Tecnização Da Avaliação

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Discursos sobre a eficácia educacional:

encontros e desencontros entre técnicos


em educação e professores (Brasil,
décadas de 1950 a 1970)1
Discourses on educational efficiency:
proximities and distances between
educational technicians and teachers
(Brazil, 1950s to 1970s)

Rosario Genta Lugli2


Vivian Batista da Silva3

RESUMO
Neste texto articulam-se resultados de investigações sobre a produção e
circulação de conhecimentos pedagógicos. Comparecem aqui três fontes
diferenciadas na produção desses saberes: a documentação dos Congressos
Nacionais de Professores Primários; discursos dos Centros Regionais de Pes-
quisas Educacionais; e textos dos manuais pedagógicos, usados nas escolas
de formação do magistério primário. Esses materiais são especialmente úteis
para compreender como os apelos de racionalização do trabalho docente
com ênfase nos métodos e técnicas de ensino, característicos do discurso
educacional entre meados do século XX e a década de 1970, são construídos

DOI: 10.1590/0104-4060.36640
1 O presente artigo resulta da articulação de duas pesquisas desenvolvidas em nível de
doutorado (O Trabalho Docente no Brasil: os discursos dos Centros Regionais de Pesquisa Edu-
cacional e das Entidades Representativas do Magistério (1950-1971), 2002 e Saberes em viagem
nos manuais pedagógicos: construções da escola em Portugal e no Brasil (1870-1970), 2006),
ambas com apoio financeiro da FAPESP.
2 Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos, São Paulo. Brasil. Campus Guarulhos
(Unidade Provisória). Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Rua do Rosario, 382 (antigo
117), Bairro Macedo. CEP: 07111-080.
3 Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. Faculdade de Educação. Av.
da Universidade, nº 308, Cidade Universitária. CEP: 05508-040.

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em instâncias diversas do campo educacional brasileiro. Nessa perspectiva, é


possível evidenciar as disputas envolvidas nessa ênfase na dimensão técnica
do ensino, entre os agentes localizados em diferentes posições: autoridades
oficiais do Estado, pesquisadores e professores primários. No entrecruzamen-
to desses textos é notável a progressiva adesão aos valores vindos de uma
visão técnica do ensino como verdades inquestionáveis e a constituição da
“teoria” como um tipo diferenciado de conhecimento pedagógico associado
à maior legitimidade dos “técnicos em educação”, constituídos simultanea-
mente pelos vínculos com a Universidade e com o Estado.
Palavras-chave: conhecimento pedagógico; tecnicização do ensino; história
da educação.

ABSTRACT
This article combines the results of research works on the production and
circulation of pedagogical knowledge. We use here three different sources
from the creation of such knowledge: documents from the National Reunions
of Elementary Teachers; speeches from the Regional Centers for Educational
Research and the textbooks used in the initial preparation of elementary
teachers. These three sets of documents are particularly useful for the un-
derstanding of the arising and settlement of work rationalization on teaching
activities emphasizing their methods and procedures that are characteristic
of the Brazilian educational speech between the 1950s and the 1970s as well
as the way they were built in various branches of the Brazilian educational
field. From that point of view, it is possible to identify the disputes over the
definition of technical dimensions of teaching among the agents located in
different spots of the educational field, and sometimes simultaneously in
more than one position: official state authorities, educational researchers and
primary teachers. It is remarkable, when these discourses are compared, the
increasing power of a technical view of teaching as unquestionable truth,
as well as the constitution of the “theory” as a separate kind of pedagogical
knowledge associated to the increasing legitimacy of the “educational tech-
nicians”, that were simultaneously linked to the university and to the state.
Keywords: educational knowledge; teaching technicality; education history.

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No ensino, a determinação de qual seja essa “melhor maneira” dependerá,


em cada caso, do discernimento e da capacidade imaginativa e crítica
do professor, sobrepondo-se à rotina e abrindo novos caminhos, mais
consentâneos e racionais, para atingir os objetivos visados...
Luís Alves de Matos. Sumário de didática geral. RJ: Aurora, 1957, p. 14.

O trecho acima transcrito integrou um manual largamente difundido nas


escolas de formação do magistério no Brasil e assinalou uma preocupação
comum à época de sua publicação, qual seja, a de encontrar os “recursos e
procedimentos adotados em aula” para que, “em caminhos mais consentâneos
e racionais”, sejam atingidos os objetivos do ensino (MATOS, 1957, p. 14).
Suas palavras ilustraram como, ao longo das décadas de 1950 a 1970, foram
sendo incorporadas novas exigências aos professores. Não apenas os livros de
formação, como também as orientações do Estado, as produções científicas e
das próprias organizações de docentes primários afirmaram a necessidade de
racionalizar cada vez mais o trabalho da sala de aula. Se quiséssemos resumir
a imagem de “bom” professor desse momento, poderíamos descrevê-la como
a de um profissional que sabe planejar, ordenar os conteúdos, usar os métodos
e as técnicas didáticas mais eficazes. Denominado de “tecnicização do ensino”
(MACHADO, 1980), esse processo integrou a configuração do modelo de es-
cola moderna, construído em diversas partes do mundo desde finais do século
XIX (NÓVOA; SCHRIEWER, 2000), institucionalizando modos de trabalho
específicos e familiares a nós. Convém lembrar que a instituição começou a
se desenvolver em diversas partes do mundo em finais do século XIX, sob a
responsabilidade do Estado, no intuito de se estender a toda população de for-
ma obrigatória, leiga e gratuita (NÓVOA; SCHRIEWER, 2000). A sua força é
medida não apenas pela existência de mais de um século e meio, como também
pela permanência de um modelo praticamente inquestionável, com classes
graduadas agrupando os alunos; professores atuando individualmente junto a
uma turma de estudantes, com perfil de generalistas nos primeiros níveis de
ensino e com perfil de especialistas nos graus seguintes; com uma arquitetura
que lhe é característica; com tempos determinados para cada tipo de atividade
dos alunos e dos professores (NÓVOA, 1995). Essa organização não é tomada
apenas como a melhor, mas como a única via possível de ensino (TYACK,
1974). Como afirmam Correia e Gallego (2004, p. 9), “é nesse tipo de escolas
que se desenvolveu e aperfeiçoou a nova racionalidade pedagógica, organiza-
cional e temporal” e que, conforme discutiremos neste artigo, teve em meados
do século XX uma ênfase específica, pelo menos no caso brasileiro, quando as
atenções se voltaram para o aperfeiçoamento das técnicas e métodos de ensino.

