas por mulheres e nas quais não existe a assumpção da paternidade
dos pais/homens. Reiterando, se, na sociedade cabo-verdiana, as relações
de gênero traduzem relações de poder desiguais entre homens e mulheres,
em que estas acabam por serem colocadas numa posição de subordinadas,
essa letra sublinha como as mulheres lidam com a situação e definem
agenciamentos para se contrapor à lógica masculina e poder repensar as
relações de gênero. O não registro das crianças e a não assumpção da
paternidade é recorrente em Cabo Verde, particularmente em algumas das
famílias das batukadeiras do grupo de São Martinho Grande, cujos filhos não
tinham forma alguma de sustento paterno, sendo que, a maioria dos filhos
das batukadeiras não vivia com os pais biológicos, mas com padrastos ou
somente com a mãe, criando relações parentais unilaterais mãe e os filhos.
O batuko, para essas mulheres, aparece como um espaço de partilha de
experiências e de desconstrução de acepções socioculturais sobre os homens,
a figura masculina. No trecho da letra “Ó rapaz, saí do meu caminho, porque
agora quero fazer minha vida”, nota-se um posicionamento da mulher em
assumir sua vida, em comandá-la, o que passa pelo deslocamento dessas
corporeidades – não mais uma relação entre sujeito e objeto, mas um
deslocamento em que a mulher se pensa e se constrói em e na relação
que estabelece com o homem enquanto sujeito (Strathern, 2006) e, na
criação desta existência como mulher, ela se produz dissociada do homem.
Destarte, na linha do que Isabel Rodrigues (2007) propõe discutir sobre
as relações de gênero em Cabo Verde, é relevante que se tenha em vista
as fragilidades do modelo patriarcal. Já não se pode continuar a pensar em
modelos nucleares de famílias e em corporeidades femininas e masculinas
construídas em cima de um discurso androcêntrico e patriarcal. Isso porque,
essas parentalidades são construídas em contextos característicos em que o
pai patriarcal é ausente e a mulher redefine-se como o alicerce da família.
Assim sendo, há um conjunto de estratégias que essas mulheres adotam
para dar resposta às situações, as quais se traduzem num agenciamento

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 75

feminino, ao se construírem como gestoras na chefia da família. Há um


deslocamento da condição dessas mulheres, de mulheres-objeto nessa
conjuntura sociocultural, à condição de mulheres-sujeito que inventam
formas de se contrapor a uma estrutura que visa mantê-las num espaço de
invisibilidade. Como Strathern (2006) chama atenção, projetar a estrutura
ocidental de relações a fim de buscar as “teias de significados” (Geertz,
1989) nas práticas sociais de uma realidade não ocidental, traduzir-se-
ia num erro epistemológico. Isso porque, apreender a forma como as
corporeidades feminina e masculina são construídas na “relação dialética
prática e estrutura” (Sahlins, 2008) implicaria analisar a conjuntura da
realidade, a forma como essa realidade se explica em si e por si, ao invés
de como um olhar de fora a explicaria.
A transmissão dos modos de fazer o batuko constitui também um
desses espaços de sociabilidade feminina, pois o fazer do batuko tem toda
uma forma estética e um conjunto de saberes quotidianos que estruturam
as formas músico-coreográficas, as quais são apreendidas oralmente e
por mimetismo numa interação intrageracional (coletivos de pares) e
intergeracional (mãe, tia, avó e os descendentes).

Un ka ta lembra modi um ba ta prendi. Mamaã ta fazeba e un ta fazeba juntu


kual. Tinha também uns minis ki nu ta brincaba juntu, nu ta fazeba batuko
e nu ta ba ta prendeba cu cumpanhero. Má é sima um sta flau li, ninguém
ka ta inchinau. Kada kenha ta ba ta prendi del pa el, modi ki outu guentis ta
fazeba. Nhá dos fidjos fêmeas és sabi fazi, má é ka mi ki inchinás nau, és ta
odja ami ou kés otus minis ta fazi (Ana).19

A narrativa da Ana enfatiza tanto a dimensão lúdica do batuko como


o fato de a aprendizagem ser situada numa determinada conjuntura, no
sentido de que as crianças que “brincam batuko” eram provenientes de

19
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Não me lembro bem como fui aprendendo. Minha
mãe fazia e eu fazia com ela. Também quando brincava com outras crianças, fazíamos
batuko e nós íamos aprendendo uma com a outra. Mas ninguém te ensina mesmo. Tu vais
aprendendo, vendo as pessoas fazerem. As minhas duas filhas sabem fazer, mas eu nem lhes
ensinei, elas vão vendo as outras batukadeiras fazerem”.

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famílias nas quais o batuko era tido como uma prática constitutiva das
corporeidades feminina e masculina. Por conseguinte, batuko, enquanto
um espaço lúdico e de estar juntas, constrói esse momento de partilha
como um espaço de mulheres, no qual elas se constroem como sujeitos
femininos, permitindo tensionar o lugar das mulheres cabo-verdianas, como
nos é ilustrado na seguinte narrativa musical em crioulo cabo-verdiano.

Ami casadu 15 ano ku nha maridu


Nha maridu nha pensa na largam só pamodi é dado cotovelada
Hoji dja bu bai, dja bu matam, dja bu largam/dexam
Ó nha maridu, amor de nha vida
Ó nha maridu, segurança dentu casa
Ó nha maridu, controle de mi cu bó,
Hoji dja bu bai, dja bu matam, dja bu dexam.20

A narrativa musical retrata uma situação quotidiana das relações de


gênero, a questão de dar cotovelada, expressão que pode ser traduzida como
equivalente a sustentar financeiramente uma pessoa num envolvimento sexual
e afetivo. A expressão, dar cotovelada, apareceu no início de 2000, tendo
sido paulatinamente apropriada por outras formas musicais cabo-verdianas,
em simultâneo com uma apropriação dos sujeitos sociais nas suas dinâmicas
quotidianas, nas suas interações e nas suas falas corriqueiras e jocosas. A situação
de dar cotovelada perpassa, ou melhor, é reapropriada como instrumento de
poder e de construção das corporeidades (masculinas e femininas) por ambos
os gêneros. Contudo, por estar de certa forma desestabilizando algumas chaves
morais, particularmente a questão da prostituição, feminina e masculina, é
uma prática que suscita alguma polêmica.

20
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Eu, casada 15 anos com meu marido / Meu marido
está pensando me abandonar, / porque uma mulher está sustentando ele. / Hoje foste
embora, me deixaste morta, já me abandonaste. / Ó Meu marido, amor da minha vida, Ó
Meu marido, segurança da minha casa. / Ó Meu marido, nossa cumplicidade. / Hoje foste
embora, me deixaste morta, já me abandonaste”.

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 77

Contudo, o que a narrativa musical sinaliza é menos a questão da


suposta prostituição desencadeada por essa possível relação mediada
pela potência do dinheiro e mais como o fato de a companheira ter sido
trocada por outra desencadeou uma crise e um repensar de corporeidades
dos sujeitos masculino e feminino. Quando ela fala: “Ó Meu marido,
amor da minha vida, Ó Meu marido, segurança da minha casa. / Ó Meu
marido, nossa cumplicidade. / Hoje foste embora, me deixaste morta, já me
abandonaste”, usar a expressão “meu marido”, por ser socialmente bem-vista
na sociedade cabo-verdiana, tornava-se fator de distinção e era ostentado
pelos sujeitos mulheres nas interações sociais que iam estabelecendo com
as outras. Diferentemente, a narrativa musical está acionando outras formas
sociais de se pensar a relação de gênero, a construção das corporeidades
nas quais o homem, o marido, é visto como suporte da relação conjugal
e, como a separação conjugal trouxe uma situação de morte social da
mulher por ter perdido o elemento de distinção, remetida para o lugar de
ter sido trocada.
Lendo as narrativas musicais nessa chave, percebe-se como batuko e
ku torno são criados pelas batukadeiras como possibilidades de construção
do corpo feminino, cuja construção tem como contexto sociocultural
cabo-verdiano/santiaguense e local acoplado às gramáticas e às economias
afetivas e morais. Igualmente, a materialização da condição de coletivo,
a articulação do coletivo à Associação para o Desenvolvimento de São
Martinho Grande marcaria outra vivência e experiência com o batuko,
pois a possibilidade de o coletivo ser convidado a participar nos shows
permitiria maior circulação nos espaços musicais e o projeto de vir a se
tornar artista profissional do batuko ganharia mais potência. Assim, um olhar
folclorista, a busca da manutenção da tradição dos modos do fazer batuko,
perderia de vista que a compreensão dos modos modernos e atuais do fazer
batuko só pode ser alcançada dentro das novas configurações que foram se
projetando às manifestações culturais cabo-verdianas e em função das várias
dinâmicas sociais que se foram fazendo em cima do batuko, visando sua
entrada no mundo do showbiz. Isso porque permitem apreender a condição

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78 Carla Indira Semedo

de Fátima enquanto guardiã da memória do fazer batuko e de Solange


como mediadora política com os outros espaços possíveis e potenciais à
circulação de batukadeiras e kutornadeiras, percebendo como as dinâmicas
sociais associadas a dinâmicas advindas da economia das artes criativas
devam ser vistas como produtos e produtoras de um momento específico
e, relacionadas e relacionáveis nos múltiplos momentos da trajetória das
minhas interlocutoras.
De igual modo, Fátima aparecia como guardiã da memória da
comunidade que registrava as práticas tradicionais do fazer batuko e tinha
legitimidade no grupo. Porém, essa legitimidade existia em meio a tensões
entre as formas tradicionais de se fazer batuko, de Fátima, e as formas
modernas das outras batukadeiras, em relação à forma de fazer do batuko
no grupo: o quando, como, onde e por que fazer. Em parte, as tensões
eram causadas por fatores geracionais, já que Fátima, por ser a mais velha
do grupo e por fazer parte do antigo grupo trazia, nas suas práticas e
narrativas, formas do batuko particulares e diferenciadas das outras que
não passaram pela mesma experiência e vivência do fazer batuko. Assim
sendo, eram retratos temporais de um passado vivido que produziam e
eram produzidos pelo imaginário social local.
Outrossim, em função das (re)apropriações do batuko, dois discursos
emergem, na medida em que o mediador intelectualizado (o coordenador
e empresário) defendia a necessidade de retorno ao fazer batuko genuíno,
espontâneo, de que todo trabalho dele junto ao coletivo era nesse sentido.
As noções de moderno e de tradicional apareciam no discurso e na
prática do coordenador, mediador externo, não como polos opostos,
mas enquanto realidades que coexistem e se (re)constroem nessa relação
dialética. De realçar que o batuko realmente só pôde circular nos vários
espaços sociais, entre vários coletivos sociais, especialmente em função da
mudança de configuração. Um batuko antes produzido e experienciado
nas e em função de performances num espaço físico determinado, com
a nova configuração tecnológica, sujeitos diversos em diversos espaços
poderiam experienciá-lo ao mesmo tempo, por meio de DVD e CD. Da

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 79

mesma forma, os coletivos (re)apropriam e (re)atualizam as artes de fazer


batuko e dar ku torno, por meio e nessas performances audiovisuais de
outros coletivos de batuko. Assim, as performances que seriam tidas como
tradicionais são construídas na relação e coexistência com a modernidade
e, essa, em simultâneo, constitui-se como tal, na relação com os modos
tradicionais de fazer batuko.
Entendo que, por meio da e na performance do batuko, das letras de
música, do ku torno, as mulheres batukadeiras (re)definem esse espaço
como possibilitando a desconstrução das noções de gênero, de ser mulher
e homem cabo-verdiana/o. E, pensar gênero enquanto corpos marcados
por certa ambiguidade não me possibilita analisar o campo e objeto de
pesquisa. Em campo, fui me apercebendo de que as mulheres batukadeiras
não constroem suas corporeidades como estando a criar identidades com
marcador de gênero escorregadias, que a todo instante fazem emergir
formas múltiplas de ser e ter esses corpos generizados. Ao invés, por meio
dos vários momentos performáticos, elas questionam as estruturas sociais
que as fabricam, a fim de mostrar, não que os corpos são ambíguos, mas
que aquilo que os constrói não está explicado ou espelhado unicamente
nas e pelas relações sociais. Por outro lado, as performances são perpassadas
não só por reflexões sobre essas normas, como também pelas tentativas
de subversões das relações de gênero e deslocamentos das fronteiras nas
relações de poder entre homens e mulheres, por meio do desejo. Ou seja,
mulheres como sujeitos e homens enquanto sujeitos-objetos, sendo que
aquelas performatizam subversões das relações de poder e deslocamento
do foco do poder.21

Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tornou-se escândalo com


a intrusão repentina, a intervenção não antecipada, de um “objeto feminino”
que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o
lugar e a autoridade da posição masculina. A dependência radical do sujeito
masculino diante do “outro” feminino expôs repentinamente o caráter ilusório
de sua autonomia. (Butler, 2008, p. 7-8).

21
Para mais desdobramentos sobre as gramáticas eróticas do batuko, vide Semedo (2020).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


80 Carla Indira Semedo

Strathern (2007), ao argumentar pela necessidade de se analisar a


dimensão experiencial dos sujeitos, de ser homem e ser mulher, por meio
das incorporações dos discursos nas vivências cotidianas daqueles, abre
espaço para pensar gênero como performance, como uma atuação de
discursos incorporados (Butler, 2004; Morris, 1995). Daí a ênfase nas práticas
sociais, na ação performática do sujeito e, de certa forma, em pensar os
sujeitos como (re)definindo “estratégias”, “artes de fazer” (De Certeau,
2003) e, fazendo emergir “performatividades” (Butler, 2004; Morris, 1995).
Desta feita, o posicionamento epistemológico no qual esta pesquisa
sobre mulheres batukadeiras se aloca é o de percebê-las como criando
estratégias quotidianas nos contextos micro das suas vivências (De Certeau,
2003) para se contrapor, tensionar ou se posicionar em face dos discursos
socioculturais cabo-verdianos hegemônicos que visam as reservar num espaço
de invisibilidade e silenciamento. Assim sendo, é relevante que desvincule da
perspectiva ocidental de pensar as estruturas das relações sociais de gênero
e, aperceba que no meu campo, as práticas das mulheres batukadeiras têm
suas contingências e, suas performatividades (Butler, 2004; Morris, 1995).

Carla Indira Semedo é Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 diracarvalho@gmail.com

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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 81

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Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


82 Carla Indira Semedo

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Recebido: 6 dez. 2021.


Aceito: 25 abr. 2022.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 54-82.


Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência 83

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84 Diana Manrique
DOSSIÊ
García
84

http://doi.org/10.1590/15174522-120662

Curanderas y parteras: saberes que


reivindican y tensionan
Diana Manrique García*

Resumen
El presente texto aborda algunas prácticas de cuidado y cura de la comunidad
Itonama en la Amazonia Boliviana, donde las mujeres ocupan un lugar protagónico.
Prácticas atravesadas por una ética colectiva de cuidado – que emergen como un
lugar político de disputa, decisión e incidencia –, a la vez que reivindican una
episteme ancestral, tensionan la ontología moderna, favoreciendo desde su lugar
de curanderas y parteras la reinvención de las subjetividades femeninas y a la
reivindicación del vínculo en las relaciones comunales. El trabajo se basa en datos
empíricos derivados del trabajo de campo en el marco de la investigación y tesis
doctoral de la autora.
Palabras claves: Amazonía boliviana, curanderas, parteras, cuidado, tensiones.

Healers and midwives: knowledge that challenge


Abstract
This text addresses some care and healing practices of the Itonama community
in the Bolivian Amazon, where women occupy a leading place. Practices crossed
by a collective ethic of care that emerge as a political place of dispute, decision
and incidence, while claiming an ancestral episteme, stress the modern ontology,
favoring from their place of healers and midwives the reinvention of feminine
subjectivities and the vindication of the bond in communal relations. The work is
based on empirical data derived from field work in the framework of the author’s
research and doctoral thesis.
Keywords: Bolivian Amazon, healers, midwives, cares, tensions

* Universidad de las Américas, Santiago, Chile.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 85

Rastros de partida

E
l presente ejercicio es parte de las reflexiones derivadas de la tesis
doctoral titulada Miradas profundas: rutas de cura en las comunidades
próximas a la ribera alta del rio Iténez (Guaporé), Amazonía Boliviana,
del programa de posgraduación en Desarrollo Rural de la Universidad
Federal Río Grande del Sur de Porto Alegre. En este, se considera que, en
los procesos de cuidado y cura de las comunidades Itonama, permanecen
y habitan memorias ancestrales agenciadas, principalmente, por mujeres
indígenas. Esas mujeres, desde su lugar de curanderas, sanadoras y parteras,
se encuentran atravesadas por múltiples interseccionalidades pero hacen
de sus prácticas un lugar donde se resiste y re-existe, cuestiona y crea,
posicionando el cuidado y la cura como un ejercicio político colectivo que
supera lo corporal e individual.
La entrada a la Amazonía boliviana está condicionada por sus trazos
hidrográficos, convirtiendo así el río – en este caso el Iténez o Guaporé – y
su formación rizomática en el principal curso metodológico que adquiere
y avala esta experiencia. Un territorio rico en diversidades, con decenas
de grupos indígenas coexistiendo que van más allá de los impositivos datos
derivados del Estado-nación. El grupo Itonama es uno de estos grupos que,
junto a otros, han experimentado el violento proceso colonizador en una
de las historias más longevas que se conocen de mano de expedicionarios,
jesuitas y franciscanos. Grupos humanos olvidados, que sólo a partir del
año 1990 comienzan a ser reconocidos y visibilizados dentro de la esfera
pública institucional de Bolivia.
La comunidad Itonama, con unos seis mil habitantes, al igual que
otras 33 comunidades indígenas del oriente boliviano, hacen parte de la
Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia, nacida institucionalmente
en 1982 y cuya misión se orienta a la defensa de los derechos de los
pueblos indígenas de las Tierras Bajas de Bolivia.1 Lugar a donde arribé
1
Por tierras bajas Muñoz (2016) refiere al territorio comprendido entre el centro y la parte
noreste del estado plurinacional de Bolivia, que se divide en tres regiones: La Amazonía, al
norte, La Chiquitania, al centro, y el Chaco, al sur.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


86 Diana Manrique García

por mis cercanías y afectos con algunos integrantes del modelo Salud
Familiar Comunitaria Intercultural (SAFCI)2 y tras 14 años como migrante,
activista e investigadora de rutas de cuidado y cura en las profundidades
de América Latina. Metodológicamente este ejercicio toma elementos de
la etnografía performativa3 y cartografía social.4 Es decir, una ruta vivida y
experimentada donde se entremezclan relatos, emociones, sentires, lecturas,
dilemas que hicieron parte del proceso de investigación que, a su vez. se
transforma en un compromiso humano, político, ético, en relación con
saberes invisibilizados, esencializados, mitificados, deshumanizados y con
los seres que los encarnan. Considero que este ejercicio no es exclusivo
del mundo académico, porque es construido con los y las comunarias5
indígenas de la ribera alta del Río Iténez, y vuelve hacia las comunidades
de distintas formas – imágenes, afectos, historias – que pretenden retornar
lo que en mi contacto con estos mundos puede traducirse.

Cuidar y sanar en las entrañas amazónicas


La compleja red de saberes sobre los procesos de atención, cuidado
y cura de los desequilibrios y malestares que acechan en la ribera alta del
Río Iténez (Amazonía boliviana), nos aproxima a un campo donde se hace
posible movilizar las alteridades ontológicas presentes y en constante flujo.
2
Salud Familiar comunitaria intercultural es un modelo parte de la política de salud boliviana,
cuyo enfoque en promoción de la salud se define como sociocultural de interculturalidad y
busca recuperar y revalorizar los conocimientos y costumbres ancestrales en el proceso de
salud-enfermedad, aplicando complementariamente los saberes de la medicina tradicional
y de la medicina clínica occidental.
3
Todas las investigaciones son performativas en cuanto ayudan a producir lo real, sin
embargo, la performatividad, más allá de ser una metodología emergente que desestabiliza
las certezas establecidas, es una práctica deconstructiva (Markusen apud Yehia, 2007), la
cual nos incita al proceso, doloroso muchas veces, de desprender(nos), deshaciendo las
ideas de tiempos y espacialidades estables y únicas.
4
La cartografía como abordaje geográfico y transversal ratifica su proximidad para
acompañar los procesos de subjetivación que ocurren a partir de una configuración de
elementos, fuerzas o líneas que actúan simultáneamente. Las configuraciones subjetivas no
apenas resultan de un proceso histórico que les moldea estratos, sino también portan en sí
mismas procesualidad, guardando la potencia del movimiento (Passos et al., 2009).
5
Término usado localmente para referirse a cada miembro de la comunidad.

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Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 87

Los saberes ancestrales desterritorializados y reterritorializados se manifiestan


de manera diversa en una extensa red de cura que generalmente se inserta
en la paradoja de un sistema que transita entre lo que podríamos caracterizar
como abandonos, omisiones, silencios, transgresiones multitemporales, pero
también autonomía, organización, resistencias que, de una parte, denuncian,
pero a la vez crean. Y esa creación se puede observar en diversos escenarios,
uno de ellos asociado a las prácticas – rituales o no – de curación, en las
que se hace indiscutible la capacidad de “agencia” de los y las comunarias
comprometidas a las diversas funciones de sanar y cuidar en relación con
otros seres de los mundos que se habitan.
Los diferentes procesos terapéuticos que actúan en estos territorios dan
cuenta de la cura como un proceso irreductible, inserto en un entramado
de flujos e intensidades que pasan por escenarios sin disyunción analítica,
que contemplan que cada acción en el mundo implica correlativamente lo
micro y macro político. La coexistencia y complementariedad entre prácticas
de cura se manifiestan de manera muchas veces asimétrica entre una red
visibilizada correspondiente a los sistemas principalmente biomédicos
presentes y otras prácticas y redes menos visibles. Éstas se hacen latentes
en complejas paradojas que no buscan necesariamente una disolución,
sino se manifiestan en posibilidades creativas de campos insurrectos.
Gran parte del mundo amazónico está atravesado por estas
complejidades que no entran en la facilidad de lo dicotómico, que no
niegan la contradicción que, por su vez, actúa como potencia de las prácticas
de lucha por la vida y la sobrevivencia ante la amenaza de extinción de
los mundos que rasguñan lo moderno. Es por ello que lideresas sabias
de etnias ubicadas en estos corredores amazónicos, tres veces al año se
internan en el monte para buscar el espíritu del jaguar, para que, en ese
encuentro interno con la naturaleza, puedan advertir sobre el presente/
futuro de sus pueblos. En este sentido, Rivero Pinto (2014) expone que
24 etnias indígenas de esta región realizan el rito de búsqueda del espíritu
del jaguar, en el que sabios y sabias predicen el futuro y previenen a su
gente de posibles males.

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88 Diana Manrique García

Al igual que gran parte de estas comunidades, para los Itonama, los
espíritus de sus muertos poseen poderes sobrenaturales. Hoy en día, siguen
siendo animistas con relación a las plantas, animales y el agua, hecho por
el cuál pocos de ellos se vinculan con el trabajo de las haciendas vecinas,
en cuanto para el hacendero y los trabajadores muchos de los seres que
habitan el territorio son adversarios. Prácticas de cuidado y cura que nos
ilustran la existencia de lógicas de relación con la vida, tierra y sus seres
que, a la vez que resisten, brotan “como respuesta a las formas modernas
liberales, estatales y capitalistas de organización social” (Escobar, 2014, p. 50).
Las prácticas de cura no biomédicas hacen parte de una variada
experimentación, que se diversifica como raíces que toman formas
imprevisibles ligadas a la capacidad creativa y potencia del sujeto-cura,
al lugar-tiempo y sus demandas, y al sujeto que procura la cura. En ese
escenario múltiple se asiste a constantes modificaciones que se preservan
unidas en sus diferencias, proximidad que responde a sistemas ontológicos
relacionales que les subyacen y que actúan como potencia común y les da
sentido. De las prácticas o sistemas que se generan y a las que me refiero
son aquellas encontradas a través del ejercicio etnográfico que, en forma
de diálogo, sonido, olor, performance, comida, reunión, ritual etc., se han
manifestado a mis sentidos.
Expreso esto, en cuanto las percepciones occidentales se mantienen
dominadas por las sensibilidades exotizantes del colonialismo, el imperialismo
y el capitalismo neoliberal (Geidel, 2010). Así el llamado a sentipensar en
el trabajo de campo emerge con la activación de sentidos que superan el
tacto, el gusto, el olfato, la vista y el oído, y que nos habla de reintegrar
las percepciones. Hacer conciencia de que la mente – heredera de una
jerarquía analítica patriarcal – ha ocasionado rupturas profundas en nuestras
matrices perceptivas y su interrelación, así mismo entre los nexos con la
alteridad de los mundos vivos o no.
Estas formas de ser, hacer y conocer permiten percibir la reciprocidad
que orienta la relación con el entorno de las comunidades Itonama. En
parte de los recorridos realizados junto a ellos y ellas, la interrelación con

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 89

las plantas en los procesos curanderos es un hecho que denota de una parte
un profundo conocimiento sobre la flora y sus usos y a su vez un profundo
respeto por las diferentes expresiones de vida. Una de las comunarias,
con la que visité varias localidades, refiere durante uno de los recorridos:

Tomando raíces a veces uno aguanta todo, una ya de vieja es caprichosa de


alzar cosas pesadas, que días me sentí una bola, así que fui y agarré un cuguchi6
e hice agua y tomé, y es buena. También esa que se llama golondrina,7 está
a ras del suelo, esa se cuece con otra de estas, ya sea con la hoja de sinini,8
conoce el sinini no? Es así, como una chirimoya grande, la hoja de eso se
cuece con esto y se toma para los riñones. Una aprende de las otras señoras
que saben, a una se le queda.9

No se necesita ser especialista – en varias de estas comunidades la


mayoría de los lugareños conservan un manejo excepcional de botánica, y
no dudan en compartir sus conocimientos entre las diferentes generaciones
y con las personas que les visitan. El interés por ampliar mis conocimientos
de parte de mis interlocutores marcaba el curso de las conversaciones,
las cuales se centraban en compartir una serie de prácticas y saberes en
relación con los procesos de sanar, superando el marco de los sistemas
oficiales. Algunos de las y los comunarios, en su relación con el mundo de
las plantas medicinales, realizan preparaciones, combinaciones, mixturas,
mezclas que han resultado ser efectivas en el tratamiento de malestares tanto
tradicionales como emergentes. Es el caso de Marlen, médica tradicional,
que se ha dedicado a la preparación de jarabes y ungüentos para responder
a las enfermedades más recientes o aparecidas al contacto con los colonos
como el “tifus negro”, virus que hizo presencia en su localidad costándole
la vida a centenares de personas.
6
Juglans regia o nogal común.
7
Chelidonium majus o Celidonia mayor, es de la familia de las amapolas.
8
Annona muricata.
9
Entrevista en Orobayaya, junio 2016.

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90 Diana Manrique García

Yo elaboro los jarabes del acai, de la raíz del motacu,10 del tajibo,11 del
alcornoque12 y el caracoré.13 Estos lo hemos aprendido a través de nuestros
ancestros, mi suegro que fue uno de los sobrevivientes aquí, él fue una persona
bien luchadora por la comunidad, el mantenía las costumbres, la medicina
tradicional todo eso… El del acai es para subir las defensas del organismo
cuando están muy bajas en caso de anemia, de la raíz del acai, lo hacemos
con plan de manejo para que duren las plantas, yo tengo allá en mi chaco.
Es como un antibiótico, para este caso también de la enfermedad del ratón,
de la fiebre hemorrágica es para eso, pero además se hace en cocimiento y
en enema, para sacar la infección, le pongo todo eso y el alcornoque bien
cocido y hojas de malva14 para bajar la temperatura porque eso es una fiebre
adentro que tiene el enfermo.15

Del corte de estos relatos podemos encontrar un sin número de


recomendaciones, que hacen parte del compendio de estas personas
curadoras que, como sabios y sabias andantes, conforman esa red compleja
que atiende a las comunidades ribereñas. Haciendo un seguimiento a gran
parte de las especies referenciadas podemos percatarnos de que varias de
ellas se encuentran “bajo estudio-uso” por sus propiedades medicinales,
algunas de las cuales ya vienen siendo procesadas en la industria farmacéutica
por sus principios activos en las acciones terapéuticas.16

Indisciplinamiento de los cuerpos


Pero, al manejo y relacionamiento con las plantas se suman otras
prácticas que, en su mayoría, actúan bajo la orientación espiritual. El
10
Attalea prínceps.
11
Tabebuia chrysantha.
12
Tabebuia aurea.
13
Cereus stenogonus.
14
Malva sylvestris.
15
Entrevista en Orobayaya, junio 2016.
16
Podrían referenciarse diversos estudios encontrados cuando hacemos un seguimiento de estas
plantas. Sin embargo, un ejemplo reciente es que se ha venido incrementando la observación y
análisis de la annonacina, sustancia química presente en el sinini. Las investigaciones al respecto
buscan aproximarse al estudio de esta especie y sus posibles efectos en tratamientos del cáncer,
así mismo otros estudios han derivado en las consecuencias neuronales que puede generar. Para
más información puede verse: Augusto et al. (2000), Liu et al. (1999) y Oberlies et al. (1995).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 91

conjunto de los y las locales dice poseer una fe canalizada en la figura de


las deidades católicas, hecho correspondiente a la fuerte presencia misional
desde los periodos de contacto hasta hoy. Sin embargo, esa espiritualidad
es amplia y trasciende las palabras heredadas de la iglesia católica. Como
me dice una de las sanadoras del cabildo,17 “es un contacto profundo, un
pedido”. En algunos de los testimonios, este contacto-pedido acompaña
y guía al curador o curadora:
Yo he tenido partos bien dificultosos, una parturienta se derramó en
hemorragia, una pariente mía, esto no fue aquí, fue bien para adentro, en
el blanco. Me vas atender me dijo, yo le dije si no puedes dar a luz anda
a Magdalena, la sacudía nada, la volvía a sacudir y nada, solita yo con
ella, el marido nunca la había visto dar a luz, ¡no! le dije vos tienes que
venir a ayudar, acomódate y me vas a ayudar. Le hacía el tacto, no sentía
cabeza, ella fatigaba y fatigaba. Pero dentro tanto que he atendido solo
ese caso me ha pasado así, ya un buen rato de eso me dice ya no tengo
fuerza, cuando le miro ya era de noche, no era por acá por esta parte sino
por el ano. Ay primera vez, por qué pensaba yo, no le dije yo a ella nada,
porque estaba sufriendo. Salí y le dije a su mamá – no era primeriza –,
muy clavada estuvo esa criatura y nadie la sacó. Ya no me animaba yo a
que haga fuerza, no hagas fuerza mamita él va a nacer cuando sea su hora,
el señor me dio esa inteligencia, pedí dios mío asísteme, me recorte bien
todas las uñas y le dije a su madre y a su marido, ya vengan a ayudarme,
le metí la mano y con toda mi fuerza lo acomodé, fue tanto que dure una
semana no podía del brazo, pero se vino de una por el camino. Le dio una
hemorragia claro, pero la controlamos.18
17
El cabildo Indigenal es la figura organizativa heredada del sistema misional de la colonia.
Esta figura, de manera forzosa, vino a desplazar las formas organizativas precoloniales. Es
una figura que se extendió en muchos otros dominios coloniales de la corona española,
conservando una particularidad en su desarrollo local, y es que las creencias y prácticas de la
religión católica son asumidas por los pueblos indígenas de una manera particularmente afín
a la organización de una vida autónoma en comunidad (Delgado Pugley, 2015). El cabildo
vendría a ser la figura organizativa “molecular” que se reproduce en todas las localidades
adscritas al territorio y que se vendría a congregar en la subcentral indígena.
18
Entrevista en Bella Vista, septiembre 2016

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


92 Diana Manrique García

A la afirmación “dios mío asísteme” se anteponía en mí la pregunta:


¿de qué dios me estará hablando? Una de las inquietudes que me atraviesa
mientras la escucho, pues, si bien reconozco un escenario marcado por la
avanzada dogmática del evangelio misional, no es de desconocer ni subestimar
las estrategias prácticas y discursivas de sobrevivencia de las que han hecho
uso las comunidades indígenas para su necesaria coexistencia. La figura
de los ancestros, o de las deidades se convierte en ese referente espiritual
que acompaña las decisiones de los curadores, modificaciones o procesos
producto de intercambios con otras entidades que engendran una práctica
al momento. Esto nos lleva a pensar el sistema de cura local a partir de los
múltiples agenciamientos que moviliza. Categoría que, para Guattari y Rolnik
(2006, p. 365), es una “noción más amplia de lo que las estructuras, sistema,
forma etc., un agenciamiento comporta componentes heterogéneos, tanto
de orden biológico, social, maquínico, gnoseológico, imaginaria”.
La madre muerta, la abuela y sus antecesores, los espíritus, la divinidad,
se encarna en el cuerpo curador que atiende una demanda y responde en un
acto creativo sobre una situación de la que muchas veces no tiene dominio
racional. Y ese acto de momento es devenir que resiste y brota como un
acto insurrecto a la biopolítica, es decir, un acontecimiento rebelde frente
a aquello que hace que la vida y sus mecanismos entren en el dominio de
los cálculos explícitos (Foucault, [1976] 2001). Frente a un acto que parece
instintivo, que asume una corporeidad, encontramos la emergencia-potencia
de un ejercicio que habla de subjetividades alternativas.
Si bien la OMS y la OPS han incorporado iniciativas de regularización,
revalorización y recuperación de las medicinas tradicionales ancestrales
donde se incorpora el reconocimiento de naciones y pueblos indígenas,
puede pensarse dentro de la lógica multicultural propia de varias
constituciones de América Latina. Allí, las políticas de inclusión forman parte
de la configuración uninacional. En ellas las diversidades de los pueblos,
principalmente afrodescendientes e indígenas, pueden ser incluidas en
la sociedad tal como está conformada, respetando sus patrones políticos
y administrativos (Walsh, 2009). Por ejemplo, en Brasil, en el año 2000,
las parteras tradicionales aparecen como objeto de las políticas públicas

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 93

(Días-Scopel; Scopel, 2018), algo que igualmente sucedió en Bolivia y en


otros territorios de la región. Habrá que considerar si es sólo un ejercicio
de tolerancia, una búsqueda de control y vigilancia o una iniciativa de
respeto e inclusión, principalmente si en los cotidianos de las prácticas
emergen otras tensiones.
Las herencias coloniales no sólo han jerarquizado y clasificado
profesiones y oficios, sino subalternizado voces, criterios y junto a ellos
los sujetos que producen ese “otro” conocimiento (Walsh, 2005). La
colonialidad del saber (Quijano, 2009) presente en este hecho concreto
nos permite revisar los vínculos de poder existentes entre una médica o
partera tradicional itonama, portadora de un acervo intelectual ancestral,
y un “saber médico” en manos de profesionales formados en instituciones
reconocidas por el Estado que reproducen un conocimiento “científico”,
racional y hegemónico. En ese sentido los conocimientos producidos
desde la experiencia dan cuenta del privilegio epistémico del que gozan
los “representantes” de un régimen sociopolítico.
Al no depender, en su funcionamiento, del sistema institucional, las
comunidades indígenas logran ciertos niveles de autonomía. Sin embargo,
dicho suceso ilustra la compleja red de relaciones de saber-poder en las que
se insertan actores y agencias. Dichos comunarios y comunarias indígenas, al
no ser consumidores dependientes del Estado y de sus instituciones, utilizan
este tipo de acciones que, desde estos sistemas sanitarios, educativos etc. nos
ilustran y ayudan a profundizar en las asimetrías entre las diferentes redes
para contribuir a descifrar las delgadas líneas y las múltiples caras coloniales.
Tomar en serio el diálogo de saberes y la interculturalidad no se limita
a reconocer legalmente la existencia de pueblos indígenas, afrobolivianos
o campesinos – que han sido visibilizados negativamente por la matriz
colonial – sino hacer efectivas las traducciones de esos discursos en prácticas
concretas. Pues, si las instituciones entran en diálogo y acción con las
territorialidades indígenas, con programas, proyectos y acciones directas,
no pueden menos que instaurar como noción base la multiplicidad de las
existencias para propiciar la igualdad y justicia en la dirección y curso de las
relaciones y condiciones. No hay posibilidad de una teoría ni un discurso

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94 Diana Manrique García

descolonizador si no hay prácticas que le den sentido, que evidencien


lo no-dicho, cuestionen el colonialismo interno y problematicen ciertas
tendencias academicistas que sustentan teóricamente la descolonización
(Rivera Cusicanqui, 2010).
La retórica presente en la nueva legislación advierte la emergencia,
desde las instituciones, de un conjunto de categorías y términos, que también
hacen parte de la academia, que corren el riesgo de neutralizar y desvirtuar
las luchas ancestrales. La descolonización no sólo debe considerarse
desde una no dependencia entre metrópolis y colonias o entre norte y
sur, centro-periferia, sino como un desmontaje de relaciones de poder
y de concepciones del conocimiento que fomentan la reproducción de
jerarquías raciales, geopolíticas y de imaginarios, que fueron creadas en
el mundo moderno/colonial occidental (Curiel, 2015; Galindo, 2015).
El problema no es llenar con discursos o figuras de indígenas los
lugares “del amo”, “el problema y desafío es la capacidad de poner en
cuestión las estructuras, lógicas y sentidos de todas y cada una de esas
instituciones” (Galindo, 2015, p. 41) y, en ello, las comunidades indígenas
tienen vasta experiencia. Las rupturas y desobediencias protagonizadas
durante siglos, a las que se suman sus creativas formas de re-existencia,
no se dan meramente en el campo de la retórica, sino en el mundo de
facto. Prácticas concretas se suman silenciosamente a la práctica política
de desestabilizar las estructuras de poder.
Otro ejemplo que nos ayuda a profundizar la reflexión en esta materia
se relaciona con algunos estipendios sociales. En el año 2009 se implementó
el bono Juana Azurduy, medida establecida por el Gobierno nacional a
través del Ministerio de Salud.

Este es un programa cuya ejecución también es apoyado [sic] por el Banco


Mundial e incluye transferencias condicionadas de dinero destinado a mejorar la
salud materna, neonatal e infantil. El programa paga a cada mujer embarazada
un estipendio de USD 260 en cuotas vinculadas con visitas prenatales regulares,
la atención calificada del parto y visitas posnatales para los niños hasta los dos
años de edad. La población que recibe el incentivo es únicamente población
que acude a los servicios públicos de salud (Cortez et al., 2015, p. 4).

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Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 95

Estas intervenciones del sector salud, articuladas con otras medidas,


buscaban reducir la morbimortalidad materno infantil, sin embargo, también
implican ampliar el control estatal en materia sexual y reproductiva de las
mujeres indígenas y, junto a ello, de las parteras tradicionales. Se trata de
un incentivo económico para las gestantes, condicionado a la asistencia a
cuatro controles prenatales, parto institucional y control post parto, y en
el caso de niños y niñas menores de dos años, a 12 controles integrales de
salud bimensual. En resumen, cada vez que una mujer fuera a controlarse
el embarazo, recibiría la suma de siete dólares, por el parto en un hospital
del Estado recibiría 17 dólares y por cada uno de los posteriores controles
de salud de niños y niñas recibiría 18 dólares. Una propuesta que resulta
interesante para un observador externo que no conoce la realidad de
las comunidades indígenas, en cuanto el sólo transporte para llegar a un
centro de salud u hospital en algunas de las comunidades, en este caso la
Itonama, oscila entre los 20 y 100 dólares.
Una de las auxiliares de enfermería de una de estas localidades
me insistía:

lo que mandamos de aquí para Magdalena, a veces, son las cesáreas, pero
aquí no atendemos parto porque la gente no viene, a veces vamos a la casa.
La gente está acostumbrada a tener sus hijos en casa, con las parteras que
atendieron a sus madres o que siempre las han atendido. Eso difícilmente va
a cambiar, no hay plata que convenza. La gente no viene, a veces lo que más
uno atiende es el control de niño sano, pero es más como un paseo o una
salida por lo que vienen.19

La práctica de parir en casa no obedece exclusivamente a las condiciones


materiales- económicas de las familias – aún hoy, cuando existe un incentivo
económico estatal, “dar a luz” es algo que precisa la presencia y confianza
de la comunidad, del par indígena, de la familia, hecho que difícilmente
es posible en las instituciones de salud. La figura de la partera familiar o
conocida es un hecho de difícil remoción y que incluso ha motivado el
interés institucional en políticas de reconocimiento e inclusión, como las
19
Entrevista en Orobayaya, julio 2017

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


96 Diana Manrique García

promovidas bajo la consigna de “adaptación cultural de los servicios” que,


a través del seguro indígena, crea una oferta de servicios de salud materna
e infantil considerando tradiciones indígenas. Propuestas que aún no llegan
a todas las localidades y se encuentran en proceso de implementación.
Las parteras Itonama, en su mayoría mujeres, asumen y reivindican
su oficio como un ejercicio político comunal que supera lo corporal e
individual, que dice de un acompañamiento y corresponsabilidad sobre
los procesos de crianza:

Desde que empiezan embarazadas yo empiezo a sobarlas (friega, masaje) a


ellas. Ya me hacen llamar, a veces quiere salir él bebe, me llevan para ver que
vamos a hacer, ya si veo que la cosa es difícil le digo que la lleven a otro lado
que yo no puedo hacer nada. Quieren que yo las atienda no más ahí en su
casa, pero se enojan las enfermeras en el hospital, que porque no las hago ir
allá, bueno le digo yo es su gusto, yo no las he atado le digo, si ellas se hayan
capaces de tenerlo ahí, pues ahí lo tienen, le dije. No pueden obligarlo a uno.
Lo más bonito de ser partera es sentir, ver nacer el bebé, así tal como es que
lo abrace su madre.20

Las palabras de esta partera nos conectan con dos ejes principales.
Primero, la posibilidad de autogobierno del cuerpo gestante, una rebeldía
y resistencia silenciosa de hecho, que, aunque parece inconexa, trae
consigo la fuerza de autodeterminación de las comunidades. Y segundo, el
reconocimiento de los límites o advertencia de peligro de un “otro” que no
se niega ni anula, sino que complementa, clave de los mundos ancestrales.
Estas pequeñas desobediencias a los intentos de disciplinamiento coloniales
nos colocan frente a micropolíticas que convierten estas rupturas personales
en decisiones existenciales y que se instalan en el cotidiano construyendo
políticas de subsistencia.
Es importante insistir en no perder el foco, lo que está en juego no
es la legalidad o legitimidad de una medicina frente a otra, la validez del
conocimiento de la partera con relación a la enfermera, la inclusión o no
de las parteras en los hospitales, o de la introducción o no de las mujeres
20
Entrevista en Orobayaya, septiembre 2017.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 97

gestantes al sistema de salud. Lo que está en juego es la vigencia de una


relación asimétrica y de subordinación de las comunidades indígenas con
relación a los representantes de las instituciones derivadas del aparato
estatal. Un Estado que proclama reconocer la existencia de varias naciones
indígenas pero que, al parecer, deriva en disociaciones que, en el concreto
de las prácticas, podrían asociarse a trazos incoherentes y distantes de la
discursividad que les fecunda.

Parir y cuidar. Un territorio en disputa


Hay una diversidad de protagonistas de cura local, dentro de los
que se puede observar parteras/os, médicos/as tradicionales, hueseros/as,
rezanderos/as, yerbateros/as y un sin número de tratantes que al igual que
en la diversidad terapéutica responden a las demandas tanto emergentes,
como urgentes de tratamiento de los y las consultantes. Hay personas que,
en circunstancias como mordedura de víboras venenosas, accidentes,
partos, deben actuar inmediatamente y acercarse a cualquier sistema
curanderil, por lo que su vida depende de la propia capacidad creativa
en ese momento. En ese sentido, la posibilidad de buscar ayuda fuera de
sus comunidades puede ser algo no viable, más aún en escenarios como
este, dónde las distancias oscilan entre intervalos que van de 2 a 20 horas,
y están condicionadas por múltiples factores.
Y es en estos sistemas de cura locales donde las mujeres indígenas
asumen un protagonismo. Como bien me refería uno de los integrantes
de las redes curanderas locales, “el poder de vida y muerte” viene de
la mano de sabias locales. Este hecho también nos remite a pensar la
asociación mujer-bruja y su poder como “encarnación del lado salvaje
de la naturaleza, de todo lo que en la naturaleza parecía alborotador,
incontrolable y, por lo tanto, antagónico al proyecto asumido por la nueva
ciencia” (Federici, 2010, p. 279).
Un poder que no es negativo exclusivamente, puesto que desde y
a través de ellas se tejen redes de cuidado que se extienden y circulan
alimentando la tierra y el territorio. En ese escenario, las parteras cobran

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


98 Diana Manrique García

protagonismo en la zona, generalmente un oficio de mujeres que, sin ser


exclusivo de éstas, sí se aprende de ellas, principalmente de generación
en generación como me relatan algunas.

En primer lugar, yo aprendí de mi madre porque mi madre me decía, tuve


yo mi niña sin padre, porque el padre puso el huevo y se fue y yo quedé y
me dice mi madre, porque la llamaban, así como me llaman a mí, tarde de
la noche con lluvia, con sur, con viento y yo me levanto y me voy, si yo lo
he sufrido ese dolor, esa angustia de tener a su bebe, no es cierto, y bueno
cinco parteras tengo yo, parturientas, cinco hijas. Una vez me dice mi madre
ven Ida ya va tener su hija, que de pronto te toca un caso de esos para que
aprendas. Yo parada así y ella con la parturienta, bueno yo le miraba a ella
y ya yo era su compañera y me hacía pasar donde estaba la partera. Bueno
fui despertando, una cosa es hacerlo con voluntad y otra es ir de mirona, si
uno quiere todo puede. Y claro yo he tenido partos difíciles así en el campo,
imagínese de 20 o 22 años yo ya atendía y ahorita tengo 66, aquí a cuál será
la que no he atendido.21

El arte de acomodar la criatura pasa por sobar, suspender, sacudir,


asentar, levantar la barriga, arte y ciencia compartida por un universo de
mujeres que han auto aprendido o que les ha sido transmitido por sus
mayores. Es así que “todas esas cosas las mujeres las saben, mi madre y
las madres con varios hijos y nietos que crían, ¿usted cree que no tenemos
experiencia? y sabemos mucho más que cualquier médico”. Esta expresión
de una de estas mujeres me interpela sobre el conocimiento de su cuerpo,
una demanda de autogobierno sobre ese territorio llamado cuerpo gestante.
Con esta expresión, doña Zara, mujer partera que además realiza
labores de profesora de primaria en un pequeño poblado amazónico, no
desconoce la labor del personal biomédico, porque ella misma refiere “a las
mujeres petacudas cuando me buscan para que yo vaya a sobarlas, ahora
les digo ya la notificaron a la enfermera, ya le notificaron al doctor”. Esto
obedece a las tensiones derivadas, más que de los sistemas, de las personas
que los encarnan. Si bien, en algunos poblados los sistemas presentes se
complementan de manera más sincrónica, en otros tiende a establecerse no

21
Entrevista en Bella Vista, agosto 2017.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


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sólo una jerarquía de parte del personal funcionario de la institucionalidad


de salud, sino además una especie de persecución “más antes me llevaban
a mí las otras enfermeras a los talleres, ahora con el doctor P les prohíbe,
además de discutir así seriamente, me dijo deje de partear”.
Sin embargo, las parteras son de las profesiones-oficios más procuradas
en las entrañas amazónicas. Éstas son buscadas desde que la parturienta se
entera de su embarazo, desde ese día la mandan a llamar para que empiece
a sobar, llevan su aceite de pata (de algún animal generalmente), y de ahí
hasta que nace la criatura acompañan a la mujer. La frecuencia depende
de la acomodación del bebe, a veces están mal, están en posición sentada
y eso requiere que las visitas se hagan cada dos o tres días. Gran parte
de las mujeres acompañadas y entrevistadas refieren que hay “criaturas
caprichosas”, con ello se refieren a los bebés que por más veces que se
sobe y empuje no se quiere acomodar para el nacimiento. Las mujeres
prefieren parir acurrucadas o acostadas, la partera les indica que exploren
en la posición dónde se sientan más cómodas. Durante todo el proceso de
acompañamiento, la partera y parturienta, indígenas de la misma comunidad
establecen un vínculo que entrega confianza. Durante los nueve meses la
partera la prepara a ella y algunas veces a su esposo, les indica la flor del
papayo macho y el cogollo de la planta de la yuca, en forma de té como
estimulante para que salga el bebé.
También refieren que en algunas ocasiones “las champan” con hojas de
algodón hervidas. Tratamiento que consiste en un té de hojas de algodón
que se les da diez o 12 días antes de cumplir los nueve meses para evitar
el dolor, “porque eso es muy bueno para las inflamaciones, es que tienen
inflamaciones en el cuello del útero y eso les provoca también mucho
dolor”, dolores que las hace confundir con el deseo de parir. En varias de
las visitas acompañadas veo cómo las mujeres que desarrollan esta labor
caminan kilómetros o navegan largas distancias para acudir a ver - asistir -
cuidar de estas otras mujeres. Generalmente viene algún familiar que, en
caballo, moto, canoa o a pie acude en su procura – en contraprestación
siempre trae pescado, algún animal de caza, dulce de caña o cualquier
otra contribución principalmente alimentaria.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


100 Diana Manrique García

Estos circuitos, sin embargo, están llenos de contradicciones y


complejidades. Una de las más llamativas tiene que ver con que muchos
de los funcionarios o funcionarias de la salud institucional, a pesar de su
formación biomédica, procuran estos otros sistemas curanderos. Por un
lado, en busca de prácticas de cura para sí o sus seres queridos, por otro,
como posibilidad de apoyo en la atención de las demandas del agente
que busca ser curado. En estas experiencias podríamos rescatar un diverso
grupo de relatos, sin embargo, vamos a traer uno de los más próximos,
relacionado justamente con el doctor P, médico que, como mencionamos
anteriormente, rechaza y denuncia la labor de cura ejercida fuera de
los campos de su dominio. Este relato ayuda a profundizar en parte la
heterogeneidad material y discursiva, y a su vez, de prácticas a las que
se acude por parte de los residentes en alguna localidad de estas riberas.

Si vienen a buscarme que yo las partee tampoco puedo decir que no, por
último, un parto como lo voy a pelear yo con los médicos, salimos un día de
una discusión con el doctor y la licenciada me dice no le haga caso señora
Zara, no le haga caso, es desatornillado el doctor P. Como yo tengo conciencia
que no es como él dice, lo hago porque tengo cinco hijas y tres nueras. Otra
cosa que me prohibió es tratar a los recién nacidos, eso lo hago también, un
día su esposa tenía un bebesito ahí, tenía diarrea, diarrea, diarrea, un día me
vio y me pregunto qué le hacía, yo le dije cómo me preguntas niña a mi si tu
marido es médico y vos enfermera, ay ya me cansé me dijo, es una farmacia ahí
mi casa me dijo, tengo un botiquín grande lleningo y el niño es pura diarrea,
le pasa y a los dos o tres días otra vez. Seguro le diste leche ajena, cómo es
eso me dijo, te embarazaste dando de chupar. Si me dijo. Y cómo lo curo,
no te doy nada le dije, le prometo que no le digo a P, por favor señora y yo
veía el bebesito así flaquingo. Si me prometes, yo sé que una madre busca
como ayudar a un hijo, si vos efectivamente crees en mi remedio y no le vas
a decir el doctor. No le voy a decir porque me va a retar.

Busca un frasco de aceite de castor, que es dulce, le dije, y un frasquito de


aceite de almendras, eso lo mezclas, le hervís la canela que quedé rosada, le
echas la canela, los dos frasquitos de aceite y eso se los das en una purga en
la tardecito a pleno aire le dije, su cenita o su leche se la das bien temprano
y después se lo das. Pero me haces caso lo que te digo. Lo voy a hacer señora
lo voy a perder a mi hijo por nada. No lo vas a bañar ese día, ni a que coja

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Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 101

agua ni nada, dice que se lo dio tal como yo le dije, como a los 10 días
volvió a verme, y me dijo mi hijo esta sanito, tres días no hizo y cuando hizo
ya se arregló. Cuando te vuelva a pasar eso, le dije, quedaste embarazada
chupando tu hijo, ese día conseguir sal amarga lo diluís lo tomas y le das de
chupar, hasta las seis de la tarde no le das un trago más y te pregunto si le va
dar diarrea, eso es bueno.22

Podría preguntarse ¿qué es lo que hace que estas prácticas descalificadas


por algunos agentes de la biomedicina institucional permanezcan disponibles
para su acceso? Frente a ello, podríamos sugerir la necesidad de los/las
profesionales formados/as en la academia de encontrar caminos alternativos
a las complejidades con las que interactúan, a las prácticas donde la razón de
la ciencia no responde. Escenarios que invitan a recorrer y explorar caminos
menos rígidos y estrechos para encontrar posibles salidas. Es difícil reducir
estas experiencias y los deseos que las acompañan, pero, si hay algo que
queda claro desde la voz de los agentes que procuran el acompañamiento
o cura, es la confianza en la experiencia y sabiduría de estos agentes.
La confianza entregada a estos agentes también corresponde a la
reciprocidad recibida de parte del que cura. Es así que, a diferencia de
los establecimientos institucionales, no hay protocolos rígidos, ni horarios,
ni lugares específicos, sino que los interlocutores comparten un campo
cosmológico. Y, de no ser así, acuden a intercambios cosmopolíticos que
engendran la práctica de cura que resulta, generando una relación que
se percibe mucho más simétrica que la establecida con personal de los
establecimientos de salud.
Para gran parte de agentes de los sistemas de cura locales no biomédicos
los y las funcionarias del sistema institucional de salud no significan ni
competencia, ni amenaza. Son excepcionales los casos en que se puede
identificar este tipo de tensiones, pero generalmente el encuentro de estos
sistemas y sus redes complejas se da de forma complementaria. Así como
la anestesia de campo, se comparten otros insumos, procedimientos y
conocimientos de lo que resulta una “articulación intrínseca de lo múltiple
22
Entrevista en Bella Vista, septiembre 2017.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


102 Diana Manrique García

por sí mismo que producirá sentido sin que haya un término exterior a
esta articulación como tal” (Carvalho, 2011, p.176). Ello también se hace
presente cuando se hacen derivaciones intersistemas, los terapeutas locales
no biomédicos hacia los terapeutas institucionales y viceversa, lo que indica
un reconocimiento y legitimidad de lo que complementariamente se puede
aportar ante una demanda.
Esta relación de coexistencia y complementariedad (Maluf, 1996) de
los sistemas y prácticas también responde a la necesidad de respuesta que
demandan muchos de los casos, a las características socioespaciales de estos
corredores amazónicos, a las ontologías presentes que coexisten y que nos
hablan de epistemologías diferentes; de formas de conocer y reconocer
la vida que no son estáticas, que se transforman y renacen una y otra vez.
Para el caso de la cura, nos hablan de un profundo conocimiento territorial
y del cuerpo humano que permite actuar y responder.
Pero, a su vez, este conocimiento del cuerpo es conocimiento de
un territorio en la complejidad de los seres que lo habitan, que, como
plantas, animales y espíritus, se hacen presentes de una u otra forma en los
procesos. Esto nos conduce a pensar que la cura, y los sistemas que de allí
se desprenden, es uno de los posibles y diversos caminos que se pueden
explorar para aproximarnos a los imprevisibles mundos indígenas. A su
vez nos introduce y conduce nuevamente a posicionar la cura distante del
reducido y protocolizado campo biomédico. Y si bien los conocimientos de
botánica, las prácticas y experiencias ligadas al campo espiritual o en general
al cuidado, que en estas narrativas se describen, hacen parte de los campos
no biomédicos, la cura trasciende los malestares alma-cuerpo involucrando
todo un sistema relacional de la existencia de estas comunidades.
Lo cotidiano de estas prácticas da cuenta de un campo micropolítico
de re-existencias en el que las pequeñas acciones colectivas del pueblo
Itonama repolitizan el cuidado y la cura, al igual que muchos otros procesos.
El cuerpo-territorio actúa de(s)colonialmente, reelaborando las relaciones
con el mundo circulante. En él, presencia de plantas, animales, humanos,
ríos, pampas, distancias, espíritus intervienen como potencia creativa y

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 103

decisión, al momento de optar o no por un proceso terapéutico. No hay


protocolos ni fórmulas, en el instante se crean y recrean como alternativas
que interpelan los trazos Estado-centristas de las macropolíticas.
Las prácticas de cura itonama, que evidencian a las mujeres insertas en
un campo de intersecciones múltiples, nos convocan a pensar en términos
complejos referidos a disputas en materia étnica, racial o sexual, pero a
su vez considerando y problematizando que aquellas están y han sido
incorporadas por la lógica dual del sistema occidental moderno. Lo que
está en juego dentro de esta experiencia de vida, y que nos cuestiona, es
el desplazarnos de las lógicas binarias para aproximarnos a los contextos
históricos y sentipensar que la descolonización del ser exige la reunificación
del ser con la realidad; unir lo humano con la naturaleza significa renunciar
al antropocentrismo y volver a sentirse en unidad a la totalidad de la realidad,
sin privilegios, con la humildad de ser un elemento más de la naturaleza,
el cosmos y la totalidad de la realidad (Mazorco, 2010).
Hoy, buena parte de las mujeres indígenas itonama se organizan en un
grupo de mamas23 del Cabildo Indígena. Años de participación de muchas
de ellas han transformado sus vidas y quizá aportan para la transformación
de otras: un reinventarse a diario, que, como en la danza que practican, se
convierte en un acto performativo colectivo. Una experiencia que no habla
en términos impositivos, que no invita a la universalización o autenticidad
del ser indígena y que nos conecta con un repudio al esencialismo, lo que
implica reconocer las múltiples experiencias, las diferentes condiciones
de vida y, también, las variadas creaciones culturales que de ello resultan
(Curiel, 2005).
Buena parte de estas mujeres renuncian a ciertos mandatos articulados
en un sistema capitalista, patriarcal y heteronormativo, a la par desplazándose
23
Las mamas tienen un origen confuso, incierto y que constantemente se está rehaciendo
en la práctica concreta de la comunidad Itonama. Son un grupo de mujeres que, a partir
de danzas y cantos tanto ancestrales como eclesiales, en lengua itonama o castellano,
acompañan todas las celebraciones del territorio próximo al cabildo, independientemente
de su carácter. Son un grupo diverso y transitorio, cuyo número de participantes oscila entre
las 20 y 40; algunas han permanecido desde sus comienzos y otras acuden esporádicamente.

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104 Diana Manrique García

y desplazándonos de las lecturas de un sistema binario sexual. Desde sus


prácticas nos están hablando de un ser mujer indefinible, que se hizo, se
deshizo y constantemente se hace, sin reducirse a la genitalidad que le
acompaña o a la feminidad heterosexual y el cúmulo de signos de género
sobre ella construidos. Se construyen cotidianamente en la interacción
con otros seres – humanos o no – o en las simples prácticas de cuidado y
cura que no se fragmentan por las discusiones de la necesidad de baños
diferenciados para “hombres” o “mujeres” por en cuanto las necesidades
fisiológicas terminan en los verdes aledaños al camino o en la única fosa
séptica del lugar.
Ya intuimos que estamos frente a expresiones de vida que escapan a
los códigos occidentales, son “lenguajes otros” que discretamente pueden
estar aportando a sanar heridas. Mujeres que encarnan sentidos de unidad
con el cosmos, el rezo que no es profano ni sagrado, solo agradece y
pide a la tierra, a sus ancestros y divinidades la sabiduría para atender un
parto, cuidar una herida, sanar un cuerpo doliente, pero también hacen
pedidos de lluvia para el inicio de la siembra. Un espacio fértil femenino
que puede leerse como un accionar silencioso y rebelde traducido en
arte, en belleza, en un momento de huir a la violencia prolongada que
ha hecho de la mujer pobre – principalmente negras e indígenas – su
principal campo de opresiones. Este escenario afronta, desde el ser, las
dominaciones múltiples, apuntando a la reivindicación de las relaciones
comunales, hecho clave para atentar contra el sistema de género colonial/
moderno en su afán de disolver forzada y estratégicamente los vínculos
de solidaridad práctica entre las víctimas de la dominación y explotación
que constituyen la colonialidad (Lugones, 2014).
Finalmente me atraviesa e interpela: ¿es posible aproximarnos a las
realidades de estas sabias y curanderas fuera de los códigos de un saber
hegemónico? o mejor aún, ¿en sus propios códigos? Es difícil tener hasta
acá respuestas, la reflexión que nos queda y que instalamos dentro de esta
discusión académica es la necesidad vívida de prácticas de investigación
que sean capaces de reconocer y producir conocimientos situados (Harding,

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Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan 105

1998). De hacer visible lo que se esconde a nuestros ojos y en este sentido


ser capaces de compartir la complejidad de mundos que podemos sentir
durante el privilegio del “trabajo de campo”. Abrir nuevas posibilidades
de compartir lo que vamos experienciando es también ir más allá de los
formatos académicos tradicionales, ello invita no sólo a deconstruir nuestro
mismo pensamiento como investigadores/as, sino a abrir los sentidos
para identificar las líneas móviles de los universos ontológicos que nos
atraviesan constantemente.

Diana Manrique García es Doctora en Desarrollo Rural por la Universidad Federal de Rio
Grande do Sul y docente de la Facultad de Salud y Ciencias Sociales de la Universidad de
las Américas, Chile.
 alunadiana@gmail.com

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Recibido: 8 dic. 2021.


Aceptado: 29 mar. 2022.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 84-107.


108 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente
DOSSIÊ
Rocha
108

http://doi.org/10.1590/15174522-120600

Traços de antinegritude em Cabo Verde


José Carlos Gomes dos Anjos*
Eufémia Vicente Rocha**

Resumo
A reflexão proposta toma o caso de Cabo Verde para ilustrar a hipótese de que nem
mesmo nas nações africanas pós-coloniais se desmantelou o racismo colonialista
do quotidiano e, sobretudo, não se conseguiu demolir a antinegritude como afeto
predominante na configuração do socius pós-colonial. O texto compreende três
momentos analíticos, tomando como objetos: (i) comentários de internautas leitores
de um importante jornal do país a respeito de um dos traços mais racializados do
carnaval cabo-verdiano; (ii) reflexões de imigrantes a respeito da relação entre
cabo-verdianos e os imigrantes africanos; (iii) a história de vida de um imigrante,
para descortinar nela traços de antinegritude tramando as relações dos próprios
imigrantes entre si.
Palavras-chave: racialização, ontologia do negro, racismo colonialista, africanidade,
discursos antinegros

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.


** Universidade de Cabo Verde, Praia, Santiago, Cabo Verde.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 109

Traces of anti-blackness in Cape Verde

Abstract
This paper takes the case of Cape Verde to illustrate the hypothesis that not even
in post-colonial African nations the colonialist racism of everyday life has been
dismantled, and that, above all, anti-blackness has not been dismissed as the
predominant affection in the configuration of the post-colonial socius. The text
comprises three analytical steps, taking as objects of reflection: (ii) comments posted
by readers of an important online newspaper in the country regarding one of the
most racialized features of the Cape Verdean carnival; (ii) reflections of interviewed
immigrants about the relationship between Cape Verdeans and African immigrants;
(iii) the life story of an immigrant to uncover in it traces of anti-blackness plotting
the relations of immigrants themselves with each other.
Keywords: racialization, black ontology, colonialist racism, africanity, anti-black discourses

Introdução

N
as últimas décadas, Cabo Verde tornou-se um país que recebe
um afluxo significativo de imigrantes, além de turistas. Os
constrangimentos impostos pelos serviços de fronteira aos imigrantes
africanos de países vizinhos1 e um cotidiano de estigmas em relação a esse
tipo específico de presença africana2 têm gerado um ressurgimento de
problematizações quanto às identidades pertinentes a esse arquipélago.
Internamente, as fissuras identitárias entre as ilhas também parecem
marcadas pelo espectro da presença denegada do negro.
Um visitante estrangeiro desavisado que passasse pela ilha de Santiago
e, após, visitasse a ilha de São Vicente (as duas principais das dez ilhas
do arquipélago) provavelmente não perceberia nenhuma diferença nos
fenótipos das pessoas de uma ou outra ilha. Diria, provavelmente, que são
todas negras com algum grau de mestiçagem. Mas é comum que pessoas
1
Sobre este assunto, veja-se Do Canto (2020).
2
Ver Rocha (2009). Além desse trabalho, a pesquisadora tem publicado outros textos sobre
a imigração oeste-africana nesse arquipélago.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


110 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

em São Vicente, mesmo quando são bem escuras, ainda se pensem como
fisicamente mais próximas de um imaginado polo branco e que imaginem
os badius (os oriundos) da ilha de Santiago como essencialmente tão negros
quanto africanos. Não é objetivo deste artigo superestimar o fenômeno para
além de seu enquadramento mais comum – como afirmações identitárias
e de tipo bairrista, sem consequências significativas na política nacional
além das reivindicações costumeiras de regionalização e descentralização.
O que nos interessa aqui são as mobilizações do idioma da antinegritude,
tanto por parte de cabo-verdianos como de imigrantes, e sua surpreendente
naturalização num contexto em que os traços de fenótipo não são, a olho
nu, substantivamente diferentes no percurso de uma ilha como Santiago
para outra como São Vicente (os dois polos dessa oposição bairrista) ou
entre caboverdianos, em geral, e os imigrantes africanos de países vizinhos
estigmatizados sob a genérica exodefinição de Mandjaku. Os imigrantes
oriundos de países como o Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Nigéria, e outros
países da costa ocidental africana geralmente rejeitam essa categoria
homogeneizadora e pejorativa que advém de Manjaco, o nome neutro
de uma das muitas etnias da Guiné-Bissau, e que, no modo como se viu
sobrecarregado de estigmas em Cabo Verde, revela a antinegritude no
arquipélago. Moeda corrente, mandjaku se tornou o outro nome do negro
(e/ou do africano) mais profundo do que a negritude aceitável nessas ilhas.
O tema deste exercício emerge no pano de fundo das discussões sobre
as condições de possibilidade de uma ontologia do negro na modernidade.
Este ensaio expõe a impossibilidade de se levar uma vida de negro com
importância nesse arquipélago, mas também busca retirar do fundo desse
desprezo – pela vida de negro – as possibilidades de um outro modo de
se ser nação num continente negro.
Mas, antes de iniciarmos, impõe-se esclarecer os conceitos que
mobilizamos para esta análise. Tomamos por racismo colonialista um tipo
de interação quotidiana em que sujeitos que se constituem como brancos
estão em posição de vantagem em relação a sujeitos definíveis como não
brancos, pelo simples fato das diferenças de fenótipo, em que os traços
físicos de uma emblemática origem europeia carregam pressupostos de

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 111

supremacia moral e intelectual. A hipótese que atravessa este artigo é de


que essa modalidade de racismo não se confunde com o sentimento de
antinegritude que pressupõe uma humanidade incompleta nos corpos
sobrecarregados de traços de africanidade, mesmo nas situações em que
brancos não estão presentes nas interações cotidianas. Para cotejarmos essa
hipótese principal, que distingue racismo de antinegritude, na primeira parte
do artigo mobilizamos um corpus de textos escritos por leitores (a título
de comentários de notícias) de um dos principais jornais cabo-verdianos
online: o Notícias do Norte.3 O tratamento analítico que daremos a esse
corpus instrumentaliza ferramentas da análise de discurso, da análise de
conteúdo e da frame analysis. A escolha desse jornal deve-se ao próprio
contexto da contraposição bairrista entre badius e sampadjudus em Cabo
Verde. Na sequência, buscamos esclarecer o contexto dessa contraposição,
mas já mobilizando o corpus de discursos antinegros do referido jornal.
Na segunda parte do artigo, analisaremos posicionalidades de imigrantes
africanos estigmatizados no arquipélago sob a categoria mandjaku, a partir
de entrevistas desencadeadas pelos autores do artigo e analisadas sob a
mesma metodologia com que tratamos os comentários no Notícias do Norte.
Na primeira parte do artigo, sustentamos que, na reação de uma
parte da pequena-burguesia4 da cidade de Mindelo às coreografias mais
3
Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/.
4
É Bourdieu (2007) quem melhor chama a atenção para a ansiedade da pequena-burguesia
para impor o reconhecimento de sua importância social e cultural em demonstrações
insistentes de descontentamento em relação ao sistema social que a ameaça de
desclassificação. No caso da ilha de São Vicente, o sistema social ameaçante é conotado
como o centralismo da capital. As tomadas de posição nas margens de um jornal online,
aberto a comentários de leitores, podem ser aqui lidas como expressões de uma pequena
burguesia intelectual em busca de uma improvável redistribuição de recursos para afirmação
de continuidade da primazia no arquipélago da pequena burguesia colonial de Mindelo
durante o colonialismo português. Chamamos aqui de julgamentos pequeno-burgueses um
tipo de opinião sobre assuntos tidos como político-culturais que se pretende suficientemente
abalizado e pertinente para merecer a rodada dos debates de leitores de um jornal online.
Se, como sugere Bourdieu, “a probabilidade de produzir uma resposta propriamente política
para uma pergunta constituída politicamente cresce à medida que se sobe na hierarquia
social (e na hierarquia das rendas e dos diplomas escolares)” (Bourdieu, 2007, p. 400),
no caso cabo-verdiano deve ser propriamente pequeno-burguesa a pretensão de opinião
abalizada que, no ato, expressa a ausência de recursos políticos para a sua alocação nos
espaços de tomada de decisões administrativas e governamentais.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


112 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

“negras” do maior carnaval do arquipélago, reproduzem-se as características


essenciais da dupla inseparável, a negrofilia à flor da pele, que disfarça uma
negrofobia de fundo. Antes da independência nacional, em 1975, embora
Praia, na ilha de Santiago, fosse a capital dessa província colonizada por
Portugal, Mindelo, na ilha de São Vicente era, em meados do século XX,
uma cidade mais urbanizada na esteira da constituição de seu porto como o
mais importante do arquipélago. A construção do principal estabelecimento
de ensino nessa ilha do norte do arquipélago, a intensa presença de navios
estrangeiros e o afluxo de estudantes das demais ilhas para esta que se
apresentava como a capital cultural do arquipélago favoreceram uma cultura
com pretensão cosmopolita.5 A descolonização, em 1975, rapidamente
desfez essa geografia e o imenso crescimento da burocracia estatal pós-
colonial fez com que a capital – Praia – passasse a concentrar a maior
parte dos recursos do arquipélago e a abrigar a maior parte dos quadros
da estrutura administrativa governamental. Mesmo que uma boa parte das
posições administrativas seja ocupada por quadros com origens parentais
em outras ilhas, por terem nascido ou residido há muito em Santiago,
parecem, grosso modo como badius e essa centralização administrativa é
denunciada por boa parte das classes médias do norte do arquipélago como
uma espécie de colonização interna. O que se tem nas frequentes tomadas
de posição contrárias à centralidade da capital é a manifestação de uma
disposição a se fazer recuperar como vanguarda cultural do arquipélago e
uma forma de obsediar os pequenos burgueses em ascensão localizados
na capital. Bourdieu nos lembra que:

o ressentimento encontra-se, evidentemente, na origem das tomadas de


posição reacionárias ou revolucionárias-conservadoras dos pequeno-burgueses
em declínio que, preocupados em manter a ordem por toda parte, tanto na
moral doméstica quanto na sociedade, investem na indignação moral contra
a degradação dos costumes toda a sua revolta contra a degradação de sua
posição social (Bourdieu, 2007, p. 409).
5
A pretensão de cosmopolitismo da cidade é problematizada por Daun e Lorena (2017)
em termos com os quais basicamente concordamos. Paradoxalmente, os mindelenses
reivindicam uma tradição cosmopolita que funciona como mecanismo de fechamento
e distinção cultural em relação ao resto do arquipélago e ao intenso fluxo de imigrantes
africanos para o arquipélago.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 113

Como a linha divisória entre a ilha de badius (supostamente dominante)


e as demais ilhas de sampadjudus é pensada também como uma linha
de cor, em que os badius seriam os mais negros e os sampadjudus quase
brancos, propomos pensar, nas seções seguintes, sobre as condições de
possibilidade de afetos antinegros, num país de negros.

Das reviravoltas de um blackface


Mindelo é reconhecida como a capital do carnaval cabo-verdiano.
Os desfiles, com seus carros alegóricos exuberantes, irradiando algo do
glamour dos desfiles do Rio de Janeiro numa situação de maior proximidade
entre o público e as escolas, provocam um clima de efervescência de
grande intensidade de calor humano. Aqui, gostaríamos de pontuar um dos
momentos particularmente intensos desse carnaval, o desfile dos Mandingas,
um dos pontos altos desse que é o maior carnaval das ruas de Cabo Verde.
Nesse ponto, jovens da periferia de Mindelo, intensamente pintados de um
escuro oleoso, exibem uma alegórica ferocidade das tribos africanas com
flechas, lanças e barbatanas ao som dos tambores em repique. O que faz
brilhar o momento é que esses jovens já pretos, pintados com um óleo e/
ou restos de carvões dos carburantes de motores de carros ou de pilhas
elétricas parecem mais negros ainda e agitam suas armas em direção a um
público em contágio. No modo como encenam uma suposta selvageria
africana, poderíamos argumentar que se trata de uma versão crioula do
blackface que marca uma das formas de escárnio antinegro particularmente
desenvolvido nos Estados Unidos. Pode ser o caso, mas nada justifica a pouca
atenção às dimensões raciais do fenômeno, quando, de forma evidente,
se performatiza uma negritude exuberante e esteticamente agressiva. As
poucas etnografias do carnaval de Mindelo colocam a tônica nas relações
de classe e extratos de prestígio, e no carnaval como estando em ruptura
com as coincidências entre bairros e estratos sociais, como se na irreverência
dos segmentos suburbanos estivesse ausente qualquer dimensão racial.6 O
6
A maior parte dos estudos que relacionam os mandingas e questões raciais exploram
as afirmações explícitas de desidentificação dos praticantes com supostas raízes africanas
(Daun; Lorena, 2017; Dias, 2016). Por outro lado, a etnografia de Neves (2018) carrega
entrevistas dos brincantes que acentuam a ancestralidade africana reivindicada na forma
mandinga de brincar o carnaval.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


114 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

que esses enfoques deixam de fora é um questionamento sobre a dinâmica


inconsciente do desejo que anima esses protagonistas e demais participantes
do carnaval e espectadores.
Os mandingas se configuram como uma performance que reclama uma
câmera fotográfica e exige que essa seja a de um branco, preferencialmente
um turista. A hipótese, aqui, é que, ao ativar as dimensões fóbicas da negrofilia,
os jovens recriam, exigem e caricaturam o olhar branco amedrontado como
parte exigida e não explícita da cena. Um evento puramente espetacular,
uma explosão de virilidade que não é tanto a performance do que teriam
sido os mandingas, mas de como os africanos foram capturados pelo
olhar branco – os mandingas de Mindelo são a performance do olho do
colonizador, o que essa vista de cima teria capturado para tornar fungível.
A reconstituição em carne viva do que o branco queria ver no momento
da captura e da desumanização dos corpos negros disponibilizados para a
escravidão abre uma brecha de indecidibilidade na temporalidade linear
dos processos de emancipação negra.
Mestres de sua apresentação, os mandingas controlam e dirigem o
olhar branco para o simulacro e, no gesto, denunciam o olhar colonial que
cria o estereótipo. Essa performance não apenas contém a poesia do ser
do negro como estado cadavérico, mas no ato reclama e sustenta o olho
branco, utiliza e explora essa pulsão, a pulsão do prazer do consumo do
corpo negro.
Se esse tipo de performance – como sugere Marriot (2016), para a
poesia de Césaire – pode ser tomado como uma estética da negritude, é
precisamente na medida em que eclode nela algo simultaneamente fúnebre
e fantástico, algo irredutivelmente mítico, um sinal de uma transcendência
inevitável, mas incognoscível. Fúnebre na exata medida em que remete a
ancestrais falecidos sem relíquias e sem memórias, mas sobretudo porque
remete à verdade do estado cadavérico do ser do negro (Marriott, 2016;
Sexton, 2008). É como um significante surgido do nada que a negritude
dos Mandingas ressuscita o que já se considera socialmente morto. Esse
sinalizador se posiciona, por assim dizer, no espaço definido pelo racismo

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 115

para o ser do negro. Melhor dizendo, no não ser em que o racismo faz
o espectro do negro emergir como uma zona onde a vida e a morte
nada significam. Essa negritude torna-se, assim, portadora de uma nova
performatividade, daquela que fala por aqueles que estão no além, na
petrificação da escuridão.
Tal como na definição de negritude de Césaire, a performance mandinga
pode ser apreciada como o resultado de uma recusa que é também uma
reanimação, dando nova vida ao socialmente morto (Marriot, 2016).
Numa cena que envolve uma palpável ansiedade erótica que escapa de
uma masculinidade negra suburbana em exibição de si mesma como um
outro, a tensão entre a distância e a vontade de afirmação de uma presença
pulsante é o que traz a sensação de transcendência. Só aparentemente um
ato de ridicularização do negro selvagem, a encenação parece mais um
percurso por si mesmo como um outro, o devir negro de uma juventude
banida numa cidade cuja elite com frequência não se pensa como negra.
Esse devir selvagem se faz, portanto, uma visita improvável a dimensões
reprimidas da história cabo-verdiana, o ato de frequentar o insuportável
só possível àqueles que carregam forças suficientes de escuridão para uma
operação arriscada de deslocamento de si em direção ao inumano.
A verdade exposta na performance é a de que o ser do negro não se dá
sem essa dobra em que a pessoa se faz espectadora de si mesma, o humano
frente à sua não humanidade, a emergência da escuridão como abjeção no
cerne de reivindicações precárias por dignidade humana. Sem dúvida, os
mandingas recriam os rituais de espetacularização da condição negra que
estimularam o desejo de posse do corpo negro, consumado na escravidão,
“uma força de trabalho entusiasta e insensível à dor” (Ajari, 2019, p. 176).
Traz-se de volta o tempo do corpo negro como o espetáculo do aquém do
humano, num tipo de ato radical que excede tanto o significado quanto
o julgamento (Marriott, 2016).
Ao se oferecerem aos espectadores em obscena teatralidade como o
percurso por uma alteridade, enquanto um si mesmo essencial, a força da
representação de negritude acusa a exclusão constitutiva que fundamenta

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


116 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

a partição moderna entre civilizados e selvagens. Se o espetáculo impregna


e seduz, é porque traz a negritude como um significante surgido do nada,
ressureição do socialmente morto. Essa encenação da economia libidinal do
olhar europeu sobre os africanos poderia ser vista como a reconstituição dos
pressupostos da maquinaria do sadismo transatlântico. A encenação remete
aos modos como se engendraram as possibilidades de instrumentalização
do corpo negro como corpo selvagem, substituível e fungível (Hartman,
1997; Wilderson III, 2010).
Mais ainda, remete aos modos como os corpos negros são enquadrados
na ordem dos desejos, quando os dirigentes do país apostam na ideia de
que a pobreza precisa de uma saída e que ela reside na indústria do turismo
e das possibilidades de que tudo se torne vendável sob uma insustentável
passagem consumista dos outrora colonizadores.7 Quando vidas são
convertíveis em fontes de prazer e de distração para o branco, a periferia
de Mindelo reencena o desastre que permanece sendo o desencontro entre
europeus e africanos. Ao encenar a ontologia racial moderna no seio da
qual a única relação possível entre o corpo branco e a carne negra é uma
relação de uso, os Mandingas do carnaval mindelense expõem a fenda da
nervura do mundo e a insuportabilidade dessa aparição é acusada pelas
classes médias de Mindelo exigindo uma rápida reterritorialização. É essa
reação quase branca das classes médias de Mindelo que nos propomos
pensar na seção seguinte.

Sob os olhos das classes médias mindelenses


Em janeiro de 2013, internautas, leitores do jornal Notícias do Norte
reagiram enfaticamente à notícia de que o então Ministro caboverdiano da
cultura, Mário Lúcio Sousa, pretendia levar os Mandingas para desfilarem na
capital durante um mês, o que privaria Mindelo de um de seus mais fortes
atrativos carnavalescos naquele ano (“Mário Lúcio quis levar Mandingas...”
2013). O evento foi explorado à exaustão por comentaristas do referido

7
Confronte-se o artigo de Anjos (2012) acerca do turismo sexual no arquipélago.

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 117

jornal, lugar de frequente expressão identitária pequeno burguesa8 de


Mindelo. Ao projetar sobre o badiu a efetividade da selvageria expressa
na fantasia dos mandingas, o olhar médio de Mindelo dá um passo a mais
para escapar da negritude, manipulando uma suposta distância entre mais e
menos mestiços, a ilha mais e menos negra, a cultura mais e menos africana.
As classes médias mindelenses projetam uma parte do arquipélago como
o lado negro, sobre o qual é possível projetar a distância da inumanidade
do puramente negro. Uma das formulações de sentimento antinegro no
comentário a essa notícia foi quando um dos leitores escarneceu:

Ma levà mandinga pa kè??? 1 lugar simà Praia xei de mosca badiu e mandjck,
inda crè nòs mandinga de fantazia? Sò se era palhiass, pa mod ès È palhiass ma
mute fei, pa fazè arri algem… viva NòS SONCENT!!!!!!!!!!!!!!!!! (comentário
na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 2013).

[Mas, por que levar os mandingas se a Praia já é um lugar de moscas, badius e


mandjakus. Ainda querem levar os nossos mandingas de fantasia? Só se fosse
para se fazerem de palhaços, porque eles – badius e mandjakus – são palhaços,
mas muito feios para que alguém ria deles. Viva o nosso São Vicente!].

Ao franquear o espaço entre o ser e o simulacro e se projetar do lado


humano da fronteira antinegra, esse olhar mindelense o faz no lugar de
pessoas de cor, mas não negras. O erotismo desses jovens negros travestidos
se decompõe sob esse olhar das classes médias no ácido da cisão entre o
mandinga de fantasia e o mandinga real, entre a performance e a realidade.
O comentário captura a ginga mandinga e a reduz a um típico blackface,
supõe que os Mandingas de Mindelo são de fantasia, mas as pessoas da
Praia carregam algo de próximo ao que são realmente os mandingas.

8
É ainda Bourdieu quem nos lembra o quanto é pequeno-burguesa a própria relação com
o jornal que se lê como “jornal de opinião”. Se seguirmos a sociologia da leitura de jornais
que nos propõe Bourdieu em A distinção, seremos tentados a estender a Mindelo a hipótese
de que as tomadas de posição nas margens destinadas aos comentários expressam bem a
pretensão pequeno-burguesa à opinião pessoal correlacionada à “desconfiança em relação
a todas as formas de delegação, sobretudo, na política” e que “inscrevem-se logicamente no
sistema das disposições próprias a indivíduos, cujo passado e projeto baseiam-se na aposta
da salvação individual, escorada nos dons e méritos” (Bourdieu, 2007, p. 389).

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118 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

Apoiando-nos nas explorações psicanalíticas afro-pessimistas (Marriott,


2000; Sexton, 2008) buscaremos reconstruir a economia libidinal em
que se insere esse tipo de apreciação antinegra. Nosso apego a escrever
visando o inconsciente racista não é tanto um esforço para deslocar as
razões conscientes que os sujeitos manifestam para se pintarem de preto,
mas um esforço para entender a multiplicidade de linguagens que reside no
evento e a forma como essas linguagens estão a ser mobilizadas em relações
de poder que manifestam tanto interesses e engajamentos conscientes
quanto desejos inconscientes. Trata-se de pôr em jogo uma economia de
descrição diferente daquela da redução dos mandingas à expressão dos
interesses das classes suburbanas de Mindelo. Se nos impõe levar em conta
com rigor um contexto sociopolítico permeado pela colonialidade, local
e global, e o modo como esse se articula com estruturas micropolíticas e
infrapessoais de constituição racial. Sem uma compreensão da materialidade
do funcionamento de um inconsciente racista não se poderia entender que
vários e diferentes comentaristas da mesma notícia estejam a enfatizar o
paralelo entre a fantasia dos mandingas e a realidade dos badius.

Eu Pedro Brito digo assim para kem presiço de mais mandinga se ai a MUITOS.
(comentário na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 2013).

[Eu Pedro Brito digo isso: por que precisam de mais mandingas se há muitos lá?].

E para que não haja dúvidas sobre o sentido largamente compartilhado


da assertiva, vemos um mindelense a reclamar, em tons de náusea, em
relação à moeda corrente do desprezo sampadjudu pelo badiu:

sinto-me envergonhado de ser mindelense, sinceramente, nós os mindelenses


não keremos enxergar aquilo k somos. na minha modesta opinião o ministro
quiz simplesmente mostrar a cultura mindelense a outras regiões devíamos
era sentir orgulho. com toda certeza se fosse um convite para mostrar a nossa
cultura aos estrangeiro num país fora a reação seria diferente. pior ainda
alguns retardados a chamar o povo de santiago de mandingas, daahhh. k
barbaridade!! Os santiaguenses estão nem aí pra nossas… (comentário na
notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 2013).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 119

A antinegritude é aqui a estratégia de pessoas negras que, para


sobreviverem a um mundo de supremacia branca, precisam se pensar como
não tão negras. Desse modo, ao tempo em que fornecem cobertura para o
humanismo antinegro emanado da Europa colonialista, estão compelidas
a encontrar um lugar num imago humano universal que é, na verdade,
um imago específico e singular – que elabora a essência da humanidade
como brancura, como não negritude. Acredita-se, assim, estar no direito
de se beneficiar do sistema de despojos da supremacia branca planetária
pelo menos ao nível do arquipélago.
Ao oferecer “seus” mandingas “de fantasia” ao cultivo da negrofilia, as
classes médias de Mindelo intermedeiam a negociação da identidade da
juventude suburbana de Mindelo, expõem seu “produto” ao feitichismo
e recriam a cena do voyeurismo branco como sintoma de uma autoilusão.
Assim, os mandingas que podem estar a vivenciar uma afirmação das
potências da negritude são capturados pelo discurso identitário bairrista
e reconvertidos numa abjeta forma de blackface. É o privilégio da ilusão
que as classes médias reivindicam sob a prerrogativa de que os nossos
mandingas são de fantasia. Do alto de seus comentários, o olhar das classes
médias mindelenses faz de sua visada uma coextensão dos olhos do império
e goza da miragem negra como se esta fosse um outro de si mesmo,
autocontemplando-se como os brancos negrófilos de outrora em suas
varandas coloniais. Ao fazer turistas brancos pagarem pelas suas próprias
fantasias de não negros, esse olhar mindelense se instala num lugar de
sujeito na “obscena teatralidade do comércio de escravos”, um lugar de
intermediários na cena de projeção de desejos brancos sobre corpos negros.
Que cena contempla esse olhar fortemente conformado pelos estigmas
da antinegritude? O que esse olhar percebe é a negritude não como vida,
mas como uma morte social a ser rejeitada. É certo que, para os jovens
dançarinos, essa mesma morte é agora abraçada e realizada de forma
diferente do que o cruel riso das classes médias. Isso significa que não há
racismo necessariamente na performance, pois o racismo não é estritamente
uma questão de significado, mas de desempenho (Marriott, 2000) – nesse

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120 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

caso, do desempenho de quem compara os mandingas e as pessoas “da


Praia” cheia de moscas, gente feia e africanos.
Mesmo que a performance mandinga seja distinta da cruel política
da blackface, o modo como é capturada pelo olhar das classes médias
de Mindelo traz à tona a verdade do estado cadáverico do ser do negro.
Esse olhar se posiciona onde o racismo fundamenta o ser do negro como
uma zona morta em que a vida e a morte negra nada significam. O que
os mandingas desenvolvem nas ruas é uma poética da negritude que
encontra sua mais acabada decifração nos códigos dos coveiros da negritude,
nessas classes médias que lutam para abandonar a pele como uma cobra
envelhecida. O que o olhar mediano de Mindelo capta é o negro como o
cômico, o feio, o contagioso, o vergonhoso, simbolizado belamente pelos
mandingas. Nesse encontro com o negro pobre, feio, cômico, o olhar
mediano é a risada racista que articula uma cumplicidade de sobrevivente
com o riso de um homem branco imaginário. A vergonha significa aqui a
revelação explosiva da cumplicidade com o racismo do qual, nós negros,
não podemos escapar nem suportar a não ser ao custo da covardia. A
promessa de um imago humano universal convida as pessoas que podem
se apresentar como sendo de cor, mas não negras, a abraçarem um lugar
quase branco num mundo rachado por hierarquias raciais.
O problema é que esse olhar mindelense não está errado. Pessoas
racialmente negras não podem estar vivas na coetaneidade do devir
branco do mundo moderno, porque experimentam o traço de raça no
humanismo subjacente a esse progresso que as desloca constantemente à
condição de artefatos pré-humanos. Nossa leitura pode até trazer à tona os
afetos negativos que se abateram sobre o comentarista em seu riso racista
imaginariamente compartilhado numa roda branca, mas não há como
escapar do cômico e do feio, a alienação que segue o rastro de qualquer
evocação pública do negro.
É por isso que o desejo da supremacia branca subjacente a esse desespero
por se apresentar como pessoas de cor, mas não negras, membros plenos da
comunidade humana e que reforça a exclusão constitutiva das pessoas que
não podem escapar das insígnias da negritude não atinge, no arquipélago,

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 121

apenas os mindelenses. Esse reforço da exclusão por participação júnior


no empreendimento da supremacia racial branca é vivenciado também na
partição entre cabo-verdianos e mandjakus na ilha de Santiago.

