Laura Thalassa - The Four Horsemen 04 - Death

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Para Dan

Então estava predestinado.


Laura Thalassa
Copyright © 2021

Eles vieram à Terra—Pestilência, Guerra, Fome, Morte—quatro Cavaleiros montando seus corcéis gritando,
correndo para os cantos do mundo. Quatro Cavaleiros com o poder de destruir toda a humanidade. Eles vieram
à Terra, e eles vieram para acabar com todos nós.

Ele é conhecido por muitos nomes: Thanatos. Cavaleiro. O último Anjo de Deus. E então, é claro, há
aquele com o qual estou muito familiarizada—a Morte.

No dia em que a Morte chega à cidade de Lazarus 1 Gaumond e mata todos de uma só vez, a última coisa que ele
espera ver é uma mulher viva e de pé. Mas Lazarus tem seu próprio dom extraordinário: ela não pode ser morta—
nem por humanos, nem pelos elementos, nem pela própria Morte.

Ela é a única alma que a Morte não reconhece. A única alma que ele não pode libertar de sua carne. Ele também
não pode ignorar o desejo inquietante que ele tem por ela. Leve-a. Ele quer, desesperadamente. E quanto mais ela
tenta impedi-lo de sua matança, mais forte o desejo se torna.

Quando Lazarus cruza o caminho com os outros três Cavaleiros, uma situação impensável leva a um negócio
terrível: seduzir a Morte, salvar o mundo. Uma tarefa sem esperança, agravada pelo sangue ruim entre ela e
Thanatos. Mas a atração da Morte por ela é inegável, e por mais que ela tente, Lazarus não pode ficar longe daquele
ser antigo e belo e de seu abraço sombrio.

O fim está aqui. A humanidade está preparada para perecer, e nem mesmo os Cavaleiros podem impedir a Morte de
cumprir sua tarefa final.

Só Lazarus pode.

1
Lázarus ou Lázaro de Betânia é um personagem bíblico descrito no Evangelho segundo João como um amigo que Jesus teria ressuscitado, irmão
de Marta e de Maria. Seu nome, provavelmente do grego, corresponde ao hebraico Eleazar (‫)אלעזר‬, e significa literalmente "Deus ajudou".
- Lazarus é um nome masculino como podem ver. Mas a mocinha aqui foi nomeada com ele, então o manteremos assim, mas saibam que é um Ela.
Quando o Cordeiro quebrou o quarto selo, ouvi a voz do
quarto ser vivente dizendo: Venha! Eu olhei, e eis um
cavalo cinza, e aquele que estava sentado nele tinha o nome
de Morte, e Hades o seguia.

Revelação 6: 7-8 NASB


Mas [a Morte] tem um coração de ferro, e seu espírito dentro
dele é impiedoso como o bronze: qualquer um dos homens
que ele uma vez apoderou, ele mantém firme: e ele é odioso
até mesmo para os deuses imortais.

Hesíodo, Teogonia
PARTE I
Capítulo 1
Temple2, Georgia3

Julho, Ano 26 dos Cavaleiros

A PRIMEIRA VEZ QUE ENCONTRO A MORTE, EU NÃO estava ...


pronta.

Uma gota de suor escorre entre minhas omoplatas enquanto examino


a lista de itens que preciso pegar para o churrasco de aniversário da minha
sobrinha mais tarde hoje. Há um zumbido monótono ao meu redor
enquanto as pessoas compram em nosso mercado ao ar livre.

Tomates—Okay.

Folhas verdes—Okay.

Melão—Okay.

2
Temple é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de Carroll e Condado de Haralson.

3
A Geórgia é um estado do sudeste dos EUA cujo território abrange praias costeiras, campos agrícolas e
montanhas. A capital Atlanta abriga o Georgia Aquarium e o Martin Luther King Jr. National Historic Site, dedicado à vida e a lembranças do líder afro-
americano. A cidade de Savannah é famosa pela arquitetura dos séculos XVIII e XIX e pelas praças públicas frondosas. Augusta sedia o torneio de
golfe Masters.
Examino o resto dos itens. Acho que tudo o que resta são as maçãs.

Escondendo minha lista no bolso de trás, olho para o mercado dos


fazendeiros ao ar livre, procurando nas mesas o que estou procurando.
Assim que vejo a barraca de Tim, começo a me mover em sua direção. Ele
é um velho rabugento, mas é o único vendedor que conheço que estoca
regularmente produtos fora de época.

Estou convencida de que há bruxaria envolvida nisso.

Acabei de chegar à barraca de Tim quando os animais surgem. E


todos eles surtam. Os cavalos amarrados a postes próximos se soltam
contra suas amarras, dezenas de pássaros levantam vôo ao mesmo tempo
e os cães da área soltam gritos assustados e uivantes.

A mula do velho Bailey correu pela estrada ao lado do mercado, sua


carroça puxada por cavalos ainda presa. E o corcel do xerife joga seu dono
fora de suas costas antes de galopar para longe, com sela e tudo.

Ainda mais criaturas correm pelo mercado ao ar livre, derrubando


mesas e cestas, espalhando pessoas e produtos enquanto caminham. Posso
ver o branco aterrorizado de seus olhos. Eles e seu medo se movem como
uma nuvem de tempestade no mercado.

Eventualmente, a debandada diminui, deixando para trás um silêncio


vazio que arrepia meus braços.
O que é que foi isso?

Eu olho ao redor. Todo mundo parece confuso também. — Que


diabos? —alguém diz.

— Em toda a minha vida, nunca vi animais agirem dessa maneira, —


disse outra pessoa. Mas então o pensamento é pontuado por uma risada e
outra pessoa se junta a ele e, de repente, é como se a tensão vazasse do
espaço.

As pessoas ajudam a derrubar caixotes e cadeiras, a produção é


reorganizada e as conversas são retomadas. Um grupo de homens e
mulheres se separou para resgatar os animais perdidos e um homem idoso
ajuda o xerife a se levantar.

Todo mundo parece estar ignorando o comportamento estranho como


um sonho ruim.

Volto para Tim, o dono da barraca, e então meus olhos caem para as
maçãs. Tento me concentrar, embora não tenha abalado aquele silêncio
enervante que parece ressoar em meus ouvidos. Minha atenção cai para
as maçãs.

Eu li o preço, depois li de novo.

— Um dólar e cinquenta por maçã? —Digo, pasma. Isso deve ser um


erro.
— Você não gosta do preço, então não compre, —diz Tim.

Portanto, não é um erro.

— Nem disse que o preço era muito alto, —eu respondo, embora seja.
— O fato de você ter assumido isso significa que sabe que não é razoável.

— Lide com isso.

Ele pode muito bem roubar minha bolsa enquanto está nisso. Maneira
de roubar o cliente às cegas. — Mas é uma maçã, —digo lentamente. Isso
tem que ser uma piada.

— Você não gosta, compre de outra pessoa.

Maldito seja este homem. Ele sabe que ninguém mais tem maçãs nesta
época do ano. E minha sobrinha Briana foi muito específica que queria
uma torta de maçã de aniversário.

— Um dólar, —eu digo. Ainda é um preço ridiculamente irracional,


mas é melhor do que um dólar e cinquenta por maçã. Meu Deus.

— Não, —ele afirma categoricamente. Seu olhar se afasta de mim,


para outra mulher que está olhando para uma caixa de milho próxima.

— Um dólar e vinte e cinco, —tento de novo, enquanto estou tentando


descobrir se algum outro vendedor teria maçãs em estoque. Martha pode
...
Tim me lança um olhar irritado. — Parei de falar sobre isso.

— Isso é ridículo—você quer seriamente um dólar e cinquenta por uma


maçã? Isso é uma maçã! —Eu digo.

— Elas estão fora de temporada, —ele responde rispidamente.

Eu gargalhei. — Pagarei, —isso é tão incrivelmente estúpido, — onze


dólares por oito delas. — É melhor que sejam as melhores maçãs que já
provei, é melhor que elas me façam ver Deus.

Tim cruza os braços sobre o peito, lançando-me um olhar fulminante,


embora eu esteja apenas pedindo a ele para tirar um mísero dólar. — Você
pode pagar o preço total ou pode levar sua negociação para outro lugar ...

Bem no meio de sua frase, seus olhos rolaram para trás.

— Tim? —Eu digo. Enquanto eu falo, ele começa a cair. — Tim! —


Eu pulo para ele, mas não sou rápida o suficiente.

O som suave de seu corpo batendo na grama se perde no barulho


coletivo de muitos objetos grandes batendo no chão ao mesmo tempo.

Pulo com a comoção, os cabelos da minha nuca se arrepiam. E é então


que percebo que o silêncio inquietante ainda existe—aquele que começou
quando os animais fugiram pela primeira vez. Só agora está mais
pronunciado do que nunca.
Eu olho em volta, confusa. Em todas as direções, as pessoas ficam
imóveis. A maioria deles está esparramada na grama, mas há outros
caídos sobre as mesas.

Ninguém se movia.

Passa um segundo, depois dois, depois três.

Estou ciente da minha própria respiração irregular e das batidas do


meu coração assustado, e minha cabeça está tentando envolver sua mente
em torno do que estou vendo.

A questão é que eu sei o que é isso. Parece impossível, e meu coração


não quer acreditar, mas algo assim já aconteceu antes. Já aconteceu
comigo antes.

Mesmo assim, me ajoelho ao lado da mulher que estava olhando o


milho de Tim. Agora seus olhos cegos estão olhando para as nuvens.

Coloco a mão em seu pescoço, esperando seu pulso. Nada.

Uma espécie de sensação doentia torce meu intestino. Eu me levanto,


meu olhar varrendo as barracas do mercado mais uma vez, observando as
dezenas de corpos imóveis.

Ninguém se mexe. Posso ouvir o som suave do vento agitando as


coberturas de lona, as árvores farfalhando com a brisa e até mesmo o ruído
distante de algum recipiente gotejando seu conteúdo. Mas não há conversa
fiada, sem risos, sem gritos ou berros, sem insetos barulhentos e sem pios
de pássaros.

Está completamente silencioso.

Por capricho, verifico o pulso de Tim. Nada. Então eu verifico outro


e outro, minha respiração travando na minha garganta.

Nada.

Nada.

Nada.

Todo mundo está morto—todos menos eu.

Um pequeno ruído escapa dos meus lábios e posso sentir meu corpo
tremendo, mas minha mente está estranhamente em branco.

É assim que se sente o choque?

Saio cambaleando do mercado dos fazendeiros, em direção à Rodovia


78. Não consigo conter meu horror crescente enquanto abro caminho
entre os mortos.

Até onde se estende a devastação?

Estou passando pela última fila de barracas, e a rodovia está bem na


minha frente, quando o barulho de cascos interrompe meus pensamentos.
Acho que estou imaginando, mas depois fica mais alto.
Eu me viro em direção ao som. A princípio, não vejo nada, o dossel
da baia à minha direita bloqueando minha visão. Dou mais alguns passos
em direção à estrada e, de repente, eu o vejo.

Iluminado por trás pelo sol da manhã, parecendo um deus das trevas,
está um Cavaleiro vestido com uma armadura prateada, um conjunto de
asas negras nas costas.

Essas asas perversas são tudo que posso olhar por um momento. Eles
são tão impossíveis de compreender quanto o mar de cadáveres atrás de
mim.

Existem quatro criaturas vivas conhecidas que têm o poder de matar


vidas em um instante.

E apenas um deles tem asas.

O último anjo de Deus.

Morte.
Capítulo 2
Temple, Georgia

Julho, Ano 26 dos Cavaleiros

MEUS JOELHOS QUASE SE DOBRAM COM A REALIZAÇÃO.

Meu Deus, estou olhando para a própria Morte, um dos quatro


Cavaleiros do Apocalipse. Eu nunca vi ninguém—nada—como ele.

Ele está vestido para a batalha—embora seja um mistério quem


poderia enfrentá-lo. Essa armadura brilha como se tivesse sido polida
recentemente, e aquelas enormes asas negras estavam dobradas em suas
costas, tão grandes que as pontas delas quase tocam o chão. Enquanto o
Cavaleiro cavalga, seus olhos estão fixos em algo à distância.

Seu rosto é solene e cativante. Juro que já vi o arco dessa sobrancelha


e a inclinação daquele nariz em meus sonhos. E imaginei a curva desses
lábios, a pressão dessas maçãs do rosto e o corte daquele queixo em cada
poema trágico lido à luz de velas.

Ele é mais bonito do que eu posso imaginar e mais assustador do que


eu poderia ter imaginado.
Devo fazer algum barulho de onde estou porque o olhar do Cavaleiro
desce do horizonte, seu cabelo preto movendo-se um pouco onde roça seus
ombros. Por um segundo perfeito, nossos olhos se encontram.

Ele tem olhos antigos. Mesmo tão longe como ele está, ainda posso ver
sua idade neles. Este ser viu mais da humanidade do que eu jamais poderia
esperar. Eu sinto o peso de toda essa história quanto mais ele me olha. Sua
mandíbula aperta quando ele me vê, e minha pele formiga com sua
avaliação.

Talvez seja porque ainda estou em choque, ou talvez porque seja tarde
demais para me esconder, mas seja qual for o motivo, eu ando na estrada
em direção ao Cavaleiro.

As sobrancelhas da Morte se franzem e ele faz seu cavalo parar. Eu


paro então também, nós dois ainda nos encarando.

Depois de um momento, ele salta do cavalo e avança, fechando a


distância entre nós. Suas botas fazem um som sinistro e ecoante no asfalto
quebrado, e meu coração está batendo forte e eu deveria correr. Por que não
estou correndo?

A Morte vem parar na minha frente.

Ele me observa—tudo em mim, seus olhos se movendo do meu rosto


para minha camiseta vintage e jeans cortados para minhas pernas e tênis
de segunda mão, então todo o caminho de volta para o meu rosto
novamente. A avaliação não é obscena. Tenho a impressão de que ele não
está absorvendo meu corpo de forma alguma, seu olhar está um pouco
desfocado.

— Não te reconheço. —Suas asas farfalham e se firmam com isso. Ele


franze a testa, franzindo as sobrancelhas. — Quem é você?

Capítulo 3
Temple, Georgia

Julho, Ano 26 dos Cavaleiros

MORTE

TUDO EM MIM EXIGE QUE EU A LEVE.

Tudo.

Talvez seja porque eu não posso fazer isso—não em nenhum sentido


real. Sua alma se apegou à sua carne, e nem minha mão nem meu poder
podem arrancá-la.

E ainda assim, o desejo de levá-la embora me domina. É tão estranho,


tão alarmante, que minhas asas se abrem, em parte em estado de choque
e em parte em preparação para alçar vôo.

Senti isso no momento em que a vi, e a sensação ainda não diminuiu.

Fico olhando para a mulher enquanto seus lábios se abrem.

— Eu ... —Sua voz falha, seu peito subindo e descendo mais rápido
do que deveria. — Não sei como responder a isso, —diz ela, parecendo
perdida e talvez um pouco atordoada.

Estou impressionado com a cadência de sua voz. Até é convincente.

Seus irmãos tinham suas mulheres. Esta é a sua. Leve-a.

Eu luto contra a necessidade motriz.

Aconteceu isso com meus irmãos? Suas lutas eram assim ... viscerais?

É horrível pra caralho.

Endureço minha espinha.

Os seres humanos são os impulsivos. Não os Cavaleiros.

Certamente não eu, Morte.

Também não me tornarei como eles.


Assobio por cima do ombro, chamando meu cavalo, embora não
consiga desviar o olhar da mulher. Não sei por que quero olhar para ela.
Faz um ano que estou acordado. Nunca um humano chamou minha
atenção assim. Isso por si só é enervante.

Meu corcel vem para o meu lado. Relutantemente, eu desvio meu


olhar do mortal e me forço a subir em meu corcel, lutando contra meus
próprios instintos básicos de me abaixar e agarrar a camisa da mulher para
que eu possa trazê-la até aqui comigo.

Minha mente precisa ser incendiada.

Saia, eu ordeno a mim mesmo. Coloque o máximo de distância possível


entre ela e você. Você tem um dever do qual não deve vacilar.

Ainda assim, quase por vontade própria, meus olhos caem para ela,
como se não pudessem deixar de observá-la. Nas minhas costas, minhas
asas se abrem e reajustam com minha agitação, e ignoro essas estranhas
sensações rolando por mim.

— Você não deveria estar viva, —eu mordo, minha voz hostil.

Antes que a mulher possa dizer qualquer outra coisa, ponho meu
cavalo em ação e fujo.
LAZARUS

FICO OLHANDO PARA o Cavaleiro enquanto ele se afasta, perturbado


pelo estranho e breve encontro.

Morte.

Fico arrepiada só de pensar naquele Cavaleiro horrível.

Assim que o perco de vista, pisco várias vezes. A partida da morte


parece quebrar o feitiço em que estive.

Meu olhar varre ao meu redor mais uma vez, para todas as pessoas
que estavam vivas apenas alguns minutos atrás.

Então as rodas em minha mente começam a girar. Morte chegou a


Temple, na Geórgia. Ele já matou toda a população reunida no mercado
ao ar livre (menos eu, é claro) e agora está indo para a cidade propriamente
dita.

Minha cidade, onde moram minha família e meus amigos. Onde hoje,
em particular, todos eles se reuniram em homenagem ao aniversário da
minha sobrinha.

Oh, foda-se.

Assim que esse pensamento se encaixa, estou correndo pela estrada,


saltando sobre os mortos, meu coração batendo a mil por hora.

OhDeusohDeusohDeusohDeus.

Por favor, não minha mãe. Por favor, não minha mãe.

A princípio, tudo em que consigo me fixar é nela. Ela tem sido o meu
mundo inteiro desde que me encontrou há duas décadas, sozinha em outra
cidade cheia de cadáveres.

Mas há outras pessoas que amo—meus irmãos Nicolette e River e


Ethan, Owen e Robin e Juniper. Depois, há seus cônjuges e ...

Engasgo com o pensamento de todas as minhas pequenas sobrinhas e


sobrinhos, meu estômago revirando com o pensamento. Já vi crianças no
meio dos corpos caídos nas ruas.

Que tipo de monstro não poupa crianças?

Eu tento afastar os pensamentos da minha família, mas então eu estou


pensando em Hailey e Gianna, minhas amigas mais próximas e então há
Jaxson, que eu só comecei a ver.

Todos eles vivem nesta cidade.

Meu medo e horror estão me sufocando.

Por favor, Deus, não seja tão cruel.

A viagem de volta para minha casa é rápida, mas meus pensamentos


em pânico fazem com que pareça uma eternidade. Os restos espalhados
de tantos mortos não ajudam. O pavor já está se misturando ao meu medo.

Meus pulmões queimam e minhas pernas estão ameaçando ceder


quando avisto a casa verde que sempre chamei de lar. Sempre foi um
pouco confortável para nós, sete irmãos, que crescemos nele. Acrescente
a isso todos os amigos e vizinhos que tivemos entrando e saindo por aquela
porta da frente ao longo dos anos, e sempre foi um lugar barulhento e
agitado onde você poderia chutar os pés para cima e pendurar, se você não
se importasse com o fato de que todos nós basicamente vivíamos um em
cima do outro.

Corro pela passagem da frente e passo pela porta. A primeira coisa


que noto é o cheiro de algo queimando, mas o pensamento é rapidamente
eclipsado pela visão à minha frente.

Um grito escapa. Meu irmão River está sentado no sofá, o corpo caído
sobre o violão, a palheta no chão ao seu lado.

— Não, —eu gemo, correndo até ele. Há mais corpos—Nicolette e


seu marido Stephen estão na cozinha, sua filha mais nova na cadeira alta
que minha mãe guarda para os netos.

Ao ver minha sobrinha pequenina, tenho que levar a mão à boca para
evitar o enjôo. Uma lágrima horrorizada escorre.
Não consigo tocar nos corpos. Eu sei que eles se foram, mas sentir sua
carne fria tornará isso real, e eu ... eu não posso fazer isso ainda.

Meu irmão Ethan está deitado no chão em frente ao fogão, e lá está a


fonte da fumaça—o café da manhã que ele estava preparando está
carbonizado na panela.

Não sei por que me dou ao trabalho de tirar aquela panela do fogão.
Todos aqui já estão mortos.

Cambaleio pelo corredor, para o meu quarto. Robin está lá dentro,


esparramada na cama em que costumava dormir antes de se mudar.
Briana, minha sobrinha, está caída contra ela, o livro ilustrado que elas
deviam estar lendo preso sob seu pequeno corpo. Seus olhos se fixam
cegamente e eu engasgo com meu horror.

Deveríamos estar comemorando o aniversário de Briana hoje, não...


não isso.

Owen e Juniper e suas famílias ainda não chegaram, então a única


pessoa que ainda está desaparecida é ...

— Mamãe! —eu grito.

Nenhuma resposta.

Não, não, por favor, não.


Ela não pode estar morta.

— Mamãe! —Meu coração parece que está tentando pular para fora
do meu peito.

Corro de cômodo em cômodo como uma louca, procurando por ela.


Ela estava aqui quando saí esta manhã, já se preparando para a festa de
aniversário, mas agora não a vejo.

Ir embora é melhor do que morrer, tento dizer a mim mesma.

Mas então olho pela janela da sala para o quintal. Primeiro avisto a
longa mesa de madeira já preparada com pratos e utensílios e algumas
decorações de aniversário. Além disso, noto o grande carvalho que
costumava escalar quando criança. Por um momento, consigo me enganar
pensando que ela era uma exceção, assim como eu, antes de meus olhos
pousarem nos canteiros elevados do jardim.

Não.

Minhas pernas se dobram abaixo de mim.

— Mamãe. —Minha voz não parece como a minha. É muito rouca,


muito agonizante.

Ela está deitada ao lado dos canteiros, algumas ervas colhidas


espalhadas ao seu lado.
Eu me forço a ficar de pé e tropeço em direção à porta dos fundos.
Não sei como consigo abrir, não consigo ver direito, minhas lágrimas
estão obscurecendo tudo.

Não quero acreditar nesta morte. Essa mulher me salvou e me acolheu.


Ela me mostrou como são a graça, a coragem, a compaixão e o amor. Para
criar meu lembrete de redação da segunda série, minha mãe é minha
heroína.

E de alguma forma, sua vida incrível simplesmente se foi.

Não sei como consigo fazer o resto do caminho até ela. Nada parece
certo. Eu caio ao lado da minha mãe. Tão perto dela, posso ver que seus
olhos também estão abertos, olhando fixamente para o céu como se ele
tivesse as respostas.

Um grito sufocado escapa de mim enquanto arrasto seu corpo para


meus braços. Sua pele parece errada—quente onde o sol está brilhando,
mas mais fria onde descansa contra a grama.

Eu ainda pressiono meus dedos em seu pescoço. Eu não posso


suportar não.

Nada. Nenhuma vibração de pulso, nada para desafiar o que eu posso


ver tão obviamente.

Eu fecho meus olhos, inclinando minha cabeça sobre ela. Lágrimas


agora deslizam livremente pelo meu rosto.

Minha família inteira não pode ir embora. Eles não podem.

Estou chorando, quebrada e não consigo processar nada disso.

Deve ter sido assim, tantos anos atrás, quando Jill Gaumond, minha
mãe, entrou em Atlanta4 contra os apelos de todos, procurando por seu
marido. Deve ter sido inacreditável ver uma cidade inteira de mortos e seu
ente querido entre eles, levado pela praga de Pestilência. Mas pelo menos
então, o resto de sua família estava em Temple, na Geórgia, a salvo da
Febre Messiânica.

Agora, esse não é o caso. Não há mais ninguém aqui além de mim.

Quanto mais eu seguro minha mãe, mais fria sua pele fica. E ainda
estou chorando, e eu sei.

Eu sei.

Eu sei.

Eu sei.

Eles realmente se foram. Mãe e River, Robin e Ethan, Nicolette e

4
Atlanta é a capital do estado da Geórgia, nos EUA. A cidade desempenhou um papel importante na Guerra Civil
e no movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos na década de 1960. O Atlanta History Center registra o passado da cidade, e o
Martin Luther King Jr. National Historic Site é dedicado à vida do líder afro-americano Martin Luther King Jr. No centro da cidade, o Centennial Olympic
Park, construído para os Jogos Olímpicos de 1996, abriga o enorme aquário Georgia Aquarium.
Stephen e a aniversariante Briana e a pequena Angelina. Todos se foram
no mesmo instante em que todos os outros foram levados. E eles não vão
voltar e nenhum desejo vai mudar isso.

— Eu te amo, —eu digo para minha mãe, puxando seu cabelo para
trás. Parece inadequado. E minha mente ainda está cambaleando, e a dor
não se instalou totalmente porque nada disso faz sentido, e estou tão
confusa como todo mundo pode simplesmente ... ter ido embora.

E por que, mesmo depois de enfrentar a própria Morte, eu ainda estou


viva.
Capítulo 4
Temple, Georgia

Julho, Ano 26 dos Cavaleiros

MORTE E EU SOMOS VELHOS INIMIGOS.

Bem, pelo menos presumi que éramos inimigos. Aparentemente, ele


realmente não sabe quem eu sou.

A questão é que nunca fui capaz de morrer—ou melhor, posso morrer.


Simplesmente nunca parece acontecer.

Não quando eu caí da árvore e quebrei meu pescoço. Não quando fui
roubada e minha garganta foi cortada.

E talvez o mais notável, nem mesmo quando a Pestilência passou por


Atlanta há muito tempo, matando uma cidade inteira de pessoas,
incluindo meus pais biológicos.

Eu não deveria ter sobrevivido naquela época—não da Pestilência em


si, e não dos dias que se seguiram quando eu era uma criança e fiquei sem
comida e água.

A maneira como minha mãe conta—contou isso—ela estava voltando


para casa depois de encontrar o marido morto no hospital em que ele
trabalhava quando ouviu meus gritos.

na casa e lá estava você, assustada, faminta e uivando como se


não tivesse sobrevivido pelo menos dois dias sozinha. Você me viu e correu

Posso ouvir a voz da minha mãe na minha cabeça até agora, e isso faz
minha garganta apertar. Minhas estranhas origens foram o que levou ao
meu nome, Lazarus.

Aquela que não pode morrer.

Há uma pontada doentia de inveja nas minhas entranhas. Inveja pelos


mortos. Quem ainda inveja os mortos? E, no entanto, aqui estou, desejando
que a morte tivesse me levado junto com minha família, em vez de me
forçar a suportar essa dor esmagadora sozinha.

De todos os futuros que imaginei, este nunca foi um deles. Deveria ter
sido. Este é o mundo em que vivemos, onde nada mais funciona e as
pessoas se apegam à religião como uma espécie de talismã que manterá os
monstros afastados quando obviamente não o fará.

Eu deixei o corpo da minha mãe ir e me afastei dela. Então me ocorre:


estou cercada pelos mortos. Não apenas nesta casa, mas em toda a cidade.
Juro que posso sentir isso no ar, a morte pressionando por todos os lados.
O chão sob meus pés começa a tremer. Eu olho para a terra, minha
testa franzida. Ao longe, ouço o gemido profundo de ... algo grande.
Vários sons de estilhaços o seguem, então ...

Boom!

O chão treme um pouco mais violentamente quando algo o atinge


com força.

Ainda estou tentando me orientar quando os mesmos sons começam


de novo—só que agora eles estão vindo das paredes da minha casa.

Meu olhar se move para o prédio diante de mim, o medo se


acumulando em meu estômago. Começo a recuar, mesmo quando o chão
continua a tremer.

Mova-se, Lazarus.

Chego um pouco além do carvalho perto do fundo do quintal quando


minha casa de infância solta um guincho longo e estridente. Eu me viro
assim que começa a cair. O lado esquerdo vai primeiro, mas quando
começa a desmoronar, o lado direito segue.

BOOM!

Sou jogada no chão pelo impacto repentino e próximo. Uma nuvem


de poeira e detritos sopra sobre mim, e eu fecho meus olhos, mesmo
enquanto respiro o ar acre. Alguns pedaços finais de material de
construção fazem barulho, então tudo fica quieto mais uma vez.

Eu me levanto, sacudindo a poeira persistente no ar enquanto me viro


em direção à minha casa.

Só que minha casa não está mais de pé. Ela, e todos os mortos que
residiam nela, agora não passam de uma pilha de escombros.

A CIDADE INTEIRA de Temple está em ruínas. Vejo corpos e escombros.


Nada mais. Os pontos de referência—a cafeteria em que fui, a mercearia
em que fiz compras, minha antiga escola—desapareceram.

Se foi, se foi, se foi ...

Ao ver toda a destruição—e todas as pessoas que reconheço caídas


nas ruas—começo a chorar. Eu choro até minha voz ficar rouca de tanto
soluçar. Então eu simplesmente encaro o mar de corpos.

Não posso ficar aqui, eu percebo. Não sobrou nenhum abrigo—não


sobrou ninguém. Eu olho desoladamente ao meu redor.

Para onde eu deveria ir?


Capítulo 5
Eastaboga5, Alabama6

Julho, Ano 26 dos Cavaleiros

TRÊS NOITES DEPOIS, SENTADA AO LADO DA RODOVIA 787,


enrolo a velha aliança de casamento de minha mãe no dedo enquanto os
grilos cantam ao meu redor. É a única coisa que consegui salvar dos
destroços da minha casa, embora seja porque minha mãe o usava, e ela
era uma das únicas coisas que não estavam enterradas sob os escombros.

Tirei do dedo dela. A bile sobe à minha garganta com o pensamento. Eu


peguei como um ladrão de túmulos desavergonhado. O que eu deveria ter
feito era enterrá-la com ele. Significava muito para ela. Mas não o fiz e,
honestamente, minha culpa é eclipsada pelo alívio que sinto por ter pelo

5
Eastaboga é uma comunidade não incorporada na fronteira dos condados de Talladega e Calhoun, no estado
americano do Alabama. Foi anteriormente chamado de McFall, nomeado para uma família de colonos na década de 1850, e incorporado em 1898,
apenas para ser desincorporado em 1901.

6
Alabama é um dos 50 estados dos Estados Unidos, localizado na região sudeste do país, limita-se ao norte com
Tennessee, ao sul com o Golfo do México e com a Flórida, a leste com a Geórgia e a oeste com Mississippi. Alabama é o 30.º ma ior em área e o 24.º
mais populoso dos estados com cerca de 5 milhões de habitantes.

7
U.S. Route 78 é uma autoestrada dos Estados Unidos. Faz a ligação do Oeste para o Este. A U.S. Route 78 foi construída
em 1926 e tem 715 milhas.
menos algo dela.

Além disso, as únicas coisas que são realmente minhas são minha
bolsa e minha bicicleta, que por acaso deixei na feira livre quando tudo
isso começou. Então agora eles se tornaram oficialmente meus poucos
bens valiosos.

Volto minha atenção para a aliança de ouro simples, tentando ao


máximo não ver todas as imagens que minha mente quer repetir
freneticamente. Não foi apenas a minha cidade que foi destruída.
Bremen8, Waco9, Tallapoosa10, Carrollton11—todas as cidades pelas quais
passei em busca de refúgio—foram dizimadas, seus habitantes mortos,
seus edifícios destruídos.

Ainda estou rolando essa aliança quando se trata de mim.

Ele precisa ser parado.

E se eu sou a única que pode sobreviver à Morte ... então devo ser
aquela que o impedirá.

8
Bremen é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de Carroll e Condado de Haralson.

9
Waco é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de Haralson.

10
Tallapoosa é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de Haralson.

11
Carrollton é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de Carroll.
Capítulo 6
Lebanon12, Tennessee13

Outubro, Ano 26 dos Cavaleiros

A SEGUNDA VEZ QUE ENCONTRO A MORTE, FOI intencionalmente,


não por acaso.

Sento-me contra um carvalho ao lado da estrada, um arco e uma


aljava14 ao meu lado.

Demorou três meses, muitas corridas em círculos e muitas, muitas


cidades devastadas, mas finalmente acho que me antecipei à Morte.

O sol de outono se escondia atrás das nuvens e as árvores na estrada


estão mudando de cor. É mais ou menos na época em que a temporada de

12
Lebanon é uma cidade localizada no estado norte-americano de Tennessee, no Condado de Wilson.

13
O Tennessee é um estado sem saída para o mar no sul dos EUA. Nashville, a capital localizada no centro do estado, é
o núcleo do cenário de música country, com o tradicional Grand Ole Opry, o Country Music Hall of Fame and Museum e um trecho lendário de bares
honky-tonk e salões de dança. Em Memphis, no extremo sudoeste, ficam Graceland (a casa de Elvis Presley), o Sun Studio (pioneiro do rock and roll)
e as casas de blues da Beale Street.

14
Aljava é um equipamento, espécie de coldre ou estojo, usado para carregar as flechas e os virotes usadas pelos arqueiros e besteiros
desde a mais remota Antiguidade.
futebol está no auge, quando o vento sopra forte. Com isso vem a
promessa de feriados, agasalhos e bebidas quentes e família.

Minha garganta aperta. Viver sozinha tem sido seu próprio tipo de
inferno. Estava acostumada com barulho. Minha casa estava sempre cheia
de cantos, xingamentos, risos, conversas. Havia conforto em todos aqueles
sons. Você não conseguia andar um metro e meio sem tropeçar nos pés de
outra pessoa. Mesmo depois que meus irmãos se mudaram, eles sempre
vinham e, quando não eram eles, eram vizinhos e amigos.

Agora, a única companhia que tenho são os cadáveres por onde passo
e os comedores de carniça que se alimentam deles.

Isso e o uivo solitário do vento.

Acho que a solidão pode me deixar louca.

