Sociologias - Revista CS
Sociologias - Revista CS
Sociologias - Revista CS
SOCIOLOGIAS59
DOSSIÊ
Gênero e Raça:
trânsitos do Sul
em perspectiva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
E-ISSN 1807-0337
SOCIOLOGIAS
www.seer.ufrgs.br/sociologias
revsoc@ufrgs.br
SOCIOLOGIAS
[SSN 1807-0337] Revista quadrimestral do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS,
destinada a promover intercâmbio entre cientistas sociais nacionais e internacionais.
Sociologias is a four-monthly journal published by the Graduate Program in Sociology - UFRGS,
aiming to promote interaction between Brazilian and foreign social scientists
Ano 24, n. 59, jan/abr. 2022, Porto Alegre, PPGS/UFRGS.
PPGS – IFCH/UFRGS
E-mail: revsoc@ufrgs.br
Publicação quadrimestral / Triannual publication
© 2022, PPGS/UFRGS
Impresso no Brasil sob responsabilidade do PPGS/UFRGS
SOCIOLOGIAS59
ISSN 1807-0337 versão eletrônica
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MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA,
EDUCAÇÃO INOVAÇÕES E COMUNICAÇÕES
SUMÁRIO
TABLE OF CONTENTS
9 EDITORIAL
EDITORIAL
DOSSIÊ
DOSSIER
ARTIGOS
ARTICLES
INTERFACES
INTERFACES
Gabriel Peters
Lucas Voigt
BRAZIL TODAY
BRAZIL TODAY
http://doi.org/10.1590/15174522-124786
A
parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e a Universidade de Cabo Verde
(Uni-CV), no âmbito das Ciências Sociais, resultou
num intercâmbio intenso de discentes e docentes e, com eles
e elas, ideias que assumiram a forma de pesquisas, círculos
intelectuais, teses, dissertações, bem como a importante Série
“Estudos Sociais Cabo-Verdianos”, uma coedição da Editora da
UFRGS com a então recém-criada casa editorial na Uni-CV,
justamente inspirada pelo modelo de editoras universitárias
brasileiras, como forma de publicizar as primeiras produções
do mestrado interinstitucional em Ciências Sociais iniciado em
2007 (Lucas; Silva, 2009). Após o primeiro volume, voltado
a pesquisas de feição etnográfica, seguiram-se edições que
trataram da dimensão política extrapartidária (Anjos; Baptista,
2010) e das sociabilidades em Cabo Verde (Rocha; Vieira, 2016).
Agora, o dossiê “Gênero e Raça: trânsitos do Sul em
perspectiva”, organizado por José Carlos Gomes do Anjos
e Miriam Steffen Vieira, composto por trabalhos resultantes
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
Os Editores.
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Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV; Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2016.
Gênero e Raça:
trânsitos do Sul
em perspectiva
Coordenado por
José Carlos Gomes do Anjos e
Miriam Steffen Vieira
16 José Carlos Gomes dos Anjos & Miriam Steffen
DOSSIÊ
Vieira
16
http://doi.org/10.1590/15174522-124273
Gênero e raça:
trânsitos do Sul em perspectiva
José Carlos Gomes dos Anjos*
Miriam Steffen Vieira**
Resumo
A cooperação acadêmica com países africanos foi incrementada por editais científicos
voltados à internacionalização das universidades brasileiras, especialmente a
partir de meados dos anos 2000. Esse processo promoveu a constituição de redes
internacionais de pesquisa e a colaboração entre pós-graduações brasileiras e
africanas, especialmente com países de língua oficial portuguesa. Este dossiê é fruto
desse processo, pautando estudos cabo-verdianos, em diálogo com pesquisas e
perspectivas latino-americanas. O dossiê reúne um conjunto de textos que cruzam
algumas das tendências dos feminismos do sul global às questões das relações entre
colonialismo e miscigenação. Esses diferentes estudos apontam para inusitadas
possibilidades de se pensar a modernidade a partir de potentes feminismos disruptivos
que emergem das experiências do Sul global amefricano.
Palavras-chave: colonialismo, cooperação acadêmica, feminismos, Sul global,
Cabo Verde.
O
que o feminismo do Sul tem a ver com a questão da miscigenação?
E como miscigenação racial e a mestiçagem institucional
característica da globalização neoliberal podem ser pensadas
juntas para além de uma relação metafórica? Esse par de questões aparece
iluminado sob diferentes ângulos nos artigos que se seguem. Cabo Verde
talvez seja um ponto particularmente privilegiado para esse tipo de
indagação. Nação imaginada sob a insígnia da mestiçagem, é também
o lugar de inversão das mais diversas fórmulas institucionais associadas à
promessa de desenvolvimento e autonomia.
No afã de parecer um ordenamento disciplinado para a recepção
das melhores fórmulas institucionais do mundo globalizado visando
ao desenvolvimento, Cabo Verde não poderia deixar de ser um palco
para os ensaios do feminismo branco como “missão civilizatória”. Como
sentencia Vergès, na era de assembleias internacionais, apoio de Estados
ocidentais e pós-coloniais, mídias femininas, revistas de economia,
instituições governamentais e internacionais, fundações e organizações não
governamentais, a agenda neoliberal se reconcilia com o feminismo e faz
Referências
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e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
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Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
http://doi.org/10.1590/15174522-121421
Resumo
Neste artigo, procuro refletir sobre o contexto de emergência da lei que torna público
o crime da Violência Baseada no Gênero (VBG) em Cabo Verde, ou Lei de VBG, como
é vulgarmente conhecida, e sobre o enquadramento dos casos de violência conjugal
nas estruturas da Rede Interinstitucional de Atendimento às Vítimas de Violência
Baseada no Género (Rede Sol). Para tanto, recupero, num primeiro momento, os
temas/questões que permearam os diferentes momentos de discussão (na Comissão
de seguimento do projeto-lei e no parlamento: violência contra as mulheres versus
violência baseada no gênero, (in)constitucionalidade, desestabilização da família
e interferência de agendas globais sobre decisões locais. Num segundo momento,
busco entender como se construíram os consensos e se aprovou o referido projeto-
lei. Por fim, apresento reflexões sobre esse processo de construção de legalidades
de equidade de gênero considerando dimensões globais e locais.
Palavras-chave: maus-tratos, violência baseada no gênero, família, Rede Sol.
Introdução
D
esde a década de 1970, por influência de diferentes movimentos
feministas, a violência doméstica, em especial, a exercida por
homens contra as mulheres, deixou de estar restrita ao domínio
da privacidade familiar, para constituir-se, inicialmente, em (i) uma das
principais lutas feministas e/ou de organizações não governamentais (Ongs)
que atuam no campo da promoção da igualdade de gênero; (ii) temas de
pesquisas nos mais diversos campos de produção de conhecimento; e (iii)
objeto de produção de legalidades e de políticas públicas em inúmeros
países do mundo.
No contexto de Cabo Verde, à semelhança de Brasil, Moçambique e
Espanha – países tomados como referência na concepção da Lei Especial
Contra Violência Baseada no Gênero – os processos de construção social
das violências foram marcados por “pressões” de organismos internacionais
e de Ongs que atuam no campo da promoção de igualdade de gênero. Em
na primeira [situação], a mulher, na faixa etária dos 25/26 anos, que tinha sido
agredida pelo marido com uma garrafa que lhe deixou hematomas na cabeça,
apresentou a queixa. No dia do julgamento, quando chegaram, sentaram-se
juntos e eu perguntei à senhora: “vocês já se reconciliaram?” e ela me disse
que sim; e o procurador lhe perguntou: “você quer desistir da queixa?” e
ela disse “não, não quero desistir da queixa, eu quero que o tribunal decide
e se ele for condenado a alguma coisa, posso até ajudar, mas eu quero que
ele aprenda a lição para que isso não volte a repetir. Nós já estamos bem em
casa, ele até, regra geral, é um bom marido, assume responsabilidade pelo
nosso filho, mas eu não quero desistir da queixa.
6
Informações concedidas em entrevista realizada em janeiro de 2016.
Na segunda (...) situação, oposta a essa, era de uma senhora que era agredida
pelo marido com quem tinha dois filhos. Um deles já um adolescente que
até intervinha e ameaçava-o por conta da agressão que exercia sobre a mãe.
Ela então, ao sair da casa deles para ficar em casa de uma irmã, não levou
os filhos porque não havia espaços, mas deixava que o marido saísse de casa
para trabalhar e voltava para a casa, limpava, cozinhava e voltava a sair para
não entrar em contato com ele; isto depois de várias agressões/atitudes muito
violentas. Queixava-se, e quando o processo ia ao Ministério Público (MP),
havia desistências. Desistiu na primeira, segunda, com o mesmo procurador
e na terceira vez, o procurador, lhe disse, “minha senhora, desse jeito você
corre o risco de eu estar a fazer o seu levantamento de cadáver ...”. A senhora
se sentiu até ofendida pelo que disse o procurador. Mais tarde, quando eu
entrei em contato com esta situação, foi num episódio em que o companheiro
chega mais cedo à casa e encontra a mulher... e já estava bêbado e agride-a
de tal forma que parte-lhe uma costela, perfurando-lhe um pulmão, e ela
foi evacuada para a cidade da Praia e o procurador disse... “neste caso, nem
vou apresentar como crime de maus-tratos, vou enquadrar como crime mais
grave – ofensas agravadas porque, assim, ela não vai poder desistir da queixa
no MP”. (Carlos Reis, entrevista concedida em janeiro de 2016).
gênero. Trata-se, portanto, de uma questão que faz parte da agenda interna,
ao mesmo tempo em que conjuga demandas internacionais e regionais.
Com efeito, embora desde 2004,7 quando acompanhava o processo
de elaboração do primeiro Código Penal cabo-verdiano (CPC), e em 2005,
na sequência da publicação dos resultados do II Inquérito Demográfico e de
Saúde Reprodutiva (IDSRII), o ICIEG já tivesse manifestado sua preocupação
face à necessidade de tornar público o crime de VBG, o processo de
concepção do Projeto-lei somente viria a ser formalizado entre 2009 e
2010. Importa, contudo, salientar que a introdução do módulo “violência
doméstica” no IDSRII, que reforçou a necessidade da criação da referida
lei, resultou de uma exigência da Organização das Nações Unidas (ONU).
Conforme o referido organismo internacional, a introdução da categoria
“violência doméstica” como indicador adicional no processo de seguimento
do Objetivo do Desenvolvimento do Milénio (ODM3) e a constar no relatório
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDAW) devia, necessariamente, passar pela assunção
do compromisso de Cabo Verde em dar a conhecer as estatísticas nacionais
sobre o fenômeno.8 Além de chamar a atenção para a necessidade de pensar
uma proposta de lei que autonomizasse e ampliasse o âmbito do crime da
violência doméstica contra as mulheres,9 dados recolhidos e sistematizados
a partir do IDSRII estimularam a elaboração do I Plano Nacional contra a
Violência Baseada no Gênero (PNVBG).10
7
Importa referir que a proposta de uma lei que torna público o crime de violência doméstica,
em especial a exercida contra as mulheres, foi uma iniciativa da Associação de Mulheres
Juristas (AMJ), na sequência de recomendações saídas do estudo Proteção às vítimas de
crimes violentos (em particular as mulheres): Relatório provisório de 2002, produzido pela
mesma associação (AMJ) sob coordenação do jurista, Jorge Carlos Fonseca. A não implicação
dos outros parceiros, nacionais, regionais e internacionais, fez com que a proposta não
chegasse, conforme referem os juristas, Carlos Reis e Dionara Anjos, a ser apreciada pelo
governo (entrevistas realizadas em janeiro e fevereiro do ano 2016, respetivamente).
8
Os dados apontavam para a maior representatividade da violência física (16%), seguida da
psicológica (14%) e da sexual (4%); constatou-se que a maioria das vítimas se concentrava
no meio urbano (24%), que uma em cada cinco mulheres era vítima da violência por parte
de companheiro ou ex-companheiro; 19% das mulheres admitiram ser vítima de mais de
um tipo de violência.
9
Para mais informações a esse respeito ver Relatório de Avaliação do estágio de implementação
da lei nº 84/VII/11 de 2017.
10
Plano que operacionaliza um dos eixos estratégicos do Plano Nacional de Promoção da
Igualdade de Gênero (PNIEG – 2005/2009).
nós tivemos que fazer um trabalho entre nós para justificarmos perante o núcleo
e as nossas colegas consultoras que era importante que nós analisássemos
essa perspectiva [gênero como relação]. Por quê? Porque isto não estava
nos termos de referência. A ideia não era criar uma lei de violência do
gênero, [a ideia] foi construída pela equipa… não havia… portanto... não
era esta a ideia inicial. Tanto que, se for aos rascunhos… vai ver que não há
esta abordagem, esta abordagem foi criada posteriormente. E acho que na
segunda ou terceira versão, já confluímos… já aparece essa construção de
gênero, já aparece essa construção despida da ideia de que a mulher é a
vítima exclusiva e nós aprendemos muito nesse processo e acho que foi um
golpe de sorte nós termos estado naquele lugar, naquela hora… (Clovis Silva,
entrevista concedida em março de 2017).
apesar de ter sido difícil dizer: “nós não vamos fazer uma lei para as mulheres,
mas uma lei em prol da igualdade de gênero” (...) lembro da coordenadora
da Rede Sol a chegar a uma determinada altura em que a discussão estava
acalorada, ela disse: “Bom, minha gente, eu quero é garantir que: 1, temos
a lei e 2, que a lei puna os agressores. Se, na prática, os agressores são
tendencialmente homens e as vítimas tendencialmente mulheres, é um bocado
indiferente a lei dizer se especificamente ou não, vai favorecer as mulheres”.
Portanto, é como eu digo, teríamos discussões muito complicadas relativamente
à constitucionalidade da lei. Se haverá que proteger as mulheres e teríamos
(...) ele chegou a ficar desempregado por um ano e, nesse período, eu é que
cuidava da casa e me responsabilizava pelas despesas da família. Precisavas
ver o comportamento dele, todo mansinho! Há cerca de um mês que voltou
a trabalhar como chefe da guarda municipal, transformou-se completamente,
é outra pessoa.... nunca esperava que ele fosse capaz de me agredir… ontem
agrediu-me de todas as maneiras: com a cadeira, pedaços de vidro dos objetos
que partia enquanto brigávamos, bofetadas, socos na cabeça, mordeu-me no
pescoço, como se não bastasse, pegou num cinto e tentou me estrangular...
(Sónia, professora, 30-35 anos, notas de campo, novembro de 2014).
18
Informações concedidas em entrevista, realizada em novembro de 2016.
será que todos nós nos demos conta de que transformando este crime em
crime público não há sequer a possibilidade de desistência? e que qualquer
pessoa, uma escaramuça, ou ouvindo determinadas tomadas de posições ou
discussões ou violências... se temos violências entre casais, qualquer pessoa
pode fazer essa queixa, o Ministério Público deve oficiosamente agir e que
não há possibilidades de desistência de queixa, que muitos casais homens e
mulheres correm o risco de verem sua família mais em perigo que atualmente.
Quer dizer há questões básicas que devem ser discutidas. Devia ver com o
máximo de serenidade esta questão, reformular o diploma, trazê-lo no mês
de outubro e certamente teríamos votos unânimes desta casa parlamentar.
Se não, se insistimos em fazê-lo agora, corremos o risco de não ter consenso
na aprovação na generalidade (...) [o que] não me parece uma boa prática
parlamentar (Deputado Rui Figueiredo, audiência pública de discussão do
projeto-lei contra Violência Baseada no Gênero).
Será isso [a violência] saudável, para a família, para a criança que vive neste
ambiente de escaramuça, sem que ninguém da sociedade possa ter possibilidade
de intervir para eliminar essa anomalia social? Porque aí, esta tomada de posição
estaria a dizer: sim senhor, é normal haver alguma violência entre a família
(...) não ir para a questão de transformamos em crimes públicos teríamos essa
outra face da moeda também. (Deputado Rui Semedo, audiência pública de
discussão do projeto-lei contra Violência Baseada no Gênero).
20
No âmbito internacional, destacam-se: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra a Mulher de 1979 – CEDAW, o Protocolo Opcional à Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; e, em nível
regional: Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Protocolo à Carta Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos, relativo aos Direitos da Mulher em África.
Vivemos juntos há cerca de 18 anos e até bem pouco tempo a nossa relação
caminhava bem, mas depois, por causa de ciúmes, os conflitos começaram
a surgir e se tornaram frequentes. Tudo começou no dia 24 de dezembro,
em que trabalhei no táxi toda a noite; em seguida fui ajudar o meu irmão a
resolver uns assuntos, chegando em casa por volta das 5 da manhã... uma
amiga disse à minha mulher que tinha uma “rapariga” e que havia passado
a noite com essa menina... enquanto eu dormia, ela [a minha companheira]
me deu um soco no pescoço. Levantei e perguntei o que estava a passar ...
ela foi apanhar uma faca e tentou me agredir e aí, tive que me defender. Dei
um soco no braço dela (...) a partir daquele dia ganhou confiança para me
bater. Passou a me tratar como uma criança (...) fazia várias ameaças que me
dava com faca, água quente, que me tocava fogo com gasolina enquanto
dormia... (Roger, taxista, 35-40 anos).
Lembro de um dia ter ido buscar a minha filha, e ela recusou determinadamente
que não deixaria... depois de muita insistência, sem resultado, decidi pegar
a criança à força. Aí, ela [ex-companheira] apanhou um copo, quebrou e em
seguida me acertou na costa... Quando vi que estava a sair muito sangue, acabei
por descontrolar um pouco, parti também para a agressão... Não fui para o
hospital e nem quis denunciá-la na polícia. Não queria parecer de ridículo!
Sou homem! Mas tive que vir, porque ela se queixou de mim e pior do que
isso, a queixa foi encaminhada para o tribunal e ela consegui convencer todo
o mundo que ela simplesmente reagiu às minhas agressões e evitado que a
matasse, em sua própria casa. Alguns vizinhos que chegaram praticamente
no final daquela cena, testemunharam contra mim, acrescentando que estava
bêbado... Fui condenado a um ano e quatro meses de pena suspensa convertida
em multa (Pepe, condutor GRP, 25-30 anos).
26
Um dos interlocutores, que declara experienciar situações de violência conjugal e aceita
partilhar sua experiência no Gabinete de Apoio à Vítima de VBG, recusando, entretanto,
proceder ao registro da queixa, alegando o fato de “ser homem”.
27
Um dos interlocutores cuja experiência de violência me foi partilhada na Casa do Direito
de Terra Branca.
para facilitar sua vida, os magistrados não estão enquadrando o crime como VBG
e estão colocando tudo como ofensa, porque aí diminui o trabalho. É a forma
mais fácil, que dá menos trabalho. É uma lástima, mas é isso que estou vendo
na Praia. Há algum tempo estava se fazendo uma coisa horrorosa, o julgamento
coletivo de casos de VBG. Uma situação muito constrangedora para as vítimas...
(Jurista Dionara Anjos, em entrevista concedida em fevereiro de 2016).
Considerações finais
No contexto de Cabo Verde, a busca crescente pelo direito como forma
de organização social tem sido uma demanda interna impulsionada pelas
Ongs feministas – em estreita parceria com as instituições do Estado, em
particular com o Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de
Gênero – e reflete o comprometimento do país em assumir os protocolos
internacionais e regionais. A análise dos processos institucionais e das
narrativas de operadores do direito permitiu-me compreender que a luta
pelo reconhecimento de direitos dos sujeitos no campo das violências de
gênero é uma questão tanto local quanto global. Essa espécie de gestão
tripartida no combate às desigualdades de gênero e na definição de medidas
políticas, em especial no campo das violências, evidencia não apenas o
protagonismo do Estado em detrimento dos sujeitos de direitos, como
revela, também, a imposição de um modelo global que limita a agência
dos atores e atrizes sociais envolvidas nos processos em questão.
Para abordar essa questão do lugar subordinado que mulheres e
homens da sociedade cabo-verdiana ocuparam na produção do direito
em torno das violências no país, tomei como referência a promulgação,
na década de 2010, da lei que torna público o crime das violências com
base no gênero. A análise dessa lei permitiu-me perceber que, tomar como
referência as recomendações da ONU e as leis de Brasil, Moçambique e
Espanha, por serem países onde persistia a cultura patriarcal, não permitiu o
reconhecimento de mulheres e homens como sujeitas(os) de direitos. Duas
questões foram importantes para considerar que o projeto-lei privilegiou o
debate em torno dos direitos dos sujeitos e não dos sujeitos de direitos: a
representação dos homens e das mulheres em situação de violências pelas
Ongs feministas do país e a universalização de direitos.
Em relação à primeira, observo que não basta o instrumento jurídico
resultar das demandas dos movimentos sociais ou das Ongs, e de tais
demandas serem construídas a partir dos problemas enfrentados pelos
atores sociais, para que traduzam os interesses particulares dos sujeitos.