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A vocação para o magistério e as tarefas da escola, temas de destaque nos anos


finais do século XIX e início do século XX, e o aluno, tema recorrente entre as
décadas de 1920 e 1930, deixaram de ser tão centrais na discussão e orientação
pedagógica (SILVA, 2005), em meio aos apelos de racionalização da docência,
marcando as disputas entre os valores tradicionais e os modernizantes no campo
educacional brasileiro (LUGLI, 2002).
Na análise aqui proposta comparecem três fontes diferenciadas na produção
do conhecimento no campo educacional – a primeira delas é constituída pela
documentação dos Congressos Nacionais de Professores Primários, realizados
por associações de professores a partir de 1953 a cada dois anos; a segunda
fonte corresponde ao conjunto dos discursos dos Centros Regionais de Pesquisas
Educacionais (CRPEs), que atuaram em cinco estados brasileiros (MG, SP, RS,
BA e PE) entre 1955 e 1975 (LUGLI, 2002) propondo a investigação científica
baseada na sociologia do ensino e divulgada para os administradores do sistema
educacional; finalmente, a terceira fonte diz respeito aos manuais pedagógicos,
editados e usados em várias cidades do país desde finais do século XIX para
dar conta da formação inicial de docentes (SILVA, 2005). Trata-se, portanto,
de uma análise que articula diferentes pesquisas (LUGLI, 2002 e SILVA, 2005)
acerca da produção e circulação de conhecimentos entre os professores, cada
uma delas envolvendo diferentes lugares de produção desses saberes, tanto no
que se refere às suas naturezas e aos seus espaços de distribuição no território
brasileiro quanto às suas condições de escrita. Em nosso entender, essas três
dimensões permitem apreender as disputas envolvidas no campo educacional,
entre os agentes localizados em diferentes posições: autoridades oficiais de en-
sino, pesquisadores em educação e docentes – vale observar que estas categorias
não constituem grupos separados, podendo uma autoridade do ensino (como
frequentemente era o caso) ser também docente, autor de manuais didáticos ou
pesquisador em educação. O critério para a análise foi o lugar da produção desse
discurso, bem como seu conteúdo – é nessa medida que se podem apreender
seus possíveis efeitos sociais.
Os fundamentos desse esforço concentram-se naquilo que Denice Catani
(2000) assinala como sendo a produção de distâncias e vizinhanças no espaço
dos educadores, ou seja, o reconhecimento de que essa diversidade dos lugares
de escrita não foi a expressão pacífica de ideias, pois decorreu de aproximações
e embates em torno do projeto nacional de ensino. Assim, embora tenha havido
um consenso acerca do que se esperou da escolarização, foi inegável o fato de
que as diferentes posições ocupadas pelos especialistas em educação e pelos
professores primários geraram divergências nos modos pelos quais a educação
foi pensada e dada a ler. Na comparação entre os discursos dos Congressos,
dos CRPEs e dos manuais para professores percebe-se que os pensamentos

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não circularam invariavelmente como cópias das produções dos níveis mais
legítimos do campo educacional. Ressalte-se que trabalhamos aqui com textos
propostos para a formação inicial, os manuais pedagógicos; com textos dos
CRPEs, que pretendiam modificar as práticas daqueles professores já em serviço
e, finalmente, com os textos que, mesmo sendo produzidos por instâncias de
representação coletiva, deram luz a um pensamento “próprio” dos professores
primários a respeito das mudanças que o campo educacional vivia naquele
momento. Isso nos conduz a perguntar sobre as formas de interação possíveis
entre os agentes desse espaço, bem como a analisar de que modo os discursos
produzidos por cada um desses grupos representaram seus lugares no campo
e produziram, nessa perspectiva, uma concepção sobre educação, instaurando
modos ideais de conceber a profissão docente.
Considerar esse universo de fontes permite, portanto, compreender como
se construíram os discursos que enfatizaram a racionalização dos métodos e
técnicas do ensino e a instituíram como a principal característica do bom profes-
sor. É nesse sentido que se examina a produção da cultura profissional docente
(PERRENOUD, 1993), entendida enquanto um amplo conjunto de práticas,
dentre as quais estão as tarefas cotidianas em sala de aula, a convivência com
os alunos e colegas de trabalho, a partilha de uma identidade comum, enfim,
um modo de conceber e viver a profissão que se configura, em plano individual,
como um habitus (BOURDIEU, 1996) característico dos professores. A cons-
trução dessas modalidades de ação e percepção articula-se com a produção e
circulação dos conhecimentos pedagógicos, pois, ao se destinarem à formação e
aperfeiçoamento do ensino, eles contribuem para instaurar novas características
no conjunto de práticas que aqui se chama cultura profissional. Em outras pala-
vras, os saberes educacionais são dados a ler para delimitarem representações
(CHARTIER, 1990) acerca das qualidades de excelência do exercício profis-
sional, contribuindo para incorporar nos indivíduos os gestos tidos como mais
necessários ou convenientes e, antes de mais nada, configurando uma imagem
social das características desejáveis para a profissão. No Brasil, a história da
elaboração e divulgação de textos pedagógicos teve um de seus períodos de maior
efervescência nas décadas de 1950 e 1960, quando se observou uma mudança
significativa nas imagens constituintes da representação profissional. Nesse mo-
mento acrescentaram-se aos valores tradicionais da docência os que destacavam
as virtudes morais e a vocação para o magistério, a necessidade de inovação e
de adaptação a uma sociedade onde se queria investir na industrialização, o que
significou naquele momento conceber o ensino como técnica cientificamente
fundamentada. Proposições dessa natureza incentivaram, por exemplo, a produ-
ção de obras nacionais, estrangeiras ou traduzidas sobre Psicologia, Filosofia,
História, Sociologia, além da legislação escolar, de programas para o ensino de

