2022 - Os Fazedores de Letras - Jasão

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30/08/2022 14:40 O “valeroso” Jasão de Antônio José da Silva: representações do mito, Carlos Gontijo Rosa

Revista dos Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade


de Lisboa

    

EDIÇÃO 88 – MITOS E LENDAS PUBLICAÇÕES E CONFERÊNCIAS 

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O “VALEROSO” JASÃO DE ANTÔNIO JOSÉ


DA SILVA: REPRESENTAÇÕES DO MITO,
CARLOS GONTIJO ROSA
 28/02/2022  Uncategorized  Deixe um comentário

[Revisto por Márcia Marto]

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Este artigo centra sua discussão na peça Os encantos de Medeia, escrita


pelo dramaturgo Antônio José da Silva e representada no Teatro do
Bairro Alto de Lisboa, Portugal, em 1735. Antônio José, também
chamado “o Judeu”, nasceu no Rio de Janeiro em 1705 e mudou-se para
Lisboa com a família aos sete anos, lá permanecendo até sua morte,
em 1758. Foi vítima do Santo Ofício da Inquisição, julgado por
judaizante, de onde vem sua alcunha. Deixou oito “óperas joco-sérias”
de autoria incontestável, todas representadas no Teatro do Bairro Alto
na década de 1730, dentre as quais consta Os encantos de Medeia.

O texto dramático busca referências ao mito grego da “bárbara


feiticeira”2 Medeia, cuja extensa mitologia conta com diversas histórias
e cruza a de diversos heróis, como Jasão, Egeu e Teseu. Há a presença
de Medeia em compêndios mitológicos clássicos, como nas
Metamorfoses de Ovídio (8 d. C. ), nas Fábulas de Higino (século I d. C. ) e
na Biblioteca de Apolodoro (século I d. C. ), além de textos narrativos
como Os argonautas, de Apolônio de Rodes (século III a. C. ) e peças
teatrais, como as tragédias de Eurípides (431 a. C. ) e de Sêneca (41 d. C. )
ambas intituladas Medeia. Na maior parte das vezes, como não pode
deixar de ser no mundo antigo, a personagem é acompanhada na
dramatis personae por Jasão, que participa como herói de dois dos
quatro ciclos “medeicos”3. Especificamente Os encantos de Medeia lança
mão da primeira parte da história da personagem, quando Jasão vai à
Cólquida buscar o Velocino de Ouro, Medeia se apaixona por ele e os
dois fogem levando consigo o tesouro.

Ao tratarmos do teatro de cariz mitológico escrito por Antônio José da


Silva, não podemos deixar de considerar duas questões importantes. A
primeira dela diz respeito à releitura de mitos gregos, que segue uma
linha de raciocínio representada, na Península Ibérica, principalmente
por Pérez de Moya (Philosofia secreta de la gentilidad, de 1585) e Baltazar
de Vitoria (Teatro de los dioses de la gentilidad, de 1676): são os “Ovídios
moralizados”. Assim, a mitologia grega é utilizada na escrita literária
com o sentido de ornamento4 – motivo pelo qual dizemos que Antônio
José altera os acontecimentos das narrações mitológicas,

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transformando a história de Medeia em comédia (Os encantos de


Medeia, de 1735), a de Teseu numa história de amor (O labirinto de
Creta, de 1736) ou a de Anfitrião em comédia de costumes (Anfitrião, ou
Júpiter e Alcmena, de 1736).

Além disso, resta dizer que o dramaturgo português escrevia para um


teatro dito “comercial”5 e que ao público popular setecentista lisboeta
ainda agradavam muito as comédias espanholas do Século de Ouro
(século XVII). Assim, não é possível falar das peças mitológicas de
Antônio José sem passar pelas releituras espanholas do mesmo mito,
no caso, Lope de Vega, Calderón de la Barca e Francisco Rojas, que
tiveram grande circulação em Portugal mesmo após a Restauração, em
1640. 6

Um Jasão ibérico

Se o caráter de Medeia é amplamente explorado por autores desde a


Antiguidade clássica (GONTIJO ROSA, 2013), a personagem Jasão, central
em vários mitos, é escassamente descrita de acordo com os nossos
padrões para caracterização de uma personagem.7 Sua trajetória na
mitologia grega segue, em grande parte, a de Medeia, desde a chegada
à Cólquida até ao assassínio dos filhos. Mas Jasão, bem como Medeia,
tem uma história para além desta. Ele é filho de Éson e um cidadão da
Tessália, que vive junto ao pai, mãe e irmão, exilados por uma disputa
familiar ao trono tessálio entre seu pai e Pélias.

Pélias, já rei, recebe uma profecia que, grosso modo, diz que ele seria
morto por Jasão.8 Cria, portanto, a prova da busca do carneiro de ouro,9
com a intenção de que o herói morra na empresa. Durante todo o
trajeto da nau Argos até a Cólquida, contado nos cantos I e II do poema
épico Os Argonautas, embora seja o empreendedor e o comandante do
grupo, Jasão tem pouca participação efetiva e seu caráter é descrito de
maneira genérica. Por vezes, temos a impressão de que Jasão serve à
obra como o modelo ideal de herói, cumpridor de todos os deveres de
um bom cidadão, dos deveres religiosos, de hospedagem, de comando e

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de vida social grega do período; mas sem qualquer hybris ou outro


excesso que possa ser malvisto pelos deuses. E então temos seu
encontro com Medeia.

