Livro Genus Introdução ParteI Tamanini Sartori

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GÊNERO NA EDUCAÇÃO :
Espaço para a diversidade
Ari José Sartori & Néli Suzana Britto (org.)

1ª. Edição – Florianópolis : GENUS, 2004.


2ª. Edição – Florianópolis : GENUS, 2006 .
3ª. Edição – Florianópolis : GENUS, 2008 .

G326 Gênero na educação : espaço para a diferença / organizadores Ari José


Sartori & Néli Suzana Britto 1ª. Re-impressão da 3ª. Edição . – Florianópolis:
Nova Letra / Genus, 2011.

136 p. : il.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-98282-03-9

1. Relações dena
Catalogação gênero.
fonte 2.
porEducação
Onélia permanente.
S. Guimarães3. Mulheres – Aspectos
CRB-14/071
sociais. 4. Saúde reprodutiva. 5. Violência. 6. Sexualidade. I. Sartori, Ari
José. II. Britto, Néli Suzana.

CDU: 37
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

2
APRESENTAÇÃO
Por Miriam Pillar Grossi

Textos Sempre Atuais para Contribuir na Educação pela Igualdade de Gênero

É com muita satisfação que apresento a terceira edição do livro Gênero na Educação:
espaço para diversidade. Trata-se de importante trabalho de referencia para a formação de
professor@s no campo dos estudos de gênero, uma vez que traz textos de grande qualidade
teórica, escritos em linguagem que permite atingir amplo público de leig@s sobre o tema.

A GENUS, ONG sediada em Florianópolis e criada em 2002 por uma equipe de cientistas
sociais e educadores populares vinculados à universidade e aos movimentos sindicais do sul
do país tem se destacado ao longo de já quase uma década de existência por importantes
trabalhos de formação na área dos estudos de gênero e educação.

Antes de criar a GENUS, um dos organizadores deste livro, Ari José Sartori, fez um sólido
trabalho de formação sindical em questões vinculadas ao gênero na Escola Sul da CUT nos
anos 90. Nesta formação, apoiado pela Fundação MacArthur, a ênfase era na
problematização das questões de gênero vinculadas ao espaço do trabalho e da militância
sindical. Temas como masculinidade, poder e representação política tinham ali um lugar
privilegiado. Com a experiência acumulada nestas e outras atividades no campo do Gênero,
realizadas também por outras integrantes como a co-organizadora deste livro, Néli Suzana
Britto, a GENUS trouxe consigo, desde sua fundação, este espírito engajado nas mudanças
sociais, militantes e profissionais. Desde sua fundação sua equipe tem se dedicado à
formação de professor@s de diferentes níveis de ensino, em todo o Estado de Santa
Catarina.

Este livro é resultado desta experiência já consolidada no campo da Educação e dos estudos
de gênero. Escrito por três cientistas sociais e uma educadora, pesquisador@s que
estiveram associadas Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS/UFSC) na
época da redação dos textos em sua primeira edição, esta publicação traz alguns dos
principais temas no campo dos estudos de gênero na contemporaneidade.

O livro está dividido em três partes. Na primeira delas sobre A construção do conceito de
Gênero, temos dois artigos, um de Marlene Tamanini1 - A cosmologia e o mundo das
Deusas e outro de Ari José Sartori - A origem dos estudos de gênero. No primeiro artigo,
Marlene reflete sobre o valor da maternidade na constituição do gênero feminino ainda hoje
no ocidente, buscando na mitologia e na Historia elementos para fazer esta reflexão. Seu
artigo traz uma interessante recuperação de uma forma de conceber o feminino em nossa
cultura, marcado pelo modelo da maternidade enquanto valor para as mulheres e da
dominação masculina que toma formas particulares a partir do século XIX. Ari Sartori2, no
artigo que segue, dá continuidade a esta reflexão, lembrando os principais fatos que
marcaram o feminismo no Brasil e no mundo, articulando seu argumento com o

1
Professora no Departamento de Sociologia da UFPR.
2
Doutorando em Antropologia Social na UFSC.

3
desenvolvimento dos estudos de gênero no país. Na seqüência, aponta para as principais
questões tratadas neste campo teórico: a identidade de gênero, papéis de gênero, o lugar do
corpo na construção do gênero, as identidades psicossexuais e a temática das
masculinidades.

Na segunda parte do livro, intitulada Gênero, Infância, Sexualidade e Educação temos


também dois artigos, um de Deborah Thomé Sayão3 – Infância Sexualidade e Educação:
aspectos das relações entre profissionais e crianças e de Flávia de Mattos Motta4 –
Gênero, Sexualidade e Educação. Deborah reflete sobre o lugar e o significado da infância
como tempo fundamental na constituição de valores de gênero. Partindo de sua experiência
na área da educação infantil, Deborah nos fala sobre a construção social da categoria
“infância” desde o final da Idade Média e questiona a representação de senso comum de
que sexualidade seria algo restrito a vida adulta. Seu texto é uma importante contribuição à
reflexão sobre as questões de gênero na infância uma área pouco estudada no campo dos
estudos de gênero5. O artigo de Flávia Motta é fundamental para pensar como e quando
introduzir as questões de gênero na Escola. A autora inicia seu artigo abordando de um
ponto de vista antropológico, a construção cultural da diferença de gênero. Continua sua
reflexão com vários exemplos de como este “pensamento da diferença” atua nas relações e
representações sociais que temos do que é feminino e masculino. Um de seus exemplos, o
da associação das cores rosa e azul, é ótimo para ser reproduzido em atividades concretas
na escola; espaço privilegiado pela autora para sua reflexão a respeito da dicotomia:
reprodução ou modificação dos valores de gênero. A autora aponta também que há um
grande silêncio em torno do tema da sexualidade e mais particularmente das
homossexualidades no ambiente escolar. Ela finaliza o artigo criticando a forma como a
reprodução humana é tratada na educação sexual e em como a questão da mudança na
linguagem é central para a transformação das relações de gênero.

O livro traz também uma terceira parte, na qual Marlene Tamanini e Ari Sartori refletem
sobre o tema da Saúde Reprodutiva e Violência, temas centrais em todas as questões que
envolvem o gênero. Marlene inicia seu texto Saúde Reprodutiva e Direitos Sexuais
Reprodutivos explicando a origem da medicalização do sexo e a reivindicação feminista de
que os direitos sexuais são também direitos humanos. Seu texto aborda temas caros a este
campo de estudos como a mortalidade materna, esterilização, planejamento familiar e
reprodutivo e DST/AIDS, recuperando a legislação e as lutas feministas por estes direitos.
Ari Sartori em Violência contra criança e mulher, jovem ou adulta analisa as origens da
violência contra as mulheres e da dominação masculina, mostrando as controvérsias
existentes na teoria feminista brasileira em torno da violência conjugal. Com dados do
Ministério da Saúde argumenta que as violências contra crianças e adolescentes ainda são
invisíveis na sociedade brasileira e que se trata de tema pouco abordado na escola. Ari
explana sobre diferentes formas de violência: física, econômica, institucional, psicológica,
3
Ex-Professora do Departamento de Educação da UFSC.
4
Pesquisadora vinculada a UDESC.
5
Deborah Thomé Sayão, doutora em Educação e professora da UFSC, nos deixou no dia 8 de março de 2006.
Sua alegria contagiante, sua generosidade intelectual e seu compromisso com a educação foram marcas
indeléveis de sua vida e trajetória acadêmica, que desejamos manter em nossa memória e na dos que lêem este
livro.

4
sexual, incesto, pedofilia e faz propostas concretas para que professor@s encarem este
problema de frente articulando suas ações com conselhos tutelares e delegacias da mulher.
Esta nova edição traz um segundo texto de Ari Sartori sobre a temática da violência,
abordando aqui a relação entre a violência na escola e as imagens de violência com as quais
convivem crianças através da Televisão e de jogos eletrônicos. Trata-se de um texto muito
atual que reflete sobre o papel da mídia na constituição de valores e comportamentos de
gênero e violência.

Finalmente o livro é acompanhado de importantes anexos que servem como pistas para
ampliar a reflexão sobre gênero e a aplicação desta reflexão em sala de aula. Além de uma
bibliografia básica, o livro traz indicações de filmes e endereços de Conselhos Tutelares e
Delegacias Especializadas de atendimento a mulher. Vê-se, portanto, que a preocupação
central deste livro é não apenas ensinar homens e mulheres sobre questões de gênero na
pratica educativa, mas também instrumentalizá-los na construção de um mundo mais
igualitário entre mulheres e homens, entre heterossexuais, homo ou transexuais.

A GENUS é hoje, em 2008, uma referência importante na formação de professor@s no sul


do Brasil no campo das questões de gênero e sexualidade. Já formou ao longo de quase
uma década centenas de professor@s que têm integrado as questões de gênero em suas
práticas escolares. É sempre com satisfação que saudamos mais esta edição e desejamos
inspiradora leitura a professoras e professores do ensino médio e fundamental e ativistas de
diferentes movimentos sociais.

Florianópolis, Março de 2008.