Percebendo que essas Ongs tendem a representar esses atores tomando
Referências
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Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
29. VIEIRA, Miriam S. Processos de significação em contraste: violência contra as
mulheres no Brasil e em Cabo Verde. Ciências Sociais Unisinos, v. 49, n. 1, p. 90-
96, 2013. https://doi.org/10.4013/csu.2013.49.1.11
http://doi.org/10.1590/15174522-120602
Resumo
Batuko, gênero músico-coreográfico de Cabo Verde – país localizado na costa
ocidental africana, criado pelos africanos negros escravizados, após a independência
do país em 1975 – passou por um processo de revalorização e vem sendo visto pelas
batukadeiras como possibilidade de se tornar um projeto profissional. Neste artigo,
viso reconstruir as múltiplas dinâmicas sociopolíticas do batuko entrecruzadas com
dois momentos socio-históricos e políticos da historiografia oficial de Cabo Verde,
tendo como material as narrativas e trechos de vivências das batukadeiras do coletivo
de São Martinho Grande, resultantes de pesquisa etnográfica realizada em 2008.
O primeiro momento se centra no período pós-colonial, após a independência
de Cabo Verde em 1975. E, o segundo, no período pós-abertura política com a
democratização do sistema político-partidário a partir de 1991 e, com isso, a criação
de bases para a revalorização e circulação das artes musicais tidas como tradicionais.
Sinalizo que as narrativas das minhas interlocutoras permitem perceber não só o
efeito das narrativas hegemônicas de conformação da identidade da nação nas suas
vivências do batuko, mas também os efeitos nos modos como se inscrevem como
mulheres batukadeiras e almejam o projeto profissional: vir a ser artistas profissionais.
Palavras-chave: batuko, Cabo Verde, batukadeiras de São Martinho Grande,
empresarialização do batuko.
*
Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, Praia, Cabo Verde.
Introdução
O
batuko1 foi criado em Cabo Verde2 pelos negros em condição
de escravos durante o processo de colonização e se enraizou na
Ilha de Santiago. Segundo estudos históricos, em Cabo Verde, a
escravidão esteve vigente até meados do século XIX e, conforme as literaturas
histórica e folclorista, a convivência da prática do batuko protagonizado
pelos negros escravizados com os brancos europeus e, particularmente,
com a Igreja enquanto instituição reguladora das práticas dos sujeitos, não
1
Para mais aprofundamentos sobre Batuko, cf. Semedo (2009, 2013, 2020).
2
Cabo Verde, país africano, composto por dez ilhas, sendo nove habitadas, encontra-se
localizado a cerca de 500 km da Costa Ocidental Africana. Descoberto em 1460 pelos
portugueses, o país conquista a independência em 1975. Atualmente, conta com 498.063
habitantes e, com mais homens (250.262) do que mulheres (247.801 mulheres) (INE, 2021).
Foi somente após esse firmamento de laços com a associação local, que o
coletivo se constituiu enquanto um grupo coeso e articulado. Depois desse
evento, participaram noutros, num dos quais viriam a conhecer Octávio,
que veio a constituir-se empresário e coordenador do coletivo, buscando
convites e negociando as formas e modos de pagamento financeiro. Tanto
Marcos como Otávio residiam nos arredores da Cidade da Praia, tinham
escolaridade superior (Marcos, bacharelado, e Otávio, licenciatura),
além de situações socioeconômicas e posição social acima da média das
batukadeiras. Essas tinham nível escolar muito baixo, sendo que algumas
não eram alfabetizadas, o que as condicionava a atividades econômicas
remuneradas de peixeiras, venda ambulante de frango, domésticas,
faxineiras e vendas informais ambulantes, além de serem, na maioria, as
únicas responsáveis pela manutenção e sobrevivência do agregado familiar,
o qual variava de 3 a 5 filhos por mulher. Assim sendo, essa disparidade
entre as condições socioeconômicas e de escolaridade perpassava as
narrativas das batukadeiras, Marcos e Otávio e as situações de tensão
eminentes resultantes dos acordos estabelecidos tacitamente em relação
aos papéis de cada um.
Nu bai Somada um 18, mas kantu nu tchiga Otávio fla ké pa subi na palco
só 13 e, só 13 ki dadu dinhero e kés ki ka dadu nada, fica chateadu. Dipos
el bem flanu ma ki é scodji kés ké odjaba na kel spetacul na Várzea. Nakel
dia ki nu fazi runion, tcheu de nós papia de kel cusa li, de ma nu sta ta fazi
batuko a toa, sem dadu nada! Ami um ka ta concorda, pamodi nu sta ta
prendi, inda falta tcheu pa nu fica bom e dipos anos nu mesti djudadu pa
nu conhedu. Si crê nu ka ta dadu dinhero, é um manera de otus guentis ba
ta conchenu9. (Ana).
9
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Fomos 18 para Assomada, mas Otávio disse que
só 13 iam subir no palco e depois só essas 13 que receberam remuneração e as outras
ficaram com raiva por não terem subido, nem recebido nada. Ele depois veio a explicar
que escolheu as que tinha visto no espetáculo na Várzea. Naquele dia que fizemos
reunião, muitas colocaram esta questão de não estar recebendo nada e que por isso não
iam continuar mais. Eu não concordo, pois estamos aprendendo ainda nos falta muito
para ficarmos bons e depois nós precisamos de apoio para aparecer e as pessoas irem nos
conhecendo. Por isso mesmo não tendo dinheiro temos de fazer, é uma forma de outras
pessoas nos irem conhecendo”.
Do lúdico ao showbiz…
Volvidas décadas, após a abertura político-partidária em 1991, o
lugar da música e das artes dentro no discurso político-governamental
ganhou outras dinâmicas. Com a assunção do partido Movimento Para a
Democracia (MPD) ao poder, a cultura adquiriu outras ressignificações, já
não enquanto objeto geopolítico de construção da identidade nacional,
mas na edificação da identidade nacional direcionada ao âmbito exterior
e internacional. Ou seja, ainda que a cultura continuasse sendo objeto
geopolítico, o foco, o público-alvo e as estratégias subjacentes tornaram-se
doutra natureza. Uma das estratégias visava a abertura de Cabo Verde para
o mundo, para o exterior, diferentemente do período pós-independência,
cuja estratégia central era a construção e a consolidação da nação e do
Estado (Costa, 2001).
Para a abertura ao exterior, definiu-se um conjunto de estratégias,
nas quais havia uma aproximação com a Europa em simultâneo com um
afastamento da África. Assim, novos horizontes foram se abrindo. Se, durante
o período pós-independência, Cabo Verde e Guiné-Bissau mantiveram
a mesma bandeira e hino nacional, após a abertura política, em 1991,
foram introduzidas mudanças estruturais no país, as quais mudaram a
história e as narrativas mnemônicas da população cabo-verdiana. Foram
introduzidas, igualmente, reformas no sistema educacional e manuais
escolares com pouquíssima alusão ao legado africano e à luta contra o
colonialismo. Tais mudanças criaram e vieram a sedimentar as condições
para o apagamento paulatino da história colonial e escravocrata de Cabo
Verde e de todo legado africano no imaginário sociocultural cabo-verdiano,
e para um retorno à Europa como a herança mais próxima da história de
Cabo Verde (Costa, 2001).
Na bandeira e no hino nacional adotados no período pós-independência
havia uma estratégia política de enfatizar as cores (vermelho, verde, amarelo
e preto) e temáticas da “África Mãe”, do legado africano, da história vivida
de repressão e da luta por libertação. Diferentemente, na bandeira e no hino
Estavam sentadas em roda, prontas para fazer tchabeta. Como, antes da Lara
chegar, eu estava no círculo vendo as batukadeiras fazendo batuko, Lara olhou
pra mim e, enquanto ia tirando os sapatos, disse-me se as batukadeiras não
me tinham ensinado que para fazer tchabeta tem que ser descalça. Cruzou
e esticou as pernas, colocando tchabeta entre as coxas. Outras imitaram-na
e tiraram os sapatos. Lara justificou dizendo que tem que ser ‘terra-terra’,
como manda a tradição santiaguense. Instantes depois, Claudia, Lúcia, Isabel
e Dina chegaram juntas com outras moças que não eram do coletivo, as quais
ficaram assistindo junto comigo. Lara pediu a uma adolescente que fosse
buscar um licor para elas beberem. Esta trouxe uma garrafa de cinco litros com
licor pela metade e copinhos descartáveis. Dina foi colocando nos copinhos
e distribuindo pra todo mundo, mas teve uma hora, Solange reclamou que
não tinha recebido ainda, Dina pediu desculpas e lhe passou um copinho.
Solange fez um jeito de quem não iria aceitar, mas no fim sempre aceitou.
[Já tinha reparado que em outros momentos, a bebida alcoólica era um fator
presente nas batukadeiras, no mundo artístico cabo-verdiano em geral. E, nesse
caso, nas mulheres é um elemento importante para elas se concentrarem,
ganharem o impulso para fazer batuko, lembrei que Claudia me dissera que
pra fazer batuko tem que se ter brio]. Minutos depois, Fátima chegou gritando
com os braços levantados e dando ku torno, desencadeando nas que estavam
fazendo tchabeta, um frenesi e gritando junto com ela. Todas faziam tchabeta
com uma intensidade máxima e o som do bater das mãos ficou alto, muito
bom de se ouvir. Enquanto iam fazendo tchabeta, iam bebericando o licor.
16
Originalmente no crioulo cabo-verdiano: “Oras ki u’fazi batuko, u’ta fika sabi, filiz”.
O círculo de terreru começava com Ana, Solange, Lara, Isabel, Nair, Claudia,
Lúcia, Nany e Fátima. Quando Fátima chegara, depois de ter parado de dar
ku torno, ela ficou de pé, entre Isabel e Lara, com o casaco amarrado na
cintura, cantando e batendo as palmas das mãos, já que ela não tinha tchabeta
(dera à Lúcia). Lara começou a cantar uma cantiga delas e fizeram tchabeta,
mas não deram ku torno. Em seguida, Lara cantou uma cantiga que cantam
no coletivo dela em Portugal. Nisto, Solange entra no círculo, e amarrando
sulada na cintura começa a dar ku torno, foi uma intensidade de sons, ela
requebrava as ancas, com fortes flexões dos joelhos e mantinha as mãos pra
cima, a cadera requebrava intensamente. Depois que pararam batuko, ela
parou e sentou alegando que tinha cansado. O pano que ela usou era da
Nany. Seguidamente, Lara levantou e pegou sulada na Solange, amarrou
na cintura e entrando no círculo, começa dar ku torno ao som da voz da
Claudia e ao som da tchabeta. Intensificaram batuko, ku torno, com gritos.
Lara vibrou intensamente a cadera, as ancas, os quadris... Passou o pano à
Isabel que passou à Claudia que levantou e deu ku torno. Cada uma tem um
jeito particular de dar ku torno, ora com as mãos levantadas, ora em cima da
cabeça, cada uma com um jeito diferente de requebrar a cadera, de dar ku
torno. Antes da Claudia entrar na roda, uma adolescente pegou no pano e
amarrando na cintura deu ku torno. Ela não era do coletivo, veio junto com
Lara. Ela tinha um jeito diferente de dar ku torno. (...) Já no fim do ensaio,
Lara ficou falando para as outras batukadeiras como no coletivo em Portugal
no qual ela era integrante, também tinham o problema de não ensaiarem
antecipadamente. Que iam ensaiando no caminho para os shows e iam
aprendendo. Ela termina dizendo que ainda bem que elas tinham boa cabeça
e aprendiam rápido, pois no dia a dia todo mundo estava nos seus afazeres.
17
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “O dia a dia é só trabalho e casa. Quando fazemos
batuko, ficamos reunidas no convívio e é um desabafo! É divertido! Cada qual a partir das
letras vai falando do seu dia a dia e desabafando!”.
18
“Ó rapaz, já tive três filhos contigo / Não me ajudaste no sustento das crianças, não as
registraste e agora estás voltando de novo com ideia de fazer 4. / Ó rapaz, saí do meu
caminho, porque agora quero fazer minha vida”.
19
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Não me lembro bem como fui aprendendo. Minha
mãe fazia e eu fazia com ela. Também quando brincava com outras crianças, fazíamos
batuko e nós íamos aprendendo uma com a outra. Mas ninguém te ensina mesmo. Tu vais
aprendendo, vendo as pessoas fazerem. As minhas duas filhas sabem fazer, mas eu nem lhes
ensinei, elas vão vendo as outras batukadeiras fazerem”.
famílias nas quais o batuko era tido como uma prática constitutiva das
corporeidades feminina e masculina. Por conseguinte, batuko, enquanto
um espaço lúdico e de estar juntas, constrói esse momento de partilha
como um espaço de mulheres, no qual elas se constroem como sujeitos
femininos, permitindo tensionar o lugar das mulheres cabo-verdianas, como
nos é ilustrado na seguinte narrativa musical em crioulo cabo-verdiano.
20
Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Eu, casada 15 anos com meu marido / Meu marido
está pensando me abandonar, / porque uma mulher está sustentando ele. / Hoje foste
embora, me deixaste morta, já me abandonaste. / Ó Meu marido, amor da minha vida, Ó
Meu marido, segurança da minha casa. / Ó Meu marido, nossa cumplicidade. / Hoje foste
embora, me deixaste morta, já me abandonaste”.
21
Para mais desdobramentos sobre as gramáticas eróticas do batuko, vide Semedo (2020).
Carla Indira Semedo é Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
diracarvalho@gmail.com
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1. ANJOS, José Carlos dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de
definição da identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
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Brasília, 2004.
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Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2007. p. 23-61.
10. FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: uma interpretação da saga
identitária cabo-verdiana no panorama político (pós) colonial. Florianópolis:
EDUFSC, 2002.
11. FURTADO, Carmem. Conquistando o espaço público: a música enquanto
vector da identidade nacional em Cabo Verde. In: ASSEMBLEIA GERAL
“GOVERNAR O ESPAÇO PÚBLICO AFRICANO”, 12, 2008, Dakar. Anais [...].
Dakar: CODESRIA, 2008.
12. FURTADO, Claúdio. Génese e reprodução da classe dirigente em Cabo Verde.
Praia: ILCD, 1987.
13. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa.
2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
14. GONÇALVES, Carlos. Kab Verd Band. Praia: Instituto Arquivo Histórico
Nacional, 2006.
15. INE – INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. V Recenseamento geral da
população e habitação (RGPH – 2021) - Resultados preliminares. Praia, 6 de
agosto, 2021. Praia, CV: INE. 2021.
http://doi.org/10.1590/15174522-120662
Resumen
El presente texto aborda algunas prácticas de cuidado y cura de la comunidad
Itonama en la Amazonia Boliviana, donde las mujeres ocupan un lugar protagónico.
Prácticas atravesadas por una ética colectiva de cuidado – que emergen como un
lugar político de disputa, decisión e incidencia –, a la vez que reivindican una
episteme ancestral, tensionan la ontología moderna, favoreciendo desde su lugar
de curanderas y parteras la reinvención de las subjetividades femeninas y a la
reivindicación del vínculo en las relaciones comunales. El trabajo se basa en datos
empíricos derivados del trabajo de campo en el marco de la investigación y tesis
doctoral de la autora.
Palabras claves: Amazonía boliviana, curanderas, parteras, cuidado, tensiones.
Rastros de partida
E
l presente ejercicio es parte de las reflexiones derivadas de la tesis
doctoral titulada Miradas profundas: rutas de cura en las comunidades
próximas a la ribera alta del rio Iténez (Guaporé), Amazonía Boliviana,
del programa de posgraduación en Desarrollo Rural de la Universidad
Federal Río Grande del Sur de Porto Alegre. En este, se considera que, en
los procesos de cuidado y cura de las comunidades Itonama, permanecen
y habitan memorias ancestrales agenciadas, principalmente, por mujeres
indígenas. Esas mujeres, desde su lugar de curanderas, sanadoras y parteras,
se encuentran atravesadas por múltiples interseccionalidades pero hacen
de sus prácticas un lugar donde se resiste y re-existe, cuestiona y crea,
posicionando el cuidado y la cura como un ejercicio político colectivo que
supera lo corporal e individual.
La entrada a la Amazonía boliviana está condicionada por sus trazos
hidrográficos, convirtiendo así el río – en este caso el Iténez o Guaporé – y
su formación rizomática en el principal curso metodológico que adquiere
y avala esta experiencia. Un territorio rico en diversidades, con decenas
de grupos indígenas coexistiendo que van más allá de los impositivos datos
derivados del Estado-nación. El grupo Itonama es uno de estos grupos que,
junto a otros, han experimentado el violento proceso colonizador en una
de las historias más longevas que se conocen de mano de expedicionarios,
jesuitas y franciscanos. Grupos humanos olvidados, que sólo a partir del
año 1990 comienzan a ser reconocidos y visibilizados dentro de la esfera
pública institucional de Bolivia.
La comunidad Itonama, con unos seis mil habitantes, al igual que
otras 33 comunidades indígenas del oriente boliviano, hacen parte de la
Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia, nacida institucionalmente
en 1982 y cuya misión se orienta a la defensa de los derechos de los
pueblos indígenas de las Tierras Bajas de Bolivia.1 Lugar a donde arribé
1
Por tierras bajas Muñoz (2016) refiere al territorio comprendido entre el centro y la parte
noreste del estado plurinacional de Bolivia, que se divide en tres regiones: La Amazonía, al
norte, La Chiquitania, al centro, y el Chaco, al sur.
por mis cercanías y afectos con algunos integrantes del modelo Salud
Familiar Comunitaria Intercultural (SAFCI)2 y tras 14 años como migrante,
activista e investigadora de rutas de cuidado y cura en las profundidades
de América Latina. Metodológicamente este ejercicio toma elementos de
la etnografía performativa3 y cartografía social.4 Es decir, una ruta vivida y
experimentada donde se entremezclan relatos, emociones, sentires, lecturas,
dilemas que hicieron parte del proceso de investigación que, a su vez. se
transforma en un compromiso humano, político, ético, en relación con
saberes invisibilizados, esencializados, mitificados, deshumanizados y con
los seres que los encarnan. Considero que este ejercicio no es exclusivo
del mundo académico, porque es construido con los y las comunarias5
indígenas de la ribera alta del Río Iténez, y vuelve hacia las comunidades
de distintas formas – imágenes, afectos, historias – que pretenden retornar
lo que en mi contacto con estos mundos puede traducirse.
Al igual que gran parte de estas comunidades, para los Itonama, los
espíritus de sus muertos poseen poderes sobrenaturales. Hoy en día, siguen
siendo animistas con relación a las plantas, animales y el agua, hecho por
el cuál pocos de ellos se vinculan con el trabajo de las haciendas vecinas,
en cuanto para el hacendero y los trabajadores muchos de los seres que
habitan el territorio son adversarios. Prácticas de cuidado y cura que nos
ilustran la existencia de lógicas de relación con la vida, tierra y sus seres
que, a la vez que resisten, brotan “como respuesta a las formas modernas
liberales, estatales y capitalistas de organización social” (Escobar, 2014, p. 50).
Las prácticas de cura no biomédicas hacen parte de una variada
experimentación, que se diversifica como raíces que toman formas
imprevisibles ligadas a la capacidad creativa y potencia del sujeto-cura,
al lugar-tiempo y sus demandas, y al sujeto que procura la cura. En ese
escenario múltiple se asiste a constantes modificaciones que se preservan
unidas en sus diferencias, proximidad que responde a sistemas ontológicos
relacionales que les subyacen y que actúan como potencia común y les da
sentido. De las prácticas o sistemas que se generan y a las que me refiero
son aquellas encontradas a través del ejercicio etnográfico que, en forma
de diálogo, sonido, olor, performance, comida, reunión, ritual etc., se han
manifestado a mis sentidos.
Expreso esto, en cuanto las percepciones occidentales se mantienen
dominadas por las sensibilidades exotizantes del colonialismo, el imperialismo
y el capitalismo neoliberal (Geidel, 2010). Así el llamado a sentipensar en
el trabajo de campo emerge con la activación de sentidos que superan el
tacto, el gusto, el olfato, la vista y el oído, y que nos habla de reintegrar
las percepciones. Hacer conciencia de que la mente – heredera de una
jerarquía analítica patriarcal – ha ocasionado rupturas profundas en nuestras
matrices perceptivas y su interrelación, así mismo entre los nexos con la
alteridad de los mundos vivos o no.
Estas formas de ser, hacer y conocer permiten percibir la reciprocidad
que orienta la relación con el entorno de las comunidades Itonama. En
parte de los recorridos realizados junto a ellos y ellas, la interrelación con
las plantas en los procesos curanderos es un hecho que denota de una parte
un profundo conocimiento sobre la flora y sus usos y a su vez un profundo
respeto por las diferentes expresiones de vida. Una de las comunarias,
con la que visité varias localidades, refiere durante uno de los recorridos:
Yo elaboro los jarabes del acai, de la raíz del motacu,10 del tajibo,11 del
alcornoque12 y el caracoré.13 Estos lo hemos aprendido a través de nuestros
ancestros, mi suegro que fue uno de los sobrevivientes aquí, él fue una persona
bien luchadora por la comunidad, el mantenía las costumbres, la medicina
tradicional todo eso… El del acai es para subir las defensas del organismo
cuando están muy bajas en caso de anemia, de la raíz del acai, lo hacemos
con plan de manejo para que duren las plantas, yo tengo allá en mi chaco.
Es como un antibiótico, para este caso también de la enfermedad del ratón,
de la fiebre hemorrágica es para eso, pero además se hace en cocimiento y
en enema, para sacar la infección, le pongo todo eso y el alcornoque bien
cocido y hojas de malva14 para bajar la temperatura porque eso es una fiebre
adentro que tiene el enfermo.15
lo que mandamos de aquí para Magdalena, a veces, son las cesáreas, pero
aquí no atendemos parto porque la gente no viene, a veces vamos a la casa.
