Coletanea Sistema Prisional

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© 2023 Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul

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Grande do Sul: Av. Protásio Alves, 2854/301, CEP: 90410-006, Porto
Alegre/RS
(51) 3334-6799
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Documento digital no Brasil

CIP – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

S481 Ser e fazer psi [recurso eletrônico]: composições do


cotidiano de trabalho da Psicologia no sistema prisional
/ Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul,
organização. – Porto Alegre : CRPRS, 2022. 51,8 MB ; PDF.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-87089-13-3 (E-book)

1. Psicologia clínica. 2. Psicoterapia - Aspectos sociais.


3. Psicologia no sistema prisional. I. Conselho Regional de
Psicologia do Rio Grande do Sul, org.

CDU: 159.9

Bibliotecário responsável Luís Diego Dias de S. da Silva - CRB 10/2241


Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS)

Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS (2019-2022)

Conselheiras/os efetivas/os
• Ana Luiza de Souza Castro
• Angelista dos Santos Granja
• Carla Mariela Carriconde Tomasi
• Cristina Schwarz
• Daniela Duarte Dias
• Eliana Sardi Bortolon
• Fabiane Konowaluk Santos Machado
• Janete Nunes Soares
• Leandro Inácio Walter
• Marianna Rodrigues Vitorio
• Maynar Patricia Vorga Leite
• Miriam Cristiane Alves
• Pedro Jose Pacheco
• Roberta da Silva Gomes
• Vinícius Cardoso Pasqualin

Conselheiras/os suplentes
• Alice Ubatuba de Faria
• Analice de Lima Palombini
• Dalmara Fabro de Oliveira
• Gabriel Marcelo Moresco
• Jose Ricardo Kreutz
• Luciana Barcellos Fossi
• Mariana de Medeiros e Albuquerque Barcinski
• Mateus Sturmer Daitx
• Pablo Potrich Corazza
• Thiago dos Santos Alves
• Robert Filipe dos Passos
Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS (2022-2025)

Diretoria Comissão Avaliadora


Conselheira Presidenta: e Organizadora:
Miriam Cristiane Alves Ana Paula de Lima
Conselheiro Vice-Presidente: CRP 07/11054
Ademiel de Sant’Anna Junior
Conselheira Tesoureira: Maynar Patricia Vorga Leite
Maria Luiza Diello CRP 07/18812
Conselheira Secretária:
Eliana Sardi Bortolon Miriane Schmitz
CRP 07/15456
Conselheiras/os efetivas/os
Ademiel de Sant’Anna Junior
Pauline Schwarzbold
Ana Paula Coutinho
CRP 07/21361
Camila Dutra dos Santos
Daiana Meregalli Schütz
Eliana Sardi Bortolon Assessoria de Comissões:
Jean Von Hohendorff Ana Carolina Tittoni da Silveira
Leandro Inácio Walter Jordan Severo de Mello
Luís Henrique da Silva Souza
Maria Luiza Diello Comunicação:
Miriam Cristiane Alves Aline Victorino (Mtb. 11602)
Priscila Góre Emilio Jornalista Responsável
Rafael Antônio Carneiro
Samantha Medeiros Ferreira Giulia Victória
Silvia Edith Duarte Marques Estagiária de Jornalismo
Thaíse Mendes Farias
Coordenação-Geral:
Conselheiras/os suplentes Evelise Arispe de Campos
Ayanna de Campos Bueno CRA-RS 1528
Camila de Freitas Moraes
Daniela Pereira da Costa de Menezes
Diego Gonçalo Moraes Gomes
Jéssica Gil Schossler
Jéssica Prudente
Lívia Caldieraro de Souza
Luciana Barcellos Fossi
Luís Carlos Bolzan
Maria Marta Só Vargas de Oliveira
Marina Medeiros Pombo
Mayra Medeiros Osorio
Silvana Maia Borges
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................. 8 PODEMOS (EN)CANTAR CUIDADO?
VENTOS CANTAM PELA JANELA?
O ACOMPANHAMENTO Ezequiel de Candido Amaral ..................... 54
TERAPÊUTICO COMO
DISPOSITIVO NO PROCESSO LIMITAÇÕES NO TEMPO E NO
DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO ESPAÇO: QUANTAS CIDADES NÃO
DA MEDIDA DE SEGURANÇA COEXISTEM NA MESMA CIDADE?
Ana Paula de Lima ............................................11 Maynar Patricia Vorga Leite .........................61

O RECONHECIMENTO DO DESEJO “DOUTORA, EU PASSEI NA


COMO FUNÇÃO DE RECONSTRUÇÃO AVALIAÇÃO?” REFLEXÕES
DA VIDA – ESTUDO DE CASO SOBRE AS (IM)POSSIBILIDADES
Silvana Aparecida Desordi ............................17 DO EXAME CRIMINOLÓGICO
Kamêni Iung Rolim Psicóloga
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE Sarah Reis Puthin ............................................67
O TRATAMENTO PENAL NO QUE
SE REFERE A SAÚDE MENTAL E A GRUPO DE SUPERVISÃO
DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO SISTEMA COLETIVA EM PSICOLOGIA:
PRISIONAL DO RIO GRANDE DO SUL ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ana Paula Da Silva Uberti.............................25 SOBRE UM INÍCIO PIONEIRO
Ana Paula da Silva Uberti
A ESCUTA QUE EVOCA A VOZ DAS Juliana Pletes de Borba
PRISÕES Pablo Borges de Moura
Juliana Pletes de Borba.................................35 Rosane Wojciechowska Lucena ................74

“TU JÁ PAROU PRA PENSAR IGOR MENDES E A PEQUENA


QUE DENTRO DA CADEIA NADA PRISÃO: ELEMENTOS NARRATIVOS,
FAZ SENTIDO?” ESTRATÉGIAS TESTEMUNHO E REFLEXÃO SOCIAL
PARA PROMOÇÃO DE SAÚDE SOBRE O CÁRCERE NO BRASIL
NO SISTEMA PRISIONAL Daiane R. Steiernagel
Kamêni Iung Rolim Rosani Úrsula Ketzer Umbach ................... 81
Denise Falcke ................................................... 43
GRUPO PSICOTERAPÊUTICO PARA
DELÍRIO USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS
Berenice Sica Lamas.......................................52 DROGAS: RELATO DE EXPERIÊNCIA
NO PRESÍDIO ESTADUAL DE
RELATO DE EXPERIÊNCIA DE SÃO FRANCISCO DE PAULA/RS
UMA BIXA PRETA: NA GAIOLA, Rita Frezza Maganini...................................... 90
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DA
AÇÃO INOVADORA INSERIDA PAZ: EFEITOS DE UMA EXPERIÊNCIA
NO TRATAMENTO PENAL NO AMBIENTE PRISIONAL
Aline Costa de Lima Fernanda Schittler
Anelise Flores Farias Iana Patrícia Pandolfo
Cíntia Fiorin Medeiros Karine Müller Dutra
Larianne de Andrade Saul Letícia Haubert Lima Gonçalves
Lucélia Mello da Costa Shirlei Sztomowski .......................................124
Renata de M. Domingues Cauduro
Rosaura B. Ismael Freitas ............................ 96 ME DÁ A CHAVE DOS LIVROS –
DESAFIOS E POTENCIALIDADES
PSICÓLOGAS E PSICÓLOGOS DE UM ESPAÇO DE LEITURA
NO SISTEMA PRISIONAL: PORTA- Maynar Patricia Vorga Leite....................... 135
VOZES DE MUDANÇAS PARA
A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS A PRÁTICA DA PSICOLOGIA NAS
E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PRISÕES E/OU SER POLICIAL PENAL
Pauline Schwarzbold Sandra Correia ................................................142
Paula Teixeira De Almeida
Gustavo Hamann De Freitas .....................105 ENTREVISTA COM MAGALY
ANDRIOTTI FERNANDES.....................150
PRODUZINDO PAIS AUSENTES:
NOTAS SOBRE A INVISIBILIZAÇÃO DA ENTREVISTA COM IVARLETE
PATERNIDADE DE HOMENS PRESOS GUIMARÃES DE FRANÇA....................163
Lucas Gonzaga do Nascimento ................110

CÍRCULOS DE PREPARAÇÃO
PARA APOSENTADORIA
PARA SERVIDORES DA
SUPERINTENDÊNCIA DOS SERVIÇOS
PENITENCIÁRIOS DA 2ª DELEGACIA
PENITENCIÁRIA REGIONAL
Lidiane Luiz de Oliveira
Vera Lúcia Biasin ............................................119
INTRODUÇÃO
No início dos anos 2000, um grupo
de psicólogas e psicólogos que
atuavam no sistema prisional
(naquela época eram pouquíssimos
concursados para essa função no
Estado) se angustiavam com questões
de Direitos Humanos vivenciadas
nas prisões. Num estabelecimento
prisional de pequeno porte, atuava recebiam quanto à realização de
a única psicóloga, não havia equipe exames criminológicos. Foi assim que
multiprofissional naquela época reafirmaram junto ao CRP um espaço
(assistente social, advogados). O de fala e escuta mútua sobre a prática
espaço da Psicologia era limitado da Psicologia e a instituição prisional.
à sala de atendimentos, que a
profissional “conseguiu” a muito O CRP acolheu a demanda das
custo com a direção, para receber psicólogas e psicólogos que foram
as pessoas em situação de prisão. recebidos, de forma atenta e afetiva,
Começou a notar que ao chegar pela psicóloga Neuza Guareschi.
no local, sempre havia marcas de Muitos sábados pela manhã
sangue sobre o chão. Ato contínuo, os reuniram-se com profissionais de
sujeitos, quando vinham, passaram outras regiões do estado até oficializar
a falar sobre as torturas físicas que o Grupo de Trabalho dos Psicólogos e
aconteciam à noite naquela sala. Em Psicólogas do Rio Grande do Sul, que
outros estabelecimentos prisionais, foi sendo ampliado com a chegada de
outros profissionais da Psicologia novos profissionais e renovado pelo
estavam vivenciando, no seu cotidiano desejo de uma prática comprometida
de trabalho, gravíssimas violações com a ética da Psicologia Nessa
de direitos humanos e de direitos época contaram com o sindicato
trabalhistas. O então psicólogo, dos psicólogos e psicólogas do RS e
Luis Eduardo Ribeiro Ferreira (que com a supervisão do Grupo Tortura
mais tarde se exonerou do sistema Nunca Mais do Rio de Janeiro. À
prisional) junto com outros colegas medida que a Psicologia foi se
e a então diretora do departamento inscrevendo no sistema prisional,
de tratamento penal da Susepe, concomitantemente, esse espaço foi
assistente social Miriam Guindani, já se ampliando e se transformou no
vinham pautando com o Conselho Núcleo dos Psicólogos e Psicólogas
Regional de Psicologia (CRP) a do Sistema Prisional Gaúcho,
questão da práxis do psicólogo versus fortalecido pela prática de um coletivo
demandas que profissionais atento aos movimentos da instituição

8
total, mas, sobretudo, às garantias de história do nosso trabalho, sentimos
que a Psicologia não atuará senão falta da escrita de psicólogas e
em consonância com os Direitos psicólogos que deram início à nossa
Humanos. atuação no sistema prisional gaúcho
e que marcaram a construção e as
Em consideração as peculiaridades mudanças nesse trabalho. Por isso
das regiões em que atuávamos, convidamos essas/es profissionais a
e como estratégia para fortalecer conversarem conosco em entrevistas.
esse coletivo, optamos por criar Tivemos o privilégio de ouvir a
Núcleos Regionais. Contudo, o Ivarlete Guimarães de França e
advento da pandemia demandou a Magaly Andriotty Fernandes.
encontros virtuais entre todas e todos Convidamos elas para falarem sobre
para enfrentar os novos desafios as suas experiências atuando como
produzidos para a nossa atuação face psicólogas no sistema prisional,
à COVID-19, e assim resolvemos reunir suas percepções de potencialidades
novamente os espaços regionais em e desafios nos seus percursos, as
um único Núcleo. suas participações no Núcleo do
Sistema Prisional e as reflexões ou
Ao longo desse tempo, esse coletivo recomendações que gostariam
tem tanto buscado apoio quanto de compartilhar com quem está
provocado o CRP e o Conselho atuando na área agora e com quem
Federal de Psicologia (CFP) a analisar, vai atuar no futuro. Essas entrevistas
orientar e se ocupar da temática foram transformadas em textos desta
prisional e as formas de segregação coletânea. Por tratar-se de entrevistas
produzidas no aprisionamento e não de textos escritos, estes artigos
brasileiro. não seguem os mesmos padrões
requeridos para os artigos e estão ao
O trabalho em prol da defesa de final desta coletânea.
direitos humanos era impensável
dentro da instituição total quando Historicamente, a Psicologia no Brasil
aquele grupo começou a se reunir há foi regulamentada como ciência
uns vinte anos. A potência da atuação e profissão a serviço de políticas
da Psicologia nos estabelecimentos, disciplinares de controle. Na trajetória
no Núcleo e no Sistema Conselhos que traçamos no sistema prisional,
como um todo permitiu ampliar e essa lógica ainda é mantida por parte
modificar o nosso trabalho da forma de alguns gestores e profissionais,
que está materializada parcialmente mas o Núcleo do CRP tem contestado
nesta coletânea. Há muito mais regular e sistematicamente essa
conhecimento e fazer a ser contado, forma de atuação.
compartilhado e descrito.
Pensar a Psicologia no sistema
Ao receber os textos percebemos prisional desde os seus primórdios,
que faltava contar um pouco da como se inseriu, como vem atuando,

9
é um desafio que fazemos tendo desejo dos psicólogos e psicólogas
consciência de que em nosso país, nos seus cotidianos, e ao longo da
o terceiro no mundo a aprisionar nossa história de atuação, como
seres humanos, particularmente em podemos apreciar nas entrevistas
situações desumanas e degradantes, com Magaly e Ivarlete. Nessa esteira,
o nosso trabalho não se faz sem resta um horizonte onde se avista,
que saibamos quem é a população ainda que ao longe, uma sociedade
aprisionada desde sempre. E hoje, mais justa, menos desigual, em que
no Brasil, os efeitos da escravização cada vez mais se possa prescindir das
estão reiterados na nossa sociedade, prisões.
sendo a própria prisão como único
projeto para a juventude periférica
do país. Escapar dessa “sentença” é
também desafio dos/as profissionais
da Psicologia junto aos sujeitos que
atendem.

O trabalho subjetiva e produz


subjetividades. No âmbito prisional,
o trabalho da Psicologia consiste, em
grande parte, em criar espaço para
que as singularidades consigam se
manifestar. Não somos heroínas ou
heróis, o nosso fazer necessariamente
é possibilitado e se realiza a partir de
composições, de redes, de invenções.
É o que tentamos expressar no título
desta coletânea: Ser e fazer psi:
composições do cotidiano de trabalho
da Psicologia no sistema prisional.

Optamos por não organizar os textos


a partir de linhas temáticas ou de
locais de atuação, talvez como uma
forma de transmitir algo do nosso
cotidiano de trabalho, que se dá
por retornos, quebras, sobressaltos,
surpresas, nós e laços.

Os textos dessa coletânea refletem, em


última instância, os desafios colocados
a Psicologia no sistema prisional na
mesma medida da potência e do

10
O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO COMO DISPOSITIVO
NO PROCESSO DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIDA
DE SEGURANÇA1
Era o ano de 2009, no Instituto Termo de Ajustamento de Conduta,
Psiquiátrico Forense Maurício que novos profissionais passaram a
Cardoso, em Porto Alegre. Recém- compor o quadro da instituição, na
chegada ali, como psicóloga, na esteira das mudanças conquistadas
Superintendência dos Serviços a partir da coragem do magistrado
Penitenciários (SUSEPE), um percurso Clademir Missaggia (2010) que ao
pelas prisões no interior do Estado assumir a Vara de Penas e Medidas
e no Complexo Penitenciário de Alternativas de Porto Alegre, em 2007,
Charqueadas foram as bússolas mudou a forma de tratar, ver e pensar
do trabalho. Entrando no velho a loucura dentro e fora do manicômio
manicômio judiciário, logo me judiciário do Rio Grande do Sul.
surpreendi com o número de
pacientes que iria atender, não Até então, histórias de vida
chegava a uma centena. Passei anunciavam um único horizonte: a
a chamá-los individualmente na morte rondava os corpos. Morar fora
sala de atendimento da unidade, dali era quase um sonho impossível,
espaço que logo foi nominada de não raro escutei a frase que ao
“escritório”. Ouvia no pátio pelas deixar em suspenso a palavra jazigo,
manhãs, seguido de um belo “bom ressoava a morte, diziam-me: “aqui
dia”, “quando a senhora vai me é perpétuo” (sic). Ouvia que 10, 15,
chamar pra conversarmos no seu 30, 40 anos haviam se passado
escritório?”. Desta transferência nascia entre os muros do hospício e a vida
um ponto de partida ao percurso a que pulsava na cidade. O desejo
ser trilhado com cada um, ao tempo de circular pela cidade de origem,
em que o “escritório” recriava no a família quando ainda existente
seio do manicômio um espaço de no imaginário de alguns era tida
fala, singularidades, particularidades como inimaginavelmente distante.
encontravam endereçamento com A “tutela” ressoava como a única
dia e hora marcados. Cabe ressaltar forma aceitável institucionalmente,
que estes pacientes não eram nomeada para o trato com o sujeito
atendidos por psicólogos há muitos louco infrator. A linguagem estava
anos, devido ao escasso número de abolida do sistema: de um lado,
profissionais versus o grande número um saber massificante e totalitário,
de internos. Foi neste ano, com um de outro, sujeitos entregues a

1 Escrito originalmente no ano de 2010.

11
institucionalização, sujeitos à revelia Entrava, sentava, baixava a cabeça
de seus desejos. Menos que a máxima e murmurava. Ainda no primeiro
conhecida, “uma instituição acaba mês pensei em não o chamar
por reproduzir o sintoma que tenta mais, entretanto, no seu dia de
combater”, era o absurdo Kafkaniano atendimento esperava sua hora ao
que se revelava a cada dia. Trabalhei lado de fora da sala. Como sabia
por anos no complexo penitenciário fazer, entrava, sentava e baixava a
de Charqueadas e nunca antes havia cabeça. Foi quando lhe disse, “não
me deparado em um só lugar com sei mais, acho que estou falando
aquilo que me remetia desde os demais, preciso ouvi-lo”. Da posição
olhares aos atos, estar na própria de não saber, tão cara ao terapeuta
“Colônia Penal” de Franz Kafka (1998). no trato com a psicose, ao tempo em
Certamente que se não houvessem que comporta um sujeito suposto
pares teria desistido, o que por muitas saber, Sebastião vai poder enunciar
vezes me interroguei. em palavra a posição subjetiva que
lhe custara mais de duas décadas
Como fazer um trabalho sem fazer no hospício, ao desvelar a morte
parte da engrenagem? Não sabia que rondava, disse-me de uma
como. A única certeza era que o só vez: “Não tem outro lugar pra
saber estava do lado dos sujeitos que mim” (sic). Nesta época o GT3, que
escutava, era com eles que construiria funcionava no IPF desde 2007,
algo possível de ser reinventado. havia me apresentado à rede com
Insisti na afirmação de uma o Hospital Psiquiátrico São Pedro
transferência possível com cada um. onde funcionava uma oficina de
Resquícios de desejos me levaram a artes. Outras palavras para além
provocar em cada laço possível, em daquelas que diziam que Sebastião
cada história de vida, o motor aos não poderia sair à rua por correr-
passos a serem dados. Contudo, algo se o risco de desvairadamente ir
me inquietava, pois o atendimento no correndo em direção ao nada, nos
“escritório” não estava funcionando levaram ao encontro com Sergio
bem, não avançávamos. O que fazer Dório, o então artista plástico
com tantas resistências? que coordenava a oficina. Após a
entrevista com Sebastião, me diz:
Foi com o silêncio do Sr. Sebastião2 “ele tem muitos recursos”. Confesso
que algo emergiu. Durante meses o que me emociono ainda hoje ao
chamei ao “escritório” semanalmente, lembrar seu prognóstico. Sérgio Dório
nenhuma palavra. Há 22 anos reforçou o convite para que Sebastião
no manicômio judiciário, havia participasse da oficina. Ensinou-lhe
perdido a referência à linguagem. a pegar o pincel, a reconhecer as

2 Os Nomes próprios ao longo do texto são fictícios.


3 Grupo de Trabalho intersetorial composto por representantes da VEPMA, IPF, Secretarias Estaduais e Municipais
de Saúde do Estado do RS onde se discutia semanalmente sobre cada história /caso: desinstitucionalização e
endereçamentos.

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cores, o contato com a arte se dava não de qualquer forma, trata-se,
ao passo que no caminho, entre idas pois, de uma terapêutica que tem
e vindas falávamos sobre a cidade, em seu horizonte a cidade, os outros.
até então apagada do mapa da sua O laço social, tão caro ao psicótico,
vida. A primeira obra que produzira perde-se por vezes da mira de seu
foi a bandeira do Brasil entre sol e olhar, refazer pela linguagem, uma
nuvens coloridas, surgida de cabeça rede de significantes capazes de
para baixo. Passou a exercer a Alta garantir-lhe sustentabilidade nessa
Progressiva que tinha direito, não circulação plena de autonomia
sem antes nos alertar a respeito do é aposta do AT que começa na
quanto o trabalho com a psicose não instituição ainda pelas margens...
se dá sem que em perspectiva se Saindo das unidades fechadas em
faça um trabalho com as famílias e direção ao fora (unidades abertas,
as redes sociais. Afirmava Sebastião idas e vindas, conversas, silêncios),
em nossas conversas antes de ir até que se vai mais longe: comprar
passear na casa da irmã: “não posso roupas, passear no centro da cidade,
sair do IPF, porque depois não vão enfim, um número sem fim de
me deixar entrar, e não dá pra ficar lugares que se pode ir, agora com
na rua”(sic). Neste tempo nos falava um outro, saindo um pouco da rota
que a periculosidade é um conceito institucional e da clausura que se
forjado historicamente, pois sabido impõe na psicose. No âmbito do
era para este sujeito que o IPF fora um manicômio judiciário, a proposta do
lugar para responder sobre um crime, AT é ser dispositivo no processo de
sua narrativa afirmava que não cabia reabilitação psicossocial, em conjunto
mais crime em sua vida para além do com outros dispositivos. Salienta-se
desamparo. com Palombini (2006) o caráter deste
dispositivo: “clínico-político”. Sendo
O Acompanhamento Terapêutico, assim, é tarefa terapêutica escutar
segundo Analice de Lima Palombini que este acompanhar se dá com
(2007, p. 156), “é uma prática um sujeito, que tem o seu tempo,
surgida nos anos sessenta junto expresso em linguagem a quem se
a comunidades terapêuticas na der a escutar, a única direção possível:
Argentina e no Brasil, podendo a dos passos que pode dar, num
ainda ser referida às experiências de processo que tem valor subjetivo
desinstitucionalização da loucura porque convoca a variabilidade,
na Inglaterra, Estados Unidos e na justa medida do abandono das
Itália”. Pensa-se aqui, no contexto certezas, dos sentidos fixos, abrindo
institucional/manicomial, que ao inesperado que pulsa no humano
“desinstitucionalizar a loucura” e na vida das cidades. Há abertura ao
engendra o estandarte do próprio processo de reconstrução significante
movimento posto em causa no AT: pela própria potência do encontro
acompanhar é estar ao lado, mas e da produção do autêntico, pois

13
nesta disponibilidade característica Ao olhar para seu prontuário, se
do encontro com o outro se revela evidencia que esta terapêutica
que a subjetividade não é passível de não mudou o curso de sua vida
ser apreendida, capturada, conforme no manicômio, pois após esta
proposta por Palombini (2004). É terapêutica continuou na clausura.
de conhecimento com a Psicanálise Passaram-se cerca de quatro
que para a condição humana há anos, ainda em unidade fechada,
sempre uma dimensão que resiste e literalmente falando com as paredes,
não se deixa capturar. É justamente a equipe que o atendia entendeu
esta dimensão não transparente da que novamente seriam necessárias
subjetividade que resiste a captura as sessões de ECT devido a sua “baixa
do que está em jogo nesta clínica a resposta” a terapêutica empregada:
céu aberto. Pensa-se com Palombini a clausura, o abandono, a solidão.
(2004), que abandonar o ideal da Algumas mudanças institucionais
pretensão à transparência e manter levaram a uma reordenação das
aberto o campo da conflitualidade, microequipes e Fernando passou a
próprio da condição humana, sejam ser atendido por outra psicóloga e
motores neste processo inventivo, outra médica psiquiatra. Apesar da
clínico e político. crueza dos sintomas da sua psicose,
optou-se por deixar em suspenso
Jacques Lacan (2007), que se a recomendação médica da ECT.
dedicou ao trabalho com sujeitos Fernando trazia o que lhe soava
psicóticos nos ensina: é da ordem da persecutório: “Estão me roubando”
particularidade que se trata quando (sic). Afirmava em fúria. Alguém
se escuta um sujeito situado na teria de suportar com ele as palavras
psicose. “Particularidade”, significante duras, pois visto também dura, era
este que afirma o lugar do analista: a vida que lhe vinha sendo roubada
estar atento ao que é da ordem pela não construção de políticas
do particular requer como ponto públicas que lhe ajudassem a sair da
de partida que não se pretenda doença. Fernando sai do isolamento
“normalizar” o psicótico, ele nunca a unidade fechada, desta passou
será um neurótico. a saídas acompanhadas também
com a terapeuta ocupacional à
Fernando, hoje com seus trinta e unidade aberta. Esta parceria entre
poucos anos, já passou doze no IPF. Psicologia, Psiquiatria e Terapia
A maior parte dos anos da clausura Ocupacional foi fundamental
foram em celas de isolamento na para que o percurso fosse sendo
unidade fechada. Por pelos menos redimensionado a cada passo. Eu
uns sete, oito anos passou por 11 e Fernando íamos à tesouraria4 e
sessões de eletroconvulsoterapia. nestas conversas foi possível forjar um

4 Dentro do Instituto Psiquiátrico Forense há o setor da tesouraria que retém (guarda) o dinheiro dos pacientes.
Para que um usuário possa fazer uso do seu dinheiro, ou seja, retirar da tesouraria, enquanto estiver na instituição é
necessário que alguém da equipe (psicóloga, assistente social, psiquiatra) faça uma autorização diária, semanal ou

14
espaço onde a certeza não engolfasse autonomia dos sujeitos.
o sujeito. O passo de ir à unidade
aberta coincide com a chegada dos Para concluir, lembro que o
estagiários de Psicologia da UFRGS Acompanhamento Terapêutico no
que estagiaram no ano de 2009 no manicômio judiciário acontece na
IPF. Eles realizaram o estágio básico esteira de uma prática engendrada
com ênfase em Acompanhamento pelos princípios do SUS, pelas
Terapêutico. Com tantos pares e diretrizes nacionais de atenção aos
movimentos, Fernando já tem cartão pacientes judiciários e execução da
de saída5 diário – sai também sozinho, medida de segurança, estabelecidas
passeia pela cidade, faz compras e tal, pelas resoluções do Conselho
teatro, cinema, restaurante “seu maior Nacional de Justiça (2010) e pelo
desejo é alugar uma peça para morar” Conselho Nacional de Política
(sic)-, nosso trabalho é seguir com ele Criminal e Penitenciária (2020), que
nesse projeto de vida que tem sua recomendam a adoção da política
autoria como a bússola que orienta o antimanicomial no que tange à
navegador6. atenção aos pacientes judiciários e à
execução da medida de segurança.
Se Palombini (2004) destaca que o As diretrizes formuladas indicam
AT é um dispositivo é porque ejeta da que a execução da medida de
clausura do silêncio e da solidão, do segurança deva seguir os princípios
vazio de representação linguageira, estabelecidos pela Lei 10.216/2001,
ejeta da imensidão alienada da ou seja, que o tratamento seja
institucionalização o sujeito que redirecionado aos serviços
fala, que tem voz. O processo de substitutivos em meio aberto e que
desinstitucionalização possível com a Intersetorialidade seja a forma de
um sujeito põe em relevo o sujeito no abordagem, articulando o diálogo e
laço social, o que não se dará jamais a parceria entre as diversas políticas
pelas vias da tutela e da recriação públicas e a sociedade civil, tendo
de espaços privados segregadores como objetivo principal a inserção
da diferença. Nesta direção é que social, a promoção da saúde e a
pensamos hoje que o AT pode invenção do laço social possível,
sim ser um dispositivo capaz de compartilhando os espaços da cidade
recriar espaços de sociabilidade, de de modo responsável com o mundo
convivência, de respeito a diferença público.
própria a condição humana e
fundamentalmente de recriação da

mensal, por escrito.


5 Carteirinha que os usuários recebem com autorização por escrito, de pelo menos, um membro da equipe que o
atende. Pode ser autorização para saída diária, semanal ou mensal, sozinho ou acompanhado. Sem esse documento
os pacientes que cumprem medida de segurança no Instituto, não podem sair do local.
6 Ao final deste ano Fernando foi morar na Pensão Protegida Nova Vida, onde ficou aproximadamente 1 ano.
Tive notícias que fez do seu sonho, o próprio cotidiano: alugou uma casa para morar e trabalha em uma oficina de
reciclagem.

15
Ana Paula de Lima - Psicanalista Nacionais de Atenção aos Pacientes
CRP 07/11054 Judiciários e Execução da Medida de
Trabalhou no Instituto Psiquiátrico Forense Segurança. D.O.U. Brasília, 2 ago. 2010.
do RS entre os anos de 2009 e 2015.
Atualmente trabalha na Cadeia Pública de KAFKA, F. O Veredicto e Na Colônia
Porto Alegre.
Penal. Tradução e Posfacio Modesto
Especialista em Saúde pública pela ESP.
Carone. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
Referências
LACAN, J. O Seminário Livro 23 – O
BRASIL. Ministério da Saúde. Sinthoma. RJ: Jorge Zahar Ed., 2007.
Portaria nº 94, de 14 de janeiro de
2014. Institui o serviço de avaliação MISSAGGIA, C. J. C. Risco Social
e acompanhamento de medidas e Periculosidade – Itinerário
terapêuticas aplicáveis à pessoa com para desconstrução do Instituto
transtorno mental em conflito com a Psiquiátrico Forense do Rio Grande do
Lei, no âmbito do Sistema Único de Sul. In: Portal de Revistas da USP, v.
Saúde (SUS). D.O.U. Brasília, 14 de jan. 20, n. 1, 2010.
2014b.
PALOMBINI, A. L. “Psicanálise a céu
BRASIL. Presidência da República. aberto?”. Psicoses: aberturas da
Lei nº 10.216, de 06 de abril de clínica/ Comissão de Aperiódicos da
2011. Dispõe sobre a proteção e os APPOA (org.). Porto Alegre, APPOA:
direitos das pessoas portadoras de Libretos, 2007.
transtornos mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental. PALOMBINI, A. L. Acompanhamento
D.O.U. Brasília, 9 abr. 2001. Terapêutico: dispositivo clínico-
político. Psyche, 10, (18), 115-
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. 127, 2006. Disponível em: http://
Resolução nº 113, de 20 de abril de pepsic.bvsalud.org/scielo.
2010. Dispõe sobre o procedimento php?script=sci_arttext&pid=S1415-
relativo a execução de pena privativa 11382006000200012&Ing=pt&tIng=pt.
de liberdade e de medida de Acesso em: 26 jul. 2022.
segurança, e dá outras providências.
Portal CNJ Brasília, 2010. Disponível PALOMBINI, A. L. Acompanhamento
em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos- Terapêutico na Rede Pública: a
adm?documento=2596. Acesso em: clínica em movimento. Porto Alegre:
20 jun. 2017. Editora da UFRGS, 2004.

CONSELHO NACIONAL DE POLITICA


CRIMINAL E PENITENCIÁRIA.
Resolução nº 04, de 30 de julho
de 2010. Dispõe sobre as Diretrizes

16
O RECONHECIMENTO DO DESEJO COMO FUNÇÃO DE
RECONSTRUÇÃO DA VIDA – ESTUDO DE CASO

Introdução psicológico, considerando que o


discurso singular desse sujeito se deu
“O sonho é desejo ou reconhecimento do basicamente pela narrativa de sonhos.
desejo?” (LACAN, 1986, p. 11). a partir de uma leitura psicanalítica.
Na quarta parte, a análise do caso. E,
No presente artigo, partindo por fim, a conclusão do estudo.
da premissa de que o sonho é
o reconhecimento do desejo,
apresentarei o estudo de caso, no Identificação e
qual, a partir do reconhecimento Contextualização
do desejo da morte do pai, através do Caso
do acompanhamento psicológico,
o sujeito em questão, pode Quem é Pedro Paulo hoje? Pedro
compreender-se, eximir-se e construir Paulo é um nome fictício, destinado
uma nova alternativa para si e outros. a proteger a identidade do apenado
aqui estudado. Em meados de 2020,
O método trabalhado neste artigo em uma visita a um pesqueiro, avistei
é o estudo de caso, desenvolvido um homem ao longe. Estava com
numa perspectiva qualitativa, por outras pessoas. Mais tarde, me disse
ser mais adequada para realidades que era sua família. Não o reconheci
sociais (MINAYO, 2010), a partir do de pronto. Vi que também me dirigiu
atendimento psicológico realizado o olhar. Se levantou e veio em minha
no âmbito do sistema prisional, com direção. Ao chegar mais perto, o
um apenado em cumprimento de reconheci pelo olhar. Percebi que se
pena em regime fechado, ainda que, alegrou ao me ver. Era Pedro Paulo!
por pena provisória, com o objetivo
de explicar, explorar e descrever uma Foi então que me contou que estava
situação de sofrimento, agravada pelo em liberdade. Tinha sido absolvido no
contexto do cárcere. julgamento. Em poucos minutos, me
disse que estava reconstruindo a vida,
Este estudo está dividido em quatro os negócios junto à sua propriedade,
partes. Na primeira, a identificação bem como estava auxiliando sua
do sujeito em atendimento e a família. Inclusive, estava tendo a
contextualização do estudo. Na oportunidade de oferecer trabalho
segunda, a descrição dos sonhos, das para apenados em cumprimento de
associações e narrativas construídas pena no regime semiaberto. Estava
pelo apenado no atendimento grato pelo atendimento recebido.

17
Como o analisante chegou ao trabalho para outra unidade prisional.
cárcere? Pedro Paulo chega ao
cárcere há alguns anos, com então As primeiras palavras que direcionou
33 anos. Ele e o pai foram presos por a mim, em atendimento, foram:
homicídio. O pai havia arrendado as “Quero parar de sonhar”. (sic)
terras e, estava cobrando a devolução
das mesmas antes do tempo devido. Foi então que mostrei a ele o quanto
O pai se envolveu em uma luta estava interessada em ouvir o que
corporal com o inquilino. PP foi tinha a dizer sobre isso.
defender o pai e acabou matando o
arrendatário. O pai foi preso no dia. PP Sonhos:
fugiu. Se entregou à polícia cinco dias
depois, devido à pressão da família. Sonho 1: “Fui dar uma ré na
camionete e desci pelo barranco. Caí
Pai e filho passaram pela entrevista no riacho que corta as terras” (sic).
de acolhimento/triagem, realizada
por mim, e que é uma atividade Narrativas e associações de Pedro
protocolo no sistema prisional. Dias Paulo relacionadas ao sonho 1:
depois da prisão, o pai de Pedro Paulo
passou por uma cirurgia, agendada Não sabia, ao acordar, se o pai estava
antes de seu encarceramento. Em seu vivo ou morto.
imaginário, considerando-se inocente,
pensou que, após a cirurgia cumpriria Em suas narrativas dos sonhos, PP
pena em sua casa, em regime falava de sua relação com o pai.
domiciliar. Ou, até mesmo, ficaria em Após relatar o primeiro sonho, no
liberdade, o que não aconteceu. Dois qual dirige a camionete, comenta
meses após a prisão, se suicidou. que o pai, “no lugar de ajudar a tirar
a camionete do barranco, ficava
Nesse período, encontrava-me em perguntando como aconteceu aquilo”
férias. PP recebeu atendimento (sic); “Não gostava que sujasse a
psicológico no sistema prisional camionete. Mas como? Lidando na
e foi encaminhado ao psiquiatra, terra”? (sic); “O pai estava sempre
conhecido por seus familiares, que se brigando. Era cabeça dura” (sic); “Vim
responsabilizaram pelo agendamento preso para o pai sair. Foi fazer isso …”
e pagamento das consultas. Passou a (sic). “Isso” subentenda-se suicídio.
fazer uso de medicação controlada.
O analisante comenta que era
No retorno de minhas férias, passei pavio curto, mas nunca imaginou
a realizar o acompanhamento matar alguém. Lembra que, quando
psicológico de PP. Esse começou a dirigir, ele não gostava.
acompanhamento teve a duração Isso porque, cada vez que vinha para
de 10 meses. Foi interrompido após a cidade (morava no interior), tinha
a minha transferência de local de que trazer a “mala da mãe junto”

18
(sic). Estando a mãe junto, ele não do pai.
conseguia fazer as coisas dele.
Pedro Paulo manifestava uma
Nessa sequência de associações diz: preocupação com funcionários,
“o pai nem conseguiu aproveitar a compras, colheita, venda…
mãe. Ela fez lipo, arrumou um monte
de coisas, ficou fininha (…). A mãe se A companheira estava irritada
arrumou para ele (…). Ele fez isso ...” porque não lhe havia passado
(sic). uma procuração para resolver os
problemas relacionados aos negócios
Sonho 2: “Sonhei que tinha fugido. deste. Passou para a irmã mais nova.
Fui para casa resolver umas coisas e, Afirma que “eu não tinha voz em
consegui voltar para a conferência” casa” (sic). Lembra que a companheira
(SIC). deu um cavalo para a filha (enteada),
sendo que a filha já tinha um e, que
Narrativas e associações de Pedro escondeu isso dele. Refere que a
Paulo relacionadas ao sonho 2: companheira tinha dinheiro, não
gostava de ir para o interior, não
Já com relação ao segundo sonho, entendia dos negócios. Pedro Paulo
em que foge do presídio, PP vinha pouco para a cidade. No início
relata que há pouco tempo, tinha de sua prisão, ela lhe propôs casar, ao
separado os negócios dele com o pai. que respondeu: “se não casei quando
Arrendou uma terra para si e, estava estava livre, não vou me casar estando
começando. Diz que os primeiros preso” (sic).
anos não são fáceis. “A terra tinha
gado em cima. O gado soca a terra, Comenta também que, após sua
destrói a terra. Fica ruim para a prisão, entre ele e a companheira
plantação” (sic). não havia mais uma relação de
casal. Nunca houve visita íntima.
“A mãe não ajuda muito. É meio No Natal, esta fez uma viagem de
lenta. Era o pai quem cuidava de transatlântico. Um tempo depois,
tudo” (sic). Referindo-se aos negócios informa que ela pediu para se separar.

19
Aceitou. Justifica que ele não podia experiência de satisfação alucinatória.
“empacar a vida dela” (sic) e, que se A atualização desse signo tem dupla
fosse condenado, iria se separar. ressonância: “por um lado, a memória
de satisfação, por outro, também, a
Sonho 3: Já não lembra mais. memória da falta, que resultou da
perda constituinte desse primeiro
Aos poucos, PP passa a não lembrar tempo da infância”. Dessa forma, dois
mais dos sonhos. O sonho passa a elementos principais estão em causa
cumprir sua função. no sonhar: a referência temporal e a
reconstituição da falta estrutural que
permite a construção da fantasia.

Considerações Teóricas Em Freud (1915-16) vamos ver que


é na construção do sonho que
“Bem entendido, o que lembramos do encontramos um enlace entre pulsão
sonho não é o próprio sonho, já significa o e representação. Essa construção
despertar” (COSTA, 2006, p. 22). faz parte do que o autor chamou
de realidade psíquica. A realidade
Freud (1915-16) nos mostra que o
psíquica é a tela necessária para que
sonho recordado não é o material
a ‘realidade’, tal qual a representamos
original e sim um substituto
em nosso cotidiano, possa ter a
deformado, o qual, mediante a
consistência que lhe damos (COSTA,
rememoração de outras imagens
2006). Mais ainda, sem realidade
substitutas, deve auxiliar-nos a nos
psíquica, não há realidade material.
aproximar do material original, a
Essa contribuição, conforme a autora,
tornar consciente aquilo que no
é uma das maiores que a psicanálise
sonho é inconsciente. O autor nos
pode trazer para a cultura, “...para que
ensina também que, a maioria dos
representemos a realidade, é preciso
sonhos não podem absolutamente
antes sonhar” (COSTA, 2006, p. 14).
ser lembrados e são esquecidos, salvo
pequenos fragmentos. Para a autora, essas afirmações
podem ser constatadas nos
Ana Costa (2006) demonstra que
momentos em que algo rompe
Freud subverteu a temporalidade
abruptamente com as referências
que os intérpretes dos sonhos
que ordenam o cotidiano, afetando
propunham. Ao contrário de uma
a função da realidade psíquica.
predição do futuro, refere o sonho
Somente conseguimos orientar-
a um retorno do desejo constituído
nos na chamada realidade material,
na infância. Mas esse infantil que
quando as funções do sonho e da
se atualiza não concerne a algo
fantasia podem ser reconstituídas.
objetivo que tenha acontecido.
Para viver, é preciso sonhar. “Há
O que se atualiza diz respeito a
dimensões de crises, que trazem, em
um signo representante de uma
alguma medida, um fechamento da

20
função desejante. Ou seja, obturam organismo. Tanto é assim que já com
nossa falta constitutiva, essa que nos Freud encontramos a explicação
faz desejar e sonhar” (COSTA, 2006, p. de que o sonho tem por função a
15). manutenção do sono, do estado de
repouso” (COSTA, 2006, p. 11). “Os
Conforme Ana Costa (2006), sonhos são coisas que eliminam, pelo
Lacan acrescenta algo novo. método da satisfação alucinatória,
Afirma que o sonho coloca em estímulos (psíquicos) perturbadores
ato não somente o signo de um do sono” (FREUD, 1915-16, p.165).
objeto que move o desejo, mas,
fundamentalmente, um mais E, é nessa medida, de ser o sonho já
além que aponta nossa falta mais o despertar, afirma Ana Costa (2006),
radical. Essa falta, experimentada que a narrativa do sonho interessa
nas relações primárias, é resultante à Psicanálise, como efeito de enlace
da nossa referência à linguagem. entre pulsão e demanda de amor.
“Corriqueiramente, na construção da É pelo endereçamento, numa fala
nossa realidade, essa falta precisa ser ao analista, que o sonho toma sua
encoberta. O encobrimento permite condição literal.
uma certa constância de nossa
percepção das coisas” (COSTA, 2006,
Análise do Caso
p. 21).

Embora os sonhos pareçam uma “Realmente não é fácil dar atenção de


repetição da realidade, trazidos todo o coração contra o muro de um
de forma direta e com pouco louco”. Outside of the wall (Roger Waters)
encobrimento, fica claro que o desejo
surge como motor do sonho e da “E quantos de nós estamos
fantasia. “E, nesse sentido, não tem, preparados para ‘dar atenção de
por princípio, correspondência na todo o coração’ aos ditos ‘loucos’, que
realidade material” (COSTA, 2006, nada mais são que seres que vivem
p. 15). Assim, conforme a autora, encarcerados dentro de si e buscam
parafraseando Freud, o desejo precisa palavras para exprimir de alguma
permanecer indestrutível, irrealizado, forma sua dor?” Ricardo Steil (2021)
representando o impossível, sendo
a força motora da fantasia. “A O acompanhamento psicológico
concepção dos elementos oníricos no cárcere é um desafio tanto para
nos dizem serem eles coisas não o profissional psicólogo quanto
originais, (...), substitutos de algo para o apenado. Não é fácil manter
cujo conhecimento está presente a constância do atendimento, no
em quem sonhou, que lhe é, porém, sentido de ter horário, turno e dia
inacessível” (FREUD, 1915-16, p. 107). fixos. A troca de plantões é diária. Às
vezes, no dia combinado, o plantão
“Sonhar tem efeitos no nosso não concorda em passar o apenado.

21
Em alguns dias, pode ter ocorrências denúncias. É o contexto do cárcere.
registradas no livro de registro e, as
movimentações ficam suspensas. ‘Quero parar de sonhar’, me diz PP.
Ou ainda, pode estar ocorrendo uma Parece se traduzir por não quero ficar
revista. Enfim, as interferências são preso às representações evocadas
muitas… pelos sonhos e, que lhe causam
sofrimento. Precisa falar e falar e
Essas interferências fazem parte do falar… Mais do que isso, precisa ter
ambiente prisional e é de particular para quem dirigir essa fala.
importância discorrer algumas
palavras sobre tal questão. Quando Pedro Paulo esteve preso a vida
se fala em plantão, se fala de um inteira a um pai que o metia em
regime de trabalho de 24 horas apuros e que cometia muitos erros.
com 72 horas de folga, composto O pai não o defende, como um pai
por Agentes Penitenciários, neurótico normal, que conhecemos
responsáveis pela segurança. As no nosso dia a dia. Esse pai nutre uma
ocorrências dizem respeito a tudo fantasia de ser independente. Um pai
o que acontece na casa prisional, paradoxalmente preso na fantasia do
desde o início até o final de cada fort/da = ausência/agressividade.
plantão. E, todas as ocorrências são
registradas no Livro de Ocorrências, Por que PP matou? Em seu
que é um documento. Nele ficam imaginário, esta é a forma encontrada
registrados o horário do café da por ele de defender/salvar o pai,
manhã, saída de apenados para o render tributo ao pai: ser homem.
trabalho externo ou interno, almoço,
visitas, atendimentos, audiências. Mas matar, na nossa cultura, é um
Enfim, toda a movimentação da casa erro, é um crime. É uma forma
prisional. E, nas revistas, são retirados equivocada de ser homem. Pedro
os apenados das celas e, esta cela é Paulo não consegue extrair da
revistada, bem como os apenados. independência do pai, o lugar de
homem. Então o pai mentiu? Há aqui,
Oferecer a escuta é um desafio maior o engano. Com isso que PP se depara.
ainda, considerando que o cárcere
trabalha com sistemas de controle. E Vemos que o significante “erro” é
o controle para o sofrimento psíquico, primordial.
na maioria das vezes, se dá pela
medicalização. Dar uma ré na camionete e descer
pelo barranco é meter os pés pelas
Para o apenado, o atendimento mãos, errar, escorregar, cair. Cair
regular no cárcere pode deixá-lo no rio de morte que corta as terras.
exposto diante da massa carcerária, Motivo das brigas do pai e de sua
que muitas vezes entende a ida dele prisão, inclusive ao pai.
ao atendimento como prática de

22
O pai não conseguiu aproveitar a Produzem compreensão, absolvição e
mãe. Mas, se errar se torna homem... vida.

Ele precisa de alguém que sustente Por que o pai volta no sonho de Pedro
a dependência. Motivo também do Paulo? Para que ele possa responder
trabalho na relação de análise. Pedido à questão: sou homem!
demandado nas entrelinhas do
“quero parar de sonhar”. Desnecessário quase se faz referir
o relacionamento de PP com a
Por que fugiu? O superego lhe avisou: companheira, que parece ser muito
alguma coisa saiu errado! Por outro semelhante ao seu relacionamento
lado, seu pai agora está preso e PP com o pai. Pouco falou sobre isso. E,
está livre (do pai). Ele não salva o pai! aceitou sem questionar muito o fim
Salvar o pai é uma fantasia de todo dele.
neurótico. Ele não dá conta.
Por fim, não lembrava mais de
Nesse atendimento, de dez seus sonhos. Falava da vida, de seu
meses, foi possível observar vários encarceramento, das relações na
desdobramentos. Em um primeiro cadeia. Fazia críticas ao sistema
momento, PP está mais preso na prisional, entre outras coisas. O
relação com o pai. Em um segundo, sonho passou a cumprir sua função:
passa a falar menos no pai. garantir o sono e o repouso. Passou a
ser desejo de dormir (LACAN, 2002),
Pedro Paulo sonha que foge do denunciado nas entrelinhas, a partir
cárcere, mas volta para a conferência. da própria negação do desejo de
Aparece sua estrutura de obsessivo forma enviesada “quero parar de
raiz! Segue pagando tributo ao sonhar” (sic).
pai. Faz um retorno ao pai, porque
na estrutura neurótica, não pode Conclusão
fugir da lei. Porém, pode resolver
suas questões (de homem), Foi possível observar, neste estudo,
ser independente, autônomo e a importância do sonho na vida das
responsável, sem cometer erros que pessoas, bem como a importância do
o prejudiquem. Assim, consegue estudo sobre os sonhos, para que seja
receber a herança do pai. Seus possível uma abordagem adequada
herdeiros são os apenados, para do sofrimento dos sujeitos que nos
quem oferece trabalho em suas procuram.
propriedades/terras. Presos são
pessoas que erraram, mas que não No caso estudado, a escuta das
precisam ser criticados e maltratados. narrativas e associações trazidas
permitiram ao analisante que se
Trabalha em terras que produzem! deparasse com seu desejo, em

23
especial, de se livrar da prisão FREUD, Sigmund. Conferências
vivenciada em relação ao pai, ao Introdutórias sobre Psicanálise
longo de sua vida, com as perdas (1915-16). Obras Completas. V. XV. Rio
sofridas, inclusive a do pai e, com a de Janeiro: Imago, 1976.
reconstrução de sua vida, bem como
de seus familiares. LACAN, Jaques. Os escritos técnicos
de Freud (1953-54). Seminário 1. Rio
De igual forma, é importante destacar de Janeiro: Zahar, 1983.
a necessidade de atendimento
e escuta às pessoas privadas de LACAN, Jaques. O Desejo e sua
liberdade, forma fundamental de Interpretação (1958-59). Seminário 6.
alívio do sofrimento e da dor. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. (Tradução
da APPOA – Associação Psicanalítica
Esperamos que o presente artigo de Porto Alegre).
elucide e inspire outros profissionais
a se dedicarem ao trabalho junto às MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org).
pessoas privadas de liberdade, de Pesquisa Social: teoria, método e
modo a auxiliá-las a significarem suas criatividade. Rio de Janeiro: vozes,
histórias pregressas e sonharem com 2010.
novas experiências sociais.
STEIL, RICARDO. Da Ganância Afetiva
Silvana Aparecida Desordi à Ausência da Lei: Construção do
CRP 07/08826 Muro da Psicose. Rio de Janeiro:
Instituto Penal de Santo Ângelo. Letras, 2021. 2. Ed.

Referências
COSTA, Ana. Sonhos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.

