Apostila 4 - Ator e Personagem
Apostila 4 - Ator e Personagem
Apostila 4 - Ator e Personagem
CURSO
DE
TEATRO
INFANTIL
10
1
A ocupação, apresentada em outubro de 2006 e ensejada por um edital da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte – o projeto "Improvisões - Improvisações intermídias" –, discutia o excesso de consumo e o modus
vivendi das pessoas nos grandes centros urbanos. O grupo, à época formado por mim, Jardel Silva e Antônio
Henriques – convidou os artistas Maurício Leonard para criar os cenários/ambiências, Sérgio Geléia para a
parte musical, Janaína Starling para os figurinos, e os performers Felipe Carvalho, Ana Gusmão e Patrícia
Siqueira para participarem da cena. A iluminação ficou a meu encargo e na dramaturgia utilizamos
fragmentos de textos de Ítalo Calvino, Caio Fernando Abreu e Fernando Bonassi.
2
Tanto De quem é meu espaço? como Corpos subjetivos em espaço móveis foram pensados e criados
coletivamente, com a participação de todos os integrantes do grupo. No primeiro espetáculo atuavam Daniel
Furtado, Felipe Carvalho, Jardel Sander, Marcelle Louzada e Phillipe Lobo, e no segundo Daniel Furtado,
Felipe Carvalho, Jardel Sander e Bruno Vilela, sendo os vídeos de Fabrício Amador.
11
transformar a relação estabelecida entre ator e espectador, entre palco e plateia. Neste
trabalho nos deteremos justamente na análise de como o ator atualiza e concretiza, a partir
desta nova conjuntura estabelecida pelas mudanças ocorridas na cena teatral, a sua maneira
de “habitar” o palco, os vários estados de atuação que ele assume e os diversos registros
que ele aciona nesse trânsito, pensando esse palco de onde, à primeira vista, muitas vezes
os personagens parecem ter sido banidos. Observaremos que tipo de ator surge a partir das
necessidades que este tipo de teatro traz.
O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações
mais complexa e mais móvel do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho,
homem ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os “nós” dos circuitos de
comunicação, por ínfimos que sejam. É preferível dizer: colocado nas posições
pelas quais passam mensagens de natureza diversa. E ele não está nunca, mesmo
o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas mensagens que o atravessam
posicionando-o, seja na posição de remetente, destinatário ou referente. (Lyotard,
2002:28).
4
Em Teoria do Drama Moderno, Szondi discute essa contradição entre forma e conteúdo que o drama
clássico (ou o drama em sua forma clássica) atravessou na virada do século XIX para o XX e as tentativas
que diretores e autores empreenderam para tentar superá-la. Para ele, dramaturgos como Tchecov,
Strindberg, Hauptmann, Ibsen e Maeterlinck destruíam o caráter absoluto da forma clássica do drama,
calcada no fato que ocorre no presente e entre as pessoas do drama, cuja relação intersubjetiva se dá através
do diálogo. Nos dramas de Tchecov, por exemplo, “a vida ativa no presente cede à vida onírica na lembrança
e na utopia. O fato torna-se acessório, e o diálogo, a forma de expressão intersubjetiva, converte-se em
receptáculo de reflexões metodológicas” (Szondi, 2001:91). Para a discussão dessa mudança estilística ver
especialmente as páginas 91-99.
14
espelha o fato de que ele [o drama] não conhece senão o que brilha nessa esfera.
Tudo isso mostra que o drama é uma dialética fechada em si mesma, mas livre e
redefinida a todo momento. (...) O drama é absoluto. Para ser relação pura, isto é,
dramática, ele deve ser desligado de tudo o que lhe é externo. Ele não conhece
nada além de si. (...) O dramaturgo está ausente no drama. Ele não fala; ele
institui a conversação. O drama não é escrito, mas posto. (...) O mesmo caráter
absoluto demonstra o drama em relação ao espectador. Assim como a fala
dramática não é expressão do autor. Também não é uma alocução dirigida ao
público. A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade
perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do
espectador pelo drama. (Szondi, 2001:30-31)
5
Fuchs descreve seu contato com a teoria crítica francesa (1996, p. 1-2), e sua familiarização com as ideias
de, além de Barthes (que trazia, para que fosse revelado o “ser total da escrita” e pudesse surgir o leitor, a
necessidade da morte do autor) e Foucault (que, nas palavras da pesquisadora americana, anunciava o “fim
do homem”), Lacan (a construção simbólica da subjetividade) Derrida (o ataque a “metafísica da Presença”),
Deleuze e Guatarri (a esquizoanálise), Lyotard (o colapso das “grandes narrativas”), Cixous, Irigaray e
Kristeva (a exposição das construções filosóficas e psicoanalíticas com viés masculino). Para ela, a teoria
pós-estruturalista francesa, articulando os discursos em torno da “crise da representação”, pela qual “um
campo após outro, não apenas literatura, mas o direito, sociologia, antropologia, história, iam cambaleando
nos últimos 20 anos” (p. 2) – portanto desde meados da década de sessenta –, vai fornecer o quadro
intelectual para se pensar o fenômeno cultural e artístico surgido sob a égide do pós-modernismo.
15
justamente essa forma e essa relação que vai ser posta em xeque, originando uma “crise”
que termina com a “morte do personagem”.
Não apenas Fuchs questiona-se sobre essa possível morte: Robert Abirached,
no livro La crise du personnage dans le théâtre moderne, publicado originalmente em
1978, também se perguntará sobre a crise da representação e o possível desaparecimento
do personagem dos palcos. Para ele, o teatro entra numa espécie de “crise endêmica” em
fins do século XIX, com o aguçamento das contradições da nova sociedade industrial6,
colocando em causa a noção de representação, “que parece mais e mais difícil de se ajustar
aos contornos de um mundo em plena ebulição e de um Eu incerto de suas próprias
fronteiras e de sua própria natureza.” (Abirached, 1994:12V) Porém, se para o teórico
francês essa crise é também sinal de sua vitalidade (visto sua capacidade de sobreviver a
ela7), ele vislumbra a possibilidade de seu desaparecimento dos palcos, a partir do
momento que o teatro se dedica a exercícios metalinguísticos, ao confrontar-se com outras
formas de representação (narrativa, poema, lenda, história), e a fragmentos de vida “mais
ou menos brutos”, que podem ser extraídos da vida dos próprios atores, tornando o
personagem “um papel, manejado e remanejado, construído e desconstruído, à livre
disposição do comediante que se procura através dele e mistura aos seus simulacros as
efígies de seu sonho.” (p. 448VI)
O que Abirached percebe como uma possível morte é um paulatino
afastamento de um teatro da tradição aristotélica:
6
A virada do século XIX para o XX corresponde ao que Frederic Jameson, baseando-se em Ernest Mandel,
chama de segunda fase do capitalismo, a do monopólio: “Essa periodização embasa a tese central do livro de
Mandel, O capitalismo tardio; a saber, que houve três momentos fundamentais no capitalismo, cada um
marcando uma expansão dialética com relação ao estágio anterior, o capitalismo de mercado, o estágio do
monopólio ou do imperialismo, e o nosso, erroneamente chamado de pós-industrial, mas que poderia ser mais
bem designado como o do capital multinacional.” (Jameson, 1997:61).
7
Observando sua capacidade de “renascer a nossos olhos”, Abirached compara o personagem a “este pássaro
fabuloso que retira da morte a fonte de uma nova vida, emergindo sem descanso do fogo onde ele parecia se
consumir”. (...cet oiseau fabuleux qui puise dans sa mort la source d'une vie nouvelle, émergeant sans relâche
du feu où il semblait se consumer.) (Abirached, 1994:439)
16
8
Em suas palavras, o pós-moderno é “um cômodo rótulo para descrever um estilo de atuação, uma atitude de
produção e de recepção, uma maneira „atual‟ de fazer teatro (grosso modo, desde os anos sessenta, após o
teatro do absurdo e o teatro existencialista, com a emergência da performance, do happening, da chamada
dança pós-moderna e da dança-teatro.” (Pavis, 1999:299).
17
No que tange ao trabalho do ator, este não “representa uma história e uma
personagem”, ele se apresenta enquanto indivíduo e artista, colocando no palco pulsões e
afetos antes que signos, aproximando-se de uma ação performática. Enquanto encenação, o
teatro pós-moderno caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: a valorização do polo
da recepção e da percepção (o espectador é o encarregado de organizar impressões e
conferir alguma coerência à obra) e a autorreferencialidade, já que, “ocorrendo tudo em um
espaço-tempo, sem hierarquia entre os componentes, sem lógica discursiva assumida por
um texto de referência, a obra pós-moderna não tem outra referencia que não ela mesma.”
(Pavis, 1999:299).
Buscando traçar um marco teórico e estético consistente, Hans-Thies Lehmann
escreve em 1999 o livro Teatro pós-dramático (Postdramatiches Theater), identificando
haver um número considerável de realizadores teatrais que se caracterizam por um uso dos
signos teatrais “profundamente diferente”, e pela criação de um texto teatral “não mais
dramático” (Lehmann, 2007:19). Lehmann opõe o conceito de “pós-dramático” ao de
“pós-moderno” (que ele considera um termo que remete apenas a uma categoria temporal),
considerando que a penetração das mídias em todos os setores da sociedade, incluindo aí o
teatro, vai provocar um “modo de discurso teatral novo e multiforme”. Para o teórico
alemão o que está em jogo é a superação da forma dramática 9, e a possibilidade de um
teatro que se situe para “além” do drama:
Se o curso de uma história, com sua lógica interna não mais constitui o elemento
central, se a composição não é mais sentida como uma qualidade organizadora,
mas como uma “manufatura” enxertada artificialmente, como lógica de ação
meramente aparente, que serve apenas ao clichê, como Adorno abominava nos
produtos da cultura industrial, então o teatro se encontra diante da questão das
possibilidades para além do drama, não necessariamente além da modernidade.
(Lehmann, 2007:32-33)
9
Lembrando que Lehmann usa um conceito de Drama mais expandido que o de Szondi, incorporando a
dramaturgia épica de Brecht. Como diz Sérgio de Carvalho, na apresentação da edição brasileira do livro de
Lehmann, “a superação épica empreendida por um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena
mudança qualitativa em relação à tradição hegemônica do teatro, baseada no texto composto por diálogo
entre figuras. Para dar sustentação à sua tese polêmica, o autor faz uso de um conceito expandido de „drama‟.
Não se trata mais do drama burguês, baseado no diálogo subjetivo e na forma de um presente absoluto e
contínuo, apresentado sem mediações externas por meio de figuras que agem de acordo com uma vontade
autodeterminada. Dramático, para Lehmann, é todo teatro baseado num texto com fábula, em que a cena
teatral serve de suporte a um mundo ficcional: “Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do
modelo „drama‟” [p.26]. Com esse conceito de drama, que reúne Eurípedes, Moliére, Ibsen e Brecht, o teatro
épico não mais poderia ser considerado um salto, porque nele os deslocamentos da dinâmica interpessoal –
por meio de coros, apartes, narrativas, etc. – não chegariam a subverter a vivência ficcional.” (in Lehmann,
2007:9-10)
18
10
Como Pavis, Lehmann critica o uso da denominação teatro pós-moderno, não apenas pela restrição já
apontada, de ser um conceito apenas “epocal” – mas por tentar apreender um campo extremamente vasto,
terminando por se tornar uma listagem de características que por vezes oferecem apenas “meras palavras-
chaves, que necessariamente permanecem muito genéricas”. Assim, podemos observar “ambiguidade,
celebração da arte como ficção, celebração do teatro como processo, descontinuidade, heterogeneidade, não-
textualidade, pluralismo, diversidade de códigos, subversão, multilocalização, perversão, o ator como tema e
figura principal, deformação, o texto como um valor autoritário e arcaico, a performance como terceiro
elemento entre o drama e o teatro, o caráter antimimético, a rejeição da interpretação” (Lehmann, 2007:30-
31), como típicos do teatro pós-moderno, sem chegarmos a uma definição do que seria o discurso pós-
moderno.
19
– e que não diferem essencialmente daqueles arrolados por Lehmann e mesmo por Pavis,
são abordados e relacionados tendo em vista esta ênfase. A noção de performatividade –
lembrando que a ação cênica, o “fazer”, é, de fato, a base de todo e qualquer trabalho do
ator, seja qual for a filiação estética a que ele esteja vinculado – é posta aqui no sentido de
que a ação do ator torna-se “primordial”, valorizando-a “em si”, e não pelo seu valor de
representação ou pelo sentido mimético que possa vir a adquirir. Nos exemplos que cita,
Féral (cf. 2008, p. 201-204) destaca que
11
Como explica Schechner “Tratar o objeto, obra ou produto como performance significa investigar o que
essa coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com outros objetos e seres.”
(Schechner, 2003b:25)
20
Assim, o que Féral chama de “obra performativa” tem como pontos centrais
tanto o caráter de descrição dos eventos e fatos que a sua dramaturgia propõe, quanto as
ações realizadas em cena pelo performer. Sintomaticamente, Féral fala do “objetivo do
performer”, em como o “performer instala a ambiguidade”, na “„vivacidade‟ (liveness) dos
performers” etc.; ou seja, para ela, o ator do teatro performativo é um performer, evocando
sua “presença fortemente afirmada que pode ir até uma situação de risco real e implica um
gosto pelo risco” (Féral, 2008:207). Vamos abordar essa aproximação entre o conceito do
ator e do performer com mais vagar no capítulo 412.
O teatro que iremos analisar e discutir ao longo desse trabalho se insere dentro
do espectro que Pavis chama de teatro pós-moderno, Lehmann de pós-dramático e Féral de
performativo. Aqui, iremos nos referir a ele como Teatro Performativo, por enfatizar a
ação que o ator realiza em cena, sua atuação (seu desempenho, em inglês, a sua
performance). Apesar de esporadicamente nos referirmos ao ator que desempenha seus
papeis nesse teatro como performer, usaremos preferencialmente o termo “ator”, pois ele
nos remete diretamente ao que é fundamental na cena teatral: a ação executada, tenha ou
não um caráter representativo. E, sintetizando o trabalho do ator no teatro performativo,
Féral destaca o foco colocado na sua presença em cena:
12
Ver também o capítulo 3, item 3.3.
21
13
Falando sobre a estrutura da obra literária, Anatol Rosenfeld enumera as seguintes camadas, irreais
(“irreais por não terem autonomia ôntica”, necessitando do leitor para atualizá-las): “a dos fonemas e das
22
não, ficcional ou não, projeta tais contextos objectuais „puramente intencionais‟, que
podem referir-se ou não a objetos onticamente autônomos” (Rosenfeld, 1987:15).
Constituindo-se assim como uma projeção, uma “objectualidade imaginária”, o
personagem literário carrega essa marca de ficcionalidade: suas ações e sua presença são
tomadas como um discurso “não-sério”, um “quase-juízo”, na expressão de Roman
Ingarden.
A matriz textual domina praticamente toda a discussão que se faz em torno do
personagem, e está centrada ordinariamente tanto no maior ou menor grau de abstração que
ele apresenta (na proximidade ou afastamento de sua caracterização enquanto indivíduo),
quanto na função que ele exerce em cena, dentro da fábula ou da narrativa. Vemos em
Robert Abirached (1994), Patrice Pavis (1999) e Anne Ubersfeld (2005) as marcas dessa
abordagem: Pavis, por exemplo, afirma que “o estatuto da personagem de teatro é ser
encarnada pelo ator, não mais se limitar a esse ser de papel sobre o qual se conhece o
nome, a extensão das falas e algumas informações diretas (por ela e por outras figuras) ou
indiretas (pelo autor)” (Pavis, 1999:288). O personagem está pré-figurado no texto
dramatúrgico, e o trabalho do ator é “encarnar” esse ser de papel, concretizá-lo em cena
através de suas ações. Quando Abirached diz que o personagem teatral está “esquartejado”
e Ubersfeld constata que ele foi “explodido”14, o que está em jogo é essencialmente a
questão de que o texto teatral não mais apresenta esse personagem como um indivíduo
autônomo, unificado e/ou dotado de uma consciência de si mesmo, onde se possam
constatar preceitos dramatúrgicos extremamente caros à tradição ocidental, como a
coerência nas suas ações ou numa possível psicologia que a identificaria como um humano
(ver adiante, capítulo 3, a discussão sobre o uso do termo actante no lugar de personagem).
Parece-nos claro, no entanto, que o personagem teatral existe tanto fora da
matriz textual (a começar pelo clássico exemplo dos tipos da Commedia del’Arte), quanto
configurações sonoras (orações), „percebidas‟ apenas pelo ouvido interior, quando se lê o texto, mas
diretamente dadas quando o texto é recitado; a das unidades significativas de vários graus, constituídas pelas
orações; graças a estas unidades, são „projetadas‟, através de determinadas operações lógicas, „contextos
objectuais‟ (Sachverhalte), isto é, certas relações atribuídas aos objetos e suas qualidades. Esses contextos
objectuais determinam as „objectualidades‟, por exemplo, as teses de uma obra científica ou o mundo
imaginário de um poema ou romance”. (Rosenfeld,, 1987:13).
14
Podemos notar na fala desses autores um tensionamento entre o texto enquanto potência e a sua
concretização no corpo do ator: Abirached observa que “Entre a palavra e o corpo, entre a potência e o ato,
entre o sonho e o real, não é suficiente dizer que o personagem de teatro está esquartejado.” (Entre le mot et
le corps, entre la puissance et l'acte, entre le songe et le réel, il ne suffit pas de dire que le personnage de
théâtre est écartelé.) (Abirached, 1994:07), e Ubersfeld comenta que “Dividida, explodida, distribuída em
vários intérpretes, questionada em seu discurso, reduplicada, dispersa, não há violência que a escritura teatral
ou a encenação contemporânea não lhe imponham” (Ubersfeld, 2005:69).
23
distanciados da figuração de uma pessoa (há diversas dramaturgias, dos autos medievais a
Beckett, Gertrude Stein e Heiner Müller, que nos apresentam seres ficcionais que não
recebem um nome, não são apresentados como nem possuem os traços psicológicos ou de
individuação, a “consciência de si” (Pavis)) que permita essa identificação a um ser
humano. Se nos ativermos ao teatro enquanto evento, que requer o compartilhamento com
a plateia para se realizar, o personagem só adquire existência na relação entre ator e
público. Em termos estritos, essa existência se configura a partir do corpo e voz do ator, e,
mesmo no caso de um texto escrito que necessite ser atualizado por uma montagem cênica,
o personagem “realiza-se”, na cena, no “convívio teatral”, utilizando a expressão de Jorge
Dubatti (2012). Levando em conta o foco do nosso trabalho, muito do que o ator realiza em
cena não está contido em um texto dramatúrgico que possui uma existência prévia ao
trabalho de construção da encenação. O que iremos discutir aqui será o comportamento do
ator em cena, a maneira como as suas ações concretizam uma “alteridade”, o “outro” do
ator, algo ou alguém que possui uma dimensão e uma identidade diversa da sua.
Nesse percurso, observaremos no capítulo 1 como o personagem foi
conceituado na dramaturgia clássica e no teatro burguês, nesse processo de individuação
que leva da máscara até a percepção do personagem como um ser humano de carne e osso,
onde o trabalho do ator se volta para a realidade vivida pelo personagem dentro do
contexto dado pela peça, partindo de Aristóteles, passando por Diderot até chegarmos a
Stanislavski. Ainda nesse capítulo veremos como realizadores como Meyerhold, Brecht e
Grotowski desestabilizaram a noção clássica de personagem, levando o trabalho do ator até
um limite onde essa noção de alteridade é questionada ou ameaça desaparecer.
Ao longo do segundo capítulo vamos nos deter na análise de processos e
manifestações artísticas que tiveram um grande desenvolvimento na segunda metade do
século passado, em especial a Arte da Performance e a Dança-Teatro. Nosso foco estará
em observar como esses métodos foram incorporados ao cotidiano do ator e modificaram a
forma como ele trabalha, percebendo como as tarefas e ações que o ator executa em cena
adquirem caráter performativo, realçando o jogo e a ludicidade dessas ações.
Ressaltaremos esse percurso, que se inicia com o desdobramento do método das ações
físicas de Stanislavski até chegarmos ao Teatro Físico e a fusão do ator com o performer.
Além disso, há a própria transformação do ator em protagonista dessa cena, assumindo sua
identidade no palco e fazendo de sua própria história material para a cena e para a troca
24
com o espectador, numa trajetória que parte dos trabalhos do Living Theatre, até os
biodramas, como conceitua Óscar Cornago (2005).
Em seguida abordaremos algumas questões teóricas surgidas a partir da
transformação da cena e, baseando-nos em Erika Fischer-Lichte e Josette Féral,
discutiremos especialmente o tensionamento entre os planos da representação e da
presentação e como o enquadramento cênico afeta o estar-em-cena do ator. A construção
do depoimento pessoal será retomada a partir dessas abordagens, e observaremos como, ao
apresentar-se como si mesmo diante do espectador, o ator tem de escolher que aspecto da
sua vida e da sua personalidade quer exibir, e como esta exibição aproxima-se da criação
de uma persona, que, se não é ficcional, artificializa a própria presença. Escolhemos
alguns trabalhos que, a nosso ver, são representativos dessas transformações ocorridas na
cena contemporânea, para fazer uma observação mais minuciosa dos procedimentos
empregados pelos atores e na forma como eles se comportam em cena: além dos
espetáculos do Zona de Interferência, nos deteremos em Não desperdice sua única vida
(figura 1) espetáculo montado em 2005 pela Cia. Luna Lunera15, Estamira – Beira do
mundo, criado em 2011 com direção de Beatriz Sayad e interpretação de Dani Barros16, e
O Fantástico circo-teatro de um homem só (figura 2) e Clube do Fracasso (figura 3),
ambos da Cia Rústica17. Estes trabalhos trazem novas perspectivas e desafios para o ator:
ao fazerem uso de material pessoal do ator, fazendo com que ele conte fatos e opiniões
pessoais em cena (como nas peças da Cia Rústica e em Estamira), e ao trazerem para o
palco o depoimento pessoal em um viés autobiográfico (especialmente em Não
desperdice..., mas também no Fantástico circo-teatro.... e em Estamira), esses espetáculos
apresentam um tipo de encenação e dramaturgia que nos permite discutir como o ator se
relaciona com esse tipo de material, e qual a relação que ele estabelecem com o
15
O grupo foi criado em 2001, em Belo Horizonte, e o espetáculo, dirigido por Cida Falabella, tinha vários
sub-títulos, entre eles “Auto-biográfico”, além de “As patinadoras do Planeta Dragão, ou Seis atores à
procura do seu personagem, ou O mundo das precariedades humanas ou Nenhuma das opções anteriores”.
Como diz o site do grupo, o espetáculo mesclava “relatos autobiográficos dos atores, crônicas, obras
literárias, matérias jornalísticas, classificados de oportunidades, revistas e programas televisivos”, que
“instigaram os motes das improvisações sobre as contradições, precariedades e ironias cotidianas” (In
http://cia-lunalunera.blogspot.com/).
16
A montagem carioca, com dramaturgia de Beatriz Sayad e Dani Barros, inspirada no documentário
Estamira, de Marcos Prado (2004), sobre a catadora de lixo Estamira Gomes de Souza (1941-1911), rendeu a
Dani Barros diversos prêmios de melhor atriz, entre eles o Shell, em 2012.
17
A Cia Rústica foi criada em 2004, em Porto Alegre, com o objetivo de “criar uma zona autônoma de
trabalho entre artistas plurais” (in www.ciarustica.com). O Clube do fracasso, “um olhar festivo sobre o erro
e a fragilidade humana”, estreou em 2010, e O fantástico circo-teatro de um homem só, solo com o ator
Heinz Limaverde, que explorava o universo dos pequenos circos que circulam pelo interior do Brasil, em
2011, todos com direção de Patrícia Fagundes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
25
personagem construído a partir da história pessoal do ator; além disso, assim como os
trabalhos do Zona de interferência, eles propõem novas formas de relação com o
espectador, possibilitando ainda a discussão da utilização, pelo ator, de uma persona em
cena.
