Apostila 4 - Ator e Personagem

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A utilização da acupuntura em medicina veterinária

CURSO
DE
TEATRO
INFANTIL
10

DILEMAS DO ATOR NO TEATRO CONTEMPORÂNEO

No início do ano de 2006, eu e alguns amigos formamos um grupo de estudos


para pesquisar os vários elementos que interferiam no processo de improvisação em dança.
Havíamos nos encontrado nas jams de contato-improvisação realizadas no estúdio da
bailarina e coreógrafa Dudude Hermman, em Belo Horizonte, e queríamos estudar como a
música, o espaço, a intervenção de um texto ou de outro som, objetos e a própria presença
de outros corpos interferiam na criação e realização dos movimentos. Queríamos investigar
como isso podia ser transformado em dança. Durante meses nos encontramos uma vez por
semana para investigar a relação do espaço, da luz e do texto com a maneira como nos
movíamos e interagíamos. Após uma ocupação realizada no Teatro Marília no final desse
ano, intitulada Entulhos, Vazio abarrotado1, decidimos criar um grupo, que recebeu o
nome de Zona de Interferência, e que realizou mais dois espetáculos: De quem é meu
espaço?, em 2007, e Corpos subjetivos em espaços móveis,2 em 2009.
Esses trabalhos com o Zona de Interferência trouxeram vários questionamentos
sobre a maneira como eu concebia o que denomino meu estar-em-cena. Anteriormente,
percebia distinções claras entre os trabalhos que fazia como ator, como dançarino e, de
uma forma esporádica, como performer; mesmo sem serem categorias estanques, uma vez
que enquanto ator eu dançava, e enquanto bailarino utilizava textos ou estruturas de
movimento (partituras corporais) que se aproximavam de personagens, elas eram distintas
e não se misturavam, mesmo quando se aproximavam. Se De quem é meu espaço? foi
criado como um espetáculo de dança-teatro, tanto a intervenção aCerca do espaço como
Corpos subjetivos em espaço móveis embaralharam essas distinções. aCerca foi uma

1
A ocupação, apresentada em outubro de 2006 e ensejada por um edital da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte – o projeto "Improvisões - Improvisações intermídias" –, discutia o excesso de consumo e o modus
vivendi das pessoas nos grandes centros urbanos. O grupo, à época formado por mim, Jardel Silva e Antônio
Henriques – convidou os artistas Maurício Leonard para criar os cenários/ambiências, Sérgio Geléia para a
parte musical, Janaína Starling para os figurinos, e os performers Felipe Carvalho, Ana Gusmão e Patrícia
Siqueira para participarem da cena. A iluminação ficou a meu encargo e na dramaturgia utilizamos
fragmentos de textos de Ítalo Calvino, Caio Fernando Abreu e Fernando Bonassi.
2
Tanto De quem é meu espaço? como Corpos subjetivos em espaço móveis foram pensados e criados
coletivamente, com a participação de todos os integrantes do grupo. No primeiro espetáculo atuavam Daniel
Furtado, Felipe Carvalho, Jardel Sander, Marcelle Louzada e Phillipe Lobo, e no segundo Daniel Furtado,
Felipe Carvalho, Jardel Sander e Bruno Vilela, sendo os vídeos de Fabrício Amador.
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intervenção urbana criada em 2008, durante o processo de ensaio do Corpos Subjetivos.


Criamos cercas individuais – de madeira ou arame (tela) – com as quais saíamos em deriva
pelas ruas, interagindo com as pessoas e questionando a existência das cercas – subjetivas
e objetivas. Já em Corpos subjetivos, continuávamos a discussão da relação entre espaço
público e privado, da subjetividade e dos processos de subjetivação a que estamos afeitos
no nosso cotidiano, nos nossos enfrentamentos e contatos com a metrópole e seus
habitantes que havíamos iniciado em De quem é meu espaço?. O trabalho era mais
performático, pouco nele havia do que ordinariamente percebemos como dança ou teatro,
baseando-se muito na possibilidade de interação entre os atores-performers e o público (era
este que decidia se se movimentava ou não pelo espaço, se assistia a ação de um dos atores
ou de outro, se intervinha ou não etc.), e foi denominado por nós como uma “instalação
performática”. Esse “eu” que interagia com as pessoas no aCerca ou no Corpos
(especialmente na cena inicial, onde eu recebia as pessoas sem me apresentar como um
outro, embora imbuído de uma tarefa precisa – ver adiante, cap. 3), e que tinha um
comportamento distinto daquele que eu tinha no meu cotidiano, configurava-se em um
personagem ou consistia em quê? O que diferenciava meu trabalho enquanto performer do
meu trabalho de ator (à mesma época eu trabalhava com a Cia Forte, como ator e
iluminador) ou como bailarino? O que é que distinguia essas várias formas de estar em
cena?
Ao me fazer essas perguntas me vi diante da necessidade de refletir sobre a
cena teatral na qual estava inserido. É bem sabido que uma das características mais
marcantes do teatro que se faz nesse início do século XXI é justamente o embaralhamento
e o borrar de fronteiras e distinções. Uma cena que diluiu e fundiu gêneros, incorporou o
híbrido e a desterritorialidade, e que, como observou Renato Cohen, passou a trabalhar
com a não-sequencialidade, a escritura disjuntiva, a emissão icônica e o múltiplo. Para ele,

A nova cena está ancorada em alternâncias de fluxos sêmicos e de suportes, o


hipersigno teatral, da mutação, da desterritoriedade, da pulsação do híbrido. O
contemporâneo contempla o múltiplo, a fusão, a diluição de gêneros: trágico,
lírico, épico, dramático; epifania, crueldade e paródia convivem na mesma cena.
(Cohen, 2004:XXV)

Este tipo de teatro, chamado sucessivamente de pós-moderno, pós-dramático


ou performativo, trouxe também uma série de tensionamentos e de indecibilidades, tanto
no que tange a cena e sua estrutura (a sua dramaturgia e os elementos que ela utiliza),
quanto à maneira como o ator pensa, cria e atualiza o seu modo de estar-em-cena, além de
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transformar a relação estabelecida entre ator e espectador, entre palco e plateia. Neste
trabalho nos deteremos justamente na análise de como o ator atualiza e concretiza, a partir
desta nova conjuntura estabelecida pelas mudanças ocorridas na cena teatral, a sua maneira
de “habitar” o palco, os vários estados de atuação que ele assume e os diversos registros
que ele aciona nesse trânsito, pensando esse palco de onde, à primeira vista, muitas vezes
os personagens parecem ter sido banidos. Observaremos que tipo de ator surge a partir das
necessidades que este tipo de teatro traz.

1. A crise (ou a morte?) do personagem

Em 1983 Elinor Fuchs escreveu um artigo de grande repercussão, intitulado


The Death of Character (A Morte do Personagem), onde discutia o estatuto e as
possibilidades dessa entidade chamada personagem dentro da cena teatral pós-moderna
(ver Fuchs, 1996, p. 169-76). Partindo das características do pós-modernismo – o colapso
das fronteiras tradicionais entre culturas, sexos, artes, disciplinas, gêneros, critica e arte,
performance e texto, signo e significado, a absorção do teatro com seus próprios
mecanismos, técnicas e estilos – ela traça um paralelo entre a transição ocorrida na
passagem do Classicismo ao Romantismo, quando o drama “passou da primazia do
Enredo, que Aristóteles chamava a „alma da tragédia‟, para a primazia do personagem” 3 (p.
169I), com a transformação ocorrida na dramaturgia pós Beckett, incluindo aí o trabalho de
vários grupos experimentais do Estados Unidos, em especial os de Richard Foreman, Lee
Breuer e o Mabou Mines, Elizabeth LeCompte e The Wooster Group. Nessa nova
dramaturgia, que incorporou as características pós-modernas, a plateia não está mais
seguindo as relações entre os personagens, mas sim relações entre os vários canais ou
sistemas cênicos (verbais, visuais, sonoros), acompanhando informações esparsas e
fragmentos de personagens que estão dispersos pela cena, onde “o personagem perdeu sua
preeminência com sua completude e foi dissolvido no fluxo dos elementos da
performance” (p. 173II).
Fuchs associa esse “eclipse” ou morte do personagem à própria condição do
sujeito pós-moderno: o colapso de fronteiras que caracteriza este teatro irá borrar "as
antigas distinções entre o self e o mundo, os seres e as coisas” (p. 170III). Diversos
3
Assim como esta, todas as traduções de textos e livros em língua estrangeira são de minha autoria. Os textos
originais encontram-se no fim de cada capítulo.
13

pensadores e teóricos do pós-modernismo observaram como a ideia de um sujeito uno e


estável foi superada pela realidade de uma sociedade em constante transformação. À
imagem de um sujeito unificado, que possui um "sentido de si", contrapôs-se a
fragmentação e o descentramento do sujeito face à impossibilidade de encontrar nas
manifestações culturais algo que assegure sua integridade, levando à percepção ou ao
surgimento de identidades múltiplas. Como observa Stuart Hall, "o sujeito assume
identidades diferentes, em diferentes momentos, identidades que não estão unificadas ao
redor de um eu coerente" (Hall, 2002:13). Se o indivíduo se vê diante de uma
multifacetação da própria imagem, isto não significa, como aponta Jean-François Lyotard,
que haja uma dissolução do “vínculo social”, que indique uma “passagem das
coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos individuais lançados
num absurdo movimento browniano” (Lyotard, 2002:27), mas sim uma complexificação e
uma mobilidade maior das relações sociais:

O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações
mais complexa e mais móvel do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho,
homem ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os “nós” dos circuitos de
comunicação, por ínfimos que sejam. É preferível dizer: colocado nas posições
pelas quais passam mensagens de natureza diversa. E ele não está nunca, mesmo
o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas mensagens que o atravessam
posicionando-o, seja na posição de remetente, destinatário ou referente. (Lyotard,
2002:28).

Na sua análise da transformação ocorrida no pós-modernismo, Fuchs observa


que essa morte do personagem é um fato que já vinha ocorrendo há pelo menos cem anos,
ou seja, desde fins do século XIX (e aqui podemos iniciar um paralelo com a crise do
drama, tal como a formula Peter Szondi, para quem “Enquanto poética do fato (1) presente
(2) e intersubjetivo (3) [sic], o drama entrou em crise por volta do final do século XIX, em
razão da transformação temática que substitui os membros dessa tríade conceitual por
conceitos antitéticos correspondentes”. Szondi, 2001:91)4, e que toma forma concreta em
teatros como os de Richard Foreman e o Ontological-Hysteric Theater, onde “a visão que

4
Em Teoria do Drama Moderno, Szondi discute essa contradição entre forma e conteúdo que o drama
clássico (ou o drama em sua forma clássica) atravessou na virada do século XIX para o XX e as tentativas
que diretores e autores empreenderam para tentar superá-la. Para ele, dramaturgos como Tchecov,
Strindberg, Hauptmann, Ibsen e Maeterlinck destruíam o caráter absoluto da forma clássica do drama,
calcada no fato que ocorre no presente e entre as pessoas do drama, cuja relação intersubjetiva se dá através
do diálogo. Nos dramas de Tchecov, por exemplo, “a vida ativa no presente cede à vida onírica na lembrança
e na utopia. O fato torna-se acessório, e o diálogo, a forma de expressão intersubjetiva, converte-se em
receptáculo de reflexões metodológicas” (Szondi, 2001:91). Para a discussão dessa mudança estilística ver
especialmente as páginas 91-99.
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nós tínhamos da identidade humana desintegrou-se em inquirição nas sentenças isoladas e


nos gestos que podem ser percebidos como objetos” (Fuchs, 1996:172IV). Uma morte que
faz parte da “crise da representação” que vai tomar corpo após a segunda guerra mundial e
que se torna evidente na década de 60, formulada em trabalhos como os de Michel
Foucault (As palavras e as coisas) ou de Roland Barthes (A morte do Autor)5, e está ligada
à superação do moderno, do drama enquanto estrutura, e do ator enquanto portador de
significados, ou daquele que apenas re-presenta diante da plateia.
A forma clássica do drama, que será colocada em questão pela modernidade,
surge, para Szondi, no Renascimento, e exclui de sua forma diversos elementos epicizantes
que eram corriqueiros no teatro, como a presença do coro, o prólogo e o epílogo, assim
como as vozes do autor e do espectador, ausentes desse drama clássico. Assim, tanto as
peça históricas de Shakespeare, quanto as tragédias gregas e boa parte do teatro medieval
(o teatro barroco, os autos) se veem excluídos desse conjunto. Segundo Szondi, no drama
vemos o “domínio absoluto” do diálogo, da comunicação intersubjetiva, que

espelha o fato de que ele [o drama] não conhece senão o que brilha nessa esfera.
Tudo isso mostra que o drama é uma dialética fechada em si mesma, mas livre e
redefinida a todo momento. (...) O drama é absoluto. Para ser relação pura, isto é,
dramática, ele deve ser desligado de tudo o que lhe é externo. Ele não conhece
nada além de si. (...) O dramaturgo está ausente no drama. Ele não fala; ele
institui a conversação. O drama não é escrito, mas posto. (...) O mesmo caráter
absoluto demonstra o drama em relação ao espectador. Assim como a fala
dramática não é expressão do autor. Também não é uma alocução dirigida ao
público. A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade
perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do
espectador pelo drama. (Szondi, 2001:30-31)

Da mesma forma que o Drama se absolutiza nesse momento a que se refere


Szondi, há, como veremos no capítulo 1, uma união entre o ator e o personagem, que
parecem fundir-se em um só: “A arte do ator também está orientada ao drama como um
absoluto. A relação ator-papel de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a
personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático.” (Szondi, 2001:31). É

5
Fuchs descreve seu contato com a teoria crítica francesa (1996, p. 1-2), e sua familiarização com as ideias
de, além de Barthes (que trazia, para que fosse revelado o “ser total da escrita” e pudesse surgir o leitor, a
necessidade da morte do autor) e Foucault (que, nas palavras da pesquisadora americana, anunciava o “fim
do homem”), Lacan (a construção simbólica da subjetividade) Derrida (o ataque a “metafísica da Presença”),
Deleuze e Guatarri (a esquizoanálise), Lyotard (o colapso das “grandes narrativas”), Cixous, Irigaray e
Kristeva (a exposição das construções filosóficas e psicoanalíticas com viés masculino). Para ela, a teoria
pós-estruturalista francesa, articulando os discursos em torno da “crise da representação”, pela qual “um
campo após outro, não apenas literatura, mas o direito, sociologia, antropologia, história, iam cambaleando
nos últimos 20 anos” (p. 2) – portanto desde meados da década de sessenta –, vai fornecer o quadro
intelectual para se pensar o fenômeno cultural e artístico surgido sob a égide do pós-modernismo.
15

justamente essa forma e essa relação que vai ser posta em xeque, originando uma “crise”
que termina com a “morte do personagem”.
Não apenas Fuchs questiona-se sobre essa possível morte: Robert Abirached,
no livro La crise du personnage dans le théâtre moderne, publicado originalmente em
1978, também se perguntará sobre a crise da representação e o possível desaparecimento
do personagem dos palcos. Para ele, o teatro entra numa espécie de “crise endêmica” em
fins do século XIX, com o aguçamento das contradições da nova sociedade industrial6,
colocando em causa a noção de representação, “que parece mais e mais difícil de se ajustar
aos contornos de um mundo em plena ebulição e de um Eu incerto de suas próprias
fronteiras e de sua própria natureza.” (Abirached, 1994:12V) Porém, se para o teórico
francês essa crise é também sinal de sua vitalidade (visto sua capacidade de sobreviver a
ela7), ele vislumbra a possibilidade de seu desaparecimento dos palcos, a partir do
momento que o teatro se dedica a exercícios metalinguísticos, ao confrontar-se com outras
formas de representação (narrativa, poema, lenda, história), e a fragmentos de vida “mais
ou menos brutos”, que podem ser extraídos da vida dos próprios atores, tornando o
personagem “um papel, manejado e remanejado, construído e desconstruído, à livre
disposição do comediante que se procura através dele e mistura aos seus simulacros as
efígies de seu sonho.” (p. 448VI)
O que Abirached percebe como uma possível morte é um paulatino
afastamento de um teatro da tradição aristotélica:

Pode-se aceitar a morte do personagem, sem fraude nem mal-entendidos, e a


chegada de um teatro tão distante da tradição aristotélica que se poderia
encontrar-lhe um outro nome. Que esta arte seja possível e que ela suscite uma
constelação de figuras eficazes, que tratam os atores como signos maleáveis e
fechando sobre eles mesmos o circulo da representação, não se pode pôr em
dúvida quando se vê, para não citar mais que dois exemplos, os espetáculos de
Peter Schumann ou Robert Wilson (...), onde não há nada de comum que certa
ideia de um teatro escrito em um espaço, livre das tutelas e liberado das
referências literárias. (Abirached, 1994:448-9VII)

6
A virada do século XIX para o XX corresponde ao que Frederic Jameson, baseando-se em Ernest Mandel,
chama de segunda fase do capitalismo, a do monopólio: “Essa periodização embasa a tese central do livro de
Mandel, O capitalismo tardio; a saber, que houve três momentos fundamentais no capitalismo, cada um
marcando uma expansão dialética com relação ao estágio anterior, o capitalismo de mercado, o estágio do
monopólio ou do imperialismo, e o nosso, erroneamente chamado de pós-industrial, mas que poderia ser mais
bem designado como o do capital multinacional.” (Jameson, 1997:61).
7
Observando sua capacidade de “renascer a nossos olhos”, Abirached compara o personagem a “este pássaro
fabuloso que retira da morte a fonte de uma nova vida, emergindo sem descanso do fogo onde ele parecia se
consumir”. (...cet oiseau fabuleux qui puise dans sa mort la source d'une vie nouvelle, émergeant sans relâche
du feu où il semblait se consumer.) (Abirached, 1994:439)
16

Esse novo teatro, cujas características e denominação discutiremos a seguir, a


meu ver não conduz exatamente a uma morte, mas, como ocorre em toda crise, leva a
colocação do personagem teatral em outro patamar. Patamar que o distancia do
personagem estruturado nos moldes clássicos do drama, tal como definido por Szondi, e
que vai tensionar ao extremo o que caracterizaria, do ponto de vista do ator, a constituição
de um personagem: a construção de uma identidade narrativa distinta de sua própria
individualidade, de um estar-em-cena que lhe é distinto e pode ser descrito como um
“outro”.

2. Cena pós-moderna, pós-dramática ou performativa?

A transformação da cena teatral, cujas características Renato Cohen


precisamente apontou e reproduzimos acima, vai ser objeto de diversas reflexões desde
meados da década de setenta do século passado, quando começam as discussões sobre o
pós-moderno no âmbito teatral. Vamos observar aqui que as diferentes formas de nomear
essa cena refletem abordagens que dão ênfases a aspectos distintos do fazer teatral.
Falando sobre o conceito de teatro pós-moderno, Patrice Pavis destaca que o
termo não é muito utilizado pela crítica teatral francesa, em parte devido a uma falta de
rigor teórico que percebe em sua definição, não correspondendo “a momentos históricos, a
gêneros e estéticas determinadas” (Pavis, 1999:299), em parte por ser uma espécie de
termo “guarda-chuva”8 utilizado especialmente nas Américas, não se constituindo em uma
ferramenta precisa para a análise da dramaturgia e da encenação. Para ele seria possível,
portanto, apenas elencar uma série de características gerais normalmente vinculadas à
noção da encenação pós-moderna, a despeito de seu pouco valor teórico. Assim, a
encenação pós-moderna

Obedece frequentemente a vários princípios contraditórios, não receia combinar


estilos díspares, nem apresentar colagens de estilos de atuação heterogêneos. (...)
Contém em si momentos e procedimentos nos quais tudo parece desconstruir-se
e desfazer-se entre os dedos de quem quer que pense deter os cordéis e as chaves
do espetáculo. (Pavis, 1999:299)

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Em suas palavras, o pós-moderno é “um cômodo rótulo para descrever um estilo de atuação, uma atitude de
produção e de recepção, uma maneira „atual‟ de fazer teatro (grosso modo, desde os anos sessenta, após o
teatro do absurdo e o teatro existencialista, com a emergência da performance, do happening, da chamada
dança pós-moderna e da dança-teatro.” (Pavis, 1999:299).
17

No que tange ao trabalho do ator, este não “representa uma história e uma
personagem”, ele se apresenta enquanto indivíduo e artista, colocando no palco pulsões e
afetos antes que signos, aproximando-se de uma ação performática. Enquanto encenação, o
teatro pós-moderno caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: a valorização do polo
da recepção e da percepção (o espectador é o encarregado de organizar impressões e
conferir alguma coerência à obra) e a autorreferencialidade, já que, “ocorrendo tudo em um
espaço-tempo, sem hierarquia entre os componentes, sem lógica discursiva assumida por
um texto de referência, a obra pós-moderna não tem outra referencia que não ela mesma.”
(Pavis, 1999:299).
Buscando traçar um marco teórico e estético consistente, Hans-Thies Lehmann
escreve em 1999 o livro Teatro pós-dramático (Postdramatiches Theater), identificando
haver um número considerável de realizadores teatrais que se caracterizam por um uso dos
signos teatrais “profundamente diferente”, e pela criação de um texto teatral “não mais
dramático” (Lehmann, 2007:19). Lehmann opõe o conceito de “pós-dramático” ao de
“pós-moderno” (que ele considera um termo que remete apenas a uma categoria temporal),
considerando que a penetração das mídias em todos os setores da sociedade, incluindo aí o
teatro, vai provocar um “modo de discurso teatral novo e multiforme”. Para o teórico
alemão o que está em jogo é a superação da forma dramática 9, e a possibilidade de um
teatro que se situe para “além” do drama:

Se o curso de uma história, com sua lógica interna não mais constitui o elemento
central, se a composição não é mais sentida como uma qualidade organizadora,
mas como uma “manufatura” enxertada artificialmente, como lógica de ação
meramente aparente, que serve apenas ao clichê, como Adorno abominava nos
produtos da cultura industrial, então o teatro se encontra diante da questão das
possibilidades para além do drama, não necessariamente além da modernidade.
(Lehmann, 2007:32-33)

9
Lembrando que Lehmann usa um conceito de Drama mais expandido que o de Szondi, incorporando a
dramaturgia épica de Brecht. Como diz Sérgio de Carvalho, na apresentação da edição brasileira do livro de
Lehmann, “a superação épica empreendida por um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena
mudança qualitativa em relação à tradição hegemônica do teatro, baseada no texto composto por diálogo
entre figuras. Para dar sustentação à sua tese polêmica, o autor faz uso de um conceito expandido de „drama‟.
Não se trata mais do drama burguês, baseado no diálogo subjetivo e na forma de um presente absoluto e
contínuo, apresentado sem mediações externas por meio de figuras que agem de acordo com uma vontade
autodeterminada. Dramático, para Lehmann, é todo teatro baseado num texto com fábula, em que a cena
teatral serve de suporte a um mundo ficcional: “Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do
modelo „drama‟” [p.26]. Com esse conceito de drama, que reúne Eurípedes, Moliére, Ibsen e Brecht, o teatro
épico não mais poderia ser considerado um salto, porque nele os deslocamentos da dinâmica interpessoal –
por meio de coros, apartes, narrativas, etc. – não chegariam a subverter a vivência ficcional.” (in Lehmann,
2007:9-10)
18

Mesmo o estranhamento causado pelas práticas teatrais do início do século


passado, como o artificialismo, as convenções e abstrações propostas por Meyerhold, não
rompiam com o universo ficcional proposto pelo texto e, em alguma maneira, continuavam
subordinados à representação e à mimese. Assim, não é suficiente a presença de elementos
estilísticos que caracterizam tanto várias experiências dessas vanguardas como outras
experimentações surgidas após a segunda guerra mundial. Será o uso desses recursos que
caracterizará essa nova forma teatral, já que, no teatro pós-dramático “as linguagens
formais desenvolvidas desde as vanguardas históricas se tornam um arsenal de gestos
expressivos que lhe servem para dar uma resposta à comunicação social modificada sob as
condições da ampla difusão da tecnologia de informação.” (Lehmann, 2007:27). Como
explica Lehmann, um mesmo fato estilístico pode ser utilizado tanto no contexto estético
de uma obra dramática como de uma pós-dramática, e esta obra será considerada uma ou
outra dependendo da “constelação de elementos” que se lhe aglutinem (cf. p. 26-31).
Assim, não é a fragmentação da narrativa, a heterogeneidade de estilos ou a diluição da
fronteira entre gêneros, per si, que caracterizará a obra como pós-dramática, mas o arranjo
de seus elementos estéticos e dramatúrgicos. A sua simples presença atestaria não uma
quebra com a forma dramática, ou mesmo um “afastamento significativo da modernidade”
– que validaria falarmos em teatro pós-moderno – mas apenas um distanciamento de
“tradições da forma dramática” (p. 32)10.
Operando além do drama, e, temporalmente falando, após a configuração do
drama enquanto forma teatral, o pós-dramático, especialmente na sua aproximação com a
Arte da Performance (ver adiante, cap. 2), frequentemente vai exigir do ator uma nova
postura cênica, e consequentemente, no seu método de trabalho. Para Lehmann, “muitas
vezes o ator do teatro pós-dramático não é mais alguém que representa um papel, mas um
performer que oferece sua presença em cena para a contemplação” (p. 224). O status
diferenciado que assume o corpo do ator, sua irradiação, e a aproximação do gesto do ator

10
Como Pavis, Lehmann critica o uso da denominação teatro pós-moderno, não apenas pela restrição já
apontada, de ser um conceito apenas “epocal” – mas por tentar apreender um campo extremamente vasto,
terminando por se tornar uma listagem de características que por vezes oferecem apenas “meras palavras-
chaves, que necessariamente permanecem muito genéricas”. Assim, podemos observar “ambiguidade,
celebração da arte como ficção, celebração do teatro como processo, descontinuidade, heterogeneidade, não-
textualidade, pluralismo, diversidade de códigos, subversão, multilocalização, perversão, o ator como tema e
figura principal, deformação, o texto como um valor autoritário e arcaico, a performance como terceiro
elemento entre o drama e o teatro, o caráter antimimético, a rejeição da interpretação” (Lehmann, 2007:30-
31), como típicos do teatro pós-moderno, sem chegarmos a uma definição do que seria o discurso pós-
moderno.
19

do gesto de “auto-representação” do performer, caracterizam o ator nesse teatro e abrem as


portas para a discussão da performatividade da ação do ator.
Quando coloca a noção de Teatro Performativo, Josette Féral entende que os
conceitos de performance e performatividade estão no centro deste teatro que Lehmann
chama de pós-dramático e outros teóricos chamam de pós-moderno. Partindo do conceito
ampliado de performance que Richard Schechner introduz nos estudos teatrais (que
discutiremos com mais vagar no cap. 2), e que postula que todas as ações humanas podem
ser entendidas, vistas ou examinadas “como se fossem performance”11, uma vez que são
frutos de um comportamento humano “restaurado”, e considerando ainda a penetração da
Arte da Performance, de sua estética e de seus métodos de trabalho no seio deste teatro,
Féral irá contrapor a noção de teatro performativo à de pós-dramático.
Para a pesquisadora canadense trata-se de colocar em evidência tanto a ideia de
pensar as ações humanas em termos de uma performance – ritualística ou cotidiana –
quanto de perceber o quanto a Performance Art influenciou a prática teatral como um todo
especialmente a partir dos anos 60, quando a Arte conceitual e os happenings tornaram-se
frequentes na Europa e Estados Unidos. Enquanto Lehmann destaca o aspecto
dramatúrgico desse novo teatro, Féral enfatiza uma nova concepção para a ação realizada
em cena pelo ator. Os elementos que fundam o teatro performativo –

transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação


cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo
centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma
receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos
das percepções próprias da tecnologia... (Féral, 2008:198)

– e que não diferem essencialmente daqueles arrolados por Lehmann e mesmo por Pavis,
são abordados e relacionados tendo em vista esta ênfase. A noção de performatividade –
lembrando que a ação cênica, o “fazer”, é, de fato, a base de todo e qualquer trabalho do
ator, seja qual for a filiação estética a que ele esteja vinculado – é posta aqui no sentido de
que a ação do ator torna-se “primordial”, valorizando-a “em si”, e não pelo seu valor de
representação ou pelo sentido mimético que possa vir a adquirir. Nos exemplos que cita,
Féral (cf. 2008, p. 201-204) destaca que

11
Como explica Schechner “Tratar o objeto, obra ou produto como performance significa investigar o que
essa coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com outros objetos e seres.”
(Schechner, 2003b:25)
20

1. As obras performáticas não são verdadeiras nem falsas. Elas “simplesmente


sobrevêm”, isto, é, elas acontecem, tornam-se evento, e, mesmo com a
possibilidade – ou necessidade – que o teatro traz, de sua reapresentação, são
tratadas em sua unicidade, como um acontecimento único (reapresentável,
porém não repetível). Destaca-se assim o processo, o aspecto lúdico e o
encontro (atores e espectadores) que o evento propõe e instaura;
2. A performatividade do ator joga as ações que ele realiza para “além” ou fora
de um personagem; o ator é confrontado com estas ações pelo seu sentido não-
representativo, pela sua execução em si, e não apenas por sua remissão ao
universo ficcional instaurado pela cena.

Assim, o que Féral chama de “obra performativa” tem como pontos centrais
tanto o caráter de descrição dos eventos e fatos que a sua dramaturgia propõe, quanto as
ações realizadas em cena pelo performer. Sintomaticamente, Féral fala do “objetivo do
performer”, em como o “performer instala a ambiguidade”, na “„vivacidade‟ (liveness) dos
performers” etc.; ou seja, para ela, o ator do teatro performativo é um performer, evocando
sua “presença fortemente afirmada que pode ir até uma situação de risco real e implica um
gosto pelo risco” (Féral, 2008:207). Vamos abordar essa aproximação entre o conceito do
ator e do performer com mais vagar no capítulo 412.
O teatro que iremos analisar e discutir ao longo desse trabalho se insere dentro
do espectro que Pavis chama de teatro pós-moderno, Lehmann de pós-dramático e Féral de
performativo. Aqui, iremos nos referir a ele como Teatro Performativo, por enfatizar a
ação que o ator realiza em cena, sua atuação (seu desempenho, em inglês, a sua
performance). Apesar de esporadicamente nos referirmos ao ator que desempenha seus
papeis nesse teatro como performer, usaremos preferencialmente o termo “ator”, pois ele
nos remete diretamente ao que é fundamental na cena teatral: a ação executada, tenha ou
não um caráter representativo. E, sintetizando o trabalho do ator no teatro performativo,
Féral destaca o foco colocado na sua presença em cena:

... o ator é chamado a “fazer” (doing), a „estar presente‟, a assumir os riscos e a


mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras, a afirmar a
performatividade do processo. A atenção do espectador se coloca na execução
do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução
permanente. Uma estética da presença se instaura. (Féral, 2008:209)

12
Ver também o capítulo 3, item 3.3.
21

3. O personagem e o percurso dessa tese

O que podemos entender como Personagem dentro da realidade teatral? Como


iremos observar ao longo dessa pesquisa, há uma trajetória no uso do termo personagem,
que ora se aproxima, ora se distancia da pessoa do ator, ora se vincula diretamente ao texto
literário, ora dele se afasta. Enquanto vinculado a um texto literário, o personagem tanto
pode ser identificado a um indivíduo quanto a uma ideia abstrata, animais, entidades ou
mesmo objetos; de qualquer forma, mesmo quando não recebe o nome de uma pessoa, há
um texto que deve ser dito pelo ator, ao qual são atribuídas palavras que ele deve dizer,
além de ações a serem executadas em cena, como muitas vezes indicam as rubricas do
autor; é possível, embora raramente ocorra, que este personagem não se expresse por
palavras, e o autor dramático lhe confira apenas os movimentos, gestos e atos que deve
realizar (como ocorre com o personagem Katrin, a filha muda de Mãe Coragem na peça
homônima de Brecht, ou nos Atos sem palavras, de Beckett). Essas palavras e ações dadas
pelo texto dramatúrgico propiciam ao personagem de teatro uma autonomia, inclusive em
relação à própria peça escrita, e podemos imaginá-lo vivendo outras situações e realizando
outras ações que não aquelas configuradas e definidas pelo autor do drama; visualizamos
ainda a possibilidade dele ser concretizado por atores diferentes, sincrônica ou
diacronicamente. O personagem se apresenta aí claramente como um “outro” do ator,
mesmo quando não é percebido como um indivíduo. Sabemos que nos primórdios do teatro
ocidental o personagem teatral não era identificado a uma pessoa, mas sim à Máscara que o
ator portava, e o Papel abarcava as ações realizadas por este em cena; o ator recebia não só
o texto a ser dito, era também instruído sobre sua atuação: “para os gregos e romanos, o
papel do ator era um rolo de madeira em torno do qual se enrolava um pergaminho
contendo o texto a ser dito e as instruções de sua interpretação.” (Pavis, 2009:274-5).
Confinado ao texto teatral, o personagem se apresenta distinto daquele que atua
e de quem escreve, não se confunde nem com o autor do drama nem com o ator; é um “ser
de papel”, que pode ser retomado indefinidamente por leitores e atores. Ele faz parte do
texto literário, que apresenta planos ou camadas que se sobrepõem umas às outras, a
começar da realidade dos tipos impressos no papel, e que necessitam da atividade do leitor
para atualizá-las e concretizá-la13. Como explica Anatol Rosenfeld, “todo texto, artístico ou

13
Falando sobre a estrutura da obra literária, Anatol Rosenfeld enumera as seguintes camadas, irreais
(“irreais por não terem autonomia ôntica”, necessitando do leitor para atualizá-las): “a dos fonemas e das
22

não, ficcional ou não, projeta tais contextos objectuais „puramente intencionais‟, que
podem referir-se ou não a objetos onticamente autônomos” (Rosenfeld, 1987:15).
Constituindo-se assim como uma projeção, uma “objectualidade imaginária”, o
personagem literário carrega essa marca de ficcionalidade: suas ações e sua presença são
tomadas como um discurso “não-sério”, um “quase-juízo”, na expressão de Roman
Ingarden.
A matriz textual domina praticamente toda a discussão que se faz em torno do
personagem, e está centrada ordinariamente tanto no maior ou menor grau de abstração que
ele apresenta (na proximidade ou afastamento de sua caracterização enquanto indivíduo),
quanto na função que ele exerce em cena, dentro da fábula ou da narrativa. Vemos em
Robert Abirached (1994), Patrice Pavis (1999) e Anne Ubersfeld (2005) as marcas dessa
abordagem: Pavis, por exemplo, afirma que “o estatuto da personagem de teatro é ser
encarnada pelo ator, não mais se limitar a esse ser de papel sobre o qual se conhece o
nome, a extensão das falas e algumas informações diretas (por ela e por outras figuras) ou
indiretas (pelo autor)” (Pavis, 1999:288). O personagem está pré-figurado no texto
dramatúrgico, e o trabalho do ator é “encarnar” esse ser de papel, concretizá-lo em cena
através de suas ações. Quando Abirached diz que o personagem teatral está “esquartejado”
e Ubersfeld constata que ele foi “explodido”14, o que está em jogo é essencialmente a
questão de que o texto teatral não mais apresenta esse personagem como um indivíduo
autônomo, unificado e/ou dotado de uma consciência de si mesmo, onde se possam
constatar preceitos dramatúrgicos extremamente caros à tradição ocidental, como a
coerência nas suas ações ou numa possível psicologia que a identificaria como um humano
(ver adiante, capítulo 3, a discussão sobre o uso do termo actante no lugar de personagem).
Parece-nos claro, no entanto, que o personagem teatral existe tanto fora da
matriz textual (a começar pelo clássico exemplo dos tipos da Commedia del’Arte), quanto

configurações sonoras (orações), „percebidas‟ apenas pelo ouvido interior, quando se lê o texto, mas
diretamente dadas quando o texto é recitado; a das unidades significativas de vários graus, constituídas pelas
orações; graças a estas unidades, são „projetadas‟, através de determinadas operações lógicas, „contextos
objectuais‟ (Sachverhalte), isto é, certas relações atribuídas aos objetos e suas qualidades. Esses contextos
objectuais determinam as „objectualidades‟, por exemplo, as teses de uma obra científica ou o mundo
imaginário de um poema ou romance”. (Rosenfeld,, 1987:13).
14
Podemos notar na fala desses autores um tensionamento entre o texto enquanto potência e a sua
concretização no corpo do ator: Abirached observa que “Entre a palavra e o corpo, entre a potência e o ato,
entre o sonho e o real, não é suficiente dizer que o personagem de teatro está esquartejado.” (Entre le mot et
le corps, entre la puissance et l'acte, entre le songe et le réel, il ne suffit pas de dire que le personnage de
théâtre est écartelé.) (Abirached, 1994:07), e Ubersfeld comenta que “Dividida, explodida, distribuída em
vários intérpretes, questionada em seu discurso, reduplicada, dispersa, não há violência que a escritura teatral
ou a encenação contemporânea não lhe imponham” (Ubersfeld, 2005:69).
23

distanciados da figuração de uma pessoa (há diversas dramaturgias, dos autos medievais a
Beckett, Gertrude Stein e Heiner Müller, que nos apresentam seres ficcionais que não
recebem um nome, não são apresentados como nem possuem os traços psicológicos ou de
individuação, a “consciência de si” (Pavis)) que permita essa identificação a um ser
humano. Se nos ativermos ao teatro enquanto evento, que requer o compartilhamento com
a plateia para se realizar, o personagem só adquire existência na relação entre ator e
público. Em termos estritos, essa existência se configura a partir do corpo e voz do ator, e,
mesmo no caso de um texto escrito que necessite ser atualizado por uma montagem cênica,
o personagem “realiza-se”, na cena, no “convívio teatral”, utilizando a expressão de Jorge
Dubatti (2012). Levando em conta o foco do nosso trabalho, muito do que o ator realiza em
cena não está contido em um texto dramatúrgico que possui uma existência prévia ao
trabalho de construção da encenação. O que iremos discutir aqui será o comportamento do
ator em cena, a maneira como as suas ações concretizam uma “alteridade”, o “outro” do
ator, algo ou alguém que possui uma dimensão e uma identidade diversa da sua.
Nesse percurso, observaremos no capítulo 1 como o personagem foi
conceituado na dramaturgia clássica e no teatro burguês, nesse processo de individuação
que leva da máscara até a percepção do personagem como um ser humano de carne e osso,
onde o trabalho do ator se volta para a realidade vivida pelo personagem dentro do
contexto dado pela peça, partindo de Aristóteles, passando por Diderot até chegarmos a
Stanislavski. Ainda nesse capítulo veremos como realizadores como Meyerhold, Brecht e
Grotowski desestabilizaram a noção clássica de personagem, levando o trabalho do ator até
um limite onde essa noção de alteridade é questionada ou ameaça desaparecer.
Ao longo do segundo capítulo vamos nos deter na análise de processos e
manifestações artísticas que tiveram um grande desenvolvimento na segunda metade do
século passado, em especial a Arte da Performance e a Dança-Teatro. Nosso foco estará
em observar como esses métodos foram incorporados ao cotidiano do ator e modificaram a
forma como ele trabalha, percebendo como as tarefas e ações que o ator executa em cena
adquirem caráter performativo, realçando o jogo e a ludicidade dessas ações.
Ressaltaremos esse percurso, que se inicia com o desdobramento do método das ações
físicas de Stanislavski até chegarmos ao Teatro Físico e a fusão do ator com o performer.
Além disso, há a própria transformação do ator em protagonista dessa cena, assumindo sua
identidade no palco e fazendo de sua própria história material para a cena e para a troca
24

com o espectador, numa trajetória que parte dos trabalhos do Living Theatre, até os
biodramas, como conceitua Óscar Cornago (2005).
Em seguida abordaremos algumas questões teóricas surgidas a partir da
transformação da cena e, baseando-nos em Erika Fischer-Lichte e Josette Féral,
discutiremos especialmente o tensionamento entre os planos da representação e da
presentação e como o enquadramento cênico afeta o estar-em-cena do ator. A construção
do depoimento pessoal será retomada a partir dessas abordagens, e observaremos como, ao
apresentar-se como si mesmo diante do espectador, o ator tem de escolher que aspecto da
sua vida e da sua personalidade quer exibir, e como esta exibição aproxima-se da criação
de uma persona, que, se não é ficcional, artificializa a própria presença. Escolhemos
alguns trabalhos que, a nosso ver, são representativos dessas transformações ocorridas na
cena contemporânea, para fazer uma observação mais minuciosa dos procedimentos
empregados pelos atores e na forma como eles se comportam em cena: além dos
espetáculos do Zona de Interferência, nos deteremos em Não desperdice sua única vida
(figura 1) espetáculo montado em 2005 pela Cia. Luna Lunera15, Estamira – Beira do
mundo, criado em 2011 com direção de Beatriz Sayad e interpretação de Dani Barros16, e
O Fantástico circo-teatro de um homem só (figura 2) e Clube do Fracasso (figura 3),
ambos da Cia Rústica17. Estes trabalhos trazem novas perspectivas e desafios para o ator:
ao fazerem uso de material pessoal do ator, fazendo com que ele conte fatos e opiniões
pessoais em cena (como nas peças da Cia Rústica e em Estamira), e ao trazerem para o
palco o depoimento pessoal em um viés autobiográfico (especialmente em Não
desperdice..., mas também no Fantástico circo-teatro.... e em Estamira), esses espetáculos
apresentam um tipo de encenação e dramaturgia que nos permite discutir como o ator se
relaciona com esse tipo de material, e qual a relação que ele estabelecem com o

15
O grupo foi criado em 2001, em Belo Horizonte, e o espetáculo, dirigido por Cida Falabella, tinha vários
sub-títulos, entre eles “Auto-biográfico”, além de “As patinadoras do Planeta Dragão, ou Seis atores à
procura do seu personagem, ou O mundo das precariedades humanas ou Nenhuma das opções anteriores”.
Como diz o site do grupo, o espetáculo mesclava “relatos autobiográficos dos atores, crônicas, obras
literárias, matérias jornalísticas, classificados de oportunidades, revistas e programas televisivos”, que
“instigaram os motes das improvisações sobre as contradições, precariedades e ironias cotidianas” (In
http://cia-lunalunera.blogspot.com/).
16
A montagem carioca, com dramaturgia de Beatriz Sayad e Dani Barros, inspirada no documentário
Estamira, de Marcos Prado (2004), sobre a catadora de lixo Estamira Gomes de Souza (1941-1911), rendeu a
Dani Barros diversos prêmios de melhor atriz, entre eles o Shell, em 2012.
17
A Cia Rústica foi criada em 2004, em Porto Alegre, com o objetivo de “criar uma zona autônoma de
trabalho entre artistas plurais” (in www.ciarustica.com). O Clube do fracasso, “um olhar festivo sobre o erro
e a fragilidade humana”, estreou em 2010, e O fantástico circo-teatro de um homem só, solo com o ator
Heinz Limaverde, que explorava o universo dos pequenos circos que circulam pelo interior do Brasil, em
2011, todos com direção de Patrícia Fagundes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
25

personagem construído a partir da história pessoal do ator; além disso, assim como os
trabalhos do Zona de interferência, eles propõem novas formas de relação com o
espectador, possibilitando ainda a discussão da utilização, pelo ator, de uma persona em
cena.
Finalmente, veremos no capítulo 4 como se posicionam os atores face a essas
transformações no seu método de trabalho e na forma como eles se apresentam em cena.
Para tal entrevistamos Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva, da Cia Luna Lunera, Heinz
Limaverde e Patrícia Fagundes, respectivamente ator e diretora da Cia Rústica, e Dani
Barros. Discutiremos, a partir da escala proposta por Michael Kirby (1987), a aproximação
ou o distanciamento do trabalho do ator de uma representação (acting), e o trânsito desses
atores entre os vários registros de atuação aos quais eles têm de recorrer no seu trabalho.
As observações e questões teóricas que levantamos ao longo da pesquisa serão
confrontadas com a visão e a percepção que esses criadores têm do seu trabalho, da sua
presença em cena e das ações que eles executam no palco,
A partir desse confronto traçaremos nossas considerações finais, levando em
conta não apenas a discussão teórica empreendida, mas a forma como os atores concebem
e realizam o seu estar-em-cena nesse início de milênio, enfatizando o que é para nós o
cerne desse trabalho: retomar, do ponto de vista do ator, discussões recorrentes sobre a
cena que se instaurou nos palcos a partir do último quartel do século XX, trazendo para o
centro das discussões a percepção daqueles que constituem um dos eixos do fazer teatral,
mas que, excetuando-se as discussões sobre metodologias de trabalho ou os relatos de
processos (frequentemente de cunho autobiográfico), poucas vezes têm suas vozes como
foco de estudos acadêmicos.
Anexo aos elementos textuais dessa tese encontra-se a transcrição das
entrevistas realizadas com os atores.

I
“…drama passed from the primacy of Plot, which Aristotle called the “soul of tragedy”, to the primacy of
Character…”
II
“character has lost its pre-eminence whit its wholeness; it has dissolved into the flux of performance
elements.”
III
“…blurring the old distinctions between self and world, being and thing;”.
26

IV
“…the vision that what we have taken to be human identity disintegrates on scrutiny into discrete
sentences and gestures that can be perceived as objects.”
V
qu'il apparaît de plus en plus difficile d'ajuster aux contours d'un monde en plein bouleversement et d'un
moi incertain de ses propres frontières et de sa propre nature.
VI
Le texte est ici un terrain archéologique ouvert, où public, metteur en scène et acteurs font incursions et
excursions; le personnage est un rôle, manié at remanié, construit et déconstruit, à la libre disposition du
comédien qui se cherche à travers lui et mêle à ses simulacres les effigies de son rêve.
VII
il peut seul faire accepter la mort du personnage, sans fraude ni malentendu, et l'avènement d'un théâtre si
éloigné de la tradition aristotélicienne qu'il faudrait lui trouver un autre nom. Que cet art soit possible et qu'il
suscite des constellations de figures efficaces, em traitant les acteurs comme des signes ductiles et en fermant
sur lui-même le cercle de la représentation, on ne peut plus en douter quand on a vu, pour ne citer que deux
exemples, les spectacles de Peter Schumann et de Robert Wilson (...), il n'y a de commun que cette idée d'un
théâtre écrit dans l'espace, affranchi des tutelles et libéré des références littéraires.
28

O ATOR E O PERSONAGEM

Iniciemos com uma questão: O Personagem é uma máscara que o ator veste?
A palavra latina Persona indicava inicialmente a máscara usada pelo ator,
através da qual a sua voz devia ressoar (persona deriva de per sonare, soar através de). Por
extensão, a palavra passou a designar não apenas o personagem representado pelo ator,
mas também as “máscaras” usadas pelas pessoas em sua vida social: assumir uma persona
significa, coloquialmente, assumir um papel social, uma identidade, correspondente ao
status social, ao trabalho, profissão, a maneira encontrada por cada um para se apresentar
ao mundo e se relacionar com os outros. É, de certa forma, uma adaptação consciente do
indivíduo para fazer face ao que o mundo lhe exige, tornando-se uma espécie de “arquétipo
social” usado pela pessoa em sua vida pública e nos vários papéis sociais que ela deve
desempenhar.
A identificação de uma pessoa com a sua persona, com o papel social
(advogado, operário, político, médico, professor), ou de gênero (homem, mulher, e aqueles
decorrentes deste, como mãe, pai etc.) que ela desempenha, pode tornar-se patológica:

A identificação com a persona leva a uma forma de rigidez ou fragilidade


psicológicas; o Inconsciente tenderá, antes, a romper com ímpeto na consciência,
do que emergir de forma controlável. O Ego, quando identificado com a persona,
é capaz somente de uma orientação externa. É cego para eventos internos, e daí,
incapaz de responder a eles. Resulta ser possível permanecer inconsciente da
própria persona. (Dicionário Crítico de Análise Junguiana)

Para o ator desempenhar seus papéis no palco, não há como permanecer


inconsciente da persona assumida em cena – se o fizer, assumirá o risco de desenvolver
um estado patológico. Se as pantomimas de caça, os rituais e os atos xamãnicos
desenrolam-se justamente baseados nessa imbricação do executante com o cerimonial
instituído, a prática do ator se baseia na dissociação entre o que é representado e sua
persona individual (ou uma das personas que ele assume na sua vida).
Vestir a máscara, encarnar um papel, representar um tipo, viver o personagem,
todas são formas de expressão que indicam sempre uma relação do ator com um outro,
distinto da pessoa que lhe dá forma no palco, um outro a que são atribuídas características
29

específicas, físicas e/ou de temperamento, e que, até bem pouco tempo, remetia a um
tempo e espaço distintos do aqui/agora da representação. O palco, a cena, configurava um
espaço que não se confundia com espaço real onde se encontrava a plateia, e o seu tempo
não era o do cotidiano, era o do ritual (mítico) ou da ficção: “O xamã que é o porta-voz do
deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz à vida a obra do poeta
– todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de uma outra realidade, mais
verdadeira”. (Berthold, 2008:01).
O ator, aí, é “um ser que não é o próprio”, que é o Hipócrita, “que corresponde
ao substantivo grego hipocrités, enquanto o verbo hipocrinestai significa „representar um
personagem‟” (Duvignaud, 1972:13). Era o encarregado de dar “vida” a essa outra
realidade, criando com seu corpo esse espaço-tempo onde a ficção se tornava visível,
trajando as máscaras que identificavam os personagens. Esse outro, o personagem, como o
ator o vestia?