24
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO
PENAL NO QUE SE REFERE A SAÚDE MENTAL E A
DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO SISTEMA PRISIONAL DO
RIO GRANDE DO SUL

Introdução
O presente artigo é fruto do desejo preconiza Lei Complementar nº
de refletir sobre qual a melhor forma 13.259, de 20 de outubro de 2009
de abordagem e acolhimento às (atualizada até a Lei Complementar
pessoas usuárias de drogas e/ou nº 15.453, de 17 de fevereiro de 2020):
dependentes químicas que habitam
as Penitenciárias do Rio Grande Realizar atividade de nível superior, de alta
complexidade, envolvendo atendimento,
do Sul, mais especificamente as
assistência e orientação a presos nos
que se encontram na Penitenciária estabelecimentos prisionais na execução
Modulada Estadual de Osório, região das penas privativas de liberdade, das
litorânea do país, assim como pensar medidas de segurança e restritivas de
em propostas e linhas de ação que direitos, operacionalizando sua avaliação
e o acompanhamento dos processos de
possam contemplar o cuidado em
socialização, bem como planejamento,
saúde mental. A observação se dá coordenação, execução, estudos e pesquisas
a partir do trabalho desenvolvido em matérias inerentes à área penitenciária
como Técnica Superior Penitenciária- e correlatas. Trabalho realizado com risco de
Psicóloga que atua no sistema vida. (RIO GRANDE DO SUL, 2009).
desde 2010. O campo de pesquisa é
vasto, assim como as peculiaridades Em 2018, o Departamento de
e nuances observados no que Tratamento Penal atualizou
se refere ao público acolhido no sua Norma Técnica (001/2018)
interior da prisão em pauta. Uma (RIO GRANDE DO SUL, 2018),
prisão exclusivamente masculina, apresentando como principal foco a
em sua maioria, com jovens entre atenção dirigida às pessoas privadas
18 a 29 anos, com a coadjuvância da de liberdade e sua condição de
doença/transtorno mental em suas vida social, objetivando a redução
diversas manifestações, assim como a da vulnerabilidade com fomento
dependência química. às potencialidades individuais,
para além de simples supressão
O trabalho do Técnico Superior das necessidades básicas. As ações
Penitenciário que atua no Sistema devem ter como principal intuito
Prisional do Rio Grande do Sul envolve a promoção, proteção, prevenção,
ações de tratamento penal, conforme assistência e reabilitação dos(as)

25
encarcerados(as). A porta de entrada janeiro de 2022, contamos com
de qualquer pessoa que ingressa no 42.768 de efetivo prisional, conforme
Sistema Penitenciário deverá se dar dados disponibilizados pelo Governo
através do acolhimento, da escuta Brasileiro.
sensível baseada numa postura ética
profissional que tem como principal O presente estudo torna-se relevante
objetivo a pactuação em consonância quando o incremento da população
às suas necessidades. carcerária vem tomando proporções
preocupantes no que se refere
A proposta de cuidado em saúde ao aumento do encarceramento,
adotada pelos(as) profissionais principalmente pelo delito de tráfico
que atuam no Sistema Prisional de drogas, assim como, o fenômeno
Brasileira está ancorada na Portaria do consumo de drogas como potente
Interministerial nº 1.777, e pela realidade de acometimento em saúde
Portaria Interministerial nº 1, de 2 da população brasileira como um
de janeiro de 2014 PNAISP (Política todo. Pensar no acolhimento do(a)
Nacional de Atenção Integral à Saúde usuário(a)/dependente químico(a),
das Pessoas Privadas de Liberdade assim como as estratégias possíveis
no Sistema Prisional), as quais em relação ao seu cuidado são de
apontam para a necessidade de extrema importância e necessidade
implementação de ações e serviços dentro deste contexto histórico
voltados à atenção integral à saúde onde os avanços do poder público
da população privada de liberdade, rumam à construção de mais espaços
ofertando às pessoas reclusas os de segregação em detrimento de
mesmos direitos de acessibilidade políticas públicas efetivas quanto ao
equidade ao Sistema Único de cuidado em saúde, bem-estar social,
Saúde, buscando garantir que o direitos humanos e igualdade social.
direito à cidadania se efetive em uma
perspectiva de direitos humanos.
O trabalho de
Se o consumo de substâncias acolhimento no contexto
psicoativas na Sociedade Brasileira carcerário
é preocupante, torna-se ainda mais
grave dentro das unidades prisionais. Toda a pessoa que ingressa na
O Brasil é o terceiro colocado no Penitenciária é acolhida por meio
ranking dos países com maior de uma Entrevista de Triagem
população carcerária do mundo, realizada pela equipe do Setor
com 773.151 mil apenados, presos Técnico das casas prisionais que,
em unidades prisionais e delegacias, em sua maioria, são compostas por
segundo o Levantamento Nacional de Psicólogas e Assistentes Sociais.
Informações Penitenciárias (BRASIL, A tarefa é a realização de uma
2017). Segundo Mapa da População breve anamnese projetada pelo
Prisional no Rio Grande do Sul, de Departamento de Tratamento

26
Penal, setor este que faz a gestão delito de tráfico de drogas. (BRASIL,
do trabalho de todos os técnicos do 2017). Ressalta-se que os dados
Estado. Neste momento é feito o estatísticos apresentados são
acolhimento, os encaminhamentos referentes a população masculina,
necessários, mas principalmente, é pois o trabalho de pesquisa se deu
o primeiro contato do(a) detento(a) numa Penitenciária exclusivamente
com a equipe Psicossocial. Alguns masculina. E ainda, é realizada
já possuem a experiência pessoal de uma breve pausa para explicar
ter passado pelo sistema prisional, a importância do delineamento
porém, outros(as) não, o que requer desta sistemática, principalmente
determinada sensibilidade do(a) ao público o qual não atua numa
entrevistador(a) quanto ao momento instituição penitenciária.
em que esta pessoa está passando,
situação em que alguns manifestam Breve Histórico de
seu pedido de ajuda diante o desafio Acompanhamento
e a adversidade enfrentada ao
ingressar no sistema prisional. Diante deste cenário, trarei à
tona as informações obtidas do
No decorrer do processo de acompanhamento de um detento
acolhimento é onde observamos as para descrever uma realidade
principais qualidades do indivíduo recorrente no contexto de trabalho,
quanto às suas potencialidades, como mais uma história dentre outras
principais características pessoais várias que compõem o superlotado
e vulnerabilidade biopsicossociais. sistema penitenciário brasileiro.
Aqueles(as) que solicitam auxílio é
destinado a eles(as) a inclusão em A partir disso, falarei um pouco de
atividades laborais, educacionais, Josias (nome fictício), dependente
acompanhamento psicossocial e químico, filho de família tipicamente
acompanhamento em saúde, dentro vulnerável biopsicossocial, com
das possibilidades da Casa Prisional. histórico de família nuclear rompida
Neste primeiro contato, a equipe se pela ocorrência de abuso sexual
depara com os mais variados casos, por parte do genitor em relação a
mas chama a atenção para um dos irmã mais velha (somente por parte
perfis que os profissionais se deparam de mãe), situação está que afasta
com certa frequência: o das pessoas Josias do convívio com o pai. Ele
que ingressam no sistema por conta e seus outros 6 irmãos ficam sob
do uso ou do envolvimento com a responsabilidade somente da
o delito de tráfico de drogas. São genitora, uma pescadora alcoolista e
quase 800.000 homens presos em com problemas psiquiátricos.
Penitenciárias Brasileiras, destes, a
sua maioria cumprindo condenação Os primeiros comportamentos
ou presos provisoriamente pelo identificados como inadequados

27
apareceram ainda na puberdade, no de tentativa de suicídio, o que ela
contexto escolar. Envolvimento com não sabe se foi pelo uso excessivo
atividades transgressoras, tal como de drogas ou pela herança genética
uso de drogas em meio ao ambiente da família, visto que sua mãe se
escolar, assim como, a necessidade suicidou. A partir desse momento,
de demonstrar superioridade Josias ingressou em uma sequência
ao levar uma arma em frente à de internações e hospitalizações por
igreja evangélica da comunidade, conta do uso de drogas e problemas
dão o tom do panorama geral psiquiátricos. Por volta dos 12 anos
observado neste caso. O estereótipo de idade passou a ir e vir da casa
de família com relacionamentos dos pais, a retomar o convívio com
parentais desfavoráveis, tal como o genitor, o que lhe mobilizou
violência intrafamiliar, uso de e ainda lhe mobiliza muito pelo
substâncias, monitoria negativa, desprendimento afetivo apresentado
traz o colorido típico do sujeito que pelo mesmo. Josias acredita que
muito precocemente se ensaia parte de seus problemas são advindos
nos primeiros comportamentos da ausência de uma figura paterna
delitivos. Atualmente, a genitora forte o suficiente para que lhe
encontra-se em abstinência e segue “mostrasse o caminho certo”, já que o
acompanhamento junto ao Centros pai é usuário de drogas e já cumpriu
de Atenção Psicossocial (CAPS) de condenação por diferentes crimes.
sua comunidade, o que favorece
o processo de comunicação e Josias chega à Penitenciária de
estabelecimento de uma rede de Osório apresentando dificuldade
apoio à Josias. Maria (nome fictício de relacionamento com os demais
dado à genitora) mostra-se muito detentos, o que com o decorrer do
disponível ao auxílio quanto a história acompanhamento é justificado pelas
de vida pregressa de Josias, contando dívidas advindas do uso de drogas
que, ainda na puberdade, o filho dentro do ergástulo. Problemas
apresentou seu primeiro episódio disciplinares, o uso e abuso de drogas

28
e de psicofármacos colocam Josias Apresenta-se aqui um breve esquete
em estado de colapso total, momento do histórico de vida de um detento,
este que é necessária uma solicitação mas que já possibilita traçar alguns
de internação psiquiátrica a pedido pontos a serem pensados enquanto
do próprio detento. Este é o início linhas de cuidado.
da caminhada de mais um detento
que possui um problema de saúde Breve análise da
e com a justiça. Josias apresenta
altos e baixos durante o tempo que
realidade do perfil do
se encontra encarcerado, e destaca- dependente químico que
se aqui, principalmente, seu pedido habita as prisões
de ajuda diante de momento crítico
de vida. Ao vir preso, Josias decide A história de Josias ajuda a refletir
que precisa tomar uma atitude: ele sobre o contexto dos indivíduos
opta pela vida e passa a ser movido com quem trabalhamos e suas
pelo desejo de resgatar sua própria vicissitudes, principalmente no que
identidade, experienciar uma nova concerne sua cultura. Atrevo-me a
vida a qual nunca teve. O processo é dizer que aos dependentes químicos
doloroso e solitário. Josias se apega privados de liberdade é possível
ao acompanhamento psicológico, ao atribuir um sentido intrínseco contido
contato com a genitora e nos estudos no uso de drogas, seja ele pelo
bíblicos, já que uma das rotas de fuga desejo juvenil em transgredir regras
foi sua conversão como evangélico. e enfrentar figuras de autoridade
ou pela necessidade de um suposto
O processo terapêutico é pertencimento, conforme destaca
demandante e apresenta nuances, Gomide (2011) em seu estudo junto a
já que trabalhamos sob a ótica população com menores infratores.
da redução de danos, por ora a Neste sentido, nos deparamos com o
abstinência, mas que efetivamente grande risco que determinada parcela
o fator psicológico apresenta-se em dos nossos clientes enfrenta durante
constante linha de tenacidade no seu processo de desenvolvimento
momento em que a busca por uma da personalidade ao terem o
identidade lhe coloca no contato com traficante como figura de referência,
o vazio, ou seja, Josias não sabe o que referência essa quanto aquele(a) que
desejar, não sabe de onde partir e disponibiliza acolhimento, de poder
para onde quer ir, sabendo somente bélico, de poder aquisitivo, de status e
que o desejo é deixar de ser “o Josias reconhecimento social.
– aquele que cresceu sendo um
traficante e que é reconhecido por Acolhido pelo tráfico, o sujeito é
isso”, conforme palavras do próprio contido, é “apoiado” por aquele que
detento. se coloca no lugar como que de uma

29
família, contraposta aquela primeira Proposta de linha de
que não foi continente em todas suas
necessidades, que faltou, que deixou
Cuidado
a desejar diante da necessidade
de um constante retorno/gozo, Além de acolher, é necessário
que é imediatista, que não pode ouvir e conduzir o sujeito a uma
esperar e ser frustrado. Os conflitos construção individual dentro
e lutos necessários, os quais todo o daquilo que dispomos no sistema
adolescente em desenvolvimento como um todo. A Penitenciária
necessita experienciar, são conta com o Acompanhamento
solucionados por aquele grupo de Psicossocial e Psiquiátrico como
iguais que, diferentes dos demais, é primeira estratégia de cuidado em
poderoso, tem alcance naquilo que saúde. A constituição do Núcleo
deseja e que o faz de forma imediata. de Estudos para Jovens e Adultos
também pode ser vista como uma
Muitos são os sujeitos que durante das estratégias que a Penitenciária
o processo terapêutico constatam possui, como proposta de espaço
que sua trajetória se forjou naquele de proteção e saúde mental através
estereótipo do traficante, o qual, na da possibilidade de conclusão do
vida real, não encontra outro espaço Ensino Médio e Fundamental, assim
senão o do mínimo envolvimento como participação nas diversas
delitivo. Sair dessa realidade tem um atividades oferecidas pela mesma
preço alto e, muitas vezes, impossível (projeto remição pela leitura, sarau
de ser visualizado por aquele que usa literário, projeto autor presente,
drogas e que vive delas. atividades alusivas, etc.), espaços
estes onde é possível o exercício
Dentro deste recorte é importante de uma individualidade. Outro
analisar o contexto sócio-histórico dos dispositivo possível são os grupos
indivíduos aos quais nos referimos, específicos para dependência
e sem a pretensão de crivá-los, química, seja baseada na perspectiva
genericamente observamos a figura da redução de danos, seja com o foco
paterna ausente, problemas de na abstinência total, o que deverá
violência intrafamiliar/doméstica; ser constituído através do perfil dos
comorbidades psiquiátricas dos integrantes dos grupos. O incremento
entes ascendentes e descendente; de incentivo ao trabalho prisional e as
problemas de aprendizagem/escolar práticas artesanais também podem
e a pobreza de uma forma geral. ser vistas como atividades que visam
Desprovido de uma estrutura forte, a saúde mental no momento em
o mundo do tráfico passa a ser visto que o indivíduo, envolvido em uma
como a melhor e única opção de conduta laboral, se sente produtivo
sobrevivência em meio a toda a e envolvido com atividades que
vulnerabilidade biopsicossocial. futuramente poderão lhe auxiliar

30
como um ofício a ser praticado na Considerações Finais
vida em liberdade.

Sendo assim, podemos dispor de As políticas públicas apontam


uma rede interna com propostas a redução de danos como a
similares às ofertadas na rede principal estratégia para atenção e
pública de saúde, dando acesso aos cuidado do dependente químico,
cuidados dos usuários de álcool e e em contrapartida observamos a
outras drogas conforme é ofertado na política proibicionista em relação
vida em liberdade. A isso chamamos as drogas e como força política
de tratamento penal com vista ao contra abordagens mais repressivas
retorno em sociedade, o que nem e pautadas no controle social e na
sempre é possível realizar em todas abstinência total, conforme Alves
as Penitenciárias, mas que em via (2009). Enquanto profissional de
de regra, é proposta possível de ser saúde e responsável pelo cuidado do
articulada. sujeito que requisita auxílio para o
combate à dependência química, é
Não podemos deixar de referir necessário ter em mente que foram
o acolhimento da família que é muitos os avanços da saúde pública,
ponto fundamental nesta questão. dos debates públicos para seu melhor
Sendo necessário o mapeamento entendimento das questões que
e a articulação dos profissionais envolvem o uso de drogas, mas que,
da Penitenciária com a rede de infelizmente, o usuário de drogas
apoio disponível na estrutura dos ainda é criminalizado pela sua
municípios dos detentos que escolha.
acolhemos no sentido da retaguarda
e disponibilização real enquanto Após as conferências em saúde,
órgãos do poder público que poderão definidas e instituídas inicialmente
dar a sustentação necessária a estes. pela Lei nº 8.080 e tratadas na III
Aqui, destaca-se a importância do Conferência Nacional em Saúde
contato com a Coordenadoria de Mental, é possível visualizar e
Saúde da região, no sentido de alinhar reafirmar a elaboração de estratégias
as práticas de saúde mental do do modelo de atenção ao usuário de
território conforme o que preconiza o álcool e outras drogas com o foco na
Ministério da Saúde quanto à atenção redução de danos e, acima de tudo, a
e estes indivíduos, de acordo com a problematização da visão do usuário
Lei Federal nº 10.216 de 06 de abril de de drogas como um criminoso.
2001 (BRASIL, 2001). Acredito que, enquanto sociedade,

31
ainda estamos engatinhando rumo que muitos passam pela renovação
a essa descriminalização, sendo virtuosa do ciclo de violências, do
papel fundamental dos profissionais desenvolvimento humano em meio
que atuam na saúde e nas prisões o a criminalidade, que implica no
convite à participação social quanto aprisionamento e o vê como algo
as melhores formas de cuidado natural. Estar preso é condição de
relativo ao dependente químico, muitos com quem atuamos, como
seja no simples ato de ouvi-los, seja algo naturalizado e que precisa
dando voz a estes indivíduos quanto ser ressignificado pela sociedade,
as melhores formas de transmutarem objetivando uma quebra desse
seu status de dependente químico paradigma pobreza – aprisionamento
através de ações efetivas. – dependência química.

Na prática profissional é muito Talvez um dos maiores desafios da


corriqueiro o pedido de ajuda de sociedade como um todo é saber
determinados detentos objetivando a como lidar com os segregados, pois
abstinência total e que ao adentrarem não existem pílulas que resolverão
no cárcere visualizam a cadeia como as mazelas do contexto social em
“uma clínica”. Essa visão não está que vivemos, tão pouco poderemos
pautada tão somente ao uso de suprimir nossas sombras enquanto
entorpecentes, mas principalmente povo ao que se repara no sentimento
quanto aos atravessamentos que o de satisfação de parte da sociedade
uso implica na condição do sujeito quando visualiza o dependente
dependente químico. A pessoa químico condenado. Precisamos
que opta por fazer o uso de drogas enfrentar as vulnerabilidades sociais
dentro do cárcere necessita ter e para isso é necessário empatia,
condições financeiras, disponibilidade envolvimento social e senso
em desenvolver tarefas que visam comunitário para entender que os
“pagar” com serviços o custo de suas presos são parte daquilo que somos
substâncias, ou seja, o envolvimento enquanto sociedade.
com atividade ilícita dentro do
cárcere, o que corresponde a prática Ana Paula Da Silva Uberti CRP
de possível falta grave, dentre outros. 07/13365
E a partir dessa realidade cabe nos Especialista em Arteterapia – CENTRARTE/
RS;
questionarmos: será a prisão a melhor
Especialista em Gestão e Saúde Prisional –
clínica disponível no poder público?
FIO CRUZ Mato Grosso;
Especialista em Psicologia Jurídica e Forense
É de conhecimento que a vitimização – Unileya;
do condenado pouco auxilia no Especialista em Avaliação Psicológica e
processo do seu tratamento com Psicodiagnóstico – Unileya;
vista ao retorno à sociedade. Especialista em Dependência Química –
Entretanto, temos que ter em mente Centro Universitário Faveni.
Docente da Escola do Serviço Penitenciário –
quem é esse sujeito, ter ideia de

32
SUSEPE Acesso em: 18 jan. 2022.
Membro do Nucleo de Estudos e Parcerias
da Associação do Tcnicos Superior BRASIL. Lei n° 8.080, de 19 de
Penitenciários (APROPENS) setembro de 1990. Dispõe sobre
as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a
Referências organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras
ALVES, Vânia Sampaio. Modelos de providências. Disponível em: http://
atenção à saúde de usuários de álcool www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
e outras drogas: discursos políticos, l8080.htm. Acesso em: 04 fev. 2022.
saberes e práticas. Cadernos de
Saúde Pública, v. 25, p. 2309-2319, BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril
2009. de 2001. Dispõe sobre a proteção e
os direitos das pessoas portadoras de
BRASIL. Conselho Nacional de Política transtornos mentais e redireciona o
Criminal e Penitenciária. Resolução modelo assistencial em saúde mental.
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populacao-carceraria-do-brasil-sao- Interministerial nº 1, de 2 de janeiro
atualizados. Acesso em: 19 jan. 2022 de 2014. Institui a Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde das
BRASIL. Justiça e Segurança Pública. Pessoas Privadas de Liberdade
Há 726.712 pessoas presas no Brasil. no Sistema Prisional (PNAISP) no
Justiça e Segurança Pública, 08 de âmbito do Sistema Único de Saúde
dezembro de 2017. Disponível em: (SUS). Disponível em: http://www.
https://www.justica.gov.br/news/ha- as.saude.ms.gov.br/wp-content/
726-712-pessoas-presas-no-brasil. uploads/2016/06/Cartilha-PNAISP.pdf.
Acesso em: 04 fev. 2022.

33
BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº RIO GRANDE DO SUL. Norma
10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe Técnica 001/2018 do Departamento
sobre a proteção e os direitos das de Tratamento Penal. Normatização
pessoas portadoras de transtornos das Intervenções dos Técnicos
mentais e redireciona o modelo Superiores Penitenciários nas
assistencial em saúde mental. Ações de Tratamento Penal
Disponível em: http://www.planalto. no Sistema Prisional do Rio
gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216. Grande do Sul. Disponível
htm. Acesso em: 28 fev. 2022. em: http://www.intrasusepe.
rs.gov.br/upload/1517398974_
RIO GRANDE DO SUL. Lei Normatiza%C3%A7%C3%A3o%20
Complementar nº 13.259, de 20 das%20
de outubro de 2009. Dispõe sobre INTERVEN%C3%87%C3%95ES%20
o Quadro Especial de Servidores DO%20TRABALHO%20
Penitenciários do Estado do Rio T%C3%89CNICO%20no%20
Grande do Sul, da Superintendência Sistema%20Prisional%20do%20RS%20
dos Serviços Penitenciários – Susepe ATUALIZADA%20JANEIRO.pdf. Acesso
–, criado pela Lei n.º 9.228, de 1º em: 04 de fev. 2022.
de fevereiro de 1991, e dá outras
providências. Disponível em: http:// GOMIDE, Paula Inez Cunha.
www.al.rs.gov.br/FileRepository/ Inventário de Estilos Parentais:
repLegisComp/Lec%20n%C2%BA%20 Modelo Teórico - Manual de aplicação,
13.259.pdf. Acesso em: 04 fev. 2022. apuração e interpretação. (2ª Ed.) Rio
de Janeiro: Vozes, 2011.

34
A ESCUTA QUE EVOCA A VOZ DAS PRISÕES

possa existir, percebi o quão livre


Quando já não havia outra tinta no mundo podemos ser, ainda que presos. E
O poeta usou do seu próprio sangue
aquilo que ecoa em mim, em quase
Não dispondo de papel,
Ele escreveu no próprio corpo, uma década de trabalho no sistema
Assim, prisional, é do campo do desejo,
Nasceu a voz, conforme Garcia-Roza (2009, p. 139),
O rio em si mesmo ancorado “(...) no centro deste discurso, diz- nos
Como o sangue: sem foz nem nascente.
Lacan, está o desejo. Não o desejo
(Livro: Um rio chamado tempo, uma casa
tal como é entendido pela biologia
chamada terra - Mia Couto)
e como é proposto pela filosofia
Quando “me” fiz o convite para natural; não o desejo como satisfação
escrever sobre o sistema prisional e o da necessidade, mas um desejo
meu lugar nesta instituição, confesso desnaturalizado e lançado na ordem
que as inquietações tomaram simbólica”.
conta de mim (mais além, diga-se
Conforme Freud (1929), quando
de passagem), e por vezes pensei
falamos em desejo, o situamos no
em deixar “quieto” e não aceitar
campo da falta, da falha, dos “furos”
este convite que “me” fiz. Mas o
que acometem somente os “viventes”,
tentar deixar “quieto” me instigou
das incertezas do ser e do viver, e das
a pensar sobre o silêncio em que
mais variadas incertezas, como diz
muitas vezes colocamos a serviço
nosso querido Raul Seixas (1973):
da instituição e a desserviço de nós
mesmos. E justamente por isso que
“(...) sobre o que é o amor, sobre o que eu
me pus a pensar, e então a escrever nem sei quem sou...
para dizer de um silêncio na qual É chato chegar num objetivo num instante
quem escolhe como será decifrado (...)”.
e a quem será endereçado sou eu,
é você, somos nós... E nós sem nós,
Uso estas linhas de Raul sempre tão
sem grilhões que impeçam nossa
atuais para que possamos equilibrar
capacidade de ver além aquilo que
aquilo que provoca em mim e em
a grade mostra, libertando nossa
você, pois não falo do lugar do
capacidade de pensar e agir para
consultório, onde as pessoas estão
muito além dos muros institucionais.
“livres” para estar e para ficar, falo do
Quando me dei por conta que
lugar onde a escolha nunca é própria,
escrever é justamente deixar ecoar as
a escolha é majoritária e soberana,
vozes que são silenciadas por aquela
ah, e objetiva, por isso lembrei-me
concretude sem fim, no sentido mais
de Raul, pois as leis “supostamente”
literal e, também, simbólico que
atingem seus objetivos num instante

35
quando penalizam e o cumpra-se sabemos se chegaremos a uma
é imediato, e a instituição no seu construção efetiva deste sujeito
regozijar-se perverso cumpre, e a aprisionado, mas o que move é saber
sociedade aplaude por mais um que sempre é possível tentar e que,
objeto alvo de ódio e desprezo que muitas vezes, desistir seria o caminho
irá se amontar atrás das grades. E mais fácil e pronto, mas justamente
para os desejos mais obscuros de quero andar pelos caminhos onde
alguns é que este ser se amontoa ainda posso plantar flores, e ver o seu
nas celas minúsculas com outros desabrochar ou despertar.
tantos montes que vão reduzindo-
se enquanto sujeito, chegando Mas amanhã é outro dia! E para
ao mais primitivo e grotesco que muitos é outro dia igual ao ontem,
o ser humano pode alcançar e e que se repetirá amanhã! Esta é
compartilham as promiscuidades que a redundância mais absorta que
o sistema oferece. E aquele espaço vivemos no sistema, onde as mazelas
que agora é cela de número de tal, se reproduzem, e os Zés ninguém
não é o João, o Paulo ou Leandro que crescem sem medida. E eu sigo
estão presos ali, mas sim “o drogado”, escutando, até que alguém fale e/ou
“o peludo” e o “latro”, o cheiro não desabroche.
é mais de fezes ou urina, mas da
miséria humana, e as paredes são Alguns, na sua maneira defensiva,
rabiscadas com o resto da dor e do se iludem com técnicas e relatórios
amor, e a “gambiarra” dos fios que infrutíferos que ocupam o tempo
ilumina a cela também apaga aquele e correspondem as expectativas
resquício de sujeito. pungentes do meio social, familiar e
político. Outros, frustrando-se com
É, de fato não sei aonde chegaremos um trabalho muitas vezes solitário e
neste ritmo acelerado da vida desvalorizado, mas esta é a melhor
judicializada, onde construir paredes, opção, pois frustrar-se ainda é
prender, punir e vigiar tem vivido seu essencial ao sujeito, conforme Freud
auge, em detrimento de inúmeros já vinha desenhando em suas obras,
corpos que se amontoam nas dentre elas, Totem e Tabu (1913).
celas fétidas de vazio e dor, onde
as identidades a priori não existem Ufa!! Achei um sujeito nesta história
mais, precisamos construí-las, mas toda de sistemas, e por conta disso,
como concorrer com aquilo que já e não meramente por acaso, preciso
é naturalizado para muitos? Não falar do meu percurso na Psicanálise,

36
amparado pelo desejo de “estar” no busca manter a ordem e a disciplina,
sistema prisional trabalhando de na qual fatidicamente falha quando
modo a invocar a “voz” destes sujeitos este mesmo agente provoca a
gradeados, assim como invocar a voz “desordem” a partir de um gesto
desta que escuta e que por vezes ou fala que tende a desagregar
também é silenciada por um “fechar qualquer ideia que o encarcerado
de cadeados” que invisibiliza a quem possa fazer de si enquanto sujeito.
ousa dizer que atrás de uma grade, ou Mas, ainda assim vamos ali
no adentrar dos muros de uma prisão desenhando a questão da ética e da
reside e resiste um sujeito. privacidade de cada testemunho:
instalando cortinas nas janelas,
Durante todo o percurso no qual ventiladores barulhentos, portas com
escolhi viver dentro do sistema fechadura para que minimamente e
prisional, tenho buscado significar a simbolicamente o setting se instale
ideia de sujeito e escuta. No entanto, e a ideia de transferência se instaure,
não é uma escolha fácil, pois é ir à e ali, entre mesas e algemas, a
contramão daquilo que os relatórios escuta psicanalítica busca brechas
nos exigem de respostas. Falar de para que o sujeito possa advir, e
escuta psicanalítica e de sujeito é metaforicamente falando: é das
falar de um tempo atemporal, ou seja, brechas que vamos (sobre)vivendo
não há possibilidade de delimitar dentro deste sistema.
qualquer que sejam as limitações
que literalmente nos são impostas E estes sujeitos, que por vezes
no cotidiano de uma cadeia. E este clamam por escapar deste
desafio é que tem me feito pensar “enquadre” que a instituição total
e repensar todos os dias e todos os dissemina, são os mesmos que
momentos a construção que venho resistem as ordens e disciplina,
fazendo. Será que a escuta desta que negam a comida, que entram
pessoa hoje em cumprimento de em crise, enfim todos aqueles que
pena privativa de liberdade será usam “as brechas” para escancarar
diferente daqui há alguns anos? e deixar eclodir sua existência ou
Não sei, mas por ora me proponho a metonimicamente falando: “re-
escutar, a partir daquilo que chamo existência”. Conforme Foucault (2010,
de escuta psicanalítica, enfrentando p. 234), as prisões não diminuem a
as limitações de “armar” um setting taxa de criminalidade, pelo contrário,
terapêutico dentro de um local no podem aumentar, multiplicar ou
qual a ética dificilmente se impõe transformar, a quantidade de crimes e
frente a linguagem explicitamente de criminosos permanece estável, ou,
ofensiva e vexatória por parte ainda pior, aumenta, “[...] a detenção
de alguns “profissionais”; local provoca a reincidência: depois de sair
onde o discurso que se preza é da da prisão, se têm mais chances que
“segurança”, que imperativamente antes de voltar a ela, os condenados

37
são, em proporção considerável,
antigos detentos”.

Em Psicanálise valorizamos as
dúvidas, pois é o que nos retira
da certeza e nos desacomoda,
deslizando para novos significantes
que podem nos levar a muitos lugares
ou a lugar algum. No entanto, no
sistema meramente punitivo e de
encarceramento que vivemos, nos diz que o poderão! Dunker (2017) propõe
de um único lugar: a homogeneidade, que tudo depende do que significa
na qual se emaranham uns aos saber e o que significa nós.
outros em suas histórias, corpos
e identidades, ou seja, todos se Saber da existência de atrocidades
tornam iguais diante da lei, o que os nos faz nos recuarmos diante do
diferencia é o número de Infopen nós, como se tivéssemos que nos
– Sistema de Levantamento de defender atribuindo a origem e a
Informações Penitenciárias7 a qual responsabilidade dos atos a eles, essa
são submetidos. Segundo Goffman estratégia ele chama de cercamento,
(1961), o internamento neste tipo de pois isola e determina o mal-estar em
estabelecimento que enclausura uma área exterior, visível e controlada,
para disciplinar se dá de modo que protegendo o nós em um território
o homem internado passe por um interior. Bom, mas este é assunto para
processo através do qual perde sua outra conversa, né?! E por aí vamos,
dimensão de individualidade e de de papo em papo, de supervisão e
sujeito. Ocorre, então, o que o autor análise descobrindo assuntos que
chamou de mortificação do eu. Essas estão cercados de tantos mal-estares.
instituições são, pois, segundo o autor, “O mais evidente, o mais familiar
as estufas para mudar pessoas; cada também, é a interdição. Sabe-se bem
um é um experimento natural sobre o que não se tem o direito de falar
que se pode fazer ao eu. tudo em qualquer circunstância (...)”
(FOUCAULT, 2010, p. 09).
Os sistemas, em muitos níveis,
propõem o silenciar de um sujeito, E falando em interdição e
ordena que fiquem enclausurados cercamento, palavra tão bem
até que a Lei, que se apresenta como colocada pelo psicanalista Dunker,
suposta sabedora de todos nós, se sinto-me hoje autorizada a falar sobre
faça presente e lhes diga quando um lugar do qual muitas vezes ocupei
poderão falar e serem escutados, se é (e hoje tendenciosamente gosto de

7 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança


Pública/Departamento Penitenciário Nacional, 2017.

38
ocupar), lugar este que difere das porém, numa instituição, aquele
“belezas e padrões” exigidos, que que ouve precisa estar atento e ser
vem de outro espaço que ainda não capaz de ler o macro que marca a
se conhece bem, ou não se conhece: cultura institucional e estar atento
popularmente se chama E.T. Sim, para aquilo que faz efeito na minúcia
E.T., aquele ser que as vezes assusta, da vida psíquica de cada um. E é nos
causa espanto e curiosidade, e em atendimentos individuais e grupais,
muitos momentos essa era a única que há possibilidade de escuta destes
nomeação na qual parecia descrever que demandam esse serviço, da
meus sentimentos mais íntimos qual muitas vezes vem atravessado
frente a esta realidade dura e pouco por demandas assistencialistas. No
maleável que é uma instituição entanto, a partir deste encontro
total, pois assim como alguns destes vamos juntos construindo um
sujeitos apenados não “acatam” a processo de trabalho psíquico
cadeia, eu também não me sentia terapêutico.
dentro dos enquadres previstos nos
manuais de trabalho, pelo contrário, É válido ressaltar que a Psicanálise
me sentia cada vez mais “redonda existe onde exista alguém que se
num local tão quadrado”, e esse autorize a escutar a partir deste lugar
(des)conforto que me fez repensar e psicanalítico, assim como a ideia de
me autorizar enquanto E.T. e trazer inconsciente só será reproduzida a
junto a esta instituição que preza partir desta escuta que também é
por padrões e enquadramentos uma “autorizada” pelo outro, utilizando-
escuta livre, não só do sujeito, como se da linguagem e seus significantes,
da instituição, trazendo para análise autoriza-se a ser escutado. E, então, o
o macro institucional para então analista precisa atentar para qualquer
compreender o micro, mas estas são ato que marque a incompletude
respostas que até hoje ponho-me a para, assim, adentrar e fazer furo
construir, pois são as incertezas que nos significantes mestres deste
mantém o meu investimento libidinal sujeito, possibilitando a construção
latente, idealizando que um dia a voz da linguagem a partir do que estava
de prisão seja de liberdade do sujeito. submerso. E assim, como em outros
Conforme Santos (2003), outra precisa lugares de saberes, o processo de
colaboração do texto freudiano: a construção é o nosso maior cúmplice,
despretensão de ser a única verdade, pois nos permite desconstruir aquilo
a relativização permitida pela análise que se apresenta como pronto a ser
de vários ângulos e, principalmente, a executado, o grande engodo, pois não
descoberta da importância de não só há nada pronto quando falamos de
delimitar o olhar, mas de encontrar e sujeito, e por isso utilizamos muito
considerar aquele que olha. o jargão “engolidos” pelo sistema,
porque muitas vezes a coisa vem
Sabemos que no consultório é o com tantos floreios e maquiagens
analista que controla o setting, que acatamos e glorificamos alguns

39
“métodos de tratamento”, mas, não assim como a maneira de reagir
porque não sabemos ou estamos ou de compor com ela. Sabe-se
institucionalizados, mas porque que algumas das grandes funções
somos também sujeitos em eterna psicológicas da cultura são tornar
construção de seu fazer, e as vezes o real suportável, proteger o
miramos na certeza e acertamos nas indivíduo e o grupo, colocando à sua
incertezas. Ufa! disposição modalidades de defesa,
significações, soluções possíveis de
Acho importante ressaltar que a reparação, tornando-se indispensável
Psicanálise é um processo que ou à sobrevida da pessoa (...). (POCREU;
está dentro de si, ou totalmente fora. BORGES, 2009).
Posso afirmar que é por ela estar
totalmente internalizada dentro de E a ti, que te parece mais viável
mim que acredito ser um meio para para tua existência? A mim, urge
acessar a bagagem psíquica daquele a reflexão e análise destes cercos,
que sucumbe a subversão da lei, e se internos e externos, pois preciso que
deixa gozar a partir deste limiar que a voz ecoe por toda a cidade, e que
os “joga” no espetáculo ultrajante assim estes sujeitos aprisionados,
e perverso aclamado por uma que desejam outras formas de existir,
sociedade nefasta. possam ressignificar seus anseios
e conflitos, contextualizando-o
Estes “des-encontros”, a que “sobre- dentro da subjetividade que por
vivemos” no trabalho dentro de vezes lhe parece monstruosa, e
uma instituição prisional, causam minimamente sinta-se inserido no
diversos sentimentos, provocando social e psíquico, sendo então, ele
uma desordem psíquica em mim mesmo o responsável pelos seus atos
e também em você, e em nós, pois e pelas suas próprias punições, que
por mais que os cercos te causem a por vezes são as mais severas, logo, a
sensação de longitude deste lugar reincidência não seja o determinismo
inóspito que é a cadeia, e supõe estar na vida do mesmo.
protegido deles, a sua ex-sistência
insiste em dizer que é uma ilusão, e Entendendo que o inconsciente tem a
apenas uma forma de saber para não mesma estrutura de uma linguagem,
fazer, como diz Dunker (2020) que poderíamos então dizer que a tarefa
há formas de não saber, necessárias do analista de privilegiar o inconsciente
subjetivamente para tornar possível diz deste caminho do dito ao dizer.
continuar resistindo. Mas no sistema não estamos no
enquadramento preciso da clínica...
O sofrimento é universal. Ele faz O que não impede de considerarmos
parte da condição humana, mas não só a possibilidade das pessoas se
sua estruturação, sua expressão, implicarem, mas contarmos com este
é fundamentalmente cultural, saber para instrumentalizar a relação

40
que temos com o outro, seja este outro Há outras que tiram tantas fotografias
um colega ou um preso a quem se para lembrar-se depois, que conseguem se
evadir do agora e não vivem o que define a
está atendendo, e também conosco
essência da viagem, que é arte do encontro
mesmo. (SANTOS, 2003, p. 22).
contingente. (DUNKER, 2019, p. 61).

Essa conversa sobre a sistemática


E aí, queres embarcar nesta viagem??
que produz as prisões e sobre a
Psicanálise que produz efeito em Eu estou de ouvidos prontos, carrego
mim, serve e me serve para embasar na mala apenas minha escuta! E
o desejo latente em produzir sentido seguirei viagem! Para onde? Somente
a uma rotina de trabalho eloquente, a incerteza saberá!
emergencial e desacreditada, como
é o Sistema Prisional e o trabalho Juliana Pletes de Borba
dentro do estabelecimento. Pois CRP 07/19078
as prisões há muito são locais Especialista em Psicologia Jurídica e Forense
“execrados” pela sociedade; suas (Unileya).
grades e muros estão impregnados Especialista em Psicanálise e
de sentimentos que denunciam o Psicopatologias Contemporâneas (UNESC/

ódio e ambição, mas não somente SC).


Penitenciária Modulada Estadual de Osório.
a dos sujeitos encarcerados, como
também os da sociedade, que
mascaram desejos e anseios da
ordem da perversão, que não estão
nitidamente manifestos, mas que
Referências
incitam ainda mais a violência, a
BORGES, Lucienne M.; POCREU Jean-
indiferença e o descaso diante do
Bernard. Reconhecer a diferença: o
outro.
desafio da etnopsiquiatria. Psicologia
em Revista (Belo Horizonte), v. 15, n. 1,
Por isso, considerando que a violência
abr. 2009. Disponível em: http://pepsic.
e, consequentemente, o número
bvsalud.org/scielo.php?script=sci_art
de sujeitos encarcerados tende a
text&pid=S1677-11682009000100014.
aumentar, devemos ir à contramão do
Acessoo em:
que é ofertado hoje a estes sujeitos,
ou seja, ao invés de propor o silenciar
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo,
das vozes e a contenção dos gritos,
uma casa chamada terra. São Paulo:
devemos lhe ofertar o lugar daquele
Companhia das Letras, 2003.
que fala e que será escutado.

DUNKER, Christian. O palhaço e o


(...) a arte da escuta exige as qualidades que se
psicanalista: como escutar os outros
espera de um bom viajante. Há pessoas que
viajam com um roteiro fixo em que qualquer pode transformar vidas. São Paulo:
contratempo é sentido como uma ameaça. Planeta do Brasil, 2019.

41
DUNKER, Christian. Reinvenção da GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o
intimidade: políticas do sofrimento Inconsciente. Rio de Janeiro; Editora
cotidiano. São Paulo: Ubu Editora, Zahar, 2009.
2017.
GOFFMAN, H. Manicômios, prisões
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: e conventos. São Paulo: Ed.
nascimento da prisão. Petrópolis: Perspectiva, 1961.
Vozes, 2010.
SANTOS, Cintia Helena. Por um
FREUD, Sigmund. Totem e tabu e
tratamento penal possível:
outros trabalhos. (Edição Standard
contribuições da psicanálise e da
Brasileira das Obras Psicológicas
redução de danos. Monografia
Completas de Sigmund Freud, Vol.
apresentada a Pró-Reitoria de
13). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Pesquisa e Pós-Graduação da
(Originalmente publicado em 1913).
Universidade Federal do Paraná,
como requisito à conclusão do curso
FREUD, Sigmund. O mal-estar
de especialização em modalidades de
na civilização. (Edição Standard
tratamento penal e gestão prisional.
Brasileira das Obras Psicológicas
Universidade Federal do Paraná,
Completas de Sigmund Freud, Vol.
Curitiba, 2003.
21). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
(Originalmente publicado em 1929).

42
“TU JÁ PAROU PRA PENSAR QUE DENTRO DA CADEIA
NADA FAZ SENTIDO?” ESTRATÉGIAS PARA PROMOÇÃO
DE SAÚDE NO SISTEMA PRISIONAL
O trabalho da Psicologia no Sistema Sob outro ponto de vista, João Luis
Prisional é marcado por desafios. Há Silva, articulador social da ONG
de se destacar que houve avanços Eu sou eu (2020), também aborda
em relação à garantia da dignidade sobre esse movimento centrípeto,
humana neste contexto (ONU, 2015). apontando a necessidade de ser
Contudo, o sistema prisional ainda se “ferrugem” nessa engrenagem, o
constitui como uma instituição total que dialoga com a perspectiva de
(GOFFMAN, 1961), onde a mortificação que práticas de resistência nesse
da subjetividade é operada através contexto são essenciais e podem
de processos de prisionização envolver uma série de dispositivos e a
(CLEMMER, 1940). Sobre esse aspecto, multidisciplinariedade.
Cristina Rauter (2007), em reflexões
sobre as possibilidades de trabalho Considerando que práticas
neste contexto, aponta que os promotoras de saúde no sistema
profissionais da Psicologia lidam com prisional podem ser estratégias de
condições precarizadas e ameaças resistência, o presente texto busca
constantes, que são passíveis de levar compartilhar o relato de experiência
a prática profissional a reproduzir de intervenções psicossociais
a engrenagem da instituição realizadas em um estabelecimento
carcerária. Consideramos, a partir prisional do estado do Rio Grande
de experiências neste contexto, que do Sul com homens privados de
isso pode ocorrer através do desvio liberdade, utilizando o dispositivo
de função, da prática de uma clínica do trabalho em grupos (CFP, 2021;
individualizante e até mesmo pela RAUTER, 2007). Serão apresentadas
perda da identidade profissional, as potencialidades, os desafios e
dentre outros. os impactos de cada ação, com o
objetivo de promover reflexões e
Pode parecer contraditório, mas ampliar as possibilidades de atuação
corroboramos a perspectiva da para a Psicologia. Destaca-se que são
autora de que é justamente nesta ações adaptadas ao contexto, que é
engrenagem que a Psicologia pode composto por dois estabelecimentos
encontrar um lugar estratégico prisionais: um que atende pessoas
para produzir focos de resistência, que cumprem pena em regime
ao formular e realizar ações no fechado e outro que atende pessoas
“sentido oposto ao da mortificação que cumprem pena em regime
institucional” (RAUTER, 2007, p.47). semiaberto e aberto, totalizando em

43
torno de 270 homens. Cabe destacar estabelecimento prisional desde
também que no local, que inclui os setembro sem ainda ter recebido
dois estabelecimentos, há apenas qualquer tipo de atendimento
uma psicóloga lotada, primeira autora mostrou-se uma situação alarmante.
deste capítulo, sendo até o momento Compreendendo que este cenário
a única profissional no setor técnico, poderia levar à ocorrência de um
e que o atendimento social é aumento de situações de urgência,
realizado através de apoio técnico por ausência de um acolhimento
periódico. Destaca-se como aspecto devido, foi construída a proposição da
potente que o presídio trabalha de “Roda de Conversa com a Psicóloga”.
maneira articulada com os serviços Uma vez na semana, os recém-
das políticas do Sistema Único de chegados são convidados para uma
Saúde (SUS) e Sistema Único de roda de conversa. Essa atividade
Assistência Social (SUAS), instituições ocorre no saguão do prédio Anexo
de ensino superior, Conselho da e os participantes são dispostos em
Comunidade, Pastoral Carcerária e cadeiras (às vezes improvisadas, pois
instituições religiosas. As intervenções são as que costumam ser utilizadas
psicossociais que serão apresentadas dentro do próprio estabelecimento).
consistem no Grupo “Roda de A atividade se inicia com as boas-
Conversa com a Psicóloga”, no Cine- vindas, uma apresentação sobre
Debate, no Programa “Construindo a profissional e sobre o que faz a
Caminhos” e nos Grupos realizados Psicologia no Sistema Prisional,
por profissionais da rede de serviços. seguida de uma explicação
sobre o acesso às assistências
Grupo “Roda de Conversa disponibilizadas, além de orientações
com a Psicóloga” sobre documentação civil, acesso ao
trabalho prisional e externo, dentre
No ano de 2022, ainda vivenciando os outros.
impactos da pandemia da Covid-19,
esse dispositivo foi implementado Em seguida, abre-se espaço para
como forma de garantir a realização que possam expor suas dúvidas
do acolhimento e de orientações e considerações. Esse é um
psicossociais para as pessoas que momento muito importante, pois
chegam para realizar o cumprimento habitualmente são manifestadas
de penas no regime semiaberto e situações que são comuns a mais
aberto. Nesse cenário, a rotatividade pessoas do grupo, em especial,
tem sido tanta a ponto de que não acesso a materiais de higiene e
estava sendo possível prestar um contato com familiares. A partir
atendimento psicossocial individual disso, encaminhamentos são
de forma célere. A detecção de realizados e identifica-se que essa
que, em dezembro de 2021, havia ação tem funcionado como uma
algumas pessoas que estavam no espécie de porta de entrada para

44
acompanhamentos psicológicos. opiniões diferentes, a manutenção
Neste sentido, Jain, Kaur, Neha e do silêncio durante o filme e a
Malhotra (2018), em uma revisão organização para que falem cada
sistemática sobre o que funciona em um de uma vez, quando forem expor
intervenções psicossociais no sistema suas opiniões. A atividade acontece
prisional, destacam que a constância na sala multiuso, dentro do regime
do profissional que presta os fechado, com os participantes
atendimentos é um fator de proteção. dispostos em cadeiras, juntamente
Pondera-se que esse primeiro com a primeira autora desse texto,
atendimento, ainda que ocorra que acompanha o grupo durante
numa perspectiva essencialmente a exposição do filme e após faz
de acolhimento e orientação, a mediação do debate. Também
tem possibilitado a construção ocorreram situações nas quais
de um vínculo de confiança com estagiárias do curso de Psicologia
a profissional de uma forma participaram da cocoordenação da
muito potente. Em um primeiro atividade. Destaca-se que o debate
momento, a atividade foi recebida é estabelecido a partir de algumas
com desconfiança, mas já tem sido questões como: “O que mais chamou
identificada pelas pessoas privadas de a atenção no filme?”, dentre outras
liberdade e pela equipe de segurança que buscam estimular com que
como parte da rotina. “A Dona vai ir os participantes exponham suas
falar hoje, né?” é uma pergunta que opiniões em um ambiente seguro.
tem sido comum. Cabe destacar que, apesar de ter
sido inicialmente planejada para
Cine-Debate ocorrer com frequência semanal, o
cronograma sofre ajustes constantes,
A experiência, no regime fechado, já tendo ocorrido também de forma
iniciou em 2018 e segue até os dias quinzenal, mensal e semestral. Tais
atuais, consistindo na promoção alterações, inclusive advindas do
de debates em grupo, mediados contexto da pandemia da Covid-19,
por um filme. Antecede a atividade foram necessárias para manutenção
a construção de um contrato da atividade ao longo do tempo.
de trabalho, realizado de forma Outro ajuste realizado ao longo desse
colaborativa com o grupo de tempo diz respeito à configuração
participantes, prevendo o respeito às do grupo, que operou em alguns