Antinegritude na ilha mais negra


Voltemo-nos agora para a figura da imigrante residente naquela que
poderia, segundo a geografia cabo-verdiana das nuances raciais, ser tida
como a mais negra das ilhas do arquipélago. Encravada no meio da ilha
supostamente mais negra do arquipélago, é em Assomada que encontramos
Amina, uma enfermeira guineense, assediada pelos serviços de imigração,
pelo racismo da professora da filha e embrenhada no trabalho desqualificado
de vendedora de rua de alimentos prontos. Amina julga a situação de “sem
papel” como geralmente frágil. Tem dificuldades para lidar com a burocracia
dos serviços de fronteira, percebe que ela é feita para dificultar. “Pedem-nos
todos os papéis do mundo, nós os procuramos e trazemos, mas não nos
dão a residência à mesma”. Sente-se insegura, não são comuns as rusgas
aos estrangeiros, mas ela sabe que corre o risco de ser deportada. “Na terra
dos outros, para teres estabilidade tens de ter documento. Tu estando na
terra de alguém sem documento, terás estabilidade?” As dificuldades na
legalização são feitas de modo a produzir um efeito de interiorização da
descartabilidade. Amina percebe o fato de já estar em Cabo Verde há mais
de cinco anos, tendo filhos que nasceram no país, como uma injustiça.
“Não concordo com isso. Ainda mais, eles pedem papéis, procuras todos
eles e levas, mesmo assim não te dão”.
Na literatura sobre a imigração em Cabo Verde, já está dado que as
pessoas provenientes dos países da Comunidade Econômica dos Estados
da África ocidental (CEDEAO) têm lidado com um grande constrangimento
relacionado à sua situação legal. Supõe-se que essas dificuldades têm a ver
com a situação mais geral da imigração sob a globalização tardia do capital
(Furtado, 2012, 2016; Do Canto, 2020, 2021). Gostaríamos de acrescentar
a essa explicação o modo de funcionamento da antinegritude, que envolve
o fenômeno quando os migrantes são africanos em Cabo Verde. Como o

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direito internacional está conformado de modo a assegurar a hegemonia


euro-americana, os dispositivos regionais africanos de controle de fluxos
migratórios funcionam como arremedos dos dispositivos europeus de
rejeição à figura do migrante de terceiro mundo. No caso cabo-verdiano,
essa lógica da importação dos modelos ocidentais de controle dos fluxos
migratórios assume cada vez mais a forma caricatural de uma rejeição
branca ao imigrante negro. A dimensão racial das políticas de contenção
das migrações permanece implícita quando são os africanos subsaarianos
os mais constrangidos nas fronteiras e nos processos de legalização em
Cabo Verde. As elites cabo-verdianas permanecem pensando o arquipélago
nas mediações de poder norte-sul, buscando tirar partido da situação de
apartheid global, posicionando-se ele próprio como uma fortaleza para si
e como parte da muralha que deve estancar o afluxo de negros pobres
aos países afluentes.
Amina vive em Cabo Verde há quase seis anos e permanece sem
documento, embora tenha tentado legalizar-se por duas vezes. Nascida
em Bissau, veio para estar com o marido que já é imigrante no país há
uma década. O esposo de Amina é professor de Educação Física numa
escola secundária e, segundo ela diz, “trava guerra com ele todos os dias a
propósito dessa opção por Cabo Verde”. Amina é enfermeira de formação
e exerceu essa profissão na cidade de Bissau durante 11 anos no Centro de
Saúde de Cuntum-Madina até ser iludida pelo marido que lhe asseverou que
teria trabalho garantido como enfermeira quando viesse para Cabo Verde.
Mesmo sabendo que ele se opunha a ela sair de casa e trabalhar fora já
enquanto em Bissau, Amina arriscou quando os seus pais, um carpinteiro e
uma bidera9 naturais da região de Biombo, ambos sem instrução formal, da
etnia Papel e residentes em Bissau, a convenceram de que essa era a decisão
mais acertada; afinal, o lugar da mulher é junto do marido e dos filhos.
Quando Amina destaca sua incompreensão perante o sistema de
regularização dos imigrantes, ela critica o fato de suas crianças, mesmo
9
Nome dado às mulheres comerciantes “informais” na Guiné-Bissau e que segue com elas,
também, na imigração.

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 123

quando nascidas em Cabo Verde, não serem reconhecidas automaticamente


como nacionais nativos. No seu entendimento, esse passo seria o mais
óbvio em vez de serem tratados juridicamente como os seus pais e terem
de atingir a maioridade para submeter o seu pedido à nacionalidade cabo-
verdiana. Fica evidente que o direito internacional em que se baseiam tais
exigências de papéis não é mais do que um instrumento da luta constante
por supremacia branca planetária (Ajari, 2019).
Adiciona-se a este ponto o fato de as origens vincularem-se às
fantasias dominantes da “raça” e da territorialidade (Kilomba, 2019, p.
117), na medida em que o imigrante é atravessado por uma construção
e narrativas em torno do pertencimento, questionando-se sua posição
dentro do território nacional, e provocando uma incompatibilidade entre
si e a nação, a nacionalidade ou cultura nacional (Kilomba, 2019). Amina,
sobre essa matéria, apreende uma relação desigual em jogo no seio das
interações com os cabo-verdianos, mas constata que em nenhum lugar
do mundo os imigrantes conseguem estar em pé de igualdade com os
“fidju di terra”,10 isto é, com os nacionais nativos. Tomada por si só, essa
declaração angustiada de Amina nos interpelaria aos dilemas éticos mais
gerais da emigração. Mas, se articulada a outros momentos de sofrimento
sob sua posicionalidade de mulher negra, somos mergulhados num plano
mais assombroso de desterro: o plano da própria humanidade. É da seguinte
forma que reportou a situação que mais a marcou em Cabo Verde e que
envolveu uma das filhas, nascida no arquipélago: “A filha mais velha é boa
aluna, muito dedicada, então, a professora dizia aos seus colegas como é
que eles deixavam uma mandjaka vir superar-lhes? A razão por que cabo-
verdianos precisam ter melhor desempenho fica soterrada sob a malha
de estigmas que tece o significado de mandjakus, no arquipélago. Amina
não se conteve e, em que pese os conselhos em contrário do esposo, foi à
escola. “Fui dizer à professora para não chamar a minha filha de mandjaka,
que ela é humana tanto quanto os seus colegas e que se estes não têm
cabeça para aprender a matéria e ela sim, que ela é ela”. Na concepção
10
Filho da terra.

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da professora, os cabo-verdianos têm o dever, o compromisso de serem


os melhores alunos do que uma mandjaka e, supostamente, isso é uma
condição inerente ao ser autenticamente cabo-verdiano. No mínimo, é o que
a professora espera deles. Depois de algum tempo em Cabo Verde, Amina
sabe que a filha confrontada está inserida no cerne de um antagonismo
estrutural entre a condição de mandjaka e a condição de humana. Quando
uma mulher negra precisa reivindicar a condição humana da filha, ela
se sabe posicionada no ponto em que a negrura desliza em direção à
inumanidade. Foi dizer à professora para não a chamar de mandjaka, que
ela é humana – essa oposição entre humanidade e a condição de mandjaka
não é inocente. Quando chama a atenção da professora para o fato de que
sua filha é humana, ela exibe angustiada um alçapão sob os pés, a negrura
como nervura do mundo, o ponto relativo que qualquer corpo negro pode
ocupar e que é o do deslizamento para o absoluto, o aquém do humano.
Em sua reclamação deslocada, Amina nos lembra a condição mais
fundamental da mulher negra num mundo antinegro: a de portadora de
um natimorto, de alguém cuja condição de humano se dissolve no próprio
gesto da demanda de verificação. Não se trata aqui da parábola da luta
por reconhecimento. Antes da demanda “reconheça minha filha como
humana”, subjaz a interrogação fundamental “o que preciso fazer para
que minhas crias sejam tomadas como humanas se não basta criá-las para
serem melhores alunas?”. Quando alguém precisa dizer o que deveria ser
óbvio, redundante e banal, “minha filha é humana”, o que fica implícito
é que se trata de uma humanidade sob verificação, o que não deixa de
ser a constatação da inumanidade da trama de relações em que o ser se
oferece como negridão.
Sigamos a percepção aguda da migrante submetida a essa inumanidade
fundamental. Amina percebe a discriminação a que é submetida como
sendo efetivamente racial e contrasta a situação com a de uma conterrânea
sua, tida “por cabo-verdiana, porque tem cor”. A essa migrante, que tem
um fenótipo mais próximo do tido como mais comum em Cabo Verde, diz
Amina que nunca a tomam por guineense. E acrescenta: “Eu vejo outros

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 125

cabo-verdianos mais pretos do que nós, mas não falam que são mandjakus.
Mas, a nós eles chamam. Eu também não gosto disso; considero que é uma
discriminação mesmo.” Em princípio, é a diferença de fenótipo que define
quem são os mandjakus ou não. Mas, apenas em princípio. É a evitação da
possibilidade do contágio que demarca a fronteira na cor da pele. Mas, numa
nação de negros, fronteiras na cor da pele não deixam de ceder espaços
para incongruência entre o fenótipo e a escuridão esperada. É contra essa
inconsistência que Amina esbraveja: “cabo-verdianos mais pretos do que
nós”, não são tidos como mandjakus e a conterrânea guineense que é tão
mulata quanto a maioria dos cabo-verdianos também não é designada.
Se o cabo-verdiano tão escuro quanto um mandjaku não é mandjaku é
porque o estigma atinge uma qualidade moral sob a cor da pele; então, essa
imoralidade contagiante ganha uma geografia, são os africanos da costa.
Mas, nem todos os africanos da costa, não os de fenótipo e comportamentos
tidos como suficientemente próximos dos cabo-verdianos num plano de
embranquecimento. A negrura do mandjaku é, na verdade, apenas a
máscara. O dedo negrófobo aponta para a máscara e crê que existe algo
para além da máscara que é da ordem do espírito, mais propriamente de
uma degeneração espiritual. O que é designado como mandjaku nada é
senão a escuridão de que a cabo-verdianidade deve se desembaraçar no
plano do ser e não apenas do aparecer. Aquela feiura sintomática de uma
sub-humanidade no plano espiritual é o espectro, o lado obscuro da cabo-
verdianidade. A existência desse ponto de deslizamento absoluto para a
zona de morte social é o que as encenações de não negros, num cotidiano
pós-colonial, tentam encobrir nas supostas pequenas intrigas de humanos.
Questionada sobre o que significa ter cor, Amina refere que eles, os
mandjakus, são africanos, pretos, e que os cabo-verdianos têm cor por serem
misturados. No gesto, Amina aceita a racialização da diferença assente na
cor da pele, desde que esse sistema de classificação se estenda a outros
sistemas de diferenças que ela podia reconhecer na sua Guiné. Existem
várias raças na Guiné-Bissau – sugere – Papéis, Balantas, Fulas, enquanto
em Cabo Verde só existem duas raças, badius e sampadjudus, que só se

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distinguem pela língua e pelo que uns dizem dos outros. A aspiração cabo-
verdiana de autodesnegrificação por sobre-enegrecimento dos vizinhos é,
assim, deslocada sob os olhos da migrante. Ao reenquadrar o sistema de
classificação étnica da Guiné como sendo da mesma ordem do sistema
cabo-verdiano que diferencia badius de sampadjudus, mandjakus de cabo-
verdianos, Amina traz a raça para a vida das pequenas diferenças que
podem ser gozadas sem hierarquizações. Ao tempo, o olho da migrante
acusa a ignorância cabo-verdiana: “a grande questão – para ela – é que os
cabo-verdianos não sabem disso, ou seja, ficaram congelados no tempo”.
É notável que Amina não se veja numa linha de aprendizagem e não se
abrigue sob fluidos discursos cabo-verdianos da miscigenação. Em lugar de
abraçar a argumentação que caminha em direção à contraposição frontal
à disciplina de raça, Amina radicaliza o devaneio racial numa linha de
fuga que multiplica as possibilidades da afirmação da diferença. Às noções
consagradas de pureza racial, Amina não opõe uma identidade multirracial
que poderia ter sido reivindicada por sua ascendência multiétnica. A
migrante, de alguma forma, sabe que o discurso da identidade multirracial
cabo-verdiana intensifica a negrofobia na medida em que intensifica o
entendimento biológico de raça. Sair da cilada é para a migrante mais
racialismo e não menos como se poderia esperar. Amina despeja raça por
toda a parte em que diferenças fazem pensar em povos e assim neutraliza
o espectro da fixação do negro como a única raça por excelência, por sua
contraposição fundamental ao branco. É assim que Amina localiza os cabo-
verdianos, oferece-lhes uma imagem – racistas antinegros – e lhes propõe,
generosamente, uma miragem – um mundo panrracializado.

A antinegritude entre guineenses em Cabo Verde


Poder-se-ia até aqui pensar que uma antinegritude tão ostensiva
numa nação em que a quase totalidade das pessoas nativas são negras
é uma excepcionalidade cabo-verdiana. Mas, bem-vistas as coisas, neste
mundo antinegro, não seria de se estranhar se, na extensão da pesquisa,

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 127

ainda pudéssemos encontrar a negrofobia estruturando relações mesmo


entre migrantes. Mas, ainda é uma antinegritude mestiça funcionando na
relação intracomunidade de guineenses. Oni veio para Cabo Verde corria
o ano de 1987, quando tinha 18 anos e acabara de complementar o
secundário. Sendo oriundo da classe média de Bissau, justifica sua migração
por motivos mais políticos do que econômicos. A chegada de Nino Vieira
ao poder e a possibilidade de vir a ser convocado para o serviço militar são
apresentadas como razões explícitas para a emigração: “Com o nível de
escolaridade que eu tinha, se eu fosse para a tropa, ele me mandaria para
Cuba ou outros países com os quais ele tinha ligação para fazer a academia
militar; ele me colocaria ao seu lado”. A declaração de Oni carrega como
pressuposto tácito a aquiescência geral de que o governo do presidente Nino
Vieira foi de uma tirania e desgoverno insuportáveis. Ao expor as razões
de uma recusa que antecipa o convite, Oni subentende um conjunto de
razões suficientes para que indivíduos decentes prefiram fugir do país a
se deixar enlamear na negra corrupção. O cálculo político é moralmente
irrepreensível, em que pesem os prováveis ônus psicológicos e econômicos
da opção por emigrar para Cabo Verde nas circunstâncias pessoais em que
se encontrava. Mas, seu “raciocínio” libidinal se manifesta no modo como
deixa implícita a articulação entre o governo mestiço de Luís Cabral e uma
infância feliz numa família a ser pensada como essencialmente mestiça.
O contraste entre uma infância mestiça e a subida ao poder de um ícone
negro do afundamento dos governos guineenses numa negridão inaceitável,
particularmente para a camada mestiça guineense, fica implícito, em
outros termos, no modo como Oni ressalta a ascendência cabo-verdiana
em detrimento do fato de que a ascendência materna “é nativa de lá, da
etnia Papel. A minha mãe era boa mesmo a falar esse dialeto. Com os seus
patrícios só falava aquelas coisas e nós nada entendíamos”. Os laços fortes
com a cabo-verdianidade saem ressaltados no contraste quase explicitamente
carregado da má vontade com relação à língua Papel falada pela mãe. Na
sequência, Oni engata a associação entre uma infância feliz e um governo
do mestiço Luís Cabral de modo a erguer uma barricada sobrecarregada de

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imagens entre um e outro governo como se fossem épocas definitivamente


diferentes. “Eu passei uma infância bonita, feliz mesmo. Bissau era bonita,
mesmo bonita. Naquele tempo, antes do golpe de estado, no tempo de Luís
Cabral tínhamos tudo, tinha parque infantil. Eu conheci (…) mas, quando
o Nino Vieira deu aquele golpe...”. A memória da infância e adolescência
de Oni está emocionalmente carregada das típicas fobias antinegras das
comunidades de emigrantes cabo-verdianas nos países africanos. Nesse
caso, o golpe de estado protagonizado pelo presidente Nino é o catalisador
dessas fobias. Nesse imaginário, as continuidades que a história poderia
tecer em largas pinceladas entre o governo Luís Cabral e o governo Nino
Vieira estão completamente apagadas. “Eu nunca tinha visto um cenário
mais bonito na minha vida. Naquele tempo, eu não daria uma outra cidade
mais bonita do que Bissau, era limpa, apaziguada. Mas, agora é quase um
tumulto, as estradas esburacadas.” (Oni, 09/2020, Cutelo – Assomada).
A vida de Oni e a importância que atribui ao nome, à ascendência
familiar e laços de parentesco cabo-verdianos que impactam sobre o seu
corpo geram uma distinção entre si e os seus patrícios. A família de Oni,
católica, residia logo à entrada da cidade de Bissau, no local que ficou
conhecido como Chapa de Bissau. A primeira profissão do seu pai foi de
alfaiate, mas cedo abandonou e passou a trabalhar com um despachante
oficial português. Quando eclodiu a independência da Guiné-Bissau, em
1974, e os portugueses foram obrigados a deixar o país, seu pai passou
a trabalhar numa empresa de pescas que tinha sido constituída como
sociedade mista – União Soviética e Guiné-Bissau –, a Estrela do Mar. Na
qualidade de diretor comercial, o pai de Oni permaneceu até a reforma. Já
sua mãe, doméstica, nunca chegou a frequentar uma escola, o que muito
lamentava. Dos dez irmãos de Oni todos fizeram formação superior e/ou
técnica, à exceção do caçula.
Em Cabo Verde, apesar de guineense, Oni afirma que nunca se sentiu
discriminado e que, nessa matéria, ao partir recebeu um conselho do seu
pai que carregou para a vida: o de respeitar desde o bebê ao homem de
bengala e que seria retribuído. Junto com isso, pensa que, talvez, a não

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 129

discriminação seja o reflexo do seu nome, um nome familiarizado com os


dos cabo-verdianos, da sua cor, um bocado clara em vez de muito escura,
que muitas pessoas manifestam surpresa ao descobrirem que é guineense e
que isso só acontece quando o veem a falar com outro guineense. Porém,
afirma que já presenciou outros colegas a serem discriminados e que isso
obviamente o afetou. Entende que, se a título pessoal conhece a morabeza
cabo-verdiana, já ao nível coletivo a comunidade Bissau-guineense enfrenta
discriminação que pode ser considerada racial. Quando as rusgas eram
frequentes, raramente era parado, porque se pensava que era cabo-verdiano.
Vangloria-se, Oni: “eu tinha o cabelo grande, punk, os guineenses têm o
cabelo crespo, [era] rapazinho bazofinho. Eles não me cansavam não”.
(Oni, 09/2020, Cutelo - Assomada).
Na apreciação de um compatriota guineense, acentua-se como esses
trajetos do mulato permitem a Oni escapar parcialmente às rusgas xenófobas.
A respeito de Oni, seu compatriota e amigo, Noles, declara: “hoje por mais
que lhe queiras chamar de mandjaku, sentes receio mesmo de chamá-lo
assim. Mas, por quê? Por causa do nível social que ele apresenta no país”.
Do mestiço se pode dizer isso que Noles, o inescapável mandjaku, explana
como quem manuseia com precisão essa interioridade sebosa que é o fato
da negritude sob a pretensão de mestiçagem: “Mas, dentro de ti, sabes que
ele é mandjaku (...), na verdade, deves chamá-lo porque ele é mesmo. Tu
não chamas, porque ele está num nível social que não deves mexer com
ele nesse ponto (Noles, 09/2020, Lavadura Assomada).
Oni sabe que para franquear a passagem que lhe permite mobilizar
a máscara de mestiço precisa se distanciar dos conterrâneos nos
comportamentos e na geografia. É essa distância que Noles parece acusar
como hipocrisia, exterioridade insustentável, uma máscara. O corpo
mestiço é o palco de uma luta ansiosa contra as subsistentes imagens
de negro, um nervo exposto que é a própria máscara da negridão, o
negrume exposto como a máscara de mestiço. É por isso que Oni precisa
trabalhar incisivamente a distância como contraste: “eu não convivo com
eles, não convivo muito com os guineenses. Até muitos deles se queixam

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bastante, dizendo que eu sou fino, que não me relaciono com eles”. Essa
distância retocada não é o resultado de um trabalho recente, Oni sabe da
profundidade temporal desse processo de civilização dos costumes: “uma
coisa que quando eu estava a vir, também pus na minha cabeça é que, ao
sair de um país, digamos, mais atrasado para ir para outro mais adiantado,
eu não continuaria a viver com pessoas atrasadas. Tenho que conviver com
aquele que é meu semelhante ou superior a mim”.
Sim, performar a mestiçagem requer o que Elias (1994) chamou de
processo psicogenético de lapidação de uma personalidade agressiva em
direção ao sujeito cortês, o correlato do enobrecimento de uma sociedade
que sai da barbárie em direção à civilização. Poderíamos, na sequência desse
raciocínio, sentir-nos convidados a pensar o mestiço como a emergência
enlameada do seio da negrura, o entretempo, a aceitação do convite superior,
o difícil caminho em direção à civilização. Perto de Oni, ouçamos Norbert
Elias, aquele do processo civilizador, falando-nos dos guerrilheiros etíopes
tentando rechaçar a investida colonizadora dos italianos. Aqui também
se sustenta o contraste entre povos superiores, inferiores e semelhantes:

O padrão de agressividade, seu tom e intensidade, não é hoje exatamente


uniforme entre as diferentes nações do Ocidente. Mas essas diferenças, que
de perto às vezes parecem muito grandes, desaparecem se a agressividade
das nações “civilizadas” for comparada com a de sociedades em um diferente
estágio do controle de emoções. Comparada com a fúria dos guerreiros
abissínios – reconhecidamente impotentes contra o aparato técnico do exército
civilizado – ou com a ferocidade das tribos à época das Grandes Migrações, a
agressividade mesmo das nações mais belicosas do mundo civilizado parece
bem pequena (Elias, 1994, p. 190).

Mesmo quando uma força militar do ocidente está em uma guerra de


colonização, seu padrão de agressividade é incomparável à ferocidade de
povos atrasados no processo de civilização. Porque o teor da bestialidade
não reside na força da mortandade imposta, nem na injustiça da causa
levada à guerra, mas no excesso expresso no fenótipo, na fúria ameaçadora
da impossibilidade de um rosto humano. Seguindo Norbert Elias, a fúria

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 131

hoje é negra assim como já foi bárbara na Europa Medieval. O processo


civilizatório demanda o exercício de pacificação colonizadora como
humanização pela violência de um Estado centralizador. A cultura europeia
em constante desenvolvimento é o protótipo para a realização das culturas
dos africanos no futuro; a cultura negra é o antítipo, sempre no limiar, nunca
efetivamente no interior, se a palavra cultura for tomada em seu sentido
nobre, em lugar do banal catálogo de diferenças humanas, mas como um
padrão de civilidade – nessa sociologia que já foi chamada de processual.
A existência da incivilidade (negridão) é pré-condição para a cultura, já
agora entendida como desenvolvimento de si, autoapropriação reflexiva.
Quando, como no caso dos mandingas, a cultura negra é afirmada como
negridão, é como um simulacro, ela deve eclodir no como teria sido a
incivilidade. A negritude só pode ser cultura quando pode se reportar ao
tempo em que era pura incivilidade, a cultura negra de hoje é apenas a
celebração da não-cultura de ontem. Ou, como no caso de Oni, a cultura
negra é o olhar lançado de longe sobre outros, sobre o que se poderia
ter sido se se tivesse permanecido na negridão da praça, o lugar onde o
mestiço teria se perdido enquanto ser em estágio superior. É assim que Oni
se expressa: “Tenho que conviver com aquele que é meu semelhante ou
superior a mim. E eu vou perder tempo com os guineenses que se sentam
(…) em grupinhos, como por exemplo em Lisboa, no Rossio, na Praça da
Figueira”. Não é nossa intenção contestar o bom senso subjacente à opção
pela família em lugar do sentar-se na praça falando da vida das pessoas. Pode
ser que seja moralmente incontestável a exclamação de Oni: “Então, vou
perder tempo sentando e discutindo coisas banais? Eu tenho uma família
para cuidar. Eles reclamam muito, reclamam muito disso”.
Ainda assim, gostaríamos de ressaltar a economia libidinal subjacente
à forma como a praça dos compatriotas guineenses fica sobrecarregada,
nesse extrato de entrevista, com a associação a pessoas atrasadas enquanto
os cabo-verdianos, genericamente, são alocados como pessoas superiores,
com quem se deve prioritariamente conviver numa migração de um país
“atrasado” para outro “adiantado”. A oposição entre superiores e atrasados

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exibe aqui parte das respostas afetivas que pressagiam o corpo negro
como possibilidade de contaminação. Instâncias pré-subjetivas carregadas
de intensidades fóbicas antinegras se desnudam sob a hierarquização de
pessoas em atrasadas, semelhantes e superiores. Expõe-se, desse modo, a
estrutura de uma psique negra que emerge em violência estrutural contra
si mesmo. Entre o id e o ego se interpõe um olhar branco que odeia o
imago negro e esse é o lugar de um esforço para se identificar enquanto
mestiço. O mestiço, enquanto convocado pelo mundo da supremacia
branca a se pensar como não negro sabe que precisa destruir o imago negro
em si e em seu entorno. Os demais eixos de contraposições, rua – casa,
trabalho – não trabalho, são subservientes à oposição central entre povos
superiores e inferiores. O mestiço viaja para o país superior para conviver
com pessoas superiores.
Mas, nada pode impedir que a estrutura desse mundo superior,
essencialmente antinegro, faça o mestiço retornar ao estado cadavérico,
ao ser do incivilizado, ao negro em um mundo antinegro. Num contexto
de tensão a propósito da solicitação da nacionalidade, nos cinco anos
após o seu estabelecimento no país, o desconforto que Oni sentiu por ser
comparado a um compatriota que tinha cometido fraude e fora preso carrega
a tragédia do mestiço, como o negro portador de um inconsciente antinegro.
Acuado por uma funcionária dos serviços de fronteira, numa associação
indevida com o acusado, Oni se esforçou bastante para se dissociar da
identidade de mandjaku: “Eu contei-lhe tudo, contei-lhe todo o percurso
das minhas gentes, da minha família; eu disse-lhe: “inclusive, veja o meu
nome. O meu nome não é igual ao do rapaz; veja”. O rapaz chama-se J.
não sei o quê, aqueles nomes da Guiné, lá do interior da África”. Diante
da insistência da funcionária, Oni explode: “sabe de uma coisa? Fique
com a sua nacionalidade, não quero!” (Oni, 09/2020, Cutelo – Assomada).
Detenhamo-nos demoradamente no esforço de Oni para se desembaraçar
da etiqueta de mandjaku quando acuado pelos serviços fronteiriços e no
modo como se faz cúmplice do encarceramento de seus compatriotas no
estigma. Fica, nesse esforço, exposta a gramática do sofrimento mestiço,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 133

seu núcleo central alicerçado na negrofobia, a ansiedade para não ser


confundido, a exigência de reconhecimento como não sendo apenas
mais um. Se, como sugere Wilderson III (2011, p. 30), o self negro está
permanentemente em um estado de guerra, um self dividido ou, melhor,
uma justaposição de ódio projetado em direção a um imago negro e de
amor por um ideal branco, o apelo do mundo lusófono para a mestiçagem
como crioulitude é um acirramento que fende inclusive as condições de
possibilidade de uma comunidade psíquica. A intrusão do imago negro
como um objeto fóbico não apenas fende a precária unidade psíquica, mas
também desestabiliza continuamente as possibilidades de alianças a partir
da experimentação do sofrimento negro em condições similares. Vê-se
aqui que, enquanto negro, Oni não se pode representar a si, mesmo para
si, como um sujeito político de boa-fé, como um sujeito de reparação. A
ontologia política negra é excluída no inconsciente assim como tende a ser
excluída nos serviços de fronteira. A negridão é o que se deve deixar em
casa, no fundo dos nossos impulsos libidinais mais subversivos.

Conclusão
Buscamos exemplificar a tese de que a independência nacional de países
africanos pode ter desmantelado em grande parte o racismo colonialista no
quotidiano enquanto a figura do colonizador se tornou longínqua, exígua e
fugidia, mas a antinegritude permaneceu viscosa impregnando as relações
sociais nos regimes pós-coloniais de predação intensiva dos segmentos mais
empobrecidos e vulneráveis. Tomamos como caso ilustrativo a antinegritude
em Cabo Verde, na pós-colônia, a persistência das rivalidades entre badius
e sampadjudus e entre cabo-verdianos e mandjakus. Buscamos explorar
o modo como as estratégias estéticas dos performers de classes populares
da cidade do Mindelo, ao escaparem de alguma forma a esse desejo
negrófobo, desencadeiam reações pequeno-burguesas que destilam uma
antinegritude flagrante. Debruçamo-nos sobre o fascínio exercido sobre
classes médias pós-coloniais por cenas de primitivismo africano. Ao expor
sua negrofobia e a autoapresentação mandinga como simulacro, as classes

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


134 José Carlos Gomes dos Anjos & Eufémia Vicente Rocha

médias buscam enquadrar a rebeldia suburbana como simulacro. O que


talvez os mandingas acabem encenando é o tempo do desencontro e a
invenção do espectro do negro como bestial. A recriação da imagem do
primitivo desarticula o presente, que é jogado de forma brutal sobre um
passado sem ancestrais reivindicáveis. É das imagens de um primitivismo
que não se reivindica como ancestralidade, que se busca extrair uma
riqueza reprodutiva capaz de entrar nos circuitos transnacionais daquele
capital que se produz na convergência de um consumidor voyeurista e
um produtor que não dispõe senão do próprio corpo como objeto de
manipulação e mercantilização. Se a cena parece nos deslocar para o antes
da escravidão, a materialidade dos circuitos de transação das imagens
dos mandingas parece reproduzir bem aquele passado que não passa,
aquele tráfico de corpos negros para consumos brancos que não para de
acontecer de novo e de novo.
Ao desvelar o voyerismo da câmera fotográfica do turista branco, os
mandingas presenteiam o turista com o retorno do reprimido empacotado
sob o formato adequado ao consumo neoliberal da diversidade cultural. Ao
se exporem, assim, os jovens da periferia de Mindelo devolvem ao branco
a máscara, o desejo branco pelo selvagem, como peça fundamental do
processo de constituição da brancura. Desejamos apresentar também o
como o movimento migratório de africanos para Cabo Verde refaz o espectro
do navio negreiro. Vimos que não se faz necessária a presença de brancos
no arquipélago para que a antinegritude funcione a todo o vapor, embora
não se esteja a sair do mesmo ponto cardinal desde a nascença desse lugar
como espaço habitável. Se tomarmos o caso cabo-verdiano como o de um
navio negreiro que encalhou antes de chegar ao destino, talvez as múltiplas
cenas contempladas neste artigo não sejam senão projeções espectrais da
condição do negro num mundo antinegro.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


Traços de antinegritude em Cabo Verde 135

José Carlos Gomes dos Anjos é Doutor em Antropologia Social e professor da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuando na Pós-Graduação em Sociologia e
em Desenvolvimento Rural.
 jcdosanjos@yahoo.com.br

Eufémia Vicente Rocha é Doutora em Ciências Sociais, pesquisadora vinculada ao


Laboratório de Pesquisa em Ciências Sociais (LPCS) e ao Centro de Investigação e Formação
em Gênero e Família (CIGEF) e professora auxiliar da Universidade de Cabo Verde.
 eufemia.rocha@sapo.cv

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Traços de antinegritude em Cabo Verde 137

Recebido: 6 dez. 2021


Aceito: 29 jan. 2022

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 108-136.


138 Natalia Velloso & VladmirDOSSIÊ
Ferreira
138

http://doi.org/10.1590/15174522-120601

Kumida di tera: relações de cuidado e


alimentação em Cabo Verde
Natalia Velloso*
Vladmir Ferreira**

Resumo
O artigo busca refletir sobre como as relações de cultivo em uma horta comunitária
organizada por jovens moradores da periferia da cidade da Praia interpelam tanto os
processos históricos de produção agrícola colonial em Cabo Verde quanto a lógica
do desenvolvimento modernizante que marca as compreensões contemporâneas de
alimentação. A partir de análises bibliográficas e de pesquisas de campo realizadas
em contextos rurais e urbanos, toma-se a noção etnográfica de kumida di tera
como expressão que conecta diferentes práticas e conhecimentos alimentares
insurgentes. Práticas e conhecimentos que são tomados como referência e reativados
por meio das relações engendradas na horta comunitária. Relações essas que são
aqui pensadas a partir da noção de cuidado, seguindo os sentidos que esta vem
recebendo na sociologia contemporânea, enquanto relações que guardam aspectos
negligenciados frente às lógicas dominantes de produção e consumo de alimentos.
Palavras-chave: Cabo Verde, alimentação, horta comunitária, cuidado.

*
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**
Universidade de Cabo Verde, Praia, Santiago, Cabo Verde.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 139

Kumida di tera: food and care relationships in Cape Verde

Abstract
The article presents some reflections on how relationships involving cultivation
of a community garden organized by young residents in the outskirts of the city
of Praia challenge both historical processes of colonial agricultural production in
Cape Verde, and the logic of modernizing development that marks contemporary
understandings of food. Based on literature review and field research carried out in
rural and urban contexts, the ethnographic notion of kumida di tera is taken as an
expression that connects different insurgent food practices and knowledge, which
are taken as references and reactivated through the relationships engendered in the
community garden. Relationships that are considered here from the perspective of
care, in the sense it has been conceived in contemporary sociology, as relationships
that include aspects that have been neglected in the context of the dominant logics
of food production and consumption.
Keywords: Cabo Verde, food, community garden, care.

Introdução: uma perspectiva a partir do cuidado

O
s períodos de fome que marcaram a história do arquipélago de
Cabo Verde, desde o início da ocupação portuguesa, em 1460,
foram frequentemente associados na literatura clássica aos escassos
e irregulares regimes de chuva (Carreira, 1984). Apenas mais recentemente,
alguns pesquisadores vêm reforçando a forte conexão entre a fome e as
dinâmicas do exercício do poder colonial (Acosta-Leyva, 2019). E, mesmo
que desde a independência, em 1975, não haja registros de períodos de
fome semelhantes aos já enfrentados, jovens ligados a grupos de ativismo
comunitário constituem narrativas marcadas pelo caráter de denúncia de que
os sistemas de fornecimento de alimentos e práticas alimentares presentes na
sociedade cabo-verdiana contemporânea reproduzem as lógicas coloniais.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


140 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

Em contraposição, esses ativistas afirmam a necessidade de reconexão com


práticas e conhecimentos alimentares que consideram como expressões
de resistência ao colonialismo e a seus desdobramentos contemporâneos.
Dentre essas formas de reconexão está a valorização de uma alimentação
baseada na ingestão de kumida di tera (comida da terra), expressão que é
comumente utilizada para se referir a ingredientes cultivados em Cabo Verde
e pratos da culinária tradicional cabo-verdiana. O termo também remete a
outras expressões compostas pela qualificação di tera – fidjus di tera (filhos
da terra), panu di tera (pano de terra) – que denominam pessoas nascidas
e artefatos produzidos em Cabo Verde, que foram fruto do processo de
constituição da sociedade colonial. E, ainda mais recentemente, a expressão
di tera foi utilizada para qualificar uma linha de produtos alimentares
industrializados, feitos com sabor de frutas cultivadas ou consumidas em
Cabo Verde. Contudo, no contexto do ativismo comunitário, a noção de
kumida di tera é mobilizada a partir da conexão com as histórias de resistência
das comunidades camponesas e com a valorização de conhecimentos
ligados às tradições do continente africano.
Tomando como caso etnográfico a horta comunitária organizada
por um grupo de jovens ativistas de um bairro periférico na cidade da
Praia, a Associação Pilorinhu (AP), propomos uma reflexão apoiada nas
elaborações de Maria Puig de la Bellacasa sobre a noção de cuidado. Tendo
como referência a noção de cuidado a partir de teóricas feministas como
Joan Tronto e Bernice Fischer, a autora vai defini-lo como “esses fazeres
necessários para criar, manter junto e sustentar a heterogeneidade essencial
da vida”1 (Bellacasa, 2012, p. 198). Essa compreensão nos parece ir ao
encontro das considerações dos jovens ativistas, sobre kumida di tera como
um alimento produzido e consumido a partir de relações de cuidados que
criam e mantêm conexões específicas entre pessoas, solo, plantas e forças
de resistência. Nesse sentido, mais do que uma designação que qualifica
1
No original “those doings needed to create, hold together and sustain life’s essential
heterogeneity” (tradução nossa).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 141

determinados tipos de alimentos, propomos considerar a expressão uma


teoria etnográfica (Goldman, 2006) da criação de relações mutuamente
implicadas no cuidado com as plantas, consigo e com a comunidade.
Nossas observações partem da interlocução entre duas trajetórias
de pesquisa sobre os temas aqui abordados. Uma delas focada no
acompanhamento do cotidiano de cuidados com a horta, no contexto de
uma pesquisa de campo desenvolvida ao longo de nove meses sobre as
diferentes formas de atuação política mobilizada na AP. Nesse período, a
horta comunitária foi apresentada como “uma das frentes de atuação do
grupo” que se conjugava com outras, tais como: “a ocupação de espaços
públicos abandonados”, o “ateliê de arte e costura”, “laboratório de mídia”,
“alojamento comunitário”, “biblioteca comunitária”, além de diversas
ações voltadas para a problematização dos modelos de desenvolvimento
privilegiado no contexto cabo-verdiano (Velloso, 2020). A outra realizada
por via do olhar de um pesquisador cabo-verdiano que tem se dedicado
ao estudo das políticas públicas implementadas pelo estado com vistas
a garantir a segurança alimentar e nutricional das populações (Ferreira,
2015) e das formas de resistência e adaptação dos produtores locais face
aos processos de integração da agricultura aos ditames do mercado e da
produção capitalista.
Ao tomarmos a noção de cuidado como aporte epistemológico,
pretendemos contribuir para o debate acerca das relações de alimentação
em Cabo Verde a partir de uma perspectiva que não é restrita ao tema
da produção de alimentos e, nesse sentido, se contrapõe à lógica da
produtividade através da qual operam as formas de conhecimento
tecnocientíficas usualmente mais valorizadas como solução para a questão
do fornecimento de alimentos. Igualmente, gostaríamos de evidenciar
aspectos do cultivo e alimentação em Cabo Verde pensados enquanto redes
de relações de interdependência que interpelam a visão antropocêntrica
do solo como fonte de recursos para os humanos.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


142 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

Configurações históricas da produção alimentar


em Cabo Verde
O tema do cultivo de espécies é um ponto fundamental para
compreensão da história das lutas pela garantia da autonomia alimentar
da população cabo-verdiana. No campo da história colonial da alimentação,
as grandes narrativas da “descoberta” e “conquista” de territórios, espécies
e pessoas constituíram teorias sobre a formação de “culinárias nacionais”,
entendidas como uma espécie de resultado “benéfico” do encontro de
diferentes culturas, a despeito dos horrores da colonização. Contudo, sabe-
se que esses processos foram consequência da subordinação, domesticação
e deslocamentos forçados de pessoas, plantas e animais, com brutais
consequências sociais, subjetivas e ecológicas (Mbembe, 2017). O modelo
das plantations, apoiado na estrutura social escravocrata e voltado para
monocultura de espécies que foram mercantilizadas, consolidou-se
esmagando outras múltiplas formas de interação entre humanos, vegetais
e animais que eram praticadas na África e na América (Haraway, 2016).
E, mesmo que os regimes coloniais já tenham sido superados, os modelos
agrícolas que sustentam as estruturas econômicas do mundo pós-colonial,
guardam diversas de suas características (Shiva, 2003).
Porém, em meio à grande História Natural2 das espécies, os povos
nativos e as populações negras nos territórios colonizados se encontraram,
preservaram e criaram formas de cultivo e alimentação independentes,
que se contrapunham aos fins agrícolas coloniais. Nas roças voltadas para a
própria alimentação, nos quintais e nos territórios daqueles que conseguiram
fugir da escravização foram preservados conhecimentos e técnicas, assim
como foram inventadas novas formas de interação com os elementos que
lhes foram apresentados (Carney, 2017).
2
A referência aqui é o projeto iniciado pelo naturalista português Domingos Vandelli, A
História Natural das Colônias, que, na transição dos séculos XVIII e XIX, mobilizou uma
ampla rede de naturalistas e outros cientistas, a fim de classificar, pesquisar e catalogar as
espécies encontradas nos territórios colonizados por Portugal (Pataca, 2016).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 143

Em Cabo Verde, assim como em outros contextos coloniais, a história


agrícola é marcada por cultivos voltados para a exportação, especificamente
associados ao papel que o arquipélago desempenhou no comércio atlântico
de pessoas escravizadas. Assim, a primeira forma de apropriação fundiária
em Cabo Verde, iniciada com o achamento das ilhas em 1462, se deu
por meio do Regime de Capitanias. À semelhança do ocorrido em outras
colônias portuguesas, as primeiras concessões régias dataram da segunda
metade do séc. XV, dispondo terras a donatários (Amaral, 1964). De acordo
com esse modelo de organização administrativa, o donatário tinha por
obrigação incrementar o povoamento das ilhas de Cabo Verde.
Apesar das grandes limitações do arquipélago em termos de
disponibilidade hídrica, as ilhas tornaram-se um ponto de apoio das frotas
portuguesas que contornavam a África com destino à Índia e, mais tarde,
no comércio entre África, América e Europa (Silva, 1991). Dessa forma,
o país colocou-se no cenário internacional como espaço importante para
negociações comerciais, potencial bastante explorado nos séculos seguintes
(Borba; Anjos, 2012; Furtado, 1993).
Num ambiente insular saheliano desconhecido tanto de europeus
como de africanos, a adaptação das culturas e o arranjo dos campos
constituíram penoso desafio para a comunidade humana fixada na ilha.
Os ciclos de secas, a erosão de solos em vertentes íngremes e a falta de
água configuraram-se como fatores limitantes na produção das terras
(Semedo, 2010). Apesar de todas essas condicionantes ambientais, Cabo
Verde desempenhou um papel fundamental nos processos coloniais de
transposição de espécies vegetais, funcionando como um grande “horto
botânico” para adaptação de plantas e animais que foram introduzidos no
Brasil e em outras colônias, a fim de atender aos objetivos da exploração
e ocupação colonial (Carreira, 1984).
Durante quase quatro séculos, no ambiente tropical das duas margens
do Atlântico, transitaram pessoas, plantas, ritos e ritmos agrilhoados ao
mesmo sistema social, contribuindo para a formação de um complexo
sistema de hábitos e valores. Nesses processos biossociais de adaptação e

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


144 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

de transculturação, o Brasil desempenhou o papel de segundo colonizador


durante mais de 350 anos. Traços dessa dominação secular e das relações
por ela engendradas, conformando esse sistema ecocultural comum entre o
Brasil e os países africanos, podem, ainda hoje, ser encontrados, em particular
os decorrentes da disseminação de plantas e do papel desempenhado
pela organização da atividade agrícola e seus produtos (Sarmento, 2012).
Além da aclimatação, foram desenvolvidos em Cabo Verde sucessivos
ciclos de cultivo de espécies voltadas para a venda no comércio exterior,
tais como: a cana de açúcar, vinculada à produção de grogo3 e ao comércio
com a costa da Guiné, o algodão para a produção dos panos di tera,4 e a
semente de purgueira, uma planta vinda da América Central utilizada para
a extração do óleo. Quase todos esses ciclos de cultivo estiveram voltados
para atender as transações comerciais decorrentes do tráfico de pessoas
escravizadas, que era prioridade dos interesses comerciais desenvolvidos
pelos colonizadores (Acosta-Leyva, 2019).
Com o fim do tráfico de pessoas escravizadas e a abolição do regime
escravagista, ocorrem profundas mudanças no modelo econômico vigente
(Borba; Anjos, 2012). A instauração do trabalho livre deu origem a rearranjos
nas relações sociais e fundiárias; os proprietários acabaram por fragmentar
suas terras e arrendá-las. Foi nesse contexto que famílias não brancas
passaram a ter maior participação na exploração das propriedades rurais,
assumindo primeiramente a condição de rendeiros.
Para Furtado (1993), um dos obstáculos ao desenvolvimento
da agricultura foi a estrutura agrária montada pelos colonizadores no
arquipélago, bem como a ausência de uma política agrícola por parte do
governo português. Nos limiares do século XX, a ilha de Santiago, a principal
ilha agrícola, registrava uma grande população de pessoas sem terra, na
maioria composta de escravizados libertos e de camponeses pobres que,
empurrados pelas circunstâncias, aceitaram cultivar terras dos morgados
em condições próximas das da escravatura (Semedo, 2010).
3
Aguardente cabo-verdiana.
4
Pano da terra.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 145

Os contratos eram baseados em acordos verbais e frequentemente eram


alterados em favor dos proprietários. Ainda assim, os rendeiros deviam pagar
pelo uso da terra e pelos custos com a produção. Independentemente das
condições climáticas e de quaisquer outros fatores que pudessem ocasionar
dificuldade na produção agrícola, os valores eram cobrados. Além disso, as
terras que apresentavam melhores condições de plantio permaneciam em
poder dos morgados. A consequência foram os diversos períodos de fome
e a insurreição dos camponeses (Borba, 2013). Nesse contexto de injustiça,
ocorreram três grandes revoltas dos rendeiros entre a primeira metade do
século XIX e início do século XX no interior da Ilha de Santiago: as revoltas
dos Engenhos de 1822, de Achada Falcão de 1841 e de Ribeirão Manuel
de 1910 (Pereira, 2010).
Assim, por mais que a ocupação das terras fosse descentralizada e feita
por famílias que não pertenciam à elite colonial branca, na prática era nas
mãos destas que a propriedade da terra estava concentrada (Borba, 2013).
Tal configuração evidencia como, historicamente, o acesso à alimentação e os
períodos de fome que marcam a história de Cabo Verde desde os primórdios
da colonização sempre tiveram como determinantes componentes sociais
e políticos, e não apenas as condicionantes naturais.
O escritor e jornalista cabo-verdiano José Vicente Lopes (2021)
apresentou em sua recente obra Cabo Verde: um corpo que se recusa
a morrer – 70 anos de fome, 1949-2019. Uma importante análise sobre
como a questão da fome era compreendida desde o período colonial até
1949 e nos dias de hoje. Segundo esse autor, até 1949, ano do desastre
da assistência,5 as crises de fome em Cabo Verde eram encaradas quase
como normalidade. Mas a partir de 1949, com as pressões de visões
críticas ao colonialismo, que posteriormente resultariam no movimento
pela independência de Cabo Verde e Guiné (Cabral, [1949] 2015), e suas
articulações com órgãos internacionais, como a recém-criada Organização
5
O Desastre da Assistência aconteceu a 20 de fevereiro de 1949 quando a parede dos
Serviços Cabo-verdianos da Assistência ruiu, matando 232 pessoas, sobretudo mulheres e
crianças que aguardavam pela distribuição de refeições quentes.

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146 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

das Nações Unidas (ONU), Portugal despertou para o problema da fome


em Cabo Verde. Ficou, então, evidente que os alarmantes números de
mortes por fome dos períodos do século XX,6 mas que existiram desde o
início da ocupação colonial, estavam associados à falta da vontade política
e incúria administrativa.
Entretanto, a estrutura fundiária colonial que vigorou durante todo
o século XIX só veio a sofrer algumas transformações na segunda metade
do século XX, nos primeiros anos pós-independência. Nesse período, as
áreas rurais concentravam cerca de 63% da população economicamente
ativa do país e a população ocupada no setor agrícola representava cerca
de 29% do emprego total. Nesse contexto, optou-se pelo incentivo ao
desenvolvimento através da consolidação das organizações cooperativas
agropecuárias existentes, apoio a cooperativas agrícolas e de consumo e a
novas iniciativas coletivas (Rodrigues, 2010).
Devido ao contexto político internacional, na década de 1990, o governo
deu início ao processo de democratização do país e adotou oficialmente uma
política de transição para o pluripartidarismo. Nesse novo momento político,
o modelo de cooperativas foi abandonado e, simultaneamente, o movimento
associativo ganhou maior força, tornando-se um interlocutor privilegiado na
relação entre o Estado e as comunidades locais e assumindo uma posição de
relevo na construção da sociedade civil cabo-verdiana. As associações foram
situadas no quadro da nova filosofia de gestão para o desenvolvimento local
em áreas como o desenvolvimento comunitário.
Contudo, observa-se que, embora as associações locais de agricultores
sejam fundamentais na aquisição de financiamentos para a promoção da
agricultura, elas permanecem em um cenário de vulnerabilidade por sua
alta dependência de investimentos estrangeiros. Outro fator de fragilidade
de seu funcionamento é a falta de efetivas formas de participação da
população na elaboração de políticas voltadas para a segurança alimentar,
frente ao modelo de desenvolvimento estabelecido (Simões et al., 2019).
6
A estimativa é de que entre 1903 e 1948, tenham morrido 82.523 pessoas por fome em
Cabo Verde (Carreira, 1984).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 147

O modelo privilegiado nos programas de desenvolvimento está


calcado em uma lógica “modernizante” e “economicista” que valoriza a
mecanização da produção, a criação de pequenas empresas agrícolas, a
produção voltada para o abastecimento do setor do turismo, além do uso
de defensivos e agrotóxicos. A adoção dessas práticas é vista com bons
olhos pela administração pública, baseada em uma crença convicta de que
a modernização da agricultura é a chave para a superação da pobreza, e
de que as práticas tradicionais de agricultura familiar constituem estruturas
arcaicas que devem ser superadas (Simões et al., 2019).
Contudo, embora de formas distintas daquelas que caracterizaram o
período colonial, observa-se que na contemporaneidade esses modelos
dominantes de cultivo são desafiados por formas insurgentes de práticas
agrícolas. No contexto rural, há casos de uso coletivo de terra que guardam
conhecimentos tradicionais de plantio e criação de animais, tais como uso
de remédios naturais para pragas e doenças, ou estratégias de combinação
de espécies para melhor aproveitamento do solo (Gonçalves; Sentís, 2020),
além de formas inventivas de aproveitamento de espaços, como no caso
dos campos de futebol que, no período da chuva, são utilizados para
cultivo (Ferreira, 2016).
Mesmo se hoje em dia as pessoas não convivem com o terror
dos períodos de fome que marcaram o regime colonial, a insegurança
alimentar não é um risco que tenha ficado no passado da sociedade cabo-
verdiana (Ferreira, 2019). Uma das expressões estruturais dessa questão
é a dependência do fornecimento de alimentos estrangeiros e, também,
a dificuldade em acessar alimentos frescos e não-processados por grande
parte da população. Por isso a preocupação em comer alimentos de boa
qualidade é expressa por diferentes segmentos sociais. No contexto do
ativismo social o tema é relacionado à reivindicação da possibilidade
de acesso a alimentos independentemente das lógicas do mercado e à
preocupação com o consumo de alimentos saudáveis.
Muitos desses grupos de ativistas surgem a partir da década de 2010,
a maioria ligada a bairros de periféricos em contextos urbanos e formada

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148 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

por jovens – em geral homens, mas não só – que vinculam sua atuação a
temas como combate à violência urbana, enfrentamento de desigualdades
sociais, afirmação de uma postura de contestação através do hip-hop e
valorização da africanidade (Bordonaro, 2012; Lima, 2014, 2020). Dentre
os posicionamentos levantados por alguns desses grupos, encontra-se a
denúncia de que as práticas colonialistas seguem sendo implementadas
contemporaneamente, através de novos modelos.
Aqui, partimos do contexto de um desses bairros e da atuação de um
grupo de jovens ativistas, justamente porque expressam como a proximidade
física com equipamentos e fontes de alimentos não representa necessariamente
uma equidade no acesso à alimentação. São, apesar disso, as redes e práticas
de cuidado desenvolvidas nesse território que mobilizam alternativas no acesso
ao alimento e, mesmo quando não são capazes de garantir a seguridade
alimentar, possibilitam refletir a partir de outras perspectivas sobre proposições
de uma alimentação saudável e de qualidade.

Experiências alimentares em Achada Grande Frente


A Associação Pilorinhu e a horta comunitária construída na sede do
grupo estão localizadas em um dos bairros mais antigos da cidade da Praia,
a Achada Grande Frente (AGF). As famílias que moram ali há mais tempo
vieram do interior da ilha de Santiago, ou de outras regiões rurais do país
para viverem mais próximas da capital. Desde então, diferentes ondas
de migração marcaram as configurações socioespaciais do bairro, que é
atualmente subdividido em pelo menos duas partes. Uma caracterizada
pela presença de famílias com maior poder aquisitivo e outra onde vivem
algumas famílias em condições mais precarizadas e onde está a sede da AP.
Os moradores dessa região muitas vezes são alvo de visões
estigmatizantes, marcadas por uma oposição aos modos de sociabilidade
ali presentes e por valores propagados como mais adequados ao contexto
urbano. Dentre esses estigmas estão a crítica à manutenção de hábitos
associados à vida rural, tais como a criação de animais nos terraços das

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 149

casas. Bem como considerações pejorativas que qualificam peixeiros e


peixeiras – principais ocupações de muitas pessoas dessa parte do bairro
– como pessoas sem conhecimento.
As duas formas tradicionais de cultura alimentar – a criação de animais
e a pesca – passaram a ser ainda mais tensionadas com o processo de
reestruturação do bairro, a partir da década de 1990, através da instalação
de diversos armazéns de empresas de importação de alimentos. A escolha
da AGF como o local para a construção desses armazéns se deu pelo fato
de o bairro estar localizado próximo a equipamentos de infraestrutura
diretamente relacionados aos sistemas de abastecimento de Cabo Verde,
o aeroporto internacional e o porto da Praia.
Nesse período mais recente de transformações, desde o início dos
anos 2000, o bairro passou a ser associado com episódios de conflitos entre
grupos de jovens que se vinculavam a determinados territórios dentro da
própria AGF, ou de outros bairros. Tais conflitos deram ao bairro a fama de
um local “perigoso”, que passou a ser associado na imprensa com casos de
assaltos e mortes. A imagem negativa, e criminalizada, da vida no bairro
motivou iniciativas de instituições públicas, ONGs e associações comunitárias
a realizarem projetos a fim de desmobilizar a situação conflituosa entre os
jovens e de dar visibilidade aos aspectos positivos da comunidade.
Foi nesse contexto que, em 2013, um grupo de jovens moradores
da AGF se organiza em um movimento de ativismo e posteriormente se
institucionaliza, dando origem à Associação Pilorinhu com objetivo de
oferecer formação para outros jovens e crianças do bairro. O nome da
associação se deve ao fato de que uma de suas primeiras atividades foi
a ocupação e limpeza de um antigo prédio abandonado que havia sido
construído para abrigar um mercado – que em Cabo Verde é denominado
de pilorinhu – para ser a sede do grupo, onde são realizadas diversas
atividades dentre elas, uma biblioteca, aulas de reforço escolar, aulas de
capoeira, ateliê de carpintaria e costura e a horta comunitária.
A AP, assim como outros grupos de ativismo comunitário, é marcada
por contínuas variações em sua composição em relação àqueles que estão

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150 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

mais mobilizados na realização das atividades. A maioria dos integrantes do


grupo são homens jovens, que moram no bairro da AGF. Muitos deles de fato
vivem no espaço da sede e aqueles que moram no entorno, ou mesmo em
outros bairros, costumam frequentar o espaço diariamente. Nessa dinâmica,
é diária também a necessidade de realização de tarefas de cuidados com o
espaço, como limpeza, organização das atividades e alimentação.
A refeições coletivas são preparadas pelos jovens que integram o grupo
e delas participam aqueles que vivem no espaço ou o frequentam com
regularidade. No entanto, não é incomum notar que pessoas que estão
passando por situações mais agudas de insegurança alimentar, buscam
estar presentes ali como forma de realizar uma refeição. As pessoas
responsáveis pelo preparo costumam ser as mesmas que servem os pratos
e apenas depois de todos comerem é possível avaliar a disponibilidade
de repetir. A maioria dessas refeições acontece em uma grande mesa
redonda localizada na parte central do salão e, quando possível, são
utilizados alimentos provenientes da horta. Contudo, em muitos momentos,
para dar conta da demanda de alimentação cotidiana, os integrantes
do grupo organizam “campanhas de recolha alimentar”, que consistem
em arrecadar alimentos em supermercados da cidade e nos armazéns
existentes no bairro.
Durante as recolhas era comum que integrantes da AP fizessem
comentários enfatizando a contradição entre a presença dos armazéns de
importadoras de alimentos e a realidade de famílias vivendo em situações
de insegurança alimentar. Situação que era ainda mais agravada em casos
de recusa das doações. Quando isso acontecia, costumavam falar que era
necessário que cada um pudesse ter como produzir a própria comida, pois
não podiam contar com as empresas para ter o “pão de cada dia”.
Ao contrário das visões estigmatizantes que condenam as práticas
de criação de animais ou inferiorizam famílias que vivem da pesca, os
ativistas falavam de propostas que iam no sentido de “ruralizar” a vida nas
cidades. Na ocasião de instalação de grama sintética no campo de futebol

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Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 151

do bairro, um dos integrantes do grupo comentou que o melhor seria que


em cada bairro os campos fossem utilizados para plantio – como é feito em
alguns locais no contexto rural – para garantir alimentação às famílias da
comunidade. Foi com a perspectiva de buscar maior autonomia em relação
à aquisição de alimentos, e de inspirar outras iniciativas semelhantes, que
a horta comunitária começou a ser construída ainda em 2013, na parte
lateral da sede do grupo.
Em 2016, a horta do Pilorinhu, era, e ainda é, um espaço muito
valorizado pelos participantes da associação. Sempre que havia uma visita de
representantes de outros grupos e instituições à AP a horta era apresentada
como um dos locais mais relevantes do espaço. Sendo também um dos
principais temas de postagens do grupo em redes sociais de internet, com
imagens que mostram etapas de plantio, rega e colheita. Apesar de ser um
espaço caracterizado por cambiantes composições, pode-se dizer que a
horta é composta por duas partes: uma na qual é realizado o cultivo de
árvores frutíferas, raízes, leguminosas e cana-de-açúcar, e outra área circular
onde foi implementado o projeto PAIS (Produção Agroecológica Integrada
e Sustentável), ao qual retomaremos mais adiante, em que são cultivadas
hortaliças e ervas aromáticas.
A principal aspiração do grupo, como foi dito, é de que aquilo que
é produzido na horta seja utilizado para a alimentação daqueles que
realizam atividades no espaço, e, quando possível, para o fornecimento a
famílias que encontram mais dificuldade em adquirir alimentos. Tal desejo
é baseado em uma ideia de “autonomia”, continuamente mobilizada
nas conversas sobre a horta. É nesse sentido que afirmam não quererem
depender de comidas importadas e industrializadas, que chamam de
“comida de lata”, e afirmam a horta como um local de cultivo de kumida
di tera. Não apenas porque lá são plantados ingredientes característicos da
culinária tradicional cabo-verdiana, como milho, feijão, manga e outros,
mas, principalmente, porque buscam estabelecer e manter conexões entre
o cultivo desses alimentos e forças de resistência ao colonialismo que foram
negligenciadas e perseguidas.

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152 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

Assim, não é apenas pela lógica daquilo que é produzido que os


integrantes da AP consideram a horta um espaço relevante. Uma compreensão
expressa na afirmação algumas vezes enunciada por eles quando alguém
pergunta sobre o estado da horta: “se a horta está bem, o Pilorinhu está
bem”. Para além da evidente conclusão de que essa compreensão expressa
que os cuidados com a horta são também formas de cuidado com o grupo,
podemos dizer que ela se conecta com aquilo que Bellacasa (2017) afirma
como o potencial disruptivo das práticas de cuidado, no sentido dos fazeres
necessários à manutenção de redes de interdependência mútua.
Ao utilizar a noção de cuidado para refletir sobre a relação entre
humanos e o solo Bellacasa (2015) explica que essa perspectiva se contrapõe
à compreensão focada tanto na lógica produtivista quanto na centralidade
humana, que trata o solo apenas como um provedor de recursos. Tais
aspectos, como se sabe, são caros aos segmentos econômicos voltados
para a produção agrícola e marcaram toda história moderna do mundo
ocidental, desde as plantations até às monoculturas de transgênicos. A
autora salienta que as práticas de cuidado com o solo estão atravessadas
pela compreensão de que humanos são parte, não o centro ou o topo, de
uma rede de relações múltiplas de seres e outros elementos.
Porém, é fundamental salientar, como faz Bellacasa (2015), que as práticas
de cuidado não devem ser romantizadas. Cuidar da Horta Comunitária
dá trabalho, envolve atividades de limpeza, plantio, remanejamento de
plantas, revolver a terra, reorganizar estruturas que não funcionaram como
o esperado, mobilizar e administrar a quantidade de água necessária para
rega, evitar furtos, e muitas outras. Todas essas tarefas envolvem tempo
de cuidado, tempo esse que, muitas vezes, entra em contradição com
demandas de tarefas que poderiam gerar rentabilidade, segundo a lógica
da produtividade do mercado. Além disso, como enfatiza a autora, apesar
de as práticas de cuidado não serem sinônimo de obrigações morais, elas
são necessárias e, nesse sentido, envolvem obrigações e responsabilidade
(Bellacasa, 2017). Assim, se não há uma forma de organização coletiva no

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Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 153

grupo capaz de garantir pessoas disponíveis para cuidar da horta, ela não
vai bem e o grupo também não.
A proposição de olhar para a horta desde a perspectiva do cuidado
não significa, no entanto, negligenciar o tema da produção de alimentos,
uma vez que é fundamental ao princípio de autonomia alimentar reiterado
pelo grupo. Contudo, consideramos que o tema pode ser abordado
levando em conta a complexidade dessas relações. A fim de refletir desde
essa perspectiva, propomos observar as relações de cuidado presentes na
horta comunitária a partir de três dimensões que são também interligadas
entre si: o cuidado com as plantas, o cuidado consigo mesmo e o cuidado
com a comunidade.

Figura 1. Integrantes da Associação Pilorinhu nos cuidados da horta

Fonte: página do grupo em redes sociais.

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154 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

Cuidar das plantas


No início do período em que foram recolhidos os dados que compõem
nossa reflexão, as atividades de cuidado com a horta do Pilorinhu estavam
concentradas na manutenção do já referido protótipo do sistema PAIS,
voltado para cultivo de hortaliças e ervas aromáticas. Havia um esforço
de plantio de diferentes espécies a fim de saberem quais se adequariam
melhor às condições do terreno e do modelo de plantio. Desse processo
ocorreram algumas colheitas de couve, repolho, coentro, cebolinha e
manjericão. Posteriormente, a área cultivada se ampliou e foram também
plantadas mandioca, milho, feijão e diferentes tipos de árvores frutíferas.
Tanto na construção do sistema PAIS e na ampliação da horta como em
momentos de plantio e colheita eram realizados esforços de trabalho coletivo
na horta, com a participação de integrantes do grupo e, eventualmente,
moradores do bairro. Porém, no cotidiano de manutenção, o mais comum
era que uma ou poucas pessoas, ficassem responsáveis pelos cuidados
com a horta. Nesse período, o então vice-presidente do grupo era quem
estava mais à frente da tarefa. Dentre as razões que ele apontava para ter
decidido se dedicar à horta estava a de ser um espaço de reconexão com
seu passado, uma vez que havia nascido no interior da ilha de Santiago.
A consideração do vice-presidente ia ao encontro de uma compreensão
compartilhada por outros integrantes do grupo, de que as tarefas realizadas
na horta não se limitam aos aspectos materiais. Essa compreensão estava
associada à percepção de que os lugares são também atravessados por
forças que se modulam, fortalecendo-se, ou se enfraquecendo, a partir
de seus usos e principalmente das conexões que são estabelecidas. Uma
percepção que está presente também em outras esferas de atuação do
grupo, como a ocupação de edifícios abandonados, protestos contra a
construção de empreendimentos turísticos e nas considerações sobre os
impactos da degradação do ambiente no contexto urbano (Velloso, 2021).
Dentre as formas de enfraquecer as forças de um lugar que eram
mencionadas, talvez a que consideravam mais característica de processos

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Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 155

associados à lógica do “desenvolvimento” criticada pelo grupo é a do


apagamento de sua história, isto é, destituí-lo de suas conexões com o
passado, para torná-lo um espaço sem memória. Assim, os integrantes da
AP consideram que cuidar da horta é também cuidar dessas forças, através
de uma reconexão com uma memória de relações com o solo, plantas e
alimentos, que associam a formas de resistência ao colonialismo e, portanto,
à luta contra os modelos contemporâneos de exploração.
Diversos mecanismos de manutenção dessas forças são implementados
nos cuidados com a horta. Durante o período acompanhado, foram realizadas
diversas visitas a áreas rurais do interior da ilha de Santiago, onde consideram
que as relações com a terra e com as plantas ainda guardam a memória
das práticas desenvolvidas por comunidades camponesas que fugiram de
imposições do regime colonial e passaram a viver isoladas nas montanhas,
como o caso da comunidade dos Rabelados de Espinho Branco.7 Estar nesses
locais já é, por si só, compreendido como uma forma de reconexão, porém,
em alguns casos, os integrantes da AP faziam convites a agricultores – tanto
dos Rabelados como de outras comunidades rurais – para que fossem até
o espaço ver a horta e compartilhar do cotidiano do grupo.
Além de pessoas vindas de regiões rurais, essa reconexão com formas
tradicionais de cultivo da terra se dava também pela busca dos conselhos dos
moradores mas grandis (mais velhos) do bairro. Como mencionado, muitos
desses moradores vinham também de regiões rurais e alguns mantinham
hábitos de criação de animais e cultivo em suas casas. Era o caso dos pais
de alguns dos fundadores da AP, que iam à horta para dar orientações de
plantio e recolher o mato retirado para alimentar os animais de suas casas.
Assim, diferente das lógicas modernizantes para as quais esses hábitos são
contraditórios com a vida nas áreas urbanas, os ativistas da AP consideravam
que esses moradores guardam a memória de conhecimentos que podem
reconectar tais forças ao espaço da horta e cultivá-lo com a mesma relevância
que elementos físicos, como água e nutrientes no solo.
7
Comunidade formada em meados de 1930 por um grupo de famílias insatisfeitas com as
imposições coloniais na igreja católica e que decidiram se isolar nas montanhas do interior
de Santiago.

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156 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

Para os integrantes do Pilorinhu, a ideia de que o cuidado com a horta


envolve a reconexão com forças enfraquecidas também está relacionada à
recuperação de conhecimentos considerados como conectados às tradições
dos povos do continente africano e povos subalternizados no contexto
colonial. Não por acaso, a horta ganhou um impulso ainda maior quando,
em janeiro de 2016, foi o elemento articulador do intercâmbio com um
grupo de pesquisadores brasileiros que instalaram um protótipo do PAIS
no Pilorinhu. Esse sistema foi implementado em muitas comunidades
quilombolas, em terras indígenas e em assentamentos da reforma agrária no
Brasil. Foi desenvolvido, inicialmente, pelo engenheiro agrônomo senegalês
Aly Ndiaye, que explicava8 ter sido a partir da lembrança de práticas
agrícolas vivenciadas ao longo de sua vida no Senegal que desenvolveu
essa tecnologia de cultivo, a qual pretende ser um “sistema integrado e
autossustentável” de produção de hortaliças orgânicas.
Da forma como foi apresentada na AP a estrutura do PAIS compreende
círculos concêntricos de mangueiras de irrigação para plantio de hortaliças e
um galinheiro no centro. A proposta é que as galinhas comam os pequenos
animais que podem atrapalhar o desenvolvimento das hortaliças e o esterco
sirva de adubo para o solo, criando um sistema sintrópico de plantio sem
uso de defensivos químicos.
Apesar de não haver condições estruturais para produzir hortaliças em
maior escala, os integrantes do Pilorinhu decidiram criar um “protótipo”,
que funcionaria como “um laboratório”9 para o projeto. A partir de então, o
espaço também passou a ser referido como uma “sala de aula” onde se ensina
aquilo que um de seus implementadores denominou de “agrosaberes”,
enquanto proposta de ensino de diversas áreas do conhecimento através
do cuidado com as plantas. O projeto PAIS foi uma forma de ampliar essas
conexões, seja com o continente africano, seja com práticas de cultivo
presentes em territórios de resistência no Brasil.
8
Há diversas entrevistas e palestras de Aly Ndiaye disponíveis na internet explicando o
funcionamento e as concepções do projeto PAIS. Aquela em que ele dá a referida declaração
está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pXTFAdXoNjk.
9
Os termos eram utilizados pelos integrantes da AP ao apresentarem o sistema PAIS aos
visitantes da horta comunitária.

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Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 157

Observando o esforço de manutenção e (re)criação dessas conexões a


partir da lente do cuidado, podemos pensar que os integrantes do Pilorinhu
colocam em prática formas de cuidado que são sempre naturais-culturais, no
sentido que Bellacasa (2017) retoma a partir de Donna Haraway. São relações
que não separam essas duas formas de existência, pois não hierarquizam
os aspectos físicos como prioritários, subordinados à necessidade urgente
da produção, frente a uma dimensão que seria dispensável ou, no mínimo
acessória, da cultura.
De forma análoga, a noção de kumida di tera é mobilizada para nomear
tipos específicos de plantas cultivadas na horta, como mandioca, feijão,
papaia, por serem vegetais cultivados em Cabo Verde, “mas não apenas”
– para usar a expressão que Marisol De la Cadena (2018) aprende a partir
das cosmopolíticas indígenas andinas, acerca das formas de compreensão
que não se restringem àquilo que é hegemonicamente entendido como
natureza. Um mamão papaia que cresce na horta não é apenas uma fruta,
é uma fruta e “algo mais”. A kumida di tera é sempre o alimento e “algo
mais”; esse algo mais é natural-cultural, arriscamos dizer, pois está implicado
na reconexão com as forças que os cuidadores da horta entendem como
potencializadoras na resistência às estruturas dominantes de alimentação,
herdeiras do colonialismo.

Cuidar de si
A segunda dimensão do cuidado com a horta que gostaríamos de
propor corrobora a compreensão da seção anterior, de que a horta é um
espaço de reconexões que ultrapassa seus aspectos estritamente materiais.
Isso porque a mesma lógica de reativação de forças como cuidado com a
horta é compreendida como uma forma de cuidado de si.10 Os integrantes
10
Apesar de receber o mesmo nome, aqui a ideia de “cuidado de si” não se refere à ampla
análise da história das “técnicas de si” elaborada por Foucault. Contudo, vale destacar que
essa ideia está implicada em uma relação entre as pessoas e a coletividade da qual participam
que é antagônica ao modelo de subjetivação, característico da sociedade capitalista enquanto
“empresário de si”, tal como Foucault (2004) vai desenvolver em O nascimento da biopolítica.
Optamos por essa estrutura de nomeação das seções, a fim de ressaltar a relação de
indissociabilidade entre elas, enquanto diferentes dimensões de práticas de cuidado.

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158 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

do grupo se referiam à horta como um espaço para “pui kabesa friu” (esfriar
a cabeça). A simples atitude de entrar na horta e descalçar os sapatos para
sentir os pés na terra era referida por um deles como “terapia”.11 Uma
experiência que se tornava ainda mais potente quando, além de estar
na horta, alguém se dedicava às tarefas de cuidados para mantê-la. Em
determinadas situações de aborrecimentos pessoais, algumas pessoas do
grupo se voluntariavam para ficar à frente dos cuidados com a horta, com
a perspectiva que isso atenuasse seu humor.
Eles mencionavam que os cuidados com a horta implicam uma
desaceleração, uma calma, que se contrapunha às pressões da lógica de
uma sociedade produtivista. Criar tempo para cuidar da horta significava
colocar-se em conexão com os tempos das relações ali agenciadas, que
não estão subordinadas às vontades humanas – o tempo das plantas, o
tempo das chuvas. Aqui, o cuidar da horta como forma de cuidar de si
está baseado em se colocar em relação com os seres e forças que povoam
esse espaço, não em uma lógica utilitarista de bem-estar e temporalidade
exclusivamente humana (Bellacasa, 2015).
Outro aspecto fundamental de aproximação entre o cuidado com a
horta e cuidados de si é a compreensão de que os alimentos cultivados na
horta podem funcionar como remédio para cura ou prevenção de doenças.
Algumas das plantas cultivadas na horta são consideradas como contendo
propriedades medicinais e referidas, segundo a expressão utilizada em Cabo
Verde, rámedi di tera (remédio da terra), tais como o xalí (o capim-limão
no Brasil) e a moringa, ambas utilizadas para preparos de chá consumidos
em ocasiões de necessidades de cuidados. Mas, apesar de o uso de plantas
para processos de cura em Cabo Verde ser um amplo campo de reflexões
que merece estudos mais específicos, no que tange à horta do Pilorinhu, a
ideia de cuidados consigo através de vegetais está também relacionada com
a compreensão de que uma alimentação saudável é baseada na ingestão
prioritária de kumida di tera.

11
Em crioulo cabo-verdiano o termo é um jogo que aglutina as palavras “terra” e “terapia”.

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Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 159

Uma das formas em que essa compreensão aparece é em relação


ao tema do vegetarianismo. No contexto do ativismo em Cabo Verde,
é comum conhecer pessoas que decidiram parar de comer carne. Para
alguns, essa opção era inspirada pela adesão ao rastafarianismo, ou, como
no caso de um dos integrantes da AP, que afirmava que mesmo não se
vendo como um “rasta propri” (um rasta mesmo), optou por não comer
carne, pois considerava que sua ingestão o tornava “mais agressivo”.
Contudo, o tema não era um consenso entre os integrantes do grupo.
Quando o debate surgia, alguns argumentavam que a questão não estava
em deixar de comer carne, mas em qual carne estava sendo ingerida.
Para os partidários dessa perspectiva, as carnes importadas, assim como
os alimentos de origem vegetal industrializados, é que não fazem bem,
enquanto a carne de um animal criado ou um vegetal cultivado segundo
modos culturalmente tradicionais em Cabo Verde não são nocivas, mas
sim formas de fortalecimento do corpo. Dessa forma, os vegetais cultivados
na horta eram tratados por ambos – vegetarianos e carnívoros – como
alimentos benéficos à saúde e que representavam a conexão com formas
de resistência ao colonialismo.
Contudo, mesmo quando compreendidas como uma forma de cuidado
consigo, as relações com a horta nunca são formas de relação que privilegiam
o indivíduo. Como observa Bellacasa (2015) acerca da ética do cuidado
acionada através de práticas de ecoativismo na permacultura, o cuidado da
horta como cuidado de si é necessariamente coletivo, pois está assentado
na percepção de interdependência entre humanos, plantas e, no caso da
horta do Pilorinhu, forças de resistência à lógica colonial e ao produtivismo
contemporâneo. A máxima anteriormente mencionada, que correlaciona
o estado da horta ao estado do grupo, opera em uma escala que também
conecta o pessoal ao coletivo.
A presença de pessoas com um estado emocional em conflito,
ou seja, sem uma relação benéfica de cuidados consigo mesmo, era
compreendida como uma potencialmente capaz de afetar os outros
elementos, humanos e não humanos, que participam dessa rede de

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160 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

relações. Um caso emblemático, nesse sentido, ocorreu na ocasião em que


uma pessoa que havia sido chamada para realizar uma pequena obra no
espaço foi mordida pelo cachorro que vivia no Pilorinhu. Apesar do porte
de cão de guarda, aquela foi a primeira vez que o cão atacara alguém
dentro do espaço e tanto os integrantes do grupo como o próprio rapaz
que sofreu a mordida consideraram que o cachorro havia pressentido
que ele estava carregando uma “energia negativa” que podia afetar a
dinâmica das forças ali presentes.
Essas percepções, que muitas vezes são desqualificadas sob o registro
de “crenças” frente a formas legitimadas de “conhecimento”, indicam uma
compreensão muito específica de interação entre seres, forças, humanos
e não humanos que está presente em cosmologias tradicionais em Cabo
Verde (Rocha, 2014). É a partir dessa percepção que a ideia do cuidar de
si – seja através da interação com o tempo das práticas de cuidado para
manutenção da horta, seja através de uma alimentação baseada em kumida
di tera – pode ser pensada como uma forma coletiva de cuidado, que se
torna ainda mais complexa quando a escala é pensada a partir das relações
entre a horta e a comunidade.

Cuidar da comunidade
O aspecto relacional evidenciado pela perspectiva do cuidado, no
qual o cuidado pessoal está inextricavelmente vinculado ao cuidado com a
terra e com o coletivo, pode ser estendido às relações que se estabelecem
a partir da horta do Pilorinhu com a comunidade da AGF. A horta não
apenas é frequentada por aqueles que atuam à frente das atividades da
AP, mas também é um espaço de convívio onde as pessoas se reúnem para
conversar, para contar histórias e, para os jovens, é referida como um lugar
de “inspiração” para criação conjunta de músicas e poemas. Essa mesma
potencialidade criativa trata da horta como um espaço de aprendizado para
ter e dar aulas. Muitas vezes, esses momentos são realizados em conjunto
com as crianças de escolas do bairro, que demonstram um imenso prazer
de estar naquele local. E não só para as crianças a horta é um espaço de

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 161

aprendizado, algumas atividades de estudos também ocorrem ali, como


uma aula sobre pan-africanismo para os integrantes do grupo, realizada
entre as mudas de verduras recém-plantadas.
Outra dimensão do engajamento coletivo entre os integrantes do
grupo e a comunidade são os momentos de realização de ações coletivas
para cuidados com a horta. Isso ocorreu tanto no processo de instalação
do projeto PAIS, quanto na expansão da horta para cultivo de legumes e
frutas, mas também em momentos em que a horta estava necessitando
de cuidados urgentes, pois as plantas se encontravam em mau estado. As
práticas de ações coletivas para realização de tarefas em Cabo Verde são
nomeadas pela expressão em crioulo djunta mon, que pode ser literalmente
traduzida para o português como “juntar mãos” e que se aproxima daquilo
que no Brasil são denominados “mutirões”. No contexto da AP o djunta mon
é tomado como um princípio no qual o grupo busca basear ações concretas
– como ações para conserto de casas de famílias do bairro, ou atividades
de limpeza e preservação dos espaços da comunidade – e compreendido
como forma de cuidado coletivo que buscam cultivar.
Desde o início, a horta foi pensada como espaço para a aplicação
do princípio de djunta mon na alimentação. Como afirmamos, sempre
que possível, os vegetais plantados na horta são oferecidos a algumas
famílias do bairro. Porém, ainda que isso nunca possa efetivamente sanar
a vulnerabilidade alimentar que afeta especialmente as casas chefiadas por
mulheres nesses contextos (Simões et al., 2019), essa prática da partilha é
mantida como forma de valorização de tecnologias sociais de cooperação.
De maneira semelhante, frequentemente associam a horta à prática de
compartilhamento de alimentos existente no bairro, denominada de troka
pratu (troca de pratos), que envolve a partilha de refeições entre membros
de uma mesma família ou vizinhança. Em diversas ocasiões, os integrantes do
grupo mencionavam que a prática de partilha de refeições era fundamental
para a manutenção de relações comunitárias, não apenas por uma lógica
da necessidade. Assim como lembrou uma vez um dos integrantes da AP,
que todas as vezes que algum colega lhe batia, sua mãe o obrigava a levar
um prato de comida na casa dele.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


162 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

A troca de refeições como forma de manutenção de relações


comunitárias está também emaranhada na noção de kumida di tera. Os
pratos que são designados com essa qualificação como, a cacthupa, a masa
de milho, o caldo de farinha de milho com louro, o arroz com sapatinha,
são as comidas que usualmente são servidas nas tarefas de ação coletiva.
Em cada situação de djunta mon, espera-se poder oferecer uma farta
refeição de kumida di tera.
Contudo, a conexão entre os cuidados com a horta, os cuidados
de si e com a comunidade não devem ser compreendidos como uma
obrigação moral. Não se trata da coerção baseada em valores externos
prescritos como a maneira correta de se relacionar com as plantas, com a
alimentação e mesmo com a partilha de alimentos. Como salienta Bellacasa
(2015) acerca das relações de cultivo nas quais os cuidados com a terra
são compreendidos como inseparáveis do cuidado pessoal e do cuidado
coletivo, “a interdependência ecológica não é um princípio moral, mas uma
restrição material vivida – exigida e obrigatória” (p. 160). Tais relações de
cuidado são, portanto, consequência de uma compreensão sobre cultivo e
alimentação assentada na interdependência mútua entre natureza, pessoas,
coletividades e as forças que às compõem.

Conclusão: Kumida di tera uma perspectiva contra-colonial


das relações alimentares
Como mencionamos, na introdução deste artigo, a qualificação di
tera foi implementada em Cabo Verde para distinguir pessoas nascidas
e alimentos produzidos no arquipélago. Essa designação também era
empregada em outros contextos coloniais, como o uso do termo “da
terra” no Brasil, para se referir às espécies e alimentos nativos. Portanto,
de uma perspectiva colonial, aquilo que é “da terra” remete à origem e
demarca uma oposição àquilo que vem “do reino”, ou foi trazido pelos
colonizadores. Essa perspectiva de contar a história dos deslocamentos de
espécies, pessoas e conhecimentos é uma forma de apagar o protagonismo

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 163

dos povos africanos na inserção, preservação e criação de técnicas de cultivo


e preparo de alimentos (Carney, 2017).
Os colonizadores foram de fato responsáveis por “adestrar” as plantas
para seus interesses comerciais, adaptando-as às condições distintas do
ambiente de quais foram retiradas. Porém, foram as pessoas escravizadas
que, através de seus conhecimentos sobre agricultura e usos das espécies,
criaram novos sistemas de cultivo e preparos de alimentos. Esses sistemas,
muito além de atender aos objetivos comerciais, permitiram a garantia de
sua alimentação, não apenas como forma de subsistência, mas também
buscando manter seus hábitos alimentares e suas formas próprias de interação
com a terra, a água, o clima e as espécies animais e vegetais.
A partir das reflexões que apresentamos, pretendemos contribuir com
elementos para desestabilizar a história da alimentação em Cabo Verde
contada desde o ponto de vista colonial, bem como para complexificar as
chaves de leitura centradas nas limitações ambientais ou na prescrição da
modernização da agricultura. Nossa proposta foi refletir a partir do âmbito
político, mas da política engendrada através de práticas de cuidado com
cultivo e alimentação na horta comunitária da AP, uma vez que mobiliza
elementos materiais e imateriais que guardam as forças de resistência
ao colonialismo.
A teia de relações de cuidado engendradas na horta da AP nos inspirou
a refletir sobre a noção de kumida di tera como uma teoria etnográfica que
se contrapõe às compreensões produtivistas e hegemônicas de alimentação.
É nesse sentido que pensamos kumida de tera como uma perspectiva
contracolonial, no sentido elaborado pelo líder quilombola brasileiro
Antônio Bispo dos Santos (2015), que enfatiza o antagonismo entre as forças
dominantes que atravessam toda história do empreendimento colonial e
as forças de resistência a esses processos. Pois é justamente a possibilidade
de conexão com essas forças contracoloniais que faz da kumida di tera
“algo mais” que comida. Nesse sentido, a noção de kumida di tera vai ao
encontro das teorias que evidenciam que a alimentação não está restrita
aos aspectos nutricionais (Scrinis, 2013; Mol, 2012). No contexto específico

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


164 Natalia Velloso & Vladmir Ferreira

de Cabo Verde, ela estabelece conexões com a memória de resistência ao


colonialismo e às lógicas alimentares dominantes da contemporaneidade
– que do ponto de vista histórico e etnográfico aqui abordado, possuem
uma íntima relação.
Ao evocarmos a noção de kumida di tera a partir das práticas de cuidado
com a horta do Pilorinhu, pretendemos demonstrar que a expressão não
está restrita a uma forma de qualificar determinados tipos de comida.
Também, não quisemos aqui reafirmar uma lógica identitária das origens
dos alimentos. Menos ainda quisemos nos aproximar dos usos da noção
para estratégias de marketing na indústria alimentar. Pretendemos, assim,
pensar kumida di tera como um conhecimento sobre alimentação implicada
na compreensão de uma rede de relações de cuidado interdependentes
entre pessoas, solos, plantas, corpos, forças que resistiram e resistem, por
séculos, ao apagamento, ou negligência, dessas conexões.

Natalia Velloso Santos é Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ).
 nataliavellososantos@gmail.com

Vladmir Ferreira é Doutor em Ciências Sociais, docente e pesquisador na Faculdade de


Ciências Sociais, Humanas e Artes da Universidade de Cabo Verde, atuando na área de
Sociologia com ênfase em Sociologia Rural e do Desenvolvimento.
 vladmir.ferreira@adm.unicv.edu.cv

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Kumida di tera: relações de cuidado e alimentação em Cabo Verde 165

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Recebido: 6 dez. 2021.


Aceito: 26 abr. 2022.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 138-167.