Finalmente, veremos no capítulo 4 como se posicionam os atores face a essas
transformações no seu método de trabalho e na forma como eles se apresentam em cena.
Para tal entrevistamos Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva, da Cia Luna Lunera, Heinz
Limaverde e Patrícia Fagundes, respectivamente ator e diretora da Cia Rústica, e Dani
Barros. Discutiremos, a partir da escala proposta por Michael Kirby (1987), a aproximação
ou o distanciamento do trabalho do ator de uma representação (acting), e o trânsito desses
atores entre os vários registros de atuação aos quais eles têm de recorrer no seu trabalho.
As observações e questões teóricas que levantamos ao longo da pesquisa serão
confrontadas com a visão e a percepção que esses criadores têm do seu trabalho, da sua
presença em cena e das ações que eles executam no palco,
A partir desse confronto traçaremos nossas considerações finais, levando em
conta não apenas a discussão teórica empreendida, mas a forma como os atores concebem
e realizam o seu estar-em-cena nesse início de milênio, enfatizando o que é para nós o
cerne desse trabalho: retomar, do ponto de vista do ator, discussões recorrentes sobre a
cena que se instaurou nos palcos a partir do último quartel do século XX, trazendo para o
centro das discussões a percepção daqueles que constituem um dos eixos do fazer teatral,
mas que, excetuando-se as discussões sobre metodologias de trabalho ou os relatos de
processos (frequentemente de cunho autobiográfico), poucas vezes têm suas vozes como
foco de estudos acadêmicos.
Anexo aos elementos textuais dessa tese encontra-se a transcrição das
entrevistas realizadas com os atores.
I
“…drama passed from the primacy of Plot, which Aristotle called the “soul of tragedy”, to the primacy of
Character…”
II
“character has lost its pre-eminence whit its wholeness; it has dissolved into the flux of performance
elements.”
III
“…blurring the old distinctions between self and world, being and thing;”.
26
IV
“…the vision that what we have taken to be human identity disintegrates on scrutiny into discrete
sentences and gestures that can be perceived as objects.”
V
qu'il apparaît de plus en plus difficile d'ajuster aux contours d'un monde en plein bouleversement et d'un
moi incertain de ses propres frontières et de sa propre nature.
VI
Le texte est ici un terrain archéologique ouvert, où public, metteur en scène et acteurs font incursions et
excursions; le personnage est un rôle, manié at remanié, construit et déconstruit, à la libre disposition du
comédien qui se cherche à travers lui et mêle à ses simulacres les effigies de son rêve.
VII
il peut seul faire accepter la mort du personnage, sans fraude ni malentendu, et l'avènement d'un théâtre si
éloigné de la tradition aristotélicienne qu'il faudrait lui trouver un autre nom. Que cet art soit possible et qu'il
suscite des constellations de figures efficaces, em traitant les acteurs comme des signes ductiles et en fermant
sur lui-même le cercle de la représentation, on ne peut plus en douter quand on a vu, pour ne citer que deux
exemples, les spectacles de Peter Schumann et de Robert Wilson (...), il n'y a de commun que cette idée d'un
théâtre écrit dans l'espace, affranchi des tutelles et libéré des références littéraires.
28
O ATOR E O PERSONAGEM
Iniciemos com uma questão: O Personagem é uma máscara que o ator veste?
A palavra latina Persona indicava inicialmente a máscara usada pelo ator,
através da qual a sua voz devia ressoar (persona deriva de per sonare, soar através de). Por
extensão, a palavra passou a designar não apenas o personagem representado pelo ator,
mas também as “máscaras” usadas pelas pessoas em sua vida social: assumir uma persona
significa, coloquialmente, assumir um papel social, uma identidade, correspondente ao
status social, ao trabalho, profissão, a maneira encontrada por cada um para se apresentar
ao mundo e se relacionar com os outros. É, de certa forma, uma adaptação consciente do
indivíduo para fazer face ao que o mundo lhe exige, tornando-se uma espécie de “arquétipo
social” usado pela pessoa em sua vida pública e nos vários papéis sociais que ela deve
desempenhar.
A identificação de uma pessoa com a sua persona, com o papel social
(advogado, operário, político, médico, professor), ou de gênero (homem, mulher, e aqueles
decorrentes deste, como mãe, pai etc.) que ela desempenha, pode tornar-se patológica:
específicas, físicas e/ou de temperamento, e que, até bem pouco tempo, remetia a um
tempo e espaço distintos do aqui/agora da representação. O palco, a cena, configurava um
espaço que não se confundia com espaço real onde se encontrava a plateia, e o seu tempo
não era o do cotidiano, era o do ritual (mítico) ou da ficção: “O xamã que é o porta-voz do
deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz à vida a obra do poeta
– todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de uma outra realidade, mais
verdadeira”. (Berthold, 2008:01).
O ator, aí, é “um ser que não é o próprio”, que é o Hipócrita, “que corresponde
ao substantivo grego hipocrités, enquanto o verbo hipocrinestai significa „representar um
personagem‟” (Duvignaud, 1972:13). Era o encarregado de dar “vida” a essa outra
realidade, criando com seu corpo esse espaço-tempo onde a ficção se tornava visível,
trajando as máscaras que identificavam os personagens. Esse outro, o personagem, como o
ator o vestia?
1
“As disputas divinas dos sumérios possuem um caráter definitivamente teatral (...) Em forma e conteúdo, os
diálogos sumérios consistem na apresentação de cada personagem, a seu turno, exaltando seus próprios
méritos e subestimando os do outro” (Berthold, 2008:17).
2
“Enquanto os dançarinos rituais honravam os deuses, houve em todas as épocas cantores, dançarinos e
mímicos ambulantes que entretinham o povo com suas apresentações por uma gratificação modesta.”
(Berthold, 2008:32). Para os hindus, “dança e atuação teatral são conceitualmente uma coisa só.” (idem,
p.36).
30
aquele existe numa espécie de “zona intermediária”, como uma projeção, resultado de uma
alquimia mental e física cujo resultado o ator oferece ao público. Assim o personagem é
algo que se estabelece entre o texto do dramaturgo e o corpo e a pessoa do ator, entre o que
é imaginado e o real, sendo, portanto, pensada como “uma figura saída da realidade e como
uma entidade autônoma que se move num espaço ao mesmo tempo concreto e fictício”
(Abirached, 1994:10I).
A retórica latina, ao falar do personagem, distingue três termos distintos, que
traduzem conceitos diferentes: Persona, Character e Typus. O primeiro pode ser pensado
como algo que se interpõe entre o homem e o mundo, o segundo como marcas deixadas
pelo real e que produzem um efeito de realidade, e o último como a presença de um padrão
e de um modelo fundador (Cf. Abirached, 1994:17). Esses conceitos são aproximações
metafóricas que revelam abordagens diferentes e transformações na concepção e na forma
de apreensão do que chamamos de personagem teatral.
Tomemos inicialmente a máscara (Persona). Por um lado, não podemos deixar
de considerar que a máscara possuía originalmente um estatuto diferente daquele que
adquirirá depois no teatro, um poder mágico. Ela concedia àquele que a usava a
identificação com uma divindade, “um poder mágico capaz de mudar aquele que a leva”
(RUM, 1964:355). A máscara mágica transferia ao seu portador os poderes dos demônios,
servindo ao mesmo tempo para atraí-los, pacificando-os, como também para atemorizá-los.
Por outro lado, para os gregos, a máscara3 que o ator usava definia o
personagem, o seu caráter, permitindo que a plateia identificasse o tipo representado pelo
ator. Quando Téspis, na Grande Dionisíaca de Atenas em 534 a.C., destaca-se do coro e,
como um solista, usa “uma máscara de linho com os traços de um rosto humano, visível à
distância por destacar-se do coro de sátiros, com suas tangas felpudas e cauda de cavalo”
(Berthold, 2008:105), ele cria a figura do hypokrités (respondedor), marcando o
surgimento do ator. E, quando seu discípulo Frínico de Atenas amplia a função desse
respondedor, “investindo-o de um duplo papel e fazendo-o aparecer com uma máscara
masculina e feminina, alternadamente” (p. 107), isto não apenas significava que o ator
3
Na Grécia, a máscara teatral era formada por uma carcaça de tela ou de madeira, sobre a qual se estendia
uma camada de gesso, que se modelava ou pintava. Cobria o rosto e parte do crânio, e dela pendia uma
cabeleira longa ou curta, ou ainda uma barba. A cabeleira era, por vezes, coberta por um chapéu, quando se
tratava de um viajante, ou por uma ponta do himácio, para as mulheres, quando andavam fora de casa. Os
cabelos eram presos por uma rede ou por uma faixa frontal chamada mitra. À máscara estava ligado o onkos
espécie de apêndice para elevar a fronte. (FREIRE, 1985:89)
31
deveria fazer várias entradas e saídas de cena, para trocar o figurino e a máscara, mas
evidenciava uma distância entre o que era realizado em cena (agora não apenas uma
“declamação”) e a pessoa do ator.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que a máscara, por um lado, vinculava-se ao
culto do deus, por outro ela se incumbia da transformação do ator em personagem.
Passando ao largo da discussão sobre a relação do culto de Dioniso com o surgimento do
teatro como uma arte, é clara a ligação da máscara teatral com as máscaras cultuais usadas
pelos devotos nas festas e nos santuários em honra ao deus. Albin Lesky lembra que era
justamente no culto de Dioniso que a máscara desempenhava papel mais relevante. Nele, a
máscara do deus “pendente de um mastro, era objeto de culto, de tal modo que é possível
mesmo falar de um deus-máscara; seus adoradores usavam máscaras, entre as quais a
função maior cabia aos sátiros, e máscaras desse tipo eram levadas a seus santuários como
oferendas” (Lesky, 1976:49).
Na máscara se encontra “o elemento de transformação em que se baseia a
essência da representação dramática” (p. 49)4. Através do seu uso, o ator continuava sendo
servo da divindade, e a máscara, uma oferenda a ela. Mas há um longo processo que leva
das primeiras máscaras animalescas até as máscaras altamente diferenciadas e expressivas
que encontramos à época da Comédia Baixa.
J. P. Vernant e Fr. Frontisi-Ducroux destacam que a presença de máscaras
cultuais na Grécia antiga representa, em suas manifestações, uma das várias formas de
figuração do divino (Cf. Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-178). Na época clássica, na
qual as representações teatrais vão tomar a forma que conhecemos e se estruturar em torno
da apresentação de comédias, tragédias e dramas satíricos, a forma canônica de
representação do divino era precisamente a estatuária antropomórfica, que busca um ideal
de beleza e perfeição. Porém, em meio à imagem predominante, outras formas de
representação subsistem, e a máscara mantém seu valor e possui um papel especial.
Colocar o devoto em contato imediato com a alteridade do divino, seria esse o
objetivo maior do dionisismo; a esse objetivo de fusão do fiel com o deus, Vernant e
Ducroux traçam um paralelo com o fenômeno teatral, com a ficcionalidade que este propõe
4
Lesky lembra que a transformação era o elemento básico da religião dionisíaca “O homem arrebatado pelo
deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano. Mas a
transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de
uma imitação desenvolvida a partir de um instinto lúdico, e distinto de um representação mágico-ritual de
demônios, arte dramática, que é uma replasmação do vivo”. (Lesky, 1976:61).
32
e a inscrição dessa ficção no real que ele provoca, abrindo um novo espaço, o do
imaginário:
5
A palavra grega théatron – do verbo theaomai, ver – designa o “lugar de onde se vê”, ou o “lugar onde se
vai para ver”, “lugar para contemplar”, implicando em um olhar mais atento, cuidadoso, profundo, não
simplesmente ver no sentido comum. Denis Guénoun lembra-nos que a área de representação, o palco, era
designada pelo termo skênê (cf. Guénoun, 2003, p. 14)
33
O filósofo grego estabelece, portanto, como foco da imitação, as ações que são
realizadas pelos personagens, ou seja, a fábula. Sendo, para o poeta, a organização dos
fatos a parte mais importante de sua composição (do ato de poiesis), compreende-se que
estes fatos devam obedecer aos critérios de necessidade e verossimilhança. Quanto aos
personagens, devem ser representados “ou melhores, ou piores ou iguais a todos nós” (p.
242), ou seja, o modelo para a construção das ações e para o comportamento dos
personagens é o ser humano. Aristóteles não se detém aqui no processo de encenação e no
trabalho do ator. Para ele a encenação é uma arte menor, inferior ao trabalho do poeta, este
sim o principal responsável pela composição da tragédia:
Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas não faz parte da arte
nem tem nada a ver com a poesia. A tragédia existe por si independente da
representação e dos atores. Quanto ao trabalho da encenação, a arte do cenógrafo
tem mais importância que a do poeta. (Aristóteles, s/d: 249)
A imitação – mimeses –, não deve ser confundida aqui, como ressalta Luiz
Costa Lima, com imitatio, pois se trata não de uma cópia, mas se baseia numa relação de
semelhança com o objeto representado (cf. Lima, 1980:47). Este processo traz em si uma
modificação da realidade representada, mantém uma distância em relação ao real, que o
capta sem, contudo, reduplicá-lo. A dualidade entre o real e o representado, e o processo de
estilização que a realidade sofre ao ser transformada em objeto artístico, fazem parte da
mimeses, que não perde de vista esse “real”, como pontua Emmanuel Martineau: “a
imitação transpõe, representa, exprime, estiliza, idealiza, mima, transfigura, etc. Mas, custe
o que custe, deve ser entendido, que ela imita – ou seja, que se refere a um „real‟ a que virá
se superpor como um plano a um plano” (cit. por Lima, 1980:48). Há, portanto, uma
concepção internalizada de uma realidade, que norteia tanto a ação do produtor da obra
poética, quanto a do seu receptor:
enquanto produzido por um trabalho de mimeses6, traz essa relação com a realidade que o
autor imprime sobre o personagem, ao mesmo tempo que é mais traço distintivo que uma
individualidade, que uma “constituição global” (Abirached, 1994:30). Sendo aquilo que
permite “qualificar o homem” (Aristóteles, s/d:248), constitui-se no conjunto de suas
características, tanto psicológicas como morais, os traços do seu temperamento.
Para Aristóteles os caracteres devem possuir quatro qualidades: devem ser
bons, conformes, semelhantes e coerentes. Bom, no sentido que é apto a desenhar e
sustentar a trajetória do personagem, o que implica que é fiel aos elementos que o
constituem – Coerente (mesmo em sua incoerência, no caso de um caráter em si
incoerente) – e que eles se alinham sob um sistema lógico, ou, ao menos, não contraditório
– Conforme. O que norteia a existência dessas qualidades é a Necessidade e a
Verossimilhança:
6
Robert Abirached observa que a mimeses teatral se coloca no meio do caminho entre o real e o imaginário.
Para ele, a mimeses é não “somente a representação e a imitação da realidade, mas o conjunto de protocolos
que regem o exercício do teatro” (...pas seulement la représentation et l'imitation de la réalité, mais
l'ensemble des protocoles qui en régissent l'exercice au théâtre) (Abirached, 2004:451), ou seja, envolve todo
o arcabouço e os procedimentos que comandam a execução da obra artística.
7
Aristóteles ressalta que, para o poeta, há três maneiras de imitar: “Sendo o poeta um imitador, como o é o
pintor ou qualquer outro criador de figuras, perante as coisas terá induzido a assumir uma das três maneiras
de as imitar: como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou como parecem ser, ou como deveriam
ser (Aristóteles, s/d:283)..
36
8
Como observa Abirached, “no teatro antigo as máscaras traduziam visualmente este alcance hierárquico [de
reis e súditos, pais e filhos, representantes da ordem e heróis rebeldes] e designavam à primeira vista aos
espectadores a vinculação [o pertencimento], de um personagem” (dans le théâtre antique, les masques
traduisaient visuellement cet éventail hiérarchique et désignaient d'emblée aux spectateurs l'appartenance
d'un personnage.) (Abirached, 1994:46). Se a tragédia francesa do século XVII já abandonou o uso de
máscaras, os seus heróis e heroínas ainda pertencem a esse modelo.
37
9
Nas palavras do abade: “Mas quando considera na sua tragédia a história verdadeira, ou que se supõe ser
verdadeira, tem [o poeta] apenas o cuidado de respeitar a verossimilhança das coisas, e de compor todas as
38
rejeitando em sua composição tudo aquilo que não possuísse estas características, estes
comportando-se como agiriam os personagens na situação representada no palco. Em cena,
o ator deve atuar
ações, todos os discursos e todos os acontecimentos como se tivessem realmente ocorrido.” (Borie,
Rougemont e Scherer, 2004:95).
39
“imagem de pessoa humana” (p. 136), rompendo com convenções e mudando o modo de
representar os comportamentos dos personagens que interpretam.
Teórico dessa mudança, em seus textos que versam sobre teatro10, o filósofo,
enciclopedista e dramaturgo Denis Diderot prescreve a fundação de uma nova dramaturgia
na França e reflete sobre o ofício do ator, seu processo de criação e a forma de interpretar.
O ponto nevrálgico sobre o qual Diderot desenvolve o seu pensamento estético é
justamente a mimeses. No romance As joias indiscretas, há a seguinte ponderação: “[sei
que] a perfeição de um espetáculo consiste na imitação tão exata de uma ação que o
espectador, enganado, sem qualquer interrupção, se imagina a assistir a própria ação” (cf.
Diderot, 1986:13). A imitação, para Diderot, está calcada na ideia do verossímil, mas
remete principalmente à questão da ilusão. Como ressalta Franklin de Matos,
Diderot pensa a questão [do verossímil], na maior parte do tempo, pelo viés da
ideia de ilusão: o vero-símil não é o próprio verdadeiro, mas aquilo que se parece
com ele, provocando em nós uma impressão que é o grande segredo da arte em
geral. A exigência de ilusão comanda, assim, todos os juízos de gosto de Diderot.
(Matos, 1986:15).
Nem todos os acontecimentos históricos são próprios para tragédias, assim como
nem todos os acontecimentos domésticos fornecem argumentos para comédias.
(...) Ocorre às vezes que a ordem natural das coisas encadeie incidentes
extraordinários. Esta mesma ordem distingue o maravilhoso e o miraculoso. Os
casos raros são maravilhosos, os casos naturalmente impossíveis são
miraculosos: a arte dramática rejeita os milagres. (Diderot, 1986:60-61).
10
Em especial Conversas sobre O Filho Natural, Discurso sobre a poesia dramática e Paradoxo do
comediante, que vieram a público respectivamente em 1757, 1758 e 1830, sendo que o Paradoxo, publicado
postumamente, teria sido composto em 1769, tendo passado por várias versões até a morte do escritor, em
1784.
41
que o historiador” (p. 61). A exigência da verossimilhança torna o ato do dramaturgo uma
construção, embasada na verdade, é fato, mas distante dela pelas características da mimeses
teatral e pelas escolhas que o poeta tem de fazer entre o campo da verdade e o da ficção.
Diferentemente de Aristóteles, em seus textos sobre teatro Diderot não se
debruça apenas sobre a poiesis, sobre a maneira como o autor dramático deve construir a
sua obra dramática para dela extrair os efeitos necessários para atingir o espectador da
forma que aspira. O filósofo trata longamente do ofício do ator, construindo, segundo Jacó
Guinsburg, “uma teoria do ator que só encontra paralelo, por sua profundidade e
amplitude, na que Stanislavski estabeleceria um século e meio depois” (in Diderot,
2005:215).
Como antes dele o abade d‟Aubignac, e, após, Stanislavski, um dos aspectos
centrais de teoria de Diderot está no ato de o comediante ignorar os espectadores durante o
seu desempenho, ou, mais precisamente, na maneira de não demonstrar preocupação com o
público durante a sua atuação, mantendo sua atenção no que ocorre no palco. Aqui vemos
formulada de uma forma explícita a teoria da 4ª parede: “Fazei de conta que o espectador
não existe e não penseis nele em nenhum dos casos. Imaginai no proscênio uma grande
parede que vos separa da plateia e representai como se a cortina estivesse aberta.” (Diderot,
1986:79)
A preocupação do ator – da mesma forma que a do autor – nunca deve estar no
espectador, mas sim no fluxo das ações do personagem, no fluir da história. É ao enredo e
suas necessidades que estes devem se submeter. A ação do ator parte sempre de sua
capacidade de observação, e, para Diderot, o melhor ator é aquele capaz de imitar,
friamente e da forma mais acabada possível, o seu modelo. Para bem transmitir uma
emoção, o ator não deve se emocionar. É necessário, antes de tudo que o comediante
“tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um espectador frio e
tranquilo; exijo dele, por consequência, penetração e nenhuma sensibilidade, a arte de tudo
imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis.”
(Diderot, 2005:220)
A construção desse modelo depende da capacidade de imitação, de julgamento,
de trabalho e da imaginação do ator. Comentando sobre o desempenho de Mlle. Clairon,
atriz da Comédie Française à época de Diderot, ele observa que “na sexta representação
ela sabe de cor todos os pormenores de sua interpretação”, pois ela concebeu para si “um
modelo ao qual procurou de início transformar-se” (p. 221). Tal desempenho, conseguido
42
“à força de trabalho”, deve ser mantido através “de exercício e de memória”, que exige do
ator precisão e verdade.
Essa exigência de precisão levará o ator a representar sempre de uma mesma
maneira, “sempre igualmente perfeito”, levando à criação de uma verdadeira partitura,
embora Diderot não utilize esse termo para se referir à capacidade do ator de seguir
rigorosamente o modelo por ele mesmo criado, segundo o qual executará sempre os
mesmos movimentos e dirá as frases com os mesmo acentos. Pautando-se sempre pela
capacidade de observação (“imitador atento e discípulo atento da natureza”), pela sua
capacidade de trabalho e organização (“copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos”),
e pelo estudo da reação que seus gestos e ações causam na plateia (“observador contínuo
de nossas sensações”. P. 220), o ator
Assim, para Diderot o ator talentoso não é aquele que sente, mas aquele que é
capaz de manifestar escrupulosamente os sinais externos do sentimento. Jean Duvignaud
traz uma interessante crítica à maneira que o filósofo francês estabelece esse contraste
entre um ator que se emociona em cena, e por isso perde o controle de suas ações (a
emoção se apoderando do ser e anulando a inteligência do comediante), e aquele que
representa friamente, apenas emulando uma emoção, fruto de uma construção esmerada e
trabalhosa. A argumentação de Diderot se baseia na incapacidade de união – ou
convivência – de razão e paixão, a sensibilidade e a capacidade de controle da emoção:
Por um lado, toda essa exigência de rigor e essa necessidade do ator trabalhar
sobre o seu papel, essa meticulosidade na observação e na construção de seus gestos e
43
Por outro lado, não é possível arrancar o próprio espírito e tomar emprestado
outro mais adequado ao papel. Aonde consegui-lo? Do papel que ainda carece de
vida? Podemos pedir emprestado uma roupa, um relógio, mas não um
sentimento. Meus sentimentos são inalienáveis, assim como os seus para você.
Atue sempre com a sua própria pessoa, como homem e como ator. (...) Todas as
vezes que atuar, sem exceção, deve recorrer a seu próprio sentimento.
(Stanislavski, 2003:228V)
11
Utilizamos aqui a tradução em espanhol feita diretamente do russo por Jorge Saura (Alba Editorial, 2003).