A tarde passa e eu começo a ficar inquieta. Sair em estradas


movimentadas é apenas pedir para ser roubado sob a ponta de uma faca.
Foi assim que aconteceu comigo. Estava voltando da casa de uma paciente
depois de ficar acordada por mais de vinte horas, auxiliando em um
trabalho de parto particularmente longo e conturbado. A doula15 com
quem eu estava aprendendo me mandou para casa para descansar um
pouco. Estava adormecendo em pé quando decidi parar um pouco na

15
A Doula é a profissional que ampara as gestantes, antes, durante e após o nascimento do bebê. A Doula não precisa ser da área da saúde, mas
precisa amar mulheres, gostar de empoderar, de apoiá-las em suas escolhas com informação e presença e estar ao lado, onde a mulher desejar parir.
beira da estrada e me deitar por um minuto. Acordei com meu pescoço
sendo cortado. Os bandidos roubaram todas as minhas coisas enquanto eu
sangrava. Quando voltei a mim, estava ensanguentada e sozinha.

Relâmpagos piscam, despertando-me dos meus pensamentos.

Nem um minuto depois, um enxame de animais corre pela silenciosa


estrada. Eu os encaro incrédula.

Ele está vindo.

Querido Deus, ele realmente está vindo.

Errei a localização do Cavaleiro tantas vezes nos últimos meses que


quase acreditei que não iria cruzar com ele novamente. Mas finalmente
valeu a pena.

Rapidamente minha mão alcança um arco que peguei há um mês.


Não sou uma boa atiradora, e foi feito mais para assustar cachorros e
caçar. (Ainda não tive sucesso nisso.) Mas talvez eu possa usá-lo para deter
a Morte.

Faço uma careta. Nunca machuquei ninguém deliberadamente antes e,


embora possa ter motivos para isso agora, estou ... não tenho certeza se
estou pronta para fazer isso.

Quero dizer, eu sou a garota que deliberadamente costura margaridas


em minhas roupas, gosto de salvar filhotes de animais nas horas vagas e,
nos últimos anos, tenho estudado para ser doula, imagine só. Além disso,
está provado que, quando bêbada, sou uma abraçadora.

Uma figura solitária entra em foco. Ele parece uma mancha escura
contra o horizonte tempestuoso. Consigo distinguir aquelas asas terríveis.

No alto, a chuva começa a cair. Primeiro uma gota, depois duas,


depois várias, até parecer que o céu se abriu. O vento aumenta e eu
estremeço contra o frio.

Quanto mais o Cavaleiro se aproxima, mais eu estremeço.

Você realmente esperava detê-lo, Lazarus? Ele não vai apenas ouvir a razão.
Você sabe que não.

Ele não me nota, não até eu me levantar de onde estou sentada e sair
para o meio da estrada.

O Cavaleiro para o cavalo e, embora seja uma cidade diferente e um


dia diferente com clima diferente, parece que estou revivendo nosso
primeiro encontro novamente.

— Você, —ele respira, sua voz preenchendo o mundo inteiro ao nosso


redor.

Ele se lembra de mim.

Eu não deveria estar surpresa, provavelmente não há muitos humanos


que ele não possa matar, mas ainda assim. Ele se lembra de mim.

A chuva cai mais rápido a cada segundo, e o vento chicoteia meu


cabelo enquanto olho ressentida para o Cavaleiro.

Morte salta de seu corcel, seu olhar fixo em mim. Na penumbra, seu
rosto parece especialmente trágico. Trágico e adorável—como se ele fosse
assombrado pelas coisas que fez.

Isso, é claro, seria dar muito crédito a ele. Não acho que ele se importe
com as mortes pelas quais é responsável.

Relâmpagos atravessam o céu. Por um instante, a luz dura muda as


feições do Cavaleiro. Onde há um segundo havia um rosto, agora vejo
uma caveira cobrindo as feições do Cavaleiro, e onde antes havia
armadura e asas, agora vejo um esqueleto.

Tão rapidamente quanto o relâmpago vem, ele se foi novamente, e a


Morte é simplesmente um homem mais uma vez.

Oh Deus, ele realmente é a Morte. Se eu precisasse de mais alguma prova,


acabei de receber.

Meus joelhos ficam fracos e porra, estou prestes a perder a coragem.

Morte se aproxima de mim e minha respiração fica presa. Ele é um


ser que nunca foi feito para ser observado tão de perto. Ele é
miseravelmente bonito.
O Cavaleiro observa meu cabelo molhado e meu corpo encharcado de
chuva. — Cada criatura foge de mim—exceto você. —Ele não parecia
surpreso ou alarmado. O Cavaleiro é um mistério completo.

Eu levanto meu queixo. — Eu deveria estar com medo de você? —


Porque eu estou. Estou totalmente apavorada. Também sou muito
imprudente para me importar.

Ele sorri um pouco, e devo ser corajosa porque não me irrito ao ver
aquele sorriso, como qualquer pessoa sã poderia ter feito.

— Você tirou todos de mim. —Minha voz falha quando as palavras


escapam. Eu não tinha planejado começar com isso, mas quando começo
a falar, não consigo parar. — Minha mãe, meus irmãos, minhas irmãs,
meus sobrinhos e sobrinhas, meus vizinhos, meus amigos. Todos eles se
foram.

A dolorosa solidão que carrego comigo se aproxima. A tristeza já é


terrível por si só, mas agora também tenho que lidar com essa solidão que
nunca pedi.

Morte me encara enquanto a chuva cai sobre nós dois. — Isso é o que
eu faço, kismet16, —ele diz, sua voz gentil. — Eu mato.

Minha dor me agarra, tentando sair. Minha vida inteira morreu

16
Kismet: quer dizer destino
naquele dia. Morte veio para minha cidade, e ele não dá a mínima.

Claro que não, Lazarus, diz uma vozinha dentro de mim. Ele não estaria
destruindo o mundo se importasse.

O Cavaleiro me dá outro olhar superficial. Algo antigo e estranho o


observa no fundo de seus olhos.

— Qual é o seu nome? —ele pergunta.

Eu hesito. Não devo dar meu nome a um homem em quem não


confio. Mas o que é o pior que pode acontecer? Nós dois sabemos que ele
não pode me matar.

— Lazarus, —eu finalmente admito.

— Lazarus, —ele repete, sentindo o gosto do nome na língua. Ele sorri,


embora de novo, só consiga fazê-lo parecer que está prestes a me comer.
— Um homônimo17 apropriado.

Morte começa a me cercar, as pontas de suas asas se arrastando contra


o chão. A borda externa de uma dessas asas roça no meu braço, e o contato
provoca arrepios.

— Quem é você? —ele diz.

— Você já me fez essa pergunta antes, —digo, observando-o com

17
adjetivo substantivo masculino: Que ou aquele que tem o mesmo nome (de outro).
cautela enquanto ele para novamente na minha frente.

Um raio cai ao longe e novamente vejo um esqueleto sobrepor-se a


ele.

Eu estremeço com a visão macabra.

— Minha vontade sozinha deveria matar você, —ele diz, ignorando


minha reação. — Isso não acontece. Meu toque deveria arrancar sua alma
de seus ossos. Não consigo. Só resta uma opção. —Seus olhos antigos
parecem ... tristes.

O Cavaleiro se move incrivelmente rápido. Ele me agarra por cada


lado da cabeça e com um puxão rápido ...

Estalo.

PISCO MEIO GROGUE, confusa por um instante. Acima de mim o céu


está escuro.

Onde eu estou?

Com o canto do olho, uma sombra se move, e eu me assusto, rolando


de joelhos, apenas para ficar cara a cara com Morte.

Prendo a respiração ao vê-lo ajoelhado ao meu lado, suas longas asas


caídas sobre o chão atrás dele.

— Você realmente não pode morrer, —diz ele, as palavras ditas com
uma espécie de reverência silenciosa.

Eu me assusto com o som deles, lembrando dos meus últimos


momentos lúcidos.

— O que você fez comigo? —Exijo, sentando-me, embora já saiba a


resposta.

Toco meu pescoço, lembrando-me do lampejo de dor.

Morte paira sobre mim. — Só existe uma coisa para a qual fui feito,
humana.

Matar.

O Cavaleiro continua a me encarar, e algo em seu olhar pica minha


pele. Ou talvez seja aquele silêncio profundo que parece segui-lo. Ou, você
sabe, o fato de que ele me matou no início desta noite, talvez seja isso que
está me deixando no limite.

Respiro fundo, e é aqui que eu perco o fôlego. Posso sentir minha


raiva, minha dor e todas as outras emoções feias que passaram pela minha
cabeça nos últimos meses me sugando.

Lembre-se do seu propósito. Lembre-se—do—seu—propósito.


Respiro fundo e reprimo minha histeria crescente. Apesar do que a
Morte acabou de fazer comigo, esta foi uma reunião difícil. Eu não quero
desperdiçá-lo. Não posso.

— Pare com a matança, —eu sussurro.

Há uma longa pausa de silêncio.

— Eu não posso, —ele finalmente responde.

— Por favor, —eu digo. — Não faça ninguém passar pelo que eu
passei. —É tão profundo, suplicar a este homem que matou minha família
e amigos, e que acabou de tentar me matar também.

Posso sentir o olhar sombrio do Cavaleiro em mim. Finalmente, ele


se levanta, então se afasta. — Deixe para lá, Lazarus. —Sobressalto-me ao
ouvir meu nome. — Sou o que sou, e nenhum doce apelo mudará isso.

Ele gira, mostrando aquelas asas para mim enquanto se retira para seu
cavalo.

Eu olho para ele. — O poderoso Morte está fugindo de mim? —Eu


chamo, insultando-o abertamente.

Seus passos param.

— Vá em frente então, vá embora. Simplesmente vou te caçar de novo,


—eu juro. — E quando eu te encontrar, vou te parar.
Ele riu, virando-se mais uma vez. — Sou uma das poucas coisas que
não pode ser parada, Lazarus. No entanto, estou ansioso para vê-la tentar.

Acho que é o fim da conversa, mas em vez disso ele se aproxima de


mim mais uma vez.

Ele faz uma pausa, então se ajoelha ao meu lado.

Minhas sobrancelhas franzem juntas, e eu recuo um pouco. — O que


você está fazendo?

Seus olhos brilham na escuridão. — Obtendo uma vantagem inicial.

E então, pela segunda vez naquele dia, o filho da puta estende a mão
e estala meu pescoço.

MORTE

DEPOIS QUE LAZARUS fica mole em meus braços, eu gentilmente a


coloco no chão.

Eu a fiz me odiar.

Eu tento saborear isso—é o melhor, frustrar esse desafio cósmico que


foi literalmente colocado em meu caminho. Se ela me odeia, tudo fica
mais fácil.

Mas quando me ajoelho ao lado dela, não sinto nenhuma satisfação.


Apenas uma espécie de tristeza doentia, como se talvez eu tivesse feito o
movimento errado. Minha natureza mais básica ainda me chama,
exigindo que eu coloque Lazarus em minha montaria e a leve comigo.
Passei a esperar o impulso sempre que a vejo, e isso torna mais fácil ignorá-
lo.

Eu olho para seu corpo imóvel. Envolto em todo aquele sangue e osso,
está sua essência. Mesmo agora eu posso sentir sua alma vibrando dentro
daquela forma sem vida dela, presa dentro dela como um pássaro
engaiolado. Deve ser fácil estender a mão e libertar sua alma.

Não é.

Na verdade, é a única coisa que não consegui fazer. Mais estranho


ainda, embora eu possa sentir sua essência agora, não parece que seja
minha. Todos os outros humanos estão intimamente ligados a mim. Com
esta mulher, no momento em que ela sai da minha vista, é como se ela
tivesse caído da terra. Estou começando a perceber que isso vai me deixar
louco.

Inclino minha cabeça e expiro.


Tenho muitas, muitas almas que ainda preciso libertar. Ela está me
distraindo.

Talvez depois desta noite ela me deixe em paz.

Franzo a testa, descontente com o pensamento.

Eu sei que ela é o meu desafio. Todos os meus irmãos receberam um.
E todos eles falharam. Até a Fome, embora de alguma forma ele tenha
falhado em sua tarefa sem encontrar a humanidade resgatável.

Deixando cair minha mão, eu encaro Lazarus mais uma vez, sentindo
meu pulso normalmente estável acelerar. A lua é brilhante o suficiente
para que eu possa distinguir suas feições. Meus olhos se demoram em seus
cílios, que beijam o topo de suas bochechas agora que seus olhos estão
fechados. Meu olhar se move para seus lábios. Tenho o desejo mais
peculiar de trazê-la de volta da morte, tudo para que ela possa me deixar
inclinar e pressionar minha própria boca na dela, só para ver como os dois
se alinham.

Estremeço só de pensar.

Já vi bilhões de pessoas com todo tipo de variação física. Nenhum


deles me comoveu.

Mas ela mexe comigo. Esta mulher cuja alma não posso levar e cuja
vida não posso conhecer. Esta mulher cujo rosto deveria se confundir com
todos os outros rostos que eu já vi. Em vez disso, permanece na minha
mente, me assombrando como uma espécie de espectro.

Lazarus.

Quantas vezes esse nome maldito passou pela minha cabeça nas horas
desde que ela o pronunciou pela primeira vez.

Esta humana não vem com uma palavra angelical, mas ela não precisa
de uma—ela recebeu uma humana que é tão adequada quanto.

Ela pode resistir à morte, o que significa …

Ela é criação. Vida.

LAZARUS

ACORDO COM UM gemido, minha mão indo para o meu pescoço.


Acima de mim, a noite escura está se desvanecendo, as estrelas
desaparecendo no céu pervinca18.

Desta vez, a confusão dura apenas uma fração de segundo antes de eu

18
Pervinca é uma planta que cresce ao longo do solo e tem flores azuis.
me lembrar ...

Morte. Confronto. Pescoço quebrado.

Aquele bastardo.

Ele me matou duas vezes no último dia e me deixou aqui, na beira da


estrada. E agora ele se foi—tudo menos por uma única pena preta que cai
do meu peito assim que me sento.

Minha raiva desperta profundamente de suas profundezas. É tarde


demais para machucar o Cavaleiro, mas não importa.

Este último confronto despertou algo dentro de mim.

Verdadeiro propósito.

Esta foi uma tarefa que já comecei meses atrás, mas parece diferente
agora que estou me comprometendo formalmente com ela: pare o
Cavaleiro.

Salvar a humanidade.

Não importa o custo.


Capítulo 7
Lexington19, Kentucky20

Outubro, Ano 26 dos Cavaleiros

TENHO DOIS OBJETIVOS EM MENTE: PRIMEIRO, ALERTAR as


cidades sobre a chegada iminente do Cavaleiro. Segundo, parar o Cavaleiro
por qualquer meio necessário.

Apenas encontrar uma cidade intocada pela Morte levou quase duas
semanas. Presumi que teria problemas para seguir o rastro do Cavaleiro,
considerando minha sorte passada, mas agora é como se não pudesse
escapar dele. Onde quer que eu vá, ele já esteve. Ele não deixa apenas
cadáveres em seu rastro, as próprias cidades são destruídas, os edifícios
arrasados, as ruas obscurecidas por escombros. É como se não bastasse
simplesmente nos matar, ele deve apagar todas as evidências de nossa

19
Lexington é a segunda cidade mais populosa do estado americano do Kentucky, no condado de Fayette, do qual
é sede. Foi fundada em 1782 e incorporada em 1831. É conhecida como a capital do cavalo.

20
O Kentucky é um estado da região sudeste dos EUA, delimitado pelo rio Ohio ao norte e pelos Apalaches ao leste,
que tem como capital a cidade de Frankfort. A maior cidade do estado, Louisville, recebe o Kentucky Derby, a renomada corrida de cavalos realizada
em Churchill Downs no primeiro sábado de maio. A corrida é precedida por um festival de 2 semanas e celebrada no Kentucky Derby Museum durante
todo o ano.
existência.

Ao final de duas semanas, vi dezenas de cidades de mortos, e o mapa


que peguei no Tennessee está cheio de Xs—cada um representando uma
cidade que a Morte tomou. Uma delas é Nashville21—a bela e condenada
Nashville. Chorei abertamente quando entrei na metrópole. Os corpos já
haviam começado a apodrecer e o cheiro ... isso e os comedores de carniça
me expulsaram da cidade tão rapidamente quanto entrei.

Mas no meio disso tudo, eu tenho aprendido. Por exemplo, Morte não
se move em linha reta. Em vez disso, ele ziguezagueia por seções do país.
Posso vê-lo claramente no mapa, embora, quando reconheço o padrão, os
mortos que encontro sejam mais velhos e mais decompostos, o que
significa que a Morte está se aproximando de mim.

Outra coisa que aprendi—apenas por suposição—é que o Cavaleiro


nunca dorme e nunca para, tornando muito mais difícil ficar um passo à
frente dele.

Então, quando finalmente me deparo com uma cidade no caminho da


Morte—uma cheia de pessoas vivas e respirando—é como um sonho

21
Nashville é a capital do estado do Tennessee, nos EUA, e é onde fica a Universidade Vanderbilt. Um dos
principais espaços de eventos da lendária música country é a Grand Ole Opry House, casa do famoso programa de rádio e palco "Grand Ole Opry". O
Country Music Hall of Fame and Museum e o histórico Ryman Auditorium ficam no centro da cidade, assim como o Distrito, com bares "honky-tonk"
com música ao vivo e o Johnny Cash Museum, que celebra a vida do cantor.
cruel, e tenho que verificar meu mapa novamente.

A cidade de Lexington movimenta-se como se nada estivesse errado.


E não é apenas próspera, é uma cidade enorme—uma que a Morte não
deixaria de pé.

Eu errei em algo? O Cavaleiro mudou seu padrão?

Eu tenho esse desejo de pânico dentro de mim para ficar no meio da


estrada e gritar a verdade a plenos pulmões.

A MORTE ESTÁ VINDO PARA TODOS VOCÊS!

Em vez disso, sigo para a delegacia de polícia—embora demore


algumas tentativas e alguns pedidos para encontrar o caminho.

Eu inclino minha bicicleta bem viajada contra o lado da delegacia e


mordo meu lábio inferior enquanto olho para o prédio.

Eu deveria ter ido a um corpo de bombeiros em vez disso? Câmara


Municipal? Na verdade, não sei onde seria o melhor lugar para
compartilhar notícias dos movimentos de Morte.

Respirando fundo, relutantemente removo minhas armas, deixando-


as com minha bicicleta. Espero sinceramente que ninguém seja corajoso o
suficiente para roubá-los do lado de fora de uma delegacia de polícia.
Então, eu entro.
Há algumas pessoas esperando em assentos próximos, e o policial que
atende a recepção me dá um olhar entediado, como se preferisse fazer
outras coisas em outros lugares.

Eu vou até ele, estalando meus dedos dedo por dedo como se isso
pudesse dissipar meus nervos.

— O que posso fazer por você hoje, senhorita? —o homem fala


lentamente.

Respiro profundamente. Sem pegar leve.

— Um dos Quatro Cavaleiros está se aproximando desta cidade.

PRESUMI QUE NINGUÉM acreditaria. Presumi que o oficial de quem


me aproximei iria rir de mim.

Não foi esse o caso.

Duas horas depois, encontro-me sentado à mesa com o prefeito de


Lexington, seu chefe de polícia, seu chefe dos bombeiros e outro oficial
cujo título me escapa, todos nós reunidos em uma das salas de conferência
da prefeitura.

Ao contrário do oficial com quem me encontrei inicialmente, nem


todos aqui estão ansiosos para acreditar na minha história.

— Diga-me novamente quem você é, —diz o prefeito.

— Lazarus Gaumond ...

— Lazarus? —o oficial não identificado interrompe. Ele dá uma


gargalhada. — O nome dela é Lazarus e você não questionou o relato dela?
—ele acusa os outros. — Esta é apenas uma daquelas malucas da Igreja
da Segunda Vinda.

O chefe de polícia o encara de volta. — Não questione o julgamento


do meu departamento, George.

— Então você realmente acredita que um Cavaleiro está vindo para


nossa cidade? —George diz com ceticismo, erguendo as sobrancelhas. Ele
olha para mim, então bufa outra risada incrédula.

O chefe de polícia lança um olhar fulminante para George, sua


mandíbula apertada, mas ele não diz mais nada.

— Houve relatos de testemunhas oculares de mortes em massa nas


últimas semanas, —diz o chefe dos bombeiros distraidamente. — Não é
impensável, especialmente considerando o fato de que sabemos que os
Cavaleiros estão aqui na terra. —O chefe dos bombeiros volta sua atenção
para mim, com as mãos entrelaçadas frouxamente sobre a mesa. — Por
que você não nos conta o que você sabe, —ele diz gentilmente. O homem
tem olhos gentis e não está olhando para mim como se eu fosse uma
maluca.

Meu olhar se move sobre os outros três homens na sala. Nunca fiz isso
antes, nunca tentei avisar uma cidade inteira sobre a chegada de Morte.
Estou mais do que um pouco preocupada que essas pessoas não acreditem
em mim.

— A morte está vindo nessa direção, —eu digo hesitante. — Se ele


cavalgará por esta cidade ainda não se sabe, mas provavelmente o fará. Eu
... eu acho que ele é atraído pelas grandes cidades. É mais uma daquelas
suposições que fiz, mas parece certo.

— Que prova você tem de que ele está vindo para cá? —o chefe dos
bombeiros pergunta.

Prova. A palavra faz meu coração afundar. Tenho poucas provas


preciosas além do que vi e experimentei em primeira mão.

Pego minha bolsa gasta pelo tempo, colocando-a na mesa de


conferência. Eu a abro e uma adaga embainhada desliza para fora.
Empurrando-o para o lado, pego meus mapas. Tenho um do Tennessee,
um do Kentucky e depois um maior de todos os Estados Unidos. Todos
eles estão meticulosamente marcados.

Ignoro a maneira como minhas mãos tremem quando as abro um a


um, colocando-as sobre a mesa.

Você pensou que poderia simplesmente entrar nesta cidade e avisá-los,


Lazarus? Essas pessoas nunca vão acreditar em você, elas vão morrer sem acreditar
em você.

Todas as minhas preocupações surgem, e há uma espécie de ironia


doentia nisso, porque não há nada para me preocupar pessoalmente.
Afinal, não serei morta, são as pessoas ao meu redor que serão.

Empurro os mapas em direção ao meu público. — Os Xs estão onde


o Morte já esteve. Essas cidades desapareceram. Se você olhar o mapa de
todo o país, verá que eles se estendem até a Geórgia—é de onde eu sou.
—Estou balbuciando, mas não consigo parar. — Houve alguns meses em
que perdi o rastro do Cavaleiro. Não sei onde ele estave durante isso ...

— Esta é a sua prova? —George diz, me interrompendo. — Algumas


marcas em um mapa? —Ele faz um som de nojo, então se empurra para
fora de sua cadeira. — Vocês são todos idiotas se vão perder seu tempo
ouvindo isso. —Lançando-me um último olhar desagradável, ele balança
a cabeça e sai da sala de conferências. Ele bate a porta atrás de si, o ruído
ecoando.

Há alguns momentos tensos de silêncio.

— Ele está certo, —o prefeito entra na conversa, passando a mão sobre


o cabelo prateado. — Por que deveríamos acreditar em você? Parece-me
uma ótima maneira de assustar as pessoas para fora de suas casas por
tempo suficiente para você roubá-las.

Levanto minhas sobrancelhas. — Você acha que eu vou ... —Eu me


interrompo, mesmo quando meu aborrecimento aumenta.

Encontro os olhos de cada um. — Passei pelas cidades que a Morte


visitou. Eu vi os corpos e cheirei a podridão. Vá para qualquer uma dessas
cidades marcadas e veja por si mesmo, mas pelo amor de quem se importa,
por favor, avise sua cidade.

A sala está silenciosa.

— Haverá mais aparições de mortos, especialmente conforme a Morte


se aproxima, —eu digo, mais suavemente, — mas seu tempo está se
esgotando. Esta é a primeira cidade ainda viva que encontro em duas
semanas.

O clima da sala ficou sombrio. Os vejo me olhando de novo,


reavaliando quaisquer suposições iniciais que fizeram de mim. Estou
vestindo uma camisa branca simples, jeans e um par de botas de couro
surradas, itens um pouco gastos em viagens. Também não são meus.
Tenho certeza de que cheguei parecendo jovem e ingênua. Espero que
vejam o olhar assombrado em meus olhos e que ouçam a verdade em
minhas palavras.
Se o fizerem, isso pode funcionar.

— Nenhum Cavaleiro atravessou este país em duas décadas, —diz o


prefeito finalmente. — Por que um apareceria agora?

Eu tento encontrar minha paciência. Nunca fui um diplomata.

— Não sei por quê, —digo. — Na verdade, não tenho nenhuma das
respostas. Tudo o que sei é que conheci um homem com asas negras que
se autodenominava a Morte, e ele cavalgava de cidade em cidade, matando
todos em seu rastro.

Mais uma vez, um silêncio sinistro cai sobre a sala.

— Até onde eu sei, este Cavaleiro não dorme, nem seu corcel, —digo.
— Há uma coisa e apenas uma coisa que o impulsiona: a necessidade de
nos aniquilar. A única coisa que posso tentar fazer é alertar cidades como
a sua. Se você evacuar sua cidade, poderá sobreviver à ira da Morte.

O chefe de polícia pigarreia. — Há um problema com sua história, diz


ele. — Se a Morte está matando todos que ela cruza, então como você
ainda está viva?

Esta é a pergunta que eu temia. É claro que eles gostariam de saber


disso. Não inventei uma mentira convincente o suficiente, então vou atrás
da verdade.

— Eu não posso morrer.


A sala fica silenciosa novamente, só agora, sinto o ceticismo e a
desconfiança coletiva.

Finalmente, o prefeito ri sem humor. — George estava certo. Isso é


um maldito desperdício de nosso ...

— Eu posso provar isso. —Não quero, mas posso. — Só preciso de uma


faca e um pouco mais do seu tempo.

Capítulo 8
Lexington, Kentucky

Outubro, Ano 26 dos Cavaleiros

— ISSO É RIDÍCULO, —PROTESTA O PREFEITO UM minuto depois.


— Ninguém vai deixar você se cortar—ou o que diabos você planeja fazer.

— Você quer uma prova de que não posso morrer. Tenho a prova.
Você realmente acha que nada disso é sem sangue? —Eu exijo
veementemente. — Minha cidade natal não é a única cidade que vi cair.
Olhe para aqueles Xs. Eles representam todos os massacres que vi com
meus próprios olhos. E há incontáveis outros que eu não vi. Estou
tentando evitar que Lexington seja outro X no meu mapa, então, se você
precisar de provas, estou disposta a fornecê-las.

O silêncio se estende por um longo momento, e percebo que os


homens estão desconfortáveis com tudo o que estou contando.

— Foda-se, —diz o chefe de polícia, entrelaçando as mãos atrás da


cabeça, a cadeira gemendo quando ele muda de posição. — Se a senhorita
quer se cortar para provar um ponto, eu digo que ela faça isso.

Eu não quero fazer nada.

O chefe dos bombeiros me encara por um longo momento, então


acena com a cabeça.

— Mesmo? —O prefeito solta um suspiro. — Tudo bem, tanto faz.

Começo a arregaçar uma das mangas enquanto o prefeito murmura


algo baixinho.

— Exatamente o que você está planejando fazer? —o chefe dos


bombeiros pergunta, seus olhos se estreitando.

Eu olho para ele. — Não vou me matar, se é com isso que você está
preocupado. Curo anormalmente rápido—eu estava planejando
demonstrar isso.

— Como exatamente um pequeno corte prova que você não pode


morrer? —o prefeito diz, um tanto hostil.

Eu solto um suspiro. — Devo ir então? —Eu pergunto. Me sinto


derrotada. — Quero ajudar, mas se você acha que tenho más intenções,
posso ir embora.

A bile sobe com o pensamento. Não quero ir embora, mas também


preciso saber quando desistir.

Acho que sei que estrada o Cavaleiro vai tomar para Lexington. Se eu sair
agora, talvez eu possa impedi-lo ...

— Se você tem más intenções, —diz o prefeito, — você não vai a lugar
nenhum.

O chefe de polícia levanta a mão. — Ninguém está pedindo para você


ir embora, —diz ele, lançando um olhar penetrante ao prefeito. — Faça o
que você precisa, para provar suas afirmações.

Eu expiro. Okay, eu posso fazer isso. Ainda não assustei esses oficiais.

Eu aponto para minha bolsa. — Posso pegar minha faca?

Os homens na sala ficam tensos como se eu não tivesse dito nos


últimos minutos que preciso de uma faca.

O chefe dos bombeiros finalmente acena com a cabeça. — Tudo bem.

Lentamente, tiro a lâmina da minha bolsa.


— Um movimento errado com essa faca, senhorita, e não hesitarei em
matá-la, —avisa o chefe de polícia.

— Eu entendo, —eu digo suavemente, desembainhando minha


lâmina.

Esta não é a pior situação que imaginei. Presumi que esta reunião
poderia desmoronar e nunca chegaríamos tão longe. Mas vivemos na
época dos milagres de pesadelo. Desafiar a morte não é tão insano quanto
poderia ser trinta anos atrás.

Mostrando meu antebraço esquerdo, trago minha faca para a pele


exposta. Eu hesito, respirando fundo. Na verdade, nunca fiz isso antes, e
meu estômago revira com a perspectiva.

Antes que eu possa me questionar, eu arrasto a lâmina contra meu


antebraço. Minha carne se parte perturbadoramente fácil. A dor vem uma
fração de segundo depois, e mesmo depois de tudo que passei, ainda é um
choque sentir aquela pontada aguda.

Prendo a respiração enquanto meu sangue pinga da ferida e deixo cair


minha faca sobre a mesa.

À minha frente, o chefe dos bombeiros está de pé, tirando um lenço


do bolso.

— Para estancar o sangue, —explica. — Está limpo.


Dando a ele um olhar agradecido, eu pego dele, limpando o sangue.
Um momento depois, dou a volta na mesa, indo até os homens, meu braço
estendido.

— Achei que vocês gostariam de ver a ferida de perto, —eu digo. —


Só para que todos saibam que não é um truque.

Eu limpo o sangue, mesmo quando mais brota em seu lugar. Ao meu


redor, os três homens dão uma boa olhada, o chefe dos bombeiros
chegando ao ponto de segurar meu antebraço e movê-lo para um lado e
para o outro.

— Quanto tempo vai demorar para curar? —Ele pergunta, soltando


meu braço.

Balanço minha cabeça. — Uma hora, talvez duas.

— Duas horas? —O prefeito levanta a mão como se dissesse, qual era


o objetivo disso?

E eu concordo—duas horas é muito tempo para esperar.

— Se isso é um problema,—eu digo, — então me coloque em uma


cela, me tranque por duas horas e comece a fazer planos de evacuação. Se
eu estiver mentindo, você pode me manter lá, —eu digo. — Mas eu não
estou, —eu acrescento, aço em minha voz, — então é melhor você
começar a se preparar.
NÃO SOU LEVADA para uma cela, mas para uma sala de interrogatório
onde sou mantida pelas próximas duas horas, com a porta trancada por
fora.

O tempo passa lentamente, mas eventualmente a maçaneta gira e um


policial abre a porta. Atrás dele, o chefe de polícia e o prefeito entram em
fila na pequena sala de interrogatório.

— Hank está ocupado no momento, —diz o chefe de polícia quando


a porta se fecha atrás deles, — então ele não pode estar aqui.

Presumo que Hank seja o chefe dos bombeiros e espero que esteja
ocupado evacuando as pessoas.

O prefeito acena com a cabeça para o meu ferimento, que agora está
envolto em gaze. — Como está indo? —ele pergunta, seus olhos
cautelosos. Acho que ele ainda tem certeza de que é alguma pegadinha.

Olhando para os dois homens, começo a desembrulhar as bandagens


até que o último pedaço de linho caia. Abaixo dela, ainda há uma mancha
de sangue seco onde antes estava a ferida. Pegando o copo d'água com o
qual fiquei aqui, despejo um pouco sobre o sangue que mancha minha pele
e uso minhas bandagens para limpá-lo.
Abaixo dela, a carne se recompôs. Não há nem mesmo uma leve
cicatriz para indicar que houve uma ferida para começar.

— Eu serei amaldiçoado. —As palavras do chefe de polícia são


sussurradas, quase reverentes.

Seus olhos se movem para mim. — Quem é você?

Essas foram as mesmas palavras que a Morte me perguntou e, ao me


lembrar, um arrepio percorreu minha espinha.

— Acreditam em mim agora? —Eu perguntei.

A sala de interrogatório está silenciosa.

— Porque se você acredita, —eu digo suavemente, tomando o silêncio


deles como um sim. — Então há muito que devemos fazer para nos
preparar, e não resta muito tempo para isso.
Capítulo 9
Lexington, Kentucky

Outubro, Ano 26 do Cavaleiro

EU ME AGACHO DENTRO DO SÓTÃO DE UM POSTO comercial que


fica na periferia de Lexington, o cheiro de tabaco e cera de abelha
flutuando dos caixotes ao meu redor. Meu arco e flecha estão
posicionados sobre a janela aberta, o sol do final da tarde está baixo no
céu. Tenho uma visão da I-6422, a rodovia que aposto que o Cavaleiro
usará para entrar nesta cidade.

Ajusto meu aperto no meu arco. Eu sou uma atiradora decente, mas
não ótima. Olho para o outro lado da rua, onde um punhado de outros
arqueiros está à espreita atrás e no telhado de um estábulo para cavalos.
Um deles é Jeb Holton, o chefe de polícia. Ele foi inflexível sobre ser
postado aqui, na estrada que eu tinha certeza de que a Morte estaria
viajando.

22
U.S. Route 64 (ou U.S. Highway 64 – I-64) é uma autoestrada dos Estados Unidos. Faz a ligação do Oeste
para o Este. A U.S. Route 64 foi construída em 1926 e tem 2 326 milhas (3 743 km).
O resto das ruas dentro e fora da cidade também estão sendo vigiadas.
A terrível verdade é que ninguém tem ideia de se, e quando ou de que
direção o Cavaleiro virá cavalgando.

Rolo meus ombros e estalo meu pescoço. Meus músculos estão rígidos
por ficar parada por tanto tempo.

Mordo meu lábio inferior. Já se passaram mais de 24 horas desde que


me encontrei com os oficiais de Lexington, e fiquei sentada aqui por quase
metade desse tempo, fazendo turnos dormindo ao lado de Kelly Ormond,
a oficial colocada aqui comigo.

