Golpe de Estado-Martuscelli
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Acesso em: 22 jul. 2022.
REVISTAS DEMARCACIONES, n. 6, maio, 2018.
O golpe de Estado como fenômeno indissociável dos conflitos de classe
1 – Introdução
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mais regra do que exceção.2 Nesse sentido, somos conduzidos a concluir que a
definição clássica de Naudé pouco contribui para tratar dos golpes de Estado
contemporâneos ou para a formulação de um conceito geral de golpe de Estado.
Aos poucos, a definição de golpe de Estado foi adquirindo uma conotação
pejorativa, especialmente a partir do século 19, passando a ser tratada como
sinônimo de violação de direitos perpetrada por forças de natureza
ultraconservadora (Calleja, 2001, p. 96). Bartelson (1997) também sustenta que o
moderno conceito de golpe de Estado, que emerge com o fim do absolutismo e
após a consumação da Revolução Francesa em 1789, passa a conotar a ideia de
antítese do progresso político .3 Barbé (2000) observa que essa mudança que
teria se dado com o advento e consolidação do constitucionalismo: o golpe de
Estado passa a fazer referência às mudanças no Governo feitas na base da violação
da Constituição legal do Estado, normalmente de forma violenta, por parte dos
próprios detentores do poder político , definição que se consagraria, segundo o
autor, no Dicionário Larousse (Ibidem, p. 545).
No entanto, cabe ressaltar que a caracterização de um golpe de Estado como
um fenômeno reacionário ou progressista em si pouco contribui para sua definição
geral, tendo em vista que tais noções são relacionais e podem variar muito
dependendo da conjuntura histórica que se toma como referência. Só faz sentido
discutir caracterizar um golpe como progressista ou reacionário após o exame das
classes sociais em luta e a comparação entre o conteúdo da política econômica e
social que se deseja substituir e a que se pretende colocar no lugar. Caso contrário,
a análise tende a cair numa visão formalista deste fenômeno e presa à
problemática de que os golpes de Estado não passam de uma disputa entre
correntes de opinião, tal como costuma pregar a visão liberal da cena política, ou
de uma disputa entre elites racionais, como sugere a teoria elitista, dissociando-se
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4 Para uma comparação das problemáticas elitista, liberal e marxista no que se refere aos
conceitos que mobilizam para analisar os conflitos na cena política capitalista, ver: Boito
Jr. (2007).
5 O mesmo formalismo encontramos na análise de Perissinotto (2016, p. 3) para quem o
golpe de Estado está associado exclusivamente à ação dos agentes estatais: Podemos,
assim, identificar golpes militares (quando há deposição ou cerceamento do governo pelo
uso ostensivo ou ameaça do uso da força); golpe judiciário (quando se usa preceitos e
chicanas legais para derrubar um governo) ou golpe parlamentar (quando uma coalizão
parlamentar consegue o mesmo fim .
6 Essa ideia de que o golpe de Estado tem como sujeito uma fração da burocracia de
Estado, compromete a própria ideia de alargamento do conceito proposta pelo autor, uma
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vez que os membros do Parlamento não integram, a rigor, tal burocracia. Embora o
Parlamento faça parte das instituições do Estado, sua composição se dá pelo critério da
representação política, não configurando assim um grupo autonomeado como são os casos
das Forças Armadas e do Judiciário, por exemplo.
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7 Para uma síntese dos debates sobre o papel da cultura política, das características
socioeconômicas ou da instabilidade política na deflagração de golpes de Estado, ver:
Calleja (2001) e Martínez (2014).
8 Na verdade, Marx (1977) não deixa dúvidas sobre quem, de fato, passa a exercer a
dominação política na França com o declínio do feudalismo: … no decorrer do século
dezenove, os senhores feudais foram substituídos pelos usurários urbanos; o imposto
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(2011). Assim sendo, o conceito amplo de história não abrange apenas a dimensão da
mudança social, mas também abarca a dimensão da reprodução social.