La gente está acostumbrada a tener sus hijos en casa, con las parteras que
atendieron a sus madres o que siempre las han atendido. Eso difícilmente va
a cambiar, no hay plata que convenza. La gente no viene, a veces lo que más
uno atiende es el control de niño sano, pero es más como un paseo o una
salida por lo que vienen.19
Las palabras de esta partera nos conectan con dos ejes principales.
Primero, la posibilidad de autogobierno del cuerpo gestante, una rebeldía
y resistencia silenciosa de hecho, que, aunque parece inconexa, trae
consigo la fuerza de autodeterminación de las comunidades. Y segundo, el
reconocimiento de los límites o advertencia de peligro de un “otro” que no
se niega ni anula, sino que complementa, clave de los mundos ancestrales.
Estas pequeñas desobediencias a los intentos de disciplinamiento coloniales
nos colocan frente a micropolíticas que convierten estas rupturas personales
en decisiones existenciales y que se instalan en el cotidiano construyendo
políticas de subsistencia.
Es importante insistir en no perder el foco, lo que está en juego no
es la legalidad o legitimidad de una medicina frente a otra, la validez del
conocimiento de la partera con relación a la enfermera, la inclusión o no
de las parteras en los hospitales, o de la introducción o no de las mujeres
20
Entrevista en Orobayaya, septiembre 2017.
21
Entrevista en Bella Vista, agosto 2017.
Si vienen a buscarme que yo las partee tampoco puedo decir que no, por
último, un parto como lo voy a pelear yo con los médicos, salimos un día de
una discusión con el doctor y la licenciada me dice no le haga caso señora
Zara, no le haga caso, es desatornillado el doctor P. Como yo tengo conciencia
que no es como él dice, lo hago porque tengo cinco hijas y tres nueras. Otra
cosa que me prohibió es tratar a los recién nacidos, eso lo hago también, un
día su esposa tenía un bebesito ahí, tenía diarrea, diarrea, diarrea, un día me
vio y me pregunto qué le hacía, yo le dije cómo me preguntas niña a mi si tu
marido es médico y vos enfermera, ay ya me cansé me dijo, es una farmacia ahí
mi casa me dijo, tengo un botiquín grande lleningo y el niño es pura diarrea,
le pasa y a los dos o tres días otra vez. Seguro le diste leche ajena, cómo es
eso me dijo, te embarazaste dando de chupar. Si me dijo. Y cómo lo curo,
no te doy nada le dije, le prometo que no le digo a P, por favor señora y yo
veía el bebesito así flaquingo. Si me prometes, yo sé que una madre busca
como ayudar a un hijo, si vos efectivamente crees en mi remedio y no le vas
a decir el doctor. No le voy a decir porque me va a retar.
agua ni nada, dice que se lo dio tal como yo le dije, como a los 10 días
volvió a verme, y me dijo mi hijo esta sanito, tres días no hizo y cuando hizo
ya se arregló. Cuando te vuelva a pasar eso, le dije, quedaste embarazada
chupando tu hijo, ese día conseguir sal amarga lo diluís lo tomas y le das de
chupar, hasta las seis de la tarde no le das un trago más y te pregunto si le va
dar diarrea, eso es bueno.22
por sí mismo que producirá sentido sin que haya un término exterior a
esta articulación como tal” (Carvalho, 2011, p.176). Ello también se hace
presente cuando se hacen derivaciones intersistemas, los terapeutas locales
no biomédicos hacia los terapeutas institucionales y viceversa, lo que indica
un reconocimiento y legitimidad de lo que complementariamente se puede
aportar ante una demanda.
Esta relación de coexistencia y complementariedad (Maluf, 1996) de
los sistemas y prácticas también responde a la necesidad de respuesta que
demandan muchos de los casos, a las características socioespaciales de estos
corredores amazónicos, a las ontologías presentes que coexisten y que nos
hablan de epistemologías diferentes; de formas de conocer y reconocer
la vida que no son estáticas, que se transforman y renacen una y otra vez.
Para el caso de la cura, nos hablan de un profundo conocimiento territorial
y del cuerpo humano que permite actuar y responder.
Pero, a su vez, este conocimiento del cuerpo es conocimiento de
un territorio en la complejidad de los seres que lo habitan, que, como
plantas, animales y espíritus, se hacen presentes de una u otra forma en los
procesos. Esto nos conduce a pensar que la cura, y los sistemas que de allí
se desprenden, es uno de los posibles y diversos caminos que se pueden
explorar para aproximarnos a los imprevisibles mundos indígenas. A su
vez nos introduce y conduce nuevamente a posicionar la cura distante del
reducido y protocolizado campo biomédico. Y si bien los conocimientos de
botánica, las prácticas y experiencias ligadas al campo espiritual o en general
al cuidado, que en estas narrativas se describen, hacen parte de los campos
no biomédicos, la cura trasciende los malestares alma-cuerpo involucrando
todo un sistema relacional de la existencia de estas comunidades.
Lo cotidiano de estas prácticas da cuenta de un campo micropolítico
de re-existencias en el que las pequeñas acciones colectivas del pueblo
Itonama repolitizan el cuidado y la cura, al igual que muchos otros procesos.
El cuerpo-territorio actúa de(s)colonialmente, reelaborando las relaciones
con el mundo circulante. En él, presencia de plantas, animales, humanos,
ríos, pampas, distancias, espíritus intervienen como potencia creativa y
Diana Manrique García es Doctora en Desarrollo Rural por la Universidad Federal de Rio
Grande do Sul y docente de la Facultad de Salud y Ciencias Sociales de la Universidad de
las Américas, Chile.
alunadiana@gmail.com
Referencias
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http://doi.org/10.1590/15174522-120600
Resumo
A reflexão proposta toma o caso de Cabo Verde para ilustrar a hipótese de que nem
mesmo nas nações africanas pós-coloniais se desmantelou o racismo colonialista
do quotidiano e, sobretudo, não se conseguiu demolir a antinegritude como afeto
predominante na configuração do socius pós-colonial. O texto compreende três
momentos analíticos, tomando como objetos: (i) comentários de internautas leitores
de um importante jornal do país a respeito de um dos traços mais racializados do
carnaval cabo-verdiano; (ii) reflexões de imigrantes a respeito da relação entre
cabo-verdianos e os imigrantes africanos; (iii) a história de vida de um imigrante,
para descortinar nela traços de antinegritude tramando as relações dos próprios
imigrantes entre si.
Palavras-chave: racialização, ontologia do negro, racismo colonialista, africanidade,
discursos antinegros
Abstract
This paper takes the case of Cape Verde to illustrate the hypothesis that not even
in post-colonial African nations the colonialist racism of everyday life has been
dismantled, and that, above all, anti-blackness has not been dismissed as the
predominant affection in the configuration of the post-colonial socius. The text
comprises three analytical steps, taking as objects of reflection: (ii) comments posted
by readers of an important online newspaper in the country regarding one of the
most racialized features of the Cape Verdean carnival; (ii) reflections of interviewed
immigrants about the relationship between Cape Verdeans and African immigrants;
(iii) the life story of an immigrant to uncover in it traces of anti-blackness plotting
the relations of immigrants themselves with each other.
Keywords: racialization, black ontology, colonialist racism, africanity, anti-black discourses
Introdução
N
as últimas décadas, Cabo Verde tornou-se um país que recebe
um afluxo significativo de imigrantes, além de turistas. Os
constrangimentos impostos pelos serviços de fronteira aos imigrantes
africanos de países vizinhos1 e um cotidiano de estigmas em relação a esse
tipo específico de presença africana2 têm gerado um ressurgimento de
problematizações quanto às identidades pertinentes a esse arquipélago.
Internamente, as fissuras identitárias entre as ilhas também parecem
marcadas pelo espectro da presença denegada do negro.
Um visitante estrangeiro desavisado que passasse pela ilha de Santiago
e, após, visitasse a ilha de São Vicente (as duas principais das dez ilhas
do arquipélago) provavelmente não perceberia nenhuma diferença nos
fenótipos das pessoas de uma ou outra ilha. Diria, provavelmente, que são
todas negras com algum grau de mestiçagem. Mas é comum que pessoas
1
Sobre este assunto, veja-se Do Canto (2020).
2
Ver Rocha (2009). Além desse trabalho, a pesquisadora tem publicado outros textos sobre
a imigração oeste-africana nesse arquipélago.
em São Vicente, mesmo quando são bem escuras, ainda se pensem como
fisicamente mais próximas de um imaginado polo branco e que imaginem
os badius (os oriundos) da ilha de Santiago como essencialmente tão negros
quanto africanos. Não é objetivo deste artigo superestimar o fenômeno para
além de seu enquadramento mais comum – como afirmações identitárias
e de tipo bairrista, sem consequências significativas na política nacional
além das reivindicações costumeiras de regionalização e descentralização.
O que nos interessa aqui são as mobilizações do idioma da antinegritude,
tanto por parte de cabo-verdianos como de imigrantes, e sua surpreendente
naturalização num contexto em que os traços de fenótipo não são, a olho
nu, substantivamente diferentes no percurso de uma ilha como Santiago
para outra como São Vicente (os dois polos dessa oposição bairrista) ou
entre caboverdianos, em geral, e os imigrantes africanos de países vizinhos
estigmatizados sob a genérica exodefinição de Mandjaku. Os imigrantes
oriundos de países como o Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Nigéria, e outros
países da costa ocidental africana geralmente rejeitam essa categoria
homogeneizadora e pejorativa que advém de Manjaco, o nome neutro
de uma das muitas etnias da Guiné-Bissau, e que, no modo como se viu
sobrecarregado de estigmas em Cabo Verde, revela a antinegritude no
arquipélago. Moeda corrente, mandjaku se tornou o outro nome do negro
(e/ou do africano) mais profundo do que a negritude aceitável nessas ilhas.
O tema deste exercício emerge no pano de fundo das discussões sobre
as condições de possibilidade de uma ontologia do negro na modernidade.
Este ensaio expõe a impossibilidade de se levar uma vida de negro com
importância nesse arquipélago, mas também busca retirar do fundo desse
desprezo – pela vida de negro – as possibilidades de um outro modo de
se ser nação num continente negro.
Mas, antes de iniciarmos, impõe-se esclarecer os conceitos que
mobilizamos para esta análise. Tomamos por racismo colonialista um tipo
de interação quotidiana em que sujeitos que se constituem como brancos
estão em posição de vantagem em relação a sujeitos definíveis como não
brancos, pelo simples fato das diferenças de fenótipo, em que os traços
físicos de uma emblemática origem europeia carregam pressupostos de
para o ser do negro. Melhor dizendo, no não ser em que o racismo faz
o espectro do negro emergir como uma zona onde a vida e a morte
nada significam. Essa negritude torna-se, assim, portadora de uma nova
performatividade, daquela que fala por aqueles que estão no além, na
petrificação da escuridão.
Tal como na definição de negritude de Césaire, a performance mandinga
pode ser apreciada como o resultado de uma recusa que é também uma
reanimação, dando nova vida ao socialmente morto (Marriot, 2016).
Numa cena que envolve uma palpável ansiedade erótica que escapa de
uma masculinidade negra suburbana em exibição de si mesma como um
outro, a tensão entre a distância e a vontade de afirmação de uma presença
pulsante é o que traz a sensação de transcendência. Só aparentemente um
ato de ridicularização do negro selvagem, a encenação parece mais um
percurso por si mesmo como um outro, o devir negro de uma juventude
banida numa cidade cuja elite com frequência não se pensa como negra.
Esse devir selvagem se faz, portanto, uma visita improvável a dimensões
reprimidas da história cabo-verdiana, o ato de frequentar o insuportável
só possível àqueles que carregam forças suficientes de escuridão para uma
operação arriscada de deslocamento de si em direção ao inumano.
A verdade exposta na performance é a de que o ser do negro não se dá
sem essa dobra em que a pessoa se faz espectadora de si mesma, o humano
frente à sua não humanidade, a emergência da escuridão como abjeção no
cerne de reivindicações precárias por dignidade humana. Sem dúvida, os
mandingas recriam os rituais de espetacularização da condição negra que
estimularam o desejo de posse do corpo negro, consumado na escravidão,
“uma força de trabalho entusiasta e insensível à dor” (Ajari, 2019, p. 176).
Traz-se de volta o tempo do corpo negro como o espetáculo do aquém do
humano, num tipo de ato radical que excede tanto o significado quanto
o julgamento (Marriott, 2016).
Ao se oferecerem aos espectadores em obscena teatralidade como o
percurso por uma alteridade, enquanto um si mesmo essencial, a força da
representação de negritude acusa a exclusão constitutiva que fundamenta
7
Confronte-se o artigo de Anjos (2012) acerca do turismo sexual no arquipélago.
Ma levà mandinga pa kè??? 1 lugar simà Praia xei de mosca badiu e mandjck,
inda crè nòs mandinga de fantazia? Sò se era palhiass, pa mod ès È palhiass ma
mute fei, pa fazè arri algem… viva NòS SONCENT!!!!!!!!!!!!!!!!! (comentário
na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 2013).
8
É ainda Bourdieu quem nos lembra o quanto é pequeno-burguesa a própria relação com
o jornal que se lê como “jornal de opinião”. Se seguirmos a sociologia da leitura de jornais
que nos propõe Bourdieu em A distinção, seremos tentados a estender a Mindelo a hipótese
de que as tomadas de posição nas margens destinadas aos comentários expressam bem a
pretensão pequeno-burguesa à opinião pessoal correlacionada à “desconfiança em relação
a todas as formas de delegação, sobretudo, na política” e que “inscrevem-se logicamente no
sistema das disposições próprias a indivíduos, cujo passado e projeto baseiam-se na aposta
da salvação individual, escorada nos dons e méritos” (Bourdieu, 2007, p. 389).
Eu Pedro Brito digo assim para kem presiço de mais mandinga se ai a MUITOS.
(comentário na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 2013).
[Eu Pedro Brito digo isso: por que precisam de mais mandingas se há muitos lá?].
cabo-verdianos mais pretos do que nós, mas não falam que são mandjakus.
Mas, a nós eles chamam. Eu também não gosto disso; considero que é uma
discriminação mesmo.” Em princípio, é a diferença de fenótipo que define
quem são os mandjakus ou não. Mas, apenas em princípio. É a evitação da
possibilidade do contágio que demarca a fronteira na cor da pele. Mas, numa
nação de negros, fronteiras na cor da pele não deixam de ceder espaços
para incongruência entre o fenótipo e a escuridão esperada. É contra essa
inconsistência que Amina esbraveja: “cabo-verdianos mais pretos do que
nós”, não são tidos como mandjakus e a conterrânea guineense que é tão
mulata quanto a maioria dos cabo-verdianos também não é designada.
Se o cabo-verdiano tão escuro quanto um mandjaku não é mandjaku é
porque o estigma atinge uma qualidade moral sob a cor da pele; então, essa
imoralidade contagiante ganha uma geografia, são os africanos da costa.
Mas, nem todos os africanos da costa, não os de fenótipo e comportamentos
tidos como suficientemente próximos dos cabo-verdianos num plano de
embranquecimento. A negrura do mandjaku é, na verdade, apenas a
máscara. O dedo negrófobo aponta para a máscara e crê que existe algo
para além da máscara que é da ordem do espírito, mais propriamente de
uma degeneração espiritual. O que é designado como mandjaku nada é
senão a escuridão de que a cabo-verdianidade deve se desembaraçar no
plano do ser e não apenas do aparecer. Aquela feiura sintomática de uma
sub-humanidade no plano espiritual é o espectro, o lado obscuro da cabo-
verdianidade. A existência desse ponto de deslizamento absoluto para a
zona de morte social é o que as encenações de não negros, num cotidiano
pós-colonial, tentam encobrir nas supostas pequenas intrigas de humanos.
Questionada sobre o que significa ter cor, Amina refere que eles, os
mandjakus, são africanos, pretos, e que os cabo-verdianos têm cor por serem
misturados. No gesto, Amina aceita a racialização da diferença assente na
cor da pele, desde que esse sistema de classificação se estenda a outros
sistemas de diferenças que ela podia reconhecer na sua Guiné. Existem
várias raças na Guiné-Bissau – sugere – Papéis, Balantas, Fulas, enquanto
em Cabo Verde só existem duas raças, badius e sampadjudus, que só se
distinguem pela língua e pelo que uns dizem dos outros. A aspiração cabo-
verdiana de autodesnegrificação por sobre-enegrecimento dos vizinhos é,
assim, deslocada sob os olhos da migrante. Ao reenquadrar o sistema de
classificação étnica da Guiné como sendo da mesma ordem do sistema
cabo-verdiano que diferencia badius de sampadjudus, mandjakus de cabo-
verdianos, Amina traz a raça para a vida das pequenas diferenças que
podem ser gozadas sem hierarquizações. Ao tempo, o olho da migrante
acusa a ignorância cabo-verdiana: “a grande questão – para ela – é que os
cabo-verdianos não sabem disso, ou seja, ficaram congelados no tempo”.
É notável que Amina não se veja numa linha de aprendizagem e não se
abrigue sob fluidos discursos cabo-verdianos da miscigenação. Em lugar de
abraçar a argumentação que caminha em direção à contraposição frontal
à disciplina de raça, Amina radicaliza o devaneio racial numa linha de
fuga que multiplica as possibilidades da afirmação da diferença. Às noções
consagradas de pureza racial, Amina não opõe uma identidade multirracial
que poderia ter sido reivindicada por sua ascendência multiétnica. A
migrante, de alguma forma, sabe que o discurso da identidade multirracial
cabo-verdiana intensifica a negrofobia na medida em que intensifica o
entendimento biológico de raça. Sair da cilada é para a migrante mais
racialismo e não menos como se poderia esperar. Amina despeja raça por
toda a parte em que diferenças fazem pensar em povos e assim neutraliza
o espectro da fixação do negro como a única raça por excelência, por sua
contraposição fundamental ao branco. É assim que Amina localiza os cabo-
verdianos, oferece-lhes uma imagem – racistas antinegros – e lhes propõe,
generosamente, uma miragem – um mundo panrracializado.
bastante, dizendo que eu sou fino, que não me relaciono com eles”. Essa
distância retocada não é o resultado de um trabalho recente, Oni sabe da
profundidade temporal desse processo de civilização dos costumes: “uma
coisa que quando eu estava a vir, também pus na minha cabeça é que, ao
sair de um país, digamos, mais atrasado para ir para outro mais adiantado,
eu não continuaria a viver com pessoas atrasadas. Tenho que conviver com
aquele que é meu semelhante ou superior a mim”.
Sim, performar a mestiçagem requer o que Elias (1994) chamou de
processo psicogenético de lapidação de uma personalidade agressiva em
direção ao sujeito cortês, o correlato do enobrecimento de uma sociedade
que sai da barbárie em direção à civilização. Poderíamos, na sequência desse
raciocínio, sentir-nos convidados a pensar o mestiço como a emergência
enlameada do seio da negrura, o entretempo, a aceitação do convite superior,
o difícil caminho em direção à civilização. Perto de Oni, ouçamos Norbert
Elias, aquele do processo civilizador, falando-nos dos guerrilheiros etíopes
tentando rechaçar a investida colonizadora dos italianos. Aqui também
se sustenta o contraste entre povos superiores, inferiores e semelhantes:
exibe aqui parte das respostas afetivas que pressagiam o corpo negro
como possibilidade de contaminação. Instâncias pré-subjetivas carregadas
de intensidades fóbicas antinegras se desnudam sob a hierarquização de
pessoas em atrasadas, semelhantes e superiores. Expõe-se, desse modo, a
estrutura de uma psique negra que emerge em violência estrutural contra
si mesmo. Entre o id e o ego se interpõe um olhar branco que odeia o
imago negro e esse é o lugar de um esforço para se identificar enquanto
mestiço. O mestiço, enquanto convocado pelo mundo da supremacia
branca a se pensar como não negro sabe que precisa destruir o imago negro
em si e em seu entorno. Os demais eixos de contraposições, rua – casa,
trabalho – não trabalho, são subservientes à oposição central entre povos
superiores e inferiores. O mestiço viaja para o país superior para conviver
com pessoas superiores.
Mas, nada pode impedir que a estrutura desse mundo superior,
essencialmente antinegro, faça o mestiço retornar ao estado cadavérico,
ao ser do incivilizado, ao negro em um mundo antinegro. Num contexto
de tensão a propósito da solicitação da nacionalidade, nos cinco anos
após o seu estabelecimento no país, o desconforto que Oni sentiu por ser
comparado a um compatriota que tinha cometido fraude e fora preso carrega
a tragédia do mestiço, como o negro portador de um inconsciente antinegro.
Acuado por uma funcionária dos serviços de fronteira, numa associação
indevida com o acusado, Oni se esforçou bastante para se dissociar da
identidade de mandjaku: “Eu contei-lhe tudo, contei-lhe todo o percurso
das minhas gentes, da minha família; eu disse-lhe: “inclusive, veja o meu
nome. O meu nome não é igual ao do rapaz; veja”. O rapaz chama-se J.
não sei o quê, aqueles nomes da Guiné, lá do interior da África”. Diante
da insistência da funcionária, Oni explode: “sabe de uma coisa? Fique
com a sua nacionalidade, não quero!” (Oni, 09/2020, Cutelo – Assomada).