Artigos
Interfaces
Resenhas
170 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel BaruqueARTIGOS
Rodrigues
170

http://doi.org/10.1590/15174522-106022

O perfil dos bolsistas de produtividade em


pesquisa do CNPq em Sociologia
Amurabi Oliveira*
Marina Félix Melo**
Mayres Pequeno***
Quemuel Baruque Rodrigues***

Resumo
O artigo objetiva apresentar e analisar o campo acadêmico dos bolsistas de
produtividade do CNPq (PQs) em Sociologia no Brasil. Trazemos uma revisão de
literatura e um estudo quantitativo descritivo sobre os bolsistas no país a partir de
um marco teórico que considera as implicações do conceito de campo acadêmico
e científico de Pierre Bourdieu. O estudo responde sobre o processo de formação
de um bolsista PQ no Brasil; analisa o perfil dos bolsistas PQ em sociologia e discute
sobre o caso dos bolsistas de produtividade nível 1A do CNPq na sociologia, estrato
mais elevado das bolsas de produtividade.
Palavras-chave: produção acadêmica, bolsistas de produtividade, campo acadêmico.

*
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
**
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil.
***
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 171

The profile of CNPq research productivity grantees in Sociology

Abstract
The article aims to present and analyze the academic field of CNPq research
productivity grantees (PQs) in Sociology in Brazil. The work draws on literature
review and a quantitative descriptive study on research grantees in Brazil based on
a theoretical framework that considers the implications of Pierre Bourdieu’s concept
of academic and scientific field. The study inquires into the process of becoming
a PQ grantee in Brazil; analyzes the profile of PQ grantees in the field of sociology
and discusses the case of CNPq level 1A research productivity grantees in sociology,
the highest stratum of researchers’ productivity.
Keywords: academic production, productivity fellows, academic field.

Introdução

O
processo de institucionalização da Sociologia no ensino superior
no Brasil inicia-se ainda na década de 19301, com a criação dos
primeiros cursos de Ciências Sociais, que passam a constituir o
espaço de formação do corpus profissional da Sociologia, baseando-se num
arranjo interdisciplinar. Esse arranjo implicou a articulação da Sociologia
com outras ciências, tais como Antropologia, Ciência Política, História,
Economia etc., que se transmutou, a partir da segunda metade do século XX,
num arranjo mais enxuto, envolvendo a Antropologia e a Ciência Política,
o que reflete a crescente autonomização disciplinar dos campos correlatos.
1
O início da institucionalização da Sociologia no Brasil ocorreu ainda no final do século XIX,
com o advento das primeiras cátedras na educação secundária (Oliveira, 2013). Entretanto, a
partir da década de 1930 temos a criação dos primeiros cursos superiores em Ciências Sociais.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


172 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel Baruque Rodrigues

Podemos reconhecer que esse processo se realizou de forma relativamente


heterogênea no país, implicando diferentes graus de autonomização das
ciências sociais (Miceli, 1989). Tais processos inserem-se numa lógica mais
ampla da geopolítica acadêmica, que hierarquiza os diferentes agentes e
instituições desse campo, refletindo as disputas em torno de uma determinada
narrativa sobre as ciências sociais (Reesink; Campos, 2014).
No bojo do desenvolvimento da pesquisa no território nacional, devemos
destacar o advento, em 1951, do Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq
(atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico),
e da Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal Nível Superior, a CAPES
(atual Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Tais
instituições constituem peças fundamentais para o processo de consolidação
da pós-graduação, que se acelera no contexto da Reforma Universitária de
1968, no qual emergem os primeiros cursos de mestrado e doutorado num
modelo próximo ao que temos hoje. Também contribuiu para isso o envio
de estudantes e pesquisadores brasileiros para o exterior e a implementação
de um amplo sistema de bolsas no país (Martins, 2018).
É importante ressaltar, aqui, os distintos perfis institucionais que a
CAPES e o CNPq possuem na dinâmica acadêmica brasileira. A CAPES é
vinculada ao Ministério da Educação, atuando na expansão e consolidação
da pós-graduação stricto sensu no Brasil e, desde 1976, é responsável
pela avaliação periódica desses cursos. Essa instituição financia a pós-
graduação nacional, especialmente através de bolsas de mestrado, doutorado
e pós-doutorado/estágio de professor visitante, e desde 2007 também está
incumbida de estimular a formação inicial de professores. Por outro lado,
o CNPq está vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações, cujas atividades se vinculam principalmente ao estímulo
à pesquisa científica, principalmente através do financiamento de bolsas
individuais nas duas mais diversas modalidades, dentre elas, a bolsa de
produtividade em pesquisa (PQ).
É nesse contexto que emergem os primeiros cursos de pós-graduação
em Sociologia do Brasil, havendo um incremento paulatino da diversidade

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 173

regional da pós-graduação em Sociologia/Ciências Sociais2 no Brasil (Barreira


et al., 2018).3 Ainda que essa seja uma tendência mais geral observada em
diversas áreas do conhecimento no período, soma-se, no caso específico
das Ciências Sociais, o advento da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1977. A ANPOCS passou a
organizar encontros anuais que se configuram como um importante locus
de divulgação dos resultados das pesquisas realizadas na pós-graduação.
Ressalta-se, ainda, que essa associação teve um papel bastante central na
institucionalização e fortalecimento das Ciências Sociais, especialmente
no caso da Sociologia, cuja associação nacional teve suas atividades
interrompidas entre 1963 e 1985, e da Ciência Política, cuja associação
foi fundada apenas em 1986.4
O agrupamento e o relacionamento institucional entre as três Ciências
Sociais no Brasil reflete, portanto, o percurso socio-histórico que essas
ciências assumiram no país. Apesar de se poder apontar que a gênese
2
Em termos de pós-graduação, atualmente, a área de Sociologia é responsável não apenas
pela avaliação dos cursos de Sociologia no sentido estrito, como também de Ciências Sociais
(que devem abarcar as áreas de Antropologia, Ciência Política e Sociologia) e aqueles
híbridos que existem articulando as áreas de Antropologia e Sociologia e de Sociologia e
Ciência Política.
3
Os primeiros programas de pós-graduação criados no Brasil foram os seguintes:
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1967, Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro (IUPERJ) em 1969, Universidade de Brasília (Unb) em 1970, Universidade
de São Paulo (USP) em 1971, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em
1973, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1973, Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1974, Universidade Federal do Ceará (UFC) em
1976, Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 1977, no campus II (atual Universidade
Federal de Campina Grande) e, em 1979, no campus I.
4
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi fundada em 1955 e manteve suas
atividades de forma ininterrupta desde então, embora se deva ressaltar que sua VII Reunião,
que viria a ocorrer no ano de 1965, apenas aconteceu em 1966, devido ao golpe militar. Por
outro lado, a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) teve o primeiro congresso realizado
em 1954 e o segundo em 1962, e como consequência da ditadura militar brasileira, apenas
em 1987 essa associação retomou seus congressos bianuais. No caso da Ciência Política,
em parte a fundação tardia da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) pode ser
explicada pelo fato de essa disciplina ter-se institucionalizado mais tardiamente em relação
às demais Ciências Sociais no Brasil (Oliveira et al., 2020). Para uma visão mais ampla sobre
o papel da ANPOCS na institucionalização e desenvolvimento das Ciências Sociais no Brasil
vide Reis, Reis e Velho (1997).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


174 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel Baruque Rodrigues

dessa configuração se encontra na criação dos cursos de Ciências Sociais


na década de 1930, esse termo implicava uma concepção mais ampliada
do que a atual, como bem pode atestar a divisão de estudos pós-graduados
da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada na década de
1940. Com isso queremos afirmar que a compreensão hoje vigente das
Ciências Sociais é, em grande medida, devedora do cenário institucional
consolidado pela ANPOCS, que enquanto possibilitou um profícuo diálogo
interdisciplinar entre as três áreas, também fortaleceu seu processo de
delimitação de fronteiras disciplinares.
Pode-se observar, ainda, que a expansão da pós-graduação em
Sociologia acelerou-se a partir dos anos 2000, fenômeno acompanhado
de uma expansão do financiamento para a pesquisa através de agências
de fomento que oferecem diferentes modalidades de bolsas e auxílios. Isso
também reflete um cenário mais geral de expansão do ensino superior no
Brasil, algo que foi acelerado significativamente a partir da segunda metade
da década de 1990 (Neves et al., 2007).
Tal expansão no âmbito da pesquisa e da formação de quadros tem
implicações também sobre o crescimento da produção acadêmica na área.
Essa produção, além de sua dimensão quantitativa, possui uma estrutura
profundamente hierarquizada qualitativamente, dentro do sistema Qualis
coordenado pela CAPES. Nesse sistema, os periódicos vinham sendo
avaliados por áreas de conhecimento, recebendo uma nota dentro da
seguinte escala, em ordem crescente: C, B5, B4, B3, B2, B1, A2, A1.5 A
publicação em periódicos situados no estrato superior do Qualis (B1, A2,
A1) veio a constituir um dos principais critérios de avaliação dos programas
de pós-graduação, que implica a classificação dos mesmos numa escala
que vai de 1 a 7, sendo 3 a nota mínima para seu funcionamento.
5
É sabido que o sistema de classificação do Qualis está em processo de modificação ou
mesmo de substituição por outras métricas internacionais. Todavia, enfatizamos a maneira
como ele estava estruturado no momento da entrada no sistema dos atuais bolsistas de
produtividade do CNPq, considerando-se que foi a partir de tais critérios que seus pedidos
foram avaliados.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 175

Em um contexto no qual a produção científica ganha cada vez mais


protagonismo no campo acadêmico, o processo de reconhecimento dos
pares por meio da bolsa PQ do CNPq passa a ser um forte elemento
distintivo entre os diferentes agentes sociais. Estamos a falar de um signo
de inter-reconhecimento no campo, que situa determinados agentes no
topo da hierarquia acadêmica, podendo ser considerado um importante
elemento de distinção (Bourdieu, 2007).
No presente artigo, realizamos dois movimentos. Em um primeiro
momento, descrevemos o perfil dos bolsistas PQ na área de Sociologia,
exercício realizado a partir de um levantamento junto a todas as bolsas em
curso; num segundo momento, focalizamos, especificamente, os bolsistas
classificados como 1A. O objetivo geral de nosso trabalho é apresentar o
perfil dos bolsistas PQ de Sociologia no Brasil, para assim compreender
o movimento mais geral da trajetória desses agentes. Para uma melhor
compreensão por parte de leitores e leitoras, expomos, num primeiro
momento, as normas e procedimentos específicos que orientam a bolsa
PQ no comitê de Ciências Sociais.

Como se tornar um bolsista PQ


As bolsas PQ são uma das modalidades de bolsa oferecida pelo CNPq,
tendo como particularidade o fato de ser destinada a pesquisadores que
desfrutam de alto reconhecimento entre seus pares. Essa modalidade de
bolsa existe no CNPq desde 1976, tendo passado por inúmeras alterações
nos níveis e nos valores, e atualmente está dividida e hierarquizada em
três categorias: Sênior (PQ-SR), PQ-1 (sendo a categoria 1 subdividida nos
níveis 1A, 1B, 1C e 1D) e PQ-2. Apesar da existência dos pré-requisitos
gerais estabelecidos pelo CNPq, há ainda os critérios de qualificação
definidos pelos Comitês de Assessoramento de cada área ou pelo Conselho
Deliberativo (CD) do CNPq, no caso de Pesquisador Sênior. Tais bolsas
são requisitadas individualmente pelos pesquisadores e possuem distintas
durações, sendo 36 meses para a nível 2, 48 meses para as bolsas de nível 1,
e 60 meses para as bolsas sênior. Os pesquisadores nível 1 também recebem,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


176 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel Baruque Rodrigues

além da bolsa, o auxílio banca, que visa auxiliá-los no financiamento de


pesquisas, participação em eventos científicos, processos de editoração
de suas publicações etc.
A relevância das bolsas PQ tem se ampliado, principalmente a partir
de 1990, havendo um crescimento em sua oferta que se acelera a partir
dos anos 2000, o que também acompanha a expansão da pós-graduação
no mesmo período. Na leitura de Guedes, Azevedo e Ferreira (2015), a
intensificação do interesse por essas bolsas se relaciona à valorização que
lhe é conferida pela política de Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil.
Tais bolsas são também requisitos para outras modalidades de financiamento
desse órgão. Isso demonstra como o acesso à bolsa PQ reflete uma lógica
de distribuição heterogênea de capital no campo acadêmico, que demarca
uma evidente distinção simbólica entre esses pesquisadores e os demais.
Ainda, no processo de criação e avaliação dos Programas de Pós-Graduação,
o percentual de bolsistas PQ é considerado um elemento importante na
atribuição de nota ao programa, ainda que não seja determinante.
Os bolsistas PQ são também os que constituem o corpo de avaliadores
de pedidos de novas bolsas e auxílios nas mais diferentes modalidades
oferecidas pelo CNPq. Ser bolsista PQ é considerado como um requisito
preferencial para a ocupação de posição de coordenador de comitê de
pesquisa em determinadas instituições, bem como para a avaliação externa
de projetos de universidades e fundações locais de amparo à pesquisa.
Deve-se considerar, ainda, que há uma distribuição desigual entre as
diferentes grandes áreas do CNPq, que atualmente são três: “Engenharias,
Ciências Exatas e da Terra”, “Ciências Humanas” e “Ciências da Vida”.
Segundo a análise de Jesus de Oliveira (2016), o fato de a comunidade
científica das “ciências duras” ter estabelecido fortes laços com a burocracia
de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), no período de institucionalização
dessa política no Brasil, teve implicação direta na predominância de metas
quantitativas em detrimento de objetivos qualitativos na orientação desse
campo. Admitindo que os agentes com maior capital em um determinado
campo são capazes de “deformar as regras” desse campo (Bourdieu,

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 177

2004), isso significa reconhecer que as orientações mais gerais que regem
as normas de concessão das bolsas de pesquisa no país são pensadas,
predominantemente, a partir da lógica própria dos agentes que dominam
esse campo, no caso, aqueles vinculados às “ciências duras”.
A área de Sociologia está inserida no comitê de Ciências Sociais –
Antropologia, Arqueologia, Ciência Política, Direito, Relações Internacionais
e Sociologia, cujos membros possuem um mandato de três anos. Atualmente,
esse comitê é integrado por quinze membros, sendo três da área do Direito,
três da Antropologia, três da Ciência Política, três da Sociologia, dois da
Arqueologia e um das Relações Internacionais. Os atuais representantes da
área de Sociologia são professora e professores em programas de excelência
acadêmica, atuando nos programas de pós-graduação em Sociologia da UFRGS
(nota 7), da UFPE (nota 6) e da USP (nota 6), bolsistas PQ nível 1B, 1B e 1C,
respectivamente. Esse dado nos revela que, atualmente, apenas professores
que já chegaram ao nível e que estão situados em programas de excelência
compõem o referido comitê como representantes da área de Sociologia.
A indicação desses membros deve ser realizada pela comunidade
científica nacional, sendo consultados para tanto: a) pesquisadores 1,
constantes do Programa de Bolsas de Produtividade em Pesquisa; b)
pesquisadores 1 e 2, constantes do Programa de Bolsas de Produtividade
em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora; c) sociedades
científicas e tecnológicas de âmbito nacional; d) associações civis de âmbito
nacional com atuação na área tecnológica e inovação. Observa-se, com
isso, que o prestígio acadêmico junto aos pares é uma condição relevante
para se tornar membro do CA de sua área. Destacamos ainda que, no
âmbito das sociedades científicas, constam atualmente 12 entidades que
podem realizar indicações ao comitê das Ciências Sociais, incluindo-se
ABA, ABCP, ANPOCS e SBS,6 o que aponta para a relevância desses espaços
institucionais no campo.
Atualmente há 219 bolsistas PQ em Sociologia. Considerando o comitê
no qual essa área está inserida (Ciências Sociais), pode-se indicar que se trata
6
Associação Brasileira de Antropologia; Associação Brasileira de Ciência Política; Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; Sociedade Brasileira de Sociologia.

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178 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel Baruque Rodrigues

da disciplina com o maior número de bolsistas.7 Esse número expressivo


sugere uma posição dominante no comitê de Ciências Sociais do CNPq, o
que, em parte, pode ser explicado pelo fato de que a área de Sociologia na
CAPES também incorpora os programas em Ciências Sociais. Embora se deva
considerar que nem todos os bolsistas PQ de Sociologia estão vinculados a
programas na área, e que pesquisadores de Antropologia e Ciência Política
que atuam em Programas de Ciências Sociais possam concorrer a bolsas PQ
em suas áreas, é interessante observar que isso leva os agentes do campo
a enfrentar demandas distintas. Pesquisadores vinculados aos programas
de Ciências Sociais são avaliados na CAPES de acordo com o Qualis de
Sociologia, enquanto, ao demandarem por uma bolsa PQ em suas áreas,
serão avaliados pelo Qualis das áreas de seus projetos, conforme indicação
realizada no momento da submissão.
Como requisitos formais para pleitear a bolsa PQ, é necessário que o
candidato seja professor doutor, brasileiro ou estrangeiro em situação regular
no país, dedicar-se às atividades constantes de seu pedido de bolsa e, se
aposentado, manter atividades acadêmico-científicas oficialmente vinculadas
a instituições de pesquisa e ensino. Ainda como regra geral, é necessário
ter finalizado o doutorado há, no mínimo, três anos para implementação
da bolsa nível 2, e oito anos para a bolsa nível 1.
O pedido de bolsa deve considerar, em todo caso, os seguintes requisitos
em conjunto, para avaliação e classificação dos candidatos: a) mérito
científico do projeto; b) relevância, originalidade e repercussão da produção
científica do candidato; c) formação de recursos humanos em nível de
pós-graduação; d) contribuição científica, tecnológica e de inovação,
incluindo patentes; e) coordenação ou participação em projetos e/ou
redes de pesquisa; f) inserção internacional do proponente; g) participação
como editor científico; h) participação em atividades de gestão científica e
acadêmica. Todos esses aspectos são avaliados por pares, que são também
bolsistas de produtividade na mesma área de conhecimento (CNPQ, 2015).
7
Há 173 bolsistas em Antropologia, 140 em Ciência Política (incluindo Relações
Internacionais), 80 em Direito e 50 em Arqueologia.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 179

O atual documento que rege as normas específicas do Comitê de Ciências


Sociais indica que a produção científica será avaliada com peso numérico
não inferior a 50%, considerando artigos em periódicos especializados,
capítulos de livros, livros ou equivalentes em produção artística.
Há ainda normativas específicas por área de conhecimento dentro do
mesmo comitê, de modo que a área de sociologia tem como requisito mínimo
para pleitear a bolsa nível dois: dispor de cinco publicações nos últimos três
anos, considerando-se exclusivamente artigos em periódicos especializados
avaliados pelo Qualis periódicos da Capes, capítulos de livros, livros ou
equivalentes e, no mínimo, duas orientações concluídas de Mestrado como
orientador principal. Para a bolsa nível 2 são avaliados os últimos cinco anos
de produção do pesquisador; e, para a bolsa nível 1, seus últimos dez anos.
Nesse ponto, deve-se observar duas questões: a) ainda que predominem
entre os bolsistas aqueles que atuam em programas de pós-graduação
avaliados na área de Sociologia, esse não é um requisito para ser bolsista PQ
na área. O pesquisador pode vincular-se a programas em áreas correlatas,
ou ainda possuir um título de doutorado em outras áreas. O comitê avalia
o projeto de pesquisa e o perfil acadêmico do candidato, com destaque
para sua produção; b) como nossa amostra é constituída por pesquisadores
que se tornaram PQ antes das mudanças no Qualis, isso significa que suas
produções acadêmicas foram avaliadas com base no estrato em que se
situavam na área de Sociologia, ainda que eventualmente tais pesquisadores
estivessem vinculados a programas em áreas correlatas.
O pesquisador, ao solicitar a bolsa, não indica o nível ao qual está
pleiteando, ainda que tenha os requisitos mínimos para que a mudança de
nível possa ocorrer. É uma prerrogativa do comitê avaliar qualitativamente
a mudança de nível, o que significa dizer que, a rigor, um pesquisador
pode passar toda sua carreira como pesquisador nível 2, sem realizar a
mudança de nível.
O requisito mínimo para chegar ao nível 1D é o de ter publicado ao
menos três artigos (Qualis A1 e A2) ou um livro; ter orientado ao menos um
aluno de doutorado, ou dois de mestrado quando vinculado a programa

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


180 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel Baruque Rodrigues

que não possua curso de doutorado ou que foi criado há menos de quatro
anos; participar da gestão acadêmico-científica de sua instituição; participar
regularmente de eventos nacionais e internacionais em sua área. Para os
níveis 1A e 1B é necessário ter publicado ao menos cinco artigos (qualis A1
e A2), ou livro, ou duas coletâneas; sua vinculação a um grupo de pesquisa
deve se dar preferencialmente como coordenador; deve ter orientado ao
menos cinco dissertações de mestrado ou três teses de doutorado; participar
da gestão acadêmico-científica de sua instituição, entidades científicas e
em órgãos de fomento à pesquisa; participar de editoração de periódicos
ou coletâneas na área; manter intercâmbio regular e produtivo com a
comunidade científica internacional.
Os requisitos indicados pelo comitê para o nível 1A se deslocam para
uma direção diferente do que se coloca explicitamente nos níveis anteriores,
por secundarizar uma dimensão “estritamente quantitativa”, apontando para
requisitos afinados com os critérios de consagração e distinção acadêmica.

Este nível é reservado a candidatos que tenham mostrado excelência continuada


na produção científica e na formação de recursos humanos, e que liderem
grupos de pesquisa consolidados. O perfil deste nível de pesquisador deve, na
maior parte dos casos, extrapolar os aspectos unicamente de produtividade
para incluir aspectos adicionais que mostrem uma significativa liderança
dentro da sua área de pesquisa no Brasil e capacidade de explorar novas
fronteiras científicas.

Assim, a este nível poderão ser conduzidos os pesquisadores que, cumpridos


os critérios anteriores, ao longo de suas carreiras tenham dado uma inequívoca
contribuição científico acadêmica à área, em todos os quesitos considerados
importantes para um bolsista em produtividade (produção científica do
candidato; formação de recursos humanos; coordenação ou participação
em projetos de pesquisa; atividades editoriais ou de gestão, de administração
de instituições e núcleos de excelência científica e tecnológica, organização e
coordenação de convênios de formação de recursos humanos e de intercâmbio
de pesquisadores, e de eventos acadêmicos de repercussão para a área; ou,
ainda, contribuição para inovação). (CNPQ, 2018, p. 55)

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 181

Tais critérios evidenciam que as regras de consagração do campo


acadêmico são bastante complexas e, muitas vezes, não são passíveis de
uma mensuração quantificável. Justamente aqueles situados no nível mais
alto que pode ser atribuído pelo comitê não são avaliados a partir de uma
determinada quantidade de artigos ou orientações em pós-graduação. Deve-
se considerar nesse contexto que o prestígio possui um peso significativo no
campo acadêmico (Bourdieu, 2011). Os bolsistas nível 1A, como poderemos
examinar mais cuidadosamente na próxima seção, possuem uma trajetória
bastante distintiva em relação aos demais pesquisadores do CNPq, seja em
termos de geração, formação ou de inserção institucional. A distinção de
tais pesquisadores se deve, principalmente, ao acúmulo de capital científico
que realizaram ao longo de suas trajetórias. Para compreensão dessa posição
é necessário reconhecer as singularidades desse tipo de capital:

Esse capital [científico], de um tipo inteiramente particular, repousa, por sua


vez, sobre o reconhecimento de uma competência que, para além dos efeitos
que ela produz [...], proporciona autoridade e contribui para definir não
somente as regras do jogo, mas também suas regularidades, as leis segundo
as quais vão se distribuir os lucros nesse jogo, as leis que fazem que seja ou
não importante escrever sobre tal tema, que é brilhante ou ultrapassado, e o
que é mais compensador publicar no American Journal de tal e tal do que na
Revue Française disso e daquilo (Bourdieu, 2004, p. 27).

Esse capital, ainda de acordo com Bourdieu (2004), pode ser de


dois tipos: a) capital de poder político, institucionalizado, que está ligado
a posições importantes ocupadas em instituições científicas; b) capital
científico “puro”, que se refere a um “prestígio pessoal” que repousa
sobre o reconhecimento do conjunto dos pares. Os dois tipos de capitais
possuem regras próprias de acumulação e transmissão. Nesse sentido,
pode-se compreender que os bolsistas nível 1A possuem esses dois tipos
de capitais, possuindo um acúmulo significativo dos dois tipos.
Embora se possa pressupor que o bolsista nível 1A, para chegar a esse
patamar, cumpriu os requisitos demandados pelos níveis anteriores, isso
não significa afirmar que sua dinâmica, em termos de produção acadêmica,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


182 Amurabi Oliveira, Marina Félix Melo, Mayres Pequeno & Quemuel Baruque Rodrigues

continua a mesma. Nesse sentido, são importantes as observações realizadas


por Wainer e Vieira (2013, p. 73-74).

As grandes áreas devem ponderar se as práticas que estão seguindo para avaliar
seus pesquisadores estão de acordo com os seus objetivos para as bolsas de
produtividade. Obviamente, não existe um objetivo “certo” ou único para
a atribuição de bolsas e, portanto, não deve existir uma única métrica que
deve ser seguida. No entanto, nos parece que há duas grandes vertentes para
explicar quais são os objetivos de uma bolsa de produtividade, que, se não
são contraditórios entre si, são pelo menos diferentes. O primeiro objetivo
possível é de premiar cientistas de qualidade. O segundo objetivo possível é
incentivar a produção de qualidade dos cientistas brasileiros. Há uma diferença
importante entre estes dois objetivos: se o objetivo é premiar os cientistas
pela qualidade e importância do seu trabalho, então, a história passada do
pesquisador é o fator mais importante. Caso o objetivo seja incentivar a
produção de qualidade e relevância, então, o futuro deste pesquisador é
mais importante que seu passado. É claro que, nesta segunda alternativa, o
passado é importante, mas apenas como ferramenta para prever o futuro do
pesquisador – na falta de melhores dados acredita-se que o pesquisador, no
futuro, terá os mesmos resultados (do ponto de vista de produção científica)
que no passado ou, pelo menos, no passado recente. Além do mais, as duas
vertentes de objetivos têm impacto muito diferente no agraciado. Quem
recebe um prêmio, não precisa mais continuar fazendo o que fez para ganhar
o prêmio, apenas quando outra pessoa tiver acumulado história suficiente
que o prêmio será transferido. Quem recebe um incentivo, deve manter
pelo menos a mesma produção que fez com que recebesse o incentivo, pois,
senão, ele será retirado.

A considerar a forma como as regras do comitê de Ciências Sociais


se apresentam, é possível inferir que há, implicitamente, uma orientação
fundada na lógica do “incentivo” ao ingresso no grupo de bolsistas PQ,
bem como à mudança de nível 2 para nível 1 – considerando os ganhos
materiais e simbólicos que envolvem essa passagem –, e outra baseada na
“premiação” para se atingir os níveis mais altos dessa hierarquia, principalmente
para se chegar ao nível 1A. Apesar de a bolsa PQ-SR (sênior) possuir uma
regulamentação própria, é interessante perceber que o requisito mínimo para
pleiteá-la é ser bolsista PQ nível 1 em qualquer nível por 20 anos (consecutivos

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 183

ou não), ou nível 1A ou 1B por 15 anos (consecutivos ou não), o que reforça


a relevância de se atingir os níveis mais elevados dessa estratificação.
Essa hipótese pode ser reforçada pelas indicações do trabalho de
Lima, Velho e Faria (2012) ao analisarem o fator h em diferentes áreas do
conhecimento, incluindo a Sociologia. O estudo apontou que essa área
apresenta valores de índice h quase nulos, o que seria reflexo de uma
cultura acadêmica distinta de outras áreas mais afinadas com o mainstream
internacional. Os autores observaram, ainda, na Sociologia, uma lógica
inversa à observada em outras áreas. Enquanto nas demais áreas do
conhecimento os pesquisadores 1A apresentaram índice h superior aos
pesquisadores nível 1B, na Sociologia esses últimos possuem um índice
ligeiramente superior àqueles. Tal questão possibilita inferir que, na área
de Sociologia, o prestígio e o reconhecimento da trajetória acadêmica
possuem um peso maior para se chegar ao nível 1A do que o número de
publicações do pesquisador em si, ou mesmo sua relevância em termos
de quantidade de citações recebidas por outros autores. Notadamente,
devemos considerar as trajetórias dos pesquisadores até essa posição no
campo, assim como as diferentes lógicas que operam nas distintas áreas
do conhecimento, o que se articula à distribuição desigual de recursos
concedidos pelas agências de fomento.

O perfil dos bolsistas PQ em Sociologia8


Coletamos os dados das bolsas em curso dos bolsistas PQ e analisamos
202 casos.9 Dentre esses bolsistas, encontramos 90 mulheres (44,6%) e 112
homens (55,4%), o que coincide com a tendência mais geral observada por
8
Utilizamos o software Statistical Package for the Social Sciences - SPSS para tabulação e análise
dos dados. Para a visualização dos dados, utilizamos o software RStudio, manipulando com
pacotes como dplyr e ggplot2. Analisamos os 202 casos de bolsistas com bolsas ativas no CNPq
na área de Sociologia. Os nomes dos bolsistas (que não serão divulgados por questões éticas)
foram colhidos na página web do CNPq e os dados que aqui utilizaremos foram extraídos da
plataforma Lattes, também do CNPq. O desenho da pesquisa foi de tipo interseccional/corte
transversal e a recolha de dados ocorreu de setembro a dezembro a 2019.
9
O número de bolsas em curso diferencia-se do número total de bolsas uma vez que pesquisadores
afastados por motivos diversos têm suas bolsas interrompidas; isso ocorre principalmente no
contexto de afastamento do país para realização de pós-doutorado. Para a seleção dos casos,
utilizamos os dados disponíveis em http://plsql1.cnpq.br/divulg/RESULTADO_PQ_102003.curso

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Guedes, Azevedo e Ferreira (2015) ao analisarem a distribuição em termos


de sexo e faixa etária entre os bolsistas PQ das grandes áreas, assim como
por Hey e Rodrigues (2017) que analisaram o grupo dos representantes das
Ciências Sociais na Academia Brasileira de Ciências, constituído também
majoritariamente por homens. Essa distribuição desigual, em parte, pode
ser reflexo do cenário que encontramos nos programas de pós-graduação
da área de Ciências Sociais/Sociologia, pois, como apontam Candido, Feres
Júnior e Campos (2019), 53% dos docentes dos programas avaliados na
área de Sociologia são homens.
Como podemos observar no gráfico abaixo, essa tendência é bastante
geral, com exceção das bolsas 1B, que possuem o mesmo número de
homens e mulheres, e as bolsas PQ-SR, predominantemente ocupadas
por mulheres.

Gráfico 1. Tipo de Bolsa x Sexo

Fonte: Elaboração dos autores.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 185

Chama a atenção o fato de que, entre os quatro bolsistas PQ-SR,


encontramos três mulheres e um homem, subvertendo a tendência mais
geral encontrada na área. Dois pesquisadores desse grupo estão vinculados
à USP, uma à UFRGS e uma à UFSC. Esse grupo possui outras características
idiossincráticas, como o fato de ser constituído, exclusivamente, por
professores aposentados e que realizaram seus estudos principalmente entre
as décadas de 1960 e 1970. O grupo também é representado por agentes
que participaram da institucionalização dos programas de pós-graduação
em suas universidades e tiveram um importante papel na formação de seus
campos de pesquisa no Brasil.
As bolsas PQ distribuem-se de forma relativamente heterogênea pelas
diferentes regiões e instituições do país, totalizando 43 instituições com
bolsistas na área de Sociologia, concentrados principalmente em instituições
do Sul e do Sudeste. A USP destaca-se como a universidade com o maior
número de bolsistas, sendo 20 no total, seguida da UNICAMP com 15, UFRGS
com 14, UFSCar com 13, Unb com 13,10 UERJ com 13,11 UFRJ com 12 e
UFSC com 9. Na sequência, UFBA, UFPE e UFMG aparecem com 7 PQs.
Essas instituições concentram 64,35% das bolsas PQ em Sociologia no Brasil.
De um modo geral, os bolsistas PQ tendem a atuar em programas que
possuem cursos de mestrado e doutorado, o que significa que eles possuem
ao menos nota 4 na avaliação da CAPES. Apenas 2,5% dos bolsistas atuam
em programas que possuem apenas o curso de mestrado.
Observamos que os bolsistas PQ concentram-se em programas
de excelência acadêmica (notas 6 e 7). Nota-se que o eixo geopolítico
possui um peso significativo nessa distribuição, uma vez que o número
de bolsistas não segue a mesma ordem das notas da avaliação CAPES
dos programas em que estão inseridos os PQs. Existem universidades
com programas mais bem avaliados em Sociologia com menos bolsistas
10
A UnB possui dois programas avaliados pela área de Sociologia, o Programa de Pós-
Graduação em Sociologia (nota 7) e o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
- Estudos Comparados sobre as Américas (nota 4).
11
A UERJ possui dois programas avaliados pela área de Sociologia, o Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais (nota 5) e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia (nota 6).

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que outros programas com a mesma nota ou inferior. Ao mesmo tempo,


considerando apenas as instituições com mais de dez bolsistas PQ, o que
representa uma concentração de 49,5% do total de bolsas da área no país,
pode-se observar que apenas a Unb e a UFRGS se encontram fora do eixo
Rio-São Paulo e, apesar de possuírem programas em Sociologia avaliados
com nota máxima pela CAPES, possuem menos bolsistas PQ que a USP
ou a UNICAMP, cujos programas apresentavam notas 6 e 5.12
Deve-se reconhecer que a avaliação dos programas pela CAPES é
orientada por um conjunto de fatores, dentre os quais a produção acadêmica
dos docentes. Desse modo, é importante ter em mente que as bolsas PQ
são concedidas com base numa avaliação individual dos pesquisadores,
ao passo que a CAPES avalia os programas em seu conjunto.
Pelos dados apresentados, pode-se inferir, ainda, que os programas
mais antigos possivelmente conseguiram ingressar antes no sistema de
bolsas PQ, o que lhes dá uma vantagem substantiva, pois, como bem
observam Wainer e Vieira (2013), os comitês tendem a manter as bolsas
dos pesquisadores em sua renovação, mesmo diante de uma eventual
queda de sua produtividade no período avaliado. Também é importante
considerar as diferentes condições objetivas de acesso a financiamentos de
pesquisa às quais as universidades têm acesso e, nesse sentido, o auxílio
das fundações de amparo à pesquisa locais pode ter um peso significativo
nesse processo, por meio do financiamento de auxílios e bolsas de diferentes
modalidades. Soma-se a isso a concentração de periódicos no estrato
superior do Qualis de Sociologia nesse mesmo eixo geopolítico, uma vez
que, dentre as instituições com mais de dez bolsistas PQ, seis publicam
revistas avaliadas como A1, e uma publica uma revista A2, o que coloca
os agentes vinculados a tais instituições em posições desiguais no campo.
Isso demonstra como os diferentes graus de prestígio alcançados pelas
instituições acadêmicas se vinculam também à distribuição heterogênea de
recursos não apenas simbólicos, mas também materiais (Bourdieu, 2011).
A UNICAMP possui dois programas avaliados na área de Sociologia, o Programa de Pós-
12

Graduação em Sociologia (nota 6), e o doutorado em Ciências Sociais (nota 5).

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 187

Interessante perceber que esse recorte geopolítico da distribuição


heterogênea das bolsas PQ opera em dois níveis. Há uma evidente
concentração de bolsas em determinadas regiões do país, dada a existência
de 113 pesquisadores no Sudeste, 36 no Nordeste, 35 no Sul, 11 no Centro-
Oeste e 6 na região Norte. O Sudeste concentra também a origem desses
pesquisadores em termos de formação doutoral, uma vez que dentre todos
os bolsistas PQ, 118 realizaram seus estudos nessa região, 14 na região Sul,
10 no Nordeste e 6 no Centro-Oeste; além de outros 53 que realizaram
a formação doutoral fora do Brasil. Isso significa que, se considerarmos
apenas os pesquisadores que obtiveram o título de doutorado no Brasil,
79,7% deles o obtiveram em universidades do Sudeste.

Mapa 1. Distribuição de PQs em Sociologia no Brasil

Fonte: Elaboração dos autores

No que diz respeito à formação acadêmica, apesar de haver uma


tradição bastante interdisciplinar na Sociologia quanto à formação de
seus quadros (Lima; Cortes, 2013), atualmente, a maioria dos bolsistas
PQs da área de Sociologia é graduada em Ciências Sociais/Sociologia,

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correspondendo a 143 (70,8%) casos. Quando se observa a formação


doutoral, há um perfil formativo ainda mais evidente, pois 187 (92,6%)
deles possuem o doutorado em Sociologia ou Ciências Sociais.
Além do recorte estritamente institucional, pode-se considerar, ainda,
que há uma distribuição das bolsas a partir dos temas pesquisados pelos
bolsistas. Isso se circunscreve duplamente no processo de seleção para
tais bolsas, uma vez que, além do currículo do pesquisador, também é
considerado o projeto de pesquisa submetido, avaliado por pares (outros
bolsistas PQ). Nesse contexto, encontramos que os temas mais pesquisados
entre eles são: Ruralidades/Urbanidades e Meio Ambiente (37 PQs);
Participação Política (25); Teoria/Intelectualidades/Pensamento Social (21);
Outros Temas (21); Trabalho (20); Criminalidades/Violências (19); Gênero
e Sexualidade (12); Arte e Cultura (9); Educação (7); Religião (6); Saúde
(5) e; Ciência e Tecnologia (5).
Ao comparar esses resultados com aqueles da pesquisa de Melo,
Bernardo e Gomes (2018), sobre as teses de doutorado de recém-doutores
em Sociologia, percebe-se que os temas mais recorrentes se mantêm entre
os dois grupos. As diferenças mais sensíveis estão nos seguintes temas: 1.
Educação, tema bastante frequente entre os recém-doutores, mas não tão
expressivo entre os PQs e, 2. Ruralidades/Urbanidades e Meio Ambiente,
tema bastante pesquisado pelos PQs e de pouca adesão entre o público de
recém-doutores. Por outro lado, essa agenda de pesquisa entre os bolsistas PQ
encontra maior afinidade com os resultados da pesquisa de Dwyer, Barbosa,
Fraga (2013), que se voltaram para os membros da Sociedade Brasileira de
Sociologia (SBS), numa amostra composta principalmente por professores
universitários, portanto, com agentes mais consolidados no campo.
A análise comparativa com os resultados das pesquisas de Melo,
Bernardo e Gomes (2018) e Dwyer, Barbosa e Fraga (2013) pode indicar
a existência de temas mais privilegiados pelas agências de fomento, e a
constituição de uma hierarquia acadêmica entre temas mais “nobres” e
outros mais “periféricos”, como também a existência de uma mudança de
agenda na sociologia brasileira que se opera geracionalmente.

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 189

Uma elite dentro da elite: o caso dos bolsistas de


produtividade nível 1A
Como já exposto nas seções anteriores, os bolsistas PQ 1A são avaliados
a partir de critérios sensivelmente diferentes daqueles utilizados para os
níveis anteriores. Em vez de ser especificada uma quantidade de artigos
publicados ou de orientações concluídas, entende-se que tais bolsistas
devam ter dado uma inequívoca contribuição científica e acadêmica à
área, além de cumprirem os requisitos anteriores.
Atualmente há 22 bolsistas PQ 1A em Sociologia, o que significa que
apenas 10,9% dos bolsistas se encontram nesse nível. Como demonstrado
no gráfico 1, sua maioria é composta por homens, 12 casos, de modo
que essa desigualdade de gênero se mantém no mesmo padrão daquele
observado no conjunto total de pesquisadores.
Ao considerar a questão regional, encontramos uma sensível mudança
em relação ao que há no cenário mais geral dos bolsistas PQ. Os 202
bolsistas avaliados em nossa amostra estão distribuídos em 43 instituições,
concentradas, majoritariamente, no eixo Rio-São Paulo. Os bolsistas nível
1A estão distribuídos em oito instituições. A USP possui seis bolsistas, a
UNICAMP, quatro, a UFRJ, quatro, a UFRGS, três, a UFSCAR, dois, a UnB,
um, a UFC, um e a UNIARA, um.13 Isso significa que 77,3% dos bolsistas se
encontra na região Sudeste. Nesse cenário, a posição dominante da USP no
campo acadêmico fica ainda mais evidente, pois se ela concentra 9,9% dos
bolsistas da área considerando todos os níveis, esse percentual passa para
27,3% entre os bolsistas nível 1A. Também mediante a análise desses dados,
pode-se reconhecer o papel da UFRGS como principal instituição fora do
eixo Rio-São Paulo, em termos de concentração de pesquisadores PQ em
Sociologia. Isso porque este número se destaca das demais universidades
tanto quando se analisa o quantitativo total de bolsistas PQ, quanto ao
observar apenas os bolsistas nível 1A.
13
Apesar de a instituição não possuir programa na área de Sociologia/Ciências Sociais, trata-
se de uma professora que desenvolveu toda sua carreira na UNESP e migrou para esta
instituição após sua aposentadoria.

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Considerando a distribuição com relação à avaliação CAPES, 86,4%


dos bolsistas 1A estão vinculados a programas notas 6 e 7 na área de
Sociologia.14 Isso pode indicar duas coisas: a) que o prestígio da instituição
e do programa ao qual o pesquisador é vinculado tem um peso importante
para atingir os postos mais altos na hierarquia acadêmica estabelecida
pelo CNPq; b) que tais pesquisadores, reconhecidos pelos pares como
lideranças nacionais em suas áreas, contribuíram para a consolidação de
programas de excelência.
Mantém-se a tendência de uma forte concentração da formação de
graduação em ciências sociais, em 19 casos (86,4%). A maioria deles obteve
o título de sua graduação ainda na década de 1970, o que ocorreu em 16
dos casos (72,7%), outros cinco casos (22,7%) a obtiveram na década de
1960, e apenas um caso (4,6%) na década de 1980. Majoritariamente, eles
realizaram seus estudos de graduação durante o período militar, no qual
ocorreu uma forte repressão política e ideológica nas universidades, mas
também uma significativa expansão dos cursos de Ciências Sociais (Liedke
Filho, 2005). Mesmo no caso daqueles que realizaram posteriormente
estudos de doutorado em outro estado ou país, ou que chegaram a exercer
a docência em outras universidades no início da carreira acadêmica, em
16 casos (72,7%) eles estão vinculados a instituições no mesmo estado
em que se graduaram, dado importante para compreender as escolhas
profissionais realizadas.
Com relação à formação doutoral, 21 casos (95,4%) realizaram o
doutorado em Sociologia ou em Ciências Sociais.15 Nesse grupo encontramos
de forma mais expressiva a formação doutoral realizada no exterior, sendo
o caso de 11 (50%) deles. Possivelmente se está diante de uma geração
que recebeu diferentes tipos de financiamento de fundações nacionais e
internacionais para realizar tal formação, no contexto da constituição da
pós-graduação no Brasil (Martins, 2018). Nesse processo de circulação
14
Uma das pesquisadoras da UNICAMP não é vinculada a programa na área de Sociologia/
Ciências Sociais.
15
Incluímos tanto aqueles que obtiveram o título de doutor em Ciências Sociais, quanto os
dois casos que obtiveram a titulação de doutorado em Ciência Política.

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 191

destacam-se os vínculos intelectuais com a França, que foi o destino de cinco


pesquisadores, seguido dos Estados Unidos, que titulou dois deles, além de
outros que se formaram na Alemanha, Canadá e México (um caso cada).
Entre os onze que realizaram o doutorado no Brasil, oito (72,7%) o
fizeram na USP, além de um caso na UNICAMP, um na PUC-SP, um na
UNESP e um no IESP. Ao comparar com os dados da seção anterior, observa-
se que a presença de pesquisadores PQ com formação no Sudeste se torna
ainda mais significativa nesse grupo, uma vez que todos os pesquisadores
formados no Brasil realizaram seus estudos nessa região. Entretanto, há de
se considerar também o caráter bastante endógeno dos programas dessa
região, com destaque para a USP (Bordignon, 2019), o que difere do perfil
encontrado nos centros mais afastados desse eixo geopolítico: entre os cinco
bolsistas PQ 1A que estão situados fora do Sudeste, quatro realizaram seus
doutorados no exterior, e apenas um no Brasil (USP).
Considerando-se que a maior parte desses bolsistas se encontra em
programas de excelência, não surpreende que os dados verificados confluam
com os resultados do levantamento realizado por Marenco (2019, p.540) no
âmbito da Ciência Política. O estudo apontou que o “(...) recrutamento para
programas de pós-graduação com posição mais elevada no rankeamento
acadêmico é restritivo a doutores formados em instituições com notas
equivalentes ou centros de pesquisa no exterior.”
Também na formação doutoral encontramos um evidente marcador
geracional entre os casos analisados. Doze PQ 1A obtiveram o título
de doutor na década de 1980, seis na de 1970, e quatro na década de
1990. No levantamento realizado por Lima (2019), fica evidente a forte
presença de pesquisadores com formação no exterior, principalmente entre
aqueles doutorados até os anos de 1980. Há um progressivo processo
de “nacionalização” da formação acadêmica das gerações seguintes nos
programas de Sociologia/Ciências Sociais. Porém, os dados aqui apresentados
indicam que nesse grupo de pesquisadores PQ 1A o corte é ainda mais forte,
uma vez que todos os doutorados na década de 1990 realizaram seus estudos
no Brasil. Mesmo entre os que realizaram toda sua formação no Brasil, há

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um investimento acadêmico na sua inserção no debate internacional, através


da realização de pós-doutorados no exterior, atuação como professores
visitantes em universidades estrangeiras, além de publicações internacionais,
o que acompanha um movimento que vem ganhando fôlego na sociologia
brasileira (Scalon; Miskolci, 2018). É importante considerar, portanto, a
relevância que o processo de internacionalização tem ocupado na avaliação
das pesquisas no âmbito da Sociologia, uma vez que:

A exigência de uma condição de internacionalização para avaliar positivamente


instituições e pesquisadores está presente entre as condições definidas pelas
instituições de fomento para validar o desempenho de ambos e, por extensão,
o grau de profissionalização e excelência de desempenho da ciência (Neves;
Cavalcanti, 2018, p. 108).

Os pesquisadores que compõem esse grupo também possuem como


marca distintiva a forte inserção em diretorias de sociedades científicas,
comitês de assessoramento de agências de fomento à pesquisa, comitês
científicos, editoriais e de avaliação. Um exemplo significativo do elevado
status dos membros desse grupo no campo da Sociologia é o fato de nove
(40,9%) deles já terem ocupado o cargo de presidente ou vice-presidente
da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Além das associações científicas
de caráter mais específico, voltadas para seus temas de pesquisa, podemos
afirmar que as duas nas quais esse grupo tem se inserido de maneira
mais recorrente é a SBS, como já indicado, e a ANPOCS. Tais sociedades
científicas são, inclusive, consultadas sobre a indicação de membros do
comitê de assessoramento na área de ciências sociais do CNPq, o que
reafirma a relevância desse espaço institucional para a consolidação de
uma posição dominante no campo.
Esse tipo de inserção demonstra como tais pesquisadores realizaram,
ao largo de suas trajetórias acadêmicas, um significativo acúmulo de capital
científico de tipo político, institucionalizado. Esse acúmulo significativo os
distingue de forma ainda mais substantiva em relação aos pesquisadores
situados nas demais classificações, do que o faria o capital científico do

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 193

tipo “puro”. É importante compreender que, mesmo considerando que


os bolsistas nível 1D sejam mais produtivos – e, portanto, seriam, em
princípio, portadores de um maior acúmulo de capital científico “puro”
– o inter-reconhecimento pelos pares não opera apenas em relação ao
quantitativo da produção, mas também da capacidade de se elaborar
trabalhos paradigmáticos para o campo, que se tornaram referências
relevantes. Nesse sentido, devemos observar não apenas a lógica de acúmulo
de capital, como também de transmissão do mesmo.
Entre esses pesquisadores observa-se a manutenção de temas
“tradicionais” no campo da Sociologia brasileira. De forma muito sucinta,
indicamos que se destacam os seguintes temas nesse grupo: sociologia
rural, sociologia política, sociologia da cultura, trabalho, educação,
violência, estratificação e desigualdades sociais. Os pesquisadores desse
grupo estiveram envolvidos diretamente com a formação desses campos
de pesquisa no país, fundando grupos e laboratórios de pesquisa em
suas instituições e coordenando grupos de trabalho em diversos eventos
acadêmicos, com destaque para os congressos da SBS e encontros da
ANPOCS. Isso não quer dizer, contudo, que não tenha havido igualmente
outros pesquisadores participantes desses processos, vinculados a outras
instituições, principalmente fora do Sudeste.

Considerações Finais
Objetivamos, com os dados aqui analisados, realizar um movimento
duplo. Por um lado, descrever o perfil dos bolsistas PQ de Sociologia.
Por outro, verificar como essa distribuição tem ocorrido, principalmente
nos níveis mais altos da hierarquia acadêmica, aqui representados pelos
bolsistas nível 1A. Cabe ressaltar que os agentes que acumulam mais capital
acumulado em determinado campo também são aqueles com maior
capacidade de “deformar” a ordem do campo, operando de forma ativa
na determinação das “regras do jogo”, tendencialmente a partir de posições
ortodoxas que visam a manutenção de suas posições de poder. No caso

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dos bolsistas PQ, essa posição fica ainda mais evidente considerando que
apenas aqueles de nível 1, que são indicados pela comunidade acadêmica
é que podem compor os comitês de assessoramento, possuindo, assim,
uma capacidade mais efetiva de alterar as regras do jogo.
Num primeiro momento, pode-se considerar que há a confirmação
de algumas tendências já apontadas por balanços anteriores sobre os
bolsistas PQ nas grandes áreas, como o predomínio de pesquisadores
homens (Guedes; Azevedo; Ferreira, 2015), e a concentração desses
bolsistas na região Sudeste. Esta concentração, como pudemos observar,
ocorre principalmente a partir de uma forte concentração de pesquisadores
no eixo Rio-São Paulo, destacando-se, entre as instituições fora da região
Sudeste a Unb e, principalmente, a UFRGS.
A referida concentração pode ser explicada, em parte, pela concentração
de programas de excelência na área na região Sudeste, assim como de
maiores fontes de financiamento a partir das fundações de amparo à pesquisa
locais, bem como a editoração de revistas avaliadas no estrato superior
do Qualis, demarcando a existência de hierarquias acadêmicas dentro do
campo das Ciências Sociais no Brasil (Scott, 2014). Por outro lado, esses
fatores parecem ser insuficientes para explicar a atual distribuição de bolsas
PQ, uma vez que ela não obedece de maneira uniforme à hierarquia da
avaliação da CAPES, havendo programas mais bem avaliados com menos
bolsas PQ de que outros com menores notas. Ao mesmo tempo, também
há uma forte concentração em termos de formação entre os bolsistas, de
modo que, majoritariamente, os PQ com formação doutoral no Brasil
realizaram seus estudos no Sudeste. Nesse sentido, tanto o prestígio da
instituição de origem, quanto a de pertencimento, parecem ter um peso
importante para a compreensão da atual distribuição das bolsas PQ, o
que tende a reafirmar a posição dominante dessas instituições no campo.
O exame dos bolsistas nível 1A exacerba as características encontradas
no primeiro grupo, aumentando a concentração de pesquisadores na região
Sudeste, além de ser um grupo formado exclusivamente por bolsistas que
realizaram sua formação doutoral no exterior ou na região Sudeste, com

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O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 195

grande destaque para a USP. Nesse grupo, formado majoritariamente por


professores que realizaram sua graduação na década de 1970 e o doutorado
na década de 1980, a formação doutoral no exterior é mais recorrente,
assim como a forte presença em comitês científicos, de assessoramento
e avaliação, além de diretorias de sociedades científicas, com destaque
para a SBS e ANPOCS. Novamente, destaca-se nesse grupo a UFRGS
como principal instituição situada fora do Sudeste com pesquisadores que
realizaram a formação doutoral fora do País, demarcando a formação de
redes de colaboração acadêmica constituídas fora do eixo Rio-São Paulo.
Devemos reconhecer, por fim, que a concentração dos bolsistas 1A
em apenas 8 instituições, e a dispersão do conjunto total de bolsistas por
43, aponta para uma crescente participação de outros centros de pesquisa
na “elite acadêmica” da sociologia brasileira. Isso pode apontar para uma
tendência – ainda que incipiente, dada a concentração que persiste em
todos os níveis – a uma maior pluralização desse cenário, o que reflete a
própria expansão da pós-graduação em cenário recente.

Amurabi Oliveira é Doutor em Sociologia pela UFPE, Professor da Universidade Federal de


Santa Catarina e pesquisador do CNPq.
 amurabi1986@gmail.com

Marina Félix Melo é Doutora em Sociologia pela UFPE e Professora do Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Alagoas.
 melomarina@msn.com

Mayres Pequeno é Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.


 mayrespequeno@gmail.com

Quemuel Baruque Rodrigues é Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal


de Pernambuco.
 quemuelbaruqe@gmail.com

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


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Recebido: 31 jul. 2020.


Aceito: 25 maio 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


O perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Sociologia 199

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 170-198.


200 Diogo Cunha & Paulo Henrique PaschoetoARTIGOS
Cassimiro
200

http://doi.org/10.1590/15174522-106783

O populismo como modelo de “democracia


polarizada”: a teoria do populismo de Pierre
Rosanvallon à luz do debate contemporâneo
Diogo Cunha*
Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro**
Resumo
O objetivo deste artigo é examinar a contribuição de Pierre Rosanvallon para a
compreensão do populismo. Para tanto, adotamos duas abordagens: a primeira,
internalista, consiste numa análise rigorosa da obra Le Siècle du populisme (2020),
assim como na articulação desta com sua teoria das mutações da democracia
contemporânea (2006-2015); a segunda consiste no cotejamento de Le Siècle du
populisme com obras de outros autores sobre o tema. O artigo está dividido em três
segmentos. No primeiro, analisamos Le Siècle du populisme focando os dois aspectos
que consideramos mais originais: a tipologia das “democracias-limite” e suas formas
de degradação, e sua crítica ao populismo. No segundo, articulamos essa obra à sua
teoria das mutações da democracia contemporânea. No terceiro, inserimos a obra
de Rosanvallon no interior da bibliografia sobre o tema do populismo, explorando
como o autor pensa o populismo em interação com a democracia e comparando-o
com três das principais leituras contemporâneas sobre o tema: a de Nadia Urbinati,
no campo da teoria democrática, e a de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, dois dos
principais teóricos do “populismo de esquerda”, objeto da crítica de Rosanvallon.
Concluímos que o que diferencia sua contribuição para a pesquisa sobre o populismo
é o alcance de sua teoria, capaz de incorporar tensões e complexidades ao estudo
da democracia, e que oferece uma saída para as ambiguidades teóricas das análises
precedentes sobre o populismo.
Palavras-chave: Pierre Rosanvallon, populismo, teoria política contemporânea,
Nadia Urbinati, Chantal Mouffe, Ernesto Laclau.
*
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
**
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 201

Populism as a model of “polarized democracy”:


Pierre Rosanvallon’s theory of populism in contemporary debate

Abstract
This paper examines Pierre Rosanvallon’s contribution to understanding populism
by adopting two approaches: the first one is the internalist approach, comprising
an analysis of his book Le Siècle du populisme (2020) and its comparison with his
theory of changes in contemporary democracy (2006-2015). The second approach
consists of comparing Le Siècle du populisme with the works of other authors on
the subject. The paper is divided into three parts. First, we analyze Le Siècle du
populisme, focusing on the two aspects that we consider the most original: the
typology of “limit forms of democracy” and its ways of degradation and his critique
of populism. In the second part, we contrast this work with his theory of changes in
contemporary democracy. In the third part, we contextualize Rosanvallon’s work
within the literature on populism, exploring the author’s idea of populism vis-à-vis
democracy. We also compare his interpretation with three of the main contemporary
works on the subject: that of Nadia Urbinati involving theory of democracy, and that
of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, leading theorists of “leftist populism”, targets
of Rosanvallon’s criticism. Then, we argue that what distinguishes his contribution
to populism research is the scope of his theory, able to encompass tensions and
complexities in the study of democracy and that offers a way out of the theoretical
ambiguities of previous studies on populism.
Keywords: Pierre Rosanvallon; populism; contemporary political theory; Nadia
Urbinati; Chantal Mouffe; Ernesto Laclau.

Introdução


O populismo revoluciona a política do século 21. Mas nós ainda não
nos demos conta da justa medida da transformação que ele induz”
(Rosanvallon, 2020, p. 9). É com essas palavras que Pierre Rosanvallon
inicia Le Siècle du populisme, seu mais recente trabalho, no qual assume
a ambiciosa missão de desenvolver uma teoria do populismo. Partindo da
constatação de que as grandes ideologias da modernidade foram associadas
a obras fundadoras que ligavam análise crítica a visões do futuro, Rosanvallon

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


202 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

enuncia que seu objetivo é permitir uma “confrontação radical” da sua teoria
com a “ideia populista [...], ideologia ascendente do século 21” (p. 14).
O objetivo deste artigo é examinar a teoria do populismo de Rosanvallon
e, consequentemente, sua contribuição para a compreensão desse fenômeno
político. Há duas abordagens possíveis para tal fim. A primeira, que poderíamos
chamar de “internalista”, consiste numa análise rigorosa de Le Siècle du
populisme. Esse exame é, em si, pertinente, mas insuficiente. Essa abordagem
precisa ser ampliada a partir de sua articulação com a reflexão mais ampla
do autor sobre a democracia. Estamos nos referindo aos vários volumes
publicados sobre o tema durante os últimos 30 anos, notadamente sua
trilogia sobre a história intelectual da democracia (Rosanvallon, 1992, 1998,
2000) e da sua tetralogia sobre as mutações da democracia contemporânea
(Rosanvallon, 2006, 2009, 2011, 2015a). Essa articulação é fundamental:
sustentamos que o pleno entendimento e apreensão da teoria do populismo
elaborada em Le Siècle du populisme é indissociável dos seus estudos
precedentes sobre a democracia, na medida em que o populismo é uma
forma de “democracia-limite” entre outras, resultado de uma simplificação
do ideal democrático. A segunda abordagem, “externalista”, consiste no
cotejamento de Le Siècle du populisme com outros estudos sobre o tema
publicados por contemporâneos e interlocutores de Rosanvallon.
Nos últimos anos, historiadores e teóricos políticos vêm se debruçando
sobre a obra de Rosanvallon. Duas coletâneas publicadas recentemente
testemunham esse interesse. A primeira, La Démocratie à l’œuvre: autour
de Pierre Rosanvallon (Al-Matary; Guénard, 2015), reúne estudos sobre
os diversos aspectos dos trabalhos de Rosanvallon. Publicado antes de Le
Siècle du populisme e no mesmo ano de Le Bon gouvernement (Rosanvallon,
2015b), o livro, portanto, não inclui nas análises esses dois trabalhos e
tampouco Notre histoire intellectuelle et politique (1968-2018) (Rosanvallon,
2018). Mais recentemente, foi publicado Pierre Rosanvallon’s political
thought. Interdisciplinary approaches (Flügel-Martinsen et al., 2019), obra
coletiva na qual a questão do método rosanvalloniano e seus estudos
sobre a democracia também ocupam um lugar central. Nesse trabalho,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 203

as análises chegam até Le Bon gouvernement, como mostra o capítulo de


Anna Hollendung (2019) sobre a ação democrática. Entre os autores que
participaram dessa coletânea estão estudiosos que já vinham explorando a
obra de Rosanvallon há algum tempo, como é o caso de Wim Weymans e
de Paula Diehl, notadamente sobre o problema da representação. Weymans
(2005) buscou mostrar como esse conceito oferece uma solução para a
tensão entre os princípios abstratos que devem guiar uma coletividade e
sua realidade concreta. Em outro artigo, ele examinou também a ideia de
“crise da representação”, a partir de uma comparação do pensamento de
Rosanvallon com o de Quentin Skinner, privilegiando o papel da história na
compreensão do presente (Weymans, 2007). Diehl (2019) também focou o
conceito de representação, assim como o de “povo”, para demonstrar como
eles ajudavam a explicar o populismo. É, portanto, um estudo do populismo
em Rosanvallon anterior à publicação de Le Siècle du populisme. A autora
propõe uma abordagem diferente daquela do próprio Rosanvallon (2011)
em “Penser le populisme”, ao sustentar que o populismo desloca a ideia
de representação democrática situando-a numa fronteira entre dinâmicas
democrática e antidemocrática. Para Diehl, essa dinâmica se diferencia
daquela do totalitarismo – com o qual Rosanvallon faz um paralelo com
o populismo em seu artigo de 2011 – e o populismo permanece sempre
um fenômeno ambíguo. Apesar da importância da contribuição de Diehl,
é forçoso constatar que ela se fundamenta num texto de Rosanvallon
consideravelmente revisto em Le Siècle du populisme.
Não podemos deixar de mencionar, finalmente, os estudos de William
Selinger que, além de abordar o problema da representação num artigo
escrito com Gregory Conti, também examinou a contribuição de Rosanvallon
para a compreensão do populismo antes da publicação de Le Siècle du
populisme. Em “The other side of representation: the history and theory of
representative government in Pierre Rosanvallon” (Selinger; Conti, 2016),
os autores contestam a perspectiva “construtivista” atribuída a Rosanvallon
por teóricos como Nadia Urbinati, Lisa Disch e Wim Weymans, mostrando
que a teoria descritiva adotada em seus primeiros escritos não desapareceu

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204 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

em sua principal obra sobre o tema, Le Peuple introuvable. Para isso, os


autores reconstroem a teoria da representação rosanvalloniana partindo
da identificação da perspectiva descritiva dos seus primeiros trabalhos,
analisando em seguida sua persistência em escritos mais recentes e,
finalmente, considerando em que medida as perspectivas descritivas e
construtivistas podem ser reconciliadas. Já em “Populism, parties, and
representation: Rosanvallon on the crisis of parliamentary democracy”,
Selinger (2020) adota uma abordagem similar, a saber, a reconstituição
do pensamento rosanvalloniano a respeito de um aspecto específico:
o declínio dos sindicatos e dos partidos políticos, ambos cruciais para
o funcionamento da democracia parlamentarista. O populismo, nessa
perspectiva, é o resultado de uma crise profunda e de longa duração do
próprio parlamentarismo.
Em que pese a originalidade e a pertinência desses estudos, todos
são anteriores à Le Siècle du populisme. Por ser uma publicação ainda
recente, não encontramos estudos acadêmicos que tenham abordado
o último trabalho de Rosanvallon, daí a originalidade deste artigo. Para
dar conta do nosso objetivo, o texto divide-se em três segmentos. No
primeiro, examinamos a “teoria democrática do populismo” elaborada
em Le Siècle du populisme. No segundo, ampliamos a análise, propondo
alguns pontos de articulação entre sua teoria do populismo e sua teoria
democrática desenvolvida em obras anteriores. No terceiro, enfim,
cotejamos a reflexão rosanvalloniana com outros trabalhos sobre o tema,
procurando identificar como a perspectiva da história conceitual do
político permite uma compreensão mais ampla do populismo, de modo
a fugir da ambiguidade presente em boa parte dos estudos sobre o tema,
notadamente os estudos que apresentam o populismo como retorno a
um dos polos “autênticos” da democracia, aquele da manifestação da
vontade do povo, em detrimento de sua contraface instrumental, a das
instituições políticas liberais.

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 205

Uma teoria democrática do populismo:


Le Siècle du populisme
A ambição de Rosanvallon com Le Siècle du populisme é produzir
uma teoria abrangente do populismo. Para tanto, ele articula as dimensões
sociológica, histórica e crítica que lhe permitiriam apreender o fenômeno
em sua totalidade. Na primeira dimensão, ele propõe uma anatomia do
populismo a partir de cinco elementos constitutivos: uma concepção do
povo que se pretende mais adequada, mobilizadora e capaz de refundar
a democracia; uma teoria da democracia que deve ser “direta, polarizada
e imediata”; uma modalidade de representação – na forma de exaltação
do líder; uma política e uma filosofia da economia – abrangendo uma
concepção da soberania e da vontade política, assim como uma filosofia
da igualdade e uma visão da segurança; e o papel das paixões e emoções
– “emoções de posição, emoções de intelecção e emoções de ação”
(Rosanvallon, 2020, p. 42, 57).
Na segunda dimensão, Rosanvallon retraça a história do populismo.
Há três formas de o fazer. Resgatando os usos da palavra populismo, em
primeiro lugar1; identificando, ao longo da história, os momentos e/ou
regimes que manifestaram os elementos constituintes do seu ideal-tipo; e,
enfim, a partir de uma abordagem global e compreensiva do fenômeno.
A terceira dimensão é a crítica do fenômeno, feita tanto no nível da
teoria quanto no da experiência concreta. No primeiro caso, Rosanvallon faz
uma crítica do referendo, mostrando como é projetado nesse instrumento um
conjunto de expectativas que ele não satisfaz, como uma maior intervenção
cidadã nas questões públicas, uma reformulação da expressão eleitoral ou
uma compensação do déficit de representação. A crítica da teoria também é
dirigida contra a dimensão unanimista e a absolutização da legitimação pelas
urnas. No segundo caso, a crítica da experiência concreta é feita à ideia de
homogeneidade e das condições a partir das quais um governo populista
1
Trata-se de uma abordagem que Rosanvallon reconhece ser de pouca utilidade para a
compreensão do fenômeno na contemporaneidade. Por essa razão, ele coloca sua reflexão
sobre a história da palavra “populismo” nos apêndices.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


206 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

transforma uma democracia numa “democratura”. Privilegiamos dois


aspectos em nossa análise: a tipologia do que Rosanvallon está chamando
de “democracias- limite” e suas formas de degradação; e sua “crítica
democrática”, que ele define como “uma crítica aprofundada da teoria
democrática que estrutura a ideologia populista” (Rosanvallon, 2020, p. 21).

História conceitual: o populismo como uma forma democrática


Para Rosanvallon (2020), o exame das diversas experiências populistas
só tem valor explicativo se ampliado numa abordagem conceitual. É essa
última que permite a compreensão da essência dos populismos (2020,
p. 145). Nessa perspectiva, ele propõe uma tipologia do que chama de
“democracias-limite”, com o objetivo não só de evitar os amálgamas
como também de permitir caracterizar forças de atração que esses tipos-
limite podem exercer, e os paralelos que podem ser estabelecidos. O
uso da terminologia “democracias-limite” é explicado pelo fato de seus
defensores exacerbarem de forma problemática certas características das
democracias em detrimento de outras, criando o risco de “uma reviravolta
das democracias contra si mesmas” (p. 161).
A primeira forma de “democracia-limite” é representada pelas
democracias minimalistas, que tiveram em Karl Popper e Joseph Schumpeter
seus teóricos mais ilustres. Desde o século 19, seus defensores foram guiados
pelo medo do número. Sua forma de degeneração é sua transformação
numa “oligarquia democrática”. Já as “democracias essencialistas”, segundo
tipo de “democracia-limite”, são definidas como aquelas que se fundam
na denúncia das mentiras do formalismo democrático e identificam o
ideal democrático à realização de uma ordem social comunitária em que a
distinção entre sociedade política e sociedade civil é apagada (Rosanvallon,
2020, p. 163). Essas duas formas de democracia-limite buscaram acabar
com as indeterminações democráticas, seja através de um encolhimento
realista da sua definição procedimental, no caso da primeira, seja por
meio da dissolução das indeterminações através de uma visão utópica do

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 207

social, no caso da segunda (p. 164). O terceiro modelo de “democracia-


limite”, enfim, são as “democracias polarizadas”, das quais fazem parte os
populismos que, por sua vez, buscam simplificar as aporias estruturantes da
democracia por meio dos elementos constitutivos do ideal-tipo populista
descritos anteriormente (p. 165). A forma de degeneração das “democracias
polarizadas” é sua transformação numa democratura, definida como “um
tipo de regime fundamentalmente iliberal conservando formalmente a
roupagem de uma democracia” (p. 227).

A crítica rosanvalloniana
A crítica ao “populismo real” privilegia dois eixos de análise: o primeiro,
teórico, é a concepção do funcionamento democrático, o que compreende
a crítica do referendo e da polarização democrática; o segundo, o da
experiência, remete à ideia de sociedade homogênea e das condições a
partir das quais uma democracia se torna uma democratura. O referendo
é um dos instrumentos mais reivindicados por governos populistas. Seus
líderes o exaltam como meio de revigorar a democracia na medida em
que ele deve supostamente devolver ao povo o poder de decidir. Porém,
como Rosanvallon (2020) mostra, ele é inegavelmente problemático,
na medida em que possui vários efeitos negativos do ponto de vista do
aprofundamento do projeto democrático. O referendo leva a uma dissolução
da responsabilidade; a uma simplificação da noção de “vontade política”;
à eliminação dos processos de deliberação; à irreversibilidade da decisão;
aos graves problemas na sequência do voto, em razão da não especificação
das condições de implementação da opção escolhida; à desvalorização do
legislativo e à instauração de um regime hiperpresidencial.
A segunda crítica é relativa à ideia da possibilidade da realização de uma
suposta “vontade geral”. Essa visão unanimista acompanhou a própria ideia
de comunidade política, da Antiguidade ao século 19, quando a sociedade
se tornou estruturada em classes com o desenvolvimento de um capitalismo
causador de uma fratura social fundamental (Rosanvallon, 2020). A vontade

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


208 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

geral tomou, então, novas vias de expressão – reflexão desenvolvida mais


amplamente em La Légitimité démocratique (2008) –, entre elas as que
Rosanvallon chama de “poder de qualquer um” e “poder de ninguém”. No
primeiro caso, entende-se que qualquer indivíduo deve ter uma capacidade
plena de representação e se reconhece em cada um a mesma importância
na comunidade política. Esse reconhecimento prolonga e completa o status
do eleitor: “é enquanto titular de direitos que podem ser reivindicados que
ele participa da soberania” (2020, p. 205). As cortes constitucionais são
as guardiãs desse direito e é zelando para que todos os cidadãos sejam
igualmente importantes na comunidade que elas participam da vontade
geral. No segundo caso, o “poder de ninguém” remete à imparcialidade de
instituições que devem estar a serviço de todos e protegidas das possíveis
tentativas de apropriação privada. Nesse sentido, é a distância em relação
aos interesses particulares que garante a busca do interesse geral, caso das
autoridades independentes de vigilância e de regulação.
A segunda parte da crítica é relativa à experiência concreta do fenômeno.
Rosanvallon admite que o “povo-uno”, em alguns momentos específicos,
pode emergir com força. A questão que se coloca, contudo, é como
inscrever esse “povo-acontecimento” na duração do regime democrático,
uma vez que ele não engendra necessariamente um povo democrático
real. Essa é a sua preocupação, como já era a de Proudhon no século
19. O marxismo tentara, com algum sucesso, absorver os dois povos – o
“povo-acontecimento” e o “povo-eleitoral” – num só, através da noção de
proletariado. Contudo, a partir de meados do século 20, as classes teriam
perdido o papel estruturante que lhes era próprio, sendo substituídas, no
início do século 21, por uma suposta oposição entre os “99%” e o “1%”.
Rosanvallon (2020) mostra como essa oposição é imprecisa e não dá conta
das tensões, divisões e solidariedades que existem em qualquer comunidade.
O que ele defende é a necessidade de considerar o povo em suas múltiplas
dimensões: povo-eleitoral, povo-acontecimento, povo-juiz, povo-aleatório.

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 209

Esse “povo desmultiplicado”,2 com as situações individuais levadas em


consideração pelo poder público, está no fundamento de uma sociedade
democrática fundada nos princípios de justiça distributiva e redistributiva,
o que equivaleria a uma sociedade de iguais (p. 225).
Para Rosanvallon (2020), a pertinência do termo “democratura” está
em aclarar, por um lado, a justificação democrática de práticas autoritárias,
e, por outro, a passagem progressiva dos países para regimes autoritários
a partir de um quadro institucional democrático preexistente. O último
elemento da crítica rosanvalloniana reside nesse aspecto. Assim, o autor
distingue três fatores para analisar as condições através das quais um
governo populista pode transformar uma democracia numa democratura:
a instauração de uma filosofia e de uma política da irreversibilidade, uma
dinâmica de polarização institucional e de radicalização política e uma
epistemologia e uma moral da radicalização.
Uma filosofia e uma política da irreversibilidade estão ligadas à crença
de que a vitória nas urnas não marca uma alternância, mas sim a entrada
numa nova era política (Rosanvallon, 2020). A noção de maioria muda de
perspectiva e adquire uma dimensão “substancial”, caracterizada como o
triunfo do “povo” contra seus “inimigos”. Considerando-se os escolhidos
para a instauração de uma nova era, os governantes populistas organizam
a irreversibilidade a partir de dois instrumentos: o recurso às assembleias
constituintes com o objetivo de remodelar as instituições e a possibilidade
de reeleições indefinidas. Na retórica populista, não há autonomia do direito
com relação à política e “a Constituição é a simples expressão momentânea
de uma relação de forças” (p. 231).
A polarização e politização das instituições é o segundo ponto da
crítica do “populismo real”. A polarização é um processo que pode seguir
2
O termo “desmultiplicar”, tanto em francês como no português falado em Portugal, tem
dois sentidos: “reduzir a velocidade de rotação” ou “desdobrar-se ou esforçar-se em várias
ações ou atividades”. Este segundo sentido é exatamente o que Pierre Rosanvallon dá ao
termo. O sinônimo mais próximo no português falado no Brasil seria “desdobrar”. Pelo
fato de o termo “democracia desdobrada” soar estranho, optamos pela tradução literal:
“povo desmultiplicado”.

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duas modalidades: a “brutalização direta das instituições e as estratégias


de desvitalização progressiva” (Rosanvallon, 2020, p. 235). Já a politização
se dá através do constrangimento e afastamento de funcionários públicos,
que resulta numa “privatização do Estado”, uma vez que ele é esvaziado
da noção de serviço público (p. 236). Há ainda outro aspecto a considerar,
a saber, a ascendência dos governantes populistas sobre os meios de
comunicação.3 Nas democraturas que conseguiram estrangular os meios de
comunicação, aquelas que estão a serviço do poder acabam “colonizando
o espaço público e pesando na opinião de maneira decisiva” (p. 237).
O terceiro aspecto da crítica ao “populismo real”, enfim, é o que
Rosanvallon chama de “epistemologia e moral da politização generalizada”.
Os populistas não defendem projetos, mas se colocam como portadores
da verdade e da moral rodeados por inimigos maus e imorais. Há um
apagamento de fatos e argumentos e, consequentemente, da troca racional.
Ao mentir deliberadamente, os líderes populistas acabam por confundir
a natureza dos problemas e desestruturar o debate público. Há, nesse
sentido, o que Rosanvallon chamou de uma “corrupção cognitiva” do
debate democrático: “não há vida democrática possível sem que existam
elementos de linguagem comuns e a ideia de que possam se opor argumentos
fundados numa descrição compartilhada dos fatos” (2020, p. 240).
Tanto os estudos sobre o populismo quanto a própria experiência
concreta de movimentos e governos populistas frequentemente envolveram
grande número de ambiguidades e imprecisões. Imprecisões sociológicas,
referentes à base eleitoral populista; imprecisões políticas, que se
traduziram na incapacidade de bem distinguir entre populismo de direita
e de esquerda; imprecisões históricas, que surgiram da dificuldade de se
identificar historicamente movimentos populistas e a maneira como estão
relacionados; imprecisões conceituais, devidas à dificuldade em se definir
3
Essa ascendência não se dá necessariamente através de uma censura oficial. Os governos
populistas utilizam meios diversos como a redução da publicidade oficial ou privada em
jornais opositores, minando consideravelmente sua autonomia financeira.

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 211

de forma precisa o conceito de populismo.4 A teoria do populismo de


Rosanvallon pretende sanar esses problemas e oferecer os instrumentos
para apreender o fenômeno a partir dos diversos modos como ele interage
com a democracia. Contudo, consideramos que essa teoria só é apreendida
em toda sua potencialidade se articulada às suas reflexões precedentes
sobre as mutações da democracia contemporânea. É essa articulação que
focaremos no próximo segmento.

Ampliando a abordagem internalista: a teoria do populismo


rosanvalloniana à luz da sua teoria democrática
A teoria da democracia de Rosanvallon, formulada em diversos
trabalhos, buscou compreender algumas das mutações que caracterizam
as democracias contemporâneas. A primeira delas é a mutação da atividade
cidadã com a ascensão de uma forma de participação, ao lado da eleitoral,
que se traduz em práticas difusas de vigilância, de impedimento e de
julgamento. A segunda mutação está na concepção da vontade geral
que, por sua vez, levou a uma mudança da legitimidade democrática.
Rosanvallon mostrou como o sistema da dupla legitimidade, oriundo das
revoluções francesa e americana, no final do século 18, e do crescimento
do papel do Estado, a partir do início do século 20 – a “legitimidade
de estabelecimento” e a “legitimidade de identificação à generalidade
social” – entra em declínio a partir dos anos 1980, como resultado da
perda de confiança dos cidadãos em seus dirigentes e do declínio das
capacidades do Estado. Assim, a vontade geral passa a ser considerada
já não só como expressão da maioria, mas também como plenamente
democrática, desde que submetida a controles e validações. Três formas
de legitimidade emergem: a legitimidade de imparcialidade, a legitimidade
de reflexividade e a legitimidade de proximidade. A terceira mutação
4
Rosanvallon cita o exemplo de um número temático da revista Éléments (no 177, abril-
maio de 2019), intitulado “Les 36 familles du populisme”. Segundo ele, tal exercício é o
exato oposto de um trabalho de conceitualização e só faz mascarar uma incapacidade de
apreender a essência das coisas (Rosanvallon, 2020).

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212 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

está na democracia como forma de sociedade ameaçada pela explosão


das desigualdades das últimas décadas do século 20. A quarta mutação,
finalmente, foi o fortalecimento do poder executivo, a partir de meados
do século 20 – processo que Rosanvallon chamou de “presidencialização
das democracias”.
Como, portanto, articular essas mutações da democracia contemporânea
com o problema do populismo, e como a apreensão das primeiras
contribui para a compreensão do segundo? O ponto de partida é a ideia
de “indeterminação democrática” que, em Rosanvallon, se distingue tanto da
concepção de Claude Lefort (1991) – que a associa à ideia do poder como
lugar vazio e não passível de reapropriação –, quanto daquela de Hans Kelsen
(2000) – que a associa a uma qualidade de ordem epistemológica traduzida
num ceticismo filosófico. Rosanvallon a situa num plano mais funcional,
ligado ao fato de o sujeito, o objeto e os procedimentos da democracia
serem estruturalmente vinculados a tensões, ambiguidades, paradoxos
e aporias que tornam sua definição problemática; consequentemente,
essas também são fontes de múltiplas formas de desencanto (Rosanvallon,
2015a). O que Rosanvallon chamava de “patologias da democracia” pode
ser apreendido como formas de redução da complexidade, de polarização
ou esquecimento das tensões estruturantes de suas diferentes figuras. Como
ele escreveu, “são patologias da realização ou da limitação apoiada na
ilusão de uma simplificação” (Rosanvallon, 2013).5
Propomos, aqui, três pontos de articulação entre as mutações da
democracia contemporânea e os populismos: o problema do “impolítico”
e da consequente necessidade de um “trabalho do político”; a ideia de
realização da vontade na democracia, o que remete à sua dimensão
5
Da Revolução de 1789 ao século 20, Rosanvallon identificou algumas “patologias internas
à democracia” analisadas em La Démocratie inachevée (2000): elas assumiram três formas
no século 19 – a “democracia constitucional”, a “cultura da insurreição” e uma concepção
de “governo direto”, encarnada por Napoleão III, duas no século 20 – os totalitarismos
comunista e nazista – e uma no século 21– o populismo. Compreender a democracia,
para Rosanvallon, é compreender o sistema que forma essa indeterminação e esse
desencantamento. Esse, portanto, é um primeiro ponto a enfatizar: o populismo é mais um
resultado perverso, entre outros, de uma tentativa de simplificação do ideal democrático.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 213

reflexiva; e a atual “corrupção cognitiva” da esfera pública, o que remete


à importância da linguagem e, especificamente, da noção de parler vrai,
forjada por Rosanvallon em Le Bon gouvernement.

O problema do impolítico
Até a publicação de Le Siècle du populisme, o populismo não havia
ocupado um lugar central nas reflexões rosanvallonianas sobre a democracia
e suas perversões. Um curto capítulo lhe é dedicado em La Contre-démocratie
(Rosanvallon, 2006), além de um artigo publicado em 2011 em La Vie des
idées. Assim, a discussão que nos interessa em La Contre-démocratie vai
além do problema específico do populismo, uma vez que este último é
apenas uma das consequências de um problema mais amplo e profundo que
Rosanvallon definiu como o “impolítico”. Convém aprofundar esse ponto.
Esse conceito é definido por Rosanvallon (2006, p. 27-28) como “a falta
de apreensão dos problemas ligados à organização de um mundo comum”.
Esse é o problema contemporâneo – não a passividade. Essa dissolução do
político – ou seja, das expressões de pertencimento a um mundo comum – se
manifesta de duas maneiras: por um lado, no aprofundamento da separação
entre a sociedade civil e as instituições, e por outro, na constituição de uma
“contrapolítica” que deprecia poderes em vez de procurar conquistá-los.
Assim, num mesmo movimento, coloca-se o campo político em posição de
exterioridade em relação à sociedade, deslegitimando o poder, e perde-se
as qualidades essenciais do político através de um processo de perda de
visibilidade e legibilidade do regime democrático. A era da democracia
impolítica, que ora vivemos, deve ser entendida como um tipo de ação
governamental cujas modalidades foram profundamente modificadas por
um movimento simultâneo de crescimento da democracia sob uma forma
essencialmente indireta e de declínio do político.
Esse é o pano de fundo tanto da ascensão de formas de participação
contrademocráticas, quanto de seus desvios. A contrademocracia é todo um
“emaranhado de práticas, de testes, de contrapoderes sociais informais, mas

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


214 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

igualmente de instituições, destinadas a compensar a erosão da confiança


através da organização da desconfiança” (Rosanvallon, 2006, p. 11, grifos
no original). Em La Contre-démocratie, o populismo é compreendido como
uma patologia da democracia e, sobretudo, da contrademocracia. Como
patologia da democracia eleitoral-representativa, ele está intrinsecamente
ligado às tensões estruturantes da representação, fazendo referência à ideia
de um povo sano e homogêneo que deve se opor ou se proteger daquilo
que é exterior a ele. Não sendo esse fator suficiente para apreender as causas
e exprimir as peculiaridades do fenômeno, o autor aprofunda, então, a
análise, a partir da ideia de populismo como patologia da contrademocracia.
Como patologia da vigilância, o populismo transforma a preocupação ativa
e positiva de inspecionar a ação dos poderes, de submetê-los à crítica e à
avaliação, em estigmatização compulsiva e permanente das autoridades
governantes, a ponto de transformá-las em inimigas e exteriores à sociedade;
como patologia do impedimento, ele se transforma numa visão negativa do
político fechado em si mesmo; finalmente, como patologia do julgamento,
ele é a “exacerbação destruidora da ideia do povo-juiz” (p. 275), em que
a cena do tribunal se degrada e há um processo de criminalização ou de
ridicularização do poder. O populismo como patologia da contrademocracia
pode ser considerado uma forma de expressão política na qual o projeto
democrático se deixa totalmente aspirar e sugar pela contrademocracia,
transformando-se numa forma extrema da antipolítica (p. 276).
Se o próprio Rosanvallon reconheceu em Le Siècle du populisme que sua
análise do populismo em La Contre-démocratie foi redutora, pois não se trata
apenas de uma patologia da contrademocracia, o diagnóstico do impolítico
como pano de fundo dos problemas da democracia contemporânea
permanece um tema essencial da sua reflexão. Pensar o impolítico e suas
possíveis soluções lança luz também sobre o problema do populismo. Essa
resposta passa pelo que Rosanvallon (2006) chamou de um “trabalho do
político”, que consiste na atividade reflexiva e deliberativa através da qual
se elaboram as regras de constituição de um mundo comum: determinação
dos princípios de justiça; arbitragem entre situações e interesses de diferentes

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 215

grupos; modos de articulação entre o público e o privado. A solução –


fazer frente ao impolítico – passa pela reconstrução da visão de um mundo
comum, traduzido num “trabalho da sociedade sobre si mesma” (p. 312).