44
próprias regras e leis, devendo apenas ter a natureza, portadora da verdade, como
norteadora de seu trabalho: “O poeta, insistamos nesse ponto, não deve, pois, pedir
conselho senão à natureza, à verdade, e à inspiração que é também uma verdade e uma
natureza” (p. 57). Longe de ser uma mera imitação, pois o domínio da arte e da natureza
são perfeitamente distintos, e a verdade de uma e outra são diferentes (“A verdade da arte
não poderia jamais ser, assim como vários disseram, a realidade absoluta”, p. 60), o drama
deve ser como um espelho que não apenas reflete a natureza, mas que lhe dá forma
artística: “É, pois, preciso que o drama seja um espelho de concentração que, longe de
enfraquecê-los [os objetos refletidos, a cor e a luz], reúna e condense os raios corantes, que
faça de um vislumbre uma luz, de uma luz uma chama. Só então o drama é arte” (p. 61).
Os teóricos precursores do Naturalismo no teatro defendiam um retorno à
simplicidade da ação, a observação do linguajar e dos costumes, e o estudo psicológico e
fisiológico dos personagens. A encenação de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas
Filho, em 1852, em Paris, é considerada o marco do teatro realista: a peça colocava em
cena o mundo de uma cortesã, e retratava os costumes de todo um demi-monde relacionado
a ela. João Roberto Faria destaca que “o lado realista da La Dame aux Camélias” surge não
pela análise do relacionamento amoroso do casal da peça, mas por outros aspectos, “... que
também chamam a atenção na peça. Por exemplo: o pano de fundo da ação central. É
admirável a naturalidade da movimentação dos personagens no primeiro e quarto atos, nos
quais o mundo da prostituição elegante é evocado com bastante realismo descritivo”.
(Faria, 1993: 17-18).
Havia, portanto, uma preocupação com a observação e descrição dos costumes,
que se refletia no linguajar utilizado, e no jogo cênico dos atores, enfatizando o efeito
ilusionista: “Tudo parecia um quadro verdadeiro, uma reprodução fotográfica da vida e do
universo da cortesã.” (p. 21). A partir daí, o personagem não deveria ser algo abstrato, mas
surgir como um fruto do meio em que vivia. Émile Zola afirmava que as várias escolas
literárias negaram de forma sistemática a verdade, buscando um “embelezamento” ou um
“depuramento” da natureza:
em criar a vida do espírito humano do papel e transmitir essa vida na cena sob
uma forma artística. Como podem ver, nossa tarefa principal não consiste
somente em refletir a vida do papel em sua manifestação externa, senão
principalmente em criar em cena a vida interior do personagem representado e de
toda a obra, adaptando a esta vida alheia os próprios sentimentos humanos,
dando-lhe todos os elementos orgânicos do espírito de uma pessoa (Stanislavski,
2003:32VI, grifos do autor).
Aquele ator que buscava na imitação exterior de ações a maneira ideal de criar
um personagem conseguia somente realizar o que Stanislavski chamava de “arte da
representação”, na qual se vive o papel “para observar a forma externa da manifestação
natural do sentimento” (Stanislavski, 2003:36VII); essa ação exterior será depois
reproduzida com exatidão e com um refinado acabamento artístico, repetida
mecanicamente e com a ajuda de “músculos exercitados para isso”; o que se buscava era “a
forma artística externa da criação cênica, que explica visualmente o seu conteúdo interno”,
e na qual podemos perceber uma “certa frieza que me obrigava a suspeitar que tinha uma
forma de atuar permanente, fixa.” (p. 37VIII. A semelhança com o ator ideal proposto por
Diderot é clara). Lucidamente, Stanislavski, citando Coquelin, pondera que, para essa
escola, “a arte não é a vida real e nem sequer o seu reflexo. A arte é, por si só, criadora.
Cria a sua própria vida, plena de beleza em sua abstração, ultrapassando os limites do
tempo e do espaço” (p. 40IX). Nessa ótica, o teatro é pleno de convenções e seria um
contrassenso evitá-las, mesmo porque o palco teatral é muito pobre de recursos para tentar
criar uma ilusão de vida real (hoje em dia essa tarefa foi relegada principalmente ao
46
cinema). Para o diretor russo esse tipo de arte, para ser considerado como tal, tem de
manter-se no nível da perfeição, pois ele é “belo, porém não profundo, seu efeito é maior,
porém sua força é menor; sua forma é mais interessante que seu conteúdo; atua mais sobre
a vista e o ouvido que sobre a alma, e por isso é mais para encantar que para comover” (p.
40X).
Dessa forma Stanislavski estabelece uma diferença entre “representar” e
“viver” um papel. Somente a atuação que não apenas parte do interior do ator, mas que se
sustenta com base na experiência vívida e continuamente renovada do ator pode ser
considerada “verdadeira”. Para ele, representar verdadeiramente significava que, “nas
condições da vida do papel e em plena analogia com a vida deste, deve-se pensar, querer,
esforçar-se, atuar de modo correto, lógico, harmônico, humano”; quando consegue isso o
ator “se aproxima do personagem e começa a sentir em uníssono com ele” (p. 31-32XI).
Não é possível ser um “outro”, mas o ator deve criar um papel como se fosse um ser
humano real, e para isto esse outro deve ser insuflado de vida, ter reações autênticas.
Ora, a grande revolução de Stanislavski é justamente essa, a tentativa de unir a
forma externa e a vida interna do ator, criar o que ele chamava de uma técnica psicofísica
que seria a base para todo o trabalho do ator. Como tantos outros antes e depois dele,
buscava a adequação das ações realizadas em cena pelo ator às circunstâncias propostas
pelo texto (que chamava de “circunstâncias dadas”), mas acreditava que estas ações
estavam ligadas aos sentimentos do ator (“Em cada ação física há algo de psicológico, e no
psicológico há algo de físico”, p. 198XII), e deveriam, de uma forma ou de outra, levar a
despertá-los. O ator, em cena, jamais deveria pensar ou se preocupar com os sentimentos,
pois ninguém pode despertar em si mesmo sentimentos com o único fim de experimentá-
los, e se se ignora essa regra, “termina-se na mais repulsiva artificialidade” (p. 58 XIII). O
ator, ao realizar uma ação, deve preocupar-se unicamente com as ações que deve realizar e
com as circunstâncias envolvidas em cada uma delas, deixando em paz o sentimento, que
se manifestará em decorrência de algo interior que o suscitou.
A ação teatral “deve ter uma justificação interior, deve ser lógica, coerente e
possível na realidade” (p. 63XIV), sendo explicada a partir dos motivos interiores criados
pelo ator, dentro das circunstâncias dadas pelo texto, e complementadas por ele, ator.
Pesquisador incansável que era, Stanislavski lutou toda a sua vida contra o que
denominava de atuação mecânica na qual não havia esta vivência e o sentimento era
inexistente; contra os estereótipos, o exagero e o exibicionismo, que convertem a
47
interpretação em algo mecânico, sem vida; e contra a exploração da arte pelo ator, daqueles
que usam o teatro para exibir sua beleza, para fazer carreira ou alcançar popularidade. Para
Stanislavski, a organicidade no trabalho do ator estava ligada à busca das “leis da
natureza”, e tudo o que acontecia em cena deveria ter um propósito determinado. Em cena,
o ator não deveria atuar de um modo “geral”, mas com um objetivo claro, pois a ação
verdadeira “tem um fundamento e um propósito” (p. 57XV). Essas tarefas12, que o ator deve
executar quando está em cena, se relacionam com as circunstâncias que motivam a ação do
personagem e são elas que impedem uma atuação falsa13.
Enquanto criador de uma técnica psicofísica, Stanislavski parece muitas vezes
indeciso em relação à qual seria o melhor caminho para o ator trilhar no sentido de criar
uma interpretação mais verdadeira, que atingisse a desejada “verdade cênica” (talvez
devido a questões de tradução ou de compilação de seus textos, nos quais há escritos de
épocas diferentes de sua carreira artística). Não há uma radicalização em torno de uma
postura em favor de uma dessas duas possibilidades de criação, uma pela via da vida
interior do ator, outra por uma via física; percebe-se uma oscilação entre elas, talvez pela
consciência de que cada ser humano “funciona” ou trabalha melhor segundo um estímulo
diferente, havendo naturezas que são mais suscetíveis a um determinado tipo de estímulo,
enquanto outras trabalham melhor sob outros impulsos. De fato, há diversas ocasiões em
seus livros nas quais a ênfase recai sobre a necessidade de o ator justificar interiormente
cada um de seus atos (criando a “vida interior” do papel): o ator deve compreender um
12
Na tradução brasileira dos livros de Stanislavski, feitas a partir do original inglês, o termo utilizado é
“objetivo”. O responsável pela tradução da edição espanhola feita diretamente do russo e utilizada aqui, Jorge
Saura, esclarece a preferência pelo termo “tarefa”: “habitualmente este termo se traduz como objetivo, mas
considero mais adequado traduzi-lo como „tarefa‟ por duas razões: em primeiro lugar, é a tradução literal da
palavra empregada por Stanislavski, e, em segundo lugar, “objetivo” induz a pensar em um resultado a
alcançar, enquanto que “tarefa” sugere um processo que deve ser percorrido em todas as suas etapas, ideia
mais próxima à teoria stanislavskiana”. (…habitualmente este término se traduce como “objetivo”, pero
considero más adequado traducirlo como „tarea” por dos razones: en primer lugar es la traducción literal de la
palabra rusa empleada por Stanislavski, y, en segundo lugar “objetivo” induce a pensar en un resultado a
alcanzar, mientras que “tarea” sugiere un proceso que debe ser recorrido en todas sus etapas, idea más
cercana a la teoría stanislavskiana.) (in Stanislavski, 2003:149) .
13
Stanislavski fala longamente das tarefas cênicas do ator, chamando a atenção para a qualidade das mesmas,
para que os atores consigam encontrar e fixar aquelas que são necessárias ao bom desempenho do papel,
evitando as tarefas mecânicas, que conduzem à mediocridade: Assim, as tarefas devem:
1. Estar no palco, serem direcionadas aos atores, não aos espectadores; 2. Ser pessoais, próprias do ator
enquanto ser humano, análogas às tarefas do personagem; 3. Ser criadoras e artísticas; 4. Ser vivas,
autênticas, humanas, impulsionando o papel para frente; 5. Devem ser críveis, tanto para o ator como para
aqueles que contracenam com ele, assim como para o público; 6. Tarefas que atraiam e emocionem o ator,
estimulando o processo de vivência; 7. Devem se relacionar com a essência da obra, ser precisas, claramente
definidas e típicas do papel representado; 8. Devem ter conteúdo, não se limitando à superfície da obra, mas
respondendo à essência interior do papel. (Cf. Stanislavski, 2003, p. 160-161).
Essas tarefas são um estímulo ao processo criador do artista, e devem necessariamente ser atraentes para ele.
48
papel, simpatizar com a pessoa retratada e pôr-se no lugar dela, de modo a agir como essa
pessoa agiria; dessa forma irá despertar em si sentimentos que são análogos aos que o
papel requer, sentimentos que pertencerão ao ator, e que serão usados para compor o
personagem. Em outros momentos ele se detém sobre a veracidade física dessas ações,
instando os atores a criar uma sequência de ações externas (o que foi posteriormente
chamado de “Método das ações físicas”). Mas permanece sempre a necessidade de o ator
sentir a verdade do que está fazendo em cena, e as ações executadas são formas de
despertar as suas sensações14.
No seu livro Stanislavski in Rehearsal – The final years, Vasily Toporkov, que
trabalhou com Stanislavski entre 1927 e 1938, logo antes da morte deste, analisa o método
de ações físicas, que o diretor russo estava colocando em prática. No prólogo deste livro,
Mikhail Kedrov, encarregado de finalizar a produção de Tartufo após a morte de
Stanislavski, afirma que o método de ações físicas
14
É bastante interessante a relação estabelecida por Stanislavski entre sentimento, vivência e uma
interpretação “verdadeira”. Mesmo sem buscar o sentimento, este faz parte da verdade da arte: “Não pode
haver arte verdadeira sem vivência. Esta começa onde o sentimento põe a sua marca”. A atuação mecânica
“começa onde se interrompe a vivência criadora e a representação artística de seus resultados.” (No puede
haber arte verdadero sin vivencia. Ésta comienza donde el sentimiento pone su sello. (…) …comienza donde
se interrumpen la vivencia creadora y la representación artística de sus resultados.) (Stanislavski, 2003:41-
42).
49
15
Grotowski afirmava que, como profissional, havia se formado dentro do sistema do diretor russo, e que, ao
começar sua carreira, seu ponto de partida era a técnica de Stanislavski (cf. Flaszen e Grotowski, 2010, p. 5).
50
Meyerhold, em seu trabalho com o ator e sua técnica, preconiza uma forma de pensar o
gesto e a movimentação como um “desenho de movimentos”: “Os gestos, as atitudes, os
olhares, os silêncios estabelecem a verdade das relações humanas; as palavras não dizem
tudo” (cit. por Bonfitto, 2002:43). A biomecânica apresenta-se como um “treinamento
global”, que, envolvendo corpo e cérebro, não era propriamente um sistema de
interpretação, estando ligada diretamente com o treinamento do ator, explorando as
possibilidades de relação entre movimento e palavra e a importância do ritmo como
norteador da ação do ator. O corpo do ator deveria, portanto, ultrapassar o seu corpo
cotidiano. E, de certa maneira antecipando o que Grotowski fará posteriormente, os
exercícios posturais e acrobáticos propostos por Meyerhold visavam diminuir o lapso entre
o pensamento e a reação do ator. Através da biomecânica, este deveria “desenvolver um
estado de prontidão e a capacidade de reação a fim de diminuir ao máximo o tempo de
passagem entre pensamento-movimento, pensamento-palavra e movimento-emoção-
palavra.” (Bonfitto, 2002:44).
O intenso trabalho físico proposto para o ator partia do desejo de
racionalização de cada movimento dos atores, onde cada gesto e a posição do corpo
deveriam assumir um desenho preciso:
16
Grotowski chamava essa possibilidade mais próxima do fantástico de “mundo da ilusão”, reconhecendo,
no entanto, a imprecisão dessa terminologia, pois sabia que em diversos países há essa identificação entre o
processo de imitação da vida e a criação de uma “ilusão”.
17
A do Teatro de Produções ou Teatro dos Espetáculos; do Parateatro ou Teatro de Participação; do Teatro
das Fontes; do Objective Drama; e da Arte como Veículo. Cf Flaszen e Grotowski, 2010:226-243 e Cuesta e
Slowiak, 2007.
52
aquilo que o ator deveria fazer diante do público não era representar, nem alguma espécie
de fingimento de ordem artística, mas sim “um ato real: de coragem, de humildade, de
oferta” (p. 31). Pois o ator é aquele que “trabalha em público com o seu corpo, oferecendo-
o publicamente” (Grotowski, 1987:28). Mais tarde esse ato será compreendido e resumido
na forma do ato total (a “fórmula-chave” do período teatral de Grotowski, segundo
Flaszen). Partindo da ideia de que o aprendizado do ator não deve ser um acúmulo de
habilidades, Grotowski chegou ao conceito de uma via negativa, que se apresenta não
como “uma coleção de técnicas, e sim erradicação de bloqueios” (p. 15), através da qual o
ator não se preocupa mais em como fazer uma determinada ação ou representar um
sentimento: o foco é a eliminação das resistências do organismo do ator aos seus processos
psíquicos, a busca não de um estado “pelo qual „queremos fazer aquilo’, mas „desistimos
de não fazê-lo’” (p. 15, grifos do autor).
A ideia de diminuir ou eliminar o lapso de tempo entre o impulso interior do
ator e a sua reação exterior se assemelha ao pretendido por Meyerhold, mas o fundamento
desse impulso e o ato de despojar-se diante da plateia, fazendo uma “total doação de si
mesmo” (p. 14) – que levou à criação da expressão “ator santo” – conduzem a um
resultado bastante diferente. O “desnudar-se” equivale, para o ator, a expor a parte mais
íntima de si mesmo, um ato de “autopenetração” que revela e sacrifica ao público sua parte
mais dolorosa, “que não é atingida pelos olhos do mundo” (p. 30). Oferece-se em
sacrifício, e atinge uma “santidade secular”:
direto colaborador de Grotowski nesse período, afirma que não é a representação, mas sim
um ato real que o ator deve buscar, embaralha de uma forma inesperada o conceito de
intérprete e de interpretação com que estávamos acostumados a lidar no âmbito teatral.
A exigência de o ator penetrar suas experiências mais íntimas, porém sem o
intuito de usá-las, à maneira stanislavskiana, como matéria prima para a construção de um
outro, do personagem, mas para expô-las e compartilhá-las com o público, implica não
apenas uma nova proposta de relação com os espectadores, mas uma maneira diferente do
ator trabalhar com os seus materiais interiores. Implica numa necessidade de re-atualização
desse material, dos seus impulsos interiores, de forma não apenas a mantê-los vivos e
orgânicos, mas a trazer para a cena a sua experiência:
O ator ali não deveria atuar, mas penetrar os territórios da própria experiência,
como se os analisasse com o corpo e com a voz. Deveria reencontrar os impulsos
que fluem do profundo de seu corpo e com plena clareza guiá-los em direção a
um certo ponto, que é indispensável no espetáculo, fazer essa confissão no
campo que for necessário. No momento em que o ator alcança esse ato, torna-se
um fenômeno hic et nunc; não é um conto, nem a criação de uma ilusão; é o
tempo presente. (Flaszen e Grotowski, 2010:131).
... o teatro deve associar em sua prática diversão e instrução. Por instrução, aqui,
deve-se entender a estimulação de um exercício crítico, que pode levar o público
a reconhecer o homem e a realidade não como definitivos e imutáveis, mas como
passíveis de transformação. (Bonfitto, 2002:64)
forma dramática – que chama também de aristotélica – e a forma épica do teatro, Brecht
diz que na primeira o espectador é envolvido na ação cênica, enquanto na segunda ele é um
observador desta (cf. Brecht, 2005:31). Para tanto, no que toca ao trabalho do ator, este
deve narrar, não interpretar, o que implica, de início, na não identificação do ator com o
seu personagem.
O ator deve conceber o homem – e, em consequência, o seu personagem –
como algo mutável, torná-lo seu objeto de pesquisa; é o ser social que deve ser posto em
destaque, não o indivíduo com suas idiossincrasias. Antes que a coerência, o ator deve
prestar atenção às contradições do personagem, pois são nestas que mais se revelam as
tensões entre a linearidade dos acontecimentos e as coerções que as forças sociais impõem
e que costumam passar despercebidas. Já que o homem “não é uma marionete presa em um
destino irreversível e imutável” (Bonfitto, 2003:66), a possibilidade de mudança e
transformação deve ficar clara para o espectador.
Para garantir essa distância necessária para que o ator compreendesse o
personagem de uma forma crítica e o espectador não simplesmente mergulhasse na história
encenada, mas permanecesse em “estado de observação”, perscrutando o que se sucede em
cena como uma possibilidade, não como uma inevitabilidade, Brecht criou uma série de
procedimentos, que ajudariam o público a manter essa atitude crítica. Um desses
procedimentos, os efeitos de distanciamento (Efeito V – Verfremdusgseffeckt),
provocariam no espectador um estranhamento que impediria a identificação automática do
público com o herói e ajudariam o ator a conceber sua interpretação como um comentário
aos atos perpetrados pelo personagem. O distanciamento, para Brecht, era necessário para
que o espectador pudesse analisar os fatos mostrados em cena, para causar um “estado de
surpresa” (Rosenfeld, 1985:155) que possibilitaria a investigação científica e o
conhecimento. Brecht dizia que, para se conseguir o efeito de distanciamento, o ator deve
dar seu texto como uma citação, deve revelar nas ações realizadas em cena aquelas que não
realizou e, em tudo que o ator mostre ao público, o ato de mostrar deve ser nítido,
impedindo-o de produzir o efeito de empatia. Isto não significa que os atores precisassem
renunciar totalmente ao recurso da empatia no momento da construção desse personagem,
na pesquisa do seu comportamento; ele deve “usá-lo apenas numa fase prévia, em qualquer
momento da preparação do seu papel, nos ensaios, e não durante a própria representação”
(Brecht, 2005:103).
56
I
...une figure issue de la réalité et comme une entité autonome qui agit dans un espace tout ensemble concret
et fictif.
II
...est empreinte de familiarité domestique.
III
...a une réalité revue et corrigée...
IV
La culture bourgeoise, en voie de constitution, mettra alors en cause, dans un irrémédiable remueménage,
des notions qui le touchent de trés prés, en affirmant les droits de l‟individu, en décrouvant l‟importance des
strutuctures sociales et du travail de l‟histoire, en mettant l‟économie au centre des rapposts humains.
V
Por otra parte, no es posible arrancarse el propio espíritu y tomar prestado otro más adecuado al papel.
¿Donde conseguirlo? Del papel que aún carece de vida? Podemos pedir prestada una prenda, un reloj, pero
no un sentimiento. Mis sentimientos son inalienables, y los suyos lo son para usted. Actúe siempre em su
propia persona, como hombre y como actor. (...) Todas las veces que actúe, sin excepción, debe acudir a su
propio sentimiento.
VI
Como veis, nuestra tarea principal no consiste sólo en reflejar la vida del papel en su manifestación
externa, sino sobre todo en crear en escena la vida interior del personaje representado y de toda la obra,
adaptando a esta vida ajena los propios sentimientos humanos, dándole todos los elementos orgánicos del
espíritu de uno mismo.
VII
… para observar la forma externa de la manifestación natural del sentimiento
VIII
… la forma artística externa de la creación escénica, que explica visualmente su contenido interno.
IX
El arte no es la vida real, ni siquiera su reflejo. El arte es en sí mismo, creador. Crea a su propia vida, bella
em su abstracción fuera de los limites del tiempo y el espacio.
X
“...bello, pero no profundo. Su efecto es mayor, pero menor su fuerza; su forma es más interesante que el
contenido; actúa más sobre la vista y el oído que sobre el alma, y por eso es más para encantar que para
conmover.
XI
… que en las condiciones de la vida del papel y en plena analogía con la vida de éste, se debe pensar,
querer, esforzarse, actuar de modo correcto, lógico, armónico, humano. (…) …se aproxima al personaje y
empieza a sentir al unísono con él.
XII
En cada acción física hay algo de psicológico, y en lo psicológico algo de físico.
XIII
... se termina en la más repulsiva artificialidad.
XIV
… debe tener una justificación interna y ser lógica, coherente y posible en la realidad.
XV
…tiene un fundamento y un propósito.
XVI
This method brings great concreteness to the work of the actor. It is based on the indivisible unity of the
physical and spiritual life of a person and is built on the correct organization of the physical line of the
actor‟s life on the stage. The purpose of this method is to penetrate, through the logical and correct
fulfillment of physical actions, into those complicated, deep feelings and emotional experiences which the
actor must call out of himself in order to create the given stage image.
XVII
…the transference of the actor‟s attention from the search for feelings inside himself…
XVIII
...no se debia encontrar en la creación del personaje , sino en la formación de una estructura personal en
la que el individuo podía acercarse a un eje de descubrimiento.
59
1
Sempre que nos referirmos à Arte da Performance utilizaremos Performance (com a inicial maiúscula) para
distinguirmos da realização de performances artísticas ou da performance enquanto trabalho ou desempenho
do ator, ou ainda nas acepções que os estudos culturais e etnográficos propõem.
2
Assim se refere Goffman ao seu trabalho no prefácio do livro: “A perspectiva empregada neste relato é a da
representação teatral. Os princípios de que parti são de caráter dramatúrgico. Considerarei a maneira pela
qual o indivíduo apresenta, em situações de trabalho, a si mesmo e a suas atividades às outras pessoas, os
meios pelos quais dirige e regula a impressão que formam a seu respeito e as coisas que pode ou não fazer,
enquanto realiza seu desempenho diante delas” (Goffman, 2002:09).