Após ser deixado por Medeia, em Corinto, sua história é pouco


lembrada,10 justamente pelo caráter completamente banal que adquire,
levando-nos a crer que sua heroicidade e o destaque que adquire na
mitologia grega deve-se, sobremaneira, em comparação às outras
personagens hybrizontes11que atravessam o seu destino.

Ele é tido como um bom herói, temente aos deuses e cumpridor dos
ritos e das atribuições de sua posição de príncipe e herói. Mas, em
alguma medida, sua temeridade e precaução extrapolam o sentido de
cuidado e, no mito e na fábula do dramaturgo português Antônio José
da Silva, o Judeu, esbarram a covardia,12 que pode ser explorada na
constituição de um caráter – especialmente num que possa ter traços
cômicos, como é o caso em Os Encantos de Medeia.

Através desta personagem, podemos explorar o mundo da mentira e


ilusão enganadora – le monde du mensonge et de l’illusion trompeuse –
que Pierre Furter aponta acerca das óperas de Antônio José.

Na peça do Judeu, Jasão é um mentiroso nato, como pode ser visto logo
nas primeiras cenas. É explicitado, na primeira ária cantada por Jasão
– à guisa de exposição13 –, o real motivo de sua expedição até Colcos:

Jason14 (Recitado)

Felices argonautas valerosos,

que rompendo o cristal do falso argento,

apesar das violências de Neptuno

indignado e soberbo,

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aportámos enfim com fausto auspício

nesta ínclita Colcos soberana,

onde se guarda o célebre tesouro

do áureo Velocino, a cuja empresa

de nossa amada Pátria nos partimos;

e se quisera a sorte

que com feliz progresso conquistasse

este rico despojo

para glória imortal da grega prole!

[. . . ]

Ária

Não vos mova nesta empresa

nem o áureo Velocino,

nem de Colcos a riqueza;

seja só vosso destino

a cobiça do valor,

que num peito que se inflama

por ganhar eterna fama,

o vencer é o bem maior (SILVA, 1957, p. 7-8).

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Ao fim desta, no entanto, entra o enviado colco Telemon, a quem Jasão,


duas réplicas depois, diz: “Jason: Valeroso soldado, dizei ao vosso Rei
que a minha vinda a este porto foi casual, por impulso de uma grande
tormenta e tempestade; e assim lhe segurai que venho de paz e que
pessoalmente irei à sua presença oferecer-me ao seu serviço.” (SILVA,
1957, p. 9).

Além disso, reafirmando15 – caso o público ainda esteja em dúvida


quanto à índole da personagem –, Jasão mente também na segunda
cena. Não apenas uma mentira súbita, como a dita ao emissário, mas
uma história elaborada, intencional de quem pretende enganar
deliberadamente:

Jason: Como não ignorais, Senhor, as guerras que há entre os reis de


Creta e Corinto, por ganhar fama e exercitar-me nas armas saí com
esta armada, para socorrer a El-Rei de Corinto, tanto pela obrigação de
parentesco, como porque a fortuna se lhe vai mostrando adversa; e
assim é necessário suspender o impulso da sua roda com o peso das
minhas armas, pois ajudar aos que persegue a fortuna sempre foi
brasão dos reis da Tessália, e uma grande tempestade me precisou a
arribar a este porto; mas agora vejo que há tempestades que são
bonanças.

Sacatrapo: Arre lá, como mente tão airoso, e nas bochechas de um rei!
(à parte) (SILVA, 1957, p. 13).

Sacatrapo, em sua fala, expõe uma importante característica do caráter


de Jasão, que estará presente em toda a peça e que corrobora a teoria
de Furter: a mentira, o engano deliberado, como pode ser visto no
trecho seguinte: “Os heróis de A. J. da Silva frequentemente feitos da
mesma matéria que Jasão, que é o típico mentiroso que não tem medo
de deliberadamente reafirmar seu perjúrio16” (FURTER, 1964, p. 65).

Esta é, por si, uma potencialização daquilo que podemos encontrar na


épica clássica que narra as aventuras de Jasão. Em Os Argonautas, ele

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precisa jurar o seu amor a Medeia várias vezes, inclusive com


testemunhas, para apaziguar o coração da jovem17. Mais interessante
se pensarmos que a paixão de Medeia foi provocada por Eros (RODES,
III, 275-287), mas o amor que Jasão diz sentir (RODES, IV, 92-98) é fruto
de sua própria pessoa:

el corazón del Esónida mucho se alegraba. Y al punto a ella [Medeia],


que estaba postrada a sus rodillas, alzándola suavemente, le habló con
ternura y la animó:

“Infeliz, que el propio Zeus Olímpico sea testigo del juramento y Hera
Conyugal, esposa de Zeus: de veras te instalaré en mi morada como
legítima esposa, cuando lleguemos de regreso a la tierra de la Hélade”18.