Miriam Pillar Grossi


Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS/UFSC)

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PROJETO GÊNERO NA EDUCAÇÃO: espaço para a diversidade

Caro professor e cara professora


É com grande satisfação que a Genus – Pesquisa, Assessoria e Estudos de Gênero está disponibilizando
este material pedagógico, que faz parte de um conjunto de recursos metodológicos do Projeto Gênero na Educação:
espaço para a diversidade. Este projeto surgiu a partir das pesquisas desenvolvidas pelos seus integrantes sobre temas
relacionados a gênero, sexualidade, violência e saúde reprodutiva. Um dos objetivos centrais deste projeto é
contribuir na formação continuada de professores e professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e da
Educação Infantil e também de estudantes dos cursos de Pedagogia, possibilitando-lhes intervir mais
qualificadamente nas ações pedagógicas que realizam.
O Projeto Gênero na Educação: espaço para a diversidade foi um projeto piloto, iniciado em 2003, e contou com o
patrocínio do Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (PROSARE), do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e com o apoio financeiro da Fundação MacArthur. Nesta
primeira fase a equipe da Genus realizou oficinas diretamente com professores/as. A realização deste projeto
evidenciou a grande carência existente de espaços de formação continuada sobre esta temática, o que levou a
Genus a desenvolver o Curso para Multiplicadores/as das Oficinas Gênero na Educação. Este Curso, que está na sua
Segunda Edição, tem como um dos principais objetivos socializar e repassar a metodologia desenvolvida
pela Genus a educadores/as de várias instituições dos Estados do Paraná e Santa Catarina, para que os/as
mesmos/as realizem oficinas com professores/as. O Projeto Curso para Multiplicadores/as conta com os patrocínios
da Eletrosul - Centrais Elétricas S.A. e do BESC - Banco do Estado de Santa Catarina.
A terceira edição do livro pedagógico é fruto deste desdobramento do Projeto e do compromisso da Genus de
cada vez mais contribuir na formação continuada dos/as professores/as e estudantes de Pedagogia.
É importante salientar que a proposta de tais projetos é resultante de observações no trabalho
que temos desenvolvido junto à formação de professores e professoras nos cursos de
licenciatura em Educação e Pedagogia, quanto à existência do pouco conhecimento sobre a
produção nas Ciências Humanas no que concerne especialmente a gênero, violência,
sexualidade e saúde reprodutiva. Pois mesmo quando há o reconhecimento da existência de
pesquisas e debates que abordam tais temas, isso parece adquirir um caráter eminentemente
pragmático, com o único intuito de resolver problemas pontuais e individuais, reduzindo assim a sua
complexidade e amplitude social. Além disso, de forma geral, também há um desconhecimento dos direitos já
conquistados pelas mulheres e pelas crianças, assim como das instâncias institucionais que podem dar abrigo e
encaminhamento para os casos de violência ou constrangimento contra as mulheres – jovens e crianças. Da
mesma forma, temos constatado que gênero, como auto-reconhecimento das relações de poder entre homens e
mulheres, do papel social e da condição “mulher”, ainda é uma categoria pouco visível aos profissionais que
atuam nos ambientes educacionais.
Os Estudos de Gênero têm sido um campo importante tanto nos processos de formação docente quanto no
âmbito das vivências e experiências de meninas, jovens e mulheres adultas, nos ambientes educacionais e no
interior do espaço doméstico. As evidências têm demonstrado que surgem com os Estudos de Gênero novas
formas de pensar a cultura, a linguagem, a arte e o conhecimento científico. Isso ocorre porque a visibilidade dada
às mulheres e suas feminilidades e aos homens e suas masculinidades na produção do conhecimento redefine o
político, amplia seus limites e transforma sentidos anteriormente essencializados. O corpo, o público e o privado,
o homem e a mulher, as crianças, a docência e a sexualidade são conceitos passíveis de mudança nos diferentes

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espaços da sociedade e particularmente nos ambientes educacionais. Em particular no magistério há uma
tendência a perceber o sexo, o gênero e a sexualidade de uma forma essencializada, desconhecendo-se o debate
que tem sido intenso nos últimos anos. Por este motivo consideramos que a categoria “gênero” é central na
formação docente em face de seu íntimo relacionamento com os movimentos sociais e, portanto, de seus
vínculos com a política. Especificamente quanto à violência e aos direitos sexuais e reprodutivos, os ambientes
educacionais, em muitos casos, negligenciam o tema ao fazerem “vista grossa” para crianças que são vítimas de
abuso de qualquer ordem. Sabemos que uma ampla gama de meninas e meninos de pouca idade são
constrangidos a manterem relacionamentos forçados com adolescentes de mais idade ou com adultos. O
percentual elevado de gravidez indesejada na juventude e de doenças sexualmente transmissíveis é prova disso.
Também, muitas vezes, tentativas de aborto causam sérios danos físicos e psíquicos às meninas.
Ao nos debruçarmos mais atentamente sobre o papel da escola na formação docente, evidencia-se o “gênero”
como uma categoria que inclui a desconstrução das diferenças, das hierarquias e das formas de dominação de
uns e umas sobre outros e outras, o que precisa ser incluído nos processos de formação de professores e
professoras.
No caso do trabalho na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e
considerando o gênero como uma categoria em permanente debate, dois aspectos precisam ser
pensados.
O primeiro deles é que a categoria “gênero” não deveria ser tomada unicamente em seu viés pragmático porque
isso reduziria a sua amplitude. Pensamos o “gênero” como uma categoria que se insere na formação dos sujeitos
para viverem a cidadania plena. Em segundo lugar, é preciso desconstruir idéias comuns de que gênero é
sinônimo de mulher e está associado unicamente à reprodução e à sexualidade e, ainda, que este é um tema
somente para “especialistas”. É nesse sentido que consideramos fundamental que nos espaços de formação
continuada sejam privilegiadas a discussão, a reflexão e a qualificação dos educadores, educadoras, alunos e alunas
dos cursos de Pedagogia, para que possam incorporar o tema na sua prática pedagógica e, com isso, buscar
autonomia nesse campo do conhecimento.
A Genus, ao trabalhar com essa temática e com esse público, também se propõe atuar diante da problemática da
violência – física, simbólica, e especialmente sexual – que se reflete cotidianamente no âmbito das instituições
educativas, sem que os sujeitos envolvidos – as próprias crianças e os professores e as professoras – consigam
refletir de uma maneira crítica sobre o que esse problema desencadeia.
É a partir dessas concepções e matizes que temos desenvolvido o Projeto Gênero na Educação: espaço para a diversidade
e o Projeto Curso para Multiplicadores/as das Oficinas Gênero na Educação, voltado aos professores e professoras dos
Anos Iniciais e da Educação Infantil, para que reflitam sobre situações que possam contribuir na sua prática
pedagógica.
O foco em todas as atividades previstas será gênero, sexualidade, direitos sexuais e
reprodutivos e a violência sexual contra a criança e a mulher, jovem ou adulta, com a
disponibilização de informações sobre para onde, para quem e como encaminhar os casos de
situações de violência institucional, doméstica e familiar presentes na vida cotidiana. Para
alcançar nossos objetivos, vem sendo utilizada a metodologia de oficinas como atividade
central. Os recursos metodológicos disponibilizados para as oficinas são: um vídeo e este livro
pedagógico produzidos especificamente para este projeto.
O vídeo pedagógico, como um recurso metodológico, objetiva ser um facilitador e
dinamizador das atividades que serão desenvolvidas nas oficinas, assim como um material de

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apoio para futuros debates nos ambientes educacionais. O livro pedagógico tem por objetivo
apoiar e subsidiar teoricamente os estudos e as atividades deste projeto.

O/A Organizador/a

Ari José Sartori e Néli Suzana Britto

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1ª. PARTE

CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO

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TEXTO UM

COSMOLOGIA E O MUNDO DAS DEUSAS

Marlene Tamanini

As raízes da desigualdade

Buscando as raízes históricas da desigualdade entre homens e mulheres, que caracteriza


nossa sociedade ocidental, nós iniciamos este texto pela importância da função materna
na mitologia e na organização de povos que viveram na Europa entre 300.000 e 21.000 a.C.
Esses povos produziram inúmeras estatuetas de terra cozida que representavam as
mulheres. Essas estatuetas possuíam seios grandes, ventre grande, nádegas grandes, grande
corte vaginal, e, segundo Yvonne Knibiehler (2000), mesmo que nem todo mundo esteja de
acordo em considerar esse período a origem do culto à grande mãe, figura arquetípica de
todas as culturas e divindades, ele, por seus achados, fornece elementos para se pensar em
uma outra forma de organização social presente nesse contexto.

Dizer isso, no entanto, não significa afirmar que a única função reservada à mulher seja a
maternidade, nem que a maternidade faça parte da natureza feminina como uma essência
que necessariamente deva se realizar. Dizemos isso porque essa afirmação será sustentada
por muitos pensadores, principalmente nos séculos XVIII e XIX, a partir das idéias
iluministas e do positivismo, que se constituiu em um modelo de fazer ciência em nossa
sociedade. Também não significa dizer que a mulher está mais próxima da natureza em si
mesma, e por isso tem já dentro dela uma sensibilidade diferente em relação ao universo,
aos cuidados com o meio ambiente, ao cuidado dos filhos, dos doentes, das crianças
pequenas. O que afirmamos com isso é que o modo como nos tornamos homens e
mulheres no mundo e aprendemos a cuidar ou a ensinar é uma construção da cultura
e das relações sociais e depende das escolhas que a sociedade vai fazendo, embora essa
escolha nem sempre seja totalmente consciente. Por isso, nada do que fazemos, ou
sabemos fazer, existe em nós como algo predeterminado ao nascer, mesmo que grande
parte de nossa sociedade, na verdade a maior parte, pense que há uma essência no ser
mulher que se traduz na maternidade. Observe por exemplo o sofrimento das mulheres que
não têm filhos e como alguns casais fazem de tudo para terem um filho. Nós vamos afirmar
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que essa forma de ver o mundo, de ver a família, e a reprodução da vida, está no conjunto
de uma série de valores ligados a um modelo patriarcal de ser. Nossa civilização ocidental é
filha das culturas mediterrâneas, que são todas patriarcais, e isso não é um fato que nada
tem a ver conosco. Esse modo de ser e organizar a sociedade acaba por influenciar e
determinar o modo como desenvolvemos nossas práticas educativas. Observe por exemplo
a escola e a história do magistério: você irá perceber que, em geral, a Educação Infantil é
assumida como um trabalho feminino. Fala-se sempre “a professora”, mesmo quando há
professores homens, do mesmo jeito que ocorre com o cuidado na enfermagem. Fala-se na
enfermagem dentro de um modelo de cuidado que é feminino. Mas será que isso ocorre
porque há um grande número de mulheres nessa profissão ou porque há uma função de
gênero feminino vinculada à idéia de que cuidar e educar as crianças cabe à mulher? A
escolha profissional também é marcada por essa visão. É mais fácil imaginar um homem
arquiteto, engenheiro elétrico, engenheiro da produção, um engenheiro da construção civil
do que falar em engenheira elétrica, engenheira da produção, mulher na construção civil.
Há até quem pergunte como é que uma mulher vai impor respeito num canteiro de obras?
Aliás, um professor chegou mesmo a perguntar o seguinte a uma aluna durante uma de suas
aulas para futuros engenheiros da construção civil: “O que você está fazendo aqui? como
você pensa que vai impor respeito num canteiro de obras?” Nesse caso, parece que o sexo
da garota estava contando muito mais do que o conhecimento que ela estava adquirindo
para atuar na área.