61
3
Como relata Calvin Tomkis: “MONTANHA KA iniciou-se („estreou‟ não parece ser a melhor palavra) na
meia-noite do dia 2 de setembro ao pé da colina chamada Haft-tan, ou sete corpos, numa referência aos
corpos dos sete poetas sufis, ali enterrados. A cada novo dia, os performers deslocavam-se para uma área
mais alta da montanha, atingindo seu cume no sétimo e último dia da apresentação. Nos intervalos entre os
diversos episódios, havia sempre atividade numa plataforma erguida ao pé da montanha. Um programa
detalhado mostrava o que acontecia em cada dia, aonde, e por quanto tempo: dezenas de peças individuais,
danças, pantomimas e quadros que haviam sido previamente preparados pelos vários membros da companhia
– o programa enumerava dezessete diretores, nove autores e um elenco de setenta e cinco integrantes” (cit.
por Galizia, 1986:XXX-XXXI).
64
5
Respectivamente, performances de: Theching Hsieh, que construiu uma cela de prisão em seu apartamento
e trancou-se lá por um ano, sem ler, falar, escutar música ou se comunicar com alguém; Orlan, que se
submeteu a várias cirurgias plásticas, colocando em seu rosto elementos de famosas pinturas e esculturas de
mulher, e transformando o próprio corpo em suporte para a performance; Eleonora Fabião, que portando um
cartaz de “converso sobre qualquer assunto”, sentou-se e conversou com várias pessoas no centro de uma
grande cidade; Marina Abramovic, que permitiu que os espectadores usassem nela diversos objetos, entre
eles uma rosa, uma tesoura, mel, uma pistola, uma bala, correntes, caneta, batom, uma câmera polaroid, faca,
chicote. (Cf, Fabião, 2008:235-36)
6
Ver, por exemplo, a performance Zona 5 da sensibilidade pictórica imaterial (1962), de Yves Klein, na
qual este vendia sua sensibilidade em troca de folhas de ouro, que depois foram lançadas no rio Sena,
enquanto o recibo da compra era queimado; Following Piece (1969), de Vito Acconci, na qual este seguia
pessoas escolhidas ao acaso, na rua; Tensão paralela (1970), de Dennis Oppenhein, na qual seu corpo
arqueado criava um eco à forma de um monte de terra (cf. Goldberg, op. cit. p. 139, 146 e 147).
66
7
Renato Cohen ressalta que a collage, “justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas,
obtidas através da seleção e picagem de imagens encontradas ao acaso, em diversas fontes” (Cohen, 2002:60)
é uma das características da Performance. Sua estrutura é utilizada tanto no processo de criação do espetáculo
quanto na elaboração final do mesmo. Seu uso altera a função ordinária dos objetos e elementos cênicos,
alterando suas propriedades originais e criando paradoxos.
67
Quando Stanislavski se volta para as ações físicas como uma maneira de o ator
construir seu personagem e Meyerhold começa a explorar as possibilidades do corpo do
ator, percebemos que a ação realizada em cena pelo ator dá um passo no seu longo
percurso em direção à autonomia. Ou seja, podemos perceber um trajeto no qual essa ação
se vê cada vez menos sujeita a uma lógica que a subordina à história e ao enredo. Levando
essas ações além da necessidade de contar uma história, estariam elas sujeitas também a
ultrapassar a configuração de um personagem?
Encontramos, na história recente do teatro ocidental, movimentos que
propuseram outra lógica às ações do ator. O que se convencionou chamar de Teatro do
Absurdo, por exemplo, rompeu com a necessidade de que as ações estivessem sujeitas a
esse verismo e ao cotidiano, criando, contudo, uma outra lógica que, de certa maneira,
ainda lhes restringia a autonomia, empurrando-a de volta à uma subordinação, quer seja no
plano onírico, quer seja pela própria necessidade de romper com a causalidade do teatro
realista, ou ainda pelo desejo de tecer uma crítica à conduta e à forma de organização da
sociedade da época.
Devemos lembrar que, no Ocidente, quando se fala em Ação do ator, e em
especial em ação física, pode-se imaginar uma linha que parte de Stanislavski, passa por
Grotowski e se estende até os nossos dias. Nessa linha, organicidade e veracidade são
conceitos chaves, e passam sempre por uma justificação interna dessas ações por parte do
ator. Toporkov detalha o processo de aprendizagem do “Método das ações físicas”, que
eram utilizadas tanto no treinamento do ator como na construção de personagens. A ação
não significava simples movimento físico, sendo em sua essência uma ação psicofísica,
envolvendo uma tarefa ao mesmo tempo física e psicológica, pois Stanislavski acreditava
existir uma ligação entre a vida física e espiritual de uma pessoa. Tendo como propósito
68
ajudar o ator a penetrar nos sentimentos e experiências emocionais necessários para viver o
seu papel no palco, o método baseava-se na justificativa dada pelo ator para a realização
dessas ações: “Não há ação física sem desejo, sem objetivos e problemas” (Toporkov,
1998:16I), e o ator precisava justificar internamente essas ações, e era essa justificativa que
conferia a elas – as ações – a sensação de verdade e de genuinidade.
O cerne desse trabalho era sempre as motivações do personagem naquela
situação. A busca era por encontrar tarefas concretas para o ator executar, nada deveria ser
feito de uma maneira “geral”. Tanto a busca de justificativas internas, que passavam pela
criação de imagens vívidas para o ator e o seu parceiro de cena, quanto o próprio foco na
realização de ações físicas – “Não interprete [act] nada, apenas execute [play] cada ação” 8
(p. 86II), dizia Stanislavski nos ensaios –, visavam impedir que o ator atuasse de uma
maneira mecânica e “falsa”.
Porém, enquanto o diretor russo se mantinha dentro dos estritos padrões do
teatro dramático, voltando seus esforços para a concretização cênica de personagens
semelhantes a indivíduos, Grotowski direciona seus esforços para um distanciamento e
uma autonomia do ator em relação ao personagem. Assumidamente um continuador do
trabalho de Stanislavski, desenvolvendo seu trabalho a partir das ações físicas, Grotowski
tinha uma outra visão do que seria a organicidade e a justificativa das ações. De fato, o ato
de “revelação” – o desnudamento do ator diante da plateia, a exibição do que havia de mais
íntimo na pessoa do ator – estava diretamente ligado ao fenômeno da organicidade.
Falando da ação realizada pelo ator e da “forma”, da partitura criada por ele, Ludwik
Flaszen chama-a de “singular ato de conhecimento” e se refere à organicidade como uma
“zona intermediária” entre o que é corporal e o que é espiritual (cf. Flaszen e Grotowski,
2010:26-27). O objetivo da expressividade física levada aos seus extremos é a
manifestação da anulação do corpo, a “eliminação dos obstáculos que o organismo coloca
à fluida realização dos impulsos interiores” (Flaszen e Grotowski, 2010:88). A busca dessa
organicidade nas ações realizadas, leva Grotowski a buscar o “aqui e agora” (hic et nunc),
a reação que ocorresse concomitante ao espetáculo, afastando-se do processo de
“revivescência”, do processo de imitação da realidade e do fantástico, da ilusão. Assim, o
ator não deveria simplesmente atuar, mas “penetrar no território da própria experiência”, e
analisando-a com seu corpo e sua voz, “reencontrar os impulsos que fluem do profundo de
8
Em inglês act e acting são sinônimos de representar. Aqui consideramos “atuação” como o desempenho do
ator em cena, sem pressupor um investimento em “simulação” ou interpretação (ver adiante, a nota 22 deste
capítulo e a discussão do capítulo 4 a partir da escala proposta por Michael Kirby).
69
seu corpo e com plena clareza guiá-los em direção a um certo ponto, que é indispensável
no espetáculo, fazer essa confissão no campo que for necessário.” (p. 131).
Thomas Richards, que trabalhou com Grotowski nos últimos anos de sua vida,
ponderava que a organicidade implicava em simplesmente realizar a ação física, sem nada
acrescentar e sem deixar que nada interferisse nesse processo. A chave estava no processo
corporal, e não se devia em absoluto trabalhar com as emoções. A organicidade
...quase sempre se vê bloqueada por uma mente que se dedica a fazer o que não
deveria, uma mente que tenta conduzir o corpo, que pensa com rapidez e ordena
ao corpo o que ele deve fazer e como. [...] Para que um homem chegue a esse
nível de organicidade, sua mente deve aprender a forma correta de manter-se em
um estado passivo, ou ele deve aprender a ocupar-se tão somente com a sua
tarefa, deixando de intrometer-se para que o corpo possa pensar por si mesmo.
(Richards, 2005:113III)
O que norteava a execução das ações eram os “impulsos”, “uma corrente quase
biológica que surge de „dentro de alguém‟, e tem como fim a realização de uma ação
precisa” (Richards, 2005:157IV). Como todo o trabalho de Grotowski, estava fortemente
ancorado no corpo, mas se revelava como algo que transcendia o domínio do corporal, pois
o ator “capaz de expressar, através do som e do movimento, aqueles impulsos que estão no
limite do sonho e da realidade” é o mesmo que realiza “uma ação de autopenetração, que
se revela e sacrifica a parte mais íntima de si mesmo – a mais dolorosa, e que não é
atingida pelos olhos do mundo” (Grotowski, 1987:30).
É bastante conhecida a história da gênese do personagem Príncipe Constante,
feita por Ryszard Cieslak no espetáculo homônimo9. Cieslak trabalhou meses com
Grotowski sobre uma recordação de sua adolescência, sua primeira experiência amorosa, e
“seus longos monólogos estavam ligados às mais pequenas ações e impulsos físicos e
vocais daqueles momentos rememorados” (Richards, 2005:194V), criando uma distinção
entre as associações pessoais do ator e as ações realizadas por ele, e a lógica da percepção
dos espectadores. Grotowski criava assim uma ruptura entre a concepção e gênese das
ações físicas, e a forma como essas ações eram “montadas” em cena, com toda a estrutura
do espetáculo a lhes servir de suporte para a criação da imagem da cena e do personagem.
Embora a referência para o ator seja uma – no caso de Cieslak a leitura do Cântico
Espiritual de João da Cruz, e a recordação de uma experiência amorosa – na encenação
estas referência servem como palimpsestos:
9
A descrição encontra-se no texto “Da companhia teatral à arte como veículo”, publicado inicialmente no
livro All lavoro com Grotowski sulle azione fisiche, em 1993. (Ver Richards, 2005:181-212).
70
10
Laban (1879-1958) utilizava o termo dança-teatro na primeira metade do século passado “para descrever
dança como uma forma de arte independente de qualquer outra, baseada em correspondências harmoniosas
entre qualidades dinâmicas de movimentos e percursos no espaço” (Fernandes, C., 2000:14). Ele estudava o
movimento a partir de seu viés dramático, pensando nas características comportamentais das pessoas,
relacionando esses comportamentos à época e ao lugar em que estivessem: “Um caráter, uma atmosfera, um
estado de espírito, ou uma situação não podem ser eficientemente representados no palco sem o movimento e
sua inerente expressividade. Os movimentos do corpo, incluindo movimentos das cordas vocais, são
indispensáveis à atuação no palco.” (Laban, 1978:21). Laban criou um sistema de improvisações a partir da
tríade Dança-Tom-Palavra (Tanz-Ton-Wort), na qual estudantes usavam a voz, criando peças de dança que
inclusive incorporavam movimentos cotidianos (Cf. Fernandes, C., 2000, p. 14). Kurt Jooss, defendia a
criação de peças de dança associadas a um conteúdo emocional, e seu balé A mesa verde, de 1932, aliava a
dança ao teatro e, mais particularmente, à mímica (Cf. Bourcier, 1987:300-301).
71
o que ouvimos é basicamente ruído, e desejava usá-los não como simples efeitos sonoros,
mas como instrumentos musicais, criando uma “biblioteca de sons”11. Em um manifesto
publicado em 1937, “The Future of Music”, Cage afirma:
Onde quer que estejamos, o que quer que ouçamos, é ruído. Quando nós o
ignoramos, ele nos atrapalha. Quando o ouvimos, achamo-lo fascinante. O som
de um caminhão de 50 cavalos de força, estática entre estações. Chuva.
Queremos capturar e controlar esses sons, usá-los, não como efeitos de som, mas
como sons de feitos musicais. (in Carlson, 2010:108).
11
Em um concerto realizado em 1942, em Chicago, um crítico ponderou que aquilo que Cage chamava de
música, as pessoas chamavam de “barulho”, sendo que os músicos “tocavam garrafas de cerveja, vasos de
flores, chocalhos, cilindros de freio de automóveis, sininhos, gongos” tudo o que pudessem ter à mão (cf.
Goldberg, 2006:113)
72
Workshop Company, e, trabalhando com bailarinos como Trisha Brown, Yvonne Rainer,
Steve Paxton, Simone Forti, com músicos e arquitetos, pintores e escultores, além de
pessoas sem formação artística, incorpora ações do dia-a-dia como comer, andar, banhar-se
e manter contato físico em suas concepções coreográficas, além de interessar-se, tal como
Cage e Cunningham, pela improvisação e pela associação livre (cf. Carlson, 2010:109).
São esses bailarinos que, chegando a Nova York em 1960, realizam uma série
de happenings e eventos na Reuben Gallery e na Judson Church, e fundam em 1962, o
Judson Dance Group. Mantendo a preocupação de Halprin na exploração do simples
movimento físico de um corpo no espaço, criaram uma série de trabalhos em colaboração
com vários artistas e performers, como Robert Rauschenberg (que havia feito o “evento
sem título” em 1952 no Black Mountain College com Cage, Cunningahm e David
Tudor12), o escultor Robert Morris, e Robert Whitman, o que acabou por tornar difícil
definir “se essas obras eram „danças‟ ou „happenings‟” (Goldberg, 2006:131).
O movimento de iconoclastia, de quebra de padrões e paradigmas, de
rompimento de barreiras e preconceitos que caracteriza a década de sessenta do século
passado fica patente nessas palavras da bailarina e coreógrafa norte-americana Yvonne
Rainer, que ilustravam os princípios básicos de seu trabalho:
12
Goldberg relata que a preparação para a performance foi mínima, tendo cada músico recebido a partitura,
que indicava apenas “parênteses temporais” que deveriam ser preenchidos como cada um quisesse, de forma
que não houvesse nenhuma relação causal entre um incidente e o seguinte. A plateia tinha a forma de uma
arena quadrada, cortada por corredores diagonais, formando quatro triângulos e “pinturas brancas de um
estudante não residente, Robert Rauschenberg, pendiam do teto. Sobre uma escada dobradiça, Cage, de terno
preto e gravata, leu um texto sobre “a relação entre música e zen-budismo” e excertos de Mestre Eckhart.
Depois executou uma “composição com rádio”, seguindo os “parênteses temporais” arranjados de antemão.
Ao mesmo tempo, Rauschenberg tocava velhos discos num gramofone movido à mão, e David Tudor
pegava dois baldes e vertia água de um para o outro, enquanto Charles Olsen e Mary Caroline Richards,
plantados na plateia, liam poesia. Cunningham e outros dançavam nos corredores seguidos por um cachorro
alvoroçado, Rauschenberg projetava slides “abstratos” (criados por gelatina colorida comprimida entre
vidros) e filmes projetados no teto mostravam primeiro o cozinheiro da escola e depois, à medida que iam
descendo do teto para a parede, o pôr-do-sol. Em um dos cantos, o compositor Jay Watt tocava instrumentos
musicais exóticos, e ouviam-se assobios e choros de bebês enquanto quatro meninos vestidos de branco
serviam café. (Goldberg, 2006:116).
73
13
Goldberg descreve assim alguns trabalhos de Ann Halprin: “Objetos de cena como longas hastes de bambu
davam novo alcance à invenção de novos movimentos. Banquinho de cinco pés (1962), Esposizione (1963) e
Desfiles e trocas de roupa (1964) giravam em torno de movimentos relacionados a tarefas práticas, como
levar quarenta garrafas de vinho para o palco, verter água de uma lata para outra ou trocar de roupas; e os
cenários diversificados, como os “blocos celulares” em Desfiles e trocas de roupa , permitiam que cada
performer desenvolvesse uma série de movimentos independentes que expressavam suas próprias reações
sensoriais à luz, à matéria e ao espaço.” (Goldberg, 2006:130).
14
Isa Partsh-Bergson ressalta que nesses trabalhos eram utilizadas “técnicas de colagem, ao invés de temas
centrais [...]; modelos de sons ou de movimentos eram usados em repetição para criar efeitos hipnóticos [...].
Coreógrafos agora estavam colocando seu foco em movimentos de pedestres e observando relações humanas
básicas das pessoas ditas normais”. (citado por Fernandes, C., 2000:17). Isso evidencia a inserção de Bausch
dentro do movimento de ampliação e diluição de fronteiras artísticas que viemos discutindo.
74
16
Segundo Romano, Ashford, à época editor da revista londrina Time Out, teria empregado o termo Physical
Theatre como uma maneira de enquadrar um dos tipos de teatro alternativo realizados na Inglaterra naquele
tempo, respondendo, assim, “a uma necessidade de diferenciação de alguns espetáculos, garantindo a
identificação do produto por parte do público consumidor” (Romano, 2005:25)
76
Apresenta-se assim uma outra questão: pode o ator atuar em cena sem mostrar-
se como um personagem? Ou o enquadramento cênico é suficiente para transformar sua
presença em um “personagem de si mesmo”?
Vimos como o questionamento sobre a possibilidade de um ator estar em cena
sem encarnar um personagem apresenta-se como um desdobramento das transformações
pelas quais a dramaturgia da cena passou desde os anos sessenta do século passado.
Falando sobre os estilos de interpretação que a cena contemporânea delineia, Mauro
Meiches distingue três grandes tendências: a encarnação, o distanciamento e a
interpretação de si mesmo. Neste último tipo, “o ator mal se transforma: ele nos diz dele
mesmo através do seu gesto, de sua maneira de falar e o trabalho criado lembra muito um
encontro espontâneo” (Meiches e Fernandes, 1999:06). Este encontro, a diminuição da
distância que separa o público do ator, é um dos pontos principais dessa tendência, que se
norteia pela espontaneidade, pelo uso de improvisações (não apenas durante o processo de
construção da peça e dos personagens, mas durante a apresentação) e de experiências
pessoais dos atores para a elaboração de sua dramaturgia. Estabelecem-se “jogos” entre os
atores e entre estes e a plateia. Investem, assim, na participação do espectador, como
participante ou co-atuador:
77
Frequentemente são trabalhos coletivos, nas quais o grupo nos conta sobre
fatos do seu cotidiano, os seus desejos e anseios em relação ao teatro, utilizando-se da
criação coletiva como forma de trabalho. O ator caminha não rumo a uma diferenciação,
mas parece-se “consigo mesmo”, indo de encontro “ao seu jeito de ser, ao seu tipo físico e
às suas possibilidades de expressão” (Meiches e Fernandes, 1999:05). A principal
característica desse tipo de construção dramatúrgica é tentar garantir o envolvimento de
todo o grupo no processo de construção cênica, e, mesmo com a presença de um
dramaturgo encarregado de dar uma versão final ao texto encenado (ou de uma equipe
encarregada da dramaturgia do espetáculo), criar a possibilidade da encenação refletir os
desejos e as experiências vividas pelos participantes na montagem teatral.
O apogeu histórico dessa tendência remonta às décadas de sessenta e setenta do
século passado, onde grupos como o Living Theatre e o Open Theatre, nos Estados
Unidos, e o Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Brasil, incorporaram o uso de improvisações
e da gestualidade do ator ao seu processo de construção do espetáculo, criando uma
dramaturgia que refletia as inquietações, as vivências e preocupações do grupo.
O Living Theatre17 foi um dos primeiros grupos teatrais a radicalizar a
experiência da improvisação dentro do espetáculo, junto com a provocação ao público e a
ação dos atores se assumirem em cena enquanto eles mesmos, e não como os personagens
que interpretavam. Tanto em peças como Connection e The Brig, como nos seus trabalhos
criados a partir do seu exílio na Europa, como Paradise Now e Frankenstein, os atores do
Living Theatre incitavam a reação dos espectadores (por exemplo, em Faustina, de Paul
Goodman, em 1952, uma comediante interpelava o público: “Vocês acabaram de assistir
um assassinato, por que não o impediram?” Cf. Aslan, 1994:296), criando uma espécie de
“documentário-provocador”.
Paradise Now talvez seja uma das experiências mais radicais dessa época: este
espetáculo não apenas quebrou fronteiras entre a ficção e a realidade, rompendo a barreira
17
O grupo foi criado em 1947 por Julian Beck – que estudara pintura na New York School – e Judith Malina
– que havia estudado com Piscator quando este estava exilado nos Estados Unidos – e montou vários textos
não-comerciais (como Doctor Faustus Lights the Lights, de Gertrude Stein, em 1951, e Many Loves, de
William Carlos Williams, em 1959) e obras de jovens dramaturgos americanos (como Jack Gelber, The
Connection, em 1959, e Kenneth Brown, The Brig, em 1963) antes de se exilar na Europa.
78
que separa o público da ação desenvolvida em cena; ele também ultrapassou a fronteira
entre o ator e o personagem que aquele mostra ou representa em cena, já que os atores se
apresentavam no palco não sob o véu de uma personalidade fictícia, mas conservando seu
nome, vestimentas e identidade. Essa “identidade icônica” (Elam, 1980) entre ator e
personagem – mostrar o próprio passaporte, enquanto dizia “eu não posso viajar sem
passaporte”, por exemplo – mistura o universo ficcional que o espetáculo institui com a
realidade da pessoa e da vida do ator.
Todo o depoimento pessoal traz para o teatro, em um grau maior ou menor, o
mesmo tipo de questão, da identidade ator/personagem. Em Não desperdice sua única
vida, da Cia. Luna Lunera, cada um dos atores acompanha parte da plateia, que é dividida
em seis grupos, a um espaço cenográfico diferente, e lá realiza um depoimento baseado em
fatos de sua vida (figura 4). Esse depoimento “um relato de fatos, opiniões e pensamentos
pessoais, dá-se como uma conversa na qual cada ator apresenta-se como pessoa, não como
personagem” (Silva, 2006:3), assumindo seu nome e sua história como indivíduo.
18
Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, conceitua processo colaborativo como “uma metodologia
de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço
propositivo, trabalhando sem hierarquias – ou com hierarquias móveis, a depender do momento do processo
– e produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos” (Cf. Araújo, 2006:127). Nesse processo,
atores, diretor e dramaturgo, além dos outros profissionais empenhados na construção da encenação, “num
embate corpo-a-corpo dentro da sala de ensaio”, tentam “criar juntos um espetáculo” (p. 127).
19
Não temos aqui a intenção de nos aprofundarmos sobre a questão da “verdade”, isto é, sobre as
possibilidades da realidade envolver artificialidades que mascaram a própria pretensão da verdade, que pode
ter vários aspectos e níveis. O próprio depoimento pessoal, como veremos, envolve distorções que poderiam
pôr em dúvida sua “autenticidade”, a sua veracidade. Interessa-nos aqui a distinção entre o ficcional e o não
ficcional, pensando que o ficcional “surge como representação de algo imaginado, mesmo que a partir de
fatos reais, para a construção de uma ficção. Portanto, é a representação (captação) da representação (dado
em si).” (Soler, 2010, 51).
80
20
Título do livro de Maryvonne Saison, Les théâtres du réel, publicado Na França em 1998.