Assim como na fala do narrador, teoricamente onisciente, de Apolônio:


“No deseaba el héroe Esónida celebrar su boda en el país de Alcínoo
[Esquéria, terra dos feácios], sino en el palacio de su padre tras volver a
Yolco de regreso. Así lo esperaba también la propia Medea” (RODES, IV,
1160-1164).

Higino, nas Fábulas, pelo contrário, narra que “por incitação de Vênus,
Jasão se apaixonou por Medeia”19 (HYGINUS, XXII). Neste caso,
poderíamos entender as ações enganadoras de Jasão como sua própria
vontade, em contraposição à vontade divina.20 No mythos contado por
Antônio José, Apolônio de Rodes ou mesmo por Eurípides (Medeia), não
há qualquer indício de um deus agindo na vontade do herói.

Em Os Encantos de Medeia, as tramas heroicas são transformadas pelo


Judeu em intrigas amorosas (GONTIJO ROSA, 2019). Assim, o desejo de
Jasão pelo velocino é confundido por amor a Medeia, sendo a feiticeira
apenas um meio para a conquista do seu verdadeiro objeto de
interesse. Quando consegue o velocino, Medeia passa a ser um
transtorno aos seus planos futuros. Jasão sabe, desde o início, que seu
amor por Creúsa supera o que sente por Medeia21 e mantém a mentira
até ter o Velocino em segurança. Na cena V da parte I, em que Jasão

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mata o dragão e consegue o carneiro com a ajuda de Medeia, ainda


sustenta sua falsidade:

Jason: Medeia, não sei com que te hei-de gratificar tantas finezas,
quantas por mim tens feito. Sacatrapo, não deixes ficar o Velocino. (à
parte).

Medeia: Adorado Jason, se já conheces o meu amor, peço-te que não


sejas ingrato a tantos extremos.

Jason: De que sorte queres que te segure a minha constância?

Medeia: Com a mesma constância com que meu peito te adora.

Jason: Assim o prometo.

Medeia: Ditosa já me posso chamar com tal ventura.

Jason: E eu feliz. Ai, Creúsa, quando verdadeiramente sem sustos


descansarei em teus braços? Pois só tu me roubaste os meus sentidos!
Sacatrapo, leva o Velocino; não o deixes! (à parte).

[. . . ]

Medeia: Ai, Jason, dize-me: estarei certa na tua promessa?

Jason: Vive descansada, Medeia, que não faltarei à minha palavra


(SILVA, 1957, p. 40-41, grifo nosso)

Não é o pathos de Medeia que desencadeia a ação trágica da peça de


Antônio José, mas as mentiras de Jasão. O caráter de Medeia é
apresentado como irascível desde o início. É a ilusão que Jasão
engendra para conquistar o velocino, associada, evidentemente, aos
caracteres envolvidos na ação, que desencadeia a catástrofe da peça.
Um exemplo desse fato é quando Arpia tenta extrair de Jasão uma
declaração de amor por Medeia (parte I, cena III):

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Arpia: Ora, Senhor, nós, as velhas, sempre somos curiosas de saber.


Não me dirá que lhe tem parecido esta terra?

Jason: Por certo que é uma grande Corte, e bastava ser oriente de tantos
sóis, quantos nela resplandecem.

Arpia: Não há dúvida que o da Senhora Medeia excede a todos os astros.

Sacatrapo: Que fora, se ele vira o sol da Índia!

Jason: Quem pode duvidar que minha Senhora Medeia é a Fénix da


formosura?

Arpia: Certamente que estava aqui um bom casamento; porque ela é a


herdeira deste reino, e vós, Senhor, também o sois do vosso, e tudo se
podia ajuntar. E que lindos filhos teriam!

Jason: Se eu me não achara indigno dessa honra, talvez que a


procurara; mas não quero incorrer na censura de Faetonte (SILVA, 1957,
p. 19-20).

Nesta cena, até Arpia entende que Jasão está claramente sendo galante,
mas no sentido de, com a sua esquiva, não ofender a Medeia, que,
ouvindo tudo dos bastidores, na fala seguinte irrompe em cena e
declara o seu amor por Jasão.

Ainda na peça Os Encantos de Medeia, a caracterização de Jasão como


mentiroso e enganador não afeta a nossa visão do mesmo como herói,
inclusivamente em falas como esta:

Medeia [embuçada]: [. . . ] E dize-me: Então há-de deixar a Medeia.

Sacatrapo [pensa que fala com Creúsa]: Porquê? Ele a pariu?

Medeia: Ainda assim parece ingratidão.

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Sacatrapo: Qual ingratidão, Senhora? Não me quer crer? Ele nunca teve
amor a Medeia.

Medeia: Pois quem o obriga a fazer tantos extremos por ela?

Sacatrapo: Nunca ouviu dizer que quem ama a Beltrão, ama o seu cão?
Pois meu amo amava a Medeia por amor do Velocino; e, como este já o
tem na mão, acabou-se o amor (SILVA, 1957, p. 60).