45
momentos como grupo fechado O modelo de habilidades de vida
(com os mesmos participantes em (CASTELLANOS, 2001) foi a teoria
todos os encontros) e, em outros de base para composição dessa
momentos, como grupo aberto, com intervenção, por ser diretriz da
a possibilidade de novos participantes Organização Mundial da Saúde
irem ingressando a cada encontro. (1997) em relação a intervenções
em situações de vulnerabilidade.
Todos os ajustes foram realizados a Preconiza que intervenções em
partir de peculiaridades do contexto grupo promovam habilidades
e em consonância com a equipe sociais e interpessoais, cognitivas e
de segurança. Aliás, esse diálogo para manejo de emoções, a partir
prévio com a equipe de segurança do fomento de competências,
tem feito toda a diferença para o como autoconhecimento, empatia,
êxito e manutenção da ação, pois comunicação eficaz, relacionamentos
todos agentes são contemplados interpessoais, tomada de decisões,
como atores do processo, sendo resolução de problemas, pensamento
previamente informados dos criativo e crítico, lidar com emoções
objetivos e do cronograma. O e estresse (CASTELLANOS, 2001).
engajamento destes profissionais Considera-se que a abordagem de
culminou, inclusive, com a sugestão tais aspectos, a partir da identificação
de filmes. Por exemplo, o filme Coach do grupo com as narrativas dos
Carter: treino para a vida (CARTER; filmes e seus personagens, possibilite
GALE; ROBBINS; TOLLIN, 2005) foi importantes flexibilizações. Maiores
sugestão de um policial penal e foi informações podem ser acessadas
uma película que os participantes em artigo de relato de experiência
avaliaram positivamente. Ela (ROLIM; PENNA; FALCKE, no prelo).
funcionou como um disparador
para a discussão sobre tomada de Destaca-se que as discussões
decisão, resiliência e manejo das estabelecidas nos grupos têm
emoções. Como critério de escolha possibilitado ir além dos objetivos
para os filmes, que ocorre a partir propostos. Os participantes referem
de pesquisas prévias e de sugestões o aumento da sensação de bem-
que emergem do grupo, busca- estar, percepções de sentirem-se
se priorizar os que apresentam humanos novamente por estarem
histórias que possam possibilitar aos sendo olhados “olho no olho” e
participantes identificar estratégias foi identificada a valorização pela
assertivas de resolução de conflitos participação das estagiárias, que,
e tomada de decisões, além de segundo eles, “não tem obrigação de
promoção do pensamento crítico, que entrar no presídio, fazem por escolha”
são importantes Habilidades de Vida (sic). Aliás, a presença das estagiárias
(CASTELLANOS, 2001). suscitou com que perguntas sobre

46
cursar ensino superior emergissem, de promover saúde durante e após o
com alguns participantes encarceramento. É composta pelas
posteriormente inscrevendo- seguintes etapas: Apresentação,
se para fazer as provas do Exame Comunicação, Percepções Sociais,
Nacional para certificação de Jovens Emoções, Relacionamento
e Adultos (ENCCEJA). Esse é um fato Interpessoal, Resolução de Conflitos e
que demonstra a potencialidade Avaliação.
do Cine-Debate para promover
relações sociais saudáveis, a partir da Após divulgação e adesão voluntária,
inserção de assuntos que, apesar de o primeiro encontro tem o foco
cotidianos, não são habitualmente de apresentar a proposta do
abordados intramuros. A oferta de programa e estabelecer um contrato
pipoca durante a atividade também de convivência, privilegiando a
é um fator bem avaliado pelos construção de um vínculo de
participantes, apesar de inicialmente confiança. Os demais encontros estão
ter gerado estranhamento da equipe pautados por dinâmicas de grupo
de segurança. Após sete edições e atividades psicoeducativas, que
realizadas, essa intervenção demostra tem o objetivo de funcionar como
ser um espaço reflexivo importante engajadoras para que os integrantes
de preparação para a vida extramuros, interajam e sintam-se à vontade
sendo destacado pelos participantes para expor suas opiniões, com
o caráter de humanização. discussões que vão sendo mediadas
pela coordenadora do grupo. A
Construindo Caminhos cada encontro são oportunizadas
dinâmicas vivenciais, em especial,
A intervenção psicossocial em grupo através de Role Play, que possibilitam
construída pelas autoras desse aos participantes refletirem sobre
estudo, baseada no Pensamento os temas propostos e vivenciarem
Sistêmico (BERTANLAFFY, 1975; estratégias de manejo de emoções
CAPRA, 1982), e que é composta e de resolução de conflitos, sendo
por 10 encontros em grupo, com estimulados especialmente a
duração de 1 hora e meia cada, busca experienciarem formas assertivas
promover saúde a partir do fomento de manejo. Cabe destacar que os
a comportamentos assertivos e encontros iniciam retomando o
manejo das emoções. Foi construída que ocorreu no encontro anterior
de forma personalizada ao sistema e encerram com uma discussão
prisional brasileiro, considerando sobre o que chamou a atenção dos
robustas evidências na literatura (JAIN participantes naquele encontro. Todas
et al., 2018; RIJO et al., 2007; ROSS; essas percepções são inclusas em um
FABIANO, 1985; SILVA, 2012) sobre livro de memórias, que é construído
a necessidade de abordar aspectos de forma coletiva e colaborativa,
relacionais e cognitivos como forma sendo que no último encontro um

47
exemplar do livro é entregue para esperança e uma flexibilização quanto
cada participante, momento em as percepções sobre os papéis sociais
que também ocorre um ritual de que desempenham e podem vir a
encerramento, através da entrega de desempenhar, intra e extramuros.
certificados de participação e de uma Destaca-se ainda que o “Construindo
confraternização em grupo. Caminhos” está sendo submetido a
um estudo de viabilidade, aspecto
No ano de 2021, a intervenção que se mostra importante para
“Construindo Caminhos” foi aplicada avaliação científica do seu potencial.
com 3 grupos distintos: um no regime
fechado, com 3 participantes, outro
na Cozinha do estabelecimento Grupos realizados por
prisional, com 3 participantes e profissionais da rede de
outro no regime semiaberto, com serviços
2 participantes. Destaca-se que
houve múltiplas manifestações de Consideramos que, conforme
satisfação com a participação na preconizado pelo CFP (2021),
atividade, o que foi manifestado fomentar ações que permitam
verbalmente durante os encontros às pessoas privadas de liberdade
e também através de músicas. conviverem e conhecerem pessoas
Uma delas foi elaborada por um e serviços do território é de suma
dos participantes e foi entoada por importância. Apesar da “engrenagem”
todos no último encontro de um dos muitas vezes promover movimentos
grupos. Identifica-se que mudanças que podem ser interpretados como
de narrativa ocorreram durante os boicotes, o que já foi observado
encontros; um dos participantes, através de falas com insinuações
cujo nome fictício é Israel e que de que profissionais externos
dentro do estabelecimento prisional representam um risco ao sistema
era chamado de Alegrete (apelido ou que se estaria “terceirizando” o
fictício), chegou a verbalizar: “Quando trabalho, consideramos a perspectiva
eu sair da cadeia, vou deixar o de que o envolvimento com essas
Alegrete e daqui vai sair só o Israel”. ações também é uma forma de
Essa fala é potente e ilustra que fortalecer a rede de serviços e
as reflexões propostas permitiram possibilitar ações extramuros com
aos participantes refletir sobre seu maior fluidez (CFP, 2021).
presente e futuro, com instilação de

48
Dentre as práticas realizadas têm relações humanizadas e garantia de
se destacado o Grupo “Preparando direitos. Também podem promover
para a Liberdade”, promovido pelo o pensamento crítico, o que se
Projeto Chance da Unisinos, que evidencia pelo título desse texto
atende a egressos e pré-egressos que é a fala de um participante
do sistema prisional. Num formato dos encontros. O questionamento
de roda de conversa, o grupo busca proposto foi precedido por reflexões
fomentar reflexões e fortalecer sobre as diferenças na linguagem
redes, sendo o papel da psicóloga utilizada no ambiente prisional, que
lotada no local o de divulgar a ação, possui uma língua própria (BASSANI,
prestar apoio durante os encontros 2016). Essa reflexão possibilitou ao
e receber encaminhamentos que grupo discutir sobre a importância
são realizados a partir de detecções da comunicação para facilitar
das profissionais, em especial, acesso interações sociais, o que se relaciona a
a assistências e atendimentos comportamentos assertivos: “não dá
psicossociais. Mediado por esse pra chegar nos lugares e falar babilo8,
mesmo projeto, ocorre o “Programa semente9,... ninguém vai entender”
L&R: Leitura e Remição”, que conta (SIC). Tais aspectos corroboram o
com a participação de professoras potencial dos grupos para mitigar
do Curso de Letras da Unisinos como o processo de prisionização, que
equipe pedagógica. Também se envolve a introjeção da cultura
destacam ações de profissionalização da prisão, manifestada pelo jeito
que são constituídas por esse de falar, por exemplo. O fato
mesmo acompanhamento da de os participantes exporem a
profissional, como a “Oficina de compreensão da importância do
Bolachas de Páscoa” e a “Oficina de contexto para a comunicação é um
Sabão Caseiro”, desenvolvidas por fator protetivo, podendo ser uma
voluntárias da Pastoral Carcerária, forma de minimizar esse processo.
Conselho da Comunidade e do
Projeto Social do Instituto Adventista Destaca-se que os desafios
Cruzeiro do Sul IACS. vivenciados dizem respeito a
movimentos institucionais, que
Considerações Finais têm sido contornados a partir de
uma postura colaborativa e do
Diante dessas experiências relatadas, engajamento dos profissionais
reflete-se sobre as potencialidades da Segurança na composição das
e desafios. Os grupos podem ser ações. Salienta-se que isso tem sido
considerados uma importante possível por uma demarcação clara
tecnologia social que possibilita e constante sobre os papéis de cada
fomentar aspectos saudáveis, profissional envolvido, e também pela

8 Termo utilizado no jargão carcerário para se referir a dinheiro.


9 Termo utilizado no jargão carcerário para se referir a ovo.

49
percepção crescente no ambiente de Denise Falcke CRP 07/07681
que tais ações são complementares Doutora em Psicologia Clínica.
às da Segurança, pois promovem Professora (UNISINOS).
relacionamentos mais funcionais.
O desafio constante tem sido o de
Referências
ampliar o conhecimento de todos
os profissionais envolvidos no
BERTANLANFFY, L. Teoria Geral dos
sistema prisional sobre o trabalho
Sistemas. Porto Alegre: Ed. Vozes,
psicossocial e a perspectiva ampliada
1975.
em saúde (SAFORCADA et al.,
2007). Importante ainda salientar a CAPRA, F. O Ponto de Mutação. São
relevância do contrato de trabalho Paulo: Cultrix, 1982.
em grupo ser construído de forma
colaborativa, o que permite o CARTER, T. (Diretor); GALE, D.;
engajamento dos participantes, e ROBBINS, B.; TOLLIN, M. (Produtores).
da relevância de, anteriormente a (2005). Coach Carter: treino para a
qualquer implementação, selecionar vida. [Filme/DVD]. Estados Unidos:
o escopo técnico e teórico que Paramount Pictures.
irá compor as ações, de forma a
valorizar o trabalho psicossocial CASTELLANOS, M. L. Habilidades
realizado. Não se pretende com esse para la Vida. Uma propuesta
relato compartilhar uma “receita educativa para la promoción del
de bolo” ou um passo a passo, mas desarolllo humano y la prevención de
sim o conhecimento construído ao problemas psicossociales. Bogotá: Fe
longo de uma trajetória de trabalho y Alegría, 2011.
buscando visibilizar práticas, que
ocorrem apesar das adversidades CLEMMER, D. The prison community.
e, principalmente, para mitigar as New York: Holt, Rinehart and Winston,
mesmas. De certa forma, é possível 1940.
afirmar que o trabalho em grupo
promove a construção de sentidos CONSELHO FEDERAL DE
e significados, o que é humanizador PSICOLOGIA (CFP). Referências
num ambiente onde às vezes Técnicas para a atuação das (os)
nada parece fazer sentido, o que psicólogas (os) no Sistema Prisional.
é um sintoma da mortificação Disponível em: https://site.cfp.org.br/
que segue sendo produzida pelo publicacao/referencias-tecnicas-para-
encarceramento. psicologas-os-no-sistema-prisonal/.
Acesso em: 02 dez. 2021.
Kamêni Iung Rolim CRP 07/20341
Doutoranda em Psicologia Clínica GOFFMAN, E. Manicômios, prisões
(UNISINOS). e conventos. São Paulo: Ed.
Professora (IENH).
Perspectiva, 1961.
Técnica Superior Penitenciária (SUSEPE)

50
JAIN, P. K.; KAUR, S.; NEHA; ROLIM, K. I., PENNA, M. N., FALCKE,
MALHOTRA, B. “What work” and D (no prelo). O cine debate como
“What doesn’t work” in rehabilitation dispositivo para promoção de saúde
of offenders: a general perspective. na prisão: relato de experiência.
International Journal of Business Gerais: Revista Interistitucional de
Management & Research, 8 (1), p. 11- Psicologia.
18, 2018.
ROSS, R.; FABIANO, E. Time to
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES think: A cognitive model of
UNIDAS (ONU). Regras Mínimas para delinquency prevention and offender
tratamento de Presos. Nova York: rehabilitation. Johnson City, TN:
ONU, 2015. Disponível em: https:// Institute of Social Sciences and Arts,
www.unodc.org/documents/justice- 1985.
and-prison-reform/Nelson_Mandela_
Rules-P-ebook.pdf. Acesso em: 02 dez. SAFORCADA, E.; CERVONE, N.;
2021. CASTELLÁ, J.; LAPALMA, A.; DE ELLIS,
M. (orgs.). Aportes de la Psicología
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Comunitaria a problemáticas de la
(OMS). Programme on Mental actualidad latino-americana. JVE
Health: Division of Mental Health, Life Ediciones, 2007.
Skills Education in Schools. Genebra:
WHO, 1997. SILVA, J. L. Palestra sobre a ONG Eu
sou eu. Grupo de Estudo do Projeto
RAUTER, C. Clínica e Estratégias Chance da Unisinos. São Leopoldo,
de resistência: perspectivas para o Rio Grande do Sul, 2020, junhoSaúde).
trabalho do Psicólogo em Prisões.
Psicologia e Sociedade, 19(2), 42-47, SILVA, V. P. B. Promoção de
2007. competências em contexto
prisional: avaliação de eficácia.
RIJO, D., SOUSA, M. N., LOPES, J., Dissertação de Mestrado,
PEREIRA, J., VASCONCELOS, J., Universidade de Aveiro,
MENDONÇA, M. C., SILVA, M. J., Departamento de Educação,
RICARDO, N., & MASSA, S. Gerar Ano 2012.
Percursos Sociais: Programa de
prevenção e reabilitação para jovens
com comportamento social desviante.
Ponta Delgada: Equal, 2007.

51
DELÍRIO
Dia de banho era dia de festa. Sem no livro das comunicações, sendo
toalhas, nem sabonete, nem água comentado durante várias semanas,
morna, muito menos talco ou roupa em todos os grupos e comissões.
limpa. Não, apenas fila, “ais”, arrepios A ocorrência sensibilizaria algum
de frio, gritos, roupa fedorenta figurão político que, então, faria
da lavagem tão mal lavada, azul, alguma coisa por nós e pelos
cinza, desbotada, dura. Coletivo e doentes? Ou aquela mulher tomaria
implacável. Para não se alienarem o seu Valium 5 naquela noite,
tanto, diziam os doutores. A limpeza adormeceria entre lençóis de cetim,
e asseio pessoal, sinais de saúde sentiria seu próprio perfume e
mental e agregação; os fragmentos acordaria no outro dia certa de que
da desagregação flutuavam acima aquela visita não passara de um
de nossas cabeças, às vezes pairavam sonho mau?
acima de nossos narizes, olhos
e ouvidos. Isso nos angustiava e Quando eu saía aflita do Pavilhão
amedrontava. Feminino em busca de pós, blushs
e batons para aquelas mulheres
Aprendíamos que deveríamos desbotadas, frias, inumanas –
conviver com isso, porque éramos algumas haviam matado os próprios
os guardiões da saúde mental da filhos –, deveria parecer tão patética,
comunidade. Ou da loucura? Frases tentando numa ânsia, levar vida,
feitas, e que achávamos lindas, feminilidade e normalidade àquela
mesmo sem entendê-las bem. gente. Às vezes levávamos um susto,
nos uníamos todos quando nossa
Com o cheiro, a gente se acostumava, onipotência era atingida por um
mas o primeiro impacto era sempre pontapé, que fazia um de nós acabar
terrível... Não esqueço aquela no hospital. E reavaliávamos nossos
atendente que, no dia da visita da valores, conhecimentos, crenças
mulher do governador, comprou e competências. Não tínhamos
aerossol bom ar; como minha raiva ainda a vivência e o conhecimento
custou a aplacar! Para que disfarçar necessário para perceber como, às
o odor? O cheiro era o mais palpável, vezes, éramos manipulados e postos a
tão denso, forte, testemunha das serviço de uma estrutura repressora e
sombras e miséria humana com que autocrática.
convivíamos diariamente... Ainda
assim, prevaleceu o bom fedor, Não criticávamos quando apenas
porque uma senhora benemerente uma palavra nossa poderia significar
da comitiva até desmaiou, fato que mais um ano de medida de
apareceu relatado no dia posterior segurança para alguém. Para alguém

52
ou para a sociedade? E nestes dilemas Via a máquina destruidora armada no
acadêmicos, concluíamos nossos pátio, sessões às quatorze e dezesseis
seminários mais ignorantes do que horas, ao invés das reuniões, ou na
quando iniciávamos. horta, talvez, as cabeças cairiam
sangrando enormes folhas de fumo
Outro susto quando se soube de uma e alface. Eu, finalmente livre de
triste notícia: o dedão do pé de um minhas tensões, problemas, temores,
paciente havia sido roído por ratos. dificuldades, angústias, tornando
Não ficavam claros os sentimentos a sociedade mais viva, luminosa,
mobilizados nestes instantes: perfumada, solta, livre. Eu, enfim, livre
pena, nojo, tristeza, impotência, de minha própria loucura. Ao invés
provavelmente. Tomávamos contato de choques, medicação, convulsões,
mais uma vez com um mundo delírios, teríamos o abismo, a cova
sombrio de miséria, sujeira, abandono, final.
alienação. Queríamos incrementar
os desinfetantes, vassouras de Berenice Sica Lamas
piaçava, esfregões de aço, com estas CRP 07/00192
ferramentas jamais iríamos resolver Escritora, poeta, ensaísta, oficineira.
algo ou encontrar soluções. Este Mestre em Psicologia Social.
Doutora em Letras.
mundo, no qual não havia lugar para
Scrivere - espaço de criação literária.
a dignidade humana, nos ameaçava
e amedrontava com inexistentes
condições de vida ou de recuperação.

Até na guilhotina francesa eu


pensava, tão impotentes e inúteis
pareciam os conhecimentos ante
os delírios desesperados daqueles
pacientes rotos e sujos. Cada
qual com seu mundo mágico,
aluado, alucinado, fantasias negras
ou coloridas, floridos sintomas
inconstantes. Eu também delirava...
e se Monsieur Guillotine viesse
até o Partenon, se entusiasmaria
com tantas cabeças para rolar...
tantos diagnósticos rotuladores e
segregadores... que em nada ajudam
as pessoas.

53
RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA BIXA PRETA:
NA GAIOLA, PODEMOS (EN)CANTAR CUIDADO?
VENTOS CANTAM PELA JANELA?

Homenagem à Marielle Franco, autoria própria.

Estou aqui para compor essa escrita A cada dado estatístico e notícia de
em correspondência a quem pode morte, encarceramento em massa,
olhar em nosso horizonte brasileiro, violência policial, invasão de terras,
enxergando a urgência de resistirmos comunidades terapêuticas – uma
em coletividade. Escrevo, tomado parte de mim sangra e tenta me
por vezes, pelo cansaço de muitas tirar à possibilidade de sonhar e
batalhas diárias a partir desse lugar ver outras possibilidades de futuro.
de bixa preta, poeta, ilustrador, Convoco, então, Jota Mombaça (2017),
psicólogo e outras experimentações preta, bixa, nordestina, gorda e não
por vir. binária, que nos lembra de que somos

54
maiores que a dimensão traumática vivências, que chegar à roda para
que o mundo está. composição é produzir um comum
com abertura a questionamentos.
Enquanto ventos intempestivos Podemos na Psicologia e escrita fazer
parecem cantar em minha janela, rodas? Como haver a possibilidade
nesse frio de outono, a minha de um comum em equipe e com
memória leva-me a 2021, no meu sujeitos que acessam o serviço, sem
último estágio curricular antes de deixarmos de apostar na autonomia?
me formar em Psicologia, com bolsa A pandemia tornou cada respiro,
Prouni integral pela Universidade olhar e partilha imprevisível, eventual.
do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Portanto, não podemos naturalizar o
Realizei o estágio em um projeto que se oculta na incerteza silenciosa
de extensão da Universidade, na do tempo presente.
modalidade remota, chamado
Chance. Trata-se de um serviço Um ninho em gaiola?
de acolhimento e atendimento
a homens egressos do sistema No primeiro semestre de 2021, chego
prisional, suas famílias e atuação em à Gaiola (Chance), após um tempo
rede, com sede em São Leopoldo, incerto de voos, enquanto enfrentava
abrangendo todo o município do Vale o desemprego para ser possível
do Rio dos Sinos, nesse período. conciliar um estágio obrigatório não
remunerado. Cada ato de resistência
Antes de seguirmos, um breve a partir da minha fala e corpo era um
comentário... Ressalto que falar de voo para fora das gaiolas opressivas
memória aqui, é propor perspectivar do racismo e da homofobia cotidianas
espaços na Psicologia. À produção que me faziam questionar se podia
de memórias, desde nossas eu, me tornar psicólogo? Podia eu
ancestralidades, pertencimento escutar, enquanto, por vezes, não me
cósmico e comunitário, conforme sentia escutado na universidade, com
nos convida Abrahão de Oliveira colegas em maioria brancos neste
Santos (2019a, p. 161). Pistas essas, espaço?
importantes para experimentarmos
sonhar outros cenários enquanto não Chego ao Chance, pensando a
esquecemos de fazer nossas vozes Gaiola a partir do sistema prisional.
serem escutadas. “Armado” e pronto para as lutas e
conflitos, afinal, segundo Luiz Rufino
Neusa Santos Souza (1983, p. 17) vai (2019, p. 49), “o conflito é elemento
dizer que “uma das formas de exercer estruturante da lógica colonial”.
autonomia é possuir um discurso Começo a conhecer aos poucos
sobre si mesmo”. Esse discurso sobre cada galho. Mas já ressalto que a
si não se refere a algo individual, cada encontro, o meu falar não era
aqui vou entendendo a partir das negociado, era convocado. É preciso

55
nos perguntar qual é a cor de quem negro, com faixa etária de 30 anos,
pode escutar, e como chega a um há diversos outonos em situação
espaço institucional? de rua, com acompanhamento do
CAPS Ad10 do território. Abilà teve
Contudo, percebi de início que o acesso a um serviço do Centro de
projeto Chance, diferente de outros Referência para a População de Rua
projetos da universidade, localizava- e fazia uso da tornozeleira eletrônica,
se fora do campus. Lembro-me de como um pássaro que saiu de uma
Grada Kilomba (2019), que a partir do gaiola, mas teve as asas cortadas para
que denomina políticas espaciais, não voar demais. Os atendimentos
vai dizer desses olhares e fazeres ocorreram na modalidade remota, em
coloniais que fantasiam quais corpos aliança com o Centro de Referência
podem acessar alguns espaços, e para a População de Rua, com um
quando cruzam linhas segregadas, telefone emprestado da instituição,
são lembrados de não pertencerem. e um espaço de privacidade a priori
Logo, onde egressos/as do sistema combinados.
prisional podem transitar?
Abilà pôde compartilhar nos
primeiros encontros individuais, que
Ei passarinho, depois de teve uma “recaída” com o álcool,
tantas gaiolas podemos mas que gostaria de fazer parte da
cantar? sociedade. Quando percebemos que
o desespero vai desestruturando a
Como se exercita uma clínica dignidade alheia, qual é o nosso papel
antirracista? Essa escrita se propõe a em um contra trabalho? Tivemos
compartilhar e pensar junto a minha outros momentos marcantes, como
experiência a partir da partilha de quando houve “o papo reto” sobre
impressões dos atendimentos e seu entendimento sobre saúde, e
intervenções. Darei o pseudônimo de concordamos que: saúde podia ser
Abilà, aos encontros e atendimentos algo além da ausência de doenças;
com quem foram feitos por um que a redução de danos pode ocorrer
semestre, enquanto estagiário de não só como cuidado individual,
Psicologia em 2021. Esse é um nome mas coletivo – tendo o exemplo de
em iorubá, e seu significado é: Aquele se alimentar, fazer atividades como
que possui marcas ou cicatrizes ou oficinas de desenho ou canto, habitar
como adjetivo é o equivalente a em mais pessoas os serviços públicos
mutilado ou marcado, conforme José de saúde mental e políticas públicas.
Beniste (2014, p. 32).
Em outros atendimentos remotos,
Abilà, um homem autodeclarado podíamos começar com música,

10 Centros de Atenção Psico Social álcool e outras drogas, equipamentos públicos que têm como premissa o cuidado
em liberdade em aliança com a política de redução de danos.

56
se Abilà sugerisse. Para além da pessoas funcionárias dos serviços
autonomia, me percebia a partir mencionados acessados, apareciam
dos encontros, provocado a como perto de Abilà na chamada, enquanto
acompanhar e exercitar uma estava em atendimento (embora
autonomia com Abilà? De acordo fosse combinado e reforçado de
com Paulo Freire (2004, p. 41-54), a ser particular). E aqui sinto o desejo
autonomia é processo, é vir a ser, de nomear essas presenças como
possível em práticas afetivas, não Àíláre12. Meu foco era ser receptivo e
homogêneas e com espaço para não considerar as presenças como
sonhar. Foi a partir dessas pistas, uma quebra de ambiente ou invasão.
que Abilà e eu criamos um vínculo.
Por vezes, as músicas de cantoras Então, era preciso gingar, chamei
e cantores negros era o estímulo as presenças aqui chamadas de
para Abilà sentir a sua história ser Àíláre para escutá-las também
representada, e ficar à vontade para remotamente, já que apareciam na
compartilhar. – Quais clínicas cabem chamada, e devia tomar o cuidado
rap, funk, samba e pagode? de não tencionar demais e causar
uma reatividade, e assim os usuários
Havia dias para sustentar junto o que serem os prejudicados. Às vezes, as
pode ser desconfortável, e verbalizado respostas podiam ser “esquecer-se
com frequência por quem usa: a de comunicar o atendimento”, “não
tornozeleira eletrônica. Pois, depois emprestar o telefone institucional”,
de alguns dias longe das grades do etc. Logo, alguns elementos verbais
sistema prisional, vai sendo necessário foram importantes acessar, para
dimensionar a tornozeleira e perceber transgredir, como a culpabilidade. Por
que ela é uma extensão de uma exemplo, “vocês tiveram as chances
gaiola, com benefícios fantasmas. e jogaram fora”. Então perguntava:
Assusta e humilha. Por exemplo, era Como jogamos fora? O que jogamos?
necessário ligar com antecedência O que seria jogar fora? Era preciso não
a Susepe11 para conseguir uma amenizar os riscos que as palavras
autorização para poder ou não podem ter, e dar outros sentidos,
ultrapassar o perímetro delimitado mais potentes. Vilene Moehleck (2015,
e ter a oportunidade de participar p. 169) nos convida a pensar que “ao
de um processo seletivo. Mas nem intervir no vivido, ou fazer dançar
sempre era possível ter autorização as palavras, uma oficina se compõe
a tempo. Como pensar um projeto enquanto maquinação do ser em seu
de vida, quando parte do sofrimento anseio por um mundo e criação”.
ultrapassa a clínica, e é social-político?
E foi assim, que Abilà experimentou
Em outros atendimentos, em sua própria história palavras antes

11 Superintendência dos Serviços Penitenciários.


12 Significa Culpabilidade. Usei no sentido de cuidar para não ver a pessoa culpabilizando ou culpabilizade, sem
prestar atenção nos atravessamentos institucionais.

57
não olhadas, a ponto de nomear uma animalização e insensibilidade
a si e seu corpo negro como uma racial? Não compactuar com isso
enciclopédia. Essas palavras passaram nos atendimentos, possibilitava
a ser novos sonhos e inscrições a se produzir frestas no descaso. Sem
experimentar. Para Mariah Silva (2018, esquecer-se de colocar em análise o
p. 32) acrescenta-se a esses exercícios antirracismo. Visto que, um serviço
poder olhar para aquilo e registrar a de Estado reproduz atravessamentos
partir de uma perspectiva de nossa que ultrapassam o conhecimento da
história inacabada, logo, “nesse “Psicologia”, e cada vez mais importa
caso, o corpo é o livro, é nele em que saber a respeito do abolicionismo
se depositam as histórias”. E essas penal, capitalismo, legado da
histórias ultrapassam a imaginação. escravidão à burguesia branca,
Contudo, a borracha a esse corpo, era reflexo no âmbito jurídico. Pois isso
as palavras serem cimentadas com a tudo também envolve produção de
desconfiança, no trabalho em rede, subjetividade, não é?
se estava de fato “progredindo”, pois
Abilà conta que já havia “ratiado” Nas semanas seguintes, após Abilà
(vacilado) antes. Uma espécie de faltar alguns atendimentos, fui
roteiro. Quando o sujeito é reduzido notificado que “todo meu trabalho
e antecipado ao “erro”, que cuidado com Abilà estaria perdido”, pois
e aposta emancipatória é feita? Será ele teria saído para a rua e feito uso
uma ética ou moralidade a nossa de álcool e cannabis. Na minha
bússola? perspectiva, não entendendo
como uma “perda”, e apostando
Com Abilà, pude acompanhar nas estratégias de redução de
outros cotidianos traumáticos e outra forma, planejada e discutida
relatos em alguns espaços em junto com o sujeito, sendo a
rede, como a medicação caída no internação em último caso de
chão etc. O que seria isso senão acordo com o risco. No encontro

58
seguinte, o último atendimento que vive entre segundos e permite-
comparecido, Abilà trazia a narrativa nos afetarmos e sermos afetados.
de uma desorganização e culpa Sem nos esquecermos: quando há
individualizado em si. Um efeito que fazeres sem equidade, sem liberdade,
fui entendendo em supervisão como insensíveis, operando em monológica,
ruídos resultante de práticas e fazeres esses fazeres se tornam gaiolas
hegemônicos. coloniais, que na espreita olham
quem está em seu interior como algo
Afinal, estávamos falando (?) de um a domesticar se for docilizado, até
homem negro, egresso do sistema ganha petiscos; quando revoltado,
prisional. Pergunto, então, onde bestializa-se prendendo a fera, ou,
se concretiza a responsabilidade “se não parar de incomodar com
dos equipamentos com a Política seus ruídos”, segrega ela. Há corpos
Nacional de Saúde Integral da tempos demais em gaiolas tornando-
População negra? Abrahão de Oliveira se “uma coisa”. E coisas podem ser
Santos (2018b, p. 247) provoca-nos a jogadas fora ou quebradas. Quais
pensar que o Estado determina não corpos estão sendo coisificados?
só quem vive ou morre, mas “os que
devem ter saúde mental, e os que Ezequiel de Candido Amaral
podem viver atormentados em seu CRP 07/36215
sofrimento produzido pelas condições Mestrando em Psicologia Social e
sociais”. E quem de nós alimenta esse Institucional na UFRGS.
Especializando em Direitos Humanos,
aspecto do Estado? Quais pactos ou
Relações Étnico-Raciais e Saúde na ENSP
rompimentos assumimos em nossas
Fiocruz.
práticas? Gostaria que você leitora
e leitor que lê, possa imaginar os
desfechos seguintes da história de
Abilà, dos muitos Abilàs que temos
no Brasil mestiço, que vivemos. É Referências
possível? De qual lente?
BENISTE, José. Dicionário yorubá-
Por fim, este breve escrito é um português. 2 º ed. Rio de Janeiro:
convite para que possamos não Bertrand Brasil, 2014.
somente interpretar, mas sentir e
FREIRE, Paulo. Pedagogia da
nos demorar em afetos. Todo desvio,
Tolerância. São Paulo: UNESP, 2004.
e questionamento para práticas
e epistemologias que tentam nos
KILOMBA, Grada. Memórias da
sufocar e desencantar, são bem-
plantação: episódios de racismo no
vindos. Afinal, a bixa preta que escreve
cotidiano. trad. jess oliveira. 1. ed. Rio
sobre desengaiolar deseja o inadiável
de Janeiro: Cobogó, 2019.
instante, aquele momento singular

59
LEÃO, Ryane. Jamais peço desculpas SANTOS, Abrahão de Oliveira. O
por me derramar. São Paulo: Planeta enegrecimento da psicologia:
do Brasil, 2019. indicações para a formação
profissional. Psicologia: Ciência e
MOEHLECKE, Vilene. Oficinar. In: Profissão, v. 39, n. spe., 2019.
FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO,
M. L. (Org.); MARASCHIN, Cleci SILVA, Mariah Rafaela Cordeiro
(org.). Pesquisar na Diferença - um Gonzaga da. Corpos Antropofágicos:
abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. supermáquina e interseccionalidades
p. 167-170. em cartoescrita de fluxos
indisciplinares. Manaus: UEA, 2018.
MOMBAÇA, Jota. O mundo é meu
trauma. Piseagrama, Belo horizonte, SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se
número 11, p. 20-25, 2017. Negro: as vicissitudes da identidade
do negro brasileiro em ascenção
RUFINO, Luiz. Pedagogia das social. Rio de Janeiro: Edições Graal,
Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula 1983.
Editorial, 2019.

SANTOS, Abrahão de Oliveira.


Saúde Mental da população negra:
uma perspectiva não institucional.
Revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN), v. 10,
n. 24, p. 241-259, 2018.

60
LIMITAÇÕES NO TEMPO E NO ESPAÇO: QUANTAS CIDADES
NÃO COEXISTEM NA MESMA CIDADE?

A limitação de final de semana é um Superior Penitenciária. Cabe salientar,


tipo de pena restritiva de direito (mais ainda, que a contiguidade entre a
conhecida como pena alternativa, por limitação e a prisão é quase explícita.
substituir a privação de liberdade). De Com frequência a pessoa permanece
acordo com o art. 48 do Decreto-Lei presa durante algum tempo
nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 enquanto aguarda sentença; além
(Código Penal Brasileiro), “consiste disso, se for considerado a qualquer
na obrigação de permanecer, aos tempo que ela não está cumprindo
sábados e domingos, por 5 (cinco) a pena restritiva de direito, poderá
horas diárias, em casa de albergado passar a cumprir pena privativa de
ou outro estabelecimento adequado”. liberdade. Além disso, houve ocasiões
O mesmo artigo dita que “durante a em que as pessoas em limitação
permanência poderão ser ministrados pediram permissão à equipe para
ao condenado cursos e palestras ou irem comprar refrigerantes num
atribuídas atividades educativas”. supermercado próximo ao local onde
executavam a pena e, atendendo
A rigor, a limitação de final de às regras impostas, tivemos que
semana não deveria fazer parte do negar o pedido. Isto é, durante
trabalho prisional, mas é executada o horário da limitação estavam
em estabelecimento prisional. À efetivamente presas. Finalmente, o
época não havia sido criada, ainda, efeito massacrante do cumprimento
uma Central de Penas e Medidas cumulativo de penas restritivas de
Alternativas em Porto Alegre. Por esse direito, bem como a condição social
motivo, a limitação era executada de apenado (pela sujeição ao Direito
em um espaço especificamente Penal e ao sistema penal) fazem
destinado para esse fim dentro com que o trabalho na execução
de um estabelecimento prisional de limitação de final de semana
de regime semiaberto. Durante seja considerado como atuação no
aproximadamente dois anos fiz parte sistema prisional.
da equipe a que atuava na execução
da limitação13 de final de semana em A equipe era dividida em duplas que
Porto Alegre; tão prisional quanto se alternavam aos finais de semana
o estabelecimento era meu vínculo mediante uma escala; geralmente
com esse trabalho enquanto Técnica as duplas eram formadas por

13 Neste texto será usada, por vezes, o nome completo; em outras ocasiões a pena será designada apenas pela palavra
limitação” (sem a frase “de final de semana”, que fica subentendida).

61
uma psicóloga e uma assistente bairros dominados por essas facções
social.14 O trabalho consistia no corriam riscos para se apresentar
planejamento dos encontros15, a ao cumprimento da limitação.
realização, a elaboração de relatórios, Essa situação foi tratada com o
as reuniões de equipe, o acolhimento Juiz da Vara de Execução de Penas
de ingressantes, o preenchimento e Medidas Alternativas (VEPMA),
de fichas e documentações, o e o cumprimento da medida foi
recebimento de atestados e outros interrompido.
documentos, o encaminhamento
a dispositivos das redes de Outro desafio para a execução da
políticas públicas (geralmente de limitação era o cansaço. A dupla
assistência e saúde), o levantamento técnica trabalhava quarenta horas
de necessidades do grupo e o durante a semana, somando a isso o
encaminhamento às autoridades tempo de planejamento do encontro
competentes. Algumas atividades e (boa parte era realizada fora do horário
encaminhamentos serão resumidos de expediente) e as dez horas do
sumariamente no presente texto, final de semana. Mas as pessoas em
para poder dar destaque a alguns cumprimento da limitação tinham
aspectos do trabalho da Psicologia jornada tripla, na melhor das hipóteses.
face a diversos territórios que A maioria havia sido sentenciada a
coexistem, tanto em disputa quanto cumprir simultaneamente os três tipos
se ignorando mutuamente, na cidade. de pena restritiva (limitação de final
Entendo que esse recorte deixará de semana, prestação de serviços à
interrogantes, porém, presumo que comunidade e multa pecuniária). Por
essas indagações sem resposta conseguinte, tinham que trabalhar
contribuirão para oferecer uma para pagar a multa e para sobreviver
dimensão da complexidade desse (de modo informal, pois ao estar
trabalho. cumprindo pena não lhes era possível
assinar Carteira de Trabalho), cumprir
Assim como praticamente qualquer as horas de prestação de serviços e
ponto de Porto Alegre, o local onde comparecer das sete horas da manhã
era executada a limitação de final até as treze horas da tarde aos sábados
de semana tinha circulação restrita e domingos para a limitação. Além
para os membros de algumas disso, por vezes precisavam fazer
facções. As pessoas em limitação desvios no caminho de ida e de volta
(ou “limitandas” 16) que pertenciam, para evitar territórios onde correriam
tinham pertencido ou residiam em riscos.

14 Ao longo de todo o texto as profissionais serão referidas no gênero feminino.


15 Ainda que o comparecimento das pessoas em limitação fosse compulsório, elas foram desenvolvendo vínculos de
diferentes naturezas entre si e com as profissionais da equipe, de modo que o termo “encontro” utilizado para tratar
de processos grupais é adequado.
16 Houve mulheres cumprindo limitação de final de semana; por esse motivo as pessoas que cumpriam essa medida
serão aqui designadas, com algumas exceções, como “limitandas” ou “pessoas em limitação” (sem a frase “de final de
semana”, que fica subentendida).

62
Para facilitar encontros que fizessem algumas das integrantes da
sentido para as pessoas em limitação, equipe começamos a pensar em
foi necessário lançar mão de grandes atividades que pudéssemos realizar
quantidades de criatividade e de fora daquele espaço. Solicitamos
muito conhecimento sobre trabalho autorização ao Juiz da VEPMA
com grupos, Psicologia institucional, mediante apresentação escrita de
Psicologia social, clínica ampliada, justificativa técnica. Foi necessário
transdisciplinaridade e criminologia tratar, também, que as pessoas em
crítica. Os recursos mais utilizados limitação pudessem se apresentar
foram filmes, dinâmicas diversas, diretamente no local onde ocorreriam
palestras (proferidas pela equipe esses encontros, para não aumentar
ou por pessoas convidadas), jogos, as suas despesas com deslocamento.
livros (organizamos, entre equipe e Também foi negociada com a
limitandas, uma pequena biblioteca) VEPMA a alteração no horário do
e algumas confraternizações, por cumprimento da pena nesses dias,
iniciativa principalmente das pessoas tendo em vista os expedientes de
em limitação. Ao longo dos encontros, funcionamento dos locais visitados.
o grupo foi formando laços, Ainda que a equipe chamasse esses
explicitando conflitos, desenvolvendo encontros de “atividades”, o grupo
formas de solidariedade, expressando chamou de “passeios”. O clima festivo
preconceitos, aceitando diferenças e os desafios começaram durante o
ou dificuldades de uns e outros, planejamento. Para que? É melhor do
relatando e costurando histórias, que ficar sempre aqui! Como é que a
questionando regras, expressando gente chega lá? Vamos levar lanche?
críticas sociais e ao sistema de justiça, Eu não posso nem passar perto dali,
enfim, mostrando e alimentando podem me matar.
humanidade. Um dos momentos
mais notáveis foi quando as Mas que locais foram esses, afinal?
limitandas planejaram junto com A primeira saída foi ao Museu de
a equipe uma ação solidária de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS).
entrega de doces numa escola na Encontramo-nos (com aqueles para
Páscoa (para a qual, infelizmente, quem era possível) na porta do Museu
não tiveram permissão). Mas nem às nove horas de um sábado. Os
toda a criatividade, o conhecimento, limitandos que puderam participar
os recursos e a humanidade do dessa visita eram todos homens,
mundo davam conta de preencher jovens, pobres e, alguns, negros17.
significativamente as dez horas de Durante a visita eles alternaram
cada final de semana. contemplação com brincadeira
e algumas análises do que viam.
Por conseguinte, junto com Estavam explorando um território

17 Não havia dados estatísticos confiáveis, mas, a olho nu, a proporção de pessoas negras cumprindo pena privativa
de liberdade parecia maior do que a de pessoas cumprindo limitação de final de semana.

63
que não conheciam. Um deles, frequentes e ricas em detalhes. Por
cuja habilidade para o desenho era conseguinte, em um dos encontros
apreciada por todos, ficou extasiado levamos duas cópias do mapa de
frente a uma obra e disse “Eu Porto Alegre, de aproximadamente
quero aprender a fazer isso” 18. Foi dois metros de comprimento por
emocionante. Contudo, uma das um de largura, e pedimos que nos
observações que mais chamou a ensinassem sobre esses outros mapas
minha atenção foi: “Eu trabalhava da cidade que eles viviam. Pegaram
aqui perto e passava sempre por aqui. canetas coloridas e cartografaram
Mas nunca me ocorreu entrar. Não uma Porto Alegre totalmente
parecia um lugar que eu fosse gostar. desconhecida para as profissionais da
Não parecia que eu pudesse entrar. E equipe. Não apenas os trajetos eram
é grátis...”. diferentes – marcados por cuidados
para evitar territórios de facções
O outro “passeio” foi ao Jardim rivais ou com as quais ficavam em
Botânico, antes de que fosse conflito pelo simples fato de morar
privatizado, mas quando já se no território dominado por outra
encontrava em processo avançado facção. Também a percepção sobre
de precarização (como parte da os bairros, os locais de interesse, de
privatização). Também havia algumas concentração de riqueza e pobreza,
pessoas em limitação que não de lazer, de trabalho. Na ocasião
poderiam circular perto daquele local lembrei de um fato ocorrido alguns
por envolver riscos à sua integridade. anos antes. Havia marcado encontro
Assim como na visita ao Museu, nesta com um grupo de jovens de periferia
oportunidade todos eram homens, num edifício conhecido localizado no
jovens, a maioria brancos. Também Centro, perto do seu local de trabalho.
estavam explorando um território Tive dificuldades para explicar onde
novo. Ficaram impressionados ficava, e eles acabaram localizando o
com a exposição de animais endereço a partir de outra referência.
empalhados, excitados com os Quando entramos no prédio, o
ofídios e preocupados com a falta de segurança veio alarmado em minha
manutenção. Alimentaram os peixes, direção e perguntou se eu estava
correram, ameaçaram me jogar na bem e quem eram esses jovens. A
água (de brincadeira), observaram atitude dele sinalizou que eles não
as plantas. E falaram: um lugar tão poderiam circular ali. Sustentei o olhar
bonito, tão bom de se estar, e nunca e entrei com eles.
tive a ideia de vir aqui antes... por quê?
As possibilidades diferenciadas de
As descrições sobre os lugares por habitar e circular pelo mesmo espaço
onde podiam ou não, imaginavam ou indicam a criação e atualização de
não, queiram ou não circular, eram territórios diferentes para grupos

18 Posteriormente tratamos para que um artista plástico realizasse oficinas de pintura com esse grupo.

64
diferenciados por raça ou etnia, classe do território se faz pelos encontros
social, gênero, idade, diagnóstico, que o tornam possível”.
dentre outros marcadores. Santos
(2005, p. 236), ao falar de território, Voltando às pessoas em limitação,
descreve as contiguidades como elas mapearam territórios de Porto
“lugares vizinhos reunidos por Alegre com seus corpos, suas
uma continuidade territorial”, e as histórias, seus traços, seus gestos,
verticalidades como “formadas por suas reflexões. Estar limitado por
pontos distantes uns dos outros, uma política de segurança pública
ligados por todas as formas e sem poder usufruir dessa mesma
processos sociais”, dentre os quais segurança para circular diz respeito às
as redes de relações. Para este autor, verticalidades, às relações de poder.
o território pode ser formado por Passar pela frente do MARGS e não
lugares contíguos e lugares em sentir que é possível entrar – e gostar
rede. “São os mesmos lugares, os de entrar – diz respeito a processos
mesmos pontos, mas contendo de subjetivação e, por conseguinte, a
simultaneamente funcionalidades relações de poder. Habitar o Jardim
diferentes, quiçá divergentes Botânico diz respeito ao encontro que
ou opostas”. O Centro que eu permitiu territorializar, constituir esse
conhecia, uma parte da cidade lugar como território possível.
muito frequentada e para a qual
eu acreditava que não houvesse Talvez exercer a Psicologia seja isso,
interdições à circulação de pessoas, propiciar condições de possibilidade
não coexistia com o Centro em que para habitar novos territórios, para
algumas das pessoas em limitação tecer redes que permitam outras
não podiam ser vistas sem ser mortas. relações de poder, para subjetivar-
O mapa de Porto Alegre tinha as se como alguém que pode querer,
mesmas ruas, mas com outras por exemplo, pintar um quadro. Ou
rotas, outros marcadores, outras para que seja possível brincar de
formas de viver os lugares. Por sua jogar a psicóloga na água. Ou se
vez, Gomes, Silva e Simone Hüning organizar coletivamente para levar
(2021) afirmam que os territórios são doces de Páscoa às crianças de uma
espaços multifacetados, que operam escola. Ao mesmo tempo, a psicóloga
e são operados por processos de aqui aprendeu sobre territórios e
subjetivação, e que são constituídos as relações que os constituem e
e organizados por relações de poder atualizam. Ir ao MARGS e ao Jardim
em múltiplas instâncias. Da mesma Botânico, organizar uma biblioteca e
forma, para Anita Guazzelli Bernardes traçar um novo mapa de Porto Alegre
(2018, p. 296-297), o território pode ser foram atividades que seguiram duas
escala espacial, modo de subjetivação Diretrizes para a Atuação e Formação
ou estratégia política e econômica”, e dos Psicólogos do Sistema Penal
afirma que “a condição de existência Brasileiro emitidas pelo Conselho

65
Federal de Psicologia em 200719: Referências
“criar estratégias e ferramentas que
facilitem a expressão do sujeito BERNARDES, A. G. Pesquisar
como protagonista de sua história” com o Território: algumas apostas
e “compreender os sujeitos na sua metodológicas. Psicologia: Ciência e
totalidade histórica, social, cultural, Profissão, 38(2), 291-300, 2018.
humana e emocional, e atuar a
partir desse entendimento” (CFP, BRASIL. Decreto-Lei nº 2848/40,
2007, p. 109). No sistema prisional, de 7 de dezembro de 1940, com as
essa Psicologia que inventa modificações inseridas mediante a Lei
territórios desfazendo fronteiras nº 7.209/84. Código Penal Brasileiro.
parece mais necessária ainda do Diário Oficial da União, Brasília, D.F., 31
que em outros espaços de atuação. dez. 1940.
Foi imprescindível na execução da
limitação de final de semana, tanto CONSELHO FEDERAL DE
para produzir sentido quanto para PSICOLOGIA (CFP). Ministério da
tornar minimamente suportável Justiça – Departamento Penitenciário
o cumprimento da pena. Mas a Nacional. Diretrizes para atuação e
limitação, ainda que contígua à formação dos psicólogos do sistema
pena privativa de liberdade, é muito prisional brasileiro. Brasília, DF: CFP,
menos restritiva nas possibilidades de 2007.
circulação dos corpos. Como propiciar
alguma circulação e habitação em GOMES, C. A. R.; SILVA, L. S. A.;
novos territórios enquanto processos HÜNING, S. M. O racismo como
de subjetivação no espaço prisional? organizador e analisador de
E não seria exatamente isso o que territórios urbanos. In: BARROS, J. P.
fazemos? P.; RODRIGUES, J. S.; BENICIO, L. F.
S. (Org.). Violências, desigualdades
Maynar Patricia Vorga Leite e (RE) existências: cartografias
CRP 07/18812 psicossociais (1a. ed., Cap. 1, p. 25-39).
Doutoranda em Psicologia Social e Fortaleza, CE: Expressão Gráfica e
Institucional na UFRGS.
Editora, 2021.
Técnica Superior Penitenciária.
Superintendência dos Serviços
SANTOS, M. O retorno do território.
Penitenciários.
In: Observatorio Social de América
Latina - OSAL. Año 6 no. Buenos Aires:
CLACSO, 2005.

19 O Conselho Federal de Psicologia emitiu em 2021 as Referências Técnicas para Atuação das (os) Psicólogas (os) no
Sistema Prisional; este documento ratifica as diretrizes sem citá-las. Por esse motivo faço referência ao documento
original.

66
“DOUTORA, EU PASSEI NA AVALIAÇÃO?” REFLEXÕES
SOBRE AS (IM)POSSIBILIDADES DO EXAME
CRIMINOLÓGICO
No Brasil, o cumprimento da depois de críticas e discussões acerca
pena criminal é regido pela Lei dessa prática nos tribunais superiores
nº 7.210/84, que institui a Lei de do país, deliberou-se que o magistrado
Execução Penal (LEP). No âmbito da pode determinar a realização do exame
execução da pena, foi estabelecido, criminológico, devendo o seu pedido
desde o princípio da LEP, o exame ser fundamentado. Sendo assim, essa
criminológico (BRASIL, 1984). prática está prevista, tanto na Súmula
Nesse cenário, considerando nº 439 do Superior Tribunal de Justiça
desde a previsão legal às práticas (STJ, 2010), como na Súmula Vinculante
historicamente constituídas, esse nº 26 pelo Supremo Tribunal Federal
exame seria realizado, conforme (STF, 2009), podendo o exame ser
explica Alvino Augusto de Sá (2020), solicitado pelo juízo da execução.
tanto para instruir a individualização
da pena, como para instruir pedido de Ao considerar esse contexto, a
progressão de regime ou de outros percepção de que no sistema
benefícios, sendo a última a prática prisional o profissional da Psicologia
mais conhecida pelo nome de “exame faz exames criminológicos segue
criminológico”. presente, inclusive no imaginário
das pessoas privadas de liberdade,
Considera-se importante pontuar que conforme relatos que emergem do
o exame para efeitos de concessão trabalho com esse público. Cabe
dos benefícios legais de progressão destacar que o exame criminológico
de pena, antes instituído no art. 112 é uma prática que, em tese, deveria
da LEP, não é mais previsto nesta ter se tornado desnecessária e
normativa, desde a Lei nº 10.792/2003, obsoleta, com a alteração na LEP
a qual alterou a LEP e o Código de realizada em 2003. Contudo, ainda é
Processo Penal. Na atualidade, a frequentemente realizada (RAUTER,
última alteração do art. 112 foi trazida 2007), demandada pelo Poder
pela Lei nº 13.964/2019 – conhecida Judiciário sob o “disfarce” de novas
pelo denominado “Pacote Anticrime” nomenclaturas; “avaliação psicossocial
–, mas nada consta nesse artigo sobre para progressão de regime” é uma
o exame criminológico. delas.