81
21
Em 2002 foram apresentados Barrocos retratos de uma papa, criação coletiva dirigida por Analía
Couceyro, baseada na vida da artista plástica Mildred Burton; Temperley. Sobre a vida de T.C., com direção
de Lucioano Suardi, inspirado na vida de uma mulher de 85 anos, emigrante espanhola; Los 8 de Julio,
dramaturgia e direção de Beatriz Catano e Mariano Pensotti; em 2003 estrearam Sentate!, de Stefan Kaegi,
uma espécie de “instituto zoológico” sobre o mundo dos animais utilizados como mascotes e sua relação com
seus donos; El aire alrededor, dirigido por Mariana Obersztern, um retrato cênico de uma professora rural;
La forma que se despliega, dirigida por Daniel Veronese, que expõe o sofrimento humano diante da perda de
um filho; e em 2004 foi apresentado Nunca estuviste tan adorable, feito por Javier Daulte a partir de suas
próprias memórias familiares. Paralelamente a isto Viviane Tellas apresentou em âmbito privado – fora do
teatro e sem cobrança de ingressos – Mi mamá e mi tia, que nomeava como uma proposta de “teatro de
família”, e que era protagonizada por sua mãe e sua tia de fato (cf. Cornago, 2005).
82
ela, mas que culmine em processos e resultados distintos” (Soler, 2010:22). O não ficcional
é visto, então, não como algo que se contrapõe ao ficcional, mas como algo distinto dele.
Essa não–oposição entre ficção e não ficção nos permite ultrapassar a questão
da referencialidade e debruçarmos sobre o enquadramento teatral, buscando perceber o
quanto ele altera a percepção e o status do próprio evento e de seu conteúdo. Ora, é o
enquadramento cênico que garante a possibilidade de simbolização da ação realizada em
cena, e que a distingue do evento real. Josette Féral reflete que a contextualização e a
dramaturgia propostas pela encenação não apenas conferem um senso estético ao ato, elas
garantem que o olhar do espectador possa distinguir e oscilar entre o que é criado em cena
e a sua concretude material:
Dessa forma o evento teatral faz sempre uma oscilação entre o ficcional e o
real, pendendo ora mais para um lado, ora mais para o outro (dependendo do grau de
teatralidade ou de performatividade adotado), sem, contudo, romper com nenhum deles. As
irrupções do real observadas em vários espetáculos desestabilizam a percepção do
espectador, impondo-lhe uma outra maneira de observar o que é posto em cena. A
possibilidade de enxergar no ator tanto a sua pessoa quanto a figura cênica que ele enverga,
permitida pelo enquadramento teatral, remete-nos aos outros pontos que mencionamos
acima, e permite-nos levantar uma questão fundamental para discutir os limites do
personagem no teatro hoje: o ator em cena, mesmo não se apresentando como um
personagem ficcional, mas envergando sua própria identidade e seu nome, não se constitui
em um personagem? O “estado de atuação”, ou o enquadramento que a situação de “evento
teatral” impõe, não modifica o status da própria pessoa?
Renato Cohen distingue entre a figura do ator/performer dentro do contexto de
uma representação cênica e a sua pessoa no seu cotidiano. Para ele, o performer, em cena,
trabalha sobre uma espécie de “máscara ritual”, que é diferente de sua pessoa no dia-a-dia,
não sendo, portanto, lícito falar que ele “faz a si mesmo” (Cohen, 2002:58). Assim, na
performance de Joseph Beuys quem está lá é o próprio artista e não alguma personagem. É
importante distinguir, no entanto, que à medida que Beuys metaforicamente está
83
representando (simbolizando) algo com suas ações, quem está lá é um “Beuys ritual” e não
o “Beuys do dia-a-dia” (Cohen, 2002:58).
Discutindo o que Julian Olf chama de “dialética da ambivalência”, segundo a
qual o ator tem de conviver simultaneamente com seu próprio ser e o de seu personagem,
Cohen pondera que
à medida que o ator entra no "espaço tempo cênico" ele passa a "significar"
(virar um signo) e com isso "representar" (é o próprio conceito de signo, algo
que representa outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto – o qual
tem-se nomeado "personagem" – ou mesmo abstrato (como as figuras que
aparecem em peças surrealistas, por exemplo, Les Mamelles de Tirésias, de
Apollinaire)”. (Cohen, 2002:95).
não está ligado apenas à sua importância [do corpo do ator] enquanto
portador de um conteúdo, transmissor ou receptor de um significado (seu valor semântico):
ele é mídia do teatro e organizador dos processos cognitivos superiores – de linguagem,
lógica e representação simbólica – e inferiores – de percepção, motivação, etc. (Romano,
2005:168).
Quando se fala aqui de corpo do ator, é preciso estar claro que o corpo de uma
pessoa é um emissor e receptor de estímulos, sensações e informações. Não é um invólucro
onde reside o ser, nem é a matéria (o material) sobre a qual o ator trabalha, ele é o próprio
ser. A separação platônica corpo/espírito deve dar lugar a ideia de corpomente (ver
Dychtwald, 1984), que engloba tanto os aspectos físicos quanto psicológicos de uma
pessoa, e que possibilita que discutamos a energia que o ator, que a sua presença, possui.
Para a Antropologia Teatral, a energia se relaciona com o treinamento
empreendido pelo ator, onde este aprende a controlar suas ações, a executá-las de uma
85
maneira tal, com uma precisão técnica23, que permite ao ator dilatar a sua presença e
projetar sua energia no espaço e no tempo:
Para chegar a conseguir essa força, esta que é uma qualidade indescritível,
intangível e incomensurável, as várias formas teatrais codificadas seguem
diversos procedimentos, um treinamento e exercícios bem concretos. São
exercícios que se baseiam na destruição de posições inertes do corpo do ator,
portanto na alteração do equilíbrio normal e na destruição de dinâmicas de
movimentos pertencentes à cotidianidade. (Barba e Savarese, 1988:56).
23
Pensamos Técnica aqui como um procedimento que se aprende ou se desenvolve para realizar, de forma
mais eficiente ou expressiva, um trabalho ou uma ação
24
Ver adiante, item 3.1.
86
espaço da representação teatral e que no palco de hoje em dia só resta o jogo dos atores (cf.
Guénoun, 2004. O livro Le théâtre est-il nécessaire? foi publicado na França em 1977). O
que era o eixo central do teatro, os tempos, lugares e ações ficcionais, quedou em segundo
plano; eles tornaram-se “efeitos secundários, que não sustentam mais a singularidade do
teatro e não trazem mais em si nem com eles, a razão de sua necessidade.” (Guénoun,
2004:131). Esse “jogo” realizado pelos atores traz, em si, as características de todo o jogo,
que é facilitar um tipo de experimentação que não traz os “riscos do real”, que foge à
objetividade e ao pragmatismo da realidade, uma vez que “o jogo não provém nem da
realidade psíquica interior (ele se distingue do sonho e da fantasia), nem da realidade
exterior (ele não se confunde com a experiência real)” (Ryngaert, 2009:38). Porém, o
enquadramento teatral, a moldura que reveste as ações realizadas em cena, mantém essa
ficcionalização como algo que não se apaga: permite não só que reconheçamos o evento
como “teatro”, mesmo quando não se percebe mais a cena como portadora de um
“universo ficcional” característico de um teatro mais tradicional, mas que reconheçamos
um outro aqui e agora que permeia e por vezes até se interpõe entre a cena e o que é vivido
simultaneamente por atores e espectadores no momento da cena ou do evento teatral.
Se a necessidade do jogo passa a ser o próprio jogo (como podemos observar,
por exemplo, em alguns espetáculos da Cia dos Atores, como Ensaio Hamlet ou Gaivota:
tema para um conto curto), é este que passa a sustentar a ação cênica e a própria existência
dos personagens; não é mais o enredo e as características dos seres ficcionais, suas
características psicológicas, seus objetivos e mesmo a verossimilhança que determinarão a
ação realizada pelos atores em cena. “É o jogo que sustenta o papel, não o contrário”
(Guénoun, 2004:131), é a necessidade do jogo que determina a constituição mesma dos
personagens, ou das ações dos atores, que são apreendidas pelo olhar do público como
configurando personagens.
Assim, o evento criado pela cena vem destituído – no todo ou em parte – de
seu caráter de remissão a outro tempo/espaço. Por romperem com uma pretensão e
resquícios figurativos, apresentam-se como aquilo que são, atores/performers em um
palco/em uma cena, e, através do jogo
... os atores mostram, hoje, em primeiro lugar, que estão representando. Eles
expõem a nudez de seu jogo, despido dos aparatos e véus do papel, e neste
espaço de visibilidade des-coberta, deixam nascer os efeitos figurais de sua
exibição. (...) Se algo dele próprio (de sua pessoa, de sua identificação, de seu
ser) aí se despe ou se revela, é como jogo. (Guénoun, 2004:132, grifos do autor)
87
25
A aquiescência do espectador era para nós fundamental para realizarmos um compartilhamento, uma
interferência, e não uma invasão. Assim, as perguntas eram do tipo “Eu posso me deitar a seus pés?”, “Eu
posso encostar meu rosto no seu cotovelo?”, “Eu posso sorrir para você?”, sempre dependendo da permissão
da pessoa para serem executadas.
88
uma ou outra pessoa que recusava a oferta, era grande o número de pessoas que,
normalmente entre risos, se dispunha a participar do jogo.). A narrativa aí é o próprio jogo,
e, se ele se liga ao todo da encenação, problematizando de forma indireta o espaço público
e o privado, a interferência e a invasão do espaço individual, o sentido do jogo se
estabelece ao jogá-lo, não há uma transcendência nem um sentido oculto para além do
jogo: aceitar e recusar fazem parte dele, das suas regras, e aceitação e recusa constituem o
seu sentido e a própria encenação. Observamos que o jogo – que permanece como uma
experiência que foge aos “riscos do real” – ganha uma conotação especial: convidado a
tomar parte dele, o espectador pode escolher entre participar da cena ou manter-se como
um voyeur26.
Esta autonomia do jogo nos leva a modelos de narrativa e registros de atuação
bem distintos entre si, provenientes de materiais heterogêneos e que não se excluem: a
cena se mostra apta a abrigar diferentes linhas estéticas ou tendências que convivem sem a
preocupação da harmonia, isto é, sem a preocupação de construir um espetáculo/encenação
como um todo harmônico (tal qual era pensado o espetáculo e buscavam os encenadores no
início do século vinte), embora se possa estabelecer um conjunto no qual as diversas partes
dialoguem entre si, alternando modelos e formas de atuar. Em meio à multiplicidade e
fragmentação dos jogos e ações realizadas em cena, é o corpo do ator que vai garantir uma
unicidade e um sentido de permanência ao espectador.
Os matizes e as diversas ênfases que permeiam e qualificam a cena
contemporânea levam-nos a distinguir diversos corpos para o ator. Diante de propostas
como a de uma não-encenação (cf. Pavis, 2010:25-40), na qual o ator opõe-se frontalmente
a uma demanda do espectador de ser um representante de um mundo ficcional, e procura
“menos caracterizar um personagem do que deslizar no texto a fim de nele sentir
fisicamente o desenrolar e a trajetória” (p. 32), podemos nos perguntar se esse o corpo do
ator é ainda um corpo fictício.
26
Penso que esse voyerismo mudou de figura dentro do contexto da sociedade do espetáculo. Se, nos moldes
do teatro feito por Stanislavski o espectador se postava diante da cena para ver o que se passava dentro
daquelas “quatro paredes”, para observar o ser humano na sua intimidade, como se espiasse pelo buraco da
fechadura para ver “aquilo que não se diz” nem se pode mostrar em público, a midiatização e a
espetacularização do cotidiano mudou o próprio conceito desse “espiar”, já que há uma míriade de eventos e
fatos que são abordados e criados sob este prisma, de um espetáculo a ser observado e consumido como tal.
Féral, na entrevista citada, refletindo sobre o real espetacularizado que é mostrado e importado para a cena,
pondera sobre a necessidade de ultrapassarmos a imagem, já que “é preciso despir as camadas do espetáculo
para reencontrar a urgência do momento. E aquilo que faz o artista é precisamente procurar o coração do real,
dessa urgência do momento.” (Féral, 2011:185). A performatização empurra o espectador para dentro da
cena, mas a teatralização do evento permite a ele manter a distância que lhe faculta reconhecer o processo
simbólico que garante a ficcionalização da cena.
89
De forma arbitrária, porque não se pôde encontrar palavras mais exatas, fala-se
de um corpo fictif: não ficção dramática, senão o corpo que concentra todas suas
forças em uma certa zona “fictícia”, que finge não uma determinada ficção senão
uma espécie de transformação do corpo cotidiano a um nível pré-expressivo. (in
Barba e Savarese, 1988: 170).
27
Como diz Merce Cunningham, “Se um dançarino dança – isto é diferente das teorias sobre dança, ou do
desejo de dançar, ou de tentar dançar, ou de ter no seu próprio corpo a lembrança da dança de um outro
qualquer, mas se o dançarino dança, tudo está lá. O sentido está lá, se é isto que vocês querem. [...] Quando
danço, isto significa: aqui está o que faço. [...] Em dança, trata-se simplesmente do fato de que um salto é um
90
salto, e do fato de que este salto toma uma forma. A atenção que dirigimos ao salto elimina a necessidade de
entender que o sentido da dança reside um tudo o que não seja dança. (in Dantas, 1999:85).
28
Tanto Féral quanto Bonfitto usam o termo presentação, enquanto Guénoun e Romano, mais adiante, usam
apresentação. Em que pese a discrepância do termo, parece-me que todos estão se referindo ao mesmo
fenômeno, de rompimento com a esfera ficcional (da ação de referir-se a um outro) e a elevação da presença
(do ator e suas ações) a eixo da cena. Quando não estivermos citando um autor, utilizaremos presentação.
91
29
Bonfitto, no texto “O ator pós-dramático: um catalisador de aporias?” discute, a partir de Lehmann, a
relação entre presentação e representação. Para ele, a esfera de representação está ligada ao grau de
referencialidade que ela apresenta: “todo processo ou procedimento de atuação, que remeta a códigos e
convenções reconhecíveis culturalmente, será considerado neste texto como manifestações da esfera de
representação” (Bonfitto, 2009:90). A esfera de presentação utiliza processos e procedimentos que não são
prontamente reconhecidos como “patrimônios de códigos e convenções sócio-culturais”, comportando um
grau significativo de auto-referencialidade e ligando-se ainda aos “modos de articulação e reinvenção” desses
códigos e convenções (p. 90-91).
92
30
Bonfitto define o actante-estado como aquele que surge a partir de uma “destemporalização” do
personagem, espacializando-a. No actante-estado “não encontramos ações passíveis de serem definidas do
ponto de vista de sua importância para o desenrolar da intriga, nem é possível encontrar em tal ser ficcional
uma estrutura lógico-temporal. Se o processo de modalização das ações é excessivamente acentuado, ele
pode provocar o desaparecimento da intriga, permanecendo assim, somente o enunciado. Nesse caso conta-se
com um fazer, mas esse fazer é incapaz de contar uma história.” (Bonfitto, 2003:134) O actante-texto surge à
partir da submissão do actante à auto-referencialidade do texto: “O texto passa a impor as suas leis, é o texto
que fala, é o texto que age. Vemos surgir, dessa forma o actante-texto.” (p. 134).
93
I
There is no physical action without volition, without objectives and problems.
II
Don‟t act anything, Just play each action. (grifos do autor).
III
…casi siempre se ve bloqueada por una mente que se dedica a hacer lo que no debería, una mente que
intenta conducir al cuerpo, que piensa con rapidez y ordena al cuerpo qué debe hacer y cómo. Esta
interferencia normalmente se traduce en una forma de moverse brusca y entrecortada. (…) Para que un
hombre llegue a ese nivel de organicidad, o bien su mente debe aprender la forma correcta de mantenerse en
un estado pasivo, o bien debe aprender a ocuparse tan sólo de su propia tarea, dejando de entrometerse para
que el cuerpo pueda pensar por si mismo.
IV
...una corriente casi biológica que surge “dentro de uno” y tiene como fin la realización de una acción
precisa.
V
Sus largos monólogos estaban ligados a la más pequeñas acciones de acciones e impulsos físicos y vocales
e aquel momento rememorado.
VI
El contenido de la obra de Calderón Slowacki, la lógica del texto, la estructura del espectáculo que
envuelve al actor y se vincula a él, los elementos narrativos y los otros personajes del drama, todo esto
sugería que él era un prisionero y un mártir al que se intenta destrozar y que se niega a someterse a las leyes
que no se acepta. Y a través de esta agonía del martirio alcanza su cima.
VII
…la restituición de lo acontecido contituye en sí mismo un instrumento de intervención social.
VIII
... rescatar su sentir, su estar-ahí, su modo (teatral) de ser presencia, física y sensorial, efímera e
inmediata, proponiéndole al espectador una experiencia teatral…
IX
...exterioridad anterior a los sentidos lógicos y las preguntas trascendentales impuestas por los discursos
culturales, … (…) …en el plano poético de la escena teatral.
94
CAPÍTULO 3
O ATOR E SUAS AÇÕES: REGISTROS DE ATUAÇÃO
De que maneira podemos pensar o trabalho do ator diante das várias formas
como o personagem – ou o outro do ator, sua persona ou máscara – se apresenta na cena
teatral no início deste milênio? Pudemos perceber que, atuando em um limiar entre o plano
da ficção e o do real, o ator provoca um tensionamento entre esses planos. Nessa tensão se
apresenta a questão da indecidibilidade entre a representação e a presentação (ou
apresentação): não apenas o espectador, também o ator se vê suspenso entre a
representação de um outro e a colocação em cena de estados, memórias e imagens que
remetem ao seu próprio eu.
Transitando entre o depoimento autobiográfico e a realização de ações que
remetem ao performativo e não à construção de um personagem ficcional, o ator se vê
diante da necessidade de repensar a sua maneira de atuar, lançando mão de distintos
registros de atuação, que lhe permitam e facilitem o trânsito entre esses diversos estados
cênicos.
Abordaremos a seguir algumas questões que ficaram em suspenso ao final do
segundo capítulo, e veremos como o enquadramento teatral modifica a maneira como
percebemos o real introduzido na cena, e como isso se relaciona com a forma como o ator
realiza seu trabalho.
1
Diversos eventos – rituais, cerimônias – também têm o caráter de excepcionalidade, produzindo uma quebra
no cotidiano, mas produzem modificações concretas na vida dos que passam por ele (como uma mudança no
status social – de solteiro para casado, por exemplo), e os jogos também obedecem a regras próprias, que
transcendem as do dia-a-dia (permissões para agressões, furtos, blefes...). Richard Schechner observa que
brincadeiras, jogos, esportes, teatro e ritual são atividades que compartilham uma série de qualidades básicas:
“1) uma ordenação especial do tempo; 2) um valor especial dado aos objetos; 3) não-produtividade em
termos de bens; 4) regras” (Schechner, 2003a:08). Schechner o parentesco dessas atividades, tratando-as
todas como “fenômenos da performance” (Idem, p. 19).
97
2
Sarrazac remonta a Artaud – que já em 1926 propunha que objetos e acessórios deveriam, no palco, ser
compreendidos em um sentido imediato, sendo tomados, portanto, não por aquilo que podem representar,
mas por suas características sensíveis –, para discutir a oposição entre um teatro que tem como desafio
estético “representar o real” e os que se baseiam na presença teatral pura (cf. Sarrazac, 2012:102-103).
98
materialidade dos diversos elementos que formam a cena, engendra uma espécie de
“intensificação” e uma “manifestação extremada” da matéria teatral, implicando em uma
“teatralidade onde o sensível se torna significante” (Fernandes, S., 2010:122).
Podemos então pensar que essa mudança ou oscilação de planos implica num
outro tipo de teatralidade, que se volta para a matéria sensível. Para Denis Guénoun foi a
busca de uma “essência teatral”3 o que levou a se colocar diante do público aquilo que é
sensível e material no teatro, o “estar-aí da coisa”; assim, o teatro torna-se um “gesto de
mostração, (...) a coisa em si em sua fenomenalidade” (Guénoum, 2003:68). O ato de pôr
em cena o corpo do ator e o seu jogo, o interrogar-se sobre esse aparecer, é o que constitui
a teatralidade.
Quando algo, objeto ou ação, aparece em cena enquanto fenômeno e matéria,
quando o jogo do ator surge enquanto jogo e não como sustentação de um personagem ou
de um universo ficcional, temos esse deslocamento em direção ao que Fischer-Lichte
chama de ordem da presença – e que aqui designamos de plano da presença ou
presentação. Naqueles tipos de teatro chamados de performativos ou pós-dramáticos a
oscilação entre os planos da representação e da presença, que o duplo estatuto do signo
teatral4 já promovia e garantia, é exacerbada. Essas novas dramaturgias cênicas criam uma
instabilidade cênica constante; há, por um lado, um processo de ruptura, e por outro o
surgimento de um novo paradigma, que envolve uma outra forma de participação do
espectador.
Ao colocarem a ênfase sobre a ação em si e não sobre o valor dessa ação
enquanto representação, esses teatros, performativos, engendram o que Silvia Fernandes
qualifica como uma “tentativa de escapar do território específico da reprodução da
realidade para tentar a anexação dela, ou melhor, ensaiar sua presentação, se possível sem
mediações” (Fernandes, S., 2010:128). O que muitos criadores buscam, nesse processo de
diluição da representação e afirmação da presença, é ir além das possibilidades da própria
3
Guénoun associa a necessidade dessa busca ao surgimento do cinema, que questionou a especificidade do
teatro, assim como a fotografia fizera anos antes com a pintura. Também Féral (2004), discute o que seria a
especificidade da linguagem teatral, levando contudo esse questionamento até a dissolução de limites
causadas pelo surgimento de novas práticas artísticas, happenings, Performance, novas tecnologias etc.
Retomaremos a discussão sobre a teatralidade adiante (ver item 3.3).
4
Como pondera Sílvia Fernandes, esse duplo estatuto gera um enorme complexidade semântica: “Enquanto
signo performático, o signo teatral é seu próprio referente. Enquanto signo ficcional, ao contrário, ele
significa uma personagem, uma fábula, uma época, enfim, tem relação com o universo cultural de referência
do espectador, um universo imaginário que pode remeter a alguma coisa no mundo” (Fernandes, S.,
1996:288). Essa duplicidade, que pode ser mais ou menos acentuada em cada espetáculo ou evento teatral,
implica em um constante deslocamento do espectador do plano ficcional para o plano real da cena e vice-
versa.
99
5
Para Féral a função metafórica é a coisa mais importante no teatro, o que distingue esse ato de outras ações
cotidianas. Falando sobre espetáculos que remetem ou contém cenas de morte e de violência, ela diz: “E aí
que o espectador intervém. É aí que a inteligência do espectador é solicitada. E, nos espetáculos de violência
bruta, ela não é solicitada. Não estamos no domínio metafórico, estamos na realidade. Mas a realidade só é
interessante quando está enquadrada e explicada”. (Féral, 2011:183). Parece-me que estamos aqui muito
próximos da função simbólica a que fizemos referência acima.
100
Kiarostami trata esses temas em seus filmes, Sánchez observa que a exposição dos
artifícios cinematográficos “pode produzir a manifestação de uma realidade escondida, do
mesmo modo que a alienação de mentiras que, segundo o realizador iraniano é intrínseca à
arte cinematográfica, pode fazer aparecer uma verdade mais profunda” (Sánchez,
2007:67III). Há um atravessamento da verdade na ficção, assim como “o real pode fazer
transparente o artifício”.
Experimentos semelhantes ao que se convencionou chamar de Teatro
Documentário e de Biodramas tensionam enormemente não só a oscilação entre o plano da
representação e o da presença, mas como essa própria relação entre um discurso sobre o
real (carregado de um sentido lúdico) e a apresentação de um fato real. Em Estamira –
Beira do mundo há uma dupla interpolação de fatos reais dentro da ficção da encenação: o
espetáculo é baseado na vida de Estamira, uma catadora de lixo que ficou conhecida
através do filme de Marcos Prado (2004); mesclada à história da personagem-título, há a
história da atriz Dani Barros, cuja mãe teve distúrbios psiquiátricos, tentando várias vezes
o suicídio e sofrendo internações em instituições. As passagens entre as falas da Estamira-
personagem e o depoimento de Dani se dão diversas vezes sem uma quebra no espetáculo,
deixando o público em suspenso sobre quem é de fato o enunciador daquele texto (fig. 7).