Lá fora, a estrada está bastante movimentada, pois as pessoas fogem


de suas casas. Ordens de evacuação foram dadas e, no último dia, muitos
fizeram as malas e partiram.

Muitos também ficaram.

Na janela ao lado da minha, a oficial Ormond espera, com seu próprio


arco pronto.

Chamados de animais distantes quebram o silêncio. Meu corpo fica


tenso quando percebo a escuridão densa e móvel no horizonte e os gritos
distantes e chocados dos viajantes na estrada abaixo de nós. Enquanto
observo, aquela massa escura se move como uma onda em nossa direção.

Eu ouço balidos e uivos e grasnidos e uma centena de outros gritos de


animais sobre os gritos de evacuados assustados. Criaturas inundam a
rodovia, derrubando bicicletas e carrinhos e disparando contra as pessoas
na estrada.

Depois que os animais se vão, um silêncio sinistro segue seu rastro,


arrepiando meus braços.

Eu forço meus olhos, procurando, procurando ...

— Você acha que o Cavaleiro está vindo em nossa direção? —ela


pergunta.

— Sim. Tenho certeza de que em questão de minutos verei a Morte


face a face mais uma vez. —Com isso, o mal-estar se acumula na minha
barriga. Mesmo depois de tudo que ele fez para mim e minha família, não
tenho certeza se estou pronta para o que estou prestes a fazer, o que já
coloquei em movimento.

Posso ouvir a batida do meu próprio coração. Eu firmo minha


respiração.

Posso fazer isso. Eu farei isso.

Abaixo, os viajantes assustados ajudam seus companheiros que foram


derrubados e endireitam seus pertences virados. É aquele dia no mercado
do fazendeiro de novo, só que agora, um oficial posicionado atrás do
prédio à nossa frente está chamando as pessoas na estrada e direcionando-
as de volta pelo caminho de onde vieram.

Aqueles mais abaixo na estrada não têm tanta sorte. Vejo um homem
parado no meio da estrada, sacudindo a poeira como se sua vida não
estivesse sendo ameaçada neste exato momento.

— Mova-se, —murmura a policial Ormond baixinho, notando o


mesmo homem.

Pressiono meus lábios juntos, fazendo uma careta. Não sei quanto
tempo o resto dessas pessoas tem.

Ouço o eco de cascos de cavalos no asfalto.

Minha pele pinica, e então ...

Ali está ele.

Grande, e alada Morte.

Por um momento, não consigo respirar.

O ódio é uma palavra tão gentil para o que sinto pelo Cavaleiro. E
ainda a visão dele me faz doer por dentro. Ele é lindo e terrível e mais do
que apenas um pouco mítico enquanto se dirige pela estrada. Ao redor
dele, as pessoas caem mortas. Alguns gritam—alguns até conseguem se
virar e correr de volta para nós e esses não caem mortos. Ainda não, pelo
menos.
Por um momento, fico pasma com a visão. De volta à Geórgia, a
Morte matou todos muito antes de encontrá-los. E embora eu esteja grata
por esses viajantes em fuga e os oficiais destacados não terem morrido,
ainda estou chocada que o alcance do poder do Cavaleiro tenha mudado.

Ao meu lado, o arco oleado de Kelly range quando ela puxa a corda
esticada, e é esse som sutil que me tira de minhas próprias reflexões.

Aponto minha flecha e me forço a limpar minha mente enquanto


espero pelo sinal.

Os segundos passam como minutos. Então, ao longe, alguém assobia,


e essa é toda a deixa de que preciso.

Por favor, não erre.

Lanço minha flecha junto com a da oficial Ormond e meia dúzia de


outros. Os projéteis cortam o vento.

O Cavaleiro só tem tempo de se proteger com um braço, suas asas se


abrindo, antes que as flechas o atinjam. Muitos desviam de sua armadura,
mas vários outros perfuram suas asas e pelo menos uma corta sua
garganta. Posso ouvir o som abafado que ele faz quando seu cavalo recua.

Sob o ataque, as asas da Morte parecem amassar e o corpo do


Cavaleiro escorrega de seu cavalo, atingindo o chão com um baque surdo.

Mesmo quando ele cai, coloco outra flecha em meu arco e a lanço—
assim como os outros oficiais. De novo e de novo nós os liberamos.

Atirem até ele cair, eu disse na sala de homens e mulheres


uniformizados na noite passada. E continue a atirar nele. Atire até que você
esteja sem flechas.

Isso é o que fizemos. Esvaziamos nossas aljavas e atiramos flechas no


Cavaleiro até que seu cavalo seja afastado e a própria Morte pareça mais
um porco-espinho do que qualquer outra coisa.

Enquanto isso, os últimos viajantes vivos fogem para salvar suas


vidas, seus gritos ficando cada vez mais distantes conforme eles se afastam
cada vez mais de nós.

Finalmente, nossa saraivada de flechas diminui, o sibilar silencioso


deles deslizando para o silêncio.

— Merda, —Kelly respira ao meu lado. Ela então cai contra a parede,
deixando cair o arco. — Conseguimos.

— Nós conseguimos, —eu digo suavemente, ainda olhando para a


forma imóvel de Morte. Todos os tipos de emoções conflitantes se agitam
dentro de mim.

Derrubamos um anjo.
SOU A PRIMEIRA A CHEGAR ao corpo. Em parte porque todo mundo
parece razoavelmente assustado, e em parte porque assim que saí do meu
estupor, corri para ele.

Ajoelho-me ao lado do Cavaleiro e engulo meu próprio grito sufocado


quando vejo o dano que infligimos a ele, dano no qual insisti. Tenho que
lutar contra o desejo de vomitar.

Nunca fiz nada assim antes, e a visão me enche de profundo remorso.

Ele matou você duas vezes e provavelmente não hesitaria em fazê-lo uma
terceira vez se você atrapalhasse.

O pensamento diminui o mal-estar que sinto, mas apenas


ligeiramente.

Eu coloco a mão na armadura de prata do Cavaleiro, meus olhos se


demorando por um momento em uma procissão de luto martelada no
revestimento de metal.

Inclinando-me para sua cabeça devastada, sussurro: — Morte?

Nada. Ele não se mexe em nada.

Tenho uma vontade louca de remover as flechas uma a uma e limpar


seu corpo, mas não tenho chance.

Atrás de mim, ouço os passos de outros que vêm inspecionar o


Cavaleiro. Uma estranha onda de proteção brota dentro de mim. Minha
mão cai de sua armadura de prata.

— Ninguém toca nele, —eu digo com a voz rouca, me levantando,


então me viro para encarar a multidão que chega. Eu me sinto como uma
leoa defendendo sua matança.

— Quem disse? —chama uma voz familiar.

Meus olhos focam no homem que fala.

Eu serei amaldiçoada. É o mesmo oficial que saiu da reunião ontem,


aquele que pensou que eu estava louca. Qual era o nome dele …

George.

Não tinha percebido que o mesmo homem tinha sido colocado aqui.
Meus olhos mergulham para o distintivo do xerife preso acima de seu
peito. Também não sabia que ele estava envolvido com a aplicação da lei.

— Eu disse. —Encontro seu olhar gelado com o meu. — Até agora,


sou a única pessoa que a Morte não foi capaz de matar. —Algo que a
maioria das pessoas aqui está ciente, eles foram todos informados sobre
mim na noite passada.

— Isso é ridículo, —George diz, se aproximando de mim de qualquer


maneira. E então ele está passando por mim, e não há nada que eu possa
fazer para detê-lo. — Nós nem sabemos se ele está morto.
O restante dos oficiais e uma multidão crescente de curiosos formam
um semicírculo ao nosso redor, olhando com curiosidade para o ser alado,
seu corpo coberto de flechas.

— Você realmente tem alguma dúvida? —digo, lutando contra a


vontade de arrastar o insuportável George para longe. Seria inútil, o
homem é muito maior do que eu.

Ignorando minhas palavras, George estende a mão para o Cavaleiro,


presumivelmente para verificar seu pulso.

No momento em que seus dedos roçam a carne do Cavaleiro, seu


corpo enrijece e depois desaba em uma pilha, metade sobre, metade fora
da Morte.

Prendo a respiração.

— George? —outro policial chama—e percebo depois de um


momento que não é apenas um policial—é Jeb, o chefe de polícia. —
George, —Chefe Holton diz novamente, mais severo agora.

Ele se livra do arco e da aljava e dá um passo à frente.

— Espere, —eu digo, dando-lhe um olhar significativo. — Deixe-me


fazer isso.

Jeb faz uma pausa. Sua mandíbula funciona, mas depois de um


momento, ele me dá um aceno de cabeça.
Ajoelho-me ao lado de George e coloco meus dedos na parte interna
de seu pulso. Não há pulso.

Lentamente, meus olhos se erguem, encontrando os de Jeb. Balanço


a cabeça e coloco o braço de George gentilmente no chão, ao mesmo
tempo em que ouço um grito abafado da multidão. Aparentemente, o
Cavaleiro pode matar mesmo quando ele próprio está morto.

Eu olho de volta para Morte.

— Esta é a parte que combinamos, Jeb, —eu digo baixinho para o


chefe de polícia.

Só pedi algumas coisas ontem, quando comecei a coordenar este


ataque com os oficiais de Lexington, mas a que eu fui mais inflexível foi
levar o corpo de Morte.

O chefe Holton passa a mão pela boca e depois se vira para o resto da
multidão. Depois de um momento, ele limpa a garganta.

— Parabéns, —ele diz a eles. — Juntos, detivemos a própria Morte.


Estamos todos vivos hoje porque o derrubamos. Mas ainda há muito que
não sabemos sobre este Cavaleiro. Então, em termos de sobrevivência,
preciso que todos retornem aos seus postos. Se você faz parte das equipes
de evacuação, consulte seu supervisor para obter mais instruções. Caso
contrário, sugiro que você vá para casa, pegue os poucos itens que puder
e evacue a cidade.

— O que? —um oficial diz, surpreso com a notícia.

Vários outros também protestam.

— E quanto ao delegado Ferguson? —Outra pessoa reclama, e acho


que ele está se referindo a George, que ainda está caído em cima de Morte.

— Cuidarei de George. Agora vão.

Os oficiais não saíram de imediato. O que quer que eles esperassem


que acontecesse, não era isso.

Jeb os encara com raiva. — Você quer que eu coloque todos vocês em
algemas? —ele ameaça. — Mexam-se.

Isso pareceu fazer a multidão se mover. Os oficiais e curiosos se


dispersam.

Demorou mais um minuto, mas, finalmente, Chefe Holton e eu


estavamos sozinhos.

O chefe de polícia de Lexington olha para Morte, depois balança a


cabeça. — Não sei se acreditei plenamente em você até agora. —Ele solta
um suspiro. — Você precisa de alguma ajuda? —ele pergunta.

— Mesmo se eu precisasse, —eu digo, — eu não acho que você


poderia dar. Não sem acabar como George.
Os olhos do chefe Holton se movem para o homem em questão e de
repente ele parece uma década mais velho e muito, muito cansado.

— Poderia ter sido pior, —eu digo.

O chefe de polícia acena com a cabeça. — Acha que ele vai ficar
longe? —ele pergunta.

Eu balanço minha cabeça. Não se ele for como eu.

— A menos que ele possa ser parado para sempre, —eu digo. —Tenho
a sensação de que ele vai voltar. Mas espero conseguir levá-lo para longe
o suficiente de Lexington até lá para dar a você e ao resto da cidade tempo
para evacuar completamente.

O chefe de polícia acena com a cabeça, ainda parecendo cansado. Ele


olha para os prédios que ocupamos recentemente.

— Você deveria ir, —eu insisto. — Eu cuido disso.

Eu, de fato, não entendi isso, mas ele não precisa saber disso.

— E você não vai morrer? —ele pergunta, examinando o Cavaleiro.

Como resposta, eu me ajoelho ao lado da Morte e coloco minha mão


contra o que posso de sua bochecha. — Ele não pode me matar, —eu
insisto. Pelo menos, não enquanto ele próprio estiver morto.

Chefe Holton solta um suspiro, balançando a cabeça. — A Escola


Dominical nunca me preparou para essa merda. —Depois de um
momento, ele aponta o queixo para George. — Alguém vai ter que pegar
meu amigo ai, —diz ele. Ele se vira na direção de onde viemos, apertando
os olhos para as pessoas à distância. — E haverá mais pessoas usando esta
estrada para evacuar. Posso lhe dar uma hora para ir embora, mas não
muito mais.

Esperançosamente, uma hora é tudo que eu preciso.

Jeb se vira para ir, então faz uma pausa. — Obrigado por vir aqui, —
diz ele. Foi uma coisa incrivelmente decente de se fazer.

Eu dou a ele um pequeno sorriso e observo enquanto ele se vira e sai,


desta vez para sempre.

E fico sozinha com a Morte.

Por um momento, tudo que faço é encarar o Cavaleiro. Ele está


gravemente mutilado e fico chocado ao descobrir que isso me incomoda—
os ferimentos, sua dor, tudo isso. Ele não é um homem digno de pena. E, no
entanto, não consigo parar de repetir a maneira como ele caiu do cavalo
enquanto continuávamos a atirar nele.

Eu me levanto, então me afasto do Cavaleiro, preocupada que se eu


desviar meu olhar por um único momento, ele pode simplesmente
desaparecer.
No final, tenho que me virar para poder recuperar minhas coisas.
Entre eles está minha bicicleta e um carrinho emprestado que Jeb me
deixou atrelar a ele.

Não posso demorar mais de cinco minutos, mas estou com medo de
que, quando voltar para o Cavaleiro, encontre outro cadáver caído contra
ele—ou pior, que ele tenha desaparecido completamente.

Dou um suspiro de alívio quando avisto a Morte, ele está exatamente


como eu o deixei.

Pego a bicileta e paro o carrinho23 ao seu lado. Prendo ela, e vou para
a parte de trás do carrinho, onde já guardei minha bolsa e minhas armas.
Eu abaixo a rampa, em seguida, viro para a Morte.

Agora vamos ao impossível: levantá-lo.

Em teoria, não deveria ser difícil, mas o homem pesa tanto quanto
uma maldita baleia, e no momento em que coloco meus braços sob seus
ombros, tenho certeza de que suas asas estão deliberadamente tentando
me sufocar, e continuo recebendo penas na minha boca, e meia dúzia de
pontas de flechas ensanguentadas agora estão cutucando minha pele.

— Por que você tem que ser tipo—um—gigante—idiota?— pergunto

23
deve ser algo como isso, so que bem maior, atrelado a bicicleta, transformando-o em um triciclo.
enquanto o arrasto centímetro a centímetro pela rampa rasa do carrinho.

Mal consegui pegá-lo completamente quando minhas pernas cederam


e eu desmoronei, seu corpo caindo sobre o meu. Fiquei ali por um
momento, amaldiçoando a Deus por não poder morrer. Pelo menos eu
nunca teria me encontrado nessa porra de situação embaraçosa.

Eventualmente, eu me desvencilho, minha mão roçando o pescoço


ensanguentado de Morte e uma mecha daquele cabelo escuro e ondulado
no processo.

Meu coração bate forte enquanto olho para o homem caído e tento
dizer a mim mesma que é apenas medo e não ... não ... bem, não é mais
nada, então não adianta tentar dar um nome a isso.

Enfio as botas de Morte no carrinho apertado e fecho a parte de trás


dele.

Feito isso, pego meu cinto e a faca embainhada da bolsa e os coloco.

Apenas no caso das coisas darem errado.

Subo na bicicleta, coloco os pés nos pedais e saio de Lexington com


um Cavaleiro morto atrás de mim.
Capítulo 10
Interestadual 64, Kentucky

Outubro, Ano 26 dos Cavaleiros

NÃO SEI QUANTOS QUILÔMETROS PERCORRI QUANDO ouço o


barulho de cascos atrás de mim. Eu olho por cima do meu ombro, e lá está
o garanhão cinza malhado da Morte, fechando a distância entre nós. Ele
galopa até a carroça antes de se inclinar e cutucar o corpo do Cavaleiro
com o focinho.

Meu coração está batendo forte porque um cavalo sobrenatural está


me seguindo e parece que é aqui que aprendo que cavalos sobrenaturais
gostam de comer humanos ou qualquer outra coisa igualmente atroz.

Mas depois de verificar seu dono, o cavalo parece contente em apenas


nos seguir.

Pedalo o resto do dia e noite adentro, refazendo os movimentos da


Morte o melhor que posso. Ele acabará acordando e eventualmente
retomará sua terrível missão, mas espero que eu possa detê-lo por um
tempo.
De vez em quando, ouço algo fazendo barulho no carrinho. Nas
primeiras vezes que isso aconteceu, parei minha bicicleta para tentar
descobrir a causa do barulho. Foi quando notei pela primeira vez as flechas
ensanguentadas ao lado do Cavaleiro. Inicialmente, presumi que elas se
soltaram pelo carrinho balançando. Mas conforme as horas passam e uma
a uma, as flechas sangrentas que antes estavam definitivamente dentro do
Cavaleiro agora estão obviamente fora dele, percebo que de alguma forma
seu corpo está expurgando as armas.

Isso é ... mais do que um pouco perturbador.

Eu pedalo noite adentro. Minhas pernas estão tremendo e com cãibras


há horas, e está mais frio que o inferno e eu provavelmente deveria ter
parado há quilômetros para descansar. Estou além de exausta.

Ainda assim, continuo até ficar literalmente exausta demais para


continuar pedalando. Só então inclino minha bicicleta para o acostamento
da estrada e a deixo rolar até parar. Atrás de mim, segue o cavalo da
Morte.

Passo a perna por cima do assento e escorrego, chutando o suporte da


bicicleta.

Tudo o que quero fazer é cair no chão e dormir até a exaustão


desaparecer.
Tem que montar acampamento. O pensamento quase me mata. Não
tenho certeza se tenho capacidade para fazer uma cama adequada, muito
menos montar acampamento. Ainda assim, tropeço até o carrinho para
pelo menos pegar um cobertor da minha bolsa.

Assim que chego ao carrinho, no entanto, hesito. Tenho quase certeza


de que quase todas as flechas foram expurgadas do corpo de Morte, o que
significa que ele está se curando—e muito, muito rápido.

Olho e encaro a forma alada do Cavaleiro. Uma das minhas mãos se


move para a faca ao meu lado, e espero que ele salte e me surpreenda.
Quando um minuto se passa e nada acontece, eu me forço a tomar várias
respirações longas e firmes.

Supondo que ele não possa morrer, então ... e se ele acordar enquanto eu
durmo?

Ele quebrou meu pescoço quando me achou um incômodo. O que ele


vai fazer agora que eu realmente o machuquei?

Eu tenho que estar preparada para ele.

Eu olho ao redor. Árvores grossas margeiam a estrada—eu poderia


dormir escondida em algum lugar lá dentro ... Talvez ele não fosse me
procurar—ou, se fosse, talvez eu acordasse a tempo.

… E talvez à luz do dia, esta linha de árvores não me esconda. A ideia


do cavaleiro me avistando e vindo atrás de mim me apavora
inacreditavelmente.

Eu poderia simplesmente fugir. Minhas pernas quase desistem com o


pensamento. Não tenho mais nada em mim. Gastei tudo para chegar tão
longe.

Não sei com quais opções isso me deixa.

Meu olhar volta para o Cavaleiro. Nas poucas vezes em que acordei
da morte, levei um momento para me orientar. Talvez seja o mesmo para
o Cavaleiro.

Se eu fosse capaz de acordar assim que o Cavaleiro começasse a


despertar, ainda poderia ter a vantagem. Mas isso significaria ... isso
significaria entrar lá com ele.

Não. Absolutamente não.

Então, fugir, sim.

Antes que eu possa pensar duas vezes, estou me arrastando para


dentro do carrinho para pegar minhas coisas. Vou simplesmente pegar
minha bolsa e meu arco e aljava e sair.

O carrinho balança um pouco quando subo nele, e tenho que conter


um gemido. Meus membros ainda estão tremendo de exaustão, e isso
torna muito mais difícil tatear a carroça na escuridão.
Onde estão minhas coisas? Onde elas estão? Onde estão? Minhas
mãos continuam se fechando em torno de flechas e nada mais.

Levanto uma das asas de Morte e imediatamente a solto.

É quentinho!

Encaro horrorizada o Cavaleiro.

— Morte? —Eu sussurro.

Nenhuma resposta.

— Não acredito que você esteja morto, —eu respiro.

Nada.

Talvez ele ainda esteja. Talvez seja assim que um corpo morto-vivo se
sente antes de acordar.

Só há uma maneira de saber.

Preciso verificar seu pulso. Espero que ele não quebre meu pescoço no
momento em que eu fizer isso.

Ajoelho-me ao lado dele, lutando contra o cansaço enquanto tateio


em torno de sua armadura até encontrar sua mão. Eu movo meus dedos
para seu pulso, mas não há pulso. Ainda assim, se ele ainda não está vivo,
provavelmente estará em breve. Um alívio amargo corre através de mim,
embora a última coisa que eu deveria estar é aliviada. O fato de que a
Morte não pode ser morta torna pará-lo muito mais complicado.

Abaixando a mão, continuo procurando minha bolsa, piscando várias


vezes enquanto sinto meus olhos caírem de sono. Meus dedos roçam
contra mais flechas desalojadas. Eventualmente, minha mão se fecha
sobre minha mochila.

Sucesso!

Eu a puxo, apenas para descobrir que está presa sob os ombros de


Morte e suas asas.

Bem merda, a coisa não é tão boa quanto foi.

Me inclino para trás contra a parede do carrinho, minhas pernas


roçando no Cavaleiro. Estou exausta, tudo que quero fazer é dormir, e
meu grande plano de fuga acabou indo para o inferno.

Meus olhos começam a fechar.

Oh Deus, não aqui. Preciso sair do carrinho ...

Meu corpo não aceita nada disso.

No mínimo, preciso cortar a garganta do Cavaleiro ou fazer algo mais


drástico para mantê-lo morto por mais algum tempo. Eu quase vomito
com a perspectiva. Uma morte é suficiente para um dia.

Eu esfrego meus olhos. No mínimo eu deveria amarrar suas mãos.


Tudo bem, eu posso fazer isso. Mesmo que pareça impossível e minha
cabeça doa só de tentar descobrir o que precisarei usar como contenção,
eu consigo.

Só preciso de um momento para descansar ... não tenho conseguido descansar,


e estou muito, muito cansada ... mas depois vou fazer isso ... só preciso de um pouco
...

Acordei de repente com a sensação do meu corpo se inclinando para


a frente.

Eu me seguro, mas então decido me deitar no carrinho. Vou encontrar


as ligações em apenas um minuto. Eu só vou fechar meus olhos por um momento,
então eu vou fazer isso ...

Em algum lugar no fundo da minha mente, estou ciente de que esta é


uma péssima ideia, mas está quente aqui, ao lado do Cavaleiro, e estou
cansada demais para entrar em pânico, cansada demais para me importar
muito.

Só vou descansar aqui um minutinho ... depois eu vou levantar ...

Desta vez, quando fecho os olhos, é de vez.


Capítulo 11
Bardstown24, Kentucky

Outubro, Ano 26 dos Cavaleiros

ACORDO COM O CHEIRO DE FUMAÇA DE INCENSO DE mirra25.


Acima de mim, a pálida luz da manhã se estende pelo céu, banhando as
nuvens com um brilho rosado. O ar está frio, mas estou quente aqui, com
meu cobertor ...

Cobertor?

Meus olhos se movem para a enorme asa negra que está sobre mim
como meu cobertor pessoal. Pior ainda, em algum momento da noite o
Cavaleiro mudou de posição. Ele agora está deitado de lado, seu rosto a
centímetros do meu.

Oh, não.

24
Bardstown é uma cidade localizada no estado americano de Kentucky, no Condado de Nelson.

25
O incenso de mirra é conhecido por suas propriedades de purificação e proteção contra energias negativas. Por causa dessas
características, o incenso de mirra é muito utilizado em rituais, ambientes de meditação e celebrações religiosas.
Meu coração começa a martelar no meu peito.

Lazarus, o que você fez, sua grande imbecil?

O mais gentilmente que posso, agarro a asa da Morte, mordendo meu


lábio inferior para abafar os sons de pânico que quero fazer.

Espero a sensação calorosa deles. O que eu não esperava é o quão


macios eles são. Eu não tinha notado isso ontem à noite.

Mova-se.

Eu empurro a asa para longe de mim, apenas para ouvir um suspiro


suave vindo do Cavaleiro.

Eu congelo quando ele se mexe.

É aqui que eu o esfaqueio. É aqui que o forço a ficar inconsciente para


dar ao povo de Lexington ainda mais tempo para evacuar.

Estendo a mão para pegar minha faca, embainhando-a ... mas hesito.

Apenas faça. Ele já fez isso antes com você.

Mas não tenho coragem. Não agora, quando ele está tão indefeso.
Parece ... errado.

Afasto minha mão da faca—por enquanto.

Só então percebo a fumaça flutuando preguiçosamente ao nosso


redor. Como eu perdi isso antes agora é um mistério. Estou engasgando
com a fumaça perfumada desde que acordei.

Sentando-me, procuro a origem da fumaça.

Depois de um momento, vejo a tocha estranha de onde vem. Ele está


no canto do carrinho e, por sua caixa prateada decorativa, sei exatamente
a quem pertence.

Pegue suas coisas e vá!

Silenciosamente, eu pego meu arco e aljava de onde eles descansam


aos meus pés. Não é de admirar que eu não tenha conseguido encontrá-
los ontem à noite. Eu estava procurando na área errada o tempo todo. Sem
tirar os olhos do Cavaleiro, eu os agarro silenciosamente e os coloco na
terra do lado de fora do carrinho. Então procuro aquela minha maldita
mochila. Finalmente a avisto, presa entre o ombro e a asa do Cavaleiro.

Oh, fala sério.

Eu engulo, meu olhar fixo na mochila.

Apenas deixe-a.

Mas caramba, ele contém os últimos itens que eu possuía antes de


minha vida ser destruída, e eu realmente não quero me separar deles.

Meu olhar volta para o Cavaleiro. Que está vivo e que pode acordar a
qualquer momento.
Posso fazer isso. Sou corajosa e não vou deixar esse idiota me custar o que resta
de meus bens pessoais. Ele já tomou o suficiente.

Com essa conversa estimulante, desembainho minha lâmina e


lentamente me movo até ficar ajoelhada em ambos os lados do Cavaleiro,
suas pernas presas entre as minhas. Levando a faca até o pescoço dele,
pego minha mochila.

É preciso um puxão forte, mas finalmente consigo desalojar a coisa.

Abaixo de mim, o Cavaleiro se mexe, suas sobrancelhas negras se


juntando antes de suavizar.

Acho que realmente estou sem tempo.

Poderia fugir agora, mas há outra opção, uma que é muito tentadora
para o meu lado vingativo.

Assim, depois de jogar minha bolsa na grama ao lado da carroça, fico


ali, com a faca encostada em seu pescoço, esperando que ele acorde.

Eu não posso deixar de olhar para ele. Seu rosto está intacto—como
se não tivesse sido atravessado por várias flechas apenas um dia atrás.
Mais estranho ainda, não há uma mancha de sangue nele.

Isso é diferente.

Toda vez que eu morro—não importa o quão brevemente—sempre


deixo algum traço para trás. Roupas rasgadas, pele ensanguentada—
alguma coisa. Mas olhando para o Cavaleiro, é como se ontem
simplesmente não tivesse acontecido.

Franzo a testa enquanto o estudo. Nunca vi ninguém tão ... tão


grotescamente bonito—bonito e letal. Deveria haver um nome para esse tipo
de beleza, o tipo que literalmente mata.

Enquanto eu mantenho vigília, ele se mexe novamente. Só que desta


vez, seus olhos tremulam, então se abrem.

A primeira coisa que ele vê sou eu.

— Olá novamente, Morte, —eu digo. — Você sentiu minha falta?


Capítulo 12
Bardstown, Kentucky

Outubro, Ano 26 dos Cavaleiros

ELE COMEÇA A SE SENTAR.

— Ah, ah, —eu digo, pressionando a faca um pouco mais firme contra
ele. — Eu não faria isso se fosse você.

Ele olha para a lâmina. Quando ele olha para mim, seus olhos estão
brilhando com malícia. — Você pretende me machucar?

Inclino-me para mais perto. — Já machuquei.

Leva um momento para ele se lembrar, mas eventualmente os olhos


da Morte se estreitam em mim. — As flechas, —ele murmura. — Foi você.

Não fui realmente eu. Tenho certeza de que meus próprios disparos
foram longe. Mas ainda levarei o crédito pelo ataque.

— Jurei que iria parar você.

Não vi a mão do Cavaleiro se mover até que estava em volta do meu


pescoço. Esqueci o quão rápido ele é.
Ele não aperta e eu não me preocupo em tentar tirar seus dedos de
cima de mim. Esta é a retribuição amaldiçoada que eu temia, mas estou
surpresa com o quão destemida estou diante disso.

— Solte-me, ou eu vou cortar sua garganta, —eu digo suavemente.

Ele dá uma risada baixa, cheia de ameaça. Ele, no entanto, remove a


mão do meu pescoço. Eu percebo um segundo tarde demais, ele faz isso
apenas para que ele possa envolver um braço em volta da minha cintura e
nos virar, me forçando a cair no chão do carrinho.

Minha faca corta sua garganta com o movimento.

Morte amaldiçoa, arrancando a lâmina da minha mão e jogando-a


fora. Então, mais uma vez, ele me prende pelo pescoço.

Agora é ele que paira sobre mim, o sangue de sua ferida pingando em
meus lábios e queixo. No momento em que provo seu sabor de ferro,
começo a lutar novamente.

— Mulher tola, —ele sibila. — Você deveria ter cortado minha


garganta antes de eu acordar.

Eu sei.

Ele espera que eu pare de lutar, olhando para mim com olhos que
parecem brilhar.
— Me matar não vai impedir nada. Você não pode salvar seu povo,
—ele diz, seu peso caindo sobre mim.

— Não para sempre, —concordo, — mas vou fazer você trabalhar por
cada uma dessas mortes.

Ele praticamente rosna seu desagrado, suas penas eriçadas em suas


costas. — Deixa pra lá, —diz ele. — Não estou interessado em lutar com
você.

Levanto meu queixo. — Então pare de matar.

Suas narinas dilatam, e talvez seja minha imaginação, mas o


Cavaleiro realmente parecia irritado.

— Você acha que eu quero estar aqui? Que eu gosto de andar pelas
cidades e fazer isso?

— Se você não gosta de fazê-lo, então esse é mais um motivo para


parar.

Ele faz uma careta, parecendo feroz. — As pessoas vão quando é a


hora delas, kismet, e não cabe a mim abrir exceções.

Já tive o suficiente disso.

Eu o ataco. — Não é—nossa—hora. —Cada palavra é pontuada por


um movimento do meu punho ou um impulso da minha bota.
Meu ataque é confuso e o Cavaleiro se esquiva de cada golpe, mas isso
não me impede de continuar a golpeá-lo. Juro por seu deus hipócrita que
vou arrancar esses olhos idiotas dele.

Ele se afasta, conseguindo se manter fora de alcance. — Você pensa


em me machucar de novo, mortal? Você se esquece de quem eu sou.

Morte não se dá ao trabalho de apertar meu pescoço e ainda—e ainda


...

Minhas costas arqueiam e meus olhos se arregalam enquanto a dor


me atravessa.

O que você está fazendo? Eu tento dizer, mas a sensação me rouba o


fôlego.

Parece que ... como se eu estivesse murchando. Como se minha vida estivesse
sendo sugada da minha carne.

Encaro os olhos da Morte enquanto ele tira minha vida. Deve ser isso
que ele está fazendo. Sinto os anos se esvaindo de meus ossos e estou
sendo devorado de dentro para fora. Tento gritar, mas sai como um grito
estrangulado.

Quanto mais o Cavaleiro olha para mim, mais sua expressão muda,
suas sobrancelhas se juntam em confusão. Aquela fachada sombria dele
cede e seu peito sobe e desce cada vez mais rápido. Agora pego a mão em
volta do meu pescoço e tento soltá-la.

Estou impossivelmente fraca—muito fraca para remover o controle da


Morte sobre mim. Engasgo com minha própria respiração. Da próxima vez
que eu pegar esse monstro, definitivamente vou esfaqueá-lo antes que ele acorde.

De repente, Morte dá um grito frustrado. Ele então me solta,


lançando-se o mais longe que pode.

— Por que você fez isso? —ele exige, olhando para o céu. Não quero
me sentir assim.

Fiquei lá, tentando puxar o ar.

Ele então salta da carroça, contornando-a para chegar ao cavalo,


preparando-se para fugir de mim mais uma vez.

Quando ele passa por mim, ele faz uma pausa, seus olhos se movendo
para os meus. Ele me acolhe, parecendo perturbado com o que vê.

— Sinto muito, —diz ele, as palavras cortadas.

— Não sinta, —eu ofego. — Da próxima vez que nos encontrarmos,


pretendo estripá-lo vivo.

E desta vez não vou deixar minha maldita consciência atrapalhar.


Capítulo 13
Cincinnati26, Ohio27

Novembro, Ano 26 dos Cavaleiros

ROUBAR TÚMULOS É UM ATO DEPLORÁVEL. Infelizmente para


mim, fui forçada a recorrer a isso.

Pressiono um lenço no nariz enquanto coloco a mão no bolso de um


cadáver inchado: — Tão ... fodidamente ... nojento.

Sabia que os mortos cheiravam mal, mas nunca tinha percebido o


quão pútrido cada detalhe da decomposição podia ser. Não até eu começar
a encontrar cidades de mortos.

Este corpo em particular está grotescamente inchado.

— Sinto muito, —digo ao homem, — mas preciso que você desista de

26
Cincinnati é uma cidade do estado americano do Ohio. É a sede do Condado de Hamilton no extremo sudoeste
do estado. É banhada pelo rio Ohio, que a separa do estado de Kentucky e é conhecida como a "Queen City" ou simplesmente "Cincy".