Detenhamo-nos demoradamente no esforço de Oni para se desembaraçar
da etiqueta de mandjaku quando acuado pelos serviços fronteiriços e no
modo como se faz cúmplice do encarceramento de seus compatriotas no
estigma. Fica, nesse esforço, exposta a gramática do sofrimento mestiço,
Conclusão
Buscamos exemplificar a tese de que a independência nacional de países
africanos pode ter desmantelado em grande parte o racismo colonialista no
quotidiano enquanto a figura do colonizador se tornou longínqua, exígua e
fugidia, mas a antinegritude permaneceu viscosa impregnando as relações
sociais nos regimes pós-coloniais de predação intensiva dos segmentos mais
empobrecidos e vulneráveis. Tomamos como caso ilustrativo a antinegritude
em Cabo Verde, na pós-colônia, a persistência das rivalidades entre badius
e sampadjudus e entre cabo-verdianos e mandjakus. Buscamos explorar
o modo como as estratégias estéticas dos performers de classes populares
da cidade do Mindelo, ao escaparem de alguma forma a esse desejo
negrófobo, desencadeiam reações pequeno-burguesas que destilam uma
antinegritude flagrante. Debruçamo-nos sobre o fascínio exercido sobre
classes médias pós-coloniais por cenas de primitivismo africano. Ao expor
sua negrofobia e a autoapresentação mandinga como simulacro, as classes
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Resumo
O artigo busca refletir sobre como as relações de cultivo em uma horta comunitária
organizada por jovens moradores da periferia da cidade da Praia interpelam tanto os
processos históricos de produção agrícola colonial em Cabo Verde quanto a lógica
do desenvolvimento modernizante que marca as compreensões contemporâneas de
alimentação. A partir de análises bibliográficas e de pesquisas de campo realizadas
em contextos rurais e urbanos, toma-se a noção etnográfica de kumida di tera
como expressão que conecta diferentes práticas e conhecimentos alimentares
insurgentes. Práticas e conhecimentos que são tomados como referência e reativados
por meio das relações engendradas na horta comunitária. Relações essas que são
aqui pensadas a partir da noção de cuidado, seguindo os sentidos que esta vem
recebendo na sociologia contemporânea, enquanto relações que guardam aspectos
negligenciados frente às lógicas dominantes de produção e consumo de alimentos.
Palavras-chave: Cabo Verde, alimentação, horta comunitária, cuidado.
*
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**
Universidade de Cabo Verde, Praia, Santiago, Cabo Verde.
Abstract
The article presents some reflections on how relationships involving cultivation
of a community garden organized by young residents in the outskirts of the city
of Praia challenge both historical processes of colonial agricultural production in
Cape Verde, and the logic of modernizing development that marks contemporary
understandings of food. Based on literature review and field research carried out in
rural and urban contexts, the ethnographic notion of kumida di tera is taken as an
expression that connects different insurgent food practices and knowledge, which
are taken as references and reactivated through the relationships engendered in the
community garden. Relationships that are considered here from the perspective of
care, in the sense it has been conceived in contemporary sociology, as relationships
that include aspects that have been neglected in the context of the dominant logics
of food production and consumption.
Keywords: Cabo Verde, food, community garden, care.
O
s períodos de fome que marcaram a história do arquipélago de
Cabo Verde, desde o início da ocupação portuguesa, em 1460,
foram frequentemente associados na literatura clássica aos escassos
e irregulares regimes de chuva (Carreira, 1984). Apenas mais recentemente,
alguns pesquisadores vêm reforçando a forte conexão entre a fome e as
dinâmicas do exercício do poder colonial (Acosta-Leyva, 2019). E, mesmo
que desde a independência, em 1975, não haja registros de períodos de
fome semelhantes aos já enfrentados, jovens ligados a grupos de ativismo
comunitário constituem narrativas marcadas pelo caráter de denúncia de que
os sistemas de fornecimento de alimentos e práticas alimentares presentes na
sociedade cabo-verdiana contemporânea reproduzem as lógicas coloniais.
por jovens – em geral homens, mas não só – que vinculam sua atuação a
temas como combate à violência urbana, enfrentamento de desigualdades
sociais, afirmação de uma postura de contestação através do hip-hop e
valorização da africanidade (Bordonaro, 2012; Lima, 2014, 2020). Dentre
os posicionamentos levantados por alguns desses grupos, encontra-se a
denúncia de que as práticas colonialistas seguem sendo implementadas
contemporaneamente, através de novos modelos.
Aqui, partimos do contexto de um desses bairros e da atuação de um
grupo de jovens ativistas, justamente porque expressam como a proximidade
física com equipamentos e fontes de alimentos não representa necessariamente
uma equidade no acesso à alimentação. São, apesar disso, as redes e práticas
de cuidado desenvolvidas nesse território que mobilizam alternativas no acesso
ao alimento e, mesmo quando não são capazes de garantir a seguridade
alimentar, possibilitam refletir a partir de outras perspectivas sobre proposições
de uma alimentação saudável e de qualidade.
grupo capaz de garantir pessoas disponíveis para cuidar da horta, ela não
vai bem e o grupo também não.
A proposição de olhar para a horta desde a perspectiva do cuidado
não significa, no entanto, negligenciar o tema da produção de alimentos,
uma vez que é fundamental ao princípio de autonomia alimentar reiterado
pelo grupo. Contudo, consideramos que o tema pode ser abordado
levando em conta a complexidade dessas relações. A fim de refletir desde
essa perspectiva, propomos observar as relações de cuidado presentes na
horta comunitária a partir de três dimensões que são também interligadas
entre si: o cuidado com as plantas, o cuidado consigo mesmo e o cuidado
com a comunidade.
Cuidar de si
A segunda dimensão do cuidado com a horta que gostaríamos de
propor corrobora a compreensão da seção anterior, de que a horta é um
espaço de reconexões que ultrapassa seus aspectos estritamente materiais.
Isso porque a mesma lógica de reativação de forças como cuidado com a
horta é compreendida como uma forma de cuidado de si.10 Os integrantes
10
Apesar de receber o mesmo nome, aqui a ideia de “cuidado de si” não se refere à ampla
análise da história das “técnicas de si” elaborada por Foucault. Contudo, vale destacar que
essa ideia está implicada em uma relação entre as pessoas e a coletividade da qual participam
que é antagônica ao modelo de subjetivação, característico da sociedade capitalista enquanto
“empresário de si”, tal como Foucault (2004) vai desenvolver em O nascimento da biopolítica.
Optamos por essa estrutura de nomeação das seções, a fim de ressaltar a relação de
indissociabilidade entre elas, enquanto diferentes dimensões de práticas de cuidado.
do grupo se referiam à horta como um espaço para “pui kabesa friu” (esfriar
a cabeça). A simples atitude de entrar na horta e descalçar os sapatos para
sentir os pés na terra era referida por um deles como “terapia”.11 Uma
experiência que se tornava ainda mais potente quando, além de estar
na horta, alguém se dedicava às tarefas de cuidados para mantê-la. Em
determinadas situações de aborrecimentos pessoais, algumas pessoas do
grupo se voluntariavam para ficar à frente dos cuidados com a horta, com
a perspectiva que isso atenuasse seu humor.
Eles mencionavam que os cuidados com a horta implicam uma
desaceleração, uma calma, que se contrapunha às pressões da lógica de
uma sociedade produtivista. Criar tempo para cuidar da horta significava
colocar-se em conexão com os tempos das relações ali agenciadas, que
não estão subordinadas às vontades humanas – o tempo das plantas, o
tempo das chuvas. Aqui, o cuidar da horta como forma de cuidar de si
está baseado em se colocar em relação com os seres e forças que povoam
esse espaço, não em uma lógica utilitarista de bem-estar e temporalidade
exclusivamente humana (Bellacasa, 2015).
Outro aspecto fundamental de aproximação entre o cuidado com a
horta e cuidados de si é a compreensão de que os alimentos cultivados na
horta podem funcionar como remédio para cura ou prevenção de doenças.
Algumas das plantas cultivadas na horta são consideradas como contendo
propriedades medicinais e referidas, segundo a expressão utilizada em Cabo
Verde, rámedi di tera (remédio da terra), tais como o xalí (o capim-limão
no Brasil) e a moringa, ambas utilizadas para preparos de chá consumidos
em ocasiões de necessidades de cuidados. Mas, apesar de o uso de plantas
para processos de cura em Cabo Verde ser um amplo campo de reflexões
que merece estudos mais específicos, no que tange à horta do Pilorinhu, a
ideia de cuidados consigo através de vegetais está também relacionada com
a compreensão de que uma alimentação saudável é baseada na ingestão
prioritária de kumida di tera.
11
Em crioulo cabo-verdiano o termo é um jogo que aglutina as palavras “terra” e “terapia”.
Cuidar da comunidade
O aspecto relacional evidenciado pela perspectiva do cuidado, no
qual o cuidado pessoal está inextricavelmente vinculado ao cuidado com a
terra e com o coletivo, pode ser estendido às relações que se estabelecem
a partir da horta do Pilorinhu com a comunidade da AGF. A horta não
apenas é frequentada por aqueles que atuam à frente das atividades da
AP, mas também é um espaço de convívio onde as pessoas se reúnem para
conversar, para contar histórias e, para os jovens, é referida como um lugar
de “inspiração” para criação conjunta de músicas e poemas. Essa mesma
potencialidade criativa trata da horta como um espaço de aprendizado para
ter e dar aulas. Muitas vezes, esses momentos são realizados em conjunto
com as crianças de escolas do bairro, que demonstram um imenso prazer
de estar naquele local. E não só para as crianças a horta é um espaço de
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http://doi.org/10.1590/15174522-106022
Resumo
O artigo objetiva apresentar e analisar o campo acadêmico dos bolsistas de
produtividade do CNPq (PQs) em Sociologia no Brasil. Trazemos uma revisão de
literatura e um estudo quantitativo descritivo sobre os bolsistas no país a partir de
um marco teórico que considera as implicações do conceito de campo acadêmico
e científico de Pierre Bourdieu. O estudo responde sobre o processo de formação
de um bolsista PQ no Brasil; analisa o perfil dos bolsistas PQ em sociologia e discute
sobre o caso dos bolsistas de produtividade nível 1A do CNPq na sociologia, estrato
mais elevado das bolsas de produtividade.
Palavras-chave: produção acadêmica, bolsistas de produtividade, campo acadêmico.
*
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
**
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil.
***
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
Abstract
The article aims to present and analyze the academic field of CNPq research
productivity grantees (PQs) in Sociology in Brazil. The work draws on literature
review and a quantitative descriptive study on research grantees in Brazil based on
a theoretical framework that considers the implications of Pierre Bourdieu’s concept
of academic and scientific field. The study inquires into the process of becoming
a PQ grantee in Brazil; analyzes the profile of PQ grantees in the field of sociology
and discusses the case of CNPq level 1A research productivity grantees in sociology,
the highest stratum of researchers’ productivity.
Keywords: academic production, productivity fellows, academic field.
Introdução
O
processo de institucionalização da Sociologia no ensino superior
no Brasil inicia-se ainda na década de 19301, com a criação dos
primeiros cursos de Ciências Sociais, que passam a constituir o
espaço de formação do corpus profissional da Sociologia, baseando-se num
arranjo interdisciplinar. Esse arranjo implicou a articulação da Sociologia
com outras ciências, tais como Antropologia, Ciência Política, História,
Economia etc., que se transmutou, a partir da segunda metade do século XX,
num arranjo mais enxuto, envolvendo a Antropologia e a Ciência Política,
o que reflete a crescente autonomização disciplinar dos campos correlatos.
1
O início da institucionalização da Sociologia no Brasil ocorreu ainda no final do século XIX,
com o advento das primeiras cátedras na educação secundária (Oliveira, 2013). Entretanto, a
partir da década de 1930 temos a criação dos primeiros cursos superiores em Ciências Sociais.
2004), isso significa reconhecer que as orientações mais gerais que regem
as normas de concessão das bolsas de pesquisa no país são pensadas,
predominantemente, a partir da lógica própria dos agentes que dominam
esse campo, no caso, aqueles vinculados às “ciências duras”.
A área de Sociologia está inserida no comitê de Ciências Sociais –
Antropologia, Arqueologia, Ciência Política, Direito, Relações Internacionais
e Sociologia, cujos membros possuem um mandato de três anos. Atualmente,
esse comitê é integrado por quinze membros, sendo três da área do Direito,
três da Antropologia, três da Ciência Política, três da Sociologia, dois da
Arqueologia e um das Relações Internacionais. Os atuais representantes da
área de Sociologia são professora e professores em programas de excelência
acadêmica, atuando nos programas de pós-graduação em Sociologia da UFRGS
(nota 7), da UFPE (nota 6) e da USP (nota 6), bolsistas PQ nível 1B, 1B e 1C,
respectivamente. Esse dado nos revela que, atualmente, apenas professores
que já chegaram ao nível e que estão situados em programas de excelência
compõem o referido comitê como representantes da área de Sociologia.
A indicação desses membros deve ser realizada pela comunidade
científica nacional, sendo consultados para tanto: a) pesquisadores 1,
constantes do Programa de Bolsas de Produtividade em Pesquisa; b)
pesquisadores 1 e 2, constantes do Programa de Bolsas de Produtividade
em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora; c) sociedades
científicas e tecnológicas de âmbito nacional; d) associações civis de âmbito
nacional com atuação na área tecnológica e inovação. Observa-se, com
isso, que o prestígio acadêmico junto aos pares é uma condição relevante
para se tornar membro do CA de sua área. Destacamos ainda que, no
âmbito das sociedades científicas, constam atualmente 12 entidades que
podem realizar indicações ao comitê das Ciências Sociais, incluindo-se
ABA, ABCP, ANPOCS e SBS,6 o que aponta para a relevância desses espaços
institucionais no campo.
Atualmente há 219 bolsistas PQ em Sociologia. Considerando o comitê
no qual essa área está inserida (Ciências Sociais), pode-se indicar que se trata
6
Associação Brasileira de Antropologia; Associação Brasileira de Ciência Política; Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; Sociedade Brasileira de Sociologia.
que não possua curso de doutorado ou que foi criado há menos de quatro
anos; participar da gestão acadêmico-científica de sua instituição; participar
regularmente de eventos nacionais e internacionais em sua área. Para os
níveis 1A e 1B é necessário ter publicado ao menos cinco artigos (qualis A1
e A2), ou livro, ou duas coletâneas; sua vinculação a um grupo de pesquisa
deve se dar preferencialmente como coordenador; deve ter orientado ao
menos cinco dissertações de mestrado ou três teses de doutorado; participar
da gestão acadêmico-científica de sua instituição, entidades científicas e
em órgãos de fomento à pesquisa; participar de editoração de periódicos
ou coletâneas na área; manter intercâmbio regular e produtivo com a
comunidade científica internacional.
Os requisitos indicados pelo comitê para o nível 1A se deslocam para
uma direção diferente do que se coloca explicitamente nos níveis anteriores,
por secundarizar uma dimensão “estritamente quantitativa”, apontando para
requisitos afinados com os critérios de consagração e distinção acadêmica.
As grandes áreas devem ponderar se as práticas que estão seguindo para avaliar
seus pesquisadores estão de acordo com os seus objetivos para as bolsas de
produtividade. Obviamente, não existe um objetivo “certo” ou único para
a atribuição de bolsas e, portanto, não deve existir uma única métrica que
deve ser seguida. No entanto, nos parece que há duas grandes vertentes para
explicar quais são os objetivos de uma bolsa de produtividade, que, se não
são contraditórios entre si, são pelo menos diferentes. O primeiro objetivo
possível é de premiar cientistas de qualidade. O segundo objetivo possível é
incentivar a produção de qualidade dos cientistas brasileiros. Há uma diferença
importante entre estes dois objetivos: se o objetivo é premiar os cientistas
pela qualidade e importância do seu trabalho, então, a história passada do
pesquisador é o fator mais importante. Caso o objetivo seja incentivar a
produção de qualidade e relevância, então, o futuro deste pesquisador é
mais importante que seu passado. É claro que, nesta segunda alternativa, o
passado é importante, mas apenas como ferramenta para prever o futuro do
pesquisador – na falta de melhores dados acredita-se que o pesquisador, no
futuro, terá os mesmos resultados (do ponto de vista de produção científica)
que no passado ou, pelo menos, no passado recente. Além do mais, as duas
vertentes de objetivos têm impacto muito diferente no agraciado. Quem
recebe um prêmio, não precisa mais continuar fazendo o que fez para ganhar
o prêmio, apenas quando outra pessoa tiver acumulado história suficiente
que o prêmio será transferido. Quem recebe um incentivo, deve manter
pelo menos a mesma produção que fez com que recebesse o incentivo, pois,
senão, ele será retirado.
Considerações Finais
Objetivamos, com os dados aqui analisados, realizar um movimento
duplo. Por um lado, descrever o perfil dos bolsistas PQ de Sociologia.
Por outro, verificar como essa distribuição tem ocorrido, principalmente
nos níveis mais altos da hierarquia acadêmica, aqui representados pelos
bolsistas nível 1A. Cabe ressaltar que os agentes que acumulam mais capital
acumulado em determinado campo também são aqueles com maior
capacidade de “deformar” a ordem do campo, operando de forma ativa
na determinação das “regras do jogo”, tendencialmente a partir de posições
ortodoxas que visam a manutenção de suas posições de poder. No caso
dos bolsistas PQ, essa posição fica ainda mais evidente considerando que
apenas aqueles de nível 1, que são indicados pela comunidade acadêmica
é que podem compor os comitês de assessoramento, possuindo, assim,
uma capacidade mais efetiva de alterar as regras do jogo.
Num primeiro momento, pode-se considerar que há a confirmação
de algumas tendências já apontadas por balanços anteriores sobre os
bolsistas PQ nas grandes áreas, como o predomínio de pesquisadores
homens (Guedes; Azevedo; Ferreira, 2015), e a concentração desses
bolsistas na região Sudeste. Esta concentração, como pudemos observar,
ocorre principalmente a partir de uma forte concentração de pesquisadores
no eixo Rio-São Paulo, destacando-se, entre as instituições fora da região
Sudeste a Unb e, principalmente, a UFRGS.
A referida concentração pode ser explicada, em parte, pela concentração
de programas de excelência na área na região Sudeste, assim como de
maiores fontes de financiamento a partir das fundações de amparo à pesquisa
locais, bem como a editoração de revistas avaliadas no estrato superior
do Qualis, demarcando a existência de hierarquias acadêmicas dentro do
campo das Ciências Sociais no Brasil (Scott, 2014). Por outro lado, esses
fatores parecem ser insuficientes para explicar a atual distribuição de bolsas
PQ, uma vez que ela não obedece de maneira uniforme à hierarquia da
avaliação da CAPES, havendo programas mais bem avaliados com menos
bolsas PQ de que outros com menores notas. Ao mesmo tempo, também
há uma forte concentração em termos de formação entre os bolsistas, de
modo que, majoritariamente, os PQ com formação doutoral no Brasil
realizaram seus estudos no Sudeste. Nesse sentido, tanto o prestígio da
instituição de origem, quanto a de pertencimento, parecem ter um peso
importante para a compreensão da atual distribuição das bolsas PQ, o
que tende a reafirmar a posição dominante dessas instituições no campo.
O exame dos bolsistas nível 1A exacerba as características encontradas
no primeiro grupo, aumentando a concentração de pesquisadores na região
Sudeste, além de ser um grupo formado exclusivamente por bolsistas que
realizaram sua formação doutoral no exterior ou na região Sudeste, com
Marina Félix Melo é Doutora em Sociologia pela UFPE e Professora do Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Alagoas.
melomarina@msn.com
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45222005000200014
http://doi.org/10.1590/15174522-106783
Abstract
This paper examines Pierre Rosanvallon’s contribution to understanding populism
by adopting two approaches: the first one is the internalist approach, comprising
an analysis of his book Le Siècle du populisme (2020) and its comparison with his
theory of changes in contemporary democracy (2006-2015). The second approach
consists of comparing Le Siècle du populisme with the works of other authors on
the subject. The paper is divided into three parts. First, we analyze Le Siècle du
populisme, focusing on the two aspects that we consider the most original: the
typology of “limit forms of democracy” and its ways of degradation and his critique
of populism. In the second part, we contrast this work with his theory of changes in
contemporary democracy. In the third part, we contextualize Rosanvallon’s work
within the literature on populism, exploring the author’s idea of populism vis-à-vis
democracy. We also compare his interpretation with three of the main contemporary
works on the subject: that of Nadia Urbinati involving theory of democracy, and that
of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, leading theorists of “leftist populism”, targets
of Rosanvallon’s criticism. Then, we argue that what distinguishes his contribution
to populism research is the scope of his theory, able to encompass tensions and
complexities in the study of democracy and that offers a way out of the theoretical
ambiguities of previous studies on populism.
Keywords: Pierre Rosanvallon; populism; contemporary political theory; Nadia
Urbinati; Chantal Mouffe; Ernesto Laclau.