Quando Sefan Kaegi e Lola Arias realizaram, em 2007, o espetáculo Chácara Paraíso, no
14ª andar do SESC da Avenida Paulista, o sentido de representação era conferido pela
instalação montada para a encenação8, que tinha uma base verídica e documental. O
espetáculo reunia depoimentos de policiais, ex-policiais e familiares de policiais e o
público era constituído de grupos de 1 a 6 pessoas, que percorriam as várias salas do andar
onde cada uma das pessoas recebia e conversava com o público. No site do Rimini
Protokol, composto por Kaegi, Helgard Haug e Daniel Wetzel, encontramos o seguinte
texto, que esclarece que a peça é “uma forma de instalação que mescla o documental e o
ficcional, mostrando biografias de pessoas que em algum momento de sua vida
atravessaram o universo policial”, destacando ainda que não se trata de atores: “Os espaços
vazios do 14º andar do SESC da Avenida Paulista, agora em reforma, serão ocupados com
a arte de pessoas (que não são atores) selecionadas por meio de anúncios em jornais. Elas
reconstroem cenas da própria biografia que, às vezes, pode parecer ficção.” (cf. Rimini
Protokol, texto do site).
8
Chácara Paraíso é o local onde se encontra o maior centro de formação de soldados da Polícia Militar da
América Latina, no bairro de Pirituba, em São Paulo.
102
uma reverberação de uma tendência encontrada em diversas mídias para “criar um efeito
de realidade que estivesse mais além do fictício, do que não é verdadeiro, do engano e do
teatral” (Cornago, 2005:5IV). Discutindo o projeto coordenado por Viviana Tellas, Cornago
destaca as inúmeras maneiras encontradas para confrontar o teatro e a realidade, as
diversas maneiras pela qual o real pode se insurgir na cena, e a relação entre pessoa e
personagem. Não só há um exacerbamento na dimensão performativa (isto é, da cena como
acontecimento, dos elementos materiais que constituem a cena enquanto processo, dos
gestos, sons, ações e mesmo do lugar onde se dá o encontro de espectadores e performers),
como há um questionamento do próprio fazer teatral, daquilo que constitui a sua
teatralidade, a partir da introdução desses elementos reais na cena.
O que Cornago chama de “olhar teatral”, e que aqui denominamos de
“enquadramento teatral”, determina um “cenário de atuação”, que põe em relevo não só a
participação consciente do espectador na construção de processo de teatralização do real,
como ressalta os elementos materiais sobre os quais a cena é construída. Isso permite o
surgimento da dimensão poética, possibilita a construção de um plano simbólico a partir
dessa “exterioridade sensorial” e, como diz Cornago, uma ontologia do poético, diversa da
ontologia do real9:
Em qualquer caso, o olhar teatral atua sobre o mundo exterior como se se tratasse
de uma operação cirúrgica, praticando cortes, descentramentos e focalizações
com o propósito de fazer visível em uma dimensão simbólica aquilo que não é o
campo da realidade, questionando suas categorias, limites e convenções
(Cornago, 2005:11V).
Essas montagens levadas a cabo na Argentina no início dos anos 2000, trazem
diversas maneiras pelas quais o teatro redireciona seu olhar sobre a realidade a partir da
consciência da teatralidade implícita nesse olhar, e das operações simbólicas que a
construção teatral implica. Destacamos aqui duas delas, Los 8 de Julio, com dramaturgia e
direção de Beatriz Catani e Mariano Pensotti, e Mi mamá y mi tía, de Viviana Tellas. A
primeira parte da vida de três pessoas que têm em comum o fato de terem nascido em 8 de
julho de 1958, e às quais se propôs diferentes tarefas, que deviam ser executadas ao longo
9
Cornago pondera que as operações de delimitação, formalização e poetização que o olhar teatral empreende
sobre o real, permitem que o momento poético seja retido e submetido à possibilidade de repetição, uma das
características do marco teatral (mesmo que a repetição seja, em si, impossível, restando-nos apenas a re-
apresentação das imagens e ações). Se elas se dão fora dessa convenção, “obtém-se um lampejo poético que
dura apenas o que a própria realidade demora em nos recordar que nos encontramos em uma dimensão não
poética da realidade, e o instante mágico da epifania poética se desvanece, com o que esse momento não
voltará a existir nunca mais” (Cornago, 2005:11).
104
de seis meses: Alfredo Martin, um ator, deve filmar Maria Rosa, sem chegar a conhecê-la
diretamente; esta, uma mulher casada e que espera um filho, deve andar com uma máquina
fotográfica e pedir a transeuntes que a fotografem; Silvio Francini, um piloto de aviação
que pinta quadros em suas horas vagas, deve fazer seis quadros da mesma árvore, que
farão parte da encenação. Nesta, Alfredo falará ao público sobre sua vida, exibirá os vídeos
que gravou de Maria Rosa e comentará sobre a experiência de filmagem, enquanto Maria
Rosa, que não estará em cena (vive em Córdoba), ligará para ele durante a apresentação e
se colocará a disposição do público caso este queira lhe fazer alguma pergunta. Sílvio
também não estará em cena (por compromissos de trabalho), sendo representado por sua
mulher, que falará sobre a vida de seu marido “em tom testemunhal”. A obra se inicia e se
encerra com projeção de pessoas que estavam na Plaza de Mayo em 8 de julho de 2002 e
às quais são feitas duas perguntas: como foi esse dia e o que esperam fazer em 8 de julho
de 2007.
A obra enfatiza a dimensão processual do fazer teatral, revelando o trabalho
que antecede a apresentação, e se define claramente em torno de manifestações da presença
– e da ausência – dialogando com diversas maneiras de representação – gravações em
vídeo, a voz, a pintura, as fotografias, que são contrapostas à matéria viva (física e
presencial) da cena em andamento no tempo/espaço compartilhado pelos espectadores. Os
dois planos – presentação e representação – se alternam aqui não como ficção e realidade,
mas como presença e ausência, fugindo à dicotomia típica da encenação teatral.
Já Mi mamá e mi tía, além de ser interpretada pela mãe e tia reais da diretora
Viviana Tellas (e, eventualmente, por uma outra tia, quando esta se encontrava em Buenos
Aires), não era apresentada em um teatro e não eram cobrados ingressos para a
apresentação, e contava a história da família através de lembranças, vestidos, fotografias e
outros objetos evocativos do passado. Para Cornago, o espetáculo constituía-se
praticamente como “um ato privado, quase familiar, que acaba em um baile a que se
convida o público”, e, somados ao espaço não profissional e à entrada gratuita, contribuía
para “situar o ato na metade do caminho entre teatro e a apresentação documental”
(Cornago, 2005:24-5VI). Entretanto, se esse contexto no qual a apresentação estava inserida
fosse mudado (com cobrança de ingressos e apresentação em um espaço teatral), teríamos
o “evento teatral” plenamente configurado. O que era visto como autenticidade pode ser
facilmente percebido como um efeito de teatralidade, a naturalidade e a não-atuação sendo
percebidas exatamente como um “efeito de naturalidade” e uma minuciosa e detalhada
105
3.2 O Ator e suas Personas: Estar em cena e não ser um personagem?, ou Como pensar o
depoimento pessoal?
10
Na temporada de 2005, eram eles: Cláudio Dias, Odilon Esteves, José Walter Albinati, Marcelo Souza e
Silva, Ana Flávia Rennó, Cláudia Correa.
108
possui. A verdade do relato pessoal não é somente verbal, é também física, está inscrita e
escrita no corpo, na atitude, na maneira de olhar e de mover-se.
Em sintonia com essa necessidade de contato, Nicolas Bourriaud observa o
desejo coletivo de criação de novos espaços de convívio e de uma outra relação com o
objeto cultural que a internet e as mídias eletrônicas sinalizam (especialmente por seu
potencial interativo e pela capacidade de reunir elementos díspares e distantes), e o desejo
de muitos artistas de se concentrarem nas relações criadas por seus trabalhos e na invenção
de modelos de sociabilidade. O pensador francês enxerga a possibilidade de uma arte
relacional, que teria como foco a produção de “modos de convívio”, de formas e objetos
focados na produção de relação; dentro dessa estética “as reuniões, os encontros, as
manifestações, os diferentes tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os
locais de convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção de relações
representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais” (Bourriaud,
2009:40). O depoimento pessoal viabiliza essa relação e a possibilidade do encontro: em
Não desperdice... ele é realçado pelo partilhamento do espaço entre atores e público (o
único depoimento cuja relação espacial mantém uma disposição de frontalidade com os
espectadores, que estão sentados em cadeiras, é o de Ana Flávia Rennó), além dos outros
procedimentos citados – jogos, rituais, perguntas – e do testemunho em si, que se apresenta
como forma de comunicação pessoal e em primeira pessoa.
O processo de construção do depoimento se assemelha a um processo de
elaboração de qualquer outra dramaturgia calcada em histórias ou fatos verídicos. Os fatos
selecionados resultam de um recorte que, mesmo que não definido a priori, revelam uma
opção estética, calcada numa relação entre envolvimento e distanciamento, emoção e uma
certa frieza (ou mesmo humor) ao relembrar e narrar situações de grande peso emocional.
Dar relevo a algumas situações implica em dispensar, eliminar ou subestimar outras,
enfatizando não só as suas qualidades estruturais (isto é, seu funcionamento dentro da
estrutura do depoimento), mas as suas qualidades de ostentação. Como diz Marvin Carlson
(2010:52), “enquanto a estrutura enfatiza qualidades especiais que circundam o fenômeno,
a ostentação sugere algo sobre o fenômeno em si”. A inserção dos fatos e dos objetos
dentro da estrutura do depoimento obedece a uma lógica pessoal, que, no entanto, não
deixa de levar em conta as possibilidades de reverberação desses fatos, não só na
audiência, mas no sujeito que os conta, que, neste caso, é quem os vivenciou e neles
investe a ação de rememorar. Dessa forma esses objetos e situações são escolhidos por sua
109
11
Para aquele que estiver interessado em discutir sobre a questão da aura e da verdade cênica, o filme Jogo
de cena (2007), de Eduardo Coutinho, constitui-se em um interessante objeto de análise. Nele o cineasta
seleciona – através de um anúncio de jornal – mulheres dispostas a contarem suas histórias de vida. Alguns
desses depoimentos são filmados em um teatro do Rio de Janeiro, e alguns são interpretados por atrizes, entre
elas algumas conhecidas do grande público, como Marília Pera, Andréa Beltrão e Fernanda Torres. O jogo,
saber de quem é o depoimento real, perceber a “verdade” e a emoção do depoimento mesmo quando ele não
é “autêntico”, isto é, quando ele é interpretado por uma atriz, torna o filme extremamente cativante, e
possibilita enormes reflexões sobre esses tópicos.
110
àquele zero de atuação a que Renato Cohen se referiu, e remeteria mais a um happening,
por sua imprevisibilidade e a impossibilidade de repetição, que a um evento que pudesse
ser qualificado de teatro. Em Não desperdice, um espaço preexistente como o banheiro do
camarim utilizado por Cláudio em seu depoimento, é transformado em cenário pela
maneira como o ator o utiliza. Há uma apropriação do espaço, as ações são pensadas e
formatadas para aquele espaço específico, que frequentemente é escolhido por suas
qualidades intrínsecas.
Da mesma forma, os objetos são utilizados de forma a garantir a coerência, o
fluxo e a expressividade das cenas. Neste espetáculo podemos observar diversos momentos
em que eles assumem a condição de protagonistas da cena – as abreugrafias, o santinho e o
disco de José Walter; as fitas do senhor do Bonfim, o vinho de Cláudio; os quadros de
Odilon (figura 8) e Cláudia – não só garantindo o seu fluxo, mas contando, por sua própria
presença, a história vivida daquele que ali está (e dessa forma, por extensão, garantindo a
veracidade do contado, já que não se trata de objetos cênicos, isto é, que foram produzidos
para criarem um efeito). A sua força está na sua história, no seu passado que é trazido à
tona pelo depoente. Já a performatividade das ações é percebida, por exemplo, nas canções
que surgem em vários depoimentos, trazendo o foco do quê para o como, para o
desempenho do ator, para a sua expressividade enquanto intérprete, artesão. Em outros
momentos, serão a ocupação do espaço e a gestualidade, o desenho do movimento, seu
ritmo, as ações claramente ensaiadas e desenvolvidas, que deixarão clara a elaboração de
uma partitura pelo ator, revelando a sua atuação na forma de uma performance, do seu
desempenho. Assim, o uso do chão (Cláudia), a corrida pelo espaço (Odilon), o uso da
sombra e das mãos (Marcelo), não apenas nos remetem a criação de partituras de
movimento, são momentos em que a artesania e o desempenho do ator ficam claros e
sobrepõe-se (ou se amalgamam) aos fatos narrados.
A ação de roteirização do depoimento, com o estabelecimento de uma
sequência, o recorte dos fatos considerados relevantes, o ensaio e a repetição desse roteiro,
estabelecem um texto mais ou menos fixo, que cada um dos atores atualiza à sua maneira.
Em vários momentos essa fixação fica clara, quando textos que não são dos atores são
utilizados (Cláudio recita um poema de Nietzsche; José Walter, de Renê Barreto; Cláudia,
de Mario Quintana); já nas falas sobre o teatro, ao final de cada um dos depoimentos, o
texto possui nuances e complexidades que deixam claro que não são improvisados. Nesse
113
momento percebem-se mudanças no tom da voz, que adquire um aspecto mais aveludado,
confessional, aconchegante, traduzindo de uma maneira física e dando contornos
performativos, de um desempenho, ao enunciado feito pelo ator. O clima de intimidade e
cumplicidade criado retoma a questão do efeito, e permite-nos refletir sobre a construção
de uma persona do ator.
Temos aqui uma situação ímpar: o ator, sem tentar se aproximar da criação de
um outro deve, se não entreter a audiência, confrontá-la e travar um diálogo. Como nos
papéis sociais a que Goffman se referia, isso implica que o ator deve se comportar não
como se fosse outra pessoa, mas ele mesmo em um outro estado. Esse estado diferente de
sentir ou de ser envolve, de certa forma, uma tensão entre o mimético e o real (causada
pela artificialidade da situação na qual o ator se encontra), e, especialmente, uma dissensão
entre os vários “estados” que um ser humano possui. O ator se coloca numa espécie de
entre-lugar, no limite entre o real e o imaginário, e que se liga ao que Schechner chama de
operação de “dupla consciência”, que envolve tanto o performer quanto a audiência: na
estrutura de jogo instaurada pela encenação, “o performer não é ele mesmo (por causa das
operações de ilusão), mas também não é não-si-mesmo (por causa das operações de
realidade” (Carlson, 2010:67)12. Quando essas operações de ilusão não envolvem a
construção de um universo ficcional que engloba a criação de seres ficcionais, como é o
caso do depoimento pessoal, a ação de colocar-se em um estado de atuação, este estado de
ser e não-ser, passa pela criação de uma persona, que permite ao ator distanciar-se do seu
comportamento cotidiano, sem deixar de ser ele-mesmo.
Entender os limites dessa persona, atuar com ela sem transformá-la em um
outro, mas permitir que ela revele algum aspecto de si-mesmo, este é um grande desafio do
ator contemporâneo. Por isso ele é muitas vezes nomeado como um performer, por essa
necessidade de, criando, continuar a ser ele mesmo. Ao mesmo tempo distanciado do seu
eu cotidiano e sempre em contato consigo mesmo, o ator se coloca num estado fronteiriço,
articulando o que é para Féral um dos princípios da teatralidade, essa ação do ator de
aproximar-se e distanciar-se do seu próprio eu. Para ela, a teatralidade do ator se situa
nesse distanciamento que o ator opera entre ele como “eu” e ele como “outro”, num
12
Carlson chama a atenção para o que Bert States, um teórico da fenomenologia, denomina de “visão
binocular”, decorrente do fato do teatro utilizar objetos, situações e pessoas do dia a dia como matéria prima.
Uma vez que “objetos e ações na performance não são nem totalmente „reais‟ nem totalmente „ilusórios‟,
mas compartilham aspectos de cada um”, esses objetos trazem uma dupla relação que a plateia precisa
realizar, de agregar-se a “uma certa espécie de real”, em tensão contínua com o mimético e que confere um
poder peculiar ao teatro (Cf. Carlson, 2010:66).
114
13
Lembramos aqui que, para Féral, a teatralidade é um fenômeno que ultrapassa os limites do teatro, e pode
ser percebida em outras formas artísticas – como dança, ópera e outros espetáculos – e no cotidiano, atribuída
pelo olhar daquele que vê (cf. Féral, 2004).
115
presença e o seu trabalho em cena para a relação que suas ações estabelecem com os
espectadores ou para a execução em si da ação, que ao se descolarem do plano ficcional,
mergulham a cena numa concretude que se impõe como um evento. Como um dançarino, o
ator se fixa na qualidade, no tempo e no ritmo que essas ações possuem. Seu foco é a
execução, deixando as possíveis interpretações do seu modo de agir em segundo plano.
No centro dessa opção pela presença ou pela representação está a tensão entre a
performatividade das ações realizadas pelo ator e a figuração (o mergulho no universo
criado pela fábula), entre a percepção da ação como tal – o seu desempenho (performance)
– e o nublamento do “como”, permitindo ao espectador imergir no “quê”, desprendendo-se
da história narrada.
Se fazer e mostrar-se fazendo são atividades típicas do performer15, para o ator
a opção de centrar as atenções no desempenho, na forma como a ação é executada pode
representar uma encruzilhada: ao mergulhar na performatividade da ação, que não é mais
construída para dar vida e/ou coerência a um outro, mas que existe pela forma como é
desempenhada, o ator depara-se com a necessidade de mudar os parâmetros de seu
trabalho. Há um deslizamento para a presença do ator, para a performatividade de suas
ações. Se não ocorre um rompimento com a possibilidade de atribuição de sentidos 16, esta
se desloca do plano narrativo para o plano do fazer. É assim que Féral aproxima o ator do
performer: quando introduz o conceito de Teatro Performativo como alternativa ao
conceito de Teatro Pós-Dramático criado por Lehmann para discutir o teatro
contemporâneo, ela enfatiza a “colocação em primeiro plano da execução de ações por
parte dos performers, que cantam, dançam, contam, às vezes encarnam o personagem, mas
que na sequência saem dele completamente” (Féral, 2008:202). É assim, que podemos
enxergar, por exemplo, o desempenho da atriz Dani Barros durante o espetáculo Estamira:
15
Quando Richard Schechner trabalhou de forma ampliada o conceito de performance, englobando tanto as
performances artísticas quanto as cotidianas e as ritualísticas, postulou que fazer performance era um ato que
podia ser entendido em relação a Ser, equivalente à existência em si mesma, o comportamento dos seres;
Fazer, a atividade de tudo que existe; Mostrar-se fazendo, que é precisamente o performar, a demonstração
da ação equivalendo a mostrar-se em espetáculo; e Explicar ações demonstradas, o trabalho dos estudos da
performance (cf. Schechner, 2003b:26). A segunda e a terceira noção são típicas da performance artística,
espetacular, onde o ator/performer executa uma ação para alguém que o assiste. Fazer e especialmente
mostrar o fazer podem levar a um desligamento ou distanciamento do plano da representação em função da
presença.
16
Em Performance, uma introdução crítica, Marvin Carlson discute, entre outros aspectos da relação entre a
Arte da Performance e o teatro, como os pós-estruturalistas observam a possibilidade de um descentramento,
no qual não se chega a atribuição de um sentido final para os signos: “Esse afastamento de um centro, de um
lugar fixo de sentido original, traz todo o discurso, toda a ação e toda a performance para um jogo contínuo
de significação, em que os signos se diferenciam uns dos outros, mas em que um sentido final e autenticado
de qualquer signo é sempre desprezado” (Carlson, 2010, 153).
118
em meio a uma cena altamente dramática, ela veste uma máscara de gorila, canta uma
música carnavalesca e executa uma dança clownesca. A ação não apenas opera uma quebra
na dramaticidade da cena, ela também produz uma instabilidade na percepção (o
espectador abandona a história do personagem que dá título à peça e passa seguir os
movimentos ritmados e circenses da performer), além de exigir da atriz o domínio técnico
para executar a sua performance sustentando a atenção da plateia. Há uma mudança de
paradigma, o ator é levado a fazer constantes mudanças no seu registro de atuação: o
processo de encarnação de um personagem (Dani Barros alterando sua voz e seu corpo
para dar coerência e vida cênica a Estamira) é substituído quase instantaneamente pela
execução performática da ação (Dani Barros, envergando uma máscara e executando uma
ação que remete à farsa e à paródia, e que se impõe pelo seu desempenho), trazendo o
corpo do ator e sua competência técnica para o primeiro plano.
Nesse tipo de registro, no qual a performatividade das ações realizadas pelo
ator é afirmada, não estamos diante da fisicalidade “audaciosa” que o Teatro físico
propunha (embora ela possa ocorrer), mas diante de uma atuação baseada
fundamentalmente no jogo. Tomemos como exemplo uma cena do espetáculo Não
desperdice sua única vida. No seu depoimento pessoal a atriz Ana Flavia Rennó fala da
repulsa em comer alface e da sucessão de ginásticas que já praticou – “já fiz tanta ginástica
que no final acabo misturando todas”, e cita handebol (já foi da equipe do colégio),
basquetebol, natação, musculação, body-combat, spinning, yoga e pilates –, menciona os
vários regimes feitos e sobre a alface, diz: “É péssimo comer alface, eu como por pura
obrigação. (...) Me dá uma coisa aqui dentro, um arrepio... (...) Eu como porque tem fibra”
(texto recolhido a partir do vídeo do espetáculo). Na cena coletiva, cada um dos atores
encarna um personagem, anônimo, identificado por suas características ou funções 17, ela
aparece como “A louca da academia”, que retoma esses temas: em uma de suas cenas, ela
surge de quatro, latindo e rosnando como um cão, e põe-se a devorar um prato de alface.
Duas coisas chamam a atenção nessa cena: primeiramente a forma como a memória
pessoal é retomada e trabalhada dentro do contexto ficcional, da personagem A louca da
academia; segundo, como a cena se desenvolve nesse plano performativo, isto é, há um
17
No início dessa cena coletiva, após os depoimentos, o ator José Walter explica à plateia que essas
personagens “não tem uma história, uma definição psicológica propriamente, a exemplo do que acontecia nos
autos da idade média, quando as personagens recebiam o nome das suas funções, sociais ou morais. Era a
tecelã, o sapateiro, a humildade.” Nomeia a seguir o que cada um representa: O homem das oportunidades, O
ator sem personagem, O homem das etiquetas, A mulher da fila, O apresentador do mundo e A louca da
academia.
119
descolamento do plano narrativo e a ação ganha importância por si, não por uma
repercussão dentro de um enredo, o jogo performer-cão-alface é o que é colocado em cena.
A ação é feita não para dar uma dimensão do personagem, mas pela sua possibilidade de
jogo, escapando de uma função puramente narrativa e atingindo uma dimensão
performativa.