27
Ohio é um estado no centro-oeste dos EUA que se estende do rio Ohio e dos Apalaches, no sul, até o lago Erie,
no norte. Às margens do lago, fica a cidade de Cleveland, que abriga o Museu de Arte de Cleveland e sua renomada coleção de pinturas europeias e,
principalmente, de arte asiática. Cleveland conta também com o Rock and Roll Hall of Fame and Museum. Perto da cidade, fica o vas to Parque
Nacional do Vale de Cuyahoga.
sua carteira. —Eu puxo o objeto em questão, que não quer sair do bolso
do cadáver inchado.

— Lazarus.

Quase caio de cara no cadáver ao som do meu nome ecoando no ar.

Eu conheço essa voz.

Faz pouco mais de uma semana desde a última vez que ouvi isso, mas
parece que o confrontei ontem.

Largando meu lenço, pego meu arco e posiciono uma flecha, girando.

Ali, a menos de um quarteirão de distância, entre os escombros da


cidade arrasada, está o Cavaleiro.

Minha respiração fica presa ao vê-lo. Vestido com sua armadura


prateada e envolto por seu cabelo e asas pretos, ele parece a divindade
negra que é.

Aponto minha arma para o peito dele. Há quanto tempo ele está
parado ali me observando?

O olhar de Morte cai para o meu arco. — Sua arma não irá protegê-
la, kismet.

— O que você está fazendo aqui? —Eu exijo. Estou respirando mais
rápido do que deveria, surpresa me deixando nervosa.
— Você tem me seguido, —afirma ele.

Meu coração está batendo como um louco. Eu poderia atirar nele


agora. Eu provavelmente erraria, mas nunca se sabe.

O Cavaleiro avança, as pontas de suas asas se arrastando pelo chão.

— Mantenha distância, —eu aviso.

— Você realmente acha que seu arco me assusta? —ele pergunta.

— Eu vou atirar.

— Ah, então é você que está com medo. —Ele inclina a cabeça. —
Você não gostou do meu toque?

Acho que ele está tentando me assustar deliberadamente, e maldito


seja, mas está funcionando. Mesmo agora estou me lembrando de como,
sob sua mão, parecia que minha vida estava vazando pelos meus poros.

— Por que você estava esperando por mim? —Eu exijo.

— Por que você está me perseguindo? —ele pergunta de volta.

Eu franzo a testa para isso. — Você já sabe por quê. Você deve ser
parado.

— Eu devo? —ele responde, chegando cada vez mais perto. —Talvez


seja você quem precise ser parada.

Eu preciso atirar nele. Não sei por que ainda não lancei minha flecha.
— É por isso que você está aqui? —Eu pergunto, meu olhar passando
rapidamente para o nosso entorno antes de voltar para ele. — Porque você
queria me impedir?

— Eu queria falar com você, —diz ele

Um calafrio percorre meu corpo quando percebo que sou a única pessoa
com quem ele pode realmente conversar. Não conheço as nuances de seu poder,
mas por onde passa ele mata. Talvez eu seja a única pessoa com quem ele
já falou.

— Você não vai conseguir mudar minha opinião sobre parar de ir atrás
de você, —eu digo.

— Quem falou alguma coisa sobre mudar de ideia? —Seu olhar varre
meu corpo e volta para o meu rosto, avaliando-me. Só que seus olhos
demoram muito tempo na minha boca, e quando eles finalmente se
levantam para encontrar meu olhar, há tantas emoções naqueles olhos.
Sinto que, se olhar por muito tempo, vou cair neles e me afogar.

— Você e eu estamos fadados a suportar um ao outro, —o Cavaleiro


diz suavemente enquanto se aproxima de mim, ele agora não está a mais
de três metros de distância.

— Não se aproxime, —eu digo. — Estou falando sério.

Relutantemente, Morte para.


Eu o olho da mesma forma que ele fez comigo. Odeio achar tudo
sobre ele bonito—desde aquele rosto antigo e trágico até aquelas asas
estranhas, até sua estrutura maciça e sua intrincada armadura de prata.
Tudo me chama.

O canto de sua boca levanta enquanto ele me observa examiná-lo.

— Qual o seu nome? —Eu pergunto, mantendo minha flecha


apontada para o peito dele. — Ou você só atende por Morte?

— Oh, eu tenho muitos nomes. —Seu olhar retorna aos meus lábios, e
um músculo em sua mandíbula se flexiona.

— E quais são eles?

— Anúbis. Yama. Xoltol. Vanth. Caronte. Mors. Mara. Azrael—e


muitos, muitos outros. —Seus olhos se movem para os meus. — Mas para
você, Thanatos28.

28
Tânato ou Tânatos (em grego: Θάνατος, transl.: Thánatos, lit. "morte"), na mitologia grega, era a personificação da morte,
enquanto Hades reinava sobre os mortos no mundo inferior. Seu nome é transliterado em latim como Thanatus e seu equivalente n a mitologia
romana é Mors ou Leto (Letum). Muitas vezes ele é identificado erroneamente com Orco (o próprio Orco tinha um equivalente grego na forma de
Horkos, Deus do Juramento). É conhecido por ter o coração de ferro e as entranhas de bronze.
Capítulo 14
Cincinnati, Ohio

Novembro, Ano 26 dos Cavaleiros

— THANATOS, —EU ECOO, BAIXANDO A GUARDA POR um


momento.

Ele deve sentir isso porque sorri e seus olhos ardem. O Cavaleiro—
Thanatos—dá mais um passo à frente e eu fico tensa novamente.

— Vou atirar em você.

— Então atire em mim já, —ele desafia.

Ele não acredita em mim?

Solto a flecha. O projétil atinge sua armadura e cai no chão a poucos


metros de distância.

E ... o Cavaleiro agora parece chateado.

Estou estendendo a mão por cima do ombro para pegar outra flecha
quando a Morte avança, apagando o que restava da distância entre nós.
Antes que eu consiga encaixar totalmente o projétil, ele puxa meu arco e
flecha da minha mão e os joga de lado.

— Ei ...! —Eu grito.

Mesmo enquanto eu protesto, Thanatos alcança minha alça de aljava.


O Cavaleiro o tira do meu ombro e o joga longe de mim. Estremeço
quando ouço isso atingir o cadáver que eu estava tentando roubar.

E agora estou de mãos vazias contra o anjo da morte.

Inclino a cabeça para trás e olho para cima, para os olhos terríveis do
Cavaleiro. Ele franze a testa para mim, aquele músculo em sua mandíbula
ainda pulsando.

— Você realmente acha que está fazendo alguma diferença? —ele diz,
me apertando até que seu peito roce o meu. — Seguindo-me, atirando em
mim?

Ele está claramente com raiva, o que significa que pelo menos estou
fazendo algo certo.

— As pessoas estão escapando de você ... sobrevivendo a você, —


digo, — … então sim, acho que estou fazendo a diferença.

Sua expressão muda, ele parece quase divertido. — Essa era uma única
cidade—uma cidade que eu eliminei apenas algumas horas depois de
deixar seu lado naquele dia. E desde então erradiquei mais de uma dúzia
de outras cidades. Seus esforços são sinceros, —ele reconhece, — mas
desperdiçados.

Antes que eu possa responder, Thanatos me choca segurando meu


queixo, seus olhos vasculhando meu rosto. — Toda a criação cai perante
mim, kismet. Reis e mendigos, bebês e guerreiros. Baleias e moscas,
sequoias e dentes-de-leão. Tudo acaba. E quando isso acontece, eu estou lá
para reivindicá-lo. Você não vai me parar hoje, ou amanhã—você não vai
me parar nunca. Mas—apesar de todo o bom senso, acho que gosto de ver
você tentar.

Ele solta minha mandíbula então.

Eu tropeço para trás quando ele se afasta de mim.

— Na próxima vez que nos encontrarmos, Lazarus, não serei tão gentil
com você, —ele avisa, abrindo as asas. — Mas venha atrás de mim mesmo
assim. Vou adorar nosso reencontro.

Ele pula no céu, suas enormes batidas de asas espalhando ainda mais
minhas flechas pela rua.

Com um último olhar de despedida, ele voa para longe de mim.


Capítulo 15
Ames29, Iowa30

Dezembro, Ano 26 dos Cavaleiros

NÃO SEI DIZER QUANTO TEMPO ESTOU AGACHADA neste viaduto


parcialmente destruído, esperando que o Cavaleiro viaje pela rodovia
interestadual abaixo de mim. Também não estou absolutamente certa de
que o cavaleiro viajará por aqui ou de que meu plano incompleto
realmente funcionará.

Tudo o que sei é que estou congelando e esperar aqui certamente foi
uma má ideia.

Respiro em minhas mãos enluvadas e as esfrego. Meu nariz dói,


minhas orelhas doem e meus dedos parecem congelados. Tenho certeza

29
Ames é uma cidade localizada no estado americano de Iowa, no Condado de Story. Localiza-se 48 km ao norte
da capital do estado, Des Moines. É conhecida por abrigar o campus da Universidade Estadual de Iowa e o laboratório de Ames, vinculado ao
Departamento de Energia dos Estados Unidos.

30
Iowa, um estado localizado no centro-oeste dos EUA, fica entre os rios Missouri e Mississippi. Ele é conhecido
pela paisagem de planícies onduladas e milharais. Entre os monumentos da capital Des Moines, destacam-se o Capitólio do Estado de Iowa,
construído no século XIX e coroado por um domo dourado, o Pappajohn Sculpture Park e o Des Moines Art Center, famoso por suas coleções
contemporâneas. O museu de arte da cidade de Cedar Rapids tem pinturas de Grant Wood, nascido no estado.
de que fiquei congelada em três ocasiões distintas no último mês e,
dependendo de quanto tempo me detenho nessa tarefa miserável, hoje
pode ser a quarta.

Mas a luz do sol aguada rompeu as nuvens e talvez este dia seja um
pouco mais quente do que os anteriores.

Pego minha garrafa térmica e tomo outro gole de café. Tenho certeza
de que o Cavaleiro está vindo para cá. Sei que ele chegou a Minneapolis31,
e acho que a próxima grande cidade que está de olho é Des Moines32.

Assim que coloco minha garrafa térmica de lado, a vida selvagem


passa. Gatos, cachorros, galinhas, veados, pássaros, vacas, alces—vejo até
alguns bisões33.

Os animais correm pela estrada e pelos campos que a margeiam de


ambos os lados. Com a mesma rapidez com que vêm, eles se vão, e aquele
silêncio mortal me envolve, um silêncio que passei a associar à Morte.

31
Minneapolis é uma cidade grande no Minnesota, que forma as "cidades gémeas" com a capital do estado
vizinho, St. Paul. Dividida pelo rio Mississippi, é conhecida pelos parques e lagos. Minneapolis alberga também muitos pontos de referência culturais
como o Walker Art Center, um museu de arte contemporânea, e o Jardim de Esculturas de Minneapolis, famoso pela escultura "Spoonbridge and
Cherry", de Claes Oldenburg.

32
Des Moines é a capital e a cidade mais populosa do estado norte-americano de Iowa. É também a sede do
governo do Condado de Polk. Uma pequena porção da cidade estende-se para o Condado de Gerraren.

33
Os bisontes ou bisões são grandes mamíferos ungulados e ruminantes do género Bison, da família Bovidae, com duas
espécies ainda existentes: o bisonte-europeu, Bison bonasus; e o bisonte-americano, Bison bison.
Demora vários minutos, mas finalmente avisto o Cavaleiro, andando
casualmente pela I-3534, a rodovia que passa por baixo deste viaduto.

Antes que ele tenha a chance de me ver, atravesso para o outro lado
do viaduto, quase tropeçando em pedaços quebrados de asfalto ao fazê-lo.

Eu melhorei em atirar com meu arco, mas meus dedos estão


dormentes demais para atirar com sucesso no Cavaleiro de seu corcel.

Então, hoje, vou fazer algo um pouco diferente.

Subo no muro baixo do viaduto e, colocando a mão no concreto frio,


me agacho ali, meu olhar fixo na estrada abaixo. Uma parte do viaduto à
minha esquerda desabou, criando uma espécie de gargalo logo abaixo de
mim, pelo qual o Cavaleiro terá que passar. Estou pensando em capitalizar
isso.

Minha respiração embaça enquanto espero pelo Cavaleiro.

Demora alguns minutos, mas finalmente ouço o barulho constante


dos cascos de seu corcel conforme ele se aproxima cada vez mais.
Silenciosamente, retiro minha faca enquanto olho para a estrada abaixo
de mim.

34
A Interstate 35 é uma auto-estrada interestadual de sentido norte-sul, na região central dos Estados Unidos,
que inicia em Laredo, Texas, na fronteira Estados Unidos-México, e termina em Duluth, Minnesota, na MN 61. A auto-estrada possui 2 518 quilômetros
de extensão.
Agora aquelas batidas de cascos ecoam, e eu fico tensa enquanto ele
atravessa o viaduto. Os segundos parecem se estender enquanto espero.

Finalmente, vejo a cabeça manchada de seu cavalo a seis metros


abaixo de mim, então vejo as ondas negras do cabelo de Morte e sua
armadura prateada enquanto ele olha para frente, sem perceber minha
presença.

Eu pulo.

Por um momento, enquanto estou no ar, percebo como essa ideia é


absolutamente estúpida e propensa ao fracasso. Mas aí já é tarde demais.

Em vez de pousar na sela, como imaginei com tanta elegância, eu bato


no Cavaleiro.

Ele grunhe quando o derrubo do cavalo, nós dois caindo na estrada


abaixo.

A coisa toda é dolorosa e um pouco embaraçosa, mas antes que a


Morte possa reagir, eu o esfaqueio no pescoço.

— Lazarus, —ele murmura, alcançando sua garganta. Sangue escorre


entre seus dedos, e um pequeno som sai de meus lábios.

Já lutei com esse homem antes. Eu o machuquei e o matei antes. Mas


isso é ... íntimo de uma forma grotesca. Atirar em alguém à distância é
muito mais impessoal do que isso.
Retirando a adaga, eu a libero como se ela me queimasse, minha
náusea aumentando.

Independentemente disso, é tarde demais para se arrepender. Há


sangue por toda parte e a ferida que causei é muito profunda. As pálpebras
de Thanatos fecham e, segundos depois, seu corpo fica mole.

É dolorosamente silencioso.

Não há nada para aliviar as consequências desse momento violento.

Meu ombro e meu peito doem com a queda, e ainda estou enjoada
com minha própria violência, mas me forço a me levantar.

Movendo-me como um velho rabugento, volto ao viaduto para pegar


minhas coisas. Quando volto para o lado do cavaleiro, finalmente percebo
o cheiro.

Incenso e mirra. Olho para cima e vejo o cavalo de Morte parado a


seis metros de distância, a tocha do cavaleiro projetando-se de um dos
alforjes. Uma fumaça nebulosa e perfumada flutua no ar, e um calafrio
passa por mim.

Sei o suficiente sobre o Cavaleiro para saber que a morte não o deterá
por muito tempo. A única maneira real de segurar o cavaleiro é ficar por
perto e matá-lo novamente antes que ele acorde.

Já me deparei com esse problema antes. Ainda não consigo engolir o


pensamento, principalmente não depois do que acabei de fazer.

Você pode mantê-lo em cativeiro.

O pensamento fez minha respiração parar.

Eu poderia mantê-lo em cativeiro.

Seria como tentar conter um furacão. Você não pode parar uma força
da natureza.

Isso não diminui minha excitação crescente. Quer dizer, quem sabe?
Talvez eu possa controlá-lo.

Na verdade, só há uma maneira de descobrir.

MORTE ACORDA NO CHÃO de um celeiro abandonado. O lugar cheira


a mofo e animais molhados. Ah, e a fumaça perfumada—o cavalo de
Morte decidiu se juntar a nós aqui. E para ser justo com o incenso, ele
cobre bem os outros dois odores.

Sento-me de pernas cruzadas na frente de Thanatos, meu corpo ainda


dolorido de todo o esforço que foi necessário para trazer esse homem
excessivamente grande e alado aqui.

Enquanto observo, suas pálpebras tremulam, então ele pisca. É uma


magia estranha, assistir Thanatos voltar dos mortos. Mais estranho ainda
é ver seu sangue desaparecer de minhas roupas e sua armadura—que
descartei perto do viaduto—reaparecer em seu corpo.

Imediatamente, seu olhar se concentra em mim.

— Lazarus. —Por um momento, ele sorri, como se não pudesse se


conter. A visão é tão chocante que meu coração palpita ao vê-la. — A que
devo esse prazer incomum?

O Cavaleiro tenta mover os braços de onde está deitado de lado, mas


amarrei-o com um pedaço de corda que normalmente uso como varal.
Não é o material mais grosso, mas compensei amarrando-o bem.

Ele olha para suas mãos e tornozelos amarrados, seu sorriso


desaparecendo. — Você me derrubou, —lembra ele.

Tento não estremecer com a memória do meu salto sem graça.

Seu olhar sobe para o meu. — E então você me esfaqueou.—


Acusação amarra suas palavras. — E agora ... —Sua atenção volta para
suas amarras.

— Você é meu cativo, —eu digo a ele enquanto ele desajeitadamente


se levanta para sentar. Suas asas se levantam em suas costas quando ele
faz isso.

As sobrancelhas de Morte se erguem. — Eu sou seu … ? —Ele sorriu


em seguida. — Cativo. —Ele diz a palavra com prazer e talvez uma pitada
de humor, e talvez eu devesse esfaqueá-lo novamente. Apenas, você sabe,
para lembrá-lo da dinâmica de poder aqui.

Ele joga a cabeça para trás para jogar uma mecha de cabelo atrás da
orelha, e eu estremeço um pouco com a ação repentina, minha adrenalina
subindo.

Thanatos percebe, e isso o faz sorrir novamente.

Ele estala a língua. — Isso nunca vai acontecer, kismet. Como você vai
me controlar se todos os meus movimentos a assustam?

Eu estreito meus olhos para ele.

— É assim que vai ser, —eu digo lentamente. — Vamos ficar aqui,
juntos, e se você fizer qualquer movimento para escapar, —eu toco o arco
que está ao meu lado, — eu vou atirar em você.

— Acho que estou preso, —diz ele. Ele não parece preocupado. Ou
derrotado. Ele não soa como alguém que se meteu em uma situação
infeliz.

Se alguma coisa, ele parece divertido.

Desgraçado.

— O que você vai fazer comigo? —Ele pergunta, seu olhar passando
rapidamente sobre a minha forma. Algo sobre a maneira como ele me
avalia faz o sangue correr para minhas bochechas e núcleo.

— Vou mantê-lo aqui, onde você não pode destruir mais nenhuma
cidade.

Os olhos de Morte brilham, mas ele não diz nada sobre isso.

Eu peguei uma criatura mais alta na cadeia alimentar do que eu. Eu


realmente sou uma tola por tentar isso.

— Então vamos morar aqui? —Ele pergunta, olhando ao nosso redor.


— Juntos?

Ele faz parecer que nós dois estamos juntos como um casal.

Meu plano está desmoronando.

Eu franzo a testa para ele. — Não é assim que essa situação funciona.

— Então como funciona?

— Se você se mover, eu ataco.

Ele me lança um olhar malicioso, então se inclina para a esquerda.

— Estou me movendo, —ele provoca.

— Não seja infantil, —eu digo.

— Não saberia ser infantil, —ele responde, — nunca fui criança.


Estreito meus olhos para ele novamente.

Ele se inclina para a direita. — Ainda em movimento.

Oh, pelo amor de Deus.

Rápido como um raio, eu puxo meu arco, encaixo uma flecha e atiro.

Ele sibila quando acerto uma asa, a flecha fica presa em suas penas.

— Isso não é uma piada para mim, —eu digo. — Vou continuar
atirando em você se você não ouvir.

— Você poderia? —Morte pressiona, um músculo em sua mandíbula


se flexiona com a dor. — Porque tenho a sensação de que sua violência só
vai até certo ponto.

Não tenho nada a dizer sobre isso. É tão dolorosamente próximo da


verdade, e não tenho ideia de como me tornei tão transparente.

Quando tudo que faço é sentar lá e olhar para ele, ele finalmente diz:
— Você vai remover a flecha? Ou você está com medo de que eu me mova?

Eu olho para ele. — Talvez eu queira ver você sofrendo.

— Você não gosta disso, —ele afirma, seu rosto ficando sério. —
Assim como eu também não.

— Você não gosta de toda a violência? —Eu digo, levantando minhas


sobrancelhas. Acho isso difícil de acreditar.
— Entendo por que você foi colocada no meu caminho, —Morte diz
suavemente, ignorando minhas palavras. — Somos parecidos em um
aspecto fundamental.

Agora ele acha que somos parecidos? Esta conversa está ficando mais
selvagem a cada segundo.

— O dever é o dever, —diz Morte. Ele se acomoda um pouco. —


Mas—para responder à sua pergunta anterior—não, eu não gosto disso.

AS HORAS PASSAM E A luz do dia se foi. É difícil distinguir qualquer


coisa na escuridão, e isso me deixou mais do que um pouco nervosa.
Tenho quase certeza de que saberia se a Morte se libertasse—mas não há
como saber com absoluta certeza, não sem me aproximar dele, e isso
representa seu próprio tipo de risco.

— Eu gosto disso, —Thanatos admite na minha frente, quebrando o


silêncio.

Sua voz é como veludo e deveria ser reconfortante. Em vez disso, um


medo infantil dessa coisa que espreita na escuridão me consome, fazendo
meu pulso disparar.

— Você gosta disso? —Eu digo em descrença, tentando controlar


minha voz.

— Sentado com você. Conversando com você. Não lutando pela


primeira vez, —diz Thanatos. Depois de um momento, ele acrescenta: —
A luta é ... acho emocionante ser colocado contra você, mas bem, agora
você sabe como me sinto por machucá-la. Conversar com você—no
entanto, é intrigante.

Com suas palavras, meu medo se transforma e me lembro daqueles


pensamentos e sonhos perdidos que tive nos últimos meses. Aqueles em
que Morte não é meu inimigo, e ele olha para mim e me toca de forma
totalmente diferente ...

Não estou bem da cabeça.

Eu limpo minha garganta. — Não diga coisas assim.

— Por que não?—Ele pergunta, curioso.

Eu esfrego meus olhos. — Porque.

Porque me faz querer gostar de você, e esse é um conceito absolutamente


aterrorizante.

O celeiro está opressivamente silencioso, e uma parte de mim gostaria


de poder ver o rosto do Cavaleiro.

Ele está certo. Há algo intrigante em sentar aqui e realmente conversar


com essa ameaça.

— Somos parecidos de outra maneira fundamental, —diz ele depois


de um momento.

E o que é isso? A pergunta arde em minha garganta, mas não vou me


permitir fazê-la.

E Morte nunca elabora.

NO MEIO DA NOITE, fica claro que estou perdendo a cabeça.

Estou com fome, sede e frio, e preciso ir ao banheiro. Mas acima de


tudo, estou cansada. Vivi em um estado perpétuo de exaustão perseguindo
esse homem por todo o país.

Eu bocejo pela quinta vez? Sexta vez?

— Melhor não dormir, kismet. —A voz de Morte vem da escuridão.


— É quando eu vou atacar.

— Melhor não se mover, Cavaleiro. É quando eu vou atirar.

Eu ouço sua risada baixa, quase sexual. Meu estômago aperta com o
som.
Depois de um momento, pergunto: — O que essa palavra significa?
Kismet?

Ele já me chamou assim várias vezes antes.

Há uma longa pausa.

— Presumi que você saberia, —ele finalmente diz. — Afinal, é uma


palavra humana. —Ele acrescenta: — Isso significa destino.

Destino?

— Por que você me chamaria assim? —Eu pergunto, genuinamente


curiosa.

— Você não sabe? —Morte diz isso como uma declaração, mas juro
que há um tom de surpresa em sua voz.

— Sabe o que?

Mas ele não responde, e não tenho energia para pressioná-lo por mais.

Por um tempo, seu aviso para ficar acordada é o suficiente para me


manter alerta. Mas as horas passam e não há nada a fazer a não ser olhar
para a escuridão.

Não pretendo cair no sono. Para ser honesta, eu teria jurado que não
tinha adormecido, mas de repente sou acordada por dedos frios afastando
meu cabelo da orelha. Por um momento, esqueci a situação, e aquele
toque é tão gentil que me inclino para ele.

Um momento depois, lábios substituem aqueles dedos.

— Fiquei tão intrigado com a ideia de ser seu cativo, Laz, que quase
fiquei parado, —Morte sussurra em meu ouvido. — Mas eu tenho trabalho
a fazer.

Eu endureço ao som de sua voz, pânico inundando minhas veias. Ele


está livre.

— Talvez da próxima vez, —acrescenta ele, — você possa ser minha


cativa.

— Thanat ... —Assim que estou me virando para encará-lo, minha


mão alcançando minha arma, as mãos de Morte encontram cada lado do
meu rosto. Ele torce meu pescoço violentamente e ...

Estalo.

MORTE

TIREI INCONTÁVEIS VIDAS ao longo dos tempos. Os jovens, os velhos,


os fortes e os fracos. Achei que já tinha visto de tudo.

Eu não vi.

Nunca encontrei uma criatura disposta a morrer repetidamente por


sua própria espécie. Nem mesmo meus irmãos eram capazes disso. Todos
nós, cavaleiros, já morremos mais de uma vez, mas nunca por algo mais
tangível do que nossa tarefa.

Observar Lazarus se colocar contra tais probabilidades insuperáveis é


perturbador.

Inquietante e sedutor.

Estou ansioso para vê-la novamente.


Capítulo 16
Kansas City35, Missouri36

Dezembro, Ano 26 dos Cavaleiros

LAZARUS

AS COISAS MUDARAM ENTRE NÓS. ISSO SE TORNOU ÓBVIO.

Nós dois nos enfrentamos nas ruas de Kansas City, corpos e prédios
quebrados espalhados em todas as direções.

— Estive pensando, —disse Thanatos, suas botas triturando vidro


quebrado. — Poderíamos parar de lutar.

— Poderíamos, —eu concordo, segurando minha faca com mais


força. Minha outra lâmina está agora nas mãos de Morte. — Você só

35
Kansas City é a cidade mais populosa do estado do Missouri, nos Estados Unidos. É a 36ª cidade mais populosa
do país. Localiza-se nas margens do rio Missouri. Kansas City foi fundada em 1838 como "Town of Kansas", na confluência dos rios Missouri e Kansas
e foi incorporada em 1850.

36
O Missouri, Missúri, ou Missuri é um dos 50 estados dos Estados Unidos, localizado na Região Centro-Oeste do
país. O Missouri é cortado pelos rios Mississípi e Missouri, o último sendo a origem do nome do estado.
precisa acabar com a matança.

Seus olhos brilham. — Não posso. Você sabe que não posso.

O Cavaleiro começa a me rodear.

— Então, o que você realmente está pedindo é que eu pare de defender


a humanidade, —eu digo, virando meu corpo com ele para que minhas
costas nunca fiquem expostas.

Do nada, o Cavaleiro avança e eu tenho que pular para fora do


caminho. Apesar do ar frio, o suor escorre por entre meus seios.

— É uma tarefa tão inútil quanto ingrata —diz Morte, recuando um


passo.

Corro para a frente enquanto ele se afasta, brandindo minha faca.

Clang. As curtas lâminas se encontram.

Morte inclina seu peso contra nossas armas travadas, forçando-me a


ficar de joelhos.

— Não é ingrata, —eu ofego. Deixo cair minha mão livre no chão.
Há seixos e cacos de vidro e outros detritos espalhados pela estrada. Minha
mão se fecha em torno de um punhado dele. — Às vezes eu supero você,
e isso é muito, muito gratificante.

Jogo os escombros em seu rosto, fazendo-o tropeçar para trás, sua


lâmina deslizando da minha com um zunido.

Largando minha própria faca, mergulho em direção a ele, pegando o


cavaleiro por um de seus tornozelos.

Ele tropeça, então cai.

Antes que ele tenha a chance de se levantar, rastejo até o Cavaleiro e,


hesitando apenas um momento, subo nele, passando uma perna sobre seu
torso.

Estou respirando pesadamente, meu peito subindo e descendo com


meu esforço.

Por um momento, Thanatos parece confuso. Ele espera meus ataques,


o que ele não esperava é me encontrar montada nele, sem armas.

Bem, quase sem armas.

— O que você está fazendo? —Morte exige.

Inclino-me para a frente, agarrando um de seus pulsos.

O olhar da morte involuntariamente se move para o meu decote, que


está mais à mostra do que o normal, graças a um corte bem colocado de
sua faca.

Thanatos encara ... e encara, e seria rude pra caralho, exceto que esse
Cavaleiro claramente nunca ficou cara-a-cara com peitos.
— O que você está fazendo? —ele ecoa, mas sua voz está áspera.

Os seios são, aparentemente, sua ruína.

Agarro sua outra mão, trazendo as duas sobre sua cabeça. Me inclino
para a frente enquanto faço isso até que as garotas estejam bem próximos
de Thanatos.

Planejei distrair a Morte com meus peitos hoje?

Não.

Vou levar isso adiante?

Sim.

— Estou te subjugando. —Enquanto falo, desengancho a corda que


tenho na cintura. Não planejei isso, mas ... como eu disse, as coisas
mudaram entre nós.

— Você está me subjugando? —Morte murmura distraidamente. Ele


ainda está encarando meu decote.

Enquanto ele está ocupado descobrindo hormônios, começo a


amarrar seus pulsos acima de sua cabeça. Depois do nosso último
encontro, descobri que os laços não vão prendê-lo para sempre, mas é
melhor do que nada. Além disso, esta corda é muito mais grossa do que a
de varal que usei da última vez.
Os olhos de Thanatos finalmente se afastam do meu decote, subindo
rapidamente para o meu rosto.

O olhar de Morte se aguça. — Eu quero você. —As palavras se


desprendem dele.

O silêncio absoluto segue seu rastro.

Não sei quem está mais chocado, ele ou eu. A admissão é tão
inesperada e tão grotescamente inapropriada, já que nós dois somos
inimigos mortais—ou imortais, mas tanto faz.

Aguardo que a Morte retire as palavras, ou pelo menos as reformule.


Ele não o faz.

Volto ao meu trabalho, pronta para fingir que faltam os últimos vinte
segundos, mas minhas mãos começam a tremer e não consigo prender o
nó em seus pulsos com tanta força quanto gostaria.

— Olhe para mim, —Thanatos exige suavemente.

Eu balanço minha cabeça.

— Lazarus, olhe para mim.

— Não recebo ordens de um Cavaleiro, —eu digo, arrastando uma


respiração profunda.

Ele solta uma risada baixa, uma que arrepia os pêlos dos meus braços.
— Você não vai olhar para mim porque você sente isso também, e você
sabe que eu veria isso em seus olhos.

— Você está delirando? —eu digo.

Com o canto do olho, eu o vejo sorrir, e meu estômago dá uma


reviravolta estranha com a visão.

Termine o que começou, ordeno a mim mesma, voltando a me


concentrar no nó. Minhas mãos, no entanto, ainda estão tremendo.

— Continuamos lutando contra essa atração entre nós, —diz Morte.

— Não há nenhuma atração entre nós, —eu digo com firmeza. —


Você é meu inimigo.

— Oh, existe uma atração entre nós.

Eu olho para ele. — Não existe.

Thanatos olha profundamente em meus olhos. Depois de um


momento, um sorriso lento se espalha em seu rosto. — Aí está. Você
também me quer.

— Como você saberia como é o querer? —eu acuso.

— Existem muitas almas que me desejam, no final das contas, —diz


ele.

Pessoas que anseiam pela morte, ele quer dizer.


Eu franzo a testa. — Bem, eu não sou uma delas.

Seu sorriso só cresce, fazendo meu estômago revirar da maneira mais


irritante.

— Eu não sou, —eu digo defensivamente. — Você é bonito. Isso é


tudo.

Querido Deus, eu realmente acabei de dizer isso em voz alta?

A expressão do cavaleiro fica mais intensa, seus olhos parecem


queimar. — Você acha que eu sou bonito.

Morte não precisa mais me matar, acho que meu próprio constrangimento fará
o trabalho muito bem.

Por que eu disse isso?

Seu olhar ainda está aquecido, sua expressão ainda me desafiando.

— Você não está cansada de tudo isso? —Ele aponta para as ruínas de
Kansas City. — Você não está cansada da luta, do combate, da dor?

Deus, como eu estou. Para cada cidade que salvo, há pelo menos cinco
outras que não consigo.

— Claro que estou cansada.

Cansada até os ossos.

Isso não muda nada.


O olhar de Morte é suave e ele diz suavemente: — Então venha
comigo.

Por um momento, a oferta soa insuportavelmente boa, como cair na


cama depois de um longo dia.

Encaro os olhos de Thanatos, cheios de tantos segredos. Muitos,


tantos segredos.

— Venha comigo, —diz ele novamente.

Eu poderia. Chega de lutas. Chega de exaustão. Eu apenas ... cederia.


Talvez eu não possa morrer e meu corpo nunca possa conhecer a paz
verdadeira e final, mas isso parece ser um segundo próximo.

— Nós apenas continuaríamos lutando, —eu discuto comigo mesma


em voz alta.

— E se decidíssemos parar de machucar um ao outro? —ele contesta,


e ele é o diabo em meu ouvido. — Desprezo ver você sofrer e sei que não
é diferente com você.

Meu coração está batendo rápido. Ele está dizendo todas as coisas
certas e estou sendo atraída por essas doces promessas.

E é por isso que eu saio de cima dele e me forço a recuar.

— Você não vai me levar a lugar nenhum, —eu digo. Supondo, é


claro, que eu prenda seus pés—e suas asas também. Eu tenho mais corda
na minha mochila, mas minha mochila está do outro lado da rua, e chegar
a ela significa dar as costas a esse Cavaleiro.