Introdução
“
O populismo revoluciona a política do século 21. Mas nós ainda não
nos demos conta da justa medida da transformação que ele induz”
(Rosanvallon, 2020, p. 9). É com essas palavras que Pierre Rosanvallon
inicia Le Siècle du populisme, seu mais recente trabalho, no qual assume
a ambiciosa missão de desenvolver uma teoria do populismo. Partindo da
constatação de que as grandes ideologias da modernidade foram associadas
a obras fundadoras que ligavam análise crítica a visões do futuro, Rosanvallon
enuncia que seu objetivo é permitir uma “confrontação radical” da sua teoria
com a “ideia populista [...], ideologia ascendente do século 21” (p. 14).
O objetivo deste artigo é examinar a teoria do populismo de Rosanvallon
e, consequentemente, sua contribuição para a compreensão desse fenômeno
político. Há duas abordagens possíveis para tal fim. A primeira, que poderíamos
chamar de “internalista”, consiste numa análise rigorosa de Le Siècle du
populisme. Esse exame é, em si, pertinente, mas insuficiente. Essa abordagem
precisa ser ampliada a partir de sua articulação com a reflexão mais ampla
do autor sobre a democracia. Estamos nos referindo aos vários volumes
publicados sobre o tema durante os últimos 30 anos, notadamente sua
trilogia sobre a história intelectual da democracia (Rosanvallon, 1992, 1998,
2000) e da sua tetralogia sobre as mutações da democracia contemporânea
(Rosanvallon, 2006, 2009, 2011, 2015a). Essa articulação é fundamental:
sustentamos que o pleno entendimento e apreensão da teoria do populismo
elaborada em Le Siècle du populisme é indissociável dos seus estudos
precedentes sobre a democracia, na medida em que o populismo é uma
forma de “democracia-limite” entre outras, resultado de uma simplificação
do ideal democrático. A segunda abordagem, “externalista”, consiste no
cotejamento de Le Siècle du populisme com outros estudos sobre o tema
publicados por contemporâneos e interlocutores de Rosanvallon.
Nos últimos anos, historiadores e teóricos políticos vêm se debruçando
sobre a obra de Rosanvallon. Duas coletâneas publicadas recentemente
testemunham esse interesse. A primeira, La Démocratie à l’œuvre: autour
de Pierre Rosanvallon (Al-Matary; Guénard, 2015), reúne estudos sobre
os diversos aspectos dos trabalhos de Rosanvallon. Publicado antes de Le
Siècle du populisme e no mesmo ano de Le Bon gouvernement (Rosanvallon,
2015b), o livro, portanto, não inclui nas análises esses dois trabalhos e
tampouco Notre histoire intellectuelle et politique (1968-2018) (Rosanvallon,
2018). Mais recentemente, foi publicado Pierre Rosanvallon’s political
thought. Interdisciplinary approaches (Flügel-Martinsen et al., 2019), obra
coletiva na qual a questão do método rosanvalloniano e seus estudos
sobre a democracia também ocupam um lugar central. Nesse trabalho,
A crítica rosanvalloniana
A crítica ao “populismo real” privilegia dois eixos de análise: o primeiro,
teórico, é a concepção do funcionamento democrático, o que compreende
a crítica do referendo e da polarização democrática; o segundo, o da
experiência, remete à ideia de sociedade homogênea e das condições a
partir das quais uma democracia se torna uma democratura. O referendo
é um dos instrumentos mais reivindicados por governos populistas. Seus
líderes o exaltam como meio de revigorar a democracia na medida em
que ele deve supostamente devolver ao povo o poder de decidir. Porém,
como Rosanvallon (2020) mostra, ele é inegavelmente problemático,
na medida em que possui vários efeitos negativos do ponto de vista do
aprofundamento do projeto democrático. O referendo leva a uma dissolução
da responsabilidade; a uma simplificação da noção de “vontade política”;
à eliminação dos processos de deliberação; à irreversibilidade da decisão;
aos graves problemas na sequência do voto, em razão da não especificação
das condições de implementação da opção escolhida; à desvalorização do
legislativo e à instauração de um regime hiperpresidencial.
A segunda crítica é relativa à ideia da possibilidade da realização de uma
suposta “vontade geral”. Essa visão unanimista acompanhou a própria ideia
de comunidade política, da Antiguidade ao século 19, quando a sociedade
se tornou estruturada em classes com o desenvolvimento de um capitalismo
causador de uma fratura social fundamental (Rosanvallon, 2020). A vontade
O problema do impolítico
Até a publicação de Le Siècle du populisme, o populismo não havia
ocupado um lugar central nas reflexões rosanvallonianas sobre a democracia
e suas perversões. Um curto capítulo lhe é dedicado em La Contre-démocratie
(Rosanvallon, 2006), além de um artigo publicado em 2011 em La Vie des
idées. Assim, a discussão que nos interessa em La Contre-démocratie vai
além do problema específico do populismo, uma vez que este último é
apenas uma das consequências de um problema mais amplo e profundo que
Rosanvallon definiu como o “impolítico”. Convém aprofundar esse ponto.
Esse conceito é definido por Rosanvallon (2006, p. 27-28) como “a falta
de apreensão dos problemas ligados à organização de um mundo comum”.
Esse é o problema contemporâneo – não a passividade. Essa dissolução do
político – ou seja, das expressões de pertencimento a um mundo comum – se
manifesta de duas maneiras: por um lado, no aprofundamento da separação
entre a sociedade civil e as instituições, e por outro, na constituição de uma
“contrapolítica” que deprecia poderes em vez de procurar conquistá-los.
Assim, num mesmo movimento, coloca-se o campo político em posição de
exterioridade em relação à sociedade, deslegitimando o poder, e perde-se
as qualidades essenciais do político através de um processo de perda de
visibilidade e legibilidade do regime democrático. A era da democracia
impolítica, que ora vivemos, deve ser entendida como um tipo de ação
governamental cujas modalidades foram profundamente modificadas por
um movimento simultâneo de crescimento da democracia sob uma forma
essencialmente indireta e de declínio do político.
Esse é o pano de fundo tanto da ascensão de formas de participação
contrademocráticas, quanto de seus desvios. A contrademocracia é todo um
“emaranhado de práticas, de testes, de contrapoderes sociais informais, mas
do populismo. Mas ninguém sabe com clareza exatamente o que ele é”, e
completam, adiante, afirmando que “ele aparece por toda parte, mas em
várias formas contraditórias. Teria ele uma unidade, ou seria apenas um
nome que cobre tendências desconectadas?” (Ionescu; Gellner, 1969, p. I).
A diversidade de abordagens responde, evidentemente, a perspectivas
teóricas consideravelmente distintas: encontramos na literatura interpretações
históricas que ressaltam as continuidades ideológicas entre os populismos do
pós-guerra e o fascismo (Finchelstein, 2017), a relação do populismo como crise
da representação liberal (Taggart, 2004; Urbinati, 2019), o populismo como
manifestação de uma ação política que visa substituir o regime democrático
por uma “democracia iliberal” (Müller, 2016), o populismo como um estilo de
performance política (Moffit, 2016) ou ainda os estudos empíricos que buscam
compreender aspectos específicos do fenômeno, como as características
geracionais do voto nas lideranças populistas (Norris; Inglehart, 2019). Caberia,
portanto, perguntar-nos que contribuição para a literatura sobre o populismo
a obra de Rosanvallon oferece e como sua abordagem teórica se aproxima ou
afasta das principais interpretações da literatura. Como procuramos demonstrar
até aqui, a interpretação rosanvalloniana do populismo é inseparável de
sua teoria da indeterminação democrática e do diagnóstico do populismo
como sinal de um “fechamento” do horizonte democrático. Nesse sentido,
buscaremos, em primeiro lugar, mostrar como a interpretação de Rosanvallon
se distingue no âmbito da relação entre populismo e representação, com
especial atenção para sua comparação com Nadia Urbinati, reconhecidamente
uma leitora crítica de seus trabalhos anteriores. Em segundo lugar, buscaremos
contrastar a abordagem de Rosanvallon com uma das principais elaborações
teóricas objeto de crítica em seu livro sobre o populismo, aquela de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe.
Agradecimentos
O autor Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), que financiou, por meio de seu programa de Pós-Doutorado
(processo nº 2019/09549-1) a execução da pesquisa apresentada neste artigo.
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Resumo
Interessado no potencial heurístico das edições inaugurais de Raízes do Brasil e de
Sobrados e Mucambos (1936), bem como em suas eventuais interlocuções com
agendas de reflexão contemporâneas, o presente artigo almeja inquirir a respeito
de suas afinidades em torno de uma questão em particular. Refiro-me a certas
ambivalências e tensões interpretativas latentes nos ensaios, alimentadas pela
coexistência de duas visadas que fazem pender as atenções de Sérgio Buarque de
Holanda e de Gilberto Freyre em direções aparentemente inconciliáveis: de um
lado, um viés internalista e substancialista da formação e modernização do país e,
de outro, uma perspectiva transacional desses processos. Na parte final do artigo,
à luz dos insights oferecidos pelo debate sociológico relacional, teço considerações
acerca das contribuições das obras para uma abordagem da vida social brasileira
sensível à miríade de conexões socio-históricas implicadas em sua formação e
adesão aos padrões de sociabilidade modernos.◊
Palavras-chave: Raízes do Brasil, Sobrados e Mucambos, modernidade, pensamento
social no Brasil, teoria sociológica
A
lém das maneiras inovadoras com que, em meados da década de
1930, Sobrados e Mucambos e Raízes do Brasil se propuseram a
perscrutar as origens da sociedade brasileira, trata-se de trabalhos
igualmente notabilizados por terem abordado, com criatividade análoga,
as mudanças e processos sociais que conduziram o país à quadra moderna.
Interessado no potencial heurístico de suas formulações inaugurais, mas
também em suas interlocuções com agendas de reflexão contemporâneas,
o presente artigo almeja inquirir acerca das afinidades e confluências das
edições princeps das obras em torno de uma problemática assaz específica.1
1
Lembre-se que, anos após seu lançamento inaugural, Raízes do Brasil ganharia novas
edições, as quais trariam uma série de alterações: a 2ª edição viria em 1948, a 3ª em 1956,
a 4ª em 1963 e a 5ª em 1969. A respeito da história desse percurso e das especificidades das
novas versões, veja-se Feldman (2013) e Monteiro e Schwarcz (2016). Quanto a Sobrados
e Mucambos, cabe destacar que, depois de sua estreia em 1936, a 2ª edição (1951) traria
cinco novos capítulos, acompanhados “de acréscimos substanciais ao texto dos capítulos
primitivos” (Freyre, 1996, p. LII). Veja-se as considerações de Bastos (2008) sobre esse ponto.
Saliento não ser o propósito deste artigo cotejar as formulações das diferentes edições, o que
envolveria um exercício muito diverso do presente.
dos processos sociais” (Wimmer; Schiller, 2012, p. 302). Mas isso não é
tudo: há também que problematizar os supostos historicistas que subjazem
essa imaginação, ou seja, a convicção conforme a qual, após emergirem no
continente europeu, as invenções sociais modernas teriam migrado para
outras regiões do mundo, em meio a processos transcorridos “ao longo
do tempo” (Chakrabarty, 2000, p. 7). Por fim, ao invés de conceber-se a
modernidade como o remate final de um itinerário especial, melhor parece
enquadrá-la, desde seus primórdios, como “uma mudança mais ou menos
global, com muitas fontes e raízes e – inevitavelmente – muitas formas e
significados diferentes” (Subrahmanyam, 1997, p. 736-737) – o que, por
óbvio, exige renunciar a percursos históricos exclusivos para conferir ênfase
às “condições e interações globais através das quais o mundo moderno
emergiu” (Conrad, 2016, p. 76).
Para finalizar, gostaria de sugerir que esse deslocamento analítico em
favor das transações e vínculos socio-históricos diversos, que concorreram
para o advento da modernidade e suas incontáveis reconfigurações (Conrad,
2016; Gruzinski, 2003; Hall, 2011; Mignolo, 2005; Subrahmanyam, 1997;
Therborn, 2003), tem muito a auferir dos insights da abordagem sociológica
relacional.11 Admitida a exiguidade de acordos mais amplos a seu respeito
(Vandenberghe, 2018; Prandini, 2015; Powell; Dépelteau, 2013) destaca-se
nesse programa de reflexão a crítica à “natureza intrinsecamente reificada
de todas as categorias” – isto é, “como elas ‘totalizam’ identidades que
frequentemente são de fato multidimensionais e contraditórias” (Emirbayer,
1997, p. 308-309).12 Quando mobilizada com o intuito de interpelar
criticamente os alicerces epistemológicos, as ferramentas descritivas e o
11
Julian Go (2017, p. 142-147) explorou algumas dessas contribuições ao indicar sugestões
para um “relacionalismo pós-colonial”.
12
Frédéric Vandenberghe sustenta que, no “nível ontológico”, a sociologia relacional
“assume que as relações essencialmente criam a vida social”. Já no “nível epistemológico”,
tende-se a contrapor “o pensamento categorial das abordagens substancialista, subjetivista
e essencialista ao pensamento relacional das abordagens estruturalista, processual e
interacionista”. Por fim, no “nível metodológico”, busca-se empregar “técnicas” que
“enfatizam a interdependência mútua das variáveis e dissolvem entidades em processos”
(Vandenberghe, 2018, p. 39-40).
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Encarceramento e desencarceramento
no Brasil: a audiência de custódia como
espaço de disputa
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*
Jacqueline Sinhoretto**
Giane Silvestre***
Resumo
A população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta no período pós-
Constituição de 1988. O percentual de presos provisórios é elevado. Considerando
que nesse período foram ampliadas as possibilidades de aplicação de penas e
medidas alternativas, supõe-se a coexistência entre a prisão e as alternativas ao
cárcere. O artigo analisa dados coletados em pesquisa nacional sobre Audiências
de Custódia, que permitem discutir tensões e funcionamento recíproco de medidas
descarcerizantes e mentalidade punitiva. Por meio de análise de observação direta
das audiências e entrevistas com os operadores do direito, reflete-se sobre padrões
de escolha e mecanismos de seletividade que, por hipótese, se relacionam às
concepções dos operadores jurídicos acerca do crime, do criminoso e da punição.
São analisadas as mentalidades institucionais no campo jurídico relacionadas
com opções de política criminal e os seus reflexos na tomada de decisão judicial,
aprofundando possibilidades teóricas de interpretação desses dados.
Palavras-chave: encarceramento, audiência de custódia, prisão provisória,
política criminal, alternativas penais.
*
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
**
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.
***
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Abstract
The Brazilian prison population have been growing continuously uninterruptedly in
the post-Constitution period of 1988. The percentage of pre-trial prisoners is high.
Considering that in this period the possibilities of alternatives to imprisonment were
expanded, the coexistence between incarceration and its alternatives is assumed. The
article analyzes data collected in a national research on Detention Hearings, which
allow to discuss tensions and the reciprocal progress of disincarceration policy and
punitive mentality. Through direct observation of the hearings and interviews with
law enforcement actors analysis, patterns of choice and selectivity mechanisms had
been identified, which, hypothetically, are related to the concepts of legal operators
about crime, the offender and punishment. Institutional mentalities in the legal field
related to criminal policy options and their impact on judicial decision-making were
analyzed, deepening theoretical possibilities for interpreting these data.
Keywords: incarceration, detention hearing, pretrial detention, criminal policy,
alternative sentencing.
Introdução
A
população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta há
três décadas, coincidindo com a vigência da Constituição de 1988
e a democratização do Estado em vários setores. Nesse ínterim,
também foram ampliadas as possibilidades de aplicação de penas e
medidas alternativas à prisão e ao encarceramento provisório, como a
Lei nº 12.403/2011 e as audiências de custódia, objeto de análise deste
artigo. Diante desse cenário aparentemente contraditório, supõe-se que a
relação entre a prisão e as alternativas ao cárcere não é necessariamente
de ruptura, mas de coexistência, continuidade e funcionamento recíproco.
Os efeitos das alternativas à prisão vinculam-se tanto às interações entre as
diversas tendências político-criminais presentes quando de sua emergência
Gráfico 1. Taxa de encarceramento por 100 mil habitantes Brasil, 1990 – 2020
400
367
356
350 350
341
350
306
300 289
283
267
260
247
250 238
223
214
196
200 187
174
50
0
1990
1992
1993
1994
1995
1997
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen (Depen, 2019)
Audiências de custódia:
entre o punitivismo e o desencarceramento
Desde 2015, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o
Ministério da Justiça e os Tribunais de Justiça estaduais, passou a estimular
a adoção da Audiência de Custódia como rotina. As audiências preveem
a apresentação dos presos em flagrante à autoridade judiciária no prazo
de 24 horas após a detenção, na tentativa de garantir a prisão apenas
nas hipóteses estritamente necessárias. A medida foi implementada em
consonância com o Pacto de San Jose da Costa Rica2 e regulamentada pela
Resolução 213 de 2015 do CNJ.3 A audiência foi criada com duas funções:
analisar a necessidade de prisão durante o processo e verificar as condições
da pessoa detida, apurando situações de maus-tratos e tortura durante a
detenção. Em audiência são ouvidos, além do acusado, Ministério Público,
Defensoria Pública ou advogado particular.
2
O Decreto nº 678 de 1992 promulgou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos
(Pacto de San Jose da Costa Rica) celebrada em 1969. No art. 7º do pacto há o dispositivo:
“toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz
ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser
julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que
prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo”.
3
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2234. Acesso em 17/02/2020.
Cor/raça Freq %
70
60
50
40
BRANCA
NEGRA
30
20
10
0
17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 52 53 54 55 56 57 59 62 64 69 70 81
-10
Crimes Freq %
Latrocínio 2 0,20%
Estelionato 17 1,60%
Nota: a cada pessoa pode ser imputado mais de um crime, por isso o total (1062) é superior
ao número de presos (955). A unidade de análise desta tabela é o crime imputado.
Fonte: CNJ/FBSP (2018).
Crime violento
Decisão
Sim Não
NI 0,70% 0,20%
Antecedentes
Decisão
Sim Não
NI 0,70% 0,00%
descritas por eles como parte de um saber que orienta sua ação de defesa
social. Para outros, garantias de defesa e argumentos em torno de direitos
fundamentais são colocados em relevo como saberes organizadores da sua
prática judicial. Há uma corrente de opinião que reivindica uma insuficiência
do direito penal na resolução de problemas sociais que desembocam na
audiência de custódia, sem renunciar à sua aplicação.
Foi relatada uma forte resistência inicial à implantação do instituto.
Essa resistência, segundo os entrevistados, vem desde o estranhamento de
uma intervenção vinda de organismos internacionais no direito nacional,
até uma dificuldade de aceitação de que trabalho policial necessite de
verificação. Um promotor afirmou:
Eu era um pouco contra. Você fala “nossa, parece inversão de valores isso, né?
Quem está certo é o bandido e a polícia, o Estado que está errado?” Bom,
uma coisa que eu pensava antes, né? (Promotor, SP).
A senhora esteve aqui embaixo, deve ter visto que crimes com violência, crimes
com uma reincidência pesada não são objetos de qualquer tipo de benesse
judicial, como não devem ser. Existem pessoas que não podem conviver em
sociedade. (...) Então, eu vejo com muita tristeza essas primeiras chamadas e já
vi gente, promotores, falando que aqui a gente soltava latrocidas e homicidas
perigosos, o que é uma flagrante inverdade (Juiz, SP).
Você está duvidando de uma pessoa com toda a sua complexidade, você tem
que falar com ela em certa rapidez, a audiência acontece de forma rápida, então
acho que isso, para quem passa pela audiência deve ser muito complicado.
(...) Você tem que estar o tempo todo se lembrando que você precisa fazer a
mesma explicação para todo mundo porque você fez muitas vezes, mas são
pessoas que estão vendo aquilo pela primeira vez. É uma dinâmica muito de
massa, é difícil lidar com isso, você tem que estar muito presente para não se
deixar ir com o fluxo (Defensora, SP).
Considerações finais
A contribuição almejada por este artigo refere-se à captação das
mentalidades, sensibilidades e convicções compartilhadas no interior
do campo judiciário, bem como na identificação das descontinuidades
e divergências existentes hoje nos discursos penais, nos quais, apesar da
disputa, há o predomínio de postulados e concepções hegemonizados
pelos cânones punitivistas.
Foi apresentada a persistência do alto encarceramento provisório no
Brasil, um dos motivos que impulsionou a implantação das audiências
de custódia. Entre os resultados obtidos em seis capitais, destacam-se as
barreiras e bloqueios para a contenção da utilização abusiva da prisão
provisória, bem como para a contenção da violência policial. Apesar de
todo o esforço de múltiplos atores, as prisões em flagrante estão no centro
do modelo de policiamento conhecido como “ostensivo”, executado pelas
polícias militares, e o sistema judicial não é capaz de rever os resultados do
aprisionamento em massa para delitos ligados ao patrimônio e às drogas.
Tampouco é capaz de reverter os efeitos da filtragem racial no policiamento.
Se, pela nova sistemática prevista pela Lei nº 12.403/2011, a prisão
preventiva somente pode ser decretada pelo juiz quando não forem
cabíveis outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do
acusado, a bibliografia consultada apontava não ter havido o rompimento
do binômio prisão preventiva/liberdade provisória, sendo a prisão
preventiva cotidianamente aplicada nos tribunais do país, muitas vezes
sem sequer verificar o cabimento de medidas alternativas e em desrespeito
a garantias fundamentais como a legalidade, a presunção de inocência, a
proporcionalidade, o devido processo legal e sua razoável duração.