Para entendermos qual a relação existente entre gênero e educação, nós vamos iniciar nossa
reflexão a partir de alguns dados que podemos colher dos relatos que analisam os mitos, a
arte, os achados arqueológicos e as descobertas recentes sobre a organização social,
política, religiosa e econômica de povos mais distantes no tempo em relação ao nosso
tempo histórico.

Nós perceberemos através desse relato como um modo de organizar a religião, as práticas
políticas, a reprodução das ideologias e as relações entre homens e mulheres pode se
modificar ao longo do tempo. Vamos perceber como as culturas também foram
modificando o seu entendimento sobre o que era ser homem e o que era ser mulher e,
por causa disso, como as relações sociais de dominação foram se estabelecendo, em
geral, com a predominância dos homens sobre as mulheres. Isso não ocorre apenas por

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causa da divisão das tarefas entre o que é tarefa de homem e o que é tarefa de mulher, mas
também por causa da constituição de sistemas religiosos, e políticos, que servem para
legitimar as ideologias que irão se constituir em cada tempo histórico e em cada sociedade
particular, embora pesquisadoras como Françoise Héritier (1999) apontem para a
reprodução da dominação masculina em todas as sociedades.

A divisão das funções atribuídas a homens e a mulheres tem raízes históricas


profundas. Os grandes pensadores falam de períodos históricos que foram fundamentais
para o desenvolvimento do jeito como se constituiu o aprendizado do que é transformar-se
em um ser humano, seja homem, seja mulher. Por isso, quando falamos do modo como tem
sido a história dessa constituição do que é ser homem e ser mulher, é necessário ter
presente que isso está ligado a determinados contextos, a determinadas épocas, e que não se
dá de igual modo em todos os tempos.

É preciso levar em conta que também existem histórias particulares de cada povo e de
cada cultura, e que os contextos, em que as idéias, a imaginação e a visão de mundo são
construídas, podem variar de acordo com as relações econômicas, políticas, religiosas e
culturais envolvidas. Os diferentes contextos variam também por causa das relações
climáticas e ambientais, do acesso à alimentação, do modo como os povos criaram sua
sobrevivência, entendida aqui no seu sentido mais amplo, como sobrevivência física,
emocional, espiritual e cultural. É preciso, portanto, lembrar as particularidades de cada
cultura. Mesmo quando falamos de tempos históricos tão distantes em relação ao nosso,
como é o caso da idade da pedra e da idade dos metais, conforme faremos nesse texto, não
queremos com isso imaginar que essas relações tenham se estabelecido de modo único. O
que apresentaremos é um caminho de reflexão para compreendermos, a partir de um
exemplo ligado aos ritmos da natureza, e da fertilidade do cosmos e da terra, como a
sexualidade – a compreensão sobre o corpo, o nascimento e o aparecimento da vida – foi
fundada.

A idade da pedra: o paleolítico

Na idade da pedra podemos falar em dois momentos, o paleolítico (antiga idade da pedra) e
neolítico (nova idade da pedra).

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Dizem os historiadores que no período paleolítico vivia-se a maior parte do tempo nos
bosques, a alimentação era constituída de raízes e frutas e a descoberta do fogo tornou os
grupos humanos mais independentes do clima e do lugar. Com o fogo eles podiam
cozinhar, afugentar os animais e iluminar as cavernas. Por isso, também adquiriram maior
autonomia diante da natureza e dos ataques de qualquer tipo de inimigo, tanto de animais
quanto de outros homens. O filme Guerra do fogo, a que você está convidado ou convidada
a ver, oferece um retrato de como viviam essas sociedades humanas e da importância que o
fogo adquiriu para os relacionamentos entre as tribos e a natureza. Esse filme mostra como
o fogo passou a ser venerado, mantido e protegido pelos primeiros grupos humanos que
com ele tiveram contato e como ele significou importantes mudanças no relacionamento
dos grupos com a natureza e com o seu modo de vida.

Segundo os relatos de Regina Navarro Lins (1997), o primeiro representante do Homo


sapiens foi o homem do Cro-Magnon, no paleolítico superior. Ele teria existido nos últimos
35 mil anos, portanto no paleolítico, que teria durado de 500.000 a 10.000 a.C. Na caverna
de Cro-Magnon, em Les Eysies, França, foram encontrados, em 1968, os primeiros restos
desses nossos ancestrais. Eram fortes e tinham, em média, 1,80 m. Viviam da caça e da
coleta de alimentos e, para sobreviver, dependiam da parceria entre homens e mulheres. Os
vestígios dão conta de informar sobre as crenças que eles cultivavam. Segundo os
pesquisadores, eles acreditavam que os mortos renasciam, e que a vida nascia e se mantinha
a partir do corpo feminino. Acreditavam que havia uma ordem cósmica que governava
todas as coisas, e que a vida estava ligada aos ciclos da natureza. A mulher, nessa visão,
estava próxima da natureza: seu corpo feminino, tal como a natureza, produzia eventos
cíclicos, ligados à geração da vida, dava à luz e tinha o poder de alimentar. A fertilidade
feminina era semelhante à fertilidade presente em todo o universo, uma fertilidade cósmica,
porque era o princípio feminino que governava o mundo (ELIADE, 1977).

Acreditavam que a vida que nascia da mulher entrava nela, vinda de sítios e seres
inusitados do reino natural (das fendas, das pedras, das árvores, dos peixes, entre muitos
outros). Essa compreensão irá resultar, ao longo de muitos séculos, em práticas que
ajudassem as mulheres estéreis a engravidar. Há relatos dos séculos XVI a XIX de como as
mulheres procuravam as raízes e os frutos das árvores para deles extrair a vitalidade, de
como elas encostavam-se em árvores, abraçavam as árvores ou se esfregavam nelas em

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busca da fertilidade. Também faziam isso com as pedras, principalmente, esfregando o
umbigo e o ventre (GÉLIS, 1984).

Os homens não imaginavam que tivessem alguma participação no nascimento de uma


criança, e isso, segundo esses relatos, continuou ignorado por milênios. Também não
existia a idéia de casal, e cada mulher pertencia igualmente a todos os homens, e cada
homem a todas as mulheres. Cada criança tinha vários pais e várias mães, e o
reconhecimento das relações entre parentes dava-se por meio da família da mãe.

Nesse universo predominava o pensamento mágico-religioso, que caracterizou o


período inicial da caça e da coleta (paleolítico). As estatuetas desse período, encontradas
em abundância, eram femininas e foram chamadas as “Vênus pré-históricas”, apresentando
exageradas características sexuais, o que aponta para a capacidade procriadora da mulher,
símbolo de fertilidade que estava presente em todo o universo. Essas estatuetas, feitas de
marfim de mamute, pedra macia ou argila misturada com cinza e depois cozida, datam de
30.000 a 25.000 a.C. A estátua mais famosa desse período é a de Vênus de Willenfdorf,
desenterrada próxima de Viena, na Áustria. Mede mais ou menos 12 cm de altura e
representa uma mulher de nádegas e seios imensos, quadris largos, barriga proeminente e
uma grande fenda vaginal. A teoria mais provável é que ela represente uma deusa da
fertilidade (LINS, 1997).

Os objetos encontrados em mais de 60 cavernas desse tempo têm vestígios femininos,


como o ocre vermelho em câmaras mortuárias e as conchas cauris em formato de vagina.
Eles falam de uma mitologia religiosa e do que mais tarde se desenvolveria em uma
complexa religião centrada no culto a uma Deusa-Mãe como fonte e regeneradora de todas
as formas de vida.

Esses fatos são interessantes porque, história ou mito, falam de uma concepção de
mundo ligada a uma dada época. E também porque nos dizem que as sociedades se
constroem com o passar do tempo, de modos diferentes. Isso é possível porque cada
formação histórica tem seu limite e pode se reconfigurar com o tempo. De certo modo é
bom pensar nisso, o que nos permite também pensar a possibilidade de mudança.

Olhando um pouco mais...


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Segundo esses relatos, na medida em que o gelo começou a recuar para o Norte, o clima se
modificou e com isso também a vegetação, o que ocorreu mais ou menos no ano 10.000
a.C. Surgiram então os campos naturais de trigo e cevada. Na ausência da roda e de animais
de carga, era impossível para os homens transportar os alimentos colhidos. Decidiram então
se mudar para perto das plantações, para colher e plantar cereais. Por causa desses
acontecimentos, do sétimo ao sexto milênio a.C. houve uma transformação radical na vida
das populações – que foi chamada de revolução neolítica.

A revolução neolítica

A agricultura estabeleceu-se definitivamente em 6.500 a.C., e presume-se ter sido uma


invenção da mulher, devido às constantes ausências do homem, que saia para longe, para
caçar e pescar, e muitas vezes demorava muito para voltar, ou nem voltava, por causa das
guerras entre tribos e das dificuldades com o meio ambiente.

Com o passar do tempo os homens foram se dando conta de que, se continuassem matando
os animais, poderiam provocar a sua extinção. Começaram então a domesticá-los e foram
abandonando a caça. Com isso, a agricultura ganhou maior importância e a mulher também,
porque eles acreditavam que a fecundidade da mulher fecundava os campos. Tal
associação deu à mulher um enorme prestígio, e a mãe passou a ser a figura central
nessa época.

Os homens nessa sociedade não precisavam arriscar a vida como caçadores, e por isso os
valores viris do homem não eram enaltecidos – daí a ausência de deuses masculinos nesse
tempo. Nós sabemos que a religião é uma forma fundamental de sustentação das
sociedades e das ideologias, das mais variadas, desde aquelas ideologias que servem
para construir a cultura da igualdade, quanto aquelas que legitimam o poder da
exploração e dos massacres humanos. Nesse tempo, as súplicas e os sacrifícios eram
dirigidos à Deusa e toda atividade econômica estava ligada ao seu culto. Os homens não
tinham motivos para sentirem-se superiores ou para exercerem qualquer tipo de opressão
sobre as mulheres. Continuavam ignorando sua participação na procriação, e supunham que
a vida pré-natal das crianças começava nas águas, nas pedras, nas árvores ou nas grutas, no

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coração da terra-mãe, antes de serem introduzidas por um sopro no ventre de sua mãe
humana.