A dimensão reflexiva da democracia: desmultiplicação do povo e


vontade política como construção histórica
As transformações na concepção da vontade geral oferecem um ângulo
de análise privilegiado para abordar a questão da reflexividade e mensurar
um dos principais contrapontos entre uma concepção de democracia
“complexificada” e aquela “simplificada” da retórica populista – direta,
polarizada e imediata. Esse é um dos pontos da crítica de Rosanvallon
em Le Siècle du populisme que convém ampliar neste segmento. Como já
mencionado, três novas formas de legitimidade democrática emergiram a
partir dos anos 1980: a imparcialidade, a reflexividade e a proximidade.6 A
reflexividade pretende combater os perigos de uma democracia imediata,
direta e polarizada, através da pluralização das modalidades de exercício
e da temporalidade da soberania do povo. Condorcet é, nesse aspecto,
uma referência fundamental. Recorrendo a ele, Rosanvallon afirma que
a vontade geral resulta de um processo contínuo de interação entre
o povo e os representantes e de uma construção histórica a partir da
articulação de várias temporalidades. O “povo” da democracia, por sua
vez, manifesta-se de diferentes formas, nenhuma podendo monopolizar
o sujeito da democracia. Essas “formas do povo” são o povo-eleitoral, o
6
A legitimidade de imparcialidade é característica das autoridades administrativas
independentes. Estas reduzem o campo do poder executivo e administrativo, impactando
a tradicional divisão dos poderes. Espera-se delas que sejam independentes com relação ao
executivo, aos políticos em geral e aos lobbies, mas também que sejam coerentes. Elas devem
atingir a generalidade de forma negativa, ou seja, não concedendo a ninguém vantagens
ou privilégios e manifestando uma forma de desapego constitutiva do desinteresse. A
legitimidade de proximidade se refere a uma nova expectativa dos cidadãos que estão cada
vez mais sensíveis ao próprio comportamento dos governantes. Eles querem ser escutados,
levados em consideração, expor seus pontos de vista; esperam que o poder esteja atento ao
cotidiano das pessoas ordinárias. Além do mais, cada pessoa gostaria que a especificidade de
sua situação fosse levada em conta e não apenas submetida a regras abstratas (Rosanvallon,
2008, p. 267). A palavra de ordem, nesse caso, é a “proximidade”.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


216 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

povo social e o povo-princípio. As principais instituições da reflexividade


são as cortes constitucionais que encarnam o povo-princípio no tempo
longo da memória coletiva e do direito. Trata-se de uma lógica que não
é a do maior número.
Por outro lado, se deriva de uma interação de tipo institucional, a
soberania do povo é igualmente uma construção histórica, na medida em que
articula várias temporalidades: tempo curto do referendo; ritmo institucional
das eleições; tempo longo da constituição (Rosanvallon, 2008). Em cada
um dos casos, a expressão do povo instaura uma vontade que é, ao mesmo
tempo, completada, vigiada e controlada pelos outros procedimentos. São
diferentes expressões de si mesma que entram em jogo. Condorcet abre,
dessa maneira, a via a uma profunda renovação da questão da separação
dos poderes, não mais apreendido no modo tradicional de uma balança ou
de uma divisão equilibrada das prerrogativas, mas concebido como uma
condição do aprofundamento democrático, condição para dar consistência
ao povo real que é sempre complexo e plural. O povo, para dizer de outra
forma, é múltiplo e, por essa razão, nenhuma de suas manifestações pode
resumi-lo e “representá-lo” satisfatoriamente.
O tempo, portanto, constrói a reflexividade; logo, constrói a vontade
geral num movimento contínuo de reflexão. Como coloca Rosanvallon
(2008, p. 210), querer conjuntamente não se limita a escolher ou decidir
juntos, como numa eleição. Escolher e decidir pressupõem um antes e
um depois. A vontade geral não é mais eficaz no referendo, ao contrário.
Ela inscreve uma escolha momentânea, envolvendo pessoas e programas,
na perspectiva mais ampla da realização de valores, na busca de objetivos
mais gerais envolvendo uma forma de sociedade desejada. A vontade é a
disposição complexa que liga esses diversos elementos e, por essa razão,
é estruturalmente uma construção do tempo, fruto de uma experiência,
expressão de uma projeção do ser. A vontade está, por definição, ligada à
construção de uma narrativa, e não é, como coloca a retórica populista, a
decisão a respeito de uma questão específica, colocada de forma dicotômica.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 217

A batalha do parler vrai contra a corrupção cognitiva


O trabalho do político e a manifestação da vontade só se realizam através
da linguagem. Esse é o terceiro aspecto que nos parece particularmente
relevante para pensar a relação das mutações da democracia contemporânea
com o populismo. Embora a importância da linguagem seja subjacente a
todas as dimensões da reflexão propostas por Rosanvallon, ela recebe um
tratamento especial em Le Bon Gouvernement, através da noção de parler
vrai. O caráter incontornável da linguagem em sua teoria é claramente
enunciado quando ele afirma que “governar é falar” (Rosanvallon, 2015b,
p. 327). Segundo ele, os políticos falam para se explicar, mas também
para apontar uma direção, desenhar um horizonte e prestar contas de
suas ações. Uma política democrática implica tornar a vida das pessoas
e a ação pública inteligíveis através da linguagem. É o parler vrai que faz
aumentar o controle dos cidadãos sobre sua existência e lhes permite
estabelecer uma relação positiva com a vida política. Em contrapartida, a
ausência do parler vrai significa distanciamento dos cidadãos das questões
envolvendo a coletividade. Portanto, a linguagem política é crucial para o
estabelecimento de um elo de confiança.
O parler vrai não possui uma definição simples, existindo apenas na
forma de um trabalho permanente de reflexão crítica sobre a linguagem
política, trabalho esse que é uma das dimensões vitais da atividade
democrática. Ele é, nas palavras de Rosanvallon (2015b, p. 342), “uma
forma radical de implicação na comunidade, o elo entre uma existência
pessoal e um destino coletivo”. O parler faux, em contrapartida, tem um
efeito destruidor da vida democrática. Pois, se, por um lado, a linguagem
tem o poder de dar sentido às coisas e desenhar um horizonte, ela também
tem uma função de sedução e dissimulação, além do poder de criar um
mundo artificial que bane a possibilidade de uma interrogação sobre a
condução das coisas públicas. Portanto, a mesma linguagem criadora de
elos de confiança, vetor de intercompreensão e meio de exploração da
realidade, cria as condições do autoritarismo. Os regimes totalitários o

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


218 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

demonstraram perfeitamente. Não foi só através do terror que esses regimes


puderam criar um mundo fictício; foi também através da linguagem, criadora
do universo fictício e coerente da ideologia.
Rosanvallon (2015b) identifica três batalhas a serem travadas em prol
do parler vrai. A primeira é contra a mentira pura e simples. Trata-se de
caçar as mentiras, imprecisões, alterações semânticas.7 É preciso desconstruir
as mentiras por todos os meios possíveis, para não mais deixar o mundo
político impor sua linguagem sem ser contestado. A segunda batalha deve ser
uma crítica do “monólogo”, um tipo de linguagem que não permite a troca
de argumentos, pois não se arrisca, nunca é testada, permanece protegida
atrás da “fortaleza” de suas puras afirmações. A consequência desse tipo
de linguagem é a manutenção dos cidadãos na posição de espectadores
passivos. Finalmente, a terceira batalha é contra o que Rosanvallon chama de
“linguagem das intenções”. Relativamente nova, ela faz referência à ideia de
impotência do político com relação às potências impessoais, notadamente
do mercado. Essa linguagem restaura o sentimento de domínio da ordem
moral sobre as coisas, cortada da ação política, ligando-se à percepção de
um mundo governado por intenções das quais procederiam as realidades.
Nesse sentido, mudar o mundo consistiria em impor outras intenções das
quais poderia sair um novo mundo. Essa linguagem não tem vínculo com
as realidades, liga-se estruturalmente a uma aversão aos compromissos e
arranjos práticos, pois o mundo das intenções é o mundo dicotômico do
bem contra o mal.
As considerações em torno do impolítico, da reflexividade e da
linguagem possibilitam ampliar a compreensão da teoria do populismo de
Rosanvallon. Nesse sentido, a leitura de Le Siècle du populisme é indissociável
da sua teoria das mutações da democracia contemporânea. Esses pontos
de articulação, que buscamos operacionalizar, revelam que, para além
da construção de um ideal-tipo do populismo, da identificação da sua
7
Rosanvallon (2015b) exemplifica essas alterações semânticas a partir de um texto de George
Orwell intitulado “La politique et la langue anglaise”, no qual ele nota como, em países
totalitários, execuções sumárias passaram a ser chamadas de “eliminação de suspeitos” ou
deslocamentos massivos de população reduzidos a “retificação de fronteiras”.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 219

emergência em distintos períodos históricos e da crítica passível de lhe ser


dirigida, o populismo é uma forma de democracia-limite própria de uma
era ameaçada pelo problema do impolítico e da exacerbação das formas
contrademocráticas, de uma concepção reducionista da vontade geral
e de um processo crescente de corrupção cognitiva do debate público.
São, fundamentalmente, esses aspectos que permitiram a emergência de
uma concepção de democracia “direta, polarizada e imediata”, sedutora
para vários setores da sociedade. O problema é que essa concepção de
democracia não resolve os problemas que os líderes populistas prometem
solucionar. Ao contrário, aprofunda-os abrindo a via para uma democratura
e, em última instância, para um regime abertamente autoritário. Limitar o
estudo da teoria do populismo de Rosanvallon a uma abordagem puramente
internalista – ainda que seja uma abordagem internalista ampliada às suas
outras obras –, não oferece senão uma visão parcial do objeto em análise. Por
isso, é fundamental cotejar sua teoria com outros estudos, particularmente
aqueles que tomaram a defesa teórica do populismo.

Rosanvallon e o debate contemporâneo sobre o populismo


A literatura sobre o populismo tem recebido contribuições crescentes
no debate sobre a crise política contemporânea. Contudo, apesar do volume
crescente de textos, a bibliografia está longe de encontrar consenso sobre o
que é o populismo, como este se diferencia de outros tipos de movimentos
políticos e, mesmo, se sequer existe como fenômeno distinguível e conceito
eficiente.8 Já na célebre coletânea de artigos sobre o tema do populismo
organizada por Ghita Ionescu e Ernst Gellner, no final dos anos 60, os autores
insistem na importância do conceito, ao mesmo tempo em que reconhecem
sua natureza elusiva: “não é possível, no presente, duvidar da importância
8
Dado que a finalidade do artigo é a interpretação da concepção de populismo de
Rosanvallon à luz do debate contemporâneo, deixaremos de lado a discussão sobre as
variações históricas do populismo, tanto no caso russo, em que a palavra “populismo”
encontra sua origem, quanto o desenvolvimento do populismo agrário norte-americano e,
sobretudo, a longa e complexa discussão sobre o populismo na América Latina. Para fontes
sobre esse debate, ver, respectivamente: Berlin (1968), Kazin (1995) e Ferreira (2001).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


220 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

do populismo. Mas ninguém sabe com clareza exatamente o que ele é”, e
completam, adiante, afirmando que “ele aparece por toda parte, mas em
várias formas contraditórias. Teria ele uma unidade, ou seria apenas um
nome que cobre tendências desconectadas?” (Ionescu; Gellner, 1969, p. I).
A diversidade de abordagens responde, evidentemente, a perspectivas
teóricas consideravelmente distintas: encontramos na literatura interpretações
históricas que ressaltam as continuidades ideológicas entre os populismos do
pós-guerra e o fascismo (Finchelstein, 2017), a relação do populismo como crise
da representação liberal (Taggart, 2004; Urbinati, 2019), o populismo como
manifestação de uma ação política que visa substituir o regime democrático
por uma “democracia iliberal” (Müller, 2016), o populismo como um estilo de
performance política (Moffit, 2016) ou ainda os estudos empíricos que buscam
compreender aspectos específicos do fenômeno, como as características
geracionais do voto nas lideranças populistas (Norris; Inglehart, 2019). Caberia,
portanto, perguntar-nos que contribuição para a literatura sobre o populismo
a obra de Rosanvallon oferece e como sua abordagem teórica se aproxima ou
afasta das principais interpretações da literatura. Como procuramos demonstrar
até aqui, a interpretação rosanvalloniana do populismo é inseparável de
sua teoria da indeterminação democrática e do diagnóstico do populismo
como sinal de um “fechamento” do horizonte democrático. Nesse sentido,
buscaremos, em primeiro lugar, mostrar como a interpretação de Rosanvallon
se distingue no âmbito da relação entre populismo e representação, com
especial atenção para sua comparação com Nadia Urbinati, reconhecidamente
uma leitora crítica de seus trabalhos anteriores. Em segundo lugar, buscaremos
contrastar a abordagem de Rosanvallon com uma das principais elaborações
teóricas objeto de crítica em seu livro sobre o populismo, aquela de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe.

Populismo e representação política


Desde a coletânea de Ionescu e Gellner, de 1969, passando pelas
contribuições de Margaret Canovan (1981, 1999, 2002), algumas das
interpretações mais influentes do populismo interpretam-no como uma

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 221

síndrome da pretensa ambiguidade democrática fundamental: o paradoxo


entre a ideia de soberania do povo e as práticas institucionais ou “pragmáticas”
da democracia (Canovan, 1999) e sua natureza limitadora das demandas
populares. Não muito longe dessa interpretação, os trabalhos de Cass Mudde
e Kaltwasser (2012, 2017) definiriam o populismo como uma “ideologia
esvaziada” (thin-centered ideology), identificada pela reivindicação de uma
vinculação ao povo em oposição ao establishment político. Essa “ideologia
esvaziada” não existiria sozinha, mas se manifestaria no interior de outras
ideologias “cheias” – o socialismo, o nacionalismo ou mesmo o liberalismo.
O populismo, para eles, contrapor-se-ia a outros dois fundamentos das
democracias: o pluralismo e o elitismo (Mudde; Kaltwasser, 2017).
As críticas a tais abordagens estão centradas, sobretudo, em seus
problemas de operacionalização analítica. Haveria, na suposição de uma
ideologia populista, poucos elementos capazes de diferenciá-la de outras
características ideológicas já presentes em ideologias políticas bem definidas
(o socialismo, o nacionalismo de extrema-direita, o neoliberalismo etc.).
Como nota Benjamin Moffit (2016, p. 19), “uma ideologia esvaziada pode
se tornar tão vazia que perde sua validade e utilidade conceitual”.
Mantendo-se dentro da crítica à imprecisão do conceito de populismo
como ideologia, mas buscando, ainda assim, entendê-lo a partir de suas
interações com o elitismo e o pluralismo democrático, Nadia Urbinati
desenvolve uma tentativa de interpretar o populismo a partir de uma teoria
da representação democrática. Segundo ela,

podemos dizer que vemos as coisas melhor se pararmos de nos engajar em


debates sobre o que o populismo é – se ele é uma “ideologia esvaziada”, uma
mentalidade, uma estratégia ou um estilo – e voltarmo-nos para analisar o
que o populismo faz: em particular, perguntarmo-nos sobre como ele muda
ou reconfigura os procedimentos e instituições da democracia representativa
(Urbinati, 2019, p. 7).

Tratar-se-ia, assim, menos de remeter ao populismo como uma das


expressões do fundamento da democracia, a busca por modos de expressão
da soberania e da vontade popular, e sim de interpretá-lo como parte

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


222 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

da dinâmica de competição e circulação de elites políticas do regime


representativo. Urbinati (2019) propõe, de partida, afastar a “mitologia”
do paradoxo ontológico da democracia – e, portanto, do populismo como
expressão do polo propriamente democrático da ontologia dualista – e
assumir que a compreensão do populismo deve partir de uma interpretação
de seus efeitos na prática da democracia representativa, que não pode
ser compreendida fora de sua relação com valores liberais e republicanos
como as garantias individuais e os exercícios da representação, e dos
mecanismos institucionais de exercício do poder. Trata-se de entender
que tipo de reivindicação por mudança institucional o populismo opera na
prática e, sobretudo, suas consequências para as instituições democráticas
fundamentais como o pluralismo, a competição política, o funcionamento
de mecanismos contramajoritários etc.
O ponto de partida da crítica de Urbinati à literatura sobre o populismo e
de sua proposta interpretativa e teórica parece-nos, a princípio, aproximar-se
do que procuramos demonstrar até aqui a respeito da teoria de Rosanvallon:
o que ambos os autores propõem demonstrar é que o populismo reivindicaria
a representação como um modo de “confirmação” que anula a complexidade
da democracia, já que o exercício do poder resultante da representação
não está mais relacionado à sua adequação a normas sociais objetivas – que
pressupõem o exercício do povo-soberano como povo institucionalizado
pelo Estado de direito –, mas a uma suposta resposta direta ao soberano e
à possibilidade de interpretar e encarnar sua vontade. Em termos práticos,
essa distinção remete ao problema colocado inicialmente pelo populismo
como um fenômeno de natureza antipluralista: se a competição política
por representação é que gera o pluralismo democrático, a pressuposição de
uma democracia que pudesse prescindir do pluralismo abriria espaço para
a construção de uma “democracia autoritária, imediata e polarizada, que
chamaríamos hoje em dia de ‘democracia iliberal’” (Rosanvallon, 2020, p. 18).
Contudo, é preciso ressaltar uma diferença fundamental entre as
interpretações de Rosanvallon e Urbinati sobre o populismo, a qual, em
verdade, revela disjuntivas de longo prazo entre os dois autores. A análise

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 223

de Urbinati é construída no sentido de demonstrar que o populismo é,


sobretudo, uma forma de transformar a democracia, e não de substituí-la
por um regime autoritário; essa é a principal diferença que a autora percebe
entre o populismo e o fascismo, dado que este último seria inseparável do
objetivo de construir uma “tirania”. Contudo, a necessidade de distinguir
o populismo de outras formas abertamente autoritárias parece-nos ter
levado a autora a confundir, na mesma categoria de “populismo”, formas
potencialmente antidemocráticas de mobilização política com formas de
reivindicação por modos alternativos de participação.
Urbinati afirma que “deveríamos falar de uma transformação populista
da democracia – ou, ainda melhor, uma transformação na forma como
a democracia representativa está se preparando para entrar na era da
soberania de audiência” (Urbinati, 2019, p. 176). E, para demonstrar
essa transformação populista no interior das democracias representativas,
ela ilustra o argumento com os casos do Podemos na Espanha e do
Movimento 5 Stelle na Itália como exemplos de reivindicação de formas
de “poder popular direto” e “democracia participativa” como alternativa
de combate ao poder das elites que parasitam o sistema político-partidário
tradicional. Para ela, ambos os partidos seriam os “mais expressivos e
espetaculares casos de ascensão populista que desafiaram os partidos
mainstream em anos recentes” (p. 181). Ora, se é verdade que esses
partidos obtiveram crescimento eleitoral expressivo a partir da crítica
ao establishment político e reivindicando novas formas de participação
e de controle sobre a representação, o fato de ambos terem formado
gabinetes com o establishment de centro-esquerda em anos recentes mostra
que não há distinção eficiente entre chamá-los de populistas ou encará-
los como manifestação de novas formas de conflito e transformação do
quadro partidário nos sistemas democráticos. Ao fim, Urbinati qualifica de
populista qualquer tipo de reivindicação por novas formas de participação,
de deliberação e de crítica ao sistema partidário estabelecido, não as
diferenciando de exemplos que colocam as estruturas da democracia
representativa e o Estado de direito em risco, como o processo de regressão

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


224 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

democrática do caso húngaro, que se encaixaria perfeitamente “no seu


conceito de populismo como transição de movimento para regime”
(Cassimiro, 2021, p. 41).
Esse problema na análise de Urbinati remete às próprias críticas
endereçadas a Rosanvallon, em seu livro Democracy desfigured
(Urbinati, 2014), onde a autora argumenta que haveria, na teoria política
contemporânea, uma tendência a desafiar as definições procedimentais da
democracia no sentido de atribuir a certas instituições conteúdos substantivos
que não seriam, necessariamente, resultado dos procedimentos eleitorais.
No caso de Rosanvallon, Urbinati reconhece essa “desfiguração” da
democracia em sua defesa do lócus institucional em que se desenvolveriam
instrumentos de “imparcialidade e reflexividade”, em especial o judiciário
e as autoridades independentes. A crítica de Urbinati revela, em muitos
sentidos, o problema teórico de fundo que distingue ambos os autores: para
ela, a centralidade de certa concepção minimalista de democracia, que ela
chama de procedimentalista em seu livro de 2014, dota sua concepção
de democracia de um conteúdo bem determinado e consideravelmente
afastado da ideia de “indeterminação” rosanvalloniana: a democracia
pode não ser dotada de um conteúdo “perfeccionista”, mas ela é algo
bem definido para Urbinati, “um método para regular a distribuição de
governo entre os cidadãos” (2014, p. 234). É justamente por essa razão
que fenômenos políticos tão distintos como o de Viktor Orbán, Trump ou
o Podemos podem ser incluídos por ela numa única categoria chamada
“populismo”: em todos os casos, trata-se de um tipo de política que procura
se exercer para além da execução dos mecanismos procedimentais do
“jogo democrático”, “desfigurando-os”. Contudo, como apontamos, essa
indistinção não nos permite entender se essa desfiguração carrega ou não
consigo uma normatividade autoritária.
Essa tentativa de se refugiar na defesa dos procedimentos é justamente
o que a teoria da indeterminação democrática de Rosanvallon procura
superar, ao se afastar da teoria do “paradoxo” democrático ou da ideia das
potencialidades emancipatórias do populismo. Como já demonstramos, para

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 225

Rosanvallon, o populismo é uma “forma limite do projeto democrático”,


ao lado, contudo, de duas outras: as democracias minimalistas e as
democracias essencialistas. A ideia schumpeteriana de democracia (criticada
por Urbinati, mas que ainda assim guarda afinidades com sua defesa do
procedimentalismo contra as formas perfeccionistas de democracia) não é,
para Rosanvallon, senão uma das manifestações possíveis da indeterminação
democrática, na medida em que revela a dimensão institucional associada
ao método de seleção das elites políticas, sem, contudo, esgotar ou concluir
as possibilidades da democracia. Se é evidente que, para Rosanvallon (2020,
p. 151), o poder não pode “tomar forma senão de modo mediatizado e
instrumentalizado pelos procedimentos representativos”, não se pode
esquecer que “a democracia não designa só um tipo de regime, mas qualifica
também uma forma de sociedade” (p. 158). É justamente o conflito entre
as promessas não exercidas pela institucionalidade democrática tal como
ela existe e sua tensão com as promessas de realização da “sociedade
dos iguais”, no âmbito da democracia como forma de sociedade, que
alimentam processos sintomáticos do “desencantamento democrático
contemporâneo” (p. 19). É, pois, essa ambiguidade, criada pela definição
de populista aplicável a processos políticos consideravelmente diferentes –
do Podemos a Viktor Orbán –, que Rosanvallon parece superar ao propor
a ideia de “formas limites” da democracia. Em verdade, poderíamos dizer
que a originalidade de sua teoria está menos em uma “nova definição” de
populismo do que na compreensão teórica do populismo no interior dessas
formas limites. Tais horizontes redutores da complexidade democrática,
Rosanvallon observa tanto na defesa minimalista da democracia liberal
quanto na apologia normativa das potencialidades democratizantes do
populismo, como procuraremos discutir a seguir.

As limitações do “momento populista”


Entre os teóricos que avaliam os potenciais positivos do populismo,
quem desenvolveu um argumento mais elaborado, e com consequências
normativas para a ação política, foi o filósofo argentino Ernesto Laclau, cuja

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226 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

obra foi desenvolvida em conjunto e, após a sua morte, desdobrada – não


sem diferenças – nos argumentos de Chantal Mouffe. Sua perspectiva, que
poderíamos chamar aqui de “ontológica”, apontaria para o populismo como
a manifestação de um tipo de conflito antagônico constitutivo do “político”:
a capacidade de estabelecer diferenças entre o dentro e o fora, entre o
“nós” e os “outros”. O populismo seria o ato de superar a ideia da política
como um “conjunto puramente diferencial” de demandas, identificada pela
democracia liberal, em favor de um tipo de identidade capaz de congregar
demandas subalternas num conceito de totalidade diferencial, reconstruindo
a política como um conflito antagônico (Laclau, 2005). Laclau se fasta dos
esforços de catalogação das variedades de populismo, dado que, para ele,
o fenômeno não pode ser apreendido pela síntese de suas manifestações
históricas, tentativa que ofereceria, no máximo, “um mapa da dispersão
linguística” (Laclau, 2005, p. 7) do fenômeno populista. Nesse sentido, a
natureza elusiva do populismo não seria uma falha conceitual, mas antes
uma consequência da realidade social à qual ele remete: o populismo,
antes do que uma operação ideológica e política, é um ato performativo
capaz de construir identidades em torno de demandas políticas específicas.
A publicação de Le Siècle du populisme recebeu atenção imediata do
debate intelectual sobre o populismo e a crise da democracia. Uma das
reações críticas ao trabalho, um artigo de Chantal Mouffe publicado no Le
Monde Diplomatique (2020) e intitulado “Ce que Pierre Rosanvallon ne
comprend pas” permite explorar algumas das implicações da interpretação
de Rosanvallon em comparação com as teorias que reivindicam o populismo
como horizonte normativo da ação política. Em sua crítica, Mouffe afirma
que a leitura de Rosanvallon sobre seus próprios trabalhos e os de Laclau
retomaria o “lugar comum” de definir o populismo como uma contraposição
entre “povo puro” e “elites corruptas”, por não entender que a variedade dos
populismos responderia a estratégias específicas de “construção da fronteira
política estabelecida com base em uma oposição entre as camadas inferiores
e as superiores, os dominantes e os dominados” (Mouffe, 2020), tentando
reduzir o fenômeno a uma definição ideológica unívoca. Esse ponto estrutura

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 227

a concepção de populismo de Laclau (2005) como performance do conflito


político, pois para o autor o populismo utiliza a categoria “povo” como um
significante vazio que permite estabelecer uma cadeia de equivalências
entre demandas aparentemente desagregadas de parcelas subalternas da
população. Essa cadeia, fundada em uma lógica da identidade, constrói a
fronteira entre o povo e seu “outro”, as elites, estabelecendo a dicotomia
necessária para a reconstrução do conflito político fundamental, oculto sob
a máscara da “totalidade diferencial” representada pela democracia liberal.
Contudo, diferentemente de Laclau, que identifica democracia
liberal com democracia burguesa e, portanto, reivindica a ação populista
visando construir um outro projeto emancipatório, o projeto populista de
Mouffe opera como uma “radicalização da democracia liberal”, consistindo
justamente em reafirmar a “natureza partidária da política” (Mouffe, 2018,
p. 10). O momento atual, que a autora define como sendo o “momento
populista”, é uma possibilidade de “retorno ao político”; contudo, vale
lembrar, esse retorno não necessariamente tem um conteúdo essencialmente
democrático, mas pode, também, conduzir a alternativas autoritárias;
por isso, o conflito político fundamental do mundo contemporâneo é
definido por ela como uma disputa entre um populismo de esquerda e
um populismo de direita, possibilitado pelo “interregno” resultante da crise
da hegemonia neoliberal. Nesse sentido, o encontro entre populismo e
agonismo aparece nos trabalhos mais recentes de Mouffe como resultado
de uma radicalização possível do imaginário político das democracias
modernas: “inscrever a estratégia populista na tradição democrática é, em
minha visão, o movimento decisivo, pois ele estabelece uma conexão com
os valores políticos centrais para as aspirações populares” (Mouffe, 2018,
p. 26). Ora, a ação populista não será, portanto, uma reconstrução do
zero de um significante vazio, mas a reconexão com os “valores políticos”
do projeto democrático representado, entre outras experiências, pela
Declaração dos Direitos do Homem.
A crítica agonista, no limite, pressupõe uma inscrição distinta no
projeto emancipatório da democracia ou, nas palavras de Mouffe (2018,

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p. 25), “a radicalização dos princípios ético-políticos do regime liberal-


democrático”. É essa dimensão do vínculo entre o construtivismo da
estratégia populista e a radicalização do ideal emancipatório da democracia
que Mouffe acusa Rosanvallon de não ter compreendido, mantendo-se
vinculado a uma concepção consensual de democracia, “uma versão
sofisticada da doutrina dominante dos partidos socialdemocratas sob a
hegemonia neoliberal” (Mouffe, 2020), para a qual o “déficit democrático”
contemporâneo poderia ser resolvido através de um sistema político capaz
de dar espaço à diversidade das demandas individuais numa sociedade
em que as classes sociais e suas consequências para as identidades de
esquerda e direita perderam pertinência.
Ora, sem abordarmos aqui o juízo de Mouffe sobre as implicações
normativas da teoria democrática de Rosanvallon, acreditamos ser possível
observar que a leitura deste, antes de se equivocar quanto ao estatuto
teórico do “momento populista” da esquerda, toma-o como um exemplo
teoricamente preciso do populismo como manifestação de uma das
aporias estruturantes da democracia, que aponta não para uma realização
das “promessas” da democracia, mas antes para sua limitação em um
horizonte democrático restrito. Retomemos os trabalhos de Laclau para
desenvolver essa questão.
Laclau procura formular uma distinção entre o potencial emancipatório
do populismo e sua possível manifestação em um significante vazio cuja
natureza seja limitadora, ou mesmo regressiva em termos de conquistas
democráticas. Dado que a identidade do povo necessita da superação dos
aspectos puramente diferenciais da institucionalidade democrático-burguesa,
deve ser afastado, por princípio, o apelo a quaisquer aspectos de mediação
institucional como modo de limitar a possível conversão antidemocrática
da representação populista. A saída para escapar da possibilidade de que
o populismo se manifeste em formas antidemocráticas está em reivindicar
uma identidade entre universalismo e emancipação, que estaria, portanto,
ausente em formas autoritárias de populismo. “A plebe, cujas demandas
parciais estão inscritas num horizonte de totalidade – uma sociedade

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 229

justa que existe apenas idealmente – pode aspirar a constituir o povo


verdadeiramente universal que a situação atual nega” (Laclau, 2005, p.
94). É através de uma aposta no horizonte normativo de uma identidade
entre demandas da plebe e seu conteúdo universal – articulados em uma
ação política populista de conteúdo emancipatório – que Laclau diferencia
o populismo como potencial emancipatório de sua perversão autoritária
(Cassimiro, 2021, p. 21).9
O argumento de Laclau está fundado na defesa da democracia
como exercício de uma ação política emancipatória (cuja manifestação
é o populismo) e na recusa das formas institucionais, do direito e da
representação, que caracterizam os modos de mediação da democracia
liberal. Essa recusa está baseada em uma distinção feita por Mouffe entre a
democracia como uma forma de governo baseada no princípio da soberania
do povo e a estrutura institucional liberal através da qual a democracia é
exercida (Laclau, 2005). Para Mouffe, a democracia moderna é resultado
da conjunção circunstancial de duas tradições: a reivindicação liberal da
rule of law, “a defesa dos direitos humanos e o respeito pela liberdade
individual”, e a tradição democrática baseada nas ideias de “igualdade e
de soberania popular”. “Não há uma relação necessária entre essas duas
tradições, mas apenas uma articulação histórica contingente” (Mouffe, 2000,
p. 3) que, em última instância, se expressaria através de um paradoxo,
como ela pretende demonstrar em seu livro The democratic paradox (2000).
A princípio, essa interpretação parece ir ao encontro da ideia de
indeterminação democrática, que pressuporia a democracia como campo
de disputas pelas representações fundamentais que organizam a vida
política, negando definições puramente procedimentais da democracia ou
sua limitação em uma forma institucional final. Contudo, as interpretações
do populismo como ontologia do político estão longe da ideia de
indeterminação democrática, que tem como origem a reflexão de Claude
Lefort e que Rosanvallon pretende desenvolver e amplificar. Para Laclau,
9
Para mais sobre a relação entre populismo, universalismo e a questão das classes sociais,
ver Butler et al. (2000).

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230 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

por exemplo, a teoria de Lefort não daria conta da compreensão da


dimensão performática da construção dos sujeitos populares e democráticos,
justamente porque “ela estaria concentrada apenas nos regimes liberal-
democráticos” (Laclau, 2005, p. 166).
O problema dessa crítica, no entanto, é que ela tem origem em uma
leitura muito parcial da obra de Lefort: para este, a centralidade dos direitos
humanos e das liberdades individuais não se confunde com uma defesa
do liberalismo, mas parte, antes, do reconhecimento de que a concepção
moderna de democracia pressupõe uma relação entre a ideia de um “lugar
vazio do poder” e a “nova constituição simbólica do social”.10 Essa nova
constituição simbólica do social está marcada justamente pelo fato de que
é através das formas políticas – o direito, as liberdades, a publicidade,
os modos de representação – que a experiência política democrática se
manifestou na modernidade. Nesse sentido, Lefort (1991, p.34) não recusa
a crítica de que as instituições liberal-democráticas foram também formas
de “limitar a uma minoria os meios de acesso ao poder, ao conhecimento
e ao gozo de direitos”, mas recusa, sim, a redução da esfera das mediações
formais – os direitos humanos, sobretudo – como puras manifestações
da alienação (p. 33). É esse argumento lefortiano que Rosanvallon busca
desdobrar, ao apontar que o populismo é um modo específico de resolução
da indeterminação fundamental que caracteriza a experiência democrática,
a partir da absorção da democracia por apenas uma das dimensões que a
constitui, cujo exemplo maior está justamente em uma concepção unívoca
e totalizante de representação: “o imperativo da representação é cumprido
com o mecanismo de identificação do líder (...) ao mesmo tempo em que
a visão da sociedade remete a uma dicotomia elementar” (Rosanvallon,
2020, p. 165). É justamente a crítica dessa “concepção restrita do político”
que pressupõe a vinculação da legitimidade democrática a apenas uma das
manifestações da sua indeterminação, que Rosanvallon pretende operar
em seu trabalho.
10
Como mostra Mark Ingram (2006), as interpretações da obra de Lefort costumam pender
ora para ressaltar as afinidades com o liberalismo e ora por afirmar sua vinculação a uma
ideia de democracia radical.

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 231

O problema dessa dimensão da mediação das formas institucionais e do direito


na teoria populista é que ela não está pressuposta como parte inextrincável
da experiência democrática moderna, mas como resultado do aporte liberal
à democracia, ao fim um elemento alienígena à “essência” democrática,
a identidade ontológica entre poder e povo. O problema da dimensão da
mediação para Laclau, é que ela permanece sendo uma “totalidade diferencial/
institucional” (Laclau, 2005, p. 77), e a necessidade de sua superação por meio
da mobilização populista obedeceria à fidelidade a uma ontologia do político
que pressupõe uma polaridade sem mediações (Cassimiro, 2021, p. 23).

Essa equação é, no limite, uma aposta em uma forma unívoca de


representação: como mostra Rosanvallon, mesmo que a teoria de Laclau
pretenda preservar uma ideia de pluralismo no interior das identidades
subalternas, a construção da identidade coletiva pressupõe a “articulação
vertical em torno de um significante hegemônico que, na maioria dos casos,
tem o nome de líder” (Laclau apud Rosanvallon, 2020, p. 51).11
É justamente sobre as implicações desse tipo de teoria política, expressas
na ideia da democracia como um paradoxo, que Rosanvallon (2020, p.19)
está chamando a atenção ao apontar o populismo como uma “forma limite
do projeto democrático”. Sua proposta de “complicar a democracia” não
é senão uma manifestação normativa de sua concepção da democracia
como uma forma inacabada que, ao mesmo tempo, se expressa nas suas
diversas dimensões – majoritárias, cidadã, contrademocráticas etc. –,
conforme procuramos demonstrar na primeira parte deste artigo. No limite,
o argumento de Laclau e Mouffe aponta para a continuidade daquilo que
é a essência da crítica rosanvalloniana ao populismo como “forma limite”
da representação democrática: se, para o populismo, o político deve ser
entendido como manifestação da representação como unidade (construída
11
Um desafio teórico importante é investigar as afinidades entre o argumento de Laclau
e Mouffe e do ideólogo de extrema-direita francês Alain de Benoist. Não só Rosanvallon
chama a atenção para as convergências, apontando, por exemplo, as afinidades de Mouffe
e Benoist com Carl Schmitt, como essas são reconhecidas pelo próprio Benoist em seus
trabalhos (ver a nota 2 em Rosanvallon, 2019, p. 31). As convergências teóricas – que, vale
dizer, não ocultam as profundas discordâncias políticas – também podem ser testemunhadas
no debate de televisão entre Mouffe e de Benoist, disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=9E_9c8B1cPg.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


232 Diogo Cunha & Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

a partir da integração de identidades subalternas, como quer o populismo


de esquerda, ou da revelação da autenticidade nacional de um povo, como
quer o populismo de direita), essa concepção do político está em flagrante
contradição com a ideia de democracia como pluralidade complexa de
temporalidades, modos de representação e formalizações institucionais
passíveis da expansão e transformação.

Considerações finais: a alternativa


Rosanvallon nunca se furtou a participar do debate público e a propor
soluções para os problemas da cité. Ele encerra Le Siècle du populisme
com o esboço de uma alternativa que, inclusive, já estava delineada em
trabalhos anteriores, especialmente em Le Bon gouvernement – alternativa
que toma o contrapé das “democracias-limite”. Ou seja, a solução não
é simplificar a democracia, superar suas aporias estruturantes ou acabar
com suas indeterminações. O que ele sugere, ao contrário, é complicá-la.
Começando com a ideia de “povo” considerando-o em suas múltiplas
dimensões – eleitoral, social, princípio – para que ninguém possa “possuí-lo”
ou falar em seu nome, pois “o povo” só existe em formas de manifestação
parciais. Além desse processo de “desmultiplicação” do povo, Rosanvallon
insiste na necessidade não apenas de um regime democrático e de uma
sociedade democrática, mas também de uma ação democrática. Faz-se
necessário, para isso, passar do que ele chama de uma “democracia de
autorização” para uma “democracia como exercício”. Esta última deve
manter uma relação entre governantes e governados regida pelos princípios
da legibilidade, da responsabilidade e da reatividade. Seus governantes, por
sua vez, devem ter as qualidades da integridade e do parler vrai. Se juntamos
as duas dimensões da democracia de exercício, temos na legibilidade, na
responsabilidade, na reatividade, no parler vrai e na integridade os seus
pilares. Seu fortalecimento, através de instituições adequadas, é o caminho
para um bom governo democrático.

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O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 233

Agradecimentos
O autor Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), que financiou, por meio de seu programa de Pós-Doutorado
(processo nº 2019/09549-1) a execução da pesquisa apresentada neste artigo.

Diogo Cunha é Doutor em História e Professor do departamento de Ciência Política da


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
 diogo.accunha@ufpe.br

Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro é Doutor em Ciência Política e Professor do


departamento de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
 phpcassimiro@gmail.com

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Recebido: 24 ago. 2020.


Aceito: 15 jun. 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


O populismo como modelo de “democracia polarizada”... 237

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 200-236.


238 Sergio B. ARTIGOS
F. Tavolaro
238

http://doi.org/10.1590/15174522-112158

Entre substâncias e relações:


formação e modernização do Brasil em
Raízes e Sobrados (1936)
Sergio B. F. Tavolaro*

Resumo
Interessado no potencial heurístico das edições inaugurais de Raízes do Brasil e de
Sobrados e Mucambos (1936), bem como em suas eventuais interlocuções com
agendas de reflexão contemporâneas, o presente artigo almeja inquirir a respeito
de suas afinidades em torno de uma questão em particular. Refiro-me a certas
ambivalências e tensões interpretativas latentes nos ensaios, alimentadas pela
coexistência de duas visadas que fazem pender as atenções de Sérgio Buarque de
Holanda e de Gilberto Freyre em direções aparentemente inconciliáveis: de um
lado, um viés internalista e substancialista da formação e modernização do país e,
de outro, uma perspectiva transacional desses processos. Na parte final do artigo,
à luz dos insights oferecidos pelo debate sociológico relacional, teço considerações
acerca das contribuições das obras para uma abordagem da vida social brasileira
sensível à miríade de conexões socio-históricas implicadas em sua formação e
adesão aos padrões de sociabilidade modernos.◊
Palavras-chave: Raízes do Brasil, Sobrados e Mucambos, modernidade, pensamento
social no Brasil, teoria sociológica

* Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.



A elaboração do artigo contou com apoio do CNPq (Projeto de pesquisa 303189/2019-3).
Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os da revista Sociologias, que me auxiliaram a calibrar
os objetivos inicialmente estabelecidos.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


Entre substâncias e relações... 239

Between substances and relationships: formation and


modernization of Brazil in Roots and Mansions (1936)
Abstract
The article examines the affinities and convergences that bring together the first
editions of Roots of Brazil and The mansions and the shanties (1936). I contend that
both Gilberto Freyre’s and Sérgio Buarque de Holanda’s accounts on the social-
historical processes that ushered in the formation and later modernization of the
Brazilian society are torn between two seemingly incompatible perspectives: on the
one hand, an internalist and substantialist interpretative approach and, on the other,
a transactional view on such phenomena. At last, in light of a set of ideas outlined by
some relational discussions in contemporary sociology, I probe into the contributions
of Roots and Mansions towards a properly relational take on the Brazilian experience,
attentive to the myriad societal connections involved in the formation and subsequent
adherence of the country to patterns of sociability in tune with modernity.
Keywords: Roots of Brazil, The Mansions and the Shanties, modernity, Brazilian
social thought, sociological theory.

A
lém das maneiras inovadoras com que, em meados da década de
1930, Sobrados e Mucambos e Raízes do Brasil se propuseram a
perscrutar as origens da sociedade brasileira, trata-se de trabalhos
igualmente notabilizados por terem abordado, com criatividade análoga,
as mudanças e processos sociais que conduziram o país à quadra moderna.
Interessado no potencial heurístico de suas formulações inaugurais, mas
também em suas interlocuções com agendas de reflexão contemporâneas,
o presente artigo almeja inquirir acerca das afinidades e confluências das
edições princeps das obras em torno de uma problemática assaz específica.1
1
Lembre-se que, anos após seu lançamento inaugural, Raízes do Brasil ganharia novas
edições, as quais trariam uma série de alterações: a 2ª edição viria em 1948, a 3ª em 1956,
a 4ª em 1963 e a 5ª em 1969. A respeito da história desse percurso e das especificidades das
novas versões, veja-se Feldman (2013) e Monteiro e Schwarcz (2016). Quanto a Sobrados
e Mucambos, cabe destacar que, depois de sua estreia em 1936, a 2ª edição (1951) traria
cinco novos capítulos, acompanhados “de acréscimos substanciais ao texto dos capítulos
primitivos” (Freyre, 1996, p. LII). Veja-se as considerações de Bastos (2008) sobre esse ponto.
Saliento não ser o propósito deste artigo cotejar as formulações das diferentes edições, o que
envolveria um exercício muito diverso do presente.

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240 Sergio B. F. Tavolaro

Refiro-me a certas fricções e ambivalências interpretativas latentes nos


ensaios, alimentadas pela coexistência de duas visadas que fazem pender
as atenções de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre em direções
aparentemente inconciliáveis: por um lado, tanto Raízes [RdB] quanto
Sobrados [SeM] exortam-nos a conceber a formação nacional bem como
seu ingresso presumidamente singular na modernidade como fenômenos
em última instância alicerçados em predicados inerentes a essa sociedade
e/ou tributários de um itinerário histórico inconfundível (Araújo, 1994;
Bastos, 2003; Cardoso, 2013; Eugênio, 2010; Monteiro, 2015; Souza, 2003;
Wegner, 2000; Waizbort, 2011). Ocorre que, por outro lado, abundam as
oportunidades em que esses mesmos esforços de interpretação se afastam
de concepções imanentes da experiência brasileira para contemplar suas
gêneses e ulterior modernização à luz de um conjunto mais amplo de enlaces
e intercâmbios sociais. Deslocado de seu próprio cerne, o país passa a ser
remetido, de maneira direta, aos entrecruzamentos societários variados que
teriam participado de sua história (Feldman, 2009; Lage, 2016; Rocha, 2008).
Proponho cifrar essa questão nos marcos teórico-analíticos de uma
tensão que, em meu entendimento, contrapõe uma orientação internalista2
e substancialista3 a respeito das condições de possibilidade da sociedade
brasileira a uma visada transacional ou relacional4 a seu respeito. Se, no
primeiro caso, prevalece a predileção por aspectos especiais (culturais,
2
Trata-se, segundo Conrad (2016, p. 88-89), da tendência para conceber “as sociedades
como autogeradoras” e, ato contínuo, para pressupor “que a mudança social sempre foi o
feito da própria sociedade.”
3
Emirbayer (1997, p. 282-283) define a perspectiva substancialista como aquela que
se apoia na “noção de que são substâncias de vários tipos (coisas, seres, essências) que
constituem as unidades fundamentais de toda investigação”, percebidas como “entidades
autossubsistentes”. Nesse caso, são “entidades duráveis, coerentes, que constituem os
pontos de partida legítimos de toda investigação sociológica.” (Emirbayer, 1997, p. 285).
Veja-se, também, Go (2017).
4
Conforme argumenta Dépelteau (2013, p. 180), para a perspectiva sociológica transacional,
não é possível imputar essências a “transatores” individuais engajados em relações, tendo em
vista seu caráter “interdependente”. Nesse caso, as próprias existências e ações dos transatores
dependem de suas relações mútuas. Daí a ênfase analítica devotada às transações das partes
envolvidas e às suas propriedades emergentes. Sobre o “fenômeno da emergência” e sua
compreensão pela sociologia relacional, veja-se as reflexões de Vandenberghe (2018, p. 46-47).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


Entre substâncias e relações... 241

ambientais, étnico-raciais, institucionais, econômicos, políticos e/ou


epistemológicos), divisados em entidades sociais e/ou trajetórias históricas
pretensamente exclusivas,5 muito diversa é a ênfase conferida no segundo:
destarte, as circunstâncias, injunções e transformações envolvidas tanto na
formação nacional quanto em sua adesão aos padrões de sociabilidade
modernos (isto é, às instituições, parâmetros ético-morais e referências
cognitivas característicos da modernidade) passam a ser preferencialmente
vistas como caudatárias das múltiplas conexões do país com contextos socio-
históricos diversos.6 Como quero argumentar, admitidas as idiossincrasias
pessoais e intelectuais dos autores, assim como as particularidades
conceituais e metodológicas de suas obras – vale frisar, contempladas em
profundidade pela fortuna crítica7 –, a análise dessa tensão interpretativa
oferece uma oportunidade ímpar para se investigar as convergências entre
Sobrados e Raízes. A hipótese que pretendo examinar é que, contabilizadas
as inúmeras ocasiões em que Freyre e Holanda orientam seus olhares
por supostos relacionais, os célebres ensaios de 1936 jamais chegam a
dissolver integralmente o teor substancialista de seus retratos do Brasil.
Trata-se com isso de afirmar que, conquanto não sejam raros os momentos
em que precedência explicativa seja conferida aos vínculos do país com
5
No que toca a RdB, a análise de Eugênio (2010, p. 264) acerca do viés “organicista” da
obra, bem como das “ocorrências da noção de forma” no texto de Sérgio B. Holanda
parecem-me justamente apontar para essa visada: “A forma implica unidade orgânica, quer
dizer, identidade.” Segundo Eugênio (2010, p. 259-260), “Dizer forma é dizer substância”;
por sua vez, “substância só pode ser um ente que subsistir por si ou separadamente do resto”
– ou seja, “algo intrinsecamente unitário”.
6
De acordo com Feldman (2009, p. 146), nas formulações de Casa-grande & senzala e
Sobrados e Mucambos, “Antes que um lugar no mundo, o Brasil é enunciado como um lugar
do mundo, ou do mundial.” Nesse exato sentido, para o autor, ao lado de RdB, as referidas
obras de Freyre “tornam visíveis elementos da condição brasileira em sua relação com o
mundo” (Feldman, 2009, p. 24).
7
A fortuna crítica desses autores e de suas obras é vasta e multifacetada. Para se ter uma
ideia das particularidades teóricas e metodológicas da fatura de Holanda e Freyre, veja-
se por exemplo as cuidadosas análises de Araújo (1994), Bastos (2008), Ferreira (1996),
Motta (2013), Monteiro (2015) e Waizbort (2011). A propósito das trajetórias pessoais e
profissionais de cada autor e dos impactos destas sobre suas ideias, além das implicações
políticas distintas de seus diagnósticos do Brasil, veja-se Burke e Pallares-Burke (2009),
Candido (2008), Eugênio (2008), Rocha (2008) e Souza (2000).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


242 Sergio B. F. Tavolaro

configurações socio-históricas de variada sorte, em boa medida, persiste


a propensão das obras para divisar na experiência brasileira um núcleo
substantivo de atributos, imune à passagem do tempo e impérvio às suas
interações com contextos tomados por modelares da modernidade.8
Importa sobremaneira reconhecer que, grosso modo, esta não é uma
controvérsia exclusiva aos trabalhos aqui contemplados. Além de recorrente
nas fabulações de distintas gerações de pensadores brasileiros, à sua maneira,
tal celeuma perpassa o próprio imaginário sociológico da modernidade:
bem se sabe que obras-chave da sociologia (clássicas e contemporâneas)
inclinaram-se a imputar a emergência da sociabilidade moderna a
fatores e predicados (culturais, econômicos, políticos, institucionais e/ou
epistemológicos) presumidamente inerentes a um conjunto restrito de
sociedades do Atlântico Norte (Elias, 1993; Giddens, 1991; Marx, 1990;
Parsons, 1971; Rostow, 1978; Weber, 2002). Em tempos recentes, porém,
tal orientação internalista tornou-se alvo de uma série de programas de
reflexão, ciosos dos vínculos e entrelaçamentos societários desde longa
data implicados na cena moderna (Chakrabarty, 2000; Chernilo, 2011;
Conrad, 2016; Hall, 2011; Mignolo, 2005; Subrahmanyan, 1997; Therborn,
2003). Pois bem, além de debruçar-me sobre tais tensões e ambiguidades
interpretativas subjacentes a Raízes e Sobrados, na última parte do artigo,
exploro as eventuais correlações das obras com algumas ideias lançadas por
certa perspectiva sociológica relacional (Emirbayer, 1997; Donati, 2013,
Monterescu, 2013; Powell; Dépelteau, 2013; Prandini, 2015; Vandenberghe,
2018). À luz dos insights oferecidos por essas proposições, almejo ponderar
acerca do potencial dos ensaios de Freyre e Holanda para uma visada
propriamente relacional da experiência brasileira, sensível à miríade de
conexões socio-históricas que participaram de sua formação e subsequente
adesão aos parâmetros societários modernos. Pretendo, com isso, estabelecer
pontes alternativas de diálogo entre retratos do país que ocupam lugar de
destaque no pensamento brasileiro e a teoria sociológica contemporânea.
8
Retomo aqui uma problemática anunciada em Tavolaro (2020) com o propósito de
desdobrar e aprofundar o argumento então sugerido.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


Entre substâncias e relações... 243

Gêneses da formação brasileira:


entre substâncias e relações
Logo no parágrafo introdutório de Raízes, Sérgio Buarque refere-se ao
Brasil como “uma experiência sem símile” (Hollanda, 1936, p. 3).9 A bem
da verdade, em seus contornos gerais, essa é uma imagem recorrente no
decurso do ensaio, sugestiva de uma vida social, em inúmeros aspectos,
“sui generis” (p. 49-50). Na hipótese de se depreender de passagens
como essas a propensão para divisar no país um conjunto de predicados
distintamente nacionais, algo análogo sucede em Sobrados. Lembre-se que,
na avaliação de Gilberto Freyre, a “colônia portuguesa na América” lograra
reunir “qualidades e condições de vida tão exóticas” que a retomada do
“contato do Brasil com a Europa” no século XIX terminaria por assumir “o
caráter de uma reeuropeização. Em certo sentido, o de uma reconquista.”
(Freyre, 1936, p. 258-259). Essas proposições fazem ressaltar o primeiro
ângulo do problema em tela: afinal, de que maneiras RdB e SeM aludem
às origens dos ingredientes, processos sociais e transformações históricas
que se teriam conjugado para formar a sociedade brasileira?
Caso se tivesse em conta apenas as menções aos traços culturais e
comportamentais das populações nativas (Freyre, 1936; Hollanda, 1936)
ou às peculiaridades físico-ambientais do novo continente (Hollanda, 1936;
Freyre, 1936), talvez se acreditasse tratar-se de retratos do país tributários de
uma perspectiva internalista estrita. Erguida a partir de seus próprios meios,
essa experiência constituiria uma unidade analítica inconfundível, formada
ao termo de um percurso histórico sem par. Essa leitura, no entanto, não
faria justiça à multiplicidade de aspectos evocados por Holanda e Freyre.
Embora ciosos do papel que fatores autóctones tiveram na construção
nacional, ambos os ensaios dedicam cuidado especial aos impactos de
elementos extrínsecos de variadas origens que, desde o princípio, teriam
se mostrado atuantes na cena brasileira. É certo que, na visão de Freyre,
ao final de “três séculos de relativa segregação da Europa não ibérica”,
9
Esta e as demais citações foram ajustadas às regras ortográficas atuais.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


244 Sergio B. F. Tavolaro

uma ordem própria lograra germinar na colônia portuguesa, a ponto de se


delinear entre nós “um tipo brasileiro de homem, outro de mulher”. Não
se poderia, contudo, considerá-la uma experiência puramente americana,
visto, àquela altura, já ter aqui se estabelecido “uma paisagem social com
muita coisa de asiático, de mourisco, de africano”, posto “[terem] sido
transplantados para cá pedaços inteiros e vivos, e não somente estilhaços ou
restos dessas civilizações antieuropeias” (Freyre, 1936, p. 257-258). Mutatis
mutandis, é sintomático que, nas mesmas linhas iniciais de Raízes, Holanda
refira-se à “sociedade brasileira” como “o único esforço bem-sucedido, e
em larga escala, de transplantação da cultura europeia para uma zona de
clima tropical e sub-tropical.” (Hollanda, 1936, p. 3). Tratava-se, com isso,
de dizer que “nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do
mundo” não haviam sido engendradas a partir de nós mesmos; de outro
modo, teriam nos chegado de “países distantes”, harmonizadas, portanto,
“a outro clima e a outra paisagem” (p. 3).
Tais ponderações preliminares suscitam uma segunda indagação: até
que ponto a atenção dos ensaios aos inúmeros enlaces e entrecruzamentos
societários que desaguaram na formação nacional representa uma ruptura
peremptória com pressupostos analíticos internalistas? Ademais, até onde
a sensibilidade de Sobrados e Raízes às circunstâncias e fatores adventícios
que impactaram a formação brasileira conduz à dissolução integral de suas
inclinações substancialistas? Veja-se, pois: não restam dúvidas que, ao enxergar
na “Península Ibérica”, e em “Portugal especialmente”, a sede de onde “nos
veio a forma atual de nossa cultura” (Hollanda, 1936, p. 15), já de partida,
Sérgio Buarque desloca a sociedade brasileira de seu próprio cerne em
favor de aspectos exteriores. Todavia, diluída a centralidade explicativa (ou
ao menos a exclusividade conformadora) de fatores internos ao país, nem
por isso RdB descarta a existência de itinerários sociais que mais parecem
comportar-se à maneira de entidades históricas exclusivas e autossubsistentes.
Nesse caso, é sugestivo que Buarque de Holanda se remeta à principal
matriz colonizadora do Brasil como o berço de “um tipo de sociedade
que se desenvolveria, em alguns sentidos, quase à margem das congêneres

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


Entre substâncias e relações... 245

europeias” (p. 4). Ancorados em atributos próprios a uma existência singular


– sendo a “cultura da personalidade” seu “traço mais decisivo (...) desde
tempos imemoriais” (p. 4-5) –, o ponto de partida especial de Portugal
e Espanha – leia-se, o “ingresso tardio” de ambos “no coro europeu” –
haveria de determinar “muitos aspectos peculiares de sua história e de sua
formação espiritual” (p. 4). Nesse particular, as afinidades com Sobrados são
flagrantes: por certo, ao conferir importância crucial às origens estrangeiras
do país (lusas, africanas, mouras e asiáticas), Freyre também se afasta de uma
concepção autogeradora da sociedade brasileira. Não obstante, embora a
vislumbre como a resultante de enlaces históricos variados, nada o demove
de retratá-la como portadora de predicados sui generis, substantivamente
diversa de outros contextos coetâneos (Freyre, 1936p. 368).
Eis, portanto, o que se deve a princípio sublinhar: conquanto um sem
número de fatores atinentes às origens do país sejam, com efeito, subsumidos
às suas relações com configurações socio-históricas outras (africanas,
asiáticas e euro-ibéricas), Sobrados e Raízes conservam sonoras conotações
substancialistas – só que, desta vez, em virtude de qualidades singulares
tomadas por inerentes a percursos históricos alegadamente especiais. Ou
seja, a despeito de muitas vezes elevados à condição de variáveis explicativas
primordiais, as transações e os entrelaçamentos societários envolvidos
na formação nacional – contemplados agora como fontes precípuas das
características distintivas do país – continuam retratados à semelhança de
entidades históricas exclusivas e autogeradoras. Não é de estranhar, pois, a
forma categórica com que Sérgio Buarque demarca diferenças cabais entre
hispânicos e protestantes: originais em comparação com “seus vizinhos do
continente” (Hollanda, 1936, p. 5), capacitados como “Nenhum outro povo
do Velho Mundo (...) para se aventurar à exploração regular e intensa das
terras próximas à linha equinocial” (p. 19), espanhóis e portugueses seriam
portadores de predicados que, no longo prazo, deixariam marcas perenes
também em seus empreendimentos americanos – com destaque para a
peculiar fragilidade “de todas as associações que impliquem solidariedade e
ordenação” (p. 5), a “ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos,

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de posições e riquezas fáceis” (p. 24), “a invencível antipatia que sempre


lhes inspirou toda moral fundada principalmente no culto do trabalho”
(p. 12), sua indefectível “vontade de mandar e a disposição para cumprir
ordens” (p. 14), além da ausência de “racionalização da vida” (p. 11). As
expressas dessemelhanças em relação a aspectos considerados característicos
dos “povos protestantes, e sobretudo dos calvinistas” (p. 11-12) – dentre
os quais “o culto à atividade utilitária” (p. 13) e o “espírito de organização
espontânea” (p. 11-12) – denotam a extensão e a profundeza do abismo que,
na percepção do intérprete, separaria esses dois itinerários sociais coetâneos.
Igualmente aqui, são evidentes as confluências com Sobrados: Freyre
também alude às singularidades das conexões históricas que resultaram
na formação brasileira, irredutíveis às trajetórias de países expoentes da
modernidade. Desses vínculos teriam sobrevindo visões de mundo, padrões
de sociabilidade e criações culturais invulgares – dentre os quais códigos
normativos, modelos comportamentais e ideais de beleza coloridos por
influências mouras (Freyre, 1936, p. 126-127, p. 258); uma “arquitetura
patriarcal” incrementada com sugestões asiáticas e africanas, ajustada às
circunstâncias tropicais americanas (p. 225); práticas de higiene islâmicas,
hábitos alimentares oriundos da África, técnicas de transporte trazidas “da
Ásia”, dentre outros (p. 212, p. 258). Ao termo de todas essas influências,
erguera-se uma vida social sem par em sua capacidade de acomodar culturas,
raças e maneiras de ver, viver e apreciar o mundo – em suma, “uma sociedade
rural e patriarcal que procurava integrar-se pelo equilíbrio” (p. 302).
Como se pode depreender dessas passagens, não faltam ocasiões
em que Sobrados e Raízes ressaltam as dívidas do país com contextos
adventícios. Ainda assim, certa orientação substancialista continua a permear
suas imagens a respeito dos entrecruzamentos societários implicados na
formação nacional: os itinerários socio-históricos estrangeiros no mais das
vezes vinculados às gêneses do Brasil – as gentes luso-ibéricas, somadas
às heranças e legados asiáticos, africanos e indígenas – com frequência
são apresentados em descompasso com as ditas experiências modernas
modelares. Apartados desde seus momentos primordiais, por longos séculos

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


Entre substâncias e relações... 247

encapsulados em trajetórias próprias, tais complexos socio-históricos – de um


lado, a “Europa protestante” ou “carbonífera”, de outro, as gentes ibéricas
e os outros povos não europeus – parecem, assim, constituir experiências
mutuamente excludentes, portadoras de predicados (culturais, institucionais,
econômicos, epistemológicos, políticos etc.) inconfundíveis. Como quero
argumentar, essa tensão interpretativa estende-se ao tratamento que os
ensaios dedicam às transformações que, a partir do final do século XVIII,
conduziram o Brasil à quadra moderna. A meu ver, embora essa inflexão
temática tenda a apurar a sensibilidade de RdB e SeM às conexões da vida
social brasileira com os ditos contextos modelares, subsiste o interesse pelas
alegadas especificidades do país.

A modernização brasileira: vetores internos


e enlaces externos
Como há pouco sugerido, computadas as particularidades temáticas
e analíticas de cada obra, Sobrados e Raízes voltam a confluir em suas
formulações acerca da modernização nacional. Ao discorrerem sobre
as mudanças vivenciadas pelo país no decorrer do século XIX, avulta o
sentimento de descompasso com a modernidade – seja no tocante ao
curso seguido por essas transformações, seja em relação a seus desenlaces
ulteriores. Note-se que, ao se referir a certas “tradições religiosas” e
“outras formas de cultura, ou de culturas negras, para cá transportadas”,
Gilberto Freyre (1936, p. 363-364) faz questão de sublinhar sua contumácia
diante das investidas padronizadoras da Europa. Além de indício de que
“a substância da cultura africana” haveria de persistir “em nós através de
toda a nossa formação” (p. 363), tratar-se-ia também de um prenúncio de
que em momento algum nos alinharíamos plenamente à vida moderna. A
bem da verdade, algo análogo se passa nas análises de Raízes. Lembre-se
que, em um de seus mais conhecidos excertos, RdB sugere que, longe de
reminiscências de um passado distante, “a lhaneza no trato, a hospitalidade,
a generosidade, virtudes tão gabadas pelos estrangeiros que nos visitam”, na

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


248 Sergio B. F. Tavolaro

realidade representavam “um aspecto bem definido do caráter nacional”


(Hollanda, 1936, p. 101-102). Ou seja, embora alusivos à cena colonial,
aqueles atributos tão próprios à singular “cordialidade” brasileira (dentre
eles a “aversão ao ritualismo social”, o “desejo de estabelecer intimidade”
e a “ética de fundo emocional”) jamais se diluiriam por inteiro, ainda que
impactados pela modernização – vale dizer, nem mesmo “nas esferas de
atividade, que por sua própria natureza, devem alimentar-se da competição
e das rivalidades.” (p. 102-105).
De todo modo, conforme tratam de salientar os ensaios, desde a última
parte do século XVIII, um conjunto importante de modificações acabaria por
debilitar formas de ver, viver e organizar o mundo há muito sedimentadas.
À sua maneira, tanto Sobrados quanto Raízes sugerem que, aos poucos, a
estratificação da sociedade colonial tornou-se mais heterogênea e complexa,
matizada por novos conflitos de natureza econômica, política e simbólica
(Freyre, 1936, p. 308-311; Hollanda, 1936, p. 99-100). Ao lado disso, o
Estado e seu aparato burocrático-militar impuseram-se progressivamente
sobre circunstâncias variadas da vida social (Hollanda, 1936, p. 74-75;
Freyre, 1936, p. 107); na mesma medida, a economia local fortaleceu-
se com o incremento do comércio e do consumo, também estimulados
pela migração em direção a núcleos urbanos emergentes, onde hábitos
e comportamentos renovados conquistavam espaço (Hollanda, 1936, p.
73; Freyre, 1936, p. 275-276). O sentido dessas alterações era patente: a
internalização gradual de ideias, gostos, ambições e modelos institucionais
erguidos originalmente na Europa setentrional (Freyre, 1936, p. 77-78;
Hollanda, 1936, p. 135-137). Mas afinal, quais as principais fontes e
vetores de tais transformações? Por um lado, as obras referem-se a impulsos
endógenos à sociedade embrionária: Sérgio Buarque fala-nos, por exemplo,
da “expansão dos pioneers paulistas” como “um momento novo de nossa
história nacional”, prenúncio dos anseios autonomistas da colônia (Hollanda,
1936, p. 72-73). Realce similar é conferido aos efeitos da exploração do
ouro, responsabilizada por incentivar a ingerência “mais direta da Coroa
nos negócios do Brasil” (Freyre, 1936, p. 30) bem como o “afluxo maior de

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Entre substâncias e relações... 249

emigrantes para além da faixa litorânea” (Hollanda, 1936, p. 73). Davam-


se ali os primeiros passos rumo a uma configuração política e social mais
intricada, revigorada pelo ingresso de personagens até então desconhecidos
– entre eles “aventureiros enriquecidos nas minas, reinóis, dos chamados
pés-de-bois ou pés de chumbo” – e pela ascensão de “uma nova classe,
ansiosa de domínio: burgueses e negociantes ricos”, em evidente ameaça
ao “exclusivismo das famílias privilegiadas de donos simplesmente de terras
na direção das câmaras ou dos senados.” (Freyre, 1936, p. 35-36).
Contabilizado o peso de fatores internos, as atenções dos ensaios
voltam-se também a aspectos procedentes dos enlaces do país com ideários
e dinâmicas impulsionados desde fora. Raízes e Sobrados dão a entender
que, além das conexões internacionais que a riqueza do ouro ajudou a
fomentar, a transferência da Corte para o Rio de Janeiro representou um
fato crucial ao imprimir regularidade às relações (econômicas, políticas e
simbólicas) do Brasil com os expoentes da modernidade europeia (Freyre,
1936, p. 281, 287). Gilberto Freyre alude justamente “ao contato maior
da colônia, e mais tarde do Império, com as ideias e as modas inglesas
e francesas”, donde teriam emanado, “em muitos pontos, noções mais
exatas do mundo e da própria natureza tropical” (p. 267). Por sua vez,
Sérgio Buarque sustenta que, no bojo dessas transformações – acentuadas
a partir da independência política –, o “convívio das coisas elementares
da natureza”, outrora dominante, cedeu lugar à “existência rigorosa e
abstrata das cidades” (Hollanda, 1936, p. 124), provocando “em nossos
homens uma crise subterrânea, voraz” (p. 124). À medida, pois, que “a
vida brasileira” se movia em direção à “‘urbanocracia’” (p. 43), diluía-se o
protagonismo do “domínio rural”, espaço em torno do qual “toda a vida do
país” orbitara por séculos (p. 44). Ao longo desse processo, cujo evento “mais
decisivo” parece-lhe ter sido a “Abolição”, paravam “de funcionar os freios
tradicionais contra o advento de um novo estado de coisas” (p. 135-136).
Naquelas circunstâncias, uma plêiade de convicções e esquemas mentais
gestados na Europa – com destaque para o positivismo, o romantismo e o
liberalismo – capturava a imaginação e os anseios de nossas elites políticas

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


250 Sergio B. F. Tavolaro

e intelectuais. Tal a magnitude das mudanças, que, nas últimas décadas


do século XIX, o país descobriu-se em meio a uma “grande revolução” (p.
136), cujo sentido era indubitável: o “aniquilamento das raízes ibéricas de
nossa cultura” (p. 137) e, ato contínuo, o aplainamento do “terreno para o
novo sistema, com sua sede (...) nos centros urbanos” (p. 136).
Igualmente preocupado com os impactos desses enlaces na cena
brasileira, Sobrados sustenta que, “com uma rapidez espantosa de efeitos”,
“a nova Europa” – aquela sob a liderança da Inglaterra e da França –
principiou a ditar padrões estritos à vida nacional, fazendo-os notar em um
número nada desprezível de dimensões (Freyre, 1936, p. 261): na dinâmica
econômica e política do país, em suas referências estéticas, arquitetônicas e
sanitárias, bem como nos horizontes simbólicos, gostos e comportamentos da
população (p. 261-268, 295, 299, 313). No fim das contas, eram poucos os
domínios da experiência brasileira que pareciam de fato escapar ao prestígio
europeu: o que quer que houvesse conferido uma tonalidade “oriental à
nossa vida dos dias comuns foi empalidecendo (...); foi se acinzentando;
foi se tornando excepcional” (p. 261). Arrebatado pelo “interesse do novo
industrialismo europeu sobre base capitalista, e portanto estandardizador
e uniformizador dos costumes e trajos” (p. 264), o país foi afastando-se de
hábitos e parâmetros (cognitivos, ético-morais e estéticos) que por muito
tempo o haviam distinguido – alguns deles emprestados a outras culturas,
outros tantos forjados por suas próprias gentes, quase sempre em sintonia
fina com a paisagem americana.

Incongruências brasileiras: um itinerário histórico especial


Conforme tantas vezes assinalado pela fortuna crítica, apesar de
discernirem uma ampla gama de efeitos padronizadores nos engajamentos
do Brasil com as ideias e movimentos da modernidade, para Raízes e
Sobrados, em momento algum a vida social brasileira harmonizou-se de
maneira completa e acabada com os parâmetros hegemônicos da Europa.
Ou seja, apesar de concordarem que as transformações que arrebataram o

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Entre substâncias e relações... 251

país ao longo do século XIX deram cabo de um sem número de aspectos


há muito radicados no tecido brasileiro, ambos os ensaios permanecem
cautelosos quanto aos desfechos desses processos: em última instância,
persistiria um conjunto importante de divergências entre o itinerário nacional
e os pressupostos da modernidade norte-europeia. Nos dizeres de Sérgio
Buarque, nosso “mundo de essências mais íntimas” lograva conservar-se
“intacto, irredutível e desdenhoso das invenções humanas”, refratário aos
“esquemas sábios e de virtude provada” em outros contextos (Hollanda,
1936, p. 161). Tais incongruências, além de indicativas de “nosso próprio
ritmo espontâneo”, ajudariam a entrever os horizontes de possibilidade
singulares de nossa modernização (p. 161).
Em larga medida, não é outro o prognóstico avançado em Sobrados. A
despeito de também avaliar que “uma vez iniciada a reconquista do Brasil
pela Europa, não cessou; e ainda hoje nos abafa”, e que “essa reconquista
alterou a paisagem brasileira em todos os seus valores” (Freyre, 1936, p. 260),
Freyre adverte que jamais haveríamos de replicar fielmente os padrões do
velho mundo. Não se queria com isso subestimar o vigor de tais influências,
tampouco ignorar que, desde o declínio “da economia apoiada no escravo,
acentuou-se a importância do europeu” (p. 291), a certa altura “tão necessário
como o próprio ar à organização mais industrial e à estrutura mais burguesa,
mais urbana, mais mecânica, da vida brasileira” (p. 301). Mesmo assim, para
Sobrados, essa retomada do velho continente “teve de seguir suas cautelas”
entre nós, obrigada a enfrentar “resistências de ordem natural, umas, outras de
ordem cultural”, as quais atuaram “no sentido de moderar a reeuropeização do
Brasil e de conservar o mais possível no país, os traços e as cores antieuropeias,
avivadas durante séculos profundos de segregação” (p. 259).
À luz desses enunciados, cabe indagar até onde tais diagnósticos e
conjecturas convergentes da modernização brasileira são, também eles,
atravessados por aquela mesma tensão interpretativa. Ora, como há pouco
observado, SeM e RdB aproximam-se notadamente ao aquiescerem acerca da
relevância de vetores internos nas transformações que retiraram o Brasil de
sua letargia colonial. O aprofundamento da conquista e ocupação do vasto

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252 Sergio B. F. Tavolaro

território, movimentos migratórios em direção a regiões interioranas, anseios


autonomistas ante o assédio da autoridade metropolitana, os impactos
dinamizadores da mineração sobre a economia e o consumo domésticos, as
primeiras iniciativas sistemáticas de urbanização, a diversificação de grupos
e segmentos sociais, assim como a circulação de novos esquemas mentais,
hábitos e referências comportamentais, acompanhados do acirramento das
disputas em torno de bens simbólicos e recursos políticos locais, dentre
outros – todos esses fenômenos atestam o cuidado das obras com uma gama
de estímulos intrínsecos que teriam ajudado o país a desprender-se de seu
passado e a alçá-lo a novos padrões de sociabilidade. Mas convém frisar
uma vez mais que, ao lado desses vetores, os ensaios também se dobram
à importância de fatores derivados dos enlaces da vida brasileira com
dinâmicas e ideias estrangeiras. Dito isso, importa avaliar em que medida
tal alternância de enfoque conduz Raízes e Sobrados a, enfim, afastarem-
se de imagens substancializadas em favor de uma visada propriamente
relacional dessa experiência societária.
Vejamos, pois: é certo que, ao imputarem a fenômenos adventícios
influência decisiva nas novas feições que aos poucos o país assumiu a
partir do final do século XVIII, Freyre e Holanda contribuem para deslocar
a trajetória brasileira de si mesma. Dissolvidas as pretensões autogeradoras
a seu respeito, tal mudança de ênfase interpretativa parece, a princípio,
esboçar um retrato inteiramente de-substancializado da modernização
nacional. Quero dizer com isso que, a tomar pelas imagens delineadas
nas obras, caso se almejasse identificar as fontes das transformações que,
por fim, colocaram o Brasil nos trilhos da modernidade europeia – isto é,
que o compeliram a alinhar-se aos padrões institucionais e ético-morais,
bem como às referências cognitivas e estéticas erigidas na Europa –, seria
imprescindível reorientar o olhar para além de seus próprios limites: em
suma, haveria que se ter em conta seus entrelaçamentos e transações
com as dinâmicas, concepções de mundo, preceitos e valores oriundos
dos contextos modernos modelares. Ocorre que, como bem se sabe,
a sensibilidade dos ensaios a tais intercâmbios não basta para diluir a

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Entre substâncias e relações... 253

percepção desta como uma modernização sui generis, dotada de lógica e


características próprias. Ou seja, mesmo nas ocasiões em que a relevância
de fatores e impulsos imanentes é suavizada, persiste em Sobrados e Raízes
o retrato de um percurso ímpar em direção à modernidade. A se considerar
o enquadramento analítico das obras, a explicação para tal especificidade
estaria, sobretudo, no fato de se tratar de uma vida social desde o princípio
irredutível às trajetórias modernas modelares: produto do caldeamento de
heranças (culturais e raciais) heteróclitas (nativas da América, africanas,
asiáticas e euro-ibéricas), tal experiência teria se formado ao termo de
um itinerário notadamente peculiar, em vários sentidos exclusivo, apenas
tardiamente conectado aos movimentos e ideias originados na Europa
setentrional – leia-se, na “civilização carbonífera” (Freyre, 1936, p. 261),
ou ainda, entre os “povos protestantes” (Hollanda, 1936, p. 11).
No fim das contas, insinua-se nas edições princeps de Raízes e Sobrados
a imagem de uma sociedade que, embora reconfigurada sob a influência
da dinâmica mundial, conservou-se aferrada a predicados especiais,
boa parte dos quais em dissonância com as expectativas e parâmetros
da modernidade – situação evidenciada pela persistência de práticas e
estruturas pré-capitalistas em sua ordem econômica, por um aparato estatal
aquém dos preceitos administrativos racionais, pelo predomínio de códigos
e interesses privados nos espaços públicos, bem como pela pertinácia
de visões de mundo mágico-religiosas e de valores e regras de conduta
tradicionais (marcadamente pessoais e hierarquizantes) no tecido social
(Tavolaro, 2020). Em vez de dissipar-se, pois, a tensão substancialismo/
relacionalismo mantém-se ativa – quiçá à espera de outras leituras e de
novas interlocuções teóricas.

Raízes e Sobrados: por uma visada relacional


da experiência brasileira
Longe de se encerrarem nas obras de Freyre e Holanda, as celeumas
supracitadas são recorrentes em uma parcela expressiva do pensamento
brasileiro. Muitos foram os trabalhos de interpretação desde o último

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quartel do século XIX que creditaram às características naturais do território


nacional, aliadas às propaladas excentricidades (comportamentais, mentais e
biológicas) de suas gentes, a responsabilidade pelos contornos pretensamente
peculiares da vida social no Brasil. Ao menos nesse sentido, algumas das
asserções de Silvio Romero em História da Literatura Brasileira (1888)
parecem exemplares de certa percepção difusa: o meio físico indicava-lhe
ser “uma das faces mais distintas de nosso país” (Romero, 1949, p. 263),
ao que se aditava uma composição racial insólita, reunindo “três povos,
antropológica e etnograficamente distintos, que nos têm vindo a forjar,
a amalgamar na incude e no cadinho da história” (p. 280). Cioso das
contribuições de tais fatores para a formação e modernização brasileiras,
Silvio Romero não deixava de ponderar acerca dos efeitos das relações do
país com a Europa e a América setentrional, cujas ideias pareciam-lhe ter
constituído os “germes” e “modelos” de nossas “formas do pensamento
cultural” (Romero, 1949, p. 296). Com efeito, preocupações análogas
podem também ser discernidas nos trabalhos de Euclides da Cunha (2016,
p. 87-97, 191), Nina Rodrigues (1945, p. 27-28), Oliveira Vianna (1956,
p. 121-192) e Paulo Prado (2012, p. 43-52, 139), para citar apenas alguns
dos mais aclamados intelectuais daquele período, cujos diagnósticos da
experiência brasileira tornam a evidenciar as ambiguidades interpretativas
contempladas neste artigo.
Mudanças de ênfase em favor de variáveis sociais não bastaram para
esmorecer a polêmica em tela. Logo no início do século XX, ao buscar
distanciar-se de formulações que imputavam ao “valor absoluto das raças
e das gentes” as principais adversidades enfrentadas pelo Brasil e demais
países sul-americanos, Manoel Bomfim (1993, p. 244) afirmava querer
priorizar “as condições sociais e políticas” de sua formação (p. 54). Se,
por um lado, tal guinada analítica o levou a contemplar os intercâmbios
históricos implicados nas origens dessas sociedades, por outro, reiterava-se a
percepção de se tratar de trajetórias especiais, ao longo das quais se teriam
sedimentado instituições e valores, costumes e hábitos diversos daqueles
encontrados na Europa setentrional e nos Estados Unidos da América

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Entre substâncias e relações... 255

(Bomfim, 1993, p. 81-119). A celeuma permaneceria acesa tempos depois,


quando âncoras explicativas propriamente sociais (fossem elas econômicas,
políticas, culturais e/ou institucionais) enfim se tornaram preponderantes
nos esforços de interpretação do país. Guardados os enquadramentos
teóricos e predileções temáticas próprios a cada obra, foi esse o caso de
Formação do Brasil contemporâneo (Prado Jr., 2011, p. 19-22), Os Donos
do Poder (Faoro, 2001, p. 130), A redução sociológica (Ramos, 1996, p.
139-140), A revolução burguesa no Brasil (Fernandes, 2006, p. 261-267),
dentre outras, em que a vida social brasileira continuou retratada como uma
experiência que, embora progressivamente atrelada à dinâmica mundial,
teria ingressado na modernidade de maneira tardia e peculiar.
Dito isso, convém igualmente ressaltar que essa tampouco é uma
tensão exclusiva às elucubrações do pensamento brasileiro. Em verdade,
trata-se de uma controvérsia mais abrangente, inscrita no próprio imaginário
sociológico da modernidade. Como bem se sabe, prevalece nessa fatura a
propensão para atribuir a um grupo seleto de contextos europeus qualidades
invulgares – epistemológicas, econômicas, políticas, culturais, religiosas,
ético-morais, institucionais etc. –, supostamente endógenas à sua história,
berço de transformações que redundariam no advento da era moderna
(Elias, 1993; Giddens, 1991; Habermas, 1990; Marx, 1990; Parsons, 1971;
Weber, 1976). Ainda conforme essa concepção, no rastro do expansionismo
europeu, as invenções institucionais e os novos parâmetros sociais originados
dessas mudanças chegariam a posteriori em outras partes do mundo, onde
seriam então ajustados às circunstâncias locais, sob a influência de formas
de vida autóctones (Eisenstadt, 1978; Rostow, 1978). É mister salientar que,
malgrado raramente ignorar a relevância que transações societárias de variada
sorte tiveram ao longo da história moderna, tal imaginário tende a apregoar
que configurações “modelares/centrais” e os assim chamados contextos
“tardios/periféricos” mantiveram-se inconfundíveis em seus traços distintivos
(Tavolaro, 2021). Ou seja, apesar de crescentemente conectadas de maneira
perene, ambas as modalidades de sociedade teriam conservado intactas
suas características mais essenciais. Daí os caminhos diversos trilhados

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256 Sergio B. F. Tavolaro

em direção à modernidade, além dos resultados notadamente díspares


alcançados – não apenas quanto à sua posição na ordem mundial, mas
também no que diz respeito à extensão, profundidade e solidez com que
as instituições e parâmetros cognitivos, ético-morais e estéticos modernos
se firmaram em seus tecidos sociais.10
As afinidades entre as edições princeps de Raízes e Sobrados e esse
enquadramento sociológico são por demais óbvias: em um e outro casos,
aspectos relacionais acabam furtivamente neutralizados, quando não de todo
subsumidos a retratos compartimentados da cena moderna, fracionados em
uma infinidade de itinerários socio-históricos especiais. Não surpreende, pois,
a recorrência com que os padrões de sociabilidade modernos são tomados
por adventícios à trajetória brasileira, apenas tardiamente incorporados
ao país. Seja como for, a meu ver, essa senda de leitura não exaure todas
as possibilidades de diálogo dos ensaios. À guisa de conclusão, gostaria
de explorar ainda outra interlocução teórica: refiro-me a um conjunto de
propostas contemporâneas cujas formulações colidem frontalmente com
esse viés analítico internalista e substancialista da modernidade. Conforme há
pouco observado, a se considerar as reiteradas alusões aos entrecruzamentos
societários implicados nas gêneses do Brasil e em seu ulterior alinhamento
aos parâmetros modernos, logo se vê que esta não é uma querela alheia a
SeM e RdB. Pois bem, como quero argumentar, caso se almeje aprofundar
o potencial heurístico da dimensão relacional das obras, alguns passos se
mostram imprescindíveis: em primeiro lugar, ante o desafio de dissipar por
completo a imagem autocontida e autosubsistente da experiência brasileira,
é mister refutar de uma vez por todas o “nacionalismo metodológico” que,
por muito tempo, orientou a imaginação sociológica (Chernilo, 2011).
Nesse caso, em vez de se assumir como fato consumado que “nação/
estado/sociedade” constituem “a forma social e política natural do mundo
moderno”, urge atentar para sua condição inerentemente “transnacional”
– inclusive à época em que “o estado-nação limitava e agrupava a maioria
10
A seu modo, essa mesma concepção encontrou aderência em diferentes gerações do
pensamento brasileiro. Veja-se, por exemplo, Nabuco (2010), Prado (1957), Fernandes
(2006), Cardoso e Faletto (2004) e Souza (2000).

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Entre substâncias e relações... 257

dos processos sociais” (Wimmer; Schiller, 2012, p. 302). Mas isso não é
tudo: há também que problematizar os supostos historicistas que subjazem
essa imaginação, ou seja, a convicção conforme a qual, após emergirem no
continente europeu, as invenções sociais modernas teriam migrado para
outras regiões do mundo, em meio a processos transcorridos “ao longo
do tempo” (Chakrabarty, 2000, p. 7). Por fim, ao invés de conceber-se a
modernidade como o remate final de um itinerário especial, melhor parece
enquadrá-la, desde seus primórdios, como “uma mudança mais ou menos
global, com muitas fontes e raízes e – inevitavelmente – muitas formas e
significados diferentes” (Subrahmanyam, 1997, p. 736-737) – o que, por
óbvio, exige renunciar a percursos históricos exclusivos para conferir ênfase
às “condições e interações globais através das quais o mundo moderno
emergiu” (Conrad, 2016, p. 76).
Para finalizar, gostaria de sugerir que esse deslocamento analítico em
favor das transações e vínculos socio-históricos diversos, que concorreram
para o advento da modernidade e suas incontáveis reconfigurações (Conrad,
2016; Gruzinski, 2003; Hall, 2011; Mignolo, 2005; Subrahmanyam, 1997;
Therborn, 2003), tem muito a auferir dos insights da abordagem sociológica
relacional.11 Admitida a exiguidade de acordos mais amplos a seu respeito
(Vandenberghe, 2018; Prandini, 2015; Powell; Dépelteau, 2013) destaca-se
nesse programa de reflexão a crítica à “natureza intrinsecamente reificada
de todas as categorias” – isto é, “como elas ‘totalizam’ identidades que
frequentemente são de fato multidimensionais e contraditórias” (Emirbayer,
1997, p. 308-309).12 Quando mobilizada com o intuito de interpelar
criticamente os alicerces epistemológicos, as ferramentas descritivas e o
11
Julian Go (2017, p. 142-147) explorou algumas dessas contribuições ao indicar sugestões
para um “relacionalismo pós-colonial”.
12
Frédéric Vandenberghe sustenta que, no “nível ontológico”, a sociologia relacional
“assume que as relações essencialmente criam a vida social”. Já no “nível epistemológico”,
tende-se a contrapor “o pensamento categorial das abordagens substancialista, subjetivista
e essencialista ao pensamento relacional das abordagens estruturalista, processual e
interacionista”. Por fim, no “nível metodológico”, busca-se empregar “técnicas” que
“enfatizam a interdependência mútua das variáveis e dissolvem entidades em processos”
(Vandenberghe, 2018, p. 39-40).

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258 Sergio B. F. Tavolaro

alcance empírico de teorizações correntes acerca das gêneses, dos padrões


de sociabilidade e das transformações da modernidade, essa agenda de
pesquisa passa a priorizar os “fenômenos emergentes” das conexões socio-
históricas, em detrimento da suposta capacidade conformadora “de seus
componentes individuais” (Donati, 2013, p. 17). Afasta-se, com isso, o
privilégio teórico-metodológico que abordagens sociológicas convencionais
costumam emprestar à sociedade nacional e/ou a outras unidades estritas
de análise (Centro/Periferia, 1º mundo/3º mundo, Ocidente/Oriente,
América anglo-saxônica/América Latina, Europa/ resto etc.) – visto que
concebê-las como “entidades primordiais, autocontidas e amplamente
monolíticas” redundaria em perder de vista as “redes de relações complexas
multivariadas”, bem como as “relações de determinação mútua” (Monterescu,
2013, p. 26) que caracterizam um amplo espectro de experiências sociais
na cena contemporânea.
As disparidades e os desacertos entre os retratos do Brasil delineados
nas edições princeps de Sobrados e Raízes e esse enquadramento relacional
da modernidade são notórios. Não obstante, conforme salientado no
artigo, subsistem pontos de convergência relevantes, os quais ensejam
uma interpretação alternativa da experiência brasileira: não mais como a
resultante de um percurso formativo especial – tardio e colateral à trajetória
europeia –, mas como partícipe e corresponsável pelas instituições e padrões
de sociabilidade próprios à modernidade.

Sergio B. F. Tavolaro é Doutor em Sociologia e professor associado do Departamento de


Sociologia da Universidade de Brasília.
 sergiotavolaro@hotmail.com

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Recebido: 15 mar. 2021.


Aceito: 19 jul. 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 238-263.


264 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane
ARTIGOS
Silvestre
264

http://doi.org/10.1590/15174522-103835

Encarceramento e desencarceramento
no Brasil: a audiência de custódia como
espaço de disputa
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*
Jacqueline Sinhoretto**
Giane Silvestre***

Resumo
A população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta no período pós-
Constituição de 1988. O percentual de presos provisórios é elevado. Considerando
que nesse período foram ampliadas as possibilidades de aplicação de penas e
medidas alternativas, supõe-se a coexistência entre a prisão e as alternativas ao
cárcere. O artigo analisa dados coletados em pesquisa nacional sobre Audiências
de Custódia, que permitem discutir tensões e funcionamento recíproco de medidas
descarcerizantes e mentalidade punitiva. Por meio de análise de observação direta
das audiências e entrevistas com os operadores do direito, reflete-se sobre padrões
de escolha e mecanismos de seletividade que, por hipótese, se relacionam às
concepções dos operadores jurídicos acerca do crime, do criminoso e da punição.
São analisadas as mentalidades institucionais no campo jurídico relacionadas
com opções de política criminal e os seus reflexos na tomada de decisão judicial,
aprofundando possibilidades teóricas de interpretação desses dados.
Palavras-chave: encarceramento, audiência de custódia, prisão provisória,
política criminal, alternativas penais.

*
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
**
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.
***
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 265

Incarceration and disincarceration in Brazil: the detention


hearing as a space for dispute

Abstract
The Brazilian prison population have been growing continuously uninterruptedly in
the post-Constitution period of 1988. The percentage of pre-trial prisoners is high.
Considering that in this period the possibilities of alternatives to imprisonment were
expanded, the coexistence between incarceration and its alternatives is assumed. The
article analyzes data collected in a national research on Detention Hearings, which
allow to discuss tensions and the reciprocal progress of disincarceration policy and
punitive mentality. Through direct observation of the hearings and interviews with
law enforcement actors analysis, patterns of choice and selectivity mechanisms had
been identified, which, hypothetically, are related to the concepts of legal operators
about crime, the offender and punishment. Institutional mentalities in the legal field
related to criminal policy options and their impact on judicial decision-making were
analyzed, deepening theoretical possibilities for interpreting these data.
Keywords: incarceration, detention hearing, pretrial detention, criminal policy,
alternative sentencing.