Os dados divulgados pelo Depen/Infopen, relativos a 2018 e 2019,
mostram uma leve queda no percentual de presos provisórios no país,
ainda que o crescimento tenha sido constante na última década. Essa
recente queda está possivelmente relacionada com a implementação das
audiências de custódia em todos os tribunais. No entanto, mais de um
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Resumo
Neste artigo, abordamos a inserção boliviana no trabalho de confecção de roupas
nas cidades de São Paulo (Brasil) e Buenos Aires (Argentina) por meio de uma
análise das redes sociais que permitem a inserção e circulação dos migrantes nessa
atividade. À luz dos debates da sociologia urbana sobre as economias migrantes,
indagamos se essa atividade constitui economias étnicas ou territórios circulatórios.
A partir de observação participante multissituada e 50 entrevistas semiestruturadas
com os trabalhadores migrantes, formulamos a hipótese de que se trata de uma
formação híbrida, com forte componente étnico associado a uma intensa circulação
de trabalhadores em espaços multiétnicos. Argumentamos que esse hibridismo
se deve à coexistência de dois tipos de redes sociais de contratação, com lógicas
diferenciadas: uma, desde os locais de origem dos migrantes, na Bolívia e, outra,
nas cidades de destino da migração. Circunstâncias que permitem entrever a
emergência de novos cosmopolitismos nesses territórios da costura. No entanto,
esses novos cosmopolitismos associam-se de maneira ambivalente com os apelos da
etnicidade, delineando um novo campo de embates políticos, interno à comunidade
boliviana, em torno de seus pertencimentos identitários nas cidades de destino.
Palavras-chave: indústria de confecção, migrações internacionais, diáspora boliviana,
economias étnicas, territórios circulatórios.
*
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, São Paulo, SP, Brasil.
Introdução
A
o longo de cerca de quatro décadas, desde meados dos anos 1980,
bolivianos e bolivianas têm migrado dos mais diversos locais de
origem na Bolívia para as regiões metropolitanas de São Paulo,
no Brasil, e Buenos Aires, na Argentina, direcionando-se para o trabalho
e a moradia em oficinas de costura. Essas oficinas não são as mesmas
que recebem as costureiras brasileiras e argentinas em seus respectivos
países. Trata-se de oficinas de migrantes, em sua maioria formadas por
compatriotas ou por migrantes de outras nacionalidades. Improvisadas
Donde yo vivía era un edificio de cinco ó seis pisos. En ahí vivían todos bolivianos.
En cada planta vivían, puros talleres, puro bolivianos vivían. Cada planta una
oficina. Parecía ratonera. Ratonera parecía porque cuando salíamos, puros
bolivianos salíamos de ahí. Harta gente. Parece que más de 120 vivíamos ahí,
puro bolivianos [Elias].
Con coreanos y con chinos, con argentinos, con paraguayos, trabajé. (...)
Mayormente con gente ajena se trabaja porque gente boliviana no te paga
bien. De esa manera, algunos bolivianos dicen: ‘con bolivianos no hay que
trabajar porque nos esclavizan, más trabajo y poco pagan’. (...). Entre paisanos
mismos nos esclavizamos allá. Por ejemplo, todos los paceños son allá, son
abusivos. Cochabambino, orureño más o menos. Pero paceño ni te da ni agua.
Ni refresco no te da [Teodomiro].
9
Essa seção é baseada em pesquisa empírica realizada durante o doutorado, entre 2009 e
2014 com financiamento da FAPESP. A pesquisa foi composta por: i) etnografia multissituada
(São Paulo, no Brasil, Buenos Aires e Córdoba, na Argentina e nas cidades de Cochabamba,
La Paz, El Alto e no município rural de Escoma, na Bolívia) e; ii) 50 entrevistas com bolivianos
e bolivianas que, em algum momento de suas vidas, se inseriram na atividade da costura
em São Paulo e/ou Buenos Aires. Sendo 33 realizadas na Bolívia e 17 em São Paulo. Em São
Paulo, as entrevistas foram realizadas nos locais de sociabilidade dos bolivianos e bolivianas
aos finais de semana depois de longos períodos de observação participante e conversas
informais com os comerciantes e líderes comunitários. Na Bolívia, foi utilizada a metodologia
de “bola de neve”, a partir de contatos iniciais com três informantes, empregadas domésticas
com parentes na costura em São Paulo e Buenos Aires, indicadas pelos pesquisadores
que me receberam em Cochabamba e em La Paz. Nas entrevistas, foram utilizados dois
instrumentos de pesquisa: i) roteiro semi-estruturado, sobre os percursos residenciais e
laborais dos entrevistados antes e depois de sua inserção na costura e; ii) formulário sobre
todas as oficinas de costura nas quais o entrevistado trabalhou (no Brasil e na Argentina)
– forma de entrada, características dos oficinistas e dos outros costureiros, tipo de peça
costurada, tamanho da oficina (em termos de quantidade e qualidade das máquinas), tempo
de permanência, acordo de trabalho, motivos da saída etc. Para organizar essas informações,
montamos um banco de dados, por meio do programa PSPP, tendo como unidade a “oficina
de costura”. A maior parte das informações utilizadas neste artigo referem-se a esse banco
de dados e aos trechos das entrevistas. Note-se que a quantificação das informações não
visa à insinuação de generalizações sobre os dados, mas apenas sua sumarização. Os nomes
dos entrevistados foram trocados para preservar a sua privacidade. Durante o trabalho
de campo na Bolívia, foi realizado um pequeno documentário disponível em: (1) Projeto
Costura – YouTube, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YCVpstgJTu4&t=2s.
El joven cuando empieza a caminar por la vida tiene que comenzar por abajo.
Y en estas culturas, q’ara es el que hereda una riqueza que no ha producido
y por eso tiene un piso de entrada a la sociedad que está cimentado por el
trabajo de otros que han sido explotados. Ese primer escalón del piso siempre
involucra un alto nivel de sacrificio. (…) Diferido en el tiempo, se trata de un
circuito de devolución: este fue explotado, ahora le toca explotar (Cusicansqui
apud Colectivo Simbiosis; Colectivo Situaciones, 2011, p. 19, 21-23).
12
Miranda (2017) também aborda o derecho de piso como uma categoria importante para
a compreensão das dinâmicas de sociabilidade presentes entre os migrantes bolivianos nas
oficinas de costura da cidade de São Paulo. A questão principal para o autor é a produção
do consentimento que permite a reprodução de relações de intensa exploração laboral no
interior das oficinas de costura migrantes. Nesse sentido, o autor argumenta que o derecho
de piso conjuntamente com o sistema de cama caliente (em que se vive e trabalha em
um mesmo lugar) e a prática de adiantamento do salário por meio dos vales constituem
os pilares institucionais que produzem esse consentimento estabelecendo os “limites da
escravidão”, o que é ou não aceitável nessas relações de trabalho nas oficinas de costura.
13
Quarenta entrevistados (de um total de 50) migraram internamente antes da migração
internacional para o trabalho na costura.
El 96! Había un aviso en la radio que se buscaba costureros para el Brasil, sin
pensar dos veces, “me voy” (...) yo me he ido con una persona buena y he
trabajado bien y bien me pagaba. Y, luego, he tenido mi oficina en allá [São
Paulo] y también me ha ayudado para prestarme para las maquinas porque, al
principio, no tenía. Ellos [os donos da primeira oficina] me dieron un lugar para
tres meses nomas y me ayudaron. Y yo no podía creer, pues ellos se prestaron
dineros de los bancos. Y, entonces, ellos me han ayudado y bien, ahora es un
buen amigo, es como un pariente [Pablo].
Era bien difícil salir, en la discusión, adentro nos hemos entrado, solamente
en el pasillo nomas, y ya no nos quería soltar. Yo le dije ‘págame lo que me
debes porque ajustaremos’. Pero él se ha enojado grave ‘¿Cómo me van a
dejar? Yo les he traído y todo eso’. Pero el dinero se lo hemos devuelto, no es
que no se lo hemos devuelto (…) al final nos fuimos y no le hemos visto más
a esa persona [João].
Bueno, el día que llego mi mes, yo quería cobrar las prendas que he trabajado, mis
horas extras. Y me dijo “no, no, no te voy a pagar porque estábamos atrasados”.
Y le dije (…) “no es la primera vez que vengo a trabajar en la costura, ni la
primera vez que voy a otro país a trabajar. Yo sé trabajar, fui a Argentina, sé
cómo es el trabajo”. De ahí dije “yo no puedo estar así, si me pagas bien, me
voy a quedar, si no, ¡no!” Bueno “por su capricho que no te voy a pagar” me
dijo. Bueno, esperé el fin de semana y dije “me voy” [Ronald, grifos da autora].
Por mi propia cuenta, así como por amigos también. Me comentaron que en
otro taller pagan bien. “Porque no te vas ahí”, me dicen. O si no, vamos a
Avenida Collon, donde buscamos trabajo, todo boliviano busca en esa avenida,
entonces también fui allí, a ese lugar. Entonces de esa manera encontrava
trabajo [Teodomiro]
Es mucho mejor trabajar con gente ajena que familiar porque hay familias
que te quieren humillar o que te tratan mal y, a veces por eso, todo tienes que
aguantarte, todo, no sabes cómo reaccionar y vos mismo te estas oprimiendo.
Ahí, si es otro, dices todo. Pero con familiar, tienes que callarte, porque si vas
a querer un apoyo de esa persona y te va a decir “si tu me has hecho así no es
cierto”. Por eso es preferible trabajar con gente ajena [Ronald, grifos da autora].
Quienes explotan el sistema del taller textil quieren recrear acá una pequeña
Bolivia, para evitar que te mezcles, que conozcas otras músicas, otra gente. Las
radios que se escuchan en los talleres, las organizaciones que reivindican “lo
boliviano” y los talleristas (y los discursos argentinos que promueven este modo
de plantear las cosas) y que se justifican con la tradición andina te confinan a
una identidad prefabricada de lo boliviano. (…). Para muchos de nosotros es
más fuerte ser habitante de una villa o de un barrio como Villa Celina, donde
crecimos y nos criamos desde chicos, que ser bolivianos. A eso le llamamos
cultura ch’ixi, a tener esa capacidad de poder mezclarte, sin diluir lo que
somos y lo que queremos (…) No hablamos como bolivianos/as. Tampoco
como argentinos/as. (…) Estamos hablando desde una experiencia. (…) Más
que nacionalidades, tenemos trayectorias. Algunas incluyen atravesar una
frontera (Colectivo Simbiosis Cultural; Colectivo Situaciones, 2011, p. 12-13).
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Resumo
O estudo aborda as discrepâncias raciais que se manifestam na transmissão
intergeracional de vantagens e desvantagem de origem de classe social. O foco
é a desigualdade racial condicional à origem de classe. A origem de classe foi
mensurada por uma tipologia de classes neomarxista. O destino social foi concebido
como chances de vida e mensurado pela renda dos filhos. Foram estimadas médias
preditas e diferenças proporcionais na renda com base em um Modelo Linear
Generalizado e nos dados de mobilidade social da PNAD de 2014. A desigualdade
racial na transmissão da herança de classe é marcante no Brasil ao nível agregado
das coortes. Regra geral, as discrepâncias raciais no efeito total e no efeito direto
da origem de classe se mantiveram na maioria das circunstâncias. Nas origens
de classe de maior peso demográfico, no agregado das coortes, não é certo que
exista uma associação empírica entre educação superior e menor discrepância
racial na transmissão da herança de classe. Entretanto, na coorte mais recente,
particularmente nas origens privilegiada e destituída, a distância racial fica incerta,
o que pode refletir processos de seletividade e não de equalização.
Palavras-chave: mobilidade social, origem e destino, classe e raça, desigualdade racial.
Abstract
The study addresses racial discrepancies manifested in intergenerational transmission
of advantages and disadvantages of social class origin. It focuses on racial inequality
conditional on class origin. Class origin was measured using a neo-Marxist class
typology. Social destination was conceived as life chances and measured by children’s
income. Predicted averages and proportional differences were estimated through
a Generalized Linear Model and social mobility data retrieved from PNAD 2014.
Racial inequality in transmission of class inheritance is striking in Brazil at the
aggregate level ofcohorts. Generally, racial discrepancies in both total effect and
direct effect of class origin have remained in most circumstances. In class origins
of greater demographic weight, in the cohorts aggregate, an empirical association
between higher education and less racial discrepancy in the transmission of class
inheritance is not certain. However, in the most recent cohort, particularly in the
privileged and destitute origins, racial distance is uncertain, which may reflect
processes of selectivity rather than equalization.
Keyword: social mobility, origin and destination, class and race, racial inequality.
O
s estudos de mobilidade social mensuram o grau de associação
que existe entre a condição socioeconômica dos pais e dos filhos.
Quanto mais forte for o grau de associação, menor será o nível
de mobilidade social entre as gerações. Uma associação mais baixa quer
dizer que a trajetória dos indivíduos é menos influenciada pelas condições
de origem social. Estudos com orientações convergentes investigaram, no
Brasil, a associação entre origem de classe e destino social, focalizando
o acesso ao topo social e a renda dos filhos. Trabalho posterior analisou
os padrões de associação por origem de classe, considerando as suas
variações por gênero e níveis da distribuição da renda (Figueiredo Santos,
2019, 2020, 2021). Este artigo analisa a desigualdade racial na transmissão
social não pode ser conduzido somente ao nível agregado de todas as coortes
de nascimento. Os padrões de associação podem não ser os mesmos em
diferentes coortes. Uma questão crítica diz respeito à caracterização do
que ocorre com a associação entre origem e destino no curso dos processos
de mudanças sociais. O condicionamento de origem pode variar em cada
coorte de modo a indicar ou não uma tendência histórica. Uma flutuação
sem tendência ou direção certa pode se formar, ensejando, em certo
sentido, um tipo de reprodução ou continuidade do padrão histórico do
passado. Os padrões de associação vão ser analisados no curso da sucessão
de coortes para divisar uma tendência temporal na sociedade brasileira.
As desigualdades de origem na aquisição da educação vão ser tomadas
como dadas, embora a passagem do efeito total ao efeito direto permita
perceber a interferência da desigualdade educacional. A parte final do
estudo vai ser organizada, como antes, em torno da proposição do papel
equalizador em especial da educação superior. Analisa-se, entre as pessoas
do mesmo nível educacional, a associação direta entre origem de classe
e renda dos filhos adultos. A ideia equalizadora supõe que a associação
entre origem e destino seria menor em níveis maiores de escolaridade. A
transposição dessa proposição para a problemática racial seria a expectativa
das discrepâncias raciais serem menores ao nível da educação superior.
Os problemas relativos à desigualdade racial no processo de
mobilidade social foram traduzidos e agregados em três questões de
pesquisa orientadoras: (i) existe uma ponderável desigualdade racial na
associação total e na associação direta (não mediada pela educação)
entre a origem de classe e a renda dos filhos, ou seja, na transmissão da
herança de classe social? (ii) Existe uma tendência temporal na sucessão
das coortes de declínio da desigualdade racial no efeito total e no efeito
direto da origem de classe, após o controle da educação adquirida?(iii) A
discrepância racial do efeito direto de origem na renda dos filhos varia por
níveis de escolaridade ou, de modo mais específico, a discrepância racial
é menor entre os indivíduos mais educados?
Tabela 1. Distribuição percentual entre origem de classe e nível educacional do filho/a, por
coorte e raça, com totais por origem e educação, mais classe e renda atual do filho/a, Brasil
Superior
Superior
Classe
Médio
Médio
Renda
Fund.
Fund.
Total
Total
Classe
BRANCO
Topo Social 21,5 6154 25,1 26,4 48,5 100,0 6,8 35,1 58,1 100,0
4,4 16,0 30,9 11,2 3,8 12,6 33,9 15,8
Qual./Super. 10,4 2751 30,6 31,0 38,4 100,0 8,1 46,6 45,3 100,0
2,6 9,2 11,9 5,5 2,5 9,2 14,5 8,7
Peq. Ativos 13,6 2390 76,7 14,1 9,2 100,0 42,8 39,7 17,6 100,0
42,9 27,2 18,7 35,7 28,5 17,1 12,3 19,1
Trabalhador 31,7 1644 54,9 23,1 22,0 100,0 25,4 50,0 24,6 100,0
14,7 21,3 21,2 17,1 23,5 29,8 24,0 26,4
Destituído 22,7 1192 74,1 15,9 10,0 100,0 39,9 46,2 13,9 100,0
35,4 26,3 17,3 30,5 41,8 31,4 15,3 30,0
Total 100,0 2539 63,9 18,5 17,6 100,0 28,6 44,2 27,2 100,0
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
PARDO E PRETO
Topo Social 8,4 4506 49,2 24,1 26,7 100,0 20,5 37,8 41,7 100,0
2,4 7,6 15,6 4,0 2,2 5,0 22,5 5,5
Qual./Super. 8,3 2280 43,8 33,6 22,5 100,0 19,1 54,9 27,5 100,0
2,5 12,5 15,4 4,7 2,2 7,3 14,1 5,5
Peq. Ativos 13,3 1335 87,8 8,9 3,2 100,0 62,0 31,8 6,3 100,0
40,7 26,6 17,8 37,4 30,1 18,2 14,6 23,6
Trabalhador 32,0 1376 64,6 22,3 13,2 100,0 35,1 52,5 12,5 100,0
11,5 25,4 27,6 14,3 16,7 29,5 28,5 23,2
Destituído 38,0 888 87,1 8,8 4,1 100,0 56,0 39,1 4,9 100,0
42,8 27,9 23,7 39,7 48,7 40,1 20,3 42,3
Total 100,0 1421 80,6 12,6 6,8 100,0 48,6 41,3 10,1 100,0
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Métodos
As divisões de classe social, na abordagem neomarxista do estudo,
são constituídas por desigualdades de direitos e poderes sobre recursos
produtivos que geram vantagens e desvantagens entre categorias (Wright,
1997). A variável independente classe social foi mensurada por uma tipologia
ajustada às especificidades da estrutura social do país (Figueiredo Santos,
2005a, 2010). Utiliza-se aqui uma versão compacta dessa classificação, que
diferencia cinco grandes agrupamentos de classe. O topo social envolve as
categorias de empregadores, especialista autônomo, empregado especialista e
gerente. Os empregados qualificados e os supervisores formam um segmento
diferenciado no trabalho assalariado. A categoria de detentores de ativos de
1
“Interpretação correta e cuidadosa dos testes estatísticos exige o exame dos tamanhos das
estimativas de efeito e limites de confiança, bem como valores P precisos” (Greenland et al.,
2016, p. 347). Vide o epidemiologista Clyde Schechter na Statalist: “Significativo versus não
significativo é uma maneira enganosa de pensar sobre os efeitos. Uma maneira melhor de
pensar sobre eles é considerar quão grandes eles parecem ser e quanta incerteza atribuímos
à nossa estimativa de quão grandes eles são”. Fonte: https://www.statalist.org/forums/forum/
general-stata-discussion/general/1408697.
Tabela 2. Renda predita de todas as fontes em Reais, por origem de classe e raça, efeito
total e direto, mais diferença racial (branco vs. pardo e preto) e de origem (topo vs.
outro). Brasil, PNAD 2014
48 58 68 78
Trabalhador Destituído
1
.5
0
48 58 68 78 48 58 68 78
Coorte de Dez Anos
48 58 68 78
Trabalhador Destituído
.6
.4
.2
0
-.2
48 58 68 78 48 58 68 78
Coorte de Dez Anos
Conclusão
A desigualdade racial na transmissão da herança de classe é marcante
no Brasil ao nível agregado das coortes. Condições de origem de classe mais
vantajosas geram discrepâncias raciais elevadas no efeito total e apreciáveis
no efeito direto da origem. Quando não há vantagens a transmitir, como
na origem destituída, ainda assim se formam discrepâncias raciais nas duas
modalidades de efeitos. No agregado das coortes, a mediação educacional,
embora responda por parte minoritária do efeito de origem em cada grupo
racial, reduz a maior parte da diferença racial no efeito total. Entretanto,
persiste uma apreciável diferença racial, da ordem de 20% a favor do grupo
branco, no efeito direto da origem, nas dimensões de capital, autoridade e
qualificação escassa, assim como de 10,3% no grupo destituído.Esse nível
de discrepância racial remanescente, nos grupos em questão, mostra-se
marcante no seu significado, pois o controle da mediação educacional
equivale à desconsideração de vantagens e desvantagens educacionais
associadas à origem de classe.
Regra geral, as discrepâncias raciais no efeito total se mantiveram nos
cruzamentos entre origem de classe e coorte. Na origem no topo social,
2
A tarefa não seria simples, mesmo com os novos métodos em desenvolvimento, em
particular quando se avalia o viés de seleção somente com variáveis observáveis, pois
quaisquer fatores não controlados que influenciem a educação e estejam associados à origem
socioeconômica poderiam gerar fontes espúrias de interação entre origem e educação (Fiel,
2020). A complexidade aumentaria em se tratando de interações entre origem de classe,
raça e educação.
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Resumo
A pesquisa tem por objetivo estudar a formação de um regime neosoberano de poder
na contemporaneidade influenciado pelas tecnologias digitais, as quais fortalecem
novas configurações socioeconômicas em um processo geral de construção de
relações virtuais de trabalho. Utilizando alguns aspectos do pensamento foucaultiano,
busca analisar as atuais dinâmicas das relações de poder permeadas pela criação de
novas subjetividades administradas por manobras necropolíticas de enfraquecimento
psíquico e, mesmo, eliminação física daqueles que não se encaixam na extração
cotidiana de riquezas.◊
Palavras-chave: neosoberania, capitalismo digital, vigilância, subjetivação, exclusão.