Graças à habilidade do Judeu em manejar os elementos e os diálogos,


de forma a escamotear esta faceta do herói, sem, contudo, desprezá-la,
criamos certa empatia pela personagem. Jasão – bem como outros
protagonistas da dramaturgia do Judeu – justificam a sua mentira. Na
primeira cena, o Esonida diz a Teseu o seguinte: “Jason: Teseu,
enquanto descansam as armas, é preciso que peleje com astúcias o
entendimento” (SILVA, 1957, p. 9).

Se tomarmos o texto de Baltasar de Vitória como representativo de uma


coletânea do pensamento vigente, é significativa a afirmação:

Todos le condenan a Jason de ingrato, y assi lo pone Textor entre los


ingratos: fuelo con Isifile, porque haviendole dado tanta buena acogida,
y teniendo de ella dos hijos, nunca mas hizo caso de ella, con ser ellos
lazadas, y ataduras, que suelen obligar a los mas ingratos. Fuelo con
Medea, pues habiendo ella usado de tantas finezas con el, perdiendo
padre, madre, hermano y Reyno, y haviendole sacado de las mayores
dificultades, donde tenia jugada, y perdida la vida, de nada de esto se
acordó para no dexar a la desdichada Medea(VITORIA, 1676, p. 295, grifo
nosso).

Retomamos, portanto, à índole fraca e volúvel de Jasão, apresentada de


forma direta na narrativa de Baltasar de Vitória, mas também
presente, mesmo que de forma mascarada ou sutil, na ópera joco-séria
de Antônio José e na narrativa de Apolônio de Rodes. Ao contrário, nos
textos espanhóis de Lope de Vega e Calderón de la Barca, signatários
das mesmas preceptivas do dramaturgo português, não é clara esta
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sutileza do caráter do herói, uma vez que, acreditamos, o imaginário


destes autores encontra-se muito mais comprometido com o modelo
de escrita tragicômico e com a afirmação de uma nobreza de espírito
que seja representativa da própria nobreza espanhola.

Em El vellocino de oro, Lope de Vega apresenta-nos um galán nos seus


moldes tradicionais. Galante, pronto a proferir finezas amorosas,
discreto, linajudo,22 valente e generoso,23 Jasão está em conformidade
com os preceitos heroicos do momento e com a monarquia reinante na
Espanha. A atribuição de aspectos negativos ao caráter de Jasão,
portanto, não seria coerente na lógica interna da ação da peça
espanhola.

O Jasão lopesco apresenta poucas de suas características habituais,


mesmo realizando basicamente o mesmo conjunto de ações que nas
outras obras, sejam narrativas ou dramáticas. Se, nas obras clássicas
ele é aquele herói prudente, sempre ponderado em relação às medidas
a tomar em qualquer situação, chegando às vezes a sê-lo demasiado,
nesta peça ele também é abrasado pelo amor que incendeia Medeia, a
ponto de dizer a Teseu:

Jasón: Yo voy en él confiado,

pero más en quien adoro,

mayor vellocino de oro

si le llevo conquistado.

Y advierte, amigo Teseo,

que estén a punto las naves,

que con embates suaves

surquen el golfo a Nereo,

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porque éste es menor trofeo

que llevar roubada a Grecia

la prenda que el alma precia

como más alto blasón,

por quien mi loca afición

hasta la vida desprecia (VEGA, 1999, v. 1948-1961).

Assim, Jasão é retratado pela Fénix como um verdadeiro apaixonado e


sua busca não é pela conquista do velo, senão de Medeia. A fala
conclusiva de Amor também corrobora uma visão mais otimista do
futuro da relação entre Jasão e Medeia.

Amor: [. . . ] amor os corona, y quiere

mi madre, la hermosa Venus,

que por amantes dichosos

tengáis lugar en su templo;

y asistir a vuestras bodas

con Lucina e Himeneo,

para daros sucesión

que dure siglos eternos(VEGA, 1999, v. 2208-2215).

Já na Jornada Primera de Los tres mayores prodigios, de Calderón de la


Barca, a personagem de Jasão tem pouca influência direta no enredo,
sendo Medeia a protagonista absoluta da comedia famosa. Ele é um
enamorado, que realiza todos os caprichos exigidos pela amada.
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No texto de Apolônio de Rodes, Jasão não é dito ingrato, mentiroso ou


covarde, mas a recepção da época de sua escrita, bem como no período
de representação das tragédias gregas, conhecia de antemão todo o
mito, ou seja, sabe-se que Jasão não cumprirá o juramento que faz no
Canto III. Também no Canto IV, quando da morte de Apsirto, irmão de
Medeia, o herói grego demonstra um caráter pouco ativo, pois é ela
quem tem a ideia do assassinato e quem leva o irmão até ao local,
sendo a parte de Jasão unicamente atacar Apsirto pelas costas, quando
ele se encontra desarmado e distraído pela conversa da irmã.

Acreditamos que a pouca valentia de Jasão tem efeito redobrado no


receptor de Os Argonautas porque, como já dito, o seu mito faz parte do
conhecimento popular e não pode ser simplesmente esquecido ao se
contar uma história a partir de um novo ponto de vista. Apolônio não
estabelece um outro procedimento para Jasão quando chega a Corinto
com Medeia. O autor conta o início do mito de forma diferente, mas
deixa a restante história inalterada.