Introdução

A
população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta há
três décadas, coincidindo com a vigência da Constituição de 1988
e a democratização do Estado em vários setores. Nesse ínterim,
também foram ampliadas as possibilidades de aplicação de penas e
medidas alternativas à prisão e ao encarceramento provisório, como a
Lei nº 12.403/2011 e as audiências de custódia, objeto de análise deste
artigo. Diante desse cenário aparentemente contraditório, supõe-se que a
relação entre a prisão e as alternativas ao cárcere não é necessariamente
de ruptura, mas de coexistência, continuidade e funcionamento recíproco.
Os efeitos das alternativas à prisão vinculam-se tanto às interações entre as
diversas tendências político-criminais presentes quando de sua emergência

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


266 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

e implementação, quanto às formas de compreensão acerca do crime e do


criminoso que, num dado momento, orientam a sua configuração específica.
Nesse sentido, este artigo explora questões ligadas à implementação das
audiências de custódia em seis cidades brasileiras, analisando a coexistência
entre práticas descarcerizantes e visões punitivistas da punição em seu
funcionamento cotidiano. Para tanto, serão analisados dados quantitativos
e qualitativos da pesquisa Audiência de custódia, prisão provisória e
medidas cautelares – Obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação
da liberdade como regra, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública e financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ/FBSP, 2018),
oferecendo uma interpretação autoral. Além disso, serão analisados os
dados quantitativos do Infopen, sistema de informações estatísticas do
sistema penitenciário brasileiro, mantido pelo Departamento Penitenciário
Nacional (Depen) e do CNJ, para verificar a dinâmica de funcionamento do
sistema penal nos diferentes estados. A interpretação reflete sobre os usos
e funções atribuídas às audiências de custódia, sobre como a prisão e as
alternativas penais são implementadas e percebidas pelos agentes jurídicos
e sobre os obstáculos à efetivação de uma política de desencarceramento.

O crescimento do encarceramento no Brasil


Há uma tensão no Brasil contemporâneo que desafia o quadro
apresentado pela literatura internacional que analisa o crescimento do
encarceramento e das políticas de endurecimento penal. David Garland
(2008), Loïc Wacquant (2003), Zygmunt Bauman (1999) e outros expoentes
concordam com a ideia de que o punitivismo1 é uma tendência em
ascensão quando as políticas sociais do bem-estar entram em declínio.
No caso brasileiro, no entanto, durante, pelo menos, os últimos quinze
1
O punitivismo refere-se a uma visão da punição dissociada dos objetivos de reinserção
social que marcaram o arranjo institucional do welfare. Trata-se de um movimento global
de reformas legislativas e práticas institucionais no sentido da ampliação do sistema penal
no tratamento dos conflitos sociais, endurecimento das penas, pautado por uma visão
individualista do conflito, reemergência da leitura ontológica do crime e do criminoso,
relacionado a políticas neoliberais.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 267

anos, o governo federal contribuiu para a implementação de políticas


distributivas, elevação dos padrões de desenvolvimento humano, redução
das desigualdades regionais e sociais. Contudo, no mesmo período, a
população carcerária cresceu de forma ininterrupta. Em 1990 havia 104,7
presos por 100 mil habitantes acima dos dezoito anos, e em 2019 esta
taxa era de 367,9. O número de encarcerados no país chegou a 773.151
em 2019, considerando os presos dos sistemas estaduais e federal e das
carceragens de delegacias (Depen, 2019).
O crescimento do encarceramento brasileiro pode ser explicado,
em parte, por uma demanda punitiva que encontrou respaldo tanto nos
legisladores quanto na atuação das instituições de segurança pública e justiça
criminal, mas que não surtiu o efeito esperado de queda da criminalidade.
Como exemplo, é possível citar a lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos)
que impediu a progressão de regime, ampliando consideravelmente a
população dentro das prisões. A lei, no entanto, não teve os efeitos esperados
na redução da criminalidade (Ilanud, 2005). Já nos anos 2000, os efeitos
perversos da lei 11.343/06 (lei de drogas) impulsionou o encarceramento
de pequenos traficantes e usuários de drogas e surtiu pouco efeito no
desmantelamento de cadeias internacionais do tráfico. Dentre outros
aspectos, o crescimento exponencial da população encarcerada no Brasil
foi responsável, ainda, pelo surgimento e consolidação de facções criminais
e produziu o incremento dos mercados ilegais.
Por outro lado, como apontam Campos e Azevedo (2020), a análise das
reformas penais ocorridas no Brasil de 1988 até 2018 coloca em xeque a ideia
de que o Brasil reproduz de forma mecânica o aumento unilateral do poder de
punir do Estado contemporâneo no Ocidente, com base na experiência dos
EUA e de países como Inglaterra ou França. Dito de outra forma: a política de
segurança pública e justiça criminal no Brasil aprovada em lei não reproduz
unilateralmente um “Estado Penal”, porque existem meios de comunicação de
massa, partidos políticos, movimentos sociais, presidentes, ministros, ONGs,
lobbies e outros atores que influenciam, por meio de práticas sociais (diretas
ou indiretas), esse processo no sentido da ambiguidade.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


268 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

Tais elementos, que são muito próprios do caso brasileiro, mostram


a insuficiência dos modelos explicativos de autores como Loïc Wacquant
para compreender a realidade nacional.

Gráfico 1. Taxa de encarceramento por 100 mil habitantes Brasil, 1990 – 2020
400
367
356
350 350
341
350

306
300 289
283
267
260
247
250 238
223
214
196
200 187
174

150 137 135 137


118
101
91
100 79 80
73
61

50

0
1990

1992

1993

1994

1995

1997

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen (Depen, 2019)

Além das particularidades mencionadas, a situação carcerária atual no


país é também preocupante pelo alto número de presos provisórios. Segundo
os dados do Depen/Infopen, considerando somente a população do sistema
prisional, em junho de 2019, os presos ainda sem uma condenação criminal
representavam 33,4% do total. Apesar de leve redução em 2018 e 2019,
o crescimento do número de presos provisórios se manteve constante na
última década, inclusive após a entrada em vigor da Lei 12.403/11, que
deu ao Judiciário novas possibilidades para a garantia do andamento do
processo penal sem a necessidade da prisão do acusado, entre as quais o
monitoramento eletrônico, medida pouco utilizada, seja por resistência dos
juízes, seja pela falta de estrutura nos estados (Instituto Sou da Paz, 2014).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 269

As taxas de aprisionamento são variáveis entre os estados, tornando


a geografia do encarceramento no Brasil bastante diversa no que tange
ao total de pessoas encarceradas, quanto à porcentagem em situação de
prisão provisória. Em junho de 2019, estavam no estado de São Paulo
aproximadamente 20% do total de presos provisórios do país: 51.093
(21,8% dos encarcerados no estado). Na região sul, o Rio Grande do Sul
apresentava a maior proporção de presos provisórios no total da população
carcerária: 31,2% (Depen, 2019).
Quatro estados tinham mais da metade de seus presos em situação
provisória: Piauí (56,03%), Ceará (52,79%), Rio de Janeiro (52,16%) e Bahia
(50,69%). Além disso, 15 apresentaram um percentual de presos provisórios
acima da média nacional (Depen, 2019). Entre outros aspectos, isso se
relaciona à ausência das garantias processuais para determinados perfis de
acusados, que ficam presos durante o processo, por até dois anos ou mais.
A opção pelo aumento do encarceramento no Brasil não é acompanhada
da garantia de condições carcerárias mínimas, contribuindo para a violência
no interior do sistema prisional, a disseminação de doenças e o crescimento
das facções criminais. Em 2011, o déficit era de 175.841 vagas. Em 2019
esse número passou a 312.125, chegando a 1,6 presos por vaga no sistema.
Nenhum estado brasileiro garante a quantidade de vagas necessárias ao
número de presos.
Como o terceiro país com maior número de encarcerados do mundo,
o Brasil mantém a aceleração da taxa de encarceramento, enquanto os
dois primeiros países apresentaram desaceleração. Os Estados Unidos
iniciaram políticas federais e estaduais de redução do encarceramento,
com a revisão de políticas penais e decisões judiciais, aumento de penas
alternativas e concessão de liberdade condicional (parole) (Simon, 2014),
auxiliadas pela descriminalização e regulamentação do uso recreativo da
maconha em diversos de estados.
Nesse aspecto, as teorias internacionais que relacionam o endurecimento
penal às tendências de redução das políticas de bem-estar, modificando
intrinsecamente as funções da pena, esbarram em uma situação paradoxal

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


270 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

no quadro brasileiro. O crescimento de políticas de assistência social, ações


afirmativas em educação, redução da pobreza, coexistiu no tempo com
disputas pela expansão do sistema penal e das polícias militares, crescimento
de homicídios e de mortos pela polícia, ainda que políticas descarcerizantes
tenham sido patrocinadas pelo governo federal (Azevedo; Cifali, 2015).
Como sustentam Azevedo e Cifali (2015),

por diversos motivos, entre os quais os diversos escândalos de corrupção que


se sucederam ao longo dos 12 anos de governo, assim como a falta de uma
orientação mais clara sobre um programa descarcerizante e que ao mesmo
tempo dê conta da demanda social por redução da violência, os governos
dirigidos pelo PT no Brasil não tiveram a capacidade para construir uma efetiva
hegemonia de uma concepção de segurança pública vinculada à afirmação de
direitos e ao funcionamento adequado e republicano dos órgãos responsáveis
pela persecução criminal. Perderam também a possibilidade política de
incidir sobre outras esferas de governo, como os estados e municípios, e
mesmo outras dimensões institucionais, como parlamento e judiciário, para
a mudança de orientação das decisões judiciais e a ampliação de um sistema
legal capaz de reestruturar os órgãos policiais e implementar mecanismos
eficazes de controle (p. 125).

Os autores destacam, ainda, que é preciso também considerar,


entre outros fatores, o peso do estado de São Paulo no crescimento do
encarceramento no Brasil. Há muitos anos sob o controle do PSDB, que
adotou, tanto discursivamente quanto em suas práticas de gestão, políticas
vinculadas aos movimentos de Lei e Ordem, na defesa de encarceramento
duro especialmente para delitos ligados ao mercado da droga, o estado
ilustra o peso da orientação do poder executivo estadual, responsável pela
coordenação da atuação das polícias civil e militar (Azevedo; Cifali, 2015).
A partir de 2016, houve uma inflexão das políticas federais e o
abandono das iniciativas descarcerizantes e de redução de desigualdades. O
país passou a corresponder ao tipo descrito na literatura internacional (e.g.
Wacquant, 2003; Garland, 2008) em que a redução do bem-estar social
está vinculada ao reforço do punitivismo, especialmente após a ascensão
da extrema direita nas eleições de 2018.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 271

Nesse quadro, 2017 e 2018 foram extremamente violentos no interior


das penitenciárias. O país assistiu à intensificação de rebeliões e mortes,
especialmente no Norte e no Nordeste, com a evidência de organização
de grupos violentos no interior dos cárceres. O que não apenas deixa
evidente a deterioração das garantias de vida e segurança, mas também
sinaliza para os efeitos perversos e nefastos da prisão como um espaço de
organização da delinquência. Da mesma forma, a passagem da organização
das quadrilhas locais para redes criminais de larga abrangência territorial
tem as cadeias como ponta de lança de empreendimentos econômicos e
políticos (Dias, 2013; Paiva, 2015; Lourenço; Almeida, 2013).

Audiências de custódia:
entre o punitivismo e o desencarceramento
Desde 2015, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o
Ministério da Justiça e os Tribunais de Justiça estaduais, passou a estimular
a adoção da Audiência de Custódia como rotina. As audiências preveem
a apresentação dos presos em flagrante à autoridade judiciária no prazo
de 24 horas após a detenção, na tentativa de garantir a prisão apenas
nas hipóteses estritamente necessárias. A medida foi implementada em
consonância com o Pacto de San Jose da Costa Rica2 e regulamentada pela
Resolução 213 de 2015 do CNJ.3 A audiência foi criada com duas funções:
analisar a necessidade de prisão durante o processo e verificar as condições
da pessoa detida, apurando situações de maus-tratos e tortura durante a
detenção. Em audiência são ouvidos, além do acusado, Ministério Público,
Defensoria Pública ou advogado particular.
2
O Decreto nº 678 de 1992 promulgou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos
(Pacto de San Jose da Costa Rica) celebrada em 1969. No art. 7º do pacto há o dispositivo:
“toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz
ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser
julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que
prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo”.
3
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2234. Acesso em 17/02/2020.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


272 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

Anteriormente, os juízes analisavam apenas a documentação relativa à


prisão provisória e decidiam estritamente com base no pedido de conversão
da prisão flagrante em prisão preventiva. A introdução das audiências
buscou reforçar o caráter acusatorial do processo penal, numa fase do rito
processual em que as características inquisitoriais tendiam a predominar
para a grande maioria dos acusados.
A implementação das audiências de custódia tem sido objeto de estudos
acadêmicos, monitoramento por parte de organizações da sociedade civil
(IDDD, 2017; Conectas, 2017) e do próprio CNJ. Ballesteros (2016) concluiu
que as audiências têm servido mais ao cumprimento do ritual imposto aos
operadores, do que para averiguar a real necessidade de manutenção da
prisão. Isso porque a maior parte dos juízes e promotores não tem dado
credibilidade aos fatos apresentados pelos presos, mas à versão policial
dos fatos. O uso recorrente de linguagem técnico-jurídica prejudica a
compressão dos presos acerca do que é debatido em audiência, além da
padronização de decisões, observada pela autora, com pouca consideração
às particularidades de cada caso.
O estudo de Jesus (2016) em São Paulo debruçou-se sobre a crença de
juízes e promotores na narrativa policial em caso de prisões em flagrante,
especialmente em casos de tráfico de drogas. Segundo a autora, não se
questiona a forma como as informações foram produzidas e adquiridas pelos
policiais. Com isso, práticas de violência, tortura ou ameaça raramente são
averiguadas, e expressões como violência policial, extorsão, flagrante forjado
não aparecem nas deliberações de promotores e juízes (Jesus, 2016). Já o
estudo realizado por Silvestre e colaboradores (2021) mostra como mudanças
institucionais ocorridas, tanto no Tribunal de Justiça quanto na coordenação
das audiências de custódia da capital paulista, enfraqueceram a já precária
apuração dos fatos que envolvem casos de tortura e violência policial.
Küller (2017), também em São Paulo, concluiu que, apesar de pontos
de inflexão na tendência do encarceramento, observam-se também
permanências nas audiências, no que diz respeito ao descrédito atribuído
às narrativas dos indivíduos presos sobre o delito e sobre a violência

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 273

institucional. Abreu (2018), sobre o Rio de Janeiro, apontou que o contato


entre preso e juiz tem pouco ou nenhum efeito na construção da decisão,
já que os juízes decidem sobre os casos apresentados na pauta do dia
antes mesmo da realização das audiências. Albuquerque (2017) destacou
a relevância das audiências como mecanismo humanizador da justiça
criminal, ao possibilitar a superação do modelo cartorário da verificação
dos atos da prisão em flagrante. Contudo, aponta necessário esforço dos
órgãos estatais e atores processuais para que não se torne apenas mais um
ritual burocrático da racionalidade punitiva.
O presente estudo enfoca a coexistência entre práticas descarcerizantes
e punitivistas na condução das audiências de custódia pelos operadores
jurídicos. Além dos dados compilados com a ajuda de 955 formulários
utilizados em seis cidades – São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Florianópolis,
João Pessoa e Palmas (CNJ/FBSP, 2018) – sobre o perfil dos acusados que
passaram pelas audiências e o perfil das decisões, o tópico posterior utiliza
informações provenientes de entrevistas com os operadores judiciais que
participaram de audiências.

Perfil dos acusados


O perfil dos acusados conduzidos às audiências de custódia foi analisado
com o auxílio de um formulário padronizado preenchido exclusivamente
com as informações obtidas durante a observação presencial das audiências.
Por razões operacionais, não foram consultados os autos para a obtenção
de informações complementares ou checagem. Também não foi usada
amostra estatística, pois o número de audiências e a forma como são
realizadas é muito diferente conforme a cidade. Em alguns lugares uma
amostra estatística seria inviável para os recursos disponíveis, em outros
foi possível acompanhar todas as audiências nos dias da visita da equipe.
Procedimentos de aleatoriedade foram adotados para não concentrar
observações em alguns juízes ou horários, procurando recobrir a máxima
diversidade possível.4
4
O detalhamento da metodologia, dificuldades e contexto da coleta em cada cidade e a
composição da equipe estão detalhadas no relatório (CNJ/FBSP, 2018).

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274 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

Em 90% dos casos as pessoas detidas eram do sexo masculino. Das


pessoas apresentadas à audiência de custódia observadas pelas pesquisadoras,
65% foram identificadas como negras5, conforme tabela 1:

Tabela 1. Pessoas detidas apresentadas à audiência de custódia segundo cor/raça

Cor/raça Freq %

Branca 312 32,70%


Negra 623 65,20%
Indígena 4 0,40%
Amarelo 2 0,20%
NI 14 1,50%

Total 955 100,00%

Fonte: CNJ/FBSP (2018).

Das 955 pessoas apresentadas à audiência de custódia e


acompanhadas pela pesquisa, foi possível coletar a idade de 7416.
A maior incidência encontrada foi de pessoas de 18 anos e 25% das
pessoas tinham menos de 20 anos. Mais da metade (51%) tinha até 25
anos de idade. A concentração de pessoas muito jovens (gráfico 2) fica
mais evidente entre as pessoas negras, o que corrobora outras análises
sobre a vulnerabilidade dos jovens negros à prisão (Brasil 2015a, 2015b;
Sinhoretto et al., 2013).
5
A heteroclassificação da cor de pele pelas pesquisadoras tratou-se de um procedimento
inusual e possivelmente discutível, adotado em razão da ausência da coleta de informação
cor nas audiências. Nos autos judiciais é comum que o registro da informação cor também se
baseie em heteroclassificação realizada por quem preenche os documentos, o que acarreta
divergências no registro da cor da pele da mesma pessoa ao longo dos atos. A informação
autodeclarada não costuma ser coletada em audiências judiciais. A categoria negra resultou
da soma de preta e parda.
6
Informação geralmente perguntada pelo juiz no início da audiência, junto a perguntas sobre
endereço, profissão, grau de escolaridade, filhos e uso de álcool e drogas. Houve uma audiência
realizada com um acusado de 17 anos que afirmou ser maior de idade, contudo posteriormente
foi comprovada necessidade de conduzi-lo à vara especial de infância e juventude.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 275

Gráfico 2. Idade das pessoas apresentadas à Audiência de Custódia segundo cor/raça


80

70

60

50

40
BRANCA
NEGRA
30

20

10

0
17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 52 53 54 55 56 57 59 62 64 69 70 81

-10

Fonte: CNJ/FBSP (2018).

Os dados do tipo de delito pelo qual a pessoa custodiada foi acusada


mostram que o roubo motiva o maior número de detenções (22,1%).
Tráfico de drogas aparece em segundo lugar (16,9%), seguido de furto
(14%) e receptação (11%).
Os crimes patrimoniais somados (roubo, furto e receptação) respondem
por 47,2% dos casos observados pela pesquisa. Delitos contra a vida
somaram 2,9% das audiências observadas, sendo que houve mais prisões por
homicídios tentados do que consumados e baixa incidência de latrocínio.
Violência doméstica aparece com incidência de 7,8% e outras lesões
corporais com 1,8%.
Uma das questões mais exploradas nas audiências é a existência
de antecedentes criminais, sendo que 51% das pessoas detidas tinha
antecedentes criminais. Os delitos cometidos com violência presumida
ou exercida somaram 34,8% das acusações que motivaram prisões em
flagrante, enquanto 43,6% não são tipos penais relativos ao uso da violência,
incidência também predominante na categoria ‘outros’ que representou
21,6% e agrupou as capitulações com apenas um registro. Se não mais
do que 34,8% das prisões em flagrante observadas se referem a delitos

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276 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

violentos, torna-se evidente que a liberdade se tornou exceção na prática


policial e que a regra tem sido a prisão para crimes patrimoniais (cometidos
ou não com violência) e de drogas que, somados, correspondem a 64,1%
dos delitos identificados nas audiências, o que justifica a adoção do instituto
das audiências de custódia.

Tabela 2. Crime imputado às pessoas detidas apresentadas às audiências de custódia

Crimes Freq %

Roubo 235 22,10%

Furto 149 14,00%

Tráfico 180 16,90%

Lesão Corporal 19 1,80%

Latrocínio 2 0,20%

Homicídio Tentado 23 2,20%

Homicídio Consumado 8 0,80%

Violência Doméstica 83 7,80%

Estelionato 17 1,60%

Receptação 117 11,00%

Outros 229 21,60%

Total 1062 100,00%

Nota: a cada pessoa pode ser imputado mais de um crime, por isso o total (1062) é superior
ao número de presos (955). A unidade de análise desta tabela é o crime imputado.
Fonte: CNJ/FBSP (2018).

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Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 277

Procedimento e observação de garantias


A pesquisa abordou o cumprimento de garantias de direitos das pessoas
detidas, com especial atenção àquelas estabelecidas para o funcionamento
das audiências de custódia (Resolução CNJ nº 213 de 15/12/2015).
Observou-se que 81% das pessoas estavam algemadas durante as audiências
de custódia, contrariando expressamente a Resolução. Chamou a atenção
o forte aparato de segurança sobre os presos no momento das audiências,
quando algemas e a presença dos agentes se combinam, mesmo em situações
de baixa resistência. Em relação às explicações e informações que os juízes
devem fornecer às pessoas custodiadas para assegurar os direitos, em 26%
dos casos não foi informada a finalidade da audiência e na metade (49,9%)
desses não foi explicado o direito de permanecer em silêncio.
O enfrentamento à violência e aos maus tratos cometidos no momento
das prisões em flagrante é outra finalidade das audiências de custódia. No
entanto, durante as observações, foi possível notar que o ambiente se torna
frequentemente hostil a esse tipo de denúncia, dada a presença de policiais
dentro das salas de audiência7. Justamente por isso, é fundamental que o
juiz faça perguntas e demonstre interesse sobre a ocorrência de violência
no momento da prisão. Nesse sentido, é preocupante o fato de que, para
31,8% dos presos em flagrante, não tenha sido feita nenhuma pergunta
sobre violência e/ou maus tratos no momento da prisão.

Desfecho das audiências


Em relação ao resultado das audiências, o latrocínio (baixa incidência na
amostra) teve a totalidade dos flagrantes convertidos em prisão preventiva.
O homicídio tentado (baixa incidência) teve 87,1% de conversão em
preventiva. O roubo, cuja participação na amostra foi predominante, teve
7
Nesse aspecto, o resultado corrobora o levantamento realizado pela organização Conectas
Direitos Humanos (Conectas, 2017).

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278 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

86,8% de conversões em preventiva. Homicídio consumado teve percentual


de conversões em flagrante inferior ao roubo (75%). Quanto ao flagrante
por tráfico de drogas, 57,2% das pessoas detidas foram mantidas presas
enquanto aguardavam o julgamento. A manutenção da prisão por tráfico
foi mais frequente do que nos casos de violência doméstica, em que 39,8%
dos presos em flagrante permaneceram encarcerados após a audiência de
custódia, proporção esta maior do que a lesão corporal em outros contextos
(26,3% de conversão). Receptação (36,8%) e furto (30,2%) foram delitos
em que a concessão de liberdade provisória foi bastante frequente. Lesão
corporal (10,5%), receptação (7,7%) e tráfico de drogas (7,8%) são os delitos
de maior incidência de relaxamento de flagrantes.
O tipo de crime parece fortemente correlacionado à decisão tomada
na audiência de custódia sobre a necessidade de aguardar o julgamento
em cárcere. O roubo (seguido ou não de morte) foi o crime de prisão mais
frequente, mais do que o homicídio. O tráfico de drogas mereceu destaque
na análise por ser um crime sem violência e que despertou nos juízes a
disposição para a prisão processual.
Na busca por refinar a observação, foi realizado um agrupamento
dos crimes violentos (com violência presumida no tipo penal) e não
violentos, o que permite perceber como as decisões se distribuíram,
como se vê na tabela 3.
Constatou-se que 65,1% dos crimes violentos que passaram pelas
audiências de custódia observadas tiveram a conversão em prisão
preventiva e 40% dos crimes cometidos sem violência receberam o mesmo
tratamento. Isso coloca em dúvida o papel da audiência de custódia na
gestão da violência do crime, posto que, se é alta a manutenção da prisão
em crimes violentos, como o roubo, também é alta sua manutenção
em crimes não violentos, com destaque para o tráfico. Pode-se admitir
que há um uso excessivo da prisão provisória para delitos sem violência
contra a pessoa.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 279

Tabela 3. Crimes violentos e não violentos segundo a decisão na audiência de custódia

Crime violento
Decisão
Sim Não

Relaxamento do Flagrante 1,60% 6,50%

Conversão em Preventiva 65,10% 40,00%

LP sem Cautelar 2,00% 1,60%

LP com Cautelar 30,00% 45,60%

LP e encaminhamento à assistência 0,20% 1,40%

NI 0,70% 0,20%

Relaxamento e Conversão 0,00% 0,90%

Relaxamento e encaminhamento à assistência 0,00% 0,40%

LP com Cautelar e encaminhamento à assistência 0,40% 3,40%

Total 100,00% 100,00%

Fonte: CNJ/FBSP (2018).

Em relação à influência dos antecedentes sobre a decisão dos


juízes, 65,4% dos custodiados com antecedentes criminais tiveram a
prisão em flagrante convertida em preventiva, e o mesmo aconteceu
com 37,3% dos custodiados que não tinham antecedentes. Entre os que
não tinham antecedentes foi maior a frequência de liberdade provisória
com medidas cautelares (52,8%); decisão semelhante beneficiou 26%
entre os que tinham antecedentes criminais. O antecedente criminal,
portanto, influencia a decisão a respeito da necessidade de prisão
durante o processo.

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280 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

Tabela 4. Antecedentes criminais do custodiado segundo decisão em audiência de custódia

Antecedentes
Decisão
Sim Não

Conversão em preventiva 65,40% 37,30%

Relaxamento do flagrante 3,50% 4,30%

LP sem cautelar 1,40% 2,40%

LP com cautelar 26,00% 52,80%

LP e encaminhamento para assistência 0,60% 0,50%

Relaxamento do flagrante e decretação de preventiva 0,20% 0,80%

Relaxamento do flagrante e encaminhamento para assistência 0,20% 0,30%

LP com cautelar e encaminhamento para assistência 2,00% 1,60%

NI 0,70% 0,00%

Total 100,00% 100,00%

Fonte: CNJ/FBSP (2018).

Entre as pessoas brancas conduzidas à audiência de custódia, 49,4%


permaneceram presas e 41% receberam liberdade provisória com cautelar.
Entre os negros (maioria na amostra) 55,5% tiveram a prisão mantida e
35,2% receberam liberdade provisória com cautelar, o que indica que o
tratamento judicial é mais duro para os acusados negros. Na audiência
de custódia, a filtragem racial na prisão em flagrante não é revertida ou
anulada. Isso não significa que os operadores tenham plena consciência de
que fazem análises baseadas na discriminação racial, trata-se de um dado
objetivo que materializa a situação mais dura que os negros enfrentam
perante a justiça criminal.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 281

A percepção dos operadores


Na análise das entrevistas, a pesquisa constatou que "ver" a pessoa
detida é considerado importante para a finalidade da audiência de custódia,
dada a existência de um saber profissional acumulado que indica que os
operadores da justiça criminal se consideram capazes de “bater o olho”
e reconhecer, na apresentação corporal do acusado, um conjunto de
informações relevantes para a sua decisão. A relevância do procedimento
do reconhecimento – a que os policiais dão o nome de tirocínio – como
elemento que produz filtragem racial e tratamento desigual entre negros
e brancos vem sendo discutida na literatura sobre policiamento e racismo,
e os dados apontam que as audiências judiciais não são menos propícias
a esse debate.
A análise das entrevistas com os operadores atuantes na cidade
de São Paulo deixa evidente o campo de tensões, em que as práticas
descarcerizantes enfrentam a resistência de concepções e práticas de
defesa de social8 arraigadas e naturalizadas pelos agentes jurídicos.9 Por ser
uma inovação, a reflexão dos operadores sobre a audiência de custódia
é propícia para identificar como permanências são disputadas por novas
sensibilidades e como se reorganizam no interior do campo judicial.
A audiência de custódia é vista por alguns operadores como uma
oportunidade de confirmar as categorias de suspeição e seleção utilizadas
pelos policiais em campo. A capacidade de, como disseram, “bater o olho”
e saber que alguém ou a oportunidade de “separar o joio do trigo” foram
8
Defesa social entendida como uma visão de política criminal em que a defesa da sociedade
contra o crime deve prevalecer sobre as garantias individuais dos acusados.
9
As entrevistas aqui relatadas foram realizadas em 2016. Em 2018, toda a equipe de
magistrados atuantes nas Audiências de Custódia em São Paulo foi substituída. Uma
juíza de perfil conservador assumiu a coordenação e designou juízes ideologicamente
alinhados a ela, o que foi contestado numa ação civil pública ainda não julgada. Desde
então, a proporção de solturas reduziu-se significativamente, indicando a precariedade
institucional dos cargos ligados à gestão do encarceramento. Ver: https://www.conjur.
com.br/2018-fev-18/entrevista-juiza-patricia-alvarez-cruz-chefe-dipo-sp e http://www.
justificando.com/2017/12/15/juiza-que-condenou-mulher-por-furto-de-xampu-e-
cotada-para-coordenar-audiencias-de-custodia-em-sp/ Acesso em: 20/02/2020.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


282 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

descritas por eles como parte de um saber que orienta sua ação de defesa
social. Para outros, garantias de defesa e argumentos em torno de direitos
fundamentais são colocados em relevo como saberes organizadores da sua
prática judicial. Há uma corrente de opinião que reivindica uma insuficiência
do direito penal na resolução de problemas sociais que desembocam na
audiência de custódia, sem renunciar à sua aplicação.
Foi relatada uma forte resistência inicial à implantação do instituto.
Essa resistência, segundo os entrevistados, vem desde o estranhamento de
uma intervenção vinda de organismos internacionais no direito nacional,
até uma dificuldade de aceitação de que trabalho policial necessite de
verificação. Um promotor afirmou:

Eu era um pouco contra. Você fala “nossa, parece inversão de valores isso, né?
Quem está certo é o bandido e a polícia, o Estado que está errado?” Bom,
uma coisa que eu pensava antes, né? (Promotor, SP).

Os promotores relataram mudança de posição em relação à audiência


de custódia assim que passaram a atuar na prática, a constatar a existência
de casos inequívocos de maus-tratos por parte de policiais, embora se
preocupem em “separar o joio do trigo” nas acusações de tortura, por
considerar uma estratégia adotada por muitos réus para tentar desacreditar a
versão policial sobre a prisão. Preocupam-se com a correição das operações
da Polícia Civil, pois consideram que elas produzem uma quantidade grande
de prisões apenas para registro estatístico de produtividade. Não obstante,
há, entre os promotores, preocupação em não lançar suspeitas infundadas
sobre os policiais, sobretudo os militares, não desqualificar o seu trabalho,
não fazer afirmações generalizantes. Entendem que o próprio ato de realizar
prisões produz lesões que não deveriam ser objeto de investigação por
serem resultado da resistência do preso em ser detido e imobilizado. O
mesmo cuidado com garantias de acusação, no entanto, não se verifica
em relação aos réus apresentados em audiência, deixando perceptível que
a vigilância das garantias individuais depende de se é “joio” ou “trigo”.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 283

Juízes e defensores consideram que o Ministério Público deixa a


desejar em sua atuação na apuração de violências e maus-tratos cometidos
pelos policiais, posto que é sua a função de controle externo da polícia,
assim como a titularidade da ação penal nos casos em que as violências
são visíveis.
Juízes e promotores asseveram que a finalidade da audiência de
custódia é verificar, caso a caso, a necessidade da prisão durante o
processo. O desencarceramento não seria um dos objetivos a serem
atingidos com a criação do instituto. Contudo, defensores reconhecem
que o encarceramento excessivo é um dos problemas a que a justiça
criminal deve responder.
“Separar o joio do trigo”, função primordial atribuída pela maioria
dos interlocutores à audiência de custódia, também se refere a direcionar
a administração dos conflitos envolvendo a extrema pobreza e o uso
abusivo de crack às políticas sociais e não ao tratamento penal. Mas para
que isso seja efetivo – e corresponda às concepções morais e políticas
desses operadores da justiça – é necessária a articulação da justiça criminal
com a rede de atendimento dos serviços sociais, que consideram falhos e
insuficientes para atender à demanda.
Especialmente em São Paulo, a convivência com os conflitos decorrentes
da gestão do complexo socioespacial chamado de Cracolândia foi muito
presente. Os entrevistados das três instituições pareceram refratários à ideia
de uma administração da questão apenas pela via repressiva. Haveria uma
sobrecarga do sistema penal com delitos motivados por extrema pobreza,
em que a solução penal não é adequada. Comunicaram a crença de que
a atenção à saúde e à assistência social contribuem muito mais para a
dignidade das pessoas envolvidas e para o interesse de toda a sociedade
do que a solução penal, daí a necessidade de “separar o joio do trigo”.
O momento da realização das entrevistas ocorreu no auge do programa
municipal “De braços abertos”, já extinto.
A observação do ritual das audiências permitiu constatar a existência
de “tipos” que organizam a experiência dos operadores jurídicos no

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


284 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

desenvolvimento do seu trabalho. Há um conhecimento compartilhado


sobre os “tipos” de audiência em que o resultado provável será a soltura
ou a conversão da prisão em preventiva. O “tipo” é constituído de uma
combinação do delito (se grave ou leve na gramática cotidiana do fórum)
com características do acusado (primariedade, trabalho e estudo, uso
de drogas, residência fixa). Com pouco tempo de prática, era possível
apreender a aplicação dos “tipos”, bem como saber da maior ou menor
adesão dos juízes e promotores na mobilização desses tipos. Os tipos não
estão necessariamente em desacordo com a lei, mas orientam a conduta
dos agentes e a análise que fazem dos casos individuais.

A senhora esteve aqui embaixo, deve ter visto que crimes com violência, crimes
com uma reincidência pesada não são objetos de qualquer tipo de benesse
judicial, como não devem ser. Existem pessoas que não podem conviver em
sociedade. (...) Então, eu vejo com muita tristeza essas primeiras chamadas e já
vi gente, promotores, falando que aqui a gente soltava latrocidas e homicidas
perigosos, o que é uma flagrante inverdade (Juiz, SP).

A percepção da existência dos tipos e da força de sua aplicação despertava


em uma defensora a necessidade de atenção redobrada, de consciência em
alerta permanente para não rotinizar demais o exercício profissional.

Você está duvidando de uma pessoa com toda a sua complexidade, você tem
que falar com ela em certa rapidez, a audiência acontece de forma rápida, então
acho que isso, para quem passa pela audiência deve ser muito complicado.
(...) Você tem que estar o tempo todo se lembrando que você precisa fazer a
mesma explicação para todo mundo porque você fez muitas vezes, mas são
pessoas que estão vendo aquilo pela primeira vez. É uma dinâmica muito de
massa, é difícil lidar com isso, você tem que estar muito presente para não se
deixar ir com o fluxo (Defensora, SP).

Apesar do alerta sobre a atuação “em massa”, a maior parte dos


operadores jurídicos envolvidos na audiência de custódia têm uma visão
positiva sobre o instituto exatamente por ele possibilitar um contato pessoal
entre acusados e profissionais do direito, o que aproxima o seu fazer de
um ideal de justiça.

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Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 285

Os interlocutores da pesquisa em São Paulo foram contundentes


ao afirmar a existência de uma dinâmica do trabalho policial na cidade
que afeta o ritmo de ocorrências das audiências de custódia e, portanto,
a dinâmica das prisões em flagrante e do encarceramento. Trata-se da
percepção de existência de metas a cumprir no trabalho policial que,
segundo os operadores, produzem prisões indevidas ou tecnicamente frágeis,
em que as circunstâncias do flagrante e o enquadramento dos delitos não
convencem os operadores jurídicos. Vários comentários se coadunaram na
percepção de que a maioria dos delitos não envolve uma exacerbação da
violência, mas trata de delitos de pequena monta, cometidos com técnicas
até rudimentares, como comentou um promotor, “os caras estão assaltando
no grito”. E alguns relacionam esse perfil de baixa complexidade dos casos
à crise econômica vivida pelo país.
Percebe-se, assim, que a preocupação primordial em “separar o joio
do trigo” é movida por duas angústias sempre presentes no trabalho da
justiça criminal, relativas a como tratar diferentemente os desiguais. Nesse
caso, os desiguais são tanto os usuários de crack e moradores de rua, para
os quais o direito penal é equivocadamente mobilizado por uma gigantesca
máquina de prisão, ou então pessoas jovens que são presas “para bater
metas” policiais. Mas é, também, uma tentativa de diferenciar o tratamento
entre as pessoas, posto que não se deve lançar suspeitas sobre o trabalho
policial confiando na palavra “do suspeito” de cometer crimes.
Analisando as entrevistas, percebe-se que a criação do instituto da
audiência de custódia é uma medida cuja necessidade e função deve ser
compreendida no contexto de uma política de segurança pública que tem
na produção de prisões em flagrante uma medida de produtividade, que
afeta e interfere no funcionamento da justiça criminal e nas dinâmicas do
encarceramento. Pelas falas ouvidas, os operadores sentem que devem
exercer uma função de correição sobre esse tipo de atuação a fim de
inibi-la. De certa forma, as entrevistas oferecem uma confirmação empírica
das análises recentes sobre o protagonismo da Polícia Militar (PM) no

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


286 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

campo estatal de administração de conflitos criminais, assim como sobre


a centralidade da prisão provisória no controle social contemporâneo.
Sinhoretto e Lima (2015) avaliam que a composição do sistema prisional
hoje reflete um modelo de segurança pública que tem como principal
iniciativa o policiamento ostensivo realizado pelas PMs. O resultado disso
é o alto número de prisões em flagrante em decorrência dessa lógica de
policiamento que, por sua vez, impacta significativamente no número de
prisões provisórias, também analisado em Silvestre (2018).
O protagonismo das PMs está ancorado no fato de que cabe a elas
a definição de ordem pública e, nesse sentido, são elas que determinam
como será a composição da clientela do sistema penal e, por decorrência,
da população prisional. Além do mais, o controle do crime realizado
pelas PMs acaba demandando do sistema de justiça criminal uma
celeridade no processamento desses flagrantes que está muito além
da sua capacidade e estrutura. O alto número de prisões em flagrante
e a recorrente manutenção das prisões provisórias, em detrimento da
aplicação de medidas cautelares, faz com que tanto as Polícias Civis,
quanto o Judiciário acabem desempenhando um papel de coadjuvantes
na seleção dos conflitos sociais e dos acusados que vão receber a atenção
da justiça criminal.
A punição criminal no Brasil recai, sobretudo, sobre os jovens e
negros acusados do cometimento de delitos relativos à circulação indevida
da riqueza: roubos, furtos e tráfico de drogas. A circulação indevida da
riqueza é a principal preocupação dos mecanismos de controle do crime,
em detrimento do tratamento dos conflitos violentos, da proteção da
vida e da integridade física, numa lógica de administração de conflitos
própria de uma sociedade rica e violenta, considerando que, tanto a
riqueza quanto a violência são desigualmente distribuídas (Sinhoretto,
2014). Isso se torna verificável quando uma acusação de crime cometido
sem violência produz manutenção de prisão provisória, enquanto é
muito difícil para a justiça criminal identificar e punir os maus-tratos e
a tortura policial.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 287

Considerações finais
A contribuição almejada por este artigo refere-se à captação das
mentalidades, sensibilidades e convicções compartilhadas no interior
do campo judiciário, bem como na identificação das descontinuidades
e divergências existentes hoje nos discursos penais, nos quais, apesar da
disputa, há o predomínio de postulados e concepções hegemonizados
pelos cânones punitivistas.
Foi apresentada a persistência do alto encarceramento provisório no
Brasil, um dos motivos que impulsionou a implantação das audiências
de custódia. Entre os resultados obtidos em seis capitais, destacam-se as
barreiras e bloqueios para a contenção da utilização abusiva da prisão
provisória, bem como para a contenção da violência policial. Apesar de
todo o esforço de múltiplos atores, as prisões em flagrante estão no centro
do modelo de policiamento conhecido como “ostensivo”, executado pelas
polícias militares, e o sistema judicial não é capaz de rever os resultados do
aprisionamento em massa para delitos ligados ao patrimônio e às drogas.
Tampouco é capaz de reverter os efeitos da filtragem racial no policiamento.
Se, pela nova sistemática prevista pela Lei nº 12.403/2011, a prisão
preventiva somente pode ser decretada pelo juiz quando não forem
cabíveis outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do
acusado, a bibliografia consultada apontava não ter havido o rompimento
do binômio prisão preventiva/liberdade provisória, sendo a prisão
preventiva cotidianamente aplicada nos tribunais do país, muitas vezes
sem sequer verificar o cabimento de medidas alternativas e em desrespeito
a garantias fundamentais como a legalidade, a presunção de inocência, a
proporcionalidade, o devido processo legal e sua razoável duração.
Os dados divulgados pelo Depen/Infopen, relativos a 2018 e 2019,
mostram uma leve queda no percentual de presos provisórios no país,
ainda que o crescimento tenha sido constante na última década. Essa
recente queda está possivelmente relacionada com a implementação das
audiências de custódia em todos os tribunais. No entanto, mais de um

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


288 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

terço da população encarcerada segue sem julgamento no país, o que


mostra a coexistência entre as medidas descarcerizantes e a permanência
do encarceramento como principal ferramenta de controle do crime.
Como já destacado, a proporção de liberdades e prisões em cada
Unidade da Federação depende de uma série de questões, como as
políticas de segurança pública adotadas pelos estados, a cultura profissional
e corporativa dos profissionais do sistema de justiça criminal, o retrospecto
de utilização de alternativas penais assumidas pelo Judiciário, bem como
a disponibilidade e a qualidade das políticas sociais e assistenciais do
poder executivo de cada estado e município. Por exemplo, em São Paulo,
a organização do serviço de atenção aos usuários de drogas em situação
de rua, programa De Braços Abertos, reforçava nos operadores jurídicos,
naquele momento, a tendência de tratamento judicial menos duro, em
benefício do tratamento assistencial da questão.
Quanto aos fatores que levam à conversão em prisão preventiva no
momento da audiência de custódia, constatou-se que o tipo de crime
parece fortemente correlacionado à decisão tomada. O roubo (seguido ou
não de morte) é o crime em que a prisão é mais frequente, mais do que o
homicídio. O tráfico de drogas merece destaque na análise, por ser um crime
sem violência e com alta proporção de manutenção da prisão processual.
Embora predomine a manutenção da prisão provisória nos crimes com
violência contra a pessoa, há também um percentual significativo de casos
em que, mesmo sem violência na prática do delito, ocorre a decretação
da prisão preventiva em audiência. Observada sob esse aspecto, pode-se
admitir que há um uso excessivo da prisão provisória para delitos sem
violência contra a pessoa. O encarceramento e a aplicação dura da lei
penal predominam sobre a visão descarcerizante que se preocupa com os
efeitos perversos do encarceramento, especialmente nos delitos de drogas.
Outro fator determinante para a decretação da prisão preventiva
diz respeito aos antecedentes criminais do acusado. Nesse sentido, os
antecedentes criminais, mesmo que sem trânsito em julgado, se configuram
como um elemento que parece fortemente relacionado com a decisão a

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 289

respeito da necessidade de manter a prisão durante o processo. A presunção


de culpa prevalece sobre a presunção de inocência, quando se trata de uma
“clientela” do sistema de justiça criminal. A análise dos antecedentes criminais
é o elemento decisivo na “separação do joio e do trigo”, considerada uma
das funções relevantes das audiências para seus operadores.
Constatou-se que o tratamento judicial é mais duro para os acusados
negros, incluindo o que se passa na audiência de custódia. Nela, a filtragem
racial que ocorre nas abordagens policiais dificilmente é revertida ou anulada.
Isso acontece tanto no resultado da manutenção da prisão, mais frequente
para negros, como no sentido de filtragem atribuído pelos operadores
jurídicos, em que “ver” o acusado é considerado fundamental para conhecer
o caso e “separar o joio do trigo”, ou seja, diferenciar o tratamento dos
acusados conforme características não propriamente processuais, mas
presentes no corpo dos que são apresentados ao julgamento.
A expressão “separar o joio do trigo”, utilizada pelos operadores para
caracterizar o benefício da audiência de custódia para o funcionamento
da justiça, mostra que os operadores trabalham com a aplicação de “tipos”
muito mais do que com análise de direitos individuais, e que trabalham
com a lógica da “clientela preferencial”, num sistema de justiça em que o
tratamento não é aplicado de maneira igualitária. Dessa forma, o punitivismo
é corroborado para certos tipos de crimes e criminosos, mas para outros a
saída da prisão é bem-vinda. Com a utilização dessa expressão, os operadores
admitem fazer avaliações baseadas na corporalidade dos acusados (“cara
de bandido”, “cara de coitado”) para distinguir os perfis que merecem a
prisão dos que merecem tratamentos alternativos.
No tocante à atuação dos operadores jurídicos durante as audiências,
embora tenha sido possível identificar diferenças individuais de postura,
convicções e concepções, não há como negar a existência de uma forte
unidade entre magistrados e promotores, tanto na condução das audiências,
como nas motivações decisórias. Tanto é assim que em nenhuma das
audiências observadas foi encontrado qualquer encaminhamento divergente
entre representantes do Ministério Público e Poder Judiciário. Logo, os

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


290 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

papéis de acusadores/fiscais e julgadores muitas vezes se confundem e


complementam, nem sempre em favor da garantia de direitos ao custodiado.
Constatou-se que os representantes da Defensoria Pública acabam, muitas
vezes, subordinando-se às práticas estabelecidas, quando passam a corroborar
com a dinâmica “de massa” imposta por alguns juízes, e condensam suas
atuações a falas muito rápidas, pois já sabem que, na maioria dos casos,
o juiz já tomou sua decisão antes mesmo de ouvir o defensor. Foram
presenciados, na observação das audiências, comportamentos desrespeitosos
por parte de magistrados e promotores quando os defensores apresentam
suas versões dos fatos e seus pedidos de reforma da decisão. Mesmo diante
desse cenário, foram observados defensores que seguiam desempenhando
diariamente suas funções com qualidade técnica, defendendo os princípios
constitucionais da liberdade como regra, produzindo assim, uma disputa
pelo sentido de justiça.
O consórcio entre juízes e promotores na produção da verdade, inclui
a aceitação acrítica das versões policiais numa maioria extensa dos casos,
como foi também documentado na pesquisa de Jesus (2016). “Separar o
joio do trigo” é também diferenciar o valor da palavra de acusados e de
policiais na produção da verdade jurídica quando os acusados denunciam
maus-tratos ou contestam a versão policial sobre as prisões, porque isso
poderia ser ruim para a imagem e a carreira dos policiais. Mas não se
considera ruim que o sistema de justiça produza encarceramento em massa
ou filtragem racial, ou que não assegure o direito de defesa.
Os resultados encontrados corroboram pesquisas anteriores realizadas pelos
autores, que identificaram o predomínio, especialmente no interior do Ministério
Público, mas também na Magistratura, de concepções de política criminal
vinculadas à ideologia da Defesa Social, e críticas a uma perspectiva garantista.
Tal situação acaba por favorecer a atualização de um modelo inquisitivo de
processo penal, em que os fins de “combate ao crime” são colocados à frente
da garantia de direitos constitucionalmente assegurados. Nesse contexto, as
inovações legais e a tentativa de criação de novos procedimentos tendentes à

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 291

descarcerização, como as audiências de custódia, acabam por ser neutralizadas


pela atuação dos operadores nas audiências.
A análise dos acórdãos de tribunais superiores relativos aos recursos
de decisões das audiências de custódia também demonstrou a legitimação
de prisões preventivas sem o devido amparo legal, com fins de contenção
da criminalidade (CNJ/FBSP, 2018). Fazem isso, mesmo às expensas de
levar em consideração as condições reais dos cárceres no Brasil e os efeitos
perversos do crescimento do encarceramento no fortalecimento do poder
das grandes redes criminais e facções que controlam a vida no interior das
prisões. Fazem isso às expensas de produzir uma sociedade desigual e com
fortes traços autoritários, na qual o encarceramento serve muito mais à
defesa do patrimônio, criminalização das drogas e, contenção da população
negra e pobre, do que para a defesa da vida e dos direitos fundamentais
de acusados e vítimas de violência.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Doutor em Sociologia e professor titular da Escola de


Direito da PUCRS, atuando nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em
Ciências Sociais, membro do INCT-InEAC, bolsista de produtividade nível 1 do CNPq.
 rodrigo.azevedo@pucrs.br

Jacqueline Sinhoretto é Doutora em Sociologia, professora do Departamento de Sociologia


da UFSCar, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos
– GEVAC, bolsista de produtividade nível 1 do CNPq e membro do INCT-InEAC.
 jacsin@ufscar.br

Giane Silvestre é Doutora em Sociologia, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de


Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e professora colaboradora do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP. Membro do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos –
GEVAC e do INCT-InEAC. Bolsista FAPESP.
 silvestregiane@usp.br

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


292 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

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Caxambu: ANPOCS, 2018.
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Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 293

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Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


294 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto & Giane Silvestre

25. SINHORETTO, Jaqueline. Reforma da Justiça: gerindo conflitos


em uma sociedade rica e violenta. Diálogos sobre Justiça, v. 2, n. 1
2014, p. 49-56. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/
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Janeiro: Revan, 2003.

Recebido: 2 jun. 2020


Aceito: 13 out. 2021

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


Encarceramento e desencarceramento no Brasil... 295

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 264-294.


296 Patrícia TavaresARTIGOS
de Freitas
296

http://doi.org/10.1590/15174522-111847

Mobilidades e etnicidade nos territórios


da costura
Patrícia Tavares de Freitas*

Resumo
Neste artigo, abordamos a inserção boliviana no trabalho de confecção de roupas
nas cidades de São Paulo (Brasil) e Buenos Aires (Argentina) por meio de uma
análise das redes sociais que permitem a inserção e circulação dos migrantes nessa
atividade. À luz dos debates da sociologia urbana sobre as economias migrantes,
indagamos se essa atividade constitui economias étnicas ou territórios circulatórios.
A partir de observação participante multissituada e 50 entrevistas semiestruturadas
com os trabalhadores migrantes, formulamos a hipótese de que se trata de uma
formação híbrida, com forte componente étnico associado a uma intensa circulação
de trabalhadores em espaços multiétnicos. Argumentamos que esse hibridismo
se deve à coexistência de dois tipos de redes sociais de contratação, com lógicas
diferenciadas: uma, desde os locais de origem dos migrantes, na Bolívia e, outra,
nas cidades de destino da migração. Circunstâncias que permitem entrever a
emergência de novos cosmopolitismos nesses territórios da costura. No entanto,
esses novos cosmopolitismos associam-se de maneira ambivalente com os apelos da
etnicidade, delineando um novo campo de embates políticos, interno à comunidade
boliviana, em torno de seus pertencimentos identitários nas cidades de destino.
Palavras-chave: indústria de confecção, migrações internacionais, diáspora boliviana,
economias étnicas, territórios circulatórios.

*
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, São Paulo, SP, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 297

Mobilities and ethnicity in Latin American sewing territories


Abstract
In this article, we address the Bolivian work in the clothing industry in the cities of
São Paulo (Brazil) and Buenos Aires (Argentina) through an analysis of the social
networks that allow the entry and circulation of migrants in this activity. In the light
of urban sociology debate on immigrant economies, we wonder whether these
activities produce ethnic economies or circulatory territories. Based on multi-site
participant observation and 50 interviews with Bolivian workers, we propose
the hypothesis of a hybrid economy, with a strong ethnic component associated
to high mobility of workers in multiethnic contexts. We argue that this hybridity
is due to the formation of two contracting network types with different logics of
operation: one, from the migrant’s place of origin in Bolivia and, the other, in the
migrant’s destination cities. Circumstances that allow us to see the emergence of new
cosmopolitanisms in these sewing territories. However, these new cosmopolitanisms
are ambivalently associated with the appeals of ethnicity, outlining a new field of
political clashes, internal to the Bolivian community, around their identity belonging
in the destination cities.
Keywords: clothing industry, international migrations, Bolivian diaspora, ethnic
economies, circulatory territories.

Introdução

A
o longo de cerca de quatro décadas, desde meados dos anos 1980,
bolivianos e bolivianas têm migrado dos mais diversos locais de
origem na Bolívia para as regiões metropolitanas de São Paulo,
no Brasil, e Buenos Aires, na Argentina, direcionando-se para o trabalho
e a moradia em oficinas de costura. Essas oficinas não são as mesmas
que recebem as costureiras brasileiras e argentinas em seus respectivos
países. Trata-se de oficinas de migrantes, em sua maioria formadas por
compatriotas ou por migrantes de outras nacionalidades. Improvisadas

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


298 Patrícia Tavares de Freitas

nos espaços internos de casas e apartamentos, multiplicam-se por entre


as áreas centrais e periféricas das cidades e regiões metropolitanas de
destino. Nos espaços exíguos e multifuncionais dessas oficinas, vive-se sob
condições precárias de segurança e higiene. Circunstâncias que submetem
os migrantes ao risco constante de incêndio e de proliferação de doenças
tais como a tuberculose.
No debate público, tanto no Brasil quanto na Argentina, essas oficinas
vêm sendo sistematicamente denunciadas ao longo das últimas décadas.
Adicionalmente às condições precárias de instalação e a associação entre
local de trabalho e de moradia, destaca-se os intensos regimes de trabalho,
com jornadas diárias de 12 horas ou mais, e o recebimento de remunerações
inferiores às praticadas no mercado. Situações que, em seu conjunto,
são caracterizadas como análogas à escravidão. No debate acadêmico,
paralelamente às questões relativas à caracterização do vínculo laboral e
das situações de exploração (Leite et al., 2017; Bastia; McGrath, 2011;
Benencia, 2009; Cacciamali; Azevedo, 2006), adquire centralidade, de
maneira direta ou indireta, a questão do papel da etnicidade como variável
explicativa (Arcos; Montero, 2011; Freitas, 2011, 2012, 2014; Buechler,
2004; Côrtes, 2013; Côrtes; Freire da Silva, 2014; Cymbalista; Xavier,
2007; Miranda, 2017; Rizek et al., 2010; Schwartzberg, 2017; Silva, 1997;
Souchaud, 2012; Xavier, 2010).
Conforme questionam Souchaud (2012) e Côrtes e Freire da Silva
(2014): as formas de inserção e as dinâmicas de exploração dos migrantes
na costura seriam consequência das especificidades culturais ou nacionais
dos bolivianos, ou responderiam às necessidades do mercado de trabalho
das sociedades de destino e às dinâmicas globais da indústria de confecção?
Em diálogo com a literatura internacional sobre as transformações
contemporâneas no mundo do trabalho, os autores argumentam em prol
da segunda alternativa, descartando, como variável explicativa, o papel da
etnicidade e das dinâmicas socioespaciais experienciadas pelos migrantes
em seus locais de origem na Bolívia.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 299

Partindo de uma definição menos culturalista de etnicidade, como


uma ideologia de solidariedade (Light; Gold, 2000),1 propomos uma
perspectiva analítica alternativa em diálogo com os estudos que passaram
a focalizar as dinâmicas socioespaciais e laborais presentes na experiência
dos migrantes desde os seus locais de origem na Bolívia (Freitas, 2011,
2012, 2014; Cymbalista; Xavier, 2007; Miranda, 2017; Schwartzberg, 2017;
Xavier, 2010). Essa perspectiva não invalida a centralidade dos processos
econômicos macroestruturais em curso no mundo do trabalho, em especial
na indústria de confecção, mas possibilita um olhar mais matizado para
esse tipo de experiência migratória associada ao trabalho em determinados
nichos econômicos.
Nesse sentido, argumentamos que a compreensão das formas como
a solidariedade étnica é mobilizada na reprodução dessas atividades
econômicas é central para a compreensão da resiliência desse fenômeno,
ao longo de décadas, a despeito de todas as denúncias e tentativas de
deter sua reprodução por parte dos governos nacionais e de organizações
da sociedade civil. Para contribuir nesse sentido, propomos focalizar as
redes sociais que ancoram suas práticas de mobilidade, ou seja, as redes
de contratação para o trabalho nas oficinas de costura, em diálogo com o
debate proposto pela sociologia urbana francesa relativo às mobilidades e
aos dispositivos econômicos dos migrantes (Allis et al., 2018; Cortes; Faret,
2009; Dureau; Hilly, 2009; Ma Mung, 1996; Tarrius, 1993, 2002, 2005).
Partimos, especificamente, de uma caracterização da inserção reiterada
de bolivianos e bolivianas nas oficinas migrantes em São Paulo e Buenos
Aires, como território circulatório (Tarrius, 1993, 2002, 2005; Freitas, 2011,
2012), formando, portanto, o que passamos a denominar de territórios
da costura. Neste artigo, indagamos: qual a natureza dos vínculos que
1
“A etnicidade é um poderoso determinante da cooperação e da solidariedade, porque é
vista como biológica em suas origens, é refletida na estratificação social, molda numerosos
elementos da vida social, é geralmente institucionalizada (em práticas religiosas, na linguagem,
na nacionalidade, na localização residencial, nos mitos e nas políticas governamentais) e
frequentemente constitui a base da identidade pessoal (...) a etnicidade é em si mesma uma
ideologia da solidariedade” (Light; Gold, 2000, p. 108, tradução da autora).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


300 Patrícia Tavares de Freitas

movimentam as redes que compõem esses territórios? Tratar-se-iam de


vínculos fortes associados às relações familiares e de amizade tecidas nas
sociedades de origem e que perfazem as economias étnicas nas sociedades
de destino, ou de vínculos fracos estabelecidos entre conhecidos ou a partir
de meios mais impessoais e que perfazem as economias circulatórias?2
A pesquisa empírica aponta para a hipótese de emergência de uma
forma híbrida de economia migrante, ancorada na coexistência de dois
tipos de redes de contratação: i) as redes que se estabelecem nos locais de
origem, caracterizadas pela centralidade da identidade étnica associada ao
vínculo familiar e, ii) as redes nas cidades de destino, em que as relações
de camaradagem adquirem centralidade e nas quais o componente étnico
associado ao vínculo familiar vai sofrendo deslocamentos sucessivos, podendo
se dissipar em solidariedades baseadas em outros tipos de identificação. A
coexistência dessas duas redes de contratação compõe cenários em que
etnicidade e cosmopolitismo se encontram e se articulam de maneiras diversas
nas experiências desses trabalhadores migrantes nos territórios da costura.
Para desenvolver este argumento, o artigo está dividido em três
seções. Na primeira seção, apresentamos a especificidade do trabalho
migrante na indústria de confecção e o debate teórico sobre as economias
urbanas das comunidades de migrantes. Na segunda seção, apresentamos
a pesquisa empírica tendo em vista abordar as especificidades dos dois
tipos de redes de contratação identificados. Por fim, na última seção, são
tecidas algumas considerações sobre os reflexos dessa composição híbrida
das redes sociais que sustentam os territórios da costura nas dinâmicas
identitárias experienciadas pelos migrantes, a partir da exposição das
proposições de um coletivo de jovens costureiros bolivianos em defesa
de uma identidade ch’ixi.
2
A problematização dos vínculos sociais que sustentam e movimentam as redes sociais
e a centralidade dos vínculos fracos para os processos de difusão de informações foi
inicialmente tematizada, no âmbito da sociologia econômica, por Granovetter (1973). No
debate contemporâneo proposto pelos autores da sociologia urbana francesa supracitados,
essa questão é retomada no âmbito do debate sobre as economias étnicas, conforme
veremos na próxima seção.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 301

As economias migrantes na indústria de confecção em


tempos de globalização
A presença de migrantes internacionais na indústria de confecção dos
grandes centros urbanos da Europa e da América não é recente. Desde
os seus primórdios, durante o século XIX e primeira metade do XX, o
desenvolvimento dessa indústria em cidades como Paris (França), Nova
Iorque (Estados Unidos), São Paulo (Brasil) e Buenos Aires (Argentina)
se confunde com a história de recepção dos migrantes internacionais.
Nessas cidades, formaram-se, ao longo do tempo, os denominados
distritos da costura, caracterizados por concentrar uma série de negócios
ou estruturas direta ou indiretamente associados à atividade da confecção e
da comercialização de roupas. Nesses distritos, em sua maioria multiétnicos,
foram se estabelecendo as primeiras gerações das principais comunidades
de migrantes que se dirigiram para esses centros urbanos ao longo do tempo
(Green, 1998; Truzzi, 2001; Mera, 2012).
Baixos custo inicial e necessidades tecnológicas para o estabelecimento
das oficinas de costura e a possibilidade de montagem dessas em espaços
relativamente reduzidos tornam essa atividade bastante atraente para as
primeiras gerações de migrantes. Paralelamente, os arranjos flexíveis logrados
pelos migrantes nessa atividade vão ao encontro de uma demanda bastante
volátil em termos quantitativos e qualitativos, principalmente, na indústria da
moda (Green, 1998). No debate realizado pela sociologia urbana sobre as
economias étnicas, embora as economias de bazar adquiram proeminência,
a experiência de migrantes na indústria de confecção constituiu, desde os
anos 1980, um de seus referenciais empíricos importantes, principalmente
no contexto norte-americano (Waldinger, 1986; Bailey; Waldinger, 1991;
Bonacich, 1973, 1993; Light; Gold, 2000; Zhou, 2004). Nesses estudos
norte-americanos, adquirem centralidade duas formas principais de
abordagem das economias migrantes: os enclaves étnicos, por um lado, e
as minorias intermediárias, por outro (Zhou, 2004).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


302 Patrícia Tavares de Freitas

A abordagem dos enclaves étnicos propõe a formação de um terceiro


tipo de mercado de trabalho que articula as características dos mercados
primário e secundário (Bailey; Waldinger, 1991).3 Nesse sentido, os autores
argumentam que, apesar de se formarem em ramos de atividades próprios
do setor secundário, como é o caso da indústria de confecção, os enclaves
étnicos podem apresentar dinâmicas virtuosas (com benefícios mútuos para
patrões e empregados) típicas do setor primário. Esse “efeito enclave” é
produzido pela associação entre as solidariedades étnicas dos migrantes
e a sua capacidade de estabelecimento de uma integração (horizontal e/
ou vertical) das atividades econômicas. Circunstâncias capazes de conferir
expressiva autonomia competitiva aos seus negócios, gerando diferenciações
importantes entre a experiência do trabalhador comum e a do trabalhador
imigrante do enclave.
Em nosso próprio estudo de caso sobre as redes de contratação e o
trabalho nas oficinas de costura bolivianas, independentemente de sua
classificação como uma economia de enclave, é possível distinguir com
bastante facilidade as singularidades da experiência dos trabalhadores
migrantes relativamente às costureiras brasileiras e argentinas que trabalham
por conta própria. No entanto, segue controversa a questão dos benefícios
dessa forma de organização da atividade econômica para os trabalhadores
migrantes. Nesse sentido, destaca-se a crítica contundente de Bonacich
a partir de seu conceito de minorias intermediárias (midleman minorities)
(Bonacich, 1973, 1993). Essas minorias intermediárias referem-se mais
diretamente aos donos ou responsáveis pelos negócios étnicos que se
encontram em uma posição intermediária entre os trabalhadores migrantes
e a sociedade local, ou seja, os pequenos empresários imigrantes como,
por exemplo, os responsáveis pelas oficinas de costura (oficinistas), o dono
de um pequeno comércio ou restaurante etc.
3
O conceito de enclave étnico nessa definição refere-se a um debate em voga durante os
anos 1970, nos Estados Unidos, sobre o desenvolvimento, nos grandes centros urbanos, de
uma economia dual, com dois tipos de mercados de trabalho urbano: um setor primário,
relativo ao trabalho qualificado e bem remunerado e, um setor secundário, relativo às
atividades de baixa qualificação e baixa remuneração.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 303

O típico negócio das minorias intermediárias é uma loja familiar baseando-


se fortemente no uso de trabalho familiar não pago. E, se a contratação é
necessária, os membros da família estendida ou de suas regiões de origem
são preferidos e são tratados como parentes, às vezes, vivendo junto com a
família atrás da loja. Os trabalhadores trabalham excessivamente por longas
horas e são leais aos seus empregadores. Em troca, eles são suscetíveis a se
transformar em sócios ou receberem ajuda ou treinamento para montarem os
seus próprios negócios. As firmas dos intermediários são baseadas em trabalho
intensivo, mas com a possibilidade de cortarem os custos drasticamente por
meio de um paternalismo baseado na etnicidade e na poupança (Bonacich,
1973, p. 586, tradução da autora).

De maneira geral, em ambas as perspectivas sobre os empreendimentos


econômicos dos migrantes (seja como enclaves, seja como minorias
intermediárias), os autores propõem explicações funcionalistas baseadas
na consideração de três variáveis explicativas principais, cujos pesos e
articulações variam dependendo do modelo analítico: as estruturas de
oportunidades presentes nas sociedades de destino, as características dos
coletivos de migrantes envolvidos e as estratégias étnicas mobilizadas. No
entanto, enquanto, no caso dos enclaves étnicos, considera-se os efeitos
virtuosos das estratégias étnicas, no caso das minorias intermediárias, destaca-
se os efeitos perversos dos arranjos étnicos ou pluriétnicos que acabam
ofuscando as relações de classe entre os donos dos empreendimentos
econômicos e os migrantes contratados.
No debate contemporâneo da sociologia urbana francesa, assistimos
a emergência de uma abordagem alternativa das economias migrantes,
baseada em uma perspectiva fenomenológica e interacionista do mundo
social (Ma Mung, 2009, 1996; Morokvasic-Muller, 1999; Tarrius, 1993,
2002, 2005). Ao invés de buscar as funções das solidariedades étnicas
para as atividades econômicas dos migrantes nas sociedades de destino,
os autores partem das perspectivas e criações dos próprios migrantes – o
ponto de vista da autonomia, conforme propõe Ma Mung (2009). Nessa
abordagem, as oportunidades, as estratégias e as identidades dos coletivos de
migrantes não são dados de antemão, mas são tecidos a partir dos diálogos

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


304 Patrícia Tavares de Freitas

e negociações entre os próprios migrantes e os vários outros com os quais


passam a conviver ao longo de suas trajetórias migratórias. Dessa forma,
os negócios étnicos encontram-se intimamente associados à experiência
migratória dos coletivos de migrantes. Fazem parte de sua criação migratória
nas sociedades de destino e entre origens e destinos. Nessa abordagem, as
identidades, em especial as identidades étnicas assumidas pelos migrantes,
não são dadas de antemão, mas refletem uma construção social em constante
recomposição pelos sujeitos em suas interações sociais à medida que se
põem em movimento.4
Essas criações migratórias, quando reiteradas em dinâmicas circulares
entre duas ou mais localidades não contíguas, podem assumir a forma
de territórios circulatórios, tal como propõe o sociólogo Alain Tarrius.
Diferentemente das definições clássicas de território, que pressupõem
controle exclusivo de espaços delimitados, os territórios circulatórios
propostos por Tarrius são o produto de processos de autoprodução social ou,
ainda, dos fatos de mobilidade de coletivos minoritários. Trata-se, portanto,
de territórios alternativos, sobrepostos aos territórios do planejamento
urbano, local e nacional, com dinâmicas e formas de funcionamento
próprias, estranhas à legislação e aos regulamentos estatais, e que passam
a articular, de maneiras imprevistas, o lá e o cá dos coletivos que se põem
em movimento. O conceito de território circulatório, de maneira ampla,
faz referência, portanto, a uma territorialidade necessariamente mais fluída,
invisível, constituída por coletivos/grupos que se reconhecem enquanto tais
4
A centralidade da dimensão identitária na análise dessas construções sociais tem como
referência os estudos culturais (Hall, 2011; Silva, 2014). Paralelamente, destaque-se que os
contextos migratórios constituem circunstâncias bastante propícias para a própria construção
de identidades étnicas. É justamente a partir do contato com aquele que se percebe como
outro que surge a necessidade de uma delimitação mais clara do que somos nessa relação.
Alguns entrevistados relataram, por exemplo, que, enquanto na Bolívia, se percebiam
primordialmente como “cholos” ou provenientes de um departamento específico do
país (pacenõs, cochabambinos etc.); foi na migração que passaram a se reconhecer como
“bolivianos”. Circunstâncias semelhantes àquelas amplamente debatidas pela historiografia
acerca da migração italiana para o Brasil do final do século XIX (Fausto, 1991). Provenientes
de um estado nacional ainda em processo de unificação, a identidade italiana torna-se uma
construção do processo migratório.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 305

na medida em que compartilham as mesmas situações de mobilidade e que


se sobrepõem e se opõem às territorialidades constituídas pelo planejamento
técnico e estatal. Nesse sentido, o autor define esses territórios como sendo
a “condição e expressão [espacial] do vínculo social” estabelecido por meio
do compartilhamento de uma memória coletiva das negociações entre a
população concernida (coletivos minoritários) e os que a rodeiam, para a
instituição de uma forma particular de apropriação do espaço.5
Essa perspectiva dos eventos de mobilidade capazes de sedimentar
territorialidades paralelas parte de uma compreensão dos deslocamentos
espaciais como eventos espaço-temporais que possuem, portanto, uma
duração – expressa nos processos, ritmos e sequências – balizada por
momentos de negociação de identidades e fronteiras que se sedimentam
na memória coletiva dos que se põem em movimento. Esses momentos de
negociação organizam os lugares e espaços (suportes dos deslocamentos)
e exprimem a forma das transações. Nesse sentido, diferentemente das
noções de percursos ou rotas migratórias, em que o foco recai na forma e
características dos deslocamentos espaciais performados por migrantes que
não necessariamente se percebem como parte de um processo coletivo
mais amplo, a perspectiva analítica dos territórios circulatórios focaliza
um tipo de experiência social caracterizada pela circulação reiterada, por
espaços não contíguos, de determinados coletivos que se reconhecem
como parte dessa construção social. Nessa circulação reiterada, no caso
dos territórios da costura, em torno de uma mesma atividade econômica,
consolidam-se códigos, normas e linguagens que, enquanto, por um lado,
facilitam a circulação dos que fazem parte desses territórios, por outro,
impõem barreiras mais ou menos porosas aos percebidos como outsiders
5
“No mínimo, diremos que o território é uma construção concomitante à emergência e,
depois, à visibilidade social de um grupo, de uma comunidade ou de outros tipos de coletivo
em que os membros podem utilizar um “nós” identificador. Ele é condição e expressão
do vínculo social. Ele se constitui como momento de uma negociação, entre a população
concernida e os que a rodeiam, que instaura continuidades nas trocas generalizadas. O
território é memória. É marcação espacial da consciência histórica de estar junto” (Tarrius,
2005, p. 34, tradução da autora).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


306 Patrícia Tavares de Freitas

(Elias; Scotson, 2000).6 Dessa forma, o acesso analítico a esses territórios


não ocorre por meio do compêndio dos espaços geográficos percorridos
e da quantificação dos deslocamentos espaciais realizados, mas por meio
das redes sociais que os sustentam e das normas, códigos e representações
identitárias que movimentam essas redes.
Nos territórios circulatórios pesquisados por Tarrius, formados a partir da
circulação de migrantes provenientes dos países que fazem parte da região do
Magreb, no norte do continente africano, em torno de atividades comerciais
nos países do sul da Europa, no lugar das redes sociais baseadas em vínculos
fortes, destacou-se a emergência de uma ética social intermediária entre
as populações migrantes7. Para Tarrius, essa ética intermediária, tecida nos
momentos de negociação entre os próprios migrantes e em suas relações
com outros coletivos de migrantes e com as populações locais, para sua
circulação e realização das atividades econômicas, possibilita a emergência
de novos cosmopolitismos, em que as marcações étnicas e aquelas relativas
às redes de sociabilidade primárias perdem a centralidade nas negociações
que permitem a reprodução desses territórios. As referências, costumes e
tradições dos locais de origem não se dissipam necessariamente, mas passam
a conviver com essa ética social intermediária. No lugar da experiência de
“não ser nem daqui, nem de lá”, proposta nos debates sobre os processos
de integração dos migrantes, nesses territórios estudados pelo autor, os
migrantes passam a experimentar “ser daqui e de lá ao mesmo tempo”.

Primeiro aspecto do fenômeno: a aparição de novos tipos de territórios que


cortam doravante os Estados-nação de maneira transversal. É o que chamamos
precisamente de “redes”. Em sua espessura vivida e concreta, essas redes se
6
Essas distinções entre o “nós” e os “outros”, que encetam relações de poder, abordadas por
Norbert Elias em um clássico da literatura sociológica, são fundamentais na definição dos
territórios circulatórios, diferenciando esse conceito daqueles mais puramente geográficos
no debate sobre a experiência migratória contemporânea.
7
Conforme propõe Granovetter (1973), a força de um vínculo pode ser medida a partir da
combinação entre o tempo despendido na relação interpessoal, a intensidade emocional, a
intimidade e a reciprocidade. Nesse sentido, consideramos que vínculos entre familiares e
amigos íntimos cujos laços se estabeleceram nos locais de origem podem ser considerados
vínculos fortes.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 307

manifestam primeiramente pelo seu caráter civilizador: os acordos de palavra


trocados entre as pessoas promovem uma diminuição das diferenças étnicas e
culturais, abrindo, assim, perspectivas de desenvolvimento inéditas. Os novos
cosmopolitismos emergem: as hierarquias identitárias locais não fazem mais
nenhum sentido para essas famílias que estabelecem fortes vínculos sociais.
Mais precisamente, as precedências identitárias se medem, doravante, em
termos de um “saber circular”. Saber atravessar universos regidos por regras
e normas contrastantes, esse é o critério. O lugar de origem permanece
único, mas o antigo percurso da alteridade à integração – com o longo tempo
em que o indivíduo não era nem daqui e nem de lá – tornou-se obsoleto:
desenvolvem-se preferencialmente capacidades mestiças, frequentemente
momentâneas, que possibilitam numerosas entradas e saídas (Tarrius, 2002,
p. 17-18, tradução da autora).

Nesses territórios, o desafio é justamente o de ser capaz de transitar


por entre espaços que constituem universos de normas diferenciados.
O desenvolvimento das competências necessárias para essas travessias,
aprendido à medida que os migrantes se põem em movimento, fomenta a
formação de novas identidades, mais fluidas, capazes de permitir, por meio
dos mais variados tipos de encontros, a realização de atividades econômicas
informais e/ou ilegais, bem como numerosas entradas e saídas. No interior
desses territórios, a experiência identitária deixa de ser uma experiência
unívoca e coesa e se fraciona em múltiplos atributos.8
A partir desse debate, indagamos se as redes sociais que sustentam os
territórios da costura em foco neste artigo se reproduzem por meio de vínculos
fortes associados às solidariedades étnicas tecidas nas redes de sociabilidade
primárias ou se dependem de vínculos mais fracos associados a uma ética
social intermediária tal como encontrado nos estudos empíricos de Tarrius.
Nas próximas seções, apresentamos a pesquisa empírica sobre os territórios
da costura que embasa a hipótese de se tratar de uma formação híbrida.
8
“(...) nessas reconfigurações de posição e que exprimem as competências para atravessar
universos de normas diferenciados: nessas novas proximidades, passageiras e parciais em sua
gênese, que permitem aos indivíduos ultrapassar, por exemplo, as atribuições étnicas, forjar
sólidas alianças em torno de uma única troca de palavras, provenientes de uma diversidade
de crenças, de convicções, de costumes, a identidade se fraciona em múltiplos atributos”
(Tarrius, 2005, p. 29, tradução da autora).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


308 Patrícia Tavares de Freitas

O papel do étnico no trabalho boliviano na costura: um


olhar a partir das redes de contratação9

Donde yo vivía era un edificio de cinco ó seis pisos. En ahí vivían todos bolivianos.
En cada planta vivían, puros talleres, puro bolivianos vivían. Cada planta una
oficina. Parecía ratonera. Ratonera parecía porque cuando salíamos, puros
bolivianos salíamos de ahí. Harta gente. Parece que más de 120 vivíamos ahí,
puro bolivianos [Elias].

Con coreanos y con chinos, con argentinos, con paraguayos, trabajé. (...)
Mayormente con gente ajena se trabaja porque gente boliviana no te paga
bien. De esa manera, algunos bolivianos dicen: ‘con bolivianos no hay que
trabajar porque nos esclavizan, más trabajo y poco pagan’. (...). Entre paisanos
mismos nos esclavizamos allá. Por ejemplo, todos los paceños son allá, son
abusivos. Cochabambino, orureño más o menos. Pero paceño ni te da ni agua.
Ni refresco no te da [Teodomiro].
9
Essa seção é baseada em pesquisa empírica realizada durante o doutorado, entre 2009 e
2014 com financiamento da FAPESP. A pesquisa foi composta por: i) etnografia multissituada
(São Paulo, no Brasil, Buenos Aires e Córdoba, na Argentina e nas cidades de Cochabamba,
La Paz, El Alto e no município rural de Escoma, na Bolívia) e; ii) 50 entrevistas com bolivianos
e bolivianas que, em algum momento de suas vidas, se inseriram na atividade da costura
em São Paulo e/ou Buenos Aires. Sendo 33 realizadas na Bolívia e 17 em São Paulo. Em São
Paulo, as entrevistas foram realizadas nos locais de sociabilidade dos bolivianos e bolivianas
aos finais de semana depois de longos períodos de observação participante e conversas
informais com os comerciantes e líderes comunitários. Na Bolívia, foi utilizada a metodologia
de “bola de neve”, a partir de contatos iniciais com três informantes, empregadas domésticas
com parentes na costura em São Paulo e Buenos Aires, indicadas pelos pesquisadores
que me receberam em Cochabamba e em La Paz. Nas entrevistas, foram utilizados dois
instrumentos de pesquisa: i) roteiro semi-estruturado, sobre os percursos residenciais e
laborais dos entrevistados antes e depois de sua inserção na costura e; ii) formulário sobre
todas as oficinas de costura nas quais o entrevistado trabalhou (no Brasil e na Argentina)
– forma de entrada, características dos oficinistas e dos outros costureiros, tipo de peça
costurada, tamanho da oficina (em termos de quantidade e qualidade das máquinas), tempo
de permanência, acordo de trabalho, motivos da saída etc. Para organizar essas informações,
montamos um banco de dados, por meio do programa PSPP, tendo como unidade a “oficina
de costura”. A maior parte das informações utilizadas neste artigo referem-se a esse banco
de dados e aos trechos das entrevistas. Note-se que a quantificação das informações não
visa à insinuação de generalizações sobre os dados, mas apenas sua sumarização. Os nomes
dos entrevistados foram trocados para preservar a sua privacidade. Durante o trabalho
de campo na Bolívia, foi realizado um pequeno documentário disponível em: (1) Projeto
Costura – YouTube, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YCVpstgJTu4&t=2s.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 309

Elias e Teodomiro são bolivianos moradores de El Alto, no departamento


de La Paz, na Bolívia. No momento das entrevistas, ambas realizadas em El
Alto, Elias tinha 34 anos, era casado, com 4 filhos e possuía uma oficina de
confecção de sapatos em sua casa e Teodomiro tinha 52 anos, era solteiro,
com 1 filho e possuía uma oficina de costura de roupas domiciliar. Nos
trechos das entrevistas citados acima, Elias se refere ao seu primeiro e único
trabalho na costura em São Paulo, no Brasil, e Teodomiro se refere aos
oficinistas com os quais trabalhou em sua ampla experiência na costura em
Buenos Aires, na Argentina. Embora, em ambos os casos, a dimensão étnica
(nacional/local) seja central na caracterização da experiência na costura
nas metrópoles dos países vizinhos, o caráter multiétnico e a mobilidade
entrevistos na descrição de Teodomiro contrastam com a descrição de Elias,
que nos remete aos guetos e enclaves étnicos.
Ambas as percepções revelam nuances importantes e concomitantemente
presentes no trabalho dos bolivianos e bolivianas nos territórios da costura.
Para abordar essas ambivalências, propomos uma análise das redes de
contratação que permitem o acesso a esses territórios e o contínuo
funcionamento de suas oficinas de costura. Nessas redes, estão em jogo
negociações bastante complexas. Em linhas gerais, contratar para o trabalho
na costura é propor uma mudança de local de moradia (a oficina de costura
é o local de moradia). Quando a contratação ocorre na Bolívia, antes da
migração, essas redes se confundem com as redes migratórias e, quando
a contratação ocorre nas cidades de acolhida, essas redes se tornam o
principal meio de circulação dos migrantes no espaço urbano (Freitas, 2014).
Inicialmente, essa associação entre local de trabalho e de moradia
inscrita nos territórios da costura foi considerada um importante indício
de uma tendência à invisibilidade e ao enclausuramento dos migrantes
(Cymbalista; Xavier, 2007). Considerava-se que, após a migração, os
bolivianos e bolivianas seriam confinados, por longos períodos, nas mesmas
oficinas de costura, em regimes de trabalho semelhantes ao trabalho escravo,
sem a possibilidade de sair daquela situação (seja por medo, seja por serem
mantidos à força).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


310 Patrícia Tavares de Freitas

No entanto, contrariamente ao esperado, durante a pesquisa empírica,


encontramos uma importante circulação desses migrantes, tanto entre
oficinas diferentes nas cidades de São Paulo e Buenos Aires, quanto entre
a Bolívia e essas duas cidades. Os 50 entrevistados relataram ter trabalhado
em 182 oficinas de costura (137 em São Paulo e 45 em Buenos Aires),
perfazendo uma média de quase quatro oficinas por entrevistado. Desses,
26 entrevistados relataram ter voltado para a Bolívia depois de uma primeira
experiência e, após um período curto, decidiram retornar ao trabalho na
costura, em São Paulo ou Buenos Aires, em outra oficina de costura. E, cerca
de um terço dos entrevistados, trabalhou na costura tanto em São Paulo,
quanto em Buenos Aires. Os dados encontrados não negam a existência de
experiências de confinamento, com pessoas que seguem décadas vivendo
apenas junto aos compatriotas com quem migraram, tampouco a existência
de uma superexploração do trabalho, mas indicam um fenômeno mais
complexo, em que essas experiências de confinamento se articulam a uma
intensa circulação no interior dos territórios da costura.
Para a compreensão dessas dinâmicas, consideramos importante a
diferenciação entre dois tipos de redes sociais associadas ao trabalho nos
territórios da costura, mobilizadas pelos migrantes para a sua inserção nas
oficinas: as redes que se constituem nas cidades de origem, na Bolívia, a
partir das quais foram mobilizadas 85 oficinas e as redes que se constituem
nas cidades de destino (São Paulo ou Buenos Aires), a partir das quais
foram mobilizadas 97 oficinas. Para a análise dessas redes de contratação,
realizamos uma classificação do tipo de vínculo estabelecido entre os
bolivianos e os mobilizadores dessas redes. Esses vínculos podem ser do
tipo: i) familiar (da família nuclear ou estendida); ii) de amizade (amigos
próximos) e; iii) impessoal (por meio de anúncios ou conhecidos).10 A partir
do cruzamento dessas informações, constatamos que as redes de contratação
desde as origens caracterizaram-se por serem predominantemente familiares
(vínculos fortes), enquanto as redes de contratação nas cidades de destino
10
Os itens (i) e (ii) relacionam-se aos vínculos fortes e o item (iii) aos vínculos fracos.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 311

caracterizaram-se pela predominância dos vínculos impessoais entre


compatriotas (vínculos fracos).
Nos próximos dois itens desta seção, abordaremos as dinâmicas de
funcionamento dessas redes sociais de contratação a partir das narrativas
dos migrantes entrevistados.

A entrada na costura desde os locais de origem: o direito


de piso e as solidariedades étnicas
As redes de contratação que se estabeleceram desde os locais de
origem, na Bolívia, foram responsáveis, em grande medida, pela entrada
inicial dos bolivianos e bolivianas entrevistados nas oficinas de costura, nas
cidades de São Paulo e Buenos Aires. A partir da mobilização dessas redes,
conforme pudemos constatar, é possível obter recursos para a realização
total ou parcial do percurso migratório. Nesse sentido, para 40 dos 50
entrevistados, a migração para a inserção na primeira oficina de costura foi
financiada, parcial ou completamente, com recursos mobilizados por essas
redes. Paralelamente, as redes dos locais de origem podem ser mobilizadas
nas reinserções dos migrantes no trabalho na costura naquelas cidades.
Dessa forma, além dos primeiros 50 percursos migratórios para o trabalho
em oficinas de costura realizados pelos entrevistados, parte deles voltou
para a Bolívia e, depois, buscou se inserir novamente nessa atividade.
Totalizando 35 reinserções por meio da mobilização de novas redes de
contratação na Bolívia.11
Os acordos de palavra que selam as negociações de entrada nos
territórios da costura desde a Bolívia incluem: a definição das formas
de pagamento do empréstimo concedido para a realização do percurso
migratório, o salário a ser recebido pelos costureiros e o compromisso, por
parte do costureiro, de permanência mínima (de um a dois anos) na oficina
11
Nessas reinserções não foram contabilizados os retornos dos bolivianos e bolivianas para
mesmas oficinas de costura depois de pequenas ou mesmo longas viagens para a Bolívia
porque, nesses casos, não houve nova mobilização das redes de contratação. Enquanto nos
primeiros acessos os vínculos fortes eram predominantes, nas reinserções, os vínculos fracos
foram predominantes.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


312 Patrícia Tavares de Freitas

para a qual foi contratado. Os compromissos de permanência mínima e de


lealdade ao oficinista que financiou ou proporcionou a entrada nos territórios
da costura repõem, em outros termos, práticas andinas de reciprocidade
diferida, denominadas no debate boliviano de derecho de piso.12
As práticas associadas ao derecho de piso organizam, desde uma
perspectiva normativa, na Bolívia, as relações de reciprocidade que se
estabelecem no interior de uma mesma família e entre famílias que possuem
laços de amizade duradouros, incluindo-se as relações entre as famílias de
ascendência indígena e as famílias de ascendência hispânica. Uma dessas
práticas comumente relatadas pelos entrevistados relaciona-se com as
migrações internas, em geral, das zonas rurais para os centros urbanos ou
de pequenas municipalidades ou zonas mineiras para os grandes centros
urbanos do país.13 A família que recebe o migrante interno em sua casa é
retribuída com trabalho não pago – seja na limpeza da casa, no cuidado de
crianças, no trabalho no empreendimento econômico da família receptora
etc. Conforme argumenta a antropóloga boliviana Sylvia Cusicansqui, o
derecho de piso é um mecanismo geracional de reciprocidade diferida que
permite produzir uma coesão comunitária.