Porém, embora essa modalidade de Ao considerar as diretrizes para o


exame não esteja mais prevista na trabalho da Psicologia no âmbito
lei, o juiz poderá solicitá-la, visto que, do Sistema Prisional do Conselho

67
Federal de Psicologia (CFP, 2021) e positivistas. As práticas desenvolvidas
a necessidade do fortalecimento eram pautadas na classificação do
de práticas que promovam saúde e criminoso, por graus de severidade
garantia de direitos nesse contexto, (LAGO et al., 2009), inferindo sobre
o presente texto objetiva promover a periculosidade do sujeito. Sobre
reflexões sobre esse tema complexo. esse tópico, Rauter (2007) aponta
Assim, tenciona-se ratificar a que tais práticas de avaliação, que
Psicologia enquanto ciência e vieram a compor o denominado
profissão, através da discussão de (im) “exame criminológico”, implicavam
possibilidades das práticas avaliativas no desenvolvimento de práticas de
realizadas no cenário da execução “futurologia científica sem qualquer
penal brasileira atual. respaldo teórico sério” (RAUTER,
2007, p. X). A autora também destaca
Desta forma, partindo disso, é que o elevado número de pessoas
importante refletir sobre aspectos da privadas de liberdade sem um prévio
avaliação psicológica nesse âmbito. A acompanhamento individualizado
autora Sonia Liane Reichert Rovinski possibilitou que a confecção de
(2002) aponta que as práticas que laudos nesse contexto passasse a
passaram a ser desenvolvidas quando ser relegada a uma mera função
da inserção da Psicologia nas prisões burocrática.
brasileiras têm origem na Antiguidade
e Idade Média, quando práticas de Diante disso, cabe expor e
exclusão e segregação do “doente refletir sobre a realização dessa
mental delinquente” passaram a modalidade de exame na atualidade.
ocorrer. Conforme as autoras Vivian Considerando a experiência das
de Medeiros Lago, Paloma Amato, autoras deste texto, identificamos
Patrícia Alves Teixeira, Sonia Liane que seguidamente as determinações
Reichert Rovinski e Denise Ruschel de avaliações pelo Poder Judiciário
Bandeira (2009), essa inserção da do Estado do Rio Grande do Sul,
Psicologia no sistema prisional pode no âmbito da execução penal,
ser considerada um dos marcos da têm ocorrido da seguinte forma:
Psicologia Jurídica no Brasil, e ocorreu inicialmente, o magistrado determina
concomitante ao reconhecimento da que a avaliação psicossocial seja
Psicologia enquanto profissão. realizada no prazo de 30 dias. Essa
avaliação é composta por quesitos
Inicialmente, as práticas estavam que devem ser respondidos, por
sobremaneira focadas na avaliação um profissional da Psicologia e
do criminoso, sendo importante outro profissional do Serviço Social.
destacar que, naquele momento Essa determinação é direcionada
histórico – e não se pode deixar de à Superintendência dos Serviços
considerar ainda neste momento Penitenciários (SUSEPE), que
–, estavam permeadas por ideais desloca profissionais do quadro

68
de servidores que trabalham em o de instrumentalizar o magistrado
outros estabelecimentos prisionais com informações que o permitam
até o local onde a pessoa está tomar decisões sobre o acesso a
cumprindo pena, para realizar uma benefícios, como progressão de
entrevista única com o examinando. regime ou liberdade.
No local, os profissionais, que
muitas vezes optam por realizar tal Cabe destacar que práticas de
entrevista concomitantemente, o avaliação psicológica, nos mais
fazem nos mesmos espaços que variados contextos, quando
são direcionados ao atendimento adequadas e bem conduzidas pelos
psicossocial, que muitas vezes profissionais, são promotoras de
são precarizados, dispondo de saúde e garantidoras de direito.
pouca iluminação e até mesmo Contudo, essa modalidade de
ausência de uma porta. Muitas vezes avaliação desenvolvida no contexto
algemados, por conta das normas prisional, considerando seu objetivo
de segurança, os entrevistados (instrumentalizar o juízo sobre o
respondem às questões formuladas acesso a benefícios e a cessação
a partir dos quesitos. Identificamos da privação de liberdade) e sua
que esse procedimento costuma configuração (uma entrevista única),
ser realizado dentro do tempo de parece deslocada da teoria e da
30 a 60 minutos, mas há dados de prática baseada em evidências,
entrevistas ainda mais breves. É sendo que consideramos pertinente
facultado ao profissional acessar questionar: a prática atualmente
informações disponibilizadas no realizada pode ser conceitualizada
sistema do Infopen, para, após isso, como avaliação psicológica ou seria
emitir um documento, respondendo apenas uma entrevista? Se entrevista,
aos quesitos formulados pelo juiz. de qual tipo? E qual a base científica e
ética para essa prática?
Na prática vivenciada, é muito
comum, antes e após a realização Considerando que dentre os quesitos
da entrevista, a pessoa privada determinados pelo magistrado
de liberdade buscar atendimento encontram-se questões que versam
com a psicóloga que realiza o sobre previsão de reincidência,
acompanhamento psicossocial, questão que eticamente não pode
relatando elevados níveis de ser respondida pelo profissional
ansiedade e o receio em relação a de Psicologia, por não haver
não ser “aprovado” no exame e com embasamento científico para
isso não receber algum benefício. tal, questionamos também se os
Essa percepção corrobora o que relatórios produzidos fazem algum
consideramos ser uma das maiores tipo de efeito para o Poder Judiciário;
inadequações nesse cenário: o e se sim, se esse efeito seria positivo
objetivo desse procedimento, que é ou negativo. Nesse sentido, cabe

69
destacar uma das principais críticas de saúde mental e o compromisso
ao escopo dessa modalidade de ético com o sigilo profissional. Desse
exame: o seu objetivo (implícita modo, o CFP (2021) ressalta que esses
ou explicitamente exposto) de exames não sejam realizados por
previsibilidade do comportamento profissionais que atuem nas áreas
criminoso; isto é, uma avaliação da saúde e assistência, de modo que
da “periculosidade” do indivíduo e práticas avaliativas e de assistência
apreciação sobre a possibilidade de sejam realizadas por equipes técnicas
reincidência criminal, questões as diferentes. Pode-se observar que
quais não possuem fundamentos esse procedimento ocorre no sistema
científicos, violam princípios éticos prisional gaúcho, na medida em
da profissão e, mormente, reforçam que, conforme descrito acima, a
o estigma de “delinquente” desses SUSEPE, ao receber a determinação
indivíduos e processos de exclusão da avaliação, desloca profissionais de
social. outros estabelecimentos prisionais
para realizar o exame do sujeito
Para as pessoas que são na instituição em que este está
compulsoriamente submetidas cumprindo pena.
a essa entrevista, o efeito indica
ser ansiogênico, por gerar altas No que tange à realização de
expectativas e frustrações quando exames no contexto da execução
a resposta do Poder Judiciário é penal, propomos refletir sobre a
negativa ao acesso ao benefício inadequação da proposição de
esperado. Destaca-se ainda a avaliações realizadas ao final do
observância de que, em alguns cumprimento da pena, quando
casos, esse procedimento tem sido a pessoa já foi submetida a uma
apontado por pessoas privadas de série de fatores de risco, como o
liberdade como sendo o primeiro próprio processo de prisionização.
contato com profissionais da Desse modo, consideramos
Psicologia durante o cumprimento importante questionar e discutir
da pena, o que é alarmante, haja como uma avaliação psicológica,
vista ocorrer apenas no final do com uma pessoa em situação
cumprimento da pena. de vulnerabilidade, poderia ser
eticamente conduzida nesse cenário.
Sobre esse tópico, uma das críticas Nos parece que as práticas atuais
trazidas pelo CFP a essa prática potencializam fomentar aquilo que
está relacionada à realização dessas deve ser combatido, que são os
avaliações por profissionais que riscos psicossociais e os processos
atuam nos programas de promoção de exclusão que compõem o
de saúde e de assistência social das cumprimento da pena privativa de
instituições prisionais, visto que isso liberdade no Brasil.
prejudica as práticas de promoção

70
Nesse âmbito, uma questão que se liberdade ocorrer. Nos parece que
faz crucial é se o exame criminológico isso promoveria resolutividade a uma
se constitui como uma avaliação questão grave que ocorre nos dias de
psicológica. Para o CFP (2021, 2016), hoje, onde os poucos profissionais que
esse exame não pode ser confundido trabalham com acompanhamento
com uma avaliação psicológica. psicossocial no âmbito das prisões são
Porém, para Sá (2020), a realização deslocados de sua função fim para
de uma avaliação psicológica seria realizar as entrevistas para responder
um dos elementos desse exame quesitos, gerando sobrecarga e perda
– caracterizado como uma perícia da identidade profissional (RAUTER,
interdisciplinar –, sendo os seus 2007). Nessa perspectiva, Salo de
resultados posteriormente discutidos Carvalho (2011) assinala que existem
em conjunto com os dados obtidos condições legais de superação
nas demais avaliações realizadas por do antigo modelo de atuação
outros profissionais, visando uma dos profissionais, entre eles o(a)
conclusão acerca da demanda. psicólogo(a), com a incorporação de
práticas voltadas à redução dos danos
Ainda de acordo com Sá (2020), causados pelo encarceramento.
apesar das pertinentes e
fundamentais críticas ao modelo Sobre o trabalho da Psicologia no
de exame criminológico prevalente âmbito prisional, em consonância
no sistema prisional brasileiro, este com as diretrizes do Conselho Federal
pode ser realizado, na perspectiva de Psicologia (CFP, 2021), acreditamos
do autor citado, de modo que que o investimento em pesquisas no
traga benefícios para o indivíduo âmbito é necessário e urgente para
condenado à pena privativa de aferir e mapear as diferentes práticas
liberdade. Para isso, o exame precisa realizadas. Sabe-se que profissionais
ser realizado com o intuito de obter no contexto têm utilizado o recurso
informações e fornecer dados que da emissão de relatórios psicológicos
contribuam para o planejamento e como forma de informar ao Poder
acompanhamento da pena e depois Judiciário sobre aspectos do
para a preparação para sua saída, de acompanhamento psicossocial
forma individualizada e conforme as realizado, de forma a garantir direitos
necessidades do sujeito. e fortalecer redes que permitam
a construção de fatores positivos
Isso posto, ressalta-se o potencial extramuros. Uma investigação
de uma avaliação psicológica, como acurada sobre tal aspecto pode
fator promotor de saúde, quando vir a possibilitar a construção de
aplicada com objetivos possíveis de práticas que venham fortalecer um
serem respondidos cientificamente diálogo salutar entre a Psicologia
e nas fases iniciais do processo; Jurídica e o Poder Judiciário no
antes de uma pena privativa de âmbito do sistema prisional, com

71
o cumprimento da função fim de em cumprimento de pena nos locais.
promover saúde.
Na tentativa de concluir as reflexões
O ideal seria que penas privativas aqui trazidas, consideramos relevante
de liberdade não ocorressem, mas destacar que as discussões acerca
já que seguem ocorrendo, a prática das (im)possibilidades do exame
do acompanhamento psicossocial criminológico, no que se refere à
sistematizado, como parte da prática dos profissionais de Psicologia,
atenção integral à saúde da pessoa se mostram cruciais, e devem ocorrer
presa, é o indicado para mitigar enquanto essas avaliações fizerem
riscos à saúde (CFP, 2021) e deve ser parte da atuação de psicólogas
pauta das Políticas Públicas e das e psicólogos no sistema prisional
discussões sobre o tema nos mais brasileiro. Ao considerar os elementos
variados contextos. Diante disso, expostos e reflexões instigadas neste
reflete-se sobre o papel potente da texto, pode-se compreender que a
Psicologia no sentido de possibilitar avaliação psicológica, nesse contexto,
a garantia de direitos das pessoas pode se caracterizar tanto como uma
privadas de liberdade, a partir do práxis que suscita e reforça estigmas
acompanhamento psicossocial e exclusão, quanto uma prática
sistemático, individual e em grupo, e que promove saúde e possibilita
da emissão de relatórios psicológicos a garantia de direitos de pessoas
ao longo do cumprimento da pena, privadas de liberdade.
ressaltando as vulnerabilidades
vivenciadas e as ações possíveis Kamêni Iung Rolim
que devem ser implementadas na CRP 07/20341
rede, com foco na preparação para a Doutoranda em Psicologia Clínica
liberdade. (UNISINOS).
Professora (IENH).
Apesar de considerarmos essa ideia Técnica Superior Penitenciária
interessante e até mesmo viável a (SUSEPE).
médio prazo, ressaltamos que deve
ser acompanhada de um trabalho Sarah Reis Puthin
institucional meticuloso, com vistas CRP 07/16891
a evitar que a emissão de relatórios Doutora em Ciências Criminais.
psicológicos se torne meramente um Mestra em Psicologia (PUCRS).
trabalho burocrático num contexto Professora e Supervisora de Estágio
em que são poucos os profissionais em Psicologia Jurídica (FACCAT).
da Psicologia, o que torna inviável a
prestação de um acompanhamento
psicossocial adequado ao
contingente elevadíssimo de pessoas

72
Referências (Campinas), v. 26, n. 4, 2009.

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de LOPES, R. O trabalho do psicólogo


dezembro de 2019. Disponível em: no sistema prisional de São Paulo.
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CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA (CFP). O trabalho do(a) SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
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Brasília: CFP, 2016. portal/jurisprudencia/menuSumario.
asp?sumula=1271
LAGO, V. M.; AMATO, P.; TEIXEIRA, P.
A.; ROVINSKI, S. L. R.; BANDEIRA, D.
R. Um breve histórico da psicologia
jurídica no Brasil e seus campos
de atuação. Estudos em Psicologia

73
GRUPO DE SUPERVISÃO COLETIVA EM PSICOLOGIA:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE UM INÍCIO PIONEIRO

O trabalho da Psicologia no Sistema o trabalho desenvolvido nos


Prisional é permeado por desafios: o estabelecimentos prisionais, muitas
excesso de tarefas, as emergências vezes, vai na contramão daquilo que
e a escassez de profissionais da se prioriza: a segurança.
área, que colocam os Técnicos
Superiores Penitenciários (TSPs; O Conselho Federal de Psicologia
um dos cargos responsáveis pelo (CFP) reconhece as mazelas do
tratamento penal no Rio Grande sistema prisional brasileiro e seu
do Sul) em um legítimo ‘estado fracasso enquanto instituição capaz
de guerra’. O conflito gerado pela de funcionar conforme a própria
constante necessidade de resolução Lei de Execução Penal (LEP). Esta
dos problemas, que não cessam, não é observada, ao contrário é
que incluem desde dificuldades de permanentemente descumprida.
acesso a direitos humanos básicos e Cumpre ressaltar que a inobservância
a compreensão do que é necessário da lei, suas diretrizes, seu caráter, etc.,
possibilitar práticas que promovam é fonte inesgotável de sofrimento
desde a saúde física e psíquica para os presos, mas também para os
quanto prospectar mudanças operadores do sistema, advogados,
sociais nesse contexto. De tal forma, psicólogos (as), assistentes sociais,
consideremos que o sistema prisional professores, agentes penitenciários,
é o lugar o qual escolhemos para etc. (CFP, 2016).
trabalhar e que por inúmeras vezes
nos avassala enquanto sujeito, No entanto, sabemos que a missão
pois a enormidade de desafios e a visão da Superintendência dos
consome o indivíduo em seu todo Serviços Penitenciários (SUSEPE)
humano. São desde questões consiste em ‘Promover a inclusão
emocionais e psicossomáticas, social das pessoas privadas de
quanto a insegurança e conflitos liberdade’. Ou seja, enquanto
institucionais que atravessam profissionais focados neste objetivo
nossa prática cotidiana. Arriscamos estamos há muito buscando
dizer que a mazela social daqueles esta inclusão através da escuta e
que precisamos “ressocializar” se acolhimento destas pessoas, do
projeta na mazela institucional ao atendimento aos seus familiares,
analisarmos os recursos os quais além de todas as atividades de
dispomos. As condições gerais de grupo, formulação e gestão de
trabalho e, sobretudo, o conflito projetos que visem educação, saúde
interno que travamos para sustentar e trabalho. Todas as ações que, de

74
alguma forma, interceptam-nos seja não alcançaremos nossos ideais
através de “bilhetes”, seja através de quanto ao fazer da Psicologia,
reivindicações (crises de ansiedade, como em qualquer outra área de
greve de fome, tentativa de suicídio, atuação. No entanto, desejamos que
entre outras) solicitam um espaço de a organização do nosso trabalho
escuta. diário possibilite o encontro com a
necessidade psicológica do privado
No Rio Grande do Sul, totalizamos de liberdade, de forma a contribuir
cerca de 300 psicólogos no sistema para seu processo de reflexão
prisional, sendo em torno de 20 enquanto sujeito, respeitando suas
psicólogos alocados na 1° Região singularidades e auxiliando-o quanto
Penitenciária, sendo esta a maior ao seu retorno para o convívio social,
região desse Estado em termos de familiar e laboral.
população prisional – em torno de
mais de 7 mil presos. Especifica- Partindo disso, o presente texto tem
se que são esses profissionais o objetivo de compartilhar um relato
direcionados a acompanhar e de experiência sobre o Grupo de
prospectar o tratamento penal vistas Supervisão Coletiva em Psicologia,
as regulamentações e atribuições dispositivo que foi construído por
legalmente chanceladas para o cargo Técnicos Superiores Penitenciários
de TSP. Logo, quadro severamente - Psicólogos (as) - que trabalham
escasso de recursos humanos, pois em diferentes estabelecimentos
o previsto por regulamentações do prisionais. Tal união teve como
Departamento Penitenciário Nacional principal disparador a necessidade de
(DEPEN) seria de 1 psicólogo para acolhimento mútuo ao depararmo-
cada 250 presos. nos com as dificuldades, os impasses,
e os desafios presentes no campo
Atravessados por este panorama de atuação do psicólogo no Sistema
deficitário, tanto em relação a Prisional. O grupo também se
recursos humanos, quanto a recursos compõe e se retroalimenta da
financeiros, surge a necessidade perspectiva de resistência às
inicial de compartilharmos nossas agruras cotidianas existentes em
angústias e frustrações, buscando qualquer instituição total, assim
alternativas e espaços de reflexão como do mais profundo desejo de
acerca do nosso fazer na instituição. podermos externar aquilo que está
Há necessidade proeminente de nos intramuros: a necessidade de
que possamos continuar a nos falar sobre esse fazer psi tão peculiar,
desenvolvermos dentro de uma tão inóspito e ao mesmo tempo
perspectiva resolutiva e salutar tanto instigante quando nos damos conta
para o profissional, quanto para a de que atuamos em um laboratório
pessoa que está em situação de de possibilidades.
prisão. Por conseguinte, sabemos
que talvez, ou com toda certeza, O grupo ocorre desde o ano 2020,

75
com participação voluntária e tem que também enfrentavam situações
se constituído como um espaço periclitantes dentro da instituição.
de fortalecimento profissional Em um primeiro momento, a
considerando a constituição intenção era uma troca de ideias
de um espaço seguro, com e compartilhamento de reflexões
manutenção do sigilo necessário no que se referia a estratégias
para realização de discussões de cuidado aos usuários naquele
técnicas e teóricas. Também são contexto pandêmico. Ao se reunirem
discutidos casos, compartilhado o em um espaço extrainstitucional,
cotidiano, estabelecidas reflexões através de chamadas de vídeo após a
e elaborações de estratégias que realização do expediente, verificou-se
possibilitem aos participantes a necessidade de estruturar melhor
desenvolverem ações que produzam esse espaço e constituí-lo como
sentido ao fazer diário, uma vez uma prática de trabalho, objetivando
que a rotina dos estabelecimentos organizar uma sistematização para
prisionais, subliminarmente, coloca- supervisão coletiva dentre os demais
nos a cumprir “tarefas” as quais profissionais da região. O grupo,
questionamos a real importância e formado por 3 psicólogos(as) buscou
efetividade. Nesse sentido, partimos apoio e endosso da 1ª DPR para a
da premissa de que a supervisão é um convocação de demais interessados
dos pilares do trabalho da Psicologia, na proposta, dando assim, o formato
sendo inclusive um dos princípios atual deste grupo de trabalho.
fundamentais regidos pelo Código Atualmente, contamos com a
de Ética do Profissional Psicólogo(a), participação de 5 psicólogos(as), os
que destaca a responsabilidade do quais encontram-se em 4 distintos
profissional com a continuidade de estabelecimentos prisionais da
aprimoramento profissional (CFP, referida região.
2005).
O dispositivo iniciou com encontros
O Grupo de Supervisão Coletiva semanais por meio virtual,
em Psicologia da 1ª Delegacia principalmente, por estarmos em
Penitenciária Regional (DPR) meio a pandemia da Covid-19. Os
iniciou a partir da manifestação de encontros iniciaram pautados pela
necessidade de uma profissional discussão de casos e a supervisão
que trabalha solitariamente coletiva de situações cotidianas das
enquanto psicóloga em uma pessoas privadas de liberdade as
unidade prisional com quase dois quais acompanhamos. Para além
mil homens privados de liberdade. da discussão de casos, o Grupo de
A busca por socorro, que emergiu Supervisão Coletiva foi impelido a
no contexto de crise potencializada debater o momento histórico que
pela pandemia da Covid-19, foi vivenciávamos como estratégia de
compartilhada por outros colegas sobrevivência as diferentes formas de

76
violência que passamos a vivenciar de estarmos enquanto corpos
enquanto servidores públicos. discriminativos sendo dispostos em
Concomitante a tramitação da PEC um lugar daquilo que esperam de nós
291/2021 que visa a regulamentação e não do que realmente somos.
da Polícia Penal em âmbito Nacional.
Através da qual, inicialmente, não Foi a partir desse momento de
ficamos abrangidos enquanto crise, desse mal-estar experienciado
categoria profissional pertencente a enquanto profissional TSP que
realidade de ‘segurança’ ocasionando o grupo de supervisão catalisou
um entendimento regulamentar a continência necessária para o
de perda de direitos e insegurança momento e impeliu o grupo a buscar
jurídica. conhecimento, a se apropriar dos
movimentos políticos da categoria.
Relativo a este momento percebeu- Uma das primeiras reflexões se
se que situações de micro violências deu no âmbito da compreensão
passaram a ser vivenciadas na quanto as discordâncias acerca
relação com profissionais da equipe dessa regulamentação e o que isso
de segurança. Algo que por certo trouxe à tona, de forma vigorosa,
tempo permaneceu mais latente, algo que por muito tempo parecia
talvez menos perceptível até aquele adormecido: a distância/diferença/
momento, mas que mobilizou discrepância entre as categorias que
intensa demanda emocional por compõe o quadro profissional da
parte dos TSP’s. Assim, passamos SUSEPE. A colocação dos TSPs como
a observar e sentir a força do que grupo de apoio no que concerne o
Baremblit (2002) nos traz como inteiro teor da Proposta de Emenda
hábitos e regularidades que não estão Constitucional (PEC 291) acirrou os
enunciados de maneira manifesta. ânimos e resgatou sentimentos dos
Atitudes e comportamentos mais primitivos que em um passado
insurgem de códigos e normas não próximo habitavam o âmago de
formalmente instituídos como que se muitos Agentes Penitenciários. Aquilo
observássemos a cultura institucional que compreendemos como conflito
projetada no comportamento histórico da hegemonia da segurança
daquele que debocha e que goza em detrimento das atribuições dos
com a suposta derrocada do seu TSP’s, que se traduz na missão da
ídolo. Esse era o sentimento dos instituição do exercício profissional,
TSPs no decorrer do nosso dia a daquilo que é realmente a tarefa
dia neste momento histórico de enquanto aquilo que se diz como
tramitação da PEC da Polícia Penal. “ressocialização” do encarcerado.
Dentro daquilo que está inscrito
e proscrito é possível verificarmos Enquanto vivenciávamos este
a forma de funcionamento dos contexto institucional também
atores na instituição e o sentimento nos questionávamos do que

77
produzíamos neste espaço de buscando mitigar os desafios que
trabalho. Isso até o momento em permeiam a prática da Psicologia
que entendemos que a supervisão no contexto prisional. Consideramos
está realmente nesse propósito de também que a experiência de
trabalhar as subjetividades desses supervisão em grupo tem nos
atores que habitam as cadeias e provocado a desacomodarmo-nos
que trabalham nelas. A importância enquanto profissionais, e assim
de produzirmos enquanto análise incitando-nos a compartilhar nossas
institucional se deu na compreensão dificuldades e nossos desejos a partir
do compromisso que tínhamos com do fazer da Psicologia. Vislumbram-
nossos clientes, com aqueles os se perspectivas de produção que
quais acompanhamos e que, numa ultrapassem o espaço da supervisão
outra instância, também estavam e que possam em um nível macro
impactados com aquele momento dialogar com psicólogos de outras
histórico que vivíamos. regiões penitenciárias, a fim de
prospectar mudanças no que tange
No decorrer destes quase 2 anos a valorização do profissional na
de trabalho em grupo houve muita instituição.
dificuldade quanto a manutenção
dos encontros semanais, seja pela Enfim, acreditamos que sempre
alta demanda de trabalho, pela falta que se abre um novo espaço de
de espaços de sigilo adequados e troca, consequentemente, algo
até mesmo pela resistência interna em nós se move. E assim parece
de que esse momento de discussão impor-se a certeza de que a
acontecesse. Isso posto, pois como experiência de movimento dentro
psicólogos sabemos que faz parte de uma instituição acarreta muitos
do processo de análise. Contudo, desafios (além dos já existentes), no
tais aspectos não foram impeditivos entanto, são estas oportunidades
para que o mesmo acontecesse que possibilitarão mudanças no
e que o grupo se fortalecesse contexto prisional. Para além da
enquanto categoria de profissionais constituição de um grupo de trabalho
comprometidos em promover focado na tarefa da supervisão,
saúde e liberdade de expressão. conseguimos nos aproximar
Diante de todos os atravessamentos enquanto colegas, compartilhar
experienciados dentro de uma nossas ideias e incertezas e, acima
instituição total, percebemos que de tudo, criarmos um referencial
o grupo de supervisão coletiva comum enquanto profissionais
tem viabilizado um espaço de que atuam em um sistema tão
acolhimento profissional, além de, aos específico no que se refere ao
pares sentirmo-nos mais fortalecidos fazer da Psicologia. Este espaço de
quanto aos processos institucionais trabalho possibilita a compreensão
que acometem nosso trabalho e a certeza de que nossa prática

78
enquanto psicólogos neste âmbito Pablo Borges de Moura
está em constante construção e CRP 07/21735
evolução, principalmente, por não Mestre em Psicologia Clínica, PUCRS.
conseguirmos mais acolher a ideia de Complexo Penitenciário de Canoas.
um fazer tão limitado em atribuições
meramente avaliativas, burocráticas Rosane Wojciechowska Lucena
e tarefeiras. Sabemos que o conceito CRP 07/18654
de Tratamento Penal é o Norte. Técnica Superior Penitenciária.
Psicóloga na Penitenciária Modulada
Mas que norte queremos dar a este
Estadual de Montenegro Jair Fiorin.
tratamento?
Formação em Psicanálise pela Associação
Clínica Freudiana.
Sem dúvidas, os questionamentos
afirmam a importância desse
espaço de troca, de construção e de
produção que o grupo de supervisão
proporciona, principalmente,
Referências
pela intenção da busca por esta
BAREMBLIT, Gregório. Compêndio
identidade profissional.Objetiva-se o
de análise institucional e outras
encontro com ferramentas que nos
correntes: Teoria e prática. Belo
auxiliem na continência e criatividade
Horizonte. Editora: Instituto Felix
nesse campo tão vasto de fazeres.
Guatarri, 2002.

Ana Paula da Silva Uberti


BRAZ, J. M. O.; CURCIO, F. S.;
CRP 07/13365
FARIAS, F. R. de (2016). A memória
Especialista em Arteterapia – CENTRARTE/RS
Especialista em Gestão e Saúde Prisional –
na prisão: entre a massificação e a
FIO CRUZ Mato Grosso; resistência. Revista Internacional
Especialista em Psicologia Jurídica e Forense Interdisciplinar INTERthesis, v. 13, n. 1,
– Unileya; p. 1-20, 2016.
Especialista em Avaliação Psicológica e
Psicodiagnóstico – Unileya; BRANDÃO, E. P. Psicologia Jurídica
Especialista em Dependência Química –
no Brasil. Rio de Janeiro: Ed Nau:
Centro Universitário Faveni.
2005.
Penitenciária Modulada Estadual de Osório

CONSELHO FEDERAL DE
Juliana Pletes de Borba
PSICOLOGIA (CFP). Psicologia,
CRP 07/19078
ética e direitos humanos. Comissão
Especialista em Psicologia Jurídica e Forense
(UNILEYA).
Nacional de Direitos Humanos.
Especialista em Psicanálise e suas Brasília: CFP, 1998.
Intervenções nas Psicopatologias
Contemporâneas (UNESC/SC). CONSELHO FEDERAL DE
Penitenciária Modulada Estadual de Osório PSICOLOGIA (CFP). O trabalho
do (a) Psicólogo(a) no Sistema

79
Prisional: Problematizações, Ética e CONSELHO FEDERAL DE
Orientações. Brasília: CFP, 2016. PSICOLOGIA (CFP). Resolução
nº 10/05, 2005. Código de Ética
CONSTANTINO, P.; ASSIS, S. G. de; Profissional dos Psicólogos. Disponível
PINTO, L. W. O impacto da prisão na em: https://site.cfp.org.br/wp-content/
saúde mental dos presos do estado uploads/2005/07/resolucao2005_10.
do Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & pdf. Acesso em: 16 out. 2022.
Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, 2016.
CONSELHO FEDERAL DE
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 PSICOLOGIA (CFP); MINISTÉRIO DA
de dezembro de 1940. Código Penal. JUSTIÇA. Diretrizes para atuação e
Presidência da República, Casa Civil. formação dos psicólogos do Sistema
Prisional Brasileiro. Conselho Federal
RIO GRANDE DO SUL. PEC Polícia de Psicologia: Brasília, 2007.
Penal 291, de 08 de Junho
de 2021. Disponível em: http:// SÁ, A. A. Criminologia clínica e
proweb.procergs.com.br/temp/ Psicologia criminal. Porto Alegre: Ed.
PEC_291_2021_16102022123930_int. Revista dos Tribunais, 2007.
pdf?16/10/2022%2012:39:31. Acesso em:
16 out. 2022.

80
IGOR MENDES E A PEQUENA PRISÃO: ELEMENTOS
NARRATIVOS, TESTEMUNHO E REFLEXÃO SOCIAL SOBRE
O CÁRCERE NO BRASIL20
O livro A pequena prisão, lançado em chama a atenção desde seu título,
2017, foi escrito pelo estudante (na de como a prisão deve ser pensada
época em que foi preso) Igor Mendes, como uma parte da engrenagem
o qual teve sua prisão decretada social, uma consequência, ou
por participar de manifestações resultado, de como a sociedade age.
populares ocorridas no Rio de Janeiro, Questionando a condição em que
Brasil, em 2013. De acordo com o estes sujeitos são colocados, de quem
autor, o livro é um depoimento de é considerado como mais humano,
sua “experiência da prisão”. Podemos ou, em contrapartida, de quem pode
dizer que, além da vivência na prisão, ser tratado como um sub-humano.
o autor traz importantes elementos
de crítica social, fazendo-nos pensar A história contada por Igor Mendes
sobre algumas questões específicas ocorre entre 03 de dezembro de 2014
do cárcere como: a estrutura, as leis e 25 de junho de 2015, período em
criadas dentro da prisão, o uso de que foi preso provisoriamente por
drogas, as relações com os guardas, estar participando de movimentos
as visitas e os privilégios para quem populares na cidade do Rio de
tem mais condições financeiras, mas, Janeiro/RJ. Porém, o autor traz
também, reflexões que ultrapassam algumas memórias de momentos
o aprisionamento, como a relação anteriores e posteriores a sua prisão.
do cárcere com a sociedade, ou O livro foi publicado pela N-1 edições
seja, o primeiro como um reflexo do e conta com apresentação de
segundo. Christiane Jatahy, autora, diretora de
teatro e cineasta, a qual entrevistou
A pequena prisão apresenta uma Igor Mendes para o documentário
riqueza das temáticas trazidas A Floresta que Anda. O prefácio do
na narrativa e a importância da livro é escrito pela socióloga Dra.
representação, na literatura, de Vera Malaguti Batista, professora
espaços e/ou pessoas que são de Criminologia da Universidade
deixadas à margem da sociedade, Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
através do testemunho. A obra já (mesma Universidade em que Igor

20 Este texto foi desenvolvido a partir da tese de doutorado intitulada: “Entre a atemporalidade e as descontinuidades
do Cárcere: representação e crítica social em Recordações da casa dos mortos e A pequena prisão”. Apresentada
ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Letras.
Ano: 2020.

81
estudava). Malaguti faz um texto no esteio, praticaram-se contra o nosso povo,
qual engrandece a obra de Igor e como remoções de favelas e bairros pobres,
perseguições de ativistas, malversação de
sua importância para a teoria, como
recursos públicos etc. (MENDES, 2017, p. 42).
a criminologia. Refere que ao ler a
obra lembrou de diversos estudiosos
Igor teve sua prisão decretada na
fazendo uma crítica social a este
véspera da abertura da Copa do
sistema:
Mundo no Brasil, no dia 12 de julho
Dentro de seus muros não há direitos, de 2014. A mesma também ocorreu
suspensas estão todas as garantias e para outros 23 ativistas, como o autor
também toda a beleza e delicadeza que os nomeia. Não chegou a ser preso
os homens e mulheres ali jogados tentam nesta ocasião, pois não estava quando
teimosamente reconstruir todos os dias. A
a polícia foi até sua residência. Após
economia capitalista precisa da prisão para
exercer o controle brutal dos pobres e dos
alguns dias, o Tribunal de Justiça
resistentes. (MENDES, 2017, p. 24). concedeu a liberdade provisória
aos ativistas com restrições, entre
A autora termina seu texto com uma elas, a proibição de participar de
mensagem ao Igor e aos leitores: manifestações. Porém, Igor não
““Parabéns meu filho, parabéns segue as regras impostas pela justiça,
pela luta!”. Este seu livro nos ajuda a as quais traz como “inexistentes no
derrotar a prisão principalmente por Código de Processo Penal” brasileiro
não te deixar encarcerada a alma para e “na Constituição” (MENDES, 2017, p.
sempre e por honrar de forma tão 44).
delicada e forte seus companheiros
de tragédia” (MENDES, 2017, p. 28). Em 15 de outubro, participei, ao lado das
companheiras Elisa (Sininho) e Karlayne
Após este escrito, se inicia a história
(Moa), de uma atividade cultural na praça
vivida por Igor Mendes durante os
Cinelândia em memória do Dia do Professor
sete meses em que esteve preso. e da repressão desatada um ano antes nas
escadarias da Câmara Municipal. Então,
No período de 2013 iniciaram-se mais 200 ativistas foram presos e cerca de
diversas manifestações políticas no 70 enviados para presídios em Bangu, o
sombrio aspecto que pairava, cada vez mais,
Brasil, que tiveram, em seu princípio,
sobre aqueles que ousavam permanecer nas
mais força na cidade do Rio de
ruas. (MENDES, 2017, p. 44).
Janeiro. Entre as reivindicações
estavam a diminuição dos preços
das passagens de ônibus e protestos A sua participação na referida
contra a realização da Copa do Mundo manifestação culminou em sua
no Brasil, as quais foram se ampliando prisão, ocorrida em 3 de dezembro de
para outras questões sociais. 2014.

Daqueles primeiros momentos, recordo-


Em junho-julho de 2014, contudo, voltaram a
me, particularmente, do olhar assustado
ocorrer significativas manifestações contra a
da minha mãe, dizendo que a Polícia
realização da Copa do Mundo. Era a resposta
estava na porta. Recordo, também da
inevitável aos diversos crimes que, no seu

82
calma com que abri; a voz de prisão dada de cela e/ou galeria, as violências
por um brutamontes, que respondeu com ocorridas, a forma como ocorre a
um grunhido quando lhe perguntei se
alimentação, as práticas de higiene,
as algemas eram necessárias; os olhares
curiosos dos transeuntes, indo apressados a convivência forçada e o sentimento
para o trabalho àquela hora da manhã. aprisionado, tudo que diz respeito à
Eram seis e vinte. condição de presidiário e, além disso,
concomitantemente, o narrador tece
[...] As algemas apertadas nos punhos
uma crítica ao cárcere e ao sistema
pareciam-me enormes e monstruosas
(chegaria um tempo que me habituaria a
político brasileiro. Nas palavras de
elas). Mendes (2017, p. 46): “O fator essencial
da sociedade é o ser humano, não
As algemas não são nada, importante é o as coisas, daí que minha atenção
que eu levo na cabeça. (MENDES, 2017, p. 46). se voltou toda para os personagens
que encontrei, no caso pessoas reais,
Diante da forma narrativa da obra, assombrosamente reais, tão complexas
podemos categorizá-la como quanto cada um de nós”.
literatura de testemunho e, como
mencionamos, está relacionada a A primeira edição do livro foi
um período histórico específico, que publicada em 2017, aproximadamente
se inicia com momentos anteriores dois anos após os fatos terem
à prisão, para explicar como e por ocorrido. Percebe-se que Mendes não
que esta aconteceu, se desenvolve demora para contar sua experiência,
no período de aprisionamento, e é diferente do que ocorre em alguns
concluída no momento em que o relatos testemunhais em que o
autor é colocado em liberdade. Como autor leva anos após o episódio para
o próprio autor menciona: “foquei na conseguir relatar sua história. O que,
experiência da prisão, por ser mais de certo modo, pode ser visto como
presente, pelas marcas profundas que benéfico no sentido da memória dos
deixou” (MENDES, 2017, p. 34). fatos. Em sua narrativa consegue
expor os acontecimentos com certa,
O narrador no testemunho, na maioria
mas não total, linearidade, pois não
das vezes – e é o que ocorre na narrativa
se preocupou em seguir a cronologia
em questão –, se encontra em primeira
dos acontecimentos, “embora os
pessoa. Será ele personagem/narrador
capítulos, tomados no seu conjunto,
que contará a história, decidindo
respeitem a passagem do tempo,
qual o foco narrativo e organizando
aqui e acolá avanço ou volto mais um
o tempo e espaço ao seu modo e
pouco” (MENDES, 2019, p. 36).
seleção, bem como a apresentação
dos personagens (presidiários, guardas, As linhas que seguem não são uma tese
familiares). O principal tema abordado acadêmica ou uma reportagem sobre a
é a vida na prisão, os acontecimentos, lastimável situação carcerária brasileira.
Tampouco são uma análise sociológica acerca
os personagens, principalmente,
das jornadas de junho de 2013 e o processo,
memórias e relatos dos companheiros crescente desde então, de criminalização das

83
lutas populares [...] O que o leitor e a leitora A Advertência, como o autor intitula o
têm em mãos é um depoimento, fruto de texto que inicia a obra, de cerca de duas
um compromisso assumido com as vozes
páginas, tem o intuito de esclarecer
silenciadas que me pediram, como único
apoio, que dissesse o que vi e vivi nos porões de qual é objetivo do livro. O narrador
nossa sociedade. (MENDES, 2017, p. 33). escreve diretamente para o(a) leitor(a)
e deixa claro que o que se propõe é
A advertência ao leitor e à leitora, com contar a sua experiência e as histórias
a qual Mendes inicia sua história, avisa de vidas que acompanhou no período
sobre algumas características de seu de sua reclusão, mas, também, faz
relato, de que não tem como narrar referência à sociedade em que vive,
tudo que foi vivido, há uma seleção. Na o que já está subliminar no título
narrativa irão se combinar elementos escolhido. Ele descreve o porquê de a
da memória e do esquecimento, até escolha do título ser A pequena prisão,
mesmo porque ambos existem lado que faz alusão à existência de outras
a lado, ou seja, “um complementa e prisões “maiores”, as quais são vividas
alimenta o outro, um é fundo sobre o diariamente por inúmeras pessoas que
qual o outro se inscreve” (SELIGMANN- não têm condições mínimas, como
SILVA, 2003, p. 53). Dentro deste explica:
contexto, “da mesma forma, não me
Por que falo em pequena prisão?
propus a narrar tudo: busquei agarrar
Exatamente porque, iludidos com uma
o que me pareceu essencial, aquilo sociedade autoproclamada “livre”, vivemos
que me impregnou o espírito e a na verdade em uma imensa, cada vez maior,
memória, suspeito que por ser o mais prisão. Não creio que possamos considerar
importante” (MENDES, 2017, p. 36). realmente livres os que têm de enfrentar
a rotina de um trabalho extenuante e
embrutecedor, coagidos pela fome e pela
Percebemos a necessidade e, ao
ameaça de desemprego. [...] Desse ponto de
mesmo tempo, a impossibilidade de vista, o que chamamos de prisão, a cadeia,
“narrar tudo”. Como pontua Seligmann- é apenas uma fração da prisão maior em
Silva (2003, p. 46), narrar o trauma é que vivemos – um pouco mais pobre de vida,
um testemunho de um excesso de mais descaradamente odiosa, é verdade,
mas ainda assim uma fração, se comparada
realidade e “o próprio testemunho
ao grande presídio de povos em que se
enquanto narração testemunha converte nossa sociedade nesses princípios
uma falta: a cisão entre linguagem do século XXI. (MENDES, 2017, p. 34-35).
e o evento (o ‘real’) com o verbal”.
Neste sentido, podemos pensar que a
narrativa de testemunho necessita do Em entrevista ao canal Ciência &
imaginário (ficcional) para preencher as Letras, programa exibido em 28 de
lacunas deixadas pelo trauma21. novembro de 2017, pelo apresentador
Renato Farias, o autor também

21 Como pontua Seligmann-Silva (2003, p. 48), “a experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser
totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a
narração não tanto desses fatos, mas da resistência à compreensão dos mesmos”.

84
fala sobre o título do livro ser em em referência à forma como ocorre
referência a uma pequena prisão a alimentação nas prisões do Rio de
comparada a uma grande prisão Janeiro. Essa apresentação cria uma
social, num importante apontamento expectativa no leitor sobre a narrativa
de que somente haverá mudanças que virá.
dentro da pequena prisão quando
ocorrerem mudanças sociais. Igor Entre os capítulos há imagens
também traz as peculiaridades do que são referência à prisão, as
cárcere, as torturas e desumanizações quais demonstram cenas internas
e, principalmente, a passagem do da instituição: as cartas enviadas
tempo, nomeada pelo autor como e recebidas dos familiares,
uma “depressão epidêmica”, o que demonstrando a sua importância
diz que autores colocam como uma dentro do cárcere; as grades; as
prisionização22 do sujeito, a qual escritas nas paredes das celas,
atinge tanto o prisioneiro como o que aparecem com uma mancha
carcereiro, e “vai minando a sua vermelha no meio de imagens
identidade”. Relata um exemplo apenas em preto e branco, podendo
vivenciado por uma fala com outro simular o sangue; a foto que é tirada
prisioneiro ao dizer que “terminou ao ser preso; bem como imagens
mais um dia” e é repreendido com a que refletem os motivos da prisão
seguinte frase: “Não! Não é mais um do autor: as manifestações, a palavra
dia é menos um dia”. Uma contagem “luto” que se destaca entre as
regressiva do tempo, o que é peculiar imagens pela fonte utilizada e com
na vivência dentro do cárcere. maior clareza que as outras escritas;
e o símbolo com as mãos fechadas
Para demonstrar sua história, Mendes e a frase: “Em defesa dos presos e
recorre a alguns recursos paratextuais, perseguidos políticos”.
verbais e não verbais, como algumas
imagens do cárcere ou simbólicas a Como mencionamos, o desenrolar
este e ao momento político e social da narrativa é praticamente sobre
em que escreveu a história, as quais o período em que esteve recluso,
se encontram expostas no livro com algumas lembranças da vida
ao longo da narrativa. Entretanto, em liberdade. Além disso, o autor
elementos são utilizados de forma traz questões da estrutura da prisão,
que a história se inicie anteriormente mas não se detém neste sentido. O
à leitura, na apresentação do enredo da história é perpassado pelas
livro. O mesmo é simbolicamente peculiaridades do cárcere, desde as
entregue dentro de uma marmita, leis do presídio, o uso de drogas, as
relações com os guardas, as visitas,

22 No sentido da existência de uma cultura prisional que seria assimilada pelo sujeito, necessária para conseguir
se manter vivo. Semelhante ao que Erving Goffman teorizou sobre a mortificação do Eu. A dificuldade pode ser
evidenciada nos constantes relatos sobre os surtos de depressão, uso excessivo de medicamentos controlados e
tentativas ou efetivações de casos de suicídios. Há poucos dispositivos de vida, Mendes coloca como um deles a
escrita.

85
os privilégios para quem tem mais conseguisse se manter assim, foi a
condições financeiras, a relação dos escrita e a literatura:
presos que trabalhavam para os
Nem por um único dia deixei de reivindicar
guardas com os demais presos. Igor
acesso a papel e caneta, e também a livros,
consegue, apesar de também estar
que tanta falta me faziam na guerra contra
em uma condição de prisioneiro, o tempo. Apesar disso, somente depois
olhar para os demais presos em sua da minha saída de Bangu 10 pude suprir
individualidade e singularidade, aquelas necessidades implacáveis.
descrevendo as peculiaridades
de alguns personagens que ali se Um belo dia, um detento conseguiu subtrair
uma caneta da enfermaria, que passamos a
encontram, os quais compõem o
usar para enviar toques uns para os outros.
enredo da trama, como Alessandro, Com essa caneta escrevi às pressas, no
Álvaro, Ramon, Roberto “Betão”, princípio de janeiro, em um papel higiênico,
Marcinho, Fábio, Paulista, Mozer, a primeira carta aos meus companheiros e
Tiago, Sailson, Luciano23, entre outros. entes queridos [...]. A sensação que tive ao
escrever essa pequena carta foi realmente
O foco não é na história de vida ou
libertadora, e a reli tantas vezes que acabei
motivo por que estas pessoas estão por decorá-la. (MENDES, 2017, p. 145-146).
presas, mas, sim, no período em
que estão reclusos, a vida na prisão. No início de sua prisão, não conseguiu
Os delitos cometidos aparecem em ter acesso nem a livros, nem a escrita,
alguns momentos, mas não são a isso só ocorre depois de algum tempo.
prioridade da escrita. Tanto a leitura como a escrita são
vistas por ele de forma libertadora,
Não espere, caro leitor e cara leitora, uma
uma maneira de se manter vivo. Em
descrição minuciosa de lugares e objetos.
Essa descrição, quando aparece, foi feita sua narrativa faz diversas referências à
sempre em função de desvendar o estado literatura e leituras que realizou, tanto
de espírito, o que pensavam e como agiam antes de seu aprisionamento como
aqueles que davam vida ao ambiente hostil, durante. Por outro lado, como preso
moviam a engrenagem aparentemente
político, existe um reconhecimento de
monótona. (MENDES, 2017, p. 35).
um saber que não pode ser extraído
sob tortura, um conhecimento que se
Igor relata que procura se manter fundou a partir dos livros e que não
lúcido e consciente, pois necessita se se perde pelo aprisionamento. Este
acostumar com algumas situações saber é visto de forma perigosa, pois
para sobreviver, mas sempre podemos observar na dificuldade ao
tentando não perder o senso crítico acesso tanto a livros como a escrita:
e de questionamento do lugar em nos livros, o medo do conhecimento
que se encontrava. Considera que e questionamento; na escrita, o
algo importante para isso, um dos medo do testemunho, do relato e a
principais fatores que permitiu que

23 O narrador diz que “para preservar a identidade de pessoas que me confessaram crimes, ou poderiam constranger-
se com histórias aqui narradas, alguns nomes foram trocados ou substituídos por iniciais, todo o mais é rigorosamente
verdadeiro” (MENDES, 2017, p. 36).