1.1 - O personagem na dramaturgia clássica

Os ritos e cerimônias que existiram em praticamente todas as sociedades hoje


chamadas de “primitivas” normalmente se utilizavam de máscaras e danças, recursos que
foram absorvidas pelas manifestações teatrais (ver Berthold, 2008, p. 7-103). Algumas
dessas manifestações desenvolveram formas que se assemelham ao modelo de teatro
surgido na Grécia – como, por exemplo, na Mesopotâmia1, ou na Índia2 –, e que deram
origem ao teatro europeu, mas que propõem relações (especialmente entre o ator e o que
ele deve representar em cena) extremamente diferentes.
No teatro ocidental, a partir da criação dramatúrgica e cênica empreendida
pelos gregos, o ator e o personagem por ele interpretado assumiram características
específicas. Discutindo a relação existente entre o personagem teatral criado pelos
dramaturgos na Europa e o ator que o representa em cena, Robert Abirached, percebe que

1
“As disputas divinas dos sumérios possuem um caráter definitivamente teatral (...) Em forma e conteúdo, os
diálogos sumérios consistem na apresentação de cada personagem, a seu turno, exaltando seus próprios
méritos e subestimando os do outro” (Berthold, 2008:17).
2
“Enquanto os dançarinos rituais honravam os deuses, houve em todas as épocas cantores, dançarinos e
mímicos ambulantes que entretinham o povo com suas apresentações por uma gratificação modesta.”
(Berthold, 2008:32). Para os hindus, “dança e atuação teatral são conceitualmente uma coisa só.” (idem,
p.36).
30

aquele existe numa espécie de “zona intermediária”, como uma projeção, resultado de uma
alquimia mental e física cujo resultado o ator oferece ao público. Assim o personagem é
algo que se estabelece entre o texto do dramaturgo e o corpo e a pessoa do ator, entre o que
é imaginado e o real, sendo, portanto, pensada como “uma figura saída da realidade e como
uma entidade autônoma que se move num espaço ao mesmo tempo concreto e fictício”
(Abirached, 1994:10I).
A retórica latina, ao falar do personagem, distingue três termos distintos, que
traduzem conceitos diferentes: Persona, Character e Typus. O primeiro pode ser pensado
como algo que se interpõe entre o homem e o mundo, o segundo como marcas deixadas
pelo real e que produzem um efeito de realidade, e o último como a presença de um padrão
e de um modelo fundador (Cf. Abirached, 1994:17). Esses conceitos são aproximações
metafóricas que revelam abordagens diferentes e transformações na concepção e na forma
de apreensão do que chamamos de personagem teatral.
Tomemos inicialmente a máscara (Persona). Por um lado, não podemos deixar
de considerar que a máscara possuía originalmente um estatuto diferente daquele que
adquirirá depois no teatro, um poder mágico. Ela concedia àquele que a usava a
identificação com uma divindade, “um poder mágico capaz de mudar aquele que a leva”
(RUM, 1964:355). A máscara mágica transferia ao seu portador os poderes dos demônios,
servindo ao mesmo tempo para atraí-los, pacificando-os, como também para atemorizá-los.
Por outro lado, para os gregos, a máscara3 que o ator usava definia o
personagem, o seu caráter, permitindo que a plateia identificasse o tipo representado pelo
ator. Quando Téspis, na Grande Dionisíaca de Atenas em 534 a.C., destaca-se do coro e,
como um solista, usa “uma máscara de linho com os traços de um rosto humano, visível à
distância por destacar-se do coro de sátiros, com suas tangas felpudas e cauda de cavalo”
(Berthold, 2008:105), ele cria a figura do hypokrités (respondedor), marcando o
surgimento do ator. E, quando seu discípulo Frínico de Atenas amplia a função desse
respondedor, “investindo-o de um duplo papel e fazendo-o aparecer com uma máscara
masculina e feminina, alternadamente” (p. 107), isto não apenas significava que o ator

3
Na Grécia, a máscara teatral era formada por uma carcaça de tela ou de madeira, sobre a qual se estendia
uma camada de gesso, que se modelava ou pintava. Cobria o rosto e parte do crânio, e dela pendia uma
cabeleira longa ou curta, ou ainda uma barba. A cabeleira era, por vezes, coberta por um chapéu, quando se
tratava de um viajante, ou por uma ponta do himácio, para as mulheres, quando andavam fora de casa. Os
cabelos eram presos por uma rede ou por uma faixa frontal chamada mitra. À máscara estava ligado o onkos
espécie de apêndice para elevar a fronte. (FREIRE, 1985:89)
31

deveria fazer várias entradas e saídas de cena, para trocar o figurino e a máscara, mas
evidenciava uma distância entre o que era realizado em cena (agora não apenas uma
“declamação”) e a pessoa do ator.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que a máscara, por um lado, vinculava-se ao
culto do deus, por outro ela se incumbia da transformação do ator em personagem.
Passando ao largo da discussão sobre a relação do culto de Dioniso com o surgimento do
teatro como uma arte, é clara a ligação da máscara teatral com as máscaras cultuais usadas
pelos devotos nas festas e nos santuários em honra ao deus. Albin Lesky lembra que era
justamente no culto de Dioniso que a máscara desempenhava papel mais relevante. Nele, a
máscara do deus “pendente de um mastro, era objeto de culto, de tal modo que é possível
mesmo falar de um deus-máscara; seus adoradores usavam máscaras, entre as quais a
função maior cabia aos sátiros, e máscaras desse tipo eram levadas a seus santuários como
oferendas” (Lesky, 1976:49).
Na máscara se encontra “o elemento de transformação em que se baseia a
essência da representação dramática” (p. 49)4. Através do seu uso, o ator continuava sendo
servo da divindade, e a máscara, uma oferenda a ela. Mas há um longo processo que leva
das primeiras máscaras animalescas até as máscaras altamente diferenciadas e expressivas
que encontramos à época da Comédia Baixa.
J. P. Vernant e Fr. Frontisi-Ducroux destacam que a presença de máscaras
cultuais na Grécia antiga representa, em suas manifestações, uma das várias formas de
figuração do divino (Cf. Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-178). Na época clássica, na
qual as representações teatrais vão tomar a forma que conhecemos e se estruturar em torno
da apresentação de comédias, tragédias e dramas satíricos, a forma canônica de
representação do divino era precisamente a estatuária antropomórfica, que busca um ideal
de beleza e perfeição. Porém, em meio à imagem predominante, outras formas de
representação subsistem, e a máscara mantém seu valor e possui um papel especial.
Colocar o devoto em contato imediato com a alteridade do divino, seria esse o
objetivo maior do dionisismo; a esse objetivo de fusão do fiel com o deus, Vernant e
Ducroux traçam um paralelo com o fenômeno teatral, com a ficcionalidade que este propõe

4
Lesky lembra que a transformação era o elemento básico da religião dionisíaca “O homem arrebatado pelo
deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano. Mas a
transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de
uma imitação desenvolvida a partir de um instinto lúdico, e distinto de um representação mágico-ritual de
demônios, arte dramática, que é uma replasmação do vivo”. (Lesky, 1976:61).
32

e a inscrição dessa ficção no real que ele provoca, abrindo um novo espaço, o do
imaginário:

É um fenômeno paralelo que ocorre no teatro, quando, no século V, os gregos


instauram um espaço cênico onde apresenta personagens e ações cuja presença,
ao invés de inscrevê-los no real, lança-os nesse mundo diferente que é o da
ficção. Quando eles veem Agamêmnon, Heracles ou Édipo representados pela
sua máscara, os espectadores que os olham sabem que esses heróis estão
ausentes para sempre, que não podem estar ali onde são vistos, que doravante
pertencem ao tempo findo das lendas e dos mitos. O que Dioniso realiza, e
aquilo que a máscara provoca também, quando o ator a coloca, é, através do que
foi tornado presente, a incursão, no centro da vida pública, de uma dimensão de
existência totalmente estranha ao universo do cotidiano. (Vernant e Vidal-
Naquet, 2005:176)

Essa dimensão de existência diversa do cotidiano é a dimensão da ficção, e o


ator inicia sua história presentificando o mito, apresentando uma realidade imaginada sob
as vestes do real. Vernant e Frontisi-Ducroux argumentam que só no quadro do culto
dionisíaco, “deus das ilusões, do tumulto e da confusão incessante entre a realidade e as
aparências, a verdade e a ficção” (Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-176) poderia surgir o
teatro5 local onde o real é transformado em ficção e a ficção encenada como se fosse real.
O ator se assemelhará ao fiel que, “arrebatado pelo deus, transportado para o
seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano” (Lesky,
2003:74). Também ele será transportado para um outro lugar e tempo, e precisará, em
cena, ser mais (ou diferente) do que no seu dia-a-dia. Nesse momento da história, o
personagem teatral não nos remete a uma pessoa, a um indivíduo. A máscara reenvia o
espectador não apenas a uma realidade não-cotidiana, mas ao próprio mito. Traz para o
palco esse universo e, dessa forma, impede que o personagem seja identificado a uma
pessoa: seu status é de outra ordem, pertence a uma outra realidade, o que ele apresenta no
palco não é a figuração do humano, mas uma visão desse universo mítico. Para o ator, a
máscara traz não apenas um distanciamento de si mesmo, desrealizando o personagem.
Vestir a máscara é despir-se de si e vestir um outro, que está situado num tempo/espaço
que não é mais o seu.
Porém, quando refletimos sobre a Comédia, uma série de questões diferentes se
nos afiguram: ela não obedece aos mesmos padrões de representação ou de retomada de

5
A palavra grega théatron – do verbo theaomai, ver – designa o “lugar de onde se vê”, ou o “lugar onde se
vai para ver”, “lugar para contemplar”, implicando em um olhar mais atento, cuidadoso, profundo, não
simplesmente ver no sentido comum. Denis Guénoun lembra-nos que a área de representação, o palco, era
designada pelo termo skênê (cf. Guénoun, 2003, p. 14)
33

um mito; ao contrário, sua temática é justamente as questões do dia-a-dia, de ordem


política e social. As sátiras aos costumes, a caricatura de personagens reais, inclusive
vivas, que são satirizadas em cena, confere ao gênero cômico um outro tipo de relação
entre público e cena, e, da mesma forma, entre ator e personagem. O papel representado
não mais se encontra no plano mitológico, lendário, ou num tempo histórico distinto do
ator, mas ao redor deste. Diferentemente do personagem trágico, o cômico está diretamente
engajado na vida social, e sua ação “está impregnada de familiaridade doméstica”
(Abirached, 1994:32II). Apesar dessa inserção na vida cotidiana, ambos não serão definidos
como indivíduos antes do século XVIII.
O que é posto em cena pelo dramaturgo, pelo corega e pelo diretor do coro
(corus didascalus) obedece a determinadas convenções e regras. O texto, encenado, não
pode fugir da materialidade do espaço e do corpo do ator, das vestes e adereços que ele
porta. As ações que este realiza se prendem a um imaginário que se vincula à época e aos
costumes onde se realiza a encenação (ver adiante, cap.2). A imitação e a verossimilhança
aparecem aí como conceitos chaves que norteiam não só a composição do texto, mas a
ação do ator.
Ao falar em Mimeses, e colocar a tragédia e a comédia como artes imitativas,
Aristóteles delineia uma questão que vai nortear toda a discussão sobre o personagem e o
trabalho do ator. Escrita na segunda metade do séc. IV a.C., a Poética trata da produção
poética (poiesis), e revela uma grande preocupação com a práxis, com a maneira como a
obra deve ser construída e com os efeitos da obra poética sobre seu público. Embora se
refira à epopeia, à comédia e à poesia ditirâmbica, o texto trata principalmente da tragédia,
explicando “como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o
número e a natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos
relativos a esta produção” (Aristóteles, s/d:239)
No capítulo primeiro, que trata “Da poesia e da imitação segundo os meios,
objeto e modo de imitação”, ele enquadra a tragédia e a comédia como uma “arte de
imitação” (p. 239), pontuando, a seguir (cap. VI, “Da tragédia e de suas diferentes partes”),
que a tragédia é a “imitação de uma ação importante e completa... (...) apresentada, não
com a ajuda de uma narrativa, mas por atores...”, acrescentando ainda que se trata da
imitação “não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a
infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende atingir o resultado
de uma certa maneira de agir, e não de uma maneira de ser.” (p. 248).
34

O filósofo grego estabelece, portanto, como foco da imitação, as ações que são
realizadas pelos personagens, ou seja, a fábula. Sendo, para o poeta, a organização dos
fatos a parte mais importante de sua composição (do ato de poiesis), compreende-se que
estes fatos devam obedecer aos critérios de necessidade e verossimilhança. Quanto aos
personagens, devem ser representados “ou melhores, ou piores ou iguais a todos nós” (p.
242), ou seja, o modelo para a construção das ações e para o comportamento dos
personagens é o ser humano. Aristóteles não se detém aqui no processo de encenação e no
trabalho do ator. Para ele a encenação é uma arte menor, inferior ao trabalho do poeta, este
sim o principal responsável pela composição da tragédia:

Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas não faz parte da arte
nem tem nada a ver com a poesia. A tragédia existe por si independente da
representação e dos atores. Quanto ao trabalho da encenação, a arte do cenógrafo
tem mais importância que a do poeta. (Aristóteles, s/d: 249)

A imitação – mimeses –, não deve ser confundida aqui, como ressalta Luiz
Costa Lima, com imitatio, pois se trata não de uma cópia, mas se baseia numa relação de
semelhança com o objeto representado (cf. Lima, 1980:47). Este processo traz em si uma
modificação da realidade representada, mantém uma distância em relação ao real, que o
capta sem, contudo, reduplicá-lo. A dualidade entre o real e o representado, e o processo de
estilização que a realidade sofre ao ser transformada em objeto artístico, fazem parte da
mimeses, que não perde de vista esse “real”, como pontua Emmanuel Martineau: “a
imitação transpõe, representa, exprime, estiliza, idealiza, mima, transfigura, etc. Mas, custe
o que custe, deve ser entendido, que ela imita – ou seja, que se refere a um „real‟ a que virá
se superpor como um plano a um plano” (cit. por Lima, 1980:48). Há, portanto, uma
concepção internalizada de uma realidade, que norteia tanto a ação do produtor da obra
poética, quanto a do seu receptor:

Vista em si mesma, a mimeses não tem um referente como guia, é ao contrário


uma produção, análoga à da natureza (o limite aristotélico da metáfora orgânica).
Não sendo o homólogo de algum referente, tanto ao ser criada, quanto ao ser
recebida, ela o é em função de um estoque prévio de conhecimentos que
orientam sua feitura e recepção (Lima, 1980:50).

O segundo termo considerado pela retórica latina, o Caractere (do grego


Kharactêr, que significa signo gravado, a figura impressa sobre um selo ou uma moeda),
35

enquanto produzido por um trabalho de mimeses6, traz essa relação com a realidade que o
autor imprime sobre o personagem, ao mesmo tempo que é mais traço distintivo que uma
individualidade, que uma “constituição global” (Abirached, 1994:30). Sendo aquilo que
permite “qualificar o homem” (Aristóteles, s/d:248), constitui-se no conjunto de suas
características, tanto psicológicas como morais, os traços do seu temperamento.
Para Aristóteles os caracteres devem possuir quatro qualidades: devem ser
bons, conformes, semelhantes e coerentes. Bom, no sentido que é apto a desenhar e
sustentar a trajetória do personagem, o que implica que é fiel aos elementos que o
constituem – Coerente (mesmo em sua incoerência, no caso de um caráter em si
incoerente) – e que eles se alinham sob um sistema lógico, ou, ao menos, não contraditório
– Conforme. O que norteia a existência dessas qualidades é a Necessidade e a
Verossimilhança:

Tanto na representação dos caracteres como no entrosamento dos fatos, é mister


ater-se sempre à necessidade e à verossimilhança, de modo que a personagem,
em suas palavras e ações, esteja em conformidade com o necessário e o
verossímil, e que o mesmo aconteça na sucessão dos acontecimentos
(Aristóteles, s/d:263).

O necessário e o verossímil inserem o personagem numa cadeia de


causalidades e asseguram a sua coesão. Ora, o verossímil, uma das bases da mimeses, um
dos elementos essenciais do seu funcionamento, não se confunde com a Verdade, é antes a
sua imitação, reenviando a “uma realidade revista e corrigida” (Abirached, 1994:36 III). É
ele que determina o tipo de relação que o personagem estabelece com a realidade, pois esta
nem sempre é crível: na composição das peças “é preferível escolher o impossível
verossímil que o possível incrível”7 (Aristóteles, s/d:281). Assim, o trabalho do ator,
fundado sob a égide da mimeses, traz como parâmetro a nortear suas ações (sua presença
no palco) tanto o necessário como o verossímil. O comportamento do personagem está
fundamentado numa lógica de causalidade, em uma cadeia de fatos que lhe garante a
unidade e lhe dá essa aparência coerente. Como ressalta Abirached (1994:37-38), a

6
Robert Abirached observa que a mimeses teatral se coloca no meio do caminho entre o real e o imaginário.
Para ele, a mimeses é não “somente a representação e a imitação da realidade, mas o conjunto de protocolos
que regem o exercício do teatro” (...pas seulement la représentation et l'imitation de la réalité, mais
l'ensemble des protocoles qui en régissent l'exercice au théâtre) (Abirached, 2004:451), ou seja, envolve todo
o arcabouço e os procedimentos que comandam a execução da obra artística.
7
Aristóteles ressalta que, para o poeta, há três maneiras de imitar: “Sendo o poeta um imitador, como o é o
pintor ou qualquer outro criador de figuras, perante as coisas terá induzido a assumir uma das três maneiras
de as imitar: como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou como parecem ser, ou como deveriam
ser (Aristóteles, s/d:283)..
36

verossimilhança não é um dado fixo, é condicionada historicamente, obedece a uma ideia


do que é a natureza humana e a uma visão de mundo que estão em constante
transformação. Ela, a verossimilhança, se pauta sobre a realidade que a circunda, incluídas
aí as convenções teatrais da sua época. Obedece, portanto, a uma ideia de humanidade que
é transformável, e a uma estilização na maneira de representar que se submete aos padrões
estéticos do tempo e do lugar em que vive (utilizando da terminologia empregada pela
Estética da Recepção, poderíamos dizer que se submete ao horizonte de expectativas
vigente).
O terceiro termo citado por Abirached, Tipo, traz em si a ideia de marca:
enquanto personagem convencionalmente determinado, ele ostenta características
psicológicas e físicas que são conhecidas de antemão pelo público. Como descreve Pavis,
“estas características foram fixadas pela tradição literária (o bandido de bom coração, a boa
prostituta, o fanfarrão e todos os caracteres da Commedia dell’Arte)”, e, se o tipo “não é
individualizado, possui pelo menos alguns traços humanos e historicamente comprovados”
(Pavis, 1999:410). Na França, Commedia dell’Arte se torna comédie italienne, e seus tipos
influenciam profundamente Molière, aproveitando dela não só situações, lazzi, e
personagens, mas utilizando também suas máscaras: “Algumas personagens que ele
[Molière] tomou deliberadamente da commedia, tais como os dois pais em As artimanhas
de Scapino, ou os filósofos em O casamento forçado, continuaram em sua troupe, para
surgir com as tradicionais meias máscaras de couro” (Berthold, 2008:352).
O Tipo, carregando os comportamentos fixados pela tradição, apresenta, assim,
as marcas de um imaginário coletivo, da possibilidade de reconhecimento e de
identificação pelo público diante do qual se apresenta, trazendo consigo, ainda, todo um
conjunto civilizatório. Esse imaginário social, que pode ser observado na estrutura e nos
personagens das tragédias8, torna-se exemplar nas comédias, onde a coletividade vê
refletida de forma mais detalhada o seu cotidiano. Formando um conjunto coerente em
cada unidade de civilização, os tipos se colocam a serviço da fábula, refletindo no palco
esse cotidiano – as profissões, as divisões de classe, a vida doméstica, os tipos morais –
ainda que de forma simplificada. A simplificação imposta à realidade é acompanhada por

8
Como observa Abirached, “no teatro antigo as máscaras traduziam visualmente este alcance hierárquico [de
reis e súditos, pais e filhos, representantes da ordem e heróis rebeldes] e designavam à primeira vista aos
espectadores a vinculação [o pertencimento], de um personagem” (dans le théâtre antique, les masques
traduisaient visuellement cet éventail hiérarchique et désignaient d'emblée aux spectateurs l'appartenance
d'un personnage.) (Abirached, 1994:46). Se a tragédia francesa do século XVII já abandonou o uso de
máscaras, os seus heróis e heroínas ainda pertencem a esse modelo.
37

um conjunto de signos que dão a esses tipos uma identidade e características


indispensáveis ao seu funcionamento.
Em relação a Commedia dell’Arte, os tipos eternizados por esses cômicos se
fixam em máscaras que colocam em cena “o grotesco de tipos segundo esquemas básicos
de conflitos humanos” (Berthold: 2008:353). Herdeiros de mimos ambulantes,
prestidigitadores, improvisadores e bufões, seguiam um roteiro (soggeto) a partir do qual –
e da máscara que cada um usava – improvisavam:

Bastava combinar, antes do espetáculo, o plano da ação, intriga,


desenvolvimento e solução. Os detalhes eram deixados ao sabor do momento –
todas as piadas e chistes ao alcance da mão, os trocadilhos, os mal-entendidos,
jogos de prestidigitação e brincadeiras pantomímicas que sustentavam os
improvisadores por séculos. (Berthold, 2008:353)

As características de cada um dos tipos da Commedia dell’Arte não estavam,


portanto, fixadas em um texto que os atores deveriam seguir, mas na própria máscara que
eles portavam. O caráter de cada um dos personagens era uma mescla de características
físicas fixadas em gestos e posturas, e de desejos e comportamentos específicos de cada
máscara.
Robert Abirached (1994:89). observa que, desde o seu nascimento até o século
XVIII, o teatro europeu não alterou sua definição global, apesar de ter experimentado
modalidades extremamente diversas, tanto na teoria quanto na prática. O tratado escrito por
François Hédelin, o abade d‟Aubignac, em 1657, intitulado Prática do Teatro, reflete o
pensamento vigente na Europa à época. Esse tratado não trazia apenas comentários sobre a
obra de Aristóteles, como tendiam a ser as obras anteriores sobre teatro (cf. Carlson,
1997:94). Ele discutia problemas específicos da dramaturgia das peças e tratava de temas
como “a habilidade em preparar os incidentes e de reunir os tempos e os lugares, a
continuidade da ação, a ligação das cenas, os intervalos dos atos, e cem outras
particularidades” (Borie, Rougemont, Scherer, 2004:93).
Fazendo uma série de considerações sobre os personagens e o trabalho dos
atores, incluindo uma clara prefiguração do que posteriormente convencionou-se chamar
de “teoria da 4ª parede”, o abade d‟Aubignac pautava-se sobre a necessidade de
verossimilhança9, à qual tanto o dramaturgo como os atores deveriam ater-se: aquele

9
Nas palavras do abade: “Mas quando considera na sua tragédia a história verdadeira, ou que se supõe ser
verdadeira, tem [o poeta] apenas o cuidado de respeitar a verossimilhança das coisas, e de compor todas as
38

rejeitando em sua composição tudo aquilo que não possuísse estas características, estes
comportando-se como agiriam os personagens na situação representada no palco. Em cena,
o ator deve atuar

como se os espectadores não existissem, quer dizer, todas as personagens devem


agir e falar como se fossem verdadeiramente Rei, e não apenas sendo Bellerose
ou Mondory [atores trágicos da companhia do Hotel de Bourgogne], como se
estivessem no palácio de Horácio em Roma, e não no Hotel de Bourgogne em
Paris; e como se ninguém os visse nem ouvisse senão aqueles que estão no teatro
agindo e como que no local representado. [...] ainda que tudo isso se faça e diga
na presença de duas mil pessoas, porque aqui segue-se a natureza da ação como
verdadeira, em que os espectadores da representação não estão lá.” (in Borie,
Rougemont e Scherer, 2004:95-96)

Este “agir e falar” como se fosse o personagem, no local e na situação


estipulada pelo dramaturgo abre-nos caminho para a questão da identificação entre o ator e
o personagem que será discutida no século seguinte por Diderot, sobre a qual nos
deteremos com mais vagar adiante. Ao mesmo tempo, a proposição da “ação como
verdadeira” por um lado nos reenvia para o universo da verossimilhança, e por outro abre a
possibilidade de discussão da “verdade” no palco, e a tensão existente entre essa e as
convenções teatrais.
Para o abade, não é apenas o verdadeiro que nem sempre tem lugar assegurado
no teatro; também o possível nem sempre deve ser apresentado, “porque há muitas coisas
que se podem fazer, ou por encontro de causas naturais, ou pelas aventuras da moral, que,
porém, seriam ridículas e pouco críveis se apresentadas” (Borie, Rougemont e Scherer,
2004:98). Assim, “não há senão o verossímil que possa razoavelmente fundar, sustentar e
terminar um poema dramático” (p. 98), e toda ação humana, mesmo as mais simples, deve
ser executada observando-se a verossimilhança nas diversas circunstâncias que a compõem
– o tempo, o lugar, a pessoa, a dignidade, as intenções, os meios e a razão de agir – pois,
do contrário, “são totalmente defeituosas e não devem estar aí de todo” (p. 99).
Se essa vinculação à fábula e à mimeses é o que norteia o desenvolvimento e a
caracterização do personagem até meados do séc. XVIII, o surgimento do teatro burguês
vai trazer para o palco a questão da identidade do personagem, de sua semelhança com
indivíduos de carne e osso. Para Robert Abirached, a crise da civilização europeia no
século XVIII coloca em crise o próprio personagem, na medida em que “a cultura
burguesa, em vias de constituição, porá em causa as noções que a tocam mais de perto,

ações, todos os discursos e todos os acontecimentos como se tivessem realmente ocorrido.” (Borie,
Rougemont e Scherer, 2004:95).
39

afirmando os direitos do indivíduo, descobrindo a importância das estruturas sociais e do


trabalho, colocando a economia no centro das relações humanas” (Abirached, 2004:93IV), e
fazendo com que os autores dramáticos desloquem a sua preocupação da construção da
fábula para os personagens. Se antes estes recebiam seus caráteres em acréscimo e em
razão de suas ações, a partir daí eles irão paulatinamente deixando de ser apenas uma
forma, uma soma de indícios e de referências, para se tornarem um indivíduo e uma
pessoa. Se a sua capacidade de agir, os seus ditos e feitos diziam quem eles eram, agora
serão suas relações sociais, sua ocupação e as situações que vivem em seu cotidiano que
irão defini-los.

1.2. O Personagem no teatro burguês

A possibilidade – ou a necessidade – de se pensar a criação do personagem a


partir do ponto de vista de um ser humano, é consequência da própria transformação
estética do teatro ocidental. O teatro burguês e, na sua sequência, o realismo e o
naturalismo buscam pôr em cena personagens que se assemelhem a indivíduos, e não mais
retratam heróis legendários, mitos, arquétipos ou tipos que exacerbam uma característica
da personalidade humana. Cada vez mais se percebe uma preocupação em retratar o ser
humano como um todo, isto é, como uma pessoa, repleta de contradições e idiossincrasias.
Jean Duvignaud percebe essa transformação ocorrida no teatro inglês ao longo do século
XVIII, e, na França, após a Revolução Francesa, como “resultado dos primeiros efeitos do
novo Estado social” (Duvignaud, 1972:121), fruto da revolução industrial, do
desenvolvimento da economia de mercado e do surgimento de formas e condutas do
individualismo.
A aproximação daquilo que se via no palco com a realidade cotidiana,
acercando a mimeses da imitação de ações do dia-a-dia, transforma a compreensão do
verossimilhante posto em cena. A verossimilhança progressivamente passa a ser exigida
não só no sentido dos fatos narrados, da coerência e credibilidade daquilo que está sendo
mostrado e das reações dos personagens dramáticos, mas na maneira de falar desses
personagens, que deve imitar a fala cotidiana, no vestuário, na postura e nos gestos
executados em cena, nas próprias ações executadas pelos atores no palco, que devem
remeter aos atos que executamos diuturnamente. O ator deve tornar perceptível uma
40

“imagem de pessoa humana” (p. 136), rompendo com convenções e mudando o modo de
representar os comportamentos dos personagens que interpretam.
Teórico dessa mudança, em seus textos que versam sobre teatro10, o filósofo,
enciclopedista e dramaturgo Denis Diderot prescreve a fundação de uma nova dramaturgia
na França e reflete sobre o ofício do ator, seu processo de criação e a forma de interpretar.
O ponto nevrálgico sobre o qual Diderot desenvolve o seu pensamento estético é
justamente a mimeses. No romance As joias indiscretas, há a seguinte ponderação: “[sei
que] a perfeição de um espetáculo consiste na imitação tão exata de uma ação que o
espectador, enganado, sem qualquer interrupção, se imagina a assistir a própria ação” (cf.
Diderot, 1986:13). A imitação, para Diderot, está calcada na ideia do verossímil, mas
remete principalmente à questão da ilusão. Como ressalta Franklin de Matos,

Diderot pensa a questão [do verossímil], na maior parte do tempo, pelo viés da
ideia de ilusão: o vero-símil não é o próprio verdadeiro, mas aquilo que se parece
com ele, provocando em nós uma impressão que é o grande segredo da arte em
geral. A exigência de ilusão comanda, assim, todos os juízos de gosto de Diderot.
(Matos, 1986:15).

Essa concepção remete a Aristóteles, já que o que norteia a verossimilhança é a


opinião comum e, se é a “imitação da natureza em todas as suas partes” que sustenta a
confecção do drama (Diderot, 1986:60), o poeta também está sujeito às noções do
verdadeiro, do verossímil e do possível, de uma maneira que muito se assemelha aos
preceitos aristotélicos. No “Discurso sobre a Poesia dramática”, Diderot afirma:

Nem todos os acontecimentos históricos são próprios para tragédias, assim como
nem todos os acontecimentos domésticos fornecem argumentos para comédias.
(...) Ocorre às vezes que a ordem natural das coisas encadeie incidentes
extraordinários. Esta mesma ordem distingue o maravilhoso e o miraculoso. Os
casos raros são maravilhosos, os casos naturalmente impossíveis são
miraculosos: a arte dramática rejeita os milagres. (Diderot, 1986:60-61).

A inspiração em Aristóteles, que afirmava ser preferível o impossível


verossímil ao possível incrível, é clara, e Diderot acrescenta que cabe ao poeta fazer com
que os fatos, em sua obra, possuam uma ligação “aparente e sensível”, e não se apresentem
como na natureza, onde os vínculos entre os acontecimentos escapam às pessoas, que não
reconhecem o conjunto das coisas. Por isso, o poeta é “menos verdadeiro e mais verossímil

10
Em especial Conversas sobre O Filho Natural, Discurso sobre a poesia dramática e Paradoxo do
comediante, que vieram a público respectivamente em 1757, 1758 e 1830, sendo que o Paradoxo, publicado
postumamente, teria sido composto em 1769, tendo passado por várias versões até a morte do escritor, em
1784.
41

que o historiador” (p. 61). A exigência da verossimilhança torna o ato do dramaturgo uma
construção, embasada na verdade, é fato, mas distante dela pelas características da mimeses
teatral e pelas escolhas que o poeta tem de fazer entre o campo da verdade e o da ficção.
Diferentemente de Aristóteles, em seus textos sobre teatro Diderot não se
debruça apenas sobre a poiesis, sobre a maneira como o autor dramático deve construir a
sua obra dramática para dela extrair os efeitos necessários para atingir o espectador da
forma que aspira. O filósofo trata longamente do ofício do ator, construindo, segundo Jacó
Guinsburg, “uma teoria do ator que só encontra paralelo, por sua profundidade e
amplitude, na que Stanislavski estabeleceria um século e meio depois” (in Diderot,
2005:215).
Como antes dele o abade d‟Aubignac, e, após, Stanislavski, um dos aspectos
centrais de teoria de Diderot está no ato de o comediante ignorar os espectadores durante o
seu desempenho, ou, mais precisamente, na maneira de não demonstrar preocupação com o
público durante a sua atuação, mantendo sua atenção no que ocorre no palco. Aqui vemos
formulada de uma forma explícita a teoria da 4ª parede: “Fazei de conta que o espectador
não existe e não penseis nele em nenhum dos casos. Imaginai no proscênio uma grande
parede que vos separa da plateia e representai como se a cortina estivesse aberta.” (Diderot,
1986:79)
A preocupação do ator – da mesma forma que a do autor – nunca deve estar no
espectador, mas sim no fluxo das ações do personagem, no fluir da história. É ao enredo e
suas necessidades que estes devem se submeter. A ação do ator parte sempre de sua
capacidade de observação, e, para Diderot, o melhor ator é aquele capaz de imitar,
friamente e da forma mais acabada possível, o seu modelo. Para bem transmitir uma
emoção, o ator não deve se emocionar. É necessário, antes de tudo que o comediante
“tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um espectador frio e
tranquilo; exijo dele, por consequência, penetração e nenhuma sensibilidade, a arte de tudo
imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis.”
(Diderot, 2005:220)
A construção desse modelo depende da capacidade de imitação, de julgamento,
de trabalho e da imaginação do ator. Comentando sobre o desempenho de Mlle. Clairon,
atriz da Comédie Française à época de Diderot, ele observa que “na sexta representação
ela sabe de cor todos os pormenores de sua interpretação”, pois ela concebeu para si “um
modelo ao qual procurou de início transformar-se” (p. 221). Tal desempenho, conseguido
42

“à força de trabalho”, deve ser mantido através “de exercício e de memória”, que exige do
ator precisão e verdade.
Essa exigência de precisão levará o ator a representar sempre de uma mesma
maneira, “sempre igualmente perfeito”, levando à criação de uma verdadeira partitura,
embora Diderot não utilize esse termo para se referir à capacidade do ator de seguir
rigorosamente o modelo por ele mesmo criado, segundo o qual executará sempre os
mesmos movimentos e dirá as frases com os mesmo acentos. Pautando-se sempre pela
capacidade de observação (“imitador atento e discípulo atento da natureza”), pela sua
capacidade de trabalho e organização (“copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos”),
e pelo estudo da reação que seus gestos e ações causam na plateia (“observador contínuo
de nossas sensações”. P. 220), o ator

será um e o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito: tudo


foi medido, combinado, aprendido, ordenado em sua cabeça; não há em sua
declamação nem monotonia, nem dissonância. O ardor tem seu progresso, seus
ímpetos, suas remissões, seu começo, seu meio, seu extremo. São os mesmos
acentos, as mesmas posições, os mesmos movimentos; se existe alguma
diferença de uma representação a outra, é comumente em vantagem da última.
Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar os objetos e a
mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade (Diderot,
2005:221).

Assim, para Diderot o ator talentoso não é aquele que sente, mas aquele que é
capaz de manifestar escrupulosamente os sinais externos do sentimento. Jean Duvignaud
traz uma interessante crítica à maneira que o filósofo francês estabelece esse contraste
entre um ator que se emociona em cena, e por isso perde o controle de suas ações (a
emoção se apoderando do ser e anulando a inteligência do comediante), e aquele que
representa friamente, apenas emulando uma emoção, fruto de uma construção esmerada e
trabalhosa. A argumentação de Diderot se baseia na incapacidade de união – ou
convivência – de razão e paixão, a sensibilidade e a capacidade de controle da emoção:

O argumento clássico e vazio, da emoção que inibe a inteligência e o uso da


palavra, dada a impossibilidade de coexistirem a razão e a paixão, é também
fraco, sobretudo se admitirmos a distinção que propõe o próprio Diderot entre a
percepção e a sensação, o sentimento e a sensibilidade. Se a “sensibilidade” nada
tem a ver com a criação intelectual que realiza o ator digno desse nome, é porque
se trata de um comportamento que só se pode renovar com os símbolos que lhe
dão sentido. (Duvignaud, 1972:26)

Por um lado, toda essa exigência de rigor e essa necessidade do ator trabalhar
sobre o seu papel, essa meticulosidade na observação e na construção de seus gestos e
43

entonações, o aproximam de Constantin Stanislavski, pois este se deteve justamente na


elaboração de um sistema para que o ator conseguisse apresentar-se em cena com esse
rigor e essa verdade; por outro, a teoria de Stanislavski voltou-se justamente para a relação
do ator com as suas próprias emoções, refletindo tanto sobre a necessidade deste vivenciá-
las como sobre a impossibilidade delas serem fixadas, e mesmo, ao deter-se sobre as ações
físicas, aparentemente abandonando a pretensão de despertá-las (como veremos em
seguida).
“Se ele é ele quando representa, como deixará de ser ele? Se ele quer cessar de
ser ele, como perceberá o ponto justo em que deve colocar-se e deter-se?” (Diderot,
2005:220). Diderot coloca assim de uma forma explícita um dos pontos chaves que
envolvem o trabalho do ator: quando ele representa, até que ponto ele deve se colocar no
lugar de um outro? Até onde ele deve criar esse personagem como um “outro”, já que é ele
e apenas ele que está em cena, e nunca um “outro”? Qual é a matriz desse personagem a
ser criado? Stanislavski11 partia do princípio de que o ator nunca pode deixar de ser ele, e é
sobre essa impossibilidade que deve trabalhar:

Por outro lado, não é possível arrancar o próprio espírito e tomar emprestado
outro mais adequado ao papel. Aonde consegui-lo? Do papel que ainda carece de
vida? Podemos pedir emprestado uma roupa, um relógio, mas não um
sentimento. Meus sentimentos são inalienáveis, assim como os seus para você.
Atue sempre com a sua própria pessoa, como homem e como ator. (...) Todas as
vezes que atuar, sem exceção, deve recorrer a seu próprio sentimento.
(Stanislavski, 2003:228V)

Antes, porém, de falarmos mais detidamente do encenador russo, é necessário


pensarmos como os naturalistas pensavam a “verdade” no teatro. A questão da “verdade
cênica”, de encontrar uma “forma artística” (para utilizarmos a expressão utilizada por
Stanislavski) na qual essa verdade se expresse ou se materialize, estava presente na fala de
vários dramaturgos e pensadores antigos, mas essa preocupação era muitas vezes dirigida
para questões dramatúrgicas, ou centrava-se na encenação, sem se deter tanto no trabalho
do ator, como veremos em Stanislavski. Mesmo antes do realismo, os românticos já
discutiam sobre essa verdade: no seu Prefácio de Cromwell (de 1827), Victor Hugo
retomava a ideia da não submissão do trabalho do poeta a regras e modelos, ressalvando
que as únicas regras às quais ele deve se submeter são “as leis gerais da natureza que
plainam sobre toda a arte” (Hugo, s/d:57). Cada obra, cada composição, criaria suas

11
Utilizamos aqui a tradução em espanhol feita diretamente do russo por Jorge Saura (Alba Editorial, 2003).
44

próprias regras e leis, devendo apenas ter a natureza, portadora da verdade, como
norteadora de seu trabalho: “O poeta, insistamos nesse ponto, não deve, pois, pedir
conselho senão à natureza, à verdade, e à inspiração que é também uma verdade e uma
natureza” (p. 57). Longe de ser uma mera imitação, pois o domínio da arte e da natureza
são perfeitamente distintos, e a verdade de uma e outra são diferentes (“A verdade da arte
não poderia jamais ser, assim como vários disseram, a realidade absoluta”, p. 60), o drama
deve ser como um espelho que não apenas reflete a natureza, mas que lhe dá forma
artística: “É, pois, preciso que o drama seja um espelho de concentração que, longe de
enfraquecê-los [os objetos refletidos, a cor e a luz], reúna e condense os raios corantes, que
faça de um vislumbre uma luz, de uma luz uma chama. Só então o drama é arte” (p. 61).
Os teóricos precursores do Naturalismo no teatro defendiam um retorno à
simplicidade da ação, a observação do linguajar e dos costumes, e o estudo psicológico e
fisiológico dos personagens. A encenação de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas
Filho, em 1852, em Paris, é considerada o marco do teatro realista: a peça colocava em
cena o mundo de uma cortesã, e retratava os costumes de todo um demi-monde relacionado
a ela. João Roberto Faria destaca que “o lado realista da La Dame aux Camélias” surge não
pela análise do relacionamento amoroso do casal da peça, mas por outros aspectos, “... que
também chamam a atenção na peça. Por exemplo: o pano de fundo da ação central. É
admirável a naturalidade da movimentação dos personagens no primeiro e quarto atos, nos
quais o mundo da prostituição elegante é evocado com bastante realismo descritivo”.
(Faria, 1993: 17-18).
Havia, portanto, uma preocupação com a observação e descrição dos costumes,
que se refletia no linguajar utilizado, e no jogo cênico dos atores, enfatizando o efeito
ilusionista: “Tudo parecia um quadro verdadeiro, uma reprodução fotográfica da vida e do
universo da cortesã.” (p. 21). A partir daí, o personagem não deveria ser algo abstrato, mas
surgir como um fruto do meio em que vivia. Émile Zola afirmava que as várias escolas
literárias negaram de forma sistemática a verdade, buscando um “embelezamento” ou um
“depuramento” da natureza:

Todas as fórmulas antigas, a fórmula clássica, a fórmula romântica, baseiam-se


no arranjo e amputação sistemáticos do verdadeiro. Tomou-se por princípio que
o verdadeiro é indigno; e tenta-se retirar dele uma essência, uma poesia, sob o
pretexto de que é preciso expurgar e engrandecer a natureza. (in Borie,
Rougemont e Scherer, 2004:352)
45

Para Zola, o naturalismo implicava no abandono de fórmulas conhecidas, e


exigia dos autores que aprendessem a “escavar a humanidade demasiado profundamente”
(Borie, Rougemont e Scherer, 2004:353), aprendendo a retirar grandeza do real.
Abandonando os exageros do drama romântico, a retórica e as declamações da tragédia
francesa, o teatro precisava aprender a levar em consideração “o homem fisiológico”, o
homem real, “com o seu sangue e os seus músculos” (p. 355).
É a partir desse projeto de tornar a cena teatral semelhante ao que se vê no dia-
a-dia, podendo reconhecer no palco “seres de carne e osso”, que Stanislavski vai pensar o
trabalho do ator. Toda a sua teoria é formulada a partir da necessidade de se colocar em
cena o ser humano, o homem “real”, rompendo com convencionalismos teatrais. Não basta
que o ator seja um bom imitador, ele precisa aprender a, no palco, transmitir toda a
complexidade de sentimentos e sensações próprias de um espírito humano. Seu objetivo
consiste

em criar a vida do espírito humano do papel e transmitir essa vida na cena sob
uma forma artística. Como podem ver, nossa tarefa principal não consiste
somente em refletir a vida do papel em sua manifestação externa, senão
principalmente em criar em cena a vida interior do personagem representado e de
toda a obra, adaptando a esta vida alheia os próprios sentimentos humanos,
dando-lhe todos os elementos orgânicos do espírito de uma pessoa (Stanislavski,
2003:32VI, grifos do autor).

Aquele ator que buscava na imitação exterior de ações a maneira ideal de criar
um personagem conseguia somente realizar o que Stanislavski chamava de “arte da
representação”, na qual se vive o papel “para observar a forma externa da manifestação
natural do sentimento” (Stanislavski, 2003:36VII); essa ação exterior será depois
reproduzida com exatidão e com um refinado acabamento artístico, repetida
mecanicamente e com a ajuda de “músculos exercitados para isso”; o que se buscava era “a
forma artística externa da criação cênica, que explica visualmente o seu conteúdo interno”,
e na qual podemos perceber uma “certa frieza que me obrigava a suspeitar que tinha uma
forma de atuar permanente, fixa.” (p. 37VIII. A semelhança com o ator ideal proposto por
Diderot é clara). Lucidamente, Stanislavski, citando Coquelin, pondera que, para essa
escola, “a arte não é a vida real e nem sequer o seu reflexo. A arte é, por si só, criadora.
Cria a sua própria vida, plena de beleza em sua abstração, ultrapassando os limites do
tempo e do espaço” (p. 40IX). Nessa ótica, o teatro é pleno de convenções e seria um
contrassenso evitá-las, mesmo porque o palco teatral é muito pobre de recursos para tentar
criar uma ilusão de vida real (hoje em dia essa tarefa foi relegada principalmente ao
46

cinema). Para o diretor russo esse tipo de arte, para ser considerado como tal, tem de
manter-se no nível da perfeição, pois ele é “belo, porém não profundo, seu efeito é maior,
porém sua força é menor; sua forma é mais interessante que seu conteúdo; atua mais sobre
a vista e o ouvido que sobre a alma, e por isso é mais para encantar que para comover” (p.
40X).
Dessa forma Stanislavski estabelece uma diferença entre “representar” e
“viver” um papel. Somente a atuação que não apenas parte do interior do ator, mas que se
sustenta com base na experiência vívida e continuamente renovada do ator pode ser
considerada “verdadeira”. Para ele, representar verdadeiramente significava que, “nas
condições da vida do papel e em plena analogia com a vida deste, deve-se pensar, querer,
esforçar-se, atuar de modo correto, lógico, harmônico, humano”; quando consegue isso o
ator “se aproxima do personagem e começa a sentir em uníssono com ele” (p. 31-32XI).
Não é possível ser um “outro”, mas o ator deve criar um papel como se fosse um ser
humano real, e para isto esse outro deve ser insuflado de vida, ter reações autênticas.
Ora, a grande revolução de Stanislavski é justamente essa, a tentativa de unir a
forma externa e a vida interna do ator, criar o que ele chamava de uma técnica psicofísica
que seria a base para todo o trabalho do ator. Como tantos outros antes e depois dele,
buscava a adequação das ações realizadas em cena pelo ator às circunstâncias propostas
pelo texto (que chamava de “circunstâncias dadas”), mas acreditava que estas ações
estavam ligadas aos sentimentos do ator (“Em cada ação física há algo de psicológico, e no
psicológico há algo de físico”, p. 198XII), e deveriam, de uma forma ou de outra, levar a
despertá-los. O ator, em cena, jamais deveria pensar ou se preocupar com os sentimentos,
pois ninguém pode despertar em si mesmo sentimentos com o único fim de experimentá-
los, e se se ignora essa regra, “termina-se na mais repulsiva artificialidade” (p. 58 XIII). O
ator, ao realizar uma ação, deve preocupar-se unicamente com as ações que deve realizar e
com as circunstâncias envolvidas em cada uma delas, deixando em paz o sentimento, que
se manifestará em decorrência de algo interior que o suscitou.
A ação teatral “deve ter uma justificação interior, deve ser lógica, coerente e
possível na realidade” (p. 63XIV), sendo explicada a partir dos motivos interiores criados
pelo ator, dentro das circunstâncias dadas pelo texto, e complementadas por ele, ator.
Pesquisador incansável que era, Stanislavski lutou toda a sua vida contra o que
denominava de atuação mecânica na qual não havia esta vivência e o sentimento era
inexistente; contra os estereótipos, o exagero e o exibicionismo, que convertem a
47

interpretação em algo mecânico, sem vida; e contra a exploração da arte pelo ator, daqueles
que usam o teatro para exibir sua beleza, para fazer carreira ou alcançar popularidade. Para
Stanislavski, a organicidade no trabalho do ator estava ligada à busca das “leis da
natureza”, e tudo o que acontecia em cena deveria ter um propósito determinado. Em cena,
o ator não deveria atuar de um modo “geral”, mas com um objetivo claro, pois a ação
verdadeira “tem um fundamento e um propósito” (p. 57XV). Essas tarefas12, que o ator deve
executar quando está em cena, se relacionam com as circunstâncias que motivam a ação do
personagem e são elas que impedem uma atuação falsa13.
Enquanto criador de uma técnica psicofísica, Stanislavski parece muitas vezes
indeciso em relação à qual seria o melhor caminho para o ator trilhar no sentido de criar
uma interpretação mais verdadeira, que atingisse a desejada “verdade cênica” (talvez
devido a questões de tradução ou de compilação de seus textos, nos quais há escritos de
épocas diferentes de sua carreira artística). Não há uma radicalização em torno de uma
postura em favor de uma dessas duas possibilidades de criação, uma pela via da vida
interior do ator, outra por uma via física; percebe-se uma oscilação entre elas, talvez pela
consciência de que cada ser humano “funciona” ou trabalha melhor segundo um estímulo
diferente, havendo naturezas que são mais suscetíveis a um determinado tipo de estímulo,
enquanto outras trabalham melhor sob outros impulsos. De fato, há diversas ocasiões em
seus livros nas quais a ênfase recai sobre a necessidade de o ator justificar interiormente
cada um de seus atos (criando a “vida interior” do papel): o ator deve compreender um

12
Na tradução brasileira dos livros de Stanislavski, feitas a partir do original inglês, o termo utilizado é
“objetivo”. O responsável pela tradução da edição espanhola feita diretamente do russo e utilizada aqui, Jorge
Saura, esclarece a preferência pelo termo “tarefa”: “habitualmente este termo se traduz como objetivo, mas
considero mais adequado traduzi-lo como „tarefa‟ por duas razões: em primeiro lugar, é a tradução literal da
palavra empregada por Stanislavski, e, em segundo lugar, “objetivo” induz a pensar em um resultado a
alcançar, enquanto que “tarefa” sugere um processo que deve ser percorrido em todas as suas etapas, ideia
mais próxima à teoria stanislavskiana”. (…habitualmente este término se traduce como “objetivo”, pero
considero más adequado traducirlo como „tarea” por dos razones: en primer lugar es la traducción literal de la
palabra rusa empleada por Stanislavski, y, en segundo lugar “objetivo” induce a pensar en un resultado a
alcanzar, mientras que “tarea” sugiere un proceso que debe ser recorrido en todas sus etapas, idea más
cercana a la teoría stanislavskiana.) (in Stanislavski, 2003:149) .
13
Stanislavski fala longamente das tarefas cênicas do ator, chamando a atenção para a qualidade das mesmas,
para que os atores consigam encontrar e fixar aquelas que são necessárias ao bom desempenho do papel,
evitando as tarefas mecânicas, que conduzem à mediocridade: Assim, as tarefas devem:
1. Estar no palco, serem direcionadas aos atores, não aos espectadores; 2. Ser pessoais, próprias do ator
enquanto ser humano, análogas às tarefas do personagem; 3. Ser criadoras e artísticas; 4. Ser vivas,
autênticas, humanas, impulsionando o papel para frente; 5. Devem ser críveis, tanto para o ator como para
aqueles que contracenam com ele, assim como para o público; 6. Tarefas que atraiam e emocionem o ator,
estimulando o processo de vivência; 7. Devem se relacionar com a essência da obra, ser precisas, claramente
definidas e típicas do papel representado; 8. Devem ter conteúdo, não se limitando à superfície da obra, mas
respondendo à essência interior do papel. (Cf. Stanislavski, 2003, p. 160-161).
Essas tarefas são um estímulo ao processo criador do artista, e devem necessariamente ser atraentes para ele.
48

papel, simpatizar com a pessoa retratada e pôr-se no lugar dela, de modo a agir como essa
pessoa agiria; dessa forma irá despertar em si sentimentos que são análogos aos que o
papel requer, sentimentos que pertencerão ao ator, e que serão usados para compor o
personagem. Em outros momentos ele se detém sobre a veracidade física dessas ações,
instando os atores a criar uma sequência de ações externas (o que foi posteriormente
chamado de “Método das ações físicas”). Mas permanece sempre a necessidade de o ator
sentir a verdade do que está fazendo em cena, e as ações executadas são formas de
despertar as suas sensações14.
No seu livro Stanislavski in Rehearsal – The final years, Vasily Toporkov, que
trabalhou com Stanislavski entre 1927 e 1938, logo antes da morte deste, analisa o método
de ações físicas, que o diretor russo estava colocando em prática. No prólogo deste livro,
Mikhail Kedrov, encarregado de finalizar a produção de Tartufo após a morte de
Stanislavski, afirma que o método de ações físicas

...traz grande concretude ao trabalho do ator. Ele é baseado na unidade


indivisível da vida física e espiritual de uma pessoa, e é construído sobre a
organização correta da linha física da vida do ator no palco. O propósito deste
método é penetrar, através do preenchimento lógico e correto de ações físicas,
naqueles complicados, profundos sentimentos e experiências emocionais que o
ator precisa tirar de si para criar uma imagem no palco (in Toporkov, 1998:15-
16XVI).

