Designer e Raça e Genero
Designer e Raça e Genero
Designer e Raça e Genero
Resumo: O objetivo deste artigo é revelar como os objetos de adorno foram utilizados para
estabelecer diferenças de gênero e raça na historia do design, no sentido de provocar uma
reflexão sobre as atuais práticas de projeto que, conscientemente e inconscientemente,
perpetuam os objetos como símbolo de desigualdade entre os sexos e os povos (raça/etnias).
Como objetivo específico pretende-se produzir material bibliográfico de referência para o
desenvolvimento da pesquisa em design no Brasil, através de uma revisão da historiografia de
caráter androcêntrico e etnocêntrico, que costuma não considerar as significativas
contribuições femininas, principalmente quando se trata de mulheres que pertencem a uma
etnia historicamente discriminada, como é o caso da africana.
Palavra-chave: Jóia Escrava – História do Design – Gênero/Raça
Abstract: Our goal in this article is to show the way the adornment objects were used to
establish differences in gender and race in the history of design, in the sense of stimulating a
reflection on the current practices that perpetuate, either in a conscious or in an unconscious
way, the use of objects as symbols of gender or ethnic domination. Having this specific
objective in mind, it is our intention to produce reference bibliographic data for the
development of design research in Brazil, reviewing the androcentric and ethnocentric
historiography that does not usually take the meaningful feminine contribution into
consideration, especially when it comes to those women who have been historically
prejudiced, like the African-Brazilian ones.
Key-words: Slave Jewel – Design History – Gender/Race
*
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da FAU-USP, Professora da UNEB - Universidade do Estado da
Bahia, CAPES-PQI UNEB/FAU-USP.
ANPUH – XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – São Leopoldo, 2007. 2
O conceito de raça adotado nas análises deste artigo é o mesmo apontado por
Pinho (2002: 416) na sua resenha sobre o livro do cientista político afro-americano Michel
Hanchard,
O termo “raça” refere-se, neste livro, ao uso de diferenças fenotípicas como
símbolos de distinção social. Significados raciais são, nesse sentido, culturalmente
e não biologicamente construídos, distinguido-se, a partir da inserção nestas
categorias, lugares sociais dominantes e dominados. “Raça” é, assim, síntese de
diferenças fenotípicas, mas também de status, de classe, de diferenças, em suma,
políticas. De modo que podemos dizer que relações de raça são relações de poder.
Tal como explicado para o conceito “raça” entende-se gênero também como uma
construção social, ou seja, as diferenças de gênero são aqui entendidas como uma dominação
masculina em relação à mulher, uma construção de mulher na sociedade patriarcal ocidental
(NASCIMENTO, 2003, p. 65).
Faz-se necessário explicar que as jóias crioulas1 eram parte de uma indumentária
especifica utilizada pela mulher negra ou mestiça, não todas elas, mas as que eram escravas de
‘ganho’2 ou escravas domésticas como descreve Nina Rodrigues (apud CARNEIRO,
2005:465), vide uma das mulheres com suas jóias na Figura 13:
1
Segundo Reis (2003, p.23): “A população da cidade dividia-se, segundo sua origem, em brasileiros, africanos e
europeus. [...] Mas havia também diferentes cores entre os nascidos no Brasil: o negro, que se chamava crioulo;
o cabra, mestiço de mulato com crioulo; o mulato, também chamado pardo; e o branco”.
2
Segundo Nishida (1993, p. 235 e 236), O sistema de ganho se tratava de escravos que saiam para trabalhar, em
tempo parcial ou integral, e deviam entregar ao senhor uma parte previamente acertada entre ambos do dinheiro
que recebiam por dia ou por semana. Na cidade também se permitia que escravos domésticos saíssem à noite ou
nos domingos e feriados para trabalhar neste sistema, como mascates ou prostitutas.
3
Fotomontagem elaborada pela autora.
4
No Brasil e na África portuguesa, escrava ou criada negra, ger. jovem, que vivia mais próxima dos senhores,
ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios; ama-de-leite dos filhos de seus senhores.
Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=mucama&stype=k>. Acesso em 15/07/2006.
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As operárias pretas usam saias de cores vivas, de larga roda. O tronco coberto da
camisa é envolvido no pano da Costa, espécie de comprido xale quadrangular, de
grosso tecido de algodão, importado da África. O pano da Costa passa a tiracolo
sobre uma espádua, por baixo do braço oposto, cruzadas na frente às extremidades
livres.