Introdução
O
trabalho busca traçar breves aspectos característicos das atuais
relações de poder e suas formas de administração da “vida”1 e do
corpo, sugerindo que vivemos em um momento de “neosoberania”
nas relações sociopolíticas. Relações que são produzidas pelo aprimoramento
da extração de riqueza via tecnologia informática no capitalismo financeiro,
esboçando a possível sobreposição dos dispositivos de soberania, disciplina e
controle no contexto das sociedades contemporâneas. Dispositivos, por sua
vez que em seus processos de agenciamento, de gestão da existência visando
a maximizá-la como força produtiva, também provocam o oposto, exclusão,
sofrimento e eliminação de parte do contingente populacional, produzindo
não apenas a morte em suas várias formas, mas novas subjetividades
melancólicas e enfraquecidas.
Partimos, portanto, do pressuposto de que a nova configuração
capitalista intensifica o sofrimento psíquico e físico, sendo as relações nas
plataformas digitais e o amplo espectro das tecnologias informacionais,
um dos elementos a contribuir para as condições atuais de existência.
Utilizaremos algumas ferramentas conceituais elaboradas pelas pesquisas
de Michel Foucault, além de outros autores, entendendo que, ao menos
em parte dos seus escritos, a dimensão somática passa necessariamente
pela preocupação em compreender os gerenciamentos da vida em seus
desejos, regozijos e sofrimentos (Deleuze; Guattari, 2010; Foucault, 2011;
Bruno, 2013; Burmester, 2015; Rolnik, 2018).
Crise e sofrimento
O corpo, em nossa sociedade, é um fato construído culturalmente,
posto ser fruto da dimensão representacional radicada em crenças, valores,
normas e regras concernidas aos comportamentos individuais e coletivos,
1
Os limites do texto impedem a discussão do complexo conceito de “vida” ligado ao
movimento da Lebensphilosophie caracterizado por interpretações inspiradas em Spinoza
e Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Bergson e Deleuze, sem esquecer
Simmel, Canguilhem e Foucault.
10
“‘Micropolítica’ é o nome que Guattari deu, nos anos 60, àqueles âmbitos que, por
serem considerados relativos à ‘vida privada’ no modo de subjetivação dominante, ficaram
excluídos da ação reflexiva e militante nas políticas da esquerda tradicional: a sexualidade,
a família, os afetos, o cuidado, o corpo, o íntimo.” (Preciado, 2018, p. 18).
11
“A proliferação das tecnologias políticas [...] investir[á] sobre o corpo, saúde, as maneiras
de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência [...] se trata
de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder como esse tem de
qualificar, medir, avaliar, hierarquizar [...].” (Foucault, 1999, p. 135. grifos nossos).
12
Há que se pensar, no caso brasileiro, o exemplo dos esquadrões da morte, das milícias
e as manobras policiais visando a eliminar supostos opositores por autos de resistência
(Feldkicher, 2015). Sabe-se que, ao menos no Rio de Janeiro, é costume, em operações
policiais, agentes portarem armas não registradas ou ilegais eximindo-se de utilizar as
oficiais, com o propósito de exterminarem opositores sem deixar provas. Para Franco (2019),
o Brasil sob o governo Bolsonaro tornou-se o exemplo mais bem acabado das tendências de
necrogoverno ou tanatopolítica sob a égide do neoliberalismo atual. Dinâmica que visa não
apenas privatizar a res publica, mas exterminar corpos e subjetividades tidas como marginais
e improdutivas, pela ação da violência direta armada ou pela via indireta do crescente
abandono institucional nas áreas de saúde, educação e segurança.
sociais, não apenas internos, como escolas, casas, prédios, condomínios, etc.,
mas também externos: vias, rodovias, ruas, praças, e assim por diante. Esse
tipo de controle, ao longo de décadas, se aprimora produzindo dispositivos
eletrônicos, como smartphones, internet, transponders, drones, satélites,
plataformas digitais, e implementando mudanças nas relações sociais em
geral e suas novas subjetividades consonantes ao novo regime econômico
e simbólico do capitalismo em mutação.
Nesse movimento, a rede digital torna-se o novo panóptico,
concentrando crescente massa de informações relativas aos indivíduos e
grupos, no que se convencionou chamar de big data. O gosto, as ações,
as opções sexuais, as relações pessoais, a fisionomia, as fotos, a família, a
localização constante, enfim, tudo se arquiva na instância virtual que se tornou
elemento rizomático mundial. Informações que permitem às autoridades,
via ciências dos dados, rastrear e mesmo prever comportamentos. Qualquer
autoridade competente ou grande organização, pública ou privada, pode,
a princípio, acessar informações particulares de qualquer um a qualquer
momento. Se, em uma democracia saudável, os eleitores ou o povo devem
constantemente fiscalizar políticos e suas ações, o oposto vem ocorrendo:
governos e grandes corporações (Google, Facebook, Tik Tok etc.) vigiam, por
intermédio de algoritmos sempre aprimorados, o cotidiano, a intimidade e
a vida de seus cidadãos-consumidores. Conforme escreveu Bobbio (1986,
p. 46), ainda na década de 80 do século 20,
13
A denominada, por Max Weber (1971), jaula de ferro da burocracia, característica da
modernidade, parece tornar-se agora virtual e mais eficaz em seu controle de cada elemento
da vida cotidiana. Por outro lado, se no panóptico o mote era ver sem ser visto no interior de
instituições, na sociedade de controle todos são vistos e monitorados, e também monitoram e
vêem, a qualquer momento, sem necessidade de paredes – pois paredes perdem a função de
esconder. A vida não apenas está nua em sua ausência de cidadania, como escreve Agamben,
mas em sua instância sociocorporal, em suas subjetividades, manifestações, intenções e
desejos (Deleuze, 1988, 1992, 1990; Machado, 1990; Agamben, 2002; Rolnik, 2018).
14
Beiguelman (2021, p. 32) escreve sobre esse processo constituído por “aqueles que,
no campo das imagens, são a um só tempo produtores e usuários do que consomem [...]
retroalimentando [...] um espaço de vigilância neopanótica, resultante de um desejo quase
compulsivo – que se poderia chamar de fetichista – de fazer com que virtualmente tudo
seja acessível na forma de uma imagem”. Nesse aspecto, estamos diante de produsers, um
neologismo inglês que ela retira de Axel Bruns, significando a junção de produtores e usuários.
Há que se pensar também na atual categoria de pós-verdade que consiste, de forma muito
esquemática, em notícias falsas propagadas nas redes sociais, invenções de acontecimentos
ou distorções de fatos os quais articulam sentimentos, crenças e certezas de determinados
grupos, formando “bolhas” virtuais de fanáticos que insistem em se apegar as suas ideologias
negando mesmo a realidade em uma manifestação de radicalismo político e religioso.
Neosoberania e execução
Weber, quando ressalta o aspecto crescente da racionalização e do
controle ou agenciamento da vida cotidiana no capitalismo moderno
denomina esse movimento de Entzauberung der Welt, ou desencantamento
do mundo, relacionado ao crescente desenvolvimento das ciências,
tecnologias e técnica. Essas não apresentariam apenas o aspecto positivo
e resolutivo intrínseco às suas práticas, porém diminuiriam o poder das
explicações mágico-religiosas, sagradas e metafísicas, criando mecanismos
de dominação e controle cotidiano da vida do trabalhador e da população
em geral via aprimoramento burocrático, tornando a vida, por vezes, sem
sentido ou significado (Weber, 1971, 1996, 1997).
Mbembe, em seus estudos sobre necropolítica, confere ênfase às
relações macropolíticas, enfatizando o terrorismo, a nova exclusão social de
povos inteiros, as guerras tecnológicas, destacando, portanto, o significado
político da morte. Porém é necessário ressaltar que a necropolítica se faz
sentir no "cotidiano" das sociedades atuais, nas quais correntes autoritárias
de conduta e governo vêm se consolidando nas mais ínfimas relações,
destituindo gradativamente o sentido e o significado da vida de atores e
grupos. Ao menos em alguns aspectos desse novo modelo de soberania,
destaca-se a capacidade das relações de poder e dos Estados “definir[em]
quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é”
(Mbembe, 2018, p. 41, grifo nosso). Acrescentaríamos: quais vidas ainda
servem para explorar e quais não servem, podendo ser deixadas para
morrer como ocorreu na pandemia de Covid19 no Brasil.
Inspirando-se em parte na obra de Foucault, e em parte na de Agamben,
dentre outros, o filósofo camaronês sugere que vivemos uma época na
Considerações finais
Nossa hipótese é que vivemos um momento de intensificação de alguns
aspectos do modelo de soberania (neosoberania) relacionado à revolução
digital, a qual produz não apenas um novo tipo de exploração do trabalho
imaterial, e, portanto, da vida mental, reformulando relações sociais de
produção, mas também produz crescente exclusão social por intermédio
do adoecimento psicofísico referido a essas relações.
Os agenciamentos coletivos de ordem virtual auxiliam o controle do
cotidiano e das subjetividades, provocando, muitas vezes, melancolia,
inação, dispersão, e, mesmo paralisia, por intermédio do uso de tecnologias
que extraem constantemente vida de consumidores-usuários-trabalhadores,
em uma "neosoberania totalitária", não raro, eivada de micro-fascismos e,
propensa a instaurar uma crise geral da democracia. Processo transversal
que vai das subjetividades às instituições e vice-versa, no qual não apenas
se estabelece a produção constante de sofrimento biopsicossocial uma
"necropoiética", mas também exclusão e extermínio daqueles corpos
que não têm mais lugar ou utilidade nas estruturas sociais do capitalismo
hodierno – "tanatopolítica" gestora de vidas descartáveis. Vidas voláteis que,
no compasso do que escreve Lapoujade (2017, p. 104 -106), constituem
esse ser humano sem mundo, sem lugar, despossuído de direitos, por
não servir, do ponto de vista dos governos, para nada, “perde[ndo] toda
continuidade e se reduz[indo] a uma sucessão de instantes”. É tão pouco
real esse ser, que nem é mais certo que tenha um corpo, tornando-se para
as autoridades um ente sem tempo, espaço, pensamento ou linguagem.
Epifania do fetichismo da mercadoria.
Essa vida pós-institucional, na qual se estabelece a ausência de
solidariedade, produzida pela superficialidade e superfície lisa e escorregadia
É preciso que os homens inventem aquilo contra o que eles podem se insurgir e,
ao mesmo tempo, aquilo em que transformaram sua revolta. Ou para onde vão
dirigir sua insurreição. Essa direção tendo de ser reinventada indefinidamente. Não
vejo ponto final em uma história dessas. Quero dizer, não vejo o momento em
que os homens não terão mais de se insurgir (Foucault, 2018, p. 90. grifos nossos).
15
PGMs são “páginas de gente morta”, assim são denominadas no Facebook atualmente,
e funcionam a partir das postagens dos detalhes mínimos de todos os tipos de tragédias,
necrofilia, assassinatos, acidentes graves, suicídios gravados, estupros, torturas e crimes
diversos, bizarrices, dissecações, morbidades, decapitações, esquartejamentos de
pessoas vivas, corpos em putrefação, etc., postagens retiradas de câmeras de vigilância
ou de smartphones daqueles que presenciam e gravam as tragédias ou seus resultados.
Expandem-se assim as imagens do que era considerado, e, está deixando de ser, mais
deletério e escondido na nossa cultura atual, fazendo transbordar dos muros institucionais
e organizacionais o que antes era oculto. Essas páginas apresentam suas postagens de forma
dissimulada entre os comentários dos frequentadores e são acessadas por intermédio de links
que direcionam o usuário para os sites. Assim sendo, o algoritmo do Facebook não consegue
rastrear e identificar o material e não o elimina do sistema. Essas manifestações públicas
do que em nossa cultura vem sendo considerada a mais pura crueldade nos remetem à
consolidação neoliberal de uma economia política da violência ligada à formação de uma
rede de serviços, e, portanto, a um mercado voltado para produção da morte nas diversas
esferas sociais. Aspectos que podem remeter, em outra intensidade, aos rituais de sofrimento
presentes nos reality shows destacados por Silvia Viana (2013) e que expressam um
espírito competitivo e deletério de uma sociedade que se compraz na dor e na eliminação
justificando o sofrimento da maioria pelo suposto merecido sucesso de um indivíduo.
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http://doi.org/10.1590/15174522-107406
Resumo
O artigo tem como objetivo discutir a organização das campanhas eleitorais nos
municípios, da seleção de candidatos à definição das estratégias de comunicação. A
pesquisa caminhou a partir das perguntas: o processo de profissionalização, descrito
pela literatura internacional e no Brasil, alcançou as campanhas majoritárias nos
municípios? Em caso positivo, como e quais são as características desse processo nas
campanhas eleitorais locais? Como se dá a expansão da estrutura física dos partidos
e do número de pessoas envolvidas para a realização de atividades remuneradas e
voluntárias durante o período eleitoral? Como são alocados e distribuídos os recursos
financeiros dos partidos no gerenciamento das campanhas? Para responder a essas
questões, foram selecionadas as campanhas de 2016, de PSB e Democratas, em
Guarulhos, cidade onde os partidos não têm acesso ao HGPE no rádio e na televisão.
Examinamos a dinâmica financeira das campanhas, e realizamos entrevistas com
líderes dos partidos. Os principais resultados apontam que a profissionalização
está sendo incorporada de forma desigual e em diferentes graus, a depender dos
recursos disponíveis, das estratégias e perfil de candidatos.
Palavras-chave: Campanhas eleitorais, profissionalização das campanhas, eleições
municipais, eleições 2016.
Introdução
O
objetivo do artigo1 é discutir a organização das campanhas
eleitorais nos municípios, da seleção de candidatos e diálogo
entre Diretórios à definição das estratégias. Para tanto, o conceito
de profissionalização é fundamental: processo de adaptação do marketing
eleitoral às novas formas de comunicação centradas nos meios eletrônicos
e digitais, o qual demanda a incorporação de novas ferramentas e pessoal
especializado, a expansão da estrutura do partido e pesquisas de opinião
(Mazzoleni, 2010, 2015; Farrell, 2009; Gibson, 2008; Gibson; Römmele,
2009; Holtz-Bacha, 2015; Lisi, 2013). O fenômeno é observado no Brasil
1
O artigo é parte de uma pesquisa financiada pela FAPESP (2015/10473-9), que tem por
objetivo discutir a profissionalização das campanhas eleitorais nos municípios a partir do
porte e da disponibilidade de recursos técnicos e financeiros.
O PSB em Guarulhos
Em entrevista, o vereador eleito em 2016 e líder do PSB, Wesley
Casaforte, relata que o partido geralmente começa a se organizar para a
campanha com um ano e meio de antecedência. Os primeiros passos são
as articulações, os diálogos com lideranças visando a seleção de candidatos
ao legislativo, possíveis nomes para o executivo, e mapeamento dos partidos
próximos, e que têm interesse em compor a chapa. Para Wesley, é “como
em um jogo de xadrez, temos de colocar as peças nos lugares certos”.
O Vereador foi colega de câmara de Guti (2009-2016), até então no
PV, e articulou sua mudança de partido já pensando nas eleições. Ambos
se identificavam na câmara pelas pautas que defendiam e pela oposição à
gestão petista. Wesley é parte da executiva estadual do partido, e tem contato
direto com Márcio França, vice-governador (2015-2018) e governador do
estado de São Paulo (2018),16 e uma das principais lideranças do PSB. Ou
seja, é um canal entre a alta cúpula e as lideranças municipais.
No período que antecede à campanha eleitoral há diálogo entre os
Diretórios Municipal e Estadual, via meios de comunicação intrapartidária
16
Márcio França foi eleito em 2014 vice-governador de Geraldo Alckmin na chapa
encabeçada pelo PSDB. No mês de abril 2018, França assume o executivo estadual após
renúncia de Alckmin, que concorreu naquele ano à Presidência da República. No mesmo
ano, o PSBista se candidatou à reeleição, sendo derrotado por João Dória no segundo turno.
primeiro lugar, a Direção Estadual com 21,9% (dos 27% destinados pelo
partido), e do próprio candidato que, sozinho, foi responsável por 12%.
Esses dados ratificam o que foi dito em entrevista pela liderança do PSB:
primeiro, trata-se de uma eleição importante para a legenda e Guarulhos
é uma cidade estratégica, o que justifica o investimento do partido. Outra
ênfase é a afirmação de que as lideranças do partido tinham conhecimento
das chances de vitória, daí o montante significativo destinado pela legenda
e pelo próprio candidato. Ou seja, a relação entre investimento financeiro
e expectativa (Gibson; Römmele, 2009) apontada por pesquisas de opinião
– que serão discutidas adiante.
Nós usamos redes sociais, foram importantes, mas veja, os meus pais não têm
Facebook. Então eu não posso pensar em uma campanha que trabalhe apenas
com rede social porque nem o meu pai e nem a minha mãe vão ficar sabendo,
e eles vivem em uma região central, perímetro urbano [...]. É importante que
você tenha uma ferramenta que te possibilite o alcance que só a TV tem.
Por mais que redes sociais tenham muitos seguidores, e tem sim, é insuficiente;
não alcança todos os públicos, alcança um percentual grande de um público
específico e eu não estou fazendo campanha só para esse público.
entrar nas casas por intermédio dos mais jovens, e chegar às famílias, às
pessoas que seriam atingidas pela campanha na TV.
As redes sociais, o Facebook principalmente, foram utilizadas para
manter a campanha ativa 24 horas por dia. “A página do candidato postava
e nós todos compartilhávamos juntos, coletivamente [...] a nossa campanha
foi e pareceu ser engajada”. Por “nós”, Wesley se refere a todos os envolvidos
com a candidatura: a cúpula do partido, candidatos ao legislativo, famílias
e apoiadores, a equipe do candidato a prefeito e toda a sua rede. Para isso,
os posts foram estrategicamente pensados e programados.
A nossa TV foi o Facebook e isso não quer dizer que foi uma campanha barata.
Claro que os custos não se comparam com a campanha na TV, mas está longe
de ser uma campanha sem custo. Principalmente pra nós que usamos realmente
como uma ferramenta ativa e pensamos em tudo, nos mínimos detalhes.
e pelas redes sociais também entraram “na ordem do dia”. Wesley afirma
que cada passo da campanha esteve embasado em dados, cada conteúdo,
cada decisão sobre aonde ir aonde não ir, o que falar e onde falar, quais
os momentos de avanço e recuo.
[...] perfil dos candidatos e dos eleitores, adesão e faixa etária, questões
geográficas, identificação dos indecisos e em quais grupos de indecisos nós
temos mais chances [...] identificar os principais problemas apontados pelos
eleitores, os pontos fortes e fracos da gestão anterior à nossa.
Não foram realizados comícios nos moldes dos clássicos, mas nós tínhamos
muitos carros na rua, passeatas, encontros, e esses eventos descentralizados
e simultâneos [...] os eventos realizados quase que diariamente nos bairros
foram marcados e divulgados via Facebook. No dia e horário marcado a
equipe montava uma tenda feirão, e recebia as pessoas, tirava dúvidas e
distribuía o nosso material.
Guarulhos é uma cidade grande que não tem TV. Então, para chegar a todos
os cantos, a nossa estratégia foi montar estruturas nas regiões da cidade. Uma
estrutura de marquise como ponto de apoio para entrega de material, e para
o trabalho de rua. Nesse espaço pessoas recebiam os eleitores para conversar
e tirar dúvidas. A estrutura da campanha foi crescendo durante a campanha,
e nós fizemos essa campanha de rua, planejada, mas com pouco dinheiro.
Nossa campanha pareceu ter adesão, e realmente tinha, era notável [...]
pareceu ser uma campanha de rua, e foi [...] o mais importante é que as
pessoas perceberam isso.
O Democratas em Guarulhos
O partido começa a se organizar para a campanha com um ano de
antecedência, ou um pouco mais, segundo Eli. Há um levantamento dos
nomes interessados em concorrer pelo partido e “se existe uma identificação
e a pessoa quer ser candidata, nós damos a legenda para. É assim em todas
as cidades”. No caso de Guarulhos:
Eu nunca gostei desse tipo de evento de massa, com muita gente! Nem o meu
pai gostava. É muita gente e você não fala pra ninguém, as pessoas não te
ouvem, atrapalha o fluxo das praças, dos centros comerciais, atrapalha todo
mundo que está passado.
Eli declara que, em 2016, teve total liberdade para formação de seu
comitê de campanha de acordo com o que julgou necessário: profissionais
especializados em marketing, comunicação, assessoria jurídica e financeira,
além de pessoas de confiança ligadas a ele. Essa autonomia se deu mais
pela liderança que exerce do que por questões internas ao partido, “que
pode ajudar se houver necessidade ou se quiser, mas, no meu caso, não
se envolveu [...]. Montei a minha equipe como achei necessário.”