Esse foi um tempo pacífico: as cidades não possuíam defesas e a arte do período neolítico,
em vez da representação de guerras, sepultamentos de chefes de grupos ou fortificações
militares, apresenta símbolos de admiração e respeito pela beleza e pelo mistério da vida.

Segundo diversos mitos, a agricultura feminina de enxada era presidida pela divindade
lunar, não só pela associação com as chuvas e as águas, mas também pelo fato de a
associação entre o ciclo lunar e o menstrual constituir espécie de calendário natural das
mulheres, ao qual se relacionavam o tempo da germinação e o tempo das colheitas dos
cereais.

Floresce, assim, uma complexa religião centrada no culto da Grande Deusa Mãe, como
fonte e regeneração de todas as formas de vida, que sobreviveu à época pré-histórica,
transformando-se ao longo de muitos períodos históricos e permanecendo em amplos e
diferenciados universos culturais.

Conforme Mircea Eliade (1977), todas as religiões pré-históricas da área euro-afro-asiática


contêm um elemento de unidade baseado na Grande Deusa, da qual depende, em última
instância, a fecundidade universal. A Grande Deusa foi posteriormente chamada de Inana
na antiga Suméria, Ishtar na Babilônia, Anat em Canaãn, Ísis e Nut no Egito, Afrodite na
Grécia, Ariadne em Creta, a Senhora da Saia de Serpentes nas Américas.

Observe as imagens das deusas, observe suas características corporais. No caso das deusas,
o modelo de corpo era o gordo, porque a gordura estava associada ao calor, à vida, à força
da terra, e poderia ainda funcionar como proteção contra o frio. De certo modo, esse
imaginário sobre o gordo como algo positivo também se reproduz em outras realidades. No
meio rural ter um corpo gordo é sinal de saúde e força física, características necessárias às
atividades agrícolas. A virilidade e a força física também foram associadas às
características de caráter. A força física sempre foi associada à superioridade masculina, e a
fragilidade física sempre foi associada à inferioridade feminina. Hoje esse parâmetro parece
perder relevância, e colocamos em discussão o modelo de corpo magro, que é uma
invenção estética do século XX.
16
As deusas e os meninos e as meninas

Agora que nós já observamos alguns aspectos da nossa vida cotidiana que nos foram
inspirados pelo mundo das deusas, iremos dar seqüência a nossa reflexão a partir desse
mundo antigo de Afrodite, de Astarte, de Isis, de Atena, de Vênus, de Nut, de Ártemis, de
Istar, de Hator, para continuar a pensar sobre o que nos inspira essa sociedade e como ela
pode nos ajudar a melhorar nossos relacionamentos com o mundo e com o que é ser
menino, ser menina, ou ser homem e ser mulher nesse mundo.

Além da estreita associação entre a fecundidade da Terra que provê os alimentos, que se
renova e renasce, e a fecundidade feminina, no período neolítico (6.000 a.C. a 4.000
a.C.), segundo Lins (1997), ocorre a grande mudança social para o sedentarismo e as
transformações técnicas necessárias à domesticação dos animais, à agricultura de
enxada e à fabricação dos utensílios a serem utilizados nas sementeiras, nas colheitas e
no tratamento dos grãos.

E, com o passar dos tempos, ocorreram outras transformações, como as mudanças no modo
de trabalhar a terra, no tipo de alimentação e na habitação, e, mais tarde, os homens
descobriram sua participação na paternidade. Essas transformações – para a agricultura
baseada no arado (que substitui a enxada), o sistema de irrigação, a alimentação baseada em
cereais e o conhecimento da participação masculina no processo da reprodução – fazem
com que a mulher perca sua imagem central na organização da sociedade.

Os mais de 15 mil anos, interpretados como um tempo em que os homens e as mulheres


viviam em harmonia consigo mesmos e com a natureza, foram encerrados quando um deus
masculino decretou que a mulher era inferior ao homem e que deveria ser subserviente a
ele. Assim, a humanidade é dividida em duas partes, a parte feminina e a parte masculina,
com o domínio da parte masculina sobre a feminina. A partir de então, todas as relações
humanas se adaptariam a esse modelo.

MAS COMO ISSO ACONTECEU?

A participação dos homens nas atividades das mulheres

17
Quando os homens abandonaram a caça e começaram a participar das atividades das
mulheres, inicialmente, ajudavam a desbravar a terra, depois domesticaram os animais e os
incorporaram aos arados. A convivência com os animais fez com que percebessem dois
fatos surpreendentes: AS OVELHAS SEGREGADAS dos carneiros NÃO GERAVAM,
NEM PRODUZIAM LEITE, PORÉM, NUM INTERVALO DE TEMPO, APÓS O
CARNEIRO COBRIR A OVELHA, NASCIAM OS FILHOTES. E o mais surpreendente
era que um macho conseguia cobrir muitas ovelhas.

Associando essa observação a sua própria vida, descobriram, surpresos, que eram eles os
fertilizadores da mulher. A partir dessa descoberta a história da humanidade mudou. A
compreensão do homem sobre a sua superioridade física, de agora em diante,
encontra espaço para se transformar em superioridade ideológica: o homem começa a
mandar na mulher e a decidir o que ela devia fazer. Ele faz isso através do controle da sua
fecundidade e da sua sexualidade. Daí para frente, em vez de um parceiro, a mulher
passou a ter um opressor. É o que nós conhecemos como sistema patriarcal. No patriarcado
o homem é o centro do universo, da terra, da casa e da propriedade. O elemento básico é a
autoridade patriarcal e obediência ao senhor, devotada pela tradição. Nesse sistema a
autoridade paterna não pode ser questionada.

No contexto do patriarcado, às vezes as mulheres compartilham com o patriarca desse tipo


de autoridade baseada na tradição, quando funcionam como agentes econômicos, provendo
alimentos pelo cultivo da terra e pelo processamento dos seus produtos. Nesse caso,
funciona a divisão do trabalho. Quando, porém, o patriarca possui poder sobre as mulheres,
elas estão sujeitas aos homens. Então, o patriarca possui poder para reconhecer ou repudiar
as crianças que teve com elas, não se importando se são mães ou esposas ou escravas, e
nem mesmo se importando com a paternidade biológica. O controle exercido sobre as
mulheres é semelhante ao exercido sobre os animais. Esta foi a primeira forma de exercício
de poder: o controle que o homem passou a exercer sobre a fecundidade das mulheres,
segundo a antropóloga Héritier (1999).

À medida que sua riqueza aumentava, o homem ia se tornando mais importante do que a
mulher, e os filhos e a mulher passaram a ser sua propriedade. As colônias agrícolas foram

18
se expandindo e colocou-se a necessidade de mais gente para trabalhar. Quanto mais filhos,
melhor.

Veja só: isso acontece porque nas sociedades agrícolas era necessário maior quantidade de
pessoas para o trabalho. Em nosso tempo ainda é assim. Filho é importante mão-de-obra no
campo. Mas naquele tempo as mulheres, fornecedoras da futura mão-de-obra, passaram as
ser encaradas como objetos e se tornaram, elas mesmas, mercadorias preciosas. Eram
trocadas entre tribos, ou então roubadas como parte da propriedade dos homens.

Essas relações entre paternidade e filiação foram fundamentais na história humana, porque,
a partir da descoberta da paternidade, os princípios feminino e masculino se
separaram, e o sexo tornou-se fundamental na religião. Daí para frente, um Deus
homem irá governar o mundo. A segurança econômica, presente e futura, será calcada na
fertilidade da lavoura, do rebanho e da mulher, o que será a preocupação básica das
comunidades agrícolas e pastoris.

A expansão agrícola

No auge da expansão agrícola, as mulheres contribuíram muito e, ainda, eram


reverenciadas pela sua fertilidade associada à terra. Mas os homens começaram a abrir a
terra a fim de prepará-la para o plantio. A associação simbólica do arado com a força de
arar a terra e prepará-la para a semeadura constitui um paralelo com o pênis. O órgão
rapidamente assumiu uma posição fundamental e o homem se vê como um fertilizador da
terra. Do mesmo modo, por associação, ele afirma que era seu sêmen quem implantava a
vida no útero da mulher, e por isso passa a considerá-la como uma simples caverna
protetora. A função da mulher é então de canteiro germinador e responsável pelo
crescimento da vida até estar pronta para vir ao mundo. Por causa disso o pênis tornou-
se o objeto natural de adoração e fé religiosa. No início, o elemento sexual na religião
estava, segundo Lins (1997), associado aos genitais femininos. No Egito, por exemplo,
atribuíam-se poderes mágicos a uma conchinha, que mais tarde passou a ser usada como
moeda. Mas, quando o elemento sexual religioso tomou a forma de um culto fálico, essas
divindades fálicas começaram a ser veneradas.

19
Segundo relatos de Lins (1997), em alguns templos antigos dedicados a divindades fálicas,
o deus esculpido em madeira era visitado com tanta freqüência por mulheres estéreis e
esperançosas de engravidar – já que a infertilidade da mulher passou a ser considerada um
castigo –, que o pênis se desgastava pelo manuseio, pelos beijos, fricções e sucções a que
era submetido. Para solucionar o problema, os sacerdotes fabricavam um falo muito
comprido, que emergia de um orifício entre as coxas do deus. Quando a ponta se
desgastava, eles por trás davam marteladas, empurrando um pouco o pênis, para permitir a
continuidade dessas práticas religiosas.

Desde esses acontecimentos, muitos preconceitos contra as mulheres passaram a ser


construídos. E, fazendo um grande salto na história, nós podemos ver como as concepções
sobre a inferioridade das mulheres vão se recolocar em muitas outras épocas.

A inferioridade feminina

Para Augusto Comte, filósofo positivista do século XVIII (1798), quando a revolução
industrial já havia se desenvolvido, os operários deveriam se espelhar nas mulheres para
aprender a viver dignamente. Dizia ele que, como as mulheres sabiam seu lugar natural no
lar, os operários deveriam saber seu lugar natural na fábrica.