86
denúncia da experiência vivenciada. escrevendo, fora da prisão. Igor
Mendes, atualmente, é graduado em
Sempre devorei a literatura referente à Geografia pela UERJ e se descreve
prisão, que me causava especial fascínio.
como ativista político. Além de
De “Papillon”, caminhando em seu cubículo
escuro, lutando para não enlouquecer na vivenciar a experiência, o autor foi
idílica e ao mesmo tempo infernal Caiena, ao testemunha da vida dos diversos
Graciliano de Memórias do cárcere, íntegro e sujeitos que estavam encarcerados
perspicaz observador da igualmente terrível na casa de detenção. Por meio da
Colônia Correcional de Dois Rios. (MENDES,
sua escrita deu voz a diversas vozes
2017, p. 60).
silenciadas e esquecidas, pois como
pontua Seligmann-Silva (2003, p.
A história é perpassada por uma
56), “a arte da memória, assim como
crítica social ao cárcere e ao objetivo
a literatura de testemunho é uma
da prisão. Como podemos observar
arte da leitura de cicatrizes”, suas e
nesta passagem, especialmente às
de seus companheiros. Todavia, ao
formas de violência que por ela são
relatar as histórias que ouviu, e a sua
apresentadas:
própria história e experiência vivida
É como se a tortura fosse o ponto de junto com os outros personagens/
encontro de todas as rotinas da prisão: “com prisioneiros, o escritor fala não
o passar dos dias, entretanto, fui-me dando apenas das marcas da violência
conta de algo muito mais sério: nada ali é institucional, mas consegue, para
fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa,
além disso, desmitificar e revelar uma
certamente perversa, mas metodicamente
calculada”. Socos e tapas, cabeças raspadas,
grandiosidade humana existente
humilhações... “o que é a privação de atrás das grades, nas “gaiolas” como
liberdade afinal, se não uma forma moderna são chamadas, proporcionando
de tortura, igualmente cruel, embora ao leitor uma visão diferente da
socialmente aceita”? (MENDES, 2017, p. 24). normalmente (e quase unicamente)
imaginada, somente de medo e
Podemos observar como ocorre violência por parte dos prisioneiros.
uma mudança na forma de tortura Desconstrói, assim, a historiografia
– que foi inicialmente, na história da tradicional, umas das características
penalização, através dos suplícios, dos relatos testemunhais.
chegando às formas mais requintadas
e disfarçadas, “socos, tapas, cabeças A obra A pequena prisão, de Mendes,
raspadas, humilhações”, as quais irão é um exemplo de uma população
ocasionar muita dor, tanto física como específica controlada, mantida sob
mental e moral, de degradação do tutela, sendo o foco narrativo as
sujeito. histórias vividas pelos personagens
num espaço-tempo específico, no
O autor encerra o livro com o qual o crime cometido aparece na
subtítulo: Hoje, o qual é referente descrição de alguns personagens,
ao momento em que estava mas não é a preocupação primordial

87
do narrador. Entretanto, além da outras diversas formas de análise,
representação do espaço prisional, pois a obra é um campo aberto de
consideramos que a prisão reflete perspectivas.
muitas questões da sociedade, as
quais podem ser identificadas na Daiane R. Steiernagel
história: desde questões de classe, de CRP 07/15875
poder, de massificação, de violência, Doutora e mestra em Letras pela UFSM.
Graduada em Psicologia pela Unijuí.
mas que dentro do cárcere percebe-
Atualmente, é funcionária pública: Técnico
se que estas ocorrem de forma mais
Superior Penitenciária – Psicóloga da
intensa e difundida. Superintendência dos Serviços Penitenciários
do Rio Grande do Sul – Susepe.
A narrativa, evidencia a importância da Professora do curso de graduação em
leitura como um refúgio, uma forma Psicologia da Unijuí.
de libertação, de permanecer lúcido,
mesmo em um ambiente onde a Rosani Úrsula Ketzer Umbach
morte impera. A leitura possibilita um Pós-doutora pela Universidade de Tübingen.
saber que “não pode ser extraído sob Doutora na Universidade Livre de Berlim,
tortura”, como menciona Mendes, Alemanha.
um conhecimento que se fundou a Graduada em Comunicação Social e em

partir dos livros e que talvez seja uma Letras.


Atualmente, é bolsista de produtividade em
das únicas marcas da subjetividade
pesquisa 1D do CNPq.
do sujeito que não se perde com o Professora na graduação e na pós-
aprisionamento. Por isso, não é à toa graduação da UFSM.
que este saber é visto como perigoso, o
que pode ser observado na dificuldade
ao acesso, tanto a livros como à escrita,
dentro do cárcere.

Acredita-se que o resgate de


simbolizações artísticas, em especial
a partir da literatura, a consideração
pela sociedade da leitura como um
item de necessidade básica, permitirá
um importante questionamento
de condições e/ou espaços sociais.
Obviamente que isso não é uma
regra, mas a arte pode “despertar”
efeitos simbólicos inesperados no
sujeito e na cultura de um povo. A
obra aqui analisada foi associada a
aspectos sociais e teóricos, mas, sem
dúvida, ultrapassam este viés, “fala
para além” do que propomos, haverá

88
Referências
BAKHTIN, M. Questões de literatura
e estética: a teoria do romance. 3. ed.
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SELIGMANN-SILVA, M. (org.). História,


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na era das catástrofes. São Paulo: Ed.
UNICAMP, 2003.

89
GRUPO PSICOTERAPÊUTICO PARA USUÁRIOS DE ÁLCOOL
E OUTRAS DROGAS: RELATO DE EXPERIÊNCIA NO
PRESÍDIO ESTADUAL DE SÃO FRANCISCO DE PAULA/RS
A intervenção psicológica no cárcere, uma breve e simbólica conclusão,
por si só, traduz-se em desafio certificando os participantes
profissional. Ademais, a elaboração envolvidos. A principal justificativa
de uma abordagem em grupo para a criação deste espaço condensa
suscita um desafio adicional neste algumas variáveis comuns ao espaço
ambiente, ao conciliar a prática prisional, tais como o fato de que o
científica e a ocupação de espaços tráfico de drogas é, atualmente, o
ora destinados a tão simples punição crime que mais encarcera brasileiros
e restrição dos corpos ali detidos. A e, embora a Lei nº 11.343/2016 distinga
escolha pela temática “álcool e outras usuário de traficante, na prática
drogas” traz em seu título a inicial observou-se um aumento de 339%
contextualização de que o abuso na prisão de traficantes desde a
de álcool, embora lícito, também promulgação legal (D’AGOSTINO,
se constitui como um relevante e 2015). Algumas variáveis, no entanto,
preocupante problema de saúde são peculiares da referida unidade
pública. No cárcere, o abuso de prisional, tais como: população
álcool e outras drogas é problema carcerária de pequeno porte, com
comumente relatado pelos sujeitos menos de 100 presos do sexo
que, em razão ou conjuntamente a masculino em regime fechado, em
este agravo, por fim, estão na restrição uma população que no Estado do Rio
do bem humano mais valioso: a sua Grande do Sul concentra 11,29 milhões
liberdade. de pessoas (IBGE, 2016), sendo que
deste montante, 43.455 pessoas
Com o principal objetivo de criar encontram-se privadas de liberdade
um espaço psicoterapêutico para o (SUSEPE, 2022).
acolhimento de usuários de álcool
e outras drogas, o atendimento Com o advento da Pandemia Mundial
psicoterapêutico em modalidade do Coronavírus em 2020, as atividades
de grupo foi iniciado em 2016 pela em modalidade de grupo foram
autora do presente artigo, no Presídio suspensas em todos os âmbitos. No
Estadual de São Francisco de Paula/ cenário prisional, em razão do receio
RS. À época, a metodologia pensada da grande transmissibilidade em
previa a realização de grupos com ambientes fechados, as atividades
duração breve (quatro encontros), do grupo foram suspensas. As
com temas previamente definidos, atividades, aos poucos, foram
sendo o grupo finalizado com sendo retomadas no final de 2021,

90
quando surgiu a ideia de reiniciar tão álcool e outras drogas. A perspectiva
relevante trabalho. Aliás, em 2020, teórica, assim, pôde ser ampliada,
além dos grupos psicoterapêuticos considerando que algumas
realizados pela Equipe Técnica do variações culturais ocorrem em
presídio, ocorriam grupos de Terapia relação ao consumo, padrões de
Comunitária Integrativa em parceria uso, acesso, reações fisiológicas e
com profissional Enfermeira da rede dependência de álcool e drogas, o
de saúde municipal e aulas de violão que não significa necessariamente
e xadrez coordenados por profissional um problema de saúde pública. O
voluntária. A suspensão destas uso prejudicial de álcool e drogas,
atividades trouxe um grande impacto entretanto, está associado a alguns
aos sujeitos ali recolhidos, visto que há transtornos, tais como o Transtorno de
grande tempo ocioso para a maioria Conduta e algumas situações sociais
dos sujeitos encarcerados, sendo indesejadas, como a evasão escolar,
que os relatos dos participantes de as atividades ilegais e o recolhimento
atendimentos em grupo indicavam prisional (AMERICAN PSYCHIATRIC
o quanto era significativo para eles ASSOCIATION, 2014).
estarem ali presentes, pensando nas
suas escolhas e na sua liberdade, O projeto de realização deste
temas que não eram tão comuns novo formato de atividade em
nas celas coletivas, já que a maioria grupo, foi pautado na Ordem de
das conversas entre os internos traz Serviço nº 01/2021 recebida do
consigo uma necessidade psicológica Departamento de Tratamento Penal
de mostrar-se o mais forte, a fim de se da Superintendência dos Serviços
resguardar a sua integridade física e Penitenciários (DTP/SUSEPE, 2021)
psicológica. que “regulamentou o direito à
remição de pena das pessoas privadas
Desta forma, no ano de 2022, a de liberdade nos estabelecimentos
autora decidiu remodelar o projeto prisionais por meio de práticas
realizado em 2016, considerando sociais, educativas e de leitura”
que a atividade não poderia ser (caput), possibilitando que o projeto
limitada a poucos encontros. Tal fosse enviado à Vara de Execuções
escolha, anteriormente pensada Criminais Regional de Caxias do
na alta rotatividade de ingresso, Sul e reconhecido judicialmente
transferências e progressões de no dia 03 de maio do presente
regime de penas já cumpridas, ano, garantindo aos participantes
mostrou-se limitada no tempo o cômputo de participação nesta
disponível, ocasionando uma atividade como redução da pena
discussão um pouco mais rasa aplicada. Cabe salientar que o
das questões emocionais e início informal da atividade se deu
comportamentais que acompanham um mês antes, quando ainda não
sujeitos usuários costumazes de havia a possibilidade de remição

91
aos participantes e que todos foram determinados pela única
seguiram participando da mesma, possibilidade espaço/temporal de
repensando-se a comum ideia de utilização, visto que nos demais dias
pura e simples “obrigatoriedade” na e turnos a sala de aula contempla
participação visando um benefício um Núcleo Educacional que oferta
direto (a redução da pena), para um formação em Ensino Fundamental e
comprometimento com a mudança Ensino Médio. A oferta da atividade
dos sujeitos envolvidos (objetivo de foi limitada a 15 participantes, no
tratamento). período entre abril a dezembro
de 2022 (posteriormente será
Para tanto, cabe esclarecer que a prorrogado), sendo que os mesmos
profissional responsável pelo projeto se comprometem a participar
atua na linha teórica Cognitivo- dos encontros regularmente, não
Comportamental, utilizando-se assim podendo registrar mais de três faltas.
de referências específicas para tal Tal critério permite que participantes
temática, tal como o importante guia em lista de espera também possam
“Terapia de Grupo para transtornos acessar a atividade, substituindo
por abuso de substâncias: abordagem indivíduos que, por algum motivo
cognitivo-comportamental e/ou impedimento, não possam
motivacional” dos autores Linda comparecer nos encontros. As vagas
e Mark Sobell (2013), a Entrevista são preferencialmente para presos
Motivacional proposta inicialmente já condenados, visto a oferta de
na década de 1980 por Prochasca remissão. No entanto, dos quinze
e Diclement e transcrita no Brasil, atuais participantes, oito são presos
dentre outros, por Arkowitz, Westra, provisórios, ou seja, que não são
Rollnick & Miller em 2012, através de beneficiados imediatamente com
um processo dinâmico e transteórico, a remição, mas que possuem
bem como a utilização de técnicas de motivação ao tratamento proposto.
Mindfulnees, advindas inicialmente
de práticas budistas, mas que foram Cabe salientar que a perspectiva de
incorporadas a prática científica acolhimento de sujeitos usuários de
pelo professor Jon Kabat-Zinn da álcool e outras drogas contempla
Universidade de Massachusetts em tanto aqueles sujeitos cuja motivação
1979 (WILLIANS; PENMAN, 2015). final seja a abstinência, quanto
aqueles que, por suas próprias
Desta forma, o grupo prevê encontros motivações, não conseguem ou
semanais, de uma hora, realizados não desejam interromper o uso
no único espaço possível para de alguma substância. Tratando-
atendimento nesta modalidade: a se de ambiente de tão comum
sala de aula que se encontra dentro sentimento de vigilância, remetendo-
da galeria geral da unidade prisional. nos ao conceito teórico proposto por
O dia e o turno escolhido também Focault (2015) de permanente estado

92
de vigilância e desconfiança dos que se fortaleçam estratégias de
sujeitos expostos ao poder disciplinar mudança utilizadas e se discutam
(panóptico), toma-se o cuidado inicial ambivalências e sentimentos comuns
de estabelecer algumas regras para aos participantes.
que o grupo ocorra da melhor forma,
tais como: o contrato de sigilo entre O trabalho permite excelentes
os participantes e a não ocorrência reflexões ao profissional que o
de posse de substâncias ou materiais possibilita no ambiente prisional,
ilícitos, não exposição de eventuais tais como maiores adesões à
formas de aquisição ilegal, dentre psicoterapia e acesso à maior
outros aspectos, preservando- número de sujeitos. Outras temáticas
se, assim, a segurança da qual o também já foram objetos de prática
ambiente prisional exige a seus empírica, tal como a “Preparação
servidores. para a Liberdade”, sendo também
focos de intervenção. Os desafios, no
Ao longo dos encontros são realizadas entanto, como já dito, são inúmeros,
tarefas psicoterapêuticas, tais como especialmente pela necessidade de
a avaliação de estágio motivacional o profissional estar bem preparado
(com apoio do teste URICA para teórica e pessoalmente para esta
drogas), registros de prontidão condução, já que o ambiente prisional
para mudança, balança decisória é tradicionalmente um local de
de vantagens e desvantagens no punição. Embora tais dificuldades
uso de substâncias, meditação e se apresentem, acredita-se que
relaxamentos guiados e registros de tal prática profissional constitui-
automonitoramento. Para tanto, os se como um local de possível
participantes registram suas iniciais libertação dos sujeitos, sendo que
nos documentos e os entregam ou estes passam a utilizar de forma
não na condução das sessões, com mais saudável o tempo ocioso, com
o compromisso de que o material a discussão de suas individualidades
coletado é guardado em local de e reflexões. Acredita-se, ainda, que a
acesso exclusivo aos psicólogos que curiosidade profissional, a capacitação
atuam na unidade. constante e a permissão para que
os sujeitos sejam protagonistas de
A conceituação de drogas também suas próprias histórias, favorece
é tema importante e inicial ao a sensação de capacidade para
grupo, reduzindo ansiedades e conduzir tal tarefa, fazendo com
permitindo aos sujeitos entender que o profissional aprenda contínua
que cada processo de mudança é e ininterruptamente sobre tão
individual, único e decidido pelo intrigante relação entre ser humano
próprio sujeito. A modalidade de e consumir substâncias com o
grupo, permite, ainda, o suporte objetivo de alcançar rápida satisfação
social entre os membros, para e prazer. As críticas pessoais surgidas

93
a partir de inúmeras reflexões ainda momento de vida.
encontram obstáculos, a começar por
questões de legalidade/criminalização Rita Frezza Maganini
de algumas drogas, sendo que estas CRP 07/20615
possuem vias de ação e resultados Psicóloga (FACCAT, 2011).
Técnica Superior Penitenciária / Psicóloga
sociais tão diferentes entre si. Assim,
(SUSEPE, 2013).
sempre observado os limites da
Especialista em Gestão Pública Municipal
legalidade, trabalha-se também com (UFRGS, 2015).
a perspectiva de redução de danos, Psicologia Jurídica e Avaliação Psicológica
acesso a saúde em geral e com a (FAVENI, 2019).
capacidade dos sujeitos de pedirem
ajuda ainda que em momentos
futuros, as condições pessoais,
sociais e/ou financeiras encontrem-
se extremamente desfavoráveis,
apresentando-se a rede externa de
saúde como uma continuidade do
trabalho realizado intramuros. Aliás, Referências
por estar em ambiente intramuros,
considera-se a prisão como ambiente AMERICAN PSYCHIATRIC
“protegido”, visto a ilegalidade de ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e
consumo de álcool e substâncias Estatístico de Transtornos Mentais.
ilícitas e, assim, pensam-se em 5ª. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
estratégias de mudança a longo prazo
na vida destes sujeitos. D’AGOSTINO, R. Com Lei de Drogas,
presos por tráfico passam de 31
Os resultados obtidos ao longo destes mil para 138 mil no país. Portal de
seis anos de trabalho com grupos no Notícias G1, São Paulo, 24 de junho de
sistema prisional não se traduzem em 2015. Disponível em: http://g1.globo.
extinção de índices de uso prejudicial com/politica/noticia/2015/06/com-lei-
de álcool e outras drogas, bem de-drogas-presos-por-trafico-passam-
como na extinção da recorrência do de-31-mil-para-138-mil-no-pais.html.
recolhimento prisional. No entanto, Acesso em 09 jun. 2022.
tal finalidade não é almejada no
campo de atuação teórico-prático da DEPARTAMENTO DE TRATAMENTO
Psicologia, pois como já mencionado, PENAL DA SUPERINTENDÊNCIA
a mudança é um processo individual DOS SERVIÇOS PENITENCIÁRIOS
e está limitada no tempo e no (DTP/SUSEPE). Ordem de Serviço nº
espaço de cada sujeito, nos recursos 001/2021. Documento interno.
e fragilidades que dispõe e, além
FOUCAULT, M. (2015). Vigiar e punir:
disso, na forma como reage cognitiva
nascimento da prisão. 1ª. ed. São
e comportamentalmente àquele
Paulo: Editora Vozes, 2015.

94
INSTITUTO BRASILEIRO DE Mapa prisional. Susepe, 2022.
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em: http://www.susepe.
Censo Demográfico - População. Rio rs.gov.br/capa.php. Acesso em 10 jun.
de Janeiro: IBGE, 2016. Disponível em: 2022.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs.
Acesso em 10 jun. 2022. WILLIANS, M.; PENMAN, D.
Atenção plena: Mindfulness. Porto
PROSCHASCA, J.; DICLEMENTE, Alegre: Editora Artmed, 2015.
C. Entrevista motivacional
no tratamento de problemas
psicológicos. 1ª ed. Porto Alegre:
Editora Artmed, 1983.

SOBELL, L. C.; SOBELL, M. B. Terapia


de grupo para transtornos por
abuso de substâncias: abordagem
cognitivo-comportamental
motivacional. Porto Alegre: Editora
Artmed, 2013.

SUPERINTENDÊNCIA DOS SERVIÇOS


PENITENCIÁRIOS DO ESTADO DO
RIO GRANDE DO SUL (SUSEPE).

95
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO AÇÃO INOVADORA
INSERIDA NO TRATAMENTO PENAL

Introdução longo dos anos foram se expandindo


para outras Unidades Prisionais,
O referido texto relata umas das como o Presídio Regional de Santa
ações das Técnicas Superiores Maria (PRSM), o Instituto Penal de
Penitenciárias (TSPs) da 2ª Delegacia Santa Maria (IPSM) e o Instituto Penal
Penitenciária Regional (2ª DPR), de Monitoramento Eletrônico da 2ª
através da experiência da realização Região Penitenciária (IPME). Com isto,
de Círculos de Paz no Sistema busca-se possibilitar ao apenado(a)
Prisional, como uma alternativa a participação nos círculos em
inovadora e efetiva do Tratamento diferentes Regimes de Cumprimento
Penal. As Instituições Prisionais de Pena.
de Santa Maria são administradas
pela Superintendência dos Serviços A Justiça Restaurativa é
Penitenciários (SUSEPE) que é o compreendida como um novo
órgão estadual responsável pela conceito de vida, como resolução
execução das Penas Privativas de de conflitos e de promoção da paz,
Liberdade de aproximadamente 1.600 assim sendo, visa levar conhecimento
(mil e seiscentas) pessoas no Estado sobre os princípios da Justiça
do Rio Grande do Sul. Restaurativa e da Comunicação
Não Violenta às pessoas privadas
Os servidores envolvidos nestas ações de liberdade por meio da realização
tiveram capacitação no âmbito da de círculos de paz, objetivando a
Justiça Restaurativa no curso de reflexão, o autoconhecimento, o
Iniciação em Práticas Restaurativas: empoderamento, um olhar e uma
a educação entrelaçando redes, escuta ativa, a minimização de
ofertado pelo Ministério Público da conflitos para estimular novas formas
cidade de Santa Maria – RS desde de relacionamento intra e extramuros.
2016, o que possibilitou a formação
necessária para a facilitação dos De acordo com Zehr (2008), a prisão
círculos de construção de paz, como desumaniza, promove e intensifica a
metodologia de trabalho da Justiça perda da autonomia. O isolamento
Restaurativa (JR) e Comunicação Não inerente ao aprisionamento provoca
Violenta (CNV). danos na estrutura emocional dos
apenados. Nesse sentido, as práticas
Os círculos começaram a ser restaurativas produzem espaço de
realizados em 2017, na Penitenciária valorização e empoderamento, uma
Estadual de Santa Maria (PESM), e ao vez que os círculos de construção

96
de paz proporcionam espaço seguro o grupo de práticas restaurativas,
para desenvolver o diálogo e a realizados pela equipe técnica
humanização das relações. do estabelecimento prisional
(assistentes sociais, psicólogos e
Dessa forma, se faz desafiador a advogado), objetivando disseminar
prática inovadora da JR inserida os princípios e valores da justiça
nas ações do tratamento penal, restaurativa entre os presos da
na medida em que os círculos PESM. Como ferramenta foram e
de construção de paz tornam-se ainda são utilizados os círculos de
fundamentais no contexto prisional, construção de paz, com encontros
pois proporcionam o respeito, periódicos, buscando melhorar a
dignidade e igualdade entre os comunicação, desenvolvendo a
sujeitos, possibilitando a mudança empatia e o empoderamento, bem
de atitudes pessoais, laborais e como a minimização de conflitos e a
comunitárias. construção de diálogo baseado nos
princípios da CNV, estimulando a
cultura de paz dentro do ambiente
1. PESM: a experiência prisional.
da justiça restaurativa
no regime fechado A execução do projeto, conforme
plano de ação, passou-se
A Penitenciária Estadual de Santa primeiramente a trabalhar a
Maria, inaugurada no ano de 2011, tem sensibilização dos diretores e
aproximadamente 900 (novecentos) da instituição como um todo,
pessoas recolhidas em privação de considerando que esse é um processo
liberdade, exclusivamente do sexo de construção cultural no ambiente
masculino, do sistema fechado, de trabalho. Seguido desse momento,
sendo condenados e provisórios, o mais indicado para ser o público-
temporários, bem como primários alvo, foi àqueles homens privados
e reincidentes. Atualmente de liberdade que exercem atividade
apresenta um quadro técnico de trabalho nos setores de cozinha,
composto por assistentes sociais, limpeza e manutenção da área
psicólogos, advogados, enfermeira, interna do estabelecimento prisional.
dentista e nutricionista, além de Essa decisão se deu pelo fato de que
agentes penitenciários e agentes este grupo não depende tanto de
penitenciários administrativos, movimentações e procedimentos de
somando em torno de 120 servidores segurança a serem realizados pelos
penitenciários lotados na referida agentes penitenciários, o que facilita
casa prisional. o acesso e a participação nos círculos
de justiça restaurativa.
Diante das dificuldades e desafios
diários do complexo sistema Constituiu-se um grupo, com a
prisional, iniciou-se em maio de 2017, participação de 20 pessoas, com

97
encontros quinzenais, de forma pelo trabalho consolidado. Este
aberta e voluntária, referenciado nos reconhecimento é importante e
pressupostos e valores da justiça indispensável na viabilização de
restaurativa. Ao completar um ano de seguir ampliando as ações na
desenvolvimento de círculos, realizou- própria penitenciária, além de outras
se uma avaliação das atividades, junto unidades prisionais da região e do
aos participantes, em maio de 2018. Estado.
A avaliação evidenciou os benefícios
que as práticas restaurativas Tendo em vista as etapas planejadas
trouxeram para os indivíduos, bem e alcançadas pelo projeto até a
como para o convívio social dos incorporação da Justiça Restaurativa
mesmos. Percebeu-se as mudanças como metodologia de promoção
quanto aos sentimentos e valores da cidadania e reinserção social
estabelecidos pelo participante nos das pessoas privadas de liberdade,
círculos, como respeito, valorização, destacamos alguns elementos que
compreensão, esperança, amor, permearam todo o processo. O
dignidade, pertencimento, entre primeiro diz respeito à carência de
outros, sendo esses verbalizados atividades grupais que promovam
e observados em suas relações vínculo e desenvolvimento humano
intrapessoais. Após a realização no âmbito do sistema prisional.
de vinte círculos, os envolvidos Embora o número de profissionais
demonstram nítida transformação seja baixo em relação ao número
do processo reflexivo, como se de pessoas recolhidas, as ações
observa em um dos relatos colhidos: de intervenção eram quase que
“Desejamos a continuidade do grupo, exclusivamente individuais
que por mais que para ‘entrar’ no antes da implantação do projeto.
grupo tenha que estar preso, o grupo Outro elemento é o caráter da
nos dá uma sensação de ‘liberdade’” voluntariedade para a participação
(V.M.J.). no grupo, o que despertou
imediatamente o interesse e o
A partir da sugestão dos próprios respeito dos envolvidos pela proposta.
participantes, percebeu-se a Além disso, o fato de os círculos
importância de que tais práticas constituírem-se enquanto espaço
restaurativas fossem disseminadas de escuta, sem julgamentos, onde
as demais pessoas em privação de as informações são tratadas com
liberdade na PESM e pensar também respeito, empatia e sigilo, sendo uma
como prática que deva ocorrer em construção cotidiana no ambiente
outros estabelecimentos prisionais. prisional.

Outra conquista considerável que se As práticas restaurativas tornaram-


alcançou com o desenvolvimento se importante ferramenta no
das práticas restaurativas é o contexto prisional, pois proporcionam
reconhecimento da instituição uma pedagogia de justiça social

98
que respeita a dignidade e a 2. PRSM: o trabalho da
igualdade dos sujeitos, permitindo o
compartilhamento de sentimentos e
justiça restaurativa com
experiências, agindo na restauração mulheres
de relacionamentos e na mudança de
atitudes pessoais e sociais. O Presídio Regional de Santa Maria -
PRSM é um Estabelecimento Penal
Atualmente, a prática da JR está na misto, onde estão em cumprimento
fase de ampliação das ações para de pena mulheres de todos os
outros presos que ainda não foram regimes e homens do regime
contemplados com a oportunidade semiaberto sem trabalho externo, ou
de participarem de círculos de seja, só saem 7 (sete) dias a cada 45
construção de paz, dessa forma, (quarenta e cinco) dias. Ao total há
outros grupos estão sendo planejados cerca de 250 pessoas recolhidas neste
dentro da unidade prisional. Na Estabelecimento.
PESM, em 2021, os círculos de
construção de paz passaram a fazer O grupo de Justiça Restaurativa é
parte das vivências e cronogramas realizado com o público feminino
dos grupos e disciplina inclusa no e iniciou-se com o setor da costura.
módulo básico do termo de referência Num primeiro momento, este
das capacitações pelo convênio do público trabalhava para o convênio
PROCAP/19 - Projeto de Implantação com o Hospital Casa de Saúde, na
de Oficinas Produtivas Permanentes qual ajustavam aventais e demais
do DEPEN - MJ. tecidos do bloco cirúrgico dentro do
Estabelecimento. Com o advindo
Por fim, considera-se relevante da Pandemia, tal convênio foi
salientar que os grupos são suspenso e o setor de costura passou
atendidos em um espaço a confeccionar máscaras para a
diferenciado, utilizando materiais SUSEPE. Tal mudança gerou bastante
que estimulem a criatividade e ansiedade no grupo que, além da
proporcionem momentos de reflexão perda do salário, passou a ter mais
e descontração, prezando a cultura da integrantes compondo o setor de
paz aos homens em cumprimento de costura, de 3 (três) para até 8 (oito)
pena na PESM, a fim de que cultuem mulheres.
e disseminem a prática restaurativa
em suas relações, seja ela utilizada Assim sendo, os encontros de Justiça
no sistema prisional ou em suas Restaurativa, que já acontecia com o
vivências pessoais. Como informação primeiro grupo, foram de grande valia
complementar, essa experiência foi para as adaptações dessas mudanças
selecionada e apresentada no XIV e da reestruturação tanto do fazer
Congresso Mundial de Mediação e como da nova e maior equipe de
Cultura de Paz, em Buenos Aires, no trabalho.
ano de 2018.

99
A proposta dos círculos foi culpabilidade de si mesmas pelo
construída entre a equipe técnica “abandono” dos filhos.
e as mulheres em cumprimento de
pena que participavam do trabalho Conforme explicita Julita Lemgruber
de costura, sendo apresentado o (1999, p. 86):
conceito e importância das práticas
Para a mulher, ser marginal nunca será uma
restaurativas. Quebradas as barreiras
arte, será sempre uma desonra. O próprio
do silêncio e estranheza de estar-se malandro vai recriminá-la por estar presa,
oferecendo uma nova perspectiva de largando os filhos a sua própria sorte. Ele,
pensar, sonhar, colaborar, empoderar, o homem, pode. Seja malandro, operário,
foram rompidas as dificuldades e estudante, o homem sempre pode afastar-se
dos filhos se assim o exigir sua ocupação. A
passo a passo foram construídas
mulher nunca. Essa exigência que conflitua
as possibilidades dos encontros de
todas as mulheres, atinge mais ainda
JR. Os grupos iniciaram em 2019, aquelas que não podem orgulhar-se de seu
eram mensais, ocorriam na última meio de vida, mesmo que o façam para
sexta-feira de cada mês, vindo a sustento dos filhos.
finalizar em dezembro de 2021, com o
encerramento da oficina de costura. Estudos demonstram a situação
de vulnerabilidade da maioria das
Foram trabalhados assuntos que mulheres presas, o estigma sofrido
eram trazidos pelas participantes por ter abandonado seu papel de
previamente, como: saudade, mãe e esposa, o abandono familiar é
gratidão, esperança, sonhos, futuro, a punição pela infração do seu papel
autoestima, outubro rosa, cores social.
alusivas aos meses de referência à
saúde. A cada encontro, trabalhava- Inegavelmente, esses encontros
se com algo para facilitar a reflexão, promoveram o reconhecimento
para tanto, incluía-se dinâmicas, de si próprias, de autocuidado, de
músicas, pinturas e desenhos. Sempre valorização da liberdade, empatia e
que finalizado o grupo, deixava-se diversos outros benefícios expostos
um momento livre para conversas por elas mesmas.
referentes as atividades desenvolvidas
no Círculo.
3. IPSM: práticas
Vale ressaltar que as Práticas restaurativas:
Restaurativas com mulheres em experiências no regime
privação de liberdade é uma semiaberto
experiência à parte das demais
do Sistema Prisional, isso porque, O Instituto Penal de Santa Maria
é sabido e comprovado que as - IPSM começou a desenvolver
mulheres sofrem um maior abandono atividades de práticas restaurativas
da família, um maior julgamento no ano de 2018. Desta forma, a
moral da sociedade e uma maior realização de Círculos de Paz visa

100
possibilitar conhecimento sobre saudáveis, humanizadas e menos
Práticas Restaurativas aos homens conflituosas, possibilitando ainda
em cumprimento de pena que orientação no processo de (re)
se encontram a cumprindo no inserção e visando a diminuição da
Regime Semiaberto com trabalho reincidência penal.
externo, ou seja, apenas chegam no
estabelecimento prisional à noite e no Os Círculos de Paz para os homens
domingo ficam todo o dia. Ressalta- em cumprimento de pena no regime
se que este público foi escolhido semiaberto com serviço externo
por estarem retornando ao convívio iniciaram com a sensibilização
familiar, social, comunitário e laboral. destes e de servidores para que não
houvesse empecilhos à realização
Sendo assim, são trabalhados os dos encontros. Recebeu-se, inclusive,
valores da Justiça Restaurativa, que doação de cadeiras, pois não
são: respeito mútuo, empoderamento, tinha como se sentar para realizar
colaboração, valorização dos os grupos. Os círculos ocorrem
outros, integridade, honestidade, mensalmente, em um domingo,
transparência, confiança e tolerância. no pátio da instituição, isso porque
Para desenvolvê-los é necessário não há espaço específico dentro
empatia, capacidade de escuta do estabelecimento que comporte
e gestão de conflitos. Destaca-se atividades de grupo. Inicialmente
que as ações referentes às práticas foram disponibilizadas 10 (dez)
restaurativas propostas objetivam, vagas, e atualmente dispomos de 20
ainda, reduzir os níveis de conflitos (vinte) vagas, podendo também ser
apresentados entre eles e a utilização aumentado conforme demanda dos
de técnicas da comunicação não homens recolhidos. Destaca-se que
violenta, baseados nos fundamentos não é um grupo fechado, podendo
da Cultura da Paz e da Educação novos participantes aderirem a
em Direitos Humanos. Portanto, qualquer momento, visto a grande
torna-se o início de uma tentativa rotatividade de pessoas privadas de
de construção das relações mais liberdade no Estabelecimento Penal.

101
Os temas abordados são sugeridos diferente, pois visa trabalhar os
por eles em conjunto com a equipe sentimentos deles frente a tal punição
técnica responsável. e refletir sobre formas de apresentar
atitudes diferentes. Desta forma,
Segundo Kay Pranis (2010, p. 92): a equipe técnica do IPSM busca
disseminar as práticas restaurativas
Os Círculos se valem de uma estrutura para
em diferentes situações, conforme
criar possibilidades de liberdade: liberdade
para expressar verdade pessoal, para deixar
demanda apresentada pelo público
de lado as máscaras e defesas, para estar atendido.
presente como um ser humano inteiro, para
revelar nossas aspirações mais profundas, 4. As práticas
restaurativas e o
para conseguir reconhecer erros e temores
e para agir segundo nossos valores mais
fundamentais. monitoramento
eletrônico
O diferencial dos círculos com este
público é a interação trazida por estes O Instituto Penal de Monitoramento
homens em privação de liberdade Eletrônico de Santa Maria (IPME)
e suas vivências no trabalho e na começou a desenvolver atividades
família, relatando momentos em que de práticas restaurativas no ano de
se utilizaram das práticas restaurativas 2020. O surgimento dessa prática
para resolução de conflitos e melhora grupal teve início em decorrência
nas relações. Também, torna-se um da necessidade de momentos
momento de reflexão e de olhar para de reflexão, acolhida, empatia e
si mesmo e para o outro, criando um empoderamento para o público de
espaço de escuta e acolhimento para trabalho inserido no convênio firmado
um público que é bastante julgado e entre Prefeitura Municipal e SUSEPE.
pouco ouvido. Nos círculos é possível
ver a sensibilidade de Homens No ano de 2021, a equipe técnica
ditos “Bandidos”, expressando seus do IPME realizou Círculos de Paz
sentimentos e relatando o quanto os com o objetivo de realizar reflexões
círculos são importantes e o quanto acerca da importância da atividade
eles aguardam o domingo agendado. laboral, convivência em equipe e
empoderamento do sujeito, visando
No ano de 2021, o IPSM passou a à importância da ressocialização
realizar também Círculos de Paz com da pessoa em cumprimento de
o objetivo de tratar situações ligadas pena incluída no monitoramento
aos Procedimentos Disciplinares eletrônico, na qual chama-se
Administrativos (PADs) que são de monitorados, por meio de
instaurados pela Unidade Prisional fortalecimento de vínculos familiares
em decorrência de faltas cometidas e comunitários.
pelos que ali cumprem pena. Este
círculo apresenta-se bastante Um dos desafios do IPME é conseguir

102
deslocar os monitorados, que estão relações interpessoais entre as
em suas casas, até o local do Círculo, pessoas privadas de liberdade.
pois não se possui verbas para Posteriormente, entende-se que há a
transporte e é visível a dificuldade possibilidade de uma transformação
para que estes insiram-se no mercado nas relações intrafamiliares,
de trabalho, com isso, muitos acabam comunitárias, laborais e sociais destas
não tendo renda ou, quando tem, pessoas, facilitando a efetiva (re)
é apenas para compra de utensílios inserção social. Assim, projeta-se a
mínimos para sobrevivência. Mas, diminuição da reincidência prisional
mesmo assim, muitos comparecem, e o desenvolvimento de formas
vindo até mesmo caminhando longas menos violentas de comunicação e
distâncias. convivência.

Para efetivação do Tratamento Penal, O trabalho realizado por meio dos


é indispensável um trabalho de Círculos de Construção de Paz e
sensibilização com empresas a fim de Comunicação Não Violenta vem cada
buscar vagas de trabalho para este vez mais se fortalecendo no âmbito
público. Sabe-se que a resistência prisional, tornando-se uma referência
por parte do empresariado é grande na possibilidade da transformação
e que impede até mesmo que se pessoal e da cultura social que seja
inicie uma construção por parte da mais justa e igualitária.
Equipe Técnica para dialogar sobre
novas experiências de contratação. Aline Costa de Lima
As Práticas Restaurativas podem Assistente Social da Penitenciária Estadual
ser um aliado nessa perspectiva da de Santa Maria – PESM.
relação entre o empresariado e as
pessoas privadas de liberdade, onde Anelise Flores Farias
Assistente Social do Instituto Penal de Santa
o compromisso social de reinserção
Maria – IPSM.
dessas pessoas está além do fazer do
Estado, assim é preciso disseminar
Cíntia Fiorin Medeiros
cada vez mais essas ações para toda a
Assistente Social do Instituto Penal de
sociedade.
Monitoramento Eletrônico – IPME.

Reflexões finais Larianne de Andrade Saul


CRP 07/09413
O impacto social esperado diante Psicóloga da Penitenciária Estadual de
desta ação inovadora na 2ª DPR, Santa Maria – PESM.
vinculada ao tratamento penal
desenvolvido nas Unidades Lucélia Mello da Costa
Prisionais, busca num primeiro Assistente Social do Instituto Penal de
momento, a disseminação Monitoramento Eletrônico – IPME.
das práticas restaurativas e da
comunicação não violenta nas

103
Renata de M. Domingues Cauduro Referências
CRP 07/15078
Psicóloga do Presídio Regional de Santa
LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos
Maria – PRSM.
vivos: análise sociológica de uma
prisão de mulheres. 2. ed. Rio de
Rosaura B. Ismael Freitas
Assistente Social do Presídio Regional de
Janeiro: Forense, 1999. p. 86.
Santa Maria – PRSM.
PRANIS, Kay. Processos Circulares de
construção de paz. São Paulo: Palas
Athena, 2010.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes:


um novo foco sobre o crime e a
justiça. São Paulo: Palas Athenas,
2008.

104
PSICÓLOGAS E PSICÓLOGOS NO SISTEMA PRISIONAL:
PORTA-VOZES DE MUDANÇAS PARA A EFETIVAÇÃO DE
DIREITOS E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
A Psicologia no sistema prisional tem prisional e estejam fortalecidos para
construído um caminho de garantia seguirem suas vidas. A viabilização
de direitos e tem rompido com de alternativas que possivelmente
dicotomias que permeiam o trabalho nunca antes foram pensadas por
cotidiano. Consequentemente, essas pessoas e para essas pessoas
os psicólogos e psicólogas que privadas de liberdade, de novas
atuam nas mais variadas unidades formas de usufruírem, conquistarem
prisionais do Estado e nos setores e conviverem com os demais
administrativos, deparam-se membros da sociedade, possibilita
seguidamente com questionamentos a elas desempenharem um outro
que ecoam para dentro do sistema papel no seu âmbito social a partir do
prisional aquilo que está sendo momento em que lhes for possível o
entendido e falado na rua. Deparam- retorno à convivência extramuros, seja
se com embates sobre o porquê pela progressão de regime, seja pela
as pessoas privadas de liberdade liberdade condicional ou pelo efetivo
(PPL) têm psicólogo e/ou psicóloga à término do cumprimento de pena
disposição e as pessoas de bem não (SÁ, 2016).
tem.
A Psicologia trabalha com a ideia
Esse tipo de situação, geradora de de que alguns estigmas precisam
estresse, é de amplo conhecimento ser revistos, repensados, já que não
e de vivência diária para muitos há, no Brasil, prisão perpétua e nem
profissionais. No entanto, ela não condenação de morte, de modo que
tem impedido a execução da o sujeito que está em privação de
atividade fim das psicólogas e liberdade certamente retornará ao
psicólogos, ou seja, a efetivação das convívio social.
mais variadas políticas públicas no
sistema prisional a fim de garantir Nesse sentido, como proposta de
os direitos daqueles e daquelas atuação e com apoio da gestão
que cumprem pena restritiva de regional e dos(as) muitos(as)
liberdade. A liberdade está cerceada, colegas que estão engajados no
mas a dignidade, as possibilidades mesmo propósito, temos envidado
e alguns caminhos precisam ser esforços para ampliar o número
apresentados a este público com o de PPL trabalhando para além
intuito de que, ao saírem, encontrem das tarefas de manutenção das
meios de não voltarem para o sistema unidades prisionais; que elas saiam

105
capacitadas e desejantes de atuarem entre quem está do lado de cá (em
profissionalmente. Além disso, liberdade) em relação a quem está do
estamos buscando alicerçar boas lado de lá (em privação de liberdade).
condições de ensino, com salas
de aulas organizadas, ambientes Entendemos, como profissionais
propícios à educação formal e da Psicologia, que as resistências
informal, mais cores, professores(as) a mudanças desse porte iriam
qualificados(as) e ocupando espaços acontecer e mesmo assim temos
onde são reconhecidos(as). Isso avançado, porque tem sido
tem feito o número de alunos e gratificante receber os feedbacks dos
alunas aumentar, tem trazido bons alunos e das alunas. A educação, e em
resultados nas avaliações curriculares, especial a graduação, por si só tem
mas também nos exames de derrubado os muros que separam
avaliação do Exame Nacional a realidade do sistema prisional
do Ensino Médio (ENEM) e tem da sociedade; muros construídos
oportunizado o acesso de um grupo e reforçados pelas mais variadas
de pessoas presas ao ensino superior instâncias de controle e punição que
na modalidade à distância (VIANA, existem no meio jurídico e social,
2017). pois com o contato dessas pessoas
em cumprimento de pena, agora
A tarefa de oportunizar a educação acadêmicas, com a internet, com
à distância no sistema prisional é professores (as) universitários (as),
desafiadora, já que para muitos isso tutores (as) e colegas de aula, tem-
é algo impensável para o ambiente se gerado uma troca de mundos,
prisional. Os discursos de ódio e pois ambos os sistemas – de ensino a
contrários à prática propagam- distância e prisional – não eram, até
se e tornam ainda mais difícil a então, possíveis de se encontrarem.
produção de sentido dessa nova
forma de ensino dentro dos muros
dos presídios gaúchos. Essas vozes
que ecoam “estão estudando apenas
porque estão presos”, “estão tirando
a vaga de uma pessoa de bem”, “pra
gente pobre e trabalhadora não
tem bolsa de estudo” entre outros
comentários, ditos em redes sociais,
comentários de notícias e mesmo
por colegas, servidores (as) públicos
(as); são as mesmas vozes que por
vezes invalidam qualquer outra ação Sala de aula do ensino a distância do Presídio
de assistência e garantia de direito. Regional de Santa Cruz do Sul. Foto: autor/a
Para essas pessoas, há um abismo do texto.

106
A Psicologia tem agregado sentido Ser psicólogo e psicóloga nesse
para a construção e consolidação contexto é olhar, conviver, trabalhar e
dessa proposta que tem trazido empatizar com os muitos atores que
nova perspectiva para as PPL e para permeiam a realidade do sistema
o sistema prisional. A Psicologia prisional – as PPL, as famílias, os (as)
tem sido a negociação para que as colegas, o Judiciário e a comunidade
portas não se fechem a cada novo (SILVA, 2010).
obstáculo, mas não só isso, tem sido
a conversa que vai compreendendo A valorização do trabalho técnico,
a dinâmica interna de cada nesse contexto, não só do psicólogo
acadêmico(a) que se vê compelido a ou psicóloga, mas da equipe de
desistir quando as dificuldades vão tratamento penal, por parte das
chegando. É também a interlocução chefias e colegas é muito importante,
com os diversos atores que estão porque é incentivadora e gera
acompanhando a execução e satisfação pessoal. Sabemos que
concretização desse projeto. o prazer em trabalhar também
está ligado a este nível de
A Psicologia tem agregado sentido reconhecimento, já que muitas
para a construção e consolidação vezes a garantia dos direitos dos
dessa proposta que tem trazido presos e presas e a multiplicação de
nova perspectiva para as PPL e para boas práticas acaba ofuscada pela
o sistema prisional. A Psicologia necessidade da custódia.
tem sido a negociação para que as
portas não se fechem a cada novo Aliás, a execução das mais variadas
obstáculo, mas não só isso, tem sido políticas públicas muitas vezes
a conversa que vai compreendendo está à margem do que a maior
a dinâmica interna de cada parte dos(as) servidores(as)
acadêmico(a) que se vê compelido a penitenciários(as) entende como sua
desistir quando as dificuldades vão função principal, a saber, a custódia.
chegando. É também a interlocução No entanto, cabe ressaltar que, a
com os diversos atores que estão missão da Superintendência dos
acompanhando a execução e Serviços Penitenciários (SUSEPE)
concretização desse projeto. é promover a inclusão social das
pessoas privadas de liberdade,
Ser psicólogo e psicóloga num visando ser referência em socialização
ambiente que é restritivo, é lutar para no sistema penitenciário nacional.
que a inovação chegue, construindo (SUSEPE, 2022). É com esse foco que
pontes e apoios importantes para trabalhamos, apostamos e inovamos.
a manutenção das propostas e
descobrindo maneiras de atuar a cada É com esse foco também que
dia, de acordo com os (as) colegas respeitamos os mais variados
que estão no plantão, assim como questionamentos que são feitos a
com quem ocupa os cargos de chefia. nós por parte dos(as) servidores(as)

107
do sistema prisional. Há quem mantenham contato com as famílias,
debata a ideia de que a instituição que tenham documentos, que
desenvolve atividades apenas recebam atenção às suas demandas,
voltadas para as PPL, que as mesmas independentemente de quais sejam
não são merecedoras, gerando, por elas (BRASIL, 1984). Isso tem sido um
vezes, embates de cunho pessoal, dos fatores que tem proporcionado
moral e ético. Mas a Psicologia está a expansão da atuação técnica para
sempre em busca de esclarecer e as alternativas à prisão e também ao
mostrar uma outra perspectiva do atendimento aos egressos e egressas;
trabalho desenvolvido no âmbito do denota que estamos ampliando
sistema prisional, que gere em todos olhares e construindo espaços de
e todas a reflexão do que estamos atuação que cada vez mais foque na
devolvendo à sociedade quando pessoa e não na situação em que ela
perpetuamos práticas que tem se se envolveu.
mostrado falhas e/ou falidas. Além
disso, mostrando a esses(as) colegas Certamente não podemos alimentar
como seus trabalhos são importantes o sistema de vigiar e punir, algo
para que a engrenagem funcione que há muito mostra resultados
corretamente e que juntos, como indesejados e insuficientes. À
equipes, podemos proporcionar às Psicologia cabe proporcionar para as
pessoas em cumprimento de pena mais diversas pessoas que permeiam
oportunidades que não puderam a realidade do sistema prisional
ter enquanto estavam em liberdade e execução da pena, uma outra
e com isso, atingir o objetivo da perspectiva, outro olhar. Por isso,
instituição da qual fazemos parte entendemos que nós, psicólogas
e onde diariamente escolhemos e psicólogos no sistema prisional,
permanecer. somos porta-vozes de mudanças de
práticas que resultam na garantia
Temos vivenciado a evolução na de direitos e na efetivação das mais
execução das políticas públicas no diversas políticas públicas em prol do
sistema prisional, fruto do trabalho de público que atendemos, mas mais
muitas mãos e da compreensão, por que isso, resultam em satisfação
parte das gestões (em todos os níveis), pessoal e ficamos orgulhosos em
da importância do trabalho técnico fazer parte disso.
bem desenvolvido e organizado,
pautado na interdisciplinaridade e em Pauline Schwarzbold
várias parcerias para além dos muros CRPRS 07/21361
das unidades prisionais. Buscamos Mestranda em Promoção da Saúde pela
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)
alternativas que proporcionem às PPL
Técnico Superior Penitenciário – Psicóloga na
formação escolar, assistência material,
Superintendência dos Serviços Penitenciários
assistência religiosa, atendimentos de
(SUSEPE/RS).
saúde e atividades de trabalho, que

108
Paula Teixeira De Almeida SUPERINTENDÊNCIA DOS SERVIÇOS
CRPRS 07/14396 PENITENCIÁRIOS (SUSEPE).
Técnico Superior Penitenciário – Psicóloga na Apresentação. Superintendência
Superintendência dos Serviços Penitenciários dos Serviços Penitenciários, 2022.
(SUSEPE/RS). Disponível em: http://www.susepe.
rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=1.
Gustavo Hamann De Freitas Acesso em: 20 jun. 2022.
CRPRS 07/16623
Técnico Superior Penitenciário - Psicólogo na
VIANA, Lurizam Costa. Trabalho
Superintendência dos Serviços Penitenciários
e Educação como Instrumentos
(SUSEPE/RS).
de emancipação nas Prisões. In:
FIDALGO, Fernando; FIDALGO, Nara
(Orgs). Sistema prisional: teoria e
pesquisa. Belo Horizonte: Editora
Referências UFMG, 2017. p. 93-115.
BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei nº
7210 de 11 de julho de 1984.

SÁ, Alvino Augusto de. Sistema


prisional e execução penal: a
necessidade de se rever a “lógica”
da compreensão que se faz acerca
da infração penal e da pessoa do
infrator. In: CONSELHO FEDERAL
DE PSICOLOGIA (CFP). O Trabalho
da (o) psicóloga (o) no sistema
prisional: Problematizações, ética e
orientações. Brasília: CFP, 2016. p. 133-
148. Disponível em: https://site.cfp.
org.br/wp-content/uploads/2016/12/O-
trabalho-do-psicologo-grafica-web1.
pdf. Acesso em: 20 jun. 2022.

SILVA, Ana Carla Souza Silveira da.


Painel − Cenários e desafios da práxis
psicológica no sistema prisional: ética
e compromisso social. In: CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP).
Atuação do psicólogo no sistema
prisional. Brasília: CFP, 2010. p. 45-53.

109
PRODUZINDO PAIS AUSENTES: NOTAS SOBRE A
INVISIBILIZAÇÃO DA PATERNIDADE DE HOMENS
PRESOS24
Neste texto, colocamos em entre mundos objetivos e subjetivos
análise a forma como a instituição onde há a co-criação de discursos
prisional trata a relação parental sobre as afetações dos sujeitos
dos homens presos. Nomeamos envolvidos na pesquisa. No contato
como invisibilização a forma como com instituições atravessadas por
a administração penitenciária trata situações de violências e torturas,
esta relação, o que não significa como as prisões, o compromisso
desconsiderá-la por completo, ético-político da pesquisa cartográfica
mas produzir uma sistemática evoca a necessidade de abordar
falta de informações sobre essas aquilo que, para os sujeitos que
relações e, quando se sabe que elas habitam a prisão desde diferentes
existem, julgá-las pelos signos da lugares (pessoas presas, funcionários/
incompetência ou inadequação, as, pesquisadores/as), é da ordem do
partindo da premissa que os homens infame, do abjeto ou do intolerável.
presos são “maus pais”. Aliado a isso, Não se pode deixar de nomear
há uma dinâmica institucional que aquilo que aniquila a vida de
afasta os homens presos de seus populações vulneráveis, perpetuando
filhos e filhas, a partir do temor que os desigualdades estruturais que
estigmas relacionados às prisões os envolvem aspectos de classe, raça e
atinjam, fazendo com que os homens de gênero.
presos, muitas das vezes, prefiram não
receber visitas na prisão.
Relacionamentos
A pesquisa parte do referencial familiares nas visitas à
teórico da cartografia, cujo objetivo prisão
é traçar a rede de forças à qual o
objeto ou o fenômeno abordado se A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210
encontra conectado, evidenciando de 1984) prevê o contato das pessoas
suas modulações e seu movimento presas com seus familiares como um
permanente, conforme apontam mecanismo de ressocialização. A visita
Laura Barros e Virgínia Kastrup (2015). à família é permitida aos condenados
A pesquisa é sempre o resultado de que cumprem regime semiaberto,
uma implicação, de um encontro sendo permitida em dias pré-definidos
ou datas festivas (art. 122). Para os

24 O texto aborda um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “Ser pai, estar preso: vivências e sentidos da
paternidade em presídios cariocas”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob orientação da professora Anna Paula Uziel.