Toporkov relata seu trabalho com Stanislavski, destacando o seu aprendizado


do que considera o ponto central do método, a “transferência da atenção do ator da busca
por sentimentos dentro de si” (Toporkov, 1998:58XVII) para a execução das ações e tarefas
que realiza no palco, sendo essas devidamente alicerçadas na realidade vivida pelos
personagens, nas circunstâncias dadas pela peça. Destacando, portanto, a necessidade de se
trabalhar sobre suas ações para conseguir a “verdade cênica”, Stanislavski propõe uma
grande mudança no forma do ator encarar o próprio trabalho.

14
É bastante interessante a relação estabelecida por Stanislavski entre sentimento, vivência e uma
interpretação “verdadeira”. Mesmo sem buscar o sentimento, este faz parte da verdade da arte: “Não pode
haver arte verdadeira sem vivência. Esta começa onde o sentimento põe a sua marca”. A atuação mecânica
“começa onde se interrompe a vivência criadora e a representação artística de seus resultados.” (No puede
haber arte verdadero sin vivencia. Ésta comienza donde el sentimiento pone su sello. (…) …comienza donde
se interrumpen la vivencia creadora y la representación artística de sus resultados.) (Stanislavski, 2003:41-
42).
49

1.3 Os limites do personagem

Na esteira dessa transformação, vamos encontrar dois nomes capitais nesse


processo que leva ao tensionamento da noção clássica do personagem. Um muito próximo
– e ao mesmo tempo distante – ao encenador russo, Vsévolod Meyerhold, outro mais
distante no tempo, mas que sempre se disse devedor das pesquisas de Stanislavski, Jerzy
Grotowski15.
Meyerhold vai buscar na estilização, no ritmo musical, e em um
“convencionalismo consciente”, as ideias chaves para o desenvolvimento de seu trabalho,
que culminará na criação de uma técnica de trabalho bem afastada do naturalismo, a
Biomecânica, mudando o foco da ação realizada pelo ator. Como diz Béatrice Picon-
Vallin, “Meyerhold radicaliza a mudança de ponto de vista elaborada por Stanislavski no
mundo do teatro europeu” (Picon-Vallin, 2006:26), ao elaborar a teatralidade em torno do
ator e seu trabalho, do ator como criador. Tendo sido aluno de Nemiróvitch-Dântchenko
(co-fundador, juntamente com Stanislavski, do Teatro de Arte de Moscou em 1898) no
Instituto Dramático e Musical entre 1896 e 1898, e ator do Teatro de Arte de Moscou nas
suas primeiras temporadas (1898-1902), Meyerhold parte de um aprendizado e de um
trabalho intenso dentro da estética naturalista para uma pesquisa em torno do simbolismo e
da convenção teatral. Num pensamento que se assemelha ao de Stanislavski, Meyerhold
afirmará que “no homem, o interior e o exterior estão sempre ligados. A caracterização é
determinada em cena pela expressão exterior” (Cavalieri, 1996:37), e, afastando-se da
estética naturalista, preconizará uma busca do personagem através do corpo, enfatizando
gestos e movimentos:

O fundamento da interpretação era a racionalização dos movimentos. Longe da


mimeses naturalista, o ator deveria, através de exercícios ginásticos, procurar a
mecânica de seu próprio corpo para a construção da personagem, os gestos e
movimentos do corpo perfeitamente coadunados expressariam um desenho
cênico preciso. (Cavalieri, 1996:04)

Dessa forma, o texto do ator excederia o texto do autor dramático,


constituindo-se de olhares, pausas, movimentos cênicos, gestos e outros procedimentos que
lhe permitiriam “dar de seu corpo perspectivas visuais diferentes” (Picon-Vallin, 2006:28).

15
Grotowski afirmava que, como profissional, havia se formado dentro do sistema do diretor russo, e que, ao
começar sua carreira, seu ponto de partida era a técnica de Stanislavski (cf. Flaszen e Grotowski, 2010, p. 5).
50

Meyerhold, em seu trabalho com o ator e sua técnica, preconiza uma forma de pensar o
gesto e a movimentação como um “desenho de movimentos”: “Os gestos, as atitudes, os
olhares, os silêncios estabelecem a verdade das relações humanas; as palavras não dizem
tudo” (cit. por Bonfitto, 2002:43). A biomecânica apresenta-se como um “treinamento
global”, que, envolvendo corpo e cérebro, não era propriamente um sistema de
interpretação, estando ligada diretamente com o treinamento do ator, explorando as
possibilidades de relação entre movimento e palavra e a importância do ritmo como
norteador da ação do ator. O corpo do ator deveria, portanto, ultrapassar o seu corpo
cotidiano. E, de certa maneira antecipando o que Grotowski fará posteriormente, os
exercícios posturais e acrobáticos propostos por Meyerhold visavam diminuir o lapso entre
o pensamento e a reação do ator. Através da biomecânica, este deveria “desenvolver um
estado de prontidão e a capacidade de reação a fim de diminuir ao máximo o tempo de
passagem entre pensamento-movimento, pensamento-palavra e movimento-emoção-
palavra.” (Bonfitto, 2002:44).
O intenso trabalho físico proposto para o ator partia do desejo de
racionalização de cada movimento dos atores, onde cada gesto e a posição do corpo
deveriam assumir um desenho preciso:

Se a forma é justa, o conteúdo, as entonações e as emoções também serão, pois


que determinados pela posição do corpo, na condição de que o ator possua
reflexos facilmente excitáveis, isto é, que aos estímulos que lhe são propostos do
exterior saiba responder pela sensação, o movimento e a palavra. (Igor Ilinski,
cit. por Conrado, 1969:157).

Assim, os exercícios da Biomecânica serviam para tornar o ator apto a realizar


movimentos conscientes em cena, movimentos que deveriam ser racionais e expressivos
(“Meyerhold fundamentava a biomecânica na natureza racional e natural dos
movimentos”. Conrado, 1969:159). Meyerhold propõe assim uma inversão no sentido da
convenção teatral, que será calcada sobre a razão e sobre as possibilidades expressivas do
gesto, sobre a ligação entre exterior e interior: “No processo criador, o primeiro lugar cabe
ao pensamento: o ator-artista pensa; pelo pensamento assumirá uma postura triste, e será
essa postura que o tornará triste; pelo pensamento correrá, e desta carreira nascerá o medo”
(p. 160).
Afastando-se do ilusionismo que o teatro naturalista pressupõe, o diretor russo
propõe que o público seja um co-criador do espetáculo, conferindo novas funções ao ator e
seu personagem:
51

O objetivo precípuo do ator meyerholdiano não é sentir, mas dominar os meios


de transmitir ao público uma partitura de emoções, questionamentos, impulsões e
deslanchar os processos que convocam imaginação e reflexão, pôr em jogo uma
forte atividade associativa de seu parceiro-espectador sem o qual o espetáculo
não existiria: é nele que devem nascer as emoções ligadas aos sentimentos que o
ator, sem os experimentar, tem condições de suscitar. (Picon-Vallin, 2006:30)

Ao buscar um teatro que se pauta pela convenção, Meyerhold rompe com a


ideia de imitação de ações que caracteriza o trabalho do ator e abre caminho para ulteriores
desenvolvimentos da ação não-realista. Como ele, o polonês Jerzy Grotowski também irá
ultrapassar as convenções e a estética do naturalismo e do realismo e propor formas
diferentes para as ações realizadas em cena pelo ator. Grotowski dizia que, ao longo da
história do teatro, era possível observar o duelo entre duas possibilidades para o trabalho
do ator: em uma o ator imita o comportamento cotidiano, a vida; na outra, ele quer “criar a
impressão de que existe um outro mundo, o mundo do teatro, „dos refletores de arco‟, da
imaginação, da fantasia, na qual a realidade passa por uma transformação16”, (Flaszen e
Grotowski, 2010:130). A pesquisa de Grotowski atravessou diversas fases, mas, desde o
início de sua carreira como diretor teatral, foram o ofício e as técnicas do ator o centro de
seus interesses e, em todas essas fases17 o ator, seu treinamento, a relação com o
espectador, o corpo enquanto fonte de pesquisa e como um material de criação, estiveram
presentes.
Grotowski dizia que, quando iniciou seus estudos teatrais, acreditava que o
método de Stanislavski era “a chave que abre todas as portas da criatividade” (Flaszen e
Grotowski, 2010:06). Nutrindo um grande respeito pelo mestre russo, Grotowski ultrapassa
o conceito de ação física formulado por Stanislavski e chega a uma nova concepção do ato
de representar. Na fase conhecida como a do “teatro de espetáculos”, que é a que mais
interessa para esta pesquisa, por envolver diretamente a relação ator-plateia e o conceito de
atuação, o que buscava Grotowski não era a representação, mas sim um ato total, que
implicasse num desnudamento do ator diante do público. Ludwik Flaszen afirma que
Grotowski “procurava o ator que não fosse ator, a atuação que não fosse atuação, o
ensinamento que fosse desaprender” (Flaszen e Grotowski, 2010:19), argumentando que

16
Grotowski chamava essa possibilidade mais próxima do fantástico de “mundo da ilusão”, reconhecendo,
no entanto, a imprecisão dessa terminologia, pois sabia que em diversos países há essa identificação entre o
processo de imitação da vida e a criação de uma “ilusão”.
17
A do Teatro de Produções ou Teatro dos Espetáculos; do Parateatro ou Teatro de Participação; do Teatro
das Fontes; do Objective Drama; e da Arte como Veículo. Cf Flaszen e Grotowski, 2010:226-243 e Cuesta e
Slowiak, 2007.
52

aquilo que o ator deveria fazer diante do público não era representar, nem alguma espécie
de fingimento de ordem artística, mas sim “um ato real: de coragem, de humildade, de
oferta” (p. 31). Pois o ator é aquele que “trabalha em público com o seu corpo, oferecendo-
o publicamente” (Grotowski, 1987:28). Mais tarde esse ato será compreendido e resumido
na forma do ato total (a “fórmula-chave” do período teatral de Grotowski, segundo
Flaszen). Partindo da ideia de que o aprendizado do ator não deve ser um acúmulo de
habilidades, Grotowski chegou ao conceito de uma via negativa, que se apresenta não
como “uma coleção de técnicas, e sim erradicação de bloqueios” (p. 15), através da qual o
ator não se preocupa mais em como fazer uma determinada ação ou representar um
sentimento: o foco é a eliminação das resistências do organismo do ator aos seus processos
psíquicos, a busca não de um estado “pelo qual „queremos fazer aquilo’, mas „desistimos
de não fazê-lo’” (p. 15, grifos do autor).
A ideia de diminuir ou eliminar o lapso de tempo entre o impulso interior do
ator e a sua reação exterior se assemelha ao pretendido por Meyerhold, mas o fundamento
desse impulso e o ato de despojar-se diante da plateia, fazendo uma “total doação de si
mesmo” (p. 14) – que levou à criação da expressão “ator santo” – conduzem a um
resultado bastante diferente. O “desnudar-se” equivale, para o ator, a expor a parte mais
íntima de si mesmo, um ato de “autopenetração” que revela e sacrifica ao público sua parte
mais dolorosa, “que não é atingida pelos olhos do mundo” (p. 30). Oferece-se em
sacrifício, e atinge uma “santidade secular”:

Se o ator, estabelecendo para si próprio um desafio, desafia publicamente os


outros, e, através da profanação e do sacrilégio ultrajante, se revela, tirando sua
máscara do cotidiano, torna possível ao espectador empreender um processo
autêntico de autopenetração. Se não exibe seu corpo, mas anula-o, queima-o,
liberta-o de toda a resistência a qualquer impulso psíquico, então, ele não vende
mais seu corpo, mas o oferece em sacrifício. (Grotowski, 1987:29)

Não se trata mais, portanto, de encontrar uma forma para construir um


personagem, de encontrar uma imagem ou retratar-se em determinadas circunstâncias, de
“viver” um papel ou, através de uma imagem social (a proposta de Brecht, como veremos
em seguida), levar o espectador a refletir sobre seu “estar-no-mundo”. Para Grotowski, o
fundamental (nesta fase de produção de espetáculos) é “o uso do papel como um
trampolim, um instrumento pelo qual se estuda o que está oculto por nossa máscara
cotidiana – a parte íntima da nossa personalidade –, a fim de sacrificá-la, de expô-la”
(Grotowski, 1987:32). Quando Flaszen, diretor literário do Teatro Laboratório e o mais
53

direto colaborador de Grotowski nesse período, afirma que não é a representação, mas sim
um ato real que o ator deve buscar, embaralha de uma forma inesperada o conceito de
intérprete e de interpretação com que estávamos acostumados a lidar no âmbito teatral.
A exigência de o ator penetrar suas experiências mais íntimas, porém sem o
intuito de usá-las, à maneira stanislavskiana, como matéria prima para a construção de um
outro, do personagem, mas para expô-las e compartilhá-las com o público, implica não
apenas uma nova proposta de relação com os espectadores, mas uma maneira diferente do
ator trabalhar com os seus materiais interiores. Implica numa necessidade de re-atualização
desse material, dos seus impulsos interiores, de forma não apenas a mantê-los vivos e
orgânicos, mas a trazer para a cena a sua experiência:

O ator ali não deveria atuar, mas penetrar os territórios da própria experiência,
como se os analisasse com o corpo e com a voz. Deveria reencontrar os impulsos
que fluem do profundo de seu corpo e com plena clareza guiá-los em direção a
um certo ponto, que é indispensável no espetáculo, fazer essa confissão no
campo que for necessário. No momento em que o ator alcança esse ato, torna-se
um fenômeno hic et nunc; não é um conto, nem a criação de uma ilusão; é o
tempo presente. (Flaszen e Grotowski, 2010:131).

Dessa forma, quando Grotowski fala em trazer à cena a própria experiência, já


estamos muito distantes de Stanislavski, que também se utilizava dos processos internos do
ator. No método stanislavskiano, o ator deve adaptar suas qualidades interiores para criar a
vida espiritual e física do personagem, elaborando uma composição que levaria o ator a
“viver” o papel; no trabalho de Grotowski com seus atores, o objetivo não era o
personagem, que surgia na mente do espectador graças à composição cênica realizada. A
ênfase “não se encontrava na criação do personagem, mas na formulação de uma estrutura
pessoal na qual o indivíduo poderia acercar-se a um eixo de descobrimento” (Richards,
2005:131XVIII). A pesquisa feita em torno das ações físicas visava à descoberta pessoal,
partindo dos impulsos que se ligavam às experiências vividas. Para Grotowski, trabalhar
com esses impulsos interiores, sua concretização em cena, levava a um caminho que, a
meu ver, aproximam o ator de um performer, abrindo trilhas para uma nova forma de o
ator pensar o seu estar-em-cena. Distanciamo-nos já de um projeto de construção do outro
entendido como algo totalmente distinto do ator, mas a construção cênica que este
empreende, baseada na mobilização de todo o seu aparato físico e vocal, impele-o na
direção de um comportamento não natural, onde o “gesto significativo” a forma e o
artifício prevalecem, ou seja, mantendo a possibilidade de compreender esse estar-em-cena
como a materialização de um personagem.
54

Numa linha diferente de Meyerhold e Grotowski, o dramaturgo e diretor


alemão Bertolt Brecht também trouxe o trabalho do ator até um limite no que toca a
maneira do ator conceber e pôr em cena o personagem. Brecht desenvolve a teoria de um
Teatro Épico/Dialético, baseado na dialética e no questionamento da história e das relações
sociais. A crítica às relações que os homens mantém entre si, o desvelamento das forças
sociais que operam e que norteiam as ações humanas fundamenta o processo de epicização
da cena.
Tendo trabalhado com Erwin Piscator na década de 1920, Brecht tem um
percurso que o leva do expressionismo ao teatro como uma forma de conscientização do
espectador. Bonfitto destaca que, na base de sua teoria, encontramos um ponto de vista que
o aproxima de Diderot e Lessing:

... o teatro deve associar em sua prática diversão e instrução. Por instrução, aqui,
deve-se entender a estimulação de um exercício crítico, que pode levar o público
a reconhecer o homem e a realidade não como definitivos e imutáveis, mas como
passíveis de transformação. (Bonfitto, 2002:64)

O teatro épico de Brecht se enraíza no teatro naturalista – por isso muitas de


suas proposições encontram afinidades com o método stanislavskiano – mas seu caráter
anti-ilusionista o afasta definitivamente dos objetivos de Stanislavski. Anatol Rosenfeld
ressalta que Brecht supera tanto “o ilusionismo e o passivismo” do naturalismo quanto o
“antiilusionismo e antipsicologismo dos expressionistas”, refundindo-os através do
marxismo, “do materialismo mecanicista e o idealismo dialético de Hegel” (Rosenfeld,
1985:146) no que chamou de teatro épico.
O que Brecht criticava na forma dramática tradicional era a visão da realidade
como algo dado, algo imutável, que não estava sujeita à transformação pelo homem. Ele
desejava não apenas “apresentar relações inter-humanas individuais – objetivo essencial do
drama rigoroso e da „peça bem feita‟, – mas também as determinações sociais destas
relações” (p. 147), de forma que o espectador tomasse um posição crítica face a esta
realidade. É clara aí a intenção didática de Brecht, no sentido de direcionar a plateia para
esse posicionamento crítico, de desmascarar as forças econômicas e sociais ocultas nos
comportamentos humanos, por vezes os mais triviais.
Combatendo o entorpecimento da plateia e pensando nessa necessidade de
transformação da sociedade, Brecht propôs uma nova função para o ator, que alterava a
forma como este deveria encarar o seu papel e a construção do personagem. Comparando a
55

forma dramática – que chama também de aristotélica – e a forma épica do teatro, Brecht
diz que na primeira o espectador é envolvido na ação cênica, enquanto na segunda ele é um
observador desta (cf. Brecht, 2005:31). Para tanto, no que toca ao trabalho do ator, este
deve narrar, não interpretar, o que implica, de início, na não identificação do ator com o
seu personagem.
O ator deve conceber o homem – e, em consequência, o seu personagem –
como algo mutável, torná-lo seu objeto de pesquisa; é o ser social que deve ser posto em
destaque, não o indivíduo com suas idiossincrasias. Antes que a coerência, o ator deve
prestar atenção às contradições do personagem, pois são nestas que mais se revelam as
tensões entre a linearidade dos acontecimentos e as coerções que as forças sociais impõem
e que costumam passar despercebidas. Já que o homem “não é uma marionete presa em um
destino irreversível e imutável” (Bonfitto, 2003:66), a possibilidade de mudança e
transformação deve ficar clara para o espectador.
Para garantir essa distância necessária para que o ator compreendesse o
personagem de uma forma crítica e o espectador não simplesmente mergulhasse na história
encenada, mas permanecesse em “estado de observação”, perscrutando o que se sucede em
cena como uma possibilidade, não como uma inevitabilidade, Brecht criou uma série de
procedimentos, que ajudariam o público a manter essa atitude crítica. Um desses
procedimentos, os efeitos de distanciamento (Efeito V – Verfremdusgseffeckt),
provocariam no espectador um estranhamento que impediria a identificação automática do
público com o herói e ajudariam o ator a conceber sua interpretação como um comentário
aos atos perpetrados pelo personagem. O distanciamento, para Brecht, era necessário para
que o espectador pudesse analisar os fatos mostrados em cena, para causar um “estado de
surpresa” (Rosenfeld, 1985:155) que possibilitaria a investigação científica e o
conhecimento. Brecht dizia que, para se conseguir o efeito de distanciamento, o ator deve
dar seu texto como uma citação, deve revelar nas ações realizadas em cena aquelas que não
realizou e, em tudo que o ator mostre ao público, o ato de mostrar deve ser nítido,
impedindo-o de produzir o efeito de empatia. Isto não significa que os atores precisassem
renunciar totalmente ao recurso da empatia no momento da construção desse personagem,
na pesquisa do seu comportamento; ele deve “usá-lo apenas numa fase prévia, em qualquer
momento da preparação do seu papel, nos ensaios, e não durante a própria representação”
(Brecht, 2005:103).
56

Assim como não deve metamorfosear-se completamente no personagem, o ator


deve desenvolver os elementos de natureza emocional em forma de gestos. Ele tem de
“descobrir uma expressão exterior evidente para as emoções de sua personagem, ou então
uma ação que revele objetivamente os acontecimentos que se desenrolam no seu íntimo”
(p. 108). Esse gesto deve revelar as atitudes que as personagens assumem umas em relação
às outras. Brecht pensa em um gestus, um “gesto social”, como um conjunto de mímicas,
posturas e enunciados que uma pessoa dirige a outra: “A posição do corpo, a entoação e a
expressão fisionômica são determinadas por um gesto social; as personagens injuriam-se
mutuamente, cumprimentam-se, instruem-se mutuamente, etc.” (p. 155). Distinguindo um
gesto comum de um gesto social, Brecht pondera que este revela uma realidade social, uma
realidade do mundo dos homens, que nos permite tirar conclusões sobre a situação social.
Como Grotowski, Brecht nega a 4ª parede e insere o público na representação,
mas com objetivos diferentes. O ator não pode ignorar o público, pois trava um diálogo
com ele, dirige-se a ele e interpela-o. O ator compõe seu personagem como um narrador:
“o ator épico deve „narrar‟ seu papel, com o „gestus‟ de quem mostra um personagem,
mantendo certa distância dele” (Rosenfeld, 1985:161). Essa distância pressupõe o que
Rosenfeld chama de “um jogo difícil entre a metamorfose e o distanciamento” (p. 161),
uma vez que só é possível se distanciar de algo que já se aproximou, ou seja, o ator deve se
aproximar – inclusive através da identificação – do personagem antes de dele se distanciar.
Assumir o papel de um narrador implica num desdobramento, num jogo em que o ator
deve oscilar entre o personagem (o sujeito da ação) e aquele que narra (o ator, mas não
exatamente esse, já que se trata do ator em “estado cênico”. Discutiremos isso com mais
vagar no capítulo 3). Como diz Rosenfeld

Em cada momento [o ator] deve estar preparado para desdobrar-se em sujeito


(narrador) e objeto (narrado), mas também para “entrar” plenamente no papel,
obtendo a identificação dramática em que não existe a relativização do objeto
(personagem) a partir de um foco subjetivo (ator). (Rosenfeld, 1985:161).

Essa alternância ou desdobramento do ator entre “pessoa” e “personagem” é


levada adiante e mesmo superada em uma série de experiências que tiveram início na
segunda metade do século passado. Os vários desenvolvimentos da exploração das ações
realizadas em cena, tanto no teatro como na dança, e o uso das experiências pessoais dos
atores, vão levar a um paulatino desaparecimento da noção clássica de personagem, como
veremos no próximo capítulo.
57

I
...une figure issue de la réalité et comme une entité autonome qui agit dans un espace tout ensemble concret
et fictif.
II
...est empreinte de familiarité domestique.
III
...a une réalité revue et corrigée...
IV
La culture bourgeoise, en voie de constitution, mettra alors en cause, dans un irrémédiable remueménage,
des notions qui le touchent de trés prés, en affirmant les droits de l‟individu, en décrouvant l‟importance des
strutuctures sociales et du travail de l‟histoire, en mettant l‟économie au centre des rapposts humains.
V
Por otra parte, no es posible arrancarse el propio espíritu y tomar prestado otro más adecuado al papel.
¿Donde conseguirlo? Del papel que aún carece de vida? Podemos pedir prestada una prenda, un reloj, pero
no un sentimiento. Mis sentimientos son inalienables, y los suyos lo son para usted. Actúe siempre em su
propia persona, como hombre y como actor. (...) Todas las veces que actúe, sin excepción, debe acudir a su
propio sentimiento.
VI
Como veis, nuestra tarea principal no consiste sólo en reflejar la vida del papel en su manifestación
externa, sino sobre todo en crear en escena la vida interior del personaje representado y de toda la obra,
adaptando a esta vida ajena los propios sentimientos humanos, dándole todos los elementos orgánicos del
espíritu de uno mismo.
VII
… para observar la forma externa de la manifestación natural del sentimiento
VIII
… la forma artística externa de la creación escénica, que explica visualmente su contenido interno.
IX
El arte no es la vida real, ni siquiera su reflejo. El arte es en sí mismo, creador. Crea a su propia vida, bella
em su abstracción fuera de los limites del tiempo y el espacio.
X
“...bello, pero no profundo. Su efecto es mayor, pero menor su fuerza; su forma es más interesante que el
contenido; actúa más sobre la vista y el oído que sobre el alma, y por eso es más para encantar que para
conmover.
XI
… que en las condiciones de la vida del papel y en plena analogía con la vida de éste, se debe pensar,
querer, esforzarse, actuar de modo correcto, lógico, armónico, humano. (…) …se aproxima al personaje y
empieza a sentir al unísono con él.
XII
En cada acción física hay algo de psicológico, y en lo psicológico algo de físico.
XIII
... se termina en la más repulsiva artificialidad.
XIV
… debe tener una justificación interna y ser lógica, coherente y posible en la realidad.
XV
…tiene un fundamento y un propósito.
XVI
This method brings great concreteness to the work of the actor. It is based on the indivisible unity of the
physical and spiritual life of a person and is built on the correct organization of the physical line of the
actor‟s life on the stage. The purpose of this method is to penetrate, through the logical and correct
fulfillment of physical actions, into those complicated, deep feelings and emotional experiences which the
actor must call out of himself in order to create the given stage image.
XVII
…the transference of the actor‟s attention from the search for feelings inside himself…
XVIII
...no se debia encontrar en la creación del personaje , sino en la formación de una estructura personal en
la que el individuo podía acercarse a un eje de descubrimiento.
59

O ATOR ALÉM DO PERSONAGEM?

O ator pode estar em cena sem representar um outro, sem envergar um


personagem? Neste capítulo discutiremos outras maneiras de abordar o “estar-em-cena”
por parte do ator, versando sobre práticas que não apenas vão ultrapassar o conceito
clássico de personagem, mas irão colocar em xeque a sua própria noção.
Vimos ao final do capítulo anterior como alguns artistas – Meyerhold, através
da estilização, da convenção e do artifício desenhados pelo corpo do ator; Brecht, pelo
distanciamento e pelos processos de narração a que o ator deveria se ater em sua atuação;
Grotowski, pelo desnudamento e pela exposição do ator – levam o conceito de personagem
até o seu limite, sem contudo rompê-lo. Mesmo deixando a cargo do espectador a
montagem e a concretização do personagem, o ator ainda cria ações e atividades que
remetem a alguém que não a ele mesmo, e que se constituem em personagem.
Mas a penetração de práticas advindas da performance e da dança no fazer
teatral irão transformar substancialmente a maneira como o ator desenvolve o seu trabalho,
levando o corpo e a “presença cênica” ao status de parâmetros para a criação deste estar-
em-cena. Transforma-se o modo de se realizar ações em cena, ultrapassando o conceito de
ação física tal como formulado por Stanislavski e desenvolvido por Grotowski,
aproximando-se da noção de evento que a performance valoriza.
O advento de outras formas de narrar em cena, como o depoimento pessoal e
os biodramas, vem diluir ainda mais as fronteiras entre a ficção e a não ficção, trazendo à
tona questões como o enquadramento teatral e os limites da representação.

2.1. A Performance e o ator como performer

Como já dissemos anteriormente (ver Introdução), o final do século XX


apresenta um crescente questionamento do estatuto do personagem, levando à sua diluição,
às vezes quase ao seu desaparecimento. A maneira como o ator pensa e aborda o seu estar-
em-cena transforma-se de forma substancial ao longo do século XX, e chegamos ao final
60

do milênio discutindo ideias como a de um “não-personagem”. A ascensão da


Performance Art e a incorporação de várias de suas práticas no trabalho teatral foram
decerto alguns dos fatores que contribuíram para essa transformação e que trouxeram a
noção de evento, de acontecimento, e a transformação do ator em performer, para o centro
das discussões e pesquisas do teatro.
O teórico e diretor norte-americano Richard Schechner distingue várias
maneiras de se pensar a performance1 e, em consequência, o trabalho do performer:
enquanto ritual, como performance cotidiana e artística. Dessa maneira, “toda a gama de
experiências, compreendidas pelo desenvolvimento individual da pessoa humana, pode ser
estudado como performance” (Schechner, 2003b:27). O que norteia a reflexão de
Schechner é que as performances são feitas de “comportamento restaurado”, isto é, não
apenas a arte exige treino e esforço constante, mas também o comportamento diário é fruto
de um aprendizado, envolve anos de aprendizado sobre as maneiras de se comportar, e
requer “a descoberta de como ajustar e exercer as ações de uma vida em relação às
circunstâncias pessoais e comunitárias” (p. 27).
O desenvolvimento dos Estudos da Performance e, antes disso, a Antropologia
Cultural e a Sociologia, trouxe a possibilidade de se enxergar o comportamento cotidiano
como uma performance. Quando Erving Goffman publica A Representação do Eu na vida
cotidiana (1959), não apenas se apropria de termos teatrais (fala em atores, desempenho de
papéis, plateia, bastidores, etc.)2; ele expõe a performativização que está por trás da nossa
maneira de agir no dia-a-dia, pensando esse comportamento como uma máscara (uma
persona) que assumimos para bem realizarmos as tarefas das quais nos incumbimos no
nosso dia-a-dia. Ao falar em máscara, Goffman não utiliza o termo no sentido pejorativo
de uma “hipocrisia”, mas antes reconhecendo o fato de que todo ser humano está, sempre e
em qualquer lugar, desempenhando um papel, e, na medida em que uma máscara
representa a concepção que formamos de nós mesmos e aquilo que esforçamo-nos para nos
tornar, ela, em determinados casos, pode chegar a ser o nosso eu mais verdadeiro.
Desempenhar bem um papel significa, aqui, sustentar a impressão que causamos nos outros

1
Sempre que nos referirmos à Arte da Performance utilizaremos Performance (com a inicial maiúscula) para
distinguirmos da realização de performances artísticas ou da performance enquanto trabalho ou desempenho
do ator, ou ainda nas acepções que os estudos culturais e etnográficos propõem.
2
Assim se refere Goffman ao seu trabalho no prefácio do livro: “A perspectiva empregada neste relato é a da
representação teatral. Os princípios de que parti são de caráter dramatúrgico. Considerarei a maneira pela
qual o indivíduo apresenta, em situações de trabalho, a si mesmo e a suas atividades às outras pessoas, os
meios pelos quais dirige e regula a impressão que formam a seu respeito e as coisas que pode ou não fazer,
enquanto realiza seu desempenho diante delas” (Goffman, 2002:09).
61

utilizando de artifícios diversos, como um “cenário” adequado, aparência, atitudes, padrões


de linguagem, gestos corporais, expressões faciais etc., que corroborem a imagem desejada
(cf. Goffman, 2002:11-24). O que fundamenta essa representação é a capacidade do
indivíduo de fazer com que os outros “levem a sério” a impressão que ele lhes causa, ou
seja, que eles acreditem “que o personagem que veem no momento possui os atributos que
aparenta possuir, que o papel que apresenta terá as consequências implicitamente
pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser.” (p. 25,
grifo nosso). Pensando no indivíduo que “desempenha” um papel (em inglês, to perform
significa desempenhar, executar, além de representar um papel), Goffman não
obrigatoriamente está se referindo a um “fingimento”, mas sim a uma relação que pode
oscilar da crença ao cinismo em relação àquilo que apresenta em sua “fachada”. A
distinção entre as regiões de fachada (onde a representação ocorre) e de fundo (onde se
passa uma ação relacionada com aquela, mas muitas vezes incompatível com o que é
mostrado em cena, local que chamamos coloquialmente de “bastidores”), será útil
posteriormente para discutirmos a quebra do universo ficcional.
Nessa linha, Schechner, falando sobre os vários tipos de performances que o
ser humano executa, distingue entre fazer crer e fazer crenças, sendo que o desempenho de
papéis, as performances do cotidiano, fazem crenças, criando a realidade social que é
encenada; as performances que fazem crer estão calcadas na distinção entre o que é real e o
que é ficcional, convenções que demarcam “os limites entre a vida e a arte” (Schechner,
2003b:42).
Para pensarmos na distinção entre performances do cotidiano e performances
artísticas, temos inicialmente de pensar na função que estas assumem, já que “não há nada
inerente a uma ação em si mesma, que a caracterize ou a desqualifique como sendo
performance” (p. 37), ou seja, o evento ou ação ser percebido como performance é algo
que depende das circunstâncias culturais nas quais ele está inserido.
Ao criar, em 1959, o termo “performance cultural”, Milton Singer enfatiza a
relação entre a transmissão do conteúdo cultural tradicional das várias culturas e os meios
específicos que elas encontram para fazê-lo (Cf. Carlson, 2010:27). Singer lista uma série
de atividades, que, assim como o teatro e a dança, possuíam “um espaço de tempo
definitivamente limitado, um princípio e um fim, um programa de atividades organizado,
um conjunto de performers, uma audiência, um lugar e uma ocasião de performance” (cit.
por Carlson, 2010:27). Tais como as performances artísticas, estas também se encontram
62

separadas no espaço e no tempo, são “eventos” ou ocasiões à parte – cerimônias, rituais,


casamentos, festividades – que têm essa função de transmissão do arcabouço cultural de
um povo.
O que vai determinar se um evento é ou não considerado como performance é a
função que ele exerce dentro do círculo cultural no qual se insere. Está claro que uma
performance pode ser abordada de várias perspectivas, seja em relação ao seu contexto,
seja quanto às atividades do performer, seja quanto às características ou dinâmicas de sua
produção (ver Carlson, 2010: 22-68). Porém, sob a ótica que nos interessa aqui, é a partir
de seu enquadramento que podemos observar se um fenômeno pode ser considerado como
uma performance artística. De alguma forma, a performance deve ser “marcada” para ser
experimentada como tal; estas “marcas” são de natureza muito diversa, e vão desde
anúncios que comunicam as condições de realização do evento (dia, hora, local, as
restrições de acesso etc.), à maneira como esse evento se insere na vida social da
comunidade (a sua tradição, periodicidade, as estruturas psicológicas comunais
envolvidas).
É a possibilidade de observar e realizar qualquer ação de um ponto de vista
artístico, quebrando as convenções e as marcas que normalmente a envolvem, retirando do
seu contexto ações que realizamos no nosso dia-a-dia, que irá nortear uma parcela
significativa da produção da Performance Art realizada no Ocidente dos anos 60 e 70. Se,
de um ponto de vista ortodoxamente teatral, a inserção da ação dentro do universo
ficcional da peça encenada é o que nos diz que aquela é uma ação artística, a Performance
irá romper com esse procedimento: os performers irão “desvestir” essas ações de sua
ficção, realizando-as como atos “em si”, provocando o estranhamento que decorre do
processo de descontextualização.
A ação de colocar um objeto ou ação fora do contexto ou do espaço e situação
onde ele é normalmente feito ou esperado, é um dos procedimentos típicos da arte de
vanguarda, e foi um dos norteadores da produção artística de dezenas de performers,
influenciando a estética e os métodos de trabalho de muitos criadores e diretores teatrais. O
processo de afirmação da Performance enquanto uma arte autônoma é acompanhado por
uma incorporação de seus procedimentos e conceitos ao teatro. Para Lehmann,

a imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se


encontra no centro da “arte performática”. Assim, é evidente que deve surgir um
campo de fronteira entre performance e teatro à medida que o teatro se aproxima
63

cada vez mais de um acontecimento e dos gestos de auto-representação do artista


performático” (Lehmann, 2007:223).

Especialmente a partir do final da década de sessenta do século passado,


podemos notar uma aproximação entre as duas artes, uma “teatralização” da performance e
uma “performatização” do teatro. RoseLee Goldberg destaca os grandes espetáculos de
Robert Wilson e Richard Foreman que refletiam, ao mesmo tempo, “preocupações com a
arte da performance e o teatro de vanguarda” (Goldberg, 2006:175). Enquanto as
performances eram, até então, eventos rápidos, de curta duração e únicos, Wilson e
Foreman produziam espetáculos ensaiados e de longa duração, podendo ficar meses em
cartaz (apesar de vários dos espetáculos de Wilson nessa época apresentarem essa
característica de eventos únicos, como “MONTANHA KA E O TERRAÇO GUARDenia,
uma estória sobre uma família e algumas pessoas mudando”, criado para o Festival de
Artes de Shiraz, no Irã, em 1972, que teve a duração de uma semana e foi apresentado uma
única vez3). Esse movimento, que Goldberg chama de performance fringe (em inglês
margem, franja, orla), envolveu um número considerável de dramaturgos, músicos e
artistas norte-americanos, incorporando não apenas as experiências do teatro experimental
norte-americano (como o Living Theatre e o Bread and Puppet), mas também assimilando
o trabalho de artistas como John Cage, Merce Cunningham, da Nova Dança e do grupo
Fluxus. A performance fringe “era de natureza não-literária: um teatro dominado por
imagens visuais. A ausência de narrativa e diálogo, trama, personagem e cenário em forma
de um espaço “realista” enfatizava essa „imagem de palco‟” (p. 175). Em meados dos anos
70, a crítica norte-americana Bonnie Marranca cria o termo “Teatro de Imagens” para se
referir a esse tipo de encenação que criava um novo tipo de “gramática visual” (Carlson,
2010:121), que enfatizava os códigos visuais, abdicando de enredos, cenários e
personagens tradicionais, e muitas vezes da linguagem (textual) para se apoiar em outras
formas de percepção.

3
Como relata Calvin Tomkis: “MONTANHA KA iniciou-se („estreou‟ não parece ser a melhor palavra) na
meia-noite do dia 2 de setembro ao pé da colina chamada Haft-tan, ou sete corpos, numa referência aos
corpos dos sete poetas sufis, ali enterrados. A cada novo dia, os performers deslocavam-se para uma área
mais alta da montanha, atingindo seu cume no sétimo e último dia da apresentação. Nos intervalos entre os
diversos episódios, havia sempre atividade numa plataforma erguida ao pé da montanha. Um programa
detalhado mostrava o que acontecia em cada dia, aonde, e por quanto tempo: dezenas de peças individuais,
danças, pantomimas e quadros que haviam sido previamente preparados pelos vários membros da companhia
– o programa enumerava dezessete diretores, nove autores e um elenco de setenta e cinco integrantes” (cit.
por Galizia, 1986:XXX-XXXI).
64

Há uma assimilação de procedimentos advindos da performance que nos


aponta para um fato de extrema importância para o nosso estudo: a paulatina identificação
do ator com o performer. Por um lado, o performer é visto/pensado como um ator
ampliado, algo como o ator/bailarino de que nos fala Eugênio Barba. O fundador da
Antropologia Teatral4 utiliza a palavra teatro para referir-se indiscriminadamente ao teatro
e à dança, e o termo ator deve ser entendido como “ator-bailarino”, não apenas aquele que,
segundo a tradição ocidental, se orienta “por uma rede de ficções, de „se mágicos‟ que
estão relacionados com a psicologia, o caráter, a história de sua pessoa e de seu
personagem”, mas que se volta, antes, para a criação de “um corpo fictício, não uma
pessoa fictícia” (Barba, 1994:57).
Nesta visão, Pavis pondera que muitas vezes o termo performer é usado para
marcar a diferença em relação ao ator, considerado frequentemente apenas como um
intérprete de um teatro marcadamente falado: “O performer, ao contrário [do ator], é
também cantor, bailarino, mímico, em suma, tudo o que o artista, ocidental ou oriental, é
capaz de realizar (to perform) num palco de espetáculo” (Pavis, 1999:284). A performance
do ator é aqui identificada fundamentalmente com o seu desempenho, a sua maneira de
estar em cena, a vocalidade e gestualidade empregada para sustentar essa presença.
Por outro lado, o performer é aquele que executa uma Performance, num
espectro muito amplo e bem distinto do sentido de representação de que se reveste o
trabalho do ator. A amplitude de manifestações englobadas sobre esse mesmo nome – de
Performance – impede uma qualificação única de qual deve ser o perfil do performer,
quais as qualidades que uma pessoa deveria portar ou desenvolver para tornar-se um
performer (como é usual ocorrer em relação ao ator). Como coloca RoseLee Goldberg,

Ao contrário do que ocorre na tradição teatral, o performer é o artista, raramente


um personagem, como acontece com os atores, e o conteúdo raramente segue um
enredo ou uma narrativa tradicional. A performance pode ser uma série de gestos
íntimos ou uma manifestação teatral com elementos visuais em grande escala, e
pode durar de alguns minutos a muitas horas; pode ser apresentada uma única
vez ou repetida várias vezes, com ou sem um roteiro preparado; pode ser
improvisada ou ensaiada ao longo de meses (Goldberg, 2006:VIII).

Assim, o escopo da Performance, e consequentemente o trabalho do performer,


pode variar de ações realizadas sem a presença de um público espectador a intervenções
4
Barba define a Antropologia Teatral como “o estudo do comportamento humano em situação de
representação organizada” (Barba, 1994:25), baseando-se na observação do comportamento cênico pré-
expressivo encontrado na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis das diversas tradições cênicas,
ocidentais e orientais.
65

cirúrgicas no próprio corpo, passando por intervenções urbanas e propostas de interações


entre o artista e o público realizadas em galerias de arte5. Poetas, pintores, músicos,
dançarinos, cineastas, escultores, fazem e fizeram, de forma continuada ou
esporadicamente, uso da Performance como forma de expressão artística, num movimento
que permanentemente questiona as fronteiras da arte.
A “demonstração ao vivo” de uma ideia ou conceito, a realização de uma ação
na presença do público, faz com que se pense não apenas na obra em si, mas no ato que a
constitui. Na década de 50, a action painting realizada por Jackson Pollock, transferia o
foco de atenção da pintura para o ato de pintar, colocando a ação realizada como o ponto
central da arte, transformando “o ato de pintar no tema da obra, e o artista em ator”
(Glusberg, 2009:27), ou seja, naquele que age. Seguindo essa ideia, a arte conceitual não
apenas desdenhava o objeto de arte como desejava reduzir a alienação e a distância entre o
artista e o seu público, e a Performance e o corpo do artista tornaram-se os suportes ideais
para essa proposta6.
O que a incorporação das ideias da Performance e do trabalho do performer
traz para o seio do teatro, é especialmente a quebra com a necessidade de ficção (o
rompimento com um espaço-tempo ficcional) e a noção de evento (mais adiante
discutiremos sobre a ação cênica e sobre o corpo do ator). Não apenas o material sobre o
qual o diretor e o ator trabalham se expande para muito além do texto dramático: a cena é
invadida por uma série de objetos e imagens, que, alterando a relação entre os elementos
cênicos (texto, interpretação, adereços, música, figurinos etc.) propõe uma relação de
parataxe, de coordenação entre esses elementos, que não estão mais subordinados ao texto
dramatúrgico. A narrativa posta em cena, liberta das amarras do texto, é frequentemente

5
Respectivamente, performances de: Theching Hsieh, que construiu uma cela de prisão em seu apartamento
e trancou-se lá por um ano, sem ler, falar, escutar música ou se comunicar com alguém; Orlan, que se
submeteu a várias cirurgias plásticas, colocando em seu rosto elementos de famosas pinturas e esculturas de
mulher, e transformando o próprio corpo em suporte para a performance; Eleonora Fabião, que portando um
cartaz de “converso sobre qualquer assunto”, sentou-se e conversou com várias pessoas no centro de uma
grande cidade; Marina Abramovic, que permitiu que os espectadores usassem nela diversos objetos, entre
eles uma rosa, uma tesoura, mel, uma pistola, uma bala, correntes, caneta, batom, uma câmera polaroid, faca,
chicote. (Cf, Fabião, 2008:235-36)
6
Ver, por exemplo, a performance Zona 5 da sensibilidade pictórica imaterial (1962), de Yves Klein, na
qual este vendia sua sensibilidade em troca de folhas de ouro, que depois foram lançadas no rio Sena,
enquanto o recibo da compra era queimado; Following Piece (1969), de Vito Acconci, na qual este seguia
pessoas escolhidas ao acaso, na rua; Tensão paralela (1970), de Dennis Oppenhein, na qual seu corpo
arqueado criava um eco à forma de um monte de terra (cf. Goldberg, op. cit. p. 139, 146 e 147).
66

construída de maneira não-linear, onde predominam técnicas de collage7, em que cada um


desses elementos fala por si.
Além disso, o próprio trabalho do ator, transformando-se no trabalho de um
performer, também não está mais obrigatoriamente subordinado às exigências de um texto
e mesmo de uma narrativa. O performer costuma centralizar em si todo o processo de
criação, ele é ao mesmo tempo o dramaturgo, o encenador e aquele que atua (que executa a
performance). Impõe a sua marca pessoal, não apenas mostrando suas habilidades, mas
revelando uma concepção de cena (de mundo). Como destaca Renato Cohen, o performer
se torna um relator de seu tempo, equiparando-se a outros artistas que verticalizam todo o
processo de criação artística:

Na passagem para a expressão artística performance, uma modificação


importante vai acontecer: o trabalho passa a ser muito mais individual. É a
expressão de um artista que verticaliza todo seu processo, dando sua leitura de
mundo, e a partir daí criando seu texto (no sentido sígnico), seu roteiro e sua
forma de atuação. O performer vai se assemelhar ao artista plástico, que cria
sozinho sua obra de arte; ao romancista, que escreve seu romance; ao músico,
que compõe sua música. (Cohen, 2002:100)

O ator/performer deixa a sua marca como criador não apenas do personagem,


mas sua presença altera a própria estrutura da encenação. Como a inserção do
ator/performer em cena é muitas vezes determinada por motivos que ultrapassam os da
narração da história – a construção da narrativa da cena independe do enredo (plot) – ele se
torna livre para construção de ações que mostram muito mais da própria personalidade
deste do que das necessidades daquela. Dessa forma, se torna o criador de um “ato
poético” (Gusmão, 2000:51) numa perspectiva performática onde “o trabalho do ator se
estenderá desde a idealização da cena até o final da sua apresentação” (p. 52), tornando a
sua personalidade parte fundamental do processo de encenação.
Em alguns aspectos o trabalho do ator se confunde com o trabalho do
performer, pelo fato de que, em algumas situações, ambos tem as mesmas características.
A perspectiva do teatro performativo leva a esta fusão: Féral (2008), pretendendo
justamente chamar a atenção para a transformação do ator em performer e para a
performatividade da ação, trata-o preferencialmente, mas não exclusivamente, como

7
Renato Cohen ressalta que a collage, “justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas,
obtidas através da seleção e picagem de imagens encontradas ao acaso, em diversas fontes” (Cohen, 2002:60)
é uma das características da Performance. Sua estrutura é utilizada tanto no processo de criação do espetáculo
quanto na elaboração final do mesmo. Seu uso altera a função ordinária dos objetos e elementos cênicos,
alterando suas propriedades originais e criando paradoxos.
67

performer. Mas o escopo do trabalho do performer ultrapassa o do ator. Apesar de, no


contexto de formas teatrais híbridas essas fronteiras ficarem difusas e decrescerem de
importância, há ainda um vasto campo em que se distingue a Performance do Teatro.
Voltaremos a essa questão com mais vagar no capítulo 4, inclusive no que toca a presença
ou ausência de personagens em cena.