El joven cuando empieza a caminar por la vida tiene que comenzar por abajo.
Y en estas culturas, q’ara es el que hereda una riqueza que no ha producido
y por eso tiene un piso de entrada a la sociedad que está cimentado por el
trabajo de otros que han sido explotados. Ese primer escalón del piso siempre
involucra un alto nivel de sacrificio. (…) Diferido en el tiempo, se trata de un
circuito de devolución: este fue explotado, ahora le toca explotar (Cusicansqui
apud Colectivo Simbiosis; Colectivo Situaciones, 2011, p. 19, 21-23).
12
Miranda (2017) também aborda o derecho de piso como uma categoria importante para
a compreensão das dinâmicas de sociabilidade presentes entre os migrantes bolivianos nas
oficinas de costura da cidade de São Paulo. A questão principal para o autor é a produção
do consentimento que permite a reprodução de relações de intensa exploração laboral no
interior das oficinas de costura migrantes. Nesse sentido, o autor argumenta que o derecho
de piso conjuntamente com o sistema de cama caliente (em que se vive e trabalha em
um mesmo lugar) e a prática de adiantamento do salário por meio dos vales constituem
os pilares institucionais que produzem esse consentimento estabelecendo os “limites da
escravidão”, o que é ou não aceitável nessas relações de trabalho nas oficinas de costura.
13
Quarenta entrevistados (de um total de 50) migraram internamente antes da migração
internacional para o trabalho na costura.

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Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 313

Da perspectiva estritamente econômica, a transposição para os


contextos migratórios dessa estrutura normativa que orienta as relações
de reciprocidade na Bolívia aporta diferenciais competitivos à inserção dos
oficinistas e costureiros bolivianos e bolivianas nos territórios da costura.
Para os oficinistas, trata-se de buscar garantir a contratação de uma força de
trabalho mais barata e mais leal do que aquela que poderiam conseguir se
contratassem trabalhadores diretamente nos países de acolhida. Quando o
trabalhador já se encontra no país de acolhida tem muito mais informações
para negociar o valor e as condições de trabalho. Para os trabalhadores, a
própria possibilidade de realização do percurso migratório e da instalação
em outro país depende, na maioria das vezes, desse auxílio inicial. Nessas
circunstâncias, a legitimidade do derecho de piso se ancora, justamente, em
uma supervalorização dessa oportunidade migratória aberta pelo oficinista,
conforme podemos vislumbrar no depoimento de Eliete, entrevistada em
La Paz aos 59 anos, após alguns dias do retorno de São Paulo:

Porque yo la he pasado, yo he vivido eso. Yo pensé yéndome allá a Brasil, el


primer mes ya, como todo se sufre ¿no? (…) Yo decía sí, estoy pagando derecho
de piso porque venir a una ciudad tan grande y de la noche a la mañana tener
un buen trabajo es difícil. (…) El derecho de piso es que, bueno, para mi modo
de entender, es lo que hemos sufrido, lo hemos pagado, cómo te puedo decir,
con el sufrimiento. Hemos pagado a que nos acepten a nosotros como somos,
así como obreros o como trabajadores, hemos pagado sufriendo. No hemos ido,
como para decirte, ir al Brasil decir ya trabajo, yo soy, por decirte, modista, ya,
listo, ven. No, nos han hecho sufrir, nos han hecho pedir agua como se dice.
Yo a eso lo llamo derecho de piso. Es como, quizás en otras ciudades son así
¿no? No sé, pero ha sido mi primera experiencia [Eliete]

Embora as relações de reciprocidade baseadas no derecho de piso não


se restrinjam às redes familiares, foi justamente no interior dessas redes que
encontramos as situações mais dramáticas de engano e exploração laboral
nos contextos migratórios (Freitas, 2014). Em alguns casos, até mesmo cobrar
a efetivação do acordo inicial pode ser interpretado como um insulto. E, a
depender das circunstâncias, mesmo se sentindo explorados, os costureiros

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


314 Patrícia Tavares de Freitas

preferem permanecer em silêncio nas oficinas de seus familiares a romper


relações para buscar novas oportunidades de trabalho. No interior dessas
redes de contratação, romper relações em São Paulo ou Buenos Aires pode
significar romper relações nas cidades de origem na Bolívia. Esse é o caso,
por exemplo, de Elias (apresentado no início desta seção).

Había posibilidades [de ir trabalhar em outra oficina]. Mis amigos me decían:


‘Elías vamos a trabajar a otro taller, ahí vas a ganar más’. Pero yo también no
podía. Como he ido a su taller de mi prima no podía salirme e irme a otro
taller. Iba a quedar mal. Ese era mi pensamiento, pero sentía que me estaban
explotando [Elias].

Apesar das inúmeras situações de exploração e engano narradas pelos


migrantes, ao longo do trabalho de campo nos deparamos também com
narrativas de trajetórias bem-sucedidas, em que os acordos realizados na
Bolívia são cumpridos. Em alguns casos, inclusive, o costureiro é auxiliado
pelo oficinista que o contratou desde a Bolívia, seja para a montagem de
uma oficina de costura própria na cidade de destino, seja para a realização
de outros objetivos que o levaram a realizar a migração, como, por exemplo,
a quitação de uma dívida ou a compra de um terreno na Bolívia para a
construção de uma casa. A trajetória de Pablo é um caso, entre outros, em
que esse acordo de reciprocidade diferida, na maioria das vezes tácito,
funcionou. Ele foi entrevistado, aos 35 anos, em Cochabamba, onde residia
com sua esposa e dois filhos e mantinha uma oficina de costura.

El 96! Había un aviso en la radio que se buscaba costureros para el Brasil, sin
pensar dos veces, “me voy” (...) yo me he ido con una persona buena y he
trabajado bien y bien me pagaba. Y, luego, he tenido mi oficina en allá [São
Paulo] y también me ha ayudado para prestarme para las maquinas porque, al
principio, no tenía. Ellos [os donos da primeira oficina] me dieron un lugar para
tres meses nomas y me ayudaron. Y yo no podía creer, pues ellos se prestaron
dineros de los bancos. Y, entonces, ellos me han ayudado y bien, ahora es un
buen amigo, es como un pariente [Pablo].

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Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 315

A existência dessas formas de solidariedade entre costureiros e oficinistas


é central para compreendermos a resiliência desses territórios da costura. No
entanto, conforme vimos, nessas redes sociais em que se mesclam o auxílio
para a migração e a contratação para o trabalho na costura predominam
dinâmicas ambivalentes. De todo modo, na maioria dos casos, os acordos e
combinados de acesso a essas redes desde a Bolívia são, mais cedo ou mais
tarde, rompidos. E esses rompimentos costumam ser narrados com bastante
dramaticidade pelos migrantes, mesmo quando o oficinista não é uma pessoa
que faz parte das suas redes de sociabilidade primárias. Essa dramaticidade
se baseia no pressuposto moral de que havia uma relação de auxílio mútuo
entre compatriotas de gerações diferentes (os costureiros costumam ser
muito mais jovens que o oficinista). A diferença geracional é, inclusive,
bastante citada pelos oficinistas para legitimar as suas arbitrariedades em
relação ao combinado inicial. Esse é o caso da narrativa de João que, no
momento da entrevista, tinha 25 anos, era solteiro e possuía uma pequena
oficina de costura em sua casa, na periferia sul de Cochabamba.

Era bien difícil salir, en la discusión, adentro nos hemos entrado, solamente
en el pasillo nomas, y ya no nos quería soltar. Yo le dije ‘págame lo que me
debes porque ajustaremos’. Pero él se ha enojado grave ‘¿Cómo me van a
dejar? Yo les he traído y todo eso’. Pero el dinero se lo hemos devuelto, no es
que no se lo hemos devuelto (…) al final nos fuimos y no le hemos visto más
a esa persona [João].

Os rompimentos inauguram, para os que decidem permanecer nas


cidades de destino, um novo momento em sua experiência no interior dos
territórios da costura, conforme veremos no próximo item.

O saber circular na viração das cidades de destino


As rupturas com as redes sociais que possibilitaram o percurso migratório
e, ao mesmo tempo, a inserção inicial nos territórios da costura, lançam
os migrantes, em um primeiro momento, à busca de novos acessos – seja
como costureiros, seja como trabalhadores dos estabelecimentos que

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


316 Patrícia Tavares de Freitas

compõem esses territórios14. Essa busca constitui um segundo momento


de um processo de aprendizagem e avaliação, iniciado com o percurso
migratório, sobre as condições de vida e de trabalho nos territórios da
costura, em que se mesclam as percepções dos próprios migrantes com
as dos vários outros com os quais passam a conviver a partir do momento
em que se colocam em movimento.
O saber circular resultante desse processo interativo de aprendizagem
costuma envolver, dentro dos limites dados por um contexto de precariedade
e de superexploração, avaliações e percepções sobre as condições de
trabalho consideradas justas ou injustas, aceitáveis ou inaceitáveis, bem como
uma racionalização das próprias relações de trabalho. Podemos vislumbrar
esse saber circular, por exemplo, na narrativa de Ronald, morador de uma
oficina de costura na cidade de São Paulo, que foi entrevistado aos 22 anos,
na cidade de Cochabamba, quando passava férias na Bolívia. A sua primeira
inserção nos territórios da costura havia sido em Buenos Aires, aos 16 anos,
na oficina de sua prima. Após essa primeira experiência em que se sentiu
bastante explorado, retornou à Bolívia e, depois de alguns meses, decidiu
tentar a vida na costura em São Paulo. O oficinista com quem entrou em
contato desde a Bolívia era um amigo de seu tio e o combinado era o de
que ele lhe adiantaria parte do dinheiro necessário para a migração e,
em troca, Ronald permaneceria naquela oficina por um ano. Entretanto,
logo no primeiro mês, conforme relata, começou a se sentir explorado.
E, diferentemente de sua reação quanto à sua prima na Argentina – que
também não o pagava corretamente e que o fazia realizar uma série de
tarefas extras – Ronald reclamou. Não sendo atendido, simplesmente saiu
da oficina após pagar o que devia da passagem.
14
Os espaços urbanos que compõem os territórios da costura nas cidades de destino (nos
quais se desenvolvem atividades ligadas, direta ou indiretamente, às oficinas de costura
migrantes) incluem as lojas de conserto, de compra e venda de máquinas de costura e
seus insumos, os locais de sociabilidade da comunidade boliviana que trabalha na costura,
aos finais de semana e em suas festas, os restaurantes, bares, mercados, salões de beleza
e outros estabelecimentos dos próprios migrantes, que prestam serviços “de boliviano para
boliviano”, bem como os pontos de chegada e de partida de ônibus clandestinos que
fazem cotidianamente o percurso entre as cidades de destino (no Brasil e na Argentina) e as
periferias urbanas do altiplano andino (Freitas, 2011).

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Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 317

Bueno, el día que llego mi mes, yo quería cobrar las prendas que he trabajado, mis
horas extras. Y me dijo “no, no, no te voy a pagar porque estábamos atrasados”.
Y le dije (…) “no es la primera vez que vengo a trabajar en la costura, ni la
primera vez que voy a otro país a trabajar. Yo sé trabajar, fui a Argentina, sé
cómo es el trabajo”. De ahí dije “yo no puedo estar así, si me pagas bien, me
voy a quedar, si no, ¡no!” Bueno “por su capricho que no te voy a pagar” me
dijo. Bueno, esperé el fin de semana y dije “me voy” [Ronald, grifos da autora].

Na maioria das vezes, os encontros que franquearão aos migrantes os


novos acessos aos territórios da costura ocorrem a partir de sua circulação
na cidade. Os vínculos por meio dos quais as informações sobre as novas
oportunidades de trabalho circulam caracterizam-se por serem, em sua
maioria, vínculos fracos – entre pessoas que acabaram de se conhecer
ou que, mesmo que já se conhecessem de antemão, não se encontram,
necessariamente, atadas a relações mais densas. Essa plasticidade dos vínculos
se reflete, inclusive, nos sentidos dados às entradas e saídas das oficinas
de costura a partir de então: as entradas são fortuitas e as saídas perdem a
dramaticidade das primeiras rupturas, embora se refiram invariavelmente a
uma mudança de residência. Nos trechos abaixo, das entrevistas realizadas
com Javier e Teodomiro encontramos narrativas que nos permitem entrever,
de maneira concreta, como ocorre essa circulação de informações sobre
as oportunidades de trabalho. Javier, entrevistado aos 27 anos, em sua
casa, em Cochabamba, refere-se à experiência nos territórios da costura,
na cidade de São Paulo, entre 2009 e 2012 e Teodomiro, apresentado
no início da segunda seção, à experiência em Buenos Aires, marcada por
inúmeras idas e vindas, entre 1992 e 2008.

A mi amigo lo conocí caminando, siempre con los bolivianos te dicen “hola,


¿Como estas?” No caminan todos callados. Él era paceño y le gustaba lo que
me gusta a mí. Nos pusimos a hablar de grupos [de cumbia boliviana] (…).
Entonces ahí me dijo “donde yo estoy trabajando necesitan, piensa-lo bien”.
Entonces me fui donde él estaba trabajando que era en Brás. (…) Era más
cómodo (…) Como éramos desconocidos me he tenido que acostumbrar a
las costumbres que ellos tenían de La Paz [Javier]

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318 Patrícia Tavares de Freitas

Por mi propia cuenta, así como por amigos también. Me comentaron que en
otro taller pagan bien. “Porque no te vas ahí”, me dicen. O si no, vamos a
Avenida Collon, donde buscamos trabajo, todo boliviano busca en esa avenida,
entonces también fui allí, a ese lugar. Entonces de esa manera encontrava
trabajo [Teodomiro]

Embora, na maioria das vezes, os novos vínculos que passam a ser


tecidos nos territórios da costura sejam estabelecidos entre compatriotas,
as relações desses migrantes com o trabalho e com as suas identidades
nacionais pode sofrer deslocamentos importantes na viração urbana15.
Diferentemente da experiência na Bolívia, em que mesmo com as migrações
internas, em geral de curta distância, convivia-se predominantemente
com compatriotas dos mesmos departamentos, nos territórios da costura,
quando iniciam sua busca por novos acessos nas cidades de destino, os
bolivianos e bolivianas passam a conviver com compatriotas provenientes
de outros departamentos, gerando, em muitos, estranhamentos sempre
comentados nas entrevistas.
Nesse sentido, Teodomiro desenvolve, ao longo de sua experiência
em Buenos Aires, um sistema de classificação dos oficinistas bolivianos de
acordo com os seus departamentos de origem na Bolívia. Nessa classificação,
os paceños, provenientes de seu próprio departamento de origem (La Paz),
são avaliados como os mais mesquinhos e exploradores, conforme vimos
no primeiro trecho de sua narrativa, transcrito na abertura da segunda
seção. Javier, por sua vez, pondera, no trecho supracitado, depois de
reconhecer a identidade nacional comum que o aproximou de seu novo
amigo – seja pelo cumprimento que os identificou, seja pelo gosto musical
– que ambos possuíam costumes diferentes, em relação aos quais teve de
se adaptar: ele, de Cochabamba, e seu novo amigo e os compatriotas da
nova oficina, de La Paz.
15
Utiliza-se o termo viração em referência à uma experiência laboral dos trabalhadores de
baixa qualificação, marcada pela informalidade, precariedade e flexibilidade, mobilizada
no debate brasileiro sobre as transformações do mundo do trabalho contemporâneo (Abílio,
2019; Telles, 2006).

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Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 319

De maneira contraintuitiva, ao invés de gerar dificuldades na celebração


informal de novos acordos de trabalho, esses estranhamentos parecem
contribuir para a sua fluidez. Durante o trabalho de campo, era recorrente
a percepção dos entrevistados de que quanto mais distante fosse o oficinista
(em termos relacionais e de origens) melhores seriam as condições de
trabalho. Teodomiro, no primeiro trecho supracitado, faz essa ponderação
em relação à nacionalidade dos oficinistas, dizendo preferir trabalhar com
oficinistas de outras nacionalidades ou, ao menos, de outros departamentos
– “mayormente con gente ajena se trabaja porque gente boliviana no te
paga bien”. E no trecho abaixo, relativo à narrativa de Ronald, cuja primeira
experiência foi na oficina de sua tia, a expressão “gente ajena” refere-se a
pessoas que não façam parte de suas relações de sociabilidade primárias.

Es mucho mejor trabajar con gente ajena que familiar porque hay familias
que te quieren humillar o que te tratan mal y, a veces por eso, todo tienes que
aguantarte, todo, no sabes cómo reaccionar y vos mismo te estas oprimiendo.
Ahí, si es otro, dices todo. Pero con familiar, tienes que callarte, porque si vas
a querer un apoyo de esa persona y te va a decir “si tu me has hecho así no es
cierto”. Por eso es preferible trabajar con gente ajena [Ronald, grifos da autora].

A busca por relações de trabalho e de sociabilidade com “gente ajena”


expressa um processo mais amplo de recomposição, na viração das cidades
de destino, das redes sociais que vão dar sustentação à vida cotidiana dos
migrantes. Essas novas redes sociais, entre compatriotas, que se constituem
a partir dos vínculos fracos podem encetar, ao longo do tempo, vínculos
fortes expressos na formação de novas amizades, novos amores e novas
famílias. Paralelamente, essas novas experiências reconfiguram, em outros
termos, os vínculos identitários: de uma vinculação estrita com locais de
origem específicos a uma vinculação com a nacionalidade boliviana de
maneira geral, depois, com a língua espanhola de outros grupos de migrantes,
com migrantes que falam outras línguas e, para os que permanecem mais
tempo nessa atividade, com os nacionais (brasileiros ou argentinos) com os
quais passam a se encontrar no cotidiano urbano. No entanto, essas novas

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


320 Patrícia Tavares de Freitas

vinculações não significam, nas narrativas que pudemos acompanhar, um


distanciamento da identificação étnica original, mas uma recomposição. Na
próxima seção, aborda-se brevemente uma tradução política desse processo.

Ser daqui e de lá ao mesmo tempo: as recomposições das


redes sociais nos territórios da costura

Quienes explotan el sistema del taller textil quieren recrear acá una pequeña
Bolivia, para evitar que te mezcles, que conozcas otras músicas, otra gente. Las
radios que se escuchan en los talleres, las organizaciones que reivindican “lo
boliviano” y los talleristas (y los discursos argentinos que promueven este modo
de plantear las cosas) y que se justifican con la tradición andina te confinan a
una identidad prefabricada de lo boliviano. (…). Para muchos de nosotros es
más fuerte ser habitante de una villa o de un barrio como Villa Celina, donde
crecimos y nos criamos desde chicos, que ser bolivianos. A eso le llamamos
cultura ch’ixi, a tener esa capacidad de poder mezclarte, sin diluir lo que
somos y lo que queremos (…) No hablamos como bolivianos/as. Tampoco
como argentinos/as. (…) Estamos hablando desde una experiencia. (…) Más
que nacionalidades, tenemos trayectorias. Algunas incluyen atravesar una
frontera (Colectivo Simbiosis Cultural; Colectivo Situaciones, 2011, p. 12-13).

Neste trecho, de um livro produzido a partir da parceria de dois


coletivos culturais de jovens bolivianos que possuem, entre seus integrantes,
costureiros e costureiras que vivem em Buenos Aires, vislumbramos uma
tradução, no debate político, dos deslocamentos identitários vividos
durante a viração urbana nos territórios da costura. No lugar do discurso
da bolivianidade promovido, entre outros atores, pelos oficinistas que
buscam legitimar relações de reciprocidade baseadas nos princípios morais
do derecho de piso, esses jovens reivindicam uma cultura ou identidade
ch’ixi em que consideram ser possível ser daqui e de lá ao mesmo tempo.
Para esses jovens, não se trata de negar a cultura boliviana e suas origens
indígenas em nome de uma assimilação ou, ainda, de uma integração às
estruturas socioculturais e laborais dos países de recepção. Inclusive, para
uma parte deles, não se trata tampouco de sair dos territórios da costura.

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Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 321

Trata-se de propor um deslocamento quanto às posições de autoridade


inscritas no dispositivo étnico que sustenta um determinado tipo de relações
de exploração no interior das oficinas de costura. Relações de exploração
que, em nome das solidariedades étnicas, por um lado, e do medo do
outro (das autoridades nacionais e dos outros grupos migrantes), por outro,
confinam os costureiros e costureiras em dinâmicas de subserviência que
extrapolam os limites da racionalidade capitalista.
Esse deslocamento, presente no Manifesto Ch’ixi e na prática política
cotidiana desses jovens, é um dos resultados possíveis do saber circular
aprendido a partir de sua experiência nos territórios da costura. Inicialmente,
conforme relatam ao longo do texto supracitado, não percebiam a
moralidade perversa inscrita nas ideologias da bolivianidade difundidas a
partir das redes de contratação dos locais de origem na Bolívia, tampouco
vislumbravam possibilidades alternativas de ser, estar e trabalhar nesses
territórios. Nesse sentido, os contatos e diálogos com compatriotas e com
outros trabalhadores com quem passaram a conviver nos territórios da
costura associados à intensificação das situações de exploração laboral vividas
nas oficinas de costura provocaram estranhamentos e desnaturalizações
relativas aos compromissos morais tecidos na Bolívia. Nos contextos urbanos
de destino, na Argentina e no Brasil, à medida que desenvolviam novas
habilidades relativas aos encontros e mesclas com os vários outros que
passavam a compor o seu cotidiano, esses jovens começaram a colocar em
xeque a sua forma de viver a identidade boliviana. As trajetórias de vida,
coletivas e individuais, passaram a ser mais determinantes das relações de
solidariedade do que a identidade nacional.
Embora as possibilidades concretas de elaboração coletiva de
experiências de exploração e de caminhos de ação sejam ainda bastante
incipientes e localizadas no interior dos territórios da costura, os novos
cosmopolitismos ch’ixi latino-americanos, emergentes nesses espaços, podem
conformar uma resposta mais eficaz ao discurso político ocidental em nome
da proteção dos direitos humanos e contra o trabalho escravo das populações
vulneráveis. Não se trata, para esses jovens costureiros, de uma negação

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322 Patrícia Tavares de Freitas

aos discursos de defesa de direitos, mas de uma abertura, um caminho


alternativo, para vozes que, desde a sua condição de subalternidade,
buscam suas próprias expressões e representações para essas situações de
exploração vividas cotidianamente.
Ao longo deste artigo, abordamos a experiência migratória no interior
de um nicho econômico, a partir de uma perspectiva analítica ancorada na
fenomenologia e no interacionismo simbólico, com o intuito de trazer para o
primeiro plano as dinâmicas socioespaciais e identitárias que perfazem esse
tipo de experiência na contemporaneidade. Nesse sentido, propusemos um
deslocamento no interior do debate brasileiro sobre a migração boliviana
associada ao trabalho na costura. Ao invés da oposição entre nicho ou
enclave econômico, por um lado, e étnico, por outro, partimos de uma
indagação sobre a construção social que esses migrantes vêm produzindo
em sua circulação entre São Paulo, Buenos Aires e uma miríade de locais
de origem na Bolívia, ao longo dos últimos quarenta anos. Denominamos
essa construção social de territórios da costura em referência aos territórios
circulatórios, propostos por Alain Tarrius, em suas pesquisas sobre as
experiências de mobilidade migratória e urbana de coletivos minoritários
no contexto europeu atual.
Nesses territórios da costura, possíveis, na atualidade, graças à
globalização e aos processos de reestruturação produtiva em curso na
indústria de confecção, as identidades étnicas que aí se constituem, em
referência às dinâmicas de reciprocidade presentes nos contextos bolivianos
de origem, mesclam-se com formas identitárias mais cosmopolitas e
menos atávicas, produzidas a partir dos novos encontros e experiências
vividos pelos migrantes em sua circulação nas cidades de destino. O
saber circular aprendido na viração urbana não pressupõe o abandono
das tradições culturais bolivianas, mas possibilita a emergência de éticas
sociais intermediárias que, conforme propõe Tarrius em sua análise dos
territórios circulatórios, inauguram novos modos de ser “daqui e de lá
ao mesmo tempo”.

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Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 323

Patrícia Tavares de Freitas é Doutora em Sociologia e pesquisadora associada do Núcleo


de Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC/
Cebrap) e Coordenadora do Odisseia – Núcleo de Pesquisa Abdelmalek Sayad.
 tavaresdefreitas@gmail.com

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Recebido: 2 mar. 2021.


Aceito: 13 out. 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 296-326.


Mobilidades e etnicidade nos territórios da costura 327

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328 José Alcides Figueiredo
ARTIGOS
Santos
328

http://doi.org/10.1590/15174522-112756

Desigualdade racial na transmissão


intergeracional da herança de classe social
José Alcides Figueiredo Santos*

Resumo
O estudo aborda as discrepâncias raciais que se manifestam na transmissão
intergeracional de vantagens e desvantagem de origem de classe social. O foco
é a desigualdade racial condicional à origem de classe. A origem de classe foi
mensurada por uma tipologia de classes neomarxista. O destino social foi concebido
como chances de vida e mensurado pela renda dos filhos. Foram estimadas médias
preditas e diferenças proporcionais na renda com base em um Modelo Linear
Generalizado e nos dados de mobilidade social da PNAD de 2014. A desigualdade
racial na transmissão da herança de classe é marcante no Brasil ao nível agregado
das coortes. Regra geral, as discrepâncias raciais no efeito total e no efeito direto
da origem de classe se mantiveram na maioria das circunstâncias. Nas origens
de classe de maior peso demográfico, no agregado das coortes, não é certo que
exista uma associação empírica entre educação superior e menor discrepância
racial na transmissão da herança de classe. Entretanto, na coorte mais recente,
particularmente nas origens privilegiada e destituída, a distância racial fica incerta,
o que pode refletir processos de seletividade e não de equalização.
Palavras-chave: mobilidade social, origem e destino, classe e raça, desigualdade racial.

* Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 329

Racial inequality in intergenerational transmission of social


class inheritance

Abstract
The study addresses racial discrepancies manifested in intergenerational transmission
of advantages and disadvantages of social class origin. It focuses on racial inequality
conditional on class origin. Class origin was measured using a neo-Marxist class
typology. Social destination was conceived as life chances and measured by children’s
income. Predicted averages and proportional differences were estimated through
a Generalized Linear Model and social mobility data retrieved from PNAD 2014.
Racial inequality in transmission of class inheritance is striking in Brazil at the
aggregate level ofcohorts. Generally, racial discrepancies in both total effect and
direct effect of class origin have remained in most circumstances. In class origins
of greater demographic weight, in the cohorts aggregate, an empirical association
between higher education and less racial discrepancy in the transmission of class
inheritance is not certain. However, in the most recent cohort, particularly in the
privileged and destitute origins, racial distance is uncertain, which may reflect
processes of selectivity rather than equalization.
Keyword: social mobility, origin and destination, class and race, racial inequality.

Fundamentos, abordagem e questões de pesquisa

O
s estudos de mobilidade social mensuram o grau de associação
que existe entre a condição socioeconômica dos pais e dos filhos.
Quanto mais forte for o grau de associação, menor será o nível
de mobilidade social entre as gerações. Uma associação mais baixa quer
dizer que a trajetória dos indivíduos é menos influenciada pelas condições
de origem social. Estudos com orientações convergentes investigaram, no
Brasil, a associação entre origem de classe e destino social, focalizando
o acesso ao topo social e a renda dos filhos. Trabalho posterior analisou
os padrões de associação por origem de classe, considerando as suas
variações por gênero e níveis da distribuição da renda (Figueiredo Santos,
2019, 2020, 2021). Este artigo analisa a desigualdade racial na transmissão

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


330 José Alcides Figueiredo Santos

intergeracional das vantagens e desvantagens de origem de classe social


no Brasil. No estudo, a origem social corresponde, então, às circunstâncias
de classe de criação dos indivíduos. O destino social foi concebido como
chances de vida e mensurado pela renda dos filhos. Classe social se apresenta
como fator fundamental na associação entre origem e destino social. Na
trajetória da origem ao destino social, as divisões de raça representam
fatores importantes capazes, em certo grau, de modificar o efeito primário
de classe. A transmissão intergeracional da herança de classe social pode
ser maior ou menor em um contexto, a depender das interações entre
origem de classe e raça. Nesse sentido, o trabalho realiza um estudo de
mobilidade social no Brasil, em que a renda dos filhos foi tomada como
realização de destino social, o que não deve ser confundido com o propósito
de abarcar os determinantes fundamentais das desigualdades de renda
entre os indivíduos.
As desigualdades de status, como raça, são baseadas em crenças culturais
acerca da capacidade e do valor social dos membros de certas categorias em
comparação com outras, sendo que essas distinções essenciais são usadas
para organizar as relações com os outros e criar fronteiras entre as categorias
sociais. As demarcações de status tornam-se mais efetivas e salientes na
geração de desigualdades de oportunidades e recompensas entre os grupos,
na medida em que estão ligadas às hierarquias de poder e às assimetrias de
recursos valiosos na sociedade (Ridgeway, 2013; Tilly, 1999). As divisões de
raça representam grupos sociais tipicamente criados pelo modo de definir
os “outros” como distintos em virtude de características físicas supostamente
inerentes e consideradas comuns aos seus membros. Essas demarcações
entre categorias tornam-se socialmente relevantes ao serem ativadas para
interpretar experiências, estabelecer relações sociais, orientar atitudes e
organizar comportamentos. Os grupos sociais brancos têm exercido, no
curso da trajetória da sociedade moderna, maior poder de fazer designações
raciais, organizar a vida social em termos raciais e associar um valor “inferior”
às categorias racialmente assinaladas (Cornell; Hartmann, 1998).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 331

As interações entre origem de classe e divisões raciais estão no centro


desta investigação. Representa um conhecimento bem estabelecido sobre
interações entre variáveis, que elas envolvem relações simétricas (Kam;
Franzese, 2007). Parafraseando a literatura sobre interações, isso significa
que, quando o efeito de origem de classe é condicional à raça, o efeito de
raça deve ser condicional à origem de classe.Uma hipótese sobre o sinal
(positivo ou negativo) da relação entre a origem de classe, como variável
condicional (Z), e o efeito marginal de raça (X) prediz que a relação entre
raça, como fator condicional (Z), e o efeito marginal de origem de classe
(X) tem o mesmo sinal.Entretanto, qualquer relação observada entre a
origem de classe (Z) e o efeito marginal de raça (X) é sempre consistente
com uma ampla variedade de maneiras pelas quais o efeito marginal da
condição de classe (Z) varia com a raça (X) e vice-versa (Berry et al., 2012).
As escolhas relativas à forma de abordagem e à modalidade de comparação
nas interações possuem implicações que devem ser consideradas.
Na análise de mobilidade social, quando se destaca um fator atribuído
ou de status social, como raça ou gênero, regra geral, as relações entre
origem e destino são apresentadas em separado por grupo. Este tem sido
o modo padrão de tratar as diferenças de status em mobilidade social.
Quando se aborda a desigualdade de origem de classe entre os pares de
raça, a comparação está sendo feita dentro de cada grupo racial. O foco é a
desigualdade de origem de classe condicional ao grupo racial. Estão sendo
observadas as diferenças de trajetórias da origem ao destino em cada grupo.
Este estudo desenvolveu um enfoque alternativo, ao estimar a desigualdade
racial entre os pares de origem de classe. A comparação racial está sendo
feita diretamente dentro de cada origem de classe. O foco é a desigualdade
racial condicional à origem de classe. Procura-se caracterizar o processo
de interação estrutural entre origem de classe e raça, assim como a sua
evolução temporal, que pode acentuar ou atenuar a desigualdade racial
na transmissão intergeracional da herança de classe social.
Os estudos de mobilidade social organizam-se no espaço analítico
que envolve as conexões entre origem social, mediação educacional e

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


332 José Alcides Figueiredo Santos

destino social. O presente estudo vai focalizar o que se passa com as


discrepâncias raciais na associação total e na associação direta entre origem
social e realização socioeconômica dos filhos. A associação total ou o efeito
total capta a influência de todos os fatores que estão associados direta
ou indiretamente à origem de classe. Representa um indicador geral da
transposição ou persistência do condicionamento de origem. O indicador
serve também como uma base de comparação para situar o papel e a
dimensão assumida pelos fatores mediadores ou intervenientes, notadamente
a educação, na realização socioeconômica dos filhos.
A associação direta (ou efeito direto) expressa o que ocorre com
a associação entre origem e destino não mediada pela educação ou,
colocado de outro modo, a associação socioeconômica intergeracional
entre pessoas do mesmo nível educacional. A associação direta retrata o
efeito líquido da origem não alterado no curso do processo de mediação
educacional. De um lado, representa outro modo de aferir a força primordial
da origem social que abre ou limita caminhos na trajetória dos filhos. De
outro lado, presta-se a avaliar a tese do papel equalizador da educação,
ou seja, a capacidade da educação adquirida, notadamente a educação
superior, em autonomizar a trajetória dos filhos do condicionamento de
origem. O estudo elegeu a relação direta entre origem e destino como
um elo analítico especialmente esclarecedor. Focalizar a influência direta
da origem social em meio às mudanças estruturais pode ser um modo de
recolocar, ou ver de um ângulo revelador, a transmissão intergeracional
das desigualdades (Bernardi; Ballarino, 2016a).A proposição do papel da
educação como grande equalizador social requer, como corolário, que
a associação direta entre origem e destino, após controlar a realização
educacional, equipare-se ou tenda a zero no curso do tempo ou da sucessão
de coortes (Bernardi; Ballarino, 2016b). Pretende-se investigar, neste artigo,
a provável discrepância racial e sua evolução temporal na realização ou
frustação desse suposto papel equalizador da educação.
Mobilidade social diz respeito à transmissão intergeracional das
desigualdades socioeconômicas. O entendimento do regime de mobilidade

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 333

social não pode ser conduzido somente ao nível agregado de todas as coortes
de nascimento. Os padrões de associação podem não ser os mesmos em
diferentes coortes. Uma questão crítica diz respeito à caracterização do
que ocorre com a associação entre origem e destino no curso dos processos
de mudanças sociais. O condicionamento de origem pode variar em cada
coorte de modo a indicar ou não uma tendência histórica. Uma flutuação
sem tendência ou direção certa pode se formar, ensejando, em certo
sentido, um tipo de reprodução ou continuidade do padrão histórico do
passado. Os padrões de associação vão ser analisados no curso da sucessão
de coortes para divisar uma tendência temporal na sociedade brasileira.
As desigualdades de origem na aquisição da educação vão ser tomadas
como dadas, embora a passagem do efeito total ao efeito direto permita
perceber a interferência da desigualdade educacional. A parte final do
estudo vai ser organizada, como antes, em torno da proposição do papel
equalizador em especial da educação superior. Analisa-se, entre as pessoas
do mesmo nível educacional, a associação direta entre origem de classe
e renda dos filhos adultos. A ideia equalizadora supõe que a associação
entre origem e destino seria menor em níveis maiores de escolaridade. A
transposição dessa proposição para a problemática racial seria a expectativa
das discrepâncias raciais serem menores ao nível da educação superior.
Os problemas relativos à desigualdade racial no processo de
mobilidade social foram traduzidos e agregados em três questões de
pesquisa orientadoras: (i) existe uma ponderável desigualdade racial na
associação total e na associação direta (não mediada pela educação)
entre a origem de classe e a renda dos filhos, ou seja, na transmissão da
herança de classe social? (ii) Existe uma tendência temporal na sucessão
das coortes de declínio da desigualdade racial no efeito total e no efeito
direto da origem de classe, após o controle da educação adquirida?(iii) A
discrepância racial do efeito direto de origem na renda dos filhos varia por
níveis de escolaridade ou, de modo mais específico, a discrepância racial
é menor entre os indivíduos mais educados?

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


334 José Alcides Figueiredo Santos

Revisão da literatura nacional recente


Visando situar o artigo no campo de estudos, realiza-se uma síntese das
evidências de trabalhos mais recentes na área de sociologia, que destacam
o papel de raça nas tendências de mobilidade social no Brasil. Estudo de
Ribeiro (2006), usando dados da PNAD de 1996, não constatou a existência
de desigualdade racial nas chances de mobilidade ascendente entre as
classes mais baixas. Entretanto, nas classes mais altas os brancos têm mais
chances de se manterem no topo da hierarquia de classes, enquanto os
pardos e pretos têm mais chances de mobilidade descendente. Em estudo
posterior, usando uma escala contínua de cor com dados de 2008, Ribeiro
(2017) constatou que, à medida que se sobe na estrutura social, embora
aumente a ambiguidade e o “embranquecimento” na definição de cor, há
bastante desigualdade racial nas chances de mobilidade social.
Estudo de Souza, Ribeiro e Carvalhaes (2010) sobre a desigualdade de
oportunidades no Brasil pondera que não existiriam diferenças significativas
no padrão de mobilidade de brancos, pardos e pretos, em duas dimensões
importantes, considerando que nem os retornos à educação nem a associação
entre origem e destino variam por cor ou raça. O efeito direto da origem,
controlado pela educação, é mais decisivo do que a cor para as chances de
mobilidade de longa distância. No entanto, para as chances de mobilidade
de curta e média distância pesa mais ser branco – e não preto.
Estudo mais recente analisa, de forma desagregada por raça, tipo
de família (baseado na inserção no trabalho) e gênero, a persistência
intergeracional de status socioeconômico no Brasil. O estudo funde as bases
de dados da PPV de 1996 e PNAD de 2014, usa o índice internacional de
status socioeconômico (ISEI), estima o grau de persistência por regressão
mediana e diferencia famílias em que ambos os pais tinham ocupação,
somente o pai e somente a mãe. O estudo constata que a desigualdade
racial na persistência intergeracional diminuiu ou não dependendo das
características da família. Destaca-se, nesse registro, o que ocorre com os
arranjos que são demograficamente mais importantes. A desigualdade racial

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 335

diminuiu, ao ponto de desaparecer, para homens e quando ambos os pais


tinham ocupação, mas não se altera quando somente um deles era ocupado.
Não existiria desigualdade racial, nem mudança na persistência, ao longo
das coortes, para as mulheres, quando ambos os pais ou apenas o pai tinha
ocupação (Ribeiro, 2020). Embora o artigo não explicite de forma clara
este ponto, os resultados indicam que, demograficamente, considerando
o peso relativo dos grupos, predominaria uma situação de supressão da
desigualdade racial na persistência intergeracional em coortes mais jovens.
Uma análise de trajetória social da desigualdade racial de renda se
aproxima da temática de mobilidade social ao focalizar as associações entre
origem social, raça e renda dos filhos. O estudo usa a PNAD de 2014,
modelos de equações estruturais e compara os efeitos diretos, indiretos e
totais da raça e origem social sobre a renda do trabalho. O estudo conclui,
embora com certa cautela, ao considerar tanto os efeitos diretos quanto
indiretos, que a distância racial de renda deve ser atribuída mais à hierarquia
racial do que à origem social.A maior parte das desvantagens de renda
dos negros (pardos e pretos), quando se olha para a trajetória dos grupos,
ocorre principalmente de modo indireto, sendo mediada pela educação
e ocupação dos filhos (Salata, 2020).

Distribuição de classe e educação entre coortes por raça


Em sintonia com o desenho da investigação, são apresentados, na
Tabela 1, dados descritivos das mudanças estruturais na distribuição de
classe e da educação que impactam os padrões de associação entre origem,
educação e destino entre as coortes investigadas. Na parte à esquerda
da Tabela, mostram-se a distribuição de classe e a renda média atual
do filho. No total de cada coorte, registra-se a respectiva distribuição de
classe dos pais. A diferença mais marcante se dá no contraste dos polos da
estrutura social. No grupo branco, 11,2% dos pais estavam no topo social na
primeira coorte, sendo que, na atualidade, 21,5% dos filhos ocupam esta
posição. No grupo pardo e preto o topo social passou de 4,0% dos pais na

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


336 José Alcides Figueiredo Santos

primeira coorte para 8,4% dos filhos em 2014. Na origem de destituído, o


grupo branco evoluiu de 30,5% dos pais para 22,7% dos filhos na mesma
comparação. Já o grupo pardo e preto ficou quase estacionado nessa
condição desvantajosa, pois representava 39,7% dos pais e corresponde
a 38% dos filhos em 2014.Nesta data, o grupo branco equivale a 2,6
vezes a cada pardo e preto no topo social. Já o grupo pardo e preto está
fortemente concentrado no agrupamento destituído. Representa 70% da
base social formada pela agregação de trabalhador e destituído, contra
54,4% do grupo branco.
A renda média do grupo branco se distancia daquela do grupo pardo
e preto, especialmente nos grupos com vantagens de classe, ou sem
desvantagens, em maior ou menor grau, nas dimensões de propriedade,
autoridade e qualificação escassa no mercado, como pode ser visto nos
agrupamentos do topo social, qualificado/supervisor e pequenos ativos. No
grupo pardo e preto o agrupamento de pequenos ativos tem renda quase
igual à do trabalhador típico, ao contrário do grupo branco, sinalizando
que, no grupo pardo e preto, os ativos econômicos dessa categoria são
de valor menor ou geradores de menor ganho. Como desdobramento
de conjunto dessa situação, a renda média agregada do grupo branco
é bem maior.
O nível denominado “Fundamental” agrupa médio incompleto,
fundamental ou menos. “Médio” corresponde a médio completo ou superior
incompleto. A última categoria é o nível “Superior” completo. Na linha que
computa o Total, na margem inferior esquerda de cada grupo racial, está
a distribuição educacional geral dos filhos em cada coorte. Na primeira
coorte, ela era bem desfavorável ao grupo pardo e preto, devido aos
desequilíbrios nos níveis “Fundamental” e “Superior”. Na última coorte,
o desequilíbrio se mantém, porém aumentou a desproporção ao nível da
categoria “Fundamental”, em que o progresso do grupo pardo e preto foi
bem menor no curso da expansão educacional. Ao nível do “Superior”,
não foi reduzida a desproporção de 2,6 brancos para cada 1,0 pardos e
pretos que existia na primeira coorte.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 337

Tabela 1. Distribuição percentual entre origem de classe e nível educacional do filho/a, por
coorte e raça, com totais por origem e educação, mais classe e renda atual do filho/a, Brasil

Filho/a 2014 Coorte de 1948-57 Coorte de 1978-87


Origem de

Superior

Superior
Classe

Médio

Médio
Renda

Fund.

Fund.
Total

Total
Classe

BRANCO
Topo Social 21,5 6154 25,1 26,4 48,5 100,0 6,8 35,1 58,1 100,0
4,4 16,0 30,9 11,2 3,8 12,6 33,9 15,8
Qual./Super. 10,4 2751 30,6 31,0 38,4 100,0 8,1 46,6 45,3 100,0
2,6 9,2 11,9 5,5 2,5 9,2 14,5 8,7
Peq. Ativos 13,6 2390 76,7 14,1 9,2 100,0 42,8 39,7 17,6 100,0
42,9 27,2 18,7 35,7 28,5 17,1 12,3 19,1
Trabalhador 31,7 1644 54,9 23,1 22,0 100,0 25,4 50,0 24,6 100,0
14,7 21,3 21,2 17,1 23,5 29,8 24,0 26,4
Destituído 22,7 1192 74,1 15,9 10,0 100,0 39,9 46,2 13,9 100,0
35,4 26,3 17,3 30,5 41,8 31,4 15,3 30,0
Total 100,0 2539 63,9 18,5 17,6 100,0 28,6 44,2 27,2 100,0
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
PARDO E PRETO
Topo Social 8,4 4506 49,2 24,1 26,7 100,0 20,5 37,8 41,7 100,0
2,4 7,6 15,6 4,0 2,2 5,0 22,5 5,5
Qual./Super. 8,3 2280 43,8 33,6 22,5 100,0 19,1 54,9 27,5 100,0
2,5 12,5 15,4 4,7 2,2 7,3 14,1 5,5
Peq. Ativos 13,3 1335 87,8 8,9 3,2 100,0 62,0 31,8 6,3 100,0
40,7 26,6 17,8 37,4 30,1 18,2 14,6 23,6
Trabalhador 32,0 1376 64,6 22,3 13,2 100,0 35,1 52,5 12,5 100,0
11,5 25,4 27,6 14,3 16,7 29,5 28,5 23,2
Destituído 38,0 888 87,1 8,8 4,1 100,0 56,0 39,1 4,9 100,0
42,8 27,9 23,7 39,7 48,7 40,1 20,3 42,3
Total 100,0 1421 80,6 12,6 6,8 100,0 48,6 41,3 10,1 100,0
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Elaboração do autor com base nos microdados da PNAD 2014.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


338 José Alcides Figueiredo Santos

Na parte da linha interna está a distribuição educacional, por origem


de classe, respectivamente, dentro da primeira e da coorte mais recente.
Quando originário do topo social, o filho pardo e preto avançou muito
no acesso ao nível “Superior” (de 26,7 para 41,7%), no entanto, ainda
assim, 20,5% das pessoas vindas dessa origem ficam somente ao nível
“Fundamental”. Como, dessa origem privilegiada, já na primeira coorte, uma
grande proporção (48,5%) de filhos brancos já atingia o nível “Superior”, o
avanço educacional na última coorte foi menos marcante (58,1%). Por outro
lado, o fracasso na aquisição educacional, vindo dessa origem privilegiada,
reduziu-se bastante, pois na última coorte somente 6,8% dos filhos ficam
ao nível “Fundamental”. Com isso, para a origem no topo social, na última
coorte, 93,2% do grupo branco possui de médio completo para mais, contra
79,5% do grupo pardo e preto. Na origem de destituído, o grupo branco com
educação média ou mais passou de 25,9% para 60,1%, sendo que, entre
estes, obter o superior completo passou de 10% para 13,9%. Na mesma
origem e no critério de educação média ou mais, o grupo pardo e preto
evoluiu de 12,9% para 44,0%, porém a obtenção de superior completo
teve uma alteração mínima de 4,1% para 4,9%. Nas duas comparações, a
trajetória do grupo pardo e preto foi pior.

Métodos
As divisões de classe social, na abordagem neomarxista do estudo,
são constituídas por desigualdades de direitos e poderes sobre recursos
produtivos que geram vantagens e desvantagens entre categorias (Wright,
1997). A variável independente classe social foi mensurada por uma tipologia
ajustada às especificidades da estrutura social do país (Figueiredo Santos,
2005a, 2010). Utiliza-se aqui uma versão compacta dessa classificação, que
diferencia cinco grandes agrupamentos de classe. O topo social envolve as
categorias de empregadores, especialista autônomo, empregado especialista e
gerente. Os empregados qualificados e os supervisores formam um segmento
diferenciado no trabalho assalariado. A categoria de detentores de ativos de

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 339

menor valor é composta pelo autônomo com ativos e o autônomo agrícola.


O trabalhador típico representa o assalariado submetido estruturalmente aos
processos conjugados de controle e apropriação dos resultados do trabalho.
Por fim, diferencia-se um agrupamento destituído, composto por trabalhador
elementar, autônomo precário, empregado doméstico, trabalhador de
subsistência e trabalhador excedente (desempregado). Na mensuração
da classe de origem foi usado o critério de dominância, considerando
o emprego mais elevado entre os pais. A variável independente raça foi
usada de forma binária, diferenciando o branco e o conjunto pardo e preto.
As categorias de indígena e amarelo foram excluídas da análise, visando
focalizar o divisor racial fundamental no Brasil (Figueiredo Santos, 2005b).
A investigação utiliza os dados do suplemento de mobilidade social da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, respondido
pelo morador de 16 anos ou mais de idade selecionado aleatoriamente. A
amostra analítica, que foi usada em todas as estimativas, possui 30328 casos
com idade de 27 a 66 anos e informações válidas nas variáveis usadas nos
modelos. A variável dependente do estudo é a renda de todas as fontes
dos filhos. A desigualdade de recompensas por classe social de origem
mostra-se maior com o uso de medidas de renda mais inclusivas (Hansen,
2001). Todos os modelos controlam por gênero, coorte, tipo de família por
inserção econômica dos pais, área urbana/rural e Unidade da Federação (UF)
onde o filho morava aos 15 anos. Como a maioria dos controles potenciais
pode estar associada à origem social, os controles justificáveis seriam
aqueles determinados antes de se entrar no mercado de trabalho (Hällsten,
2013). As quatro coortes usam intervalos de dez anos, que diferenciam
os indivíduos nascidos nos anos de 1948-1957, 1958-1967, 1968-1977
e 1978-1987. A educação distingue as principais transições educacionais:
sem instrução, fundamental incompleto, fundamental completo, médio
incompleto, médio completo, superior incompleto e superior completo. Na
análise da associação intergeracional por níveis educacionais, estes foram
agregados em três categorias (médio incompleto, fundamental ou menos;
médio completo ou superior incompleto; superior completo), visando

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


340 José Alcides Figueiredo Santos

captar efeitos interativos mais precisos. A variável área diferencia se o filho


morava em zona urbana ou rural quando tinha quinze anos. Os tipos de
família distinguem as circunstâncias em que ambos os pais trabalhavam,
somente o pai, somente a mãe ou nenhum dos pais trabalhava. A Tabela
1 apresenta estatísticas descritivas da distribuição combinada das variáveis
mais informativas para a análise; por questão de espaço, estatísticas de outras
variáveis estão somente no arquivo digital referido na nota da Tabela 2.
No tratamento da mobilidade social, o estudo adota uma “abordagem
de coorte” em que a comparação dos padrões temporais é realizada
dependendo de quando as pessoas nasceram. Essa abordagem tem a
virtude, como realçado na literatura internacional, de fazer comparações
que captam os efeitos das mudanças estruturais em estágios críticos do
curso de vida das pessoas (Breen; Müller, 2020). Os efeitos estão sendo
estimados no agregado e em cada coorte distinta, compondo uma sucessão
de coortes, visando captar alterações ou persistências temporais nos padrões
de associação entre origem e destino ou, de modo mais específico, na
desigualdade racial na transmissão da herança de classe social. Tendo
em vista a abordagem definida, os efeitos das variáveis independentes
no destino social foram estimados com um Modelo Linear Generalizado
(Generalized Linear Model, GLM). O modelo GLM é formado por três
componentes. A distribuição condicional da variável dependente (Y), ou do
seu valor esperado E(Y), representa o componente aleatório. O componente
sistemático corresponde às variáveis independentes e ao modo como
estas são combinadas. Existe, por fim, uma função de ligação suave, que
é aplicada ao valor esperado para que este possa ser modelado de uma
maneira linear usando o componente sistemático. Essa família de modelos
separa a distribuição do erro da função de ligação e permite estender o
modelo de regressão padrão de dois modos diferentes: escolhendo uma
distribuição do erro não-normal e usando uma função de ligação não-
linear. O modelo GLM com a distribuição Gamma (flexível) do componente
aleatório e a função de ligação logarítmica (internalizada, linearizante e
invertível), além de gerar valores preditos e resíduos na métrica original

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 341

da variável dependente antes da aplicação da função, evitando qualquer


viés de transformação, mostra-se apropriado para lidar com uma variável
assimétrica como a renda (Hardin; Hilbe, 2018; Fox, 2016; Deb et al.,
2017). As estatísticas AIC e BIC confirmaram que o modelo GLM com essas
especificações oferece melhor ajuste.
Os efeitos foram expressos em termos de rendas médias preditas e
diferenças proporcionais de renda, que representam grandezas derivadas
dos coeficientes de regressão, o que torna supérfluaa apresentação dos
próprios coeficientes. As escolhas realizadas decorrem do uso de interações
entre as variáveis, pois a equivalência entre coeficiente e efeito deixa de
ser válida nesta situação (Kam; Franzese Jr., 2007), do propósito de gerar
resultados mais claros e interpretáveis (Williams, 2012) e do objetivo de
garantir a comparabilidade entre os efeitos na renda em diferentes coortes
(Torche, 2015). Nos gráficos são colocados os intervalos de confiança que
mostram o grau de precisão das estimativas. Resultados completos dos
modelos (sintaxes e estimativas do Stata) são disponibilizados em arquivo
digital referido na nota da Tabela 2.
As diferenças proporcionais são baseadas em semielasticidade, que é um
híbrido de efeitos marginais (ou parciais) e elasticidade e mede a mudança
no logaritmo do resultado (Y) associada à mudança de uma unidade em X
(Cameron; Trivedi, 2009). Efeitos marginais (ou parciais) representam uma
forma de resumir o efeito da variável independente em termos das predições
do modelo estatístico (Mize, 2019). As estimativas de semielasticidade ou
mudança proporcional foram realizadas pelo comando margins do Stata,
com a opção eydx, e depois transformadas em gráficos pelo marginsplot.
Nas variáveis independentes categóricas, o efeito é computado como
uma mudança discreta em relação à categoria de referência. As medidas
baseadas em métrica logarítmica, ao contrário das medidas de diferenças
absolutas, oferecem a vantagem de não serem influenciadas pelas diferenças
de rendas médias associadas aos perfis heterogêneos de idade-ganhos das
coortes (Torche, 2015). A conversão da métrica logarítmica em diferença
percentual implica calcular o exponencial do valor aplicando a fórmula:

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


342 José Alcides Figueiredo Santos

[exp(Y) – 1] * 100. As duas escalas divergem crescentemente, à medida


que o resultado em logaritmo aumenta. Como os valores dos gráficos estão
em escala logarítmica, esta métrica vai ser usada no texto.
O comando de pós-estimação mlincom, criado para o ambiente do
Stata, foi usado adicionalmente para testar as diferenças ou mudanças
de efeitos no tempo e entre situações. As diferenças entre coortes ou
entre situações específicas nas diferenças raciais representam diferenças
de segunda ordem. Um teste de diferenças de segunda ordem (second
differences) avalia se as diferenças de primeira ordem são iguais (Mize,
2019). Levou-se em conta na avaliação a extensa literatura crítica sobre
o uso de p-values, em particular, como critério supremo ou exclusivo de
validação estatística das estimativas. Eles representariam a “ficção popular”
da inferência estatística, “rasa, mas não completamente sem mérito”; a forma
“mais popular e menos respeitável” de olhar para dados e modelos (Senn,
2018, p. 1853). Foram feitas, em situações mais complexas, interpretações
abrangentes dos resultados, que consideram, conjuntamente, a força das
diferenças, os p-values (p) e os intervalos de confiança (IC).1

Resultados e análises das questões de pesquisa


Questão (i): existe uma ponderável desigualdade racial na associação
total e na associação direta (não mediada pela educação) entre a origem
de classe e a renda dos filhos, ou seja, na transmissão da herança de
classe social?
A Tabela 2 apresenta as estimativas necessárias à análise da questão
de pesquisa. As estimativas se baseiam em interações entre origem de
classe e raça. A renda predita total, ajustada por controles, como esperado,

1
“Interpretação correta e cuidadosa dos testes estatísticos exige o exame dos tamanhos das
estimativas de efeito e limites de confiança, bem como valores P precisos” (Greenland et al.,
2016, p. 347). Vide o epidemiologista Clyde Schechter na Statalist: “Significativo versus não
significativo é uma maneira enganosa de pensar sobre os efeitos. Uma maneira melhor de
pensar sobre eles é considerar quão grandes eles parecem ser e quanta incerteza atribuímos
à nossa estimativa de quão grandes eles são”. Fonte: https://www.statalist.org/forums/forum/
general-stata-discussion/general/1408697.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 343

confirma as discrepâncias raciais em todos os contextos de origem de classe.


As diferenças observadas são estatisticamente significativas, exceto em um
caso. As diferenças são maiores em termos absolutos e relativos quando
existem vantagens de origem social. Na origem de trabalhador típico e
destituído, ainda assim, existem discrepâncias apreciáveis.

Tabela 2. Renda predita de todas as fontes em Reais, por origem de classe e raça, efeito
total e direto, mais diferença racial (branco vs. pardo e preto) e de origem (topo vs.
outro). Brasil, PNAD 2014

Topo Qual./ Pequ.


Critério Trabalhador Destituído
Social Superv. Ativos

Total Branco R$ 4591 3238 2065 1975 1649


Direto Branco R$ 2862 2287 2020 1873 1782
Direto Branco % 62,3 70,6 97,8 94,8 108,0
Total Pardo & Preto R$ 3058 2058 1437 1598 1283
Direto Pardo & Preto R$ 2364 1862 1665 1767 1614
Direto Pardo & Preto % 77,3 90,5 115,9 110,6 125,8
Total Dif. Branco R$ 1533 1180 627 377 367
Total Dif. Branco % 50,1 57,3 43,6 23,6 28,6
Direto Dif. Branco R$ 498 425 355 106 * 168
Direto Dif. Branco % 21,1 19,0 21,3 6,0 * 10,3
Dif. Total Topo Branco % — 41,7 122,3 132,5 178,4
Dif. Total Topo Pardo & Preto % — 48,6 112,8 91,4 138,3
Dif. Direto Topo Branco % — 25,1 41,7 52,8 60,6
Dif. Direto Topo Pardo & Preto % — 27,0 42,0 33,8 46,5

Fonte: Elaboração do autor com base nos microdados da PNAD 2014.


Nota: * p= 0,151. Resultados completos (sintaxes e estimativas do Stata) em: https://www.
dropbox.com/s/kybrfvjzaez1uml

A diferença entre efeito total e efeito direto tem uma importância


teórica e empírica especial. Mostra o montante do efeito da origem
que não é mediado pela educação dos filhos. Representa um primeiro

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


344 José Alcides Figueiredo Santos

teste, ao nível agregado, da capacidade ou não da educação de reduzir


a força autônoma do condicionamento de origem. Na origem no topo
social, no grupo pardo e preto, o efeito direto corresponde a 77,3% do
efeito total e em empregado qualificado a 90,5%. No grupo branco o
efeito é também claramente majoritário, respectivamente, de 62,3% e
70,6%. Existe uma força da origem de classe que se impõe em ambos os
grupos raciais. O fato de o efeito ser menos forte no grupo branco indica
que nele a mediação educacional, embora não seja majoritária, é mais
importante. A menor vantagem educacional do grupo negro nessas duas
origens talvez explique o padrão encontrado. Tendo vantagem de origem,
ainda assim, ele pode contar menos com a mediação educacional, pois os
filhos convertem menos a vantagem de origem em realização educacional.
Tal processo, ao mesmo tempo, contribui para que a renda predita total
seja menor. Esse padrão está sendo observado ao nível agregado de
todas as coortes. Mudanças temporais na sucessão das coortes vão ser
tratadas mais adiante.
Nas demais origens de classe, o efeito total é suplantado pelo efeito
direto ou fica bem próximo dele. O resultado observado representa o
desdobramento de um processo de “mediação negativa” ou “mediação
às avessas” da educação, como foi chamado em trabalhos anteriores
(Figueiredo Santos, 2019, 2020). A renda predita direta, com o controle
da educação, representa a renda esperada quando se remove do efeito
total a distribuição desigual da educação e a mudança da renda sob o
efeito da educação. O resultado observado reflete, então, em particular,
a desvantagem na aquisição da educação, vinda dessas origens, além de
alguma desvantagem adicional na conversão de educação em melhor
renda para os filhos. Parece revelador o fato de esta “mediação negativa”
ser mais acentuada no grupo pardo e preto.
A Tabela 2 registra também a diferença racial a favor do grupo branco
no efeito total e no efeito direto. Como os patamares de renda de brancos
e de pardos e pretos são desiguais, em vez de olhar para as diferenças
absolutas, regra geral, seria melhor destacar as diferenças relativas.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 345

A diferença no efeito total é maior nas categorias com vantagens de


origem de classe já que este efeito integral inclui múltiplas consequências
decorrentes ou associadas à origem. Por sua vez, as vantagens apreciáveis
no trabalhador típico e no destituído mostram que o divisor racial opera
mesmo quando não há vantagens especiais de origem a preservar ou
transmitir. O fato de a desigualdade racial, condicional à origem social,
ser menor no efeito direto, seria algo esperado, tendo em vista a extensão
do efeito total, como foi exposto, e o papel da educação na desigualdade
racial, como já realçado em vários estudos (Figueiredo Santos, 2005b;
Ribeiro; Carvalhaes, 2020). O controle da educação, além da implicação
específica, pode estar removendo indiretamente os efeitos na renda de
outros fatores associados à educação, no que ela tem de marcador de
posição social, mesmo se alguns destes fatores não tiverem uma conexão
causal com a educação. O fato de a diferença relativa no efeito direto, em
quatro origens de classe, ser mais favorável ao grupo branco revela que
ele suplanta o grupo pardo e preto na vantagem líquida da origem, ou
seja, no efeito independente da desigualdade de trajetória educacional
dos filhos. Mesmo o fato de os efeitos da mediação educacional atuarem
em direções opostas, quando esta é controlada, não se mostra capaz
de neutralizar esse padrão. Parte disso reflete o fato de a renda predita
do branco ser tão maior, que a mediação educacional não dá conta de
suprimir esse padrão. Na origem de trabalhador típico, a desigualdade
racial deixa de ser estatisticamente significativa quando se remove a
mediação educacional. Na verdade, essa alteração está vinculada à
associação entre raça, educação e região. Sem o controle da Unidade
da Federação, existe uma diferença de 0,126 a favor do grupo branco.
Devem ser destacadas, além disso, as diferenças expressivas no efeito
direto, que persistem em origens vinculadas às dimensões de capital,
autoridade e qualificação escassa (em torno de 20%), mas também o
montante ponderável da diferença de efeito no agrupamento destituído,
em que convergem várias desvantagens de origem (10%).

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346 José Alcides Figueiredo Santos

A parte inferior da Tabela 2, por fim, registra a vantagem percentual


da origem no topo social, na comparação com outra origem, no efeito
total e no efeito direto, nos dois grupos raciais. O ordenamento de
classe é muito semelhante em ambos os grupos, exceto em relação aos
controladores de pequenos ativos, que têm certa peculiaridade. No
tocante ao efeito total, que sintetiza múltiplas circunstâncias associadas
à origem, a vantagem da origem no topo seria maior no grupo branco
quando faltam vantagens a transmitir. Isso significa que, no grupo pardo
e preto, no agregado das coortes, na comparação com o grupo branco,
a origem no topo não beneficia tanto e/ou as demais origens limitam
mais a trajetória dos descendentes. Por outro lado, no efeito direto, as
vantagens de origem de classe do grupo pardo e preto são menores
em relação às origens na base social (trabalhador típico e destituído).
Isso sinalizada que as distâncias entre essas origens são mais mediadas
pela educação no grupo. Em um modelo, quando se controla uma
vantagem, a renda predita da categoria diminui, e quando se controla
uma desvantagem, a renda predita cresce. A origem no topo pode não
dar tantas vantagens educacionais, ou as demais na base social podem
dar ainda mais desvantagens educacionais no âmbito do grupo racial,
pois, com o controle da educação, as diferenças se aproximam, de
modo que a vantagem de origem no topo fica menor, na comparação
com o grupo branco.
Além das revelações sobre as hierarquias de classe e raça, os resultados
servem também para situar os patamares de renda que estão subjacentes
às discrepâncias raciais por origem de classe. Em todos os Gráficos a seguir
vão ser estimadas discrepâncias proporcionais. Na análise dos resultados
não se deve esquecer que elas envolvem naturalmente padrões absolutos
de renda, diferentes por origem de classe.
Questão (ii): existe uma tendência temporal, na sucessão das coortes,
de declínio da desigualdade racial no efeito total e no efeito direto da
origem de classe, após o controle da educação adquirida?

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 347

Gráfico 1. Diferença proporcional de renda (efeito total) na vantagem do grupo branco,


por origem de classe, na sucessão das coortes, com intervalo de confiança de 95%

Topo Social Qual./Superv. Peq. Ativos


1
Dif. Proporcional de Renda (Efeito Total) Branco
.5
0

48 58 68 78
Trabalhador Destituído
1
.5
0

48 58 68 78 48 58 68 78
Coorte de Dez Anos

Fonte: Elaboração do autor com base nos microdados da PNAD 2014.

Nas estimativas de mudanças do efeito total foram introduzidas


interações entre origem de classe, coorte e raça. O Gráfico 1 mostra que
o grupo branco mantém uma vantagem de renda expressiva em quase todos
os contextos formados pelos cruzamentos entre origem e coorte. Entretanto,
na origem no topo social ocorreu uma retração forte e inequívoca na
desigualdade racial (-0,441), entre a primeira e a última coorte, associada
à passagem para a coorte mais recente. A ausência de controle da Unidade
da Federação afeta muito pouco o patamar de redução da vantagem do
grupo branco. As vantagens do grupo branco são extremamente elevadas em
todas as coortes anteriores. Na penúltima coorte, de 1968-1977, antes da
queda, ela atinge 89,6% na conversão da métrica em logaritmo do gráfico,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


348 José Alcides Figueiredo Santos

para percentual. Essa vantagem extraordinária está associada à educação,


pois a vantagem direta, após o controle da educação, equivale a 29,4%
na mesma coorte, aplicada à conversão, como pode ser percebido na
comparação entre os Gráficos 1 e 2. Esse padrão das três primeiras coortes
explica o fato de a discrepância racial na origem no topo social ser elevada
(50,1%) no agregado das coortes (Tabela 2). Nas demais origens de classe,
segundo o teste mlincom do Stata, não é certo que o padrão do passado
tenha se alterado, pois as mudanças entre a primeira e última coorte não
são estatisticamente significativas.
Na coorte mais recente, de 1978-1987, a vantagem do grupo branco
não atinge significância estatística na origem no topo social (0,140; p=0,176;
IC de -0,063 a 0,344), mas obteria no trabalhador típico em uma avaliação
ampla (0,156; p=0,058; IC de -0,005 a 0,317). Sem o controle da Unidade
da Federação, as discrepâncias raciais são apreciáveis e estatisticamente
significativas, da ordem de 0,252 no primeiro caso e de 0,231 no segundo
caso. As alterações nas estimativas revelam a existência de uma associação ou
continuidade temporal entre a localização territorial passada e posterior ao
ingresso na atividade de trabalho. Os dados mostram, de fato, que 86% dos
filhos da amostra analítica moram na Unidade da Federação em que moravam
aos 15 anos de idade. Existe um padrão histórico de distribuição geográfica
desigual dos grupos raciais no Brasil, que contribui de forma significativa
para a desigualdade racial, vinculada à geografia pregressa da escravidão, à
migração europeia e à história reprodutiva da população (Hasenbalg et al.,
1999). Região representa um importante fator interveniente na desigualdade
racial no Brasil, devido, em particular, à concentração dos pardos, de enorme
importância demográfica, nos estados menos desenvolvidos e nas regiões
rurais, o que afeta a renda média geral do agregado de pardo e preto. No
Brasil, grande parte da distância racial de renda se mostra intermediada
pela condição de classe, educação e região geográfica (Figueiredo Santos,
2005b). Embora a estimativa do efeito independente e intrínseco de raça
na trajetória social, como algo distinto da situação pregressa, anterior ao
ingresso no mercado de trabalho, coloque a pertinência do controle em

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 349

termos de orientação geral, como advogado na literatura (Hällsten, 2013),


existe no Brasil uma conexão histórica entre raça, distribuição da população
e desigualdade territorial que deve ser ponderada.
Nas estimativas de mudanças do efeito direto foram introduzidas
interações de quatro níveis entre origem de classe, coorte, educação e
raça. O Gráfico 2 revela a discrepância racial no efeito direto da origem
após controlar a realização educacional dos filhos. Como visto antes, a
mediação educacional não tem o mesmo sentido e implicação nas diversas
origens. Nas origens no topo social e em empregado qualificado, a educação
representa um transmissor de vantagens de origem e esse processo é mais
forte no grupo branco. Por outro lado, no grupo pardo e preto se acentua
a mediação educacional negativa típica das categorias de pequenos ativos,
trabalhador e destituído, o que faz com que o efeito direto suplante o
efeito total. Nas origens em que as estimativas removem a influência da
desvantagem educacional, amplifica-se automaticamente o efeito direto
de origem. Isso afeta mais o grupo pardo e preto, com maior desvantagem
educacional. Essa divergência na direção dos efeitos torna mais complexa
ou mesmo distorcida a manifestação dos resultados.
A discrepância racial se mantém na grande maioria das circunstâncias. Em
quase todas as origens, com exceção, talvez, de pequenos ativos, as mudanças
entre a primeira e a última coorte não são estatisticamente significativas.
Embora o uso de interações entre quatro variáveis demande mais casos, o
problema não pode ser atribuído à insuficiência de casos. Seria apropriado
conjugar na avaliação, como solução alternativa, a tendência temporal e o
padrão existente na coorte mais recente, já que este incorpora o resultado
final das mudanças ou continuidades. Ele mostra uma vantagem do grupo
branco no topo social, de 0,155, no empregado qualificado, de 0,216, em
pequenos ativos, de 0,194, e no destituído, de 0,104. Na origem de trabalhador
típico, de grande peso demográfico, a diferença fica bem pequena (0,042) e
perde claramente significância estatística. No caso da origem no topo social,
a conclusão se baseia em uma interpretação abrangente, que leva em conta o
ponderável valor positivo do efeito (0,155), o p-value de 0,075 e a inclinação

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


350 José Alcides Figueiredo Santos

fortemente positiva do intervalo de confiança (-0,015 a 0,325).Sem o controle


da Unidade da Federação, a diferença no topo seria 0,244, com significância
estatística, e no trabalhador típico, seria de 0,102 (p=0,087; IC de -0,015
a 0,218). Nas demais origens, as vantagens do branco aumentariam ainda
mais sem esse controle; atinge 0,307, em empregado qualificado; 0,299,
em pequenos ativos; e 0,174, em destituído.

Gráfico 2. Diferença proporcional de renda (efeito direto) na vantagem do grupo branco,


por origem de classe, na sucessão das coortes, com intervalo de confiança de 95%

Topo Social Qual./Superv. Peq. Ativos


.6
Dif. Proporcional de Renda (Efeito Direto) Branco
.4
.2
0
-.2

48 58 68 78
Trabalhador Destituído
.6
.4
.2
0
-.2

48 58 68 78 48 58 68 78
Coorte de Dez Anos

Fonte: Elaboração do autor com base nos microdados da PNAD 2014.

Na origem no topo social, ocorre que a vantagem do grupo branco na


coorte mais recente tem um padrão equivalente no efeito total e no efeito
direto, respectivamente, nas estimativas sem controle e com controle da
Unidade da Federação. O resultado parece sinalizar que, nessa coorte, a

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 351

discrepância racial estaria pouco associada à distribuição educacional e/ou


ao efeito da educação na renda. Os dados mostram, no entanto, que persiste
uma desigualdade educacional, pois, na coorte mais recente, 58,1% do
grupo branco e 41,7% do grupo pardo e preto possuem educação superior
completa (Tabela 1). Entretanto, na coorte logo anterior, a educação superior
completa representava somente 24,5% do grupo pardo e preto oriundo
do topo social, contra 60,9% do grupo branco (dados adicionais). Por
outro lado, estimativa especial à parte mostra que, para a origem no topo,
na coorte mais recente, os retornos proporcionais da educação superior
completa do grupo pardo e preto suplantam os do grupo branco (+0,403).
As alterações parecem estar associadas, então, aos retornos mais elevados
da educação em um quadro ainda de desigualdade educacional, porém
bem menor do que na coorte anterior. As duas mudanças contribuíram
para que a vantagem do branco nessa origem privilegiada tenha ficado
menor e menos associada à educação na coorte mais recente.
Não é certo que a associação direta entre origem e destino entre os
grupos raciais tenha se equiparado ou a discrepância racial esteja tendendo
a zero na sucessão das coortes. A equiparação racial do efeito direto para
a origem em trabalhador típico na coorte mais recente, caso seja dada
como certa, ainda assim não seria algo extraordinário, pois o efeito direto
desconsidera as desigualdades educacionais e suas implicações para a renda.
No longo prazo temporal, assim como na última coorte, tudo indica que o
prêmio ou a proteção racial líquida na transmissão da herança de classe,
na maioria dos casos, trabalha mais a favor do grupo branco.
Questão (iii): a discrepância racial do efeito direto de origem na renda
dos filhos varia por níveis de escolaridade ou, de modo mais específico, a
discrepância racial é menor entre os indivíduos mais educados?
Foram usadas interações entre origem de classe, educação e raça. O
Gráfico 3 mostra que, regra geral, com três exceções, existem discrepâncias
raciais nos diferentes níveis educacionais. Como sinalizam os intervalos de
confiança que cruzam o valor zero, de ausência de discrepância, essas exceções
são a origem no topo social para Superior Completo, a origem em qualificado

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


352 José Alcides Figueiredo Santos

para Fundamental Completo e a origem em trabalhador típico para Médio


Completo. Entretanto, para a origem no topo social, deve ser observada, não
somente a significância estatística (p=0,130), mas também o efeito ponderável
a favor do branco (0,136) e a inclinação fortemente positiva do intervalo de
confiança (-0,040 a +0,332). A ausência de significância estatística para a
discrepância no topo social decorre do controle da Unidade da Federação,
pois, sem este controle, a vantagem do branco seria de 0,238.

Gráfico 3. Diferença proporcional de renda na vantagem do grupo branco, por origem de


classe, em diferentes níveis educacionais, com intervalo de confiança de 95%

Fundamental Completo Médio Completo


.6
.4
Dif. Proporcional de Renda Branco
.2
0
-.2

Topo Qual. Ativos Trab. Dest.


Superior Completo
.6
.4
.2
0
-.2

Topo Qual. Ativos Trab. Dest.


Origem de Classe

Fonte: Elaboração do autor com base nos microdados da PNAD 2014.

As vantagens diferenciadas do grupo branco entre níveis educacionais


— as diferenças de segunda ordem — são avaliadas com o comando de
pós-estimação mlincom do Stata. As vantagens do branco são maiores no

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 353

ensino superior completo, em comparação ao fundamental completo, nas


origens de classe de empregado qualificado, trabalhador típico e destituído,
porém somente adquirem mais peso (0,243) e significância estatística no
empregado qualificado. Na origem no topo social é registrada uma diferença
negativa pequena (-0,062) e sem significância estatística. Na origem de
pequenos ativos, a discrepância racial se torna menor no superior completo
(-0,133), desde que se considere a inclinação negativa do intervalo de
confiança (-0,284 a +0,17) e se aceite o p-value de 0,083. Não é certo,
então, exceto talvez na origem de pequenos ativos, que a educação superior
reduza a discrepância racial na transposição intergeracional da herança de
classe. No contraste entre superior completo e médio completo, nenhuma
diferença atinge significância estatística, embora na origem de empregado
qualificado ela seja bem maior na educação superior (0,155; p=0,149; IC
de -0,056 a +0,367). Levando em conta o peso demográfico das categorias
de origem e os dois contrastes, pode-se dizer que, na ampla maioria dos
casos, no agregado das coortes, a educação superior não reduz e muito
menos neutraliza a desigualdade racial no efeito direto da origem de classe.
O que foi observado ao nível do curso superior completo, no agregado
das coortes, pode ter sido alterado na última coorte. Estimativa especial à
parte para a coorte mais recente mostra que a vantagem do grupo branco
ostenta significância estatística somente na origem de empregado qualificado
(0,225; p=0,049). Isso quer dizer que, para a maioria dos casos, não é
certa a existência, na coorte mais recente, de discrepância racial no efeito
direto de origem entre quem atingiu curso superior completo. Entretanto,
no grupo pardo e preto, somente uma estreita minoria, como mostra a
Tabela 1, atinge a educação superior na coorte mais recente vindo da
origem de pequenos ativos (6,3%), trabalhador típico (12,5%) e destituído
(4,9%). Essas origens abarcam 89% dos casos do grupo pardo e preto na
coorte mais recente. Os resultados podem refletir, então, processos de
“seletividade” nessa reduzida minoria do grupo pardo e preto, baseados
em atributos favoráveis à mobilidade, sem decorrer propriamente de uma
função equalizadora da educação superior sobre a distância racial.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


354 José Alcides Figueiredo Santos

Sem o controle da Unidade da Federação, por outro lado, a vantagem


do grupo branco emerge em pequenos ativos (0,276; p=0,033) e fica maior
e menos incerta no trabalhador típico (0,148; p=0,097; IC de -0,027 a
+0,324). Por razões opostas, vinculadas às condensações de vantagens e
desvantagens de origem, que podem produzir tipos distintos de seletividade,
as diferenças raciais continuam incertas na origem no topo social e em
destituído. Existe, de um lado, a seletividade social ou propensão endógena
ao grupo (Zhou, 2019), associada à condição de minoria da origem de
classe privilegiada, que concede um prêmio mais amplo entre os pares.
Existe, de outro lado, a seletividade em atributos pessoais diferenciados,
factível no âmbito da maioria sem privilégios de origem, que corresponde
a um trunfo tipicamente mais restrito entre os pares.

Conclusão
A desigualdade racial na transmissão da herança de classe é marcante
no Brasil ao nível agregado das coortes. Condições de origem de classe mais
vantajosas geram discrepâncias raciais elevadas no efeito total e apreciáveis
no efeito direto da origem. Quando não há vantagens a transmitir, como
na origem destituída, ainda assim se formam discrepâncias raciais nas duas
modalidades de efeitos. No agregado das coortes, a mediação educacional,
embora responda por parte minoritária do efeito de origem em cada grupo
racial, reduz a maior parte da diferença racial no efeito total. Entretanto,
persiste uma apreciável diferença racial, da ordem de 20% a favor do grupo
branco, no efeito direto da origem, nas dimensões de capital, autoridade e
qualificação escassa, assim como de 10,3% no grupo destituído.Esse nível
de discrepância racial remanescente, nos grupos em questão, mostra-se
marcante no seu significado, pois o controle da mediação educacional
equivale à desconsideração de vantagens e desvantagens educacionais
associadas à origem de classe.
Regra geral, as discrepâncias raciais no efeito total se mantiveram nos
cruzamentos entre origem de classe e coorte. Na origem no topo social,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 355

no entanto, ocorreu forte declínio com a entrada em cena da coorte mais


recente, processo que independe da localização territorial. A alteração
seria bem marcante quando se leva em conta as discrepâncias raciais
extremamente elevadas que existiam em todas as coortes anteriores. As
discrepâncias raciais se mantêm apreciáveis, tanto na origem no topo quanto
em trabalhador típico, na medida em que se desconsiderem as alterações
condensadas no território. Na origem privilegiada, o componente territorial
de raça (raça sem controle estatístico de território) estaria impedindo um
nivelamento racial (revelado ao se introduzir o controle estatístico) na
transposição intergeracional da herança de classe social.
No plano do efeito direto, as discrepâncias raciais se mantiveram na
maioria das circunstâncias de origem e coorte. Quase todas as mudanças
temporais entre a primeira e última coorte, no entanto, revelaram-se sem
significância estatística. Conjugando informações da tendência temporal
e da coorte mais recente, como solução alternativa, observa-se uma
persistência, na maioria dos casos, da proteção ou do prêmio de renda
líquido a favor do grupo branco. Isso significa que as grandes alterações
educacionais nesse longo período podem ter afetado as distâncias entre
os grupos na transmissão intergeracional da herança de classe, porém
sem neutralizar a prevalência populacional da discrepância racial no
efeito direto da origem.
O estudo mostrou que existem discrepâncias raciais nos diferentes níveis
educacionais completos. Nas origens de classe de maior peso demográfico,
no agregado das coortes, não é certo que exista uma associação empírica
entre educação superior e menor discrepância racial na transmissão da
herança de classe. O padrão de conjunto nas condições em vigor, de
inegável maior impacto populacional, não oferece evidência de que a
educação superior nivela a discrepância racial. Entretanto, na coorte
mais recente (1978-1987), ao nível da educação superior completa, a
distância racial fica incerta especialmente nos polos de origem de classe
(topo social e destituído).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


356 José Alcides Figueiredo Santos

Os resultados deste estudo são contrastados com as evidências


apresentadas na literatura nacional mais recente. No tocante às tendências
populacionais de conjunto, a literatura nacional tende a apontar a existência
de desigualdade racial na transmissão intergeracional no alto da hierarquia
social e descaracterizar sua importância na base da estrutura social. Nas
coortes mais jovens, estaria predominando o enfraquecimento do papel
específico de raça na persistência intergeracional. Menos desigualdades
de oportunidades não implicam necessariamente, deve ser lembrado,
redução em igual medida das desigualdades de resultados como estas se
manifestam nas discrepâncias de renda entre os grupos. Uma análise de
trajetória social dessa desigualdade de resultados destaca o papel condutor
da hierarquia racial conjugada à predominância subjacente da mediação
socioeconômica no desfecho final.
No que diz respeito à origem no topo privilegiado, o presente estudo
constata uma vantagem apreciável do grupo branco no efeito direto,
porém conjugada a um enfraquecimento temporal marcante da distância
racial no efeito total, concentrado na coorte mais recente. Na maioria dos
contextos de origem social, não é certo que a discrepância racial tenha se
enfraquecido claramente no efeito total e no efeito direto. Uma mudança
relevante na distribuição de oportunidades teria sido o fato de a posse de
educação superior tornar incerta a distância racial na coorte mais recente.
A nova situação descortinada, no entanto, representa uma oportunidade
condicional em que a dimensão relativa e absoluta dos beneficiados varia a
depender da combinação de origem de classe e posse de educação superior.
Dois contrastes podem ser destacados no âmbito da literatura sociológica
nacional. A desigualdade racial na transmissão da herança socioeconômica
seria socialmente mais abrangente do que tem sido constatada. Por sua
vez, na coorte mais recente, o enfraquecimento do papel de raça na
reprodução intergeracional estaria mais circunscrito por tipos e graus de
condicionalidades e seletividades do que foi considerado.
Os padrões sociais que emergem, especialmente nos polos de origens
de classe, na coorte mais recente, ao nível da educação superior, decorrem

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 357

de processos seletivos ou refletem tendências equalizadoras? A associação


empírica representa uma condição necessária, embora não seja uma prova
suficiente, à ideia de um efeito causal equalizador da educação superior,
que pode se dever a processos de seletividade (Zhou, 2019; Fiel, 2020). As
diferenças raciais incertas na coorte mais recente com educação superior
podem refletir mecanismos seletivos de natureza endógena (propensão
dada pela origem de classe) ou exógena (atributos individuais diferenciados),
sem decorrer de uma função equalizadora da educação superior sobre a
distância racial. De um lado, a seletividade representaria um prêmio ou
ônus endógeno da origem de classe, mais amplo entre os pares, a depender
do tipo de origem social; de outro lado, corresponderia a um expediente
mais restrito entre os pares por estar ancorado em atributos individuais
diferenciados, em particular em um contexto geral desvantajoso de origem.
A elucidação conclusiva das tendências divisadas na coorte mais recente
demandaria investigação adicional com métodos que permitam diferenciar
os processos de seletividade das tendências de equalização.2

José Alcides Figueiredo Santos é Doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais e do Centro de Pesquisas Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora.
 jose.alcides@ufjf.edu.br

2
A tarefa não seria simples, mesmo com os novos métodos em desenvolvimento, em
particular quando se avalia o viés de seleção somente com variáveis observáveis, pois
quaisquer fatores não controlados que influenciem a educação e estejam associados à origem
socioeconômica poderiam gerar fontes espúrias de interação entre origem e educação (Fiel,
2020). A complexidade aumentaria em se tratando de interações entre origem de classe,
raça e educação.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 328-360.


358 José Alcides Figueiredo Santos

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Recebido: 5 abr. 2021.


Aceito: 29 nov. 2021.

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Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social 361

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362 César
ARTIGOS
Sabino
362

http://doi.org/10.1590/15174522-111759

Corpos descartáveis: neosoberania e


exclusão na era digital
César Sabino*

Resumo
A pesquisa tem por objetivo estudar a formação de um regime neosoberano de poder
na contemporaneidade influenciado pelas tecnologias digitais, as quais fortalecem
novas configurações socioeconômicas em um processo geral de construção de
relações virtuais de trabalho. Utilizando alguns aspectos do pensamento foucaultiano,
busca analisar as atuais dinâmicas das relações de poder permeadas pela criação de
novas subjetividades administradas por manobras necropolíticas de enfraquecimento
psíquico e, mesmo, eliminação física daqueles que não se encaixam na extração
cotidiana de riquezas.◊
Palavras-chave: neosoberania, capitalismo digital, vigilância, subjetivação, exclusão.

Disposable bodies: neosovereignty and exclusion in digital era


Abstract
The theoretical research aims to study the formation of a contemporary neosovereign
regime of power, influenced by digital technologies that strengthen new socioeconomic
configurations in a general process of construction of virtual work relations. Using
some aspects of Foucault’s thought, it seeks to analyze the production dynamics of
current power relations permeated by the creation of new subjectivities managed
by necropolitical schemes for psychic weakening, and even physical elimination
of those who do not fit into the system’s daily extraction of wealth.
Keywords: neosovereignty, digital capitalism, surveillance, subjectivations, exclusion.

* Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.



Agradeço aos revisores pelas sugestões e imprescindíveis correções.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 363

Introdução

O
trabalho busca traçar breves aspectos característicos das atuais
relações de poder e suas formas de administração da “vida”1 e do
corpo, sugerindo que vivemos em um momento de “neosoberania”
nas relações sociopolíticas. Relações que são produzidas pelo aprimoramento
da extração de riqueza via tecnologia informática no capitalismo financeiro,
esboçando a possível sobreposição dos dispositivos de soberania, disciplina e
controle no contexto das sociedades contemporâneas. Dispositivos, por sua
vez que em seus processos de agenciamento, de gestão da existência visando
a maximizá-la como força produtiva, também provocam o oposto, exclusão,
sofrimento e eliminação de parte do contingente populacional, produzindo
não apenas a morte em suas várias formas, mas novas subjetividades
melancólicas e enfraquecidas.
Partimos, portanto, do pressuposto de que a nova configuração
capitalista intensifica o sofrimento psíquico e físico, sendo as relações nas
plataformas digitais e o amplo espectro das tecnologias informacionais,
um dos elementos a contribuir para as condições atuais de existência.
Utilizaremos algumas ferramentas conceituais elaboradas pelas pesquisas
de Michel Foucault, além de outros autores, entendendo que, ao menos
em parte dos seus escritos, a dimensão somática passa necessariamente
pela preocupação em compreender os gerenciamentos da vida em seus
desejos, regozijos e sofrimentos (Deleuze; Guattari, 2010; Foucault, 2011;
Bruno, 2013; Burmester, 2015; Rolnik, 2018).