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disciplinas, de revistas especializadas, de manuais para professores, entre outros.


E, se o conjunto das fontes aqui delimitadas permite apreender essa dinâmica,
convém atentar para as condições de produção de cada uma delas, assinalando
suas especificidades e seus conteúdos. A seguir, o presente artigo trata de cada
um dos conjuntos de fontes aqui consideradas, ou seja, analisa primeiramente
as Atas dos Congressos Nacionais de Professores Primários ocorridos durante
a década de 1950, para depois examinar as produções dos Centros Regionais
de Pesquisas Educacionais e, finalmente, os conteúdos presentes nos manuais
pedagógicos publicados no período em pauta. O intuito, como já assinalamos,
é entender como esses discursos participam da construção de um modo de ser
professor pautado na racionalização do ensino.

A voz dos professores primários em seus Congressos Nacionais

Durante a década de 1950, as associações docentes estaduais começaram a


se articular em nível nacional por meio de Congressos Nacionais de Professores
Primários (LUGLI, 2002). Essas reuniões representaram um importante fórum
de discussão, bem como um espaço de lutas entre as diversas entidades para o
estabelecimento de um modelo associativo nacional, o qual passou a se configurar
já desde o primeiro evento. Realizado na Bahia em 1953, ele foi dedicado ao
debate de uma série de temas relativos à profissão, entre os quais se contavam
questões de formação, métodos de ensino, assistência aos alunos desfavoreci-
dos, aposentadoria etc. (FERREIRA JR., 1998). Entre as recomendações finais
deste primeiro Congresso encontravam-se várias indicações que revelavam o
projeto de uma organização nacional em defesa do magistério, numa tentativa de
articular as associações de professores primários estaduais. Tentava-se superar
os efeitos decorrentes da “dualidade de sistemas” educacionais (AZEVEDO,
1976) que se instituíra desde a Constituição de 1890 no país – ou seja, como o
ensino primário4 estava exclusivamente a cargo dos estados, deu-se origem a
sistemas diferenciados e independentes nesse nível de ensino, o que terminou
por gerar associações docentes limitadas ao nível estadual.
O próprio movimento de articulação nacional das entidades de professores,
portanto, colocava em primeiro plano a tensão entre os princípios de descen-
tralização e centralização administrativa no ensino, que, vale lembrar, estavam

4 A Lei Orgânica do Ensino Primário, vigente desde 1946, é a primeira a tentar regular, em
nível federal, esse grau de escolaridade.

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sendo extensamente debatidos nesse período nas instâncias legislativas nacionais,


tendo em vista o projeto da Lei de Diretrizes e Bases que seria promulgada em
1961 (RIBEIRO, 2000). Os professores primários reunidos nos I e II Congressos
Nacionais não permaneceram alheios a este debate – o tema da centralização
ou descentralização federativa do ensino fundamental foi uma das discussões
principais desses eventos, segundo observação de Amarilio Ferreira Jr. (1998).
Nesse contexto, a tese da “federalização do ensino primário”, que propunha uma
extrema centralização administrativa, parece ter causado polêmica, conforme
observações isoladas nas atas de reuniões de diretoria da SUPP (Sociedade
Unificadora do Professorado Primário da Bahia).
Segundo Antonino Rocha (1955, p. 2), os temários dos Congressos tra-
tavam de temas ligados ao ensino, mas não diretamente ao professor primário:
“o Professorado, como sempre, esqueceu-se de si mesmo e cuidou demais dos
problemas do ensino”. O objetivo último dos Congressos seria o de solucionar
os problemas do ensino primário, o que só seria obtido quando os professores
primários deixassem de ser estaduais para se tornarem nacionais, os programas
da escola primária fossem padronizados, o livro didático unificado, quando
houvesse assistência ao professor do interior e das zonas suburbanas da capital
e se proporcionasse ao professor “meio de vida condizente com a sua função, de
modo a não desviá-lo de seu mister para cobrir necessidades imprescindíveis”
(ROCHA, 1955, p. 2). Todas essas sugestões encontravam-se inter-relacionadas,
constituindo a proposta de federalização do ensino primário, que implicaria
na centralização pelo Ministério da Educação das contratações e remoções
para as escolas de todo o país “de acordo com as necessidades do ensino, sem
política, sem pistolão e sem o prestígio dos coronéis.” (ROCHA, 1955, p. 4).
A federalização era proposta não só como forma de solucionar a interferência
da política local na administração do ensino; também era pensada como um
meio de proporcionar aos professores uma certa mobilidade para compensar a
inexistência de uma carreira. Em palavras proferidas naquela ocasião:

Unificar o Professorado Primário no Brasil é abrir novos horizontes à


instrução popular e facultar ao professor o desintoxicamento causado
por um só ambiente, durante toda a vida funcional. É verdade que há
muito o Professor Primário, já vencido, cansado pelas injustiças sofridas,
traumatizado pelas preterições, não deseja outra coisa senão a aposenta-
doria, para descansar ou morrer. Mas existe o Professorado Novo, cheio
de ideais, que completa a falência de seu curso com a aquisição de livros,
estudos especializados, que acompanha através de noticiários o avanço
educacional no mundo de hoje, que tem vontade de se afastar um pouco

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do meio a que lhe conduzira um concurso inteligentemente feito, pago


com uma escola de praia deserta, que se unificado, o Professor poderia
ser removido para uma escola em outro estado, em uma cidade de hábitos
diferentes, de meio cultural diferente, e até de apoio diferente ao professor,
para depois de tudo isto, retornar ao seu Estado cheio de glórias para sua
gente (ROCHA, 1955, p. 2-3).