110
presos do regime fechado, é permitida ou amigo/a preso/a, o site oferece
a visita “do cônjuge, da companheira, uma lista: “Cônjuges (oficialmente
de parentes e amigos em dias casados) e companheiros (com união
determinados” (art. 41, inciso X). estável ou filho(s)); Filhos e enteados;
Pai e mãe; Padrasto, madrasta,
A Secretaria de Administração pai afetivo e mãe afetiva somente
Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP/ quando não houver pai e mãe
RJ) possui um site específico para cadastrados para visita; Avós; Netos;
orientar parentes e amigos/as que Irmãos; Tios, sobrinhos (maiores de
desejam se cadastrar como visitantes. 18 anos); Amigo. Somente um único
São oferecidas diversas informações amigo será permitido”. Para filhos/
sobre as unidades prisionais, o as adolescentes, entre 12 e 17, é
credenciamento dos visitantes, o exigida a apresentação de carteira de
atendimento prestado às famílias, identidade e certidão de nascimento
notícias, etc. Na aba do site que trata para obter a carteira de visitante. Para
dos benefícios das pessoas presas filhos/as entre 7 e 11 anos, apenas
(visita íntima, trabalho extramuros, um dos documentos exigidos para
visita à família, etc.) identificamos um os adolescentes. Por último, para as
analisador com o nome “Benefícios crianças menores de 7 anos não há
e Regalias” (grifo meu). Analisador é necessidade de credenciamento,
um conceito da Análise Institucional sendo obrigatório apenas apresentar
que diz respeito a eventos que a carteira de vacinação atualizada,
transversalizam diversos níveis do e autorização do Serviço Social da
campo onde ocorre a pesquisa- unidade prisional.
intervenção, sem deixar de ser, em si
mesmo, portador de sentido. Entre os presidiários, com relação às
visitas recebidas por suas famílias,
Por que então pensar “Benefícios e chama a atenção o relato de detentos
regalias” como analisador? A palavra sobre o temor de que, caso seus
regalia remete a algo da ordem filhos/as tenham uma carteirinha
do privilégio, e não dos direitos de visitante de unidade prisional,
garantidos por legislação específica. isso possa prejudicá-los no futuro, se
Isso é um indicativo da forma como estes quiserem prestar um concurso
o sistema de justiça criminal enxerga público, situação que foi relatada na
os direitos das pessoas presas, indo ao pesquisa de Cecília Minayo e Patrícia
encontro de discursos midiáticos e do Constantino (2015). Nas palavras
senso comum que equiparam uma de um dos homens presos que
noção vaga e imprecisa de “direitos entrevistei durante minha pesquisa:
humanos” com algo como “privilégios
para bandidos”. Minha mulher me visita sempre, até hoje,
toda semana ela vem. Os meus filhos com
ela vinham também, mas quando fizeram
Com relação a quem pode
sete anos eu pedi pra ela não trazer eles
efetivamente visitar um parente

111
mais. Se eles fizerem a carteirinha isso pode do aprisionamento não pode ser
atrapalhar se eles quiserem fazer faculdade, creditado unicamente aos processos
pra entrar no serviço público, arrumar
de criminalização e à instituição
emprego... Eles puxam lá as informações e
vai aparecer que eles têm carteirinha pra prisional, não deixa de ser um
visitar a prisão, aí vão ver que tem parente analisador o fato de a justiça criminal
preso, não quero. Aqui também não é lugar desconsiderar, em grande medida,
pra criança. Existe muito preconceito com as eventuais relações parentais da
isso, então eu quero o melhor pra eles, ver
população privada de liberdade.
eles crescer, amadurecer...25
Isso porque, nas estatísticas sobre
a população prisional brasileira,
O receio da estigmatização produz
há um evidente apagamento da
separação, traduz diferença (estar
condição parental da população
preso) em mais desigualdade (se
privada de liberdade. E isso acontece
privar do contato com os filhos). Essa
de formas diferentes para homens
é, na prática, uma forma de extensão
e mulheres. O olhar incriminador
da pena que ultrapassa o indivíduo
para mulheres faz com que elas
e chega aos seus familiares. Para
sejam intensamente recriminadas
além da peregrinação das famílias
pela condição de criminosa, que
para encontrar seus parentes presos,
seria supostamente incompatível
o que, em si, é palco de diversas
com determinadas ideias sobre o
agruras – a distância, as longas
feminino e a maternidade, que as
filas, debaixo de sol ou chuva, o
ligam compulsoriamente à docilidade
fato de carregar pesadas sacolas, o
e à vida doméstica. Em relação aos
relacionamento tenso com os agentes
homens, há um total apagamento
penitenciários – há o outro lado da
de sua condição de pai. Dentre os
questão, que é se ver impossibilitado
muitos aspectos que compõem
(ou desencorajado) a manter vínculos
a masculinidade, a paternidade
pelo temor de que os filhos e filhas
certamente não é privilegiada para
sejam alvo dos mesmos processos
aqueles que cumprem pena privativa
de segregação a que estão sujeitos
de liberdade. Como afirma Maria
aqueles que estão presos.
Ivone Cunha (2020, p. 31):

A sistemática falta de As prisões de mulheres tendem, com efeito,


informações a suscitar e a promover uma exaltação
da maternidade não apenas pelo peso
de uma história que deu especial relevo à
Como afirmamos anteriormente, há
reprodução e à domesticidade, mas também
um vazio de atenção institucional porque a noção de “presos pais” continua a
dispensada para a paternidade ser tão estranha às organizações prisionais
dos homens presos. Se o possível masculinas (e.g., não é usual a existência
afastamento de homens de de creches em tais estabelecimentos)
quanto a noção de “presas mães” é central
seus filhos/as, antes ou depois
nas femininas (bem como aquilo que as

25 As falas literais contidas no texto estão destacadas em itálico.

112
organizações internacionais apelidam de pais encarcerados diz respeito ao
“necessidades especiais” das prisioneiras). já citado Marco Legal da Primeira
Infância. A lei, apesar de trazer
No Brasil, este apagamento também aspectos relevantes de proteção ao
se faz presente nos números. De período conhecido como primeira
acordo com os últimos dados infância (zero a seis anos), traz critérios
disponíveis no site do Departamento distintos para a concessão de prisão
Penitenciário Nacional (DEPEN), das domiciliar para homens e mulheres
753 mil pessoas privadas de liberdade que tenham filhos/as pequenos. Para
em 2020 – cuja maioria expressiva o homem, pode-se conceder a prisão
(cerca de 95%) é homem –, só há a domiciliar única e exclusivamente
informação sobre ter ou não filhos de em casos em que ele seja o único
27% deles. Desses, os dados dão conta cuidador da prole, enquanto que,
de: 49% sem filhos, 22% com um filho, para a mulher não é necessário
13% com dois filhos, e os 16% restantes que ela seja a única cuidadora. Essa
com três ou mais filhos. disparidade evidencia normas e
padrões com relação à parentalidade
Dessa forma, para os órgãos de que perpassam a sociedade brasileira:
administração penitenciária do Brasil, espera-se, no caso de mulheres que
a informação sobre a parentalidade possuem filhos/as, que elas sejam
de pessoas privadas de liberdade as únicas ou principais cuidadoras
é desimportante ou mesmo dos filhos/as, independente de
desnecessária – num universo outras pessoas que possam também
predominantemente masculino exercer esse cuidado; com relação aos
onde os poucos espaços onde há homens, por outro lado, espera-se que
algum engajamento com a questão exista outra pessoa que se encarrega
da parentalidade são as unidades do cuidado da prole. Daí que, para
femininas onde as mulheres mães o homem, é necessário provar ser
podem conviver com seus filhos/as o único cuidador disponível, caso
recém nascidos/as. Ainda assim, com contrário, a privação de liberdade no
níveis tão altos de subnotificação, regime fechado é mantida.
apresenta-se um desafio ainda maior
para a implementação de qualquer
política pública que considere as
A desqualificação do
relações familiares de homens homem preso que possui
privados de liberdade. A paternidade filhos/as
dos homens presos se mostra
Olha, não acredita neles não hein, aqui
institucionalmente, dessa forma,
dentro é só amor quando vê os filhos, mas
como um lugar de grande vazio e quando sai não quer nem saber. Eu vendo
marcada pela invisibilização. eles recebendo visita dá até vontade de
conhecer um deles, são cheios de carinho, de
Outro exemplo disso em termos de amor... Mas quando sai é outra coisa. Teve
políticas públicas com relação aos um que eu vi que recebia visita toda semana

113
da família, aí quando ele saiu, passou uma unidade prisional para explicar
semana e veio a família procurando ele, ou minha pesquisa e como eu pretendia
seja, ele saiu e nem foi ver a família. Não
realizá-la. A certa altura da conversa,
acredita neles não, é tudo verme. (Diário de
campo, conversa com agente penitenciária, perguntei se havia a informação
fevereiro de 2020). sobre quantos presos têm filhos, e ele
disse que não, que essa informação
O trecho citado acima ocorreu seria difícil de conseguir. Então ele
na ocasião do início das minhas disse: “uma vez eu estava ouvindo
entradas no sistema prisional carioca a conversa de dois presos que
quando obtive autorização para tal. iriam sair pra visitar a família, e um
As visitas logo foram suspensas em deles disse ‘quero chegar logo em
razão da pandemia, no entanto, foi casa pra ver minha esposa, meu
possível ter momentos de conversa filho’, e o outro respondeu ‘eu vou
com funcionários e realizar uma é na praia primeiro, dar um rolé,
entrevista com um homem preso que por último é que vou lá ver meu
possui filhos/as. Após o advento da filho’... Aí você vê a noção que eles
pandemia, passei a realizar pesquisa têm de paternidade...”. No entanto,
documental e a buscar sobreviventes pensei, em sua história, um dos
do cárcere26 para saber de suas presos parecia preocupado com a
experiências com suas famílias convivência com o filho, enquanto o
durante a privação de liberdade. outro não. Por que enfatizar aquele
que quer “curtir a vida” longe do filho?
O que chama a atenção no trecho Por que um representaria mais a
é a desqualificação moral dos “eles”, os presos, do que o outro?
homens presos. O fato de terem
(supostamente27) infringido a Estão em jogo aqui os agenciamentos
lei os transforma em sujeitos institucionais que produzem a
moralmente condenáveis em todos estigmatização de toda a existência
os aspectos de suas vidas, e seus das pessoas privadas de liberdade.
comportamentos vistos como falhas Como analisa Foucault (2014), se o
ou erros no cuidado dos/as filhos/as direito e a justiça criminal possuem
são superdimensionados e tomados um campo de conhecimento
como a norma, o que ficou evidente que legitima as práticas punitivas
em diálogo com outro funcionário do modernas, as prisões produzem
sistema prisional. outra série de conhecimentos ligados
ao cotidiano da administração
A conversa ocorreu quando eu penitenciária, criando relativa
conversei com o diretor de uma autonomia das instâncias legais

26 Utilizo o termo sobrevivente do cárcere como sinônimo de egresso, em consonância com os movimentos sociais de
viés antirracistas e antiprisionais, que denunciam as elevadas taxas de mortalidade no sistema prisional.
27 Com esse termo busco evidenciar a incerteza que marca os aprisionamentos no Brasil, onde cerca de 40% da
população prisional não foi formalmente condenada e, mesmo entre os condenados, há inúmeros relatos de prisões
com base em critérios reconhecidamente falhos, como o reconhecimento facial por parte de vítimas de crimes.

114
de regulação das prisões. É isso o Relações parentais para
que faz com que, entre diretores,
agentes penitenciários e técnicos que
além do estigma
atuam nas prisões, reproduzam-se Porque pro meu filho ele acompanhou mais
discursos sobre uma verdade sobre o processo de prisão, a minha filha não.
a população prisional que tanto Minha filha era bem pequena, não entendia
pesquisadores quanto legisladores nada, e hoje que ela traz essas indagações:
“pai, porque você foi preso?”... “porque você
pouco ou nada conhecem; se agentes
foi preso? Um cara tão legal, pai...” “Você é
externos discutem as possibilidades um cara tão bacana porque você foi preso,
de ressocialização ou garantia de pai? O que que você fez?” Aí a gente tem que
direitos – ainda que os funcionários trazer essas informações, explicar pra ela. Aí
do cárcere compartilhem desses ela faz essas indagações... “A prisão não é só
pra quem é perigoso?” [risos] E tal, aquela
termos em determinadas situações
coisa toda.
– no interior do cárcere reitera-se a
perspectiva da impossibilidade de
um trabalho eficaz junto à população O trecho citado é de um sobrevivente
prisional que, de alguma maneira, do cárcere que entrevistei durante
seria diferente do restante da a pesquisa. Seus relatos dão
população, nos moldes epistêmicos testemunho da complexidade
e políticos da criminologia positivista que o tema traz. O fato de ter sido
do século XIX. Dessa forma, opera- condenado pela justiça criminal
se uma invisibilização dos fatores não apaga o fato de ter uma família
econômicos, históricos e sociais que e vínculos parentais que existiam
criam precariedades e impossibilitam antes do aprisionamento, e que
a efetiva garantia de direitos, tanto na continuaram existindo após ele, de
sociedade, de forma ampla, quanto forma intensa. Para resguardar sua
nas prisões em si – ou ao menos identidade, chamei este sobrevivente
relativiza-se tais fatores pondo em de Luciano. Luciano sempre foi o que
questão aspectos morais, individuais e pode ser considerado como um “pai
subjetivos que seriam supostamente presente”.
comuns à população prisional,
tomando-a em bloco. Com isso, para
os homens presos que possuem
filhos, espera-se, institucionalmente,
negligência, abandono ou falta de
cuidado no exercício da paternidade.

115
No entanto, seus vínculos parentais vivem obrigatoriamente, à margem do que
são ou do que poderiam ser.
foram afetados pelo aprisionamento.
(...)
O medo de que seus filhos/as fossem Muitas [mulheres] vivem em morros e
estigmatizados quando fizessem favelas, convivendo diariamente com
a carteirinha de visitante fez como a violência no batente das suas portas,
observando; na maioria das vezes acuadas;
que ele preferisse não receber
aos desdobramentos de uma guerra
visitas deles quando o mais velho que não é sua. Mas, ao mesmo tempo a
completou 7 anos. Já sua filha menor, comunidade é o “local seguro” em que elas
em determinada altura de sua pena, podem ser elas mesmas, onde não precisam
fingir ou negar quem são e o que sentem;
já não o reconhecia mais como
terreno conhecido, onde muitas possuem
pai, chamando outros homens do a mesma história de espera. Lá, são
convívio de sua mãe de “pai”. Assim, simplesmente comuns, lá são casadas com
Luciano e sua esposa decidiram que alguém, os filhos, tem um pai, e esse pai tem
nome e seus vizinhos sabem para onde vão
ela o veria como mais frequência, para aos finais de semana. (MENEZES, 2005, s/p).
preservar o vínculo e fazer com que
ela não perdesse essa identificação de Simone traz assim o peso do estigma
Luciano como seu pai. vivenciado por centenas de milhares
de famílias brasileiras que possuem
Hoje, Luciano define sua relação com parentes presos/as. A suspeição
os filhos e as filhas como maneiraça. generalizada, o receio do julgamento
Seus filhos/as, já com mais idade, moral, fazem com que, muitas vezes,
podem discutir com ele sobre o que seja preferível esconder a situação do
é o aprisionamento e como ele não encarceramento.
define totalmente a identidade de
quem foi preso. Eles conseguem ver Assim, o que queremos frisar na
o indivíduo para além do estigma do equação entre paternidade e sistema
aprisionamento. prisional não é o quanto de pais
presos são “presentes” ou “ausentes”,
A família da pessoa presa é forçada ou tampouco julgar quais são “bons”
a ver a violência da estigmatização, ou “maus” pais. A depender dos
por também estar sujeita a ela. Nas critérios de análise, poderíamos
palavras de Simone Menezes, que enquadrar as relações parentais dos
foi casada e teve filhos/as como um homens presos em todo tipo de
homem que ficou preso por décadas: classificação, visto que a experiência
de cada família é singular. O que
Os filhos aprendem desde cedo que o pai
está no hospital e quando já entendem nos importa é perceber o quanto
o peso da masmorra são orientados, na a instituição prisional contribui
maioria das vezes, a também se auto para que os pais sejam cada vez
negarem. Dizem aos professores, vizinhos
e colegas que seus pais estão viajando ou
mais ausentes da vida dos filhos/as,
estão separados da mãe, e sentem com mesmo que a Lei de Execução Penal
isso, desde pequenos, que não fazem parte considere o relacionamento familiar
da grande história de uma sociedade e sim, como estratégia ressocializadora. No

116
entanto, diversos mecanismos oficiais Especialista em Psicologia Jurídica pela
ou informais contribuem para que Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor do curso de Psicologia da
menos homens recebam visitas de
Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO).
filhos/as e possam assim construir
Atuou no Sistema Prisional do Rio de Janeiro
progressivamente as condições para o pelo período de um ano.
retorno à vida em liberdade.
A pesquisa contou com financiamento
Considerações Finais da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
As formas com que a paternidade
é vivida nos espaços de privação de Referências
liberdade depende das dinâmicas
institucionais que perpassam o BARROS, L. P.; KASTRUP, V.
cárcere. Com isso, cria-se uma relação Cartografar é acompanhar
onde a criminalização se estende processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP,
para além da pessoa presa, com toda V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do
a carga de estigma e preconceito método da cartografia: Pesquisa-
se fazendo também presentes na intervenção e produção de
vida das esposas, companheiras, subjetividade. (pp. 52-75). Porto
filhas e filhos do homem preso. Alegre, RS: Sulina, 2015.
Relações perpassadas por diversos
tipos de violências, invisibilização e CUNHA, M. I. O gênero da prisão.
silenciamentos. In: UZIEL, A. P.; PADOVANI, N. C.;
BALDANZI, A. C. O.; D’ANGELO, L.
Para diminuir os efeitos danosos do B.; HERNÁNDEZ, J. G.; ROCHA, B.
aprisionamento na vida dos homens S.; LIMA, V. P.; SILVA, M. B. B. (Orgs.).
presos e de suas famílias, urge criar Prisões, sexualidades, gênero e
políticas públicas e estratégias direitos: desafios e proposições de
institucionais voltadas para o pesquisas contemporâneas. (p. 24-38).
fortalecimento dos vínculos familiares Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2020.
e para a diminuição das múltiplas
violências que se abatem sobre essa FOUCAULT, M. Vigiar e Punir:
população. Só assim poderão se nascimento da prisão. 42. ed.
fortalecer outras lógicas de cuidado Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
e de afeto que tenham a capacidade
de diminuir os efeitos mortíferos do MENEZES, S. Família carcerária:
cárcere. população invisível. LinkedIn,
2005. Disponível em: https://
Lucas Gonzaga do Nascimento www.linkedin.com/pulse/
CRP 05/49596 fam%C3%ADlia-carcer%C3%A1ria-
Doutorando em Psicologia pela Universidade popula%C3%A7%C3%A3o-
Federal Fluminense (UFF) invis%C3%ADvel-simone-
Mestre em Psicologia Social. menezes/?trk=portfolio_article-card_

117
title. Acesso em: 20 jun. 2022.

MINAYO, M. C. S.; CONSTANTINO, P.


Deserdados sociais: Condições de
vida e saúde dos presos do estado
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ:
Editora Fiocruz, 2015.

118
CÍRCULOS DE PREPARAÇÃO PARA APOSENTADORIA PARA
SERVIDORES DA SUPERINTENDÊNCIA DOS SERVIÇOS
PENITENCIÁRIOS DA 2ª DELEGACIA PENITENCIÁRIA
REGIONAL

A Superintendência dos Serviços O regimento da SASS, no artigo 1º,


Penitenciários (SUSEPE), órgão do destaca como uma das atribuições:
governo do Estado do Rio Grande do “orientar e preparar os servidores,
Sul, vinculado à Secretaria de Justiça em final de carreira, para planejar e
e Sistemas Penal e Socioeducativo, lidar com a aposentadoria, buscando
responsável por planejar e executar alternativas frente a esta nova
a política penitenciária do Estado, situação” (RIO GRANDE DO SUL,
possui alguns setores destinados a 2018). Constatamos nos atendimentos
promover a saúde e o bem-estar dos aos servidores, que o trabalho, em
servidores penitenciários. Dentre eles, todas as funções exercidas, dentro
a Seção de Atendimento ao Servidor do ambiente prisional, segue rotinas
Penitenciário/SASS. (RIO GRANDE DO e regramentos que exigem muita
SUL, 2022). atenção, cuidado, vigilância, tomada
de decisões e intervenções. A vivência
A SASS está vinculada a Divisão de dessas rotinas, dentro do ambiente
Recursos Humanos do Departamento de trabalho, não proporciona espaços
Administrativo da SUSEPE, instituída para que os servidores possam ter
por Portaria nº 105/2015 – GAB/SUP, momentos de reflexão e planos para
de 22 de abril de 2015 (RIO GRANDE suas vidas ao conquistarem o direito à
DO SUL, 2015). Possui, atualmente, aposentadoria.
uma equipe de doze (12) profissionais
da área da Psicologia, da categoria Para Dejours (1999), o trabalho
funcional de Técnico Superior nunca é neutro quanto à saúde,
Penitenciário – TSP – que ingressaram pode favorecer tanto a doença
através de um processo de seleção quanto a saúde, e isso vai depender
interna, com a finalidade de das condições do ambiente onde
desenvolver ações na área da saúde o trabalho é realizado. E sabemos
mental. Com o objetivo de normatizar da complexidade que é o ambiente
as ações da SASS, no ano de 2018, prisional, um espaço insalubre,
foi publicada através da Portaria nº perigoso, que traz sérios riscos
001/2018 – GAB/SUP, o Regimento tanto para a saúde física quanto
Interno da SASS. (RIO GRANDE DO mental de seus servidores. Muitos
SUL, 2018). deles adoecem ainda quando estão

119
desempenhando suas funções, não que pode gerar sofrimento e trazer
conseguindo muitas vezes chegar várias questões, como o sentimento
ao final da carreira ou surgem sérias de perda do sentido da vida, de
dificuldades na própria aposentadoria. inutilidade e até mesmo depressão.
Por isso, é tão importante preparar São questões importantes, que
estes servidores, para que possam ter precisam ser ressignificadas, pois
qualidade de vida nesse momento. interferem diretamente no processo
de uma aposentadoria saudável e
A cartilha para profissionais do na qualidade de vida dos servidores.
Sistema Único de Saúde destaca (BRASIL, 2014).
que “o trabalho ocupa posição
central na sociedade e na vida Nesse sentido, visando construir esse
dos indivíduos, pois desempenha espaço de escuta, que possibilite
função fundamental na construção o diálogo, a reflexão sobre planos
de espaços públicos coletivos e de para uma nova etapa na vida dos
convivência” (BRASIL, 2014, p. 06). servidores, a SASS da 2ª Delegacia
Desse modo, o trabalho promove Penitenciária Regional (2ª DPR), com
a inserção das pessoas no meio sede em Santa Maria, realizou um
social, sendo considerado o principal levantamento sobre os servidores
responsável na constituição e penitenciários, que estavam a menos
fortalecimento das relações sociais. de dois anos do direito de solicitar
Vivemos em uma sociedade a aposentadoria, convidando-
capitalista, onde para ser cidadão os a participar desse Projeto. A
é preciso produzir, estar ocupado, atividade é fundamentada na Justiça
exercendo uma função. E quando Restaurativa com a metodologia dos
chega a aposentadoria? Como Círculos de Construção da Paz.
ficam estas questões? Que efeitos
subjetivos têm a aposentadoria na As práticas de Justiça Restaurativa,
vida dos trabalhadores? realizadas pela SASS, seguem
os princípios e os fundamentos
Muitas vezes, a aposentadoria passa legais da Organização das Nações
a ser internalizada como destacado Unidas (2022), das resoluções do
na cartilha para profissionais do Conselho Nacional de Justiça nº
Sistema Único de Saúde, “recolher- 225/2016 (BRASIL/CNJ, 2022a) e
se aos aposentos”, ou seja, deixar nº 300/2019 (BRASIL/CNJ, 2022b),
e ocupar um lugar de visibilidade além dos Protocolos de Cooperação
e reconhecimento no contexto Interinstitucional do Estado do
social e nas relações estabelecidas Rio Grande do Sul, apoiando e
pelo trabalho. E essa definição tem incentivando as práticas de Justiça
consequências, para muitos, o final Restaurativa. (RIO GRANDE DO SUL,
de carreira é confundido com o 2019).
processo de envelhecimento. O

120
O Círculo de Construção de Paz famílias e amigos, isso possibilita um
é uma metodologia da Justiça investimento e cuidado nas demais
Restaurativa, que proporciona a áreas de sua vida, ou seja, da saúde
criação de um espaço concebido para física, psíquica, mental e espiritual.
apoiar os participantes, favorecendo
o diálogo e a reflexão, para isso Os Círculos de Preparação para a
utiliza-se como base os valores de aposentadoria, com os servidores
cada participante, as diretrizes que penitenciários da 2ª DPR, terão
são criadas pelo grupo, construindo periodicidade mensal, o primeiro
uma interconexão entre as pessoas, iniciou no mês de maio/2022, sendo
o que possibilita segurança para falar estabelecido um cronograma até
das suas histórias, seus sentimentos dezembro, quando será planejado,
e necessidades decorrentes dessas com o grupo, as datas dos encontros
vivências. (KAY PRANIS, 2010). para o próximo ano. Nesse primeiro
círculo, estabelecemos com o grupo
A metodologia dos Círculos de participante as diretrizes básicas
Construção de Paz, segundo Pranis de funcionamento. Os encontros
(2010), é participativa, dialoga com a ocorrerão na última quarta-feira de
comunicação não violenta e considera cada mês, serão abertos, ou seja,
as quatro dimensões do ser humano: novos participantes podem ingressar
emocional, espiritual, físico e mental. a cada encontro, o convite sempre
A experiência vivenciada num círculo respeitará a voluntariedade dos
“[…] é mais valiosa do que conselhos”, participantes se seguirá as diretrizes
os integrantes compartilham “[…] básicas de: confidencialidade em
experiências pessoais de alegria e relação às histórias pessoais relatadas,
dor, luta e conquista, vulnerabilidade horários estabelecidos, flexibilidade
e força, a fim de compreender de temas que possam ser sugeridos,
a questão que se apresenta”. A exercício da empatia e do não
interconexão desenvolvida entre julgamento, entre outras diretrizes
os participantes cria um clima de que o grupo estabelecer.
confiança e um espaço seguro para
falarem de si. (PRANIS, 2010, p. 27-28). Os temas já previstos terão como
objetivos: o exercício da escuta
O espaço criado pela SASS visando atenta, o que facilita o diálogo, a
à preparação para a aposentadoria reflexão sobre sonhos e perspectivas,
é inovador e, também, desafiador, o autocuidado, a compreensão e
por se propor a dialogar, a refletir conscientização dos sentimentos
e a construir outras perspectivas e das necessidades oriundas deles,
e possibilidades na vida de cada assim como novos planos pessoais,
servidor. Verificamos nos relatos dos e demais temas que poderão ser
servidores que quando conseguem sugeridos pelos participantes no
alternar momentos de trabalho decorrer dos encontros.
com atividades de lazer, com a suas

121
Considerações finais aposentadoria visam construir
esse espaço seguro, com o grupo
O acolhimento e a escuta dos participante, onde possam refletir
servidores é uma função básica sobre suas vidas, planos, desejos,
da SASS. Proporcionar espaços de sonhos e demais temas que irão
cuidado, preparando os servidores surgindo no decorrer dos encontros,
penitenciários para a aposentadoria, visando a qualidade de vida e o
considerando as individualidades cuidado com os servidores em
e peculiaridades, é também uma momento de aposentadoria.
responsabilidade da instituição. A Entendemos que despertar e
vida é feita de fases, uma contínua fortalecer, em cada participante,
transformação. Cada etapa tem o autocuidado e a busca de
suas características, interesses, hábitos saudáveis, através de
possibilidades, limitações e ações preventivas, são objetivos e
aprendizados. Aqui pensamos a funções da SASS. Como destaca
aposentadoria como uma das fases Brancher (2016, p. 08), “[...] com ou
da vida adulta, como a última etapa sem respostas, mas cada vez mais
da carreira profissional, mas não a próximos daquilo que volta a fazer
menos importante. sentido”, ou seja, o sentido da vida, do
trabalho e no nosso caso, a qualidade
Os círculos de construção da paz de hábitos saudáveis na vida, no
são utilizados visando os encontros trabalho e na preparação para a
que oportunizem a reflexão sobre aposentadoria.
projetos de vida, resgate de sonhos e
planejamentos de novas metas. Com Lidiane Luiz de Oliveira
a aposentadoria, o servidor passará CRP 07/13054
a desempenhar outros papéis, tanto TSP Psicóloga da SUSEPE.

na sociedade quanto na sua vida


pessoal. Outras possibilidades podem Vera Lúcia Biasin
ser planejadas, assim como hábitos CRP 07/04340
TSP Psicóloga da SUSEPE.
cotidianos, visando novos sentidos
para suas vidas.

Os estudos já realizados pela SASS,


nos relatórios mensais e anuais
realizados, evidenciaram que o Referências
estresse decorrente do trabalho e as
dificuldades no exercício funcional BRANCHER, Leoberto. Prefácio.
estão presentes entre os motivos In: PELIZZOLI, Marcelo (Org.).
para a busca de atendimentos Justiça Restaurativa: caminhos da
psicológicos. Nesse sentido, os pacificação social. Caxias do Sul, RS:
círculos de preparação para a Educs; Recife, PE: UFPE, 2016.

122
BRASIL. Resolução nº 225/2016. unric.org/pt/actualidade/5688. Acesso
Conselho Nacional de Justiça. em: 10 abr. 2022.
Política Nacional de Justiça
Restaurativa no âmbito do Poder PRANIS, K. Processos Circulares. São
Judiciário. Disponível em: https:// Paulo: Palas Athena, 2010.
atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-
normativos?documento=2289. Acesso RIO GRANDE DO SUL. Portaria nº
em: 10 abr. 2022a. 001/2018 – GAB/SUP. Regimento
Interno da SASS. Porto Alegre, 2018.
BRASIL. Resolução nº 300/2019.
Conselho Nacional de Justiça. ___________________. Portaria nº
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/ 105/2015 – GAB/SUP. Seção de
atos/detalhar/3144. Acesso em: 10 abr. atendimento ao Servidor da SUSEPE.
2022b. Porto Alegre, 2015.

BRASIL. Cartilha para profissionais ____________________. Protocolo de


do Sistema Único de Saúde. Brasília: Cooperação para uma política de
Ministério da Saúde, 2014. Estado de Justiça Restaurativa e de
Construção de Paz no Rio Grande do
DEJOURS, Christophe. Conferências Sul, nº 186/2019-DEC. Porto Alegre:
brasileiras: identidade, Tribunal de Justiça, 2019.
reconhecimento e transgressão no
trabalho. São Paulo: FGV. 1999 ____________________.
Superintendência dos Serviços
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES Penitenciários – SUSEPE – Nossa
UNIDAS. Conselho Econômico e História. Disponível em: http://www.
Social. Resolução nº 1.999/26, de susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_
28 de julho de 1999. Elaboração e menu=185. Acesso em: 10 maio 2022.
aplicação de medidas de mediação
e justiça restaurativa em matéria
criminal. Disponível em: http://www.

123
CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DA PAZ: EFEITOS DE UMA
EXPERIÊNCIA NO AMBIENTE PRISIONAL

Círculo de Preparação para Liberdade com pessoas privadas do Presídio de Santo Cristo.

1. Introdução em desacordo com a lei, porém, na


prática, o que muitas vezes ocorre
O ambiente prisional reúne pessoas é o acirramento de conflitos dentro
que estão reclusas por terem se do ambiente prisional, seguidos de
envolvido em certo conflito com agressões, violência, que podem
ou sem violência, que muitas refletir no ambiente extramuros e
vezes é o reflexo de um padrão de perdurar para depois que a pessoa
comportamento que se propaga em sair da prisão, e inclusive levar outras
outros relacionamentos do indivíduo. situações de risco.
Segundo Fabiana Spengler e Lucas
(2011), o conflito está presente em O sistema prisional funciona na
todos os relacionamentos humanos e perspectiva de disciplinar os corpos,
em todas as sociedades. por uma codificação que mapeia
minuciosamente o tempo, o espaço e
A proposta da execução penal oferece os movimentos, por meio do controle
um terreno para desenvolver a relação das operações em uma relação de
da convivência entre as pessoas docilidade e utilidade dos mesmos
privadas de liberdade que estão (FOUCAULT, 1987). Trata-se de uma

124
tecnologia de poder sobre a vida FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2021).
disseminada na sociedade, que nas Destarte, é preciso estar ciente de
prisões se expressa nos espaços vazios que o processo de transformação
deixados pelo Estado, principalmente, do sistema prisional não acontece
sobre as pessoas privadas de apenas nele, é preciso que o Poder
liberdade. Judiciário, Ministério Público,
Defensoria, Poder Executivo,
Atualmente, tem-se uma população Legislativo e a comunidade
carcerária com mais de quarenta organizada construam uma política
e dois mil pessoas privadas de pública.
liberdade, segundo informações
da Superintendência dos Serviços Todavia, é fato que o aprisionamento
Penitenciários – SUSEPE28, e por si só não transforma o indivíduo,
com estabelecimentos prisionais pois, para uma reinserção social que
superlotados, provavelmente com vislumbre mudança de atitudes e
baixo efetivo de segurança e equipes o desenvolvimento da criticidade, é
técnicas insuficientes. Ao contrário preciso que haja uma transformação
do que orienta a missão e visão da do meio social, econômico, cultural e
SUSEPE29: “Promover a cidadania e a familiar onde o sujeito vive. Para tanto,
inclusão social das pessoas privadas é imprescindível “a necessidade de se
de liberdade; Ser referência em desenvolver uma política de execução
socialização no sistema penitenciário penal que não visualize somente o
nacional”, respectivamente, com a interno penitenciário como simples
estrutura das prisões e a carência de indivíduo, mas sim dentro de um
recursos humanos, frente ao aumento contexto social” (JULIÃO, 2012, p. 303).
progressivo da população carcerária,
a missão e visão estão longe de ser A Psicologia ingressou no sistema
honradas. prisional sob o viés avaliativo e
pericial, pelas rotinas mecanicistas
Apesar de possuir princípios e laudatórias a serviço do judiciário
constitucionais e legislações que (RAUTER, 2003) diretamente
visam garantir direitos aos cidadãos, vinculada à injunção legalista da Lei
persistem as lacunas a serem de Execuções Penais30, bem como sob
preenchidas nos mais diversos a concepção de sujeito psicológico
setores, em especial, quando se trata centrado, onisciente e racional, tendo
de políticas públicas e práticas de como pano de fundo pregações
ressocialização direcionadas à parcela positivistas de busca da ordem social
da população que se encontra em (PACHECO, 2007).
privação de liberdade (CONSELHO

28 Mapa da População Prisional da SUSEPE em 03/03/2021


29 Site da SUSEPE
30 Lei de Execução Penal Nº 7210 de 11 de julho de 1984.

125
Deste modo, era necessário que ações de cuidado. Durante cursos
o sistema prisional repensasse de pós-graduação e participação
suas práticas na relação com no Núcleo do Sistema Prisional do
a individualização da pena, Conselho Regional de Psicologia
principalmente no atendimento com subsede em Santa Maria, no
a pessoa presa e na preparação Rio Grande do Sul, essas intenções
desta para liberdade. Emergiu de reinvenção do cotidiano e de si
a necessidade de questionar ganharam corpo, vislumbram-se
sobre a função dos operadores trajetórias e movimentaram-se fluxos
no trabalho prisional, sejam eles de ideias para construir uma proposta
agentes penitenciários(as), agentes de cuidado e atenção no âmbito
administrativos(as) e técnicos(as) prisional.
superiores, para se construir uma
prática para além da já exercida e que, Concomitante, surgem capacitações
muitas vezes, se reduz às demandas oferecidas pelo Poder Judiciário e
imediatas da prisão (ANDRADE Escola dos Serviços Penitenciários
et al., 2015), na busca de parceiros acerca da temática da Justiça
dentro e fora das prisões que ajudem Restaurativa, mais especificamente
a minimizar a perversidade do sobre a metodologia do Círculos
encarceramento (NASCIMENTO; de Construção da Paz de Kay
BANDEIRA, 2018). Pranis31. Sendo assim, a vivência
experimentada acendeu modos
Neste contexto, como técnicas de pensar e possibilidades
superiores penitenciárias da SUSEPE, de entender novos conceitos,
esgotadas de práticas impetuosas, dispositivos, ferramentas, algo que foi
vislumbrou-se a necessidade de constantemente recriado, produzido,
se buscar novas perspectivas para a partir das condições dadas e que
aplicar um processo individualizador operou no âmbito prisional de forma
de pena. Sentiu-se que era preciso intensa entre as técnicas, agentes
exercitar a análise do que se produzia penitenciários e pessoas privadas
e reproduzia, qual era o sentido do de liberdade, gerando uma inclusão
próprio trabalho, quais os efeitos do praticamente impensável.
mesmo na vida das pessoas e de si, e
nestas indagações, se estava a buscar Nessa perspectiva, ainda pouco
possibilidades para uma atuação conhecida no contexto prisional,
em prol do outro e de si a partir das é que a Justiça Restaurativa vem
relações (FOUCAULT, 2006; DELEUZE, sendo apresentada aos profissionais
1992). das diversas áreas de atuação do
sistema, bem como às pessoas
Foram nesses momentos de busca privadas de liberdade. Não como uma
que se despertou para algumas nova tecnologia ou estratégia, mas

31 Autora da metodologia dos Círculos de Construção da Paz.

126
como uma possibilidade de tornar manifestou-se pela escolha de um
os espaços prisionais e quem nele em detrimento de outra, mas apenas
habita, menos deteriorante. reforçou a importância de utilizarmos
a Justiça Restaurativa como forma
De acordo com Diehl e Rosane (2018), de solucionar os nossos conflitos
cada vez mais tem-se buscado (re) cotidianos, retomando o diálogo
pensar no sentido de justiça dado e a ideia de responsabilização, ao
às relações humanas, que se quer contrário de punição.
alcançar em face a determinados
conflitos sociais inerentes dos mais
variados espaços ocupados pelo ser 2. Círculos de construção
humano. Assim, a Justiça Restaurativa da paz no sistema
consiste em uma possibilidade de prisional gaúcho:
justiça aonde se propõe a restauração resultados da experiência
da responsabilidade, da liberdade e
do Presídio de Santo
da harmonia, por meio do sentimento
de pertencimento e senso de Cristo
comunidade.
Sentados um ao lado do outro,
A Resolução 225, de 31 de maio de em círculo, olhando-se nos
2016, que dispõe sobre a Política olhos, expressando sentimentos,
Nacional de Justiça Restaurativa no resguardando o sigilo, de mão em
âmbito do Poder Judiciário, apresenta mão um objeto vai passando, e cada
no Art. 1º o conceito de Justiça um tem seu momento de falar e
Restaurativa: escutar. É assim, simples e respeitoso,
que acontece o círculo de construção
A Justiça Restaurativa constitui-se como da paz. Para muitos uma simples
um conjunto ordenado e sistêmico de atividade, para os facilitadores e para
princípios, métodos, técnicas e atividades quem participa dele, um encontro
próprias, que visa à conscientização sobre
com a essência humana.
os fatores relacionais, institucionais e sociais
motivadores de conflito e violência, e por
meio do qual os conflitos que geram dano, Como uma das metodologias das
concreto ou abstrato, são solucionados de práticas de Justiça Restaurativa, o
modo estruturado. processo circular, é um instrumento
que possibilita o encontro de si
Conforme Ana Carolina Mezzalira mesmo e com o outro, que busca
(2017), a Justiça Restaurativa pode conexões e empatia, exercícios de
ser objeto de diversas metodologias convivência. Para a autora Kay Pranis
de aplicação, sendo possível escolher (2010), os círculos se valem de uma
a que melhor se enquadre no caso estrutura para criar possibilidades
concreto. A Resolução do Conselho de liberdade a fim de expressar
Nacional de Justiça não trouxe a verdade pessoal, para deixar de
nenhuma metodologia especial ou lado as máscaras e defesas e estar

127
presente como um ser humano para a Liberdade e o Programa de
inteiro. Justiça Restaurativa Prisional. A
prática teve início na Penitenciária
As mudanças de atitudes, Estadual de Caxias do Sul, em maio
principalmente, surgem a partir de 2016, com a nomenclatura de
de sentimentos e vivências. Logo, Preparação para a Progressão de
os círculos como instrumento da Regime e foi desenvolvida por
Justiça Restaurativa, trazem em servidoras penitenciárias e pessoas da
seus elementos estruturais uma comunidade (CARBONERA; CASTOLI;
organicidade para que o espaço BÁLICO, 2018).
seja seguro e haja conexão entre as
pessoas. A cerimônia, orientações, Inspiradas na prática de Caxias do
o bastão de fala, facilitação e as Sul, bem como em capacitações
decisões consensuais são elementos realizadas, psicólogas, assistentes
básicos para o processo circular sociais e uma advogada da 3ª
(PRANIS, 2010). Delegacia Penitenciária Regional
buscaram na metodologia dos
No Estado do Rio Grande do Sul, Círculos de Construção da Paz
embora se tenha pouquíssimas da Justiça Restaurativa um novo
publicações sobre experiências momento para um Programa já
de processos circulares no âmbito implementado no presídio de Santo
do sistema prisional, sabe-se Cristo entre os anos de 2015 e 2018.
que há profissionais vinculados Cabe ressaltar que o Programa
à Superintendência dos Serviços Individualizador de Atenção à
Penitenciários - SUSEPE capacitados Pessoa Privada de Liberdade32 foi
para trabalhar como facilitadores estruturado tendo como premissa
de círculos. Tem-se como exemplo inicial à individualização da pena
no contexto do Programa Justiça na perspectiva da clínica ampliada
Restaurativa para o Século 21, do (DUTRA, 2016).
Tribunal de Justiça do Estado, a
Vara de Execuções Criminais (VEC) O Programa inicialmente
de Caxias do Sul que movimentou contemplava pessoas privadas de
uma Comissão do Programa liberdade com condenação transitada
Caxias da Paz para planejar e e julgada para elaboração de um
executar o Projeto de Preparação plano de intervenção singular que era

32 Programa iniciado em dezembro de 2015 no Presídio de Santo Cristo sob a perspectiva da Clínica Ampliada tendo
em vista desenvolver Planos de Intervenção Singular com pessoas privadas de liberdade.

128
realizado pela Equipe de Referência33 da clínica é a obtenção de um
e pela Equipe de Apoio34 do cuidado humanizado (FRANÇA;
estabelecimento prisional juntamente SPIRANDELLI; VILA VERDE, 2019),
com a pessoa privada de liberdade. sentiu-se a necessidade de rever
O Programa utilizou-se do conceito novas possibilidades de cuidado.
desenvolvido por Gastão Wagner nos Concomitante ao desenvolvimento
anos 1990, influenciado por outros do Programa Individualizador de
sanitaristas como Basaglia, Sartre Atenção às pessoas privadas de
e Gramsci, e diz respeito à clínica liberdade, entre os anos de 2016 e
ampliada, ou a clínica do sujeito 2018, período em que servidoras
(BEDRIKOW, 2020). da 3ª Delegacia Penitenciária
Regional da SUSEPE haviam
Conforme Schneider et al. (2018), a realizado cursos de capacitação
proposta de Clínica Ampliada vai e aperfeiçoamento promovidos
ao encontro da clínica psicossocial, tanto pelo Poder Judiciário assim
na medida em que a primeira como pela própria SUSEPE na
também tem como perspectiva temática da Justiça Restaurativa e,
o conhecimento da família, da contagiadas por uma nova proposta
abordagem interdisciplinar, o de intervenção, passaram a organizar
trabalho em grupos e a realidade um novo momento para o programa,
social em que o sujeito está inserido. construindo um projeto que
No contexto prisional, a clínica compreendesse mais pessoas.
ampliada é vista como um dispositivo
de cuidado e atenção à saúde, a fim Diante do vivenciado e vislumbrando-
de fomentar o trabalho em equipe e se transformações na vida das
o protagonismo da pessoa privada, pessoas privadas de liberdade, que
considerando-a como sujeito de se desenhou o Projeto “Círculos
direitos em sua singularidade e de Preparação para Liberdade”
contexto de vida e não como mais um elaborado por diferentes mãos
corpo depositado na prisão (DUTRA, de profissionais do Presídio
2016). Estadual de Santo Cristo e pela
Equipe Técnica da 3ª Delegacia
Entretanto, sabendo da importância Penitenciária Regional de Santo
de promover uma clínica ampliada Ângelo, os quais debruçaram-se em
na prisão, visto que o objetivo buscar novas formas de cuidado

33 Equipe de Referência: grupo responsável por gerenciar e atuar no cuidado de um serviço. Visa atender uma clínica
ampliada de qualidade de vida. Assim, preconiza-se a promoção de saberes em igualdade de familiares, comunidade,
serviços de apoio social, operadores do direito e tantos outros atores dos mais variados setores numa perspectiva
interdisciplinar em prol dos interesses de seu público. No Programa Individualizador de Atenção a pessoa privada de
liberdade do Presídio de Santo Cristo a Equipe de Referência é constituída por três servidores do presídio (assistente
social, psicóloga e agente penitenciário).
34 Equipe de Apoio: grupo responsável pelo apoio à gestão para a equipe de referência, ajudando-a a aumentar sua
capacidade de análise da realidade e de intervenção. A equipe especialista poderá marcar reuniões com a equipe
local, para trocar informações, orientar e planejar. No Programa Individualizador de Atenção a pessoa privada de
liberdade do Presídio de Santo Cristo a Equipe de Apoio é constituída por três servidoras da 3ª DPR de Santo Ângelo
(advogada e psicólogas).

129
no âmbito prisional em prol do em regime fechado pudessem
desenvolvimento de uma cultura participar.
de paz e, consequentemente, mais
uma ferramenta de intervenção Após cada semestre, as pessoas que
ao Programa Individualizador já haviam participado dos círculos,
de Atenção à Pessoa Privada de eram convidadas a participar de uma
Liberdade. última etapa denominada pós-círculo,
ou seja, um momento individual dos
A prática teve início no ano de 2019 facilitadores com cada participante,
e a dinâmica se deu primeiramente mais especificamente próximo da
pela triagem dos participantes data de implementação do lapso
que estariam aptos a atingirem à temporal para progressão de regime
progressão de regime, dentro de e/ou livramento condicional a fim
um período de seis meses. Todas as de se estabelecer um diálogo de
pessoas privadas que respondessem sensibilização acerca da importância
o requisito do tempo necessário do momento de saída.
para a progressão de pena, foram
convidados à participar do projeto, Salienta-se também que, após cada
com o intuito de se prepararem para círculo e/ou pós-círculo, realizava-se
uma nova etapa do cumprimento da reunião de avaliação do projeto entre
pena, por meio de quatro vivências as equipes de referência e apoio e
circulares as quais contemplavam as facilitadores para registro em relatório
seguintes temáticas: acolhimento, específico, bem como planilha de
laços afetivos, trabalho, estratégias de monitoramento das pessoas que
inserção social e responsabilização. participaram do projeto tendo em
Para cada semestre foram realizados vista pesquisas futuras.
quatro encontros, ou seja, quatro
círculos de diálogos com as pessoas Durante o ano de 2020, em
privadas que se dispuseram decorrência da Pandemia do
voluntariamente a participarem do Covid-19, os trabalhos em círculos
projeto. foram interrompidos, com isso,
buscou-se aprimorar conhecimentos
Os Círculos de Construção da Paz e implementar reuniões entre o
efetivados nos anos de 2019, 2020 judiciário e as equipes de apoio
(início do ano antes da Pandemia), e referência para que o projeto
2021 e 2022, visando à preparação continuasse dando possibilidades de
para liberdade de pessoas privadas, inclusão social. Em meados de 2021,
foram realizados fora dos muros retomou-se as atividades estando em
do cárcere, em uma escola pública vigor até o momento.
com anuência do juiz da comarca. A
equipe de segurança do presídio não Embora embrionário, os Círculos de
mediu esforços em colaborar para Construção da Paz realizados com
que as pessoas privadas de liberdade as pessoas privadas de liberdade,

130
em especial aqueles oferecidos em Não obstante, é preciso afirmar que
espaço extramuros, trouxe efeitos este espaço diferenciado a partir
subjetivos importantes, de forma a do cárcere só foi possível com o
proporcionar às pessoas estratégias trabalho conjunto entre servidores
de intervenção a partir da experiência do sistema prisional, comunidade e
vivenciada nos círculos. Além do poder judiciário. Ademais, os afetos
mais, com a contribuição de cada experimentados no agenciamento
participante projetou-se a articulação dos vários encontros vivenciados
de uma rede de apoio e um plano por todas as pessoas envolvidas
de ação que colaborou e tornou propuseram significativos
mais significativo o processo de movimentos de trocas, bem como,
reintegração social. possibilidades em pensar novos
arranjos em termos de práticas
Em relação aos resultados alcançados de cuidado no âmbito prisional.
até o momento, temos uma amostra A confiança no que se estava
de trinta e oito pessoas privadas desenhando, mesmo sabendo que
de liberdade que passaram pelos nem sempre o que se encontra é o
Círculos de Construção da Paz que se espera, foi determinante para a
voluntariamente nos anos de 2019, produção de liberdades de si mesmo
2021 e 2022. Todas estão desfrutando neste processo, da equipe como um
de seus respectivos direitos judiciais todo e principalmente da pessoa
como progressão de regime e/ privada de liberdade.
ou livramento condicional e, até
o momento, nenhuma dessas 3. Conclusão
pessoas retornaram ao presídio.
Dado bastante satisfatório, visto que Segundo Walker e Grenning (2013),
segundo o IPEA (2015), o índice de os círculos possibilitam um espaço
reincidência, após a passagem pelo para expressar esperanças e sonhos
sistema prisional no Brasil, é de 70% e descobrir o que é necessário
(ANDRADE et al., 2015). para se ter uma vida digna e, foi
exatamente isso que se percebeu
Além do processo de preparação com a experiência dos Círculos de
destas pessoas para usufruírem da Construção da Paz realizados no
liberdade com responsabilidade presídio de Santo Cristo.
e oportunidades, os círculos
funcionaram como uma forma Portanto, o olhar sistêmico e voltado
de romper com os exames à lente dos diferentes saberes dos
criminológicos para fins de benefícios profissionais que atuaram junto
judiciais, suscitando agilidade nas ao Programa Individualizador de
decisões judiciais, evitando assim o Atenção às Pessoas Privadas de
retardamento da progressão de pena. Liberdade no presídio, permitiu

131
a desconstrução das lógicas Shirlei Sztomowski
padronizadas resultando esforços CRP 07/11406
para uma nova estratégia de Mestranda em Sistemas Ambientas e
humanização do cuidado. Sustentabilidade.
Especialista em Justiça Restaurativa e

A participação da pessoa privada Mediação.

de liberdade no seu processo de Técnica Superior Penitenciária da SUSEPE.

individualização da pena foi vista


como uma experiência potente Referências
e inovadora que oportunizou o
protagonismo na execução de ANDRADE, Carla Coelho de et
sua pena de uma forma menos al. O Desafio da Reintegração
deteriorante. Para tanto, a passagem Social do Preso: Uma pesquisa em
das pessoas privadas pelos Círculos estabelecimentos prisionais. Instituto
de Construção da Paz também de Pesquisa Econômica Aplicada: Rio
possibilitou o resgate da história de de Janeiro: Ipea, 2015.
vida culminando na construção de
uma saída sustentável tendo em vista BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho
a libertação e não reincidência. de 1984. Lei de Execução Penal.
Disponível em: http://www.planalto.
Fernanda Schittler gov. br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso
OAB RS 68505 em: 15 jun. 2022.
Especialista em Direito Penal e Processual.
Técnica Superior Penitenciária da SUSEPE. BEDRIKOW, Rubens. Eutanásia
sob a perspectiva da bioética e
Iana Patrícia Pandolfo clínica ampliada. Rev. Bioética, v.
CRESS RS 9213 28, n. 3, Jul. /Set. 2020. Disponível
Especialista em Serviço Social e Direitos em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/
Humanos. YGfxFfYZ4Jgjz5jWKPZBqfJ/?lang=pt.
Técnica Superior Penitenciária da SUSEPE. Acesso em: 15 jun. 2022.