Crise e sofrimento
O corpo, em nossa sociedade, é um fato construído culturalmente,
posto ser fruto da dimensão representacional radicada em crenças, valores,
normas e regras concernidas aos comportamentos individuais e coletivos,
1
Os limites do texto impedem a discussão do complexo conceito de “vida” ligado ao
movimento da Lebensphilosophie caracterizado por interpretações inspiradas em Spinoza
e Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Bergson e Deleuze, sem esquecer
Simmel, Canguilhem e Foucault.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


364 César Sabino

diferenciados de grupo para grupo, variando no tempo e no espaço. De


forma mais direta: o corpo, e tudo que a ele se relaciona, é um fato social
ou um “fato social total”, elemento que não apenas articula as instâncias
institucionais (Lévi-Strauss, 1974)2, mas que também é “sociopsicobiológico,
presente nas esferas organizacionais (Mauss, 1974), não havendo um
“fora” ou uma dimensão externa desse mesmo corpo, o que equivale a
dizer que todos os aparatos disciplinares e de controle que o compõem
lhe são imanentes, arraigados ao contexto sociocultural, político, histórico
e normativo no qual está inserido e coexistindo (Foucault, 1999).
A concepção de corpo pode ser vista como diferindo daquela de
organismo, entendido em nossas culturas como dimensão biológica3. Por
esse motivo, o sofrimento e a dor, em suas diversas dimensões, apresentam
“sentidos” e “significados” variáveis de indivíduo para indivíduo, de
sociedade para sociedade, de grupo para grupo, de época para época,
sendo que o sofrimento psíquico ou psicossomático pode ter causas diversas,
modulando-se, em sua percepção e intensidade, de acordo com o contexto
econômico e sociocultural, do qual o agente social faz parte (Duarte, 1999;
Das, 2006; Zarias; Le Breton, 2019).
Com o evento da chamada quarta revolução tecnológica ou digital,
parte significativa da humanidade passou a se relacionar e depender,
em diversos aspectos, das tecnologias informáticas (Lévy, 1993), que
se apresentaram como soluções indiscutíveis para questões seculares,
2
“O fato social total apresenta-se, pois, com um caráter tridimensional. Deve fazer coincidir
a dimensão propriamente sociológica, com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão
histórica, ou diacrônica; e, finalmente, a dimensão fisiopsicológica. Ora, é só nos indivíduos
que esta tríplice abordagem pode ser feita. [...] A noção de fato social total está em relação
direta com a dupla preocupação, que para nós havia parecido única até agora, de ligar o
social e o individual de um lado, o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de outro.” (Lévi-
Strauss, 1974, p. 14-15).
3
É preciso, porém, ressaltar o surgimento de abordagens antropológicas que vão muito
além dessa visão metodológica aqui apresentada e que, pode-se dizer, revolucionaram as
ciências sociais contemporâneas. Trabalhos como os de Viveiros de Castro (2002, 2018),
Latour (1996, 2009), Ingold (1990, 1994, 2003, 2004), Strathern (2014) e outros ressaltam
a inexistência de dualidades como corpo/organismo, corpo/mente, humano/animal, cultura/
sociedade, além de outras, em pensamentos nativos e mesmo em pensadores e filósofos da
cultura ocidental como Baruch Espinoza e Gilles Deleuze.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 365

mas também produziram novas formas de dominação e sofrimentos


psicossomáticos (Kushlev; Heintzelman, 2018; Darnai et al., 2019; Zhang
et al., 2020). Sofrimentos, não raro, associados às frustrações cotidianas nas
relações sociais de trabalho referidas ao desemprego estrutural e à crescente
ausência de direitos, exploração material e simbólica, ausência de perspectiva
profissional e de futuro para os mais jovens, e mesmo idosos, além da solidão
a permear relações sociais em grande parte agora voltadas para plataformas
digitais. Sintomas associados, também, às transformações institucionais e
crises de valores e práticas propensas a encolher a condição de ser vivente
(Castells, 1996; Bourdieu, 2001, 2008, 2014; Wacquant, 2001, 2002;
Antunes, 2009; Deleuze; Guattari, 2010; Han, 2017). Sofrimentos que a
medicina ocidental, ou biomedicina, não consegue, por vezes, diagnosticar
claramente e tratar, por não apresentar em seus métodos e abordagens,
elementos que permitam a percepção – por parte do profissional – dos
aspectos simbólicos e psicossociais originários do cotidiano, que levam
a depressões e angústias referidas ao que especialistas vêm indicando
como sendo um estado de crescente desarmonia social4 (Duarte, 1999;
Durkheim, 2003, 2011, 2013; Mauss; Hubert, 2013; Henriques, 2021;
Santos Jr.; Vieira, 2021),
Sofrimento esse possivelmente relacionado também aos sentimentos
de descartabilidade produzidos pela ausência de reconhecimento,
solidariedade e reciprocidade, constitutiva daquilo que alguns autores
compreendem como uma perda da segurança ontológica ou falta de
sentido para a vida, e que está relacionada às transformações do mundo
4
Apesar de tudo, propostas e práticas de amenizar, ou mesmo subverter, resistir e superar
essa dominação e descarte de subjetividades no capitalismo atual, têm sido investigadas
em pesquisas surgidas nos últimos tempos. Trabalhos que descrevem a invenção de novas
representações contracapitalísticas, a partir da busca de práticas de manifestações digitais
múltiplas, também novas formas de interações corporais distintas dos modelos imagéticos
dominantes produzindo novas subjetividades em indivíduos e grupos. Todo esse movimento,
pode-se dizer, está pautado em criações micropolíticas ou formações de contrapoderes
institucionais, como, por exemplo, as diversas maneiras de lidar com as tecnologias
informáticas ao redor do planeta feitas por distintos grupos sociais (Lévy, 1993; Mattos; Luz,
2009; Mattos, 2012; Pelbart, 2011; Miller; Horst, 2012; Rolnik, 2018; Malvezzi, 2019; Hui,
2021; Beiguelman, 2021).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


366 César Sabino

do trabalho e das representações no capitalismo financeiro (Antunes, 2009;


Boltanski; Chiapello, 2020; Caillé; Vandenberghe, 2021). Além disso, a
fixação de modelos inalcançáveis de sucesso econômico e estético em
plataformas de compartilhamento de conteúdo audiovisual, associadas a
representações inatingíveis de felicidade, pode intensificar autopercepções
de fracasso, exclusão e vazio nos usuários/consumidores dessa nova formação
subjetiva atravessada por agenciamentos imagéticos. A gestão da morte
e das condições mortíferas se realiza, assim, em vida, por intermédio da
elaboração de subjetividades enfraquecidas, despotencializadas, deprimidas
e autodestrutivas. A tecnologia tanatopolítica produz o gerenciamento dos
corpos e mentes por intermédio da fragmentação mortuária imbricada no
devir cotidiano, morte destilada em vida via tristeza crônica diária, falta de
esperança e adoecimento mental, incentivado pelos processos interativos
digitais, mas por condições de subsistência envoltas no constante perigo e
temor de ser eliminado a qualquer momento, seja pelo terror, por forças
criminosas ou estatais, sendo a existência e a própria circulação cotidiana
marcadas pelo risco de morte. Um morrer a conta-gotas que contribui
para a reprodução das estruturas de dominação associadas ao medo e
a melancolia, afetos reativos e desmobilizantes (Bruno, 2013; Mbembe,
2018; Franco, 2019; Safatle et al., 2021; Beiguelman, 2021).
Talvez não seja por acaso que o aumento do número de suicídios
entre jovens e idosos, ao redor do planeta (Brum, 2018; Waiselfisz, 2014;
Datasus, 2014; Ministério da Saúde, 2017), coincida justamente com a
expansão das tecnologias digitais. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde
(2017), os suicídios aumentaram entre jovens na seguinte proporção: do
período de 2000-2015 houve aumento, na faixa etária de 10 a 14 anos, de
65%; de 15 a 19 anos, de: 45%; de: 20 a 29 anos, de: 23%. No mundo, o
suicídio já é a segunda causa de morte entre adolescentes, e a terceira entre
a população em geral, conforme dados da Organização Mundial da Saúde
WhoSis (apud Waiselfisz, 2014). De acordo com os dados do Datasus, as
mortes por depressão no Brasil, o período de 1996 a 2012 aumentaram
705% somando todas as faixas etárias, com destaque para adolescentes e

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 367

para idosos acima de 70 anos. (Datasus, 2014; Ministério da Saúde 2017).


Podem-se somar a esse desfecho, as crises depressivas, distúrbios psíquicos e
psicológicos que levam jovens, adultos e idosos não apenas ao adoecimento
mental, mas também ao suicídio – condições agravadas ainda pelos efeitos
da pandemia de Covid19 (Hartmann, 2020; Santos Jr.; Vieira, 2021; Hill
et al., 2021). A análise de taxas de suicídios dos últimos vinte anos parece
indicar sensível retorno à “anomia”5 (Hoffman; Bearman, 2015).

Caixa de ferramentas Foucault


Diante do exposto, e utilizando as ferramentas que parte da obra
foucaultiana apresenta, buscaremos compreender algumas dimensões
desse problema. É provável que os conceitos elaborados pelo autor aqui
apareçam muito esquemáticos, talvez devido à carga sociológica que a eles
será associada, a qual Foucault certamente recusaria. Não temos, portanto,
preocupação em manter-nos exatamente fiéis a uma maneira de ler o autor,
o que pode levar especialistas a repudiarem o uso que fazemos de alguns
breves aspectos de sua obra. Pensamos que Foucault (assim como Nietzsche)
é um pensador para quem a “infidelidade”, ou instrumentalização de seu
trabalho, é a melhor maneira de lhe render homenagens6, posto que nem
ele mesmo parecia fiel à sua obra (Machado, 2017).
5
Destacamos três aspectos desse conceito que parece surgir primeiro nos escritos de Guyau
(1884/2019), significando a capacidade criativa humana proporcionada pelo ocaso dos
valores tradicionais e anti-vitais passando pela consagração em Durkheim (1897/ 2011), como
sendo a perda da coesão social, ausência de regras e normas morais e enfraquecimento da
consciência coletiva; e, por fim, surgindo no trabalho de Robert Merton (1938/ 1993), como
formas paralelas (organizações criminosas) de poder opostas àquelas legais e oficiais, fato
relacionado à ausência de oportunidades de ascensão social ou mesmo de possibilidades de
sobrevivência em um sistema social complexo contemporâneo. Fora isso, Merton relaciona
o conceito aos comportamentos evasivos – toxicodependentes – e políticos que visam a
destruição do status quo – terrorismo, saques e invasões etc.
6
Conforme escreve o próprio Foucault (1993, p. 14) a respeito do seu método genealógico
retirado das leituras de Nietzsche: “atrás das coisas há ‘algo inteiramente diferente’: não
seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência[...]” ou ainda:
“o único sinal de reconhecimento que se pode ter em relação a um pensamento [...] é
precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se se
é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.” (1993, p. 143).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


368 César Sabino

Nessa perspectiva, Antonio Negri, por exemplo, a partir de leitura


peculiar, harmoniza o autor a Marx, interpretando trabalho como “fonte
viva” de valor, possibilidade universal de existência do capital, e ressaltando
a exploração da vida humana como a fonte fundamental do acúmulo
de riqueza a partir do crescente esforço maximizante da exploração.
Esforço traduzido, dentre outros aspectos, no crescente avanço tecnológico
(Marx, 2011; Negri, 2016). Nessa abordagem, os conceitos de biopolítica
e biopoder surgem como instrumentos auxiliares para a compreensão da
realidade atual. Na leitura que realiza, a exploração do trabalho assume
novas dimensões na era digital, deixando as circunscrições das fábricas7
para atravessar todas as instâncias da existência – o que leva os inúmeros
aspectos sociais e individuais a se subsumirem ao capital financeiro em
uma nova economia política da vida. Negri (2016, p. 93, grifo nosso)
escreve: “eis como surge o biopolítico: como vida posta a trabalhar e,
portanto como política ativada para organizar as condições e o controle
da exploração social na dimensão inteira da vida”.8 A interpretação, de
forma esquemática, descreve “biopoder” e “biopolítica” como sendo,
em determinados aspectos, diferentes no que concerne às suas práticas e
potencialidades: biopoder, em seus desdobramentos, seria portador da nova
figura da soberania, imanente à atual nova fase da exploração capitalista;
biopolítica, por sua vez, representaria o terreno no qual a força de trabalho,
ao se exercer enquanto elemento produtivo, também poderia (in)surgir
como instância de transformação e “resistência”. Ou seja, a biopolítica, de
7
Boltanski e Chiapello (2020) destacam a “nova subjetividade” surgida no período atual,
que prima pela autonomia relativa do trabalho, alta competitividade, ausência de direitos e
garantias materiais, provocando danos psicológicos a grande parte da população que ainda
consegue exercer atividades laborais (também Dowbor, 2018).
8
A perspectiva de combinar a disciplina como inerente à exploração do trabalho, e, portanto,
à vida, também é sugerida por Rabinow e Dreyfus (1995, p. 149, Grifos nossos): “o principal
objetivo do poder disciplinar era produzir um ser humano que pudesse ser tratado como
um ‘corpo dócil’. Este corpo dócil também deveria ser um corpo produtivo [...] o objetivo
geral era ‘um aumento paralelo de utilidade e docilidade’ dos indivíduos e populações. As
técnicas para os corpos disciplinados eram aplicadas, sobretudo, aos trabalhadores e ao
subproletariado [...] o controle disciplinar e a criação dos corpos estão incontestavelmente
associados ao surgimento do capitalismo”.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 369

forma paradoxal, carrega a possibilidade da transformação de realidades e


subjetividades, ou a “biopotência”9 (Pelbart, 2015). Conjugados dessa forma,
os conceitos descreveriam tanto a exploração e o agenciamento da vida
pelo capital, sua organização enquanto produção, quanto a possibilidade
de criação de linhas de fuga e novas possibilidades de existência (Negri,
2016.). Se a biopolítica, por meio de intervenções administrativas, na
família, no trabalho, em hospitais, etc., proporciona ordenamento das
condições de existência da população, aumentando sua expectativa de vida,
organizando suas condições de moradia, combatendo doenças, epidemias e
pandemias, por outro lado, também disciplina a vida por meio da extração
de riqueza dos corpos e coletividades no capitalismo contemporâneo, via
trabalho imaterial, indicando a dinâmica do biopoder transversal a todas
as instâncias sociais.
Esse tipo de dubiedade também se expressa nos conceitos de sociedade
de soberania, sociedades disciplinares e, mesmo, de controle, posto que,
na prática, os dispositivos podem ser simultâneos, não se sucedendo,
porém convivendo lado-a-lado; ou seja, se os poderes fazem intensificar a
vida, também podem destruí-la ou deixá-la definhar até a morte (Esposito,
2010; Castro, 2011; Ayub, 2014). Foucault relaciona seus modelos ou
diagramas, em alguns momentos, substituindo-os ou trocando-os, em
complementaridade analítica. O dispositivo biopolítico, por exemplo, não
deixa de ser atravessado pelo de soberania e vice-versa, promovendo uma
dinâmica entre elementos que se articulam. Em sintonia com a interpretação
foucaultiana, Deleuze (1988; 1990) elabora o conceito de “sociedade de
controle”, sugerindo que as formas de vigilância avançam, aprimorando o
panóptico e a produção de subjetividades, via tecnologias digitais, para além
dos muros institucionais, em um processo no qual dispositivos disciplinares
9
É preciso destacar que, em Foucault, como se sabe, onde há poder, há contrapoder,
resistência, criação de novas formas de existência. Nesse aspecto, é preciso destacar a obra
de Daniel Miller que, por anos, investiga ao redor do mundo as diversas, inventivas e distintas
maneiras de sociedades e culturas se relacionarem e gerenciarem a internet, as redes sociais e
o mundo digital, construindo linhas de fugas dessa dominação digital. Vasto material produzido
pelo antropólogo e sua equipe encontra-se no link https://www.ucl.ac.uk/why-we-post.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


370 César Sabino

e de soberania caminham lado a lado. Dependendo do dispositivo saber-


poder, ocorre mesmo fusão entre os regimes, posto não haver sucessão
histórica dos mesmos, mas simultaneidade, o que equivale a dizer que,
em cada época, as diferentes formas de poder se relacionam entre si de
maneira específica (Agamben, 2002; Castro, 2011; Ayub, 2014; Wermuth,
2017; Pelbart, 20111 2015; Mbembe, 2018).
Ousando uma manobra metodológica, podemos aqui sobrepor Weber
a Foucault (e Deleuze), considerando os três conceitos – sociedades de
soberania, disciplinar e de controle – como tipos puros ou ideais, ou
seja, construções modelares por parte do pesquisador. Tais construções
servem para medir por aproximação momentos socioculturais ou períodos
históricos, levando sempre em conta suas inexistências plenas ou puras nas
realidades observadas, em que elas sempre se apresentariam, na prática,
como combinações dos aspectos descritos pelos modelos. Em determinados
momentos, um ou outro aspecto da mesma realidade descrita idealmente se
apresenta de forma mais intensa ou não ao olhar do sociólogo (Weber, 1997).
O conceito de sociedade disciplinar implica um processo histórico-
sociológico de práticas micropolíticas10 relacionadas ao controle das forças
físicas corpóreas, sua potencialização e desenvolvimento, mensuração de
suas intensidades, a administração de seus desejos e objetivos, visando
a adestrar o comportamento e sua distribuição no espaço. Implica,
dessa forma, a criação e a aplicação de um “conjunto de técnicas e
estratégias” de gerenciamento das ações, realizadas primeiro no âmbito
individual, depois na esfera coletiva (Foucault, 1999). Formam-se pessoas
que devem ser mais produtivas, eficientes e obedientes: propensas à
expansão e ao fortalecimento capitalista, no qual o corpo e a vida se
tornam elementos a terem sua força rentabilizada, regulada e extraída pelo

10
“‘Micropolítica’ é o nome que Guattari deu, nos anos 60, àqueles âmbitos que, por
serem considerados relativos à ‘vida privada’ no modo de subjetivação dominante, ficaram
excluídos da ação reflexiva e militante nas políticas da esquerda tradicional: a sexualidade,
a família, os afetos, o cuidado, o corpo, o íntimo.” (Preciado, 2018, p. 18).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 371

trabalho.11 Criam-se organizações que objetivam disciplinar as condutas


“corrigindo-as”: prisões, conventos, oficinas, escolas, asilos, manicômios
e assim por diante – é preciso não desperdiçar essa força produtiva. A
disciplina torna-se, então, fórmula geral de dominação, pautando as
relações organizacionais e institucionais em uma “transversalidade” que
perpassará prisões, usinas e fábricas, chegando aos orfanatos e manicômios
(Foucault, 1997). A partir dessa “invenção” ocidental, será preciso que os
corpos não apenas gozem saúde e força, mas sofram para se adequarem
à máquina produtiva, sendo ajustados, enquadrados nas ortopedias
normativas exigidas institucionalmente. Corpos socioeconomicamente
úteis em suas formas de relacionamento, os quais o poder disciplinador
não apenas marcará carnes e feições com sofrimento e opressão, mas
também com recompensas e gozos (Foucault,1997).
Contudo, no regime atual, no qual as formas de exploração do corpo e
da vida atingiram a máxima potência histórica em acumulação de riquezas,
parece não haver mais necessidade de articulação de tantos dispositivos
disciplinares, não havendo espaço mesmo para as formas administrativas
vigentes no capitalismo industrial taylorista, fordista ou toyotista. Com efeito, a
era do capital financeiro implica nova economia, novas relações socioculturais
e novas subjetividades (Castells, 1996). Essas mudanças atuais estão associadas
a novos aspectos de gestão da morte se comparados aos modelos anteriores.
Se até há pouco, os desempregados e excluídos do consumo, formavam
ou um “exército de reserva”, que não apenas barateava o valor da força
de trabalho à espera de sua oportunidade de ser reintegrada ao sistema,
conforme o “desenvolvimento” da economia, ou um lumpemproletariado que
servia como massa de manobra política (Marx, 2011), no atual capitalismo
financeiro, essa população perde sua utilidade para a produção e o consumo,
não sendo integrada, nem reintegrada. Não há mais lugar para ela na estrutura
social, o que demandaria a gestão de sua morte.

11
“A proliferação das tecnologias políticas [...] investir[á] sobre o corpo, saúde, as maneiras
de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência [...] se trata
de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder como esse tem de
qualificar, medir, avaliar, hierarquizar [...].” (Foucault, 1999, p. 135. grifos nossos).

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372 César Sabino

Por conseguinte, uma das características das sociedades atuais seria a


neosoberania, o controle e a vigilância, por meio de tecnologias virtuais,
ou a reincidência dos poderes estatais ou paralelos ao Estado, sobre
“corpos” e “vidas” que não mais se adaptam ou submetem à dinâmica
produtiva, podendo mesmo serem descartados de forma paralela aos
preceitos legais. Em outras palavras: embora legalmente o Estado não
possa eliminar indivíduos que a princípio seriam considerados perigosos
ou inúteis, ele o faz por meio de subterfúgios tais como autos de resistência
ou pela articulação oficiosa de componentes organizacionais paralelos
(subestatais) à sua máquina administrativa, ou pelo simples fato de deixar
morrer nos serviços de saúde ou deixar que se matem na (in)segurança
pública12 (Misse, 2012; Feldkicher, 2015; Mbembe, 2018; Franco, 2019).
Da nossa perspectiva, esse fato caracteriza um período no qual aspectos
que constituíam os dispositivos de soberania são rearticulados em novos
termos e intensidades, sugerindo que vivemos, ao menos em algumas
circunstâncias, regimes neoautoritários de poder que articulam em seu
auxílio elementos das tecnologias digitais.

Controle, transparência e exploração digital


Após a Segunda Grande Guerra, gradativamente surgiram novas
tecnologias sociais com a função de ajustar e modular relações disciplinares e
seus mecanismos de vigilância, que se aprimoram de acordo com a dinâmica
capitalista. Dessa forma, às relações disciplinares, comuns às instituições e
organizações até então, somaram-se vigilância e controle cotidiano expressos
pelas crescentes instalações de câmeras de filmagem em vastos espaços

12
Há que se pensar, no caso brasileiro, o exemplo dos esquadrões da morte, das milícias
e as manobras policiais visando a eliminar supostos opositores por autos de resistência
(Feldkicher, 2015). Sabe-se que, ao menos no Rio de Janeiro, é costume, em operações
policiais, agentes portarem armas não registradas ou ilegais eximindo-se de utilizar as
oficiais, com o propósito de exterminarem opositores sem deixar provas. Para Franco (2019),
o Brasil sob o governo Bolsonaro tornou-se o exemplo mais bem acabado das tendências de
necrogoverno ou tanatopolítica sob a égide do neoliberalismo atual. Dinâmica que visa não
apenas privatizar a res publica, mas exterminar corpos e subjetividades tidas como marginais
e improdutivas, pela ação da violência direta armada ou pela via indireta do crescente
abandono institucional nas áreas de saúde, educação e segurança.

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Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 373

sociais, não apenas internos, como escolas, casas, prédios, condomínios, etc.,
mas também externos: vias, rodovias, ruas, praças, e assim por diante. Esse
tipo de controle, ao longo de décadas, se aprimora produzindo dispositivos
eletrônicos, como smartphones, internet, transponders, drones, satélites,
plataformas digitais, e implementando mudanças nas relações sociais em
geral e suas novas subjetividades consonantes ao novo regime econômico
e simbólico do capitalismo em mutação.
Nesse movimento, a rede digital torna-se o novo panóptico,
concentrando crescente massa de informações relativas aos indivíduos e
grupos, no que se convencionou chamar de big data. O gosto, as ações,
as opções sexuais, as relações pessoais, a fisionomia, as fotos, a família, a
localização constante, enfim, tudo se arquiva na instância virtual que se tornou
elemento rizomático mundial. Informações que permitem às autoridades,
via ciências dos dados, rastrear e mesmo prever comportamentos. Qualquer
autoridade competente ou grande organização, pública ou privada, pode,
a princípio, acessar informações particulares de qualquer um a qualquer
momento. Se, em uma democracia saudável, os eleitores ou o povo devem
constantemente fiscalizar políticos e suas ações, o oposto vem ocorrendo:
governos e grandes corporações (Google, Facebook, Tik Tok etc.) vigiam, por
intermédio de algoritmos sempre aprimorados, o cotidiano, a intimidade e
a vida de seus cidadãos-consumidores. Conforme escreveu Bobbio (1986,
p. 46), ainda na década de 80 do século 20,

Nenhum déspota da Antiguidade, nenhum monarca absoluto da Idade


Moderna, apesar de cercados por mil espiões, jamais conseguiu ter sobre
seus súditos todas as informações que o mais democrático dos governos atuais
pode obter com o uso dos cérebros eletrônicos.

Vigilância intermitente, diretamente associada ao capital financeiro


digital, o qual apropriou-se da maioria dos aspectos da vida e, assim, do
desejo, extraindo dele e dos corpos o máximo de lucro possível (Deleuze
1992; Pelbart, 2011; Dowbor, 2017). Colonizando subjetividades, o capital

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374 César Sabino

explora todas as instâncias da vida, buscando delas extrair lucro.13 Assim


o faz, colocando-as para trabalhar sem que percebam, pois age sobre as
instâncias do prazer, fazendo o consumidor das imagens e produtos das
plataformas digitais e sites em geral tornar-se fornecedor dos mesmos tipos
de dados colocados para seu consumo. Forma-se um feedback no qual o
consumidor-usuário produz a mercadoria (seus dados e imagens), consumindo
as mesmas mercadorias de outros fornecedores, e, comprando (via dedicação
temporal intermitente nas telas e “curtidas”) o funcionamento da máquina
que nesse processo interfere em sua subjetividade e em suas práticas.14
Esse potencial cliente transparente das redes sociais é o novo
“presidiário” do megapanóptico digital, segundo Morozov (2018), quem
ressalta a tecnologia atual como manifestação de um novo modo de
exercício de poder, cada vez menos democrático, posto que, além de
controlar o cotidiano dos cidadãos por análises dos big data, dentre outras
ações, manipula por intermédio de fake news, de forma eficiente, as
democracias globais. Desse modo abre oportunidade também crescente
para o surgimento e fortalecimento de regimes neofascistas, para nós
associados a uma modulação do modelo de soberania.

13
A denominada, por Max Weber (1971), jaula de ferro da burocracia, característica da
modernidade, parece tornar-se agora virtual e mais eficaz em seu controle de cada elemento
da vida cotidiana. Por outro lado, se no panóptico o mote era ver sem ser visto no interior de
instituições, na sociedade de controle todos são vistos e monitorados, e também monitoram e
vêem, a qualquer momento, sem necessidade de paredes – pois paredes perdem a função de
esconder. A vida não apenas está nua em sua ausência de cidadania, como escreve Agamben,
mas em sua instância sociocorporal, em suas subjetividades, manifestações, intenções e
desejos (Deleuze, 1988, 1992, 1990; Machado, 1990; Agamben, 2002; Rolnik, 2018).
14
Beiguelman (2021, p. 32) escreve sobre esse processo constituído por “aqueles que,
no campo das imagens, são a um só tempo produtores e usuários do que consomem [...]
retroalimentando [...] um espaço de vigilância neopanótica, resultante de um desejo quase
compulsivo – que se poderia chamar de fetichista – de fazer com que virtualmente tudo
seja acessível na forma de uma imagem”. Nesse aspecto, estamos diante de produsers, um
neologismo inglês que ela retira de Axel Bruns, significando a junção de produtores e usuários.
Há que se pensar também na atual categoria de pós-verdade que consiste, de forma muito
esquemática, em notícias falsas propagadas nas redes sociais, invenções de acontecimentos
ou distorções de fatos os quais articulam sentimentos, crenças e certezas de determinados
grupos, formando “bolhas” virtuais de fanáticos que insistem em se apegar as suas ideologias
negando mesmo a realidade em uma manifestação de radicalismo político e religioso.

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Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 375

A vigilância descentrada (rizomática) perene, enfraquece a esfera


privada, mingua a solidariedade, estabelecendo-se sobre a suspeita,
a fragilidade das senhas, e a criação de perfis falsos. A fragilização dos
valores, das normas de honestidade, da sinceridade produz relações de
sociabilidade e atividades hostis, desconfiadas e descrentes das posturas
do outro (Caillé et al., 2014). Fora isso, o capitalismo articula novas
formas de exploração do trabalho com a uberização e a perda de direitos
sociais, extraindo até mesmo do sono seu lucro concentrador (Cunha,
2021; Abílio et al., 2021). Para Jonathan Crary (2016), o sono de oito
horas atualmente é um empecilho para a exploração neoliberal que
busca colonizar e extorquir valor dessas horas “improdutivas” dos corpos
e organismos. O sono seria a última fronteira a ser ultrapassada pelos
mecanismos de exploração. A difusão da internet tornou comum pessoas
perderem noites inteiras de sono para checar mensagens ou entrar em
sites variados ou mesmo trabalharem. Crary também aponta para as
pesquisas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos que buscam
criar o soldado sem sono, capaz de atuar ininterruptamente por dias e
noites em missões pelo planeta. Nesse movimento tecnológico tudo está
sendo colonizado pelo paradigma da mercadoria desde o código genético
de espécies vivas e mortas até a nossa necessidade de contato e afeto
entre pessoas. Podemos dizer mesmo que o neoliberalismo deixou de
ser uma teoria econômica apenas para tornar-se um modus vivendi ou
um ethos (McKinnon, 2020).
Na transparência atual, o acesso às particularidades de cada um por
intermédio das estruturas sistêmicas permite às autoridades identificar,
a qualquer instante, aqueles que se mostram "funcionais" (consomem
e vendem suas imagens, portanto, servem) e aqueles que podem ser
excluídos, esquecidos, eliminados e executados, as "vidas descartáveis"
que não apresentam utilidade para a extração do lucro em uma política
que escolhe corpos matáveis, em geral aqueles dentre os mais pobres,
afrodescendentes, mulheres, imigrantes e indígenas (Mbembe, 2018).
Todos que além de sua condição miserável, não raro, são também
marcados pela impossibilidade de contato com as tecnologias aqui

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376 César Sabino

destacadas, por já terem sido excluídos do acesso aos direitos básicos de


cidadania como educação de qualidade e saúde, além de oportunidades
em geral. Como dissemos, esses corpos e vidas apresentam-se como
elementos liminares desencaixados das estruturas sociais, sem importância,
direitos, valor, e, portanto, passíveis de serem eliminados ou serem
mantidos em sobrevida.

Neosoberania e execução
Weber, quando ressalta o aspecto crescente da racionalização e do
controle ou agenciamento da vida cotidiana no capitalismo moderno
denomina esse movimento de Entzauberung der Welt, ou desencantamento
do mundo, relacionado ao crescente desenvolvimento das ciências,
tecnologias e técnica. Essas não apresentariam apenas o aspecto positivo
e resolutivo intrínseco às suas práticas, porém diminuiriam o poder das
explicações mágico-religiosas, sagradas e metafísicas, criando mecanismos
de dominação e controle cotidiano da vida do trabalhador e da população
em geral via aprimoramento burocrático, tornando a vida, por vezes, sem
sentido ou significado (Weber, 1971, 1996, 1997).
Mbembe, em seus estudos sobre necropolítica, confere ênfase às
relações macropolíticas, enfatizando o terrorismo, a nova exclusão social de
povos inteiros, as guerras tecnológicas, destacando, portanto, o significado
político da morte. Porém é necessário ressaltar que a necropolítica se faz
sentir no "cotidiano" das sociedades atuais, nas quais correntes autoritárias
de conduta e governo vêm se consolidando nas mais ínfimas relações,
destituindo gradativamente o sentido e o significado da vida de atores e
grupos. Ao menos em alguns aspectos desse novo modelo de soberania,
destaca-se a capacidade das relações de poder e dos Estados “definir[em]
quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é”
(Mbembe, 2018, p. 41, grifo nosso). Acrescentaríamos: quais vidas ainda
servem para explorar e quais não servem, podendo ser deixadas para
morrer como ocorreu na pandemia de Covid19 no Brasil.
Inspirando-se em parte na obra de Foucault, e em parte na de Agamben,
dentre outros, o filósofo camaronês sugere que vivemos uma época na

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Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 377

qual aumentam os elementos e ações políticas que representam aquilo


que se convencionou chamar "Estado de exceção" (Schmitt, 1996). Para
Agamben (2002), o Estado de exceção seria uma instância jurídico-política
paradoxal, que se situa entre democracia e absolutismo, debruçando-se
sobre a vida dos cidadãos com o direito pleno de eliminá-la quando o
governante achar necessário. O Estado de exceção possibilita ou permite
a eliminação de adversários, e de todos aqueles que não se enquadram
no seu sistema político-econômico. Sob nosso ponto de vista, esse Estado
e sua macropolítica, não pode ser pensado fora das relações cotidianas,
micropolíticas, vigiadas pela tecnologia digital.
Na Grécia antiga, destaca Agamben (2004), havia separação entre, de
um lado, a vida construída cultural, política e socialmente, que conferia
estatuto de cidadão a seu possuidor (bíos), o que significava a assertiva
ética, decisão; e, de outro lado, aquela vida totalmente despida dessas
características, a "vida nua", unicamente natural (zoé), similar à vida do
animal de abate, sem estatuto definido, sem linguagem, sendo suas decisões
assentadas na dor ou prazer apenas. Em consonância com essa antropologia
filosófica, Agamben destaca a figura do Homo Sacer que, no antigo direito
romano era aquele que, por ofender os deuses e de alguma forma colocar
a coletividade em risco, era expulso, excluído do convívio social, perdendo
todo e qualquer direito civil, sendo deixado à própria sorte, à vida nua.
Por representar um óbice ou estorvo à coletividade, era um risco à vida da
polis, ou à ordem da civitas, podendo assim ser morto por qualquer um a
qualquer momento, posto que seu fim seria o de alguém insignificante, o
que não fazia incorrer em homicídio aquele que porventura o eliminasse.
Parece, atualmente, que a política de "governo da vida" – e dos corpos
em particular – descarta parte de contingente humano, individual ou coletivo,
tanto de forma concreta, pela exclusão social e extermínio direto, assim
como de maneira simbólica, produção de adoecimento psíquico, baixa
autoestima, ausência de solidariedade e depressão (Duarte, 1999; Das,
2006). Para tanto basta que essa mesma vida seja (des)classificada como
estorvo para a administração baseada no avanço tecnológico e na extração
de "mais-valia" o trabalho imaterial pelas novas dinâmicas algorítmicas. Era
da "necropolítica biopsicossocial", ou "neosoberania de exceção", na qual

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


378 César Sabino

o Estado não apenas se coloca como praticante de exceção, por meio de


políticas neoliberais, mas também expande sua violência ultrapassando os
limites da estatalidade, na medida em que o direito de matar dele se aliena,
migrando para um conjunto heteróclito de grupos armados locais, milícias,
formações paramilitares, empresas privadas de segurança, transformando
assim a coerção e a violência em uma commodity (Franco, 2019).

Considerações finais
Nossa hipótese é que vivemos um momento de intensificação de alguns
aspectos do modelo de soberania (neosoberania) relacionado à revolução
digital, a qual produz não apenas um novo tipo de exploração do trabalho
imaterial, e, portanto, da vida mental, reformulando relações sociais de
produção, mas também produz crescente exclusão social por intermédio
do adoecimento psicofísico referido a essas relações.
Os agenciamentos coletivos de ordem virtual auxiliam o controle do
cotidiano e das subjetividades, provocando, muitas vezes, melancolia,
inação, dispersão, e, mesmo paralisia, por intermédio do uso de tecnologias
que extraem constantemente vida de consumidores-usuários-trabalhadores,
em uma "neosoberania totalitária", não raro, eivada de micro-fascismos e,
propensa a instaurar uma crise geral da democracia. Processo transversal
que vai das subjetividades às instituições e vice-versa, no qual não apenas
se estabelece a produção constante de sofrimento biopsicossocial uma
"necropoiética", mas também exclusão e extermínio daqueles corpos
que não têm mais lugar ou utilidade nas estruturas sociais do capitalismo
hodierno – "tanatopolítica" gestora de vidas descartáveis. Vidas voláteis que,
no compasso do que escreve Lapoujade (2017, p. 104 -106), constituem
esse ser humano sem mundo, sem lugar, despossuído de direitos, por
não servir, do ponto de vista dos governos, para nada, “perde[ndo] toda
continuidade e se reduz[indo] a uma sucessão de instantes”. É tão pouco
real esse ser, que nem é mais certo que tenha um corpo, tornando-se para
as autoridades um ente sem tempo, espaço, pensamento ou linguagem.
Epifania do fetichismo da mercadoria.
Essa vida pós-institucional, na qual se estabelece a ausência de
solidariedade, produzida pela superficialidade e superfície lisa e escorregadia

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Corpos descartáveis: neosoberania e exclusão na era digital. 379

das interações virtuais, direciona-se frequentemente para a solidão crônica,


intensificada pela exposição desencantada da intimidade possível, a revestir
não apenas a mesma existência (por exemplo, na pan-pornografia transversal
da web), mas também a morte, presente nos vídeos de suicídios, e crueldades
de todo tipo, com seres de todas as espécies expostos em páginas gore e
mesmo nas PGMs15 do Facebook. Procedimentos que parecem esgarçar
a percepção e o sentimento de coesão social, produzindo um estado de
desintegração institucional e danos psíquicos como a perda do sentido da
vida ocasionada pela transformação do outro e do mundo em coisa (Marx,
1983; Weber, 1997; Durkheim, 2011).
Diante de tal cenário, cabe a resistência, e, por certo, a insurgência:

É preciso que os homens inventem aquilo contra o que eles podem se insurgir e,
ao mesmo tempo, aquilo em que transformaram sua revolta. Ou para onde vão
dirigir sua insurreição. Essa direção tendo de ser reinventada indefinidamente. Não
vejo ponto final em uma história dessas. Quero dizer, não vejo o momento em
que os homens não terão mais de se insurgir (Foucault, 2018, p. 90. grifos nossos).

César Sabino é Doutor em Sociologia e Antropologia e professor colaborador do Programa


de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
 cesarsabino@hotmail.com

15
PGMs são “páginas de gente morta”, assim são denominadas no Facebook atualmente,
e funcionam a partir das postagens dos detalhes mínimos de todos os tipos de tragédias,
necrofilia, assassinatos, acidentes graves, suicídios gravados, estupros, torturas e crimes
diversos, bizarrices, dissecações, morbidades, decapitações, esquartejamentos de
pessoas vivas, corpos em putrefação, etc., postagens retiradas de câmeras de vigilância
ou de smartphones daqueles que presenciam e gravam as tragédias ou seus resultados.
Expandem-se assim as imagens do que era considerado, e, está deixando de ser, mais
deletério e escondido na nossa cultura atual, fazendo transbordar dos muros institucionais
e organizacionais o que antes era oculto. Essas páginas apresentam suas postagens de forma
dissimulada entre os comentários dos frequentadores e são acessadas por intermédio de links
que direcionam o usuário para os sites. Assim sendo, o algoritmo do Facebook não consegue
rastrear e identificar o material e não o elimina do sistema. Essas manifestações públicas
do que em nossa cultura vem sendo considerada a mais pura crueldade nos remetem à
consolidação neoliberal de uma economia política da violência ligada à formação de uma
rede de serviços, e, portanto, a um mercado voltado para produção da morte nas diversas
esferas sociais. Aspectos que podem remeter, em outra intensidade, aos rituais de sofrimento
presentes nos reality shows destacados por Silvia Viana (2013) e que expressam um
espírito competitivo e deletério de uma sociedade que se compraz na dor e na eliminação
justificando o sofrimento da maioria pelo suposto merecido sucesso de um indivíduo.

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380 César Sabino

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Recebido: 25 fev. 2021.


Aceito: 4 fev. 2022.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 362-385.


386 INTERFACES
Mércia Alves
386

http://doi.org/10.1590/15174522-107406

A organização das campanhas


eleitorais nos municípios: o caso de
Guarulhos em 2016
Mércia Alves*

Resumo
O artigo tem como objetivo discutir a organização das campanhas eleitorais nos
municípios, da seleção de candidatos à definição das estratégias de comunicação. A
pesquisa caminhou a partir das perguntas: o processo de profissionalização, descrito
pela literatura internacional e no Brasil, alcançou as campanhas majoritárias nos
municípios? Em caso positivo, como e quais são as características desse processo nas
campanhas eleitorais locais? Como se dá a expansão da estrutura física dos partidos
e do número de pessoas envolvidas para a realização de atividades remuneradas e
voluntárias durante o período eleitoral? Como são alocados e distribuídos os recursos
financeiros dos partidos no gerenciamento das campanhas? Para responder a essas
questões, foram selecionadas as campanhas de 2016, de PSB e Democratas, em
Guarulhos, cidade onde os partidos não têm acesso ao HGPE no rádio e na televisão.
Examinamos a dinâmica financeira das campanhas, e realizamos entrevistas com
líderes dos partidos. Os principais resultados apontam que a profissionalização
está sendo incorporada de forma desigual e em diferentes graus, a depender dos
recursos disponíveis, das estratégias e perfil de candidatos.
Palavras-chave: Campanhas eleitorais, profissionalização das campanhas, eleições
municipais, eleições 2016.

* Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 387

Organization of municipal electoral campaigns: the case of


Guarulhos in 2016
Abstract
The article aims to discuss the organization of election campaigns at the municipal
level. The survey walked from the questions: Has the process of professionalization,
described by international literature and in Brazil, reached the majority campaigns in
the municipalities? If in positive case so, how and what are the characteristics of this
process in local election campaigns? How is the physical structure of the parties and
the number of people involved to carry out paid and voluntary activities during the
election period expanded? How are the financial resources of the parties allocated
and distributed in campaign management? To answer these questions, PSB and
DEM election campaigns were selected in Guarulhos (2016), where do not have
access to HGPE on radio and television. We examined the financial dynamics of the
campaigns, and conducted interviews with party leaders. The main results indicate
that professionalization is being incorporated unevenly and to different degrees
depending on the resources available, the strategies and the profile of candidates.
Keywords: Election campaigns; Professionalization of campaigns; Municipal elections;
Elections 2016.

Introdução

O
objetivo do artigo1 é discutir a organização das campanhas
eleitorais nos municípios, da seleção de candidatos e diálogo
entre Diretórios à definição das estratégias. Para tanto, o conceito
de profissionalização é fundamental: processo de adaptação do marketing
eleitoral às novas formas de comunicação centradas nos meios eletrônicos
e digitais, o qual demanda a incorporação de novas ferramentas e pessoal
especializado, a expansão da estrutura do partido e pesquisas de opinião
(Mazzoleni, 2010, 2015; Farrell, 2009; Gibson, 2008; Gibson; Römmele,
2009; Holtz-Bacha, 2015; Lisi, 2013). O fenômeno é observado no Brasil
1
O artigo é parte de uma pesquisa financiada pela FAPESP (2015/10473-9), que tem por
objetivo discutir a profissionalização das campanhas eleitorais nos municípios a partir do
porte e da disponibilidade de recursos técnicos e financeiros.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


388 Mércia Alves

pelo menos desde a eleição presidencial de 1989, principalmente nas


campanhas majoritárias nos planos federal e estadual.
A profissionalização no campo político é um fenômeno tomado para
análise sob diversas óticas. O termo foi adotado no contexto da comunicação
política com a terceira era da comunicação eleitoral (Farrell, 2009; Holtz-
Bacha, 2015). O conceito que embasa os objetivos deste trabalho segue a
linha dos autores citados e de Panebianco (2005). Segundo esse, a atuação
no ambiente de incerteza da arena eleitoral requer adaptação dos partidos,
daí a necessidade de uma inserção de “profissionais especialistas”, dotados
de “competências extrapolíticas e extrapartidárias” (p. 437). Essa relação,
acaba por fazer do partido um híbrido, do ponto de vista da gestão, que
combina aspectos de organizações burocráticas, voluntárias e especializadas.
O processo de profissionalização das campanhas é contínuo e, segundo
Farrell (2009), dá-se a partir de eixos específicos, em torno dos quais os
partidos se adaptam para organização das suas campanhas. Eixos esses
que pautam os objetivos deste trabalho. Trata-se: do aumento da estrutura
física do partido, da incorporação de técnicas e ferramentas denominadas
“modernas” para planejamento e execução das campanhas e, como “new
technology requires new technicians” (Farrell; Webb, 2002, p. 115), o
aumento do número de pessoal especializado. Eixos que se refletem no
custo das campanhas eleitorais. O argumento, nesse sentido, é que existe
uma relação direta entre a profissionalização e a dinâmica financeira das
campanhas (Farrell, 2009).
A partir disso, questionamos: como o processo de profissionalização
chega nas campanhas locais majoritárias, principalmente na relação com
os meios de comunicação? Há suporte dos diretórios partidários? Como se
dá a expansão da estrutura física e do número de pessoas envolvidas para
a realização de atividades remuneradas e voluntárias durante o período
eleitoral? Como são alocados e distribuídos os recursos financeiros? Para
responder a essas questões, investigamos a opinião das lideranças dos
partidos que disputaram primeiro e segundo turno no município de
Guarulhos-SP: Partido Socialista Brasileiro (PSB) e o Democratas, Wesley

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 389

Casaforte e Eli Correia Filho. Também analisamos a dinâmica financeira


de ambas as campanhas, a partir dos relatórios oficiais elaborados pelos
partidos políticos, entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como forma
de prestação de contas eleitorais.

Profissionalização e campanhas nos municípios


Campanhas eleitorais têm como objetivo chamar a atenção do eleitor
para um candidato ou agenda específica, e definir o curso da eleição,
na medida em que elas influenciam preferências eleitorais. Campanhas
mudam e mudaram com a ampliação do espaço público proporcionada
pelos meios de comunicação, principalmente a televisão (Manin, 2013;
Mazzoleni, 2010, 2015; Mancini; Swanson, 1996). No Brasil, o marco
histórico do processo de profissionalização é a eleição de 1989, quando
atores políticos passaram a olhar para o potencial da TV como instrumento
eleitoral. A expansão quantitativa e a importância da TV como principal
fonte de informação e entretenimento para o brasileiro (Azevedo, 2006),
foram fatores de importância para a consolidação desse meio como palco
das campanhas nos pleitos seguintes (Azevedo, 2004; Albuquerque, 1999;
Borba, 2012, 2019).
Quando tratamos das eleições municipais, é preciso pontuar que, na
maioria das cidades, os partidos políticos não têm acesso à propaganda
eleitoral televisionada. Guarulhos, onde concentramos nossa análise, é o
maior colégio eleitoral do país2 sem Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral
(HGPE), e está entre as primeiras faixas de limite de gastos estipuladas pela
minirreforma de 2015.3 Isso significa que as campanhas desse município
podem figurar entre as mais caras, à frente de algumas capitais. Nesse sentido,
uma questão sobre o uso da internet que nos é sensível é o seu potencial
2
Guarulhos tem 1.221.979 milhões de habitantes, e tinha o segundo maior colégio eleitoral
do Estado, atrás apenas da capital paulista em 2016. Entre as eleições de 2016 e 2018, a
cidade perdeu 10% do número do eleitorado apto, passando a terceiro maior colégio, atrás
de Campinas.
3
Para minirreforma e limites de gastos ver Alves e Lima (2020).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


390 Mércia Alves

de democratização do acesso à informação política, ou seja, a capacidade


de aumentar o alcance dessa informação nos períodos eleitorais – função
que a TV assumiu em outros casos.
No Brasil, a literatura vem apontando a emergência de um novo
paradigma comunicacional-eleitoral com presença imprescindível das
tecnologias de comunicação. As eleições 2016 consolidaram essa tendência,
com os candidatos utilizando alguma mídia digital para interação (Braga;
Carlomagno, 2018, p. 7). A nossa hipótese é que, nos municípios em que
determinados recursos são limitados, as campanhas mesclam redes e rua –
“the old style of campaigning” (Farrell, 2009): intensivas, com candidatos,
filiados e voluntários desenvolvendo todo ou parte do trabalho, envolvendo
a interação com eleitores.

As eleições de Guarulhos em 2016


As eleições municipais de Guarulhos ocorreram em dois turnos em 2016,
quando a cidade elegeu o candidato do PSB,4 Guti com 83,5% dos votos
(34,54% no primeiro turno), contra o Deputado Federal Eli Corrêa Filho, do
DEM,5 que alcançou 16,5% da preferência eleitoral. Ambos, candidatos de
oposição à então gestão do reeleito (2008 e 2012) Sebastião Almeida, do
PT.6 Em 2016, o PT escolheu lançar uma liderança já conhecida: Elói Pietá
foi prefeito reeleito na cidade (2000 e 2004), mas, mesmo com o apoio do
então chefe do executivo, ficou fora da disputa do segundo turno por uma
diferença muito pequena de votos: 19,32% contra 22,38% do Democrata.7
A coligação vencedora das eleições municipais de 2016 apostou
em um jovem empresário, advogado e administrador de formação como
candidato. Guti foi vereador por dois mandatos – o mais jovem vereador
(25), pelo PV, e prefeito (32) eleito do município, com votação recorde.
4
De Guarulhos por Guarulhos: PSB / PSC / PPS / REDE.
5
Muda Guarulhos: DEM / PMDB / PRTB / PEN / PSL / PC do B / PTN / PDT.
6
Melhora Guarulhos: PT / PR.
7
Disputaram também o primeiro turno: Jorge Wilson do PRB (10,9%), Martello do PSD
(5,47%), Carlos Roberto do PSDB (4,47%), Wagner Freitas do PTB (2,01%), Albertão do PSoL
(0,8%) e Nefi Antônio do PPL (0,12%).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 391

No legislativo, foi premiado pela ALESP pelo projeto de Lei aprovado de


Combate ao Bullying, e sua atuação como vereador ficou conhecida pelos
trabalhos com a população mais jovem. Essa característica se refletiu nas
estratégias de organização da campanha de 2016, como será observado.
O candidato do DEM também é bem conhecido no município. Mais
que isso, carrega o nome de um dos maiores expoentes do rádio no Brasil,
Eli Corrêa, que sempre esteve presente nas campanhas eleitorais do filho
à Câmara dos Deputados. Eli Filho também é radialista e participou como
repórter do quadro, “O Repórter do Povo”, orientando os ouvintes sobre
direitos do consumidor, entre outros programas. Eli – o filho – foi Deputado
Estadual por três mandatos consecutivos e está em seu segundo mandato
como Deputado Federal pelo DEM, partido pelo qual concorreu pela
primeira vez ao executivo municipal de Guarulhos.

Os casos de PSB e DEM de Guarulhos em 2016


Para este artigo, entrevistamos o líder do PSB Wesley Casaforte, e Eli
Correia Filho, candidato em 2016 pelo DEM. A construção do roteiro de
entrevistas teve como base os indicadores propostos por Gibson e Römmele
(2009; Gibson, 2008) para discussão da profissionalização das campanhas
eleitorais.8 Além disso, inserimos a análise dos dados da dinâmica financeira
das campanhas: total, origem e alocação de recursos financeiros, baseados
nas categorias pré-estabelecidas pelo TSE. No Brasil, o TSE tem regras para
prestação de contas, e mecanismos de controle da origem e de gastos; e os
partidos, autonomia para definir formas de arrecadação e para distribuição
desses recursos.9
8
Questionário: 1) Houve comunicação entre os diretórios para a campanha? Qual o grau
de autonomia? 2) Com quanto tempo de antecedência e quais os primeiros passos para
se organizar para a campanha? 3) Como é a estrutura física e de pessoal do partido antes
e durante a campanha? 4) Como é formado o comitê e as equipes de campanha? 5) Há e
qual a importância da participação voluntária? 6) A campanha realiza ou utiliza pesquisas
de opinião? Com qual frequência? Elas estão relacionadas às estratégias? 7) Há contato por
telemarketing, mala direta, telefone e sistema de cadastro? 8) Há página de internet, canal
no YT, página no Facebook, perfil no Twitter e Instagram do partido e/ou candidato? Como
o conteúdo é elaborado?
9
Todas as informações são de domínio público. Disponível em: http://divulgacandcontas.
tse.jus.br/divulga/#/. Acesso em janeiro de 2020.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


392 Mércia Alves

Para as eleições municipais de 2016, o TSE estabeleceu, a partir da


resolução n° 23.46310 de 15 de dezembro de 2015, normas e restrições
específicas para doações de campanha, regras para prestação de contas,
e as possíveis punições para partidos e candidatos, datas para divulgação
parcial e final das contas, tetos de gastos e de contratação de serviços
específicos, segundo colégio eleitoral e turnos.11 Também foram definidos
tetos de gastos segundo o colégio eleitoral. A tabela 1 mostra os números
para o caso de Guarulhos.

Tabela 1. Colégio, tetos de turno e returnos em reais, e turnos em 2016

Município Colégio Eleitoral Teto turno Teto returno Teto total


Guarulhos 902.810 4.631.021,13 1.389.306,34 6.020.327,47

Fonte: Elaboração própria.

As atividades de campanha são pré-definidas pelo TSE. Para análise, estão


agrupadas sob quatro rubricas: (i) Comunicação;12 (ii) Terceiros e eventos;13 (iii)
Estrutura e manutenção;14 (iv) Outros.15 As atividades de campanha listadas
nesses grupos foram contratadas e pagas com recurso financeiro. Há um
quinto grupo de atividades, denominado de Gastos Estimáveis, que, segundo
a definição do TSE (2016), consiste em doações de bens e serviços recebidas
10
Disponível em: http://www.tse.jus.br/legislacao-tse/res/2015/RES234632015.html. Acesso
em: 2020.
11
Para Minirreforma Eleitoral de 2015 ver Alves e Lima (2018).
12
Produção de programas de rádio, TV e vídeo, publicidade impressos, publicidade por
adesivos, jornais e revistas, carros de som, produção de página, produção de programas de
RTV, impulsionamento de conteúdo, produção de jingles, vinhetas e slogans, Postais.
13
Terceiros, eventos de promoção da candidatura, atividades de militância e mobilização
de rua, eventos de promoção da candidatura, comícios, pessoal, serviços próprios prestados
por terceiros, pesquisas/testes eleitorais.
14
Locação de bens imóveis, expediente, combustíveis, alimentação, veículos, transporte/
deslocamento, locação de bens móveis, água, telefone.
15
Encargos, impostos, diversas a especificar, doação a outros candidatos. O grupo de
atividades denominado de “Outros” não será apresentado no corpo do texto, já que
reúne valores inexpressivos, exceto por caso específico e justificado. Todos os valores estão
disponíveis no Anexo 1.

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 393

de pessoas físicas, diretórios, partidos ou candidatos. Nessa categoria pode


ser enquadrada qualquer uma das despesas pré-determinadas.
Analisaremos os dados com o objetivo de entender como a
profissionalização das campanhas, que nos parece evidente no contexto
das eleições para o executivo nacional, estadual e capitais, chegou aos
municípios. Interessa-nos, aqui, a organização sob a ótica das lideranças.
Iniciamos com os relatos dos entrevistados sobre o início do planejamento
e diálogo entre diretórios, passamos aos dados da dinâmica financeira
e percepção dos líderes sobre as atividades de campanha. Por fim,
apresentamos as considerações finais.

O PSB em Guarulhos
Em entrevista, o vereador eleito em 2016 e líder do PSB, Wesley
Casaforte, relata que o partido geralmente começa a se organizar para a
campanha com um ano e meio de antecedência. Os primeiros passos são
as articulações, os diálogos com lideranças visando a seleção de candidatos
ao legislativo, possíveis nomes para o executivo, e mapeamento dos partidos
próximos, e que têm interesse em compor a chapa. Para Wesley, é “como
em um jogo de xadrez, temos de colocar as peças nos lugares certos”.
O Vereador foi colega de câmara de Guti (2009-2016), até então no
PV, e articulou sua mudança de partido já pensando nas eleições. Ambos
se identificavam na câmara pelas pautas que defendiam e pela oposição à
gestão petista. Wesley é parte da executiva estadual do partido, e tem contato
direto com Márcio França, vice-governador (2015-2018) e governador do
estado de São Paulo (2018),16 e uma das principais lideranças do PSB. Ou
seja, é um canal entre a alta cúpula e as lideranças municipais.
No período que antecede à campanha eleitoral há diálogo entre os
Diretórios Municipal e Estadual, via meios de comunicação intrapartidária
16
Márcio França foi eleito em 2014 vice-governador de Geraldo Alckmin na chapa
encabeçada pelo PSDB. No mês de abril 2018, França assume o executivo estadual após
renúncia de Alckmin, que concorreu naquele ano à Presidência da República. No mesmo
ano, o PSBista se candidatou à reeleição, sendo derrotado por João Dória no segundo turno.

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institucionalizados. As questões do município são “tratadas de forma livre,


mas nós trabalhamos em conjunto”. Segundo o entrevistado, Guarulhos é,
talvez, a cidade com relação mais próxima com o Diretório Estadual (DE),
muito “pela boa relação que as lideranças locais têm com as estaduais”.
Wesley avalia positivamente essa proximidade, que se estendeu durante
toda a campanha eleitoral.
É competência do município a seleção de candidatos e a definição
de coligações e estratégias de campanha. O Diretório Municipal recebeu
contribuições financeiras dos Diretórios Estadual e Nacional (DN), como
se poderá observar na tabela seguinte. O vereador relata que o partido
costuma contribuir financeiramente para seus candidatos ao executivo em
diversas cidades, mas existem prioridades, e Guarulhos é uma dessas. É
“uma cidade estratégica, pela proximidade, tamanho e importância, mas
também pelas chances que avaliávamos ter”.

Tabela 2. Origem de recursos, PSB Guarulhos

Origem de recurso Total em reais Percentual


Recursos financeiros 1.104.580,00 87,2
Recursos estimáveis 161.734,55 12,7
Pessoas físicas 759.360,00 59,9
Doação de partidos 349.594,55 27,6
Recursos próprios 157.000,00 12,4
Total recebido 1.266.314,55

Fonte: Elaboração própria.

A primeira tabela dedicada à campanha do PSB de Guarulhos (Tabela


2) apresenta dados dos recursos da campanha. Do total recebido, mais
de 87% foi em recursos financeiros e pouco mais de 12% em recursos
estimáveis. Apesar de as doações de pessoas físicas representarem quase
60% do financeiro, os maiores patrocinadores da campanha foram, em

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 395

primeiro lugar, a Direção Estadual com 21,9% (dos 27% destinados pelo
partido), e do próprio candidato que, sozinho, foi responsável por 12%.
Esses dados ratificam o que foi dito em entrevista pela liderança do PSB:
primeiro, trata-se de uma eleição importante para a legenda e Guarulhos
é uma cidade estratégica, o que justifica o investimento do partido. Outra
ênfase é a afirmação de que as lideranças do partido tinham conhecimento
das chances de vitória, daí o montante significativo destinado pela legenda
e pelo próprio candidato. Ou seja, a relação entre investimento financeiro
e expectativa (Gibson; Römmele, 2009) apontada por pesquisas de opinião
– que serão discutidas adiante.

Tabela 3. Comunicação PSB Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Produção de Programas de RTV 1.000,00 0
Publicidade impressos 108.559,99 9,8
Publicidade por adesivos 4.580,00 0,4
Produção de jingles, vinhetas e slogans 1.000,00 0
Jornais e revistas 1.080,00 0
Carros de Som 22.310,00 2
Total 138.529,99 12,49

Fonte: Elaboração própria.

A campanha do PSB em Guarulhos tem algumas características


interessantes a serem observadas. Começamos pelo que foi denominado
Atividades de Comunicação (Tabela 3), que geralmente concentram a maior
parte dos recursos (Alves e Lima, 2018, 2020): a produção de material
audiovisual e impresso. Nessa campanha, os percentuais são baixos: 0,09%
e 10,31% (somadas as três atividades). O valor dedicado à Produção de
Programas de RTV é bastante baixo se comparado aos valores declarados
por campanhas menores.

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396 Mércia Alves

Quanto ao conteúdo, o material impresso foi produzido pela


coordenação da campanha, composta por uma equipe profissional e
lideranças do partido. Todo o conteúdo do material foi aprovado por
essas lideranças, e seguiu as estratégias embasadas nas pesquisas eleitorais
realizadas antes e durante o período de eleições. Foram identificados,
segundo Wesley, dois problemas em relação aos impressos: o custo de
produção e a lógica de distribuição; o incômodo das pessoas com o lixo
produzido pelas campanhas.

A produção de santinhos, jornais e adesivos é cara porque é uma cidade grande


[...] precisaríamos contratar muitas pessoas para fazer a distribuição em todos
os bairros, o que era impossível. [...]. Se a gente for fazer material impresso
para uma cidade toda, além do gasto, a gente vai poluir toda a cidade e isso
não é de bom tom. As pessoas não gostam da cidade suja, reclamam, pedem
para não lotar as caixas de correio.

“[...] então mudamos a lógica”. A distribuição de material impresso foi


realizada em pontos fixos da cidade, para públicos que se interessavam em
obter informação e “chegavam até nós”. As formas de distribuição serão
descritas em mais detalhes com os dados sobre eventos de campanha, na
tabela seguinte. Nesse ponto, cabe destacar que essa estratégia significou
uma economia de dinheiro significativa para a campanha, “uma maior
objetividade no dia a dia das nossas equipes de rua”, e a percepção
das pessoas de que “estávamos fazendo uma campanha mais limpa, e
realmente estávamos”.
“Guarulhos não tem TV”. O vereador afirma já ter buscado o acesso, mas
que essa é uma missão “burocrática, que toma o tempo [...] impossível”. Na
visão de Wesley, que reconhece a importância desse meio de comunicação,
o grande desafio é buscar formas de fazer campanha em uma cidade tão
grande quanto Guarulhos.

A TV é hoje a maior ferramenta para se comunicar com o eleitor. Em São


Paulo tem TV aberta e isso ajuda muito o candidato a fazer a sua campanha,
e as pessoas a entenderem qual a proposta. Aqui, por mais que eu rode, eu
não tenho o alcance da cidade inteira.

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 397

Guarulhos também não tem acesso à propaganda de rádio. Foram


realizadas várias entrevistas em canais fechados de TV e rádios locais.
Importantes, declara o entrevistado, porque é uma forma de abordar assuntos
específicos, responder perguntas, mudar a percepção do eleitorado, ou “ao
menos fazê-lo refletir sobre algum tema, mas ainda esbarramos na questão
da abrangência limitada e do público”. O entrevistado diz que o público
do rádio é muito específico, de idade mais elevada e que, na maioria, já
não vota. Além disso, é um público que não se identifica “de cara” com o
perfil do candidato: mais jovem e dinâmico.
Pesquisas de opinião demonstraram que Guti, candidato eleito, foi
mais popular durante a campanha entre os públicos mais jovens, alcançados
pelas redes sociais. Dados que eram de conhecimento das lideranças do
partido, as quais decidiram privilegiar formas de comunicação online. Ainda
assim, “não deixamos de dar entrevistas, participar de todos os programas
de rádio que nos convidavam, porque entendíamos os nossos limites”.

Nós usamos redes sociais, foram importantes, mas veja, os meus pais não têm
Facebook. Então eu não posso pensar em uma campanha que trabalhe apenas
com rede social porque nem o meu pai e nem a minha mãe vão ficar sabendo,
e eles vivem em uma região central, perímetro urbano [...]. É importante que
você tenha uma ferramenta que te possibilite o alcance que só a TV tem.

Ainda se pode complementar com a fala seguinte:

Por mais que redes sociais tenham muitos seguidores, e tem sim, é insuficiente;
não alcança todos os públicos, alcança um percentual grande de um público
específico e eu não estou fazendo campanha só para esse público.

O partido utilizou a página do candidato no Facebook para a campanha.


O conteúdo foi produzido pela equipe, passando pelo partido e pelo
candidato. Esse conteúdo foi, na maior parte, genérico: plano de governo
e, principalmente, a agenda do candidato e posts que incentivavam o
engajamento na campanha. Além disso, “falamos muito da nossa própria
campanha, do nosso crescimento e viabilidade” – o que a literatura chama
metacampanha (Albuquerque, 1999). O objetivo, segundo Wesley, era

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entrar nas casas por intermédio dos mais jovens, e chegar às famílias, às
pessoas que seriam atingidas pela campanha na TV.
As redes sociais, o Facebook principalmente, foram utilizadas para
manter a campanha ativa 24 horas por dia. “A página do candidato postava
e nós todos compartilhávamos juntos, coletivamente [...] a nossa campanha
foi e pareceu ser engajada”. Por “nós”, Wesley se refere a todos os envolvidos
com a candidatura: a cúpula do partido, candidatos ao legislativo, famílias
e apoiadores, a equipe do candidato a prefeito e toda a sua rede. Para isso,
os posts foram estrategicamente pensados e programados.

A nossa TV foi o Facebook e isso não quer dizer que foi uma campanha barata.
Claro que os custos não se comparam com a campanha na TV, mas está longe
de ser uma campanha sem custo. Principalmente pra nós que usamos realmente
como uma ferramenta ativa e pensamos em tudo, nos mínimos detalhes.

Mais que ativa, a página do candidato e do partido, “mais a do


candidato que a do partido”, foram utilizadas de forma instrumental.
Muito bem definidos, os públicos e conteúdo. O engajamento programado
tornou-se, ao passo em que ganhou seguidores, orgânico.

No começo nós compartilhávamos em massa, mas durante a campanha as


pessoas repostavam voluntariamente. Compartilhavam as ideias, comentavam
[...] faziam campanha com a gente, sem custo, sem deslocamento, sem
trabalho, do sofá de casa.

Para as estratégias de campanha, as pesquisas de opinião foram centrais,


segundo o entrevistado. A primeira foi encomendada pelo partido seis meses
antes de campanha, quando as estratégias começaram a ser pensadas. Ainda
antes do período eleitoral, outras foram feitas com o objetivo de conhecer
profundamente o cenário. Já em campanha, as pesquisas continuaram a ser
realizadas, mas não pelo partido, por terceiros. Não há registro na categoria
específica Pesquisas de Opinião e Wesley não soube informar a respeito.
As pesquisas foram estudadas e discutidas semanalmente pela
coordenação de campanha, profissionais e lideranças do partido. Os dados
divulgados por outros candidatos e institutos, pelos meios de comunicação

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 399

e pelas redes sociais também entraram “na ordem do dia”. Wesley afirma
que cada passo da campanha esteve embasado em dados, cada conteúdo,
cada decisão sobre aonde ir aonde não ir, o que falar e onde falar, quais
os momentos de avanço e recuo.

[...] perfil dos candidatos e dos eleitores, adesão e faixa etária, questões
geográficas, identificação dos indecisos e em quais grupos de indecisos nós
temos mais chances [...] identificar os principais problemas apontados pelos
eleitores, os pontos fortes e fracos da gestão anterior à nossa.

Tabela 4. Terceiros e eventos PSB Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Terceiros 40.500,00 3,6
Pessoal 682.092,00 61,7
Eventos de promoção da candidatura 31.125,00 2,8
Total 753.717,00 68,17

Fonte: Elaboração própria.

O comitê de campanha é formado por lideranças do partido e


profissionais especializados: assessores jurídicos e contadores, jornalistas
e outros profissionais de comunicação. No total, cerca de 50 pessoas foram
contratadas durante o período de campanha, segundo o entrevistado. Esses
valores estão expressos na Tabela 4. Antes do período eleitoral, a estrutura
do partido é consideravelmente menor: uma sede fixa e duas secretárias,
além do suporte dos vereadores eleitos no pleito anterior.
Retomamos alguns pontos para entender os últimos números: dissemos
que o Facebook foi a principal forma de divulgação da agenda e de incentivo
ao engajamento. Segundo Wesley, a rede social viabilizou a principal
estratégia da campanha: os encontros nos bairros e pontos centrais da
cidade pela função “eventos”. Essa é uma ferramenta que possibilita: (i)
que páginas criem um determinado evento físico (como uma reunião,

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


400 Mércia Alves

encontro, palestra, inauguração), ou virtual, (live, lançamento); (ii) que os


usuários, seguidores ou não da página, compartilhem esse evento e enviem
convites para sua rede. A pessoa que recebe o convite pode responder
sim, não ou recusar, e divulgar seu interesse.
Dissemos, também, a partir do relato do líder do PSB em Guarulhos,
que as redes sociais, da forma como foram utilizadas, possibilitaram um
engajamento “diretamente do sofá”, a partir do compartilhamento de posts.
Mas as redes permitiram, também, com essa ferramenta, o “engajamento
de corpo presente”. Foram realizados encontros em locais públicos nos
bairros, com apoio dos candidatos ao legislativo de cada região, cabos
eleitorais e o candidato a prefeito “sempre que possível”.

Não foram realizados comícios nos moldes dos clássicos, mas nós tínhamos
muitos carros na rua, passeatas, encontros, e esses eventos descentralizados
e simultâneos [...] os eventos realizados quase que diariamente nos bairros
foram marcados e divulgados via Facebook. No dia e horário marcado a
equipe montava uma tenda feirão, e recebia as pessoas, tirava dúvidas e
distribuía o nosso material.

Não à toa, a categoria “terceiros e eventos” representou o maior


percentual de investimento financeiro, 68,17%, com destaque para “pessoal”
(61,75%) – pessoas que trabalharam nas “tendas feirões”, distribuindo
material de campanha, tirando dúvidas dos interessados, balançando
bandeiras, organizando esses minis eventos e “dando volume à campanha”.
Foram muitas pessoas contratadas individualmente para esses trabalhos,
também muitos voluntários, segundo o entrevistado, como será demonstrado
na última tabela na subseção.
Os gastos com alimentação e transporte (Tabela 5) refletem o perfil
itinerante e “cheio de gente” da campanha. O valor destinado à alimentação,
por exemplo, é o maior entre os casos deste estudo, as campanhas de Guarulhos,
o mesmo para combustíveis. Entre os maiores fornecedores listados estão: uma
lanchonete, em segundo lugar, dois postos de gasolina, em quarto e quinto
lugares, intercalados com serviços de gráficas e editoras. Para as eleições, como
já dito, o comitê de campanha trabalhou em uma sede específica – esse dado

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 401

está na próxima tabela. Essa sede “era o cérebro da campanha” e serviu de


ponto de apoio para o que Wesley chamou de comitês móveis.

Guarulhos é uma cidade grande que não tem TV. Então, para chegar a todos
os cantos, a nossa estratégia foi montar estruturas nas regiões da cidade. Uma
estrutura de marquise como ponto de apoio para entrega de material, e para
o trabalho de rua. Nesse espaço pessoas recebiam os eleitores para conversar
e tirar dúvidas. A estrutura da campanha foi crescendo durante a campanha,
e nós fizemos essa campanha de rua, planejada, mas com pouco dinheiro.

Tabela 5. Estrutura e manutenção PSB Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Locação de bens imóveis 2.400,00 0,2
Combustíveis 112.000,91 10,1
Alimentação 90.000,00 8,1
Total 204.400,91 18,5

Fonte: Elaboração própria.

Tabela 6. Baixas estimáveis PSB Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Pessoal 33.280,00 20,5
Terceiros 26.250,00 16,2
Locação de imóveis 16.250,00 10
Veículos 8.500,00 5,2
Impressos 77.204,55 47,7
Adesivos 500,00 0,3
Total 161.984,55 100

Fonte: Elaboração própria.

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402 Mércia Alves

Foi uma campanha que contou com um percentual bastante significativo


de recursos estimáveis (Tabela 6). As atividades financiadas voluntariamente
são as mais diversas: do trabalho individual e em equipes para distribuição
de material à produção desse material. As baixas17 identificadas como
Impressos (são santinhos, adesivos diversos, cartões de visitas), foram
contribuições do próprio partido para a candidatura. Esse percentual é o
segundo maior da campanha. Novamente, mostra a perspectiva do partido
com o desempenho do candidato.
Segundo Wesley, a sede de campanha onde o comitê trabalhou foi
cedida por um amigo e apoiador, tal como registrado. No local foram
realizadas reuniões semanais para a discussão dos dados de pesquisas
de opinião, os resultados obtidos na semana anterior, principalmente
nos trabalhos de rua, e os objetivos e metas para as próximas. Funcionou
também como ponto de apoio para armazenamento e distribuição de
material para os comitês móveis.
Cerca de duas mil pessoas atuaram como voluntárias na campanha,
estima o entrevistado, o que representou 36,74% do total de Recursos
Estimáveis. Destaque para um grupo formado principalmente por jovens,
que atuava de forma independente, mas com apoio do partido. O grupo
realizava ações em praças, e locais públicos onde se juntavam a outros
jovens, principalmente os indecisos para discutir suas perspectivas, os “jovens
abraçaram a ideia e criaram um movimento paralelo chamado pró Guti,
com material e ações próprias, divulgadas nas redes sociais, principalmente
os eventos no Facebook”.
O voluntariado, ou a “vontade de trabalhar”, como destacou Wesley,
despertou durante a campanha. Resultado de uma estratégia que começou
pela escolha de uma liderança jovem, identificada com pautas desse público
e com a demanda por renovação. Uma campanha desenhada nas redes
sociais, mas que dialogou e se organizou na rua, e ganhou adesão porque
pareceu viável pelo volume e pela aparente simplicidade.
17
Baixas Estimáveis é uma categoria pré-estabelecida pelo TSE onde podem ser alocadas
quaisquer das modalidades de gasto não pagas com recurso financeiro.

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 403

As pessoas aderiram naturalmente à nossa campanha [...] em Guarulhos ganhava


a eleição quem tinha dinheiro e quando as pessoas se depararam com um
candidato jovem, que ia pra rua, que conversava com as pessoas, manifestavam
o interesse em ajudar colando um adesivo, pegando um pouco de material
para distribuir entre os vizinhos [...] nós fizemos uma campanha na rua,
observando o eleitor e o eleitor te observando, e as pessoas perceberam isso.

Nossa campanha pareceu ter adesão, e realmente tinha, era notável [...]
pareceu ser uma campanha de rua, e foi [...] o mais importante é que as
pessoas perceberam isso.

O Democratas em Guarulhos
O partido começa a se organizar para a campanha com um ano de
antecedência, ou um pouco mais, segundo Eli. Há um levantamento dos
nomes interessados em concorrer pelo partido e “se existe uma identificação
e a pessoa quer ser candidata, nós damos a legenda para. É assim em todas
as cidades”. No caso de Guarulhos:

Primeiro, é necessário saber se é viável lançar uma candidatura e nós sabemos


isso com a realização de pesquisas. Eu só fui realmente candidato quando o
pesquisador falou – “Olha, você tem chances de ganhar”. Na verdade, ele me
disse que eu seria o próximo prefeito. Eu questionei, porque estava com apenas
1% das intenções e ele me apresentou os dados. Era viável, então encarei.

Decidido como candidato, o primeiro passo é a formação da equipe


de marketing, “a equipe que vai direcionar as suas ações, aonde ir e o que
falar”. Segundo o candidato, não adianta chegar a um bairro e não saber o
que falar, quais são as dificuldades daquele local e daquelas pessoas, “pode
ser segurança, saúde ou alguma coisa que a gente nem imagina”. Antes
de tudo, entretanto, as pesquisas de opinião, antes mesmo da definição
ou não por candidata-se.
Segundo o candidato, há comunicação direta e transparente entre
os diretórios. Eli não é uma liderança apenas no município pelo qual
concorreu ao cargo executivo, é também um dos principais nomes do

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404 Mércia Alves

DEM nacionalmente. O candidato afirma que tem autonomia para a


definição das estratégias de campanha em Guarulhos, e é assim em todos
os municípios. Nos mais importantes, “as executivas estadual e nacional
aconselham”. Segundo ele próprio, “o Eli candidato a prefeito e o Eli líder
nacional se confundem um pouco. Eu tomo decisões como candidato, e
como liderança influencio outros candidatos do meu partido.”
No caso de Guarulhos, a autonomia para organizar eleições é total, o
DEM acaba interferindo em outras cidades, especialmente naquelas em que
o candidato não tem muita experiência e estrutura. É nesse município que
o DE e o DN têm mais voz ativa. Tudo depende, segundo Eli, do cenário
e de quais as chances reais de vitória dos candidatos. “Nos municípios em
que temos mais chances, estamos mais presentes”.

Tabela 7. Origem de recursos, DEM Guarulhos

Origem de recurso Total em reais Percentual


Recursos financeiros 1.899.000,00 94,42
Recursos estimáveis 112.170,00 5,58
Pessoas físicas 713.170,00 35,46
Doação de partidos 1.260.500,00 62,67
Recursos próprios 37.500,00 1,86
Total recebido 2.011.170,00

Fonte: Elaboração própria.

O DEM foi o partido de campanha mais cara da cidade de Guarulhos.


Do alto percentual de recursos financeiros – mais de 94% –, 62,67% teve
origem do partido, o maior entre as campanhas analisadas (Tabela 7). É
importante destacar a partir desse dado que, diante das expectativas da
legenda em relação à eleição de 2016, como já discutido neste texto, o
investimento financeiro é um dos indicadores das estratégias de campanha.

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 405

Tabela 8. Comunicação DEM Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Produção de Programas de RTV 40.000,00 2,1
Publicidade impressos 1.042.344,00 56,3
Publicidade por adesivos 177.372,00 9,5
Produção de página 2.000,00 0,1
Produção de jingles, vinhetas e slogans 2.500,00 0,1
Carros de Som 29.900,00 1,6
Total 1.294.116,00 69,9

Fonte: Elaboração própria.

Observa-se, na tabela 8, um valor considerável, se comparado ao


percentual da campanha do outro partido, na categoria de produção
de conteúdo audiovisual. Em Guarulhos, os partidos não têm acesso
ao HGPE, entretanto, o valor refere-se à contratação de serviço de
produção, gravação e edição para spots no horário eleitoral. Questionado,
o candidato relatou que fez uso do espaço na TV do seu partido na
cidade de São Paulo.
Guarulhos, como já vimos, é parte da área de cobertura da capital
paulista em emissoras geradoras, então, a estratégia de utilizar esse espaço
faz sentido. Entretanto, segundo o candidato, esses programas não foram
muito bem recebidos pela população, que não estava acostumada a ver
os seus candidatos na TV. A impessoalidade, segundo Eli, gerou certo
desconforto entre os eleitores.

As inserções foram superproduções, inigualáveis, mas eu recebi muitas críticas.


As pessoas me questionavam o motivo de não ter citado o seu bairro, mas
eu da zona, da região. Não foi suficiente [...]. As pessoas querem se sentir
próximas, que você fale o nome do bairro dela, conheça o problema dela,
algo muito mais pessoal.

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406 Mércia Alves

O Democratas abriu mão do tempo de TV em São Paulo. Então, eu entrei em


algumas inserções falando especificamente de Guarulhos, antes da campanha.
Eu ocupei o tempo do partido até o período permitido por lei e, depois disso,
a campanha foi feita por outras mídias, como o Facebook, que não foi tão
forte, mas foi fundamental, principalmente no segundo turno.

As páginas do candidato no Facebook e no Instagram foram utilizadas


para a campanha. Na maior parte, posts gerais, destinados à população em
geral, com propostas de políticas públicas e agenda de governo. O conteúdo
foi produzido pela equipe de campanha, sem necessariamente passar pelo
partido, mas sim pela equipe próxima do candidato. No segundo turno,
Eli esteve mais presente em sua página, promovendo um conteúdo mais
pessoal e interativo, como lives.
Além do Facebook, a campanha utilizou como meio de comunicação
o telemarketing ativo e receptivo, mala direta, sistema de cadastro e
mensagens por telefone. Mas, como se pode observar pelo volume de
recursos destinados, 56,31%, os impressos foram o principal meio de
comunicação da campanha. O candidato revela não gostar da distribuição
excessiva de papel porque, além da sujeira, demanda muito tempo, dinheiro
e equipe, dado o porte do município.
Entre as despesas com pessoal, que concentraram o maior percentual
entre as listadas na tabela 9, estão a contratação de motoristas e locação de
veículo, e a contratação de pessoal e de líderes de equipe de campanha. A
concentração de recursos nessa atividade, 20,46%, reflete o alto investimento
da campanha em material impresso para distribuição. São duas atividades
conexas e essenciais para campanhas sem acesso à televisão.
Os comícios perderam importância, segundo Eli, muito pela característica
do partido e porque as pessoas esperam mais pessoalidade e não o discurso
geral direcionado a uma massa, como é típico dos comícios. Na campanha
de 2016 foram realizados “um ou outro bem pequenos”. Também não
foram realizadas grandes passeatas e caminhadas em feiras por uma questão
pessoal. Das atividades de corpo a corpo, o candidato declara gostar de
realizar encontros e reuniões.

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A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 407

Eu nunca gostei desse tipo de evento de massa, com muita gente! Nem o meu
pai gostava. É muita gente e você não fala pra ninguém, as pessoas não te
ouvem, atrapalha o fluxo das praças, dos centros comerciais, atrapalha todo
mundo que está passado.

Eli declara que, em 2016, teve total liberdade para formação de seu
comitê de campanha de acordo com o que julgou necessário: profissionais
especializados em marketing, comunicação, assessoria jurídica e financeira,
além de pessoas de confiança ligadas a ele. Essa autonomia se deu mais
pela liderança que exerce do que por questões internas ao partido, “que
pode ajudar se houver necessidade ou se quiser, mas, no meu caso, não
se envolveu [...]. Montei a minha equipe como achei necessário.”

Tabela 9. Terceiros e eventos, DEM Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Serviços próprios prestados por terceiros 17.450,00 0,9
Pesquisas 15.000,00 0,8
Pessoal 378.700,00 20,4
Eventos de promoção da candidatura 1.376,00 0
Total 412.526,00 22,2

Fonte: Elaboração própria.

Para Eli, essa equipe de profissionais é fundamental. O candidato,


segundo ele, deve ser orientado sobre “ir ou recuar, o que dizer e
onde”. Ainda, deve estar preparado para responder a qualquer tipo de
questionamento, inclusive os mais impensados, aqueles que não vêm à
mente, mas que são sensíveis aos eleitores.

Um eleitor me perguntou: “O que você pensa sobre os nossos espaços nos


cemitérios para fazer os nossos trabalhos?” Como assim? “É que nós temos que
ter ¼ do cemitério para poder realizar os nossos trabalhos.” Estava conversando
com uma família da Umbanda e essa era a questão que mais os afligia.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


408 Mércia Alves

Em uma campanha “a religião é sempre uma questão” e “cada passo


deve ser pensado, porque pode acabar com o apoio de todo um segmento”.
O entrevistado relata que foi fotografado enquanto cumprimentava Baianas
do Acarajé18 em uma festa de carnaval.

Eles divulgaram isso nas igrejas evangélicas e me acusaram de apoiar a


macumba. Essa “notícia”, digamos assim, pulverizou de uma forma que me
prejudicou muito na campanha [...] é por isso que precisamos de ajuda de
profissionais, para a nossa imagem.

As pesquisas de opinião foram essenciais para a campanha. O candidato


declarou que o partido realizou a primeira antes do período eleitoral, e
as demais foram realizadas mensalmente pelo próprio candidato e pela
campanha. Além disso, foram discutidos os dados divulgados pelas outras
candidaturas, “com menos enfoque, claro, mas foram estudadas também”.
Todas as estratégias foram pautadas nas pesquisas, da decisão por lançar
um candidato, à agenda diária.

Tabela 10. Estrutura e manutenção, DEM Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Locação de móveis 11.328,80 0,6
Locação de bens imóveis 15.935,48 0,8
Expediente 1.878,68 0,1
Transporte e deslocamento 48.900,00 2,6
Veículos 116.850,00 6,3
Combustíveis 45.212,11 2,4
Água 336,00 0
Telefone 173,90 0
Total 240.614,97 12,99

Fonte: Elaboração própria.


18
São as mulheres, na maioria negras e identificadas com religiões de matriz africana, que se
dedicam à venda de acarajés e outros alimentos da culinária afrobaiana.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 409

O DEM de Guarulhos tem sede no escritório do candidato. Eli e


partido compartilham funcionários: secretárias e advogado. A campanha
contou com uma sede específica, independente do partido, onde a equipe
contratada trabalhou junto aos assessores (Tabela 10). Foram cerca de 30
pessoas contratadas pela campanha e poucos, “muito poucos”, voluntários.

A equipe de trabalho passava muito tempo junto, no carro, se deslocando para


as atividades do dia a dia. O que dispensou a necessidade de uma agenda
de reuniões convencional. Enquanto isso, o pessoal da comunicação estava
trabalhando, e nos passando informação.

Tabela 11. Baixas estimáveis, DEM Guarulhos

Atividades Total em reais Percentual


Locação de móveis 10.500,00 100

Fonte: Elaboração própria.

Por fim, temos as baixas estimáveis (Tabela 11). O valor declarado


refere-se a 30 caixas de som com Woofers,19 duas cornetas e dois Tweeters.20

Não é uma característica do meu partido ter muitos militantes. Diferente de


outros, como o PT. O voto de legenda representa isso. O Democratas não tem
um 25 famoso. Apesar de eu ter conseguido aqui em Guarulhos, em 2016,
muitos votos de legenda, não tem um apego muito grande à defesa das ideias
do partido. Por isso é muito difícil ter voluntários.

Entre os itens listados no grupo de atividades que denominamos


“Outros”, está a doação a outros candidatos. Na campanha de Eli, o valor
é representativo: 14,05% do total, ou 260 mil reais. Não há como saber
quem recebeu o recurso, se algum postulante ao legislativo do DEM ou
outra legenda da coligação de 2016 em Guarulhos, ou até mesmo algum
19
Alto-falante usado para reproduzir frequências graves e médias.
20
Equipamento de áudio de alta frequência.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


410 Mércia Alves

candidato de outro município. A informação seria mais um instrumento


de análise, dada a declaração de Eli, sobre sua influência como liderança
do partido. O entrevistado não soube esclarecer.

Considerações finais
O objetivo deste artigo foi discutir a organização das campanhas
eleitorais nos municípios, a partir do conceito de profissionalização no
contexto da comunicação política. Para responder às questões colocadas,
foram entrevistadas as lideranças dos partidos que disputaram as eleições
de Guarulhos, município paulista, em 2016, pelo PSB e Democratas,
Wesley Casaforte e Eli Correia Filho. Além disso, analisamos a dinâmica
financeira de ambas as campanhas, a partir dos relatórios oficiais elaborados
pelos partidos políticos, entregues ao TSE como forma de prestação de
contas eleitorais.
Começamos com a pré-campanha: o diálogo entre diretórios partidários
para seleção de candidatos e definição das estratégias. Em ambos os casos
tivemos relatos de uma relação próxima entre os Diretórios Municipal e
Estadual – o percentual de recursos financeiros destinado pelas legendas
aponta o mesmo. Todavia, fica clara a independência local para a tomada
de decisões estratégicas. Comparadas, a candidatura do DEM nos pareceu
mais autônoma, muito pela força do candidato que é um dos principais
nomes da legenda.
Passamos para a análise da expansão da estrutura física e do número
de pessoas envolvidas para a realização de atividades remuneradas e
voluntárias durante o período eleitoral, e começamos a observar como
são distribuídos os recursos financeiros. Ambos os partidos passam por
uma ampliação do espaço físico e a gestão das campanhas combinou,
em maior ou menor grau, burocratas, voluntários e especialistas. Os
partidos que contam com uma sede, transformaram esse espaço em
ponto de apoio e as atividades de campanha foram desenvolvidas em
local específico com maior controle das lideranças e do candidato. O

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 411

PSB contou com o voluntariado para todas as suas atividades, já para


o DEM o voluntariado não foi considerado fundamental. Segundo os
entrevistados, pelo perfil do candidato, no primeiro caso, e do partido,
no segundo.
O PSB conta com um número bastante considerável de pessoal
(contratado ou não) para trabalhar nas ruas. Isso porque as atividades
de contato entre candidato/apoiadores/cabos eleitorais e eleitor foram
estratégicas. Daqui, partimos para as conclusões sobre os usos dos meios
de comunicação, porque os eventos de rua foram marcados e divulgados
pelo do Facebook do candidato, Guti. A página foi fundamental para o
engajamento da campanha online e de rua. O que nos permite dizer
que uma campanha online não significa uma campanha sem custo, pelo
contrário, o plano de comunicação para as redes foi possível ser elaborado
graças a uma equipe estruturada, com recurso financeiro, assessoria, e
pesquisas de opinião.
Diferente do adversário, a campanha do DEM apostou no tempo
disponível em televisão na capital paulista para inserir a candidatura do
Deputado Federal. Uma estratégia que, segundo Eli, não obteve êxito,
porque os eleitores não estão familiarizados com as campanhas na TV. As
redes do candidato foram mobilizadas, mas sem uma estratégia específica,
apenas como complemento às atividades tradicionais, e divulgação da
agenda do candidato.
Ao dito em entrevistas sobre a transição no funcionamento das
campanhas eleitorais nos municípios e às percepções das lideranças,
acrescentamos, a partir dos dados qualitativos e quantitativos sistematizados,
que há uma consolidação da relevância das redes sociais, que ainda deve
encontrar resistência de lideranças mais tradicionais. Isso não quer dizer
que a campanha de rua tenha perdido importância – antes, entendemos
que há uma tendência a ser observada de sinergia entre redes e ruas. Isso
nos permite apontar que a profissionalização está sendo incorporada de
forma desigual e em diferentes graus, a depender dos recursos disponíveis,
das estratégias e do perfil de candidatos.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


412 Mércia Alves

Por fim, cabe pontuar que apesar de não ser o objetivo deste trabalho
discutir fatores que pesam na decisão do voto, as mudanças recentemente
incorporadas às campanhas, sobretudo relativas aos meios de comunicação,
abrem novas agendas de pesquisa. Primeiro, sobre o impacto dessas
mudanças na formação de preferências eleitorais e nas formas de consumir
informação política. Além disso, sobre os desafios permanentes enfrentados
pelos partidos políticos e lideranças para organizar uma campanha que seja
capaz de atingir o maior número de eleitores.