A proposta da federalização coloca em jogo as antinomias básicas do dis-


curso educacional do período: os aspectos regionais contrapostos aos nacionais e
a modernidade educacional à tradição, na eloquente imagem do professor velho
e cansado que só deseja morrer frente ao professor jovem, que realiza “estudos
especializados” e toma contato com o “avanço educacional”. Observe-se que,
nessa idealização dos termos da reforma educativa, a modernização não corres-
ponde somente ao jovem, ao novo, também se trata de estabelecer uma estrutura
de tipo burocrática que liberaria os professores das amarras políticas locais e
permitiria intervenções de caráter técnico no sistema de ensino e, portanto, mais
legítimas do ponto de vista dos agentes do campo educacional.
Ora, a esta idealização das competências técnicas com relação à moderni-
dade educativa, compreendida como eficiência do trabalho docente, contrapõem-
-se, no mesmo texto, observações bastante virulentas quanto à capacidade de
intervenção dos técnicos educacionais, ou seja, dos especialistas com formação
acadêmica que trabalhavam na produção de estudos e materiais de orientação
das tarefas realizadas pelos professores nas escolas. Essas críticas foram notáveis
no trecho que Antonino Rocha dedicou à padronização do programa de ensino:

Os técnicos são figuras decorativas e nada entendem, sendo-lhes comple-


tamente desconhecidos o ensino, as escolas e seus problemas. Conheço
técnicos que nunca foram a uma escola e vivem burocraticamente in-
formando papéis e verificando o meio de perseguir o Professor, e assim
continuam os programas oficiosos ou oficiais, sendo o melhor de todos
esses o aplicado pelo professor, como tenho observado (ROCHA, 1955,
p. 4-5, grifos nossos).

Note-se que a grande crítica do texto aos chamados “técnicos do ensino”


foi a sua distância com relação à realidade da sala de aula, vivida cotidianamente
pelos professores. Este tipo de comentário, presente em outras fontes, permite
entrever um choque de valores no campo educacional, que opunha a prática
(vivida pelos professores) à teoria educacional (representada pelos técnicos) e

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levou a considerar que a experiência cotidiana permanecia como um valor de


legitimação para o espaço dos educadores. Paradoxalmente, a prática cotidiana,
que constitui uma tarefa conservadora por natureza, coloca-se na voz dos pro-
fessores primários como condição para validar as mudanças necessárias para a
modernidade educativa. Observações dessa natureza motivaram reações por parte
dos técnicos educacionais, descritas no texto de Amarílio Ferreira Jr. (1998).
Segundo ele, Amaral Fontoura, um técnico em educação do Distrito Federal e
também autor de manuais pedagógicos publicados no período, reclamava, quan-
do do II Congresso, um “relatório básico” que estabeleceria os temas apropriados
para a discussão, delimitaria o espaço e os tópicos para a palavra autorizada
sobre educação, funcionando como um mecanismo de seleção dos mesmos:

Esse relatório básico seria uma espécie de “afirmação de princípios”, isto


é, uma exposição daqueles pontos já considerados pacíficos em educação.
Tal trabalho prévio evita que algum elemento mais inocente ou menos
avisado venha roubar o precioso tempo das comissões com teses pueris,
afirmando cousas já sabidas por todos, como por exemplo, “as vantagens
da merenda escolar”, ou apresentar teses errôneas, absurdas, inqualifi-
cáveis, como por exemplo, “a entrega do ensino primário ao governo
federal” (FONTOURA, Amaral. O congresso dos professores do Brasil.
Revista do Ensino, Porto Alegre, 32, maio 1954. Apud FERREIRA JR.,
1998, grifos nossos).

A tarefa de estabelecer o que já era considerado “ponto pacífico” em


educação, ou seja, aquilo que de tão óbvio para aqueles pertencentes ao campo
educacional não mereceria discussão (“teses pueris”) coube aos técnicos em
educação, detentores de maior legitimidade por sua formação especializada.
Trata-se, nos termos da teoria dos campos de Bourdieu (1996), do estabeleci-
mento da doxa, ou seja, dos consensos básicos que permitem o debate e a disputa
por posições de poder, em suma, do desenho do tabuleiro do jogo.
Não há notícia, na documentação obtida desse Congresso, a respeito da
adoção da proposta desse técnico de ensino; porém há indícios de tentativas de
disciplinar o debate que se efetivou, tendo em conta comentários presentes nas
atas de reuniões da Diretoria da SUPP: a professora Helena Maia, ao relatar suas
impressões do II Congresso, contava que em algumas sessões plenárias houve
“debates acalorados; achou no entanto que os técnicos em educação domina-
ram, porém em parte os professores primários adquiriram ótimos ensinamen-
tos.”(21/02/56, grifos nossos). Embora os técnicos em educação se impusessem

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nos debates, parecem ter tido certa dificuldade para controlar a apresentação
de teses, uma vez que o tema da federalização do ensino primário voltou a ser
apresentado no III Congresso Nacional, realizado em 1959 em Pernambuco.
Quanto a este último Congresso, consta nas atas da SUPP que:

A Profa. Helena Maia explica que o Congresso foi mais de ensino do que
de professor primário, pelos assuntos estudados e debatidos, por ter ficado
os postos-chave nas mãos dos técnicos cuja presença inibe o professor
primário de externar suas idéias. (ATAS do III Congresso Nacional dos
Professores Primários, 1959).