Já no Teatro de los dioses de la gentilidad, Baltasar de Vitoria acrescenta


uma carta atribuída a Hipsípila e endereçada a Jasão:

“Adonde está la fé? Do la promessa?

Tus juramentos donde se ausentaron?

Tu palabra, Jason, tan poco pesa?

Adonde están las hachas que alumbraron

En mi vida, alumbrarán en mi entierro?

Mejor, pues, viva entonces me enterráran”.

Y mas adelante se quexa de las palabras mal cumpridas que le dio,


diciendo:

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“Mobilis Aesonide, vernaque incertior aura.

Cur tua polliciti pondere verba carent?

Ay, Jasón, mas mudable que los ríos,

Mas leve que es el viento de Verano!

Por qué tus labios son de fè vacios?” (VITORIA, 1676, p. 296)

De todos aqueles que se debruçaram sobre o mito de Medeia e Jasão


neste período, Frei Baltasar é o mais impiedoso com a personagem de
Jasão, denunciando os seus enganos, ao invés de justificá-los, como
fazem os outros autores.

Por exemplo, em El vellocino de oro, Jasão mente; o que poderia levar,


numa análise superficial deste texto, a uma caracterização da
personagem como o covarde e mentiroso que transparece na peça de
Antônio José da Silva e na versão de Baltasar de Vitoria. No entanto, o
héroe lopesco, diferentemente dos textos de Vitoria e Antônio José, se
enquadra no tipo estabelecido por Prades (1963, p. 251), especialmente
no que se refere ao seu eterno enamoramento pela dama de sua
predileção, além de valiente y generoso. Igualmente a discreción,
evidente na personagem de Jasão de El vellocino de oro.

Engañóme el amor mío,

que de vuestro amor me informa,

no la necia confianza

que a los que lo son provoca:

perdonadme, y estad cierta

de quien tan loco os adora,

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que os sabré vengar de mí

con más rigor que vos propia;

porque al rígido dragón,

sin armas que me socorran,

me echaré desesperado (VEGA, 1999, v. 1626-1636).

Mas, voltando ao assunto: Jasão mente. Ele omite do Rei Oetas que o
seu intento sempre foi desposar Medeia. Mas, se mente, é para se
manter fiel ao próprio tipo de galán-herói. Ele é enganado por Fineu,24
o segundo galán, que também possui as características apresentadas
para esta personagem-tipo, mas representadas de forma negativa em
El vellocino. Esse Jasão não está, portanto, exatamente de acordo com a
caracterização até agora vigente sobre a personagem mítica.

Antônio José, embora caracterize o herói como um mentiroso, cria no


espectador a sensação de que Jasão seria uma personagem mais nobre
do que realmente é. O dramaturgo estabelece outra lógica dentro da
peça, o mundo às avessas, mas que não resiste a uma avaliação
exterior. Mais do que isso: por diversas vezes, Jasão – e as demais
personagens da peça – projetam em Medeia a culpa de tudo, como se
ela tivesse que ajudar Jasão e depois permanecer plácida frente à
quebra da promessa. Como no recitado da ária25 que Jasão canta a
Creúsa:

Não duvides, amor, desta constância,

pois com firme jactância

te adoro de tal sorte,

que sem temer a morte

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dessa Medeia bárbara, homicida,

não duvido entregar-te a própria vida (SILVA, 1957, p. 69, grifo nosso).

Ainda na cena III da parte I, Jasão começa um solilóquio26 em que


legitima o engano que pretende causar voluntariamente, a fim de
conquistar os seus objetivos na viagem:

Jason: Eu estou confuso!

Sacatrapo: Pois faça o siso.

Jason: Medeia, ao mesmo tempo que se mostra extremosa, me ameaça


com tantas iras! Bem aviado estou eu, se me descuidar em adorá-la;
mas como pode o meu amor deixar de ter descuidos, se em Creúsa
tenho todo o meu cuidado? Bem sei que Medeia é uma estrela; mas, se
vejo que Creúsa é o Sol, antes hei-de seguir os raios deste, que os
resplendores daquela. Quem me mandou a mim prometer ser seu
esposo? Ó deuses, que fiz eu27?

Sacatrapo: Fez uma asneira.

Jason: Mas ai, que alguém me ouviu! Seria Medeia? Quero ver se aqui
está alguém. Seria ilusão do entendimento: se Medeia me promete dar
o Velocino, único objeto da minha empresa, seria ignorância perder
esta ocasião; mas muito maior covardia será violar a inclinação que
tenho a Creúsa, pela ambição de ganhar o Velocino (SILVA, 1957, p. 22-23,
grifo nosso).

No primeiro grifo da citação acima, Jasão se interroga da promessa que


fez. Com esta pergunta retórica, passa a impressão de uma
personagem justa, que cedeu aos impulsos por influência, talvez, até do
próprio impetus de Medeia. Ou pelo menos esta é uma justificativa que
soa plausível, dada a trajetória de Jasão na peça. Já no segundo grifo,
outra vez ele busca legitimar as mentiras que se prepara para aplicar
em Medeia. Dentro da estrutura da peça – os excessos de Medeia, a
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docilidade de Creúsa, a “aura” heroica do próprio Jasão, o discurso e as


cenas cômicas de Sacatrapo, que amenizam os atos de seu patrão –, a
personagem é reconhecida como herói pelo referencial dos outros
caracteres e das situações em que o autor a coloca.