Mércia Alves é Doutora em Ciência Política e membro do CEL – Comunicação Eleitoral


(UFPR) e do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – NEAMP (PUC-SP). Professora do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná.
 merciaallves@gmail.com

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 413

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no contexto das eleições municipais brasileiras de 2016. Revista Eletrônica de Ciência
Política - recp, v. 9, n. 1, p. 119-140, 2018. http://dx.doi.org/10.5380/recp.v9i1.55339
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In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 8.,
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Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


414 Mércia Alves

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2015. https://doi.org/10.21878/compolitica.2015.5.2.91

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


A organização das campanhas eleitorais nos municípios... 415

Anexo 1

Tabela 12. Outros

Campanhas Encargos Doação candidatos


PSB 0,01 0,71
DEM 0,11 14,05

Fonte: Elaboração própria.

Recebido: 10 set. 2020.


Aceite final: 6 maio 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 386-415.


416 Gabriel
RESENHAS
Peters
416

http://doi.org/10.1590/15174522-109333

Tornar-se Beauvoir: para além dos


argumentos ad feminam
KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2020.

Gabriel Peters*

Resumo
Nessa inteligente biografia, a filósofa inglesa Kate Kirkpatrick rastreia, em perspectiva
histórica, a trajetória existencial pela qual Beauvoir “tornou-se” Beauvoir. O livro
acompanha como a pensadora francesa fez de sua própria personalidade-no-
mundo um projeto deliberado, o qual teve de enfrentar uma série de resistências
“ad feminam” oriundas de seu cenário sociocultural. Com base na leitura atenta
dos diários que Beauvoir manteve durante seus tempos de estudante, publicados
somente em 2008, Kirkpatrick lança nova luz sobre a evolução intelectual da
pensadora francesa. Quando passa da sua juventude à sua maturidade e velhice,
a biografia nunca perde de vista o complexo engajamento de Beauvoir com suas
circunstâncias socio-históricas. Tal combinação de análise biográfica com um exercício
em história cultural se mostra especialmente fecunda no trato da conturbada
recepção de O segundo sexo e das respostas criativas da autora a essa recepção.
Ademais, o livro de Kirkpatrick explora a densidade filosófica, literária e ético-
política da obra beauvoiriana, densidade frequentemente deixada de lado por
outras biografias em favor de uma concentração sobre a vida afetiva da filósofa.
O respeito à complexidade e às nuances do pensamento de Beauvoir evidencia,
finalmente, o erro de uma lógica reputacional sexista que, tomando seu trabalho
como parasitário e derivativo em relação àquele de Jean-Paul Sartre, insiste em
negar sua originalidade e independência intelectual.
Palavras-chave: Simone de Beauvoir, biografia, feminismo, O segundo sexo,
Jean-Paul Sartre.

* Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 417

To become Beauvoir: beyond ad feminam arguments


Abstract
In this intelligent biography, the English philosopher Kate Kirkpatrick retraces in
historical perspective the existential trajectory through which Beauvoir “became”
Beauvoir. The book follows how the French thinker turned her own “personality-
in-the-world” into a deliberate project, which had to face a series of “ad feminam”
resistances stemming from her sociocultural setting. Based on a keen reading of
the diaries Beauvoir kept during her times as a student, which were published
only in 2008, Kirkpatrick throws new light on the intellectual evolution of the
French thinker. When transitioning from her youth into her mature and old ages,
the biography never loses sight of Beauvoir’s complex engagement with her social-
historical circumstances. This combination of biographical analysis with an exercise
in cultural history proves especially fruitful in dealing with the troubled reception of
The second sex and Beauvoir’s creative responses to such reception. Furthermore,
Kirkpatrick’s book explores the philosophical, literary and ethico-political density
of Beauvoir’s oeuvre, a density which other biographies often eschew in favor of
a focus on the philosopher’s affective life. Finally, the respect Kirkpatrick affords
to the complexity and nuance of Beauvoir’s thought evinces the error of a sexist
reputational logic that portrays her work as derivative and parasitic upon Jean-Paul
Sartre’s, and thus insists in denying her intellectual independence and originality.
Keywords: Simone de Beauvoir, biography, feminism, The second sex, Jean-Paul Sartre.

N
ão se nasce Beauvoir, torna-se – escreveu Djamila Ribeiro (2020)
em uma resenha dessa biografia assinada pela filósofa inglesa
Kate Kirkpatrick. O intertexto se revela tanto mais inteligente e
apropriado quando se nota que o título anglófono do livro de Kirkpatrick
é Becoming Beauvoir: “Tornando-se Beauvoir”. Para além da alusão à frase
mais famosa de O segundo sexo, a expressão captura a questão-cerne desse
esforço biográfico, a saber, o grau em que Beauvoir fez da sua própria
“personalidade-no-mundo” um projeto deliberado e autoconsciente, o
qual teve de se bater contra uma série de resistências “ad feminam” do
seu ambiente sociocultural. Talvez a eliminação do gerúndio “tornando-
se”, com a escolha da expressão mais anódina Simone de Beauvoir: uma
vida, responda a algum cálculo de marketing editorial, mas é certo que a

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


418 Gabriel Peters

cadeia alusiva do título original foi perdida de saída na tradução brasileira.


Felizmente, o próprio livro continua com muito a oferecer na tradução.
Por que mais uma biografia sobre Beauvoir? Ela escreveu prodigamente
sobre sua própria vida em publicações de variados gêneros discursivos, os
quais incluíram desde o memoir intimista até os diários de viagem, sem
contar o que houve de autobiográfico em ficções literárias como A convidada
ou nos exercícios fenomenológicos de O segundo sexo. Se é quimérico
tentar produzir algo que ultrapasse em densidade intelectual e sofisticação
estilística as narrativas autobiográficas da própria autora, biografias escritas
por outrem se justificam, ainda assim, como potenciais contrapesos aos
conhecidos vieses inerentes ao gênero “autobiografia” – por exemplo, o
interesse consciente ou inconsciente na projeção de certa imagem de si para
a posteridade, interesse que comumente leva à seletividade, à estilização
e mesmo à distorção na narrativa da própria vida. A desconfiança é válida,
aliás, ainda que a mera não identidade entre biógrafo e biografado não
garanta, por óbvio, que uma biografia escape aos riscos mencionados,
caminhem eles no sentido da idealização hagiográfica ou, ao contrário,
dos chamados “hatchet jobs” e “assassinatos de caráter”.
Distante desses extremos, a atitude de Kirkpatrick em relação a Beauvoir
comporta um imenso respeito ao seu legado intelectual e ético-político,
mas também uma disposição honesta a confrontar seus erros – como, por
exemplo, os sofrimentos infligidos aos “outros contingentes” que orbitaram
ao redor do seu “amor necessário” com Sartre. Ao contrastar seu livro
com esforços anteriores dirigidos à vida e à obra de Simone, Kirkpatrick
não chega a afirmar que a enorme biografia publicada por Deirdre Bair
em 1990 é uma hagiografia, mas adverte: por estar firmemente ancorada
em diversas conversas com a própria Beauvoir, de onde derivam sua
riqueza de detalhes e sua compreensão multidimensional da trajetória da
autora de O segundo sexo, a obra de Bair terminou por recontar, em larga
medida, “a história que Beauvoir já havia tornado pública” (p. 31). Becoming
Beauvoir se volta, então, à apreensão de aspectos da história beauvoiriana
insuficientemente publicizados, valendo-se de material documental que

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 419

ainda não havia sido utilizado em quaisquer outras biografias, como as


cartas que Beauvoir escreveu para Claude Lanzmann (“o único amante
com quem morou” (p. 20) e, principalmente, os diários que Beauvoir
manteve durante seus tempos de estudante, publicados em 2008 com o
título Cahiers de jeunesse: 1926–1930.
Ao lado da descoberta de elementos biográfico-intelectuais menos
conhecidos sobre a autora, como o fato de que o abandono de suas
convicções religiosas de infância e adolescência foi mais sinuoso e dolorido
do que Beauvoir sugerira em suas memórias, o estudo daqueles diários
por Kirkpatrick também serve a outras duas tarefas entrelaçadas de seu
livro: acompanhar a evolução das ideias filosóficas da pensadora francesa,
ideias cuja densidade foi frequentemente deixada de lado, mesmo por
observadores simpáticos, em prol de sua vida afetiva e, especialmente, das
peripécias do “casal” inconvencional e anticonvencional que ela formou
com Jean-Paul Sartre; combater a também frequente opinião de que
a filosofia dela seria parasitária e derivativa em relação à filosofia dele,
mediante demonstrações da independência relativa do percurso intelectual
de Beauvoir, da influência profunda que o pensamento de Sartre deveu
às reflexões dela e, finalmente, dos aspectos em que as teses filosóficas
beauvoirianas discrepavam conscientemente daquelas esposadas por ele.
Assim, a par da concentração sobre dimensões faltantes na “biografia
autorizada” de Bair, Kirkpatrick busca se diferenciar de empreitadas
biográficas anteriores pela recuperação da profundidade da Beauvoir
pensadora, contra a ilusão “de que sua vida amorosa era o que havia de
mais interessante nela” (p. 14). Embora essa última ideia não chegue a ser
premissa expressa de livros como Tête-à-Tête, a biografia que Hazel Rowley
dedicou a Beauvoir, Sartre e seus “amores tumultuosos” (2006), não resta
dúvida de que os insights biográficos desse último livro foram conquistados
ao preço de uma discussão um tanto rala do conteúdo filosófico das obras
de uma e outro. O propósito de Kirkpatrick é, pois, muitíssimo bem-vindo,
sobretudo na medida em que ela também rejeita sensatamente a tentação
antípoda de postular um divórcio radical entre a vida (inclusive amorosa)

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


420 Gabriel Peters

e a obra. Tal divórcio seria especialmente inapropriado no caso de uma


autora como Beauvoir, que não apenas tentou “viver” suas concepções
filosóficas na prática, mas também sublinhou, de modo bem existencialista,
que as decisões pelas quais os indivíduos procuram moldar suas biografias
são “escolhas filosóficas” (p. 14, 66), independentemente de serem ou não
vivenciadas como tais. Kirkpatrick respeita a complexidade que esse enlace
adquiriu na trajetória da escritora francesa, evitando tanto as reduções
brutais do pensamento à biografia, de um lado, quanto a idealização da
biografia como realização perfeita de um projeto filosófico de vida, de
outro. Não havendo espaço aqui para uma revisão de ponta a ponta dos
eventos narrados no livro, tratarei seletivamente do que me parecem as
suas principais contribuições: complexificar e matizar imagens herdadas
sobre Beauvoir mediante o exame dos diários que ela manteve enquanto
estudante; rastrear os caminhos reflexivos de Beauvoir como “ser-em-
situação”, i.e., em termos da sua complexa relação com o cenário histórico-
cultural em que ela estava imersa, com particular ênfase sobre a conturbada
recepção de O segundo sexo e os efeitos dessa recepção nos rumos tomados
pelo pensamento engajado da autora.

Diários de uma estudante bem-comportada


Beauvoir nasceu em 1908, o ano mesmo em que escolas francesas
foram autorizadas pelo estado a preparar mulheres para o baccaulauréat, a
prova que facultava acesso a universidades. Ao tratar do ambiente familiar
da “moça bem-comportada”, Kirkpatrick nota que a paixão dela pela
leitura foi intensamente encorajada tanto por sua mãe quanto por seu pai.
O contraste entre a devoção católica da primeira e o ateísmo decidido
do segundo, contraste refletido nas suas respectivas recomendações de
leitura, a instigou desde cedo a tomar questões metafísicas como objeto
de interrogação. Transbordando para um respeito inflexível aos ditames da
convenção social, o compromisso de Françoise de Beauvoir com o decoro
moral e religioso se expressava também na recusa de ser transparente

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 421

com suas filhas, Simone e sua irmã Hèléne, quanto à corporeidade e à


sexualidade femininas (p. 41).
De posse dos diários da jovem Beauvoir, Kirkpatrick sublinha que a
perda de suas convicções religiosas cultivadas pelo convívio com a mãe foi
mais hesitante, prolongada e angustiosa do que a filósofa havia indicado em
suas memórias, nas quais escreveu que, uma vez instalada em sua mente,
sua “incredulidade nunca vacilou” (p. 73). Nos diários, por outro lado, “em
linguagem que lembra...Agostinho...e Pascal”, ela narrara...

a experiência de perder Deus como acompanhada pela descoberta abrupta


de que tudo havia “caído em silêncio”. Pela primeira vez, ela sentiu o “terrível
significado’ da palavra ‘sozinha’” (p. 73).

Algum tempo de vai e vem entre dúvidas céticas e a vontade de acreditar


ainda seria necessário para que ela concluísse, enfim, que “era mais fácil
pensar em um mundo sem um criador que com um criador sobrecarregado
com todas as contradições do mundo” (p. 75). Obviamente, o papel do
catolicismo e de outras religiões na legitimação das desigualdades entre
homens e mulheres seria insistentemente sublinhado por Beauvoir ao longo
de boa parte da sua obra, no mínimo desde a referência de abertura, em
O segundo sexo (2014, p. 10), ao mito de Adão e Eva no Gênesis como
ilustração da condição da mulher qua “outro” do homem, identificado
ao humano genérico.1 Por outro lado, tal qual convém a um intelecto
tão atinado com ambiguidades, Beauvoir também sublinhou que a ideia
religiosa de “alma” como um “domínio completamente assexuado” (p. 46)
operou positivamente, em sua infância e adolescência, como um impulso
às suas crenças igualitárias quanto aos sexos nas esferas moral e espiritual.
Sem abandonar sua admiração pela coragem e pela energia graças às
quais Beauvoir trilhou sua existência como intelectual contra barreiras socio-
históricas diversas, Kirkpatrick revela o quanto a personalidade autoassertiva
dela se construiu também pela influência de mulheres menos conhecidas. É
1
Aliás, lembra Kirkpatrick, não demorou para que “o Vaticano colocasse o livro em sua lista
de obras proibidas” (p. 239) – o que não deixa de ser uma honra tão significativa para uma
escritora como o Prêmio Nobel rejeitado por Sartre.

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422 Gabriel Peters

o caso de Léontine Zanta, primeira francesa a se tornar docteur d’etat: ao ler


uma matéria de revista sobre essa intelectual independente, a adolescente
Beauvoir sonhou “em um dia ver essas coisas escritas sobre ela” (p. 57).
Considerando-se que, se tivessem nascido apenas alguns anos antes, nem
Zanta nem Beauvoir sequer poderiam prestar os exames de qualificação
necessários a uma carreira docente, resta o lembrete de quantas potenciais
pensadoras geniais foram privadas daquela oportunidade.2 Outras figuras
decisivas para Beauvoir incluíram, por exemplo, Stépha Awdykovicz, cuja
fala livre sobre a sexualidade chacoalhou o puritanismo da jovem Simone,
e Geraldine Pardo, com quem Beauvoir aprendeu que o pertencimento
a uma classe social repleta de restrições e desvantagens não impedia o
cultivo de uma individualidade genuína (p. 68).3
Os diários documentam a origem de preocupações e ideias filosóficas
que, embora florescendo antes e independentemente do diálogo de Beauvoir
com Sartre, foram comumente atribuídas à originalidade dele, não dela.
Kirkpatrick mostra que várias anotações naqueles diários possuem uma
espécie de conteúdo existencialista avant la lettre, ainda mais se traduzidos
na linguagem que ambos popularizariam posteriormente. Para dar apenas um
exemplo: sem falar explicitamente em angústia ou contingência, Beauvoir
descrevia seu futuro como impregnado de diversas vidas possíveis que seriam
todas, com exceção de uma, eventualmente mortas por ela (p. 66). Os
diários também se dedicavam à complexidade das relações intersubjetivas,
em particular ao problema ético concernente ao equilíbrio entre o que se
deve dar para si e para os outros. Ainda que romances como A convidada
2
Cf. as reflexões de Virginia Woolf (2014) sobre Judith, a hipotética irmã de Shakespeare
em Um teto todo seu.
3
Obviamente, também presentes estão os encontros com personagens mais conhecidos,
como a breve conversa de Beauvoir, na juventude, com Simone Weil. Colocando em contato
duas inteligências geniais, porém marcadamente discrepantes em temperamento, “o encontro
teve uma reviravolta decepcionante”: “Weil concluiu a conversa com as palavras: ‘É fácil ver
que você nunca passou fome’. Segundo Beauvoir, Weil a olhou de cima a baixo e a julgou
‘uma pequena-burguesa pretensiosa’. Na época, Beauvoir achou isso irritante; afinal, Weil
não conhecia suas circunstâncias e estava fazendo suposições equivocadas. Mas, em sua
maturidade, ela passou a concordar com esse julgamento acerca de seu jovem eu” (p. 71).

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 423

tenham sido frequentemente interpretados como “aplicações” da perspectiva


agonística de Sartre sobre a relação entre o “para-si” e o “para-outro”, os
diários de Beauvoir, escritos antes que ela conhecesse Jean-Paul, indicam, ao
contrário, que ela chegou a diversas de suas ideias sobre a intersubjetividade
“de forma independente” (p. 69). De modo similar, ela já se dedicava a
reflexões sistemáticas sobre as ambivalências morais das relações humanas
bem antes de Sartre “descobrir”, ao final de O ser e o nada (1997, p. 765),
que precisava complementar seu retrato fenomenológico-existencial da
condição humana com uma ética.

O segundo intelecto
Como dito acima, Kirkpatrick tenta resgatar o pensamento de Beauvoir
de um sem-número de distorções frequentes de que sua oeuvre foi e é
objeto. A mais corrente dessas distorções é provavelmente a concepção
previamente mencionada de que Beauvoir não seria uma pensadora original
e independente, mas mera “discípula” e “aplicadora” das concepções de
Sartre. Como a biógrafa demonstra com um elenco deprimentemente
vasto de exemplos, o laço das ideias de Beauvoir com as Sartre tem sido
frequentemente tido por óbvio, enquanto o reconhecimento da dependência
crucial que ele deve a ela é, por seu turno, muito mais raro. A assimetria de
reconhecimento continuou seguindo a autora, por assim dizer, até o túmulo:
enquanto os obituários de Sartre em 1980 mal mencionavam Beauvoir, os
obituários de Beauvoir em 1986 não só citavam Sartre fartamente como
chegavam, por diversas vezes, a reduzir a carreira intelectual dela ao seu
elo com ele (p. 359).
Kirkpatrick evidencia, com fartura de ilustrações, que o papel de
“catalisador conversacional” ou “amigo incomparável do pensamento” (p.
98) que Sartre desempenhou na vida de Beauvoir era, sem dúvida, um
papel igualmente desempenhado por ela na existência dele. Mergulhados
em contínua conversação, lendo e editando os textos um do outro, Beauvoir
e Sartre entreteceram suas cogitações a tal ponto que é difícil elucidar

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


424 Gabriel Peters

a obra de uma sem a referência ao outro e vice-versa. Para além das


ilustrações mais pitorescas desse entrelace, como o fato de que Beauvoir
chegou a escrever artigos encomendados a Sartre e por ele assinados,
as orientações intelectuais fornecidas por ela se mostraram decisivas em
diversas encruzilhadas na trajetória do pensador existencialista. Por exemplo,
quando Sartre se encontrava deprimido por já haver chegado à casa dos
trinta sem ser celebrado mundo afora como um gênio, foi Beauvoir quem
sugeriu a ele que experimentasse exprimir suas ideias filosóficas em forma
romanesca (p. 125) – o resultado foi A náusea, romance filosófico de
1938 que tornou seu autor famoso, e que não foi somente sugerido na
sua concepção, mas também, como outros tantos manuscritos de Sartre,
minuciosamente editado pela leitura rigorosa de Beauvoir (p. 21).
Considerado o peso do sexismo ambiente nas avaliações injustas do
legado de Beauvoir, sobretudo frente à reputação de Sartre, será que a
própria pensadora francesa, consciente ou inconscientemente, também
contribuiu para aquela injustiça? Kirkpatrick não ignora que um obstáculo
a uma apreensão mais justa da originalidade de Beauvoir foi produzido
por depoimentos nos quais ela afirmava não se conceber como filósofa,
no mesmo passo em que concedia o título, entretanto, ao autor de O ser
e o nada (p. 91): “Não sou filósofa... [Sou] uma escritora literária...Sartre é
o filósofo” (p. 18). Evitando a tentação crítica de atribuir ou, pelo menos,
de reduzir essa “modéstia” filosófica a algum sexismo interiorizado pela
heroína da segunda onda do feminismo, Kirkpatrick defende uma leitura
alternativa dessa asserção e de suas congêneres. Em vez de uma posição
autoderrogatória, o contraste entre a escrita literária e a reflexão filosófica
traçado por Beauvoir abrigava uma desconfiança crítica em relação aos
limites da filosofia como construção de sistemas à maneira de um Hegel, um
Schopenhauer ou do próprio Sartre. A contraparte dessa desconfiança crítica
consistia precisamente no recurso à literatura como ferramenta de captação
da experiência concreta em suas nuances e ambiguidades, frequentemente
sacrificadas pela propensão filosófica a encaixá-las forçosamente em molde
sistemático. Devido ao seu interesse nas complexidades da experiência

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 425

vivida, assim como ao seu compromisso com uma escrita capaz de interpelar
as subjetividades inteiras de suas leitoras e leitores (intelecto, afetividade,
imaginação etc.), Beauvoir estaria deliberadamente mais próxima de literatos
de inclinação filosófica como um Dostoiévski, um Kierkegaard ou (rivalidade
tardia à parte) um Camus do que da filosofia “tratadística” que o próprio
Sartre encarnou em livros como Crítica da razão dialética (p. 193).
De resto, Beauvoir e Sartre também engendraram um intercâmbio
conversacional em que, no mais das vezes, ele privilegiava a ousadia
imaginativa e a radicalidade de posições em detrimento do compromisso
cognitivo com rigor e precisão, os quais acabavam frequentemente “ficando
a cargo” das intervenções dela. Kirkpatrick escreve que Beauvoir, conquanto
considerasse Sartre “filosoficamente...descuidado e impreciso”, “achava que
sua bravata tornava suas ideias mais proveitosas que os pensamentos precisos
e escrupulosos dela” (p. 109). Dotada de uma sensibilidade sociológica
(lato sensu) bem mais apurada do que a de Sartre, Beauvoir também
interpretou perspicazmente a diferença de ambições intelectuais entre
ela e ele a partir dos constrangimentos sociais de gênero que pesaram na
formação de suas expectativas acadêmicas e profissionais. A autora notou
essa discrepância desde os anos de 1930, quando ambos, aprovados no
exame de “agrégation”, começaram a lecionar. Enquanto Sartre, para quem
“passar na agrégation e ter uma profissão era algo garantido”, preocupava-
se com a diminuição de sua liberdade intelectual acarretada por seus
compromissos profissionais, Beauvoir, que tivera de enfrentar um sem-
número de resistências sociais (a começar pela do seu pai) para chegar
àquela condição, se viu “tonta de puro deleite: eu senti que, longe de
ter que suportar meu destino, eu o havia escolhido deliberadamente. A
carreira em que Sartre via sua liberdade decair ainda significava libertação
para mim” (p. 126-127). Finalmente, se a propensão de Sartre à “bravata”
talvez tenha contribuído, de par com uma dinâmica reputacional sexista,
para sua fama de pensador supostamente mais original, as visões mais
nuançadas de Beauvoir provavelmente concorreram para dar às ideias
dela, creio eu, maior atualidade do que as dele. No fim das contas, por

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


426 Gabriel Peters

exemplo, a concepção do relacionamento entre liberdade individual e


condicionamentos sociais em O Segundo Sexo é, precisamente devido às
suas nuances e tensões, certamente mais adequada do que “libertarismo”
subjetivista advogado quase sem peias por Sartre em O ser e o nada.

O ativismo do adeus
Como é sabido, no mesmo livro que seria um dos documentos mais
influentes da segunda onda do feminismo, Beauvoir ainda não reclamara
para si própria o rótulo de “feminista”. Paradoxalmente, a extraordinária
virulência da reação conservadora às visões defendidas por Beauvoir foi
um estímulo decisivo para que ela abraçasse expressamente, afinal, a causa
feminista. À decisão se seguiu seu envolvimento em múltiplas atividades
militantes nas décadas subsequentes, como as campanhas pela expansão
do acesso a métodos contraceptivos e pela descriminalização do aborto.
Ao tratar daquela conturbada recepção do “escandaloso O segundo sexo”
(p. 226-244), Kirkpatrick, em um dos melhores momentos do livro, vai
além de uma biografia stricto sensu e oferece um elucidativo exercício de
história cultural.
As diversas críticas ao livro mapeadas nessa biografia ilustram um
princípio identificado pelo sociólogo estadunidense Robert Merton em
sua análise do preconceito: “damned-if-you-do, damned-if-you-don’t”. Por
exemplo, Beauvoir foi atacada como “insatisfeita”, “frígida” e “frustrada”,
mas também como “ninfomaníaca” (p. 231, 235). Filósofos acadêmicos
como Mauriac consideraram “abjeto” que ela falasse sobre sexo em um
ensaio que pretendia ser “crítica filosófica e literária séria” (p. 231), ao passo
que leitores não acadêmicos a censuraram, por seu turno, por escrever um
livro supostamente inteligível apenas “para um pequeno clube literário...
de pessoas iniciadas no jargão esotérico da metafísica e sua categoria
existencialista” (p. 243). Felizmente, essas ambiguidades na recepção de
O segundo sexo tiveram suas contrapartes positivas. Por um lado, reações
como a de Mauriac tornaram-se elas próprias documentos culturais de
sexismo disponíveis à posteridade: em um de tantos exemplos do padrão

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 427

duplo de moralismo pornográfico que marca certo pensamento de direita


até hoje, o mesmo “respeitável pilar do establishment conservador” (p.
231) que se escandalizara com as referências de Beauvoir à genitalidade
feminina “escreveu a um dos colaboradores de Les Temps Modernes que
‘a vagina de minha patroa não tem segredos para mim’” (p. 231). Ademais,
o fato de que alguns homens se contavam entre os que rejeitavam suas
considerações sobre a maternidade, argumentando que ela nunca havia
tido a experiência em primeira mão, também serviu a ela para lembrar
a tais homens que eles próprios nunca se sentiram impedidos a opinar
sobre o assunto devido à sua falta de vivência direta (p. 235). Por outro
lado, e felizmente, Beauvoir encontraria, com o passar do tempo, uma
geração subsequente de leitores, sobretudo mulheres, que se revelariam
imensamente mais acolhedores em relação a um livro que, pela primeira vez
em décadas ou séculos, “falava francamente sobre experiências que haviam
sido tabu” (p. 239). De lá para cá, como é sabido, “O segundo sexo seria
reconhecido como um clássico e inspiraria movimentos políticos” (p. 243).
O livro também inspiraria um conjunto amplo e multifacetado de
reflexões no campo interdisciplinar da teoria feminista. Infelizmente,
Kirkpatrick não explora em qualquer detalhe questões centrais à fortuna
crítica da obra de Beauvoir no interior desses debates teóricos, como a
insuficiente atenção de seu livro seja a fatores interseccionais de raça e
classe na experiência das mulheres (ponto lembrado por feministas negras),
seja ao caráter culturalmente “construído” do próprio sexo como marcador
biológico (ponto lembrado por feministas pós-estruturalistas). Na verdade,
frente à advertência inicial que a biografia não incluiria “todos os amigos
nem todos os amantes” de Beauvoir, mas incluiria “sua filosofia” (p. 30),
a ratio final do livro de Kirkpatrick ainda sacrifica um tanto de potencial
discussão filosófica para dedicar-se ao terreno já amplamente mapeado
das relações de Simone com Olga Kosakiewicz, Wanda Kosawiecz, Bianca
Bienenfeld, Jacques-Laurent Bost e Nelson Algren, inter alios.4
4
Por exemplo, os ricos diálogos de Beauvoir e Sartre com seus críticos estruturalistas ganham
somente uma superficial menção en passant: “na década de 1960, [Sartre] fora criticado
por Claude Lévi-Strauss e por outros por focar demais no tema do consciente mas não o
suficiente no inconsciente” (p. 293).

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428 Gabriel Peters

A própria audácia e originalidade demonstradas por Beauvoir em sua


discussão da ética das relações interpessoais íntimas convidaram intérpretes,
com muita frequência, a interrogar sua conduta nesse domínio, em particular
no tocante ao arranjo que ela estabelecera com Sartre, em que o “amor
necessário” dos dois conviveria com a liberdade de um e outro para travarem
“amores contingentes”. Em Tête-à-tête, Hazel Rowley (2006) não se furtou
a confrontar aspectos desagradáveis da realidade desse “amor livre” por
tantas vezes idealizado, como o fato de que a comunicação transparente
entre Beauvoir e Sartre sobre seus relacionamentos coexistia com um
cinturão protetor de mentiras dirigidas às várias pessoas que entravam
nessa órbita erótico-afetiva. Isso dito, a própria Rowley já demonstrara
amplamente, embora a mensagem tenha escapado a alguns de seus leitores,
a inverdade da suposição comum de que o arranjo não monogâmico entre
Beauvoir e Sartre teria sido algo que ela aceitara a contragosto, resignada
à circunstância de não poder, como disseram alguns, “tê-lo inteiramente”
(sic) para ela. Kirkpatrick mostra que tal arranjo foi entusiasticamente
desejado e abraçado por ela, mas também recolhe depoimentos diversos
em que Beauvoir reconheceu, nas suas palavras, que seu “entendimento
com Sartre” acarretou uma série de “perdas e transtornos pelos quais os
‘outros’ sofreram” (p. 300).
Ao mapear as relações com o amor que a cultura ocidental moderna
estimulava entre homens e mulheres, a filósofa notou o injusto contraste
entre a “soberania” daqueles e o “autossacrifício” destas:

Beauvoir acreditava que os homens permanecem ‘sujeitos soberanos’ no


amor – que valorizavam suas amadas mulheres ao lado de outras atividades,
como parte integrante – mas só parte – de toda a sua vida. Por outro lado,
para as mulheres, [...] os ideais de amor as incentivavam a viver a uma vida
de autossacrifício ou até de completo esquecimento de si mesmas pelo bem
de seus amados (p. 235).

É desconcertante pensar que tanto escândalo pôde brotar da


reivindicação de que as mulheres pudessem reclamar uma relação
igualmente soberana com o amor. Se, pelo menos para uma vasta (mesmo

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam... 429

que insuficientemente vasta) porção de pessoas, tal reivindicação, longe


de espantosa, é uma espécie de um mínimo civilizatório, tão autoevidente
que não precisaria ser dito, essa própria evidência indica o quanto devemos
não somente aos escritos de Beauvoir como também às outras modalidades
de ativismo que ela continuou praticando até o seu leito de morte. (A
referência é literal: na cama do hospital onde veio a falecer em 1986, ela
tentou convencer sua massagista a não votar no nacionalista de extrema
direita Jean-Marie Le Pen [p. 358].) O livro aqui resenhado é somente uma
prova, entre diversas outras, de que sua mensagem continua viva.

Gabriel Peters é Doutor em Sociologia e professor do Departamento de Sociologia da UFPE


e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade, onde integra a
linha de pesquisa “Teoria e Pensamento Social”.
 gabrielpeters@hotmail.com

Referências
1. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
2. RIBEIRO, Djamila. Iconoclasta de si mesma. Quatro cinco um, 1 abr. 2010.
Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/biografia/iconoclasta-
de-si-mesma.
3. ROWLEY, Hazel. Tête-à-tête: the tumultuous lives and loves of Simone de
Beauvoir and Jean-Paul Sartre. Nova York: HarperCollins, 2006.
4. SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
5. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Recebido: 22 nov. 2020.


Aceito: 15 fev. 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.


430 RESENHAS
Lucas Voigt
430

http://doi.org/10.1590/15174522-113418

Memória, narrativa e subjetividade étnica:


a etnicidade europeia nos Estados Unidos
FODOR, Mónika. Ethnic subjectivity in intergenerational memory
narratives: politics of the untold. Nova York: Routledge, 2020. 285 p.

Lucas Voigt*

Resumo
Este texto resenha a obra “Ethnic subjectivity in intergenerational memory narratives:
politics of the untold”, de Mónika Fodor (2020). Ao longo de seis capítulos, a obra
apresenta uma análise de narrativas de memória intergeracional e seu papel para
a construção da subjetividade étnica. O trabalho de Fodor adquire originalidade e
relevância pela ênfase no aspecto subjetivo e na dimensão de “investimento” da
etnicidade, compreendida como capital simbólico. A análise executada pela autora,
circunscrita à etnicidade de origem europeia no contexto dos Estados Unidos,
apresenta profícuos indicativos metodológicos e potencial heurístico, podendo
contribuir para a análise dos fenômenos da etnicidade e da memória em distintos
contextos históricos e empíricos marcados pela experiência migratória.
Palavras-chave: etnicidade, memória, narrativa, migrações, Estados Unidos.

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos. 431

Memory, narrative and ethnic subjectivity: the European


ethnicity in the United States
Abstract
This text reviews the book “Ethnic subjectivity in intergenerational memory narratives:
politics of the untold”, by Mónika Fodor (2020). Over six chapters, the work
presents an analysis of narratives of intergenerational memory and their role in the
construction of ethnic subjectivity. Fodor’s work acquires originality and relevance
due to the emphasis on the subjective aspect and the “investment” dimension of
ethnicity, understood as symbolic capital. The analysis carried out by the author,
circumscribed to ethnicity of European origin in the context of the United States,
presents useful methodological indications and heuristic potential, which may
contribute to the analysis of ethnicity and memory phenomena in different historical
and empirical contexts marked by migratory experience.
Keywords: ethnicity, memory, narrative, migrations, United States.

I
ntegrando a série Routledge Research in Race and Ethnicity, o livro
“Subjetividade étnica em narrativas de memória intergeracional:
política do não-dito” (tradução livre), da sociolinguista húngara Mónika
Fodor, oferece uma reflexão interdisciplinar sobre o papel da memória
intergeracional para a construção da subjetividade étnica. O objetivo da
obra é analisar a construção discursiva da identificação étnica na forma
de subjetividade, isto é, como um grupo de indivíduos se identifica (ou
não) com a sua herança étnica e como tal herança produz sentidos para
os sujeitos. A obra emprega, em termos metodológicos, uma abordagem
sociolinguística de análise narrativa para abordar temas como etnicidade,
identidade, memória, experiência migratória e assimilação. Desse modo,
Fodor estabelece um diálogo transversal com distintas perspectivas e vertentes
teóricas oriundas dos campos da Sociologia, da Antropologia e da História,
que servem como referencial teórico ao estudo.
O grupo em análise é composto por americanos com ancestralidade
europeia, de segunda geração ou de gerações mais tardias. Assim, trata-
se de uma obra que examina o papel da memória para a conformação

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


432 Lucas Voigt

de identidades europeu-americanas, analisando narrativas de memória


sobre imigração e experiências de vida transmitidas por antepassados
que migraram aos Estados Unidos. O material empírico é composto por
cinquenta e uma entrevistas autobiográficas com dezessete sujeitos, a maior
parte com origem étnica húngara – embora o corpus envolva também
sujeitos que se identificam com origens italianas, alemãs ou mistas. O livro
é estruturado em seis capítulos: o primeiro apresenta a base teórica de
análise, enquanto os demais se constituem como análises de narrativas de
memória intergeracional organizadas e codificadas tematicamente.
A obra mobiliza quatro conceitos centrais, que são abordados no
primeiro capítulo. O primeiro deles é a noção de memória intergeracional.
Esta refere a memórias sobre eventos ocorridos com antepassados,
transmitidas em contextos familiares. Segundo Fodor, o conceito de memória
intergeracional é praticamente equivalente ao de pós-memória – segundo a
formulação de Marianne Hirsch (1992) –, embora a autora reconheça que
a ênfase no aspecto traumático da memória não está presente em todas as
narrativas apresentadas no livro. O conceito de pós-memória, que abrange
um conjunto de suposições amplamente aceitas entre os estudiosos da
memória, refere-se a memórias herdadas de antepassados que, embora
não se baseiem em experiências vividas pelo indivíduo, são tão significativas
que o mesmo as acaba incorporando como se fossem suas próprias (Pollak,
1992; Voigt, 2017). Ademais, a noção enfatiza o componente traumático
da memória (Roseman, 2000) e, simultaneamente, o receio de perda de
conexão com um passado que pertence a outras gerações, o que implica a
assunção da responsabilidade de preservar as memórias do esquecimento.
O segundo conceito é o de etnicidade, que representa o aspecto
mais inovador e interessante da obra de Fodor. A autora propõe uma
conceituação de etnicidade como capital simbólico, baseando-se na
sociologia de Pierre Bourdieu. De acordo com a autora, reivindicar a
etnicidade como parte significativa da subjetividade demanda “investimento”,
em sentido bourdieusiano. Em outras palavras, a etnicidade compreende
escolha, negociação e “interesse” – para que os sujeitos se identifiquem

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos. 433

com determinada herança étnica, é necessário que a considerem algo


de valor e digno de investimento. Nesse sentido, a etnicidade passa a ser
compreendida como um conjunto de conhecimentos culturais e linguísticos
que representam uma fonte de capital simbólico.
Algumas das expressões do investimento de preservação ou reaquisição
da etnicidade são: pesquisa genealógica, estudo de línguas de herança,
prática de tradições étnicas, associação a sociedades culturais, visitas ou
mudança definitiva para a pátria natal dos ancestrais, dentre outras. A noção
de investimento implica, de modo correspondente, lucros obtidos ou visados
pelos agentes. Nas narrativas analisadas pela autora, são mencionados
alguns dos ganhos simbólicos e materiais da identificação étnica, que são
principalmente linguísticos, culturais e profissionais: conhecimento de
outra língua, compreendida como habilidade social; conhecimentos e
competências culturais, que possibilitam, ademais, um senso de valorização
da diversidade cultural e uma atitude de “tolerância” em relação a minorias
e grupos imigrantes; aquisição de capital social e networking com outros
sujeitos étnicos; e benefícios profissionais da biculturalidade e do bilinguismo,
que se expressam, por exemplo, no desenvolvimento de carreiras acadêmicas
e artísticas – em que o capital cultural e linguístico se mostra determinante
– ou no âmbito dos negócios e das profissões liberais que se desenvolvem
em círculos étnicos – em que o capital social tem um papel crucial.
Um dos consensos no âmbito das discussões sobre a etnicidade reside na
constatação da natureza eminentemente interdisciplinar da temática (Weber,
2005). Nesse contexto, pode-se afirmar que o aporte sociolinguístico da
etnicidade desenvolvido por Fodor alinha-se a um conjunto de formulações
no campo das ciências sociais, notadamente aquelas que colocam em
evidência as relações entre a etnicidade e a ação econômica – por exemplo, a
discussão clássica no campo da sociologia das migrações sobre as middleman
minorities (Bonacich, 1973), ou as discussões mais recentes no contexto
das ciências sociais e da história sobre os usos econômicos da etnicidade
e de redes transnacionais por imigrantes (Buchenau, 2004), ou sobre o
papel das atividades econômicas para a própria conformação e definição

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


434 Lucas Voigt

da etnicidade (Karam, 2007). A principal contribuição da obra de Fodor


a esse campo reside, a meu ver, na formalização e na sistematização da
noção de etnicidade considerando sua dimensão de “investimento” – o que
compreende, por extensão, as retribuições e os lucros obtidos ou almejados
pelos sujeitos, dentre eles o econômico –, o que se dá pela aproximação
da noção com as formulações da sociologia de Pierre Bourdieu.
Ademais, pode-se apontar um alinhamento entre a obra de Fodor e
os trabalhos desenvolvidos no contexto da chamada “nova arquitetura dos
estudos étnicos” (Lesser, 2017; Rein et al., 2017; Buchenau; Dávila, 2020). As
construções narrativas analisadas por Fodor referem-se precisamente ao tipo
de identidades que Lesser (2017) definiu como “hifenizadas”, isto é, aquelas
formadas na intersecção entre etnicidades diaspóricas e identidades nacionais.
Na perspectiva dos novos estudos étnicos, as identidades hifenizadas
possuem um caráter situacional, fluido e continuamente negociado, sendo
produzidas na intersecção entre contextos locais, nacionais e transnacionais
– processo que resulta não apenas na produção de etnicidades, interferindo
também na conformação das identidades nacionais. No trabalho de Fodor,
as negociações dos sujeitos entre etnicidades (de origem diaspórica) e
identidades nacionais (referentes aos contextos local e nacional em que estão
inseridos) se expressam e são analisadas a partir de narrativas de memória.
A formulação de Fodor sobre a etnicidade enquanto investimento
e escolha – e não como conexão normativa com outros indivíduos que
partilham a mesma origem étnica – baseia-se na suposição de que, para
indivíduos racialmente brancos, a etnicidade só exerce um papel se os
sujeitos assim o desejarem. Diferentemente de outros grupos sociais para
os quais a etnicização e a racialização são inevitáveis – consideremos, no
contexto americano, o caso dos “latinos” e dos negros –, para os indivíduos
analisados por Fodor – americanos brancos plenamente assimilados – a
etnicidade se apresenta sob o signo da invisibilidade e da ausência de
marcas. Nesse sentido, a formulação de Fodor mostra afinidades com
a ideia de “branquitude”, que adquiriu notória projeção nos debates
recentes no campo das ciências sociais. De acordo com Schucman (2012),

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos. 435

a branquitude refere-se à crença de que o branco não possuiria atributos


raciais ou étnicos; a racialização, assim, seria pertinente apenas a sujeitos
não brancos.
A concepção de etnicidade relaciona-se diretamente ao terceiro
conceito central da obra, a subjetividade. Fodor emprega o termo
“subjetividade étnica” para demarcar uma distinção em relação à noção de
identidade, enfatizando a dimensão individual e “voluntária” da etnicidade.
A subjetividade, termo de origem pós-estruturalista, refere-se “ao retrato
complexo do self que construímos na linguagem das histórias” (p. 29,
tradução livre), que se baseia no estabelecimento de uma identificação ou
distanciamento em relação a um “outro” considerado étnico. Enquanto a
identidade compreende a aceitação de um sistema de recursos culturais de
uma comunidade, a subjetividade étnica implica um modo personalizado
e negociado de relacionamento do sujeito com tais recursos.
O quarto e último conceito elementar do livro de Fodor refere-se à
narrativa, compreendida como uma forma de organização do conhecimento
e da experiência. A autora argumenta que a narrativa e a memória possuem
relações recíprocas: a memória é contada como narrativa e a narrativa
oferece a estrutura para a preservação e a interpretação da memória. De
acordo com Fodor, a narrativa de memória representa uma interpretação
do passado no presente; quando se trata de narrativas herdadas, a narrativa
de memória intergeracional opera uma associação entre eventos do passado
e a vida do narrador.
A análise sociolinguística de narrativas desenvolvida por Fodor ao
longo da obra dá atenção a variados aspectos discursivos e linguísticos
da narrativa, tais como: uso de tempos verbais; emprego de pronomes
e formas de posicionamento do narrador; estrutura e tipo da narrativa
(laboviana, conversacional); presença ou não de ações complicadoras e
turning points; uso de storylines alternativas (sideshadowing); uso de citações
ou diálogos reportados; alternância entre língua materna e língua ancestral
(code-switching); estratégias para lidar com direitos à narrativa de histórias
que não se viveu; controle de interpretação executado pelos narradores;

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


436 Lucas Voigt

influência das questões colocadas pela entrevistadora à narrativa; e técnicas


narrativas usadas para lidar com ausências e com o aspecto fragmentário
da memória.
No segundo capítulo, Fodor inicia sua análise de narrativas de memória
intergeracional. As memórias analisadas no capítulo visam explicitar os
mecanismos de construção do self étnico. A autora demonstra como a
etnicidade é construída, de modo subjetivo, com base na memória dos
antepassados – isto é, o self (o conceito de “si”) será construído em relação
às experiências passadas de um “outro”, que faz parte do grupo familiar.
O argumento de Fodor é de que a memória intergeracional é importante
para a construção da subjetividade étnica, na medida em que é articulada
e recontada de modo combinado com as autobiografias dos narradores. A
memória envolve dois mundos de história: o mundo passado próprio dos
ancestrais (storyworld) e o mundo presente do narrador (storytelling world),
que são conectados através da narrativa. Segundo a autora, os narradores
constroem sua subjetividade e agência ao aceitar ou rejeitar aspectos da
etnicidade percebidos nas memórias herdadas; em outras palavras, a
identificação étnica produzida a partir da memória intergeracional depende
da atribuição de um valor – social e cultural – à etnicidade.
Um dos elementos centrais do capítulo – e da obra como um todo – é
o esforço de identificação de similaridades estruturais e quadros comuns
às narrativas de construção de subjetividade étnica, que formariam uma
“comunidade discursivamente imaginada”, no sentido de Benedict Anderson
(2008). No capítulo, as narrativas são organizadas em três eixos temáticos: a
continuidade do self étnico através de perda e recuperação da etnicidade,
que envolve memórias sobre a assimilação e a perda da cultura e da
língua étnicas, bem como o esforço de recuperação da cultura de origem;
a necessidade moral de conhecer e lembrar o que aconteceu com os
antepassados; e o papel de objetos (memorabilia) de propriedade dos
ancestrais na construção da memória intergeracional.
No terceiro capítulo, Fodor analisa narrativas que relacionam histórias
de vida do narrador com memórias sobre a experiência de assimilação dos

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos. 437

antepassados, visando compreender como narrativas sobre assimilação


influenciam a construção da subjetividade dos narradores. A assimilação é
compreendida como a integração social, cultural e linguística na sociedade
receptora. Em diálogo com a literatura sociológica sobre assimilação –
conceito indissociável da noção de etnicidade, compreendida nesse
momento como uma fronteira virtual estabelecida pelos indivíduos –, Fodor
argumenta que o termo se refere à mudança que leva tendencialmente ao
declínio da distinção étnica, mas não necessariamente à sua eliminação.
Lançando mão da teoria da assimilação proposta pelos sociólogos Alba &
Nee (1997), a autora aponta o caráter bidirecional da assimilação, que pode
ocorrer nos dois lados da fronteira étnica, isto é, tanto no grupo minoritário
quanto no grupo majoritário.
As narrativas analisadas pela autora dialogam com dois discursos
históricos sobre a assimilação nos Estados Unidos: o antigo cânone da
teoria da assimilação (pré-1965), de caráter normativo e que apontava a
necessidade de assimilação, compreendida como um processo irreversível,
inevitável e não negociado; e o novo cânone sociológico da assimilação
(pós-1965 e movimento dos direitos civis), que considera a raça e a
etnicidade como identidades que representam fontes alternativas de valor
e de conhecimento, compreendendo a assimilação como um processo
dinâmico, bidirecional e negociado, que não impossibilita investimento
em termos de etnicidade, independentemente da posição geracional e
temporal de um sujeito em relação ao imigrante.
No quarto capítulo, Fodor complexifica e explicita o diálogo da obra
com o campo da história, através de uma exploração acerca das relações
entre memória e história. O objetivo é analisar narrativas construídas na
interface entre cronologias históricas oficiais e interpretações pessoalizadas
e individuais da experiência histórica. Segundo a autora, o conhecimento
histórico opera como um recurso cultural – uma espécie de “repositório” –
para a construção de narrativas de memória individual e coletiva. Ademais,
os narradores utilizam contextualizações históricas para contrabalançar a
falta de detalhes e a fragmentação da memória.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 430-441.


438 Lucas Voigt

No capítulo, Fodor reenquadra a memória intergeracional como um


senso da história ou “consciência histórica” – no sentido de Reinhart Koselleck
–, isto é, como uma apreensão de eventos entre duas temporalidades: o
tempo natural (a posição de um evento no tempo do relógio) e o tempo
histórico (a temporalidade subjetiva do evento). Nas narrativas sobre o
envolvimento de antepassados na história, os descendentes interconectam
presente, passado e futuro, através de uma interpretação contemporaneizada
dos acontecimentos.
As memórias analisadas no capítulo, de alto componente traumático,
tratam da experiência de ancestrais como testemunhas, vítimas ou
perpetradores em eventos históricos, procurando justificar e compreender
as escolhas dos antepassados, que servem simultaneamente à justificação
da pertença reivindicada ou não pelo descendente a um grupo étnico. Os
principais macroeventos históricos referenciados pelas narrativas são as duas
guerras mundiais, a Grande Depressão e a Revolução Húngara de 1956.
O quinto capítulo aborda a geografia da memória, a partir do conceito
de “lugar de subjetividade étnica”, que se refere a lugares que os sujeitos
relacionam à sua ancestralidade étnica, produzindo laços emocionais e
psicológicos que tornam o local significativo. Segundo Fodor, verifica-se a
produção de um “senso de lugar” em relação a locais geográficos, que pode
ser compreendido como a relação e o entendimento personalizado que
indivíduos e grupos estabelecem com os lugares. As memórias analisadas
envolvem quatro tipos de lugares: a terra natal ancestral dos antepassados;
viagens às raízes, isto é, visitas temporárias ao país do antepassado imigrante,
que compreende também a dimensão do turismo étnico; o bairro étnico
(ou “enclave”), onde os antepassados iniciaram a vida no país receptor;
e o lugar de patrimônio étnico, a saber, novos lugares estabelecidos por
descendentes heterolocalizados especificamente para a prática da herança
étnica – como centros culturais e clubes, que promovem festas e eventos.
No sexto e último capítulo, Fodor volta-se ao problema da tradição,
estabelecendo um diálogo com alguns dos principais estudiosos do tema,
como Eric Hobsbawm (Hobsbawm; Ranger, 1984) e Jan Assmann. Tradições

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Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos. 439

são compreendidas como roteiros de práticas culturais às quais os membros de


uma comunidade se relacionam através de narrativas; isto é, a tradição é uma
plataforma de identificação transmitida através de gerações. A tradição é uma
experiência definida a partir da intersecção paradoxal entre conhecimento
estático de práticas culturais roteirizadas e o processo dinâmico de transmissão
desse conhecimento. O capítulo considera como os sujeitos definem, praticam
ou rejeitam tradições como uma fonte de capital simbólico; segundo a
autora, uma tradição é transmitida apenas se os sujeitos a consideram valiosa.
As memórias analisadas versam sobre dois temas: comida étnica, um dos
aspectos mais duradouros das tradições; e rituais e celebrações comunitárias
que se relacionam à etnicidade dos sujeitos.
Pode-se argumentar que uma das fragilidades do trabalho de Fodor
reside na aparente confusão entre os conceitos de não-dito e esquecimento.
Em certas passagens da obra, a autora refere-se acertadamente ao não-dito
como o silenciamento deliberado relacionado ao aspecto traumático da
memória. Em outros momentos, entretanto, o não-dito faz referência à
fragmentação e à incompletude características da memória intergeracional.
Considerando a terminologia comumente empregada no campo da
sociologia da memória, tal fenômeno seria mais adequadamente definido
como esquecimento, ao passo que o não-dito (ou silêncio) se refere a
experiências deliberadamente não narradas em função da impossibilidade
de sua reverberação em um contexto social e histórico específico, mormente
em função do seu aspecto traumático (Pollak, 2010).
A perspectiva de Fodor se baseia na análise narrativa e de discurso,
visando compreender a construção narrativa da etnicidade. Tal metodologia
faz pleno sentido se considerarmos que o objeto em análise são memórias
narradas em situação de entrevista. Não obstante, até mesmo práticas culturais
étnicas ou tradicionais são abordadas de um ponto de vista textualista, tais
como eventos étnicos, comida étnica, viagens às origens etc. Nesse sentido,
é válido termos em mente que o discurso não é a única possibilidade de
produção e de expressão da etnicidade e da memória – consideremos, por
exemplo, as festas étnicas, a dança e a música étnicas, o uso de indumentárias

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440 Lucas Voigt

tradicionais, ou o papel reconhecido dos monumentos históricos e da cultura


material para a preservação e a disseminação da memória e da etnicidade.
No mesmo sentido, as formulações propostas por Fodor – como a dimensão
do investimento e da escolha na etnicidade, aspecto mais original de seu
trabalho – podem ser apropriadas e mobilizadas em pesquisas que não se
baseiam em uma perspectiva narrativa ou textualista, ou que empreguem
análise de discurso.
Feita essa ponderação, deve-se pontuar que a obra de Fodor constitui
leitura relevante por oferecer um arsenal metodológico para a análise
temática, estrutural e performática da narrativa. Esse arsenal pode auxiliar
cientistas sociais interessados no fenômeno das narrativas de memória e
da história oral, contribuindo para o desenvolvimento de análises mais
sofisticadas sobre narrativas de experiências passadas e seu impacto na
constituição de identidades, através de uma reflexão sobre a dimensão
formal e estrutural da narrativa de memória. Ademais, ainda que o contexto
empírico do trabalho esteja delimitado aos Estados Unidos, a obra interessa
a cientistas sociais que pesquisam sociedades em que a imigração – seja
europeia, ou de outros contextos geográficos – ocupa um papel formativo,
como é o caso de vários países da América Latina e, sobretudo, do Brasil.

Lucas Voigt é Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina,
doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com período
sanduíche junto à University of Illinois at Urbana-Champaign (com financiamento da CAPES),
e professor substituto de Sociologia no Instituto Federal do Paraná – Campus Palmas.
 lucas_3106@hotmail.com

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Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos. 441

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Recebido: 27 abr. 2021.


Aceito: 6 jul. 2021.

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Brazil Today
444 BRAZIL
Danielle
TODAY
Tega
444

http://doi.org/10.1590/15174522-108123

Political memories and feminist resistance


Danielle Tega*

Abstract
This paper presents the criteria, methodology, and main results of a recently published
research that surveyed and analyzed testimonies made by women who fought against
the military dictatorships in Brazil and Argentina, in a time frame that begins with
the enactment of the Amnesty Law (1979) and ends with the release of the final
report by the National Truth Commission (2014).◊
Keywords: memory, military dictatorship, testimony, gender, feminism.

Memórias políticas e resistências feministas


Resumo
Esta comunicação apresenta os critérios, a metodologia e os principais resultados de
uma pesquisa recém-publicada que fez o levantamento e a análise de testemunhos
produzidos por mulheres que lutaram contra as ditaduras militares do Brasil e
da Argentina, num recorte temporal que se inicia com a promulgação da Lei da
Anistia (1979) e finaliza com a entrega do relatório final da Comissão Nacional da
Verdade (2014).

Palavras-chave: memória, ditadura militar, testemunho, gênero, feminismo.

* Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, Brazil.



Translated by Liana Fernandes. lianavfer@gmail.com

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Political memories and feminist resistance 445

A
mong so many concerns for understanding Brazil today, the social
and political events of recent years offer fertile ground for sociological
analysis. For example, we could go back to the June Journeys of
2013, as the demonstrations held in numerous Brazilian cities became
known. Driven by the Free Fare Movement (MPL – Movimento Passe
Livre) against increase in bus fares in São Paulo, these protests were initially
made up of left-wing youths, who autonomously and non-hierarchically
got organized (Judensnaider et al., 2013). Soon, other groups joined the
demonstrations, adding up other demands and generating disputes over
their direction. Following repression by the São Paulo police, demonstrations
have grown massive and huge protests took place in twelve capitals, which
enjoyed almost 80% of public support. As demands for better health, wages,
education, housing, civil rights etc. were introduced into the protests, a part
of the population with no previous activism experience joined the protests,
triggering a patriotic and moralistic repertoire that rejected participation
of political parties and brought back anti-corruption rallying cries. Unlike
autonomous or socialist militants from the left of the Workers’ Party (PT)1,
that of President Dilma Rousseff, this third kind of demonstrations attracted
individual protesters – and their rejection of political parties in general
turned into aversion to PT (antipetismo), which was undeniably linked to
the polarization experienced by Brazilian society during the 2014 elections
(Alonso, 2017). Disappointed with the result of the presidential re-election,
this sector received support from PSDB2, party of Aécio Neves, candidate
who, after losing the election, alleged fraud in the counting process and
demanded the impeachment of Dilma Rousseff. Sponsored by the media
and business sectors, new demonstrations took place in 2015, calling for
the impeachment of the president and leading, the following year, to her
deposition. Demonstrations against an inminent coup in that period and,
after consummation, against the government of Michel Temer (PMDB)3 did
not achieve similar social strength.
1
Partido dos Trabalhadores – PT.
2
Partido da Social Democracia Brasileira – Brazilian Social Democracy Party.
3
Partido do Movimento Democrático Brasileiro – Brazilian Democratic Movement Party.
Michel Temer was Dilma Rousseff’s vice-president and took office after her impeachment.

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446 Danielle Tega

Those were intense years whose consequences are still being felt in
various spheres of Brazilian social life. That same time saw a powerful
feminist spring that took the streets of several countries in Latin America.
In Brazil, women mobilized in 2015 against a bill by the then congressman
Eduardo Cunha (PMDB), which would hinder access to morning-after
pill. In 2016, acts in Rio de Janeiro and São Paulo gathered thousands
of women against rape culture. In 2017, women took part in the general
strike called for March 8, and again took the streets the following year to
denounce the murder of councilor Marielle Franco (PSOL)4 and clamor for
democracy crying out “Not Him!” (popularized in social media as #elenão).5
Therefore, the attacks on women that marked 2018 Brazilian elections
and consolidated the extreme right rise to power with the victory of Jair
Bolsonaro (PSL)6 were not incidental. When still a federal deputy, Bolsonaro’s
vote in favor of Rousseff’s impeachment was dedicated “to the memory of
Colonel Carlos Alberto Brilhante Ustra, the dread of Dilma Rousseff”.7 Two
years later, during his candidacy, he would reveal that his bedside book
was authored by that same colonel and well-known torturer he had paid
homage to. These events highlight the relevance of a gender approach to
the chronicles of current political struggles. The research now published
as Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil
e na Argentina8 (Tega, 2019) offers key elements to reflect on these issues.
Firstly, for its focus – the book gathers an unprecedented survey of
testimonies from women who fought against military dictatorships in Brazil
(1964-1985) and Argentina (1976-1983) and who had their lives affected, in
4
Partido Socialismo e Liberdade – Socialism and Liberty Party.
5
Translator’s note: #elenão was widely used during the presidential election campaign of
2018, against the rise of then candidate Jair Bolsonaro in the polls, as he was seen by many
as the worst possible choice due to his views on social justice issues.
6
Partido Social Liberal – Social Liberal Party.
7
T/N: Brilhante Ustra was a military official and head of the intelligence and political
repression agency during the Brazilian military dictatorship. He was found guilty in 2008 of
kidnapping and torture and is widely recognized as being responsible for Dilma Rousseff’s
imprisonment and torture during her time as a resistance agent.
8
Times to tell, times to listen: testimonies of women in Brazil and Argentina.

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Political memories and feminist resistance 447

various ways, by the horrors of repression. Such testimonies were collected


from several publicly available media in which these women recorded
their memories, such as films, books, and interviews. This research, thus,
challenges previous studies that indicate scant writings by women who
fought against dictatorships (Tega, 2010). Furthermore, without belittling
oral reports collected by valuable research (Silva; Pedro; Wolff, 2018,
among others), the work delves into the meaning of public manifestations
of these memories carried out by the women themselves.
Secondly, for the methodological approach of the study, which
comprised two stages. Initially, resorting to a gender dimension in memory
works, it draws on a traditional feminist approach that seeks to unveil what
has been socially concealed. Based on research that explored libraries and
memory preservation centers, theses and dissertations repositories, internet
sources, debates, and conference papers, the book presents a compilation
of media produced by women about their militancy, traumas, and resistance
experienced during the two military dictatorships in question. The discovery
of this content made it possible to include different narrative styles, such as
novels, short stories, letters, plays, interviews, autobiographies, in addition
to different narrative languages, such as cinema. Once it has taken shape,
this assortment of testimonies reveals something remarkable: many women
had opted for the public mediation process to broadcast their experiences.
Thus, after extensive bibliographic and documentary research, more
than 30 works from Brazil and around 20 from Argentina are listed in the
book that meet at least one of the following criteria:
a) Works written or produced by women who fought in armed groups
against the military dictatorships of Brazil and Argentina, even those who
were not at the forefront of armed operations and made other types of
contributions to guerrilla organizations.
b) Works written or produced by women who have suffered political
persecution when working with clandestine movements, parties, or groups,
even if they have not joined the armed struggle.

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448 Danielle Tega

c) Works written or produced by women who were political prisoners


or, at some point, were politically disappeared, and who survived the
traumatic experiences of imprisonment.
d) Works written or organized by people or institutions that give
preference to texts, testimonies or interviews by militant and/or political
prisoner women.
The endeavor to do an inventory of these productions can be useful as
a source for further researches on the subject, while making room for new
works to be included in the list. To moderate the presented comparative
framework, the book lists the works drawing on the memory policies
adopted by each of the two countries, within a time frame that begins in
1979, with the enactment of the Brazilian Amnesty Law, and ends in 2014,
with the release of the National Truth Commission (CNV) Report.9 These
two historical moments entailed disputes. The Brazilian society, notably
family members of political prisoners and human rights groups involved in
the Brazilian Committees for Amnesty and the Women’s Committee for
Amnesty, did struggled for a “broad, general, and unrestricted amnesty”.
Demands included locating missing persons, investigating deaths, ensuring
the return of those who were in banishment or exile, releasing political
prisoners, and punishing torturers, the military, and others responsible
for such acts. However, Law No. 6,683, passed on August 28, 1979, was
interpreted so as to safeguard the interests of the military government and
ensure the impunity of members of the repressive regime. The CNV, formed
almost 30 years after the end of the dictatorship, aimed to investigate the
serious human rights violations occurred between 1946 and 1988, and its
goals did not include bringing torturers and military officials responsible
for the uncovered crimes to justice.
While bringing the testimonies of those women to light was a necessary
step in the research, the book Tempos de dizer, tempos de escutar notes
that it was not the only one to accomplish. It thus goes into the second
9
T/N: Comissão Nacional da Verdade. Established in 2011 to investigate gross violations of
human rights carried out between 1946 to 1988 in Brazil.

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Political memories and feminist resistance 449

methodological stage, namely pointing out that feminist thought consists also
of denouncing the authoritarian and hierarchical traits of historical gender
relations, politicizing issues previously perceived as private, questioning
the conventions of masculinity and femininity, and revealing other ways
of thinking about body, subjectivity, and experience. Given the significant
number of works listed, each one providing different forms of reading and
interpretation, the research established a corpus, which is examined in
the last three chapters of the book. Such analysis strives to avert certain
“sacralization of the victims’ memory” (Traverso, 2018) – which would neglect
the political commitments of historical subjects – and rather follows a path
that takes the testimonies as vestiges of defeated projects, thus focusing on
the issues of repression, militancy, and resistance.
Such approach to the testimonies of these women reveals a strong
denouncement of how they were subjected to forced nudity, individual
and collective rapes, the insertion of objects and animals into their
vaginas, witnessing masturbation by their torturers, to specific tortures
while menstruating or pregnant, to abortions due to torture, kidnapping
of their newborn children, to having their bodies used as an instrument of
manipulation or salvation. Far from being perpetrated by few tormentors
who had “crossed the line”, gender violence was part of the structure of
repressive systems in both dictatorships (Tega; Teles, 2019).
The works listed in the book also criticize the militancy itself and the
organizations to which those women belonged. They emphasize the sexism
and authoritarianism of parties, revolutionary groups and leaders. They
highlight the arduous conditions they faced by choosing clandestinity within
a quite specific repressive context. They point out the importance of affective
bonds and friendships. Resistance assumes several forms in these testimonies,
as in the very act of writing or filmic creation, in which the authors recover
agency. But also, in the remembrance of traumatic experiences deeply
marked by and in the body, since their later experiences allow them tp
reexamine those events from a new perspective, in which gender relations
take central stage. Resistance can be found, likewise, in the silences and

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450 Danielle Tega

gaps in speech and writing, which reveal how hard it is to recount their
torments and their very need to denounce the sexual violences suffered. Or
even in the reports of solidarity and comfort received during imprisonment,
which allowed them to begin subjectively rebuilding themselves.
A third element present in the book is the way it links themes such
as memory, gender, sexuality, human rights, and education, while not
overlooking the temporalities adopted in the narrations, examining how
events are reinterpreted and incorporated into the experiences. In this
sense, the women’s testimonies reconstruct their subjectivities and, at the
same time, destabilize the traditional perception of both the recent past
and the present, as they make room for new perspectives – both for those
who narrate and for those who listen.
Furthermore, the survey endeavor was based on the premise that the act
of disclosing historically hidden experiences and struggles is a fundamental
step in memory work (Kehl, 2010). It is not hard to note that societies
tend to repeat what they are incapable of explain. In Brazil, unlike what
happened in other South American countries, state violations of human
rights increased in comparison to the period of the military dictatorship.
Studies have shown that this persistent violence is closely related to the
weak transitional justice process carried out in the country (Teles; Safatle,
2010), especially considering that it was the only country in the region where
torturers were never brought to justice and where a truth commission was
created too late. Everyday violence displays social traumas that were not
appeased by forced reconciliation, and which hinder the advancement of
democratic experience, as it is well demonstrated by research on genocide
of black youth (Waiselfisz, 2014), murders of women, specifically femicides
(Waiselfisz, 2015), violence against LGBTQI+ population (IPEA/FBSP, 2020),
and aggressions against indigenous populations (Cimi, 2019).
In many ways, the consequences of the 2018 elections represent
an affront to what the study here presented proposes. The memories of
women who fought against dictatorship and the trajectories of those who
still fight for social justice today have been vilifyed. At the same time, such

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 444-452.


Political memories and feminist resistance 451

consequences reinforce the political and academic importance of Tempos


de dizer, tempos de escutar. The struggles for memory, truth, and justice
endure and get fiercer.

Danielle Tega holds a doctor’s degree in Sociology and is a professor at the Federal University
of Grande Dourados.
 dani.tega@uol.com.br

Full reference of the abridged work


TEGA, Danielle. Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil e
na Argentina. São Paulo: Intermeios; FAPESP, 2019.

References
1. ALONSO, Angela. A política das ruas: protestos em São Paulo de Dilma a Temer. Novos Estudos
Cebrap, n. especial, p. 49-58, 2017. http://dx.doi.org/10.25091/S01013300201700040006
2. CIMI. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2019. Brasília:
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 2019. Available at: https://cimi.org.br/
wp-content/uploads/2020/10/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-
brasil-2019-cimi.pdf.
3. IPEA/FBSP. Atlas da violência 2020. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea); Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2020. Available at:
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/.
4. JUDENSNAIDER, Elena et al. Vinte centavos: a luta contra o aumento. São
Paulo: Veneta, 2013.
5. KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, E.; SAFATLE, V. O que
resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
6. SILVA, Janine G. da; PEDRO, Joana M.; WOLFF; Cristina S. Acervo de pesquisa,
memórias e mulheres: o Laboratório de Estudos de Gênero e História e as ditaduras
do Cone Sul. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 71, p. 193-210, 2018.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i71p193-210

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 444-452.


452 Danielle Tega

7. TEGA, Danielle. Mulheres em foco: construções cinematográficas brasileiras da


participação política feminina. São Paulo: Editora UNESP; Cultura Acadêmica, 2010.
8. TEGA, Danielle; TELES, Maria Amélia de A. Feminismos e direitos humanos. In:
NUNES, César Augusto R.; POLLI, José Renato. Educação e direitos humanos: uma
perspectiva crítica. Jundiaí: Edições Brasil; Editora Fibra; Editora Brasílica, 2019.
9. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira.
São Paulo: Boitempo, 2010.
10. TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória.
Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.
11. WAISELFISZ, Julio J. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no
Brasil. Brasília: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), 2015.
Available at: https://flacso.org.br/files/2020/03/Mapa2014_JovensBrasil.pdf.
12. WAISELFISZ, Julio J. Mapa da violência 2014: os jovens do Brasil. Brasília:
Secretaria Geral da Presidência da República; Secretaria Nacional de Juventude;
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2014. Available at:
https://flacso.org.br/files/2015/11/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf.

Received: Oct. 5th, 2020.


Approved: Feb. 5th, 2021.

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 444-452.


Political memories and feminist resistance 453

Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 444-452.


Política Editorial

Sociologias é uma publicação quadrimestral do Programa de Pós-


Graduação em Sociologia (PPGS) do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
tendo por missão promover o intercâmbio entre cientistas sociais do Brasil
e do exterior.
Sociologias é uma revista de orientação pluralista que busca ampliar
os espaços para expressão das diversas correntes existentes nas ciências
sociais, colocando em debate temas e abordagens que constituem o campo
acadêmico da sociologia. Contempla, também, espaço para outras áreas
do conhecimento como antropologia, literatura, informática, economia,
entre outras, que apresentem importantes interfaces com a sociologia.
Seu projeto editorial contempla duas partes principais: um dossiê
temático, específico para cada número, e uma seção diversificada que
abrange artigos científicos e de atualização teórico-metodológica, resenhas,
notas de pesquisa, entrevistas.
O título Sociologias deve ser usado em bibliografias, notas de rodapé
e em referências e legendas bibliográficas.
A revista encontra-se disponível para colaboradores de todos os países,
possuindo um conselho editorial diversificado em termos de regiões do
Brasil e incluindo consultores internacionais e tem contado com apoio
financeiro da PROPESQ-UFRGS, Capes e CNPq.
Sociologias é publicada no Brasil sob responsabilidade do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
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ou como capítulos de livros) na forma de artigos, resenhas e comunicações
de pesquisas em ciências sociais que apresentem relevância acadêmica e
social.
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condicionada à adequação rigorosa do manuscrito às Diretrizes para
Submissão. Pelo menos um dos autores do manuscrito submetido deve
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pessoas, sendo pelo menos uma com título de doutor. O primeiro autor
deverá ter no mínimo o título de Mestre. No caso de resenhas é permitida
a autoria de mestres.
A publicação dos trabalhos está condicionada a, pelo menos, duas
avaliações de pares escolhidos entre os membros do Conselho Editorial
ou colaboradores de Sociologias com experiência relevante na área de
conhecimento. O sistema de avaliação é duplo cego. Os trabalhos são
avaliados de acordo com os seguintes critérios: (i) clareza da redação, (ii)
qualidade e rigor dos argumentos apresentados, (iii) validade dos dados
apresentados, (iv) oportunidade e relevância do artigo para a discussão de
problemas na área de pesquisa envolvida, e (v) atualidade e adequação das
referências contidas no trabalho. Eventuais sugestões de modificação de
estrutura ou conteúdo, por parte da Editoria, são previamente acordadas
com os autores.
Diretrizes para submissão

Sociologias aceita trabalhos inéditos na forma de artigos, resenhas e


comunicações de pesquisas em ciências sociais que apresentem contribuições
inovadoras e relevantes em sua área temática e demonstrem rigor teórico e
metodológico em sua construção. As contribuições podem ser submetidas
nos idiomas português, espanhol, francês ou inglês.

Artigos submetidos em inglês ou francês, uma vez aprovados no processo


de avaliação, deverão ser traduzidos para o português e publicados nos
dois idiomas, ficando os autores responsáveis pela tradução, que poderá
ser realizada por tradutores de livre escolha dos autores ou escolhidos em
lista sugerida pela revista.

Os manuscritos devem destinar-se exclusivamente à Sociologias, isto


é, não poderão ser submetidos simultaneamente a outro(s) periódico(s). A
Revista não assume responsabilidade por análises e considerações emitidas
pelos autores.

Para qualificarem-se à avaliação por pares, as contribuições devem


atender aos seguintes critérios:

1. Pelo menos um dos autores possuir título de Doutor e, em caso de


coautoria, o primeiro autor ter pelo menos o título de mestre e o
manuscrito contar, no máximo, com quatro autores. No caso de resenhas
é permitida a autoria de mestres;

2. Os autores devem realizar cadastro no sistema SEER – (http://www.


seer.ufrgs.br/index.php/index/user/register) e iniciar o processo dos
cinco passos para submissão, seguindo as diretrizes para submissão;

3. Os manuscritos para as seções Artigos e Interfaces deverão ter no


máximo 8.000 palavras ou 22 páginas, incluindo resumo e referências.
Resenhas deverão ter no máximo 4.500 palavras ou 10 páginas. O
manuscrito deve estar apresentado em formato A4, fonte Times New
Roman 12, espaço 1,5 e margens superior e esquerda de 3 cm, e
inferior e direita de 2 cm;

4. O arquivo submetido do manuscrito deve estar em formato editável


contendo título e resumo (de até 250 palavras) no idioma em que
está sendo submetido e em inglês, até cinco (5) palavras-chave que
permitam a adequada indexação do artigo, e lista de referências
conforme normas ABNT;

5. O resumo deve descrever de forma sucinta e clara a que se propõe o


trabalho e o que será exposto no texto;

6. O texto deve estar redigido com clareza e correção gramatical e atender


aos critérios da escrita científica;

7. O arquivo submetido com o texto não deve trazer qualquer identificação


de autoria, para assegurar o anonimato na avaliação;

8. Desenhos, gráficos, mapas, tabelas, quadros e fotografias, devem conter


título e fonte, e estar numerados. Imagens devem ter resolução de pelo
menos 300 dpi. Todos os elementos gráficos devem ser submetidos em
arquivo separado, com indicações claras de onde devem ser inseridos
ao longo do texto;

9. Títulos de seção e subtítulos não devem utilizar caixa alta, tendo só a


primeira letra capitalizada. Subtítulos de 1º nível devem usar fonte 12
e ser negritados, subtítulos de 2º nível, fonte 12 em itálico negritado;
3º nível, fonte 12 em itálico não negritado;

10. As notas devem restringir-se ao mínimo possível e, se necessárias,


devem ser numeradas consecutivamente dentro do texto e colocadas
ao pé da página;
11. As citações literais curtas (menos de três linhas) serão integradas ao
parágrafo, entre aspas e seguidas pelo sobrenome do autor referido
no texto, ano de publicação e página(s) do texto citado, tudo entre
parênteses e separado por vírgulas. Citações de mais de três linhas serão
destacadas do texto em parágrafo especial, em fonte 11, sem uso de
itálico e com recuo de 4 cm a partir da margem esquerda;
12. Referências ao longo do texto devem utilizar o sistema autor-data,
sem utilizar caixa alta para o nome de autor. Por exemplo, (Moser,
1985). Todas as obras citadas ao longo do texto devem constar da
lista de referências ao final do mesmo. Obras não citadas não devem
fazer parte da lista;
13. A lista de referências deve seguir a norma ABNT NBR 6023, conforme
exemplos a seguir::
a) Livros
MOSER, Anita. A nova submissão: mulheres da zona rural no processo de
trabalho industrial. Porto Alegre: EDIPAZ, 1985. (Coleção Debate e Crítica).
LEMOS, Carlos A. O morar em São Paulo no tempo dos italianos. In: DE BONI,
Luis A. (Org.). A presença italiana no Brasil. Porto Alegre: Escola Superior de
Teologia, 1990. p. 401-409.
CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,
1968.

b) Artigo de periódico
NOGUEIRA, Ronidalva. Michel Foucault numa breve visita às prisões de
Pernambuco. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v. 6, n. 2, p. 269-282,
jul./dez. 1990.
O REI está nú (2): adianta porém constatar o óbvio? Isto é, São Paulo, n. 1189,
p. 15, 15 jul. 1992. Editorial.

c) Coletânea
NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
d) Teses acadêmicas
RAMOS, Eloisa Helena Capovila da Luz. O Partido Republicano rio-grandense
e o poder local no litoral norte do Rio Grande do Sul – 1882/1895. 1990.
284 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

e) Verbetes
PISTONE, Sérgio. Bonapartismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Ed. da Universidade
de Brasília, 1986. p. 118-119.
PAGALLO, G. T. Democrito. In: DICCIONARIO de filósofos. Madrid: Rioduero,
1986. p. 321-324.

f) Informação ou texto obtido na internet


INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA.
Conheça o IBICT. Disponível em: <http://www.ibict.br/ibict/frame.htm>.
Acesso em: 01 out. 1997.

Envio de manuscritos
Os(as) autores(as) devem realizar cadastro no sistema SEER (http://www.
seer.ufrgs.br/index.php/index/user/register) e iniciar o processo dos cinco
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Sociologias is a triannual journal published by the Graduate Program


of Sociology (PPGS) - Institute of Philosophy and Human Sciences (IFCH),
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to promote the dialogue between Brazilian and foreign social scientists.
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which represent innovative and relevant contributions, and meet the criteria
of theoretical and methodological academic rigor. Contributions can be
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evaluation process, should be translated into Portuguese and published in
both languages (the original and Portuguese), the authors being responsible
for the translation, which may be done by translators of free choice of the
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The whole peer review process is “blind”, so that neither authors nor
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on the following criteria: clear and correct writting, quality and accuracy
of the arguments, validity of the presented data, timeliness and relevance
of the article to the discussion of problems in the area of research, and the
adequacy and contemporaneousness of the references. Any suggestions from
the Editorial Board for changes in structure or content of the manuscript
will only be made in agreement with authors.
To be eligible for peer reviewing, contributions must meet the following
criteria:

1. At least one of the authors must have a doctorate and, in case of


co-authoring, the first author must have at least Master’s title. The
manuscript should be authored by, at most, four authors. In the case
of book reviews the author(s) should hold at least a Master’s title;
2. For submitting manuscripts to Sociologias authors must register at the
site of the journal at: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/index/user/
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guidelines for authors.
3. Manuscripts should have a maximum of 8,000 words or 22 pages,
including abstract and references. Book reviews should have a maximum
of 4,500 words or 10 pages. The manuscript should be presented in
A4 format, Times New Roman 12, 1.5 space, with top and left margins
of 3 cm, and bottom and right 2 cm.
4. The file with the submitted manuscript should be editable and should
bring title and abstract (up to 250 words) in both the language of
submission and in English, besides up to 5 keywords that allow
appropriate indexing of the article, and list of references compliant
with ABNT standards.
5. The abstract should describe succinctly and clearly the purpose of the
work and the content of the article.
6. The text should be written with clarity and grammatical correctness
and should meet scientific writing criteria.
7. The submission file should not contain any identification of authors,
in order to ensure blind evaluation.
8. Drawings, graphs, maps, tables, charts and photographs should contain
title and source, and be numbered. Images should have a resolution of
at least 300 dpi. All graphics should be incorporated into the manuscript.

9. Section titles and subtitles should not use capital letters and have only
the first letter capitalized. 1st level subheads should use font 12, bold;
2nd level subheads, italicized font 12 bold; 3rd level, font 12 in italics
without boldface.

10. Notes should be restricted to a minimum and be placed at the foot


of the page.

11. Short citations (less than three lines) will be integrated in the paragraph,
put in italics, followed by the surname of the cited author, year of
publication and page (s) of the quoted text. Citations of more than
three lines must be indented four cm from the left margin.

12. References in the text should use the author-date system, without
using capital letters for the author name. For example, (Moser, 1985).
All works cited in the text should appear in the list of references at the
end of it. Works not mentioned should not be part of the list.

13. 13. The list of references must follow the ABNT NBR 6023 standard,
as the following examples:

a) BOOKS
MOSER, Anita. A nova submissão: mulheres da zona rural no processo de
trabalho industrial. Porto Alegre: EDIPAZ, 1985. 123 p. (Coleção Debate e
Crítica).
LEMOS, Carlos A. O morar em São Paulo no tempo dos italianos. In: DE BONI,
Luis A. (Org.). A presença italiana no Brasil. Porto Alegre: Escola Superior de
Teologia, 1990. 740 p. p. 401-409.
CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,
1968. 119 p.
b) ARTICLES IN JOURNALS
NOGUEIRA, Ronidalva. Michel Foucault numa breve visita às prisões de
Pernambuco. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v. 6, n. 2, p. 269-282,
jul./dez. 1990.
O REI está nú (2): adianta porém constatar o óbvio? Isto é, São Paulo, n. 1189,
p. 15, 15 jul. 1992. Editorial.

c) TEXTS IN COLLECTIONS
NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. 250 p.

d) ACADEMIC THESES
RAMOS, Eloisa Helena Capovila da Luz. O Partido Republicano rio-grandense
e o poder local no litoral norte do Rio Grande do Sul – 1882/1895. 1990.
284 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

e) ENTRIES FROM A DICTIONARY


PISTONE, Sérgio. Bonapartismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Ed. da Universidade
de Brasília, 1986. 1318 p. p. 118-119.
PAGALLO, G. T. Democrito. In: DICCIONARIO de filósofos. Madrid: Rioduero,
1986. 1444 p. p. 321-324.

f) INFORMATION OR TEXT OBTAINED FROM THE INTERNET


INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA.
Conheça o IBICT. Disponível em: <http://www.ibict.br/ibict/frame.htm>.
Acesso em: 01 out. 1997.
Números publicados

1 Conflitualidades Sociedade e Educação:


29
2 Cidadania e Democracia dilemas contemporâneos

3 Sociedade Civil e Estado Social 30 Participação, Cultura Política e Cidades

4 Trabalho 31 Pesquisa Quantitativa na Sociologia

5 Metodologias Informacionais Desigualdade Política,


32
6 Ciência & Tecnologia Democracia e Governança Global

7 Saúde e Gerações Axel Honneth e a


33
Teoria do Reconhecimento
8 Violências, América Latina
34 Figurações da Violência
9 Teoria Sociológica
35 Ciências Sociais e a Questão Ambiental
Democracia, Sustentabilidade e Mundo
10 36 Sociologia da Dádiva
Rural na América Latina
11 Sociedade e Território Sociedade, Conhecimentos
37
e Sustentabilidade
Novas realidades do trabalho –
12 38 Sociologia Política
Brasil e Portugal
13 Sociedade e Direito 39 Sociologia e Moral

14 Sociologias na (en) América Latina, ALAS 40 Racismo e Antirracismo

15 Complexidade 41 Epistemologia das Ciências Sociais

16 Sociedade e Políticas Públicas A Sociedade Urbana Contemporânea


42
na América Latina
17 Desafios da Educação Superior
As Epistemologias do Sul num mundo fora
18 Riqueza e Desigualdades 43
do mapa: lutas, saberes e ideias de futuro
19 Conhecimentos, Redes e Sociedade
44 Durkheim Cem Anos
20 Violências, medo e prevenção
Trabalhadores, sindicatos
21 Gênero, família e globalização 45
e a transnacionalização da militância
22 Metodologia e Transdisciplinaridade
Transformações científicas e tecnológicas
23 Democracia, Poderes e Segurança 46
e implicações econômico-sociais
24 Políticas Públicas e Cidadania 47 Sociologia dos intelectuais
25 Trabalho, emprego e precarização social 48 Literatura e conhecimento sociológico
26 Estudos sociais em ciência e tecnologia Sociologia das migrações: entre a
27 Ciências Sociais e Desenvolvimento 49 compreensão do passado e os desafios do
28 Dinâmicas da ação coletiva presente
Números publicados

Agendas biomédicas: interfaces do


50
conhecimento em saúde no século XXI
51 Mudanças climáticas, ciência e sociedade
52 Corpos, emoções e risco
53 El protestantismo vivido
54 Internacionalização da educação superior
55 Sociologia e fronteiras
56 Quantificação, Estado e participação social
57 Trabalho em plataformas digitais
Tipologia Zapfhumnst BT, 10/14,5
Papel: Off set 75 g/m2 na
Impresso: Gráfica da UFRGS
Nesta edição Sociologias traz o Dossiê “Gênero e Raça:
trânsitos do Sul em perspectiva”, organizado por José Carlos
Gomes do Anjos e Miriam Steffen Vieira, com trabalhos
resultantes de cooperação acadêmica Sul-Sul, que articulam
tendências do feminismo do Sul Global às relações complexas
entre colonialismo e miscigenação e permitem refletir
criticamente sobre a modernidade a partir de enfoques
decoloniais, de raça e de gênero.
Na seção Artigos, Amurabi Oliveira e colaboradores Colaboram nesta edição:
apresentam um estudo quantitativo sobre os bolsistas CNPq
José Carlos Gomes dos Anjos (Org.)
e discutem o processo de acesso às bolsas de pesquisa e seus Miriam Steffen Vieira (Org.)
estratos. Diogo Cunha e Paulo Henrique Cassimiro discutem
o populismo, a partir dos escritos de Pierre Rosanvallon
Carmelita Afonseca Silva
contrastados com outras perspectivas teóricas. Sergio
Carla Indira Carvalho Semedo
Tavolaro examina as interpretações de Sergio Buarque de Diana Manrique García
Holanda e de Gilberto Freyre, dos processos de formação e Eufémia Vicente Rocha
Natalia Velloso Santos
modernização da sociedade brasileira. Rodrigo Ghiringhelli
Vladmir Ferreira
de Azevedo, Jacqueline Sinhoretto e Giane Silvestre discutem Amurabi Oliveira
a implementação de medidas descarcerizantes previstas na Marina Félix Melo
política criminal brasileira. Patrícia Tavares de Freitas investiga Mayres Pequeno
Quemuel Baruque Rodrigues
a inserção de migrantes bolivianos no trabalho de confecção Diogo Cunha
de roupas em duas metrópoles (Buenos Aires e São Paulo. Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro
José Alcides Figueiredo Santos examina as desigualdades Sergio Barreira de Faria Tavolaro
Rodrigo Ghiringhelli Azevedo
raciais manifestas na transmissão intergeracional de vantagens
Jacqueline Sinhoretto
e desvantagens de origem de classe social. Fechando a seção, Giane Silvestre
César Sabino discute o impacto das novas formas de trabalho Patrícia Tavares de Freitas
José Alcides Figueiredo Santos
mediadas por tecnologias digitais.
César Sabino
A seção Interfaces traz o trabalho de Mércia Alves, que analisa Mércia Alves
a organização de campanhas eleitorais nos municípios, a partir Gabriel Peters
de um estudo de caso da cidade de Guarulhos (SP). Lucas Voigt
Danielle Tega
Na seção Resenhas, Gabriel Peters, comenta a biografia
Simone de Beauvoir: uma vida, de Kate Kirkpatrick, publicada
no Brasil em 2020 pela editora Planeta do Brasil. Lucas
Voigt resenha o livro de Mónika Fodor, Ethnic subjectivity in
intergenerational memory narratives: politics of the untold,
publicado pela Routledge em 2020.
A seção Brazil Today traz o trabalho de Danielle Tega, “Political
memories and feminist resistance” sobre testemunhos de
mulheres que lutaram contra as ditaduras no Brasil e na
Argentina.

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