Na cabeça trazem o torso, triangulo de pano cuja base cinge a circunferência da
cabeça, indo prender as três extremidades na parte posterior ou nuca.
Este vestuário, sobretudo usado pelas negras da Bahia, valeu-lhes no resto do país
o qualificativo de baiana, dando a expressão popular: uma mulher vestida à baiana
ou uma baiana.
Este fashion design específico para a mulher negra, possuía significados diversos.
Na sua origem tinha um duplo significado, para a usuária uma resignificação de si mesma,
diante do lugar social reservado a sua condição de escrava, e para a classe dominante, uma
afirmação explícita do lugar do ‘Outro’ que relega a mulher negra a um lugar social
subordinado. Mas ao longo dos anos essas mulheres associadas aos seus trajes típicos tornam-
se ícones da indústria turística baiana, em um processo de folclorização da mulher negra,
ocupando um lugar de destaque, mas ainda em situações subalternas (SARDENBERG E
BARROS, 2005, passim)5 como esclarece Pinho (2002:416) “em políticas culturalistas,
práticas culturais operam como um fim em si mesmo, símbolos e artefatos afro-brasileiros e
afro-diaspóricos tornam-se reificados (são tornados coisas) e commodified (são tornados
mercadorias)”.
E em ambas as situações acima descritas se constata (Foucault) que:
Existe todo um esquadrinhamento do tecido social, onde a cada sujeito corresponde
um lugar e, a cada lugar, um sujeito. Por conta disso o diferente fica fora de
determinados espaços, fica excluído deles, mas, paradoxalmente, lhes são definidos
outros lugares, e lá ele fica confinado. (...) Nem sempre o outro, percebido como
perturbador, é o que está fora, distante, estranho: muitas vezes o que incomoda é o,
‘é o estranho em nós’, aquilo que percebemos como diferente em nós mesmos e com
o qual não queremos nos defrontar. (Ezirik, 2005:54)
Entre as mulheres negras havia posições sociais diferentes, que tanto se expressava
na diferenças de suas vestimentas, principalmente na ausência das jóias escravas e na
qualidade inferior dos materiais com que eram confeccionados os trajes (vide Figura 6),
quanto no comportamento adotado por algumas mulheres negras que galgavam ascensão
social, demonstrando que o padrão hegemônico termina por dominar também aquele que está
5
Texto disponível em um dos painéis da Exposição intitulada “Mulher Negra na Bahia – Imagens de Gênero e
Raça” – Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Período novembro de 2005 a agosto de 2006.Vide nota 6.
ANPUH – XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – São Leopoldo, 2007. 5
Observe abaixo na Figura 7, que a retratada está vestida à moda das senhoras, mas
ainda preserva os colares usados exclusivamente pelas mulheres negras. Livra-se de quase
tudo que faça referência a sua condição anterior, exceto os colares de contas de ouro, talvez
pelo forte vínculo identitário das contas com as suas origens africanas.
Deve-se que apontar que este não era o comportamento corrente das mulheres
negras, havia uma grande solidariedade entre elas, principalmente pela via religiosa, no
Candomblé e nas irmandades católicas de negras.
As irmandades de pretos e pardos eram associações que além das atividades
religiosas que se manifestavam na organização de procissões, festas, coroação de reis e
rainhas, também exerciam atribuições de caráter social como: ajuda aos necessitados,
assistência aos doentes, visita aos prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra os
maltratos de seus senhores, ajuda para a compra da carta de alforria e garantia de um enterro
para os escravos. A presença feminina é marcante e seu ingresso nas irmandades representava
reconhecimento social, possibilidade de contatos, e uma tentativa de contornar os
preconceitos sociais e raciais que caracteriza a sociedade brasileira (QUINTÃO, 2000,
passim). Participavam da rede de solidariedade estabelecida nestas irmandades doando suas
jóias para caixa de alforrias (fundos comuns para a libertação de escravos). Esta é uma das
principais razões de se classificar estas jóias como um design de resistência, por estes adornos
de corpo significarem a sobrevivência ao sistema escravocrata. Assim, a joalheria escrava
simboliza a resistência destas mulheres a condição de mercadoria.