As mulheres sabiam que na hierarquia cabia ao marido ser seu chefe, e a elas restava a
obediência ao seu senhor e o cumprimento do seu papel na educação dos filhos, para que
eles se tornassem cada vez mais dedicados, organizados e cientes dos seus deveres. Era essa
mesma moral do dever de obediência e de amor altruísta que Comte pregava como
fundamentos de uma religião universal, capaz de manter a ordem e o progresso social e
familiar. Entre marido e mulher, dizia ele, a norma naturalmente é a seguinte: cabe ao
homem a sua parte como o mais apto e o mais forte. Os elementos constituintes da
sociedade civil, para ele e para muitos outros pensadores da época, são lares com chefes
masculinos. O lugar da mulher é no lar, onde é subordinada ao melhor julgamento do
homem, e ao mesmo tempo ela cumpre importante função na educação dos filhos, para o
amor altruísta, abnegado e cumpridor dos seus deveres. Mais do que preocupados com seus
direitos, os cidadãos deveriam estar cientes dos seus deveres.

20
Isso faz parte de um conjunto de idéias que nasceram junto com outros pensadores e que
estavam presentes no momento em que Comte escrevia. Por exemplo, David Hume
(filósofo empirista) defendia as virtudes da solidariedade e a ligação de todo ser humano
com o sofrimento alheio, mas também assumia uma perspectiva tradicional sobre o lugar
das mulheres. Dizia Hume que os homens eram os chefes naturais do lar e que as mulheres
não deviam participar das relações morais estabelecidas entre os homens. Nessas relações
as solidariedades naturais (próprias das mulheres) eram substituídas por normas de justiça,
para as quais as mulheres não eram adequadas porque a elas cabia o cuidado da casa e da
procriação. Os homens eram porta-vozes adequados para a família. Como Aristóteles
(filosofo na Grécia antiga), Hume argumentava que havia diferentes virtudes para as
mulheres: recato e castidade eram virtudes para as mulheres e não para os homens. Para
Rousseau (filósofo contratualista), a natureza feminina sujeitava as mulheres à autoridade
masculina. Ele dizia que as mulheres eram naturalmente mais fracas, apropriadas para a
reprodução e não para a vida pública. Dizia também que as mulheres deviam ser educadas
para agradarem aos homens e serem mães, para construírem os deveres morais de uma
civilização. Elas deviam ensinar aos povos a obediência, o respeito e a submissão. Deviam
ser educadas na reclusão sexual e na castidade que legitimava a paternidade. Deviam
aprender a estimular o desejo masculino e ao mesmo tempo impedir o desejo estremado dos
homens, o que os levaria à degradação moral. Rousseau dizia ainda que os homens deviam
ter cuidado com as mulheres, porque a sedução delas era própria da sua natureza. Segundo
ele, as mulheres eram desejosas de agradar, modestas, tolerantes com a injustiça, ardilosas,
vãs, e artísticas em grau menor. Por isso, na família os homens deviam governar essas
frívolas criaturas.

Comte busca as bases do seu pensamento nessas idéias, que se fundamentam no


determinismo biológico, que diz fazer parte da essência feminina ser mãe, e que a mulher
só se realiza na função materna. Por causa de sua experiência de amor em relação a Clotilde
de Vaux, por quem foi apaixonado até sua morte, ele sacraliza a mulher no papel de Virgem
Maria, como aquela que possuía uma força imensa na construção do caráter e da vontade
dos homens. A mulher se torna “peça fundamental” na construção da ordem familiar
e social, ainda que seja apenas pelo cumprimento do seu dever e por meio da
abnegação, virtudes que caracterizavam o espírito da época.

21
Nós encontramos ainda hoje muitas formas de dominação nas famílias, principalmente
nas mais tradicionais, onde é claro o papel dominador do homem e onde a mulher
desempenha funções subordinadas e tarefas de menos status. Nessa forma de organização,
que exclui a possibilidade de igualdade e de reciprocidade entre os sexos, as famílias
tradicionais ensinam esses valores aos filhos homens e às filhas mulheres. Tal organização
funciona como modelo, em que o pai é o chefe, e a mulher é a educadora e a guardiã da
honra do marido e da educação dos filhos. Essa família se fortaleceu durante a era da
Revolução Industrial, quando houve uma separação nítida entre o público e o privado, e
quando a casa ficou configurada como o lugar das mulheres, embora muitas mulheres
pobres estivessem também nas fábricas. E mesmo hoje, se dentro de um modelo patriarcal,
trabalham muito dentro e fora de casa para manter e sustentar a vida.

Observe o que diz uma plantadora de fumo de Nova Trento, Santa Catarina, no contexto de
uma sociedade agrícola tradicional – texto retirado da dissertação de mestrado de Maria de
Lourdes Tamanini Cipriani:

Ser uma mulher eu acho que pela vida que eu passei, se fosse um
homem, era melhor; a mulher sofre mais, trabalha de dia e de noite,
minha filha, de manhã levá os filhos prá roça comigo, coloca eles
numa cabana que fiz, 3, 4, crianças (...). Quando voltava do fumo
era fazer aqueles pingo de comida, que não tinha, rápido, 11:30h
começa o almoço, lavava mal a louça e voltava pro fumo, (...); a
mulher trabalha na roça também, faz tudo igual ao homem, mas o
homem não quer saber do serviço da casa, acha que é da mulher; o
certo seria, então, que a mulher ficasse só com o serviço da casa,
que já é demais (O.F.V., 57 anos).

Hoje há também muitas mulheres que se libertaram das normas tradicionais, e muitas
conquistaram sua independência. O papel do homem provedor da casa já é bem
questionado, e às vezes ele se sente até perdido por causa disso. Podemos até encontrar
situações em que a mulher ocupa um lugar valorizado na relação com a sociedade. E o

22
homem, em alguns casos, é considerado mais passivo. Encontramos até aqueles homens
que ficam em casa cozinhando, lavando e passando, enquanto a mulher sai para o trabalho
(SIQUEIRA, 1998). E há também aquelas situações, consideradas ideais por muitos, em
que tanto homens como mulheres são profissionais, e na esfera privada a mulher exerce a
função de mãe, e o homem a de pai. Ambos vivem a reciprocidade.

Mas ainda assim precisamos analisar como vão as coisas a partir de estatísticas sobre as
relações de trabalho, e como isso influencia a vida dos jovens, como a dominação se
recoloca a cada dia de outras maneiras. Precisamos pensar hoje sobre os papéis dos
meninos e das meninas nesse novo mundo.

No mercado de trabalho, mesmo se considerado o crescimento, o gênero feminino ainda


está sub-representado, pois as mulheres (51% da população brasileira) possuem somente
40% dos empregos, enquanto os homens detêm 60% dos lugares.

A esta altura você deve estar se perguntando por que fazer um caminho tão longo para
chegar ao presente. Leve em conta que é sempre bom contar a história de outro modo,
pensar naquilo que não costuma ser contado nos textos oficiais. Refletir sobre outras
formas de organização social pode nos fazer compreender nossa própria forma de ver o
mundo e organizar nossas relações políticas, econômicas, culturais, religiosas. Pode
nos ajudar a pensar nos valores que nos orientam e quem sabe, a partir de um poder que não
seja patriarcal, como tem sido o paradigma dominante de nossa cultura ocidental, possamos
produzir conhecimento que nos leve para uma vida decente, livre das desigualdades.

Referências bibliográficas

CIPRIANI, Maria de Lourdes Tamanini. Representações sociais e perspectivas de vida de


mulheres fumicultoras: articulando gênero e trabalho. 1997. Centro de Ciências da
Educação, UFSC, Florianópolis.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Lisboa: Cosmos, 1977.
GÉLIS, Jacques. L’arbre et le fruit: la naissance dans l’Occident moderne XVI e – XIX
siècle. Paris: Fayard, 1984.
HÉRITIER, Françoise. Masculino feminino: o pensamento da diferença. Lisboa: Instituto
Piaget, 1999.
KNIBIEHLER, Yvonne. Histoire des mères et de la maternité en Occident. Paris: PUF,
2000. (Coleção Que Sais-Je?).

23
LINS, Regina Navarro. O passado distante. In: _____. A cama na varanda: arejando nossas
idéias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
SIQUEIRA, Maria Juracy Tonelli. A constituição da identidade masculina: homens das
classes populares em Florianópolis. In: Pedro, Joana Maria; Grossi, Miriam Pillar (Orgas).
Masculino feminino plural. Florianópolis: Editora Mulheres, 1998. p 209-227.

24
TEXTO DOIS

ORIGEM DOS ESTUDOS DE GÊNERO

Por Ari José Sartori

Introdução

No capítulo anterior você conheceu um pouco mais sobre as raízes da desigualdade entre
homens e mulheres que remontam à idade neolítica, que, segundo alguns historiadores e
algumas historiadoras, ocorreu com a descoberta da agricultura e a domesticação dos
animais. Já o positivismo do século XIX se espelhou na submissão das mulheres para
submeter os operários à exploração nas indústrias. Também o século XIX é o auge do
capitalismo industrial, do desenvolvimento das grandes cidades européias e americanas e da
utilização intensiva da mão-de-obra masculina, feminina e infantil nas indústrias. Podemos
creditar a essa época as mais variadas formas de reivindicação dos direitos das mulheres em
diferentes locais do planeta, o que mais tarde foi designado como feminismo.

No Brasil, as primeiras organizações de mulheres surgiram após 1850, com a bandeira


do voto e da educação. Antes disso, o acesso das mulheres à educação era somente
permitido até o ensino básico, que se preocupava apenas em ensinar a ler e a escrever, e
cuja ênfase estava no aprendizado de prendas domésticas e de música. Somente em 1871 as
mulheres conquistaram o direito de freqüentarem os cursos de formação para o magistério.
No entanto, havia um currículo específico para a educação feminina que incluía bordado
branco em filó, corte de roupas, entre outras habilidades.

A intensa participação das mulheres no contingente de trabalhadores brasileiros


assalariados no final do século XIX e início do século XX representava 78% da mão-de-
obra no setor industrial. Na agricultura, que era a atividade econômica mais importante, os
homens eram ainda maioria.