Karine Müller Dutra CARBONERA, Daiane; CASTOLDI,


CRP 07/11302 Marcela; BÁLICO, Priscila. Preparação
Mestranda em Sistemas Ambientas e Para a Liberdade: Os Círculos de
Sustentabilidade.
Preparação Para a Liberdade com
Especialista em Justiça Restaurativa e
Pessoas Presas em Regime Fechado
Mediação.
e em Prisão Domiciliar. Justiça
Técnica Superior Penitenciária da SUSEPE.
restaurativa na prática [recurso
Letícia Haubert Lima Gonçalves eletrônico]: ações realizadas no
CRP 07/20980 município de Caxias do Sul, RS. Caxias
Especialista em Psicologia Jurídica.
do Sul: Educs, 2018.
Técnica Superior Penitenciária da SUSEPE.

132
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Centro de Atenção Psicossocial
voltado para Álcool e outras
drogas (CAPSad): OS Desafios
da Construção de uma Clínica

134
ME DÁ A CHAVE DOS LIVROS – DESAFIOS E
POTENCIALIDADES DE UM ESPAÇO DE LEITURA

Em 2017 e 2018, como parte de uma e não tinha trinco. Foi-me ofertado
das minhas funções no Hospital de quebrar o cadeado para abrir a
Tratamento e Custódia (HCTP) do Rio porta, mas dessa forma, os livros, se
Grande do Sul, o Instituto Psiquiátrico estivessem ali, ficariam numa sala
Forense Doutor Maurício Cardoso com a porta aberta. Eu tive uma
(IPF-MC), fui responsável técnica pela experiência desagradável em outro
segunda turma de Jovem Aprendiz. estabelecimento para o qual obtive
Nesse contexto, a professora do livros de doação, pois ficaram num
curso perguntou-me, ao final de uma local sem chavear e os melhores
reunião: “Tu sabes onde estão os exemplares foram tomados antes de
livros?”. chegar às pessoas destinatárias. Por
esse motivo insisti em que o espaço
Quais livros? onde talvez estivessem os livros fosse
aberto apenas quando pudesse
A Rede Nacional de Aprendizagem, tornar a fechá-lo. A colocação de um
Promoção Social e Integração trinco e uma trava que suportasse um
(Renapsi), uma das instituições cadeado levou algumas semanas.
envolvidas no projeto, havia doado
livros ao IPF-MC com o intuito de Quando finalmente consegui entrar
começar a organizar uma biblioteca. encontrei estantes, caixas e sacolas
Respondi que não sabia, mas que com livros e outros materiais,
iria procurar por esses livros, pois eu amontoados de qualquer jeito e com
também tinha muito interesse em quantidades variadas de sujeira e
organizar um Espaço de Leitura35. mofo. Havia uma janela pequena
Depois de procurar, perguntar nesse espaço, com o vidro quebrado.
e insistir durante meses, acabei Esse era o valor que havia sido dado
descobrindo uma pista. Era possível aos livros, apesar do art. 21 da Lei de
que estivessem em uma sala Execução Penal (LEP), o qual reza que,
localizada no fundo de uma unidade de acordo com as “condições locais,
desativada, parcialmente ocupada dotar-se-á cada estabelecimento de
com projetos culturais e com a sala de uma biblioteca, para uso de todas
aula do Núcleo Estadual de Educação as categorias de reclusos, provida
de Jovens e Adultos - Cultura Popular de livros instrutivos, recreativos e
(NEEJA-CP) Julieta Villamil Balestro. A didáticos”. E também apesar do art. 41
sala estava fechada com um cadeado da LEP que enumera, entre os direitos

35 São designados como espaços de leitura porque não é possível considerá-los como bibliotecas, já que não contam
com bibliotecária/o responsável.

135
das pessoas privadas de liberdade, Nesse sentido, os espaços de leitura
o direito ao “contato com o mundo são considerados “essenciais para
exterior por meio de correspondência a reflexão, reavaliação e mudança
escrita, da leitura e de outros meios de dos apenados” (MIOTTO, 2017),
informação que não comprometam destacando-se na perspectiva da
a moral e os bons costumes”. Por inserção psicossocial por intermédio
sua vez, a Resolução 03/2009 do da cultura. Portanto, desde o começo
Conselho Nacional de Política entendi que o Espaço de Leitura
Criminal e Penitenciária (CNPCP) deveria promover o protagonismo das
determina que sejam realizadas pessoas a quem se destinava, e para
“ações de fomento à leitura e a tanto convidei as pessoas internadas
implementação ou recuperação de no IPF-MC que tivessem interesse
bibliotecas para atender à população em participar das atividades. A partir
carcerária e aos profissionais que desse convite demos início à limpeza
trabalham nos estabelecimentos e separação dos livros que poderiam
penais”. Além disso, internação em ser utilizados e do material que
estabelecimentos prisionais como o deveria ser descartado. Havia muito
Instituto Psiquiátrico Forense acarreta lixo e sujeira em meio aos livros, mas
efeitos secundários, tais como a as maiores dificuldades foram aquelas
segregação dos internos em relação colocadas pelo funcionamento
às atividades culturais praticadas na institucional; por exemplo, num
vida em liberdade. dado momento um agente
penitenciário transmitiu-me uma
Por conseguinte, para além de tentar ordem da Direção: “Me dá a chave
minimizar problemas produzidos ou da biblioteca, vamos tirar os livros
alimentados pelo encarceramento, de lá”; em outra ocasião uma das
as políticas de incentivo à leitura autoridades disse que as psicólogas
devem equacionar ou reverter os ficávamos inventando tarefas que
processos econômico-sociais que não correspondiam à nossa função.36
provocam aprisionamento das Também as crenças e ideias sobre
pessoas mais pobres (PAIVA; JULIÃO, periculosidade e incapacidades a
2014). Nesse sentido, a Resolução nº respeito das pessoas ali internadas
4 de 2010 do CNPCP estabelece que faziam parte da interferência
sejam observados, na execução da institucional: numa ocasião houve
medida de segurança, os princípios um profissional que disse “Agora vão
estabelecidos pela Lei nº 10.216/2001, ler e vão deixar de ser assassinos e
priorizando a inserção social do estupradores”. Cabe salientar que a
sujeito internado e propiciando- segregação observada nesse Instituto
lhe acessibilidade aos seus direitos era sistêmica: em levantamento
fundamentais gerais e sociais (como o realizado durante a organização
do acesso à leitura). da “biblioteca” não foi localizado

36 Evidentemente essa pessoa ignorava as diretrizes e orientações do Conselho Federal de Psicologia para a nossa

136
qualquer outro Espaço de Leitura empréstimos (para pessoas que não
destinado às pessoas internadas faziam parte da equipe) antes mesmo
nos vinte e seis estabelecimentos de concluir a organização. Ainda
semelhantes existentes no Brasil. que não fosse possível constituir
propriamente uma biblioteca
Depois de separar e descartar (para tanto deveria haver uma/
parte do lixo, começamos a um biblioteconomista no IPF-MC),
organizar os livros. A partir da a equipe decidiu batizar o espaço
diretriz de protagonismo para as como “Biblioteca do IPF”37, inclusive
pessoas participantes, propus que desenhando e afixando uma placa na
formássemos uma equipe. Todas as porta. A leitura começava a conquistar
pessoas integrantes dessa equipe espaço.
tinham igual poder decisório.
Começamos a estabelecer os A organização, acondicionamento
critérios para manter livros no acervo, e catalogação do acervo colocava
descartar aqueles que não tinham ido desafios para os quais ninguém da
parar no lixo, mas que estavam muito equipe tinha preparação. Além disso,
deteriorados, e separar exemplares os ataques velados – e nem tanto
repetidos para possíveis trocas – ao Espaço de Leitura, colocavam
com outras bibliotecas. Também dificuldades muito árduas de se
começamos a estabelecer critérios enfrentar. Para proteger e desenvolver
de classificação para começar a o projeto solicitamos ajuda externa.
organizar o acervo nas estantes. Cabe Convidamos um profissional da
salientar que a equipe apresentava Biblioteca do Instituto de Psicologia
alguma rotatividade, e que contou e um professor da Faculdade de
com membros que não sabiam Biblioteconomia e Comunicação
ler, mas desejavam participar do da Universidade Federal do Rio
mundo dos livros. A participação Grande do Sul, que junto com alguns
nas atividades do Espaço de Leitura estudantes desses cursos passaram
acabou incentivando-os a frequentar participar da organização e execução
o NEEJA, para se alfabetizar. das atividades do Espaço de Leitura.
Além disso, as pessoas da equipe
começaram a se interessar por alguns A importância estratégica de convidar
dos livros que manuseavam, e a levar instituições e pessoas externas ao
alguns como empréstimo. Outras IPF-MC está relacionada com o seu
pessoas começaram a se interessar funcionamento enquanto instituição
pelos livros; a participação sempre total, descrita por Goffman (1974)
foi aberta, mas nem todos queriam como aquela que segrega indivíduos
participar de todas as atividades, por do restante da sociedade por um
conseguinte decidimos dar início aos período de tempo considerável,

atuação.
37 Ainda que a sigla correta seja “IPF-MC” esse estabelecimento é cotidianamente chamado de “IPF”.

137
levando uma vida fechada e outra parte realizava rodas de leitura,
formalmente administrada. Dentre contação de histórias e escrita.
os exemplos de instituições totais,
o referido autor cita manicômios, Estudantes, professores, internos,
prisões e campos de concentração externos, bibliotecários ao menos em
(GOFFMAN, 1974); sendo tanto projeto, consumidores de livros ou
prisão quanto manicômio, o HCTP não. Formamos a roda num lugar de
poderia ser considerado como uma passagem, porque o auditório está
instituição duplamente total. A ocupado. Um banco de cimento,
professora da sala de aula do NEEJA- uma escada, muito ar. Eles trouxeram
CP também começou a fazer parte contos, e nós temos muito a contar.
da equipe. A participação desses Todos contamos, todos somos
sujeitos e instituições permitiu importantes. Alguns cantam e
arejar e questionar a lógica interna, encantam. Todos somos aprendizes
bem como melhorar a promoção do escutar. Todos assumimos papéis.
da autonomia e da inserção cultural Um é filósofo. Outro faz perguntas
que o Espaço de Leitura buscava ideológicas, tiradas dos muitos livros
propiciar, além de garantir por mais que ele lê e guarda na memória. E
tempo a continuidade dos trabalhos. aquele que é quase surdo participa
Organizamos uma visita à Biblioteca com o seu silêncio (que não é algo
Pública do Estado do Rio Grande habitual nele). Um dos internos quer
do Sul, ocasião em que a equipe ler um conto. Com muita dificuldade
teve oportunidade de aprender ele atravessa duas páginas sem
sobre catalogação, organização e desistir. Alguém tenta desvirtuar: ‘Tu
manutenção do acervo. Contudo, tem dislexia’. Eu lateralizo: ‘O que ele
o mais importante foi propiciar um tem é uma enorme força de vontade’.
espaço de pertencimento cultural, Olhar de gratidão. 38
pois os internos do IPF-MC foram
recepcionados e ouvidos como seres Nem tudo foram flores nas nossas
integrantes da cultura, como sujeitos viagens literárias. Durante uma das
que tinham, de fato e de direito, rodas de conversas, um participante
espaço e possibilidades de estar em começou a ler o Pequeno Príncipe e
uma biblioteca. despertou interesse da maioria das
pessoas que estavam ali. Tivemos a
Também foi possível desenvolver ideia de fazer uma sessão de cinema
outras atividades. O “horário da com o filme, mas a versão que
biblioteca” foi dividido em dois conseguimos alugar era animada.
espaços-tempos. Uma parte Nossas leitoras e leitores pensaram
da equipe dava continuidade que estavam sendo infantilizadas e
à organização, catalogação e infantilizados. Isso já ocorria em quase
acondicionamento do acervo, e a todos os espaços e tempos das suas

38 Extraído do diário de campo referente ao meu trabalho no Espaço de Leitura.

138
vidas dentro da instituição, e não 1990, p. 135). O referido autor opina
esperavam que ocorresse no Espaço que esses dois movimentos são
de Leitura. Por mais que tentamos solidários, e que urge libertar-
explicar, foi um fracasso completo. nos dessa forma hegemônica da
Mas o fato de ser um fracasso racionalidade vigente e “carcerária”
denotou que estávamos, nas outras (PELBART, 1990, p. 135), recusando
atividades, promovendo autonomia. o “Império da Razão” (PELBART,
A diretriz de protagonismo produziu 1990, p. 135). Assim, o racionalismo
vários efeitos libertários, por exemplo imperante na Biblioteconomia não
quando, durante uma roda de coadunava com a diretriz libertária
leitura, uma das participantes quis que o antecedeu no Espaço de
ler a própria história, que ela havia Leitura do IPF-MC. Foi necessário
escrito durante a semana. Ou quando explicar que a autonomia de fazer era
uma pessoa começou a criar mini mais importante do que a eficiência.
espaços de leitura na ala em que Mas também foi necessário entender
estava recolhida: “Eu levo uns livros que a eficiência podia permitir a
que possam interessar a eles, porque existência e a continuidade. Foram
eles têm vergonha de vir aqui. Daí eu apresentadas e compreendidas
começo a ler em voz alta e eles vão formas e critérios de catalogar menos
chegando junto”39. E houve também dependentes da razão. A “literatura”,
a ocasião em que leram e discutiram por exemplo, incluía romances,
Bukowski durante a roda... mas “Poesia” era outra categoria...
Astronomia e astrologia podiam ficar
De outra parte, a organização do juntas? Ciência política era ciência?
acervo entre os participantes de Os livros do Krishnamurti eram de
dentro e de fora do IPF-MC colocava filosofia? Seria possível aprender a
alguns desafios que não haviam sido pensar loucamente?
previstos por nenhum dos grupos
e demandaram muito diálogo. A Devido principalmente à sua
formação em Biblioteconomia potência e aos efeitos libertários
exigia organização e eficiência que produziam, as atividades do
fundamentadas no racionalismo. Espaço de Leitura eram dificultadas
Cabe lembrar que, de acordo com de diversas formas por parte da
Pelbart (1990, p. 135), o momento instituição. Uma das estratégias foi
histórico do enclausuramento impedir a entrada de estagiários,
dos desatinados coincidiu com ainda que ingressassem com os
a emergência do pensamento seus supervisores. Mantivemos as
racionalista cartesiano, que decretava atividades com um dos funcionários
a incompatibilidade entre a loucura da Biblioteca do Instituto de
e o pensamento racional enquanto Psicologia e com a professora
“trancafiava a desrazão” (PELBART, do NEEJA-CT, mas confesso que

39 Idem nota anterior.

139
as dificuldades eram imensas. Superintendência dos Serviços
Outra estratégia institucional era Penitenciários.
reiteradamente solicitar uma das
melhores mobílias do espaço (a qual
finalmente cedemos), bem como o Referências
próprio espaço, e nunca providenciar
os outros equipamentos, insumos BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de
e reparos (como a troca da vidraça 1984. Institui a Lei de Execução Penal,
quebrada) que necessitávamos. Ainda LEP. Diário Oficial da União, Brasília,
assim fomos à Feira do Livro de Porto D.F., 13 jul.1984.
Alegre. Eles escolheram autores
(alguns dos quais haviam conhecido BRASIL. Lei nº 10.216, de 04 de junho
no nosso Espaço de Leitura) para de 2001. Dispõe sobre a proteção e
comprar seus exemplares, viram os direitos das pessoas portadoras de
uma sessão de autógrafos, fizeram transtornos mentais e redireciona o
perguntas, conversaram com outras modelo assistencial em saúde mental.
pessoas interessadas, como eles, Diário Oficial da União, Brasília, D.F., 9
em livros. Essa não foi a primeira abr. 2001.
vez que pessoas internadas no
IPF-MC faziam esse tipo de saída. BRASIL. Ministério da Justiça.
Mas agora participavam enquanto Conselho Nacional de Política
reconhecidamente amantes dos livros Criminal e Penitenciária. Resolução n.
e da leitura, enquanto sujeitos da 3, de 11 de março 2009. Dispõe sobre
cultura. as Diretrizes Nacionais para a Oferta
de Educação nos estabelecimentos
Com o começo da pandemia por penais. Diário Oficial da União, Brasília,
Covid-19, todas as atividades coletivas DF, 25 mar. 2009a.
precisaram ser interrompidas.
Durante algum tempo, diariamente BRASIL. Ministério da Justiça.
eu respondi, com dor no coração, Conselho Nacional de Política
as perguntas “Quando vai ter Criminal e Penitenciária. Resolução
biblioteca?” e “Quando posso pegar n. 4, de 30 de julho de 2010. Dispõe
mais livros?”. Depois fui obrigada sobre as Diretrizes Nacionais de
a exercer meu cargo em outro Atenção aos Pacientes Judiciários e
estabelecimento. Não tive mais Execução da Medida de Segurança.
notícias sobre a “Biblioteca do IPF”, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 02
mas espero que continue existindo. ago. 2010.

Maynar Patricia Vorga Leite FERNANDES JULIÃO, E.; PAIVA, J. A


CRP 07/18812 leitura no espaço carcerário. Revista
Doutoranda em Psicologia Social e Perspectiva, Florianópolis, v. 32, n. 1,
Institucional na Universidade Federal do RS. 111-128, jan. /abr. 2014. Disponível em:
Técnica Superior Penitenciária – Psicóloga. http://www.perspectiva.ufsc.br.

140
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões
e conventos. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1974.

MIOTTO, N. Leitura no cárcere: um


caminho para a liberdade. Revista
Brasileira de Biblioteconomia e
Documentação, v. 13, n. esp. CBBD,
2017.

PELBART, P. P. Manicômio mental: a


outra face da clausura. In: LANCETTI
(Org.). Saúde loucura 2. São Paulo:
Hucitec, 1990. p. 130-138.

141
A PRÁTICA DA PSICOLOGIA NAS PRISÕES E/OU SER
POLICIAL PENAL

Imagem: Folha Dirigida (Governo da Paraíba)

sanitários e itens pessoais. Todas as


A prática da violência como toda movimentações de presos/as são
ação, transforma o mundo, mas a suspensas. Os corredores das galerias
transformação mais provável é em são ocupados por pessoas vestidas de
um mundo mais violento. preto, fardadas dos pés à cabeça, sem
Hannah Arendt rosto, silhueta ou qualquer outro traço
identitário que permita descrevê-las,
É dia de revista em um presídio de como cor, gênero ou características
baixa segurança. Os presos/as que físicas. Essas personagens
desempenham suas atividades absolutamente fardadas, portando
laborais, não sairão de suas celas armamento pesado, representam
para esse fim, mas para desocupar a o Estado em sua forma mais crua
galeria onde será feito o “bate grade”40 de exibição de poder, uma vez que
e a busca por materiais ilícitos nas as pessoas que ali estão privadas
camas, paredes, chuveiros, vasos de liberdade estão em condição

40 Nome pelo qual é genericamente chamada a revista estrutural nas celas das prisões.

142
desigual de revidar a um eventual nativo. Aos olhos do conquistador, “vida
ataque pelos agentes do Estado que selvagem” é apenas outra forma de “vida
animal”, uma experiência assustadora, algo
as mantêm custodiadas. Na vida livre,
radicalmente outros (alienígena), além da
em uma nação que não esteja em imaginação ou da compreensão. (MBEMBE,
estado de guerra, dificilmente essa 2018, p. 35).
exibição do poder se daria de forma
tão desimpedida quanto na prisão. A ideia de estar em uma guerra
permanente contra um inimigo
A definição de necropolítica interno a ser combatido, ocupa as
desenvolvida por Achille Mbembe ruas, o discurso midiático e as prisões.
(2018), como o poder soberano Em uma pesquisa na plataforma
de matar ou deixar morrer, está Google a partir dos descritores “polícia
relacionada com a aceitabilidade da penal” e “Psicologia”, encontramos
guerra permanente contra as colônias vídeos, referentes ao uso de armas e
pelos colonizadores europeus. A anúncios de concursos públicos para
suspensão das garantias e das o cargo de policial penal. A alusão
ordens judiciais eram consideradas ao trabalho das/os psicólogas/os se
aceitas nas colônias, porque havia resume a alguns vídeos sobre exames
um entendimento dos governos psicotécnicos para os concursos
dominantes de que a população dos nessa área nas diferentes unidades
países colonizados não era formada da federação. Esse é quase todo o
por cidadãos, ou seja, “as colônias material disponível sobre a atuação
não são organizadas de forma estatal da Psicologia no âmbito da polícia
e não criaram um mundo humano” penal. As imagens pesquisadas
(MBEMBE, 2018). Desse modo, o mostram policiais fardados em
poder de matar pode ser exercido operações de treinamento ou em
através da guerra particular pelas ação nas unidades prisionais.
polícias e milícias nas ruas, mas
também através da administração A custódia nos estabelecimentos
das penas de prisão. No Brasil, a classe prisionais ao longo de diferentes
média financeira, de onde provém a governos, mais ou menos
maioria de seus governantes, possui comprometidos com o cumprimento
uma forte ancoragem nas práticas da Constituição Federal de 1988, vem
coloniais de extermínio e, portanto, se aperfeiçoando no enfrentamento
uma relação de subalternização de crises baseada na segurança
com seus concidadãos, baseadas prisional armada, preparada para
fundamentalmente na inferioridade revidar mais do que para planejar
racial. estratégias de prevenção de conflitos.
Em meio a essa crescente tentativa
O fato de que as colônias podem ser
de manutenção da ordem carcerária,
governadas na ausência absoluta de lei
provém da negação racial de qualquer através do uso de ameaça ou de
vínculo comum entre o conquistador e o ação armada pelos agentes de

143
segurança, reascende-se a discussão Um dos argumentos a favor da
sobre a policialização dos serviços transformação também do quadro
penitenciários. Do ponto de vista técnico em carreiras policiais,
legal, a Emenda Constitucional reivindicada pela maioria absoluta
104/2019, que cria a polícia penal, dessas servidoras41, inclusive as
não fez mais do que introduzir uma psicólogas, se baseiam no fato de
mudança na nomenclatura do cargo que a atenção integral prestada pelo
de agente penitenciário, já que quadro técnico está prevista na Lei
a EC altera o Artigo 144, § 5º-A da de Execução Penal (Lei nº 7.210/84).
Constituição Federal (Da segurança Outro argumento diz respeito aos
pública), apenas afirmando que prejuízos advindos da perda do
“às polícias penais, vinculadas ao vínculo com a segurança pública e
órgão administrador do sistema a carreira policial, que resultarão em
penal da unidade federativa a que prejuízos referentes às vantagens
pertencem, cabe a segurança dos trabalhistas, como reajustes salariais,
estabelecimentos penais”. aposentadoria integral e especial
compatível com a atividade de
A transformação das carreiras do risco, entre outras garantias que
sistema prisional em atividade policial possam beneficiá-las, caso sejam
tem ocupado o debate político. De reconhecidas como policiais42.
acordo com a proposta, a carreira
dos servidores penitenciários passa a A primeira questão que devemos
integrar as carreiras policiais, institui nos colocar diz respeito a decisão
as polícias penais e prevê como política de transformar o trabalho
competência dessas novas instâncias a junto às pessoas privadas de
segurança dos estabelecimentos penais liberdade em uma atividade
e a escolta de presos/as. Entretanto, os policial indistintamente, quer se
quadros de carreira do sistema prisional trate de funções administrativas,
não são compostos somente por técnicas ou de segurança. Embora
trabalhadores/as restritos às atividades as categorias da segurança
de segurança. O serviço prisional, prisional já viessem de longa data
tendo por atividade fim as ações de pleiteando o reconhecimento do seu
atenção integral em educação, saúde trabalho como atividade policial, a
e assistência da pessoa privada de conduta armamentista das ações
liberdade, depende em grande parte da de segurança prisional vem se
atuação de profissionais administrativos acentuando com a aquisição de
e técnicos, entre esses, as/os psicólogas/ equipamentos, até recentemente
os. utilizados somente em ações de
guerra. Ao mesmo tempo em que

41 Em 2019 a Associação dos Profissionais Penitenciários de Nível Superior do Rio Grande do Sul/APROPENS realizou
pesquisa de opinião, onde a quase totalidade das técnicas respondentes se mostrou favorável à inclusão na polícia
penal.

144
persistem os atos de contestação de nós desconstruirá as narrativas que
à manutenção de seres humanos fazem as prisões serem o que são? De
indignamente na prisão, promovidos acordo com Juliana Borges, a prisão é
pelas organizações da sociedade feita de silêncios:
civil, se acirram os discursos de ódio
A fala confere ao indivíduo ou ao grupo
e o extermínio dessa população o status de sujeito na arena do diálogo e,
pelos senhores das penas, apesar da portanto, da política. A fala faz com que
promessa de recuperação da pessoa estes deixem de ser falados e passem a
privada de liberdade contida na LEP42. ser os que falam. Por isso é tão importante
Quando um/a agente de Estado porta romper o silêncio. Por isso é tão necessário
falar sobre prisões. Porque precisamos sair
armas para se defender de cativos/
do conforto da recusa. Porque precisamos
as rendidos/as, está anunciando que interromper a ideia de que as prisões não
o outro representa para ele/ela uma são sobre nós. (BORGES, 2020, p. 12).
ameaça, que não há entre eles/elas
relação de humanidade. Quando Em 2018, o Conselho Federal de
vemos no outro um inimigo, já o Psicologia (CFP) lançou uma nota
espoliamos da sua condição humana. de apoio à inclusão do tratamento
penal na Proposta de Emenda
Atacar o problema das prisões Constitucional da Polícia Penal. Essa
(superlotação, rebeliões, fugas e nota reforça o argumento de que
violações de direitos) no Brasil tem não somente a atividade genérica
sido interpretado como construir de “tratamento penal” é aquela
mais unidades prisionais, contratar que melhor descreve a prática da
mais agentes de segurança e armar Psicologia no sistema penitenciário
esses/as agentes, ou seja, incrementar e que, sendo incluída na PEC da
ainda mais o problema a ser atacado. polícia penal, justificaria a inclusão
De acordo com a mídia hegemônica, das psicólogas e demais profissionais
se realmente for necessário falar das das áreas da assistência, jurídica e da
prisões, que seja com a disposição saúde na atividade policial dentro das
mais revanchista e vingativa, que prisões. A nota aproxima a atuação
não se veja os açoites e nem escute das psicólogas das ações em saúde e
os gritos que fundaram a história das diferentes assistências previstas
das prisões nessas terras. Dispomos na LEP (1984), que por sua vez, dispõe
de meios de comunicação que não sobre as condições para a execução
comunicam, mas incitam a violência da pena e define quais são os agentes
e o desejo de vingança, pelos quais nela envolvidos:
não se sentem responsáveis. Quem

42 Para a antropóloga Rita Segato, a racialização ou, a construção de um capital racial positivo para a população
branca e negativo para as populações não brancas, permite ao ordenamento jurídico-policial “Prender
diferenciadamente e assim expulsar quem traz a marca dos povos conquistados do espaço hegemônico, do território
usurpado onde se encontra o grupo que controla os recursos da Nação e tem acesso aos selos e papéis timbrados do
Estado”. (SEGATO, 2021, p. 299).

145
Art. 5º Os condenados serão classificados, integração social do condenado e do
segundo os seus antecedentes internado”43. Ainda que a sustentação
e personalidade, para orientar a
da prática psicológica no âmbito
individualização da execução penal.
prisional que melhor reflete o fazer
Art. 6o A classificação será feita por ético-político da Psicologia diga
Comissão Técnica de Classificação que respeito à garantia de direitos da
elaborará o programa individualizador da pessoa privada de liberdade, a LEP
pena privativa de liberdade adequada ao
mantém o princípio de que a atuação
condenado ou preso provisório. (Redação
dada pela Lei nº 10.792, de 2003)
da Psicologia está destinada a aferir
as condições de adaptação à vida
Art. 7º A Comissão Técnica de Classificação, extramuros, embora as condições
existente em cada estabelecimento, será de privação as quais o sujeito esteve
presidida pelo diretor e composta, no exposto na prisão contrariem
mínimo, por 2 (dois) chefes de serviço, 1
qualquer expectativa de cidadania na
(um) psiquiatra, 1 (um) psicólogo e 1 (um)
assistente social, quando se tratar de vida extramuros.
condenado à pena privativa de liberdade.
O pensamento crítico das psicólogas
Parágrafo único. Nos demais casos a sobre o seu trabalho no sistema
Comissão atuará junto ao Juízo da Execução prisional e na interface com o sistema
e será integrada por fiscais do serviço social.
de justiça tem avançado ao longo
das décadas. No entanto, a legislação
Art. 8º O condenado ao cumprimento
de pena privativa de liberdade, em que orienta a execução penal não
regime fechado, será submetido a exame seguiu esses mesmos avanços,
criminológico para a obtenção dos atualizando as suas disposições para
elementos necessários a uma adequada torná-las mais adequadas a uma
classificação e com vistas à individualização
prática psicológica atuante em prol
da execução.
da sociedade democrática, inclusiva
Parágrafo único. Ao exame de que trata este e pautada no respeito às diferenças.
artigo poderá ser submetido o condenado A LEP se constitui como legislação
ao cumprimento da pena privativa de liberal, anterior à Carta Constitucional
liberdade em regime semiaberto. de 1988, baseada na dupla função
de retribuição pela falta comedida
O respaldo da atuação da Psicologia pelo indivíduo diante da sociedade e
no sistema prisional baseado na LEP de ressocialização do infrator/a para
é controverso. A função da Psicologia devolvê-lo/lá recuperado/a ao meio
na execução penal, de acordo com social. Por outro lado, a atuação da
o seu texto, se restringe à função de Psicologia no sistema prisional deve
exame das capacidades do indivíduo, considerar a pessoa em conflito com
de acordo com os parâmetros a lei como o resultado do processo
previstos “para proporcionar histórico de seletividade penal
condições para a harmônica que atua sobre as camadas mais

43 Lei de Execução Penal (LEP), Artigo 1º.

146
vulneráveis da população, como que se refere à atenção integral à pessoa
os homens e as mulheres negras, privada de liberdade, previstas na Lei de
Execução Penal, o que limita a atividade no
os jovens, as pessoas residentes
Sistema Prisional à custódia e à segurança
nas periferias dos grandes centros e, consequentemente, coloca em risco o
urbanos e as populações com trabalho de atenção e inclusão social que
orientações de gênero e sexualidades é desenvolvido pelos servidores nas casas
não hegemônicas. prisionais. (CFP, 2018, p. 1/1).

A prática pericial é parte fundamental As assistências para “o preso, o


do projeto de disciplina e controle condenado e o egresso” previstas na
do sujeito. Segundo Michel Foucault LEP, são aquelas descritas no Artigo 11:
(2014), o exame agrega uma I - material; II - à saúde; III - jurídica; IV
demonstração de saber sobre os - educacional; V - social; VI - religiosa.
corpos avaliados, dando visibilidade Como podemos perceber, no rol das
para as diferenças entre eles. “A assistências, a atuação da Psicologia
superposição das relações de poder nas prisões está subentendida,
e das de saber assume no exame mas não especificada, ainda que a
todo o seu brilho visível” (FOUCAULT, assistência, especialmente quando
2014, p. 181). O exame, do corpo ou da prestada de forma interdisciplinar,
biografia, não é incompatível com a absorva grande parte do trabalho
atividade de investigação e invasão das psicólogas na atenção às pessoas
da privacidade sob o pretexto de privadas de liberdade. Entretanto, do
manter a ordem social e defender ponto de vista jurídico, a assistência
a sociedade, mas certamente se como uma prática desempenhada
distancia em muito das práticas de pelas psicólogas, ainda constitui um
cuidado, de potencialização da vida argumento fraco para sustentar a
e respeito às diferenças, sustentadas inclusão das psicólogas na polícia
por “princípios constitucionais que penal, não significando com isso, que
regem uma sociedade plural, cidadã seja um argumento impotente.
e que vise a autonomia” (CFP, 2021, p.
203), que são as bases do fazer ético- A instituição das polícias penais,
estético-político da Psicologia. prevendo como competência dessas
novas instâncias “a segurança dos
A defesa da inclusão das psicólogas estabelecimentos penais e a escolta
na atividade de polícia penal, segundo de presos”, tem levado a categoria
a nota de CFP (2018), também está das psicólogas a levantar argumentos
amparada na importância da sua favoráveis à transformação da
atuação nas assistências prevista pela carreira de psicóloga no sistema
LEP: prisional em carreira policial. Caso
o argumento que justificaria a
O CFP e o CRP-07 avaliam, no entanto, inclusão das psicólogas na polícia
que o texto da PEC não contempla as
penal estivesse na persistência das
assistências e o tratamento penal no
Comissões Técnicas de Classificação

147
(CTCs) previstas na LEP, pergunto: Independente do argumento que
retroceder na discussão sobre a cada um utilize para justificar a
participação da Psicologia nas CTCs, existência de uma polícia penal, deve-
abolidas em grande parte dos Estados se considerar o que significa a ação
da federação, seria o caminho mais policial nos termos das populações
apropriado justificar o trabalho das vulneráveis que compõem a maioria
psicólogas nas prisões? A assistência, do efetivo carcerário. O objetivo de
nos termos que estão colocados na salvaguardar o patrimônio privado
LEP, traduz a atuação da Psicologia? das classes colonizadoras contra
Segundo as Referências Técnica para os insurgentes, corporificados
a Atuação das (os) Psicólogas (os) no pelas populações racializadas e
Sistema Prisional: pobres, que justificou a criação e
as ações das polícias, permanece
O poder de polícia baseado na disciplina, como um código de origem das
fiscalização e segurança do Sistema
corporações policiais no Brasil. A
Prisional, exclui a capacidade do sujeito de
governar a sua própria vida e o processo concessão das prerrogativas da
de autonomia tão necessário para que as função para as psicólogas do sistema
pessoas vivam em coletividade e tenha prisional, não deve depender do seu
como função social a contribuição para a reconhecimento como policiais, uma
melhoria das relações sociais como um todo.
vez que, segundo a legislação vigente,
(CFP, 2021, p. 203).
a reabilitação é a atividade fim do
sistema prisional, o que por si só,
De acordo com esse pressuposto,
justifica a prevalência do trabalho da
ocupar o lugar de polícia consiste
Psicologia nas prisões.
para a Psicologia em um impasse
ético que inviabiliza o trabalho de
O fazer da Psicologia no sistema
promoção de recursos para que
prisional ético e politicamente
a pessoa presa possa estabelecer
respaldado, não pode se resumir
consigo e com a comunidade
aos acordos funcionalmente
relações pautadas no seu
satisfatórios para a categoria. A
reconhecimento como pessoa de
instituição policial no Brasil vem se
direitos. O estabelecimento de laços
especializando na repressão pelo uso
pautados na submissão e na opressão
da força armada, ainda que ao custo
pelas iniquidades do poder, inclusive
de promover a morte, apoiada por
armado, na prisão são uma forma
segmentos influentes da população.
de reforçar as dissimetrias de poder
A Psicologia é uma prática que se dá
baseadas na classe (econômica,
no contraponto. Talvez, as psicólogas
social e cultural), na raça, no gênero,
e psicólogos nunca tenham sido tão
na sexualidade e nas limitações
imprescindíveis para a contraposição
individuais, que tornam algumas
ao projeto necropolítico quanto no
diferenças, alvo da seletividade do
atual momento brasileiro. Diante
sistema de justiça penal.
de um governo que, em pleno

148
século XXI, normaliza o armamento CONSELHO FEDERAL DE
indiscriminado, naturaliza a morte PSICOLOGIA (CFP). Inclusão de
de defensores de direitos humanos tratamento penal na PEC da Polícia
e não se responsabiliza pela vida da Penitenciária. Brasília: CFP, 2018.
população durante uma pandemia, Disponível em: https://site.cfp.org.br/
as vozes dissonantes que se erguem cfp-e-crp-rs-apoiam-inclusao-de-
a favor do direito à existência e fazem tratamento-penal-na-pec-da-policia-
um pacto corporativo com a vida, penitenciaria/. Acesso em: 20 jun.
nunca foram tão necessárias. 2022.

Sandra Correia CONSELHO FEDERAL DE


CRP 07/12518 PSICOLOGIA (CFP). Referências
Psicóloga na Superintendência dos Serviços técnica para a atuação das(os)
Penitenciários do RS. Psicólogas(os) no sistema prisional.
Mestranda do PPG em Psicologia Social e
Brasília: CFP/CRPs, 2021.
Institucional/UFRGS.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir.


Nascimento da Prisão. São Paulo:
Referências Vozes, 2014.

ARENDT, H. Da violência. Ponte de MBEMBE, A. Necropolítica: Biopoder,


Lima: Coletivo Sabotagem, 2004. soberania, estado de exceção, política
da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018.
BORGES, J. Prisões. Espelhos de nós.
São Paulo: Todavia, 2020. SEGATO, R. Crítica da colonialidade
em oito ensaios e uma antropologia
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de por demanda. Rio de Janeiro: Bazar
1984. Institui a Lei de Execução Penal. do Tempo, 2021.
Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso
em: 20 jun. 2022.

BRASIL. Emenda Constitucional


nº 104, de 4 de dezembro de 2019.
Altera o inciso XIV do caput do art.
21, o § 4º do art. 32 e o art. 144 da
Constituição Federal, para criar as
polícias penais federal, estaduais e
distrital. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
emendas/emc/emc104.htm. Acesso
em: 20 jun. 2022.

149
ENTREVISTA COM MAGALY ANDRIOTTI FERNANDES
Estou agora no meu sétimo Técnicas de Classificação. O Centro
ano de aposentada do sistema de Observação Criminológica já
prisional. Comecei no sistema como tinha um tanto de discussão, porque
estagiária, fiz estágio de Psicologia tinha o referencial do Instituto de
Organizacional em 1985 na PEJ44 e o Biotipologia Criminal46, então era
meu supervisor foi Leonardo Suzin, uma discussão em que o foco quente
hoje já falecido; naquela época o era a construção da prática: como
vínculo dele no sistema era monitor fazer para implementar número
penitenciário. de entrevistas, rapport, local, etc.,
todas essas questões vinham sendo
Entrei em 1987, em cargo em discutidas. Em termos de número de
comissão (CC). Foi um convite do psicólogas/os, não me recordo hoje
supervisor, pois eu tinha me formado quantos eram, mas eram poucos,
em 86. Por incrível que pareça, fui claro que em termos de número de
trabalhar no lugar que eu tinha falado presos no Estado era muito menor
que jamais iria, quando fiz o estágio do que hoje, se pegarmos nos dados
eu saí de lá... não que eu não tivesse do Depen47 teremos condições de
gostado, mas naquela época a LEP45 observar essa progressão no número
ainda não era aplicada... apesar da de aprisionamentos feitos pelo
LEP ser de 1984, em 85, ainda na Estado.
PEJ, a administração da progressão
era administrativa, então tinham os Acredito que tive a sorte de ter
presos do primeiro estágio, segundo como supervisor o Leonardo Suzin,
estágio e terceiro estágio*... era uma psicanalista que tinha uma linha...
coisa bem diferente do que a LEP não gosto da palavra humanitária,
determinava. mas uma linha de trabalho bem
dentro da Psicanálise freudiana,
E quando eu ingresso em 87 vou lacaniana, um olhar para pessoa que
fazer parte da equipe da UAES, que cumpria a pena. Então, a partir dali
é a Unidade de Educação, Serviço eu já fui começando a pensar no
Social e Saúde; quando comecei já meu primeiro tijolo de construção
tinha o pessoal tanto da Psicologia desse papel de profissional dentro do
como do Serviço Social discutindo sistema. O cliente era a pessoa que
como implementar as Comissões cumpria pena.

44 Penitenciária Estadual do Jacuí.


45 Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984, conhecida como Lei de Execução Penal.
46 Criado pela Lei n° 5.745, de 28 de dezembro de 1968; competia-lhe “o diagnóstico da personalidade dos
sentenciados recolhidos aos estabelecimentos penais para fins de seleção e terapêutica bem como os exames
psicotécnicos em candidatos ao provimento de cargos com lotação nos mesmos estabelecimentos”.
47 Departamento Penitenciário Nacional.
* Estes estágios correspondem aos atuais Regimes Fechado, Semiaberto e Aberto.

150
Depois na UAES, a Assistente Social um chimarrão com o pessoal da
Mariú Terra, a Maria Elizabete, eram segurança, com o Chefe, para saber
pessoas que faziam todo um trabalho como estava tudo, se tinha algum
voltado para questão cultural e social. pedido de atendimento, por onde
No início, eu achava tudo muito eu começaria. Então havia todo
estranho, trabalhar com festa de um trabalho muito integrado de
Natal, festa junina, e ficava pensando discussão mesmo. Porque Mariante
“mas gente não fiz Psicologia pra agora é presídio, naquela época
ficar promovendo festa, não sou era uma colônia penal, e tinha toda
uma promoter” (risos), daí fomos uma história de como desenvolver
vendo que aquilo tinha todo um o trabalho, o Diretor conversava
outro sentido. Em 1989 fui trabalhar muito com o apenado, quando ele
no Instituto Penal de Mariante, chegava fazia um acolhimento. Foi
fiquei durante 5 anos. Lá também um trabalho bem interessante e
tinha uma equipe de agentes transformador.
penitenciários que tinha uma filosofia
penitenciária voltada para a pessoa, Ali eu trabalhava também como
pois com o advento da LEP começou vinha sendo constituído no sistema,
a haver uma série de discordâncias, com duplas de um Psicóloga/o e
de confrontos, porque como realizar um Assistente Social, as vezes um
as famigeradas Comissões Técnicas Psiquiatra, senão buscávamos o
de Classificação? pessoal do Instituto Psiquiátrico
Forense48. Ali, a minha luta foi grande
Em Mariante tive a possibilidade porque havia pessoas que vinham
de começar a atender mesmo cumprir pena em regime semiaberto,
com aqueles modelos que eu e algumas dessas pessoas tinham
tinha aprendido com Leonardo e histórico de doença mental, mas o
com a Jennifer, uma psicóloga da juiz e a Defensoria Pública... ninguém
PEJ que trabalhava com grupos tinha interrogado sobre essa condição
produzindo sabão, produzindo e ela estava cumprindo pena. Como
cerâmica, vassouras, etc. Até me não tínhamos um recurso na cidade
esqueci de dizer, lá na PEJ naquela de Mariante para pedirmos tínhamos
época conseguimos fazer um que mandar aquela pessoa para o IPF
show com a Banda Engenheiros e muitas vezes era muito sofrimento,
do Hawaii, tu imagina?! Foi muito porque toda a questão da remoção,
legal, o juiz estava presente e tal. Ali de chegar no IPF, a forma como o IPF
em Mariante tínhamos um trabalho tratava essas pessoas, a forma como
muito integrado, nesse tripé técnico, eles voltavam... Várias vezes tentei
agentes e administrativos. Então conversar com o juiz, pois na minha
eu chegava na cadeia tomava prática sempre procurei ter esse

48 O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Rio Grande do Sul, chamado de Instituto Psiquiátrico Forense
Doutor Maurício Cardoso (IPF-MC), mais conhecido como IPF.

151
diálogo, não só por via escrita, mas los”. A partir disso sei que começou a
também por agendar audiência e ir haver todo um movimento coletivo
lá pedir um momento para conversar aqui no Rio Grande do Sul e em
com o juiz e discutir essas questões. outros estados; fomos para Brasília,
constituímos essas Diretrizes50 e
Acho que tem uma questão básica, isso já nos deu um maior respaldo.
que hoje fico pensando que é a Porque quando a gente chegava
questão ética do nosso trabalho, isso numa prisão às vezes o juiz e o diretor
é algo que tu tens que ter muito claro queriam coisas absurdas! Uma vez
quando vai trabalhar em qualquer foi-me solicitado que eu avaliasse se
lugar, mas ainda mais no sistema a companheira do preso podia fazer
prisional por ser um espaço... uma a visita íntima! Eu me recusei a fazer
instituição total. Inclusive ali no aquilo, imagina, como é que eu vou
CRP eu tenho algo escrito... eu e avaliar uma pessoa... eu falei “olha, o
Ivarlete Guimarães de França, da preso quer a pessoa? Quer. E ela quer
época em que estávamos fazendo vir? Quer. Então está feito, é isso aí”.
parte desse debate da construção
das diretrizes da/o psicóloga/o no “Ah não, mas é que a gente suspeita
sistema prisional. Porque quando que ela tá trazendo droga”, “Então,
nós chegamos não tinha nada isso é um problema da segurança,
escrito junto ao CRP. Então quando não é um problema da Psicologia”.
começou essa questão da Comissão49 A gente sabe que no nosso trabalho
pensávamos, a gente se perguntava esses embates são quase que
“faz uma entrevista?”, “faz quatro cotidianos, então tem que ter muito
entrevistas?”, “qual é a dinâmica que claro qual é o teu papel na prisão,
nós vamos implementar?”, “para o que é que tu fazes ali, quem é
que serve mesmo esse exame?”, “o o teu cliente? É o preso, a pessoa
psicólogo tem um referencial para que cumpre pena, se a pessoa não
fazer esse tipo de avaliação?”, “a tem esse norte de que está ali para
serviço do que mesmo é que está atender os apenados, tu vais ter uma
posta essa avaliação?”. Todas essas prática equivocada ou tu vais te deixar
questões começaram a produzir levar por essa questão de mando.
várias discussões. Lembro de colegas Às vezes o diretor diz “mas o juiz
que ficavam revoltados porque o determina”. Ele pode determinar, ele
CRP não dava resposta e o CRP dizia: tem toda autoridade. Mas eu só posso
“Gente, vocês têm que começar a fazer o que é da minha competência,
construir, vocês têm que começar não posso fazer coisas que não são da
a produzir um trabalho escrito para minha competência. Parece que eu
que possamos também respaldá- estou falando o óbvio, o ululante, mas

49 Comissão Técnica de Classificação, conforme a LEP.


50 Diretrizes para a atuação e formação dos psicólogos no sistema prisional brasileiro, publicadas em 2007. Disponível
em: https://site.cfp.org.br/publicacao/publicacao-diretrizes-para-atuacao-e-formacao-dos-psicologos-do-sistema-
prisional-brasileiro/.