Diversos outros espetáculos também se organizam dentro desse âmbito, em que
a ação e sua performatividade é afirmada. No Clube do fracasso, há uma série de
movimentos coreografados e ações partiturizadas que envolvem uma disponibilidade
corporal e uma alteração nos padrões cotidianos de movimentos, além de canções e de
músicas executadas ao vivo. Tudo isso desloca a atenção da plateia para a forma do
espetáculo, para a maneira como essas ações são realizadas. A própria peça é estruturada
como “jogos”18, e observamos no primeiro deles, Primeiras histórias, o mesmo processo de
elaboração das histórias pessoais: é o depoimento de cada um dos atores que é
transformado em cena19, relatando seus primeiros fracassos pessoais: o ator Heinz
Limaverde conta a história de sua não-participação em uma peça infantil quando tinha oito
anos, Marina Mendo conta como ainda fazia xixi no pré-primário e foi humilhada pela
freira, Priscilla Colombi fala como foi rejeitada pelas outras crianças do bairro por ser
possessiva com seus brinquedos, Lisandro Belloto conta como fracassou em seu primeiro
torneio de tênis profissional aos 12 anos e Francisco de los Santos relata sua primeira
desilusão amorosa. A corporalidade exacerbada remete ao teatro físico, sem, contudo,
chegar ao virtuosismo e ao “espetacular” (por exemplo, uma cena onde se fala sobre o
medo é acompanhada de quedas dos atores, porém sem ir a extremos físicos como nos
espetáculos do La La La Humam Steps ou do Cena 11).
Estamos, aí, devidamente inseridos no campo da performatividade do ator
(Féral, 2008), onde é evidenciado o aspecto lúdico da ação, mostrando-se como jogo e
como uma apresentação. Nos trabalhos do grupo Zona de Interferência, as ações surgiam
como consequência dessa possibilidade de jogo, tinham sua ludicidade afirmada e
compartilhada com a plateia. Em De quem é o meu espaço?, uma das cenas iniciais era um
18
Ao longo do espetáculo são projetados intertítulos, que dividem e trazem a denominação das suas partes:
Jogo de Cartas (Tute al médio), Jogo: Primeiras Histórias, Jogo: Amor em Pedaços, Jogo: Tantas vezes tenho
sido ridículo, Jogo: Meu destino é ser (e)star, Jogo: Quereres, Jogo: Sobre o sucesso ou O sabor de vencer,
Jogo: Fracasse outra vez, fracasse melhor.
19
Desenvolveremos a problemática do depoimento pessoal no item seguinte.
120
Vimos no início deste capítulo que há uma tendência no teatro que tenta
superar o fictício, buscando “uma representação que não se apresenta como tal”, como uma
20
Discutiremos ao final deste capítulo a problemática dessa questão de nomenclatura, que inclui tanto a
distinção entre ator, bailarino e performer como as possibilidades de nomeação e de compreensão de seu
estar-em-cena.
121
gestos e ações. Estariam assim, livres dos “vícios” dos profissionais do teatro, aptos a
proporcionar uma outra espécie de vivência e compartilhamento com os espectadores21.
Recoloquemos a questão: o que ocorre quando o ator/performer se vê colocado
numa situação de exposição e de artificialidade que é a da cena teatral, mesmo sem buscar
a representação? Nos espetáculos que atuei como bailarino, minha necessidade de
construção de um corpo não-cotidiano era muito clara, e as minhas ações e gestos eram
realizadas de uma forma dilatada, onde o acionamento de meu treino técnico de dança
(meu treinamento pré-expressivo) era feito de uma maneira ao mesmo tempo intencional e
automática. Mesmo nos meus trabalhos com o Zona de Interferência, havia momentos em
que eu acionava esse corpo treinado: em De quem é meu espaço?, por exemplo, havia
sequências coreográficas, de dança, em que os próprios movimentos punham em ação essa
memória muscular (figura 06). Sua dinâmica, trajeto no espaço, velocidade, pressupunham
e ativavam esse corpo treinado. Enquanto bailarino, eu estava consciente de estar nesse
estado-de-atuação que me investia numa espécie de persona, a do bailarino, cujo corpo
deve ser expressivo e prender o olhar do espectador, criando imagens e figuras que se
esvanecem tão logo são formadas. O fluxo e a dinâmica dos movimentos, em especial
aqueles improvisados (que era o caso daqueles que eu realizava nos espetáculos do Zona,
seguindo apenas uma espécie de roteiro de movimentos e de figuras básicas que eu havia
criado e que estavam fixadas em minha memória), exigiam o comprometimento de todo o
meu corpo, e me levavam a um distanciamento do meu eu-cotidiano, sem contudo me levar
à preocupar-me em ser ou mostrar um outro em cena.
Mas em que consistia a minha presença cênica, quando eu não buscava e nem
era exigido que eu possuísse uma dilatação de minha energia, um corpo dilatado ou
espetacular – fictício – que garantisse o olhar do espectador? Como disse na Introdução
desse trabalho, a cena inicial de Corpos Subjetivos em Espaços Móveis me colocava diante
do paradoxo de ser eu mesmo, mas ter um comportamento que não era propriamente meu,
ou seja, era eu tendo de cumprir uma tarefa específica, que exigia de mim um
comportamento não usual, que eu não teria no dia-a-dia. Se esse comportamento não
21
Nos trabalhos que realizei com o grupo Zona de Interferência eu sentia que me distanciava mais e mais do
que havia sido meu objeto de estudo durante os (digamos assim) meus anos de formação, no curso técnico de
formação de atores no Teatro Universitário da UFMG, quanto no meu bacharelado em direção teatral na
ECA-USP, além dos diversos trabalhos que realizei como ator e nos quais eu buscava sempre me aprimorar
enquanto intérprete. Enquanto atuava com o Zona, não era a interpretação ou a representação que eu buscava,
mas apenas estar em uma situação cênica, desempenhando a contento a tarefa que eu me propunha, sem ter
como parâmetro a coerência psicológica daquelas ações e o efeito que elas estariam causando no espectador.
123
estabelecia uma ruptura com meu self, impunha uma distância, dentro da qual eu avaliava
minhas ações e decidia qual a melhor estratégia de abordagem do público e a melhor
maneira de cumprir essa tarefa, de oferecer meus préstimos e ajudar aquelas pessoas no
que estivesse ao meu alcance. O estranhamento surgia quando eu abordava ou era
abordado por alguém que me conhecia previamente, de outras situações: sem negar a
minha identidade como Daniel e sem fugir de uma conversação que poderia envolver
assuntos de foro mais íntimo, eu tinha de sustentar essa situação performática e
desempenhar meu “papel”, e o cumprimento da tarefa que eu me propunha me afastava de
meu comportamento habitual.
contingenciamento, na forma como percebemos tanto o trabalho do ator como a ação por
ele realizada em cena: esta é artificializada e envolvida em um parêntese que a diferencia
de outras ações e eventos cotidianos; habitando o palco, a presença do ator é percebida
como estado de atuação. Instaura-se uma possibilidade, conferida por esse estado de
atuação, tanto de se ultrapassar os limites do Eu sem, contudo, romper com a própria ideia
de pessoa, como de ficar neutro, não-representar.
No início de Corpos Subjetivos minha ação era e ao mesmo tempo não era
percebida como atuação: mobilizado em torno da realização da tarefa que me impusera,
assumia uma persona, a do ator/performer que precisava jogar com as pessoas, e atuar
bem significava conseguir estabelecer esse jogo com o público. Ao longo do espetáculo eu
também me deparava com uma série de momentos nos quais não havia um “subtexto” no
qual eu ancorasse a realização de minhas ações. Instalar as câmaras de segurança, tirar da
maleta os vários objetos e espalhá-los nos nichos do canto que eu ocupava, tirar o paletó,
trocar a camisa, todas essas ações eram feitas sem a âncora de um personagem, sem a
máscara ou a intenção de retratar um outro (figura 09). Meu foco ao realizar as ações era o
seu ritmo e o tônus que eu impunha a elas: ao empurrar os cantos em que se encontravam
os performers, precisava escolher a velocidade com que eu executaria essa ação, se deveria
fazê-lo com leveza ou conferindo peso à ação de empurrar. Como um bailarino, estava
interessado no como eu devia realizar essa ação, na disposição espacial dos cantos e no
tempo-ritmo que eu impunha ao movimento dos cantos, levando em conta as
possibilidades e impossibilidades do olhar dos espectadores, cuja disposição ao redor e
entre os cantos não era definida a priori – eram os próprios espectadores que escolhiam
onde se colocar e o que observar dentro do espaço cênico – e influíam diretamente na
minha ação. Porém, diversamente de um bailarino que atua de uma forma extracotidiana,
eu não buscava um corpo ficcional que me diferenciasse de mim mesmo em situações
cotidianas. Era o próprio evento teatral que conferia a mim e a meu corpo esse estado-de-
atuação, eu não acionava os procedimentos aos quais estava habituado por meu treino e
que me reenviavam à minha antiga concepção de presença cênica.
Esse estado-de-atuação que me envolvia não impunha a criação de um corpo
fictício. As ações não deveriam ser realizadas com um tônus ou uma qualidade que lhes
conferisse uma dimensão espetacular, mas deveriam ter sua simplicidade e sua
cotidianidade ressaltadas: empurrar, arrumar, tirar ou pôr uma peça de roupa, tudo isso
deveria ser feito sem uma intenção determinada previamente à cena, o foco era a realização
125
22
Carlson, citando o artigo “Geographies of Learning: Theater Studies, Performance, and the
„Performative‟”, de Jill Dollan, fala na possibilidade do teatro em gerar uma comunidade, resultante do fato
das pessoas se reunirem para ver e/ou experimentarem algo juntas. Dolan fala em “comprometimento”, em
“comprometer-se com” ao invés de “observar” ou “contemplar” apontando para uma preocupação-chave, que
se relaciona às negociações culturais e à troca que ocorrem durante a performance teatral (Carlson, 2010, p.
222-24). Enquanto atividade cultural, o teatro tem como base a presença, a corporalidade das pessoas, e tem
como um dos principais fatores de sua potência o fato de ser experimentado “por um indivíduo que é também
parte de um grupo, de modo que as relações sociais são construídas na própria experiência” (idem, p. 224).
126
relações entre os personagens. O termo actante, que muitos autores hoje utilizam para se
referir ao personagem, significa, para Greimas (que formulou, a partir do trabalho de
Souriau e Propp, um modelo actancial que é frequentemente aplicado à análise teatral),
“aquele que realiza ou que sofre o ato, independente de qualquer outra determinação”,
podendo ser meros figurantes ou qualquer outra entidade que, mesmo de forma passiva,
participe do processo da cena. Assim, actante “designará um tipo de unidade sintáxica, de
caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento semântico ou
ideológico” (Greimas e Courtés, 1979:12). Disto resulta que o actante não pode
simplesmente ser identificado à pessoa do ator porque, como observa o próprio Greimas,
ele “cobre não só seres humanos mas também animais, objetos e conceitos” (p. 13). Como
explica Anne Ubersfeld, também não se pode identificar actante e personagem teatral
porque
23
Em relação à maneira como o personagem pode se apresentar, a partir do texto dramático, Ubersfeld
observa que “podemos tomar a personagem como uma abstração, um limite, o cruzamento de uma série ou
de funções independentes – ou então podemos tomá-la como o agregado de elementos não autônomos –, mas
não podemos negá-la: dizer que uma noção a é a relação, a adição ou o produto de dois elementos b e c, não
significa que a não exista (...). Que a personagem não seja uma substância, mas uma produção, que ela esteja
no cruzamento de funções ou, mais precisamente, que ela constitua a intersecção de vários conjuntos (no
sentido matemático do termo), não significa que não tenhamos de considerá-la, mesmo que fosse de um
ponto de vista puramente linguístico: ela é um sujeito de enunciação. Ela é o sujeito de um discurso marcado
com o seu nome e o ator que assumir esse nome deverá proferir esse discurso.” (Ubersfeld, 2005:74).
129
I
…everything that is perceived bears reference to a particular fictional character.
II
… is perceived in its phenomenality, as his particular being-in-the world.
III
…puede producir la manifestación de una realidad escondida, del mismo modo que la alienación de
mentiras que, según el realizador iraní es intrínseca al arte cinematográfico, puede aparecer una verdad más
profunda. (…) …lo real puede hacer transparente el artificio.
IV
...crear un efecto de realidad que estuviera más allá de lo ficticio, de lo que no es verdadero, del engaño y
lo teatral.
V
En cualquier caso, la mirada teatral actúa sobre el mundo exterior como si se tratase de una operación
quirúrgica, practicando cortes, descentramientos y focalizaciones con el propósito de hacer visible en una
dimensión simbólica aquello que no lo es en el campo de la realidad, cuestionando sus categorías, límites y
convenciones
VI
...un acto privado, casi familiar, que acaba en un baile al que se invita al público... (...) ... situar el acto a
mitad de camino entre el teatro y la presentación documental.
VII
...en estructuras simbólicas trabajadas por sus pulsiones y sus deseos en tanto sujeto, sujeto en proceso,
explorando su interior, su doble, su otro, a fin de hacerlo hablar.
VIII
La teatralidad así percibida sería no solamente la emergencia de un quiebre en el espacio, de una división
de lo real para que pueda surgir una alteridad, sino la constitución misma de este espacio hecha por la mirada
del espectador, una mirada que, lejos de ser pasiva, constituye la condición de la emergencia de la teatralidad,
arrastrando verdaderamente una modificación cualitativa de las relaciones entre los sujetos.
IX
... una representación que no se presenta como tal, una no-actuación,
X
...sería conveniente referirse a un efecto de actuación, es decir, de representación, frente a un efecto de no-
representación...
131
representar nada. A intencionalidade das ações e atividades humanas vem sendo debatida
há muito, e os teóricos dos Estudos da Performance se debruçam sobre esse tópico desde
meados dos anos sessenta do século passado. Michael Kirby (1987) destaca que a intenção
que marca a realização de uma apresentação feita diante de uma audiência modifica não só
a postura dessa audiência, mas afeta igualmente àquele que a realiza. É o que distingue as
apresentações artísticas de outros atos coletivos:
Como o teatro, rituais religiosos e cerimônias são direcionadas para fora (outer-
directed), mas o seu intento não é afetar uma audiência, mas atingir um propósito
funcional no mundo metafísico. (...) Estes rituais são designados e realizados
(performed) principalmente por seu fim, mais do que por seu efeito sobre uma
audiência que porventura esteja presente. (Kirby, 1987:XII – XIIII)
1
Kirby usa os termos “to feign, to simulate, to represent, to impersonate”, como sinônimos de “acting”,
opondo-o à ação de “ser” e ressalvando que nem toda performance artística envolve a “simulação”, isto é, a
representação: “Como os Happenings demonstraram, nem todo desempenho é atuação. Embora atuação seja
algumas vezes usada, os performers nos Happenings geralmente tendem a „ser‟ nada nem ninguém além
deles mesmos; eles não representam, ou fingem estar em um tempo ou lugar diferentes daquele do
espectador. Eles caminham, correm, dizem palavras, cantam, lavam pratos, operam máquinas e maquinário
de palco e assim por diante, mas eles não fingem ou personificam (Kirby, 1987:03) (As Happenings
demonstrated, not all performing is acting. Although acting was sometimes used, the performers in
Happenings generally tended to “be” nobody or nothing other than themselves; nor did they represent, or
pretended to be in, a time or place different from that of the spectator. They walked, ran, said words, sang,
washed dishes, swept, operated machines and stage devices, and so forth, but they did not feign or
impersonate.)
135
realiza suas ações, implicando ainda numa transformação nas relações com o público.
Similarmente e em sentido inverso, podemos falar de um “avizinhamento” da Performance
às práticas teatrais, inclusive no que toca à representação de papéis. Carlson chama a
atenção para um tipo de performance “autoexploratória”, baseada na criação de personas
ou personagens, na qual o performer “não lidava com experiência autobiográfica ou da
„vida real‟, mas com a exploração, via performance, de eus alternativos, imaginários e
mesmo míticos” (Carlson, 2010:172), criando e desenvolvendo possibilidades de “vidas de
fantasia”4.
A aproximação do trabalho do ator e do performer se dá em vários níveis e
aspectos. De uma forma clara, observamos que há um constante apelo à voz autoral do
ator. Dessa maneira, podemos dizer que este passa a atuar numa “perspectiva
performática”, no sentido não só de buscar uma não-representação (ver item 4.2), mas
também do desempenho das ações e da sua própria contribuição para a autoria do
espetáculo. Heinz Limaverde5, ator da Cia Rústica, protagonista do espetáculo O fantástico
circo teatro de um homem só, observando a forma que uma peça teatral é construída,
percebe a transformação pela qual passou o seu ofício no sentido da contribuição que o
ator dá para a montagem da encenação:
Antes, os grupos que eu iniciei, eram uma coisa muito mais “teatrão”, era leitura
na mesa, depois na sala, já “marcando”. Eu praticamente não criava nada, o
diretor fazia o desenho da cena, “vai para lá, vem para cá, senta ali”. Agora é
tudo... a gente cria, vai fazendo, improvisando, e dando sugestões também para a
direção, uma mistura de tudo isso, muito diferente de quando eu comecei. (...)
Agora é muito mais autoral. (...) A equipe inteira, e a gente também, sabe que
tem a mão da gente em tudo, em todo esse processo, desde o começo, do texto,
da cena, da marca, do figurino, a gente montava o figurino... (Limaverde, 2013.
Ver anexo, p. 218-19)
4
Carlson dá vários exemplos, entre eles o de Eleanor Antin que, nos anos 70 do século passado, questionou
os limites da autodefinição, explorando “versões alternativa e exóticas” do seu self, que incluíram “um rei,
uma bailarina, uma estrela de cinema e uma enfermeira, cada uma desenvolvida em um certo número de anos
por meio de uma variedade de performances” (Carlson, 2010:173). A exploração de uma persona masculina
por parte das mulheres e a de uma persona feminina por parte dos homens tem uma longa tradição não só
dentro do teatro convencional, mas também nas performances tipo “Camp”, e atualmente é bastante comum
em shows e boates, como atestam as diversas drag queens. Veremos adiante como o ator Heinz Limaverde
explora esse tipo de persona para a construção de seus personagens no palco.
5
Heinz Limaverde nasceu no Crato, no Ceará, em 1975, e é ator e figurinista. Tendo feito sua carreira
artística no Rio Grande do Sul, recebeu os prêmios Açorianos e Braskem 2008 de melhor ator por A Megera
Domada, e Braskem 2006 de melhor ator por Sonho de Uma Noite de Verão.
137
E a peça, ela é muito cheia de coisas de palhaços. Tem gestos, assim, quando eu
falo “Ah, esses remédios são tudo dopantes.”, eu faço assim no banco [faz um
gesto de escorregar], é sutilmente, entende, mas, eu acho que são coisas que,
quem é palhaço, sabe o filtro que tem ali, de palhaço. (...) E, também, acho que o
palhaço tem isso: ele se desnuda, você coloca o seu ridículo em cena. E ali tem
isso, eu me desnudo, eu apareço muitas vezes como Dani, eu exponho, se eu
estou emocionada eu exponho a emoção, e eu acho que isso é uma pegada... é a
linguagem do palhaço. (Barros, 2013. Anexo, p. 225-26)
O que observamos durante a nossa pesquisa, ao ouvir a voz dos atores, que são
os que diretamente vivenciam esse processo de transformação das tarefas e da forma de
trabalho no palco, é que esta aproximação entre o ator e o performer se dá de uma forma
sutil e irreversível, abrangendo não só questões como a da autoria, mas a maneira como as
6
Danielle Barros, conhecida artísticamente como Dani Barros, é atriz formada pela UniRio, tendo cursado a
Escola Nacional de Circo, de 1992 a 1994 e integrado o grupo Os Fodidos Privilegiados, de 1996 a 2003. Em
1995, iniciou o projeto Doutores Palhaços em hospitais do Rio, promovido pela Fundação Theodora (Suíça)
e, em 1998, participa da fundação do projeto Doutores da Alegria, permanecendo nele até 2008.
138
O conceito de jogo é aqui utilizado de uma forma ampliada, não apenas como
um jogo dramático: o ator joga com o seu peso, improvisando e compondo uma dança; ele
joga com a movimentação do outro e se movimenta não buscando um efeito dramático que
se baseia no conteúdo ficcional da cena, mas na relação estabelecida naquele momento
pela ação do seu parceiro, “contrapondo ou entrando na dele”. Há um deslocamento na
percepção e na intenção do ator; movimentação e gesto não são estabelecidos por um
possível efeito sobre a plateia, mas pela interação e jogo que ocorre no momento exato da
cena. “A necessidade do jogo é o jogo” (Guénoun, 2004:131), a dinâmica e a forma da
cena são estabelecidos durante a sua execução, o jogo entre os atores as determinam; o
próprio sentido da cena, conquanto marcado pela estrutura na qual ela se encaixa, desloca-
se de uma visão apriorística, que privilegia um efeito pré-concebido, para o aqui-agora da
7
Odilon Esteves é ator formado pelo Curso Profissionalizante de Teatro do Palácio das Artes/Cefar
(BH/MG) e graduado em Artes Cênicas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É membro-
fundador da Cia. Luna Lunera, de Belo Horizonte.
139
8
Um dos pontos que pesquisamos no início do trabalho do Zona de Interferência foi justamente as mudanças,
diferenças e nuances que ocorrem durante o jogo improvisacional. Durante as jams podíamos observar
momentos de extrema plasticidade ou intensidade física ou emocional, seguidos de outros de esvaziamento e,
digamos assim, de pouco interesse cênico. Eu, especialmente, me perguntava que qualidades e fatores
estavam envolvidos naquele processo, e o que interferia nesse jogo improvisacional. A busca por esses
fatores de interferência foi um dos motivos para a constituição do grupo.
140
Também Dani Barros vê em seu trabalho essa busca, percebendo ainda que
os espetáculos teatrais jogam de forma diferente com essa possibilidade de oscilação entre
a representação e a presentação:
... aí eu acho que [a peça] tem o sentido da performance, que é você estar no aqui
e agora. (...) E eu acho que esse é o sentido de performance que a gente tem de
buscar, que é o presente, que é o verdadeiro, o aqui, o agora. (...) É que eu acho
que têm peças que têm níveis... que a coisa se apresenta mais ali, na hora, a coisa
acontece mais ali, na hora. (...) ... quando eu olho para a frente eu estou buscando
relação de verdade com a plateia. Isso é um elemento performático. Mas eu acho
que, o tempo todo – o tempo todo não, têm peças mais propícias e têm atores que
são mais propícios a isso. (Barros, 2013. Anexo, p. 231-33)
9
Como Odilon, Marcelo também se formou no Curso Profissionalizante de Teatro do Palácio das Artes/Cefar
(BH/MG), com o espetáculo Perdoa-me por me traíres (2000), sendo um dos fundadores da Cia. Luna
Lunera.
142
Nos processos que viemos observando nessa pesquisa pudemos constatar que
há uma tendência a se abdicar de um personagem de ficção para a utilização das memórias
e da própria identidade do ator, criando um outro tipo de personagem, algo como uma
persona de si mesmo, que se apresenta não como uma máscara, mas um recorte da pessoa
que é colocado em cena. De maneira semelhante à maneira como trabalha em relação a um
personagem que é construído a partir de uma ficção, o ator, criando a partir de suas
memórias, quando é posto em uma situação cênica se distancia e se diferencia do seu eu
cotidiano, num trajeto que evidencia justamente o fato de o ator tratar a sua autobiografia
como um material de trabalho, permitindo-nos ainda discutir a memória como uma
ferramenta para a sua atuação.
A memória aqui atua não apenas como um “atualizador” da ação 10. Ela é ao
mesmo tempo filtro – pois o vivido passa por um permanente processo de recriação, no
próprio momento de sua rememoração – e um lugar de diálogo com a experiência do
sujeito (ou dos sujeitos, se incluirmos nesse campo o espectador, aquele que presencia o
ato de rememoração), que está em permanente transformação:
10
Falando desse aspecto da memória como aquilo que atualiza a ação ensaiada e aprendida, Yedda Chaves
pondera que “a capacidade de relembrar o fluxo vivido da ação está fundamentado na memória, um dos
aspectos cognitivos implicados no trabalho do ator no momento de criação de materiais. Porém, a memória
que nos interessa aqui é aquela do instante da cena, no qual o ator está em processo.” (Chaves, 2009:175). O
ator vive e depende de sua capacidade de atualizar o aprendido, equilibrando-se entre o imediato do presente,
a sensação imediata, e tudo aquilo que foi previamente planejado e ensaiado, um constante exercício de uma
memória que envolve corpo e mente. O material criado precisa ser re-apresentado, revivido no instante
preciso da cena, mantendo – dilema do ator – o frescor e a intensidade do momento de sua criação.