Ele se deita no chão, depois ri, o som crescendo em si mesmo. — Você


acha mesmo que está no controle? —ele diz. — Que apesar de seus
esforços anteriores fracassados, você pode simplesmente me amarrar e ir
embora?

De repente, ele levanta os pulsos amarrados, então os rasga, a corda


rasgando como um tecido.

Eu cambaleio para trás, meus olhos arregalados.

Isso não deveria acontecer.

Com graça felina, o Cavaleiro se põe de pé. Ele se endireita, suas asas
negras se dobrando em suas costas.

Ele caminha em minha direção. — Acho que já descobrimos que sou


um pobre cativo, —diz ele com cuidado. — Eu escapo das minhas restrições
um pouco facilmente demais.

Thanatos para a vários metros de mim. Ele estende a mão. — Que


não haja mais dor entre nós. Não há mais conflitos. Venha comigo,
Lazarus.

Ainda estou abalada com a demonstração de força dele, e que eu


sentei no peito dele por minutos, e em todo esse tempo ele poderia ter
rasgado a corda e me agarrado.

Mas ele não o fez.

E agora ... sua oferta e sua expressão sincera abrem caminho sob
minha pele.

Não haverá mais dor. Chega de solidão torturante. Sem mais esquemas
e quebrando-me tentando parar este homem.

É extremamente sedutor.

Eu dou um passo em direção a ele.

Os olhos da morte brilham com alguma emoção intensa.

Pego sua mão estendida, cedendo a esse momento de fraqueza. Minha


mão paira sobre sua palma aberta.

Só então hesito.

Meu olhar se volta para Thanatos. Thanatos, que pode parar de lutar
comigo, mas que nunca, nunca vai parar a violência. Thanatos que quer
que eu desista de tudo enquanto ele não concede nada.

— Não. —Mesmo enquanto digo isso, deixo cair minha mão e me


afasto dele.

Meu coração ainda está acelerado. As marés estão mudando entre


nós. Não me sinto mais como o caçador e ele como a caça, e tenho o medo
mais louco de que, se a Morte se aproximar o suficiente de mim
novamente, ele tente me arrebatar.

— Não vá, Lazarus, —ele implora.

Hesito novamente. Não sei porque eu faço. Só ... não esperava que
esse monstro tivesse uma oferta tão peculiar para mim, nem esperava ser
tão seduzida por ela.

E não tenho ideia do que dizer a ele agora. Então me contento em


balançar a cabeça enquanto coloco distância entre nós.

O olhar de Morte se estreita. — Guarde minhas palavras, kismet: esta


é a última vez que lhe darei a escolha. —E então, o mais casualmente
possível, ele chama seu corcel, monta na besta e parte.
Capítulo 17
Austin37, Texas38

Dezembro, Ano 26 dos Cavaleiros

JÁ ESPEREI PELO CAVALEIRO MAIS DE UMA DÚZIA DE vezes? Três


dúzias? Quatro? Tudo se confunde. E a cada cidade que passo, minha dor
aguda e minha raiva fervente desaparecem um pouco mais.

Você não está cansada de lutar?

E se decidíssemos parar de ferir uns aos outros?

— Coloque seus melhores atiradores em todas as estradas principais


que entram e saem da cidade, —digo ao chefe de polícia de Austin, Wyatt
Davenport. — Você só tem uma chance de derrubar o Cavaleiro. Se uma

37
Austin, a capital do Texas, nos EUA, é uma cidade que faz divisa com a região de Texas Hill Country. Contando
com o campus principal da Universidade do Texas, Austin é conhecida pelo cenário eclético de música ao vivo centralizado nos gêneros country,
blues e rock. Os diversos parques e lagos são muito procurados para trilhas, ciclismo, natação e passeios de barco. Ao sul da cidade, o Circuito das
Américas recebe o Grande Prêmio dos Estados Unidos de Fórmula 1.

38
O Texas é um grande estado no sul dos EUA com desertos, florestas de pinheiros e o rio Grande, que delimita
a fronteira com o México. Em sua maior cidade, Houston, o Museu de Belas-artes abriga obras de pintores impressionistas e renascentistas
conhecidos, enquanto o Space Center Houston oferece exposições interativas projetadas pela NASA. Austin, a capital, é conhecida pelo seu cenário
musical eclético e pela LBJ Presidential Library.
flecha passar longe ou não conseguir derrubá-lo instantaneamente, todos
morrem.

Tenho tentado cada vez mais confrontar o cavaleiro antes que ele
chegue a uma cidade, mas muitas vezes não consigo evitar.
Consequentemente, o motivo que me encontro na sala com o chefe de
polícia de Austin.

O chefe Davenport se endireita um pouco mais de onde está sentado


em sua cadeira. — Recebemos os avisos de Oklahoma City e ouvimos as
histórias de outras pessoas que tropeçaram nos corpos, —diz ele, um tanto
na defensiva. — Já estamos cientes da existência do Cavaleiro e já temos
planos em andamento.

— Ele mata em um instante, —eu digo. — Eu vi isso em primeira


mão. —Muitas, muitas vezes. — Você precisa evacuar todos, se puder. Ele
está vindo do Norte ... —Eu me levanto e aponto para a estrada que peguei
em Austin. — Provavelmente ele usará esta estrada. Seria melhor que os
civis o evitassem e colocassem a maioria ...

— Decidirei o que é melhor para nossa cidade, —diz o chefe


Davenport, interrompendo-me. Ele me examina novamente. — Quem
indicou você de novo?

Posso sentir meus ossos cansandos. — O chefe dos bombeiros.


Estou cansada. Tão, tão cansada.

Cansada de explicar isso para pessoas que não querem acreditar.


Cansada de esperar, com o arco pronto, que a Morte passe por aquela
estrada. Cansada dos dias longos e das noites curtas. Cansada do medo
sempre presente que carrego comigo.

Cansada de ferir a Morte. Lutar contra ele.

Talvez eu deva simplesmente ceder. É tudo inevitável.

Afasto o pensamento sedutor.

— O chefe dos bombeiros, —ele ecoa, olhando para mim como se eu


fosse uma mentirosa. Não sei se é meu gênero, minha autoridade ou o
quê, mas algo em mim incomoda esse homem. — E onde ele está? Samuel
teria feito questão de estar aqui se achasse que era importante.

— Não sei por que o chefe dos bombeiros não está aqui, —digo,
exasperada.

O chefe de polícia se acomoda em seu assento, seu olhar passando por


cima do meu ombro para a porta, como se estivesse tentando descobrir a
maneira mais rápida de terminar esta reunião.

— Como você sabe que o cavaleiro está vindo nessa direção? —


Davenport pergunta, examinando-me novamente, sua expressão astuta.
— Devo realmente acreditar que uma garota que por acaso apareceu na
minha cidade contando histórias onde todo mundo morre—exceto ela, é
claro—realmente tem as respostas que ninguém mais tem? —Ele me dá
um olhar duro. — Atiradores de elite, —ele murmura, balançando a cabeça.

É aqui que ele assume que eu tenho algum tipo de plano elaborado
para tirar todos de suas casas para que eu possa roubá-los às cegas.

Eu estou tão cansada.

Não contei ao chefe de polícia a parte sobre ser impossível de me


matar. Acho que não estou em condições de dizer essa verdade hoje.
Então, em vez disso, aponto para o mapa na sua frente.

— Essa é minha prova. Veja as cidades que ele atingiu. Existe um


padrão nisso. E se você seguir esse padrão, verá que ele leva direto para
Austin. Você mesmo disse que Oklahoma City avisou vocês. Você sabe
que existem ...

— Não se atreva a me dizer o que eu sei, —diz o chefe de polícia, sua


voz dura como aço.

Aperto minha mandíbula, me forçando a permanecer em silêncio


sobre as presunções que este homem fez sobre mim.

— Morte gosta das grandes cidades, —digo em vez disso. — Ele estará
aqui em breve.

— Baseado em um monte de rabiscos que você fez em algum mapa.


—Chefe Davenport empurra o papel de volta para mim. — Chega dessa
besteira. Saia da minha ...

— Há uma outra razão, —eu me apresso em dizer.

Ele faz uma careta de impaciência, mas espera.

— A Morte está vindo para cá porque eu estou aqui, —eu digo


severamente. — Ele está atrás de mim.

COM MINHAS PALAVRAS, o chefe de polícia se recostou em sua


cadeira. Ele olha para mim, e eu posso praticamente ver as rodas em sua
mente girando. O momento se estende, tornando-se desconfortável.

— Ei, Jones, —ele finalmente chama, olhando para a porta.

Olho por cima do ombro no momento em que o policial Jones, o


homem estacionado do lado de fora, enfia a cabeça na sala. O chefe de
polícia acena para ele entrar.

O oficial Jones entra na sala, olhando entre nós dois.

O chefe Davenport volta sua atenção para mim. — Então, a Morte


está seguindo você?

Não sei dizer se ele finalmente acredita em mim. Sua expressão é


ilegível.

Olho dele para o oficial Jones antes de responder. — Sim, —eu digo
lentamente.

— Bem, então, —Davenport diz, recostando-se em seu assento. — Se


é você que ele está atrás, então é você que ele vai pegar. —Seu olhar corta
para o outro homem. — Oficial Jones.

Ele mal falou seu nome quando o policial me agarrou.

— O que você está ...?—Eu luto com o policial enquanto ele agarra
meus pulsos. Eu bato minha bota em seu peito do pé.

— Porra, —ele amaldiçoa quando seu aperto afrouxa.

Não posso acreditar que isso está acontecendo. Qualquer coisa disso.

Consigo escapar da sala. Deus, estou realmente fugindo das autoridades


agora?

Mais dois oficiais conversam no final do corredor. No momento em


que eles me veem sem fôlego sair da sala, eles enrijecem, sua atenção se
voltando para mim.

Eu corro na direção oposta.

Tenho muita experiência em matar divindades, mas tenho muito


pouca experiência quando se trata disso.
A porta atrás de mim se abre e o oficial Jones sai. Ainda não percorri
três metros quando ele se aproxima de mim. O policial me dá um forte
empurrão por trás. Tropeço e caio no chão de linóleo. Ele está em cima de
mim em um instante, puxando meus pulsos juntos e me algemando
enquanto os outros dois policiais se aproximam.

— Isto é ridículo! —Eu bufo. — O que você está fazendo? —Começo


a lutar contra eles.

Não acredito que isso esteja acontecendo. Eu não posso acreditar que isso está
acontecendo.

Ouço os passos pesados do chefe Davenport. Ele vem até onde estou
sendo algemada. — Homens, isto não deve ser registrado na prisão do
condado.

Os oficiais hesitam. Qualquer que seja o protocolo que eles tenham


para criminosos, é claro que o chefe de polícia quer que eles se desviem
dele.

— Esta mocinha parece pensar que um Cavaleiro está vindo em nossa


direção. —A boca de Davenport se contorce, como se ele estivesse
reprimindo um sorriso malicioso. — Para nossa sorte, o homem
aparentemente está procurando por ela.

Os olhos dos policiais se movem sobre mim, embora eu não consiga


adivinhar o que está acontecendo em suas cabeças.

— Por favor, —imploro ao chefe de polícia. — No entanto, você pensa


que isso não vai acontecer, você está errado.

— Ouvi a sua história, —Davenport dispara, — agora é hora de você


calar a boca e me ouvir, mocinha: talvez você esteja mentindo e queira
ferrar com a minha cidade, talvez você esteja dizendo a verdade e o Cavaleiro
realmente está vindo para cá. Realmente não importa porque, no final das
contas, vamos amarrá-la como um porco e deixar o Cavaleiro—se ele
realmente estiver vindo—chegar até você primeiro.

Esse é o plano dele?

Quem teve o pobre senso de colocar esse homem em um papel de


liderança?

— Me—Deixe—Ir. —Eu me empurro contra minhas algemas.


Esses idiotas. — Ele vai matar todos vocês.

— Parece-me que ele não pode—não se é você que ele quer. Parece-
me que ele pode se distrair.

— E se ele não vier, —continua Davenport, — então podemos


acompanhá-la até a prisão do condado por uma noite, para que você possa
pensar sobre suas escolhas de vida.

Eu solto um suspiro. — Não é assim que funciona! A Morte pode não


estar aqui hoje, ou mesmo amanhã, pode não vir. Mas se ele fizer isso, todos
morrerão.

O chefe de polícia estreita os olhos para mim. Agachado na minha


frente, ele diz suavemente. — Acho que você está falando merda,
mocinha, e vou gostar de vê-la apodrecer na prisão por ter a audácia de
atacar nossos cidadãos.

Voltando-se para o policial Jones, ele dá um tapinha no ombro do


homem. — Coloque-a na parte de trás de um dos carrinhos de prisão e
leve-a até a saída da Interstate Thirty-Five, —diz ele, lançando-me um olhar.
Essa era a estrada que eu o avisei para vigiar de perto. — Quando chegar
lá, prenda-a e deixe-a no meio da estrada.

Encaro o chefe de polícia com horror crescente. — Você está louco.

Os olhos do chefe Davenport endurecem. — Você pode amordaçá-la


também, —acrescenta. — Ela já está causando pânico suficiente.

OS OFICIAIS FAZEM o que lhes é ordenado. Estou no meio da estrada


na periferia de Austin, meus pulsos e tornozelos algemados. Um pedaço
de corda vai do meu pescoço até um poste extinto a cinco metros de
distância. Estou acorrentada como um cão.
Os oficiais encarregados se afastaram de mim, provavelmente porque
agora que seu chefe está fora de vista, eles estão percebendo que isso é
altamente, altamente antiético, mesmo para o Velho Oeste.

Ou talvez, amarrada como estou, eles simplesmente não precisem


ficar mais perto.

Luto contra minhas amarras até meus pulsos ficarem em carne viva e
algumas lágrimas de frustração caírem.

Esta é uma situação tão estúpida provocada por alguns idiotas que
pensam que problemas simples devem ter soluções simples, e agora, não
apenas eles estão fodidos, mas eu também estou fodido.

Mexo minha mandíbula. O pano com que me amordaçaram está


machucando os cantos da minha boca.

Olho por cima do ombro para onde os três policiais estão perto de seu
carrinho. Eles parecem entediados e um pouco irritados por estarem no
frio, mas estão conversando. Pego pedaços de fofocas de trabalho.

Por um longo tempo, nada acontece. Algumas pessoas entram na


cidade, algumas pessoas saem dela—algumas delas até param para
questionar a situação em que estou antes que o policial Jones ou um dos
outros dois homens os assuste.

Finalmente, o chefe Davenport se junta a eles.


— Seu Cavaleiro ainda não apareceu? —o chefe de polícia me chama.

Minhas mãos estão amarradas, mas ainda consigo levantá-las alto o


suficiente para virar o dedo do meio para ele.

— Ei! —um dos oficiais grita bruscamente.

— Esqueça isso, —diz Davenport. Mais quieto, eu o ouço acrescentar:


— Se nada acontecer até o anoitecer, faremos com que vocês troquem com
Joe, Tompkins e Elijah.

— O que está acontecendo? —um dos homens pergunta, sua voz


baixa. Ouço o chefe de polícia informar a todos.

— Acha que é verdade? —Um deles pergunta.

— Bem, veremos, não é? —Davenport diz um pouco mais alto, e eu


praticamente posso sentir seu olhar cravado nas minhas costas. — Se não,
posso dizer a todos vocês uma coisa com certeza: aquela mulher vai se
arrepender de ter vindo para Austin.

Mais uma hora se passa antes que eu ouça os gritos agudos de


incontáveis animais à distância.

Está começando.

Meu coração acelera enquanto manco para ficar de pé, depois me


arrasto o melhor que posso até o poste inclinado ao qual estou amarrada.
Essa linha escura de criaturas se aproxima cada vez mais, obscurecendo o
pôr-do-sol. A carroça da polícia chacoalha, depois sai em disparada
enquanto os cavalos atrelados a ela galopam.

— Puta merda! —Um dos homens exclama.

Eu pressiono minhas costas contra o poste de metal no momento em


que os animais passam correndo, zurrando, uivando e guinchando.

— Puta merda! —outro oficial exclama.

O resto de suas palavras se perde no barulho da debandada. O grupo


deles corre em direção a um extinto restaurante de fast food, a pintura
desgastada pelo tempo e o logotipo nada mais é do que um contorno. Eles
têm que atravessar a horda de animais para chegar lá, mas, eventualmente,
conseguem se esconder atrás do prédio abandonado.

Deveria ter alguma satisfação sombria com a situação deles, mas, em


vez disso, meu estômago revira porque sei o que está por vir.

Morte.

À medida que a debandada diminui, sinto aquele silêncio letal.

Oh Deus.

Eu luto contra minhas restrições novamente, embora seja inútil.

Lembro-me da promessa do Cavaleiro de que viria atrás de mim e estremeço.


Fecho os olhos, tentando descobrir como vou me livrar dessa
confusão. Eu poderia ficar aqui, encostado neste poste, de costas para a
estrada. Aposto que se a Morte não visse meu rosto, ele passaria direto e
não me veria.

Mas então Austin morreria e, se todos se forem, ficarei presa para


sempre a este posto. Essa possibilidade de pesadelo revira meu estômago.

Se não posso me esconder do Cavaleiro ... então terei que voltar para
aquela estrada e me oferecer à Morte como uma espécie de sacrifício
doentio.

Exatamente como o chefe Davenport pretendia.

Eu faço uma careta, mesmo enquanto volto para o meio da estrada,


minhas correntes tilintando. Acabo de chegar quando, do silêncio, ouço
as vozes dos policiais.

Minha espinha endurece. Eles estão voltando? Como eles não foram
convencidos pela debandada de animais selvagens de que o Cavaleiro está
chegando?

Eu olho por cima do meu ombro para eles. — Corram! —Eu tento
gritar. A mordaça abafa meu aviso.

— O que deu nela? —diz um dos oficiais.

Não é flagrantemente óbvio?


Eu grito novamente em frustração. — Corram! Corram! Corram!

O grupo deles fica parado ali, parecendo confuso e um pouco


assustado. O chefe Davenport está me examinando, franzindo a testa,
como se, talvez, pela primeira vez, ele estivesse considerando que esta não
foi a melhor ideia.

Por fim, um dos policiais diz: — Talvez ... talvez devêssemos ir.

Clop-clop-clop.

Tarde demais. Tarde demais, tarde demais, tarde demais.

Eu olho para frente, o medo se acumulando em meu estômago. Ao


longe, vejo o Cavaleiro, as asas dobradas atrás das costas.

— Por Deus, —diz um dos policiais.

Morte já está olhando para minha forma, mas no momento em que o


encaro, ele para seu cavalo, seus olhos vasculhando minha mordaça e a
corda em meu pescoço, e as algemas em meus pulsos e tornozelos.

Seus olhos se movem para o meu rosto. Lá, eles demoram e demoram,
sua expressão parecendo ficar mais intensa, mais determinada a cada
segundo que passa.

Ele estala a língua e seu cavalo começa a trotar, sua atenção voltada
para mim.
Clip-clop, clip-clop.

Não consigo controlar minha ansiedade enquanto Thanatos


rapidamente diminui a distância entre nós. Posso sentir meu corpo
tremendo, e não é apenas por causa do frio. Não sei o que esperar desse
encontro.

Morte para seu cavalo na minha frente. Por vários segundos, nós dois
não fazemos nada além de olhar um para o outro.

— Eu vou ser amaldiçoado, —diz Davenport à distância, sua voz


abafada, — ela estava dizendo a verdade.

Ele mal falou as palavras quando ouço vários baques surdos. Já ouvi
esse som tantas vezes. Corpos batendo no chão. O chefe de polícia e
aqueles policiais foram bastardos por fazerem isso comigo, mas ainda
sofro que eles—e provavelmente o resto da cidade—tenham desaparecido.

— Finalmente, —diz Thanatos, saboreando esta situação.

Mesmo sabendo que preciso que o Cavaleiro me solte, ainda me afasto


dele quando ele se aproxima, as algemas em meus tornozelos ressoando
juntas.

— Onde você espera ir, kismet? —ele diz, caminhando atrás de mim.
— Parece haver bastante corda.

Isso não me impede de continuar me afastando dele.


— Seus queridos amigos humanos se voltaram contra você? —ele
pergunta. Ele pega a corda amarrada em meu pescoço e se aproxima de
mim. Assim que estou ao alcance do braço, Morte pega minha mordaça.
Com as próprias mãos, ele rasga o pano. — Ou isso era para ser uma
emboscada? —ele pergunta, lançando um olhar ao nosso redor.

Eu respiro fundo. — Se você tentar me levar, —eu digo. — Vou fazer


você se arrepender.

O canto de sua boca se curva para cima. — Você vai agora?

Enquanto ele fala, ele se abaixa. Pegando uma algema de ferro em


suas mãos, ele a abre, libertando um dos meus pulsos. Então ele pega a
outra algema e a abre também, antes de jogar as algemas quebradas para
o lado. A visão de sua força impressionante me faz respirar em pânico.

Continuo esquecendo que nós dois não somos iguais, não quando se
trata de força bruta.

Depois que Thanatos removeu minhas algemas, ele estendeu a mão


para as algemas em meus pés.

— O que você está fazendo? —Eu pergunto.

Ele ergue os olhos para mim, e a Morte ajoelhada diante de mim não
deve parecer tão atraente.

— Estou libertando você. —Como se para provar sua opinião, ele


quebra uma das algemas.

— Por que?

— Você preferiria que eu apenas deixasse você aqui? —ele pergunta,


agarrando o último punho restante. Ele a puxa e, com um estalo de
gemido, o metal se despedaça.

O Cavaleiro se levanta então, elevando-se sobre mim mais uma vez.

— Então, você vai me deixar ir? —Eu pergunto com cuidado.

Ele me dá um olhar sensual que sinto no fundo do meu ser. —


Certamente você não esqueceu meu voto de despedida.

Então Thanatos planeja me levar. Não sei exatamente o que isso


implica, mas imagino que signifique que não poderei mais avisar as
cidades sobre sua abordagem. E embora eu possa estar cansada de tudo
isso, não estou pronta para desistir.

— Sinto muito que eles se voltaram contra você, —diz ele com
sinceridade.

Respiro profundamente. — Eles podem ter se voltado contra mim,


mas não me machucaram. —Ao contrário de você.

Não quero que nenhum de nós esqueça quem é o verdadeiro vilão


nesta situação.
O olhar do Cavaleiro encontra o meu, e ele entende. Posso dizer que
ele entende. Mas não oferece desculpas ou arrependimento.

A mão da Morte se move para a corda em meu pescoço. Seus dedos


roçam a parte de baixo do meu maxilar enquanto ele o segura, e acho que
ele está percebendo que este é o momento. O momento em que ele me
leva. Posso ver o triunfo já em seus olhos.

Ele rasga a corda e eu estou livre.

Rápido como um raio, enfio a palma da mão em seu nariz,


exatamente como uma policial de uma dúzia de cidades atrás me mostrou
como fazer.

A cabeça de Morte se joga para trás, e eu uso a distração momentânea


para me virar e correr. Corro em direção aos policiais recém-mortos que
estão a quarenta metros de distância, bem na beira da estrada. Certamente
um deles tem uma arma com a qual posso me defender.

Thump-thump-thump.

As asas de Thanatos ecoam atrás de mim enquanto ele voa.

Não olhe para trás. Eu quero muito, mas sei que o cavaleiro está se
aproximando de mim, e qualquer passo em falso pode significar a
diferença entre captura e fuga.

À frente, reconheço o oficial Jones esparramado na grama morta. Ele


tem algumas lâminas amarradas em sua cintura, se ao menos eu conseguir
alcançá-lo.

Eu empurro minhas pernas o mais forte que posso, mesmo quando as


batidas de asas de Morte ficam mais altas quando ele se aproxima. Restam
apenas seis metros. Quatro metros e meio. Três.

Thanatos está tão perto que cada batida de suas asas balança meu
cabelo.

Um metro e meio.

Eu sinto o roçar de seus dedos quando ele se aproxima de mim. Eu


deslizo os últimos metros como se estivesse acertando o home plate. O
oficial Jones está bem ao meu lado, suas armas no coldre ao alcance do
braço. Consigo puxar duas adagas de aparência perversa quando os braços
de Thanatos se fecham ao meu redor. Ele me puxa de volta contra seu
peito.

— Como eu esperei por este momento, —Morte sussurra em meu


ouvido.

Um instante depois, ele pula do chão comigo presa em seus braços.

Cristo acima.

Eu chuto nada além do ar enquanto saímos da estrada.


— Thanatos, coloque-me no chão, —eu exijo, pânico atando minha
voz.

— É muito tarde para isso, kismet.

Não é tarde para nada.

Eu giro o melhor que posso nos braços da Morte, balançando minhas


lâminas recém-adquiridas.

Imediatamente ele pega a faca na minha mão direita e a puxa para


longe, jogando-a de lado.

Ao longe, ouço o barulho abaixo de nós, mas não tenho tempo de


olhar porque o cavaleiro já está pegando minha segunda lâmina. Está na
minha mão menos dominante, o que torna o golpe difícil. Mas também
está fora do alcance da Morte. Ele tenta trocar o braço que me segura.

— Me—Deixe—Ir. —Eu o chuto enquanto subimos cada vez mais


alto. Eu sei sem olhar abaixo de mim que verei corpos. Muitos, muitos
corpos.

Mesmo enquanto lutamos, posso ouvir o grito e o gemido de prédios


desabando. Um após o outro após o outro. Toda a reluzente cidade de
Austin está caindo em ruínas.

— Eu não vou, —Thanatos amaldiçoa. — Você pode muito bem parar


de lutar.
— Você não pode simplesmente me sequestrar!

— Diz a mulher que primeiro me levou cativo.

Agora devemos estar a mais de trinta metros do chão e ainda estamos


subindo.

Thanatos ainda está lutando pela minha faca. — Chega, Lazarus, —


ele diz. — Isso é muito alto para lutarmos.

Não pretendo lutar contra o Cavaleiro tão alto, mas também não
pretendo dar a ele minha arma. Se eu perdê-la, estarei totalmente à sua
mercê.

Esse é um destino no qual não quero me deter.

Eu balanço meu braço para trás para escapar dele. É só depois que a
adaga afunda na carne macia e eu ouço o grunhido de dor de Morte que
percebo meu erro. Em meu pânico, eu realmente o apunhalei.

Não percebo o quão ruim, no entanto, até que o aperto do cavaleiro


afrouxa. Tão rápido quanto respirar, começo a cair.

— Não, —ele suspira, tentando me recapturar. Mas suas mãos se


atrapalham com meus braços, e eu escorrego por eles.

E então eu estou realmente caindo.

O vento empurra meu grito chocado de volta para a minha garganta.


Por que eu simplesmente não deixei cair a lâmina? Tive que lutar até o amargo fim,
não é? E agora eu me ferrei fazendo isso.

Acima de mim, o Cavaleiro berra e, enquanto meu corpo gira no ar,


finalmente o vejo.

Morte está mergulhando para mim, um olhar determinado em seus


olhos. Ele estende um braço, embora esteja vários metros acima de mim.

— Lazarus! —É difícil ouvi-lo por causa do vento. — Segure minha mão!

Pela primeira vez, eu estendo a mão para ele a sério.

Ele está me alcançando, e eu estou me esforçando para segurar sua


mão. A distância se fecha entre nós, e meus dedos roçam os dele
ensangüentados.

Tão perto.

Os olhos da Morte se movem para algo abaixo de mim, e os vejo se


alargar.

Querido Deus.

Eu não quero morrer. Assim não. Fui uma tola sobre a faca. Não
estava pensando. Eu não quero que termine assim.

— Lazarus!

Eu me esforço para pegar sua mão. — Thanatos.


Eu não quero morrer. Eu não quero ...

Minha cabeça bate em alguma coisa e tudo fica escuro.

Capítulo 18
Austin, Texas

Dezembro, Ano 26 dos Cavaleiros

ACORDO LENTAMENTE, MINHAS PÁLPEBRAS SE ABRINDO. Olho


para o céu de dentro de um prédio parcialmente desmoronado. Metade do
teto cedeu e, a julgar pela dor nas costas, estou deitada sobre o que sobrou.

Começo a me mover, então engasgo quando a dor me cega.

Eu olho para o meu torso. Logo acima do meu umbigo, uma barra de
metal grossa se projeta para cima. Ofego de novo, desta vez mais de horror
do que qualquer outra coisa.

Fui empalada.

Movo meus braços—eles parecem ter quase curado, embora estejam


cobertos de hematomas—e tento me levantar ...
Grito quando a dor dilacera através de mim e caio de volta no chão.

Ofego enquanto olho para o céu azul bem acima de mim.

Jesus.

Não posso morrer, e estou presa.

SE EXISTE UM inferno, então é este.

Grito, gemo, mas ninguém me ouve. As horas passam, o dia dá lugar


à noite, depois a noite dá lugar ao dia. E assim por diante.

Meu estômago dói de fome, meus lábios estalam de sede, mas


continuo presa ao chão. Choro intermitentemente por algum tempo,
principalmente porque percebo que estou muito fodida.

Muito, muito fodida.

Não sei onde Thanatos está, ou em que estado ele está. Talvez ele
tenha se machucado também. Ou talvez não, talvez ele simplesmente
tenha visto meu corpo espetado e pensado que me deixar era melhor do
que me capturar.

Não sei por que essa possibilidade em particular dói tanto em meu
coração.
O dia seguinte passa. Posso sentir o cheiro dos mortos no vento, posso
ouvir o latido de cães selvagens e os guinchos de pássaros voando em
círculos. Nenhum dos catadores me encontrou—ainda.

Repetidamente tento me arrastar para cima e para fora do mastro, mas


deixando de lado a dor cega, é um ângulo impossível de superar, que
nenhum instinto de sobrevivência pode mudar.

Não quero estar em meu próprio corpo agora.

OS CARNICEIROS ME encontraram.

Isso é …

Uma merda.

UMA ETERNIDADE JÁ se passou e eu aqui, presa.

Já perdi e perdi a consciência tantas vezes que não sei se passaram


horas ou dias desde que os comedores de carniça me encontraram—acho
que faz pelo menos um dia, embora a dor distorça minhas memórias.
Talvez eu simplesmente tenha sonhado com o céu escuro.
Os catadores eventualmente se afastam. Assim que o fazem, eu
soluço, minha ruína de um peito arfando e meus numerosos ferimentos
queimando com a ação.

As criaturas voltarão. É só uma questão de tempo.

Procuro por uma arma adequada, mas os escombros que eram


pequenos o suficiente para agarrar eu já peguei e joguei na minha tentativa
fracassada de assustar os animais.

O melhor que posso esperar neste momento é que, da próxima vez


que os carniceiros vierem, eles de alguma forma consigam me libertar. O
pensamento me deixa com ânsia de vômito.

Eu choro mais algumas vezes, mas minha cabeça lateja e meu corpo
não consegue reunir umidade suficiente para chorar.

Maldito Morte.

Eu o amaldiçoo repetidamente.

Então, quando o ouço chamando meu nome, acho que devo tê-lo
conjurado apenas com minha raiva.

Lazarus … Lazarus …

Lazarus …

Não é realmente ele, digo a mim mesma. Desidratação, fome e dor


me fizeram delirar.

— Lazarus! —Um homem grita.

Prendo a respiração. Thanatos? Poderia ser?

A esperança que enche meu peito é dolorosa e estou quase com medo
de ceder a ela. Mas então, enquanto olho, com os olhos turvos, para o
buraco no teto, vejo de relance asas negras e armaduras reluzentes acima
de mim.

É definitivamente ele. Nenhum pássaro poderia se parecer com isso.

Ele está procurando por mim, eu percebo.

Ajuda. Eu tento formar a palavra, mas minha voz é rouca e fraca. Eu


limpo minha garganta.

— Morte, —eu chamo. É pouco mais que um sussurro.

Reúno toda a minha energia e respiro fundo.

— Morte! —Eu grito. Minha voz ainda está dolorosamente fraca e ele
já passou, as paredes deste prédio parcialmente desmoronado escondendo-
o de vista.

O desespero e a esperança me fazem reunir minhas forças.

Prendo a respiração. — Morte! Morte! Ajuda! Por favor! Thanatos! —


Estou gritando o mais alto que posso, meus apelos interrompidos apenas
por meus gritos enquanto o esforço empurra minha ferida.

Não consigo vê-lo, mas ouço o baque daquelas asas estrondosas e


acho ... acho que ele está se aproximando.

— Lazarus! —ele chama de algum lugar acima.

— Morte! —Eu grito novamente.

E então eu o vejo mais uma vez acima de mim. Suas asas estão bem
abertas atrás dele enquanto ele se empoleira em uma viga exposta. Ele
espia o prédio desabado, seu cabelo escuro balançando como uma
bandeira ao vento.

— Lazarus? —ele diz, seus olhos examinando a escuridão.

— Thanatos. —Sai em algum lugar entre um soluço e um suspiro.

Sei o instante em que ele me vê. Seu corpo fica rígido.

De repente, suas asas se fecharam atrás dele. Ele sai de seu poleiro e
desce do telhado, caindo como uma pedra. Pouco antes de pousar, suas
asas se abrem, retardando sua queda, de modo que ele parece flutuar nos
últimos metros de sua descida.

Pedrinhas deslizam quando ele pousa em uma pilha de escombros e,


mais uma vez, suas asas se fecham atrás dele.

Ele avança sobre os escombros, seu peitoral de prata brilhando na luz


sombria. Seus passos param e vejo seus olhos caírem sobre mim. Ele
examina meu rosto, depois minhas roupas rasgadas e os poucos lugares
onde minha carne ainda está cicatrizando. Eventualmente, seus olhos
pousam no poste que se projeta no meu abdômen.

— Lazarus. —Morte corre o resto do caminho até mim. Ele se ajoelha


ao meu lado, examinando meus ferimentos novamente. — Porra.

— Não sabia que os anjos amaldiçoavam, —eu digo, meus lábios se


abrindo enquanto falo.

Seus olhos ainda estão vagando sobre mim, como se ele estivesse
tentando processar o que aconteceu. — Há quanto tempo você está
aqui?—ele pergunta.