Essas palavras deixam claro que entre os professores primários o tema da


racionalização do ensino foi pauta entre as mais importantes. Por um lado, havia
a crença de que as competências técnicas permitiram superar as dificuldades
da profissão, pautando as ações nos estudos científicos e especializados. Mas,
por outro lado, não se pode ignorar os debates postos pela categoria docente
quando ela acusou os técnicos em educação de tomarem para si a tarefa de
ordenar o ensino, retirando dos professores as possibilidades de falarem e opi-
narem sobre seu próprio trabalho em sala de aula. Assim, a ênfase nos métodos
e técnicas de ensino apresentou uma dupla faceta nos Congressos Nacionais
dos Professores Primários: signos de eficácia do magistério, eles foram tomados
também como formas de controle do trabalho docente e de desvalorização de
sua prática cotidiana.

Dos pesquisadores para os administradores: as produções dos Centros


Regionais de Pesquisas Educacionais

Os cursos oferecidos pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de


São Paulo (CRPE/SP) entre os anos de 1957 e 1971 a administradores do ensino
primário representaram uma oportunidade ímpar para a análise do encontro
entre pesquisadores educacionais e aqueles encarregados de ordenar as práticas
escolares. Os textos presentes na revista mantida pelo CRPE de São Paulo, Pes-
quisa e Planejamento, deixam entrever, em alguns momentos, o diálogo que se
estabeleceu entre os professores/supervisores e os pesquisadores educacionais,
ou melhor, entre os agentes vinculados ao ensino primário e aqueles ligados à

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universidade e às instâncias de pesquisa. Nos relatórios de alguns dos cursos


oferecidos, bem como em conferências ou discursos pronunciados para os alunos,
é possível apreender indícios tanto da reação dos professores (na verdade, “au-
toridades escolares”) às tentativas de mudança cientificamente fundamentadas,
como das expectativas daqueles que as propunham e suas representações sobre
o público ao qual dirigiam esses cursos. O tipo de relação que se estabeleceu
no CRPE/SP entre esses dois grupos evidencia-se nos discursos de Fernando
de Azevedo publicados no primeiro número de Pesquisa e Planejamento. Dois
desses discursos constituíram a abertura e o encerramento do I Seminário sobre
o Ensino Primário5, intitulados respectivamente “Luz nova sobre os caminhos”
(AZEVEDO, 1957a) e “Verdade, vida e chama” (AZEVEDO, 1957b). No pri-
meiro destes textos, o Centro foi apresentado como um guia a serviço do bem
comum para os professores que, numa sociedade em mudança, com todos os
novos desafios que surgiam, deveriam buscar novas formas de atuação, cienti-
ficamente fundamentadas. Desse modo, as reformas educacionais necessárias
deixariam de ser objeto de disputa política para tornarem-se ações fundamentadas
em pesquisas, com levantamentos precisos de situações reais.
As pesquisas educacionais foram apresentadas como base imprescindí-
vel para a condução de políticas educativas, tendo em vista as características
da moderna sociedade industrial, superando a ineficiência e a improvisação,
assinaladas como marca dos momentos anteriores. No entanto, o discurso era
dirigido a administradores da educação pública com vários anos de carreira, ou
seja, justamente aqueles que ou pensaram ou colaboraram com as “reformas de
gabinete” – era necessário não desqualificá-los de saída, para não gerar resis-
tências ao trabalho que seria feito no Centro. Nesse sentido, foi especialmente
adequada para esse público a ressalva sociológica com relação às características
da sociedade tradicional: nesta, que era “menos complexa e diferenciada, e de
mais alto nível de integração” (AZEVEDO, 1957a, p. 17), as reformas educa-
cionais baseadas na opinião tinham mais chances de alcançar seus objetivos.
Por assim dizer, o improviso baseado na experiência pessoal dos legisladores
era compreensível numa situação anterior, mas não seria eficiente nas novas
condições, que se identificavam com o surgimento de uma “civilização de base
científica e técnica” (AZEVEDO, 1957a, p. 18), com uma estrutura de classes
mais complexa e diferenciada e a mudança de valores que isso implicava: era
preciso, na voz dos especialistas dos CRPEs, pensar novos modos de educar.

5 O Seminário aqui referido foi uma iniciativa do CRPE/SP em convênio com as Secre-
tarias de Educação de São Paulo e Mato Grosso, por meio do qual foram enviados professores e
autoridades do ensino para discutir questões educacionais, durante o mês de julho de 1957.