Considerações finais
O objetivo deste artigo foi discutir a organização das campanhas
eleitorais nos municípios, a partir do conceito de profissionalização no
contexto da comunicação política. Para responder às questões colocadas,
foram entrevistadas as lideranças dos partidos que disputaram as eleições
de Guarulhos, município paulista, em 2016, pelo PSB e Democratas,
Wesley Casaforte e Eli Correia Filho. Além disso, analisamos a dinâmica
financeira de ambas as campanhas, a partir dos relatórios oficiais elaborados
pelos partidos políticos, entregues ao TSE como forma de prestação de
contas eleitorais.
Começamos com a pré-campanha: o diálogo entre diretórios partidários
para seleção de candidatos e definição das estratégias. Em ambos os casos
tivemos relatos de uma relação próxima entre os Diretórios Municipal e
Estadual – o percentual de recursos financeiros destinado pelas legendas
aponta o mesmo. Todavia, fica clara a independência local para a tomada
de decisões estratégicas. Comparadas, a candidatura do DEM nos pareceu
mais autônoma, muito pela força do candidato que é um dos principais
nomes da legenda.
Passamos para a análise da expansão da estrutura física e do número
de pessoas envolvidas para a realização de atividades remuneradas e
voluntárias durante o período eleitoral, e começamos a observar como
são distribuídos os recursos financeiros. Ambos os partidos passam por
uma ampliação do espaço físico e a gestão das campanhas combinou,
em maior ou menor grau, burocratas, voluntários e especialistas. Os
partidos que contam com uma sede, transformaram esse espaço em
ponto de apoio e as atividades de campanha foram desenvolvidas em
local específico com maior controle das lideranças e do candidato. O
Por fim, cabe pontuar que apesar de não ser o objetivo deste trabalho
discutir fatores que pesam na decisão do voto, as mudanças recentemente
incorporadas às campanhas, sobretudo relativas aos meios de comunicação,
abrem novas agendas de pesquisa. Primeiro, sobre o impacto dessas
mudanças na formação de preferências eleitorais e nas formas de consumir
informação política. Além disso, sobre os desafios permanentes enfrentados
pelos partidos políticos e lideranças para organizar uma campanha que seja
capaz de atingir o maior número de eleitores.
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Anexo 1
http://doi.org/10.1590/15174522-109333
Gabriel Peters*
Resumo
Nessa inteligente biografia, a filósofa inglesa Kate Kirkpatrick rastreia, em perspectiva
histórica, a trajetória existencial pela qual Beauvoir “tornou-se” Beauvoir. O livro
acompanha como a pensadora francesa fez de sua própria personalidade-no-
mundo um projeto deliberado, o qual teve de enfrentar uma série de resistências
“ad feminam” oriundas de seu cenário sociocultural. Com base na leitura atenta
dos diários que Beauvoir manteve durante seus tempos de estudante, publicados
somente em 2008, Kirkpatrick lança nova luz sobre a evolução intelectual da
pensadora francesa. Quando passa da sua juventude à sua maturidade e velhice,
a biografia nunca perde de vista o complexo engajamento de Beauvoir com suas
circunstâncias socio-históricas. Tal combinação de análise biográfica com um exercício
em história cultural se mostra especialmente fecunda no trato da conturbada
recepção de O segundo sexo e das respostas criativas da autora a essa recepção.
Ademais, o livro de Kirkpatrick explora a densidade filosófica, literária e ético-
política da obra beauvoiriana, densidade frequentemente deixada de lado por
outras biografias em favor de uma concentração sobre a vida afetiva da filósofa.
O respeito à complexidade e às nuances do pensamento de Beauvoir evidencia,
finalmente, o erro de uma lógica reputacional sexista que, tomando seu trabalho
como parasitário e derivativo em relação àquele de Jean-Paul Sartre, insiste em
negar sua originalidade e independência intelectual.
Palavras-chave: Simone de Beauvoir, biografia, feminismo, O segundo sexo,
Jean-Paul Sartre.
N
ão se nasce Beauvoir, torna-se – escreveu Djamila Ribeiro (2020)
em uma resenha dessa biografia assinada pela filósofa inglesa
Kate Kirkpatrick. O intertexto se revela tanto mais inteligente e
apropriado quando se nota que o título anglófono do livro de Kirkpatrick
é Becoming Beauvoir: “Tornando-se Beauvoir”. Para além da alusão à frase
mais famosa de O segundo sexo, a expressão captura a questão-cerne desse
esforço biográfico, a saber, o grau em que Beauvoir fez da sua própria
“personalidade-no-mundo” um projeto deliberado e autoconsciente, o
qual teve de se bater contra uma série de resistências “ad feminam” do
seu ambiente sociocultural. Talvez a eliminação do gerúndio “tornando-
se”, com a escolha da expressão mais anódina Simone de Beauvoir: uma
vida, responda a algum cálculo de marketing editorial, mas é certo que a
O segundo intelecto
Como dito acima, Kirkpatrick tenta resgatar o pensamento de Beauvoir
de um sem-número de distorções frequentes de que sua oeuvre foi e é
objeto. A mais corrente dessas distorções é provavelmente a concepção
previamente mencionada de que Beauvoir não seria uma pensadora original
e independente, mas mera “discípula” e “aplicadora” das concepções de
Sartre. Como a biógrafa demonstra com um elenco deprimentemente
vasto de exemplos, o laço das ideias de Beauvoir com as Sartre tem sido
frequentemente tido por óbvio, enquanto o reconhecimento da dependência
crucial que ele deve a ela é, por seu turno, muito mais raro. A assimetria de
reconhecimento continuou seguindo a autora, por assim dizer, até o túmulo:
enquanto os obituários de Sartre em 1980 mal mencionavam Beauvoir, os
obituários de Beauvoir em 1986 não só citavam Sartre fartamente como
chegavam, por diversas vezes, a reduzir a carreira intelectual dela ao seu
elo com ele (p. 359).
Kirkpatrick evidencia, com fartura de ilustrações, que o papel de
“catalisador conversacional” ou “amigo incomparável do pensamento” (p.
98) que Sartre desempenhou na vida de Beauvoir era, sem dúvida, um
papel igualmente desempenhado por ela na existência dele. Mergulhados
em contínua conversação, lendo e editando os textos um do outro, Beauvoir
e Sartre entreteceram suas cogitações a tal ponto que é difícil elucidar
vivida, assim como ao seu compromisso com uma escrita capaz de interpelar
as subjetividades inteiras de suas leitoras e leitores (intelecto, afetividade,
imaginação etc.), Beauvoir estaria deliberadamente mais próxima de literatos
de inclinação filosófica como um Dostoiévski, um Kierkegaard ou (rivalidade
tardia à parte) um Camus do que da filosofia “tratadística” que o próprio
Sartre encarnou em livros como Crítica da razão dialética (p. 193).
De resto, Beauvoir e Sartre também engendraram um intercâmbio
conversacional em que, no mais das vezes, ele privilegiava a ousadia
imaginativa e a radicalidade de posições em detrimento do compromisso
cognitivo com rigor e precisão, os quais acabavam frequentemente “ficando
a cargo” das intervenções dela. Kirkpatrick escreve que Beauvoir, conquanto
considerasse Sartre “filosoficamente...descuidado e impreciso”, “achava que
sua bravata tornava suas ideias mais proveitosas que os pensamentos precisos
e escrupulosos dela” (p. 109). Dotada de uma sensibilidade sociológica
(lato sensu) bem mais apurada do que a de Sartre, Beauvoir também
interpretou perspicazmente a diferença de ambições intelectuais entre
ela e ele a partir dos constrangimentos sociais de gênero que pesaram na
formação de suas expectativas acadêmicas e profissionais. A autora notou
essa discrepância desde os anos de 1930, quando ambos, aprovados no
exame de “agrégation”, começaram a lecionar. Enquanto Sartre, para quem
“passar na agrégation e ter uma profissão era algo garantido”, preocupava-
se com a diminuição de sua liberdade intelectual acarretada por seus
compromissos profissionais, Beauvoir, que tivera de enfrentar um sem-
número de resistências sociais (a começar pela do seu pai) para chegar
àquela condição, se viu “tonta de puro deleite: eu senti que, longe de
ter que suportar meu destino, eu o havia escolhido deliberadamente. A
carreira em que Sartre via sua liberdade decair ainda significava libertação
para mim” (p. 126-127). Finalmente, se a propensão de Sartre à “bravata”
talvez tenha contribuído, de par com uma dinâmica reputacional sexista,
para sua fama de pensador supostamente mais original, as visões mais
nuançadas de Beauvoir provavelmente concorreram para dar às ideias
dela, creio eu, maior atualidade do que as dele. No fim das contas, por
O ativismo do adeus
Como é sabido, no mesmo livro que seria um dos documentos mais
influentes da segunda onda do feminismo, Beauvoir ainda não reclamara
para si própria o rótulo de “feminista”. Paradoxalmente, a extraordinária
virulência da reação conservadora às visões defendidas por Beauvoir foi
um estímulo decisivo para que ela abraçasse expressamente, afinal, a causa
feminista. À decisão se seguiu seu envolvimento em múltiplas atividades
militantes nas décadas subsequentes, como as campanhas pela expansão
do acesso a métodos contraceptivos e pela descriminalização do aborto.
Ao tratar daquela conturbada recepção do “escandaloso O segundo sexo”
(p. 226-244), Kirkpatrick, em um dos melhores momentos do livro, vai
além de uma biografia stricto sensu e oferece um elucidativo exercício de
história cultural.
As diversas críticas ao livro mapeadas nessa biografia ilustram um
princípio identificado pelo sociólogo estadunidense Robert Merton em
sua análise do preconceito: “damned-if-you-do, damned-if-you-don’t”. Por
exemplo, Beauvoir foi atacada como “insatisfeita”, “frígida” e “frustrada”,
mas também como “ninfomaníaca” (p. 231, 235). Filósofos acadêmicos
como Mauriac consideraram “abjeto” que ela falasse sobre sexo em um
ensaio que pretendia ser “crítica filosófica e literária séria” (p. 231), ao passo
que leitores não acadêmicos a censuraram, por seu turno, por escrever um
livro supostamente inteligível apenas “para um pequeno clube literário...
de pessoas iniciadas no jargão esotérico da metafísica e sua categoria
existencialista” (p. 243). Felizmente, essas ambiguidades na recepção de
O segundo sexo tiveram suas contrapartes positivas. Por um lado, reações
como a de Mauriac tornaram-se elas próprias documentos culturais de
sexismo disponíveis à posteridade: em um de tantos exemplos do padrão
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Lucas Voigt*
Resumo
Este texto resenha a obra “Ethnic subjectivity in intergenerational memory narratives:
politics of the untold”, de Mónika Fodor (2020). Ao longo de seis capítulos, a obra
apresenta uma análise de narrativas de memória intergeracional e seu papel para
a construção da subjetividade étnica. O trabalho de Fodor adquire originalidade e
relevância pela ênfase no aspecto subjetivo e na dimensão de “investimento” da
etnicidade, compreendida como capital simbólico. A análise executada pela autora,
circunscrita à etnicidade de origem europeia no contexto dos Estados Unidos,
apresenta profícuos indicativos metodológicos e potencial heurístico, podendo
contribuir para a análise dos fenômenos da etnicidade e da memória em distintos
contextos históricos e empíricos marcados pela experiência migratória.
Palavras-chave: etnicidade, memória, narrativa, migrações, Estados Unidos.
I
ntegrando a série Routledge Research in Race and Ethnicity, o livro
“Subjetividade étnica em narrativas de memória intergeracional:
política do não-dito” (tradução livre), da sociolinguista húngara Mónika
Fodor, oferece uma reflexão interdisciplinar sobre o papel da memória
intergeracional para a construção da subjetividade étnica. O objetivo da
obra é analisar a construção discursiva da identificação étnica na forma
de subjetividade, isto é, como um grupo de indivíduos se identifica (ou
não) com a sua herança étnica e como tal herança produz sentidos para
os sujeitos. A obra emprega, em termos metodológicos, uma abordagem
sociolinguística de análise narrativa para abordar temas como etnicidade,
identidade, memória, experiência migratória e assimilação. Desse modo,
Fodor estabelece um diálogo transversal com distintas perspectivas e vertentes
teóricas oriundas dos campos da Sociologia, da Antropologia e da História,
que servem como referencial teórico ao estudo.
O grupo em análise é composto por americanos com ancestralidade
europeia, de segunda geração ou de gerações mais tardias. Assim, trata-
se de uma obra que examina o papel da memória para a conformação
Lucas Voigt é Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina,
doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com período
sanduíche junto à University of Illinois at Urbana-Champaign (com financiamento da CAPES),
e professor substituto de Sociologia no Instituto Federal do Paraná – Campus Palmas.
lucas_3106@hotmail.com
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Abstract
This paper presents the criteria, methodology, and main results of a recently published
research that surveyed and analyzed testimonies made by women who fought against
the military dictatorships in Brazil and Argentina, in a time frame that begins with
the enactment of the Amnesty Law (1979) and ends with the release of the final
report by the National Truth Commission (2014).◊
Keywords: memory, military dictatorship, testimony, gender, feminism.
A
mong so many concerns for understanding Brazil today, the social
and political events of recent years offer fertile ground for sociological
analysis. For example, we could go back to the June Journeys of
2013, as the demonstrations held in numerous Brazilian cities became
known. Driven by the Free Fare Movement (MPL – Movimento Passe
Livre) against increase in bus fares in São Paulo, these protests were initially
made up of left-wing youths, who autonomously and non-hierarchically
got organized (Judensnaider et al., 2013). Soon, other groups joined the
demonstrations, adding up other demands and generating disputes over
their direction. Following repression by the São Paulo police, demonstrations
have grown massive and huge protests took place in twelve capitals, which
enjoyed almost 80% of public support. As demands for better health, wages,
education, housing, civil rights etc. were introduced into the protests, a part
of the population with no previous activism experience joined the protests,
triggering a patriotic and moralistic repertoire that rejected participation
of political parties and brought back anti-corruption rallying cries. Unlike
autonomous or socialist militants from the left of the Workers’ Party (PT)1,
that of President Dilma Rousseff, this third kind of demonstrations attracted
individual protesters – and their rejection of political parties in general
turned into aversion to PT (antipetismo), which was undeniably linked to
the polarization experienced by Brazilian society during the 2014 elections
(Alonso, 2017). Disappointed with the result of the presidential re-election,
this sector received support from PSDB2, party of Aécio Neves, candidate
who, after losing the election, alleged fraud in the counting process and
demanded the impeachment of Dilma Rousseff. Sponsored by the media
and business sectors, new demonstrations took place in 2015, calling for
the impeachment of the president and leading, the following year, to her
deposition. Demonstrations against an inminent coup in that period and,
after consummation, against the government of Michel Temer (PMDB)3 did
not achieve similar social strength.
1
Partido dos Trabalhadores – PT.
2
Partido da Social Democracia Brasileira – Brazilian Social Democracy Party.
3
Partido do Movimento Democrático Brasileiro – Brazilian Democratic Movement Party.
Michel Temer was Dilma Rousseff’s vice-president and took office after her impeachment.
Those were intense years whose consequences are still being felt in
various spheres of Brazilian social life. That same time saw a powerful
feminist spring that took the streets of several countries in Latin America.
In Brazil, women mobilized in 2015 against a bill by the then congressman
Eduardo Cunha (PMDB), which would hinder access to morning-after
pill. In 2016, acts in Rio de Janeiro and São Paulo gathered thousands
of women against rape culture. In 2017, women took part in the general
strike called for March 8, and again took the streets the following year to
denounce the murder of councilor Marielle Franco (PSOL)4 and clamor for
democracy crying out “Not Him!” (popularized in social media as #elenão).5
Therefore, the attacks on women that marked 2018 Brazilian elections
and consolidated the extreme right rise to power with the victory of Jair
Bolsonaro (PSL)6 were not incidental. When still a federal deputy, Bolsonaro’s
vote in favor of Rousseff’s impeachment was dedicated “to the memory of
Colonel Carlos Alberto Brilhante Ustra, the dread of Dilma Rousseff”.7 Two
years later, during his candidacy, he would reveal that his bedside book
was authored by that same colonel and well-known torturer he had paid
homage to. These events highlight the relevance of a gender approach to
the chronicles of current political struggles. The research now published
as Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil
e na Argentina8 (Tega, 2019) offers key elements to reflect on these issues.
Firstly, for its focus – the book gathers an unprecedented survey of
testimonies from women who fought against military dictatorships in Brazil
(1964-1985) and Argentina (1976-1983) and who had their lives affected, in
4
Partido Socialismo e Liberdade – Socialism and Liberty Party.
5
Translator’s note: #elenão was widely used during the presidential election campaign of
2018, against the rise of then candidate Jair Bolsonaro in the polls, as he was seen by many
as the worst possible choice due to his views on social justice issues.
6
Partido Social Liberal – Social Liberal Party.
7
T/N: Brilhante Ustra was a military official and head of the intelligence and political
repression agency during the Brazilian military dictatorship. He was found guilty in 2008 of
kidnapping and torture and is widely recognized as being responsible for Dilma Rousseff’s
imprisonment and torture during her time as a resistance agent.
8
Times to tell, times to listen: testimonies of women in Brazil and Argentina.
methodological stage, namely pointing out that feminist thought consists also
of denouncing the authoritarian and hierarchical traits of historical gender
relations, politicizing issues previously perceived as private, questioning
the conventions of masculinity and femininity, and revealing other ways
of thinking about body, subjectivity, and experience. Given the significant
number of works listed, each one providing different forms of reading and
interpretation, the research established a corpus, which is examined in
the last three chapters of the book. Such analysis strives to avert certain
“sacralization of the victims’ memory” (Traverso, 2018) – which would neglect
the political commitments of historical subjects – and rather follows a path
that takes the testimonies as vestiges of defeated projects, thus focusing on
the issues of repression, militancy, and resistance.
Such approach to the testimonies of these women reveals a strong
denouncement of how they were subjected to forced nudity, individual
and collective rapes, the insertion of objects and animals into their
vaginas, witnessing masturbation by their torturers, to specific tortures
while menstruating or pregnant, to abortions due to torture, kidnapping
of their newborn children, to having their bodies used as an instrument of
manipulation or salvation. Far from being perpetrated by few tormentors
who had “crossed the line”, gender violence was part of the structure of
repressive systems in both dictatorships (Tega; Teles, 2019).
The works listed in the book also criticize the militancy itself and the
organizations to which those women belonged. They emphasize the sexism
and authoritarianism of parties, revolutionary groups and leaders. They
highlight the arduous conditions they faced by choosing clandestinity within
a quite specific repressive context. They point out the importance of affective
bonds and friendships. Resistance assumes several forms in these testimonies,
as in the very act of writing or filmic creation, in which the authors recover
agency. But also, in the remembrance of traumatic experiences deeply
marked by and in the body, since their later experiences allow them tp
reexamine those events from a new perspective, in which gender relations
take central stage. Resistance can be found, likewise, in the silences and
gaps in speech and writing, which reveal how hard it is to recount their
torments and their very need to denounce the sexual violences suffered. Or
even in the reports of solidarity and comfort received during imprisonment,
which allowed them to begin subjectively rebuilding themselves.
A third element present in the book is the way it links themes such
as memory, gender, sexuality, human rights, and education, while not
overlooking the temporalities adopted in the narrations, examining how
events are reinterpreted and incorporated into the experiences. In this
sense, the women’s testimonies reconstruct their subjectivities and, at the
same time, destabilize the traditional perception of both the recent past
and the present, as they make room for new perspectives – both for those
who narrate and for those who listen.
Furthermore, the survey endeavor was based on the premise that the act
of disclosing historically hidden experiences and struggles is a fundamental
step in memory work (Kehl, 2010). It is not hard to note that societies
tend to repeat what they are incapable of explain. In Brazil, unlike what
happened in other South American countries, state violations of human
rights increased in comparison to the period of the military dictatorship.
Studies have shown that this persistent violence is closely related to the
weak transitional justice process carried out in the country (Teles; Safatle,
2010), especially considering that it was the only country in the region where
torturers were never brought to justice and where a truth commission was
created too late. Everyday violence displays social traumas that were not
appeased by forced reconciliation, and which hinder the advancement of
democratic experience, as it is well demonstrated by research on genocide
of black youth (Waiselfisz, 2014), murders of women, specifically femicides
(Waiselfisz, 2015), violence against LGBTQI+ population (IPEA/FBSP, 2020),
and aggressions against indigenous populations (Cimi, 2019).
In many ways, the consequences of the 2018 elections represent
an affront to what the study here presented proposes. The memories of
women who fought against dictatorship and the trajectories of those who
still fight for social justice today have been vilifyed. At the same time, such
Danielle Tega holds a doctor’s degree in Sociology and is a professor at the Federal University
of Grande Dourados.
dani.tega@uol.com.br
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Envio de manuscritos
Os(as) autores(as) devem realizar cadastro no sistema SEER (http://www.
seer.ufrgs.br/index.php/index/user/register) e iniciar o processo dos cinco
passos para submissão, seguindo as instruções aos autores.
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9. Section titles and subtitles should not use capital letters and have only
the first letter capitalized. 1st level subheads should use font 12, bold;
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11. Short citations (less than three lines) will be integrated in the paragraph,
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three lines must be indented four cm from the left margin.
12. References in the text should use the author-date system, without
using capital letters for the author name. For example, (Moser, 1985).
All works cited in the text should appear in the list of references at the
end of it. Works not mentioned should not be part of the list.
13. 13. The list of references must follow the ABNT NBR 6023 standard,
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