Ao final da cena III da parte I, Sacatrapo canta a Creúsa a seguinte ária:

É o amor que uma alma engole

sabão mole;

pois com ele quem se esfrega,

cabra-cega,

escorrega,

cai aqui, cai acolá.

Assim uma alma namorada,

esfregada,

ensaboada,

que tropeços não fará! (SILVA, 1957, p. 28)

Também nesta ária, embora há muito Jasão tenha saído de cena (há 15
réplicas, uma ária e um recitado), há uma desculpa plausível para a
desonestidade de Jasão com Medeia; os deslizes de uma alma
enamorada são perdoáveis pelos intentos28, como o golpe baixo que
Jasão deu em Medeia, na sua próxima entrada, na cena IV da parte I:

(sai Jason)

Jason: Belíssima Medeia, como todo o meu alívio consiste em ver-te,


não estranhes os excessos do meu amor.
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Medeia: Se tu me adoras, não vendas por fineza o que é obrigação de


quem ama. Ai, Jason, se serão verdadeiros os teus extremos!

Jason: Medeia, em um peito nobre não cabem afetos fingidos; antes


cuido que os fingimentos estão da tua parte.

Medeia: Muito me escandalizas. Dizes isso deveras?

Jason: Quase estava para dizer que sim.

Medeia: Que motivo tens para isso?

Jason: Bem sabes que tenho gosto de ver o Velocino de ouro, só para
admirar este prodígio da natureza; e, contudo, não tenho merecido esse
favor, podendo-mo tu fazê-lo, e quem ama verdadeiramente procura
sempre dar gosto ao seu amante.

Medeia: Se essa é a queixa que tens de mim, verás como depressa te


satisfaço (SILVA, 1957, p. 31, grifo nosso).

Quando Medeia finalmente descobre que Jasão não a ama e planeja


fugir com Creúsa, no final da cena III da parte II, as personagens
cantam uma ária a duo em que o dramaturgo se aproveita do caráter
inflamado de Medeia para que Jasão vença a disputa de argumentos29:

Medeia: Traidor, ingrato amante,

mudável, inconstante,

suspende o teu desvio.

Jason: Oh, deixa-me; não queiras

tirar-me a liberdade,

que é livre o alvedrio.

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Medeia: Pois sabe que há vingança,

que oprima uma mudança.

Jason: Não teme os teus rigores

quem busca em seus ardores

mais belo resplendor.

Medeia: Pois, bárbaro, perjuro,

verás o meu rigor.

Medeia: Tu com zelos me atormentas.

Jason: Tu com mágicas me violentas.

Medeia: Cal-te, ingrato.

Jason: Cessa, impia.

Medeia: Por que em ódio.

Jason: Em tirania.

Ambos: Se converta o meu amor (SILVA, 1957, p. 71, grifo nosso).

Jasão usa um argumento que emula a religiosidade setecentista para


livrar-se da promessa que fez a Medeia,30 enquanto esta apenas
mantém o mesmo registro argumentativo desde o início da peça.

Assim, por encontrarmos referente à caracterização vista em Antônio


José da Silva apenas no Ovídio moralizado de Baltazar de Vitoria, bem
como a proximidade da data de ambos e a certeza da circulação do
livro de Vitoria em Lisboa no início do século XVIII, somos levados a
crer que Antônio José, de alguma forma, teve contato com a narrativa
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espanhola. Da mesma forma, a constituição característica de Jasão,


suas representações ao longo da literatura ocidental clássica e ibérica,
correspondem a um projeto literário próprio de cada período e autor,
mas o fazem sem que a personagem perca sua essência – mesmo que
esta essência varie de tonalidade a cada produção.

NOTAS

1. O presente artigo é parte da pesquisa realizada para a elaboração da


Tese de Doutorado Antônio José da Silva: uma dramaturgia de
convenções, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura
Portuguesa da FFLCH/USP em 2017. A pesquisa foi financiada pela
FAPESP e CAPES. Prévia deste artigo foi apresentada no “Colóquio
Internacional António José da Silva, o Judeu 310 anos”, no Museu
Nacional do Teatro, Lisboa, Portugal, em fevereiro de 2015.

2. Vale lembrar que o olhar sobre a mulher é muito diferente na Grécia


Antiga, berço do mito; nos séculos XVII e XVIII, objeto desta pesquisa; e
no século XXI. No Brasil, particularmente, a história foi recontada com
grande difusão por Chico Buarque na peça Gota d’água, de 1975.

3. Grosso modo, a narrativa da vida de Medeia pode ser dividida em


quatro ciclos: 1) o Velocino de Ouro, quando se apaixona por Jasão e
foge com ele da sua cidade-natal (tema dos cantos III e IV de Os
argonautas); 2) sua chegada à Grécia, a traição de Jasão e a morte dos
filhos (enredo das peças de Eurípides e Sêneca; 3) seu refúgio em
Atenas, o casamento com o Rei Egeu e a tentativa de assassinato de
Perseu; e 4) a volta à Cólquida, com o filho que teve com Egeu, Medo, e a
reconquista do trono do pai (Rei Etes).