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Esse argumento, que percebe o momento presente como de mudanças pro-


fundas, de passagem da sociedade brasileira tradicional para o desenvolvimento
industrial, encontrava-se presente em grande parte dos artigos publicados em
Pesquisa e Planejamento e constituía um discurso comum aos pesquisadores
vinculados aos CRPEs. Nesse contexto, a educação da época era vista como
pertencente a esse passado subdesenvolvido que se pretendia superar – os
índices de exclusão escolar que as estatísticas da época mostravam compro-
vavam seguramente a inadequação dos métodos que se vinham utilizando até
o momento. Todo esse quadro fazia ver a necessidade de uma outra forma de
pensar a educação e, por conseguinte, uma nova forma de pensar o trabalho
docente. Fernando de Azevedo propunha a superação da caracterização do bom
professor como um “artista privilegiado” que vai agir sob “inspiração” por
um conjunto de conhecimentos objetivos que asseguraria a qualquer pessoa,
independentemente de suas características, um padrão mínimo de eficiência a
partir do conhecimento de “técnicas educativas precisas e das bases científicas
em que assentam” (AZEVEDO, 1957a, p. 22). Esse novo padrão de eficiência
que se estava propondo era algo que integrava as formas anteriores de conhe-
cimento pedagógico, baseadas principalmente na psicologia e no conhecimento
sociológico aplicado ao campo da educação: “Os professores, em geral, têm se
mantido até aqui indiferentes demais, se não hostis, a essa atitude crítica em
face de suas idéias e de suas técnicas, a esse espírito científico que é, em última
análise, espírito revolucionário” (AZEVEDO, 1957b, p. 105).
Via-se como a grande contribuição da sociologia para o ensino a possibi-
lidade de adequar as práticas docentes à realidade nacional – o conhecimento
das comunidades às quais as escolas serviam orientaria o trabalho docente.
Essa maior “sensibilidade social” que o professor eficiente deveria apresentar
foi exemplarmente descrita por Wilson Martins, em Pesquisa e Planejamento
(1957). Esse artigo citou extensamente a obra de Fernando de Azevedo para
falar do papel das ciências sociais na tarefa educativa e, ao final, deteve-se no
tema da formação de professores. Esta, segundo o autor do artigo, não deveria
se concentrar em aperfeiçoar os conhecimentos dos professores, ou seja, em
aumentar-lhes a “cultura” e sim em fazê-los sensíveis à atualidade, em “abrir-
-lhes os horizontes mentais” através das ciências sociais:

A Pedagogia já chegou à perfeição de estabelecer normas suficientemente


perfeitas no que se refere à coisa a ensinar, à maneira de ensiná-la e ao
tratamento do noviço chamado a aprendê-la. Mas, o que a Pedagogia
não pode fornecer é a inteligência criadora indispensável ao mestre, so-
bretudo quando tem que repetir conhecimentos elaborados por outros. A

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integração da escola na comunidade, o senso realístico que deve manter


em face do seu pequeno mundo para poder transmiti-lo aos seus alunos, a
compreensão dos diversos “homens brasileiros” e dos diversos Brasis que
impõem, por vezes, atitudes mentais completamente diversas – tudo isso
é a contribuição pessoal e intransferível do mestre na obra da educação
(MARTINS, 1957, p. 50).

Falava-se de professores nesses textos, mas o público a que se dirigia parte


substancial dos cursos e seminários do CRPE era composta por inspetores esco-
lares, delegados de ensino, diretores, administradores escolares... enfim, aquele
grupo que constituía os escalões médios e superiores na hierarquia do sistema
de ensino brasileiro. Conforme palavras de Fernando de Azevedo, esse grupo se
compunha de líderes regionais, uma “elite pedagógica esclarecida” através dos
quais se daria um efeito multiplicador dos conhecimentos transmitidos no Centro,
gerando a transformação necessária das práticas escolares. No entanto, em vários
textos relativos a cursos para este público mencionavam-se as dificuldades e
resistências encontradas – os cuidados já citados anteriormente para não ferir os
brios da assistência faziam-se presentes no discurso de abertura do Curso para
Delegados de Ensino. É inevitável pensar em cuidados dessa natureza quando um
discurso se inicia com observações do tipo “somos estudantes por toda a vida”,
mas para além disso, a construção do argumento que percorre todo o texto faz
pensar sobre o gênero de discordância a que responde. Durante todo o artigo,
Fernando de Azevedo falava da integração entre teoria e prática educacionais,
identificando os pesquisadores do CRPE com a teoria e os delegados de ensino
que o ouviam com a prática.

Estamos aqui reunidos para um diálogo, que esperamos seja fecundo,


entre a teoria e a prática, entre a reflexão apoiada na experiência e a
pesquisa científica, numa série de conversações entre amigos, possuídos
do mesmo espírito público e do mesmo amor entranhado pela educação
(AZEVEDO, 1957c, p. 31).

As considerações teóricas sobre as interdependências entre teoria e prá-


tica que se seguiam a esta afirmação serviam a um argumento conciliador, que
procurava integrar as contribuições daqueles que reconheciam a experiência
no trato das questões de ensino como capital simbólico no campo educacional
às concepções que colocavam os valores da pesquisa científica e, portanto, a
formação especializada, em primeiro plano.

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Teoria e prática são elementos que a incompreensão procura dissociar,


mas que afinal se completam e mutuamente se fecundam. [...] Se a técnica
sem a teoria corre o perigo de esterilizar-se e de se mecanizar, a teoria
sem a prática arrisca-se, também ela, perdido o contato com a realidade,
a perder os seus instrumentos de controle e de verificação. [...] Mas, de
outro lado, as novas reflexões teóricas e os debates à luz de idéias e teorias
poderão também esclarecê-los a respeito da necessidade de revisão de
conhecimentos para uma renovação das técnicas nos planos da prática
do ensino, da orientação dos trabalhos escolares e da reestruturação dos
serviços administrativos (AZEVEDO, 1957c, p. 32).

Ou seja, a própria forma como se estruturava o trabalho docente nesse


período, a partir de valores tradicionalmente vinculados à experiência, no sentido
de que um professor seria tanto mais competente quanto maior fosse o seu tempo
de exercício da atividade, era um obstáculo à eficiência do ensino e, portanto,
necessitava ser modificada. O curioso com respeito a essas modificações que se
propunham era o seu caráter de integração com relação a valores que poderiam
ser identificados ao passado – não se tratava de substituir o sacerdócio pela
técnica, de garantir a eficiência do sistema devido à impessoalidade do traba-
lho que deveria ser executado e sim de integrar a uma profunda convicção da
importância do próprio trabalho os instrumentos que a pesquisa científica de
cunho sociológico poderia aportar.