2.2. O movimento e a ação como personagens

Quando Stanislavski se volta para as ações físicas como uma maneira de o ator
construir seu personagem e Meyerhold começa a explorar as possibilidades do corpo do
ator, percebemos que a ação realizada em cena pelo ator dá um passo no seu longo
percurso em direção à autonomia. Ou seja, podemos perceber um trajeto no qual essa ação
se vê cada vez menos sujeita a uma lógica que a subordina à história e ao enredo. Levando
essas ações além da necessidade de contar uma história, estariam elas sujeitas também a
ultrapassar a configuração de um personagem?
Encontramos, na história recente do teatro ocidental, movimentos que
propuseram outra lógica às ações do ator. O que se convencionou chamar de Teatro do
Absurdo, por exemplo, rompeu com a necessidade de que as ações estivessem sujeitas a
esse verismo e ao cotidiano, criando, contudo, uma outra lógica que, de certa maneira,
ainda lhes restringia a autonomia, empurrando-a de volta à uma subordinação, quer seja no
plano onírico, quer seja pela própria necessidade de romper com a causalidade do teatro
realista, ou ainda pelo desejo de tecer uma crítica à conduta e à forma de organização da
sociedade da época.
Devemos lembrar que, no Ocidente, quando se fala em Ação do ator, e em
especial em ação física, pode-se imaginar uma linha que parte de Stanislavski, passa por
Grotowski e se estende até os nossos dias. Nessa linha, organicidade e veracidade são
conceitos chaves, e passam sempre por uma justificação interna dessas ações por parte do
ator. Toporkov detalha o processo de aprendizagem do “Método das ações físicas”, que
eram utilizadas tanto no treinamento do ator como na construção de personagens. A ação
não significava simples movimento físico, sendo em sua essência uma ação psicofísica,
envolvendo uma tarefa ao mesmo tempo física e psicológica, pois Stanislavski acreditava
existir uma ligação entre a vida física e espiritual de uma pessoa. Tendo como propósito
68

ajudar o ator a penetrar nos sentimentos e experiências emocionais necessários para viver o
seu papel no palco, o método baseava-se na justificativa dada pelo ator para a realização
dessas ações: “Não há ação física sem desejo, sem objetivos e problemas” (Toporkov,
1998:16I), e o ator precisava justificar internamente essas ações, e era essa justificativa que
conferia a elas – as ações – a sensação de verdade e de genuinidade.
O cerne desse trabalho era sempre as motivações do personagem naquela
situação. A busca era por encontrar tarefas concretas para o ator executar, nada deveria ser
feito de uma maneira “geral”. Tanto a busca de justificativas internas, que passavam pela
criação de imagens vívidas para o ator e o seu parceiro de cena, quanto o próprio foco na
realização de ações físicas – “Não interprete [act] nada, apenas execute [play] cada ação” 8
(p. 86II), dizia Stanislavski nos ensaios –, visavam impedir que o ator atuasse de uma
maneira mecânica e “falsa”.
Porém, enquanto o diretor russo se mantinha dentro dos estritos padrões do
teatro dramático, voltando seus esforços para a concretização cênica de personagens
semelhantes a indivíduos, Grotowski direciona seus esforços para um distanciamento e
uma autonomia do ator em relação ao personagem. Assumidamente um continuador do
trabalho de Stanislavski, desenvolvendo seu trabalho a partir das ações físicas, Grotowski
tinha uma outra visão do que seria a organicidade e a justificativa das ações. De fato, o ato
de “revelação” – o desnudamento do ator diante da plateia, a exibição do que havia de mais
íntimo na pessoa do ator – estava diretamente ligado ao fenômeno da organicidade.
Falando da ação realizada pelo ator e da “forma”, da partitura criada por ele, Ludwik
Flaszen chama-a de “singular ato de conhecimento” e se refere à organicidade como uma
“zona intermediária” entre o que é corporal e o que é espiritual (cf. Flaszen e Grotowski,
2010:26-27). O objetivo da expressividade física levada aos seus extremos é a
manifestação da anulação do corpo, a “eliminação dos obstáculos que o organismo coloca
à fluida realização dos impulsos interiores” (Flaszen e Grotowski, 2010:88). A busca dessa
organicidade nas ações realizadas, leva Grotowski a buscar o “aqui e agora” (hic et nunc),
a reação que ocorresse concomitante ao espetáculo, afastando-se do processo de
“revivescência”, do processo de imitação da realidade e do fantástico, da ilusão. Assim, o
ator não deveria simplesmente atuar, mas “penetrar no território da própria experiência”, e
analisando-a com seu corpo e sua voz, “reencontrar os impulsos que fluem do profundo de

8
Em inglês act e acting são sinônimos de representar. Aqui consideramos “atuação” como o desempenho do
ator em cena, sem pressupor um investimento em “simulação” ou interpretação (ver adiante, a nota 22 deste
capítulo e a discussão do capítulo 4 a partir da escala proposta por Michael Kirby).
69

seu corpo e com plena clareza guiá-los em direção a um certo ponto, que é indispensável
no espetáculo, fazer essa confissão no campo que for necessário.” (p. 131).
Thomas Richards, que trabalhou com Grotowski nos últimos anos de sua vida,
ponderava que a organicidade implicava em simplesmente realizar a ação física, sem nada
acrescentar e sem deixar que nada interferisse nesse processo. A chave estava no processo
corporal, e não se devia em absoluto trabalhar com as emoções. A organicidade

...quase sempre se vê bloqueada por uma mente que se dedica a fazer o que não
deveria, uma mente que tenta conduzir o corpo, que pensa com rapidez e ordena
ao corpo o que ele deve fazer e como. [...] Para que um homem chegue a esse
nível de organicidade, sua mente deve aprender a forma correta de manter-se em
um estado passivo, ou ele deve aprender a ocupar-se tão somente com a sua
tarefa, deixando de intrometer-se para que o corpo possa pensar por si mesmo.
(Richards, 2005:113III)

O que norteava a execução das ações eram os “impulsos”, “uma corrente quase
biológica que surge de „dentro de alguém‟, e tem como fim a realização de uma ação
precisa” (Richards, 2005:157IV). Como todo o trabalho de Grotowski, estava fortemente
ancorado no corpo, mas se revelava como algo que transcendia o domínio do corporal, pois
o ator “capaz de expressar, através do som e do movimento, aqueles impulsos que estão no
limite do sonho e da realidade” é o mesmo que realiza “uma ação de autopenetração, que
se revela e sacrifica a parte mais íntima de si mesmo – a mais dolorosa, e que não é
atingida pelos olhos do mundo” (Grotowski, 1987:30).
É bastante conhecida a história da gênese do personagem Príncipe Constante,
feita por Ryszard Cieslak no espetáculo homônimo9. Cieslak trabalhou meses com
Grotowski sobre uma recordação de sua adolescência, sua primeira experiência amorosa, e
“seus longos monólogos estavam ligados às mais pequenas ações e impulsos físicos e
vocais daqueles momentos rememorados” (Richards, 2005:194V), criando uma distinção
entre as associações pessoais do ator e as ações realizadas por ele, e a lógica da percepção
dos espectadores. Grotowski criava assim uma ruptura entre a concepção e gênese das
ações físicas, e a forma como essas ações eram “montadas” em cena, com toda a estrutura
do espetáculo a lhes servir de suporte para a criação da imagem da cena e do personagem.
Embora a referência para o ator seja uma – no caso de Cieslak a leitura do Cântico
Espiritual de João da Cruz, e a recordação de uma experiência amorosa – na encenação
estas referência servem como palimpsestos:

9
A descrição encontra-se no texto “Da companhia teatral à arte como veículo”, publicado inicialmente no
livro All lavoro com Grotowski sulle azione fisiche, em 1993. (Ver Richards, 2005:181-212).
70

Mas o conteúdo da obra de Calderón/Slowacki, a lógica do texto, a estrutura do


espetáculo que envolve o ator e se vincula a ele, os elementos narrativos e os
outros personagens do drama, tudo isso sugeria que ele era um prisioneiro e um
mártir que tentam destroçar e que se nega a submeter-se às leis que não aceita. E
através dessa agonia do martírio alcança seu ápice. (in Richards, 2005:195 VI)

Para ambos, Stanislavski e Grotowski, a ação física é um meio, mas com


objetivos diferentes: para o primeiro, de criar (ou, de certa forma, recriar, já que partia do
texto e das circunstâncias propostas pelo dramaturgo) a vida de um espírito humano sobre
o palco; no caso do segundo, era uma maneira de encontrar uma forma cênica através da
qual o indivíduo alcançava uma descoberta pessoal. Nesses dois casos, a ação que o ator
faz deve revelar algo: de um lado, a essência do personagem, seu espírito e suas
motivações; do outro, a própria pessoa do ator. Porém, se nas experiências de Grotowski o
ator, ao criar a sua ação, não tem mais como objetivo dar uma forma cênica a um
personagem, o trabalho que ele executa em cena (especialmente na fase do Teatro-
Laboratório) acaba justamente por reenviar a um personagem.
A necessidade de a ação realizada pelo ator ter uma justificativa a partir de um
movimento interno, de revelar algo que não a própria ação, é algo que a Nova Dança,
criada após as experimentações modernistas de Martha Graham e Mary Wigman, vem
romper. Tanto essa dança quanto a dança-teatro, vão incorporar o uso de gestos e
movimentos cotidianos em seu repertório. Não que estes não possam ser “reveladores”,
que não possam contar muito da pessoa ou dos desejos e necessidades do ser humano.
Porém, há uma clara mudança de foco, e o “impulso” e a justificativa para a realização do
movimento se encontram na própria ação, na sua qualidade, seu desenho e forma, e não
fora dele, no ator ou no personagem.
Se a dança-teatro tem suas raízes nos trabalhos de Rudolf Laban e seus
discípulos Mary Wigman e Kurt Jooss10, o uso do acaso e de gestos corriqueiros nas
composições remonta a John Cage e Merce Cunningham. Cage partia da noção de que tudo

10
Laban (1879-1958) utilizava o termo dança-teatro na primeira metade do século passado “para descrever
dança como uma forma de arte independente de qualquer outra, baseada em correspondências harmoniosas
entre qualidades dinâmicas de movimentos e percursos no espaço” (Fernandes, C., 2000:14). Ele estudava o
movimento a partir de seu viés dramático, pensando nas características comportamentais das pessoas,
relacionando esses comportamentos à época e ao lugar em que estivessem: “Um caráter, uma atmosfera, um
estado de espírito, ou uma situação não podem ser eficientemente representados no palco sem o movimento e
sua inerente expressividade. Os movimentos do corpo, incluindo movimentos das cordas vocais, são
indispensáveis à atuação no palco.” (Laban, 1978:21). Laban criou um sistema de improvisações a partir da
tríade Dança-Tom-Palavra (Tanz-Ton-Wort), na qual estudantes usavam a voz, criando peças de dança que
inclusive incorporavam movimentos cotidianos (Cf. Fernandes, C., 2000, p. 14). Kurt Jooss, defendia a
criação de peças de dança associadas a um conteúdo emocional, e seu balé A mesa verde, de 1932, aliava a
dança ao teatro e, mais particularmente, à mímica (Cf. Bourcier, 1987:300-301).
71

o que ouvimos é basicamente ruído, e desejava usá-los não como simples efeitos sonoros,
mas como instrumentos musicais, criando uma “biblioteca de sons”11. Em um manifesto
publicado em 1937, “The Future of Music”, Cage afirma:

Onde quer que estejamos, o que quer que ouçamos, é ruído. Quando nós o
ignoramos, ele nos atrapalha. Quando o ouvimos, achamo-lo fascinante. O som
de um caminhão de 50 cavalos de força, estática entre estações. Chuva.
Queremos capturar e controlar esses sons, usá-los, não como efeitos de som, mas
como sons de feitos musicais. (in Carlson, 2010:108).

Trabalhando com estruturas rítmicas improvisadas, Cage aprofundou os


conceitos de acaso e indeterminação: “Uma peça musical indeterminada, por mais que soe
como determinada, é fundamentalmente privada de intenções, de modo que, em oposição à
música de resultados, duas execuções dela serão diferentes.” (Goldberg, 2006:114). Esse
tipo de música não só permitia uma maior flexibilidade e mutabilidade em sua execução,
levava adiante a ideia de uma “não-intencionalidade”, permitindo ao ouvinte criar
juntamente com o compositor.
Assim como Cage, Cunningham utilizava-se de processos aleatórios e
indeterminação na composição de seus trabalhos. Percebendo que atos como o de andar,
ficar de pé, saltar e outros movimentos naturais podiam ser considerados ou tratados como
dança, passou a incorporar esses gestos em suas composições, dizendo que “se eram
aceitos como movimento na vida cotidiana, por que não o seriam no palco?” (Goldberg,
2006:114). No final da década de 1940, Cunningham, em parceria com Cage, começou a
trabalhar separadamente a coreografia e a composição musical, e, nos anos 50, começou a
utilizar procedimentos aleatórios na composição de suas coreografias, como ele mesmo
explicou:

Tenho utilizado inúmeras e diferentes operações aleatórias, mas em princípio


isso envolve a elaboração de um grande número de frases de dança, cada uma
separadamente, valendo-me então do acaso para descobrir a continuidade – qual
frase deve suceder qual frase, como um determinado movimento opera em
termos de ritmo e tempo, quantos ou quais bailarinos podem estar envolvidos
nele, onde se encontra no espaço e como é dividido. (In Santana, 2002:62)

Dentro do mesmo movimento que revoluciona a dança na segunda metade do


século XX, Ann Halprin cria, em 1955, nos arredores de San Francisco, a Dancers’

11
Em um concerto realizado em 1942, em Chicago, um crítico ponderou que aquilo que Cage chamava de
música, as pessoas chamavam de “barulho”, sendo que os músicos “tocavam garrafas de cerveja, vasos de
flores, chocalhos, cilindros de freio de automóveis, sininhos, gongos” tudo o que pudessem ter à mão (cf.
Goldberg, 2006:113)
72

Workshop Company, e, trabalhando com bailarinos como Trisha Brown, Yvonne Rainer,
Steve Paxton, Simone Forti, com músicos e arquitetos, pintores e escultores, além de
pessoas sem formação artística, incorpora ações do dia-a-dia como comer, andar, banhar-se
e manter contato físico em suas concepções coreográficas, além de interessar-se, tal como
Cage e Cunningham, pela improvisação e pela associação livre (cf. Carlson, 2010:109).
São esses bailarinos que, chegando a Nova York em 1960, realizam uma série
de happenings e eventos na Reuben Gallery e na Judson Church, e fundam em 1962, o
Judson Dance Group. Mantendo a preocupação de Halprin na exploração do simples
movimento físico de um corpo no espaço, criaram uma série de trabalhos em colaboração
com vários artistas e performers, como Robert Rauschenberg (que havia feito o “evento
sem título” em 1952 no Black Mountain College com Cage, Cunningahm e David
Tudor12), o escultor Robert Morris, e Robert Whitman, o que acabou por tornar difícil
definir “se essas obras eram „danças‟ ou „happenings‟” (Goldberg, 2006:131).
O movimento de iconoclastia, de quebra de padrões e paradigmas, de
rompimento de barreiras e preconceitos que caracteriza a década de sessenta do século
passado fica patente nessas palavras da bailarina e coreógrafa norte-americana Yvonne
Rainer, que ilustravam os princípios básicos de seu trabalho:

NÃO ao espetáculo não ao virtuosismo não às transformações e à magia e à


simulação não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela não ao
heroico não ao anti-heroico não ao imaginário do lixo não ao envolvimento do
performer ou do espectador não ao estilo não ao artificialismo intencional não à
sedução do espectador pela astúcia do performer não à excentricidade não à
comoção ou ao deixar-se comover. (Goldberg, 2006:131)

A movimentação buscada pelos bailarinos evitava a estilização, e o corpo não


era tratado como fonte de emoção ou de drama, mas remetido à simplicidade e à

12
Goldberg relata que a preparação para a performance foi mínima, tendo cada músico recebido a partitura,
que indicava apenas “parênteses temporais” que deveriam ser preenchidos como cada um quisesse, de forma
que não houvesse nenhuma relação causal entre um incidente e o seguinte. A plateia tinha a forma de uma
arena quadrada, cortada por corredores diagonais, formando quatro triângulos e “pinturas brancas de um
estudante não residente, Robert Rauschenberg, pendiam do teto. Sobre uma escada dobradiça, Cage, de terno
preto e gravata, leu um texto sobre “a relação entre música e zen-budismo” e excertos de Mestre Eckhart.
Depois executou uma “composição com rádio”, seguindo os “parênteses temporais” arranjados de antemão.
Ao mesmo tempo, Rauschenberg tocava velhos discos num gramofone movido à mão, e David Tudor
pegava dois baldes e vertia água de um para o outro, enquanto Charles Olsen e Mary Caroline Richards,
plantados na plateia, liam poesia. Cunningham e outros dançavam nos corredores seguidos por um cachorro
alvoroçado, Rauschenberg projetava slides “abstratos” (criados por gelatina colorida comprimida entre
vidros) e filmes projetados no teto mostravam primeiro o cozinheiro da escola e depois, à medida que iam
descendo do teto para a parede, o pôr-do-sol. Em um dos cantos, o compositor Jay Watt tocava instrumentos
musicais exóticos, e ouviam-se assobios e choros de bebês enquanto quatro meninos vestidos de branco
serviam café. (Goldberg, 2006:116).
73

banalidade do cotidiano. Ações como andar, comer, trocar de roupa, ultrapassavam a


figuração e o virtuosismo, e o movimento devia seguir suas próprias regras, abdicando da
condução pela música e de tendências interpretativas13. Pina Bausch, que estudou em Nova
York no início dos anos 60, na Juliard School of Music, será influenciada tanto pelos
trabalhos experimentais e interativos realizados nessa época nos Estados Unidos14, como
pela técnica de Kurt Joss, de quem foi aluna e solista em sua companhia. Ciane Fernandes
destaca que essas influências de Bausch, que enfatizavam “as relações humanas, o
vocabulário de movimento cotidiano e a colaboração entre as diferentes formas de arte”
(Fernandes, C., 2000:18), foram incorporadas e alteradas por ela, especialmente no que
toca ao aparato teatral. A coreógrafa, em suas obras dos anos 70 em diante, trabalha com
essa interação entre as artes, materializando, porém, uma teatralidade que reúne a
grandiosidade e uma crítica permanente a comportamentos sociais.
Para Ciane Fernandes, a maneira como Bausch traz a linguagem do teatro e da
dança para o palco explora como intrinsecamente fragmentada a natureza linguística dessas
artes, transformando os gestos e atribuindo-lhes função estética:

No cotidiano, gestos são parte de uma linguagem do dia-a-dia associada a


determinadas atividades e funções. No palco, gestos ganham função estética; eles
tornam-se estilizados e tecnicamente estruturados, em vocabulários específicos,
como o do balé ou da dança moderna norte-americana. Bausch utiliza ambos os
tipos de gestos – técnico e cotidiano. Em muitos casos, o gesto técnico é repetido
até ganhar significação social e estética crítica. Gestos cotidianos, por sua vez,
são trazidos ao palco e, pela repetição, tornam-se abstratos, não necessariamente
conectados com suas funções diárias. (Fernandes, C., 2000:23)

Esta estetização do gesto cotidiano implica numa mudança em seu estatuto: ao


mesmo tempo em que ele é esvaziado de sua significação original, o artificialismo que
perpassa todo gesto culturalmente elaborado é ressaltado por sua repetição, e novos
significados brotam pela contextualização que é imposta aos gestos, resultando no

13
Goldberg descreve assim alguns trabalhos de Ann Halprin: “Objetos de cena como longas hastes de bambu
davam novo alcance à invenção de novos movimentos. Banquinho de cinco pés (1962), Esposizione (1963) e
Desfiles e trocas de roupa (1964) giravam em torno de movimentos relacionados a tarefas práticas, como
levar quarenta garrafas de vinho para o palco, verter água de uma lata para outra ou trocar de roupas; e os
cenários diversificados, como os “blocos celulares” em Desfiles e trocas de roupa , permitiam que cada
performer desenvolvesse uma série de movimentos independentes que expressavam suas próprias reações
sensoriais à luz, à matéria e ao espaço.” (Goldberg, 2006:130).
14
Isa Partsh-Bergson ressalta que nesses trabalhos eram utilizadas “técnicas de colagem, ao invés de temas
centrais [...]; modelos de sons ou de movimentos eram usados em repetição para criar efeitos hipnóticos [...].
Coreógrafos agora estavam colocando seu foco em movimentos de pedestres e observando relações humanas
básicas das pessoas ditas normais”. (citado por Fernandes, C., 2000:17). Isso evidencia a inserção de Bausch
dentro do movimento de ampliação e diluição de fronteiras artísticas que viemos discutindo.
74

“estranhamento” que tantos criadores buscam. Assim, o gesto cotidiano torna-se um


elemento simbólico e estético.
A impressionante fusão feita por Pina Bausch de movimentos baseados nas
técnicas de danças codificadas com movimentos cotidianos, que foram retrabalhados e
repetidos até perderem todo vestígio de uma suposta naturalidade, imergindo-os em uma
linguagem extremamente visual e dramática, conferiu às suas obras uma dimensão sem
paralelos na história da dança15. Por um lado, ela desenvolveu um método de trabalho
(desde Barba-Azul, de 1978) baseado em perguntas e respostas, ou estímulos-respostas,
que envolve uma intensa participação dos bailarinos da companhia. Apresentando-lhes
questões, ou temas, eles “improvisam em qualquer meio desejado: movimentos, palavras,
sons, uma combinação de elementos” (Fernandes, C., 2000:43), e estes elementos são
posteriormente moldados, repetidos, fragmentando as experiências dos bailarinos e
dissociando-as das suas personalidades individuais. As improvisações trazem, dessa forma,
o universo pessoal e social dos dançarinos, que reconstroem em cena suas experiências
pessoais.
Por outro lado, a espetacularidade que envolve as encenações de Bausch, os
elementos cenográficos, música e figurinos por ela utilizados, transportam o espectador
para uma outra realidade, fantástica, utilizando de elementos contrastantes e oníricos ou
transformando o palco “numa realidade irreal, por meio de uso de elementos naturais –
coberto de água, grama ou terra, por exemplo” (Cypriano, 2005:19). Esses elementos
reenviam o espectador para um processo de busca ou de construção de significados que é
tipicamente teatral. No entanto, pela carga semântica trazida pelos corpos em movimento,
estes significados escapam às definições e enquadramentos a que muitas vezes se presta o
teatro. O corpo, “responsável por sua própria expressão no simbólico” (Fernandes, C.,
2000:135), extrapola os limites do personagem, e passa a contar a sua própria história.
Como a Dança Teatro, o Teatro Físico também se pauta por uma autonomia do
corpo, buscando, no entanto, fazer uma fusão entre essa autonomia e o enquadramento que
o universo ficcional do teatro ordinariamente traz. Como diz Lúcia Romano, “o teatro
físico e a dança-teatro são análogos quando questionam a maneira como o corpo é utilizado
[dentro das formas teatrais tradicionais], a constituição das linguagens artísticas
15
Goldberg compara seu trabalho com as experiências de teatro visual realizadas por Bob Wilson, afirmando
ainda que ela “misturou-as com o tipo de expressionismo extático associado ao teatro do Norte Europeu (com
precedentes alemães como Bertolt Brecht, Mary Wigman e Kurt Joss), introduzindo, assim, elementos
teatrais dramáticos e arrebatadores que eram, ao mesmo tempo, uma dança dramática e visceral.” (Goldberg,
2006:195).
75

convencionais e suas próprias escolhas formais.” (Romano, 2005:41). Cunhado


originalmente na Inglaterra pelo crítico John Ashford16 no início dos anos 70, o termo
engloba uma série de produções extremamente variadas, que têm como ênfase o corpo do
ator/performer. Enquanto linguagem, o teatro físico compreende grupos e artistas com
matizes estilísticas e estéticas extremamente diversas, incorporando influências não só da
dança e da dança-teatro, mas do circo, da mímica, do clown e da performance.
Ressalvando que esses elementos, tomados isoladamente, não são suficientes para
classificar uma produção como parte do teatro físico, e que o que as distingue é a ênfase na
corporeidade do intérprete, Romano elenca uma série de características do gênero:
liberdade na fusão do vocabulário físico, dos elementos visuais e do texto dramático,
incluindo as novas tecnologias (arte digital e vídeo), as tradições da mímica corporal, a
Performance e outras; emancipação das barreiras impostas pela dança tradicional e pelo
texto no teatro mais convencional; volta-se para perspectivas globalizantes e de
internacionalização das formas teatrais; nova disposição no papel do ator, com sua
participação no processo de criação e transformação no emprego dos recursos expressivos
e na sua relação com a personagem dramática (ator enquanto máscara); ampliação na
participação do público enquanto intérprete da obra; fusão das dimensões prática e teórica.
(p. 33-34)
O caráter da materialidade e de evento que o teatro físico frequentemente
assume o aproximam tanto da performance quanto da dança-teatro. O ato de colocar o
corpo em destaque, não se dá apenas em função de uma “reteatralização” do teatro:
implica, sobretudo, numa quebra com a linguagem do teatro realista e também com a
identificação das ações realizadas pelos atores com a natureza daquelas feitas nesse tipo de
teatro, movidas pela lógica da causalidade, da verossimilhança e das necessidades internas
dos personagens. A ação executada no teatro físico exige uma outra presença do corpo,
sustentado e exposto numa “fisicalidade audaciosa”, rompendo com o realismo “e o
psicologismo das personagens dramáticas” (Romano, 2005:44). O que se propõe é um tipo
de teatro onde o corpo/voz se transforme em signo, buscando novas maneiras de narrar a
história, traduzir emoções e sensações, e mesmo caracterizar personagens, sempre a partir
do gesto corporal.

16
Segundo Romano, Ashford, à época editor da revista londrina Time Out, teria empregado o termo Physical
Theatre como uma maneira de enquadrar um dos tipos de teatro alternativo realizados na Inglaterra naquele
tempo, respondendo, assim, “a uma necessidade de diferenciação de alguns espetáculos, garantindo a
identificação do produto por parte do público consumidor” (Romano, 2005:25)
76

Percebe-se aí uma fusão do ator com o performer, ou seja, aquele assume


muitas das características deste (ver item 2.1). As suas ações e seus movimentos têm uma
raiz muito forte na mímica corpórea de Decroux e nos trabalhos de Jacques Lecoq e
Philippe Gaulier, aliadas à abstração e codificação que as técnicas de dança proporcionam.
A possibilidade que a performance traz de ser realizada no corpo do performer, libera o
ator do uso obrigatório da palavra, conferindo-lhe a materialidade preconizada por Artaud
e possibilitando novos enquadramentos. Assim, o teatro físico contribui para uma mudança
no estatuto do gesto realizado pelo ator, desprendendo-o do fluxo lógico-causal
característico do teatro naturalista e conferindo-lhe uma liberdade formal e simbólica
inusitada. Esta liberdade afasta-o também da necessidade de caracterizar um personagem,
trazendo sua presença cênica para um limite, onde essa própria presença pode converter-se
em um personagem.

2.3. O ator em cena, sem personagem, e o biodrama – a incorporação do real.

Apresenta-se assim uma outra questão: pode o ator atuar em cena sem mostrar-
se como um personagem? Ou o enquadramento cênico é suficiente para transformar sua
presença em um “personagem de si mesmo”?
Vimos como o questionamento sobre a possibilidade de um ator estar em cena
sem encarnar um personagem apresenta-se como um desdobramento das transformações
pelas quais a dramaturgia da cena passou desde os anos sessenta do século passado.
Falando sobre os estilos de interpretação que a cena contemporânea delineia, Mauro
Meiches distingue três grandes tendências: a encarnação, o distanciamento e a
interpretação de si mesmo. Neste último tipo, “o ator mal se transforma: ele nos diz dele
mesmo através do seu gesto, de sua maneira de falar e o trabalho criado lembra muito um
encontro espontâneo” (Meiches e Fernandes, 1999:06). Este encontro, a diminuição da
distância que separa o público do ator, é um dos pontos principais dessa tendência, que se
norteia pela espontaneidade, pelo uso de improvisações (não apenas durante o processo de
construção da peça e dos personagens, mas durante a apresentação) e de experiências
pessoais dos atores para a elaboração de sua dramaturgia. Estabelecem-se “jogos” entre os
atores e entre estes e a plateia. Investem, assim, na participação do espectador, como
participante ou co-atuador:
77

Abolindo a separação entre palco e platéia, tentam mobilizar a participação do


público tornando o desempenho improvisado, sobretudo na própria atuação do
espectador. Convertem cada representação em verdadeiro “acontecimento
coletivo”, que difere de acordo com a espontaneidade do momento. (Chacra,
1991:34)

Frequentemente são trabalhos coletivos, nas quais o grupo nos conta sobre
fatos do seu cotidiano, os seus desejos e anseios em relação ao teatro, utilizando-se da
criação coletiva como forma de trabalho. O ator caminha não rumo a uma diferenciação,
mas parece-se “consigo mesmo”, indo de encontro “ao seu jeito de ser, ao seu tipo físico e
às suas possibilidades de expressão” (Meiches e Fernandes, 1999:05). A principal
característica desse tipo de construção dramatúrgica é tentar garantir o envolvimento de
todo o grupo no processo de construção cênica, e, mesmo com a presença de um
dramaturgo encarregado de dar uma versão final ao texto encenado (ou de uma equipe
encarregada da dramaturgia do espetáculo), criar a possibilidade da encenação refletir os
desejos e as experiências vividas pelos participantes na montagem teatral.
O apogeu histórico dessa tendência remonta às décadas de sessenta e setenta do
século passado, onde grupos como o Living Theatre e o Open Theatre, nos Estados
Unidos, e o Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Brasil, incorporaram o uso de improvisações
e da gestualidade do ator ao seu processo de construção do espetáculo, criando uma
dramaturgia que refletia as inquietações, as vivências e preocupações do grupo.
O Living Theatre17 foi um dos primeiros grupos teatrais a radicalizar a
experiência da improvisação dentro do espetáculo, junto com a provocação ao público e a
ação dos atores se assumirem em cena enquanto eles mesmos, e não como os personagens
que interpretavam. Tanto em peças como Connection e The Brig, como nos seus trabalhos
criados a partir do seu exílio na Europa, como Paradise Now e Frankenstein, os atores do
Living Theatre incitavam a reação dos espectadores (por exemplo, em Faustina, de Paul
Goodman, em 1952, uma comediante interpelava o público: “Vocês acabaram de assistir
um assassinato, por que não o impediram?” Cf. Aslan, 1994:296), criando uma espécie de
“documentário-provocador”.
Paradise Now talvez seja uma das experiências mais radicais dessa época: este
espetáculo não apenas quebrou fronteiras entre a ficção e a realidade, rompendo a barreira

17
O grupo foi criado em 1947 por Julian Beck – que estudara pintura na New York School – e Judith Malina
– que havia estudado com Piscator quando este estava exilado nos Estados Unidos – e montou vários textos
não-comerciais (como Doctor Faustus Lights the Lights, de Gertrude Stein, em 1951, e Many Loves, de
William Carlos Williams, em 1959) e obras de jovens dramaturgos americanos (como Jack Gelber, The
Connection, em 1959, e Kenneth Brown, The Brig, em 1963) antes de se exilar na Europa.
78

que separa o público da ação desenvolvida em cena; ele também ultrapassou a fronteira
entre o ator e o personagem que aquele mostra ou representa em cena, já que os atores se
apresentavam no palco não sob o véu de uma personalidade fictícia, mas conservando seu
nome, vestimentas e identidade. Essa “identidade icônica” (Elam, 1980) entre ator e
personagem – mostrar o próprio passaporte, enquanto dizia “eu não posso viajar sem
passaporte”, por exemplo – mistura o universo ficcional que o espetáculo institui com a
realidade da pessoa e da vida do ator.
Todo o depoimento pessoal traz para o teatro, em um grau maior ou menor, o
mesmo tipo de questão, da identidade ator/personagem. Em Não desperdice sua única
vida, da Cia. Luna Lunera, cada um dos atores acompanha parte da plateia, que é dividida
em seis grupos, a um espaço cenográfico diferente, e lá realiza um depoimento baseado em
fatos de sua vida (figura 4). Esse depoimento “um relato de fatos, opiniões e pensamentos
pessoais, dá-se como uma conversa na qual cada ator apresenta-se como pessoa, não como
personagem” (Silva, 2006:3), assumindo seu nome e sua história como indivíduo.

Figura 4: Não desperdice sua única vida


Foto: Guto Muniz
79

No que foi chamado aqui no Brasil de Processo Colaborativo18, toda a


problemática do uso de materiais do ator é constantemente retomada, já que muitas cenas
são criadas a partir da história de vida e do depoimento pessoal dos atores, sendo que esse
material também é retrabalhado e utilizado por outros atores (Rinaldi, 2006). A principal
diferença entre esse processo e outros baseados na história de vida pessoal, está na co-
autoria assumida e desejada pelos integrantes da equipe de criação, incluídos aí os atores.
Para Antônio Araújo, no Processo Colaborativo o depoimento pessoal pode funcionar não
só como instrumento de pesquisa (no caso do Teatro da Vertigem, especialmente temática),
mas também se transformar no próprio material sobre o qual a cena é elaborada e
concretizada, um “material bruto” que é transformado ao longo do período de ensaios (cf.
Araújo, 2002).
O depoimento pessoal pode assumir não só um caráter de desvelamento, de
confissão de um segredo ou testemunho, mas também possuir a “qualidade de uma
presença cênica, de expressão de uma visão particular ou de um posicionamento frente à
determinada questão. O depoimento é uma qualidade de exposição de si próprio” (Rinaldi,
2006:139). Quando advém da biografia pessoal do artista, esse depoimento muitas vezes
possui uma carga emocional intensa, estando associado a sensações do ator e preenchido
por conteúdos simbólicos profundos.
Aqui o processo de hibridização entre o ficcional e o não ficcional toma um
primeiro plano: quando o depoimento pessoal é realizado utilizando-se da história de vida
do ator, revestindo-se de um caráter autobiográfico, a questão da veracidade do material (a
sua “realidade”, sua não-ficcionalidade) é colocada em primeiro plano. Inicialmente ela é
garantida por tratar-se de um depoimento verídico, isto é, de um material não ficcional19;
depois, surge para nós a questão da não-criação de um personagem (ficcional), visto o ator
estar “interpretando” a si mesmo.

18
Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, conceitua processo colaborativo como “uma metodologia
de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço
propositivo, trabalhando sem hierarquias – ou com hierarquias móveis, a depender do momento do processo
– e produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos” (Cf. Araújo, 2006:127). Nesse processo,
atores, diretor e dramaturgo, além dos outros profissionais empenhados na construção da encenação, “num
embate corpo-a-corpo dentro da sala de ensaio”, tentam “criar juntos um espetáculo” (p. 127).
19
Não temos aqui a intenção de nos aprofundarmos sobre a questão da “verdade”, isto é, sobre as
possibilidades da realidade envolver artificialidades que mascaram a própria pretensão da verdade, que pode
ter vários aspectos e níveis. O próprio depoimento pessoal, como veremos, envolve distorções que poderiam
pôr em dúvida sua “autenticidade”, a sua veracidade. Interessa-nos aqui a distinção entre o ficcional e o não
ficcional, pensando que o ficcional “surge como representação de algo imaginado, mesmo que a partir de
fatos reais, para a construção de uma ficção. Portanto, é a representação (captação) da representação (dado
em si).” (Soler, 2010, 51).
80

Em relação à questão da autobiografia, Philippe Lejeune observa que podemos


distinguir, nos textos autobiográficos, um plano extratextual – onde se colocam os
problemas relativos à exatidão e veracidade da informação – e um plano textual – onde,
pelas técnicas de narração, se produz a significação (Cf. Lejeune, 1991:57). Em termos
teatrais, podemos traçar um paralelo aqui entre um plano extracênico – de onde provém o
material, sua fonte, a memória do ator – e o plano cênico – onde esse material será
trabalhado, não só dramaturgicamente, mas pela materialidade da encenação. Todo relato
autobiográfico ordinariamente vem envolto na preocupação de dar um sentido aos fatos e
ocorrências da vida, mesmo sendo perpassado pelo aleatório e pelo fortuito:

Cabe supor que o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos em


parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao
mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância,
estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final,
entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de um
desenvolvimento necessário. (Bourdieu, 1998:184)

A biografia e a autobiografia, em oposição às formas de ficção, são textos


referenciais, que trazem uma informação sobre uma “realidade” que é exterior ao texto, (O
que Lejeune chama de “pacto referencial”. Cf. Lejeune, 1991:57), sem contudo, terem a
intenção de esgotar a “verdade”. A autobiografia restringe-se ao possível, à verdade tal
como se parecia ao autor, na medida em que este a podia conhecer etc., deixando margem
aos inevitáveis esquecimentos, erros, deformações involuntárias. Esta inexatidão não tira o
aspecto de autenticidade do relato autobiográfico, no qual podemos enquadrar o
depoimento pessoal.
A utilização de depoimentos pessoais pode ser situada dentro de uma vertente
que é frequentemente denominada de “teatros do real”20, ou ainda teatro “documental” ou
“documentário”, que está baseada no aproveitamento de documentos reais para a sua
composição. José Sánchez destaca os trabalhos de Piscator, de Peter Weiss (a peça O
Interrogatório), o trabalho do grupo francês Le Groupov, Ruanda 94 (sobre o massacre da
minoria tutsi ocorrido em Ruanda no ano de 1994), e de numerosos grupos latino-
americanos (Teatro Experimental de Cali, La Candelaria, Escambray, Yuyachkani), para os
quais “a restituição do acontecido constitui em si mesmo um instrumento de intervenção
social” (Sánchez, 2007:18VII) baseando-se na “vontade de dar voz aos outros” e na
superposição de história e memória. Esse teatro tem como um dos seus aspectos-chave

20
Título do livro de Maryvonne Saison, Les théâtres du réel, publicado Na França em 1998.
81

justamente o aproveitamento de depoimentos pessoais, que seguramente transformam a


relação do espectador com a obra (retomaremos essa questão no capítulo 3). Como um
desdobramento dessa tendência, temos os Biodramas, um projeto desenvolvido em Buenos
Aires por Viviana Tellas, e que convidou 7 diferentes diretores com o objetivo de montar
obras teatrais baseadas na vida de pessoas que viviam à época (entre 2002 e 2004) na
Argentina21. Óscar Cornago, no artigo “Biodrama. Sobre el teatro de la vida y la vida del
teatro”, define Biodrama como um olhar do teatro sobre a vida das pessoas, tendo como
fim “resgatar o seu sentir, seu estar-aí, seu modo (teatral) de ser presença, física e
sensorial, efêmera e imediata, propondo-se ao espectador uma experiência teatral”
(Cornago, 2005:08VIII). Essa recriação da vida dessas pessoas se daria a partir de uma
“exterioridade anterior aos sentidos lógicos e às perguntas transcendentais impostas pelos
discursos culturais”, e visando a essa recuperação das pessoas enquanto presença e
aparência, a partir do ato de tornar visíveis suas ações, gestos e vozes, re-situá-las “no
plano poético da cena teatral” (Cornago, 2005:08IX).
Enquanto dramatização de fatos vividos, especialmente quando aquelas
pessoas que viveram esses fatos encontram-se em cena relatando o vivido, o biodrama – e
aqui vamos usar esse nome em um sentido genérico, tornando-o uma categoria que abarca
essa dramatização do vivido – impõe uma maneira muito peculiar de elaborar esses fatos.
A partir do momento em que uma narrativa é elaborada a partir do “real” – seria melhor
dizer de um recorte do real – a questão da subjetivação se impõe. Esse é um tipo de
questão que é muito discutida na realização de filmes documentários: o quanto a mediação
dos artistas envolvidos na realização dos filmes, a subjetivação imposta, não aproxima o
conteúdo desses filmes dos conteúdos ficcionais. Se parece improvável um registro
objetivo da realidade, o termo não-ficção é usado “para designar toda produção cuja
natureza do comprometimento com a realidade difere da ficção, sem que haja oposição a

21
Em 2002 foram apresentados Barrocos retratos de uma papa, criação coletiva dirigida por Analía
Couceyro, baseada na vida da artista plástica Mildred Burton; Temperley. Sobre a vida de T.C., com direção
de Lucioano Suardi, inspirado na vida de uma mulher de 85 anos, emigrante espanhola; Los 8 de Julio,
dramaturgia e direção de Beatriz Catano e Mariano Pensotti; em 2003 estrearam Sentate!, de Stefan Kaegi,
uma espécie de “instituto zoológico” sobre o mundo dos animais utilizados como mascotes e sua relação com
seus donos; El aire alrededor, dirigido por Mariana Obersztern, um retrato cênico de uma professora rural;
La forma que se despliega, dirigida por Daniel Veronese, que expõe o sofrimento humano diante da perda de
um filho; e em 2004 foi apresentado Nunca estuviste tan adorable, feito por Javier Daulte a partir de suas
próprias memórias familiares. Paralelamente a isto Viviane Tellas apresentou em âmbito privado – fora do
teatro e sem cobrança de ingressos – Mi mamá e mi tia, que nomeava como uma proposta de “teatro de
família”, e que era protagonizada por sua mãe e sua tia de fato (cf. Cornago, 2005).
82

ela, mas que culmine em processos e resultados distintos” (Soler, 2010:22). O não ficcional
é visto, então, não como algo que se contrapõe ao ficcional, mas como algo distinto dele.
Essa não–oposição entre ficção e não ficção nos permite ultrapassar a questão
da referencialidade e debruçarmos sobre o enquadramento teatral, buscando perceber o
quanto ele altera a percepção e o status do próprio evento e de seu conteúdo. Ora, é o
enquadramento cênico que garante a possibilidade de simbolização da ação realizada em
cena, e que a distingue do evento real. Josette Féral reflete que a contextualização e a
dramaturgia propostas pela encenação não apenas conferem um senso estético ao ato, elas
garantem que o olhar do espectador possa distinguir e oscilar entre o que é criado em cena
e a sua concretude material:

A teatralidade vem da divisão entre o espaço cotidiano e o espaço da cena.


Dentro do espaço cênico também tem uma divisão, sobre o que é real material e
o que é criado na cena. E o olhar do espectador sempre faz ida e volta – como
uma agulha – entre o real e a ficção. (...) A experiência teatral é você ver no ator
tanto a experiência do real quanto a da criação, ao mesmo tempo. (Féral,
2011:183)

Dessa forma o evento teatral faz sempre uma oscilação entre o ficcional e o
real, pendendo ora mais para um lado, ora mais para o outro (dependendo do grau de
teatralidade ou de performatividade adotado), sem, contudo, romper com nenhum deles. As
irrupções do real observadas em vários espetáculos desestabilizam a percepção do
espectador, impondo-lhe uma outra maneira de observar o que é posto em cena. A
possibilidade de enxergar no ator tanto a sua pessoa quanto a figura cênica que ele enverga,
permitida pelo enquadramento teatral, remete-nos aos outros pontos que mencionamos
acima, e permite-nos levantar uma questão fundamental para discutir os limites do
personagem no teatro hoje: o ator em cena, mesmo não se apresentando como um
personagem ficcional, mas envergando sua própria identidade e seu nome, não se constitui
em um personagem? O “estado de atuação”, ou o enquadramento que a situação de “evento
teatral” impõe, não modifica o status da própria pessoa?
Renato Cohen distingue entre a figura do ator/performer dentro do contexto de
uma representação cênica e a sua pessoa no seu cotidiano. Para ele, o performer, em cena,
trabalha sobre uma espécie de “máscara ritual”, que é diferente de sua pessoa no dia-a-dia,
não sendo, portanto, lícito falar que ele “faz a si mesmo” (Cohen, 2002:58). Assim, na
performance de Joseph Beuys quem está lá é o próprio artista e não alguma personagem. É
importante distinguir, no entanto, que à medida que Beuys metaforicamente está
83

representando (simbolizando) algo com suas ações, quem está lá é um “Beuys ritual” e não
o “Beuys do dia-a-dia” (Cohen, 2002:58).
Discutindo o que Julian Olf chama de “dialética da ambivalência”, segundo a
qual o ator tem de conviver simultaneamente com seu próprio ser e o de seu personagem,
Cohen pondera que

à medida que o ator entra no "espaço tempo cênico" ele passa a "significar"
(virar um signo) e com isso "representar" (é o próprio conceito de signo, algo
que representa outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto – o qual
tem-se nomeado "personagem" – ou mesmo abstrato (como as figuras que
aparecem em peças surrealistas, por exemplo, Les Mamelles de Tirésias, de
Apollinaire)”. (Cohen, 2002:95).

Cohen imagina situações limites, nas quais há uma ausência de personagem e


só temos o ator (o ator só atua, não interpreta22) e outra em que não há mais o ator, só o
personagem. Porém, o segundo caso só poderia ocorrer em casos clínicos ou de possessão;
e no primeiro caso, uma pessoa não poderia estar só atuando, “porque não existe o estado
de espontaneidade absoluta” (a atuação pressupõe o pensamento prévio a esta, uma
formalização) e porque sempre “existe um lado nosso que „fala‟ e outro que observa”
(Cohen, 2002:96). O caso de um personagem auto-referente, no qual o ator representa a si
mesmo, não altera, para Cohen, este fato, pois ainda assim haverá o desdobramento
ator/personagem.
Trata-se, para Cohen, de uma questão de ênfase na qual os absolutos só
existem no plano teórico. O teatro naturalista se aproxima de uma situação na qual o ator
se anula e se identifica com o personagem; no outro extremo estão a Performance e a live-
art, onde não há mais personagem, apenas a figura do performer. A acentuação do instante
presente, do evento e da ação propostas pela Performance cria uma comunhão com o
22
Em português é costume utilizar “atuação”, “interpretação” e “representação” como sinônimos, para
significar “a arte do ator”, o desempenho de um papel pelo ator em teatro, cinema, televisão etc. Luis Otávio
Burnier propõe uma distinção entre Interpretar e Representar, baseada na distinção entre o intérprete – aquele
que faz uma tradução de um língua (ou linguagem) para outra, que é um intermediário entre o personagem e
o espectador – e o representante – como uma pessoa que representa a outra na sua ausência, numa solenidade
ou cerimônia. Aquele que representa se torna equivalente a outra pessoa, sem ser ela; assim, quando um ator
“interpreta um personagem, ele está realizando uma tradução de uma linguagem literária para a cênica;
quando ele representa, está encontrando um equivalente” (...) “O ator que não interpreta, mas representa,
não busca um personagem já existente, ele constrói um equivalente, por meio de suas ações físicas” (Burnier,
2001:21-23). Em que pese a clareza e adequação do raciocínio de Burnier, os termos interpretar e
representar são utilizados constantemente de forma sinonímica em português, remetendo ao personagem e ao
papel investido pelo ator em cena; de forma que optamos por atuar, não apenas por remeter diretamente à
ação realizada pelo ator, mas também por sua semelhança com os conceitos de actante e atuante, que
colocam de uma forma mais neutra e ampla o trabalho realizado pelo ator em cena. Além disso, permite uma
aproximação com o conceito de “desempenho” e de "performar" uma ação, ou seja, permite ultrapassar a
questão da ficcionalidade que o conceito e a própria apresentação cênica de um personagem por vezes traz.
84

espectador e uma “característica de rito” (Cohen, 2002:97). O Biodrama e o depoimento


pessoal levam-nos na direção da anulação do personagem e da afirmação da figura do ator.
Porém, pensamos, como Cohen, que o desdobramento do ator em personagem continua. A
formalização que o enquadramento cênico prevê garante esse desdobramento.
Essa discussão leva-nos para o próximo tópico deste capítulo, onde
discutiremos a presença e o corpo do ator.

2.4. O jogo e a presença cênica.

Já observamos como, desde o último quartel do século XX, o ator vem


incorporando outras maneiras de construir o seu estar-em-cena, que ultrapassam o que
tradicionalmente chamávamos de personagem, diluindo as fronteiras entre o “eu” (o ator) e
o “outro” (o personagem), e ainda como as ações realizadas em cena se distanciaram da
necessidade de figuração. Resta-nos indagar se o próprio corpo do ator pode constituir-se
em personagem. Interessa-nos aqui discutir o momento em que o corpo deixa de figurar
um personagem ficcional, e se sustenta em cena pelo seu jogo e sua presença.
Claro está que o fenômeno teatral tem como base a presença do corpo – corpo
do ator e do espectador. Como diz Lúcia Romano, isso

não está ligado apenas à sua importância [do corpo do ator] enquanto
portador de um conteúdo, transmissor ou receptor de um significado (seu valor semântico):
ele é mídia do teatro e organizador dos processos cognitivos superiores – de linguagem,
lógica e representação simbólica – e inferiores – de percepção, motivação, etc. (Romano,
2005:168).