152
muitas vezes a gente era solicitado a sistema: eu comecei com um cargo
fazer coisas que não tem nada a ver político (porque Cargo em Comissão
com aquilo que é o nosso fazer. normalmente era uma indicação
política), embora no meu caso não
Em Mariante foi um trabalho bom, foi, foi uma indicação técnica desse
trabalhávamos com a prevenção colega que tinha sido meu supervisor.
de DST/AIDS, com intervenções Eu não tinha nenhuma vinculação
quando o juiz queria autorizar a política e fui lá exercer aquele Cargo
saída do preso. Fazíamos muitas em Comissão, fiquei lá durante
intervenções de domicílio, sempre uns 7 a 8 anos; depois fiquei como
trabalhávamos isso junto com o contratada emergencial por 5 anos,
Serviço Social; às vezes tinha colegas trabalhando na oitava Delegacia
do Serviço Social querendo fazer (Santa Cruz do Sul), por fim, na
esse trabalho sozinhas, mas eu primeira Delegacia (São Leopoldo)
discordava e falava que queria ir e, depois, então, o concurso que eu
junto, eu queria conhecer a família, fiz em 98 foi revalidado em 2002. Eu
até porque havia perguntas da fui chamada na segunda turma de
minha área, eu precisava estar Técnicos Superiores Penitenciários.
junto e conhecer essa família. Nesse Se eu não me engano, naquela
tempo já havia Comissões Técnicas época, quando eu fui concursada,
itinerantes, que viajavam pelo Estado a gente ainda não tinha esse
para fazer avaliações; eu tinha nome, “Técnico”; depois também
ficado fixa em Mariante, mas de vez lutamos porque as especificações
em quando era requisitada para eram muito misturadas com a de
viajar fazendo avaliações. E depois Monitor Penitenciário, que era um
disso foram criadas as Delegacias profissional que já existia no sistema
Penitenciárias51, o que foi também que trabalhava com a parte da
uma luta do próprio pessoal técnico educação, que fazia toda atividade de
que vinha discutindo a regionalização educação, cultura dentro das prisões.
(psicólogas/os, assistentes sociais, Conseguimos ter as especificidades,
médicos, advogados). E aí começou o advogado, psicólogo, médico,
a regionalização da atenção à pessoa assistente social e por aí vai.
que cumpria pena, começou com as
Delegacias, então foi regionalizada Na oitava Delegacia, isto é, quando
essa assistência, o que facilitou fomos para as Delegacias, tínhamos
bastante. Também com isso vieram algumas metas. A Suzana Santa
os primeiros concursos e o contrato Maria, psicóloga responsável junto
emergencial. Como eu te disse, o ao órgão central (que naquela época
meu percurso também veio com acho que não era DTP52). Priorizamos
a relação de vinculo trabalho com ter grupo de Alcoólicos Anônimos

51 Delegacias Penitenciárias Regionais, correspondentes às Regiões Penitenciárias do Rio Grande do Sul.


52 Departamento de Tratamento Penal

153
funcionando em cada casa prisional, diferente do preso, porque o preso
tínhamos que reativar as escolas, estava morando em condições
fazíamos a rede com as escolas para muito precárias, eles viviam em
que acontecessem as escolas dentro celas superlotadas, então nós íamos
desses espaços... com as igrejas... achando espaços para atendimento.
parece uma coisa doida, mas essas Mas sempre tem que se ter muito
igrejas normalmente acompanhavam claro o enquadre, o sigilo, por que tu
a família ou cuidavam dos recursos estás fazendo, o que estás avaliando,
materiais que os presos não tinham; se seria possível acompanhar e
tinha um grupo terapêutico também, avaliar... todas essas questões que
focávamos muito na questão do talvez fora já estivessem resolvidas,
grupo. para nós não estavam, então tivemos
que ir fazendo essas discussões e ir
E aí vamos pensar também nos definindo a prática.
espaços, porque em Mariante eu
tinha uma sala num prédio antigo, O que me ajudou muito foi que
uma sala de atendimento onde sempre procurei ter estagiários, abrir
eu fazia grupo porque era onde espaço de estágio, porque achava
funcionava também a escola; ali eu que esse vínculo com a universidade
comecei bem, tendo uma sala. Depois era muito saudável, ele trazia luz
na oitava Região quando a gente para aquele lugar que é sombra. Em
começou a viajar pelos 11 presídios, as Santa Cruz tive estagiárias, Lajeado,
vezes atendíamos na sala do diretor, na casa Albergue53. Também trabalhei
às vezes num cubículo... um dia um sempre de forma integrada com
preso me emprestou um ventilador as ONGs. Na oitava Região a gente
de tanto calor que fazia. tinha um trabalho, por exemplo,
em Encantado, o juiz fazia o dia
As condições de trabalho sempre do Fórum, íamos fazer palestra, o
foram muito precárias, mas eu juiz convidava os prefeitos e tal, e
também nunca entrei nesse espaço ia alguém da Psicologia, alguém
de queixa. Eu sempre fui muito do Serviço Social, faziam falas para
propositiva, de lutar, de buscar; essas pessoas, do funcionamento,
por exemplo, Santa Cruz, não tinha da importância de a comunidade
banheiro feminino, não tínhamos estar integrada. Fazíamos também
banheiro; parece uma besteira, mas campanhas de prevenção a DSTs
dividíamos o banheiro com colegas e AIDS e outras várias campanhas.
homens; então conseguimos o Fazíamos às vezes concurso de frases
banheiro para nós, conseguimos e textos. E trabalhávamos também
sala de atendimento também. Tudo integrados com a imprensa. Eu nunca
foi evoluindo, numa construção; e me esqueço, ali em Lajeado tenho
claro, a nossa realidade não era tão até hoje, mandei imprimir para que

53 Atualmente denominada como Instituto Penal Feminino.

154
saísse no informativo de Lajeado civis, de Psicologia no contexto Penal,
(Aline era o nome da repórter). A de Abordagem Sócio Psicológica da
gente fazia esses concursos de Violência, fui também contratada
frases e textos, e um preso dali foi o pelo Depen por um período para dar
escolhido e pedíamos que o pessoal a disciplina de Direitos Humanos
selecionasse os melhores, até o para os agentes penitenciários
juiz me interrogou dizendo que o federais, fui convidada para trabalhar
texto estava cheio de erros. O rapaz nas prisões federais, trabalhei em
tinha feito história em quadrinhos, Catanduva, em Campo Grande
mas eu disse que a questão não também. Enquanto eles não tinham
era gramatical, o importante é que concurso, eles pediam socorro para
ele se manifestou e desenhou; e ele os Estados, então do Ministério da
era de descendência italiana, então Justiça e a SUSEPE54 me liberaram,
tinha um tanto de português e um tive essa oportunidade de trabalhar
tanto de italiano que era muito nesses presídios federais. Apesar de
característico daquela região. E ser totalmente contra a sua existência,
o mais importante disso tudo foi mas tem que atender as pessoas,
quando ele se viu na folha do jornal, meu cliente é a pessoa que está
não na parte criminal, ele estava na ali. O sistema de isolamento como
folha cultural e quando ele se viu no vivem os presos nas prisões federais é
jornal do almoço, sendo entrevistado totalmente enlouquecedor.
na cadeia, recebendo o prêmio das
mãos do Juiz. Era um trabalho que Práticas como essas foram
fazíamos miudinho na cadeia, mas contribuindo para toda a minha
implicávamos a comunidade mais formação. E eu fiz uma Especialização
ampla e também trabalhando com em Criminologia junto à PUC
essa parte da Imprensa, a forma como promovida pelo Ministério da Justiça,
eles divulgavam o crime, a gente uma de Gestão Penitenciária na
tentava travar uma discussão naquele UFRGS, também promovida pelo
espaço regional e as cidades por Ministério da Justiça... E trabalhei
onde passamos houve a possibilidade em torno de uns 15 anos com
desses diálogos, com alguns efeitos homens presos, trabalhei em
de inserção. Comissões Técnicas de Classificação,
trabalhei no que chamávamos de
Acho que é um apaixonamento, tratamento penal (que às vezes nos
porque primeiro como eu te disse, interrogávamos se era possível tratar,
nem queria chegar nesse lugar, no que focava o tratamento, que
depois comecei a trabalhar e fui indo, abordagens deveria ter). Sempre
fui indo... Eu também dei aula na lutei para que existissem os grupos
formação dos agentes penitenciários, e os espaços onde se dariam esses
dei aula na formação dos policiais grupos, como seria essa questão. Na

54 Superintendência dos Serviços Penitenciários

155
oitava Região, em alguns lugares, Em 2002 vim concursada para a
conseguimos fazer alguns grupos, por primeira Delegacia. E aí tem quadros
exemplo, o grupo de Preparação para de holocausto, coisas que tu vives na
Liberdade, com o tempo determinado prisão e enquanto tu estás ali, está
de seis encontros, onde se trabalhava aquecida, está tudo acontecendo, tu
como é que o preso estava para vai vendo alguns retornos, está tudo
aquele momento, refletindo sobre bem. Mas quando me afastei aquilo
o que ele fazia antes de ser preso, o veio, esse baque, porque é toda uma
que ele gostaria de fazer... E tudo isso vida de embate, ora com juiz, ora
integrado com as professoras, porque com promotoria, ora com os colegas
alguns presídios na oitava região na área técnica, administrativa e
tinham professores, então a gente se segurança, com os aprisionados. Na
reunia e pedia para professora propor primeira Delegacia tinha dias que eu
alguns temas na aula dela. Também chegava em São Leopoldo e tinha
com o pessoal da Pastoral Carcerária só uma guarda de plantão e ela
e com várias igrejas; procurávamos não gostava de mim. Eu apertava a
sempre esse contato porque não se campainha e ela não abria, tinha que
tinha perna pra tudo, nem as políticas ficar sentada na frente até o Delegado
de estado têm propostas que deem ou outro colega chegar para abrir pra
conta, fomos tentando avançar nesse mim, porque não podia ir embora
sentido. Agora os avanços se fazem (estava em horário de trabalho).
significativos, como as Unidades Parece causo de gaúcho, mas isso é
Básicas de Saúde dentro das casas só para mostrar o tanto de embate
prisionais, Unidade Materno-Infantil, que a gente vivia, não querendo usar
etc. a palavra correta: Assédio; claro que
em outros lugares não, isso varia de
Vou sentindo os efeitos da formação lugar para lugar. Na oitava Região, por
acadêmica e pessoal, por exemplo, exemplo, os guardas, os agentes eram
depois vem a Ivarlete Guimarães muito preparados e muito integrados
França que tem uma formação todos eles, às vezes diziam “hoje não
em política pública. Fui uma dá para fazer o grupo”, mas era por
profissional que na minha prática questões técnicas da segurança.
agia feito andorinha, claro que fui
me compondo e aprendendo com as Eu vim para prisão feminina, entrei
colegas, a Suzana Santa Maria, Ivarlete para Casa Albergue Feminina, em
Guimarães de França, com a Jennifer, Porto Alegre e para mim, no primeiro
com o Leonardo, a Cristina Rauter, o momento foi meio chocante porque
Alvino Augusto de Sá e tantos outros eu trabalhei sempre com homens e
que foram pessoas importantes no aí comecei a trabalhar com mulheres.
nosso cotidiano e fizeram com que a A Casa Albergue não tinha espaços
gente se mantivesse na luta. para atendimento, nós éramos cinco

156
psicólogas/os e atendíamos numa sala congresso de Saúde que ocorreu na
grande. E aí eu não consegui atender Faculdade de Medicina, apresentei
dessa forma e comecei a atender no esse projeto desse trabalho da
pátio, achei um canto no pátio, botava Maternidade no cárcere e para meu
lá umas caixinhas de fruta, eu e a bem, a Cedile55 que era a Assistente
presa sentávamos e ia atendendo. E Social do Tribunal de Justiça, me
elas também foram vendo que ali elas escutou.
tinham mais privacidade e as demais
presas garantiam o espaço não se O Ministério da Justiça precisava de
aproximando. alguém que falasse sobre a mulher
encarcerada e convidou a Cedile
Foi também diante dessas (trabalhava com presos em Trabalho
dificuldades de espaço que Externo) para ir, porque o Ilanud56,
começamos a trabalhar com o um instituto latino-americano que
Coletivo Feminino Plural, que é estudava delinquência (eles usam
uma ONG feminista, e a trabalhar essa palavra, “delinquência”) convidou
com outras ONGs. Íamos até lá, ela para ir falar na Costa Rica sobre
conversávamos com elas, elas vinham, mulher encarcerada. E como ela
faziam grupos. Eu tenho um artigo tinha me escutado me indicou. Isso
publicado na revista do Coletivo sobre foi dia três de novembro de 2006, eu
esse trabalho. era diretora da Casa Albergue nessa
época.
O que mais me chocou foi a questão
da maternidade, pensava em como Então tive essa oportunidade na
iam ficar os bebês. No regime fechado Costa Rica de falar sobre a mulher
tinha Unidade Materno-Infantil, mas encarcerada e depois eles nos levaram
ali no semiaberto não tinha e o juiz à Suécia em 2008. Ali na Costa Rica,
muitas vezes não tinha noção dessas conhecemos os presídios, como era a
distinções. Então eu e outra colega prática deles e tal. Eu já sonhava com
psicóloga começamos a pensar um ir à Costa Rica desde 1995, pois tinha
programa; ela já vinha desenvolvendo vindo um pessoal de lá que trabalhava
isso, então tentamos escrever e com abusadores sexuais, e esse é um
colocar no papel na busca de tornar tema que eu sempre priorizei nos
política publica, para que as presas meus estudos, durante o tempo que
tivessem o direito de ficar com o filho acompanhei homens e depois com
na licença maternidade (porque ali as mulheres. Foi muito emocionante
elas eram presas trabalhadoras); e esse convite, e foi muito interessante
começamos a escrever. Nessa época esse trabalho porque do Brasil, nós
eu estava fazendo o curso de Gestão fomos 5 profissionais convidados, o
Penitenciária na UFRGS, teve um juiz Dr. Fernando, lá de Maranhão,

55 Cedile Maria Frare Greggianin.


56 Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente

157
o defensor público que veio de São de uma possibilidade dentro do que
Paulo, eu daqui do Rio Grande do Sul era competência de um profissional
e duas pessoas de Brasília, que eram da Psicologia. Eventualmente sugeria
das políticas públicas. trabalhos de prevenção como uma
forma de responder à vontade dos
Nós não fizemos reunião antes gestores. Por exemplo, em situações
como os outros países que foram como aquela da visita íntima,
da América Latina, porque o Brasil é eu sugeria grupos de mulheres,
um país Continental, foi um de cada vinculados às unidades de saúde,
ponta. Mas foi tão interessante porque falando sobre uso de preservativos...
as falas pareciam que nós tínhamos Na Penitenciária Feminina, às vezes
uma cartilha, todos falamos do viés da tentavam impedir a visita íntima
questão dos direitos, sabe, de garantir dizendo que o homem era violento,
os direitos e ter aquele olhar para e nesses casos eu conversava com
pessoa que cumpre pena. Depois que a mulher, para ver se ela estava se
nós falamos e nos ouvimos (porque sentindo pressionada, mas se ela
nós não tínhamos nos escutado), foi quisesse recebê-lo tinha o direito. Mas
muito bom, ficamos próximos e a sempre com essa clareza do que é a
nossa prática depois também facilitou prática do psicólogo.
muito, depois disso, as conexões que
se firmaram ali. E dali fui à Suécia Trabalhava muito ligada a Defensoria
também, conheci os presídios lá e a Pública de Porto Alegre, com a doutora
questão do monitoramento, porque Nilda Fernandes que era chefe da
lá eles dão muito mais ênfase às Defensoria. Na Penitenciária Feminina
penas alternativas do que às penas de a gente tem a possibilidade de receber
privação de liberdade. a presa desde o início, então a gente
tinha um número de entrevistas que
Quando me aposentei estava eram de acolhimento, a entrevista
trabalhando na Penitenciária de ingresso, (não gosto do nome
Feminina57, no regime fechado. Tendo “triagem”); a presa chegava e a gente
em vista que fui diretora do Albergue a entrevistava, fazia contato com a
Feminino, as reações quando abria família, porque o estado não tinha
aporta para receber as que iam se materiais de higiene, mas também
atendidas no dia e o clima era de para orientar a família sobre os dias
luta e fuga, umas queriam que eu as de visitas e todas essas rotinas. Alguns
atendesse, outras não. E eticamente diziam que isso não é trabalho do
muitas eu estava impedida de psicólogo, mas a gente também tinha
atender. Na prisão, nosso Código de construído uma prática ali, porque se a
Ética é sempre um bom companheiro gente fosse fazer uma entrevista com
de luta. Em minha prática toda vez psicólogo e outra com assistente social
que dizia um não, fazia uma sugestão não ia ter pernas para recebê-las.

57 Penitenciária Feminina Madre Pelletier, também chamada de “Feminina” ou “Madre”.

158
Aí claro, se a assistente social ensinava. Todos diziam que o crime
verificava que aquela pessoa requeria que ela havia cometido era que tinha
um atendimento específico, depois matado uma criança e posto no forno
já encaminhava para sequência e servido para família, inventavam,
com a psicóloga, e vice-versa. E na no imaginário da cadeia, e não era
Feminina também fazia questão de nada disso o crime dela. Era um
propor várias abordagens culturais, crime violento, mas não era esse. E
de dança, sempre um trabalho não ela também não desmentia porque
só focado no atendimento individual. aquilo fazia parte da construção, para
Sempre o grupo é muito complexo que as outras tivessem medo dela. Ela
dentro da prisão, é muito difícil, aceitou fazer o filme, que era com as
tem que fazer todo um trabalho de próprias presas; eles escolheram três
sensibilização do staff, tu propôs um presas, uma que foi pro IPF, uma do
trabalho todo bonito, daí chega lá semiaberto e ela estava no fechado;
não é possível naquele dia, daí já tem o filme que focava na progressão de
vontade de desistir, não quero mais, regime.
não faço mais isso... e não é bem
assim. O entendimento da dinâmica Foi muito interessante! Eu trouxe o
institucional é crucial. exemplo dela para falar porque traz
essa questão do imaginário social, de
Pensamos em fazer um trabalho que só a prisão não basta, a sociedade
integrado com a nutricionista, é muito cruel com as pessoas. E
ela constatou que haviam muitas também traz a questão de que, afinal,
presas obesas; usamos dinâmica de o que deve fazer um psicólogo um
grupo, foi bem legal. Nesse período sistema prisional? Já que o sistema
na Feminina eu tive também a prisional conforme Foucault e vários
possibilidade de acompanhar a autores, é uma fábrica de criminosos,
Cláudia Rullian. Posso falar o nome porque por mais que a prisão seja no
dela porque é conhecida, se tornou regime fechado, como é que ensina
pública; ela participou daquele alguém a nadar fora da piscina?
filme “O cárcere e a rua”, e bem no Separam a pessoa do social para
tempo em que o filme terminou socializar, ali no cotidiano a gente vai
eu estava acompanhando-a e tive vendo como isso funciona.
a oportunidade de assistir ao filme
com ela pela primeira vez. Ela era E aí ela ficou muito chocada,
condenada por um latrocínio, mas porque depois na rua, as pessoas
ninguém sabia o crime dela, porque a abordavam, umas positivamente
ela era uma presa poderosa e forte outras não, porque reconheciam ela.
emocionalmente, fisicamente era Ela acabou tendo muita ajuda, pois
magra, mas ela sempre cuidou das era padeira, fazia confeitaria e padaria,
presas que abusavam das crianças, ela ganhou um forno. Ela tinha um
ela as levava para a cozinha, as problema dentário, vários dentistas
ligaram para oferecer próteses... O

159
filme teve boas repercussões na Algumas colegas diziam que eu
vida dela, mas também teve outras era secretária da Defensora e eu
repercussões, que ela teve que respondia que seria secretária do
enfrentar (e teria que enfrentar de diabo se fosse para facilitar a vida da
toda forma), mas acontece que o pessoa! Não no sentido pervertido,
filme tornou tudo aquilo público mas para facilitar a saúde, a saída e a
e notório. O trabalho na prisão vida em liberdade.
na minha visão, tem que ter essa
perspectiva, do trabalho integrado Às vezes, eu estava atendendo uma
com as Universidades, com as ONGs, presa e tinha algo no processo
trabalhar dentro de uma política que estava emperrado, então eu
pública. ia lá e marcava um horário com a
Defensoria para saber o que estava
Quando fui trabalhar com a Ivarlete acontecendo, e a doutora Nilda olhava
no DTP... algumas coisas eu já o processo. Esse tipo de integração é
desenvolvia antes na minha prática muito interessante e crucial. E houve
mesmo quando fui Diretora lá na momentos emocionantes no trabalho.
Casa Albergue, mas pensando na Me lembro de uma vez, eu estava lá
política do idoso, na política dos no DTP e chegou um senhor que eu
povos originários, porque tem tinha acompanhado em Mariante,
alguns indígenas que vêm presos, tinha ido para me visitar e dizer que
aquelas regiões de Santo Ângelo, e tinha ido para ler para mim, e aquilo
são aculturados. Era tudo novidade me emocionou de uma maneira,
pra mim porque na época eu nem chorei muito. Ele era analfabeto
imaginava que eles podiam ser e trabalhamos integrado com a
presos, daí tive de estudar a lei e ver professora, trabalhando os bloqueios
com a Defensoria... Mas voltando ao que se apresentavam nesse processo
tema da Defensoria: o que fazíamos de aprendizagem.
ali na Feminina? Eu via algumas
situações e já ligava direto para Mas sei que foi um trabalho que
Defensoria, por exemplo, um caso realizei com paixão, muito estudo,
de uma mulher, os filhos com fome, sempre buscando ler e retomando
ela saiu para buscar cesta básica e os conceitos e tentando aplicar.
alguém denunciou ela por abandono, Lembro-me que enquanto Diretora
ela veio presa no fim de semana sofri muitas corregedorias. Porque
e abrigaram a criança! Liguei para tinha uma linha de cuidado, com
Defensoria e já tinham o alvará de todos os processos, que eram muitos.
soltura, mas não tinham visto, então Estávamos sempre com nossa
procuraram e já liberaram a mulher. advogada, ela sempre foi muito
São pequenas ações que se faz de competente em tudo, procurávamos
integração, que facilitam, que dão que os direitos estivessem todos em
vida, que não deixam a pessoa ali. andamento e todo o funcionamento

160
da estrutura interna. Mas sempre mim a filha dela estaria no Senac. Mas
havia algumas situações de embate eu compreendo que tenho alguma
e tínhamos um número pequeno responsabilidade, pois estava lá para
de agentes que eram muito cuidar e não cuidei o suficientemente
complicados; eu ficava sempre da filha dela, uma moça de 25 anos.
cuidando para que não acontecessem Mas graças a Deus foi comprovado
irregularidades e tal. Eu respondi que eu não tinha nada a ver com
procedimento por venda de cama, aquilo, mesmo administrativamente
por venda de saída temporária, não tive nenhum problema também.
morreu uma presa no tempo que eu
era Diretora, foi muito chocante, foi na Mas em tudo isso tu tens que
semana que nós estávamos fazendo conhecer a administração pública, o
um seminário do Dia Internacional Direito Penal, o Direito mais amplo,
da Mulher, no Poder Judiciário (um aquilo que não sabes ser humilde
trabalho muito bom), mas não pude de perguntar, de trabalhar com os
participar porque tive que resolver colegas.
essas situações da segurança de todas
elas e daquela que infelizmente se foi. Para recomendar algo com vistas ao
Para mim foi muito chocante, esse futuro... é difícil, estou distante, eu vejo
foi um dos momentos mais tristes da só pelas notícias, porque depois que
minha prática, eu me cobrava muito eu me aposentei, dia 26 de setembro,
disso, pensava “como é que eu não eu saí caminhando e nunca mais
vi isso”, porque eu tinha feito vários voltei, nunca mais botei meu pé em
ofícios e também ido nos lugares para prisão nenhuma, nem na SUSEPE eu
tentar resolver algumas questões fui mais.
ali que eram oficiais. E depois foi
descoberto que tinha sido mandado Vejo que agora em Porto Alegre foi
por uma presa, e eu fui absolvida, criado uma casa de detenção que
falei com a mãe da presa na época... eu achei interessante, porque parece
E era muito engraçado porque eram que tem um espaço ali para trabalhar
duas Casas Albergues, uma que com as pessoas LGBT em separado,
funcionava na frente da Feminina e a eles ficam alojados em celas
outra lá na Salvador França, eu dirigia femininas e tal. Fiquei pensando que
as duas casas. Foi uma época em as discussões já estão começando a
que a lei mudou, aumentou muito o aparecer na construção específica,
número de presas no semiaberto. A mesmo que a gente saiba que às
mãe da presa disse que quem tinha vezes constrói de um jeito e depois
mandado matar a filha dela tinha vem a superlotação e tudo muda. O
sido a diretora do outro Albergue (que que posso dizer é que a questão ética
era eu mesma), então eu dei o cartão é crucial no nosso trabalho no sistema
do Delegado para ela e disse para prisional, a questão da nossa análise
ela fazer a queixa com ele, e que por pessoal, se questionar “o que eu faço

161
aqui?”, “que lugar é esse?”, “porque tinha muito nítido esse papel, tanto
que estou trabalhando aqui?”, “Eu quando eu ia conversar com o juiz
quero mesmo ficar aqui?”, não fazer ou com o Ministério Público, tinha
desse lugar um cabide de emprego, muito claro esse papel, de onde é
isso é muito violento. Fiz muitos que estava falando e aonde queria
inimigos no sistema, porque não chegar, tendo a meta das políticas
tenho papas na língua; hoje em dia públicas. Por que o Conselho faz
não faria dessa forma, o afastamento tantas resoluções? Essas resoluções
da prisão me tornou uma pessoa são para nos ajudar, para nos dar
mais meiga (risos). Eu acho que um norte. São instrumentos para a
temos que estudar muito e pensar, gente fazer frente, porque a prática é
o psicólogo tem que estar sim no uma construção cotidiana, ninguém
sistema prisional. Vejo como aquela nasceu sabendo.
questão do moinho, se é uma fábrica
de criminosos eu quero ser aquele
pauzinho que vai trancar a roda e
que vai fazer borbotar pessoas, não
criminosos. Eu era esse empecilho,
era aquela pessoa desconfortável, eu

162
ENTREVISTA COM IVARLETE GUIMARÃES DE FRANÇA
Primeiramente, gostaria de agradecer espaço sempre trazíamos a pauta
ao Conselho Regional de Psicologia das pessoas em conflito com a lei,
(CRPRS) por sempre estar atento a sistema prisional, socioeducativo
essa pauta, discutindo e trazendo e outros lugares de privação de
os profissionais da Psicologia para liberdade com um olhar crítico em
pensar caminhos possíveis nesse busca de transformação e superação
espaço tão difícil e complexo que é o desse modelo asilar. Quando estive
trabalho do psicólogo e da psicóloga Diretora de Tratamento Penal,
com as pessoas em conflito com a lei. trouxemos a perspectiva do cuidado
em liberdade e a necessidade
O CRPRS tem trabalhado o tema das urgente de políticas públicas voltadas
políticas públicas nos três pilares, ao desencarceramento, pois é
como compromisso ético, político muito necessário que pensemos
e técnico; em especial, nas políticas que a Psicologia além de fazer um
públicas para pessoas em conflito trabalho necessário e importante
com a lei. Há alguns anos existia um dentro do sistema prisional no
GT no CRP chamado de “A Psicologia que se refere a reintegração social
e as relações com a justiça” que das pessoas privadas de liberdade,
incluía uma gama de relações que os em cumprimento de medida
psicólogos e psicólogas estabelecem socioeducativa, nos manicômios
com o sistema de justiça brasileiro judiciários, garantir que o nosso
e no RS, foi o grande disparador trabalho esteja focado para a
de formulações e produção de libertação das pessoas. Quaisquer que
conhecimento nessa área. Parabenizo sejam as nossas ações, devem estar
o Conselho por ter todo esse cuidado voltadas para que o sujeito conquiste
em fazer esse chamamento para nós a sua liberdade, saindo da condição
psicólogos e psicólogas, a partir desse em que se encontra, seja na questão
lugar produzir sobre o nosso fazer. do delito, do ato infracional ou da
condição de vida social precarizada,
Eu venho construindo minha até porque é importante não
caminhada na Psicologia, a partir perdermos de vista, que o delito é um
do controle social, já que fui por ato humano, só os humanos cometem
20 anos conselheira de saúde e delitos, os animais não são delituosos,
considero necessário refletir sobre além do mais, nosso trabalho não
essa caminhada, sobre a importância é julgar e sim, criar condições para
do controle social como um lugar de inclusão e justiça social. Até porque, o
sustentação das políticas públicas, sistema punitivo com sua seletividade
com proposição, fiscalização e está suscetível a criminalizar os grupos
deliberação. E obviamente, nesse sociais mais vulnerabilizados!

163
A partir disso, temos que pensar no portanto, é o que o nosso trabalho
trabalho do psicólogo e psicóloga hoje representa para a sociedade e é
como um processo de construção assim que a sociedade nos reconhece.
de uma humanidade psíquica,
necessária. Considerando os passos Acreditamos que todas as ações
percorridos no Sistema Prisional, que se faz no sistema prisional,
todos os profissionais da Psicologia desde o cuidado da saúde da
que vieram antes de nós, que pessoa presa, a educação prisional,
foram protagonistas dessa pauta, o trabalho, os espaços culturais para
contribuíram nessa construção que a pessoa privada de liberdade
para reflexão buscando aprofundar exercite a sua criatividade, tenham
os processos que vão nessa via a oportunidade, nada mais são
de libertação do sujeito. Venho do que atividades facilitadoras do
procurando dialogar com outros desencarceramento, o objetivo final
grupos dos quais já faço parte, da tem que ser desencarcerar as pessoas.
necessidade de maior engajamento Esse é um princípio importante que
das equipes, apontando a ideia de às vezes perdemos de vista porque
desencarceramento como uma tem toda uma máquina punitiva
estratégia a ser considerada em todas que nos captura, e daí pensamos,
as nossas ações com as pessoas “Bom, como eu já escutei o preso, já
em conflito com a lei. Por exemplo, fiz um laudo, já encaminhei ele para
quando fui conselheira presidente unidade de saúde, já estou fazendo
do Conselho Regional de Psicologia, a minha parte”. Não! A nossa parte é
conselheira do Conselho Estadual de extraordinária, vai além dos muros do
Saúde e diretora do Departamento cárcere.
de Tratamento Penal da Susepe58, e
como psicóloga e Técnica Superior Tudo que fazemos deve ser pensando
Penitenciária tive a oportunidade “quando é que vamos conseguir que
de vivenciar esses espaços e aceitar essas pessoas ultrapassem esses
esse desafio de perseguir a utopia muros?” Existe também o desafio
de um mundo sem cárcere como maior de fechar a porta de entrada
um processo de construção a para esses muros da segregação,
ser alcançado. Todos os projetos tanto na prisão quanto nos hospitais
desenvolvidos no Sistema Prisional, psiquiátricos, nos manicômios
acredito que ainda sejam pensados judiciários… Enfim, o fechamento
como tratamento penal, embora dessa porta é o de maior impacto
não seja a expressão mais adequada, para todo os operadores e operadoras
já que ninguém trata alguém e do direito, da justiça, trabalhadores
cerceia a liberdade da pessoa ao e trabalhadoras do sistema prisional,
mesmo tempo, mas esse é o nome essa tarefa, ela é de todas as
legalmente reconhecido pela lei e, instituições da sociedade.

58 Superintendência dos Serviços Penitenciários.

164
Durante meu percurso como Diretora fechamento de porta de entrada no
do Departamento de Tratamento cárcere exige que nós circulemos pelo
Penal, lutei muito para que os contexto social, pelas comunidades,
técnicos não permanecessem as pelos territórios; que nós conheçamos
oito horas dentro da prisão, o lugar as realidades do que tem lá fora
do técnico que trabalha com a aguardando aquele sujeito. Eu
Reintegração Social, com a inclusão conversava outro dia com um amigo
social das pessoas é lá fora, é criando meu, psicólogo da área de direitos
redes e espaços aonde as pessoas humanos, e ele disse que outro
possam ser acolhidas, é dialogando importante elemento para nós
com o sistema de justiça, dialogando refletirmos é que tipo de inclusão nós
com o sistema de saúde e o sistema queremos para essa pessoa que já
educacional, debatendo com a foi rejeitada nessa nossa sociedade
sociedade, buscando conscientizar excludente. Então, quando se fala de
sobre a necessidade de romper inclusão social, Reintegração Social,
estigmas que impedem a vida em nós também temos que colocar em
sociedade. Uma coisa é muito certa, parênteses o tipo de sociedade que
nós precisamos reconhecer que estamos construindo e também nos
quem detém esse conhecimento do manifestar. Eu acho que o nosso
que é o cárcere, o que ele significa lugar também é sobre fazer refletir,
e quais os prejuízos que o cárcere tomar posição, embora isso nos custe
produz para a pessoa privada de muito empenho de energia, e por
liberdade e para o próprio meio que vezes represálias, que a sociedade nos
somos nós! critique, nos diga que estamos fazendo
política e não o nosso trabalho de fato.
Nós não podemos esperar que o No entanto, temos que entender que
sistema de saúde, de assistência ou a transformação social só se dará na
qualquer outro, vá criar consciência medida em que nós trabalhadores
sobre as pessoas aprisionadas, eles e trabalhadoras no contexto social
não vivem essa realidade, apenas nós tenhamos muito claro o nosso papel
a vivemos, cabe a nós e o público- ético e político na sociedade.
alvo do sistema articular as redes e
promover a intersetorialidade para Então a violência, a violação
inclusão social. Não vamos esperar de direitos, o cerceamento da
que o sistema de educação faça uma liberdade, tudo isso são temas na
reflexão sobre as pessoas presas, nós ordem do dia para nós técnicos
temos que ir lá e fazer junto com eles, e técnicas do sistema prisional.
levar o tema, nós temos que criar A segurança também tem um
consciência de que o lugar do ser trabalho importantíssimo, porque
humano não é ficar encarcerado. exige complementariedade, nós não
conseguimos fazer nada sozinhos, até
Essa rede que tenho chamado de porque nós todos que trabalhamos

165
no sistema prisional, de alguma forma cárcere, o que fazíamos era buscando
nos aprisionamos também. Em razão por políticas facilitadoras da
disso, precisamos estar atentos/as a reintegração social da pessoa presa.
refletir: “qual é o meu lugar?” / “Qual
é a parte que me cabe nesse sistema Pensando nos desafios
cerceador de liberdade?” / “eu me contemporâneos, talvez seja um
encarcero também ou consigo ser exagero reflexivo de minha parte, mas
um agente de libertação?”. Enfim, acredito que estamos numa situação
são várias as reflexões que nós temos pior. Pior no sentido de uma fragilidade
que fazer. Quando estive Diretora de nas políticas de direitos humanos,
Tratamento Penal, tínhamos muito de um retrocesso nessas políticas,
claro em todo governo o que era retrocesso em reconhecer os diferentes,
uma política pública de Reintegração retrocesso no sentido de que nós
Social que contemplasse os diferentes vivemos em um país excludente, onde
segmentos. Nos esforçamos ao criar as pessoas são violentadas, inclusive
linhas de atenção, que respeitasse pela própria sociedade que se sente
as necessidades, buscando ver cada no direito de julgar tanto uma vítima
sujeito com a sua individualidade e que está sofrendo, quanto alguém que
singularidade, trazendo a sua história supostamente é um criminoso para
de vida para se reconstruir, oferecer os olhos da sociedade. Se estamos
à pessoa presa condições de acordo hoje vivendo a divisão das pessoas de
com as suas necessidades e suas bem e aqueles que são considerados
expectativas, sua cultura, seu jeito de do mal, no discurso social, imagina
ser e de estar no mundo, um trabalho que situação a pessoa privada de
diferenciado, que a pessoa presa não liberdade está, pois está situada nesse
fosse vista como massa carcerária. espaço de exclusão, de julgamento, de
Toda nossa equipe pensava muito rejeição das diferenças. Hoje aquela
sobre isso também, sobre o lugar política do bandido bom é bandido
dessas políticas públicas, estávamos morto, está completamente instalada,
delineando uma política estadual de não só no discurso, mas também na
tratamento penal e Integração Social prática e oficializada pelo Estado, pois
para o Estado do Rio Grande do Sul, já vivenciamos em alguns lugares, o
porém, não conseguimos concluir, extermínio da juventude negra, das
porque isso demanda muito tempo pessoas pobres, das periferias, das
e nós éramos muito atropelados mulheres e a diversidade.
pelas demandas do dia a dia. Pensar
nessa política inclusiva era e continua Para aqueles que pensam a política
sendo um grande desafio para os pública para o sistema prisional
que chegam. Sempre entendemos que trabalhe na perspectiva do
que o nosso trabalho era voltado a desencarceramento, estamos numa
alcançar, a atingir a grande finalidade: situação muito mais difícil do que
promover a saída da pessoa do estávamos até alguns anos atrás.

166
Também tive a oportunidade desmonte e fortalece a existência da
de trabalhar na assessoria de Rede.
planejamento e programação em
saúde de Porto Alegre, e, junto a E isso para o sistema prisional é uma
equipe, implantamos o plantão de dificuldade porque é preciso ter toda
emergência em saúde mental. Eu tive uma compreensão do sentido da
a honra de ser a primeira coordenadora liberdade. Hoje nós temos um apelo
daquele serviço, conseguimos provar muito grande para o encarceramento,
que era possível atender emergência a tolerância é zero em relação à
em Saúde Mental fora dos espaços liberdade das pessoas, toda vez que
dos hospitais psiquiátricos. Foi um alguém comete um delito não existe
grande desafio, criar um serviço de uma alternativa penal. A fragilidade
referência para urgência e emergência das penas e medidas alternativas
24 horas, que existe até hoje, mas ainda é muito grande, esse é um
que atualmente foi totalmente recurso não muito reconhecido
desmantelado pela política de também. O maior desafio reside
sucateamento e desinvestimento da na carência de políticas públicas
saúde mental de Porto Alegre. Com de inclusão das pessoas, anterior
todos os ataques e as precariedades ao ingresso no sistema prisional.
que vem sofrendo, conseguimos E foi essa experiência da Saúde
demonstrar na prática que é possível Mental, na lógica de liberdade e
tirar as emergências e as urgências desencarceramento que contribuiu
das portas dos manicômios e para o reposicionamento do meu
trabalhar num serviço como o Pronto olhar sobre as alternativas penais
Atendimento Cruzeiro do Sul. inclusivas.

Tive a oportunidade de assumir Lembro que no Departamento


a gerência da pensão pública de Tratamento Penal da SUSEPE,
protegida Nova Vida, de 1990 a criamos um projeto da escrita das
2000, que foi um laboratório de pessoas presas em parceria com
aprendizagem sobre como se cuida o Banco dos Livros, a UNIRITER, a
em liberdade as pessoas, porque ali Secretaria de Cultura, onde surgiu
eram os moradores de um serviço, a 1ª Edição do Livro “Vozes de um
anterior a existência dos residenciais Tempo” e ousamos pela primeira vez
terapêuticos que conhecemos levá-las para a sessão de autógrafos
hoje. Esses processos de produção na Feira do Livro. Como assim pegar
do nosso saber-fazer exige de nós um monte de presos e levar lá para
também um engajamento militante a multidão no meio do povo? Isso
nas lutas sociais que garantem a criou um certo pavor, até porque o
sustentabilidade política das políticas novo sempre assusta mesmo, não
públicas, são a mola propulsora sabemos o que vai acontecer, mas
que alavanca a resistência contra o apostamos e deu certo. Tínhamos
uma gestão muito integrada, havia

167
muito diálogo e integração, então não consegue construir os recursos,
houve uma cumplicidade de todos os chegar na sociedade, sensibilizar
setores da segurança e do tratamento a sociedade, porque ele está lá
penal, da própria gestão da SUSEPE, atrás do muro também, como um
da Secretaria de Segurança. E assim prisioneiro. Sempre achei que as
foi possível que nós trouxéssemos equipes deveriam trabalhar de
aqueles presos escritores para dar o forma itinerante, elas tinham que
seu autógrafo na Feira do Livro e foi estar nos conselhos de saúde, de
muito importante, isso pode ser uma assistência social, de educação e em
ação pequena, mas ela não é isolada todas as ações do controle social,
de todo pensamento que temos da inclusive ter acento nesses espaços
importância de desencarcerar as criados pelo Poder Judiciário para
pessoas. Havia um medo no início, que tentássemos o tempo inteiro
só que depois que as pessoas foram criar consciência nesses setores da
para lá e começaram a dar autógrafos, importância da liberdade das pessoas
se misturaram com a multidão, e do desencarceramento.
observou-se que não era tão perigoso,
que as pessoas podiam se incluir Claro que nós precisamos pensar,
naquele espaço e havia espaço para lutar sempre pelos recursos, pelo
essa integração. reconhecimento do trabalho técnico,
que hoje é muito banalizado, muito
Esse exemplo de ousadia, nos mostra desvalorizado, justamente porque
que o grandioso vem das pequenas quem está fora dos muros não
ações que acreditamos e daí se reconhece a importância do nosso
constrói aquilo que imaginamos que trabalho. Não sabem o tamanho do
possa ser grande. Desse embrião desafio, porque também nós não
surgiu o projeto de remissão da estamos lá para dizer, então como
pena através da leitura, que passou é que alguém vai conhecer o nosso
a diminuir o tempo de prisão na desafio, se nós não estamos ali para
medida em que os presos lessem um dizer para as pessoas como é que
número significativo de livros, essa é? Ninguém vai entrar no cárcere
foi mais uma estratégia no processo para saber, por isso a importância
de desencarceramento. Acredito que de sair dos muros, criar consciência
hoje, o grande desafio de todos nós na sociedade e ao mesmo tempo
técnicos do sistema prisional é criar conquistar espaços para que a pessoa
espaços para ousar, sair de trás dos presa possa ser incluída.
muros.
Diante deste cenário, criar leis com
Faz-se extremamente necessário penalidades mais rígidas não vai
libertar os próprios trabalhadores resolver o problema, nós precisamos
das muralhas da prisão. Porque toda é pensar a porta de entrada, pois ela
vez que se prende o trabalhador, ele é bem complexa e depende de toda

168
a sociedade e também nos libertar exemplo, se o preso quando saísse
dos muros para poder construir esses voltaria a cometer o crime ou não, era
espaços, esses territórios aonde a como uma bola de cristal. E nós não
gente sabe que a pessoa privada de temos elementos técnicos e éticos
liberdade vai precisar circular. para dizer se uma pessoa vai voltar
ao mundo do crime, porque isso é
Ninguém faz nada sozinho, nós muito complexo e depende de uma
somos frutos daqueles que vieram série de circunstâncias e não apenas
antes de nós e assim segue o curso da de aspectos psicológicos. Então
história, é assim que fazemos história, começamos a criar, inclusive dentro
assim que transformamos as coisas. do próprio GT do Sistema Prisional
no CRP, esse debate, questionando,
Espero que possamos conquistar e formulando e buscando alternativas.
transformar tudo que precisamos Junto ao Conselho Federal de
para que os cárceres não fiquem Psicologia que criou as normas
superlotados, para que as mentes técnicas, éticas para o trabalho
encarceradas também abram os do psicólogo no sistema prisional;
horizontes, porque existe muito aqui no RS foi na gestão da Neusa
cárcere mental, pensar de modo Guareschi, que teve um processo
aprisionado ou aprisionar o contínuo nas demais gestões.
pensamento são coisas que também
precisamos refletir. Pensamos nas questões éticas,
como fazer perícia, escuta e ao
A luta contra o exame criminológico mesmo tempo escrever para o juiz
começou de uma reflexão dos as impressões que tem daquela
próprios psicólogos, que começaram pessoa. Isso não nos parecia ético
a pensar que todo o trabalho que e não era. Então, no Departamento
deveriam fazer de reintegração social de Tratamento Penal criamos as
do preso, da construção no território equipes técnicas de avaliação
e de tudo isso que estou falando psicológica que eram os profissionais
ficava inviabilizado, porque as pessoas que já tinham uma afinidade com
tinham um volume muito grande de esse fazer, que iam nos espaços
exames criminológicos para realizar. prisionais e faziam esses exames,
não os tais exames criminológicos,
Os exames criminológicos, na mas era uma espécie de formulário
verdade, se baseavam na linha de com algumas perguntas e
carimbar o preso, inclusive havia os psicólogos objetivamente
uma demanda do judiciário, dos respondiam, separamos as perícias do
operadores da Justiça de que nós acompanhamento.
psicólogos pudéssemos fazer a
prognose de reincidência, por

169
Inclusive, no Sistema Conselhos, obrigatoriedade de fazer o exame
incluímos nas perguntas do juiz, criminológico (avaliação psicológica),
quais eram os investimentos que o puderam assumir todo aquele
sistema estava fazendo para garantir trabalho de acompanhamento, que
a recuperação daquela pessoa, isso a própria lei define, do preso no
é muito importante saber, porque trabalho, na educação, na saúde, na
não adianta o psicólogo fazer uma família e no seu próprio território.
avaliação psicológica, dizer esse aqui Criamos as equipes itinerantes que
não conseguiu estudar, não avançou, faziam as visitações, para qualificação
sendo que não foi ofertado estudo e dos profissionais nas regiões
oportunidade e condições para isso. prisionais onde os psicólogos estavam
Queríamos essa pergunta respondida, inseridos. Com isso, pudemos
então colaboramos na escrita do instituir a supervisão continuada,
formulário para poder garantir que no acompanhamento das suas
isso pudesse ser colocado ali. Isso demandas, das suas dificuldades e na
nos ajudava a pressionar o próprio produção de conhecimento. Quem
sistema para maiores investimentos produz o conhecimento é quem está
na recuperação da pessoa presa, lá na ponta realizando o trabalho e
para quem não tinha estudado fazer isso era uma via de mão dupla, ao
um curso, oferecer educação, quem mesmo tempo que nós enquanto
tinha uma especialidade poder se gestão pensávamos qual política
aperfeiçoar, quem não tinha trabalho prisional nós queremos para o Estado,
poder conseguir. nós nos alimentávamos com o fazer
das equipes, elas traziam para nós as
Queríamos que o próprio judiciário inovações, aquelas saídas que elas
também nos pressionasse para que o conseguiram construir ao longo do
sistema fizesse seu papel, culminando tempo com as suas experiências. Era
com a ampliação da Saúde prisional, maravilhoso, um trabalho integrado
que também era outro desafio. muito bom.
Quando nós chegamos na gestão em
2011, tínhamos oito unidades de saúde Trabalhamos muito também, na
prisional instituídas no Estado do Rio época do mutirão carcerário, com os
Grande do Sul e em 2013 já tínhamos assessores jurídicos da Susepe, que
22 unidades de saúde nos presídios tinham um papel fundamental no
fechados, e nos presídios abertos diálogo com o judiciário. Entendíamos
tínhamos a construção com a rede, como importante que os assessores
porque como o preso podia ir e vir, ele estivessem lá no judiciário, mais do
poderia acessar o Sistema Único de que conosco na Susepe. Foi uma
Saúde no seu território para buscar o experiência incrível e que hoje
seu tratamento. podemos afirmar que dá para fazer
muita coisa, tem muita saída, mas
Com a separação das perícias, precisamos ter vontade política que
as equipes que ficaram sem a

170
permita esse olhar, essa mudança que queriam transformar o modelo
de lógica para poder investir no de cuidado médico centrado e
desencarceramento das pessoas. hospitalêntrico pudessem oferecer
o seu trabalho, tendo reconhecida
Também no manicômio judiciário59 de sua capacidade de gerenciar um
responsabilidade do Departamento serviço de saúde mental. Outra
de Tratamento Penal, tivemos muitos questão que investimos bastante foi
entraves na desinstitucionalização, na desinstitucionalização; era uma
porém, quebramos vários paradigmas, palavra até então desconhecida para
claro que não foi nem perto da o próprio manicômio, conseguimos
necessidade do que nós deveríamos diferenciar a desinstitucionalização da
ter feito, não conseguimos, pois, desinternação.
nossas pernas não foram suficientes
para fazer tudo que precisava. Ficou Havia uma ideia de que
muita coisa a desejar com certeza. desinstitucionalizar era “tirar o cara
Mas um dos paradigmas que nós daqui do manicômio”, e não deixa
conseguimos quebrar, com muita de ser também, mas para além
dificuldade, muita luta, foi que a de tudo é criar uma consciência
direção do manicômio judiciário do direito de viver em liberdade.
não permanecesse apenas na mão A desinstitucionalização começa
da psiquiatria. Foi muita luta para no pensar de forma complexa e
garantir que outros profissionais desinstitucionalizada, é preciso
com condições, com conhecimento, desinstitucionalizar o pensamento
com trajetória também pudessem para depois o seu fazer. Esse processo
assumir aquele espaço e nós era uma responsabilidade assumida
conseguimos. Na nossa gestão entre a equipe e o próprio usuário
tivemos assistente social na direção do serviço que envolvia a sua
do manicômio, conseguimos ter comunidade. Todos trabalhando
psicólogos na direção, coisas que em conjunto para que uma pessoa
até então era impossível de ser pudesse ter a sua vida transformada,
pensada, pois havia uma apropriação para além de só sair do manicômio,
da psiquiatria, como se ninguém ela ter condições materiais e
tivesse capacidade de administrar psicológicas para viver fora do
aquele espaço, além dos psiquiatras. manicômio e desconstruir a ideia de
Nada contra, reconhecemos que a que ela só poderia estar protegida se
psiquiatria tem seu lugar necessário estivesse lá dentro.
no cuidado em saúde mental,
mas era preciso quebrar certos Desinstitucionalizar uma pessoa é ir
paradigmas e demonstrar que os lá no território e dialogar com aquela
profissionais de saúde preparados e rede. A pessoa ainda tem a doença

59 Antigo nome do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, ainda hoje muito utilizado para salientar
características do seu funcionamento.

171
mental? Tem, mas onde ela pode dar Tudo isso que estou falando aqui
continuidade no seu tratamento, é parece muito simples, mas não é, nós
num CAPs lá fora, é numa equipe de precisávamos sentar com as equipes
saúde mental que tem no território? para conversar sobre isso, para haver
Qual é o lugar onde ela vai dar esse entendimento, porque não
continuidade ao seu cuidado? Seu basta eu dizer, as pessoas têm que
acompanhamento é com a família? se apropriar do saber, e elas têm
É com os amigos? Com quem? A esse saber, só está meio adormecido.
equipe também teria que ir a campo, É um trabalho interessante de
sair dos muros. desinstitucionalização que depois
ficou, permaneceu na cabeça de
A desinstitucionalização é o caminho, algumas pessoas. Claro que se tu
é a diretriz para que isso aconteça, não der as condições materiais
não é só abrir a porta do hospício e necessárias, os recursos, não basta
dizer agora vai. É criar as condições ter somente o discurso. Isso foi
físicas, as condições materiais para construído junto com o judiciário,
que aquela pessoa tenha condições a Vara de Execução de Penas e
de viver em liberdade. Claro que Medidas Alternativas para haver um
nem sempre a justiça pensa com o compasso, a interdisciplinaridade,
pensamento desinstitucionalizante, a interinstitucionalidade, para
as vezes a justiça é muito objetiva podermos caminhar juntos, o que
e nesse processo em direção à não era uma tarefa fácil, e também
liberdade, existe uma subjetividade não era algo acabado, mas era
a ser sustentada, além do tempo da um caminho. E temos muito para
justiça (cronológico) não ser o tempo construir ainda, pela frente.
do sujeito (lógico). Ocorre que esses
tempos precisam ser ajustados, para A mensagem que fica é de que
podermos dizer “ele não vai sair precisamos todos nos libertar dos
amanhã, porque o medo de sair fez nossos muros para poder caminhar
com que ele tivesse uma crise”, por com o Outro, rumo a liberdade!
exemplo. Mas isso não é para sempre,
ele vai conseguir sair, basta trabalhar
essa confiança no sujeito para se
desinstitucionalizar. E não é um
trabalho que tem início, meio e fim, é
um processo, a desinstitucionalização
é processo, a gente tem que entender
o processo, a caminhada, os avanços e
os recursos necessários.

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