143
de sons, cheiros, palavras, luminosidades, ações realizadas, roupas e objetos, de algo que
constitui a atmosfera de um dado evento, num processo de atualização que envolve a
própria re-construção dessa memória. Trata-se aqui, como pontua Patrícia Leonardelli
(2009:195), baseando-se nos estudos de Ivan Izquierdo e Antonio Damásio, de pensar o
estudo e conceito de memória não como “faculdade da mente pensante”, mas como “fluxo
do corpo pensante (corpus cogitans)” (grifos da autora). Pensar o processo de
rememoração enquanto uma forma de atualização daquilo que foi vivido, permite-nos
incluir aí não só o corpo do ator – que muitas vezes busca nesse processo a qualidade da
“energia” e da sensação que experimentara na situação evocada –, mas a transformação
desse vivido, que é distorcido e recriado nesse atualizar. Assim, a noção de memória
apresenta-se não mais “como evocação do passado fenomenológico, passível de todas as
imprecisões que implicam em registrar e evocar algo que não está mais apresentado aos
sentidos (a retenção), mas como recriação permanente do vivido em circuitos permeáveis.”
(p.195).
O uso de material pessoal do ator, e especialmente o depoimento
autobiográfico, põe em relevo esse aspecto da memória, de reconfigurar o vivido e, de
certa forma, de criação que esse rememorar envolve. As lacunas e imprecisões são
preenchidas pelo ator, num processo que, se não implica numa ficcionalização do real, é
permeado por uma maneira subjetiva e pessoal de apreender esse real. A própria
possibilidade de se apreender o real – como diria José Sánchez, o próprio real escapa à
sujeição da representação: “toda representação é sempre a representação de uma ilusão,
mais ou menos compartilhada, a qual denominamos realidade” (Sánchez, 2007:37III) –, é
colocada em xeque aqui. Na mesma linha de Sánchez, Maryvonne Saison distingue entre
“Realidade”, com maiúscula, que designa “a imagem global e coerente do mundo”,
invocando o “real”, por oposição a “realidade”, com minúscula, “que designa uma
representação, correspondente a um ponto de vista” (Saison, 1998:43IV). As realidades
colocadas ou expostas no palco através dos depoimentos autobiográficos dos atores
correspondem a pontos de vista desses criadores, uma visão da Realidade filtrada pela
memória e pelo aparato cênico, que não tem por objetivo nem reproduzir fielmente, nem
ocultar esse real no qual elas se baseiam e do qual partem.
A impossibilidade de uma apreensão “global” do real também é percebida
pelos atores: Odilon Esteves observa que esse processo de narração a partir da memória
144
seria tão ficção quanto qualquer história de qualquer pessoa do mundo ao contar
uma passagem da própria vida. Então, sendo assim, tudo é ficção, toda a vida é
ficção, porque é a forma como eu consigo narrar as experiências que eu vivi,
porque tem a ver com a linguagem que eu tenho, com a forma como eu
conseguia nomear as coisas que eu sentia daquela maneira. (Esteves, 2013.
Anexo, p. 176).
- ... porque uma coisa é você fazer esse tipo de compartilhamento com pessoas
próximas, com os seus pares. E quando você abre isso para todos, isso muitas
vezes expõe um grau de intimidade que pode soar constrangedor para quem
conta, que pode soar banal e foi uma etapa muito interessante, porque nesse
momento do confronto com o público, de uma forma não verbal você percebe,
como ator, como aquela sua história está reverberando efetivamente e, de algum
modo, até onde você, como ator, está disposto a lidar com esses depoimentos.
(Souza e Lima, 2013. Anexo, p. 177)
- Exatamente por isso, porque ele [o palhaço] me coloca em cena com todas as
minhas fragilidades, ele me expõe, não fazia sentido eu fazer Estamira sem me
expor. (Barros, 2013. Anexo, p. 225)
11
É difícil não lembrar aqui de Rumstick Road, espetáculo de 1977 do Wooster Group, dirigido por Elizabeth
LeCompte, que investigava o suicídio da mãe de Spalding Gray, protagonista da peça, utilizando cartas de
família, slides, conversas telefônicas gravadas etc.
145
É necessário redescobrir o próprio ser antes oculto pelo mascaramento que o personagem
ficcional proporciona: “então, como tu sentas?, como tu fazes?, como tu te expõe?, tem um
146
medo da exposição aí, também,...” (Fagundes, 201312. Anexo, p. 195). Além disso, o
processo de criação a partir do material autobiográfico implica em uma necessidade de
ultrapassar o episódico, de sair do que é estritamente pessoal e atingir uma universalidade
que permita justamente esse compartilhamento com os estranhos reunidos no conjunto da
plateia do espetáculo. Esta necessidade se insere dentro de uma tendência de re-criar as
relações que o teatro, marcado por uma história de pertencimento ao universo ficcional,
mantém com a realidade, o “real”. Há um comprometimento do artista com a sociedade na
qual se insere, levando a esse imbricamento entre fictício, autobiográfico e documental,
buscando transformar a própria história em um fato que, como uma micro-narrativa,
alcança projeção ao falar de algo que é comum a todo um grupo. O material autobiográfico
serve não apenas para contar a própria história, mas como uma ferramenta para descobrir
algo que deve ser do interesse de toda uma comunidade:
- Eu acho que o material autobiográfico ele serve como uma ponte para tratar de
assuntos que interessem a todos nós; de alguma maneira, eu falar em primeira
pessoa pode ser eu estar me expondo, mas para falar de todos, não para falar da
minha vida privada. (Fagundes, 2013. Anexo, p. 196).
- Acho que em primeiro lugar a gente foi pesquisando até que ponto aquela
história que era contada era relevante para quem escutava, até que ponto aquele
depoimento interessava realmente, ou o que naquele depoimento poderia ser de
interesse. (Souza e Silva, 2013. Anexo, p. 176).
- E, no começo, eu tinha muito essa preocupação: “Cara, mas, nossa, aí eu vou
falar aqui do médico da minha mãe? Ai, mas será que...? Ai, será que não tá
muito...”, eu achava meio... meio frágil demais, sabe? Muito frágil, eu falava
“Mas será que está legal, será que é interessante as pessoas ouvirem isso?”.
(Barros, 2013. Anexo, p. 224).
12
É oportuno observar que trabalhar com a própria história pode ser tão ou mais árduo que o processo de
construção de um personagem fictício: “As coisas mais difíceis ali para o Heinz foram os dois extremos,
durante o processo: um, fazer quando é ele mesmo, quando ele não tem tipo nenhum ou personagem; dois,
fazer tipos bem distantes dele mesmo.” (Fagundes, 2013. Anexo, p. 195).
147
Ao trabalhar com esse tipo de material, não apenas fundado no real, mas
totalmente ligado à própria pessoa, o ator é forçado a se redefinir em cena. Tomando a
escala proposta por Kirby, de representação à não-representação, estar em cena sob a
identidade de um personagem fictício encaixa-se como representação, aproximando-se
desse polo da escala, enquanto colocar-se em situação cênica portando o seu próprio nome
e biografia traz o ator para o polo oposto, da não-representação. Neste desafio, de estar em
cena, atuando, sem representar, não apenas a própria história passa a ser o material a ser
trabalhado pelo ator, mas ele necessita que sua presença seja nesse momento tão efetiva
como quando ele ostenta um personagem fictício. Essa “eficácia cênica” implica em tratar
a própria história com um certo distanciamento, objetivando o olhar sobre si mesmo.
Depois do processo de seleção e roteirização ocorrido durante os ensaios, as palavras e a
própria vida do ator são transformadas em texto teatral, que necessitam ser atualizados a
cada apresentação, precisam ser efetivados, atuados. O ator percebe e critica a sua própria
atuação, estabelecendo uma estranha relação de proximidade e distância consigo mesmo:
Essa objetividade do ator em cena faz com que ele trate a sua própria vida
como um material, que difere de um material ficcional frequentemente apenas por uma
relação de proximidade e de distância em relação ao artista/criador. Aquele material criado
a partir das vivências do ator já nasce próximo a ele, as motivações e os impulsos já são
conhecidos, assim como o contexto, o universo no qual essa experiência se insere; quando
ele parte de um material ficcional, este muitas vezes se encontra mais distante do universo
e do cotidiano do ator, que precisa se aproximar e se apropriar dele, como percebe Odilon
Esteves: “Quando sai de mim é mais próximo, (...) e sempre que eu me aproximo de um
personagem o universo, a princípio, era distante do meu” (Esteves, 2013. Anexo, p. 187);
também Dani Barros tem a mesma sensação: “... mas tem um personagem que é mais
distante de mim e um personagem que sou eu, a Dani. Então, quando eu faço a Estamira, é
bem mais distante de mim e quando eu faço eu, a Dani, é mais próximo” (Barros, 2013.
Anexo, p. 235).
A apropriação a que o ator submete o texto torna-o ao mesmo tempo pessoal e
teatral. A verdade da cena supera uma aparente não verdade que a ficção carrega, e
aproxima os dois textos aos olhos daquele que deve realizá-los em cena: “... a hora que eu
faço o texto do Caio [Fernando Abreu] é tão verdadeiro quanto meu texto pessoal, e é tão
teatral quanto” (Esteves, 2013. Anexo, p. 187). Tomar posse do material fictício é ao
mesmo tempo aproximar-se dele e torná-lo seu, conferir-lhe uma verdade – cênica – que
muitas vezes o iguala ao material autobiográfico:
... porque daí eu me apossei, enfim, virou minha história, e agora, às vezes, (...)
eu já não sei mais o que é que é meu e o que é que foi inventado, o que é que foi
roubado de alguém, alguma história. Quando eu estou contando parece que
aquilo é meu, e é e pronto. Me apossei da vida dos outros. (Limaverde, 2013.
Anexo, p. 214).
... porque personagem a gente parece que não é a gente; mas, ao mesmo tempo,
personagem a gente tem que buscar a verdade, porque senão não é a gente. Mas,
quando a gente faz com verdade, ele cola na gente, fica verdadeiro, você fala
“Nossa, caramba, acreditei. Nossa, eu fui junto com você.” Mas, era eu que
estava...? Era. Mas era eu mesma? Não, era uma construção, era um... (Barros,
2013. Anexo, p. 235).
149
É uma construção. A partir do momento que está ali, em cena, é uma construção,
não tem como não ser. É claro que, assim, a construção, ela foi feita através de
uma desconstrução: para chegar naquele lugar ali, eu precisei me desconstruir,
estar tranquila e falar, simplesmente, sem estar carregada de nenhum
personagem, ou nenhum... Mas é uma construção, a partir do momento que entra
na partitura de um espetáculo, é uma construção. (Barros, 2013. Anexo, p. 227)
“efeito de teatralidade”, passa pelo processo de desconstrução que citamos e cria situações
paradoxais de estranhamento: “A minha mãe... é engraçado que ela já me conhece desde
quando pariu, mas ela disse que viu outra pessoa, uma pessoa que ela não... lembrava,
claro, o filho dela, mas que era uma figura que ela não imaginava que tivesse aquela
desenvoltura, aquele jeito de falar, aquele jeito...” (Anexo, p. 217). Ou seja, não há uma
identificação entre o self do indivíduo, entre o seu comportamento no dia-a-dia – ou os
seus comportamentos, correspondentes às imagens que ele busca projetar de si nas diversas
situações do seu cotidiano –, e sua autoprojeção no palco: “Eu digo assim: ali, era eu, ator,
falando de „eu, indivíduo‟, que resolvi ser ator” (Esteves, 2013. Anexo, p. 178). A
contingência da estrutura espetacular impõe esse distanciamento.
A construção realizada pelo ator, no caso desses trabalhos criados a partir da
autobiografia, se distancia ao mesmo tempo em que se confunde com a pessoa do ator,
causando também para o espectador essa instabilidade da presença, a tensão entre
representação e apresentação: “Por isso, quando falam „É a Dani‟, não é, cara, não é a
Dani, é uma construção da Dani. (...) É uma construção no sentido de... eu estou ali, eu vou
me portar desse jeito, eu sei que agora eu tenho que levantar, eu sei que agora eu tenho de
sentar, fazer determinadas coisas”. (Barros, 2013. Anexo, p. 228-31).
As ações realizadas pelo ator, com seu constante trânsito entre diversos
registros de atuação, são percebidas como fazendo parte de um jogo, cujas regras estão em
constante transformação. Jogo teatral, condicionado por sua estrutura e pelas condições de
recepção que propõe.
13
Em entrevista concedida em 2013, Bourriaud argumenta que o prefixo “pós” apenas circunscreve um
“espaço em branco”, um vazio teórico que necessita ser qualificado: “„Pós‟ é a pontuação gramatical de um
espaço-tempo em branco, o signo de uma não decisão” (Bourriaud, 2013). Construindo o conceito de
altermoderno em torno da imagem do arquipélago e de questões relacionadas à alteridade, Bourriaud postula
que ele significa “um duplo afastamento, seja em relação ao „pós-moderno‟, seja em relação ao período
moderno do século XX. Hoje a palavra „moderno‟ evoca duas coisas: o período histórico delimitado pela arte
moderna, e a modernização do mundo, sob a égide do „progresso‟. Ora, aquilo a que chamamos moderno é
um estado de espírito recorrente na história, que assume diferentes formas segundo as várias épocas.”
(Bourriaud, 2009b) Conquanto a cunhagem do termo “Altermodernismo” seja posterior ao lançamento do
conceito e do livro “Estética Relacional”, editado na França em 1998, fica claro que o contexto artístico a que
ele se atém para pensar essa prática que privilegia o encontro, se enquadra dentro desse novo conceito: “O
„Altermodern‟ é, para mim, a forma emergente e contemporânea da modernidade, ou seja, a de uma
modernidade que corresponde aos desafios do século XXI, e especificamente ao momento histórico que
vivemos e no qual nos inscrevemos, para o bem e para o mal: a globalização. (...) „Alter‟ significa outro, mas
o prefixo evoca igualmente a multitude. Em política, a alter-globalização é uma constelação de lutas locais
que visam combater a homogeneidade mundial. No domínio cultural, „alter-moderno‟ significa algo
semelhante, é como um arquipélago de singularidades conectadas umas às outras.” (Bourriaud, idem).
152
14
Cada um dos membros do grupo improvisava sobre esse tema. Ordinariamente eu dizia frases como “No
momento em que falo, eu estou interferindo na sua vida e no seu espaço, e isso vai mudar tudo daqui para a
frente.”, ou “Como dois corpos não podem estar no mesmo espaço ao mesmo tempo, quando eu me aproximo
de você eu interfiro e mudo o seu espaço.”, ou ainda “O simples fato de você estar vivo implica que você e
seu corpo ocupam um espaço e, portanto, interferem na vida e no espaço dos outros”.
15
Um dos cantos, ocupado por Felipe Carvalho, tinha um vaso sanitário e as paredes revestidas por papel
imitando ladrilhos; outro, ocupado por Bruno Vilela, era revestido por argila, que era manuseada por ele
durante o espetáculo; o terceiro canto era ocupado por Jardel Silva, e era preenchido por livros e papéis; o
último canto, vazio e com uma placa de Aluga-se, com as paredes forradas de um carpete vermelho e uma
persiana azul, remetia a um desses apartamentos de aluguel por temporada, encontrava-se vazio nesse
momento, e eu o ocupava após o início da apresentação.
155
tinham de decidir qual ação, de qual dos atores, eles acompanhariam (era impossível
visualizar mais do que dois cantos ao mesmo tempo, e as pessoas tinham de se deslocar
para saber o que os outros atores estavam fazendo), e se interagiam ou não com eles.
16
Ao fazer uma apresentação do espetáculo em um CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – Dani lidou
com um público que rompia constantemente o limite entre palco e plateia que nós mesmos, enquanto
espectadores, nos colocamos: “Porque eu tive que parar a peça, teve gente que entrou em cena, dançou
comigo, teve gente que chorou no meio, teve gente que, quando eu falava „Safado‟, gritava safado também;
teve uma que se revoltou, porque quando eu fiquei falando „Louca, doida, biruta‟, ela se revoltou, porque ela
se recusou, porque ela deve ter sido chamada muito de maluca, então ela não quis ouvir, ela achou isso uma
afronta, levantou, depois voltou; teve um que não me perguntou no meio „Você é maluca mesmo? Tu tá
acreditando nisso que você tá falando mesmo? É isso mesmo, tu é doida?‟?; uma começou a falar no meio,
contar a vida dela.” (Barros, 2013. Anexo, p. 232)
157
I
Like theatre, religious rituals and cerimonies are outer-directed, but their intent is not to affect an audience
but to accomplish a functional purpose in the metaphysical world. (…) Such rituals are designed and
performed primarily to this end rather than for their effect on any audience that may happen to be present.
II
almost all of the many innovations produced by Happenings have been applied to narrative, informational,
acted theatre.
III
…toda representación lo es siempre de una ilusión, más no menos compartida, a la que denominamos
realidad.
IV
...l‟image globale et cohérente du monde... (...) ... qui désigne une représentation correspondant à un point
de vue.
159
1
A peça, com texto de Newton Moreno, direção de João Fonseca e protagonizada por Lília Cabral, estreou
em 2010, e nela Dani Barros fazia diversos papeis, inclusive o de uma galinha.
161
material ficcional. Fica clara a impossibilidade empírica de o ator apresentar quer algo que
possa ser totalmente identificado a um personagem ficcional, quer algo que seja
completamente idêntico a sua própria pessoa; ou seja, tanto a possibilidade de haver em
cena apenas o personagem, ficcional ou não, sem um vestígio da pessoa do ator, quanto o
seu contrário, apenas a pessoa do ator, num estado de espontaneidade absoluta que elimine
qualquer vestígio de um enquadramento teatral, apresenta-se apenas de uma forma virtual,
que ocorre somente no plano teórico. A estrutura que o evento teatral traz elimina a
possibilidade de um “zero absoluto”, que se apresenta como uma virtualidade e uma
tendência, algo que se quer “caminhar para”.
Intervenções como o aCerca do espaço, do grupo Zona de Interferência (figura
16), ou espetáculos como Festa de separação: um documentário cênico, de Janaína Leite e
Felipe Teixeira Pinto, tensionam os limites existentes do que é considerado teatro, e abrem
portas para outras discussões, centradas na problemática de um teatro, ações e intervenções
que se situam para além da representação.
Embora não possamos dizer que tudo se resume a uma questão de ênfase, para
o ator essa é uma realidade que surge, tanto no que tange à proximidade do material quanto
ao grau de construção. Ser uma construção implica em ser personagem? O fato é que há
personagens mais ou menos construídos, mais próximos ou mais distantes da própria
pessoa do ator, com diferentes graus de ficcionalidade, que surgem como um relato
possível sobre o real: são sempre uma versão dos fatos, das sensações e dos sentimentos,
quer sejam do próprio ator, quer sejam do autor dramático, quer seja a fala de outra pessoa,
da qual o ator se apropriou, como em Estamira – Beira do mundo ou no filme de Eduardo
Coutinho, Jogo de Cena. Construção e aproximação são duas ideias e dois processos que
envolvem, no caso do ator, a busca por algo que é de difícil conceituação: a verdade
cênica. Quando Patrícia Fagundes observa que, no processo de montagem de O Fantástico
Circo-Teatro de um Homem Só, as partes mais difíceis para o ator realizar a sua criação
foram aquelas nas quais ele tinha de “fazer” ele mesmo ou quando ele tinha de fazer tipos
bem distantes dele (ver a nota 7 do capitulo 4), ela está relatando o caminho empreendido
por Heinz Limaverde no sentido de tornar aquele material algo verdadeiro para si mesmo e
para o público diante do qual ele se apresentou.
É a busca dessa verdade que se manifesta nas falas de Odilon Esteves, quando
este comenta sobre seu processo de criação de imagens que irão dar sustentação ao texto, o
qual “tem de sair como se ele fosse consequência dessas imagens” (Esteves, 2013. Anexo,
163
p. 186), para que as palavras “saiam” espontâneas e verdadeiras, e de Dani Barros, que fala
diversas vezes sobre ser verdadeira, sobre a necessidade de estar no aqui-agora, porque
senão “vai soar falso” (Barros, 2013. Anexo, p. 235). Dani também percebe que as técnicas
que o ator utiliza, quer sejam inspiradas ou advindas do método stanislaviskiano, quer
sejam técnicas contemporâneas, como o viewpoints, servem para aproximar o ator do real,
do verdadeiro (Cf. anexo, p. 229-30). Tentar encontrar a verdade cênica é de fato o
objetivo que irá nortear o trabalho desses atores, quer eles trabalhem a partir de um
material ficcional, quer eles trabalhem a partir de materiais pessoais.
Assim, estar em cena “fazendo” ou apresentando a própria pessoa não implica
exatamente no abandono do personagem: apesar da evidente não-ficcionalidade de que ele
se reveste, de encontrar-se afastado do polo da representação, ele não se situa de forma
absoluta como pura não-representação, como simples presença. A própria existência de um
público, do espetáculo ou cena ser, como diz Kirby (1987), direcionado para o exterior
(outer-directed), para fora, e pelo fato de ter como objetivo afetar uma audiência impele
esse ato para o polo da representação. Mesmo despido da intenção de uma representação e
distante de uma ficcionalidade evidente – mas, ainda assim, presente, já que, como vimos
no capítulo 3, o próprio ato de rememorar implica, em maior ou menor grau, em um
processo de ficcionalização – esse não-personagem continua sendo, em algum grau, um
personagem. Para o ator, o material autobiográfico precisa ser trabalhado, revisto e
construído até tornar-se texto, até constituir-se em ação a ser apresentada diante do seu
público.
Dessa forma, a desconstrução histórica do conceito de personagem a que se
refere Anne Ubersfeld (2005, p. 72-74) não resulta na anulação do próprio personagem,
mas implica que, em muitas práticas teatrais, o sujeito de enunciação passe a ser o próprio
ator, que fala em seu nome. A duplicidade do ator se revela enquanto possibilidade de
tornar-se o duplo de si mesmo, o personagem sendo ou se mostrando como uma faceta ou
aspecto do self que se quer compartilhar com o público.
A oscilação entre presentação e representação muitas vezes se resolve enquanto
proposta de convívio e interação entre os que estão no palco e os que estão na audiência. O
jogo, não apenas entre os atores, mas com a plateia, assume constantemente o primeiro
plano e passa a protagonizar o espetáculo. A quarta parede não apenas é rompida, o
público é inserido ou é convidado a entrar no espaço de atuação, que se torna um espaço de
164
2
Durante o processo de construção dos espetáculos do Zona de Interferência, tivemos várias discussões sobre
o funcionamento do grupo, como nomear os espetáculos – se de dança, de teatro, como uma “instalação
performática” – e também como devíamos nos referir a nós mesmos: sendo o único dos integrantes com
formação teatral, pensava em mim mesmo como ator, mas os meus parceiros se viam antes como performers.
Como vimos ao final do capítulo 4, mesmo com a aproximação do trabalho de ambos, parece-me que os
atores, aqueles que têm uma formação teatral acadêmica ou um sólido trabalho no teatro, se enxergam
basicamente como atores. Penso que seria interessante cotejar a opinião de outros performers que possuem
trabalhos no teatro para verificar se a recíproca é verdadeira.