Quando se fala aqui de corpo do ator, é preciso estar claro que o corpo de uma
pessoa é um emissor e receptor de estímulos, sensações e informações. Não é um invólucro
onde reside o ser, nem é a matéria (o material) sobre a qual o ator trabalha, ele é o próprio
ser. A separação platônica corpo/espírito deve dar lugar a ideia de corpomente (ver
Dychtwald, 1984), que engloba tanto os aspectos físicos quanto psicológicos de uma
pessoa, e que possibilita que discutamos a energia que o ator, que a sua presença, possui.
Para a Antropologia Teatral, a energia se relaciona com o treinamento
empreendido pelo ator, onde este aprende a controlar suas ações, a executá-las de uma
85

maneira tal, com uma precisão técnica23, que permite ao ator dilatar a sua presença e
projetar sua energia no espaço e no tempo:

Para chegar a conseguir essa força, esta que é uma qualidade indescritível,
intangível e incomensurável, as várias formas teatrais codificadas seguem
diversos procedimentos, um treinamento e exercícios bem concretos. São
exercícios que se baseiam na destruição de posições inertes do corpo do ator,
portanto na alteração do equilíbrio normal e na destruição de dinâmicas de
movimentos pertencentes à cotidianidade. (Barba e Savarese, 1988:56).

Assim, a energia apresenta-se na forma de “um como, não na forma de um


quê.” (Barba, 1994:77). Algumas dramaturgias contemporâneas, cujo programa estético
postula que o ator não deve representar, tanto no sentido de “viver um personagem”,
quanto no sentido de “fingir emoções”, colocam-nos diante de um novo paradoxo: como
estar em cena sem interpretar? De certa forma, se pensarmos no ator e seu corpo, o que se
nos apresenta é uma opção entre um corpo cotidiano e um extracotidiano. O Teatro Físico
e a Dança nos permitem acessar uma forma de teatralidade em que o corpo extracotidiano
está no centro da proposta estética. Porém, onde se instala e aparece o corpo cotidiano?
Não devemos nos esquecer que o corpo cotidiano é também um corpo artificial, isto é,
culturalmente construído. Se esse corpo cênico que a Antropologia Teatral estuda, e que se
apresenta em diversas técnicas ou estilos teatrais, é moldado e formado visando a
especificidade da cena, o corpo cotidiano é construído pensando as necessidades e
características da vida de cada pessoa, que divergem muito em cada cultura e época. Não
há, de certa forma, um corpo “natural”, visto que cada um é fruto de um processo,
adaptando-se às atividades desenvolvidas por cada ser humano. Se o corpo cênico é
construído visando uma “expressão”, o corpo cotidiano é também um corpo permeado de
técnicas, artificial e formado, e, a rigor, expressivo. A presença cênica, do corpo/matéria
dos atores, permanece como uma questão em aberto, quer seja pela exacerbação de sua
capacidade expressiva (o corpo extracotidiano), quer seja pelo apelo à sua cotidianidade (a
tentativa da não-representação)24.
Nesse tensionamento entre um corpo cotidiano e um corpo extracotidiano
(espetacular), o trabalho do ator apresenta-se, então, ora como jogo (cênico), ora como a
apresentação do seu corpo (a performatividade de sua presença). Discutindo a crise do
teatro, sua função e necessidade, Denis Guénoun afirma que o personagem abandonou o

23
Pensamos Técnica aqui como um procedimento que se aprende ou se desenvolve para realizar, de forma
mais eficiente ou expressiva, um trabalho ou uma ação
24
Ver adiante, item 3.1.
86

espaço da representação teatral e que no palco de hoje em dia só resta o jogo dos atores (cf.
Guénoun, 2004. O livro Le théâtre est-il nécessaire? foi publicado na França em 1977). O
que era o eixo central do teatro, os tempos, lugares e ações ficcionais, quedou em segundo
plano; eles tornaram-se “efeitos secundários, que não sustentam mais a singularidade do
teatro e não trazem mais em si nem com eles, a razão de sua necessidade.” (Guénoun,
2004:131). Esse “jogo” realizado pelos atores traz, em si, as características de todo o jogo,
que é facilitar um tipo de experimentação que não traz os “riscos do real”, que foge à
objetividade e ao pragmatismo da realidade, uma vez que “o jogo não provém nem da
realidade psíquica interior (ele se distingue do sonho e da fantasia), nem da realidade
exterior (ele não se confunde com a experiência real)” (Ryngaert, 2009:38). Porém, o
enquadramento teatral, a moldura que reveste as ações realizadas em cena, mantém essa
ficcionalização como algo que não se apaga: permite não só que reconheçamos o evento
como “teatro”, mesmo quando não se percebe mais a cena como portadora de um
“universo ficcional” característico de um teatro mais tradicional, mas que reconheçamos
um outro aqui e agora que permeia e por vezes até se interpõe entre a cena e o que é vivido
simultaneamente por atores e espectadores no momento da cena ou do evento teatral.
Se a necessidade do jogo passa a ser o próprio jogo (como podemos observar,
por exemplo, em alguns espetáculos da Cia dos Atores, como Ensaio Hamlet ou Gaivota:
tema para um conto curto), é este que passa a sustentar a ação cênica e a própria existência
dos personagens; não é mais o enredo e as características dos seres ficcionais, suas
características psicológicas, seus objetivos e mesmo a verossimilhança que determinarão a
ação realizada pelos atores em cena. “É o jogo que sustenta o papel, não o contrário”
(Guénoun, 2004:131), é a necessidade do jogo que determina a constituição mesma dos
personagens, ou das ações dos atores, que são apreendidas pelo olhar do público como
configurando personagens.
Assim, o evento criado pela cena vem destituído – no todo ou em parte – de
seu caráter de remissão a outro tempo/espaço. Por romperem com uma pretensão e
resquícios figurativos, apresentam-se como aquilo que são, atores/performers em um
palco/em uma cena, e, através do jogo

... os atores mostram, hoje, em primeiro lugar, que estão representando. Eles
expõem a nudez de seu jogo, despido dos aparatos e véus do papel, e neste
espaço de visibilidade des-coberta, deixam nascer os efeitos figurais de sua
exibição. (...) Se algo dele próprio (de sua pessoa, de sua identificação, de seu
ser) aí se despe ou se revela, é como jogo. (Guénoun, 2004:132, grifos do autor)
87

Figura 5: De que é meu espaço?


Foto: Maria Luísa Nogueira

Guénoun aponta-nos aqui uma outra possibilidade para a ação e para a


presença cênica do ator, que se assemelha àquela apontada pelas experiências da nova
dança, mas que se abre de uma outra forma: enquanto jogo, o ator não pretende revelar
alguma coisa, seja a si mesmo – como o ator no Teatro-Laboratório de Grotowski –, seja o
mundo ficcional que remete a um outro tempo/espaço. O jogo apresenta-se enquanto jogo,
estratégias que mobilizam os atores ou os põem em relação com a plateia. Poderia aqui dar
como exemplo duas cenas do De quem é meu espaço: na primeira os atores dirigem-se aos
espectadores e pedem permissão para tocá-los, entrar no seu espaço, executar ações25; na
segunda, os atores pegam escovas de dente, escovam os seus dentes, depois os dos colegas
e, em seguida, virando-se para o público (figura 5), vão até as pessoas e, com a mesma
escova, sem palavras pedem/oferecem-se para escovar os dentes delas (apesar de haver

25
A aquiescência do espectador era para nós fundamental para realizarmos um compartilhamento, uma
interferência, e não uma invasão. Assim, as perguntas eram do tipo “Eu posso me deitar a seus pés?”, “Eu
posso encostar meu rosto no seu cotovelo?”, “Eu posso sorrir para você?”, sempre dependendo da permissão
da pessoa para serem executadas.
88

uma ou outra pessoa que recusava a oferta, era grande o número de pessoas que,
normalmente entre risos, se dispunha a participar do jogo.). A narrativa aí é o próprio jogo,
e, se ele se liga ao todo da encenação, problematizando de forma indireta o espaço público
e o privado, a interferência e a invasão do espaço individual, o sentido do jogo se
estabelece ao jogá-lo, não há uma transcendência nem um sentido oculto para além do
jogo: aceitar e recusar fazem parte dele, das suas regras, e aceitação e recusa constituem o
seu sentido e a própria encenação. Observamos que o jogo – que permanece como uma
experiência que foge aos “riscos do real” – ganha uma conotação especial: convidado a
tomar parte dele, o espectador pode escolher entre participar da cena ou manter-se como
um voyeur26.
Esta autonomia do jogo nos leva a modelos de narrativa e registros de atuação
bem distintos entre si, provenientes de materiais heterogêneos e que não se excluem: a
cena se mostra apta a abrigar diferentes linhas estéticas ou tendências que convivem sem a
preocupação da harmonia, isto é, sem a preocupação de construir um espetáculo/encenação
como um todo harmônico (tal qual era pensado o espetáculo e buscavam os encenadores no
início do século vinte), embora se possa estabelecer um conjunto no qual as diversas partes
dialoguem entre si, alternando modelos e formas de atuar. Em meio à multiplicidade e
fragmentação dos jogos e ações realizadas em cena, é o corpo do ator que vai garantir uma
unicidade e um sentido de permanência ao espectador.
Os matizes e as diversas ênfases que permeiam e qualificam a cena
contemporânea levam-nos a distinguir diversos corpos para o ator. Diante de propostas
como a de uma não-encenação (cf. Pavis, 2010:25-40), na qual o ator opõe-se frontalmente
a uma demanda do espectador de ser um representante de um mundo ficcional, e procura
“menos caracterizar um personagem do que deslizar no texto a fim de nele sentir
fisicamente o desenrolar e a trajetória” (p. 32), podemos nos perguntar se esse o corpo do
ator é ainda um corpo fictício.
26
Penso que esse voyerismo mudou de figura dentro do contexto da sociedade do espetáculo. Se, nos moldes
do teatro feito por Stanislavski o espectador se postava diante da cena para ver o que se passava dentro
daquelas “quatro paredes”, para observar o ser humano na sua intimidade, como se espiasse pelo buraco da
fechadura para ver “aquilo que não se diz” nem se pode mostrar em público, a midiatização e a
espetacularização do cotidiano mudou o próprio conceito desse “espiar”, já que há uma míriade de eventos e
fatos que são abordados e criados sob este prisma, de um espetáculo a ser observado e consumido como tal.
Féral, na entrevista citada, refletindo sobre o real espetacularizado que é mostrado e importado para a cena,
pondera sobre a necessidade de ultrapassarmos a imagem, já que “é preciso despir as camadas do espetáculo
para reencontrar a urgência do momento. E aquilo que faz o artista é precisamente procurar o coração do real,
dessa urgência do momento.” (Féral, 2011:185). A performatização empurra o espectador para dentro da
cena, mas a teatralização do evento permite a ele manter a distância que lhe faculta reconhecer o processo
simbólico que garante a ficcionalização da cena.
89

Face a um “corpo dilatado”, preenchido pelos princípios inventariados por


Eugenio Barba quando se refere à pré-expressividade, essa ficcionalização do corpo
(mesmo que distante de uma corporificação de um personagem) fica clara. Esse corpo pré-
expressivo se distingue do corpo cotidiano e reveste a situação de atuação. O ator, segundo
esse modelo, age de forma consciente segundo determinados princípios (mesmo que,
depois de um longo treinamento, a reativação desses princípios seja feita de forma
automática, não consciente) para conseguir uma presença cênica que distingue seu
comportamento cotidiano de seu modo de estar em cena. O corpo fictício é um corpo que
está além (e aquém) do personagem. Moriaki Watanabe, falando das formas tradicionais do
teatro japonês, distingue, entre o corpo cotidiano do ator e o corpo imaginário do
personagem, um terceiro tipo, aquele que o ator porta quando, em cena, não está
interpretando nenhum personagem:

De forma arbitrária, porque não se pôde encontrar palavras mais exatas, fala-se
de um corpo fictif: não ficção dramática, senão o corpo que concentra todas suas
forças em uma certa zona “fictícia”, que finge não uma determinada ficção senão
uma espécie de transformação do corpo cotidiano a um nível pré-expressivo. (in
Barba e Savarese, 1988: 170).

Conquanto Watanabe esteja se referindo a momentos específicos, como quando


um ator, no teatro japonês, se retira de cena e está, por assim dizer, representando “sua
própria ausência”, esse modo de estar-em-cena, sem um personagem fictício, é algo que se
aproxima, por exemplo, da maneira como um bailarino ou um performer atua. É um tipo
de ficcionalização que não se vincula a um personagem, um tipo de corpo fictício que se
liga ao próprio enquadramento do evento teatral.
Como na dança, esse corpo se liga à concretização de uma presença, de uma
existência física distinta de uma existência ficcional. Da mesma forma que, na poesia,
forma e conteúdo (significante e significado) são indissociáveis, o corpo do bailarino é
onde se concretiza a dança (mesmo que, espetacularmente, venha acompanhado de música,
figurinos, luz, concepção espacial e cenográfica). A dança “só existe concretamente nos
movimentos e gestos dos dançarinos, e é incessantemente recriada, a cada apresentação”
(Dantas, 1999:81). O movimento cria, no corpo e no espaço, a presença do bailarino,
sustenta o olhar do espectador e o estar-em-cena do intérprete27. Mônica Dantas observa

27
Como diz Merce Cunningham, “Se um dançarino dança – isto é diferente das teorias sobre dança, ou do
desejo de dançar, ou de tentar dançar, ou de ter no seu próprio corpo a lembrança da dança de um outro
qualquer, mas se o dançarino dança, tudo está lá. O sentido está lá, se é isto que vocês querem. [...] Quando
danço, isto significa: aqui está o que faço. [...] Em dança, trata-se simplesmente do fato de que um salto é um
90

que o dançarino é um “campo de presença”, reunindo e unificando passado (a técnica


aprendida), presente (a atitude) e futuro (potência do movimento):

Nele [no dançarino] futuro e passado se interpõem no presente. Isto porque o


bailarino: a) guarda no corpo o passado, sob forma de técnicas, de experiências
formativas e de vivências incorporadas; b) é o corpo no presente, ao afirmá-lo
em suas atitudes e posturas, torna-se todo aparência e potência para realizar
movimentos; c) esboça o futuro, pois os movimentos que ele executará já se
anunciam na sua postura. (Dantas, 1999:110).

Se este corpo está calcado numa técnica extracotidiana, a utilização de um


corpo cotidiano funda-se na ideia de uma não-representação: o que quer se ver no espaço
cênico é algo e alguém que não seja fictício, uma pessoa que não esteja representando
(fingindo), que não se transfigura em um personagem. Guénoum fala em existência cênica,
calcada na própria apresentação do corpo, que não quer mais “figurar”, e se impõe como
apresentação, não como representação: “esta mostração pretende alcançar uma verdade
que não é a da adequação a uma imagem, mas a da identidade de uma presença” (Guénoun,
2004:133). O jogo proviria, assim, da apresentação do corpo, não da representação de algo
além do próprio corpo. Esta “exibição do corpo” é, de certa forma, como a de um bailarino,
que se ocupa, em cena, da execução do gesto ou movimento segundo uma qualidade, ritmo
ou precisão, cuja “verdade”, consiste em atingir essa qualidade e esse tônus (figura 6); mas
é também a de um performer, que não busca revestir o gesto de uma qualidade que não
seja própria do seu modo de ser “normal”, ou seja, cotidiano (não-representacional).
Esta “reinstituição” da presença (Féral, 2011) relaciona-se com a crescente
“performatização” do teatro. Féral lembra que a performance nos anos 60 insistia no
aspecto processual, não no aspecto do produto (a obra de arte), e que ela “procurava
reinstituir a presença. Era importante essa procura da presença porque a performance
buscava lutar contra a representação. E fazer do espetáculo uma presentação” 28 (Féral,
2011:182).
E, se hoje já é corrente a ideia de termos no palco uma presença, não uma
representação cênica, tal, a meu ver, não se deve apenas a uma questão de referencialidade

salto, e do fato de que este salto toma uma forma. A atenção que dirigimos ao salto elimina a necessidade de
entender que o sentido da dança reside um tudo o que não seja dança. (in Dantas, 1999:85).
28
Tanto Féral quanto Bonfitto usam o termo presentação, enquanto Guénoun e Romano, mais adiante, usam
apresentação. Em que pese a discrepância do termo, parece-me que todos estão se referindo ao mesmo
fenômeno, de rompimento com a esfera ficcional (da ação de referir-se a um outro) e a elevação da presença
(do ator e suas ações) a eixo da cena. Quando não estivermos citando um autor, utilizaremos presentação.
91

da ação29, mas baseia-se, sobretudo, na questão da ficcionalização imposta ou assumida


pela cena. Inegavelmente, a instabilidade e a fluidez dos signos leva a uma indecibilidade
no sistema referencial, o que força o olhar do espectador “a se adaptar incessantemente, a
migrar de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo
sempre a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética” (Féral,
2008:203).
Este processo, pelo qual o corpo do ator abandona a ambição de representar (ou
deixa de tentar fazê-lo) e se dirige à apresentação, indica uma nova maneira de pensar o
papel do ator em cena: “Não se trata da representação de um corpo transformado em
„outro‟, mas a apresentação da realidade material dos processos de conhecimento e
simbolização humanos que se processam pelo corpo.” (Romano, 2005:174). Trazer o ator e
seu corpo para esse registro de significação pressupõe o abandono da representação
mimética e uma outra maneira de elaborar os códigos corporais, que não só expõe as
estruturas de construção cênica, como as elege como eixo da narrativa.
Lúcia Romano fala em performação, ao propor que “o ato artístico do Teatro
Físico, ressignificado por um novo papel do corpo, provoca um alargamento dos limites da
convenção teatral e da experiência corporal” (p. 189). Esse alargamento inclui a tensão
entre ficcional e real – própria dos atos performáticos – e um extravasamento do papel do
ator para além da constituição de personagens (tradicionalmente falando). No Teatro Físico
o ator/performer “privilegia o „fato performance‟, ao invés da criação da personagem” (p.
194), reforçando a relação entre o corpo como suporte e o instante material, e a
ambiguidade entre o campo ficcional (o enquadramento teatral) e a vida (a experiência do
cotidiano). A performatividade que caracteriza esse segmento do teatro contemporâneo
propõe esse jogo com os sistemas de representação, onde o real e o ficcional se
interpenetram.
Dessa forma, o ator passa a oferecer sua performance (as ações – o jogo – que
realiza) e sua presença para a contemplação do público, que passa a ter de se posicionar

29
Bonfitto, no texto “O ator pós-dramático: um catalisador de aporias?” discute, a partir de Lehmann, a
relação entre presentação e representação. Para ele, a esfera de representação está ligada ao grau de
referencialidade que ela apresenta: “todo processo ou procedimento de atuação, que remeta a códigos e
convenções reconhecíveis culturalmente, será considerado neste texto como manifestações da esfera de
representação” (Bonfitto, 2009:90). A esfera de presentação utiliza processos e procedimentos que não são
prontamente reconhecidos como “patrimônios de códigos e convenções sócio-culturais”, comportando um
grau significativo de auto-referencialidade e ligando-se ainda aos “modos de articulação e reinvenção” desses
códigos e convenções (p. 90-91).
92

face a elas. Nessas dramaturgias de fronteira, onde nem sempre o personagem se


estabelece

Dá-se um jogo com os próprios sistemas de representação, justamente por ser


impossível decidir os seus limites, por suas fronteiras terem sido rompidas e
misturadas. O ator, não renunciando a sua identidade ao mesmo tempo em que
assume o seu “estado de performance”, embaralha a visão do espectador sobre a
permanência dele, ator, em um dos lados dessa fronteira, entre a ficção e o real,
apagando-a. Exerce-se o direito à indecibilidade, obrigando o espectador a um
constante reposicionar-se para fazer face a obra. (Silva, 2009)

Percebemos então várias possibilidades nas quais se ramifica o trabalho do


ator, e que não só propõem maneiras diversas para o seu estar-em-cena, como nos levam a
pensar como qualificar e nomear essas formas que seu trabalho assume. Romano atenta
para a possibilidade de se reconhecer uma nova materialidade do ator no processo de
construção teatral, que estaria fora dos moldes da personagem dramática. Assim, no Teatro
Físico o conceito de personagem “poderia, então, ser substituído pelos termos figura,
máscara e imagem cênica, desde que ficasse explícita a metamorfose pela qual passe o
atuante, porém sem interferir obrigatoriamente no plano psicológico de identificação ou
nas emoções do ator.” (Romano, 2005:197). Já Bonfitto discute as várias possibilidades de
existência de seres ficcionais no palco, distinguindo entre “actante-máscara” (que engloba
o personagem-indivíduo e o personagem-tipo), “actante-estado” e “actante-texto”30 (cf.
Bonfitto, 2003:127-137). Essas duas últimas categorias vinculam-se a um desprendimento
da sucessividade lógico-causal e a processos de espacialização e desreferencialização do
personagem. Veremos estas possibilidades de definição e aplicação no próximo capítulo.

30
Bonfitto define o actante-estado como aquele que surge a partir de uma “destemporalização” do
personagem, espacializando-a. No actante-estado “não encontramos ações passíveis de serem definidas do
ponto de vista de sua importância para o desenrolar da intriga, nem é possível encontrar em tal ser ficcional
uma estrutura lógico-temporal. Se o processo de modalização das ações é excessivamente acentuado, ele
pode provocar o desaparecimento da intriga, permanecendo assim, somente o enunciado. Nesse caso conta-se
com um fazer, mas esse fazer é incapaz de contar uma história.” (Bonfitto, 2003:134) O actante-texto surge à
partir da submissão do actante à auto-referencialidade do texto: “O texto passa a impor as suas leis, é o texto
que fala, é o texto que age. Vemos surgir, dessa forma o actante-texto.” (p. 134).
93

I
There is no physical action without volition, without objectives and problems.
II
Don‟t act anything, Just play each action. (grifos do autor).
III
…casi siempre se ve bloqueada por una mente que se dedica a hacer lo que no debería, una mente que
intenta conducir al cuerpo, que piensa con rapidez y ordena al cuerpo qué debe hacer y cómo. Esta
interferencia normalmente se traduce en una forma de moverse brusca y entrecortada. (…) Para que un
hombre llegue a ese nivel de organicidad, o bien su mente debe aprender la forma correcta de mantenerse en
un estado pasivo, o bien debe aprender a ocuparse tan sólo de su propia tarea, dejando de entrometerse para
que el cuerpo pueda pensar por si mismo.
IV
...una corriente casi biológica que surge “dentro de uno” y tiene como fin la realización de una acción
precisa.
V
Sus largos monólogos estaban ligados a la más pequeñas acciones de acciones e impulsos físicos y vocales
e aquel momento rememorado.
VI
El contenido de la obra de Calderón Slowacki, la lógica del texto, la estructura del espectáculo que
envuelve al actor y se vincula a él, los elementos narrativos y los otros personajes del drama, todo esto
sugería que él era un prisionero y un mártir al que se intenta destrozar y que se niega a someterse a las leyes
que no se acepta. Y a través de esta agonía del martirio alcanza su cima.
VII
…la restituición de lo acontecido contituye en sí mismo un instrumento de intervención social.
VIII
... rescatar su sentir, su estar-ahí, su modo (teatral) de ser presencia, física y sensorial, efímera e
inmediata, proponiéndole al espectador una experiencia teatral…
IX
...exterioridad anterior a los sentidos lógicos y las preguntas trascendentales impuestas por los discursos
culturales, … (…) …en el plano poético de la escena teatral.
94

CAPÍTULO 3
O ATOR E SUAS AÇÕES: REGISTROS DE ATUAÇÃO

Figura 6: De quem é meu espaço?


Foto: Maria Luísa Nogueira
95

O ATOR E SUAS AÇÕES: REGISTROS DE ATUAÇÃO

De que maneira podemos pensar o trabalho do ator diante das várias formas
como o personagem – ou o outro do ator, sua persona ou máscara – se apresenta na cena
teatral no início deste milênio? Pudemos perceber que, atuando em um limiar entre o plano
da ficção e o do real, o ator provoca um tensionamento entre esses planos. Nessa tensão se
apresenta a questão da indecidibilidade entre a representação e a presentação (ou
apresentação): não apenas o espectador, também o ator se vê suspenso entre a
representação de um outro e a colocação em cena de estados, memórias e imagens que
remetem ao seu próprio eu.
Transitando entre o depoimento autobiográfico e a realização de ações que
remetem ao performativo e não à construção de um personagem ficcional, o ator se vê
diante da necessidade de repensar a sua maneira de atuar, lançando mão de distintos
registros de atuação, que lhe permitam e facilitem o trânsito entre esses diversos estados
cênicos.
Abordaremos a seguir algumas questões que ficaram em suspenso ao final do
segundo capítulo, e veremos como o enquadramento teatral modifica a maneira como
percebemos o real introduzido na cena, e como isso se relaciona com a forma como o ator
realiza seu trabalho.

3.1 Plano da Representação X Plano da Presentação

Observamos que o enquadramento teatral – tal como é formalizado na cena que


estamos estudando – vai justamente provocar uma mudança na relação entre os planos da
representação e da presentação (ou apresentação). Podemos notar ainda que, o que era
uma característica estrutural do fenômeno teatral, torna-se uma questão dramatúrgica e
estética nas encenações do final do século XX e início do XXI.
Falamos anteriormente (ver cap. 2, item 2.3) em uma oscilação entre o
ficcional e o real que o evento teatral traz por sua própria estrutura. Como escrevi em outra
96

ocasião (Silva, 2010), o princípio da denegação atua no fenômeno teatral de forma a


garantir que aquilo que é posto em cena seja percebido como um discurso “não-sério”,
onde as ações e afirmativas nele contidas não têm um valor de verdade, já que não
comprometem “aquele que as profere como um julgamento ou uma frase da linguagem da
vida diária” (Pavis, 1999:167). É este princípio que concretiza a duplicidade do espaço e
do evento teatral: temos, por um lado, a materialidade dos corpos, dos objetos, do espaço
cênico e do próprio tempo, que engloba atuantes e espectadores, e cuja realidade não pode
ser negada; por outro, é insofismável o caráter excepcional do evento teatral, no qual as
ações vêm revestidas de um “desligamento” da realidade cotidiana, constituindo uma
espécie de “zona dupla” a que se refere Anne Ubersfeld (2005, p.22), excepcionalidade e
desligamento que têm como marca a ficcionalidade1. Assim, o fato de o evento teatral ser
uma espécie de “construção imaginária”, garante a possibilidade das ações executadas em
cena estarem implicadas no processo de simbolização que caracteriza os objetos e ações
artísticas, processo de construção de sentido que é a base de toda obra de arte.
O espetáculo teatral se caracteriza por ser constituído desses dois planos que
correm paralelos e concomitantes durante todo o decorrer da encenação, e que se tornam
mais ou menos visíveis ao olhar do espectador conforme as pretensões estéticas (e
ideológicas) do encenador ou dos performers. Para Erika Fischer-Lichte, a tensão entre a
realidade e a ficção, entre o real e o fictício, caracteriza o teatro onde e quando ele ocorra.
Discutindo sobre a realidade e a ficção no teatro contemporâneo, ela distingue entre a
ordem da representação e a ordem da presença. A ordem da representação se refere
explicitamente ao universo ficcional posto em ação pelo evento teatral, e nela “tudo o que é
percebido faz referência a um caráter ficcional particular” (Fischer-Lichte, 2007:18I). O
processo de percepção destina-se a permitir que uma figura dramática, um personagem,
passe a existir, e os significados gerados constituem, em sua totalidade, esse personagem
dramático. Já a ordem da presença, seguindo princípios completamente diferentes, surge
(ou ocorre) quando o corpo do ator “é percebido em sua fenomenalidade, como seu
particular estar-no-mundo (being-in-the-world)” (p. 18II). Nesta ordem, o processo de

1
Diversos eventos – rituais, cerimônias – também têm o caráter de excepcionalidade, produzindo uma quebra
no cotidiano, mas produzem modificações concretas na vida dos que passam por ele (como uma mudança no
status social – de solteiro para casado, por exemplo), e os jogos também obedecem a regras próprias, que
transcendem as do dia-a-dia (permissões para agressões, furtos, blefes...). Richard Schechner observa que
brincadeiras, jogos, esportes, teatro e ritual são atividades que compartilham uma série de qualidades básicas:
“1) uma ordenação especial do tempo; 2) um valor especial dado aos objetos; 3) não-produtividade em
termos de bens; 4) regras” (Schechner, 2003a:08). Schechner o parentesco dessas atividades, tratando-as
todas como “fenômenos da performance” (Idem, p. 19).
97

percepção e geração de significados leva a um grande número de associações, nem sempre


relacionadas diretamente com o que é percebido; essas associações, memórias e imagens
surgidas são de certa maneira imprevisíveis, no sentido de escaparem ao controle dos seus
“criadores”, movendo-se decididamente em direção à audiência.
Esta ocorrência pode ser pensada e sentida como algo inevitável, uma
desestabilização da ordem que ocorre eventualmente em qualquer espetáculo teatral: os
espectadores percebem as ações apresentadas no palco como parte de um universo
ficcional, centram nele sua atenção e observam os elementos da cena e seu
desenvolvimento espaço-temporal como fazendo parte desse universo; por vezes, desviam
sua atenção para a figura do ator, seu desempenho, a beleza do texto, da música ou dos
objetos cênicos, percebendo-os enquanto tais, enquanto elementos construtores dessa
ficção, sem, no entanto, romper a ligação com ela. Esse tipo de desestabilização não
compromete ou não “tensiona” o processo de percepção. Entretanto, quando os criadores
teatrais da virada do milênio deliberadamente jogam com a relação entre a ficção e o real,
colocando em primeiro plano não só o corpo do ator, sua materialidade, mas as
particularidades e as qualidades do espaço, das ações realizadas, trazendo elementos reais
para cena não como um simples efeito (que teriam, de fato, a intenção de acentuar a
ficcionalidade e a ilusão do que está sendo visto), mas como uma irrupção do real em cena,
provocam não um deslizamento, mas uma quebra, um rompimento e uma descontinuidade
no plano (ou ordem) da representação, acentuando o plano da presença.
Os diversos pensadores e teatrólogos que se debruçaram sobre a relação entre
esses planos, destacaram o confronto e a oposição (ou a fricção) entre a matéria sensível e
o campo simbólico. A oposição entre materialidade dos elementos que compõem a cena
teatral (e, portanto, a sua presença) e o campo simbólico que esta mesma cena instala,
constitui o que é chamado “princípio da literalidade”. Jean-Pierre Sarrazac2 observa que
esse princípio opõe a realidade sensível ao símbolo, destacando que a função de um
“objeto literal” não é simbolizar, “mas estar presente, e, pelo jogo dessa simples presença,
produzir ação e situações” (Sarrazac, 2012:102). Liga-se, assim, ao ato de transformar o
evento teatral em um acontecimento, valorizando o momento presente da apresentação.
Silvia Fernandes pondera que esse princípio, ao colocar em jogo (ou em confronto) a

2
Sarrazac remonta a Artaud – que já em 1926 propunha que objetos e acessórios deveriam, no palco, ser
compreendidos em um sentido imediato, sendo tomados, portanto, não por aquilo que podem representar,
mas por suas características sensíveis –, para discutir a oposição entre um teatro que tem como desafio
estético “representar o real” e os que se baseiam na presença teatral pura (cf. Sarrazac, 2012:102-103).
98

materialidade dos diversos elementos que formam a cena, engendra uma espécie de
“intensificação” e uma “manifestação extremada” da matéria teatral, implicando em uma
“teatralidade onde o sensível se torna significante” (Fernandes, S., 2010:122).
Podemos então pensar que essa mudança ou oscilação de planos implica num
outro tipo de teatralidade, que se volta para a matéria sensível. Para Denis Guénoun foi a
busca de uma “essência teatral”3 o que levou a se colocar diante do público aquilo que é
sensível e material no teatro, o “estar-aí da coisa”; assim, o teatro torna-se um “gesto de
mostração, (...) a coisa em si em sua fenomenalidade” (Guénoum, 2003:68). O ato de pôr
em cena o corpo do ator e o seu jogo, o interrogar-se sobre esse aparecer, é o que constitui
a teatralidade.
Quando algo, objeto ou ação, aparece em cena enquanto fenômeno e matéria,
quando o jogo do ator surge enquanto jogo e não como sustentação de um personagem ou
de um universo ficcional, temos esse deslocamento em direção ao que Fischer-Lichte
chama de ordem da presença – e que aqui designamos de plano da presença ou
presentação. Naqueles tipos de teatro chamados de performativos ou pós-dramáticos a
oscilação entre os planos da representação e da presença, que o duplo estatuto do signo
teatral4 já promovia e garantia, é exacerbada. Essas novas dramaturgias cênicas criam uma
instabilidade cênica constante; há, por um lado, um processo de ruptura, e por outro o
surgimento de um novo paradigma, que envolve uma outra forma de participação do
espectador.
Ao colocarem a ênfase sobre a ação em si e não sobre o valor dessa ação
enquanto representação, esses teatros, performativos, engendram o que Silvia Fernandes
qualifica como uma “tentativa de escapar do território específico da reprodução da
realidade para tentar a anexação dela, ou melhor, ensaiar sua presentação, se possível sem
mediações” (Fernandes, S., 2010:128). O que muitos criadores buscam, nesse processo de
diluição da representação e afirmação da presença, é ir além das possibilidades da própria

3
Guénoun associa a necessidade dessa busca ao surgimento do cinema, que questionou a especificidade do
teatro, assim como a fotografia fizera anos antes com a pintura. Também Féral (2004), discute o que seria a
especificidade da linguagem teatral, levando contudo esse questionamento até a dissolução de limites
causadas pelo surgimento de novas práticas artísticas, happenings, Performance, novas tecnologias etc.
Retomaremos a discussão sobre a teatralidade adiante (ver item 3.3).
4
Como pondera Sílvia Fernandes, esse duplo estatuto gera um enorme complexidade semântica: “Enquanto
signo performático, o signo teatral é seu próprio referente. Enquanto signo ficcional, ao contrário, ele
significa uma personagem, uma fábula, uma época, enfim, tem relação com o universo cultural de referência
do espectador, um universo imaginário que pode remeter a alguma coisa no mundo” (Fernandes, S.,
1996:288). Essa duplicidade, que pode ser mais ou menos acentuada em cada espetáculo ou evento teatral,
implica em um constante deslocamento do espectador do plano ficcional para o plano real da cena e vice-
versa.
99

representação; a recorrência ao performativo, àquilo que se estabelece, por sua


performatividade, enquanto presença, é uma tentativa de superar os limites impostos pela
simbolização.
No entanto, o enquadramento teatral mantém o absoluto dessa possibilidade em
suspenso. Se os teatros performativos provocam uma diluição e mesmo uma suspensão no
estatuto da representação, a sua constituição enquanto “evento teatral” coloca o “real” e a
presença num viés que reposiciona (de certa forma retoma e reinstitui), se não a
ficcionalidade, a artificialidade da ação executada. Quando fala do enquadramento teatral,
Josette Féral (2011) destaca tanto o senso estético, que a contextualização dramatúrgica
garante, quanto a função metafórica5, fundamental para o teatro ser entendido enquanto tal,
e sua relação com o espectador. Féral parte da constatação que as formas teatrais atuais já
não têm como propósito lutar contra o princípio da representação (como as performances
da década de 60), visto que a ideia e o ato de fazer do espetáculo uma presentação já é uma
realidade, se não cotidiana, contumaz, tendo se tornado uma prática seguida por diversos
criadores. Decorre disto que a insurgência do real é hoje um fato recorrente não apenas
como afirmação da presença, mas que provoca e desestabiliza a percepção, levando o
espectador a observar a cena de uma maneira diversa da habitual, uma vez que é
constantemente requisitado a transitar entre os planos da presença e da representação,
sendo instado a reagir de uma forma também diversa.
A contextualização, que a dramaturgia da cena possibilita e instaura, procura,
de alguma forma, instaurar algum sentido, alguma possibilidade de simbolização. A ação
de se mostrar em cena um objeto/ação que não remete a nenhum universo ficcional, que,
por sua performatividade, se apresenta como ação ou fato real, e que, portanto, se inscreve
dentro do evento como um ato não-ficcional (uma presença), é sempre marcada pelo
enquadramento da performance teatral. A eleição de uma moldura para que essas ações
sejam mostradas suspendem esses atos, separam-nos da realidade cotidiana, retomando,
assim, o princípio da denegação. Este emoldurar distingue o evento enquanto algo
particular, teatro, de um discurso sobre o real, e não como um ato performático realizado
no cotidiano.

5
Para Féral a função metafórica é a coisa mais importante no teatro, o que distingue esse ato de outras ações
cotidianas. Falando sobre espetáculos que remetem ou contém cenas de morte e de violência, ela diz: “E aí
que o espectador intervém. É aí que a inteligência do espectador é solicitada. E, nos espetáculos de violência
bruta, ela não é solicitada. Não estamos no domínio metafórico, estamos na realidade. Mas a realidade só é
interessante quando está enquadrada e explicada”. (Féral, 2011:183). Parece-me que estamos aqui muito
próximos da função simbólica a que fizemos referência acima.
100

O teatro, enquanto evento, traz a marca desse não-real, reveste-se de uma


suspensão, de um hiato que permite ser observado e sentido enquanto metáfora e símbolo.
A ação do espectador só é possível a partir dessa percepção do ato enquanto evento
destacado do real, mesmo que os artistas-criadores ensejem criar um evento que se torne
um ritual, e transformem os espectadores em testemunhas e participantes de uma
experiência6.
O processo de presentação de ações e fatos reais em cena é análogo àquele
empreendido pelo documentário cinematográfico, no sentido deste ser não apenas um
retrato da realidade, mas uma espécie de evidência desta, requerendo um tratamento
criativo das imagens e, dessa forma, da própria realidade. Ao paradigma da “não-
intervenção”7 se contrapõe a evidência de que toda a imagem recebe uma forma de
tratamento, mesmo que este seja o de tentar não tratá-la, ou seja, explorar a sua crueza e a
sensação de “verdade” que ela transmite. A mesma questão se faz presente no evento
“teatro”: ele também não possibilita uma simples apresentação de eventos cotidianos
(reais) para a cena; ao executarmos ações em cena, por si reais, e mesmo distantes da
representação (da submersão em um universo ficcional ou metalinguístico), nós as
submetemos à moldura e à lógica do evento teatral, configurando-as como de uma ordem
diversa das cotidianas. Como observamos na Introdução dessa tese, Josette Féral afirma
que, no cerne da noção de performance, existe a percepção de que “as obras performativas
não são verdadeiras, nem falsas. Elas simplesmente sobrevêm” (Féral, 2008:203). Sem
querer negar o caráter de evento que as ações performativas possuem, a própria Féral
destaca o aspecto lúdico que elas possuem, e que envolvem, simultaneamente performers e
audiência, e é esta ludicidade que dá a estas ações um caráter diverso das cotidianas.
José Sánchez problematiza de forma instigante as relações entre o real e o
visível, o verdadeiro e o fictício. Discorrendo sobre como o cineasta iraniano Abbas
6
Claro que, neste caso, estamos falamos de experiências limites. Quando, por exemplo, Janaína Leite e
Felipe Teixeira Pinto criam seu espetáculo Festa de separação: um documentário cênico, eles o fazem numa
zona limítrofe entre o happening e o teatro, incorporando a participação do espectador na estrutura da
encenação (ver adiante, item 4.2).
7
Brian Winston, em artigo que discute o impacto do vídeo digital (DV) na filmagem e concepção de
documentários, discute justamente essa possibilidade do documentário oferecer representações “verdadeiras”.
Partindo das características do Cinema direto – estilo dominante de realizar documentários nos Estados
Unidos nos anos 60, que requer equipamento leve e direto e se caracteriza pela ausência de narração e pelo
não envolvimento do cineasta na ação – e do Cinéma vérité – que se vale do uso da técnica de entrevistas
registrando a presença do cineasta e do aparato fílmico – ele problematiza a questão da não-mediação,
atendo-se não só ao trabalho de edição, como à possibilidade de objetividade no documentário: “Na medida
em que o DV pressiona ainda mais a reivindicação do cinema direto de oferecer “meras” evidências não
mediadas, ele coloca em risco ainda maior o aspecto criativo do documentário. E reforça o desvio do
documentário para o jornalismo”. (Winston, 2005:21).
101

Kiarostami trata esses temas em seus filmes, Sánchez observa que a exposição dos
artifícios cinematográficos “pode produzir a manifestação de uma realidade escondida, do
mesmo modo que a alienação de mentiras que, segundo o realizador iraniano é intrínseca à
arte cinematográfica, pode fazer aparecer uma verdade mais profunda” (Sánchez,
2007:67III). Há um atravessamento da verdade na ficção, assim como “o real pode fazer
transparente o artifício”.
Experimentos semelhantes ao que se convencionou chamar de Teatro
Documentário e de Biodramas tensionam enormemente não só a oscilação entre o plano da
representação e o da presença, mas como essa própria relação entre um discurso sobre o
real (carregado de um sentido lúdico) e a apresentação de um fato real. Em Estamira –
Beira do mundo há uma dupla interpolação de fatos reais dentro da ficção da encenação: o
espetáculo é baseado na vida de Estamira, uma catadora de lixo que ficou conhecida
através do filme de Marcos Prado (2004); mesclada à história da personagem-título, há a
história da atriz Dani Barros, cuja mãe teve distúrbios psiquiátricos, tentando várias vezes
o suicídio e sofrendo internações em instituições. As passagens entre as falas da Estamira-
personagem e o depoimento de Dani se dão diversas vezes sem uma quebra no espetáculo,
deixando o público em suspenso sobre quem é de fato o enunciador daquele texto (fig. 7).
Quando Sefan Kaegi e Lola Arias realizaram, em 2007, o espetáculo Chácara Paraíso, no
14ª andar do SESC da Avenida Paulista, o sentido de representação era conferido pela
instalação montada para a encenação8, que tinha uma base verídica e documental. O
espetáculo reunia depoimentos de policiais, ex-policiais e familiares de policiais e o
público era constituído de grupos de 1 a 6 pessoas, que percorriam as várias salas do andar
onde cada uma das pessoas recebia e conversava com o público. No site do Rimini
Protokol, composto por Kaegi, Helgard Haug e Daniel Wetzel, encontramos o seguinte
texto, que esclarece que a peça é “uma forma de instalação que mescla o documental e o
ficcional, mostrando biografias de pessoas que em algum momento de sua vida
atravessaram o universo policial”, destacando ainda que não se trata de atores: “Os espaços
vazios do 14º andar do SESC da Avenida Paulista, agora em reforma, serão ocupados com
a arte de pessoas (que não são atores) selecionadas por meio de anúncios em jornais. Elas
reconstroem cenas da própria biografia que, às vezes, pode parecer ficção.” (cf. Rimini
Protokol, texto do site).

8
Chácara Paraíso é o local onde se encontra o maior centro de formação de soldados da Polícia Militar da
América Latina, no bairro de Pirituba, em São Paulo.
102

Figura 7: Estamira - Beira do Mundo


Foto: Bárbara Copque

É interessante perceber o destaque dado ao fato dos participantes da peça serem


“não atores”. Esse fato não apenas garante (ou aparenta garantir) a autenticidade daquilo
que é declarado; há uma tentativa clara de fuga do ficcional, da representação,
mergulhando o espectador no campo da “verdade”, da presença e da experiência. Deixa,
porém, em aberto todo o processo de artificialização que a roteirização da experiência
individual (inerente ao processo de montagem) e a encenação do espaço (o 14º andar do
SESC), implicam; a esse espaço, num dia e hora determinados, comparece um grupo de
pessoas reunidas casualmente para assistir a um “evento” que traz a marca de seu
enquadramento: no site do grupo ele é identificado como “teatro”, trazendo ainda como
subtítulo Police Art Show.
Também problematizando a relação entre o plano da presença e da presentação
e os campos da realidade e da ficção, podemos citar os Biodramas (ver item 2.3), que são
103

uma reverberação de uma tendência encontrada em diversas mídias para “criar um efeito
de realidade que estivesse mais além do fictício, do que não é verdadeiro, do engano e do
teatral” (Cornago, 2005:5IV). Discutindo o projeto coordenado por Viviana Tellas, Cornago
destaca as inúmeras maneiras encontradas para confrontar o teatro e a realidade, as
diversas maneiras pela qual o real pode se insurgir na cena, e a relação entre pessoa e
personagem. Não só há um exacerbamento na dimensão performativa (isto é, da cena como
acontecimento, dos elementos materiais que constituem a cena enquanto processo, dos
gestos, sons, ações e mesmo do lugar onde se dá o encontro de espectadores e performers),
como há um questionamento do próprio fazer teatral, daquilo que constitui a sua
teatralidade, a partir da introdução desses elementos reais na cena.
O que Cornago chama de “olhar teatral”, e que aqui denominamos de
“enquadramento teatral”, determina um “cenário de atuação”, que põe em relevo não só a
participação consciente do espectador na construção de processo de teatralização do real,
como ressalta os elementos materiais sobre os quais a cena é construída. Isso permite o
surgimento da dimensão poética, possibilita a construção de um plano simbólico a partir
dessa “exterioridade sensorial” e, como diz Cornago, uma ontologia do poético, diversa da
ontologia do real9:

Em qualquer caso, o olhar teatral atua sobre o mundo exterior como se se tratasse
de uma operação cirúrgica, praticando cortes, descentramentos e focalizações
com o propósito de fazer visível em uma dimensão simbólica aquilo que não é o
campo da realidade, questionando suas categorias, limites e convenções
(Cornago, 2005:11V).

Essas montagens levadas a cabo na Argentina no início dos anos 2000, trazem
diversas maneiras pelas quais o teatro redireciona seu olhar sobre a realidade a partir da
consciência da teatralidade implícita nesse olhar, e das operações simbólicas que a
construção teatral implica. Destacamos aqui duas delas, Los 8 de Julio, com dramaturgia e
direção de Beatriz Catani e Mariano Pensotti, e Mi mamá y mi tía, de Viviana Tellas. A
primeira parte da vida de três pessoas que têm em comum o fato de terem nascido em 8 de
julho de 1958, e às quais se propôs diferentes tarefas, que deviam ser executadas ao longo

9
Cornago pondera que as operações de delimitação, formalização e poetização que o olhar teatral empreende
sobre o real, permitem que o momento poético seja retido e submetido à possibilidade de repetição, uma das
características do marco teatral (mesmo que a repetição seja, em si, impossível, restando-nos apenas a re-
apresentação das imagens e ações). Se elas se dão fora dessa convenção, “obtém-se um lampejo poético que
dura apenas o que a própria realidade demora em nos recordar que nos encontramos em uma dimensão não
poética da realidade, e o instante mágico da epifania poética se desvanece, com o que esse momento não
voltará a existir nunca mais” (Cornago, 2005:11).
104

de seis meses: Alfredo Martin, um ator, deve filmar Maria Rosa, sem chegar a conhecê-la
diretamente; esta, uma mulher casada e que espera um filho, deve andar com uma máquina
fotográfica e pedir a transeuntes que a fotografem; Silvio Francini, um piloto de aviação
que pinta quadros em suas horas vagas, deve fazer seis quadros da mesma árvore, que
farão parte da encenação. Nesta, Alfredo falará ao público sobre sua vida, exibirá os vídeos
que gravou de Maria Rosa e comentará sobre a experiência de filmagem, enquanto Maria
Rosa, que não estará em cena (vive em Córdoba), ligará para ele durante a apresentação e
se colocará a disposição do público caso este queira lhe fazer alguma pergunta. Sílvio
também não estará em cena (por compromissos de trabalho), sendo representado por sua
mulher, que falará sobre a vida de seu marido “em tom testemunhal”. A obra se inicia e se
encerra com projeção de pessoas que estavam na Plaza de Mayo em 8 de julho de 2002 e
às quais são feitas duas perguntas: como foi esse dia e o que esperam fazer em 8 de julho
de 2007.
A obra enfatiza a dimensão processual do fazer teatral, revelando o trabalho
que antecede a apresentação, e se define claramente em torno de manifestações da presença
– e da ausência – dialogando com diversas maneiras de representação – gravações em
vídeo, a voz, a pintura, as fotografias, que são contrapostas à matéria viva (física e
presencial) da cena em andamento no tempo/espaço compartilhado pelos espectadores. Os
dois planos – presentação e representação – se alternam aqui não como ficção e realidade,
mas como presença e ausência, fugindo à dicotomia típica da encenação teatral.
Já Mi mamá e mi tía, além de ser interpretada pela mãe e tia reais da diretora
Viviana Tellas (e, eventualmente, por uma outra tia, quando esta se encontrava em Buenos
Aires), não era apresentada em um teatro e não eram cobrados ingressos para a
apresentação, e contava a história da família através de lembranças, vestidos, fotografias e
outros objetos evocativos do passado. Para Cornago, o espetáculo constituía-se
praticamente como “um ato privado, quase familiar, que acaba em um baile a que se
convida o público”, e, somados ao espaço não profissional e à entrada gratuita, contribuía
para “situar o ato na metade do caminho entre teatro e a apresentação documental”
(Cornago, 2005:24-5VI). Entretanto, se esse contexto no qual a apresentação estava inserida
fosse mudado (com cobrança de ingressos e apresentação em um espaço teatral), teríamos
o “evento teatral” plenamente configurado. O que era visto como autenticidade pode ser
facilmente percebido como um efeito de teatralidade, a naturalidade e a não-atuação sendo
percebidas exatamente como um “efeito de naturalidade” e uma minuciosa e detalhada
105

proposta de aparentar não estar atuando. Assume o primeiro plano justamente a


indecidibilidade entre a presença e a representação, entre a espontaneidade da não-
atuação e o artifício teatral dessa espontaneidade re-apresentada a cada espetáculo.