Mas ele sabe. Ele deve saber. A barra que se projeta através de mim é
evidência suficiente.

— Desde que você me largou. —Agora que não preciso mais gritar,
minha voz sai como um sussurro.

— Desde que eu …? —Seus olhos procuram os meus, e vejo o horror


rastejar em sua expressão. Ele amaldiçoa novamente. — Você esteve aqui
esse tempo todo?—ele pergunta.

Fecho meus olhos e aceno com a cabeça.

Ele faz um som agonizante.


Eu abro meus olhos.

Sua mão segura o lado do meu rosto, seu polegar deslizando sobre
minha bochecha.

— Presumi que você ficaria mais satisfeito com isso,—eu sussurro.

O olhar de Thanatos é torturado quando encontra o meu. — Não me


orgulho de ser cruel. —Seus olhos vagam para onde a barra enferrujada se
projeta para fora de mim. — Estive procurando por você. Eu ... —Ele faz
uma pausa, seu olhar voltando para o meu. — Estava consumido pela
preocupação. A visão de você escorregando de meus braços não me
deixou todos esses dias.

— Pare com isso, —eu digo.

Não quero ouvir isso. Pensei que sim—pensei que nada machucava
mais do que a possibilidade da Morte me deixar aqui para apodrecer por
toda a eternidade—mas eu estava errada. Temos um acordo tácito entre
nós—um em que nos desprezamos. Não estou pronta para que isso mude.

Seu olhar volta para a grossa barra de aço que se projeta de mim. Há
cerca de um metro dela projetando-se para o céu.

Morte se levanta e ronda ao meu redor, estudando o mastro.


Eventualmente, ele se ajoelha ao meu lado e agarra a coisa com as duas
mãos.
— Prepare-se, Lazarus, —ele diz.

E então ele torce. O metal geme ao se curvar sob sua força, e o


movimento faz com que o metal acerte meu ferimento.

Cerro os dentes, reprimindo um grito de dor.

Com um guincho final, a barra de metal se solta. Morte joga o


comprimento dele de lado. O mastro ressoa ao cair ao longe, o som
ecoando ao nosso redor.

Por um instante, fico maravilhada com a força sobrenatural do


Cavaleiro. E pensar que tenho lutado contra isso repetidamente.

Morte franze a testa para mim.

— O que foi? —Eu digo com voz rouca.

— Vou ter que levantar você, Laz, —diz ele, abreviando meu nome
como se fôssemos amigos.

Minhas entranhas parecem se liquefazer de medo. Eu pensei que era


corajoso quando se tratava de dor, mas depois dos últimos dias, não sou.

Mas eu preciso me libertar.

Pressionando minhas pálpebras firmemente juntas, eu aceno.

— Faça isso, —eu digo, abrindo meus olhos.

Morte se aproxima, seus braços deslizando sob minhas costas. Mesmo


esse leve movimento faz com que um grito escape.

Deus, isso vai doer.

Thanatos faz uma pausa. — Você está bem? —ele pergunta,


preocupado.

Respiro pesadamente pelo nariz. — Só me dê um momento.

O Cavaleiro acena. Seus braços ainda estão debaixo de mim, mas ele
não se move.

Volto meu olhar para as imagens marteladas em seu peitoral, tentando


acalmar meus nervos. Há cobras e lápides, ovos e criaturas com presas,
espirais e procissões funerárias—cada imagem se derramando na próxima.
Eu encaro fixamente a extensão de metal que cobre o coração de
Thanatos. Nela, uma mulher está intimamente envolvida no abraço de um
esqueleto. Quando estou prestes a estender a mão e tocá-lo, a Morte me
levanta.

Eu grito, o som conduzido inteiramente pelo rasgo agonizante da


minha ferida.

E então o mastro se foi e eu estou livre.

Morte se senta pesadamente no chão, me apertando com força contra


ele.
Eu viro minha cabeça para o lado enquanto sinto ânsia de vômito uma
e outra vez, a agonia nauseante. E então eu choro—eu soluço—a ação não
fazendo nada para aliviar a dor insuportável. Posso estar livre, mas meu
corpo parece arruinado.

Tudo dói muito malditamente.

— Estou aqui com você, Lazarus, minha Lazarus, —murmura


Thanatos.

Neste momento, suas palavras são estranhamente reconfortantes.


Viro minha cabeça em direção ao seu peito e choro contra sua armadura.

Ele me segura em meio às lágrimas.

— Dói, —eu soluço. É quase ridículo admitir isso para meu inimigo,
aquele que me machucou repetidamente. Ainda mais ridículo que seja ele
quem está me segurando no momento.

Mas ele não parece se importar, e talvez isso seja o mais estranho de
tudo.

A mão de Morte vem até minha bochecha, sua palma quente contra
mim. Isso parece afastar esse meu humor lamentável.

Eu tento me afastar.

— Fique quieta, —ele ordena, e por qualquer motivo, eu escuto.


Seu rosto é solene enquanto ele me observa. Ele respira fundo, ainda
olhando para mim.

Antes que eu possa me mexer sob o escrutínio, minha pele começa a


formigar. A sensação faz meu corpo ficar impaciente, inquieto, como se
eu precisasse me levantar e me mexer. A ferida aberta em meu abdômen
está quente—e ... coçando.

— O que você está fazendo? —Eu suspiro.

— Curando você.

Curando-me?

— Você pode fazer isso? —Eu digo, ainda meio distraída pela enorme
quantidade de sensações que correm através de mim.

Achei que ele só sabia matar.

Embora seu rosto esteja solene como sempre, seus olhos parecem
sorrir quando ele olha para mim. — Posso fazer muitas coisas, Lazarus.

Por que a Morte teria o poder de curar? E sobre esse assunto ...

— Por que você está me curando?

Ele não responde, apenas aperta a mandíbula e se concentra em minha


barriga.

Meu olhar volta para aquele estranho casal em sua armadura. Agora
estendo a mão e traço um dedo sobre o que posso ver do esqueleto.

O olhar de Thanatos cai para o meu dedo.

— Morte e vida, presas em um abraço eterno, —explica ele.

— Eles parecem amantes, —eu sussurro.

— Eles são amantes. —Seus olhos encontram os meus, e eu juro que


eles podem ver diretamente a minha alma.

Eu engulo delicadamente, deixando cair minha mão. Sua própria mão


ainda aperta minha bochecha, e agora eu realmente posso sentir minha
carne se recompondo.

— O que você vai fazer comigo? —Eu pergunto. — Assim que você
me curar?

Sua mandíbula aperta um pouco. — Tenho respeitado você, Lazarus,


—diz ele, olhando fixamente para mim. — Desde aquela primeira vez que
você veio atrás de mim, eu te respeitei. Entendo colocar o dever antes de
tudo.

Sua expressão muda, calor queimando em seus olhos. — Mas as


coisas mudaram.

— Do que você está falando? —Eu pergunto, mesmo quando a


sensação de calor e formigamento pressiona contra a parte inferior da
minha pele, continuando a curar minhas muitas feridas.

Seus dedos descem da minha bochecha, um deles traçando meus


lábios. — Acho que você sabe.

Quero me perder em você, seus olhos parecem dizer.

Prendo a respiração.

— Não vou com você, —eu digo.

— Ah, mas você vai.

Eu o encaro por mais um momento, e então, de repente, estou me


arrastando para fora de seus braços e para longe de seu toque curador. E
apesar de suas palavras, o Cavaleiro me solta.

Tenho que engolir uma maldição com o quanto tudo ainda dói.

Cambaleio em meus pés.

À minha frente, os olhos de Morte queimam. — Você ainda está


machucada, —ele diz suavemente. — Ferida, fraca e dolorida pelo meu
toque.

— Não, —eu respiro, as palavras quase inaudíveis.

Lentamente, Thanatos se levanta, seu olhar fixo em mim. Ele nunca


olhou para mim com tanta intensidade. Não quando me machucou, não
quando ele me matou, e não quando eu fiz o mesmo com ele.
Não, essa ferocidade parece ser impulsionada por uma emoção
diferente—mais profunda—do que a raiva.

— Volte para mim, kismet. Deixe-me curar essas feridas e aliviar essa
dor.

A maneira gutural como ele diz dor ... Não estou mais pensando nas
minhas feridas.

Balanço a cabeça e recuo.

As asas de Morte se abrem. Ele dá um passo sinistro em minha


direção, aquele olhar ainda em seus olhos.

Isso é tudo o que preciso para eu virar as costas e fugir. Já fugi do


Cavaleiro antes. Hoje não é diferente.

Só que é.

Estou tropeçando nos escombros, bufando de dor, mas acabo


tropeçando para fora do prédio parcialmente desmoronado.

Segurando meu abdômen, eu me viro para enfrentar a estrutura de


vários andares assim que Thanatos pisa em uma janela escancarada bem
acima de mim, os poucos cacos de vidro restantes na vidraça esmagando
sob suas botas. Um momento depois, ele sai, suas asas ondulando atrás
dele.
Ele cai no chão suavemente, seu olhar fixo no meu.

Eu cambaleio para trás enquanto ele avança. Meu coração está


acelerado porque aquele olhar em seus olhos ainda está lá.

— Thanatos, o que você está fazendo? —Eu pergunto. Nem cinco


minutos atrás, ele estava sendo dolorosamente gentil. Agora ele parece
possuído.

— Chega desses jogos, Lazarus, —diz ele, aproximando-se de mim,


sua expressão enervante.

Jogos? Nada disso é um jogo para mim. Morri várias vezes só na última
semana.

Recuo, tentando manter alguma distância entre nós.

— Fique longe de mim, —eu digo.

— Ficar longe? —A boca de Morte se curva. — Mas eu pensei que


você me quisesse? Todos aqueles meses que você passou me perseguindo.
—Ele abre bem os braços. — Aqui estou eu.

Eu o encaro por um longo momento, me sentindo completamente


desequilibrada.

Não é assim que o roteiro entre nós funciona.

Os olhos de Thanatos se estreitam e seus braços abaixam para os


lados. — Você cometeu um erro, Lazarus, —ele diz, dando mais um passo
à frente. — Você assumiu esse tempo todo que era você quem estava me
caçando. Você já considerou a possibilidade de eu estar de olho em você?
Que esse tempo todo eu poderia estar atraindo você, descobrindo e
aprendendo sua mente?

Continuo me afastando dele, meu coração batendo como um louco.

— Por que você acha que eu viajo do jeito que eu faço?—ele diz. —
Atravessar sua terra não é mais fácil do que cavalgar em linha reta através
dela.

Meu coração bate loucamente. Sempre me perguntei sobre isso, mas agora
que ele está me dando uma resposta, descubro que não gosto.

— Mas você sempre viajou dessa forma, mesmo desde o início, —eu
protesto.

— Tenho ... desejos conflitantes, kismet, —diz ele. Mais um passo à


frente.

Estou balançando minha cabeça. O que ele está sugerindo é ridículo.


— A primeira vez que nos encontramos, você fugiu de mim, —eu insisto.
Sei que ele fez isso.

— Fugi do único desejo persistente que tenho por você, —diz ele.
Outro passo adiante. Ele parece um homem possuído. — Vá em frente, —
ele insiste, — pergunte qual é esse desejo.

Eu mantenho minha boca fechada, meu coração martelando contra


meu peito. Ele derrubou todas as minhas suposições sobre ele.

Quando eu não respondo, Morte continua: — Eu quis levá-la desde o


momento em que coloquei os olhos em você, —diz ele. — Foi o primeiro
desejo humano que rivalizou com a minha necessidade de matar.

Estou recuando no momento em que ele está vagarosamente vindo


em minha direção.

— Gostei demais de nossos encontros para o meu próprio bem, —


acrescenta ele, — mas estou quase cansado de jogar.

Preciso sair daqui agora.

Eu me viro e começo a correr para longe, uma mão pressionada no


meu abdômen contra a dor que sinto lá.

— Você pensa em fugir de mim, Lazarus? —ele chama. — Você, uma


mulher mortal, e eu, a morte encarnada?

— Sim! —eu grito.

Quer dizer, ele perguntou.

Atrás de mim, Thanatos ri. O som envia um arrepio na minha


espinha.
— Todo mundo tenta me superar, —ele grita. — Todos. Mas ninguém
pode superar-me. Nem mesmo você.

Não vou mais jogar, agora estou correndo, meu ritmo acelerando a
cada passo.

— Então corra, minha kismet, vou até lhe dar uma vantagem. Mas não
se engane: eu vou te pegar. Seu tempo está se esgotando.
Capítulo 19
San Antonio39, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

NÃO SEI DIZER QUANTAS VEZES OLHEI POR CIMA DO ombro nos
últimos três dias, certa de que veria o Cavaleiro logo atrás de mim. E nas
poucas vezes que ouvi batidas de cascos, entrei em pânico, com certeza
era Morte montado em seu cavalo.

Mas a estrada e o céu permanecem vazios do Cavaleiro. Talvez a


ameaça da Morte não fosse tão urgente. Afinal, ele fez promessas
semelhantes no passado e, no entanto, aqui estou, viva e sozinha.

As pessoas sentadas ao meu redor no movimentado restaurante me


olham com desconfiança e mais do que um pouco de desgosto.

Meu cabelo está bagunçado, meu corpo sujo, minhas roupas recém-
roubadas estão esfarrapadas e mal ajustadas, e o cinto que segura minha

39
San Antonio é uma grande cidade na zona centro-sul do Texas com uma rica herança colonial. O Alamo, uma
missão espanhola do século XVII conservada como museu, assinala uma terrível batalha de 1836 pela independência do Texas em relação ao México.
Ao longo do rio San Antonio, River Walk, de vários quilómetros, é um célebre passeio pedonal repleto de cafés e lojas. A Torre das Américas no
HemisFair Park, com 176 metros de altura, contempla a cidade.
nova adaga é grande demais. Em minha pressa para fugir da Morte, não
tive tempo de fazer muito mais do que pegar esses poucos itens dos mortos
pelos quais passei ao sair de Austin. Tudo o que deixei em meu nome são
algumas notas perdidas em meu bolso—também roubadas dos mortos—e
o anel de minha mãe.

Geralmente estou melhor preparada do que isso. Eu também


geralmente fico menos assustada.

Assim que dou uma mordida no meu bolinho, capto o olhar de uma
jovem sentada com sua amiga. Ela parece enojada por mim.

Levanto minha xícara de café e a cumprimento. Ela desvia o olhar


rapidamente.

Apoio minhas pernas na cadeira à minha frente e me inclino para trás,


levando um minuto para apenas limpar minha mente e ouvir o zumbido
da conversa.

Por um momento, é relaxante. Mas então estou me lembrando da


maneira como Thanatos me segurou perto dele e a maneira como seus
dedos acariciaram minha pele. E seus olhos, seus olhos tempestuosos e
profundos ... a maneira como ele olhou para mim parecia outro toque.
Tudo nele parecia prometer ...

O latido de cães em pânico e o guincho de pássaros mensageiros do


correio do outro lado da rua cortam meus pensamentos.

Abaixo meu café no momento em que os cavalos na rua enlouquecem,


disparando pela estrada, alguns ainda com carroças presas a eles. É
quando a verdadeira onda de animais varre a cidade. Do lado de fora, as
pessoas gritam com a debandada de criaturas correndo pelas ruas da
cidade. — Porra.

Tiro meus pés da cadeira. Isso é tudo que tenho tempo para fazer.

Acontece exatamente como aconteceu na primeira vez que Morte


passou.

Em um instante, todos desabam. Caras batem em pratos, garçons


caem onde estão, os pratos que carregam espatifam-se no chão. Ouço o
barulho de talheres caídos e o estrondo tardio de alguns copos finais.
Então ...

Silêncio.

Silêncio pesado e sobrenatural.

Eu coloco minha caneca de lado, ignorando o fato de que minha mão


começou a tremer.

Eu me levanto, o arrastar da minha cadeira é ensurdecedor em meio


a todo aquele silêncio.
Como? Como ele descobriu onde eu estava tão rapidamente? Como ele
chegou aqui tão rápido? Eu mesma só cheguei aqui há meia hora atrás.

que era você quem estava me caçando.


Você já considerou a possibilidade de eu estar de olho em você

Estou me movendo antes mesmo de descobrir completamente o que


devo fazer. Empurro as portas dos fundos do restaurante, entrando na área
da cozinha. Um pequeno incêndio já começou, o cheiro de fumaça
enchendo a sala. Tento não olhar para o corpo caído sobre o fogão, suas
roupas já pegando fogo.

Em vez disso, pego as facas que vejo, coletando todas que consigo.

Entro novamente na sala de jantar do restaurante.

— Lazarus! —A voz da Morte ecoa ao longe, carregada pelo vento.

Os pêlos dos meus braços se arrepiam.

Ele está realmente me caçando.

Pego uma bolsa de couro marrom que vejo pendurada em uma cadeira
próxima. Despejo o conteúdo da sacola, coloco as facas dentro e depois a
coloco no ombro.

— Saia, kismet! —Thanatos diz. — Sei que você está nesta cidade!

Rapidamente, saio do restaurante. Meus olhos percorrem a rua,


procurando o Cavaleiro.

— Lazarus! —A voz da Morte parece ser levada pelo vento. Não faço
ideia de que direção está vindo.

Ainda estou procurando por ele quando um movimento à distância


chama minha atenção. Ao longe, avisto um arranha-céu—algo que
ninguém usa há muito tempo. Apenas enquanto observo, andar após
andar desmoronar como um acordeão, o prédio caindo sobre si mesmo.

Eu não posso fazer nada além de olhar.

Ele atinge o chão com um gemido ecoante. Em seu rastro, uma nuvem
de cinzas e detritos sobe.

— Saia, kismet. Não desejo enterrá-la viva.

Meu estômago dá uma reviravolta.

Este diabo.

— Aqui estou, Thanatos! —Eu grito, recusando-me a me esconder


como um rato.

Minha voz reverbera ao meu redor, mas não tenho ideia se a Morte
pode ouvi-la. É impossível dizer onde exatamente ele está.

Com o canto do olho, juro que vejo movimento, mas quando giro,
não há nada além de alguns corpos e um trecho de estrada aberta. À
distância, outro prédio começa a cair, chamando minha atenção de volta
para o horizonte de San Antonio.

— Lazarus. —A voz de Morte ecoa, deslizando sobre minha pele como


o toque de dedos.

Não preciso esperar muito para ouvir o estrondoso bater das asas de
Morte. Ele pousa na minha frente, sua armadura prateada brilhando e suas
asas bem abertas.

Atrás dele, outro prédio desaba.

— Kismet. —Ele diz afetuosamente como se estivesse saboreando


chocolate em sua língua. — Seu tempo acabou. Abaixe suas armas, —diz
ele.

— Não, —eu digo.

— Não quero ser seu inimigo.

— Enquanto você estiver matando todo mundo, seremos inimigos, —


digo.

Morte se aproxima de mim e, pela primeira vez, não pego minhas


armas imediatamente.

Eu não queria machucar este homem antes do nosso último encontro.


Agora que ele me salvou e me curou ... Estou especialmente relutante em
usar as facas em minha bolsa. Sei que é ridículo, mas é isso.

O Cavaleiro para na minha frente. — Pegue suas lâminas então,


kismet, —ele ousa. Ele deve ver como estou em conflito comigo mesma.

Quando não o faço, ele se aproxima. Pegando minha mão, ele a guia
até a adaga embainhada ao meu lado. Fechando meus dedos sobre ele, ele
puxa a arma. O tempo todo há um brilho ousado e desafiador em seus
olhos. — Se vamos ser inimigos, então me machuque.

É só quando ele traz a lâmina para o lado de sua garganta que começo
a resistir.

— Faça isso, —ele ordena. — Minha artéria está logo abaixo da pele.
Tudo o que seria preciso é um corte. Eu sangraria em minutos e ganharia
um dia para você.

— Pare com isso, —eu sussurro.

Morte solta minha mão, e minha adaga escorrega por entre meus
dedos, caindo no chão.

— Não sei o que fazer, —admito, as palavras saindo de mim. — Não


quero te machucar, mas não consigo te parar de nenhuma outra maneira.

A mão de Morte sobe para minha bochecha. Seus dedos a acariciam,


e tola como sou, deixo que ele me toque. Parece muito melhor do que eu
me lembro.
— Antes de curar você, —ele diz suavemente, — eu presumi que usar
meu poder para curar estava errado. Posso ver agora que era eu quem
estava errado. —Seu olhar mergulha na minha boca. — Me encontro
desejando outro motivo para te abraçar. —Esta última confissão parece
escapar com o resto.

Minha respiração falha quando seus olhos se movem de volta para os


meus. Todos aqueles pensamentos proibidos que tive sobre ele ao longo
dos meses—pensamentos que se insinuavam durante minhas longas noites
solitárias na estrada—eles ressurgem. Até recentemente, eu achava que
eles eram apenas do meu lado. Agora sabendo que não são, que a Morte
quer isso mais do que eu mesmo ...

Uma dor completamente inapropriada bate dentro de mim.

A atenção de Thanatos se volta para minha bolsa roubada. Ele a abre,


olhando para todas as facas.

— Suponho que estas são para mim. —Ele diz isso de maneira tão
coloquial, tão destemida. Deveria dissipar a estranha tensão sexual entre
nós.

Não.

— Não vou deixar você me levar, —eu digo com veemência.

— Não vou lhe dar uma escolha, —diz Thanatos, olhando para mim.
E, no entanto, ele não me agarrou. Ele continua não me agarrando,
como se esperasse que eu caísse em seus braços. Se for esse o caso, então
ele pode esperar até o Kingdom Come40.

Morte segura meu queixo então, e suas narinas se dilatam. — Diga-


me que você não sente isso ... essa necessidade consumidora.

Meu estômago dá cambalhotas com a intensidade em seus olhos.

— Eu não sinto isso,—eu digo, só que minha voz sai toda ofegante e
errada.

Thanatos estreita seu olhar. Lentamente, ele sorri.

— Vou contar até mil, —diz ele. — Isso é tão generoso quanto eu vou
ser. Você pode fazer o que quiser nesses mil segundos. Não vou revidar,
não vou atrás de você, mas quando o tempo acabar, não vamos mais jogar
o seu jogo. Estaremos jogando o meu.

Nunca jogamos nenhum tipo de jogo. Nunca.

Meu estômago cai. — Eu não vou ...

— Um … dois … três … —ele começa, um olhar selvagem em seu


rosto.

40
Kingdom Come: Deliverance é um jogo de RPG de ação de 2018 desenvolvido e publicado pela Gerrahorse Studios e co-publicado pela Deep
Silver para Microsoft Windows, PlayStation 4 e Xbox One. Está situado no reino medieval da Boêmia, um Estado Imperial do Sacro Império Romano,
com foco em conteúdo historicamente preciso
Eu olho sem fôlego para ele, então ao nosso redor antes de entrar em
ação.

Deslizo minha mochila do meu ombro, deixando-a cair no chão.


Ajoelhando-me ao lado dele, puxo uma faca e começo a serrar a alça da
bolsa. Depois de cortar a alça, olho para o Cavaleiro.

Ele ergue as sobrancelhas. — Sessenta e sete ... sessenta e oito ...

— Vire-se, —eu ordeno, meio esperando que ele ignore minhas


exigências. Para minha grande surpresa, no entanto, ele se vira, expondo
suas enormes asas para mim.

Minha respiração falha ao ver todas aquelas penas pretas como


carvão. Eu dou um passo até suas costas, minha pele se arrepiando
enquanto aquelas mesmas penas roçam minha pele. Juro que ouço a
inspiração aguda de Thanatos e talvez não seja o único afetado pelo
contato.

Agarro um de seus antebraços, puxando-o para trás, depois o outro,


pressionando seus pulsos. Prendo suas mãos com a alça de couro da
mochila, certificando-me de amarrar os nós bem apertados. Seu corpo
balança.

— Gosto disso, kismet, —ele diz, — isso me faz pensar coisas muito
estranhas, muito ... humanas sobre você.
Meu núcleo aperta com suas palavras.

É só quando termino meu trabalho que me lembro de sua força


absurda. Ele passará pelas amarras em segundos.

Droga.

Solto seus pulsos amarrados. — Por que você não se concentra em


contar—não gostaria de me dar mais tempo, —eu digo, me afastando.

A morte ri sombriamente, o som fazendo o cabelo da minha nuca se


arrepiar. — Você não vai a lugar nenhum, —ele jura.

Meu estômago afunda com a certeza em sua voz.

— Vire-se, —eu ordeno.

Mais uma vez, não espero que ele siga minhas palavras, mas ele segue.
O Cavaleiro me encara mais uma vez, seus olhos cheios de expectativa
sombria.

Ele sorri. — E as minhas asas? —ele pergunta. — Você deve amarrá-


las também? Estou gostando de ser amarrado por você.

Pego uma das lâminas da minha bolsa e a uso para cortar a bainha da
minha camisa. Isso também ele será capaz de arrancar em segundos, mas
se estiver disposto a jogar meu jogo pelos próximos dez minutos ímpares,
isso o subjugará por pelo menos um pouco.
Segurando o tecido, eu me aproximo dele.

— Ajoelhe-se.

Thanatos olha para mim por um longo tempo, aquele mesmo olhar
em seus olhos. Sem desviar o olhar, ele se apoia em um joelho, depois em
ambos.

Trago o pano até seus olhos, vendando-o com ele.

— Matar-me seria mais fácil, —diz ele.

Seria. Tenho que esconder meus olhos de você. A terrível verdade é


que passei a me importar com a dor desse Cavaleiro. O suficiente para
segurar minha mão.

Então, em vez disso, amarro o nó bem apertado atrás de sua cabeça,


ignorando os belos traços de Morte e a textura sedosa e macia de seu
cabelo. Não posso evitar, no entanto, as estranhas sensações que seu
cheiro evoca.

Ele me segurando contra seu peito, seus dedos acariciando meu rosto ...

— Venha comigo, —Morte diz suavemente, como se ele também


estivesse pensando em pensamentos semelhantes. Sua voz é gentil, uma
súplica, é tão diferente dele. — Desate essas amarras e venha a mim por
sua própria vontade
— Você disse que não me perguntaria isso de novo, —eu o lembro.

— Eu estava errado, —diz ele. — Venha comigo, Lazarus. Deixe-me


saber como é segurar você em vez de lutar com você.

Me segurar? O que exatamente ele tem em mente quando me capturar?

Não importa, Lazarus, esse destino não é para você.

Eu me inclino perto de seu ouvido. — Não.

Um sorriso lento e malévolo se espalha pelo rosto da Morte e, mesmo


com os olhos vendados, acho-o arrepiante.

— Então é melhor você correr, kismet.

EU CORRI.

Corri o mais rápido que minhas pernas permitiram, segurando duas


facas em meus punhos, mais duas lâminas enfiadas na bainha ao meu
lado.

Não sei que uso eles terão. Perdi a vontade de ferir o Cavaleiro.

Você poderia simplesmente ir com ele. O pensamento quase me para no


meio do caminho.
Estou tão acostumada a me opor a ele que nunca pensei nessa opção.
Se eu estivesse com Thanatos, bem, há muitas maneiras de impedi-lo de
se mudar de cidade em cidade.

Agora eu paro, meu peito arfando, minha respiração me deixando em


suspiros irregulares.

Eu poderia ir com ele.

Mas então eu não poderia avisar as cidades. Eu teria que descobrir


uma nova estratégia. O tempo todo, os olhos escuros e penetrantes de
Morte continuariam piscando aquele olhar de luta-comigo-então-foda-me.
Por quanto tempo eu seria capaz de resistir a ele? Uma semana? Duas?

Provavelmente estou sendo generosa aqui. Sua beleza já é uma


distração, mas ficar sozinha com ele por muito tempo? Quando ele deixa
claro que quer pelo menos me abraçar? Eu desistiria. Provavelmente nem
demoraria tanto. Não quando sei que ele já cedeu a essa atração terrível
entre nós.

Começo a me mover novamente.

Não, fugir dele continua sendo a minha melhor opção.

Mal avanço um quarteirão quando a terra começa a tremer. Paro mais


uma vez, olhando para os prédios que se erguem ao meu redor. Há um
estacionamento que foi convertido em estábulos ao lado de um prédio alto
com janelas quebradas e varais cruzando a rua. Do outro lado, há outra
estrutura de vários andares decorada com arte de rua de cores vivas.

É tudo de alguma forma sombrio e estranhamente animado.

E tenho certeza de que tudo está prestes a desabar sobre mim. Meu
medo aumenta com a ideia de ser enterrada viva.

Eu não precisava ter me preocupado.

Os prédios não caem. É muito, muito pior.

Pois ao meu redor os mortos ressuscitam.


Capítulo 20
San Antonio, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

OS CADÁVERES ESPALHADOS PELA RUA ESTÃO SE levantando


como se nunca tivessem morrido. Há quatro, cinco, seis deles. Giro e
conto vários outros. Mais ainda estão saindo dos prédios ao meu redor.

Thanatos pode ressuscitar os mortos.

Estou tentando não entrar em pânico, mas Thanatos pode ressuscitar os


mortos.

Um por um, os revenants41 voltam seus olhos cegos para mim e um


desconforto se acumula no meu estômago.

Agarro minhas facas com mais força. O que eles estão fazendo?

De repente, todos eles começaram a caminhar em minha direção, o


grupo se movendo quase como uma única unidade.

41
No folclore, um revenant é um cadáver animado que se acredita ter sido revivido da morte para assombrar os vivos. A palavra revenant é
derivada da palavra francesa antiga, revenant, o "retorno".
Meu próprio medo fecha minha garganta.

Porra, o que é isso?

Mais importante ainda, como posso sair dessa situação?

Acima, ouço as enormes asas da Morte. No início, o som é baixo, mas


à medida que ele se aproxima, suas batidas de asas ficam cada vez mais
altas.

TUMP—THWUMP—THWUMP.

Tenho um vislumbre dele no ar acima de mim e o vejo circular e


depois descer para a rua. Thanatos pousa a menos de seis metros de mim.
Suas asas se fecham nas costas, parecendo uma capa enorme.

Os cadáveres param onde estão, os olhos mortos ainda fixos em mim,


os rostos relaxados. Eu tremo com a visão não natural.

Morte caminha em minha direção, suas asas balançando atrás dele.


Os poucos fantasmas entre nós se separam para ele passar.

— Como você está fazendo isso? —Eu pergunto.

— Sempre fui capaz de fazer isso, kismet, —diz ele. — Até agora, eu
simplesmente escolhi não fazê-lo.

Ele poderia ter feito isso o tempo todo? Minha mente repassa todas as vezes
em que lutei com ele. Quantas cidades nós dois nos encontramos, cercados
por cadáveres?

Muitos.

Tantos, e tantos.

Nunca uma vez ele ressuscitou os mortos.

A morte esteve brincando comigo esse tempo todo. A compreensão


rouba meu fôlego. Pela primeira vez em muito tempo, eu realmente o
temo.

— Por que? —Eu exijo, recuando. — Por que fazer isso agora?

— Porque você foi criada para ser minha. E é hora de eu reivindicá-


la.
Capítulo 21
San Antonio, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

AFASTO-ME DE THANATOS. HÁ DEZENAS DE REVENANTS ao


meu redor, revenants que ficaram imóveis enquanto a Morte se
aproximava de mim.

— Lutar é inútil, —diz ele, aproximando-se.

Ignorando seu aviso, giro nos calcanhares e começo a correr para


longe dele.

De repente, os zumbis ganham vida, só que não andam em minha


direção, eles atacam. Eles descem sobre mim dolorosamente rápido.

Minha mente não me deixa acreditar que eles vão realmente me tocar.
Afinal, eles são cadáveres, seu objetivo é ficar parados e apodrecer.

Então, quando o primeiro revenant chega até mim—uma jovem que


não pode ser mais do que alguns anos mais velha que eu—perco um
segundo simplesmente aceitando que isso está realmente acontecendo.

A mão fria da mulher agarra meu antebraço e meu estômago revira


ao ver como seus dedos ficam gelados, mesmo através do tecido da camisa
que estou vestindo.

Eu golpeio ela—e os outros cadáveres que se seguem—fazendo uma


careta enquanto o sangue deles escorre das feridas. Um homem morto
agarra a lâmina de uma das minhas facas, arrancando-a de mim com um
puxão. Outro arranca minhas duas facas da bainha enquanto eu luto
contra um terceiro revenant.

Uma criança morta se aproxima de mim e envolve a mão úmida na


minha. Eu grito com o toque e seus olhos cegos. Ele arranca minha última
arma.

— Já chega. —A voz da morte ecoa no ar.

Os revenants caem no chão, minhas armas caindo de algumas de suas


mãos. Eles estão todos sem vida mais uma vez.

Viro-me no momento em que Thanatos passa por cima dos cadáveres


espalhados. Ele vem até mim e nem tenho tempo de protestar antes que
ele me puxe para seus braços.

A princípio, acho que ele pretende voar comigo, e talvez queira, mas
hesita. Depois de um momento, Thanatos assobia, enquanto me segura
em seu aperto inflexível.

Ouço o eco de cascos contra o asfalto, e então o cavalo do cavaleiro


avança pelas ruas da cidade, manobrando habilmente em torno dos corpos
espalhados. Ele já está selado e pronto.

A morte olha para mim com aqueles olhos de obsidiana, sua expressão
cheia de intenções perversas. Seu cavalo cinza malhado diminui a
velocidade até parar ao nosso lado e, em um movimento fluido, o
cavaleiro me levanta em sua montaria.

Uma fração de segundo depois, Thanatos está se erguendo atrás de


mim. E então suas coxas poderosas estão abraçando as minhas e seu peito
coberto de armadura está cavando em minhas costas, o metal implacável.

Morte envolve um braço musculoso ao meu redor, prendendo-me. Ele


estala a língua e seu corcel dispara mais uma vez, galopando pela estrada.

Rasgamos pelas ruas de San Antonio, os prédios e os mortos passando


por nós.

— Você finalmente é minha, —ele diz, suas palavras exaltadas.