A formação da “personalidade” do mestre e educador, encarada sob todos


os aspectos – moral, espiritual e intelectual, deve, pois, a meu ver, ascen-
der ao primeiro plano, porque é em torno dela que gravita toda a obra de
educação e dela é que partem e irradiam as mais poderosas influências,
tão vivas que, decorridos os anos, elas continuam a exercer-se pela própria
projeção, sobre o antigo discípulo (AZEVEDO, 1957c, p. 34-35).

Os discursos dos CRPEs aqui ilustrados a partir dos artigos encontrados


em Pesquisa e Planejamento podem ser tomados como o centro que estrutura o
discurso de cientificidade e racionalização técnica do trabalho docente. Foram
os pesquisadores que produziram esse discurso e procuraram disseminá-lo por
meio dos administradores escolares, ou seja, os profissionais que cuidavam da
supervisão da prática pedagógica realizada em sala de aula. Suas vozes tam-
bém foram incorporadas nos manuais pedagógicos, importantes instâncias de
produção e circulação do conhecimento, pois foram livros usados na formação

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de professores primários e, portanto, das concepções de magistério construídas


no início da carreira. Convém, portanto, atentar para os discursos construídos
nesses livros.

Dos especialistas para os futuros professores: os manuais pedagógicos

E os manuais pedagógicos? De que maneira enfatizaram os métodos e


técnicas de ensino no período que nos interessa aqui? Temos insistido nessas
perguntas porque elas ganham dimensões especiais no caso desses livros,
entendidos como “produções intermediárias” no campo educacional (SILVA,
2005). Esses textos foram leituras obrigatórias em Escolas Normais. Portanto,
não estamos atentando para regulamentações oficiais do ensino nem para re-
latos de professores sobre suas experiências cotidianas. O lugar dos manuais
pedagógicos foi outro, eles foram “mediadores” entre as prescrições do Estado,
os saberes científicos e as práticas das salas de aula. Eles também não foram
incluídos entre as obras mais reconhecidas da educação. Nota-se uma certa
hierarquia na literatura da área, dividindo as produções em dois níveis: um mais
legítimo, ligado aos saberes teóricos, e outro mais relacionado ao exercício do
magistério (DEPAEPE, 2000). Desde quando começaram a ser escritos, em
finais do século XIX, os livros de formação explicaram as ideias dos “grandes
pensadores”, dos movimentos pedagógicos, apresentando-se muitas vezes em
seus prefácios como escritos “modestos” ou “nada originais” (SILVA, 2005).
Diferentemente dos periódicos, os livros de formação não foram espaços de
debate, já que criaram textos fundamentalmente explicativos. Esses títulos foram
usados desde o século XIX nas mais diversas partes do mundo: em Portugal, no
Brasil (SILVA, 2005) e em outros países como a França (ROULLET, 1998) e
a Espanha (FERNÁNDEZ; SALVADO, 1998; PINTADO, 2000), onde houve
esforços para ampliar as oportunidades escolares. Tais impressos foram leitura
obrigatória, sobretudo entre aquelas pessoas que não tiveram acesso a graus
mais elevados de instrução (NÓVOA, 1987) e que, para ingressarem na carreira
docente, limitaram seus estudos ao âmbito das Escolas Normais ou do preparo
para concurso de admissão na carreira do magistério. Os manuais explicaram
as atribuições do docente, as atividades do aluno, o funcionamento das aulas, a
organização dos conteúdos, os métodos didáticos. Durante o período que aqui
nos interessa, que corresponde às décadas de 1950 a 1970, os títulos publicados
enfatizaram os métodos e técnicas de ensino (SILVA, 2005).

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A metáfora da “pedagogia dos céus” e da “pedagogia da terra” foi em-


blemática de uma preocupação comum no período e apareceu num manual
pedagógico publicado entre as décadas de 1950 e 1980, o Didática mínima,
de Rafael Grisi (1963), um dos títulos brasileiros mais lidos por normalistas e
estudantes de outros cursos de formação docente. Ao apresentar o seu livro, o
autor criticou a literatura educacional por reunir produções desiguais, opondo
a chamada “Pedagogia das Cátedras”, aquela que, em suas palavras, anda “com
a cabeça nas estrelas” e “nada tem que ver com o que se passa efetivamente
todos os dias dentro das salas de aula”, com a “Didática usual”, caracterizada
por “manter os pés no chão”, ou seja, por lidar diretamente com a rotina das
atividades escolares (1963, p. XI e XIII). Para Grisi, havia dois tipos de profis-
sionais. De um lado, os “professores que, tendo tido preparação pedagógica, não
se puderam valer dela para a solução dos problemas com que se defrontaram
em suas relações com os alunos e, por isso, voltaram definitivamente as costas
às ‘teorias’ dos pedagogos” (GRISI, 1963, p. XII). De outro lado, os “docentes
[…] numa aprendizagem didática puramente empírica, via de regra, defeituosa
mas, de qualquer modo, suficiente ‘para o gasto’” (GRISI, 1963, p. XII).
Sendo assim – prosseguiu o autor – era preciso encontrar uma “Didática
de emergência ou de transição”, uma espécie de caminho “intermediário” as-
sumido pelo seu manual ao apresentar os saberes tidos como essenciais para
a profissão docente, originariamente feito por vários pedagogos, psicólogos,
biólogos, sociólogos, entre outros. Mediante a metáfora, estabeleceu-se uma
hierarquia entre os autores da bibliografia selecionada e sintetizada, os quais,
como sugere a analogia, dominaram a “pedagogia dos céus”, e os professores
em suas práticas diárias, desenvolvendo a “pedagogia da terra”. Na verdade, a
Didática mínima realizou uma prática comum a todos os manuais pedagógicos
e é tomada aqui como um caso exemplar. Nesse sentido, foram comuns nos
prefácios desses livros os termos: “compêndio”, apresentado, por exemplo, em
Manual de pedagogia moderna (BACKHEUSER, 1954); “coletânea” ou “texto
básico”. Planos e métodos de ensino transpareceram nos nomes e índices dos
manuais publicados entre os anos 1950 e 1960. Outro aspecto muito notável
foi que apenas nesse momento esses livros começaram a ser assinados também
por algumas professoras, embora a maior parte dos escritores tenha continuado
a ser composta por homens. Isso esteve relacionado à participação feminina no
mercado de trabalho e no campo educacional que, segundo Luiz Pereira (1969),
em meados do século XX foi ampliada pela expansão da rede escolar pública
paulista e manifestou a crescente profissionalização das mulheres. Embora elas
fossem a maioria no corpo docente, encontraram-se em minoria nos cargos
de direção e controle do sistema. Nos anos 1960 começou a se intensificar a
profissionalização das professoras pela ascensão às posições de direção, pois,