3.2 O Ator e suas Personas: Estar em cena e não ser um personagem?, ou Como pensar o
depoimento pessoal?

A questão do depoimento pessoal retoma a realização de ações pelo ator por


um outro plano, dando à questão da performatividade uma outra percepção: o ator se
apresenta em cena como indivíduo, mas não dá à plateia a visão de um outro, distante de
si; ele revela um aspecto de sua própria pessoa, um fragmento de sua vida que, por uma
razão dramatúrgica, foi escolhido para ser compartilhado. A duplicação ou cisão entre ator
e personagem desaparece, e a questão da alteridade fica estremecida. Considerada do ponto
de vista do espectador, esse desaparecimento não altera a essência do fenômeno teatral,
mas causa uma instabilidade na forma como ele percebe o jogo: o que ele vê não se
apresenta como uma ficção, mas é colocado dentro de um enquadramento que determina
uma espécie de não-realidade, e está circunscrito por uma encenação, por uma série de
procedimentos e artifícios que revelam tanto a sua escolha consciente como a formalização
a que foi sujeito. Por um lado, a verdade pressuposta no depoimento determina uma
relação diferente do espectador com aquilo que é percebido. Por outro, a repetição, o
recorte, a mise en scène (o cenário escolhido para o depoimento, o figurino que o ator usa,
a iluminação da cena etc.), toda a partitura corporal e gestual executada pelo ator e que
frequentemente foi detalhadamente escolhida para a narração desses fatos, podem muito
bem reportar aos procedimentos convencionais de uma cena construída segundo os moldes
do realismo/naturalismo. Se a verdade inerente ao depoimento se opõe ao ficcional que o
fato teatral ordinariamente pressupõe, o processo dramatúrgico de seleção e roteirização
que frequentemente implica na elaboração de um texto a ser decorado e repetido pelo ator,
é um processo que pode chegar a ficcionalizar a verdade daquela narração?
Ao fazer a opção de mostrar-se em cena como o próprio ator/performer, o ator
reassume o status de indivíduo, de uma pessoa com sua história, genealogia e
condicionantes culturais, sujeito imerso em seu tempo – que é o mesmo do espectador –,
finito e falho. Há um movimento em direção à verdade (uma verdade que é a do ator, mas
106

que se apresenta como próxima à do espectador, pela familiaridade e pela


contemporaneidade das experiências), uma busca do não-fingido e que muitas vezes
envolve, em sua estrutura, algo de inesperado e de improviso. Por outro lado, o recorte
escolhido, a dramaturgia da cena, traz em si um olhar, uma opção por um determinado fato
ou período dessa vida recontada, o que não redunda necessariamente em uma
simplificação, mas impõe uma visão que contém, em graus muito diversos, uma
estetização da própria vida. Não só o recorte imposto aos fatos escolhidos para serem
narrados, mas a espacialização, os objetos e a gestualidade que se optou por usar, a forma
utilizada para essa narração, tudo isso implica em uma espécie de artificialização, que
redunda em colocar o ator em um estado de atuação (que discutiremos a seguir).
Para o ator, o que significa fazer um depoimento? Por um lado, a verdade
intrínseca dos acontecimentos, que poderia passar despercebida pelo espectador (ou que,
em último caso, não altera o fato de que ele vê algo que está sujeito a um enquadramento
teatral, que envolve a artificialização, se não do fato, do evento a que comparece ou toma
parte), é insofismável para o ator. Ele sempre sabe que aquilo que está sendo dito não é
uma ficção, e, estando ou não sujeito a um processo de distanciamento (que retiraria
pulsões emotivas do depoimento), a ação executada em cena não remete a um “outro”, mas
a si mesmo. Não se trata apenas do fato de que o ator vai buscar em suas memórias o
material para desenvolver o seu depoimento. A experiência vivida permanece no corpo do
ator, como que incrustada, e ao rememorá-la há um processo de ativação não apenas do
fato narrado, mas daquilo que foi experienciado, da sensação e dos impulsos que se
relacionam à memória, das pulsões do corpo que viveu aquele momento. Enquanto lugar
onde se mantém a memória, o corpo do ator traz algo de indizível, “a intensidade da vida e
da morte” (Lopes, 2009:136). No processo de criação do depoimento autobiográfico, não
apenas as lembranças em si, o fato narrado, é importante, mas a sensação, a qualidade da
experiência pela qual o ator passou; o que é posto em cena é também “o impulso acionado
para lembrá-las”, que é transformado em discurso e que “se oferece a uma outra
experiência vibrátil – a do espectador” (p. 138).
Esse processo de estetização, entendido aqui justamente como esse olhar que
filtra o vivido, centra-se nas ações realizadas, no invólucro cênico criado para a realização
do depoimento. O enquadramento teatral confere ao depoimento um descolamento do
plano da realidade, em virtude do controle a que a situação de apresentação implica. As
ações que o ator realiza, seu roteiro ou partitura de ações, o fato de que suas falas ou
107

roteiro são submetidas a repetições, a re-apresentações, transformando-as em um texto, que


é (ao menos em parte) decorado, tudo isso retira da ação o seu caráter de espontaneidade,
transforma-as no papel ou nas tarefas que o ator deve desenvolver e executar em cena.
A primeira parte do espetáculo Não desperdice sua única vida, no qual o
público é dividido em seis grupos e cada um acompanha o depoimento pessoal de cada um
dos atores/atrizes10, nos fornece um excelente material para discutir as nuances que o
depoimento apresenta, inclusive em termos de registros de atuação. Como estratégia
cênica, o depoimento cumpre uma função clara, porém não única: criar uma outra forma de
relação entre o público e os atores, baseada em desejo de compartilhar uma experiência.
Este desejo, esta vontade de criar uma outra forma de relação com os espectadores, mais
horizontalizada, propiciando ao público a oportunidade de não ser um mero “consumidor”
ou “figurante”, mas tornando-o também um gerador de conteúdo simbólico (Sánchez,
2007), vem movendo boa parte das dramaturgias contemporâneas. Analisando o fenômeno
da confissão desde o ponto de vista da cena teatral, Óscar Cornago observa que, enquanto
dispositivos de enunciação, as confissões e os testemunhos convidam o público a uma
“viagem pessoal que somente terá sentido se termina se convertendo em um espaço de
encontro com o outro, em uma experiência compartilhada na qual o presente se cruza com
o passado” (Cornago, 2009:110). Cada um dos depoimentos de Não desperdice...
concretiza esse compartilhamento de maneira diferente: tornando os espectadores
cúmplices de um segredo (Odilon); ressaltando a unicidade do momento e as marcas que
ele deixará (Ana Flávia); propondo interações entre ator/atriz e público (José Walter,
Cláudia, Marcelo, Cláudio), ou entre as pessoas do público (José Walter); estabelecendo
pequenos rituais (Cláudio). O relacionamento estabelecido transforma os espectadores em
testemunhas, participantes de um ato de desvelamento, da enunciação de uma verdade,
pessoal e privada, e que de certa forma responde a uma necessidade de encontro (e de
confronto) com o outro.
Essa necessidade pode ser sentida na forma como diversas manifestações
artísticas têm pautado a relação com o seu público, até como uma reação à mecanismos
sociais que tendem a padronizar as relações como de “consumo”. No texto citado, Cornago
analisa como a televisão, o vídeo e o teatro se apropriam desse tipo de comunicação, em
primeira pessoa, centrada na “aura” que a testemunha de um acontecimento (o seu corpo)

10
Na temporada de 2005, eram eles: Cláudio Dias, Odilon Esteves, José Walter Albinati, Marcelo Souza e
Silva, Ana Flávia Rennó, Cláudia Correa.
108

possui. A verdade do relato pessoal não é somente verbal, é também física, está inscrita e
escrita no corpo, na atitude, na maneira de olhar e de mover-se.
Em sintonia com essa necessidade de contato, Nicolas Bourriaud observa o
desejo coletivo de criação de novos espaços de convívio e de uma outra relação com o
objeto cultural que a internet e as mídias eletrônicas sinalizam (especialmente por seu
potencial interativo e pela capacidade de reunir elementos díspares e distantes), e o desejo
de muitos artistas de se concentrarem nas relações criadas por seus trabalhos e na invenção
de modelos de sociabilidade. O pensador francês enxerga a possibilidade de uma arte
relacional, que teria como foco a produção de “modos de convívio”, de formas e objetos
focados na produção de relação; dentro dessa estética “as reuniões, os encontros, as
manifestações, os diferentes tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os
locais de convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção de relações
representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais” (Bourriaud,
2009:40). O depoimento pessoal viabiliza essa relação e a possibilidade do encontro: em
Não desperdice... ele é realçado pelo partilhamento do espaço entre atores e público (o
único depoimento cuja relação espacial mantém uma disposição de frontalidade com os
espectadores, que estão sentados em cadeiras, é o de Ana Flávia Rennó), além dos outros
procedimentos citados – jogos, rituais, perguntas – e do testemunho em si, que se apresenta
como forma de comunicação pessoal e em primeira pessoa.
O processo de construção do depoimento se assemelha a um processo de
elaboração de qualquer outra dramaturgia calcada em histórias ou fatos verídicos. Os fatos
selecionados resultam de um recorte que, mesmo que não definido a priori, revelam uma
opção estética, calcada numa relação entre envolvimento e distanciamento, emoção e uma
certa frieza (ou mesmo humor) ao relembrar e narrar situações de grande peso emocional.
Dar relevo a algumas situações implica em dispensar, eliminar ou subestimar outras,
enfatizando não só as suas qualidades estruturais (isto é, seu funcionamento dentro da
estrutura do depoimento), mas as suas qualidades de ostentação. Como diz Marvin Carlson
(2010:52), “enquanto a estrutura enfatiza qualidades especiais que circundam o fenômeno,
a ostentação sugere algo sobre o fenômeno em si”. A inserção dos fatos e dos objetos
dentro da estrutura do depoimento obedece a uma lógica pessoal, que, no entanto, não
deixa de levar em conta as possibilidades de reverberação desses fatos, não só na
audiência, mas no sujeito que os conta, que, neste caso, é quem os vivenciou e neles
investe a ação de rememorar. Dessa forma esses objetos e situações são escolhidos por sua
109

relevância na história pessoal de quem as conta, e são ressignificados e adquirem


possibilidades diversas, profundas, dentro do aparato cênico.
O uso de objetos e elementos cenográficos apresenta-se, assim, sob um duplo
viés: revelar a memória contida em cada um deles e dar sustentação ao roteiro. As
radiografias de José Walter não apenas revelam a “mania de guardar tudo”; mostram o não
visto da pessoa, e somando-se aos outros objetos, contam uma parcela da sua própria
“saga”: o retrato traz as histórias dos 10-11 anos, a 5ª série no colégio no interior de Minas;
o santinho traz a lembrança dos tempos de coroinha, da procissão de Semana Santa e o
desejo de cantar como a Verônica; o disco traz a lembrança de um amor e uma decepção, e
assim por diante. Quadros, como nos depoimentos de Cláudia e de Odilon, trazem para a
cena a atualização do tempo passado, contextualizado pelo depoimento e garantido pela
presença daquele que viveu o fato, que traz no corpo a memória daquelas emoções e da
própria passagem do tempo.
Essa memória e esse corpo distinguem o depoimento pessoal de outras
dramaturgias do real. A presença do corpo não apenas garante o espaço compartilhado com
aquele que testemunhou a história: o corpo traz impresso nos seus gestos, na voz e na
expressão essa memória, essa qualidade que é uma aura que rodeia a testemunha de um
fato, aura que “não se apoia em sua capacidade de contar o que viu, sofreu ou
experimentou, mas sim na própria presença de um corpo que viu isso, sofreu ou
experimentou” (Cornago, 2009:101). Se em termos estruturais um ator interpretando o
depoimento – verídico – de uma outra pessoa pode ser praticamente idêntico a um
depoimento autobiográfico, no que toca a aura que os envolve eles são substancialmente
diferentes11. Não se trata de uma diferença no campo da emoção intencionalmente
suscitada no espectador: a representação feita por um intérprete sensível e talentoso pode
ter uma carga emocional até maior que aquela investida em um depoimento autobiográfico;
mas o espectador (e o próprio ator) sabe que se trata sempre de um jogo, que o ator não
passou por aquela experiência e que a espontaneidade, a indiferença e leveza (ou o seu
contrário) ao se tratar de temas sérios e polêmicos, como a morte, as perdas (amorosas ou

11
Para aquele que estiver interessado em discutir sobre a questão da aura e da verdade cênica, o filme Jogo
de cena (2007), de Eduardo Coutinho, constitui-se em um interessante objeto de análise. Nele o cineasta
seleciona – através de um anúncio de jornal – mulheres dispostas a contarem suas histórias de vida. Alguns
desses depoimentos são filmados em um teatro do Rio de Janeiro, e alguns são interpretados por atrizes, entre
elas algumas conhecidas do grande público, como Marília Pera, Andréa Beltrão e Fernanda Torres. O jogo,
saber de quem é o depoimento real, perceber a “verdade” e a emoção do depoimento mesmo quando ele não
é “autêntico”, isto é, quando ele é interpretado por uma atriz, torna o filme extremamente cativante, e
possibilita enormes reflexões sobre esses tópicos.
110

existenciais), as questões sexuais, etc., a emoção e as alterações no ritmo (pausas, a fala


mais cadenciada ou acelerada) e no tom da voz (tons mais graves, a fala quase embargada),
são “efeitos” encontrados pelo intérprete para dar um relevo específico e atraente ao
depoimento. O que é percebido como um “efeito de atuação” (Cornago, 2005) em um caso,
é sentido como uma “não-representação” em outro. Ou, devido a essa inserção no quadro
de uma encenação, o depoimento autobiográfico pode ser percebido como algo
“indecidível”, isto é, que se coloca num meio termo entre a atuação e a não-representação,
um híbrido dessas duas possibilidades, desses dois registros. A aura contida no depoimento
não está no “como” ele é feito, mas na materialidade (a presença) do próprio depoente e
nos objetos que o circundam, contaminados por essa magia que eles adquirem quando se
tornam parte de uma história (terem pertencido ou sido usados por esta pessoa ou aquela).
Em Estamira temos um exemplo de como essa situação pode ser nuançada e
complicada em termos da percepção do público. As passagens entre as falas da
personagem Estamira e aquelas nas quais a atriz Dani Barros conta a sua vivência pessoal,
seus conflitos e experiências com a doença da mãe, são feitas praticamente sem quebras e
interrupções, numa continuidade que explora os trejeitos e o tom enfático definidos para o
personagem na fala que traz o lado pessoal da atriz. Assim, o texto de Estamira se
confunde e se sobrepõe ao texto de Dani, e o espectador perde a noção de quem é o
enunciador daquele depoimento: se o personagem – lembrando que se trata de um
personagem “verídico”, isto é, que existiu, e que, na encenação, é colocado numa situação
de depoimento, de conversa e interlocução com o público – ou se a atriz, que também se
dirige diretamente à plateia para falar da doença de sua mãe, das emoções que sentia, de
seu encontro com a Estamira real, etc.
A maneira como os objetos, a gestualidade e a voz são utilizados em cena
concorrem para transformar o depoimento em uma atuação. O espaço cênico é percebido
como um cenário, a organização estrutural e estética não difere de uma cena interativa,
onde o ator se dirige diretamente à plateia, e o roteiro/texto que conduz o depoimento se
sobrepõe a toda ação do ator, transformando-a em um desempenho, uma performance.
Poderíamos imaginar uma situação limite, onde fosse eliminada qualquer ideia ou
resquício de preparação, onde, por exemplo, não houvesse cenário – a apresentação fosse
num local não “arrumado” para essa recepção do público – e não houvesse nenhum roteiro
prévio àquele momento, do encontro entre público e ator. Essa situação, de um total
improviso e uma absoluta espontaneidade, nos parece virtualmente impossível, remetendo
111

àquele zero de atuação a que Renato Cohen se referiu, e remeteria mais a um happening,
por sua imprevisibilidade e a impossibilidade de repetição, que a um evento que pudesse
ser qualificado de teatro. Em Não desperdice, um espaço preexistente como o banheiro do
camarim utilizado por Cláudio em seu depoimento, é transformado em cenário pela
maneira como o ator o utiliza. Há uma apropriação do espaço, as ações são pensadas e
formatadas para aquele espaço específico, que frequentemente é escolhido por suas
qualidades intrínsecas.
Da mesma forma, os objetos são utilizados de forma a garantir a coerência, o
fluxo e a expressividade das cenas. Neste espetáculo podemos observar diversos momentos
em que eles assumem a condição de protagonistas da cena – as abreugrafias, o santinho e o
disco de José Walter; as fitas do senhor do Bonfim, o vinho de Cláudio; os quadros de
Odilon (figura 8) e Cláudia – não só garantindo o seu fluxo, mas contando, por sua própria
presença, a história vivida daquele que ali está (e dessa forma, por extensão, garantindo a
veracidade do contado, já que não se trata de objetos cênicos, isto é, que foram produzidos
para criarem um efeito). A sua força está na sua história, no seu passado que é trazido à
tona pelo depoente. Já a performatividade das ações é percebida, por exemplo, nas canções
que surgem em vários depoimentos, trazendo o foco do quê para o como, para o
desempenho do ator, para a sua expressividade enquanto intérprete, artesão. Em outros
momentos, serão a ocupação do espaço e a gestualidade, o desenho do movimento, seu
ritmo, as ações claramente ensaiadas e desenvolvidas, que deixarão clara a elaboração de
uma partitura pelo ator, revelando a sua atuação na forma de uma performance, do seu
desempenho. Assim, o uso do chão (Cláudia), a corrida pelo espaço (Odilon), o uso da
sombra e das mãos (Marcelo), não apenas nos remetem a criação de partituras de
movimento, são momentos em que a artesania e o desempenho do ator ficam claros e
sobrepõe-se (ou se amalgamam) aos fatos narrados.
A ação de roteirização do depoimento, com o estabelecimento de uma
sequência, o recorte dos fatos considerados relevantes, o ensaio e a repetição desse roteiro,
estabelecem um texto mais ou menos fixo, que cada um dos atores atualiza à sua maneira.
Em vários momentos essa fixação fica clara, quando textos que não são dos atores são
utilizados (Cláudio recita um poema de Nietzsche; José Walter, de Renê Barreto; Cláudia,
de Mario Quintana); já nas falas sobre o teatro, ao final de cada um dos depoimentos, o
texto possui nuances e complexidades que deixam claro que não são improvisados. Nesse
113

momento percebem-se mudanças no tom da voz, que adquire um aspecto mais aveludado,
confessional, aconchegante, traduzindo de uma maneira física e dando contornos
performativos, de um desempenho, ao enunciado feito pelo ator. O clima de intimidade e
cumplicidade criado retoma a questão do efeito, e permite-nos refletir sobre a construção
de uma persona do ator.
Temos aqui uma situação ímpar: o ator, sem tentar se aproximar da criação de
um outro deve, se não entreter a audiência, confrontá-la e travar um diálogo. Como nos
papéis sociais a que Goffman se referia, isso implica que o ator deve se comportar não
como se fosse outra pessoa, mas ele mesmo em um outro estado. Esse estado diferente de
sentir ou de ser envolve, de certa forma, uma tensão entre o mimético e o real (causada
pela artificialidade da situação na qual o ator se encontra), e, especialmente, uma dissensão
entre os vários “estados” que um ser humano possui. O ator se coloca numa espécie de
entre-lugar, no limite entre o real e o imaginário, e que se liga ao que Schechner chama de
operação de “dupla consciência”, que envolve tanto o performer quanto a audiência: na
estrutura de jogo instaurada pela encenação, “o performer não é ele mesmo (por causa das
operações de ilusão), mas também não é não-si-mesmo (por causa das operações de
realidade” (Carlson, 2010:67)12. Quando essas operações de ilusão não envolvem a
construção de um universo ficcional que engloba a criação de seres ficcionais, como é o
caso do depoimento pessoal, a ação de colocar-se em um estado de atuação, este estado de
ser e não-ser, passa pela criação de uma persona, que permite ao ator distanciar-se do seu
comportamento cotidiano, sem deixar de ser ele-mesmo.
Entender os limites dessa persona, atuar com ela sem transformá-la em um
outro, mas permitir que ela revele algum aspecto de si-mesmo, este é um grande desafio do
ator contemporâneo. Por isso ele é muitas vezes nomeado como um performer, por essa
necessidade de, criando, continuar a ser ele mesmo. Ao mesmo tempo distanciado do seu
eu cotidiano e sempre em contato consigo mesmo, o ator se coloca num estado fronteiriço,
articulando o que é para Féral um dos princípios da teatralidade, essa ação do ator de
aproximar-se e distanciar-se do seu próprio eu. Para ela, a teatralidade do ator se situa
nesse distanciamento que o ator opera entre ele como “eu” e ele como “outro”, num

12
Carlson chama a atenção para o que Bert States, um teórico da fenomenologia, denomina de “visão
binocular”, decorrente do fato do teatro utilizar objetos, situações e pessoas do dia a dia como matéria prima.
Uma vez que “objetos e ações na performance não são nem totalmente „reais‟ nem totalmente „ilusórios‟,
mas compartilham aspectos de cada um”, esses objetos trazem uma dupla relação que a plateia precisa
realizar, de agregar-se a “uma certa espécie de real”, em tensão contínua com o mimético e que confere um
poder peculiar ao teatro (Cf. Carlson, 2010:66).
114

desdobramento do Paradoxo do Comediante, que envolve não apenas o olhar da plateia,


mas o próprio eu do ator. Enquanto portador de teatralidade – um dos polos que definem o
processo de sua criação – o ator a inscreve na cena sob a forma de signos, “em estruturas
simbólicas trabalhadas por suas pulsões e seus desejos enquanto sujeito, sujeito em
processo, explorando seu interior, seu duplo, seu outro, a fim de fazê-lo falar”13 (Féral,
2004:94VII).
Nesse processo de aproximação e afastamento de si mesmo, o ator é levado,
não a constituir identidades paralelas (como fazem muitos performers, onde a exploração
de uma característica ou de uma faceta de sua personalidade constitui-se em um tipo, que
muitas vezes adquire uma existência própria, paralela à do próprio artista), mas a revelar
facetas suas, a atuar com elas, transformando-as em modos de estar-em-cena. Tornam-se
personas, decorrentes de uma dilatação ou de um olhar prismático que ele mantém sobre o
seu próprio eu cotidiano.
Vamos evidenciando, assim, as mudanças de registro de atuação a que está
sujeito, ou que deve realizar o ator contemporâneo: atuação performática (calcada na
performatividade da ação), narração distanciada, diálogo com o público através da criação
de um clima de intimidade e de cumplicidade. A cena atual vai exigindo do seu executante
uma versatilidade, um domínio de diferentes registros de atuação que ele precisa acessar
durante o espetáculo.

3.3 O Ator como Performer: A construção de ações não vinculadas à construção de um


“outro”.

As estratégias adotadas por aqueles criadores que trabalham dentro do escopo


da cena performativa, e que pudemos observar em Estamira... e Não desperdice..., optam
ora pelo processo de simbolização inerente à ficção (a representação), ora pela realidade
que a presença traz. A performatividade da ação, realçada e exacerbada, confere a esta
cena o caráter de evento que era típico da performance, e que agora se incorpora ao teatro.
Essa cena progride entre liminaridades, desestabilizando a percepção do espectador e
levando o ator a oscilar entre registros distintos de atuação. Processos híbridos buscam

13
Lembramos aqui que, para Féral, a teatralidade é um fenômeno que ultrapassa os limites do teatro, e pode
ser percebida em outras formas artísticas – como dança, ópera e outros espetáculos – e no cotidiano, atribuída
pelo olhar daquele que vê (cf. Féral, 2004).
115

uma indefinição, trazendo paralelas, ou amalgamadas, tanto a ficção quanto a realidade da


presença.
Está claro que no teatro sempre ocorreu a possibilidade de o ator, em cena, não
estar representando um indivíduo ou mesmo uma figura humana, e suas ações não terem
um conteúdo ou base mimética. O ator foi, em épocas e espetáculos diversos, cenários,
imagem, som, e desempenhou papéis cujas funções o afastavam do conceito
individualizado de pessoa ou de uma figura humana – como, por exemplo, enquanto
membro de um coro ou ainda personificando um conceito abstrato e genérico como o
Conhecimento ou as Boas Ações no Auto da moralidade de Todo-o-mundo (podemos
acrescer a estas algumas experiências realizadas pelos simbolistas e outras realizadas pelos
cubo-futuristas ou pelos construtivistas russos14). Mas, se nesses casos não havia a
preocupação de construir em cena algo que se assemelhasse a um indivíduo, as ações
realizadas, pensadas para dar forma e vida àquelas figuras cênicas, nem por isso deixavam
de ser estar inseridas no universo ficcional criado pelo drama: elas estavam imersas no
espaço-tempo ficcional que a encenação criava e que se contrapunha ao espaço-tempo dos
espectadores. Dessa forma, mesmo não se configurando como personagens
individualizados, eram percebidos (e criados) como parte desse universo ficcional, isto é,
pensados e aceitos como espécies de personagens, tanto pelo público como pelos próprios
atores.
Este é um processo semelhante àquele empreendido por atores e encenadores
quando, sem buscar a criação de seres ficcionais, submetem as ações e partituras criadas ao
invólucro do universo ficcional proposto pelo drama ou pela encenação. É assim, por
exemplo, que podemos entender o processo de construção de ações e de imersão no
universo ficcional realizado por Cieslak/Grotowski em O Príncipe Constante. É necessário
aqui fazermos a distinção entre o olhar do espectador e o olhar do ator. O fato de o ator
partir, na construção de seu estar-em-cena, não de um ser ficcional criado por um
dramaturgo, mas de suas memórias e ações, não interfere na maneira como o espectador
sente, interpreta ou frui aquilo que ele vê em cena. Conforme relata Grotowski, o material
de trabalho sobre o qual se debruçaram ele e Cieslak não estava ligado ao tema do
personagem do Príncipe Constante, antes ligavam-se
14
Por exemplo, em seu texto “A mobilidade do signo teatral”, Jindrich Honzl cita três situações retiradas de
uma montagem de Os Aristrocratas realizada no início do sec. XX pelo russo Oklopkov, na qual os atores
representam tanto o oceano (um ator vestido e azul manipulando uma tela azul-esverdeada), quanto uma
mesa (dois atores segurando uma toalha) ou uma sirene (um ator segurando a alavanca que aciona a mesma).
Cf. Honzl, 1988:136.
116

às ações que pertenciam àquela recordação concreta da sua vida, às menores


ações e aos impulsos físicos e vocais daquele momento rememorado. Era um
momento de sua vida relativamente breve – digamos algumas dezenas de
minutos, quando era adolescente e teve a sua primeira grande, enorme
experiência amorosa. (Grotowski, 2005:194)

No entanto, para o espectador, as ações que o ator realizava em cena eram


percebidas como pertencentes ao personagem e não ao ator, contextualizadas não só pelo
texto de Calderón/Slowack, mas por toda a estrutura do espetáculo construída em torno da
ficção do drama: “os elementos narrativos e os outros personagens do drama sugeriam que
ele fosse um prisioneiro e um mártir que tentam quebrar, e que se recusa a submeter-se a
leis que não aceita” (Grotowski, 2005:195). Se, do ponto de vista do ator, há um
tensionamento entre os planos da presença e da representação, as ações dos outros atores e
a encenação conduzem a percepção do espectador, levando a cena a situar-se
preferencialmente no plano da representação, diminuindo assim a tensão entre os dois
planos, causada pela performatividade da partitura executada pelo ator. O contexto de
ficcionalização (o enquadramento teatral) se sobrepõe à realidade das ações realizadas pelo
ator; há um redimensionamento dessas ações, o que não implica no apagamento do seu
caráter performativo.
A dinâmica estabelecida entre o que se passa no palco e o papel do espectador
é problematizada por Féral ao discutir a teatralidade na linguagem teatral. Esta não estaria
na natureza do objeto (ator, espaço, adereços, ação), nem na própria evidência de se tratar
de um ato teatral, ficcional e distinto das atividades cotidianas; ela se apresentaria como
um “processo”, ligada ao olhar do espectador que cria um “outro espaço”:

A teatralidade assim percebida seria não somente a emergência de uma quebra


no espaço, de uma divisão do real para que possa surgir uma alteridade, senão a
constituição mesma deste espaço feita pelo olhar do espectador, um olhar que,
longe de ser passivo, constitui a condição de emergência da teatralidade,
conduzindo verdadeiramente a uma modificação qualitativa das relações entre os
sujeitos. (Féral, 2004:91VIII)

Se é o olhar do espectador que projeta sobre o ator e suas ações o invólucro de


um personagem, este é um fenômeno cada vez mais recorrente nas práticas teatrais
contemporâneas. Há, especialmente na cena performativa, uma multiplicação dessas
ocasiões em que os atores não buscam com as suas ações a criação de seres ficcionais, mas
antes se voltam para o seu aspecto performativo, inserindo-se constantemente no plano da
presença, fazendo apelo à presença física do ator. Como um performer, o ator guia sua
117

presença e o seu trabalho em cena para a relação que suas ações estabelecem com os
espectadores ou para a execução em si da ação, que ao se descolarem do plano ficcional,
mergulham a cena numa concretude que se impõe como um evento. Como um dançarino, o
ator se fixa na qualidade, no tempo e no ritmo que essas ações possuem. Seu foco é a
execução, deixando as possíveis interpretações do seu modo de agir em segundo plano.
No centro dessa opção pela presença ou pela representação está a tensão entre a
performatividade das ações realizadas pelo ator e a figuração (o mergulho no universo
criado pela fábula), entre a percepção da ação como tal – o seu desempenho (performance)
– e o nublamento do “como”, permitindo ao espectador imergir no “quê”, desprendendo-se
da história narrada.
Se fazer e mostrar-se fazendo são atividades típicas do performer15, para o ator
a opção de centrar as atenções no desempenho, na forma como a ação é executada pode
representar uma encruzilhada: ao mergulhar na performatividade da ação, que não é mais
construída para dar vida e/ou coerência a um outro, mas que existe pela forma como é
desempenhada, o ator depara-se com a necessidade de mudar os parâmetros de seu
trabalho. Há um deslizamento para a presença do ator, para a performatividade de suas
ações. Se não ocorre um rompimento com a possibilidade de atribuição de sentidos 16, esta
se desloca do plano narrativo para o plano do fazer. É assim que Féral aproxima o ator do
performer: quando introduz o conceito de Teatro Performativo como alternativa ao
conceito de Teatro Pós-Dramático criado por Lehmann para discutir o teatro
contemporâneo, ela enfatiza a “colocação em primeiro plano da execução de ações por
parte dos performers, que cantam, dançam, contam, às vezes encarnam o personagem, mas
que na sequência saem dele completamente” (Féral, 2008:202). É assim, que podemos
enxergar, por exemplo, o desempenho da atriz Dani Barros durante o espetáculo Estamira:

15
Quando Richard Schechner trabalhou de forma ampliada o conceito de performance, englobando tanto as
performances artísticas quanto as cotidianas e as ritualísticas, postulou que fazer performance era um ato que
podia ser entendido em relação a Ser, equivalente à existência em si mesma, o comportamento dos seres;
Fazer, a atividade de tudo que existe; Mostrar-se fazendo, que é precisamente o performar, a demonstração
da ação equivalendo a mostrar-se em espetáculo; e Explicar ações demonstradas, o trabalho dos estudos da
performance (cf. Schechner, 2003b:26). A segunda e a terceira noção são típicas da performance artística,
espetacular, onde o ator/performer executa uma ação para alguém que o assiste. Fazer e especialmente
mostrar o fazer podem levar a um desligamento ou distanciamento do plano da representação em função da
presença.
16
Em Performance, uma introdução crítica, Marvin Carlson discute, entre outros aspectos da relação entre a
Arte da Performance e o teatro, como os pós-estruturalistas observam a possibilidade de um descentramento,
no qual não se chega a atribuição de um sentido final para os signos: “Esse afastamento de um centro, de um
lugar fixo de sentido original, traz todo o discurso, toda a ação e toda a performance para um jogo contínuo
de significação, em que os signos se diferenciam uns dos outros, mas em que um sentido final e autenticado
de qualquer signo é sempre desprezado” (Carlson, 2010, 153).
118

em meio a uma cena altamente dramática, ela veste uma máscara de gorila, canta uma
música carnavalesca e executa uma dança clownesca. A ação não apenas opera uma quebra
na dramaticidade da cena, ela também produz uma instabilidade na percepção (o
espectador abandona a história do personagem que dá título à peça e passa seguir os
movimentos ritmados e circenses da performer), além de exigir da atriz o domínio técnico
para executar a sua performance sustentando a atenção da plateia. Há uma mudança de
paradigma, o ator é levado a fazer constantes mudanças no seu registro de atuação: o
processo de encarnação de um personagem (Dani Barros alterando sua voz e seu corpo
para dar coerência e vida cênica a Estamira) é substituído quase instantaneamente pela
execução performática da ação (Dani Barros, envergando uma máscara e executando uma
ação que remete à farsa e à paródia, e que se impõe pelo seu desempenho), trazendo o
corpo do ator e sua competência técnica para o primeiro plano.
Nesse tipo de registro, no qual a performatividade das ações realizadas pelo
ator é afirmada, não estamos diante da fisicalidade “audaciosa” que o Teatro físico
propunha (embora ela possa ocorrer), mas diante de uma atuação baseada
fundamentalmente no jogo. Tomemos como exemplo uma cena do espetáculo Não
desperdice sua única vida. No seu depoimento pessoal a atriz Ana Flavia Rennó fala da
repulsa em comer alface e da sucessão de ginásticas que já praticou – “já fiz tanta ginástica
que no final acabo misturando todas”, e cita handebol (já foi da equipe do colégio),
basquetebol, natação, musculação, body-combat, spinning, yoga e pilates –, menciona os
vários regimes feitos e sobre a alface, diz: “É péssimo comer alface, eu como por pura
obrigação. (...) Me dá uma coisa aqui dentro, um arrepio... (...) Eu como porque tem fibra”
(texto recolhido a partir do vídeo do espetáculo). Na cena coletiva, cada um dos atores
encarna um personagem, anônimo, identificado por suas características ou funções 17, ela
aparece como “A louca da academia”, que retoma esses temas: em uma de suas cenas, ela
surge de quatro, latindo e rosnando como um cão, e põe-se a devorar um prato de alface.
Duas coisas chamam a atenção nessa cena: primeiramente a forma como a memória
pessoal é retomada e trabalhada dentro do contexto ficcional, da personagem A louca da
academia; segundo, como a cena se desenvolve nesse plano performativo, isto é, há um

17
No início dessa cena coletiva, após os depoimentos, o ator José Walter explica à plateia que essas
personagens “não tem uma história, uma definição psicológica propriamente, a exemplo do que acontecia nos
autos da idade média, quando as personagens recebiam o nome das suas funções, sociais ou morais. Era a
tecelã, o sapateiro, a humildade.” Nomeia a seguir o que cada um representa: O homem das oportunidades, O
ator sem personagem, O homem das etiquetas, A mulher da fila, O apresentador do mundo e A louca da
academia.
119

descolamento do plano narrativo e a ação ganha importância por si, não por uma
repercussão dentro de um enredo, o jogo performer-cão-alface é o que é colocado em cena.
A ação é feita não para dar uma dimensão do personagem, mas pela sua possibilidade de
jogo, escapando de uma função puramente narrativa e atingindo uma dimensão
performativa.
Diversos outros espetáculos também se organizam dentro desse âmbito, em que
a ação e sua performatividade é afirmada. No Clube do fracasso, há uma série de
movimentos coreografados e ações partiturizadas que envolvem uma disponibilidade
corporal e uma alteração nos padrões cotidianos de movimentos, além de canções e de
músicas executadas ao vivo. Tudo isso desloca a atenção da plateia para a forma do
espetáculo, para a maneira como essas ações são realizadas. A própria peça é estruturada
como “jogos”18, e observamos no primeiro deles, Primeiras histórias, o mesmo processo de
elaboração das histórias pessoais: é o depoimento de cada um dos atores que é
transformado em cena19, relatando seus primeiros fracassos pessoais: o ator Heinz
Limaverde conta a história de sua não-participação em uma peça infantil quando tinha oito
anos, Marina Mendo conta como ainda fazia xixi no pré-primário e foi humilhada pela
freira, Priscilla Colombi fala como foi rejeitada pelas outras crianças do bairro por ser
possessiva com seus brinquedos, Lisandro Belloto conta como fracassou em seu primeiro
torneio de tênis profissional aos 12 anos e Francisco de los Santos relata sua primeira
desilusão amorosa. A corporalidade exacerbada remete ao teatro físico, sem, contudo,
chegar ao virtuosismo e ao “espetacular” (por exemplo, uma cena onde se fala sobre o
medo é acompanhada de quedas dos atores, porém sem ir a extremos físicos como nos
espetáculos do La La La Humam Steps ou do Cena 11).
Estamos, aí, devidamente inseridos no campo da performatividade do ator
(Féral, 2008), onde é evidenciado o aspecto lúdico da ação, mostrando-se como jogo e
como uma apresentação. Nos trabalhos do grupo Zona de Interferência, as ações surgiam
como consequência dessa possibilidade de jogo, tinham sua ludicidade afirmada e
compartilhada com a plateia. Em De quem é o meu espaço?, uma das cenas iniciais era um

18
Ao longo do espetáculo são projetados intertítulos, que dividem e trazem a denominação das suas partes:
Jogo de Cartas (Tute al médio), Jogo: Primeiras Histórias, Jogo: Amor em Pedaços, Jogo: Tantas vezes tenho
sido ridículo, Jogo: Meu destino é ser (e)star, Jogo: Quereres, Jogo: Sobre o sucesso ou O sabor de vencer,
Jogo: Fracasse outra vez, fracasse melhor.
19
Desenvolveremos a problemática do depoimento pessoal no item seguinte.
120

jogo de exploração com as bolsas/mochilas de cada um dos performers20, que eram


carregadas e transportadas de várias formas, e com seu conteúdo, que ia de livros a
celulares e escovas de dente, e que traziam um pouco do universo pessoal de cada um. As
ações também criavam jogos e relações com a plateia, não apenas rompendo o espaço
destinado à representação, mas inserindo os espectadores na experiência proposta: como
dissemos no capitulo 2, uma das cenas consistia de interações que problematizavam o
espaço e a interferência, na qual os performers perguntavam ao público “Eu posso colocar
minha orelha no seu cotovelo?”, ou “Eu posso me deitar aos seus pés?”, ou “Eu posso
entrar no seu espaço?”, “Eu posso te olhar nos olhos?”, “Eu posso morder a sua orelha?”, e
assim por diante, sempre esperando pela permissão das pessoas para executar a ação. Já em
Corpos Subjetivos em Espaços Móveis eram os espaços criados e os objetos que o
compunham que motivavam – melhor seria dizer que eram eles que propunham – as ações
(embora houvesse um roteiro, as ações que cada um dos atores realizava não era dada a
priori, estava sujeita a improvisações e modificações, dependendo inclusive da interação
da plateia, que a qualquer momento podia interferir – era mesmo convidada a fazê-lo –
com os objetos e o espaço dos atores).
Nos espetáculos do Zona de Interferência estávamos muito próximos, em
termos de ação, do que era convencionalmente o espectro de trabalho do bailarino e do
performer. A qualidade do movimento, e não uma possível leitura da sua significação, era
o que pautava a escolha: peso/leveza, os planos (alto/médio/baixo), o ritmo, a ocupação
dos espaços, a imagem criada pelo manuseio dos objetos, a relação com os espectadores (e
não a sua interpretação do que fazíamos) era isso que estava em nosso horizonte durante o
processo de construção e nas apresentações dos trabalhos. O “outro”, se se constituía, não
era como uma “alteridade”, mas como uma “continuidade”, ou um estado diverso do
próprio ator.

3.4 Estado de Atuação e Presença: Dança e enquadramento teatral

Vimos no início deste capítulo que há uma tendência no teatro que tenta
superar o fictício, buscando “uma representação que não se apresenta como tal”, como uma

20
Discutiremos ao final deste capítulo a problemática dessa questão de nomenclatura, que inclui tanto a
distinção entre ator, bailarino e performer como as possibilidades de nomeação e de compreensão de seu
estar-em-cena.
121

“não-atuação” (Cornago, 2005:14IX), gerando trabalhos que, pela intromissão do real em


cena, deixam no público uma confusão (uma indecibilidade) sobre a natureza daquilo que
estão vendo – se real ou ficcional. Discutindo essas matrizes de interpretação, baseadas em
Michel Kirby (ver item 4.1), Cornago propõe que, em vez de se falar em um trabalho de
atuação ou não-atuação, “seria conveniente referir-se a um efeito de atuação, quer dizer, de
representação, frente a um efeito de não-representação” (2005:14X). Se muitos encenadores
optam atualmente por trabalhar com não-atores, é certamente pela realidade que os corpos
e as vivências dessas pessoas trazem, ou seja, pelo efeito – intencional ou não – que suas
presenças trazem e acarretam. Submetidos ao enquadramento que o evento teatral traz, a
realidade que esses não-atores portam se confunde com uma não-atuação, que pode ser
propositadamente buscada por um ator consciente de seu estar-em-cena e dos possíveis
significados simbólicos que seu corpo e seus gestos podem provocar no espectador. De
qualquer forma, o estado-de-atuação pode ser pensado antes como uma ocorrência, ou seja,
é implícito ao ato de estar em cena, independente da maneira como o público percebe os
atos ou a presença do ator/performer em cena.
Mesmo acreditando que é possível superar a dicotomia entre atuação e não-
atuação, e que uma atuação ou uma não-atuação em estado puro são situações possíveis
apenas em teoria (cf. Cohen, 2002, p. 93-96), ainda podemos nos perguntar: o que significa
para um ator tentar não-atuar? Se, falando de uma forma geral, um não-ator é aquele que
não teve um treinamento formal ou informal de interpretação, qual a qualidade específica
envolvida nessa não-atuação, (mesmo porque, em muitos casos, trata-se de pessoas que
possuem uma vivência cênica, ainda que não especificamente teatral – músicos, bailarinos,
performers)? Lembremo-nos que o processo de construção de um personagem, pensado
nos moldes stanislavskianos ou realistas, está baseado nos efeitos, na coerência e
verossimilhança dos signos vocais e gestuais que o ator elabora e que tornam o
personagem assimilável e vivo para a plateia. Suas ações são prenhes de intenções, são
elaboradas para serem de alguma forma lidas e preenchidas pelo público, ainda que não
haja, por parte do ator, uma intenção de traçar um significado unívoco, um sentido a ser
literalmente interpretado e decodificado pela plateia. Assim, o pressuposto é de que os não-
atores estão livres dessa preocupação com a intencionalidade e as possíveis leituras de seus
122

gestos e ações. Estariam assim, livres dos “vícios” dos profissionais do teatro, aptos a
proporcionar uma outra espécie de vivência e compartilhamento com os espectadores21.
Recoloquemos a questão: o que ocorre quando o ator/performer se vê colocado
numa situação de exposição e de artificialidade que é a da cena teatral, mesmo sem buscar
a representação? Nos espetáculos que atuei como bailarino, minha necessidade de
construção de um corpo não-cotidiano era muito clara, e as minhas ações e gestos eram
realizadas de uma forma dilatada, onde o acionamento de meu treino técnico de dança
(meu treinamento pré-expressivo) era feito de uma maneira ao mesmo tempo intencional e
automática. Mesmo nos meus trabalhos com o Zona de Interferência, havia momentos em
que eu acionava esse corpo treinado: em De quem é meu espaço?, por exemplo, havia
sequências coreográficas, de dança, em que os próprios movimentos punham em ação essa
memória muscular (figura 06). Sua dinâmica, trajeto no espaço, velocidade, pressupunham
e ativavam esse corpo treinado. Enquanto bailarino, eu estava consciente de estar nesse
estado-de-atuação que me investia numa espécie de persona, a do bailarino, cujo corpo
deve ser expressivo e prender o olhar do espectador, criando imagens e figuras que se
esvanecem tão logo são formadas. O fluxo e a dinâmica dos movimentos, em especial
aqueles improvisados (que era o caso daqueles que eu realizava nos espetáculos do Zona,
seguindo apenas uma espécie de roteiro de movimentos e de figuras básicas que eu havia
criado e que estavam fixadas em minha memória), exigiam o comprometimento de todo o
meu corpo, e me levavam a um distanciamento do meu eu-cotidiano, sem contudo me levar
à preocupar-me em ser ou mostrar um outro em cena.
Mas em que consistia a minha presença cênica, quando eu não buscava e nem
era exigido que eu possuísse uma dilatação de minha energia, um corpo dilatado ou
espetacular – fictício – que garantisse o olhar do espectador? Como disse na Introdução
desse trabalho, a cena inicial de Corpos Subjetivos em Espaços Móveis me colocava diante
do paradoxo de ser eu mesmo, mas ter um comportamento que não era propriamente meu,
ou seja, era eu tendo de cumprir uma tarefa específica, que exigia de mim um
comportamento não usual, que eu não teria no dia-a-dia. Se esse comportamento não

21
Nos trabalhos que realizei com o grupo Zona de Interferência eu sentia que me distanciava mais e mais do
que havia sido meu objeto de estudo durante os (digamos assim) meus anos de formação, no curso técnico de
formação de atores no Teatro Universitário da UFMG, quanto no meu bacharelado em direção teatral na
ECA-USP, além dos diversos trabalhos que realizei como ator e nos quais eu buscava sempre me aprimorar
enquanto intérprete. Enquanto atuava com o Zona, não era a interpretação ou a representação que eu buscava,
mas apenas estar em uma situação cênica, desempenhando a contento a tarefa que eu me propunha, sem ter
como parâmetro a coerência psicológica daquelas ações e o efeito que elas estariam causando no espectador.
123

estabelecia uma ruptura com meu self, impunha uma distância, dentro da qual eu avaliava
minhas ações e decidia qual a melhor estratégia de abordagem do público e a melhor
maneira de cumprir essa tarefa, de oferecer meus préstimos e ajudar aquelas pessoas no
que estivesse ao meu alcance. O estranhamento surgia quando eu abordava ou era
abordado por alguém que me conhecia previamente, de outras situações: sem negar a
minha identidade como Daniel e sem fugir de uma conversação que poderia envolver
assuntos de foro mais íntimo, eu tinha de sustentar essa situação performática e
desempenhar meu “papel”, e o cumprimento da tarefa que eu me propunha me afastava de
meu comportamento habitual.