Eles enviam uma estranha mistura de pavor e excitação através de


mim. Como desejo parar esse monstro. Como tenho que continuar lutando
contra minha atração ridícula por ele.

— Já imaginei esse momento inúmeras vezes, —admite.

Ele me aperta e, ah, definitivamente estou recebendo alguma energia


de ódio da Morte.
Tento não me debruçar sobre as palavras de Thanatos, mas como não
posso? Ele claramente está fantasiando sobre me capturar e agora estou à
sua mercê. E não tenho ideia do que ele realmente pretende fazer comigo
agora, embora provavelmente tenha algo a ver com foder com ódio. Tenho
certeza de que esse está no menu.

Depois de um longo e prolongado silêncio, me forço a fazer a pergunta


que tem me atormentado ultimamente. — O que você sente por mim?

Seus lábios caem no meu ouvido. — Muitas, muitas coisas, Lazarus.

Definitivamente quer me odiar e me foder.

Minha respiração fica presa ao pensar em estar deitada sob a Morte,


seu corpo entrando no meu.

Aparentemente, também não sou totalmente contra a ideia.

Jesus.

Saímos de San Antonio ao som abafado de prédios desabando atrás


de nós. Então, mesmo esses sons se transformam em silêncio, e sou
forçada a realmente enfrentar minha situação.

Olho para a mão que me segura rapidamente. Em um de seus dedos


ele usa um anel de prata, uma moeda antiga com o rosto da Medusa fixado
nele. Só consigo me impedir de tocar na estranha joia.
Vou ficar olhando para aquela mão e aquele anel nesta sela por um
longo tempo se a Morte fizer as coisas do seu jeito. Não há mais
rastreamento. Não há mais lutas. Apenas muito e muito tempo pessoal
com o Cavaleiro.

O pensamento é suficiente para que eu faça uma última e corajosa


tentativa de fuga.

Eu me jogo violentamente para o lado. O domínio da morte sobre


mim escorrega e, por um segundo, estou escorregando de seu cavalo.

Não tenho nenhum plano nem armas, mas, por Deus, serei a cativa
menos cooperativa que já existiu.

A asa de Thanatos se estende, batendo contra mim, retardando minha


queda por tempo suficiente para que o cavaleiro me agarre pela camisa e
me arraste de volta para seu cavalo, seu braço pesado envolvendo minha
cintura mais uma vez.

Ele ri baixo, o som provocando meu arrepio. — Uma tentativa boa,


mas fútil, kismet, —diz ele. Ele traz seus lábios até meu ouvido, seu tom se
tornando ameaçador. — Lute comigo novamente e abandonarei meu
corcel pelos céus, e então você não terá escolha a não ser cooperar.

Memórias da última vez que Thanatos me carregou no ar passam


diante dos meus olhos. Ele me segurou e depois me largou. Quer dizer, eu
o esfaqueei, então não é como se ele tivesse feito isso intencionalmente,
mas ainda assim ... Estremeço, lembrando da minha queda e da colisão, e
depois dos dias agonizantes que se seguiram.

Vou escapar de você, juro silenciosamente.

Mas por enquanto ... é melhor que a Morte pense que desisti.

Me forço a relaxar contra ele. Em resposta, o braço ao meu redor me


aperta com mais força. Somente com seu toque, o cavaleiro parece exalar
vitória.

O bastardo.

Mesmo quando San Antonio é uma lembrança distante, seu cavalo


não diminui a velocidade e o ar frio atravessa minhas roupas. Um arrepio
percorre meu corpo, depois outro e outro. A armadura fria da morte não
está ajudando.

— Se esse tremor é outro plano seu para buscar fuga, então confie em
mim, kismet, quando digo que estou pronto para subir aos céus.

— Não é um plano, —eu digo irritada. — Isso é exatamente o que


acontece quando os humanos ficam com frio.

Atrás de mim, a Morte fica em silêncio por um momento.

De repente, ele para seu cavalo, seu braço escorregando da minha


cintura. Olho por cima do ombro para vê-lo desatar as tiras de sua
armadura. Ele remove uma proteção de ombro, jogando-a no chão, depois
uma braçadeira. Ele remove uma proteção de ombro, jogando-a no chão, depois
um vambrace42.

— O que você está fazendo? —pergunto enquanto ele tira outra peça
de sua armadura prateada.

— Você está com frio, —diz ele, desfazendo as tiras do peitoral. Ele
puxa a coisa, o metal caindo na estrada com um estrondo. — Eu pretendo
mantê-la aquecida.

Franzo a testa, mesmo quando uma emoção desconfortável agita


minha barriga.

A Morte remove até a última peça da armadura e então me puxa de


volta contra seu peito.

Calor glorioso. Está saindo do homem em ondas.

— Melhor?—ele sussurra em meu ouvido.

Muito melhor.

— Você sabe sobre calor corporal, mas não sobre tremores? —Digo

42
Peças da armadura protetor de ombro e vambrance.
em vez de agradecer. Não consigo ser grata ao meu sequestrador
sobrenatural.

— Posso não conhecer as nuances do corpo humano, mas sei que a


carne viva é quente e o metal pode ser frio.

Sem mais palavras, ele estala a língua e seu cavalo começa a se mover
novamente. O vento frio assobia através de minhas roupas mais uma vez,
mas pressionada contra a Morte, estou aquecida.

— Então você pode ressuscitar os mortos, —eu digo, enquanto


passamos por vários pomares, canais de irrigação escavados ao redor das
fileiras de árvores. — Por que você recebeu esse poder?

— Tenho todos os poderes dos meus irmãos e mais alguns, —diz ele.

Suas palavras me esfriam até o âmago.

— Você quer me dizer que outro Cavaleiro também pode ressuscitar


os mortos? —Eu pergunto, apavorada com a perspectiva.

— Poderia, —a Morte me corrige.

— Poderia? —eu ecoo, tentando entender o que ele não está dizendo.
— Então esse outro Cavaleiro está morto?

— Pelo contrário, Lazarus, Guerra está muito vivo. —Thanatos diz


isso com bastante desdém.
Guerra. Guerra poderia ressuscitar os mortos. Eu ... não consigo nem
imaginar como isso deve ter parecido.

Mas ele não tem esses poderes mais? Estou queimando de curiosidade,
claramente há muito mais em Thanatos e nos outros Cavaleiros. E, pela
primeira vez, estou em posição de descobrir tudo, agora que estou presa
na sela com o Cavaleiro.

— O que mais você pode fazer? —Eu pergunto.

— Você verá com o tempo, —promete a Morte, e envolta nessa


promessa está outra que permanece tácita entre nós ...

Você estará comigo, sempre.


Capítulo 22
Pleasanton43, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

JÁ CAVALGAVAMOS POR VÁRIAS HORAS JÁ QUANDO Morte sai


da rodovia e entra em uma estrada antiga, com o asfalto rachado e
esburacado.

— Por que estamos saindo da rodovia? —Eu pergunto. Até agora eu


tinha conseguido relaxar. Agora, no entanto, minhas dúvidas estão de
volta.

Morte não responde e minha ansiedade aumenta. O que está


acontecendo? Não parece haver nenhum centro de cidade à vista, então
não acho que ele tenha me levado para destruir outra cidade.

Então, o que ele está fazendo?

Eventualmente, Thanatos vira em uma estrada de terra que parece ter


sido pavimentada, agora, porém, ervas daninhas brotaram por todo lado,

43
Pleasanton é uma cidade localizada no estado americano da Califórnia, no condado de Alameda. Foi incorporada
em 18 de junho de 1894.
dificultando a visão do caminho estreito.

Ao longe noto um bosque. Espreitando por trás deles está uma casa
de fazenda abandonada. Parecem-se com milhares de outras casas
abandonadas pelas quais já passei antes, mas por alguma razão, esta é a
que a Morte decidiu parar.

Com a estrutura à vista, o cavaleiro desacelera seu cavalo e, além do


barulho dos cascos, o mundo ao nosso redor fica quieto. Este é um silêncio
ao qual me acostumei após a Morte. Do tipo que entra na pele e penetra
nos ossos. Pode ser incrivelmente pacífico ou assustadoramente
inacreditável—o que eu acho que é o que você pode dizer sobre a própria
morte.

Passamos pelas árvores e então posso ver claramente a casa. Parece


que já foi de um azul claro, mas o sol e a podridão agora o descoloriram
de marrom sob os beirais e na base, e de branco principalmente em todos
os outros lugares. O telhado cede, as janelas foram cortadas e retiradas—
provavelmente para serem instaladas em alguma casa mais nova—há
carros enferrujados e eletrodomésticos velhos na entrada, e uma cerca
baixa de madeira podre circunda a casa. Tudo o que existia no quintal deu
lugar à flora natural.

O lugar está uma bagunça.

— O que você está fazendo aqui? —Eu pergunto.


— Esta é uma habitação humana, não é? —Thanatos responde. —
Estamos aqui para habitar.

Isso … isso me faz parar.

Ele não pode estar falando sério.

Olho para ele por cima do ombro. O rosto da Morte está tão estóico
como sempre.

Merda, acho que ele está falando sério.

Nós cavalgamos todo o caminho até a garagem, contornando uma


máquina de lavar louça enferrujada. Thanatos salta de seu corcel. Um
segundo depois, ele me puxa para baixo.

Estamos realmente fazendo isso. Morando em uma casa abandonada.


Juntos. Pelo menos até eu descobrir como escapar dele.

As mãos de Thanatos ainda estão na minha cintura. Ou ele está com


medo de me soltar e ter que me perseguir ... ou está ficando confortável
com a ideia de me tocar.

Sua boca se curva em um sorriso impiedoso. — Posso ver seus


pensamentos inteligentes em seus olhos, Lazarus, mas você não vai fugir.
Isso eu vou me certificar.

Assim que ele falou, a terra ao nosso redor parece gemer. Ele se abre
e as plantas começam a crescer ao redor do perímetro da propriedade.

Respiro fundo, observando-os crescer, os brotos se transformando em


talos que se transformam em galhos. Centenas de folhas se desenrolam a
cada segundo.

— Como você está fazendo isso? —Eu pergunto, meu olhar


absorvendo tudo.

Esta folhagem espinhosa cresce e cresce até que uma espécie de cerca
viva improvisada nos cerca e à casa, bloqueando-nos.

— Matar não é a única coisa em que sou bom, —diz ele.

Eventualmente, o crescimento das plantas abranda e depois pára


completamente. Tudo está quieto e parado mais uma vez.

Afasto-me da Morte, suas mãos escorregando da minha cintura, e


caminho até o matagal. Meus olhos vasculham a coisa. Eu deveria sentir
medo—este é apenas mais um poder que o Cavaleiro tem na ponta dos
dedos, um poder que ele agora está disposto a usar contra mim. Mas não
sinto medo. Em vez disso, sou dominada por um sentimento de
admiração.

Estendo a mão e toco um dos galhos espinhosos. — Isso é ... o poder


da Fome? —Eu pergunto. Esse é o único Cavaleiro em quem consigo
pensar que pode lidar com plantas.
— É o meu poder, —Morte corrige atrás de mim, — mas sim, eu
compartilho com ele.

— O trabalho da Fome não é tornar a comida escassa? —Eu pergunto,


meus dedos traçando uma folha.

— O trabalho dele é matar as plantações.

Eu me viro do matagal. — Mas essas plantas—você as fez crescer.

— Fome pode fazer as coisas crescerem e perecerem—assim como eu.

Por que esses Cavaleiros receberiam algo além de poderes destrutivos?


Isso não faz sentido. Eles estão aqui apenas para destruir nosso mundo.

Olho de volta para a parede viva criada pela Morte. É impenetrável,


isso está claro.

— Tente fugir, Laz, —ele me incita. — Eu te desafio.

Minha pele arrepia com a forma familiar com que ele abrevia meu
nome.

Olho por cima do ombro para Morte e mantenho seu olhar. Vou esperar
para correr até você menos esperar.

— Obrigada, mas não sou uma mulher de apostas, —digo em vez


disso, voltando para ele.

— Pelo contrário, isso parece ser inteiramente o que você é, —rebate


Thanatos. — Pode apostar que vai me encontrar nas cidades para onde
viajar, pode apostar que vai me matar e salvar seus preciosos compatriotas
...

— Só fiz o que fiz porque a outra opção era a aniquilação garantida,


—digo, parando perto da montaria do cavaleiro. Dou ao seu ‘bichinho de
estimação’ um carinho no pescoço.

— Kismet, toda a vida é, é aniquilação garantida.

Eu levanto meu queixo. — Se tudo é aniquilação garantida, então me


explique.

As feições da Morte parecem ficar mais nítidas e o calor está de volta


em seus olhos. Ele não responde, embora eu esteja ficando boa em ler sua
expressão.

Você é minha, parece dizer.

Eu pressiono minhas coxas juntas no desejo nu em seu rosto. Desejo


que não tenho certeza se Thanatos está ciente.

Meu olhar se volta para a estrutura atrás dele. — Você vai me mostrar
esta casa ou não? —pergunto, ficando cada vez mais desconfortável a cada
segundo.

Depois de um momento, Thanatos se afasta, apontando para a


estrutura em ruínas. — Por que você não a mostra? Afinal, a casa é sua.
— Não é minha, —eu digo.

— Tudo bem, nossa, —Morte corrige.

Isso é ainda pior.

Pressiono meus lábios e vou para a porta da frente. A maçaneta está


enferrujada e parcialmente pendurada na porta. Agarro-a de qualquer
maneira. As dobradiças rangem quando abro a porta, e o cheiro de bolor
e animais molhados e do mofo escapa.

As tábuas laminadas internas borbulharam e enrolaram nas bordas,


com a camada superior descascando em muitos lugares. Cortinas de renda
sujas pendem de algumas janelas. Há uma poltrona reclinável antiga e
manchada que veio do mundo anterior; suas costuras estouraram em
alguns pontos, expondo o recheio manchado de sujeira.

O chão geme e range quando entro na cozinha e folheio os armários.


Nada além de poeira, teias de aranha e um velho livro de receitas, com a
encadernação inchada e as páginas enroladas.

Morte me segue como uma sombra, e posso sentir seu olhar sombrio
sobre mim, absorvendo cada reação minha. Não sei o que ele quer de mim.

Saio da cozinha e enfio a cabeça em um banheiro que foi reformado


desde o fim do mundo, o vaso sanitário foi substituído por algo mais
parecido com um balde sofisticado com assento de vaso sanitário em cima
e a pia foi substituída por uma bacia removível.

Agora noto as manchas de água ao longo das paredes, onde


antigamente esta casa deve ter inundada. Talvez por isso tenha sido
abandonada.

Vou para os próximos quartos, esperando ver mais móveis. Além de


uma cômoda de aglomerado empenada que está quase toda desmoronada,
os três quartos estão vazios.

— Por que você escolheu este lugar? —pergunto depois de terminar


de examinar o quarto principal. Uma casa sem comida, sem camas—sem
quaisquer comodidades—dificilmente é um destino onde vale a pena
parar. Poderíamos muito bem ter montado acampamento na beira da
estrada. Estamos um pouco melhor aqui—e mesmo isso é questionável.

— Isso importa? —Thanatos responde. — É uma casa, vai atender às


suas necessidades.

Atender minhas necessidades?

Viro-me para encarar o Cavaleiro. Ele está parado na porta, sua


atenção fixa em mim.

Eu dou a ele um olhar interrogativo. — Você já morou em algum


lugar? —Eu pergunto.

— Eu vivi em todos os lugares onde a vida está, kismet, —ele responde


suavemente.

— Quero dizer, —eu digo lentamente, — você já ficou em uma casa?


Preparou uma refeição para você? Dormiu em uma cama?

Ele olha para mim, sua expressão ilegível. Ainda assim, eu li a cara
daquele filho da puta do mesmo jeito.

— Você não fez isso.

Claro que não. Não sei por que só agora estou percebendo. Esse
mesmo fato é o que tornou tão difícil persegui-lo. A morte nunca parou,
nunca dormiu. Ele cavalgava e cavalgava e matava e cavalgava e
cavalgava para sempre, suas viagens sempre interrompidas por mim.

Eu olho em volta de nós novamente. — Então, agora que você


capturou sua humana, você quer me manter em um boa ... casa? —Eu
poderia muito bem ter dito gaiola ou chiqueiro. Um recinto destinado a
um animal. Não é um igual. — É isso? —Eu pressiono.

— Você prefere que eu corte sua garganta? Quebre o seu pescoço?


Lute com você até que a memória de todas as coisas desapareça e apenas
a dor permaneça? —A cada pergunta, Thanatos dá um passo à frente, as
pontas de suas asas fazendo um ruído suave enquanto se arrastam pelo
piso apodrecido. — Porque eu posso fazer isso. Não quero, mas posso, se
é isso que você deseja.
Eu franzo a testa para ele. — O que eu desejo é que você deixe a Terra
e nunca mais retorne.

A morte ri, seus olhos brilhando. — Kismet, isso nunca acontecerá.


Mesmo depois que os humanos forem banidos da terra, eu ainda
permanecerei. Enquanto houver vida, sempre permanecerei.

— Mas por enquanto, —ele continua, estendendo a mão e tocando


levemente minha bochecha, seu polegar roçando meu lábio inferior. —
Quero descobrir o que mais há em você além de violência e estratégia.

Uma parte de mim está hipnotizada por esta entidade cujo olhar
chamei. Tenho a estranha sensação de que ele deseja muito mais do que
morte e destruição—ele simplesmente não tem ideia do que isso possa ser
ou como alcançá-lo—além de, você sabe, capturar mulheres relutantes.

Eu limpo minha garganta, não gostando do rumo pessoal que este


momento tomou.

— Então, —eu levanto minhas sobrancelhas, olhando ao redor, —


você nunca morou em uma casa antes, mas não apenas espera começar a
fazer isso agora, mas também pretende me manter em cativeiro enquanto
estiver nisso?

— Não pretendo mantê-la cativa.

Meus olhos se arregalam. Isso é novidade para mim. — Então você


está planejando me soltar em algum momento?

— Nunca, —ele jura.

— Então o que? —Eu pergunto. — Você acha que irei desfrutar do


cativeiro?

— Os humanos podem se acostumar com todos os tipos de coisas, —


Morte diz suavemente. — Tenho certeza que você vai se acostumar com
isso.

O descaramento.

Eu giro. — Onde estão as camas? —pergunto, olhando para o quarto


vazio. — Onde está a comida? —Faço um gesto em torno de mim. —
Onde está a mesa, as cadeiras, os copos e a louça? Onde estão os livros
para ler e a lenha cortada para aquecer a casa nas noites frias de inverno?
Onde estão as toalhas limpas? O colchão macio e os lençóis limpos?

Thanatos mantém seu rosto cuidadosamente controlado.

— Você é um tolo se acha que vou simplesmente ficar contente em


alguma casa vazia e apodrecida.

Ele dá um passo à frente, sua forma enorme pairando sobre mim, seu
lindo rosto ameaçador na luz sombreada. — Você gostando ou não, mas
este é o seu destino, kismet.
Ignoro suas palavras, porque neste momento sou uma caçadora que
sentiu o cheiro da minha presa.

Acertei num ponto fraco. Eu sei que sim.

Eu lanço a ele um sorriso zombeteiro. — Você esperava me


impressionar? —Eu rio dele da mesma forma que minha irmã Robin riria
de mim quando ela queria que eu me sentisse pequena. Aprendi há muito
tempo como transformar um insulto em um som. — Isso não é
impressionante. Você me machucou, me matou e agora me sequestrou e
me trancou em uma prisão sem qualquer conforto. É patético.

À minha frente, a mandíbula de Thanatos se contrai e se abre.

Há. Eu encontrei minha marca.

De repente, suas asas se abrem, envolvendo-nos e me forçando a


tropeçar para mais perto dele. — Não me importo com o que diabos você
pensa, —diz ele, com os olhos brilhando. — Insulte-me o quanto quiser.
Isso não muda nada.

Eu encaro seus olhos turbulentos. Afinal, a sempre estável Morte não


é tão estável assim. Não quando se trata de mim.

Um sorriso malicioso se espalha em meus lábios.

— Vamos ver sobre isso.


SENTO-ME NA VARANDA dos fundos da casa, observando o pôr-do-
sol. Até agora, a única vantagem deste lugar parece ser o banheiro, que
usei discretamente. Caso contrário, esta casa irá explodir. Nem o poço que
encontrei na propriedade funcionou. Então estou fadada a ficar sem
comida e água enquanto estivermos aqui.

Durante a última hora, o cavaleiro me deu algum espaço. Seu cavalo,


no entanto, não o fez. De vez em quando, a criatura cinza e manchada se
aproxima de mim e acaricia meu ombro e depois cutuca minha mão, como
se estivesse procurando guloseimas. Na verdade, é muito cativante.

Acaricio o pescoço da criatura. — Se algum dia eu mudar de ideia


sobre esta situação, —digo baixinho, — você será a razão para isso.

Ouço a porta dos fundos se abrindo e depois o barulho de botas contra


o chão.

— Essa cerca viva não vai se abrir, —diz Thanatos atrás de mim.

— Não estou tentando escapar, —eu digo.

— Seria inútil.

Eu apenas consigo me impedir de revirar os olhos.


— Estou vendo o pôr-do-sol, —digo, sem me preocupar em me virar
para ele.

Ele dá um passo para o meu lado, a madeira rangendo e dobrando sob


seu peso. Como se sentisse a tensão, o cavalo da Morte se afasta de nós.

Olho para Thanatos, esticando o pescoço para trás para ver seu rosto.

Ele está olhando para mim com curiosidade. — Por que você está
assistindo isso? É um fenômeno que acontece todos os dias.

— Então? Você nunca saboreia nada?

Ele olha para mim, sem responder.

Depois de um momento, suspiro e bato no chão ao meu lado. — Vá


em frente, —eu digo. — Junte-se a mim.

Morte continua olhando para mim e meu Deus, eu criei um terceiro


olho?

Justamente quando penso que ele vai se afastar, ele se abaixa.

Eu nunca tinha percebido isso até agora, mas as asas dele são
realmente estranhas. Ele tem que espalhá-los atrás de si e inclinar-se um
pouco para a frente para acomodá-las. Sinto o roçar de suas penas contra
meu lado e parte de mim fica tão tentada a estender a mão e tocá-las. Em
vez disso, passo a mão pelo cabelo.
— Não quero conversar, —eu digo.

— Anotado, —diz ele, com os olhos voltados para o céu acima de nós.

Então ficamos sentados assim enquanto o sol se esconde no horizonte


e as sombras se alongam e o frio cortante no ar se torna mais do que apenas
um pouco desconfortável. O tempo todo ele cumpre sua palavra e não fala.
Na verdade, é ... estranhamente pacífico.

Assim que a última luz dá lugar à escuridão, fico de pé, tirando a


sujeira da parte de trás da minha calça. Estou com fome e com sede e meu
futuro parece estar prendendo a respiração.

Olho para Thanatos.

— Você não tem ideia do que fazer comigo, não é? —Eu digo.

Acho que sei o que a Morte quer, e é claro que até certo ponto ela
também sabe, mas não agiu de acordo com seus impulsos mais básicos, e
também não sou tola o suficiente para ceder a eles. Eu não gostaria de
perder meu coração ou minha cabeça por causa deste homem, porque isso
não o impedirá. Eu sei que não.

Ele olha para mim. — Estou disposto a descobrir isso à medida que
avança.

Franzo a testa para ele, embora duvide que ele consiga ver isso no
escuro. Brevemente, olho para a casa atrás de nós. Deixando escapar um
suspiro, me viro e desço as escadas frágeis que levam ao quintal.

— O que você está fazendo, Lazarus? —Morte pergunta atrás de mim.


Pela primeira vez desde que chegamos, sua voz soa relaxada—segura. Ele
sabe que não vou a lugar nenhum.

Eu piso no chão. — Procurando um lugar para dormir.

— A última vez que ouvi, os humanos dormiam dentro de casas.

— Essa estrutura, —eu digo, virando para apontar para a casa, — não
é adequada para ocupação. —As paredes provavelmente estão cheias de
vermes. Cheira como se estivessem.

Eu o vejo ficar de pé. — Está muito frio para ficar aqui fora.

— A casa não vai ficar mais quente, —eu digo. Não com as janelas
faltando. — Isso eu prometo a você.

Procuro um pedaço de terreno aberto para me deitar. Há muito lixo


aqui e mais mato, e uma parte de mim está se perguntando se talvez a casa
seja a melhor opção. Mas não, o prédio abandonado parece mais uma
gaiola do que uma casa.

Encontro um pedaço de terra limpo e me sento, desejando ter um


cobertor ou uma jaqueta. Eu tremo novamente.

Esta noite vai ser miserável.


Atrás de mim, as tábuas de madeira podre rangem quando Thanatos
sobe e desce as escadas, passo a passo ameaçador. Ouço o farfalhar das
plantas enquanto o cavaleiro se move pelo quintal, vindo em minha
direção.

Ele para nas minhas costas.

— O que foi agora? —Digo, não me virando. Não consigo vê-lo, mas
posso sentir sua profunda curiosidade. Tenho a impressão de que ele
gostaria de me abrir como uma caixa e espiar o que há dentro.

Depois de um momento, Thanatos se abaixa no chão ao meu lado.


Uma de suas asas roça em mim, quase me derrubando.

Agora eu olho para ele. — O que você está fazendo? —Eu digo,
afrontada. Uma coisa era sentar comigo e assistir o pôr-do-sol, outra coisa
era me ver adormecer.

— Vou ficar aqui com você. —Ele diz como se fosse óbvio.

Antes que eu possa responder a isso—e tenho coisas a dizer—meu


estômago ronca. Ruidosamente.

Mesmo na escuridão, juro que vejo as sobrancelhas do cavaleiro se


erguerem.

— O que é que foi isso? —ele pergunta.


— Meu estômago—não pense que você pode simplesmente mudar de
assunto ...

— Por que diabos seu estômago faria aquele som de temor a Deus?

Certo. Quase esqueci que ele não sabe nada sobre humanos.

— Isso é o que o estômago faz quando você está com fome, —eu digo.
— Eles fazem barulho.

Morte fica em silêncio, e sei que ele está se lembrando novamente de


como está mal equipado para ter um humano cativo.

É demais esperar que ele simplesmente desista e decida me deixar ir?

Provavelmente é. Eu suspiro. Ah, bem.

Deitei de lado. — Você não pode dormir ao meu lado, —eu digo.

— Não estava pensando em dormir.

Minha respiração falha por um momento, e penso no modo como a


Morte tem me olhado ultimamente, e meu corpo ganha vida, meu pulso
pulsando entre minhas pernas. Mas então me lembro que o Cavaleiro não
dorme. E de qualquer forma, ele é meu sequestrador e meu inimigo, e as
relações sexuais com ele estão fora dos limites.

— Bem, —eu limpo minha garganta, — você também não pode ficar
acordado perto de mim, —eu digo.
— Se você espera fazer uma grande fuga, Laz ...

— Não encurte meu nome, —eu digo, fazendo uma careta. Ele
continua fazendo isso.

— ... então você está delirando. Eu não vou deixar você fora da minha
vista. Nem esta noite, nem nunca.

Capítulo 23
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

O CAVALEIRO NÃO SAIU DO MEU LADO, MALDITO SEJA.

À medida que as horas passam e a noite fica cada vez mais fria, enrolo-
me numa bola cada vez mais pequena. Todo o meu corpo treme e não
consigo me aquecer o suficiente para cair em um sono profundo. Então,
em vez disso, estou fantasiando vividamente sobre estar enfiada sob uma
pilha de cobertores de lã, com um fogo crepitando ao meu lado.

Quase ajuda.
Thanatos respeitou meus desejos – ele não se deitou perto de mim.
Ele, no entanto, decidiu andar por perto. Posso ouvir o barulho das plantas
sendo esmagadas sob suas botas e o balanço das ervas daninhas roçando
suas asas. Ele anda para frente e para trás. Para frente e para trás, para
frente e para trás, para frente e ...

— V-você pode p-por favor parar de andar? —Já é difícil o suficiente


dormir aqui do jeito que está.

Os passos do Cavaleiro param.

— Esta é a primeira vez que me mantenho voluntariamente em um


lugar por tanto tempo, —diz ele na escuridão. — Estou ... agitado.

— V-vá ficar a-agitado em outro lugar, —eu digo.

Há uma pausa, então ...

— Por que sua voz soa assim? E o que é esse barulho de clique que
continua vindo de você?

— P-porque estou c-frio, —eu digo. — N-normalmente eu durmo dentro


de casa ...

— Dentro era uma opção, —ele corta.

— ... n-numa cama c-com cobertores p-para me manter aquecida.

Thanatos está em silêncio.


Certamente ele está ciente disso.

Eu o ouço caminhar em minha direção. Quando penso que ele está ao


alcance do meu braço, ele se ajoelha ao meu lado.

— O-o que você está ...?

Antes que eu possa terminar o pensamento, o Cavaleiro está deitando


seu corpo ao lado do meu. Ele me puxa contra ele. Sua armadura ainda
não reapareceu, e quase gemo com o calor que emana dele.

— Você está tremendo de novo, —diz ele, alarmado.

— P-porque estou c-frio, —eu o lembro.

Não consigo ver sua carranca na escuridão, mas sinto mesmo assim.

Uma de suas asas me envolve, me cobrindo. E agora as fantasias sobre


cobertores de lã foram postas de lado em favor disso.

— Melhor? —ele pergunta suavemente, sua voz como uma carícia.


Isso é muito mais íntimo do que eu esperava.

E eu gostei. Gostei muito disso. Posso sentir o calor delicioso de


Thanatos nas minhas costas e o calor de sua asa me isolando em todos os
outros lugares. Se eu fosse um gato, estaria ronronando. Me derreto no
abraço do Cavaleiro, todas as minhas declarações anteriores sobre ele
manter distância há muito esquecidas.
— Mmm, —murmuro.

Por algum tempo, nós dois simplesmente ficamos ali assim, o


Cavaleiro me segurando mais perto do que o necessário e eu secretamente
curtindo isso. Finalmente, meu corpo para de tremer e meus dentes param
de bater.

Ele me puxa com mais força, e posso apenas estar lendo isso, mas
acho que ele está satisfeito por eu não estar mais tremendo e gaguejando
de frio.

— Você não precisa fazer isso, —eu digo suavemente.

Vários segundos se passam antes que ele responda.

— Eu poderia falar sobre o número de pessoas que reivindiquei em


noites como esta, —diz ele. — Eu poderia dizer que você só me atrasaria
se estivesse morto ou fraco. Mas a verdade é que isso é instinto, kismet.
Não entendo por que, mas quero estar perto de você, quero te abraçar
quando você diz que está com frio.

Meu coração bate fortemente.

Ele é seu inimigo.

Ele é seu inimigo.

Ele é solene e indiferente e machucou você e agora ele sequestrou você.


Não ceda às palavras bonitas.

— Você realmente está planejando ficar deitado aqui, no frio, com sua
asa puxada sobre mim a noite inteira só para me manter aquecida? —Eu
digo.

— Não me oponho a entrar onde provavelmente é mais quente, mas


sim, eu … acho que sim.

Meu coração bate loucamente no meu peito. Eu pensei que isso fosse
íntimo antes, quando era puramente físico. Percebo agora que estava
usando a palavra errada. Porque isso é íntimo.

— Não sei o que fazer com você, —eu digo baixinho.

— Vá dormir, Lazarus. Você pode analisar isso pela manhã.

E eu durmo. De alguma forma, adormeço nos braços da Morte como


se fosse a coisa mais fácil do mundo.

ACORDO ENCOLHIDA contra um peito largo.

Eu me aconchego mais fundo no calor e no músculo sólido antes que


isso seja registrado.

Estou nos braços da Morte.


Morte literalmente.

Abro os olhos apenas para descobrir que ele está me encarando.

De repente, estou me afastando dele, tentando sair de seus braços.

Por um instante, seu aperto aumenta, mas então ele me solta e eu rolo
para longe, passando pela asa escura que ainda me cobre.

Eu me levanto, quase tropeçando em um monitor de computador


descartado que está próximo.

Thanatos se apoia em um cotovelo. Ele não parece estar com pressa


de se levantar, embora as plantas ao nosso redor tenham gelo nas bordas
e seu hálito esteja embaçado no ar da manhã e seus músculos devam estar
rígidos por ficarem na mesma posição por tanto tempo.

Supondo, é claro, que o Cavaleiro fique com os músculos rígidos.

Ele provavelmente não tem.

Não sei o que pensar sobre o fato de a própria Morte ter me segurado
durante a noite, então, depois de respirar fundo e encará-lo por um longo
momento, me contento em virar as costas para o Cavaleiro e voltar para a
casa do rancho abandonada.

Nem um minuto depois, a porta se abre atrás de mim.

— Você não pode me dar um pingo de espaço? —Digo sem me virar.


— Isso é pedir muito?

Os passos pesados de Thanatos são lentos, e a madeira range abaixo


dele a cada passo que ele dá.

— Você realmente quer espaço? —ele pergunta suavemente. Ele vem


até minhas costas.

— Sim, —eu digo, virando-me para encará-lo.

— Que assim seja.

A Morte agarra um de meus pulsos.

— Ei! —Antes que eu possa me livrar de seu aperto, ele me gira e


agarra o outro. Ele puxa os dois atrás de mim.

— O que você está fazendo? —Eu puxo contra ele enquanto falo.

Thanatos assobia por cima do ombro e ouço o barulho distante dos


cascos do cavalo.

Ainda segurando meus pulsos, Thanatos me leva até a porta da frente,


abrindo-a totalmente. Lá fora, seu cavalo trota até a frente da casa,
sacudindo a crina escura. Sem qualquer aviso, a besta entra na casa, indo
direto para o lado da Morte.

Me empurro novamente contra Thanatos, mas é inútil. Seu aperto é


inflexível.
— Então, voltamos a ser inimigos? —Eu digo.

Ele me puxa para perto. — Você é o único que continua insistindo que
nunca deixamos de ser.

Eu rosno enquanto tento soltar meus pulsos. É inútil. — Bem, amigos


definitivamente não restringem uns aos outros.