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como explicou o autor, “a esmagadora maioria feminina no corpo docente tende


a limitar cada vez mais as possibilidades de o recrutamento de diretores incidir
majoritariamente numa minoria docente masculina em decréscimo” (PEREIRA,
1969, p. 103). Geralmente, essas mulheres que publicaram textos de cursos para
o magistério optaram pelo regime de coautoria e trataram de questões ligadas ao
trabalho em sala de aula, sugerindo procedimentos, regras e atividades a serem
reproduzidas nessa situação.
Esses profissionais enfatizaram em seus textos a elaboração de planos de
aula, o que eles acreditaram ser útil para o bom encaminhamento das atividades
escolares. A ideia de planejamento – tema comum entre manuais pedagógicos
desde finais dos anos 1940 e início dos anos 1950 – é aqui entendida antes como
um ato político do que como um mero instrumento técnico, consistindo num
“processo diretor, onde fossem estabelecidas metas, etapas, objetivos, índices
capazes de estimular o desenvolvimento econômico do país” (LIMA, 1978, p.
107). O presidente Juscelino Kubitschek investiu na indústria nacional e esta-
beleceu o Programa de Metas, dentre as quais a educação constou como um
dos objetivos porque se acreditou ser necessário formar profissionais aptos às
modernas atividades de produção. O planejamento articulou-se a uma política
governamental, sugerindo uma racionalização do ensino em nome do crescimen-
to econômico brasileiro. Isso motivou nos autores dos manuais pedagógicos a
exposição de métodos e técnicas a serem reproduzidos pelo professor no preparo
e encaminhamento de suas aulas. Essa ênfase, também ilustrada na epígrafe
com a qual iniciamos o presente artigo, fez da sala de aula o espaço nuclear
de trabalho do professor. A docência moderna vem se consolidando, assim, em
orientações para o estabelecimento de rotinas organizacionais relativamente
estáveis e que até são facilmente reconhecidas entre nós.

Considerações finais

Nos discursos oficiais, dos especialistas em educação ou dos professores


primários produzidos em meados do século XX, foi notável o consenso em afir-
mar o valor dos métodos e técnicas de ensino. Mas o próprio lugar de produção
de cada um desses discursos fez surgir também divergências. Para os docentes,
a perspectiva mais racional de seu trabalho poderia garantir orientações cienti-
ficamente fundamentadas e uma valorização de seu trabalho. Diferentemente,
para os especialistas e administradores das escolas, os métodos e técnicas
tornariam mais eficazes os esforços de ordenação do trabalho em sala de aula e

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nos sistemas de ensino. Pode-se identificar claramente, nos três contextos assi-
nalados, a presença de um conflito entre as categorias da “teoria” e da “prática”,
que corresponde a lugares diferentes do campo educacional, num momento
em que este vivia um processo de mudança em seus padrões de legitimidade.
Trata-se de um conflito social que encontra expressão nas formas de produção
e circulação do conhecimento do campo, como se vê na delimitação dos “temas
autorizados” nos Congressos Nacionais de Professores Primários. Estabeleceu-se
uma hierarquia, na qual tiveram primazia os “técnicos em educação” que foram
também funcionários do Estado – a expressão dessa contradição encontra-se no
espaço criado pelo discurso de nível intermediário dos autores dos manuais, que
procuraram conciliar os dois polos do conhecimento sobre ensino.
É possível identificar no entrecruzamento dos textos tomados aqui para
análise um duplo movimento: a progressiva adesão aos valores vindos de uma
visão técnica do ensino como verdades inquestionáveis e uma diminuição da
rejeição (ao menos pública) da teoria educacional pelos professores tradicionais,
num movimento que termina por configurar um tipo diferenciado de conhe-
cimento pedagógico. Este conhecimento foi se constituindo nos manuais de
formação e não se identificou nem às “teorias” distanciadas da sala de aula nem
aos elementos da vivência do trabalho cotidiano. Trata-se de uma formulação
híbrida, visando ao consenso, que marcou fortemente tanto a produção na área
educacional como as expectativas dos professores com relação às contribuições
da pedagogia para o cotidiano escolar. Convém refletir sobre essas formas de
configuração dos conhecimentos pedagógicos, pois a familiaridade de determi-
nadas representações da docência pode conduzir a uma ideia equivocada, de que
elas sejam naturais, quando na verdade correspondem a discursos construídos
em meio a discussões e embates no campo educacional.

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