10 Uma observação marginal, mas não menos importante: Poulantzas (1968) considera
que o conceito de bloco no poder só é aplicável ao Estado capitalista. Foi Saes (1985, p. 93-
95) quem questionou esta tese e propôs a aplicação deste conceito a todos os tipos de
Estado.
11 Já discutimos o conceito marxista de crise política em outro artigo, ver: Martuscelli
(2016).
12 É preciso fazer a distinção entre direção política de classe, que diz respeito às relações
entre as frações da classe dominante e, portanto, aos conflitos dessas frações no interior
do bloco no poder pela hegemonia política diante da política de Estado, e direção
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ideológica de classe, que diz respeito às relações entre as classes dominantes e as classes
dominadas, remetendo-se, assim, às formas de organização do consenso ou da hegemonia
ideológica, e não necessariamente às disputas pelo poder político. Assim sendo, uma
fração de classe que exerce a dominação ideológica, pode estar em melhores condições de
acomodar seus interesses diante da política de Estado, sem, com isso, deter a hegemonia
política. Nos processos de transição do capitalismo competitivo (ou concorrencial) para o
capitalismo monopolista, a pequena burguesia figurou como uma fração integrada ao
bloco no poder que passou a exercer a função de hegemonia ideológica, vide os casos das
experiências fascistas ou nazistas. Com o desenvolvimento do capitalismo monopolista, é
difícil incluir a pequena burguesia como parte do bloco no poder burguês, tendo em vista a
desigual concentração de poderes detida pelas frações monopolistas.
13 Se tomarmos como exemplo três golpes de Estado ocorridos no Brasil, de 1954, 1964 e
2017, veremos que alguns analistas aplicam claramente essa tese que acabamos de
mencionar, ou seja, os golpes de Estado possuem um caráter de classe, uma direção
política de classe e isso não pode ser ignorado na própria definição de golpe, se se quiser
elaborar uma análise do processo político como não sendo dissociado dos conflitos de
classe. Sobre esses processos históricos, ver, respectivamente: Boito (1982), Melo (2014) e
Martuscelli (2017).
14 Para uma análise do conceito poulantziano de fração reinante, ver: Martuscelli (2018).
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15 No Estado capitalista, tais ramos podem ser constituídos, de acordo com Saes (1993),
por grupos autonomeados (caso da burocracia de Estado: forças armadas, judiciário,
funcionalismo permanente) ou por meio de representação política (caso de
representantes eleitos ou indicados pelos membros de todas as classes sociais) e em cada
um deles é possível haver uma variação da adscrição de classe ou da posição de classe de
seus membros. No caso da representação política, a posição de classe predominante será
determinante para a ação política de seus membros. Dada a variedade de classes e frações
de classe que compõem este ramo estatal, será mais difícil a fração hegemônica garantir
sua influência sob essa instância. No caso da burocracia de Estado, existe o fenômeno da
adscrição de classe de seus membros, o que pode produzir efeitos sobre seus
posicionamentos políticos e sobre as tendências ideológicas que se pronunciam em seu
seio. Para dar conta deste fenômeno, Poulantzas (1968, 1973) desenvolveu o conceito
categoria social , para sustentar que os membros da burocracia de Estado possuem uma
adscrição de classe, ou seja, uma categoria social não pode ser tomada como separada das
classes sociais nem pode ser identificada exclusivamente com uma única classe, visto que
as categorias sociais não têm uma adscrição de classe única Poulantzas, , p. 5 .
16 Sobre a relação entre instituições estatais e as frações dominantes e aliadas, ver: Boito
Jr e Saad-Filho (2017). Sobre a seletividade de classe que exercem tais instituições, ver o
clássico livro de Miliband (1972). É importante esclarecer aqui que, de acordo com
Poulantzas (1968), o conceito de classe aliada designa a classe que se alia ao bloco no
poder ou a uma de suas frações. As alianças de classe antes de designar sacrifícios mútuos
entre as classes e frações de classe, explicita a existência de uma aliança política que pode
estar associada a uma luta econômica
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Considerações finais
Bibliografia:
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