As precárias condições de trabalho e a dupla exploração de sexo e de classe a que a maioria


das mulheres trabalhadoras estavam submetidas levaram-nas a reivindicar melhores
condições de trabalho, redução da jornada, fim da exploração sexual. Foram elas as

25
protagonistas de diversas mobilizações e greves gerais no Brasil no período de 1900 a
1930.

O movimento sufragista, que culminou no direito das mulheres ao voto, sancionado em


1934, bem como a conquista de uma maior participação e acesso ao ensino médio e
superior são frutos das lutas de mais de 40 anos.

Em 1949 era fundada no Brasil a Federação Democrática de Mulheres de Influência


Comunista, que colaborou em diversas manifestações da década de 50, como a campanha
“O petróleo é nosso”. Ao mesmo tempo, na França, Simone de Beauvoir publicava o
Segundo sexo, que influenciou decisivamente na construção teórica do feminismo
moderno.

Nos anos 60, os movimentos reivindicatórios, principalmente europeus, questionavam os


valores da sociedade industrial, colocando em cheque o estado de bem-estar social. Tais
movimentos demonstravam que não é só de comida que as pessoas necessitavam. Essas
reivindicações permitiram o surgimento de vários movimentos específicos (mulheres, gay e
lésbicas, negros, índios, ecológicos, entre outros), cuja ênfase estava na denúncia da
condição de opressão. Particularmente o movimento feminista denuncia a opressão sofrida
pelas mulheres.

Origem dos estudos de gênero

A origem dos estudos de gênero pode ser creditada às lutas que se seguiram a esses
diferentes movimentos sociais dos anos 60, de modo especial às mobilizações de 1968
ocorridas em vários países da Europa e nos Estados Unidos. Com efeito, nas lutas
libertárias que eletrizaram corações e mentes no final dos anos 60, a participação das
mulheres era intensa. Na mídia, e mesmo em filmes e livros, esse período é fartamente
descrito como os “anos dourados” dos movimentos sociais. No entanto, as mulheres logo
perceberiam que essa participação em “pé de igualdade” com os homens nas lutas sociais
não tinha correspondência na representação política. Nesse aspecto sua atuação ficava em
segundo plano, pois

raramente elas eram chamadas a assumirem a liderança política:


quando se tratava de falar em público ou ser escolhida como
representante do grupo elas sempre eram esquecidas e cabia-lhes
em geral o papel de secretárias e ajudantes de tarefas consideradas
26
menos nobres como fazer faixas ou panfletear (GROSSI, 1998, p.
2).
A conscientização dessa invisibilidade de atuação política das mulheres militantes iria
desencadear mudanças radicais, tanto no comportamento público quanto no âmbito
privado. Neste último, a maior “revolução” talvez tenha sido a que ocorreu no plano da
subjetividade, mais precisamente no plano sexual, pois aquele foi o momento em que a
virgindade deixa de ser um valor fundamental: “o casamento começa a ser amplamente
questionado e se começa a pensar mais coletivamente, no Ocidente, que o sexo poderia ser
fonte de prazer não apenas destinado à reprodução da espécie humana” (GROSSI, 1998, p.
2).

É a partir dessa problemática que começam os debates em torno do que se configurou como
os estudos da condição feminina: tratava-se dessas questões como se os problemas que
afligiam as mulheres devessem ser pensados unicamente pelas mulheres, reflexo de uma
das práticas do movimento feminista, a da não-mixidade. Dizendo de outro modo, as
feministas pensavam que as questões das mulheres deveriam ser única e exclusivamente
discutidas pelas mulheres, entendendo que a simples presença de homens nessas discussões
inibiria ou mesmo oprimiria as mulheres. A pesquisa que Helieth Saffioti publica no final
dos anos 60, intitulada A mulher na sociedade de classe, passa a ser referência nos estudos
sobre a opressão das mulheres no Brasil. Assim, as operárias, as camponesas e as
empregadas domésticas, consideradas em situação de dupla opressão – de classe e de sexo
–, tornam-se cada vez mais objeto privilegiado de estudo nas pesquisas com mulheres.

A condição feminina só daria lugar aos estudos sobre as mulheres nos anos 80. Segundo
Miriam Grossi, nas pesquisas realizadas ao longo da década de 70, “se percebe que não é
possível falar de uma única condição feminina no Brasil, uma vez que existem inúmeras
diferenças, não apenas de classe, mas também regionais, de faixa etária, de ethos, entre as
mulheres brasileiras” (GROSSI, 1998, p. 2). No entanto, embora os estudos sobre as
mulheres brasileiras tenha recebido um impulso extraordinário nessa década, a referência,
segundo a autora, continua sendo a unidade biológica das mulheres, isto é, que todas as
mulheres, independentemente de sua condição social de origem, se reconhecem pela
morfologia do sexo feminino (vagina, útero, seios).

27
No Brasil, em 1987, mais precisamente em publicação da Associação Nacional de
Pesquisadores de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), Elizabete Souza-Lobo
divulga o artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, de Joan Scott. A partir
desse momento, os pesquisadores e as pesquisadoras brasileiras começam a utilizar essa
categoria como instrumental de análise, apesar de, já há algum tempo, pesquisadoras norte-
americanas terem utilizado a palavra gender para as identidades sociais de homens e
mulheres (SCOTT, 1990). A partir daí, o conceito de “gênero” seria amplamente
empregado nos discursos sobre a sociedade oriundos das mais diferentes instituições, tais
como universidades, ONGs, escolas, sindicatos, etc.

Uso e abuso do conceito de gênero

É a partir das diferentes concepções dos estudos de gênero, que inicialmente se referiam à
“condição feminina”, a seguir à “problemática da mulher” e hoje majoritariamente ao
“gênero” enquanto categoria de análise, que as várias teorias procuram “explicar”, no plano
cognitivo, as categorias “homem” e “mulher”. Ou seja, desde o século XIX existe a idéia de
que a categoria “mulher” é uma construção social, mas eram visíveis as dificuldades
teóricas para explicar a opressão das mulheres nas diferentes teias de relações sociais em
que homens e mulheres cotidianamente convivem. Assim, por um lado, enquanto os
estudos da condição feminina tinham a pretensão de homogeneizar todas as mulheres
(desconsiderando as diferenças de classe, raça e idade), por outro, a ênfase dos estudos na
problemática da mulher priorizava a questão de classe. Ambas as teorias demonstravam a
falta de uma articulação das diferentes esferas em que se dá a opressão sobre as mulheres. É
nas limitações dessas teorias que surge o conceito de gênero enquanto categoria relacional,
conceito que procurará articular as relações historicamente determinadas para além das
diferenças de sexos, e é sobretudo uma categoria que procura dar sentido as diferença
(SCOTT, 1990).

Sexo, gênero e identidade de gênero

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Parece ser corrente ainda hoje que há uma certa dificuldade em se diferenciar ou mesmo
“descolar” categorias como sexo, gênero e identidade de gênero, incluindo também nessa
“confusão” a sexualidade. E não é para menos. Há uma associação muito grande entre a
anatomia (que é biologicamente dada) e os papéis sociais de homens e mulheres (que são
socialmente construídos). Assim, as crianças, logo ao nascer (muitas vezes ainda no útero,
com as novas tecnologias como a ultra-sonografia, que detectam o sexo do bebê), são
“rotuladas” conforme os atributos de gênero: aos meninos, os atributos de força, de
atividade, de controle dos sentimentos, a cor azul; às meninas, os atributos como
delicadeza, passividade e expressão das emoções, afetividade, e a cor rosa.

A desconstrução dessas categorias encontra dificuldades no próprio uso gramatical das


palavras, pois, “através dos séculos, as pessoas utilizaram de modo figurado os termos
gramaticais para evocar os traços de caráter e os traços sexuais” (SCOTT, 1990, p. 5).

Fruto das reflexões e da elaboração teórica das feministas nos anos 40 e do novo feminismo
da metade dos anos 60, o uso do termo “gênero” se firma nos Estados Unidos e na Europa
nos anos 80.

No entanto, a primeira disciplina a introduzir o conceito de gênero foi a psicologia, em sua


vertente médica, com o pesquisador John Money, em 1955, mas quem estabelece
amplamente a diferença entre sexo e gênero é o psicólogo norte-americano Robert Stoller,
no livro Sexo e gênero, publicado em 1968. Para o autor, o que determina a identidade e o
comportamento de gênero não é o sexo biológico, mas o fato de o indivíduo ter vivido
desde o nascimento a experiência, ritos e costumes atribuídos a determinado gênero. Assim,
“sexo” está relacionado aos componentes biológicos, anatômicos e “gênero” está ligado aos
aspectos psicológicos, sociais e culturais. Ou seja, “gênero serve portanto para determinar
tudo que é social, cultural e historicamente determinado” (GROSSI, 1998, p.6).

A partir dos anos 60, a teoria crítica feminista faz uma separação conceitual de sexo e
gênero, dando a entender que gênero é elaboração cultural do sexo e chamando a atenção
para as diferenças entre o sexo biológico e a identidade atribuída e assumida pelo
indivíduo, uma vez que ele é mutável e dependente dos atributos sociais, nas mais variadas
culturas (COSTA, A.; BRUSCHINI, C. 1992). Nesse aspecto está o pioneirismo do

29
trabalho realizado por Margareth Mead na Nova Guiné nos anos 30. Ela estudou três
diferentes sociedades, entre as quais a dos Arapesh, na qual observou que no
comportamento os homens, comparados aos homens da sociedade americana, eram
considerados “naturalmente” femininos: mostravam-se cuidadosos e afetivos com as
crianças, realizavam as atividades domésticas, etc.

Rejeitando o determinismo biológico de outros termos, como “sexo” ou “papéis sexuais”, o


termo “gênero” procura distinguir a categoria homem/mulher (vinculada ao biológico) e a
categoria masculino/feminino (relacionada aos aspectos sociais), estabelecendo dessa forma
mais claramente as diferenças conceituais entre sexo e gênero.