Se entre as mulheres negras existia a solidariedade o que dizer da relação entre as
mulheres negras e as mulheres brancas, ambas mulheres, ambas participes de um sistema
patriarcal onde a figura dominante era o homem branco. Segundo bell hooks8 (1994:94) essa
interação se dava através do modelo servidora e servida,
O ponto de contato entre uma mulher negra e uma mulher branca se dava através
do modelo servidora-servida, uma hierarquia, uma relação baseada em poder sem
mediação do desejo sexual. Mulheres negras são servidoras, e mulheres brancas as
servidas.
8
A autora deseja que seu nome seja grafado em letras minúsculas.
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Figura 89 – Cartão Postal – Coleção Particular – Ama-de leite - Date: 1905 – 1910 - Lindermann
Este zelo com os filhos das mulheres brancas lhes rendia presentes dos pais e dos
próprios filhos já adultos, que iam de pequenos mimos, passando pelas jóias escravas, até a
concessão da sua alforria.
A relação entre mulheres brancas e negras alcança o ponto máximo de tensão nas
suas interações com os homens brancos, devido à tradição judaico-cristã do corpo-
expropriado da mulher e neste caso se trata, principalmente, do corpo da mulher branca que
deveria submetê-lo (seu corpo) aos ditames do casamento e a geração de filhos, versus o mito
da mulher negra super sexuada que deveria subjugar-se aos desejos sexuais dos senhores,
Num contexto de valores morais e religiosos rígidos, vai recair sobre a negra a
responsabilidade do desejo do senhor, que justifica seus atos como inevitáveis
diante da intensa sensualidade da escrava, que fica à mercê dos senhores e de seus
filhos, além de despertar o ciúme e a inveja da senhora, o que gera os mais
bárbaros crimes de tortura e todo o tipo de violência contra as escravas no Brasil.
(LOPES, 2004),
As jóias escravas são provas materiais da situação acima descrita, pois tudo era de
propriedade do homem branco: a mulher negra e seus objetos de distinção ou submissão,
como também a mulher branca e seus filhos. Nas Figuras 9 e 10, as diferenças e semelhanças
das indumentárias das mulheres negras e brancas do século XIX. As diferenças nas
indumentárias são necessárias para identificar os espaços sociais diferenciados entre a mulher
branca e a mulher negra e as semelhanças são fundamentais para a reafirmação da condição
9
Imagem digitalizada do livro intitulado Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma – Black in body
and soul. Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
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Sinais exteriores da posição social dos indivíduos como vestuário e jóias tinham
importante papel na hierarquizada sociedade brasileira do século XIX. Neste
contexto a indumentária deve ser vista como importante elemento simbólico ao
evidenciar as diferenças existentes entre os grupos sociais, tornando visível a
hierarquia social. Além de definidora de identidades, a moda permitia a
visualização sistemática de significados relacionados a valores e padrões de
comportamento. A observação e análise de roupas e ornamentos facilitam a
compreensão acerca das relações de poder existentes entre pobres e ricos, negros e
brancos, escravos e libertos, bem como entre homens e mulheres.
(BITTENCOURT, 2005:25)
Figura 910: Condessa de Iguaçu – 1852 Figura 1011: Moça cafuza – 1869
Óleo sobre tela Krumholz Fotografia – Henshel
10
Imagem capturada da Dissertação de Mestrado intitulada “Modos de negra, modos de branca: o
retrato “baiana” e a imagem da mulher na arte do século XIX.” Da autoria de Renata Bittencourt
Campinas: [s.n.], 2005:15.
11
Imagem capturada da Dissertação de Mestrado intitulada “Modos de negra, modos de branca: o
retrato “baiana” e a imagem da mulher na arte do século XIX.” Da autoria de Renata Bittencourt
Campinas: [s.n.], 2005:126.
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Referências Bibliográficas:
CARDOSO, Rafael. Design, cultura material e o fetichismo dos objetos. Revista Arcos.
Vol. 1, n° único. Rio de Janeiro: ESDI, 1998:15-39.
CLARKE, Duncan. African Hats and Jewelery. New Jersey: Chartwell Books, 1998.
EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault: um pensador do presente. 2 ed. Ijuí: Unijuí,
2005.
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REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na
Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001.