Figura 9: Corpos Subjetivos em Espaços Móveis


Foto: Luiza Vianna

Assim, sem pensar em representação, eu me via em um estado-de-atuação,


correspondente ao próprio fato de estar em cena. Generalizando, podemos dizer que o
evento teatral impõe a sua contingência: sob o seu enquadramento, a pessoa se transforma
em ator/performer, e a sua ação é percebida como atuação. Há um paralelo, a partir desse
124

contingenciamento, na forma como percebemos tanto o trabalho do ator como a ação por
ele realizada em cena: esta é artificializada e envolvida em um parêntese que a diferencia
de outras ações e eventos cotidianos; habitando o palco, a presença do ator é percebida
como estado de atuação. Instaura-se uma possibilidade, conferida por esse estado de
atuação, tanto de se ultrapassar os limites do Eu sem, contudo, romper com a própria ideia
de pessoa, como de ficar neutro, não-representar.
No início de Corpos Subjetivos minha ação era e ao mesmo tempo não era
percebida como atuação: mobilizado em torno da realização da tarefa que me impusera,
assumia uma persona, a do ator/performer que precisava jogar com as pessoas, e atuar
bem significava conseguir estabelecer esse jogo com o público. Ao longo do espetáculo eu
também me deparava com uma série de momentos nos quais não havia um “subtexto” no
qual eu ancorasse a realização de minhas ações. Instalar as câmaras de segurança, tirar da
maleta os vários objetos e espalhá-los nos nichos do canto que eu ocupava, tirar o paletó,
trocar a camisa, todas essas ações eram feitas sem a âncora de um personagem, sem a
máscara ou a intenção de retratar um outro (figura 09). Meu foco ao realizar as ações era o
seu ritmo e o tônus que eu impunha a elas: ao empurrar os cantos em que se encontravam
os performers, precisava escolher a velocidade com que eu executaria essa ação, se deveria
fazê-lo com leveza ou conferindo peso à ação de empurrar. Como um bailarino, estava
interessado no como eu devia realizar essa ação, na disposição espacial dos cantos e no
tempo-ritmo que eu impunha ao movimento dos cantos, levando em conta as
possibilidades e impossibilidades do olhar dos espectadores, cuja disposição ao redor e
entre os cantos não era definida a priori – eram os próprios espectadores que escolhiam
onde se colocar e o que observar dentro do espaço cênico – e influíam diretamente na
minha ação. Porém, diversamente de um bailarino que atua de uma forma extracotidiana,
eu não buscava um corpo ficcional que me diferenciasse de mim mesmo em situações
cotidianas. Era o próprio evento teatral que conferia a mim e a meu corpo esse estado-de-
atuação, eu não acionava os procedimentos aos quais estava habituado por meu treino e
que me reenviavam à minha antiga concepção de presença cênica.
Esse estado-de-atuação que me envolvia não impunha a criação de um corpo
fictício. As ações não deveriam ser realizadas com um tônus ou uma qualidade que lhes
conferisse uma dimensão espetacular, mas deveriam ter sua simplicidade e sua
cotidianidade ressaltadas: empurrar, arrumar, tirar ou pôr uma peça de roupa, tudo isso
deveria ser feito sem uma intenção determinada previamente à cena, o foco era a realização
125

da ação, não o investimento em um personagem ou em uma espetacularidade que se


impusesse por sua excepcionalidade. Dessa forma, fora de um contexto de uma
performance, o caráter performativo da ação era acentuado: não me era permitido
representar, embora eu tivesse plena consciência de me encontrar em um estado-de-
atuação (isto é, eu tivesse a consciência do evento teatral e do caráter de excepcionalidade
que ele implicava em minhas ações). Nesse caso, não havia sequer a preocupação de
conseguir um “efeito de não-representação” (uma consciente naturalidade) que se
contrapusesse a um “efeito de atuação” (Cornago, 2005), mas era a realização da ação,
enquanto jogo cênico, que se impunha.
Esse tipo de cena performativa aponta não para o espetacular, mas para um
reposicionamento do papel do espectador, com uma nova divisão da responsabilidade entre
performers (incluindo aí todos aqueles que são tradicionalmente compreendidos como
criadores do espetáculo, do dramaturgo aos técnicos) e audiência. Ao público é dado agir
não apenas como co-criador na função de atribuição de sentidos, mas como participante de
uma experiência que só ocorre a partir não apenas da presença, mas do próprio desejo do
espectador. O engajamento pessoal e o comprometimento da plateia passam a ser
necessários para a concretização da cena, que, enquanto experiência, não se realiza sem a
mudança da postura do público. Como diz Marvin Carlson,

o “papel” que se espera da audiência muda de um processo hermenêutico


passivo, de decodificação da articulação, incorporação ou desafio do material
cultural particular do performer, para se tornar algo muito mais ativo, entrando
numa práxis, contexto no qual os sentidos não são comunicados mas criados,
questionados ou negociados (Carlson, 2010, 223).

Assim, o público participa de uma experiência, e o espetáculo acontece


enquanto uma relação entre as pessoas que se encontram no ato de concretização da
experiência teatral22. Da relação de convívio (Dubatti, 2012) resulta a experiência de
estimulação, afetação e multiplicação que se dá entre os indivíduos e os grupos que
compartilham o mesmo espaço; a cena performativa investe na relação de sinestesia entre

22
Carlson, citando o artigo “Geographies of Learning: Theater Studies, Performance, and the
„Performative‟”, de Jill Dollan, fala na possibilidade do teatro em gerar uma comunidade, resultante do fato
das pessoas se reunirem para ver e/ou experimentarem algo juntas. Dolan fala em “comprometimento”, em
“comprometer-se com” ao invés de “observar” ou “contemplar” apontando para uma preocupação-chave, que
se relaciona às negociações culturais e à troca que ocorrem durante a performance teatral (Carlson, 2010, p.
222-24). Enquanto atividade cultural, o teatro tem como base a presença, a corporalidade das pessoas, e tem
como um dos principais fatores de sua potência o fato de ser experimentado “por um indivíduo que é também
parte de um grupo, de modo que as relações sociais são construídas na própria experiência” (idem, p. 224).
126

esses corpos, “trazendo a experiência para o centro do político e do social” (Carlson,


2010:224).
A ideia de persona abre-nos, conforme mencionamos acima, duas
possibilidades de encarar o estado-de-atuação: primeira, como o corpo não-cotidiano do
bailarino e mesmo do performer, uma persona corpórea, ligada à ativação das memórias
musculares e da presença cênica como a antropologia teatral a percebe; corpo distanciado
do cotidiano, que frequentemente resvala, flerta ou mergulha na espetacularidade, na
excepcionalidade que o treino físico oferece. Segunda, como o corpo do performer que
desempenha com rigor sua tarefa, seja esta servir café aos espectadores, seja gargalhar
ininterruptamente durante 15 minutos ou tirar e colocar o paletó ou as calças até a
exaustão. Neste caso, é o corpo cotidiano do ator que é exposto e a plateia se vê envolvida
numa práxis que exige dela uma nova postura, para que possa experienciar a performance
teatral.

3.5 Ator, personagem, actante.

Estamos diante de dramaturgias que alteram de forma substancial tanto o papel


do ator como o do espectador. Este se torna fundamental num processo de percepção da
cena que se instaura no palco ora como uma representação – onde predomina a
simbolização, relacionada, em alguma medida, a um processo de ficcionalização –, ora
como um evento onde a realização das ações se impõe como uma realidade que por vezes
aparenta (ou deseja) ultrapassar a ficcionalização e por vezes se mostra como algo anterior
à ficção. Boa parte dessas dramaturgias opta especificamente por tanger ou se estabelecer
numa indecibilidade, desestabilizando a percepção do espectador.
A mescla de referências que esses trabalhos utilizam e re-elaboram na criação
da cena trazem um primeiro elemento de desestabilização, do ponto de vista do espectador,
ao problematizar a questão da referencialidade e o estabelecimento de uma possível
história (fábula) que sustentaria o enredo do espetáculo. O permanente deslocamento entre
a representação, com sua remissão a um espaço-tempo ficcional, e a realização de ações
performativas, com seu constante reenvio ao plano da presença, através da presentificação
do real e utilizando estratégias cênicas de envolvimento do público, engendram cenas
híbridas que conduzem a plateia à renúncia não apenas de significações unívocas para as
127

relações estabelecidas em cena, como também para o processo puro e simples de


identificação entre ator-personagem.
Do ponto de vista do ator, há a criação de um espaço-tempo onde ele deve
realizar suas ações e alternar os diferentes registros que construiu e coloca em ação durante
a sua apresentação. Espaço de trânsito, onde há um constante deslizar entre os diversos
registros que concebeu e através dos quais executa sua atuação, o seu jogo. Tempo onde se
interrompe a fábula, fazem-se parênteses e interpolações, onde se suspende a duração e se
executa uma tarefa. Uma das questões que surge aqui é a maneira como se nomeiam esses
diferentes registros de atuação, se todos eles podem se encaixar sobre a rubrica
“personagem”, ou se há um ponto que não podemos mais nomeá-los assim. Há um ponto
em que devemos deixar de chamar de personagem aquilo que o ator mostra nas cenas
dessas dramaturgias? A mudança daquilo que o ator executa no palco, que implica em um
tensionamento da noção do que é o personagem, implica na própria superação desta noção?
Voltemos à definição clássica de personagem, um “ser de papel”, ficcional,
originário de um texto dramatúrgico. Enquanto restrito à matriz literária, constituindo-se
como uma projeção desta, o personagem ganha autonomia – tanto em relação a figura do
ator como, em alguns casos, até em relação ao contexto em que fora concebida pelo autor
dramático. Porém, mesmo em se tratando de encenações que partem de um texto
dramático, podemos notar que o teatro contemporâneo conturbou algumas noções que já
estavam estabelecidas. Como apontou Anne Ubersfeld, não é possível mais simplesmente
identificar o personagem dramático com o ator, pois este

pode, em um mesmo espetáculo, representar várias personagens, e inversamente,


a fragmentação da personagem no teatro contemporâneo supõe que a mesma
personagem pode ser representada por vários atores sucessiva ou
simultaneamente (...). As encenações modernas jogam com a identidade da
personagem, desdobram-na ou fundem várias personagens em uma só.
(Ubersfeld, 2005:33).

A análise do personagem a partir da matriz textual (narrativa) levou a criação


de vários modelos que tinham por base a identificação das funções assumidas pelos
personagens ao longo do discurso narrativo e a percepção dos vários níveis ou camadas
onde este personagem se apresenta e se estrutura, da textual propriamente dita à cênica
(onde o personagem é encarnado pelo ator). Em relação ao modelo actancial, Patrice Pavis
destaca que a sua vantagem é permitir que se “visualize as principais forças do drama e seu
papel na ação” (Pavis, 1999:07), analisando as situações dramáticas, os conflitos e as
128

relações entre os personagens. O termo actante, que muitos autores hoje utilizam para se
referir ao personagem, significa, para Greimas (que formulou, a partir do trabalho de
Souriau e Propp, um modelo actancial que é frequentemente aplicado à análise teatral),
“aquele que realiza ou que sofre o ato, independente de qualquer outra determinação”,
podendo ser meros figurantes ou qualquer outra entidade que, mesmo de forma passiva,
participe do processo da cena. Assim, actante “designará um tipo de unidade sintáxica, de
caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento semântico ou
ideológico” (Greimas e Courtés, 1979:12). Disto resulta que o actante não pode
simplesmente ser identificado à pessoa do ator porque, como observa o próprio Greimas,
ele “cobre não só seres humanos mas também animais, objetos e conceitos” (p. 13). Como
explica Anne Ubersfeld, também não se pode identificar actante e personagem teatral
porque

a. um actante pode ser uma abstração (a Cidade, Eros, Deus, a Liberdade) ou


uma personagem coletiva (o coro antigo, os soldados de um exército), ou então
uma reunião de várias personagens (esse grupo de personagens podendo ser,
como veremos, um oponente a um sujeito e a sua ação);
b. uma personagem pode assumir simultaneamente ou sucessivamente funções
actanciais diferentes;
c. um actante pode ser cenicamente ausente e sua presença textual pode estar
inscrita apenas no discurso de outros sujeitos da enunciação (locutores),
enquanto ele mesmo nunca é sujeito da enunciação, como, por exemplo,
Astianax e Heitor em Andrômaca. (Ubersfeld, 2005:35)

Ou seja, o conceito de actante extrapola tanto o conceito de personagem teatral


como o da pessoa do ator e o(s) papel(is) que este assume em cena; não só é mais amplo
que ambos, tendo sido cunhado para servir a uma análise textual, como atuam em níveis
diferentes (ver Pavis, 1999, p. 9-10). Esta possibilidade de decomposição da estrutura do
personagem, considerando desde a maneira como ele se apresenta diante do público (a
ostensão pelo ator) até sua função como signo e como força dramática (sua função
actancial), não muda o fato de que ele é uma produção23, algo que se dá não apenas no
corpo do ator, mas na relação estabelecida entre ator e espectador.

23
Em relação à maneira como o personagem pode se apresentar, a partir do texto dramático, Ubersfeld
observa que “podemos tomar a personagem como uma abstração, um limite, o cruzamento de uma série ou
de funções independentes – ou então podemos tomá-la como o agregado de elementos não autônomos –, mas
não podemos negá-la: dizer que uma noção a é a relação, a adição ou o produto de dois elementos b e c, não
significa que a não exista (...). Que a personagem não seja uma substância, mas uma produção, que ela esteja
no cruzamento de funções ou, mais precisamente, que ela constitua a intersecção de vários conjuntos (no
sentido matemático do termo), não significa que não tenhamos de considerá-la, mesmo que fosse de um
ponto de vista puramente linguístico: ela é um sujeito de enunciação. Ela é o sujeito de um discurso marcado
com o seu nome e o ator que assumir esse nome deverá proferir esse discurso.” (Ubersfeld, 2005:74).
129

Porém, o conceito de actante permite que se analise e se estude personagens


que não mais se definem como indivíduos, tal como observamos na Introdução e ao final
do Capítulo 2. Para Bonfitto (2003), a possibilidade de se pensar em “actante-estado” e
“actante-texto” (ver a nota 29 do cap. 2) vincula-se a possibilidade de análise desses
personagens que não interferem no desenrolar da intriga nem se encaixam numa estrutura
lógico-temporal, ou, ainda, se inserem em dramaturgias onde prevalece o “jogo textual”, a
auto-referencialidade do texto. Estamos, novamente, diante da “crise” do personagem:
existe uma dificuldade, ligada a uma tradição surgida a partir do Renascimento e que toma
corpo com a dramaturgia burguesa durante o século XIX, de se chamar de personagens a
uma cadeira, uma voz ou uma entidade abstrata; é justamente a facilidade em tratarmos
uma cadeira, uma voz ou uma entidade abstrata como actantes que leva muitos autores a
preferir o uso desse termo ao invés de personagem. Entretanto, para o ator, atuar em cena
como uma cadeira, voz, realizar ações ou encarnar um indivíduo com nome, história e
psicologia “própria”, constitui-se em tipos diferentes de personagens, com peculiaridades e
funções distintas.
Assim, podemos observar que a restrição que se faz hoje ao uso do termo e do
conceito de personagem às ações realizadas pelo ator em diversas cenas do teatro
performativo deve-se justamente à diluição ou desaparecimento de uma unidade
psicológica, da impossibilidade de reconhecimento de um “indivíduo” por trás dessas
ações, que as motive e dê um sentido. A possibilidade de pensar um personagem em
termos actanciais não implica no desaparecimento da noção de personagem, mas sim na
possibilidade de pensá-lo em termos de funções, analisando-o em outros níveis. Como diz
Pavis, a decomposição ou a análise das várias camadas que o compõem, implica

não uma destruição da noção de personagem, mas uma classificação de acordo


com seus traços e, principalmente, um relacionamento de todos os protagonistas
do drama (...). Não há que se temer quanto à personagem de teatro que ela se
“esgarce” numa infinidade de signos contrastantes, uma vez que, via de regra, é
sempre encarnada pelo mesmo ator. (Pavis, 1999:287).

Embora seja mais cômodo em alguns aspectos tratar como actantes


personagens cujo único “texto” se limita à realização de algumas ações em cena, isto não
elimina o fato de se tratarem de “seres ficcionais”, criados para se concretizarem dentro do
enquadramento da cena teatral. Da mesma forma que Bonfitto opta pela utilização do
termo actante, Lúcia Romano coloca a possibilidade de substituição do conceito de
personagem pelos de figura, máscara e imagem cênica. Quando ela fala em um “modelo
130

diferenciado” na relação ator/personagem, refere-se justamente ao rompimento dessa


imbricação do ator com o personagem no intuito de contar uma história, e sugere a
“geração de uma materialidade „nova‟ do ator na construção teatral” (Romano, 2005:197).
O que se evidencia é justamente uma “ultrapassagem” realizada pelo ator do que se
costuma entender por personagem dramática. Trata-se, a meu ver, mais do que uma nova
materialidade do ator, de uma nova dramaturgia da cena, ligada ao rompimento e a diluição
dos planos da presentação e representação, e entre teatro e performance, que se ligam a
novos registros de atuação.
Veremos, a seguir, como se posicionam os atores face a esta cena que esgarça
conceitos e complexifica sobremaneira o seu estar-em-cena.

I
…everything that is perceived bears reference to a particular fictional character.
II
… is perceived in its phenomenality, as his particular being-in-the world.
III
…puede producir la manifestación de una realidad escondida, del mismo modo que la alienación de
mentiras que, según el realizador iraní es intrínseca al arte cinematográfico, puede aparecer una verdad más
profunda. (…) …lo real puede hacer transparente el artificio.
IV
...crear un efecto de realidad que estuviera más allá de lo ficticio, de lo que no es verdadero, del engaño y
lo teatral.
V
En cualquier caso, la mirada teatral actúa sobre el mundo exterior como si se tratase de una operación
quirúrgica, practicando cortes, descentramientos y focalizaciones con el propósito de hacer visible en una
dimensión simbólica aquello que no lo es en el campo de la realidad, cuestionando sus categorías, límites y
convenciones
VI
...un acto privado, casi familiar, que acaba en un baile al que se invita al público... (...) ... situar el acto a
mitad de camino entre el teatro y la presentación documental.
VII
...en estructuras simbólicas trabajadas por sus pulsiones y sus deseos en tanto sujeto, sujeto en proceso,
explorando su interior, su doble, su otro, a fin de hacerlo hablar.
VIII
La teatralidad así percibida sería no solamente la emergencia de un quiebre en el espacio, de una división
de lo real para que pueda surgir una alteridad, sino la constitución misma de este espacio hecha por la mirada
del espectador, una mirada que, lejos de ser pasiva, constituye la condición de la emergencia de la teatralidad,
arrastrando verdaderamente una modificación cualitativa de las relaciones entre los sujetos.
IX
... una representación que no se presenta como tal, una no-actuación,
X
...sería conveniente referirse a un efecto de actuación, es decir, de representación, frente a un efecto de no-
representación...
131

Capítulo 4 – O ATOR EM TRABALHO


PERSONAGEM, PERSONA, JOGO

Figura 10: Corpos Subjetivos em Espaços Móveis


Foto: Luiza Vianna
132

O ator em trabalho – Personagem, Persona, Jogo

Como o ator se coloca face à diversidade que a cena teatral pós-dramática ou


performativa propõe? Numa prática em que o foco não é mais a busca do personagem, isto
é, a construção de um outro, mas “eficácias cênicas”, o jogo ou a “apresentação” de uma
ação, como o ator realiza seu trabalho, como ele se move dentro dessas diferentes
exigências?
Se o ator se apresenta como ele mesmo, buscando romper os limites da
ficcionalidade, se, como um performer, realiza ações em cena buscando o acontecimento e
escapar da representação, se ele tenta encontrar estratégias que criem novas formas de
relação com o público, como qualificar a “construção cênica” realizada por ele?
Tomando a questão pelo lado do trabalho prático do ator, podemos falar em
diferentes registros de atuação, nos quais o ator trabalha acionando arquivos, memórias
corporais, memórias de vivências ou de tipos criados por ele, oscilando e transitando entre
diversas maneiras de conceber e colocar em prática o seu estar-em-cena, alterando a sua
forma de criar e atuar, que passa principalmente pelo seu corpo. No momento dessa
passagem de uma atuação marcadamente ficcional para uma atuação cada vez mais não-
ficcional, de que forma podemos ainda falar em personagem?
Ao longo desse capítulo buscaremos aprofundar essas questões sob o ponto de
vista do ator, enfocando a maneira como ele enxerga e pensa o seu próprio trabalho. À
transformação pela qual tem passado a cena teatral acompanhou a mudança na maneira
como o ator realiza suas tarefas, tanto em sala de ensaio como em cena, especialmente na
relação que ele estabelece com suas ações (a performatividade), consigo mesmo (o uso de
material autobiográfico), e com o público (a vivência e o envolvimento). Tal mudança
envolve métodos diferentes de trabalho e treinamento, além de uma transformação na
perspectiva de concepção do personagem cênico.
Quanto à maneira como o ator aborda a criação de seu estar-em-cena, podemos
dizer que há uma ampliação no espectro no qual ele trabalha, variando, em termos de
ênfase, da criação de personagens ficcionais altamente elaborados (semelhantes a uma
pessoa), até a apresentação pura e simples (não-representação).
133

4.1 Performatividade: Ator X performer

Viemos observando ao longo desse trabalho como o tensionamento entre a


performatividade das ações realizadas pelo ator e a representação, o rompimento do plano
ficcional e a insurgência da pessoa real do ator em cena (sem o anteparo de um
personagem fictício), têm concorrido para nublar as distinções usuais entre ator e
performer. Haverá ainda uma especificidade que distinga o trabalho do ator e do performer
ou trata-se de uma questão de matizes ou contextos?
É fato que a questão da representação ainda é a forma mais imediata para
estabelecermos uma distinção entre o ator e o performer, servindo de base para uma
primeira, embora não precisa, diferenciação entre ambos. O conceito de ator, e o que nós
ordinariamente entendemos como atuação, está normalmente ligado ao universo da
representação, à figuração de personagens de ficção; já o performer vincula-se à não-
representação ou à não-atuação. Como o trabalho do ator na cena que estamos pesquisando
está frequentemente baseado na tentativa de não interpretar, ou afasta-se
consideravelmente da representação, os dois conceitos se embaralham, se confundem ou
mesmo se fundem, como podemos observar na fala de Patrícia Fagundes, diretora da Cia
Rústica e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: “Eu não sei qual é a
diferença entre ser ator e ser performer. Numa peça que eu dirijo, eu acho que as pessoas
são atores e são performers, simultaneamente, inclusive porque tem que, às vezes, não
representar nada.” (Fagundes, 2013. Ver anexo, p. 204).
Embutidas nessa fala há dois aspectos que merecem a nossa discussão:
primeiro, a constatação de que o trabalho do ator incorporou muitas das práticas artísticas
criadas por performers, levando muitos teóricos a tratarem o ator como um performer
(Féral, 2008), ou usarem termos como ator performático (Gusmão, 2000), ou
ator/performer (Romano, 2005) evidenciando justamente esse estado ou situação em que as
práticas de ambos se aproximam e em certos aspectos se igualam, levando a esse
embaralhamento e fusão; e, criando um novo paradoxo, há a possibilidade de o ator,
colocado em uma situação cênica, “não representar nada”.
Vamos nos deter inicialmente no problema da representação. Uma das questões
que estamos investigando ao longo dessa tese trata da sobrevivência do personagem no
teatro e possui dois aspectos distintos: por um lado indaga a intenção do sujeito em cena e
por outro discute justamente a possibilidade de um ser humano estar no palco sem
134

representar nada. A intencionalidade das ações e atividades humanas vem sendo debatida
há muito, e os teóricos dos Estudos da Performance se debruçam sobre esse tópico desde
meados dos anos sessenta do século passado. Michael Kirby (1987) destaca que a intenção
que marca a realização de uma apresentação feita diante de uma audiência modifica não só
a postura dessa audiência, mas afeta igualmente àquele que a realiza. É o que distingue as
apresentações artísticas de outros atos coletivos:

Como o teatro, rituais religiosos e cerimônias são direcionadas para fora (outer-
directed), mas o seu intento não é afetar uma audiência, mas atingir um propósito
funcional no mundo metafísico. (...) Estes rituais são designados e realizados
(performed) principalmente por seu fim, mais do que por seu efeito sobre uma
audiência que porventura esteja presente. (Kirby, 1987:XII – XIIII)

A intenção marca de uma maneira às vezes sutil, mas indelével, a maneira


como a pessoa que executa as ações as realiza. O que nós chamamos aqui de
enquadramento teatral, modifica não só a postura da audiência, mas também, alterando o
propósito e o envolvimento que o executante mantém com seus atos, transforma a
qualidades destes, conferindo-lhes (justamente por esse envolvimento que engloba
audiência e executantes) um significado e uma aura que os distingue de outras ações
realizadas cotidianamente. Kirby fala justamente no contraste que marca as ações do dia-a-
dia e as realizadas no contexto das performances artísticas. Para ele, esses dois tipos de
ação são como polos opostos e extremos, o primeiro se caracterizando por não
desempenhar ou dirigir o comportamento para uma audiência, e o segundo pelo desejo de
se obter um efeito sobre esta (Cf. p. XIII). Entre esses polos há um continuum, como uma
escala dentro da qual as diversas ações e performances se localizariam, cada qual em
pontos diferentes desse espectro.
Partindo do conceito que, em termos teatrais, atuar significa “fingir, simular,
representar, personificar” (Kirby, 1987:031), Kirby elabora uma escala que abarca os dois

1
Kirby usa os termos “to feign, to simulate, to represent, to impersonate”, como sinônimos de “acting”,
opondo-o à ação de “ser” e ressalvando que nem toda performance artística envolve a “simulação”, isto é, a
representação: “Como os Happenings demonstraram, nem todo desempenho é atuação. Embora atuação seja
algumas vezes usada, os performers nos Happenings geralmente tendem a „ser‟ nada nem ninguém além
deles mesmos; eles não representam, ou fingem estar em um tempo ou lugar diferentes daquele do
espectador. Eles caminham, correm, dizem palavras, cantam, lavam pratos, operam máquinas e maquinário
de palco e assim por diante, mas eles não fingem ou personificam (Kirby, 1987:03) (As Happenings
demonstrated, not all performing is acting. Although acting was sometimes used, the performers in
Happenings generally tended to “be” nobody or nothing other than themselves; nor did they represent, or
pretended to be in, a time or place different from that of the spectator. They walked, ran, said words, sang,
washed dishes, swept, operated machines and stage devices, and so forth, but they did not feign or
impersonate.)
135

extremos opostos, indo da Atuação (Acting) à Não-atuação (Not-acting). Nesse último


extremo da escala o performer nada faz para reforçar a informação contida na estrutura da
narrativa ou a identificação; indo em direção ao outro extremo, há uma crescente
complexificação da atuação do performer, que passa de um desempenho Não-matrizado
(Nonmatrixed) até a Atuação complexa (Complex acting), passando pela Matriz
simbolizada (Symbolized acting), pela Atuação recebida (Received acting) e pela Atuação
simples (Simple acting)2. A atuação complexa envolve a incorporação de mais e mais
elementos no que Kirby designa como fingimento (pretense), sejam estes elementos físicos
ou emocionais, evidenciando a “quantidade” de atuação que as diferentes manifestações
envolvem. Não há aqui um julgamento ou valoração da qualidade artística do trabalho
envolvido, mas apenas a constatação da complexidade da atuação. Acrescento que a não-
atuação3 é um processo deliberado que frequentemente envolve um enorme esforço,
aprendizado e dispêndio de energia por parte do artista, haja vista a qualidade e intensidade
de happenings e performances, ações que se situariam nesse polo da escala proposta por
Kirby.
O teórico americano chama a atenção para a guinada ocorrida ao final do
século 20 do polo da representação em direção à não-representação, uma mudança que ele
credita especialmente à influência dos happenings sobre as outras esferas cênicas,
destacando o fato de que “quase todas as muitas inovações produzidas pelos Happenings
foram aplicadas ao teatro narrativo, informacional, representativo” (p. 15II). A
possibilidade de o ator não representar nada – neste caso, não simular, fingir ser algo ou
alguém que não ele mesmo no espaço e tempo onde se encontram ele e a audiência –
marca justamente o processo de aproximação entre as práticas e processos criativos do ator
e aqueles considerados típicos do performer. Essa aproximação não só estimula a
tendência à não-representação, mas pontua a mudança na maneira como o ator encara e
2
Um desempenho Não-matrizado ocorre quando os performers , como os atendentes de palco do teatro
Kabuki ou Nô, não estão inseridos em matrizes de simulação ou de representação de personagens
(character), de situação, tempo e lugar, sendo simplesmente designados por seus trajes. Na Matriz
Simbolizada, elementos referenciais são aplicados, mas não são ativados pelo performer, que não age em
função deles. Quando os elementos dessa matriz crescem em força e continuidade, reforçando-se
mutuamente, passamos a ver no palco um ator, não uma pessoa, não importando quão rudimentar seja o seu
“comportamento”, atingindo uma Atuação recebida, como extras em um set de cinema. Quando se refere à
Atuação simples, Kirby nota que nenhuma emoção precisa estar envolvida, sem também entrar no mérito
qualitativo, de boas ou más atuações. Toda pequena e simples ação que envolva fingimento, simulação,
representação e personificação pode ser chamada de acting, mesmo sendo um simples jogo de charadas.
3
Como já observamos no capítulo 2, notas 8 e 22, acting, atuação, é usualmente tomado como sinônimo de
interpretação e representação. Neste trabalho estamos utilizando atuar e atuação em um sentido mais neutro e
amplo, fugindo da conotação que Kirby dá na sua escala. Assim, daqui em diante, nos referiremos aos polos
dessa escala como polo da representação e polo da não-representação.
136

realiza suas ações, implicando ainda numa transformação nas relações com o público.
Similarmente e em sentido inverso, podemos falar de um “avizinhamento” da Performance
às práticas teatrais, inclusive no que toca à representação de papéis. Carlson chama a
atenção para um tipo de performance “autoexploratória”, baseada na criação de personas
ou personagens, na qual o performer “não lidava com experiência autobiográfica ou da
„vida real‟, mas com a exploração, via performance, de eus alternativos, imaginários e
mesmo míticos” (Carlson, 2010:172), criando e desenvolvendo possibilidades de “vidas de
fantasia”4.
A aproximação do trabalho do ator e do performer se dá em vários níveis e
aspectos. De uma forma clara, observamos que há um constante apelo à voz autoral do
ator. Dessa maneira, podemos dizer que este passa a atuar numa “perspectiva
performática”, no sentido não só de buscar uma não-representação (ver item 4.2), mas
também do desempenho das ações e da sua própria contribuição para a autoria do
espetáculo. Heinz Limaverde5, ator da Cia Rústica, protagonista do espetáculo O fantástico
circo teatro de um homem só, observando a forma que uma peça teatral é construída,
percebe a transformação pela qual passou o seu ofício no sentido da contribuição que o
ator dá para a montagem da encenação:

Antes, os grupos que eu iniciei, eram uma coisa muito mais “teatrão”, era leitura
na mesa, depois na sala, já “marcando”. Eu praticamente não criava nada, o
diretor fazia o desenho da cena, “vai para lá, vem para cá, senta ali”. Agora é
tudo... a gente cria, vai fazendo, improvisando, e dando sugestões também para a
direção, uma mistura de tudo isso, muito diferente de quando eu comecei. (...)
Agora é muito mais autoral. (...) A equipe inteira, e a gente também, sabe que
tem a mão da gente em tudo, em todo esse processo, desde o começo, do texto,
da cena, da marca, do figurino, a gente montava o figurino... (Limaverde, 2013.
Ver anexo, p. 218-19)

Os atores passam a trabalhar em estreita colaboração com os diretores, que


desejam deles não apenas uma habilidade técnica, uma competência para compor

4
Carlson dá vários exemplos, entre eles o de Eleanor Antin que, nos anos 70 do século passado, questionou
os limites da autodefinição, explorando “versões alternativa e exóticas” do seu self, que incluíram “um rei,
uma bailarina, uma estrela de cinema e uma enfermeira, cada uma desenvolvida em um certo número de anos
por meio de uma variedade de performances” (Carlson, 2010:173). A exploração de uma persona masculina
por parte das mulheres e a de uma persona feminina por parte dos homens tem uma longa tradição não só
dentro do teatro convencional, mas também nas performances tipo “Camp”, e atualmente é bastante comum
em shows e boates, como atestam as diversas drag queens. Veremos adiante como o ator Heinz Limaverde
explora esse tipo de persona para a construção de seus personagens no palco.
5
Heinz Limaverde nasceu no Crato, no Ceará, em 1975, e é ator e figurinista. Tendo feito sua carreira
artística no Rio Grande do Sul, recebeu os prêmios Açorianos e Braskem 2008 de melhor ator por A Megera
Domada, e Braskem 2006 de melhor ator por Sonho de Uma Noite de Verão.
137

personagens e dar-lhes “vida” em cena; a singularidade do ator é a base para a própria


construção da cena, e o diretor trabalha justamente no sentido de colocar em cena essa
singularidade. A experiência do ator é decidamente usada na dramaturgia do espetáculo. A
diretora Patrícia Fagundes utiliza de todo o repertório de Heinz, de vários dos seus
registros, incluindo aí tipos e personas que ele utiliza em shows e eventos, para a
construção cênica do trabalho, como observa o próprio ator: “A vedete, todos, acho que
todos os personagens que aparecem no espetáculo eles têm, como princípio básico, eles
partem da minha pessoa, da minha forma de pensar.” (Limaverde, 2013. Anexo, p. 219). O
ator passa a trabalhar dentro do que Rita Gusmão chama de uma perspectiva performática,
na qual o trabalho do ator se estende “desde a idealização da cena até o final da sua
apresentação, incorporando a contínua reelaboração das ações encenadas” (Gusmão,
2000:51). A personalidade do ator passa a fazer “parte integrante e valiosa do trabalho de
encenação”, valorizando ainda “a capacidade do ator de lidar com as reações do público e
de modificar a sua própria relação com o espetáculo” (p. 51) em função de sua interação
com o público.
O treinamento do ator reflete-se, assim, na própria estrutura do espetáculo. A
sua dramaturgia da cena se relaciona diretamente com as potencialidades e com a
experiência do intérprete. A atriz Dani Barros6 percebe que os anos de trabalho e treino
como palhaça interferem sempre, às vezes de uma forma sutil, na composição e
interpretação do personagem Estamira:

E a peça, ela é muito cheia de coisas de palhaços. Tem gestos, assim, quando eu
falo “Ah, esses remédios são tudo dopantes.”, eu faço assim no banco [faz um
gesto de escorregar], é sutilmente, entende, mas, eu acho que são coisas que,
quem é palhaço, sabe o filtro que tem ali, de palhaço. (...) E, também, acho que o
palhaço tem isso: ele se desnuda, você coloca o seu ridículo em cena. E ali tem
isso, eu me desnudo, eu apareço muitas vezes como Dani, eu exponho, se eu
estou emocionada eu exponho a emoção, e eu acho que isso é uma pegada... é a
linguagem do palhaço. (Barros, 2013. Anexo, p. 225-26)

O que observamos durante a nossa pesquisa, ao ouvir a voz dos atores, que são
os que diretamente vivenciam esse processo de transformação das tarefas e da forma de
trabalho no palco, é que esta aproximação entre o ator e o performer se dá de uma forma
sutil e irreversível, abrangendo não só questões como a da autoria, mas a maneira como as

6
Danielle Barros, conhecida artísticamente como Dani Barros, é atriz formada pela UniRio, tendo cursado a
Escola Nacional de Circo, de 1992 a 1994 e integrado o grupo Os Fodidos Privilegiados, de 1996 a 2003. Em
1995, iniciou o projeto Doutores Palhaços em hospitais do Rio, promovido pela Fundação Theodora (Suíça)
e, em 1998, participa da fundação do projeto Doutores da Alegria, permanecendo nele até 2008.
138

ações são realizadas e a visão da cena como um “acontecimento”, que evidencia o


momento da apresentação e incorpora as interferências desse aqui-agora.
A forma como são realizadas as ações corporais e movimentos do ator
demonstra claramente a mudança na intenção do atuante: há uma clara passagem do “quê”
para o “como” o ator realiza essas ações. Há um trânsito entre os vários registros de
atuação, que implica no acionamento de diversos arquivos de memória, personas ou
técnicas, sem prejuízo de continuidade ou quebra da ação cênica. Além disso, a
performatividade do gesto é colocada em evidência, sem uma vinculação direta a um
conteúdo ficcional. Comentando sobre esse trânsito, Odilon Esteves7, ator da Cia. Luna
Lunera, observa que não vê “nenhuma diferença” entre realizar uma dança ou fazer uma
cena que “vai para o cotidiano” (Esteves, 2013. Anexo, p. 188). A mudança na intenção e
na forma como é pensado o estar-em-cena fica clara na maneira como Odilon descreve um
trecho do espetáculo Aqueles dois, onde são utilizadas técnicas do contato-improvisação:

No caso do contato-improvisação no Aqueles dois, que você citou, uma das


regras do jogo é que eu uso o peso e o contrapeso, eu jogo o peso no corpo do
outro e a gente se equilibra; daí a pouco a gente está usando uma movimentação
que ela tem a ver com composição de espaço, tem a ver com viewpoints, tem a
ver com topografia, que a gente usa umas raias que elas são um grid, são raias
cruzadas. Então, me exige um outro tipo de percepção, que é ver para onde que o
meu colega foi, em qual velocidade, para que eu jogue com isso, ou contrapondo,
ou entrando na dele, enfim, do jeito como eu quiser jogar. (Esteves, 2013.
Anexo, p. 189)

O conceito de jogo é aqui utilizado de uma forma ampliada, não apenas como
um jogo dramático: o ator joga com o seu peso, improvisando e compondo uma dança; ele
joga com a movimentação do outro e se movimenta não buscando um efeito dramático que
se baseia no conteúdo ficcional da cena, mas na relação estabelecida naquele momento
pela ação do seu parceiro, “contrapondo ou entrando na dele”. Há um deslocamento na
percepção e na intenção do ator; movimentação e gesto não são estabelecidos por um
possível efeito sobre a plateia, mas pela interação e jogo que ocorre no momento exato da
cena. “A necessidade do jogo é o jogo” (Guénoun, 2004:131), a dinâmica e a forma da
cena são estabelecidos durante a sua execução, o jogo entre os atores as determinam; o
próprio sentido da cena, conquanto marcado pela estrutura na qual ela se encaixa, desloca-
se de uma visão apriorística, que privilegia um efeito pré-concebido, para o aqui-agora da

7
Odilon Esteves é ator formado pelo Curso Profissionalizante de Teatro do Palácio das Artes/Cefar
(BH/MG) e graduado em Artes Cênicas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É membro-
fundador da Cia. Luna Lunera, de Belo Horizonte.
139

apresentação, onde a presença do público, o estado físico e emocional dos atores e a


relação que se estabelece entre eles são preponderantes na configuração final da cena e,
consequentemente, no sentido que ela adquire. As técnicas aprendidas, a maneira como
elas são atualizadas e colocadas em prática no instante da cena, e não o imaginário criado
em torno dos personagens, o seu possível comportamento na hipotética situação criada pela
encenação, isto é o que move os atores: “O programa que os atores cumprem, então, no
palco, não está mais relacionado, intimamente, com as exigências de confecção de
identidades narrativas, mas com a efetivação de uma lógica do jogo.” (Guénoun, p.133,
grifos do autor).
Enquanto ator, tal mudança de perspectiva ficou clara para mim durante os trabalhos com o
Zona de Interferência. Em De quem é meu espaço?, por exemplo, não havia a investidura
em um personagem ficcional; as ações realizadas em cena, como a sequência na qual as
bolsas/mochilas eram carregadas de diferentes maneiras e explorávamos o seu conteúdo
(livros, agendas, papeis, objetos como celulares, canetas, escovas de dente, etc.), eram
configuradas pela materialidade, forma e peso dos objetos e pela relação espacial que
estabelecíamos com os companheiros de cena, não por possíveis atribuições simbólicas que
a audiência pudesse estabelecer dessa movimentação – relações de submissão, de poder,
assimilação a deformidades ou animalidades (figura 11). Não que tais paralelos e
identificações não pudessem ser feitos e em alguma medida esperados, mas este não era o
objetivo e o propósito dos atores em cena. As bolsas e mochilas, que eram as mesmas que
utilizávamos no nosso dia-a-dia, mostravam aspectos da subjetividade de cada um dos
intérpretes, tanto pelo seu conteúdo (por exemplo: livros que líamos, revelando não só
interesses pessoais, mas necessidades profissionais) quanto pela sua própria forma (cada
um de nós havia escolhido para si um objeto singular e diferente), e eram esses aspectos
que buscávamos explorar em cena. Não havia a busca por uma ficcionalização da presença,
mas ativação de técnicas e um jogo improvisado que, como numa Jam session, não se
desprendia da situação de estar sendo observado (o enquadramento teatral) e da
composição da cena como um todo8.

8
Um dos pontos que pesquisamos no início do trabalho do Zona de Interferência foi justamente as mudanças,
diferenças e nuances que ocorrem durante o jogo improvisacional. Durante as jams podíamos observar
momentos de extrema plasticidade ou intensidade física ou emocional, seguidos de outros de esvaziamento e,
digamos assim, de pouco interesse cênico. Eu, especialmente, me perguntava que qualidades e fatores
estavam envolvidos naquele processo, e o que interferia nesse jogo improvisacional. A busca por esses
fatores de interferência foi um dos motivos para a constituição do grupo.
140

Figura 11: De quem é meu espaço?


Foto: Maria Luiza Nogueira

Nesse processo de aproximação ator-performer, um dos aspectos mais


significativos é, sem dúvida, a valorização do presente, do momento da apresentação, que
reúne palco e plateia. Sem se deter ou se aprofundar em questões teóricas, os atores que
entrevistamos percebem que essa característica da Performance e do trabalho do performer
se faz presente também na sua maneira de estar em cena. Odilon Esteves percebe a
oscilação do seu trabalho entre a representação e o aqui/agora que caracterizam a
performance:

Quando eu vejo um performer, eu vejo ele muito ligado no tempo presente, no


espaço presente, com aquelas pessoas presentes, com algumas coisas que vão ter
ainda com as influências da ideia do happening mesmo, que querendo ou não
elas continuam, eu acho, em grande parte das performances que eu vejo hoje,
essa ideia do acontecimento, do aqui/agora... (...) ...eu acho que eles sempre
estão interligados no tempo presente, no espaço presente, num acontecimento
presente, e fogem da ideia de “representação”, de fingimento, de engano. (...)
Então eu acho que, dessa maneira, há dias que a gente se aproxima do performer,
desse jeito como eu vejo a performance. E há dias que não, há dias que a gente
está mais para a representação. Mas não é o caminho que a gente busca, o
caminho que a gente busca acho que é o de cada espetáculo ser um
acontecimento, daquele dia. (Esteves, 2013. Anexo, p. 191).
141

Também Dani Barros vê em seu trabalho essa busca, percebendo ainda que
os espetáculos teatrais jogam de forma diferente com essa possibilidade de oscilação entre
a representação e a presentação:

... aí eu acho que [a peça] tem o sentido da performance, que é você estar no aqui
e agora. (...) E eu acho que esse é o sentido de performance que a gente tem de
buscar, que é o presente, que é o verdadeiro, o aqui, o agora. (...) É que eu acho
que têm peças que têm níveis... que a coisa se apresenta mais ali, na hora, a coisa
acontece mais ali, na hora. (...) ... quando eu olho para a frente eu estou buscando
relação de verdade com a plateia. Isso é um elemento performático. Mas eu acho
que, o tempo todo – o tempo todo não, têm peças mais propícias e têm atores que
são mais propícios a isso. (Barros, 2013. Anexo, p. 231-33)

A quebra com a ideia da representação e o colocar-se no aqui e agora da


apresentação, unindo atores e público no mesmo espaço e tempo, jogando justamente com
o deslocamento entre o universo ficcional e a aproximação desse lugar onde não há
barreira ou distância entre palco e plateia (ver item 4.3), faz-se clara na voz dos artistas.
Quando Odilon fala em fugir da ideia de representação e Dani Barros comenta sobre os
vários níveis que constituem as peças teatrais, nos aproximamos da escala proposta por
Kirby e desse continuum que vai da não-representação a representação, e dos diversos
pontos dessa escala onde cada um dos trabalhos e atuações se colocaria. Como performers,
esses atores percebem que precisam atuar no momento presente (e a própria estrutura
dramatúrgica dos trabalhos realizados é construída para possibilitá-lo), e os espetáculos são
pensados como um acontecimento, algo que não se repete. Porém, mesmo com essa
aproximação, esses atores não se identificam e não se veem como performers; percebem,
contudo, que o performático e o performativo por um lado fazem parte ou atravessam o seu
trabalho, e, por outro, que a performatividade faz parte do cotidiano do seu trabalho como
ator, como relatam Marcelo Souza e Silva9, da Cia. Luna Lunera, Heinz Limaverde e Dani
Barros:

– Falando do nosso trabalho especificamente, eu acho que em alguns momentos,


algumas pessoas, em relação até ao último trabalho, que há momentos em que os
atores são performativos. A gente não trabalha com esse tipo de distinção.
(Souza e Silva, 2013. Anexo, p. 192).
– Eu não entendo ainda muito bem essa coisa. Eu sou do teatro à antiga, eu acho.
Tudo agora é performer, agora a coisa da performance está na moda... Para mim
tudo é teatro. (Limaverde, 2013. Anexo, p. 21)7.

9
Como Odilon, Marcelo também se formou no Curso Profissionalizante de Teatro do Palácio das Artes/Cefar
(BH/MG), com o espetáculo Perdoa-me por me traíres (2000), sendo um dos fundadores da Cia. Luna
Lunera.
142

– O Estamira me proporciona... as ferramentas do Estamira elas são, elas me


proporcionam ser mais performática, porque estou ali na hora, estou... se alguém
fala uma coisa no meio eu escuto... (Barros, 2013. Anexo, p. 232).

4.2 O Personagem: aproximar-se e distanciar-se de si mesmo

Nos processos que viemos observando nessa pesquisa pudemos constatar que
há uma tendência a se abdicar de um personagem de ficção para a utilização das memórias
e da própria identidade do ator, criando um outro tipo de personagem, algo como uma
persona de si mesmo, que se apresenta não como uma máscara, mas um recorte da pessoa
que é colocado em cena. De maneira semelhante à maneira como trabalha em relação a um
personagem que é construído a partir de uma ficção, o ator, criando a partir de suas
memórias, quando é posto em uma situação cênica se distancia e se diferencia do seu eu
cotidiano, num trajeto que evidencia justamente o fato de o ator tratar a sua autobiografia
como um material de trabalho, permitindo-nos ainda discutir a memória como uma
ferramenta para a sua atuação.
A memória aqui atua não apenas como um “atualizador” da ação 10. Ela é ao
mesmo tempo filtro – pois o vivido passa por um permanente processo de recriação, no
próprio momento de sua rememoração – e um lugar de diálogo com a experiência do
sujeito (ou dos sujeitos, se incluirmos nesse campo o espectador, aquele que presencia o
ato de rememoração), que está em permanente transformação:

Em primeiro lugar, tratava-se de perceber a memória não como um lugar estático


a ser acessado, como uma „coisa‟ fixa e já possuída que devesse ser relembrada,
mas como uma „relação‟ que se transforma com e no tempo. A experiência
(memória) dialoga com o experienciador, numa via de mão dupla. E nesse
diálogo, a memória não se apresenta igual a si mesma, mas em um dinamismo
que é característica do estar hic et nunc. Podemos inclusive nos perguntar onde
começa a memória e acaba a imaginação. (Motta Lima, 2009:168)

A memória se apresenta, especialmente no fazer teatral, como algo que se dá


no corpo daquele que rememora; é não apenas uma lembrança de fatos, mas de sensações,

10
Falando desse aspecto da memória como aquilo que atualiza a ação ensaiada e aprendida, Yedda Chaves
pondera que “a capacidade de relembrar o fluxo vivido da ação está fundamentado na memória, um dos
aspectos cognitivos implicados no trabalho do ator no momento de criação de materiais. Porém, a memória
que nos interessa aqui é aquela do instante da cena, no qual o ator está em processo.” (Chaves, 2009:175). O
ator vive e depende de sua capacidade de atualizar o aprendido, equilibrando-se entre o imediato do presente,
a sensação imediata, e tudo aquilo que foi previamente planejado e ensaiado, um constante exercício de uma
memória que envolve corpo e mente. O material criado precisa ser re-apresentado, revivido no instante
preciso da cena, mantendo – dilema do ator – o frescor e a intensidade do momento de sua criação.
143

de sons, cheiros, palavras, luminosidades, ações realizadas, roupas e objetos, de algo que
constitui a atmosfera de um dado evento, num processo de atualização que envolve a
própria re-construção dessa memória. Trata-se aqui, como pontua Patrícia Leonardelli
(2009:195), baseando-se nos estudos de Ivan Izquierdo e Antonio Damásio, de pensar o
estudo e conceito de memória não como “faculdade da mente pensante”, mas como “fluxo
do corpo pensante (corpus cogitans)” (grifos da autora). Pensar o processo de
rememoração enquanto uma forma de atualização daquilo que foi vivido, permite-nos
incluir aí não só o corpo do ator – que muitas vezes busca nesse processo a qualidade da
“energia” e da sensação que experimentara na situação evocada –, mas a transformação
desse vivido, que é distorcido e recriado nesse atualizar. Assim, a noção de memória
apresenta-se não mais “como evocação do passado fenomenológico, passível de todas as
imprecisões que implicam em registrar e evocar algo que não está mais apresentado aos
sentidos (a retenção), mas como recriação permanente do vivido em circuitos permeáveis.”
(p.195).
O uso de material pessoal do ator, e especialmente o depoimento
autobiográfico, põe em relevo esse aspecto da memória, de reconfigurar o vivido e, de
certa forma, de criação que esse rememorar envolve. As lacunas e imprecisões são
preenchidas pelo ator, num processo que, se não implica numa ficcionalização do real, é
permeado por uma maneira subjetiva e pessoal de apreender esse real. A própria
possibilidade de se apreender o real – como diria José Sánchez, o próprio real escapa à
sujeição da representação: “toda representação é sempre a representação de uma ilusão,
mais ou menos compartilhada, a qual denominamos realidade” (Sánchez, 2007:37III) –, é
colocada em xeque aqui. Na mesma linha de Sánchez, Maryvonne Saison distingue entre
“Realidade”, com maiúscula, que designa “a imagem global e coerente do mundo”,
invocando o “real”, por oposição a “realidade”, com minúscula, “que designa uma
representação, correspondente a um ponto de vista” (Saison, 1998:43IV). As realidades
colocadas ou expostas no palco através dos depoimentos autobiográficos dos atores
correspondem a pontos de vista desses criadores, uma visão da Realidade filtrada pela
memória e pelo aparato cênico, que não tem por objetivo nem reproduzir fielmente, nem
ocultar esse real no qual elas se baseiam e do qual partem.
A impossibilidade de uma apreensão “global” do real também é percebida
pelos atores: Odilon Esteves observa que esse processo de narração a partir da memória
144

seria tão ficção quanto qualquer história de qualquer pessoa do mundo ao contar
uma passagem da própria vida. Então, sendo assim, tudo é ficção, toda a vida é
ficção, porque é a forma como eu consigo narrar as experiências que eu vivi,
porque tem a ver com a linguagem que eu tenho, com a forma como eu
conseguia nomear as coisas que eu sentia daquela maneira. (Esteves, 2013.
Anexo, p. 176).