É fundamentalmente isso que Stoller (1993) procurou demonstrar a partir de suas pesquisas
com hermafroditas: a biologia por si só não garante que se tenha as características de
gênero, uma vez que as formas femininas e masculinas se encontram presentes em pessoas
cuja anatomia não necessariamente corresponde ao gênero atribuído. Além disso, a maneira
que determinada cultura aceita ou rechaça a correspondência entre sexo e gênero varia
muito. O autor conclui com seus estudos, a partir da perspectiva psicológica, que gênero é
uma categoria em que se articulam três instâncias:

a) a atribuição de gênero (rotulação, classificação), que se dá no momento em que nasce

o bebê, a partir da aparência externa dos genitais. Assim, o sexo é o estágio mais inicial

do desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade. É neste estágio que os atributos

de gênero são designados e o bebê é rotulado como menino ou menina;

b) a identidade de gênero, que se estabelece mais ou menos na mesma idade em que a


criança adquire a linguagem. Anterior às diferenças anatômicas entre os sexos, é, segundo o
autor, praticamente impossível mudá-la. A partir desse momento, até mais ou menos três
anos (idade em que acontece a passagem do complexo de Édipo e a aquisição da
linguagem), estrutura-se o “núcleo da identidade de gênero” (“NIG”), ou seja, o sentimento
de ser menino ou menina. Esse núcleo é praticamente inalterável, pois, mesmo que haja
mudanças na identidade de gênero, esta não o atinge. Isso possibilita compreender por que
um sujeito homem pode não só experienciar-se homem, mas também masculino, ou um

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homem afeminado, ou um homem que se imagina mulher (travesti), e no entanto suas
experiências, sua “visão de mundo” estarem caracterizadas como de um “ser homem”;

c) o papel de gênero, que se forma do conjunto de normas e prescrições que a sociedade e a


cultura ditam sobre o comportamento masculino ou feminino. Mesmo que as diferenças
sexuais sejam a base sobre a qual se assenta uma determinada distribuição de papéis
sociais, sua atribuição não se desprende “naturalmente” da biologia; antes, é um fato social.
Assim, o papel de gênero refere-se às mais diferentes expectativas dos comportamentos
sociais das pessoas que possuem um determinado sexo. Esses comportamentos são
definidos em cada cultura, muitas vezes uma se opondo a outras, estando ligados a certos
ideais de masculinidade e feminilidade e relacionados a um modelo de divisão sexual do
trabalho.

Assim, quando nos referimos a alguma pessoa, utilizamos dois termos para “classificá-la” –
mulher ou homem –, evocando e refletindo, na realidade, o sexo do indivíduo. No entanto,
essa caracterização para os seres humanos (diferentemente dos animais) é muito restrita,
pois somos uma realidade complexa relacionada a três níveis:

a) Sexo: nos referimos a fêmeas e a machos, cuja atribuição é dada pela anatomia
(biológico);

b) Identidade de gênero: gênero psicológico e social – estamos falando de


feminino/masculino, o que é construído socialmente e que varia de cultura para cultura;

c) Identidade psicossexual: heterossexual, bissexual, transexual e/ou homossexual.

Combinando esses três níveis, muitas vezes vem a confusão. Por exemplo, quando um
macho tem um comportamento feminino e uma fêmea, masculino, são, geralmente,
definidos como homossexuais. No entanto, uma fêmea feminina e um macho masculino
supõe-se que sejam heterossexuais (o que nem sempre é assim). Nesse sentido, se ao nascer
se diz de alguém que é fêmea, e que é reconhecida como tal (pela rotulação), e ela também
se reconhece como tal e aceita o papel social que lhe é designado, procurará “trabalhar” seu
corpo para desempenhar tal papel. Segundo Robert Stoller, a masculinidade é uma
qualidade que é sentida, isto é, uma convicção. E vai mais longe, falando de masculinidade
e feminilidade ao considera-las não enquanto verdades eternas, uma vez que podem ser
modificadas junto com as mudanças que ocorrem na sociedade. (STOLLER, 1993).
31
As controvérsias

No entanto, há controvérsias: nem todas as pessoas concordam com a proposta de Stoller


(1993) acerca da “identidade de gênero Quartim de Moraes (1998), a partir das formulações
de Bleichmar (1988), considera limitada essa definição porque nela são predominantes as
características anatômicas. Moraes acentua a dimensão cultural do “sentimento de ser
homem” e o “sentimento de ser mulher”. Trata-se, portanto, da discussão entre “natureza” e
“cultura” (que você leu no capítulo anterior), constitutiva do conceito gênero, pois aborda
justamente as elaborações sociais e culturais sobre o sexo (biológico) que se dão a partir de
um processo educativo intenso, seja espontâneo (por imitação), seja interventivo
(educação). Ou seja, o corpo se inaugura no social, que o constrói e lhe imprime as marcas
da cultura. É o que sugere o antropólogo Marcel Mauss ao verificar que a sociedade cria
técnicas para e sobre o corpo, a partir da tríplice relação constante entre o biológico, o
sociológico e o psicológico:

O corpo é o primeiro e mais natural instrumento do homem.


Ou, mais exatamente, o primeiro e o mais natural objeto
técnico, e ao mesmo tempo meio técnico do homem e seu
corpo. [...]. O ato impõe-se de fora, do alto, ainda que seja um
hábito exclusivamente biológico e concernente ao corpo. No
ato imitador encontra-se todo o elemento psicológico e
biológico. Mas o todo, o conjunto, é condicionado pelos três
elementos indissoluvelmente misturados (MAUSS, 1974, p.
215).

Trata-se, em última instância, da “disputa” sobre qual dos corpos (o biológico ou o


simbólico – este último englobando o sociológico e o psicológico) o gênero inscreverá a
sua identidade, ou seja, se o sexo biológico está incluído no conceito de gênero como
defende Kehl (1998) ou se, como propõe Stoller (1993), a identidade masculina ou
feminina pode se constituir em desacordo com o sexo. Esse tema já vem sendo tratado há
algum tempo nas ciências sociais, principalmente na antropologia, a partir de várias
pesquisas junto às sociedades sem escrita.

32
Alguns autores (GOMARIZ, 1992; LAMAS, 1986; SCOTT, 1990) afirmam que não há um
acordo entre as diversas teorias feministas sobre os conceitos relacionados a sexo e gênero.
No entanto, defendem que essas diferenças conceituais se fazem necessárias, uma vez que
gênero é um substantivo que denomina classe (SCOTT, 1990).

A distinção entre sexo e gênero tem sido aceita como forte argumento para se enfrentar as
idéias biologicistas. Assim, já não se pode aceitar que as mulheres sejam “por natureza”
(isto é, em função de sua anatomia, de seu sexo) o que a cultura designa como “feminina”
(passivas, vulneráveis), passando-se a reconhecer que as características chamadas
“femininas” (valores, desejos, comportamentos) se assumem mediante um complexo
processo individual e social – o processo de aquisição de gênero.

É importante analisar a articulação entre o biológico e o social, ou seja, não negar as


diferenças biológicas entre mulheres e homens, mas há que se reconhecer que o gênero
marca a diferença fundamental entre os sexos e que a biologia não pode ser considerada a
origem e a razão das diferenças entre os sexos (principalmente a subordinação). Butler
(1998) mostra que o gênero designa a produção constitutiva dos sexos. Aliás, não
considerar outros aspectos (sociais, ecológicos, psicológicos e também biológicos) é
restringir a questão, como têm demonstrado inúmeras pesquisas, pois a predisposição
biológica não é suficiente por si só para provocar um comportamento.

Nessa perspectiva gênero passa a ser entendido como “uma construção social, uma
interpretação social do biológico; o que faz feminina a uma fêmea e masculino a um macho
não é a biologia, o sexo, pois, assim sendo, não se levantaria o problema” (LAMAS, 1986,
p. 186). Isso porque tais características estão além da determinação anatômica (aparência e
características genitais), pois se complementam com atitudes de ser, sentir e atuar.

O conceito de gênero: um conceito relacional

Na teorização de Scott (1990), o gênero é considerado como uma forma primária de dar
significado às relações de poder (mesmo que não seja único), ou seja, é o campo primário,
no interior, ou por meio do qual o poder é articulado. Segundo essa teoria, os conceitos de
gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social. É
exatamente nesse aspecto que está a importância desse conceito, pois ele “coloca em
33
evidência a maneira pela qual o poder é definido, estruturado e exercido” , como bem
formulou Sheila Rowbotham em entrevista concedida à revista Estudos Feministas em
outubro de 1998 (GOLDENBERG; SORJ, 1998, p. 367). Nesse sentido, gênero é para
além de homens e mulheres concretos, uma vez que, enquanto uma categoria de análise,
possibilita diferenciações entre pessoas, coisas ou situações vivenciadas.

Já para Grossi e Miguel (1990) o conceito de “gênero” surge no interior da teoria feminista,
com o claro objetivo de “desnaturalizar e dessubstancializar a noção de feminino e
masculino” nas análises que vinculam os papéis sexuais ao seu substrato biológico. Trata-se
de um produto das relações sociais e culturais que tem duas outras premissas definindo
mais precisamente o significado do conceito: 1ª) a “idéia de que as identidades de gênero se
constroem de forma relacional”, ou seja, pelo contraste com o outro; 2ª) o “fato de que as
relações entre homens e mulheres não são estanques, mas dinâmicas”, constituindo-se o
gênero como uma condição mutável e conjuntural. É o que nos faz lembrar a frase clássica
de Simone de Beauvoir no Segundo sexo: “não se nasce mulher, mas torna-se mulher”.
Esta condição também pode ser estendida para o gênero, ou seja, não se é masculino ou
feminino, mas sim se está masculino ou feminino. Compreender que o masculino e o
feminino estão permanentemente em mudança é entender que “em todas as sociedades do
planeta o gênero está sendo todo o tempo ressignificado pelas interações concretas entre
indivíduos do sexo masculino e feminino. Por isso diz-se que o gênero é mutável”
(GROSSI, 1998, p. 7).

Pensar gênero na perspectiva de que as identidades se constroem de forma relacional leva-


nos a falar em “relações de gênero”, pois existe uma complementaridade entre o
masculino e o feminino, necessária a essas relações (COSTA A.; BRUSCHINI, C. 1992).
Ao se adotar a idéia de que gênero é relacional e não identitário considera-se “que gênero
não se refere unicamente a homens e mulheres e que as associações homem–masculino e
mulher–feminino não são óbvias” (COSTA, C. de L. 1996, p. 185).