4. Veja-se, a título de exemplo, o que diz o Aval Inquisitorial para a


publicação de Os lusíadas, de Luís de Camões (2000, p. XXXV), em 1572:
“não achey nelles cousa algũa escandalosa, nem contraria â fe & bõs
custumes [. . . ] Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor
como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poetico não tiuemos

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por inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por


tal. & ficando sempre salua a verdade de nossa sancta fe, que todos os
Deoses dos Gẽtios sam Demonios.”

5. Utilizamos o termo no mesmo sentido em que o emprega Doménech


Rico (2008, p. 356): “En un teatro comercial, como era el del Silgo de Oro,
es necesario introducir ligeros, pero muy perceptibles, cambios a un
esquema ya conocido para tener éxito. El público se cansa de ver la
misma obra y exige ese juego de variaciones que le ofrezca la dosis de
novedad que le permita mantener la capacidad de sorpresa que es la
salsa de la diversión en el espectáculo teatral. Como decía Agustín de
Rojas, “todo lo nuevo aplace”, y no hay que recordar cómo la novedad
era un elemento fundamental en aquel teatro”. Ou seja, longe do
sentido pejorativo que os meios eruditos da cultura atribuem ao termo,
entendemos o teatro comercial como aquele que busca primeiramente
cativar e despertar o interesse do público, agradá-lo, pois precisa dele
para sobreviver.

6. “Prioritariamente, o modelo de estrutura das peças de Antônio José


são as tragicomédias espanholas em voga em Lisboa no início do
século XVIII. Mesmo tantos anos após a Restauração (1640), o gosto do
público português ainda se mantém ligado às representações de
companhias espanholas que excursionavam pela Península Ibérica.”
(GONTIJO ROSA, 2018, p. 28)

7. Na Biblioteca de Apolodoro – poema enciclopédico acerca dos feitos e


as linhagens mitológicas gregas –, encontramos um Jasão mais
amplamente descrito, mas sem grandes esboços de caracterização de
personagem. Nas demais obras que narram a história dos argonautas
ou de Medeia, não encontramos grande caracterização de Jasão.

8. A profecia de Apolo diz que Pélias deveria ter cuidado com o homem
com uma sandália só. No caminho para a Iolcos, Jasão perde uma
sandália, ao atravessar o rio Anauro. Assim, mesmo sem saber que se
trata do sobrinho, o rei percebe o perigo daquele estrangeiro.

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9. Em Os Encantos de Medeia, o Velocino é um carneiro vivo, como


descreve Teseu na cena I da parte I: “Homem, sabe que nesta ilha de
Colcos há um célebre jardim, no qual habita um carneiro cuja pele é de
ouro, e esta todos os anos se tosquia e sempre lhe nasce outra pele de
ouro; a isto é que chamam Velocino.” (Silva 1957, p. 10). Desloca-se,
assim, a importância mágica da pele de carneiro – relevante para o
mundo grego – para um aspecto mais concreto para a audiência do
século XVIII, a saber, o lucro pela produção incessante de ouro pelo
carneiro.

10. Na Biblioteca e nas Metamorfoses, Apolodoro e Ovídio seguem a


trajetória do mito de Medeia, esquecendo-se do herói grego. Já em Os
Argonautas, a narrativa finda com o regresso da Argos a Colcos. “El
ultimo periodo de su vida, que tuvo Jason, le refiere Euripides al fin de
su Medea, y dice que estando durmiendo en Argos cayó un muro y le
cogió debaxo, y le mató. Didoro Siculo dice, que se mato el a si mismo,
pero entre las curiosidades que juntó Textor de los que se mataron con
sus manos, no pone a Jason: aunque Seneca quiso dar a entender esto
en aquellas palabras, exitu diro; y assi lo declaró Delrio en este lugar.”
(Vitoria 1676, p. 295).

11. Chamamos de personagens hybrizontes aquelas cujas ações são


dominadas pela hybris, ou seja, pelo excesso. Podemos dizer ainda que
são personagens regidas pelas emoções, não pela razão.

12. A covardia de Jasão, como veremos a seguir, não pode ser


constatada na constituição do caráter da personagem nas peças
espanholas de Calderón de la Barca (Auto d’El divino Jasón e Los tres
mayores prodigios), Lope de Vega (El vellocino de oro) ou Francisco de
Rojas (Los encantos de Medea). Nestas, Jasão é mais destemido e
galante.

13. David Ball considera dois tipos de exposição. No caso, trazemos à


baila aquele tipo de “informação conhecida de cada uma das pessoas

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que se encontram no palco” (BALL, 2008, p. 63-64) e cuja importância é


verificada de imediato, como apontamos.

14. Embora Antônio José recorra à grafia “Jason”, no decorrer do texto


utilizaremos a forma “Jasão”, por estarmos tratando de um
personagem recorrente na literatura ocidental e sua perenidade, cuja
nomeação mais corrente em tradução do grego é “Jasão”.