Reconhecendo a capacidade criadora do ato de rememorar, diversos artistas


desde a década de 7011 do século passado vêm se utilizando da experiência pessoal de seus
atores/intérpretes/performers para a criação de seus espetáculos. Esta utilização se
materializa não apenas no uso dessa memória na criação de personagens ficcionais (quer
seja à maneira stanislavskiana, quer seja a partir da revivência de uma memória corporal
inspirada nas experiências de Grotowski), mas na inserção de pequenos trechos narrativos
ou episódicos (como no Clube do Fracasso), de depoimentos pessoais (Não desperdice sua
única vida), balizando inclusive a própria construção da dramaturgia (O fantástico Circo-
Teatro de um homem só).
Para o intérprete/criador, duas questões se assomam à primeira vista: a
necessidade de exposição e a autorreferencialidade que a cena autobiográfica impõe. Falar
de si mesmo implica numa inversão do jogo de mascaramento que a construção de um
personagem tradicionalmente traz: a exposição não é mediada por uma outra identidade,
assume-se não só o risco de colocar a própria pessoa em cena, com as imperfeições,
defeitos e idiossincrasias de cada um, como a urgência de descobrir dentro de si mesmo
algo que seja “universal”, que possa ser repartido com o espectador. O grau de exposição
que cada um se permite coloca o ator diante de um limite, claramente pessoal, diante da
necessidade de compartilhar sua intimidade diante de estranhos:

- ... porque uma coisa é você fazer esse tipo de compartilhamento com pessoas
próximas, com os seus pares. E quando você abre isso para todos, isso muitas
vezes expõe um grau de intimidade que pode soar constrangedor para quem
conta, que pode soar banal e foi uma etapa muito interessante, porque nesse
momento do confronto com o público, de uma forma não verbal você percebe,
como ator, como aquela sua história está reverberando efetivamente e, de algum
modo, até onde você, como ator, está disposto a lidar com esses depoimentos.
(Souza e Lima, 2013. Anexo, p. 177)
- Exatamente por isso, porque ele [o palhaço] me coloca em cena com todas as
minhas fragilidades, ele me expõe, não fazia sentido eu fazer Estamira sem me
expor. (Barros, 2013. Anexo, p. 225)

11
É difícil não lembrar aqui de Rumstick Road, espetáculo de 1977 do Wooster Group, dirigido por Elizabeth
LeCompte, que investigava o suicídio da mãe de Spalding Gray, protagonista da peça, utilizando cartas de
família, slides, conversas telefônicas gravadas etc.
145

Esse grau de exposição que o depoimento autobiográfico impõe ao ator traz


novos desafios ao processo de criação. O arsenal técnico que frequentemente está à sua
disposição, a capacidade de criar uma voz que traduza uma personalidade muitas vezes
diferente da sua, a habilidade de assumir em seu corpo posturas, ritmos e gestos que podem
ser lidos pelo espectador como reflexos de temperamentos e de histórias de vida, tudo isso
parece se tornar irrelevante diante do desafio de não-representar, de colocar a si mesmo em
cena. Tomando a própria pessoa não apenas como ponto de partida, mas como virtual
ponto de chegada, a ator vê-se diante de um limbo, desconfiado da relevância de sua
presença e de sua história. Ao falar do processo de criação de O Fantástico circo teatro de
um homem só e do Clube do Fracasso, Patrícia Fagundes observa as dificuldades
encontradas pelos atores ao lidarem com o material autobiográfico: “.... é bastante difícil
para o ator esse desafio, eu acho, porque tem um... como um vazio, tu te encontras diante
de um vazio, tu não tens aquele personagem para ir buscar” (figura 12).

Figura 12: Clube do Fracasso


Foto: Alex Ramirez

É necessário redescobrir o próprio ser antes oculto pelo mascaramento que o personagem
ficcional proporciona: “então, como tu sentas?, como tu fazes?, como tu te expõe?, tem um
146

medo da exposição aí, também,...” (Fagundes, 201312. Anexo, p. 195). Além disso, o
processo de criação a partir do material autobiográfico implica em uma necessidade de
ultrapassar o episódico, de sair do que é estritamente pessoal e atingir uma universalidade
que permita justamente esse compartilhamento com os estranhos reunidos no conjunto da
plateia do espetáculo. Esta necessidade se insere dentro de uma tendência de re-criar as
relações que o teatro, marcado por uma história de pertencimento ao universo ficcional,
mantém com a realidade, o “real”. Há um comprometimento do artista com a sociedade na
qual se insere, levando a esse imbricamento entre fictício, autobiográfico e documental,
buscando transformar a própria história em um fato que, como uma micro-narrativa,
alcança projeção ao falar de algo que é comum a todo um grupo. O material autobiográfico
serve não apenas para contar a própria história, mas como uma ferramenta para descobrir
algo que deve ser do interesse de toda uma comunidade:

- Eu acho que o material autobiográfico ele serve como uma ponte para tratar de
assuntos que interessem a todos nós; de alguma maneira, eu falar em primeira
pessoa pode ser eu estar me expondo, mas para falar de todos, não para falar da
minha vida privada. (Fagundes, 2013. Anexo, p. 196).
- Acho que em primeiro lugar a gente foi pesquisando até que ponto aquela
história que era contada era relevante para quem escutava, até que ponto aquele
depoimento interessava realmente, ou o que naquele depoimento poderia ser de
interesse. (Souza e Silva, 2013. Anexo, p. 176).
- E, no começo, eu tinha muito essa preocupação: “Cara, mas, nossa, aí eu vou
falar aqui do médico da minha mãe? Ai, mas será que...? Ai, será que não tá
muito...”, eu achava meio... meio frágil demais, sabe? Muito frágil, eu falava
“Mas será que está legal, será que é interessante as pessoas ouvirem isso?”.
(Barros, 2013. Anexo, p. 224).

Se os espetáculos que estamos examinando trazem experiências dramatúrgicas


que problematizam a camada de ficção que envolve tanto a presença do ator em cena como
a sua própria identidade, espetáculos como Festa de separação: um documentário cênico
(2008), de Janaína Leite e Felipe Teixeira Pinto, se inserem num limite entre o happening e
o teatro, rompendo definitivamente com as fronteiras que separam ficção e real. Como nas
experiências já descritas (Capítulo 3) do ciclo de biodramas organizado por Viviana Tellas,
não apenas a cena é constituída a partir do real, ela se elabora como um experimento que
abdica do ficcional: Janaína e Felipe, após se separarem (eram casados na vida real)
decidem promover festas para anunciar aos amigos e a família a separação e “elaborar o

12
É oportuno observar que trabalhar com a própria história pode ser tão ou mais árduo que o processo de
construção de um personagem fictício: “As coisas mais difíceis ali para o Heinz foram os dois extremos,
durante o processo: um, fazer quando é ele mesmo, quando ele não tem tipo nenhum ou personagem; dois,
fazer tipos bem distantes dele mesmo.” (Fagundes, 2013. Anexo, p. 195).
147

luto”, (Monteiro, 2010), filmando as festas, colhendo depoimentos e criando um espetáculo


que mantinha a estrutura de um happening, como afirma a criadora do trabalho:

O processo de criação se deu através da realização e documentação audiovisual


de festas que funcionavam como happenings onde os anfitriões eram ao mesmo
tempo o casal que recebia parentes e amigos para a sua festa de separação e
também os “performadores” que improvisavam a partir de um conjunto de ações
mais ou menos pré-estabelecidas nos roteiros que se criavam para cada festa e se
desenvolviam para a festa seguinte. A criação, o ensaio e a formalização
aconteciam simultaneamente já que as festas – esse acontecimento inédito a cada
vez (ou alguém dúvida que numa festa de casamento, ainda que exista um pré-
roteiro dado pelo conjunto de ações que compõem a cerimônia, os noivos e
convidados não estejam experienciando um acontecimento real?) eram a maneira
de desenvolver a estrutura para o espetáculo final. (Leite, 2010)

Ao trabalhar com esse tipo de material, não apenas fundado no real, mas
totalmente ligado à própria pessoa, o ator é forçado a se redefinir em cena. Tomando a
escala proposta por Kirby, de representação à não-representação, estar em cena sob a
identidade de um personagem fictício encaixa-se como representação, aproximando-se
desse polo da escala, enquanto colocar-se em situação cênica portando o seu próprio nome
e biografia traz o ator para o polo oposto, da não-representação. Neste desafio, de estar em
cena, atuando, sem representar, não apenas a própria história passa a ser o material a ser
trabalhado pelo ator, mas ele necessita que sua presença seja nesse momento tão efetiva
como quando ele ostenta um personagem fictício. Essa “eficácia cênica” implica em tratar
a própria história com um certo distanciamento, objetivando o olhar sobre si mesmo.
Depois do processo de seleção e roteirização ocorrido durante os ensaios, as palavras e a
própria vida do ator são transformadas em texto teatral, que necessitam ser atualizados a
cada apresentação, precisam ser efetivados, atuados. O ator percebe e critica a sua própria
atuação, estabelecendo uma estranha relação de proximidade e distância consigo mesmo:

Quando eu falo de Estamira, estou mais afastada de mim, quando eu falo de


Dani, quando eu falo “Uma vez a minha mãe me deu de presente de aniversário
uma carta, uma carta com nove páginas.”, é a Dani. Mas não é a Dani, porque é a
Dani tendo que falar uma frase que ela... às vezes até tem horas que eu falo essa
frase, eu falo “Ai, que duro que saiu isso.” A frase, por exemplo para mim mais
difícil, que é uma que eu falo como Dani, é a frase mais difícil para mim, é ao
começar a peça, quando eu tenho que levantar e falar “Mãe, se você estiver aqui
hoje...”. É a mais difícil, e é a Dani, mas não é a Dani, porque... e têm horas que
eu falo “Ai, falei isso duro demais.” Ontem, por exemplo, eu falei e falei “Ai,
ficou muito choroso, nossa, dei muita pausa.” E o tempo todo eu estou me
vendo, eu sou muito crítica, então tudo o que eu faço eu estou com uma
camerazinha fora, já fazendo e já prestando atenção. (Anexo, p. 234-36).
148

Essa objetividade do ator em cena faz com que ele trate a sua própria vida
como um material, que difere de um material ficcional frequentemente apenas por uma
relação de proximidade e de distância em relação ao artista/criador. Aquele material criado
a partir das vivências do ator já nasce próximo a ele, as motivações e os impulsos já são
conhecidos, assim como o contexto, o universo no qual essa experiência se insere; quando
ele parte de um material ficcional, este muitas vezes se encontra mais distante do universo
e do cotidiano do ator, que precisa se aproximar e se apropriar dele, como percebe Odilon
Esteves: “Quando sai de mim é mais próximo, (...) e sempre que eu me aproximo de um
personagem o universo, a princípio, era distante do meu” (Esteves, 2013. Anexo, p. 187);
também Dani Barros tem a mesma sensação: “... mas tem um personagem que é mais
distante de mim e um personagem que sou eu, a Dani. Então, quando eu faço a Estamira, é
bem mais distante de mim e quando eu faço eu, a Dani, é mais próximo” (Barros, 2013.
Anexo, p. 235).
A apropriação a que o ator submete o texto torna-o ao mesmo tempo pessoal e
teatral. A verdade da cena supera uma aparente não verdade que a ficção carrega, e
aproxima os dois textos aos olhos daquele que deve realizá-los em cena: “... a hora que eu
faço o texto do Caio [Fernando Abreu] é tão verdadeiro quanto meu texto pessoal, e é tão
teatral quanto” (Esteves, 2013. Anexo, p. 187). Tomar posse do material fictício é ao
mesmo tempo aproximar-se dele e torná-lo seu, conferir-lhe uma verdade – cênica – que
muitas vezes o iguala ao material autobiográfico:

... porque daí eu me apossei, enfim, virou minha história, e agora, às vezes, (...)
eu já não sei mais o que é que é meu e o que é que foi inventado, o que é que foi
roubado de alguém, alguma história. Quando eu estou contando parece que
aquilo é meu, e é e pronto. Me apossei da vida dos outros. (Limaverde, 2013.
Anexo, p. 214).

Se o personagem ficcional é, a princípio, um outro, a tarefa do ator é trazer


esse outro para perto de si, conferindo-lhe uma inteireza e verdade como se se tratasse da
própria vida e verdade do ator:

... porque personagem a gente parece que não é a gente; mas, ao mesmo tempo,
personagem a gente tem que buscar a verdade, porque senão não é a gente. Mas,
quando a gente faz com verdade, ele cola na gente, fica verdadeiro, você fala
“Nossa, caramba, acreditei. Nossa, eu fui junto com você.” Mas, era eu que
estava...? Era. Mas era eu mesma? Não, era uma construção, era um... (Barros,
2013. Anexo, p. 235).
149

Quando Dani Barros fala em “construção” ao referir-se à sua presença em


cena, ela se refere tanto ao personagem ficcional quanto aos momentos em que ela se
assume como Dani. Embora sejam materiais distintos, um alheio à pessoa do ator, outro
oriundo de suas experiências e que trazem a marca da sua identidade, o tratamento cênico
até certo ponto os nivela, revestindo o depoimento autobiográfico de uma estrutura,
artificializando-o. No palco, a pessoa do ator, como um personagem não ficcional, se
insere num interstício, fronteira, ao mesmo tempo real e em alguma medida artificializado
pela construção que a ação de colocar-se em cena produz; perceber essa ação como uma
construção dá destaque ainda ao processo desenvolvido até chegar-se ao momento da cena:

É uma construção. A partir do momento que está ali, em cena, é uma construção,
não tem como não ser. É claro que, assim, a construção, ela foi feita através de
uma desconstrução: para chegar naquele lugar ali, eu precisei me desconstruir,
estar tranquila e falar, simplesmente, sem estar carregada de nenhum
personagem, ou nenhum... Mas é uma construção, a partir do momento que entra
na partitura de um espetáculo, é uma construção. (Barros, 2013. Anexo, p. 227)

A desconstrução que precede a construção se dá no fato do ator ter de encarar o


seu próprio vazio, de ver-se justamente destituído do personagem ficcional que costumava
apoiar sua criação. Buscar a não-representação, simplesmente estar em cena, torna-se um
desafio para o ator acostumado a transformar-se em outro. Ao mesmo tempo em que
mergulha no processo de desconstrução de seus modos e artifícios (seus clichês e técnicas,
suas habilidades), ele se depara com o estado não-cotidiano que o evento teatral impõe
àqueles que se mostram em cena. Como diz Patrícia Fagundes, “a cena nunca é um estado
cotidiano”, ela se impõe por sua performatividade, colocando quem dela participa em um
estado performativo, mesmo que não seja obrigatoriamente ficcional: “[é] como tu estar
num estado, que é performativo, mas não é ficcional, digamos, não é „representativo‟, é só
performativo” (Fagundes, 2013. Anexo, p. 195).
Chamamos acima (item 3.2) a ação do ator de colocar-se nesse estado de
atuação assumindo a sua própria identidade, de utilização (muitas vezes envolvendo a
criação) de uma persona. Enquanto o ator assume essa espécie de persona, é facultado a
ele revelar uma faceta ou um lado de si mesmo que se distancia do seu cotidiano, como diz
Heinz Limaverde em relação à sua auto-representação no palco: “Eu acho que no palco,
ali, eu não sou cem por cento Heinz. Um pouco do personagem que eu levo para o palco é
o Heinz do teatro, é o Heinz que as pessoas querem ver no palco” (Limaverde, 2013.
Anexo, p. 215). A não-representação, convertida em artifício e impondo-se como um
150

“efeito de teatralidade”, passa pelo processo de desconstrução que citamos e cria situações
paradoxais de estranhamento: “A minha mãe... é engraçado que ela já me conhece desde
quando pariu, mas ela disse que viu outra pessoa, uma pessoa que ela não... lembrava,
claro, o filho dela, mas que era uma figura que ela não imaginava que tivesse aquela
desenvoltura, aquele jeito de falar, aquele jeito...” (Anexo, p. 217). Ou seja, não há uma
identificação entre o self do indivíduo, entre o seu comportamento no dia-a-dia – ou os
seus comportamentos, correspondentes às imagens que ele busca projetar de si nas diversas
situações do seu cotidiano –, e sua autoprojeção no palco: “Eu digo assim: ali, era eu, ator,
falando de „eu, indivíduo‟, que resolvi ser ator” (Esteves, 2013. Anexo, p. 178). A
contingência da estrutura espetacular impõe esse distanciamento.
A construção realizada pelo ator, no caso desses trabalhos criados a partir da
autobiografia, se distancia ao mesmo tempo em que se confunde com a pessoa do ator,
causando também para o espectador essa instabilidade da presença, a tensão entre
representação e apresentação: “Por isso, quando falam „É a Dani‟, não é, cara, não é a
Dani, é uma construção da Dani. (...) É uma construção no sentido de... eu estou ali, eu vou
me portar desse jeito, eu sei que agora eu tenho que levantar, eu sei que agora eu tenho de
sentar, fazer determinadas coisas”. (Barros, 2013. Anexo, p. 228-31).
As ações realizadas pelo ator, com seu constante trânsito entre diversos
registros de atuação, são percebidas como fazendo parte de um jogo, cujas regras estão em
constante transformação. Jogo teatral, condicionado por sua estrutura e pelas condições de
recepção que propõe.

4.3 A relação com o público: um novo tipo de ator (o ator se reinventa)

Um dos aspectos fundamentais na mudança das atribuições do ator nessa cena


performativa é a transformação da maneira como ele se relaciona com os espectadores. O
foco da obra teatral, e consequentemente do trabalho do ator, se desloca do eixo
personagem/enredo para o eixo presença/evento. Nesse deslocamento, a relação direta
entre o ator e aqueles que acorreram para assisti-lo frequentemente passa ao primeiro plano
da estruturação do espetáculo; não só a concretização do evento exige a inclusão do
espectador como o espaço cênico passa a ser pensado e estruturado em função dessa
151

relação, focando o compartilhamento de uma experiência ou a possibilidade de contato


(inclusive físico) e/ou convívio.
O ensaísta, curador e crítico de arte francês Nicolas Bourriaud observa que, no
que ele atualmente chama de “altermodernismo”, que ele contrapõe ao conceito de pós-
modernismo13, as obra de arte “já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias
ou utópicas, mas procuram gerar modos de existência ou modelos de ação dentro da
realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista” (Bourriaud, 2009:18).
Apesar de Bourriaud não incluir o teatro em sua reflexão sobre a arte, referindo-se
especificamente às “práticas derivadas da pintura e da escultura que se manifestam sob a
forma de exposição” (p. 21), me parece claro que, assim como as artes visuais, as artes
cênicas criam “durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida
cotidiana”, favorecendo “um intercâmbio humano diferentes das „zonas de comunicação‟
que nos são impostas” (p. :23). Bourriaud argumenta que tanto o teatro como o cinema
“reúnem pequenas coletividades diante de imagens unívocas”, sendo que nessas salas “não
se comenta diretamente o que se vê (a discussão fica para depois do espetáculo)” (p. 22), o
que ocorreria durante uma exposição, onde se estabelece uma possibilidade de discussão
imediata nos dois sentidos do termo, mesmo diante de formas inertes. Ora, dizer que a
imagem teatral é “unívoca” me parece, no mínimo, um grande erro de apreciação e de
observação do fato teatral, em especial das produzidas na cena contemporânea. Além
disso, ignorar a troca existente entre palco e plateia, o convívio que o teatro enseja, e
mesmo o espaço de discussão que muitos espetáculo teatrais abrem aos espectadores –
inclusive durante a apresentação –, é também um erro de apreciação do teatro que se faz
nesse início de século.

13
Em entrevista concedida em 2013, Bourriaud argumenta que o prefixo “pós” apenas circunscreve um
“espaço em branco”, um vazio teórico que necessita ser qualificado: “„Pós‟ é a pontuação gramatical de um
espaço-tempo em branco, o signo de uma não decisão” (Bourriaud, 2013). Construindo o conceito de
altermoderno em torno da imagem do arquipélago e de questões relacionadas à alteridade, Bourriaud postula
que ele significa “um duplo afastamento, seja em relação ao „pós-moderno‟, seja em relação ao período
moderno do século XX. Hoje a palavra „moderno‟ evoca duas coisas: o período histórico delimitado pela arte
moderna, e a modernização do mundo, sob a égide do „progresso‟. Ora, aquilo a que chamamos moderno é
um estado de espírito recorrente na história, que assume diferentes formas segundo as várias épocas.”
(Bourriaud, 2009b) Conquanto a cunhagem do termo “Altermodernismo” seja posterior ao lançamento do
conceito e do livro “Estética Relacional”, editado na França em 1998, fica claro que o contexto artístico a que
ele se atém para pensar essa prática que privilegia o encontro, se enquadra dentro desse novo conceito: “O
„Altermodern‟ é, para mim, a forma emergente e contemporânea da modernidade, ou seja, a de uma
modernidade que corresponde aos desafios do século XXI, e especificamente ao momento histórico que
vivemos e no qual nos inscrevemos, para o bem e para o mal: a globalização. (...) „Alter‟ significa outro, mas
o prefixo evoca igualmente a multitude. Em política, a alter-globalização é uma constelação de lutas locais
que visam combater a homogeneidade mundial. No domínio cultural, „alter-moderno‟ significa algo
semelhante, é como um arquipélago de singularidades conectadas umas às outras.” (Bourriaud, idem).
152

As ideias de interação, de convívio e de relação com os espectadores, propostas


por diversas obras teatrais contemporâneas, representam justamente uma tentativa de criar
espaços e zonas onde a comunicação e a interação entre atores e público não apenas
abandonam a distância que determinadas formas teatrais, baseadas principalmente na
separação entre palco e plateia, impunham; elas possibilitam formas de comunicação direta
e trocas entre as pessoas reunidas para o evento teatral e os espaços que as circunscrevem.
Nessas propostas cênicas vemos ainda a fusão ou a união entre técnicas e registros de
atuação tradicionais no ofício do ator – como o palhaço e o bufão (Estamira – Beira do
mundo) –, tradições de aplicação mais específica e recente – o vaudeville (O Fantástico
circo teatro de um homem só) –, e ainda práticas performáticas (Corpos subjetivos em
espaços móveis, De quem é meu espaço?, Não desperdice sua única vida), com aquilo que
se tornou a pedra de toque do ofício do ator no século XX, a construção de personagens
fictícios.
Todos os trabalhos do grupo Zona de Interferência, incluindo aí a intervenção
realizada em 2006, Entulhos - Vazio abarrotado, foram pensados e criados levando em
conta a interação com o espectador, e propondo formas de ocupação do espaço que
possibilitavam essa interação. A prática do grupo se organizava justamente em torno da
criação de espaços onde pudesse acontecer o compartilhamento, e onde fosse possível uma
interferência e uma troca, não apenas verbal ou imagética, mas dos corpos e da presença de
espectadores e atores. Assim, em Entulhos, que tinha como tema, como consta do site do
grupo, “o lixo urbano, no seu sentido mais amplo”, propunha uma mescla de performance
e intervenção, calcada em uma “improvisação colaborativa”, ocupando todas as
dependências do Teatro Marília (a calçada em frente ao teatro, o foyer, a parte do fundo da
plateia, o corredor lateral que dá acesso à parte de trás do teatro, o pátio nos fundos do
mesmo, o porão do teatro (onde se situam os camarins, casa de força etc., o palco e
novamente o foyer.), em uma itinerância que buscava ser “sensorialmente provocativa para
a plateia”. Desde a entrada no teatro, onde cada pessoa tinha de escolher o seu lixo –
embalagens vazias dos mais diversos produtos –, que deveria ser carregado durante toda a
intervenção, passando por momentos como o do porão, onde os espectadores se viam em
meio a tubos de mangueira que vazavam água, ou a cena no palco, onde o teto construído
com sobras de out-doors descia lentamente sobre os presentes, fazendo com que todos
terminassem a cena agachados (figura 13), o espetáculo foi pensado para viabilizar essa
provocação sensorial, assim como a inserção direta do espectador na cena, compondo-a e
153

interferindo na movimentação dos atores. Texto e gestualidade aproximavam a atuação de


uma performance, bem distante de um modelo representacional.

Figura 13: Entulhos, Vazio abarrotado


Foto: Glênio Campregher

A prática do Zona de Interferência se baseava na ideia de que é preciso que o


público experiencie; não basta observar e refletir sobre o que está sendo apresentado, é
necessária a vivência para que a ação seja transformadora. Assim, em De quem é o meu
espaço?, criado a partir “de uma proposta de investigação sobre o espaço urbano e suas
relações com o espaço pessoal”, propunhamos cenicamente discutir quando (e como) um
corpo interfere com outro. A encenação foi pensada como

uma proposta de interação entre performers e público: como discutir o espaço


sem compartilhá-lo? Se ambos, intérpretes e audiência utilizam (ocupam) o
mesmo espaço, como evitar a contaminação de um pelo outro? Como pretender
que eles não estejam unidos e interfiram entre si? Mais que isso: essa
interrelação é parte construtiva do próprio espetáculo; a relação desses corpos e
dessas subjetividades transforma-os, dá-lhes novo significado e recria a ação da
cena. (Zona de Interferência, texto do site).
154

A interferência no espaço das pessoas – o espetáculo iniciava com os atores


cochichando no ouvido dos espectadores perguntas e frases sobre o corpo, o espaço que
cada um ocupa e a interferência sofrida/realizada14 –, as interações propostas com os
membros da audiência (ver acima, item 3.3), e o final do espetáculo, quando atores e
público iam para a rua e se deitavam para ver o céu (espalhávamos tiras de papelão na
calçada para as pessoas se deitarem. Figura 14), todas essas ações eram pensadas e
realizadas com o sentido de propiciar essa experiência; era a forma que encontramos para
entrar em contato e interferir na vida dos outros, já que partíamos da crença que apenas
com a cumplicidade do público – e a sua anuência, já que as pessoas não eram forçadas a
realizar nada – poderíamos concretizar algo que chegasse próximo a um experienciar.
Enquanto ator, eu tinha de estar apto a lidar com a reação do público, sua negativa em
participar – alguém poderia se recusar a deixar que eu escovasse seus dentes ou que
“colocasse minha orelha no seu cotovelo”, mas devo dizer que pouquíssimas vezes me vi
diante de um recusa pura e simples, a maioria dos espectadores “entrava no jogo”.
Em Corpos subjetivos em espaços móveis nossa proposta era tornar as pessoas
responsáveis diretos por aquilo que seria visto. Na primeira parte do espetáculo o público
entrava numa sala sem cadeiras, com um cubo de madeira, formado por quatro “cantos”
(uma pequena plataforma móvel de madeira, com duas paredes laterais de dois metros de
altura por um de comprimento; os quatro cantos, unidos, formavam o cubo, um quadrado
fechado colocado no centro da sala), cada qual caracterizado de uma determinada maneira
e ocupado por um ator/performer15 (figura 10). Todos eles possuíam pequenas aberturas e
“janelas”, que permitiam a comunicação dentro/fora ou a visão parcial do que se passava
no interior do cubo. Nesse início o público tinha de decidir onde se posicionar, se devia ou
não responder ao estímulo do ator – eram acesas luzes no interior do cubo, papéis eram
jogados para a plateia, mensagens “ofertadas‟ para quem quisesse ler e entrar em contato;
na sequência, quando os cantos eram virados e abertos à visão dos espectadores, estes

14
Cada um dos membros do grupo improvisava sobre esse tema. Ordinariamente eu dizia frases como “No
momento em que falo, eu estou interferindo na sua vida e no seu espaço, e isso vai mudar tudo daqui para a
frente.”, ou “Como dois corpos não podem estar no mesmo espaço ao mesmo tempo, quando eu me aproximo
de você eu interfiro e mudo o seu espaço.”, ou ainda “O simples fato de você estar vivo implica que você e
seu corpo ocupam um espaço e, portanto, interferem na vida e no espaço dos outros”.
15
Um dos cantos, ocupado por Felipe Carvalho, tinha um vaso sanitário e as paredes revestidas por papel
imitando ladrilhos; outro, ocupado por Bruno Vilela, era revestido por argila, que era manuseada por ele
durante o espetáculo; o terceiro canto era ocupado por Jardel Silva, e era preenchido por livros e papéis; o
último canto, vazio e com uma placa de Aluga-se, com as paredes forradas de um carpete vermelho e uma
persiana azul, remetia a um desses apartamentos de aluguel por temporada, encontrava-se vazio nesse
momento, e eu o ocupava após o início da apresentação.
155

tinham de decidir qual ação, de qual dos atores, eles acompanhariam (era impossível
visualizar mais do que dois cantos ao mesmo tempo, e as pessoas tinham de se deslocar
para saber o que os outros atores estavam fazendo), e se interagiam ou não com eles.

Figura 14: De quem é meu espaço?


Foto: Maria Luiza Nogueira

A possibilidade do público participar ativamente do evento teatral se descortina


a partir desse tipo de proposta, cuja estrutura possibilita que os espectadores vivenciem o
ato artístico cênico. Trata-se, como diz Rita Gusmão, de um tipo de comunicação
“estendida para absorver a manifestação do espectador”, de forma a “afetar a corporeidade
do público” (Gusmão, 2000:52). O artista – diretor, atores, cenógrafo, iluminador –
trabalha no sentido de ligar todos os participantes desse ato, unindo a “cena e a sala”, e
possibilitando que o espectador “atue”:

A atuação do espectador não se efetiva sem o reconhecimento de sua presença. A


voz desse outro integrante do diálogo situado na plateia só pode ser ouvida se a
palavra lhe for aberta. Seu interesse em enfrentar o debate estético proposto na
156

obra está diretamente ligado à maneira como o artista o convida, provoca e


desafia a se lançar no diálogo. (Desgranges, 2003:28)

O que se apresenta é mais do que a possibilidade de inclusão do público:


trata-se da necessidade de conferir ao espectador essa voz, que mesmo que não se
concretize de forma material, está pressuposta no diálogo cena-público. O ator tem que se
preparar para conferir ao espectador esse espaço e essa possibilidade. No seu trabalho em
Estamira, Dani Barros tem essa como uma das suas preocupações, viabilizada por sua
experiência como palhaça: “Para mim, eu acho que, no meu trabalho como atriz, eu tenho
essa... ferramenta, porque eu trabalhei como palhaça muito tempo, então o tempo todo eu
busco muito mais a participação da plateia, eu sempre tento incluir” (Barros, 2013. Anexo,
p. 233). Lidando com a intervenção direta da plateia em cena16, Dani observa que o público
“está muito acostumado a sentar e assistir”, e que um tipo de estrutura, que se assemelhe
mais à performance “te instiga a estar ali mais presente, ao público a fazer determinadas
coisas, a ter uma vivência” (p. 232). Há uma desestabilização também do papel
normalmente atribuído ao espectador; ele á provocado não apenas a refletir, mas a agir,
encetando um diálogo que questiona o espaço que ele ocupa, não apenas durante a
representação, mas nos seus fazeres cotidianos.
Incorporar a interferência do espectador, algo antes restrito a espetáculos de
variedades ou ao teatro de rua, se torna um fato recorrente nessas dramaturgias, e se
incorpora ao cotidiano do ator, ao rol de suas técnicas. Heinz Limaverde ressalta que sua
experiência em trabalhar em espaços “que não são tão „confortáveis‟ para o ator, tão fáceis
de trabalhar, como praça, como a boate, como um lugar que tem um barulho acontecendo,
o garçom passando” (Limaverde, 2013. Anexo, p. 216), é levada para o palco, para o
espetáculo, que absorve em sua estrutura a relação com o público e o improviso (figura
15). Com base nesta experiência, o ator está “livre para improvisar, e para mudar e para
pular”, adaptando-se e fazendo frente a “qualquer imprevisto que rola com a plateia” (p.
217).

16
Ao fazer uma apresentação do espetáculo em um CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – Dani lidou
com um público que rompia constantemente o limite entre palco e plateia que nós mesmos, enquanto
espectadores, nos colocamos: “Porque eu tive que parar a peça, teve gente que entrou em cena, dançou
comigo, teve gente que chorou no meio, teve gente que, quando eu falava „Safado‟, gritava safado também;
teve uma que se revoltou, porque quando eu fiquei falando „Louca, doida, biruta‟, ela se revoltou, porque ela
se recusou, porque ela deve ter sido chamada muito de maluca, então ela não quis ouvir, ela achou isso uma
afronta, levantou, depois voltou; teve um que não me perguntou no meio „Você é maluca mesmo? Tu tá
acreditando nisso que você tá falando mesmo? É isso mesmo, tu é doida?‟?; uma começou a falar no meio,
contar a vida dela.” (Barros, 2013. Anexo, p. 232)
157

Figura 15: O Fantástico Circo Teatro de um Homem Só


Foto: Kiran

A estrutura do depoimento autobiográfico, em Não desperdice... , também


possibilitava essa aproximação e essa troca com o espectador. A intimidade criada, a ação
que o ator faz de se revelar para o público, transformam de alguma maneira as pessoas em
cúmplices daquele que faz o depoimento. Odilon Esteves conta que muito daquilo que foi
trabalhado nos depoimentos era desconhecido dos próprios membros do grupo: “muitas
das coisas que todo mundo contava a gente escutava embasbacado, de pensar que a sete
anos a gente convivia uns com os outros e não sabia quase nada daquelas histórias que
estavam sendo contadas.” (Esteves, 2013. Anexo, p. 178). As relações cotidianas, que
normalmente não permitem e não abrem espaço para que o outro fale de si e se revele
dessa maneira, eram rompidas pela exposição que o depoimento trazia. Dessa forma, a
partir da revelação de si mesmo, era possível

construir a possibilidade do outro se revelar, mesmo como em alguns momentos


como um mero ouvinte, em alguns outros momentos como um agente ativo da
cena – algumas das cenas propunham isso –, e aí de certa forma como que o teu
depoimento também gera um retorno, em alguns momentos até como um
depoimento do espectador. (Souza e Silva, 2013. Anexo, p. 177).
158

Incorporando a participação do espectador e reagindo a sua presença,


transformando a própria vida em objeto para a cena, assumindo riscos, se expondo,
transitando da construção de um personagem ficcional para a tentativa de “não-representar
nada” e simplesmente agir no palco, o ator se viu obrigado a se reinventar, a encarar com
naturalidade a multifacetação e a hibridização da cena. Vendo ampliar-se e multiplicar-se o
espectro das atribuições que fazem parte do seu ofício, o ator constantemente oscila da
representação à não-representação e torna-se ele mesmo objeto do jogo teatral.

I
Like theatre, religious rituals and cerimonies are outer-directed, but their intent is not to affect an audience
but to accomplish a functional purpose in the metaphysical world. (…) Such rituals are designed and
performed primarily to this end rather than for their effect on any audience that may happen to be present.
II
almost all of the many innovations produced by Happenings have been applied to narrative, informational,
acted theatre.
III
…toda representación lo es siempre de una ilusión, más no menos compartida, a la que denominamos
realidad.
IV
...l‟image globale et cohérente du monde... (...) ... qui désigne une représentation correspondant à un point
de vue.
159

CONSIDERAÇÕES FINAIS - A Tarefa do ator, trânsitos, aproximações e mudanças.

Figura 16: aCerca do Espaço


Foto: Maria Luiza Nogueira

Mas o personagem é o que? Tudo é uma construção, não é?


A construção é um personagem?
Dani Barros

As reflexões em forma de perguntas da atriz Dani Barros permitem-nos


avançar algumas considerações e outras conjecturas sobre como é possível entender a
relação entre personagem e ator a partir do ponto de vista deste último. Durante a
entrevista que fizemos eu a inquiri sobre como ela percebia as transições realizadas em
cena entre o personagem Estamira e os momentos em que atuava como Dani e também
quando assumia uma espécie de narrador da história: havia diferenças entre esses diversos
estados cênicos? Interessava-me saber justamente se esses estados eram sentidos por ela
como se fossem personagens e como ela fazia a transição entre esses vários registros de
atuação. Sua resposta, feita em forma de pergunta, me remetia à escala proposta por Kirby
160

e me devolvia a responsabilidade de, ao menos, tentar buscar possíveis soluções para a


forma como os esses estados cênicos eram percebidos, e de pensar se o personagem,
enquanto categoria, ainda pode ser uma referência para o trabalho do ator. Dani, como os
outros atores com quem conversei, enxergava gradações nesse ato de construir: “Têm uns
personagens que são mais construídos, outros não tanto, outros se assemelham mais do seu
jeito de falar, do... do seu corpo mais tranquilamente, em estado de repouso, tranquilo...
tudo é uma construção, não é?” (Barros, 2013. Anexo, p. 229). Ainda que Estamira não
seja, strictu sensu, um personagem ficcional, e sim criado a partir de numa pessoa real,
Dani se referia a ela de uma forma semelhante aos personagens que representava em Maria
do Caritó1, sendo que estes eram “uma construção mais afastada” dela (Barros, 2013.
Anexo, p. 230). Assim, podemos dizer que representar a si mesmo é colocar em cena algo
que já “nasce próximo” do ator, mas que exige deste o mesmo rigor (em sua elaboração) e
concentração (ao ser apresentado diante de um público) quanto um outro personagem
qualquer.
Para o ator, a questão pode ser posta então dessa forma: tudo aquilo que ele
constrói em cena pode ser considerado um personagem? Inicialmente, temos de deixar
clara a distinção entre personagem ficcional e não-ficcional. Vimos como o teatro
contemporâneo ultrapassou essa distinção: não apenas a dramaturgia teatral incorporou
documentos e depoimentos verídicos na sua elaboração, trazendo o “real” para a cena; a
partir do momento em que o ator assumiu sua identidade no palco, emitindo sua opinião,
expondo fatos de sua vida, compartilhando com o público sensações, histórias e emoções
de foro íntimo, tornou esse surgimento do real em cena um fato recorrente. Esta é uma
mudança que ainda está em processo: observamos, ao longo do capítulo 1, como no início
do século XX o trabalho que o ator realizava em cena podia ser claramente percebido
como a constituição de uma alteridade e como criadores como Meyerhold, Grotowski e
Brecht tensionaram essa acepção, fazendo com que o personagem aos poucos adquirisse
outros contornos – a pessoa do ator, suas opiniões, particularidades e segredos começaram
a ser percebidas através do universo ficcional que ainda se apresentava em cena. As
transformações cênicas e dramatúrgicas ocorridas a partir dos anos 50 levaram ao paulatino
abandono dessa ficcionalidade, direcionando a cena para uma oscilação cada vez mais
presente e aparente entre os planos da representação e da presentação.

1
A peça, com texto de Newton Moreno, direção de João Fonseca e protagonizada por Lília Cabral, estreou
em 2010, e nela Dani Barros fazia diversos papeis, inclusive o de uma galinha.
161

Como observamos no capítulo 3, a cena performativa provoca uma


desestabilização entre esses planos, rompendo com a ficcionalidade que a representação
traz e exigindo do ator e do espectador uma constante adaptação: percepção e atuação são
tensionadas por esse trânsito, por essa oscilação entre a materialidade de corpos e objetos e
o universo ficcional, pelas tentativas de “anexação da realidade”, de sua “presentação”
(Fernandes, S., 2010), em oposição à representação dessa realidade. Podemos notar, neste
início de século XXI, que a construção realizada no palco frequentemente não apenas parte
de algo que é real, como nas peças de Peter Weiss: ela se manifesta enquanto um aspecto
desse real, seja na forma de um depoimento pessoal, seja como a expressão de um desejo
ou de uma opinião por parte do ator. Mostra-se claramente como não-ficção, como um
relato sobre o real, atravessado pelo desejo de trazê-lo para a cena. Encontramo-nos em um
momento em que não apenas há uma necessidade de se entender as relações que se
estabelecem entre o real, a realidade (ou as várias realidades) – que frequentemente é
percebida como uma “construção ilusória” –, e as formas que esse real pode ser
representado. Essas práticas cênicas dialogam com as diversas possibilidades de
representar o real – ou as tentativas de torná-lo presente, de construir uma presentação –,
flertam com a ilusão, revelam seu jogo e seus artifícios, desmascarando a acumulação de
imagens que nos atravessam.
Dessa forma, há, na cena que viemos analisando, uma tentativa de superar os
artifícios e o mascaramento da realidade, mas é necessário que não percamos de vista que o
evento teatral sempre surge como um discurso, como uma criação que, mesmo quando
quer se apresentar como isenta de ficcionalidade, é marcada pela excepcionalidade do
enquadramento teatral, da ludicidade que ele impõe. O teatro possui as mesmas
características formais do jogo, “uma atividade livre, conscientemente tomada como „não-
séria‟ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de
maneira intensa e total” (Huizinga, 2008:16). Essa exterioridade é marcada pela presença
de alguém que observa, pela relação que se estabelece entre atores e público; o
enquadramento teatral mantém o jogo apresentado como fazendo parte de uma atividade
descolada da vida cotidiana e sem a marca da seriedade que os atos praticados nessa esfera
se revestem. O artifício, a artificialidade de uma ação realizada com um propósito lúdico,
perpassa tudo que é realizado em cena.
A estruturação a que o material pessoal do ator é submetido diferencia-o de
uma manifestação espontânea, aproximando-o da construção que é realizada a partir de um
162

material ficcional. Fica clara a impossibilidade empírica de o ator apresentar quer algo que
possa ser totalmente identificado a um personagem ficcional, quer algo que seja
completamente idêntico a sua própria pessoa; ou seja, tanto a possibilidade de haver em
cena apenas o personagem, ficcional ou não, sem um vestígio da pessoa do ator, quanto o
seu contrário, apenas a pessoa do ator, num estado de espontaneidade absoluta que elimine
qualquer vestígio de um enquadramento teatral, apresenta-se apenas de uma forma virtual,
que ocorre somente no plano teórico. A estrutura que o evento teatral traz elimina a
possibilidade de um “zero absoluto”, que se apresenta como uma virtualidade e uma
tendência, algo que se quer “caminhar para”.
Intervenções como o aCerca do espaço, do grupo Zona de Interferência (figura
16), ou espetáculos como Festa de separação: um documentário cênico, de Janaína Leite e
Felipe Teixeira Pinto, tensionam os limites existentes do que é considerado teatro, e abrem
portas para outras discussões, centradas na problemática de um teatro, ações e intervenções
que se situam para além da representação.
Embora não possamos dizer que tudo se resume a uma questão de ênfase, para
o ator essa é uma realidade que surge, tanto no que tange à proximidade do material quanto
ao grau de construção. Ser uma construção implica em ser personagem? O fato é que há
personagens mais ou menos construídos, mais próximos ou mais distantes da própria
pessoa do ator, com diferentes graus de ficcionalidade, que surgem como um relato
possível sobre o real: são sempre uma versão dos fatos, das sensações e dos sentimentos,
quer sejam do próprio ator, quer sejam do autor dramático, quer seja a fala de outra pessoa,
da qual o ator se apropriou, como em Estamira – Beira do mundo ou no filme de Eduardo
Coutinho, Jogo de Cena. Construção e aproximação são duas ideias e dois processos que
envolvem, no caso do ator, a busca por algo que é de difícil conceituação: a verdade
cênica. Quando Patrícia Fagundes observa que, no processo de montagem de O Fantástico
Circo-Teatro de um Homem Só, as partes mais difíceis para o ator realizar a sua criação
foram aquelas nas quais ele tinha de “fazer” ele mesmo ou quando ele tinha de fazer tipos
bem distantes dele (ver a nota 7 do capitulo 4), ela está relatando o caminho empreendido
por Heinz Limaverde no sentido de tornar aquele material algo verdadeiro para si mesmo e
para o público diante do qual ele se apresentou.
É a busca dessa verdade que se manifesta nas falas de Odilon Esteves, quando
este comenta sobre seu processo de criação de imagens que irão dar sustentação ao texto, o
qual “tem de sair como se ele fosse consequência dessas imagens” (Esteves, 2013. Anexo,
163

p. 186), para que as palavras “saiam” espontâneas e verdadeiras, e de Dani Barros, que fala
diversas vezes sobre ser verdadeira, sobre a necessidade de estar no aqui-agora, porque
senão “vai soar falso” (Barros, 2013. Anexo, p. 235). Dani também percebe que as técnicas
que o ator utiliza, quer sejam inspiradas ou advindas do método stanislaviskiano, quer
sejam técnicas contemporâneas, como o viewpoints, servem para aproximar o ator do real,
do verdadeiro (Cf. anexo, p. 229-30). Tentar encontrar a verdade cênica é de fato o
objetivo que irá nortear o trabalho desses atores, quer eles trabalhem a partir de um
material ficcional, quer eles trabalhem a partir de materiais pessoais.
Assim, estar em cena “fazendo” ou apresentando a própria pessoa não implica
exatamente no abandono do personagem: apesar da evidente não-ficcionalidade de que ele
se reveste, de encontrar-se afastado do polo da representação, ele não se situa de forma
absoluta como pura não-representação, como simples presença. A própria existência de um
público, do espetáculo ou cena ser, como diz Kirby (1987), direcionado para o exterior
(outer-directed), para fora, e pelo fato de ter como objetivo afetar uma audiência impele
esse ato para o polo da representação. Mesmo despido da intenção de uma representação e
distante de uma ficcionalidade evidente – mas, ainda assim, presente, já que, como vimos
no capítulo 3, o próprio ato de rememorar implica, em maior ou menor grau, em um
processo de ficcionalização – esse não-personagem continua sendo, em algum grau, um
personagem. Para o ator, o material autobiográfico precisa ser trabalhado, revisto e
construído até tornar-se texto, até constituir-se em ação a ser apresentada diante do seu
público.
Dessa forma, a desconstrução histórica do conceito de personagem a que se
refere Anne Ubersfeld (2005, p. 72-74) não resulta na anulação do próprio personagem,
mas implica que, em muitas práticas teatrais, o sujeito de enunciação passe a ser o próprio
ator, que fala em seu nome. A duplicidade do ator se revela enquanto possibilidade de
tornar-se o duplo de si mesmo, o personagem sendo ou se mostrando como uma faceta ou
aspecto do self que se quer compartilhar com o público.
A oscilação entre presentação e representação muitas vezes se resolve enquanto
proposta de convívio e interação entre os que estão no palco e os que estão na audiência. O
jogo, não apenas entre os atores, mas com a plateia, assume constantemente o primeiro
plano e passa a protagonizar o espetáculo. A quarta parede não apenas é rompida, o
público é inserido ou é convidado a entrar no espaço de atuação, que se torna um espaço de
164

compartilhamento e convivência. Nesse momento, a aproximação entre ator e performer2


se torna mais evidente: atuar não é mais apenas construir personagens ficcionais, é
necessário que o ator esteja no momento presente, interagindo com a plateia, realizando
ações, jogando.
De certa forma, há uma superação do conceito de ator como hipocrités, já que,
no contexto de uma experiência coletiva, o papel do ator é cada vez menos fazer uma
representação, e mais e mais se apresentar em cena com o seu próprio discurso ou
intermediar uma situação cênica que envolve o jogo com os espectadores. Neste tipo de
teatro que viemos estudando, o ator precisa transitar entre várias formas de se relacionar
tanto com o público como com o seu material de trabalho. Este trânsito entre os vários
registros de atuação, a construção de personagens ficcionais altamente individualizados, o
acesso a arquivos de memória, a realização de ações puras e simples, a elaboração de tipos,
personas e de jogos pressupõe, no fundo, uma ampliação dos requisitos e do repertório
técnico do ator. Não há o abandono total e completo da representação de personagens
ficcionais e da construção de “indivíduos”, com uma história e uma psicologia particular;
sintomaticamente, muitas vezes o que ocorre no palco é que o ator precisa “entrar” e “sair”
desse tipo de personagem – muitas vezes até na mesma cena –, alternando, em seus
discursos, o sujeito que enuncia a fala: ora o personagem ficcional, ora o próprio ator, ora
um terceiro, um narrador que conta a história ao público.
Esta insurgência do real que caracteriza esses teatros que têm em seu cerne a
performatividade do ator constitui-se não apenas numa nova forma de fazer teatro, como se
está discutindo nos últimos anos. Ela aponta para uma nova maneira de se pensar o estar-
em-cena do ator. A capacidade para transitar e acionar diferentes estados e registros de
atuação surge como o desafio para aqueles que fazem da atuação o seu ofício nesse início
de milênio.

2
Durante o processo de construção dos espetáculos do Zona de Interferência, tivemos várias discussões sobre
o funcionamento do grupo, como nomear os espetáculos – se de dança, de teatro, como uma “instalação
performática” – e também como devíamos nos referir a nós mesmos: sendo o único dos integrantes com
formação teatral, pensava em mim mesmo como ator, mas os meus parceiros se viam antes como performers.
Como vimos ao final do capítulo 4, mesmo com a aproximação do trabalho de ambos, parece-me que os
atores, aqueles que têm uma formação teatral acadêmica ou um sólido trabalho no teatro, se enxergam
basicamente como atores. Penso que seria interessante cotejar a opinião de outros performers que possuem
trabalhos no teatro para verificar se a recíproca é verdadeira.

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