A utilização do termo “relações de gênero” explicita o aspecto relacional implícito no


conceito de gênero, demostrando que esse termo permeia todos os aspectos da experiência
humana e aponta para os mais diferentes “espaços em que o gênero se constrói: o

34
mercado de trabalho, as instituições (como partidos, escolas, sindicatos), a subjetividade”
(SOUZA-LOBO, 1991).

Desse modo fica difícil afirmar que existe uma “mulher universal” e também um “homem
universal”; deve-se pensar em mulheres e homens, no plural. Também é impossível
relacionar o masculino e o feminino, como o “mundo dos homens” e o “mundo das
mulheres”, isoladamente, pois um somente existe a partir do outro.

A não-universalização das categorias “mulher” e “homem” como sendo únicas incorpora a


crítica à idéia de identidade nos estudos sobre gênero. Assim, entendendo que essas
categorias não são totalizantes, aceita-se a idéia de que existe uma pluralidade de homens e
mulheres que perpassam várias outras identidades.

Autores como Barbieri (1992) e Scott (1990) propõem que se faça uma distinção entre as
diversas maneiras em que são empregados a categoria gênero e o conceito de gênero. Existe
uma clara substituição da palavra “sexo” por “gênero” (por exemplo, nos estudos sobre
demografia, mercado de trabalho, educação e epidemiologia) que não necessariamente
passa por uma reflexão e crítica teórica metodológica. De acordo com Scott (1990), a
utilização recente mais comum de “gênero” toma-a como sinônimo de “mulheres” (como,
por exemplo, “gênero e História”, quando na realidade são estudos sobre mulheres). Para a
autora, “gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”, no sentido
de que se ajusta mais à terminologia das ciências sociais, fazendo dessa forma uma
dissociação entre a política (supostamente mais radical) e o feminismo. Ao mesmo tempo
que o termo “história das mulheres” dá visibilidade às mulheres enquanto sujeitos
históricos, o termo “gênero” apenas as inclui, sem as nomear, parecendo diminuir sua forte
ameaça.

Um outro aspecto que o termo “gênero” permite, para além da substituição do termo
“mulheres”, é que a sua utilização sugere que qualquer informação sobre as mulheres
refere-se necessariamente aos homens. Segundo essa interpretação, o estudo das mulheres
de maneira isolada perpetua o mito de que apenas a experiência de um sexo tem
visibilidade e que tem muito pouco a ver com a de outro.

35
Em conclusão, “gênero” está na base de todo um sistema de relações que pode incluir o
sexo, mas não é determinado pelo sexo, não determinando também diretamente a
sexualidade.

No entanto, apesar do uso generalizado do termo “sexo” , tanto pela academia quanto por
outros setores da sociedade, as controvérsias sobre a explicação das desigualdades que
ocorrem nas relações entre homens e mulheres permanecem.

Do mesmo modo que a explicação biológica, também o reducionismo ao gênero não pode
explicar toda a complexidade do fenômeno nessas relações, uma vez que esse reducionismo
do termo “gênero” também traz desafios e limites. Um desses desafios está em desconstruir
certa supervalorização da dimensão de gênero, que muitas vezes deixa de articular gênero a
outros aspectos da identidade social dos sujeitos, como classe, raça e etnia.

Nessa perspectiva, a utilização do conceito de gênero contribui também para se pensar


gênero de uma forma multifacetada, para se determinar como se articulam as diferentes e
múltiplas identidades incorporadas pelos indivíduos a partir de outras categorias.

Falar de qualquer identidade como sendo única, com a pretensão de abarcar todas as outras
identidades em uma espécie de “identidade maior” – como acontece na maioria das vezes
na utilização que se faz de “classe social” –, já não é tão fácil de defender, uma vez que
várias outras identidades convivem entre si, tais como nacionalidade, raça, religião, idade,
orientação sexual e de gênero. Talvez o gênero perpasse todos esses “novos movimentos
sociais” (feminismo, gays e lésbicas, entendidos, travestis, drag queens, movimento
ecológico, sindical e outros) (COSTA, R., 1996), embora não se configurando por si só em
uma identidade, pois as relações de gênero se constroem de diferentes formas, em
diferentes contextos sociais, políticos, culturais e econômicos.

Colocando gênero nessa perspectiva relacional, surgem outras dificuldades. Uma delas é
justamente pensar gênero enquanto relações sociais e incorporar, nesses estudos, por
exemplo, os homens, pois “é impossível tornar-se mulher na nossa sociedade, sem ter
conhecimento do que significa tornar-se homem, assim como creio que é impossível tornar-
se negro, sem ter conhecimento do que significa tornar-se branco – e vice-versa”
(CORRÊA, 1998, p. 54). No entanto, deve-se registrar que isso apenas recentemente tem
chamado a atenção dos pesquisadores e das pesquisadoras.

36
As diferentes masculinidades

No que se refere aos estudos sobre as masculinidades, uma das referências é Connell
(1995), que inicialmente traz para a discussão de gênero o conceito de masculinidade
hegemônica. De acordo com o conceito de masculinidade hegemônica proposto por
Connell, nas sociedades ocidentais podem ser destacados quatro padrões de masculinidade,
a saber: a cúmplice, a marginalizada, a subordinada e a hegemônica, dentre as quais
destacamos aqui as duas últimas.

A masculinidade subordinada pode ser associada ao que alguns autores e algumas autoras
chamam de “homens sensíveis”, principalmente pelo fato de se contrapor ao homem
machista. De certo modo, esse “homem sensível” é identificado como o contraponto da
masculinidade hegemônica, por sua postura diferenciada quanto à sexualidade, pela
expressão de afetos e sentimentos, opondo-se no imaginário àquele homem durão, seguro.

No campo do gênero, a utilização do conceito de masculinidade hegemônica (empregado


no sentido usado por Antonio Gramsci com relação à sociedade civil) permite entender a
masculinidade como estrutura de relações sociais, em que várias masculinidades não-
hegemônicas subsistem. Nesse sentido, a masculinidade hegemônica pode ser considerada
como “um modelo ideal, que, não sendo atingida por nenhum homem, exerce poder
controlador sobre homens e mulheres” (VALE DE ALMEIDA, 1995, p. 196).

O “modelo-padrão” de masculinidade vigente na sociedade ocidental que mais se aproxima


da masculinidade hegemônica baseia-se na necessidade de o homem se mostrar forte e
capaz; de reprimir os sentimentos; de estar sempre competindo; de ser permanentemente o
provedor; de se ocupar apenas das “coisas sérias” (como o trabalho, a política, entre
outras); de ser “proibido” constantemente de dizer “fracassei”, “não sei”, “me equivoquei”,
“não posso” (HAMAWI, 1995).

Entretanto, a masculinidade hegemônica não se refere unicamente aos comportamentos


masculinos da maioria das pessoas, mas sim a um comportamento que tanto pode ser
encontrado em homens ou mulheres, pois uma pessoa de qualquer sexo pode comportar-se
de forma masculina ou feminina. Ou, como nos informa o antropólogo português Vale de
37
Almeida em uma entrevista de 1998 concedida aos cadernos Pagu, “masculinidade e
feminilidade não são sobreponíveis respectivamente a homens e mulheres, mas são
metáforas de poder e de capacidade de ação e, como tal, acessíveis a homens e mulheres”.
(CORRÊA; PISCITELLI, 1998)

É também nessa perspectiva que Butler (1998) considera que existe um “sujeito ocidental
masculinizado” observável na esfera da política, uma vez que esta é tradicionalmente um
campo masculino. Em outras palavras, esse “sujeito ocidental masculinizado” está
relacionado com o comportamento associado à masculinidade hegemônica na qual poder-
se-iam incluir as mulheres tidas como “masculinizadas”. É esta também a opinião de
Cláudia de Lima Costa (1996), quando nos mostra a necessidade de se construir
teoricamente a categoria gênero independentemente do sexo, tendo como conseqüência a
idéia de que “homem e masculino poderiam incidir tanto sobre um corpo masculino como
feminino”.

E nós, educadores e educadoras, o que temos a ver com isso

Possivelmente você esteja se perguntando: mas como que toda essa discussão teórica
poderá ajudar na minha prática pedagógica O que esses conceitos poderão contribuir para
a minha formação profissional E, certamente, outras questões apresentar-se-ão a você.
Este será o nosso objetivo nos capítulos seguintes, pois pretendemos aproximar o conceito
de gênero da nossa prática pedagógica. Algumas páginas anteriores, procuramos
desconstruir a idéia de que gênero está vinculado somente às questões da mulher.
Procuramos, de outro modo, mostrar que gênero é uma construção social, que trata de
relações de poder e hierarquia entre homens e mulheres, que pode mudar de acordo com as
diferentes sociedades e culturas e mesmo na nossa própria sociedade. Gênero é, portanto,
“apreendido” e construído social e culturalmente, o que convencionamos chamar de
masculino ou feminino. Essa aprendizagem ocorre em todas as fases da nossa vida:
inicialmente nas relações familiares, depois nas relações dentro dos diferentes grupos de
que vamos participando e nos quais vamos interagindo. E a escola A escola é um dos
espaços nos quais se constroem, para além dos conteúdos curriculares, as idéias, os
significados, os (pre)conceitos, as concepções e os modelos que consideramos que sejam

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“ideais” de homens ou mulheres. É o que chamamos de currículo oculto, ou invisível, da
nossa prática pedagógica.

No entanto, como vimos, não existe apenas uma maneira hegemônica de ser homem ou ser
mulher, nem de orientação psicossexual e de gênero. Mas como a escola trata dessa
diversidade e trabalha com ela? Sabemos que a diversidade presente nas escolas (de classe
social, de raça e etnia e de gênero) é vista, na maioria delas, como um problema, e os
“diferentes” são estigmatizados e discriminados.

No entanto, se para as discriminações econômica e de raça temos, algumas vezes,


educadores e educadoras que procuram trabalhá-las com o objetivo de romper preconceitos,
com relação à discriminação de gênero parece existir um silêncio sobre as diferenças entre
meninos e meninas que perpassa toda a prática pedagógica, incluindo nessa prática o
próprio material didático. Se prestarmos mais atenção, poderemos observar que a escola
produz e reproduz os modelos de masculinidade e feminilidade da sociedade. É isso que
procuraremos tratar na segunda parte deste material pedagógico.

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