15. Questão interessante, é sempre bom ter em mente que tais textos
destinavam-se à fruição através do espetáculo teatral. Portanto, não
são sem propósitos tais repetições, que sublinham os pontos
importantes do enredo e visam o acompanhamento do mesmo pelo
público. Diferente da leitura, que o leitor pode transitar livremente
pelas páginas, a exposição oral é efêmera, como o próprio teatro.

16. Salvo menção contrária, as traduções são do autor do presente


artigo. No original: “Les héros de A. J. da Silva sont souvent faits du
même bois que Jason, qui est le type même du menteur ne craignant
pas à deux reprises de se parjurer”.

17. Também em Os Encantos de Medeia, a feiticeira diz: “Se prometes


corresponder-me com o mesmo amor, seguro-te que te podes chamar
feliz; […] até te farei senhor do célebre Velocino. […]

Medeia: Prometes, Jason?

Jason: Prometo, Medeia.

Medeia: Vê lá o que dizes.

Jason: Por todos os deuses do firmamento e por todas as deidades do


Cocito te juro sempre ser-te firme e amante.” (SILVA, 1957, p. 21).

18. Optamos por não traduzir os textos literários analisados neste artigo
para não perder sentidos com a transposição linguística.

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19. No original em inglês: “at Venus’ instigation, Jason was loved by


Medea”.

20. O confronto das vontades humana e divina, em última instância, é


o que leva ao trágico: a luta do herói contra o Destino (Ananke).

21. Encantos, Parte I, cena II: Jasão, ao ver Medeia: “Não vi mais
peregrina formosura!” (SILVA, 1957, p. 12). Jasão, ao ver Creúsa: “Ainda
excede a Medeia na formosura!” (SILVA, 1957, p. 13).

22. De acordo com o Diccionario Autoridades (p. 1734), linajudo é “el que
presume y se jacta de la nobleza de su linage”.

23. Os adjetivos aqui descritos seguem o disposto por Prades (1963, p.


251, grifos no original) para o galán: “es caballero de buen talle,
linajudo, eterno enamorado de la dama, pero turbado en su amor por la
obsesión de celos y por la preocupación de honor; será, además, muy
valiente y generoso”.

24. “Jasón: [. . . ] Yo vengo de paz a Colcos, / y así es razón que precedas


/ mi embajada, dando al Rey / de mi pensamiento cuenta. / Que si
tiene por casar, / como yo pienso, a Medea, / y en esta empresa me
ayuda, / yo me casaré con ella. / Fineo: ¡Notable hazaña la tuya! / No
me admira lo que intentas, / mas la de pasar el mar / a pesar de su
soberbia… / yo te quiero conducir / al Rey, pero no pretendas /
casamiento con su hija, / por ciertas cosas secretas / que yo te diré
después. / Jasón: No quiera Dios que le ofenda, / que sólo servirle
quiero” (VEGA, 1999, v. 1164-1182).

25. Sabe-se a importância que as partes rimadas e cantadas adquirem


na dramaturgia deste período, pois este recurso ajuda a fixar aquelas
cenas na representação mental da peça para o espectador, conferindo
relevância à parte cantada. Sobre a caracterização negativa de Medeia,
ela pode ser vista também nas árias de Creúsa (p. 26-27 e 82-83), de
Jasão (p. 56) e da própria Medeia (p. 21-22), no dueto entre Medeia e o
Rei (p. 78) ou mesmo na grande apoteose da parte I, em que Medeia,
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Jasão e Coro cantam (p. 38-41). Nesta parte, no entanto, não há alusão
direta à crueza de Medeia, mas as metáforas utilizadas (“incêndio
voraz”, “voraz amor inflama ardor”, “mil sacrifícios de amor”) e no Coro
cantado ao final – desta parte e da peça: “Se amor é um encanto / que
inflama / na chama / tirânico ardor, / de ver não me espanto / a um
peito / desfeito / a encantos de amor. “

26. Embora Sacatrapo intervenha no discurso de Jasão, não há um


diálogo propriamente estabelecido, uma vez que Jasão não tem
consciência da presença do gracioso em cena e este fala diretamente
com o público.

27. Assim também em Os Argonautas (Rodes III, 1077-1078): “ [. . . ] Com


as lágrimas da jovem, a ele mesmo invadiu / um funesto amor [. . . ]”.

28. Segundo o dito popular, “os fins justificam os meios” inspirado em Il


Principe de Niccolò Machiavelli. Antônio José usa muitos provérbios
populares em suas composições, direta ou indiretamente. Ou seja, os
criados costumam falar muitos provérbios, mas eles também são
motes para as suas glosas dramáticas.

29. À guisa de uma esticomitia trágica.

30. No recitado desta ária, dito quando, através de uma mágica de


Medeia, Creúsa desaparece, Jasão brada o seguinte: “Pois, tirana,
inimiga, infiel Medeia, [. . . ]” (SILVA, 1957, p. 70, grifo nosso). Este “infiel”
só poderia sugerir ao público setecentista uma “descrente”, pois que a
única motivação de Medeia, para todas as suas ações na peça, é a
fidelidade – exacerbada, de fato – ao seu sentimento por Jasão.

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