Morte enfia a mão em um dos alforjes de seu cavalo e puxa ...

— Corda? Você vai me amarrar agora? —Pergunto, indignada.


Enquanto falo, seu cavalo sai para fora da casa.

Morte me puxa pelos pulsos e sou forçada a me apoiar em seu peito


esculpido. — Você mesma me amarrou várias vezes, —diz ele, seus lábios
roçando minha orelha. Arrepios surgem na minha pele. — É justo que eu
retribua o favor.

— Como diabos isso resolve o problema de você estar muito perto?

— É simples, kismet, —diz ele. — Você vai ficar aqui, amarrado, onde
poderá desfrutar de algum espaço meu enquanto eu saio.

Puxo contra ele novamente. Não gostando desse plano. Nem um


pouco.

— E quando eu voltar, —ele continua suavemente, — talvez você


esteja pronta para minha companhia mais uma vez.
Juro que percebo um tom de mágoa na voz da Morte, mas isso é
ridículo, certo? Certo.

O cavaleiro amarra meus pulsos atrás das costas e depois me puxa até
a poltrona reclinável suja e manchada, onde amarra a outra ponta da corda
na base de metal enferrujada da cadeira.

Isso. É. Muita. Besteira.

— Nossa, —ele diz, olhando para mim enquanto eu o encaro, — esse


sentimento me lembra todas aquelas vezes que você me manteve como
refém. Infelizmente, Laz, você não tem forças para se libertar.

— Não me chame assim, —resmungo.

— Você prefere kismet? —Os olhos de Morte caem para os meus


lábios. Eles têm feito muito isso desde que ele me levou. Apesar do fato de
que estou furiosa e ele pode se sentir magoado, ainda acho que o Cavaleiro
quer um beijo. — Você parece não ter tido nenhum problema com esse
nome.

Eu olho para ele. — No momento em que eu me livrar dessas amarras,


você vai se arrepender.

— Possivelmente. Talvez não. —Ele toca minha bochecha, então se


levanta. — De qualquer forma, voltarei em breve. Estou ... ansioso para
voltar para o seu lado.
Morte se vira e caminha em direção à porta, suas pesadas botas
tilintando enquanto ele se afasta de mim.

Eu me empurro contra minhas amarras. — Thanatos, você não pode


estar falando sério.

Ele me ignora.

— Onde você está indo? —Eu exijo.

Ele se vira e a luz do sol da manhã entra pelas janelas atrás dele,
iluminando-o com uma coroa de luz. É irritante o quão lindo—quão
celestial—ele parece. O olhar que ele me dá, no entanto, gela meu sangue.

— Tenho trabalho a fazer, Lazarus. Acredito que você esteja ciente


disso?

Fico imóvel quando seu plano se concretiza: ele pretende viajar


comigo, então me manter enjaulada enquanto ele está destruindo o mundo.

Sinto meu rosto ficar pálido. — Morte, —eu respiro. — Por favor, eu
digo. —Não faça isso. —Foi a isso que fui reduzida ... a implorar.
Mendicância inútil e impotente. — Você já causou danos suficientes entre
as cidades do jeito que está.

— Vejo você em breve, kismet, —diz ele. Com isso, ele se foi, a porta
rangendo atrás dele.
Merda, merda, merda.

Eu preciso dar o fora daqui, agora.

Capítulo 24
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

DANE-SE AQUELE FILHO DA PUTA.

Pela centésima vez eu puxo minhas amarras. É inútil. Meus pulsos


estão enrolados com muita força nas costas para que eu consiga desfazer
o nó na base da poltrona. Não que eu não tenha tentado. Também tentei
arrastar o móvel porta afora. Isso só fez com que a coisa tombasse e me
esmagasse, e então eu entrasse em pânico, lembranças de estar presa
passando por minha mente.

Então agora, apesar de ter conseguido sair de debaixo da poltrona


reclinável, decidi parar de lutar. Pelo menos até que a Morte volte. Então,
felizmente me soltarei disso.
Estou com muita fome e tenho quase certeza de que desistiria dos
orgasmos para sempre—okayu, talvez por um mês—por um bom copo de
água gelada.

Pelo menos não preciso ir ao banheiro. Essa é uma vantagem de não


comer ou beber por longos períodos de tempo.

Bato a nuca na poltrona reclinável, entediada e frustrada.

Ao longe, ouço um galope.

Eu fico tensa, mesmo quando meu coração começa a disparar.

Ele já voltou.

Merda, isso foi rápido. Ele levou o quê ... uma hora? Duas? E naquele
tempo uma cidade foi aniquilada. Minha raiva justa queima como veneno
em minhas veias.

No momento em que eu estiver fora dessas restrições, vou estrangular


o Cavaleiro com minhas próprias mãos, o bastardo.

Aperto meus ouvidos, ouvindo a aproximação de Morte.

As batidas dos cascos param a certa distância, e então ouço a cerca


viva de espinhos que Thanatos fez crescer ao redor da propriedade agora
farfalhar. As batidas dos cascos recomeçam, galopando até a varanda da
frente.
Lá fora, posso ouvir a Morte desmontar, sua armadura tilintando.

Estou ansioso para voltar para o seu lado.

Meu estômago aperta.

— Toc, toc, filho da puta, —uma voz profunda chama se aproximando


da porta.

Uma voz que definitivamente não pertence a Thanatos.

Minha respiração fica presa na garganta.

Bem, merda.

BOOM!

Estremeço quando as dobradiças rangem e a madeira se estilhaça, a


porta desabando para dentro. O homem chuta novamente e os últimos
restos dele se despedaçam. Ele atinge o chão com um baque surdo.

Então, parado na porta, está a coisa dos pesadelos.

Outro Cavaleiro.
Capítulo 25
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

EU FICO OLHANDO PARA O SER BLINDADO, COM UMA FOICE na


mão.

O cavaleiro observa a sala sombria por uma fração de segundo antes


de seus olhos caírem sobre mim.

— Quem diabos é você? —ele exige.

Alguém que realmente gostaria de estar em qualquer lugar que não


fosse aqui.

Estou literalmente tremendo ao ver este homem. E sua foice. Não


importa que eu não possa morrer de verdade, temo pela minha vida.

Controle-se, Lazarus. Você já enfrentou Cavaleiros antes.

Respiro fundo para acalmar meus nervos.

— Isso depende, —eu digo, forçando minha voz a ficar firme. —


Quem diabos é você?
Não que ele precise de um crachá. É bastante óbvio.

O cavaleiro estreita os olhos. Ele dá alguns passos à frente e uma


espada embainhada ao seu lado balança com o movimento.

Fico tensa. Não tenho ideia de que tipo de relacionamento esse


cavaleiro tem com a Morte. Há tantas razões pelas quais ele pode querer
me machucar, e tudo nele—até mesmo a maneira como ele se move—
grita violência.

Bom Deus. Estou tendo dificuldade em processar que na verdade


existem quatro desses bastardos por aí.

— Você é a mulher da Morte? —ele pergunta.

Minhas sobrancelhas se erguem. Mulher da Morte?

Dificilmente.

— Sou sua prisioneira. —Eu olho significativamente por cima do meu


ombro, onde estou amarrada.

Ele sorri, como se o termo fosse fofo.

Quanto mais ele olha para mim, maior fica o sorriso e mais brilhantes
seus olhos se tornam.

É aqui que sou esfaqueada e deixada para morrer.

— Você é a mulher dele, não é? —ele diz, precendo alegre.


Dou-lhe um olhar incrédulo. — Se você quer dizer sua vítima de
sequestro, então sim. Caso contrário, não.

Por que estamos discutindo minha situação de relacionamento com Morte?

— Você já tentou matá-lo? —o Cavaleiro pergunta.

Encaro ele. — O que você quer comigo? —Eu pergunto.

Maldito Thanatos por me deixar vulnerável assim.

— Apenas responda à pergunta.

— Tudo bem, —eu estalo. — Sim, já tentei.

O Cavaleiro me observa atentamente, a luz nebulosa fazendo brilhar


sua armadura de cobre e seu cabelo cor de caramelo. — Você realmente o
matou?

— Ele não pode ser morto, —eu retruco.

— Não permanentemente, —ele concorda. — Mas você acabou com a


vida do meu irmão por um tempo?

Ele olha fixamente para mim, e eu me vejo desviando o olhar.

— Sim, —eu mordi.

Posso sentir o cavaleiro olhando para mim com aquele olhar


enervante por longos momentos. Ainda não sei o que ele quer, embora
meu medo dele esteja diminuindo à medida que conversamos.
Ele dá alguns passos lentos em minha direção, examinando minha
situação

— E agora você está amarrada aqui, indefesa e por capricho do meu


irmão? —ele diz. — Você é definitivamente a mulher dele.

Cerro meus dentes juntos.

— Eu não sou.

— Você é, —ele insiste, e agora eu sei que a antipatia claramente é de


família.

— Hum. —O Cavaleiro me considera. — Sua presença muda as


coisas. —Há um brilho calculista em seus olhos.

Levanto meu queixo e olho para ele. — Se você está pensando em me


matar, ficará desapontado. —Não é tão fácil se livrar de mim.

— Matar você? —ele diz, incrédulo, claramente surpreso. — Mulher,


nós queremos libertar você.

— NÓS? —EU ECOO fracamente.

Eu deveria estar focada na parte em que não morro, mas as palavras


desse Cavaleiro ... elas me deixam nervosa de uma maneira totalmente
nova.

O Cavaleiro fecha a última distância entre nós. Ele se agacha,


deixando a foice de lado. — Você não achou que eu vim aqui sozinho,
achou?

Meus olhos se arregalam e meu estômago revira. — Os outros


Cavaleiros também estão aqui com você? —Eu mudo meu olhar sobre seu
ombro.

Pela porta aberta, posso ver que o tempo ficou ameaçador. Nuvens
escuras e raivosas se acumulam no alto.

— Bem, nem todos nós, —admite o Cavaleiro quando as primeiras


gotas de chuva começam a cair no telhado. — Ainda sentimos falta do
nosso querido Morte. Mas tenho certeza que se você estiver aqui, ele estará
de volta em breve. Não há como ele amarrá-la como um presente apenas
para abandoná-la.

Franzo a testa, observando os penetrantes olhos verdes e as feições


cortantes do Cavaleiro. — Qual Cavaleiro é você? —Eu pergunto.

— O menos agradável—exceto a Morte, é claro.

Continuo olhando para ele, esperando por uma resposta real.

Ele suspira. — Humanos, —ele murmura baixinho. — Fome. Sou o


Fome ... também respondo como o ‘Ceifador’.
— Nenhum de vocês, cavaleiros, pode ter nomes bonitos e normais?
—Como Frank ou Louis? Eu não acho que teria medo de um Louis.

Fome sorri novamente. — Já posso dizer que você e o Pestilência vão


se dar muito bem.

Eu estreito meus olhos para ele. — O que isso deveria significar?

— Ah, você vai ver.

O encaro por mais um ou dois segundos, enquanto Fome me avalia.

— Bem? —Eu finalmente digo.

— Bem o que?

— Se você está planejando me soltar, pode começar removendo


minhas restrições, —eu digo, puxando minha corda.

Fome franze a testa para mim, mas alcança a espada amarrada ao seu
lado. O som da chuva fica mais forte a cada segundo.

Mesmo com o som da tempestade que se aproxima, ainda consigo


ouvir o baque distante de cascos.

Reflexivamente, fico tensa.

— Você pode relaxar, —diz Fome, — não é seu namorado.

— Morte não é o meu namorado, —eu respondo quando a chuva


começa a pingar pelos muitos buracos no telhado.
O Ceifador me dá aquele maldito sorriso malicioso. — Claro, tootsie44.

Estreito meus olhos para ele. Neste momento eu não me importaria


se Thanatos ferisse esse irmão dele.

— Como você sabe que não é a Morte vindo até esta casa agora? —
Pergunto curiosamente quando Fome começa a cortar minhas amarras.

— Posso senti-lo, —diz ele.

Minhas amarras se soltam e suspiro quando meus braços são


liberados.

Esfrego meus pulsos. — Então é por isso que você invadiu aqui, certo
de que a Morte estava aqui dentro. Porque você o sentiu, —eu digo, não
impressionada. — O Cavaleiro que não está aqui.

— Posso senti-lo quando ele está de castigo, —corrige o Ceifador, um


pouco defensivamente demais. — Ele esteve aqui ontem à noite e esta
manhã ... —Ele se interrompe. — Não vou explicar isso para você, algum
humano degenerado.

Olho para ele. Todo o meu medo foi substituído pelo aborrecimento.
Profundo, profundo aborrecimento.

44
Tootsie é um filme norte-americano de 1982, do gênero comédia, dirigido por Sydney Pollack. Recebeu 10 indicações ao Oscar
e em 2000 foi considerado pelo American Film Institute como o 2° filme mais engraçado da história.
O som pesado de cascos fica mais alto, me distraindo por um
momento.

— Esses seriam meus outros dois irmãos, —diz Fome.

— Você também os sentiu? —Eu digo, dando-lhe um olhar como se ele


fosse um imbecil.

Ele olha furioso para mim. — Bem quando eu estava começando a


gostar de humanos, tive que conhecer você.

— O sentimento é mútuo, porra.

Lá fora, as batidas dos cascos param. Posso ouvir uma voz masculina
profunda murmurando alguma coisa, e outro homem dá uma gargalhada
alta.

Paro no momento em que dois homens enormes atravessam as portas,


com água pingando deles. Mais cavaleiros.

Meu pulso acelera novamente, meus instintos me dizem para correr.

Eles não estão aqui para me machucar, eles não estão aqui para me machucar,
eu canto silenciosamente para mim mesmo.

Pelo menos, não acho que estejam. Fome ainda não revelou por que
exatamente eles estão aqui.

Um dos novos cavaleiros carrega um arco e uma aljava pendurados


no ombro, e o outro tem uma espada enorme amarrada nas costas. Seus
olhos param brevemente em mim e em Fome antes de examinarem a sala,
claramente procurando pela Morte.

Eventualmente, a atenção deles volta para nós.

— Isso é uma piada, Fome? —exige o mais velho dos dois homens,
seu cabelo loiro com mechas prateadas claras. Ao contrário do Ceifador,
ele não está usando nenhuma armadura—nem o homem ao lado dele.

— Ótimo trabalho em localizar Thanatos, —diz o de cabelos escuros,


e eu quase rio. É claro que não sou a única pessoa que se sente confortável
em zombar do Ceifador.

Fome pisa na minha frente. — Encontrei algo melhor que nosso


irmão—encontrei sua companheira.
Capítulo 26
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

COMPANHEIRA?

O que diabos é temente a Deus?

Os olhos de Pestilência e Guerra se fixam em mim.

Eu olho para Fome. — Não sou companheira de ninguém. —Isso soa


terrivelmente bestial. — Pela última vez, a Morte é o meu inimigo.

— O que faz você pensar que ela é dele, irmão? —o de cabelo escuro
diz, ignorando minha explosão.

Eu cerro meus dentes em sua frase. Todos esses Neanderthais pensam


da mesma forma?

O Cavaleiro loiro vem até mim, olhando-me especulativamente. Ele é


um pouco menos intimidador do que os outros, mas isso ocorre
inteiramente porque ele tem rugas de expressão ao redor dos olhos, e é
difícil ter medo de alguém que tem rugas de expressão.
— Eu a encontrei amarrada nesta sala, —diz Fome. Ele acena para
fora. — E o cavalo de Morte estava na estrada quando cheguei.

Ele estava?

— Você rastreou o cavalo dele em vez da própria Morte? —O homem


de cabelos escuros parece querer bater na cabeça de Fome.

Não totalmente contra ver isso.

O Ceifador dá a seu irmão um olhar fulminante. — Não sei quantas


vezes tenho que dizer a você, mas não consigo localizar Thanatos com
precisão quando ele está no céu. Então improvisei com o cavalo.

O homem loiro mais velho se aproxima de mim, ignorando as brigas


de seus irmãos.

— Thanatos amarrou você? —Ele pergunta, seu olhar se movendo


para os meus pulsos, que ainda estão vermelhos e em carne viva. Não sei
dizer se ele está preocupado ou simplesmente curioso.

Eu levanto um ombro. — Já fizemos pior um ao outro.

As rodas em sua mente parecem estar girando, mas em vez de


responder a isso, ele diz: — Sou Victor, embora você possa me chamar de
Pestilência.

Pestilência.
Quase não respiro. Mas é claro que um deles seria a Pestilência. Meus
olhos olham para ele de novo enquanto muitas emoções turbulentas
passam por mim.

Este é o Cavaleiro que matou meus pais biológicos. O Cavaleiro que deveria
ter acabado com minha vida também. E agora ele está parado na minha
frente.

Ele não é nada do que eu esperava. Minha garganta se fecha. — Você


está ...

— Velho? —ele termina para mim, seus olhos brilhando bem-


humorados. — Fui feito mortal há muito tempo. E agora ... eu envelheço.

Tenho que respirar pelo nariz para controlar tudo o que estou
sentindo. Nunca pensei que algum dia enfrentaria esse ... esse monstro, e
definitivamente não nessas circunstâncias estranhas.

Minha mão coça para pegar uma adaga que não está lá, e estou tão
perto de chorar agora, que é a última coisa que quero fazer, mas Pestilência
é tão civilizado e tem olhos gentis e linhas de riso, mas ele matou meus pais.

Ele é meu inimigo também.

Antes que eu possa responder, Guerra se aproxima, seus olhos me


examinando. — Então você é a esposa de Morte.

Dane-se. Isto.
Saio de casa ali mesmo.

Passo pelos cavalos ociosos e desço a calçada coberta de mato com


seu lixo enferrujado. A chuva rapidamente me encharca, mas não me
importo. Não estou mais preso, não preciso ficar naquela casa decadente
com aqueles homens terríveis e...

Meus olhos se deparam com uma abertura na cerca viva que circunda
a propriedade.

Posso escapar.

Tenho estado tão distraída com minha situação atual que perdi de
vista meu objetivo mais importante: fugir.

Acelero o passo, com medo de que o crescimento não natural se feche


a qualquer momento.

— Espere! —Eu ouço passos pesados atrás de mim.

Meus passos vacilam.

Se eu partir agora, escaparei das garras da Morte. Se eu demorar,


poderei descobrir por que esses cavaleiros estão seguindo a Morte.

Olho para a cerca viva com espinhos que cerca a casa. A chuva pinga
de todas aquelas centenas de folhas, fazendo as plantas brilharem por toda
parte, menos aquela que se rompe na folhagem. Essa abertura está
zombando de mim.

— Sei que somos um pouco demais, —Pestilência grita atrás de mim.


— Meus irmãos e eu não estamos tentando incomodar você. Estamos aqui
para deter a Morte de uma vez por todas.

Acho que não respiro.

Eu giro, ficando de frente para Pestilência.

Por um momento, esqueço toda a desavença que tenho com esse


Cavaleiro.

— Você está aqui para deter a Morte? —Eu digo, incrédula. Quero
dizer, eles são os Quatro Cavaleiros. Todos eles estão aqui para destruir
nosso mundo.

Procuro seu olhar. — Por que você, qualquer um de vocês ... —Faço
um gesto vago para a casa onde estão os outros dois homens, — quer isso?

Pestilência suspira. — É uma longa história. Uma que Fome, Guerra


e eu estamos dispostos a lhe contar, se você ouvir.

Procuro seu rosto enquanto a chuva pinga do meu cabelo e meus


cílios. Ele parece sincero, e se for, então ... talvez Thanatos pudesse ser
detido, permanentemente.

Ignoro a forma como o pavor se enrola dentro de mim com esse


pensamento. A Morte precisa ser detida. Isso é maior do que eu e meus
sentimentos.

Então eu me lembro exatamente com quem estou falando. Este é o


Cavaleiro que destruiu minha primeira cidade natal.

— Por que você acha que eu iria querer ajudá-lo? —Eu digo. — Você
matou meus pais. —Minha voz quebra sobre aquela velha ferida.
Testemunhei mortes mais recentes e dolorosas nas mãos de Thanatos,
mas, oh, como o fiz pagar por elas.

Este Cavaleiro, por outro lado, roubou-me a vida que eu poderia ter
tido e agora quer minha ajuda? Por causa dele, nunca vou conhecer os pais
que me trouxeram ao mundo, nunca vou abraçá-los ou memorizar seus
rostos ou saber quem eles eram e de onde eu vim. E embora essa vida
significasse apagar aquela com a qual cresci, uma vida cheia de amor e
riso, ainda é um futuro que foi roubado de mim do mesmo jeito.

Pestilência parece surpreso. Seus olhos procuram meu rosto


novamente.

— Sinto muito, —diz ele, e há remorso genuíno ali. Gostaria de não


poder sentir isso.

Eu trabalho minha mandíbula e desvio o olhar, de repente oprimida


por este confronto.
— Eu era um homem diferente naquela época, —continua ele. —
Provavelmente não tão diferente de como Morte é agora.

— Nós, Cavaleiros, podemos mudar nossos modos. Todos nós


mudamos nossos caminhos, exceto Morte. E, infelizmente para você e
para o resto da humanidade, ele é o único Cavaleiro que tem a palavra
final sobre se todos vocês viverão ou morrerão.

— É por isso que nós três, incluindo aquela besta odiosa que você
conhece como Fome ...

— Ouvi isso, idiota! —o Ceifador chama de dentro da casa.

— ... estão aqui, procurando por Morte, —Pestilência continua


suavemente. — Queremos detê-lo, vamos detê-lo. Mas poderíamos
realmente usar de sua ajuda. E eu realmente sinto muito. Não posso trazer
seus pais de volta, mas talvez juntos possamos poupar muitas outras
famílias do mesmo destino.

Preciso sentar. Minhas pernas não parecem mais querer suportar meu
peso corporal.

— Você está realmente tentando parar Thanatos? —Eu digo


suavemente.

Eu não posso acreditar.

— Nós realmente estamos, —diz ele.


Suas palavras—e seu pedido de desculpas—pairam pesadamente no
ar entre nós. Não quero perdoá-lo—e não quero trabalhar com ele—mas este
último ano me forçou a lidar com todo tipo de circunstâncias horríveis e
impossíveis. Inferno, acabei de passar a noite nos braços da própria Morte,
o homem responsável não apenas pela morte da minha família, mas pela
morte de todos.

Pestilência me lança um longo olhar. — Por favor, volte para dentro


... —Ele faz uma pausa, deixando uma abertura para eu dizer meu nome.

Eu avalio o Cavaleiro, não inteiramente certo de que sujar minhas


mãos em qualquer confusão que eles estejam fazendo seja uma ótima
ideia.

Melhor do que ficar cativa involuntariamente de Morte.

— Lazarus, —eu finalmente digo. — Meu nome é Lazarus.

Pestilência sorri.

— Lazarus, —ele repete. — É um prazer conhecê-la oficialmente. —


Ele acena de volta para a casa. — Assim que você estiver pronta para sair
da chuva, meus irmãos e eu temos muito a lhe contar, e acho que não
temos muito tempo.
Capítulo 27
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

ELES COMPARTILHAM SUA HISTÓRIA. TUDO desmorona como um


pesadelo horrível. Como esses Cavaleiros vieram à Terra e quebraram
nossa tecnologia. Como eles voltaram para o solo, apenas para ressurgir
como cigarras. Cada um deles viajou pelo mundo, determinado a erradicar
todos nós. Mas cada um deles mudou de ideia em algum lugar ao longo
do caminho.

E, em todos os casos, uma mulher foi responsável por isso.

Percebo agora por que eles se importam tanto com meu


relacionamento com a Morte.

— Então você vê, —Guerra finalmente diz, sentando-se de cócoras


enquanto a chuva bate no telhado acima de nós, — não podemos deixá-lo
ter sucesso, e não apenas porque amamos nossas esposas e nossos filhos.

Fome está ao lado dele, de braços cruzados, carrancudo.

Pestilência acrescenta: — Desistimos da nossa imortalidade e da vasta


extensão dos nossos poderes porque acreditamos que, apesar da nossa
tarefa, os humanos são dignos de viver.

Fome bufa, olhando para longe.

— Ignore-o, —diz Guerra. — Ele ainda está ressentido porque a


Morte não encontrou seus motivos puros o suficiente para privá-lo de sua
imortalidade.

— Os humanos estão vomitando, —diz Fome. — Não sei por que


devo mudar de ideia sobre isso primeiro.

Sento-me na beirada da poltrona gasta, cambaleando com tudo isso.

— Onde estão essas suas famílias? —Eu pergunto. — Por aqueles


pelos quais você está lutando? —É óbvio que eles não estão aqui.

— Muito, muito longe, —Guerra diz, seus olhos afiados. Uma de suas
mãos se fecha em punho e percebo com fascinação que em cada junta há
marcas vermelhas e brilhantes. — E permanecerá assim até que Morte seja
detida.

Suas palavras chamam minha atenção de volta para seu rosto.

Lidou com sons tão ameaçadores e finais.

— O que você está planejando fazer com Thanatos? —Eu pergunto.


Sai como um sussurro.
— O que for necessário, —Guerra diz severamente.

Fome se separa do grupo e caminha até a porta aberta.

— E você quer minha ajuda? —Eu digo lentamente.

Pestilência acena com a cabeça.

Mal consigo formar as próximas palavras. — O que você quer que eu


...?

— Guerra, Pestilência ... —Fome interrompe.

— Victor, —Pestilência corrige.

— Não me importo com seu nome idiota. Morte está chegando.

— Ah, então agora você sabe onde ele está? —Eu digo.

Fome me lança um olhar sombrio por cima do ombro. Ele se volta


para seus irmãos. — Vocês dois precisam ir embora.

Pestilência—Victor—e Guerra estão quietos, mas nenhum deles faz


um movimento para sair.

Fome exala ruidosamente. — Devo ser o sentimental? Vocês dois


precisam ir agora. Você é mortal, —o Ceifador os lembra. — Esta é uma
luta que você perderá, e hoje não é mais o dia de agirmos.

Meus olhos saltam de homem para homem, mesmo quando um


arrepio percorre minha espinha. Não sei com quem estou mais
preocupado: com a Morte ou com esses três.

Relutantemente, Guerra e Pestilência vão para a frente, onde seus


cavalos esperam. A chuva está começando a cair mais forte e, pela
primeira vez, estou legitimamente grata por estar nesta casa podre.

— Irei encontrá-los, —Fome grita para eles, — depois de ter uma


conversinha com nosso irmão.

Sinto arrepios com a ameaça contida nas palavras do Ceifador.

— Então você vai enfrentá-lo sozinho? —Eu pergunto.

O Ceifador se volta para mim com relutância. — Você gostaria de se


juntar a mim? —ele pergunta, levantando as sobrancelhas com ceticismo.

— Lutei com esse homem mais vezes do que posso contar. Estou feliz
em ficar de fora. —Depois de um momento, acrescento: — Você pode
matar Thanatos—para sempre?

Um sorrisinho maldoso se espalha pelo rosto de Fome. — Isso te


assusta, tootsie?

— Juro que se você me chamar assim de novo, vou tirar minha bota e
bater em você com ela.

O Ceifador cruza os braços e se inclina contra uma parede próxima.


— Experimente, —diz ele, levantando o queixo. — Atreva-se. —Seus
olhos prometem vingança.

Fome é diferente de seu irmão, a Morte. Thanatos pode ser violento,


mas não há raiva nisso. Ele parece severamente resignado com seu dever,
o que torna ele e sua tarefa ainda mais frustrantes, mas pelo menos ele não
gosta disso. Ao contrário deste distorcido. Aposto que a Fome adora
matar. Parece que sim.

Antes que qualquer um de nós possa dizer qualquer outra coisa, ouço
o familiar e temido bater de asas.

A excitação brilha nos olhos de Fome. — Esse é o seu namorado que


eu ouço? —ele diz, inclinando a cabeça.

Separo meus lábios para cuspir uma resposta contundente quando o


Ceifador de repente atravessa a sala em três passos longos e agarra meu
braço ...

— Ei! —Eu puxo contra seu aperto.

Com a outra mão, ele pega sua foice. Então, me dando um puxão
rápido, ele me arrasta contra seu peito.

— O que você está fazendo? —Eu exijo.

Lá fora, a chuva cai torrencialmente, atingindo a casa e atingindo o


chão através das janelas e portas abertas.
— Isso se chama vingança, tootsie. —Fome diz baixinho em meu
ouvido. — Você não entenderia.

Abro a boca para responder quando a foice letal do Ceifador chega ao


meu pescoço.

— Não me mexeria se fosse você, —ele diz suavemente. — Não


planejo machucá-la, mas se você fizer algo tolo, como vocês humanos
adoram fazer, bem, pelo menos será uma morte rápida.

— Seu bastardo, pensei que você queria minha ajuda, —eu digo.
Fome não sabe que não posso ser morta, o que torna esta situação ainda
mais complicada.

— Oh, estou totalmente convencido de que seus instintos de


autopreservação entrarão em ação e você será uma pequena mulher
obediente.

— Foda-se, —eu assobio.

— É difícil recusar a oferta, mas considere-me lisonjeado.

Rosno em resposta, mas a pressão dessa lâmina me impede de lutar.

A chuva se transformou em granizo e ao longe vejo um relâmpago.


As batidas de asas da Morte ficam mais altas e então, pela porta, vejo sua
forma malévola descendo até o chão. Suas asas se dobram e seu olhar
pousa na porta aberta.
Por um instante, juro que vejo ... surpresa? Pânico? Seja o que for,
desaparece assim que chega. Ele deixa cair algo na mão e avança
furiosamente pela entrada. Thanatos faz uma pausa quando chega à porta.

THA-BOOM!

O trovão estala e o relâmpago ilumina o céu. Por um instante, as


feições de Morte piscam, um esqueleto alado piscando em seu rosto e
corpo, então a ilusão desaparece.

Imediatamente, os olhos de Morte encontram os meus. Eles demoram


apenas um segundo antes de cair para a foice ensanguentada em meu
pescoço e, finalmente, para o homem que a empunha.

— Fome. —Há uma nota assustadora na voz de Thanatos, uma que,


mesmo em nossos piores momentos, nunca o ouvi usar antes. E o olhar
que Morte dá a ele é absolutamente letal.

Atrás de mim, posso sentir o Ceifador praticamente explodindo de


vertigem.

Ele realmente é um distorcido.

O aperto de Fome em meu braço aumenta. — Esta não é uma situação


familiar? —ele diz para Morte. — Só que da última vez nossos papéis
estavam invertidos.

Ah, porra.
O que quer que esteja acontecendo, isso não é apenas coisa de fim do
mundo, é coisa de vingança. E estou preso no meio disso.

Thanatos avança. — Não sabia que você tinha um desejo de morrer,


irmão.

Em um tom mais ameaçador, Fome diz: — Chegue mais perto e


cortarei a garganta dela

Para minha surpresa, a Morte pára.

Por que ele não está se aproximando? Ele sabe que não posso morrer de
verdade.

O Ceifador encosta a boca em meu ouvido. — Olhe para isso, tootsie,


—diz ele. — Meu irmão parece ter um coração, afinal.

Para Morte, ele diz: — Doloroso, não é? Finalmente você, a Morte


que acaba com tudo, sabe o que é ser vulnerável. —Sua voz é abertamente
regozijante.

Thanatos não parece vulnerável. Apenas cheio de ira.

— Você não acha que estou ciente de que nossos irmãos estão a
apenas um quilômetro daqui? — Thanatos diz, sua voz assustadoramente
calma. — Que vocês três têm cavalgado pelo mundo? Você acha que não
tenho conhecimento de seus planos? Solte Lazarus, e pouparei todos vocês
... por enquanto.
Fome suspira e, por um segundo, acho que ele está fazendo isso
apenas para poder passar a lâmina pelo meu pescoço e tornar a coisa toda
dramática demais. Mas então ele remove a lâmina completamente e me
empurra para frente.

Tropeço no momento em que Thanatos avança e me alcança. O


cavaleiro afasta o cabelo do meu rosto.

— Você está bem? —ele diz suavemente, ignorando completamente


seu irmão. Olho para seus olhos profundos, olhos que me olham com
preocupação, como se ele não tivesse acabado deliberadamente e
violentamente com minha vida várias vezes.

Concordo com a cabeça, mais abalada do que pensei que estava.


Agora que não estou prestes a morrer imediatamente, relaxo em seus
braços. Morte também parece relaxar, e tenho muitos sentimentos
conflitantes sobre isso.

Seu olhar se move para Fome, e posso ver uma promessa sombria em
sua expressão.

— Você vai se arrepender disso, —diz Thanatos, sua voz leve como
uma pluma, mas cheia de ameaça.

— Estou agora? —diz o Ceifador, erguendo as sobrancelhas. Ele ainda


parece estar se divertindo.
Thanatos me solta, avançando para enfrentar seu irmão.

— A última vez que vi você, covarde, você estava fugindo de mim, —


diz Morte, começando a circular o Ceifador. — Me diga, como está Ana?

Ana?

Meus olhos se arregalam quando conecto os pontos. Esta Ana deve


ser a mulher que Fome ama—aquela por quem ele quer desistir da
humanidade.

O Ceifador também começa a se mover, os dois homens circulando


um ao outro.

— Quando foi a última vez que você falou com ela? —Thanatos
pressiona.

Agora Fome não está se regozijando. Ele também não está sorrindo.

Seu lábio superior se curva. — Se você ousar ...

— Se eu ousar? —Morte diz imperiosamente, seus olhos brilhando.


— Você é quem ousou muito. Você deveria me ajudar. Em vez disso, você
arrastou nossos irmãos para fora de suas vidas monótonas e mortais e
forçou seus corpos envelhecidos a se voltarem contra mim.

— Ah, —Fome finge fazer beicinho, — você ainda acha que o mundo
é justo?
Morte sorri. A visão disso me dá arrepios. — Não, finalmente vejo o
que é. É você quem parece ainda se apegar a essa ideia de justiça ou
esqueceu meu alcance, irmão? Sua querida Ana nunca está segura.

Com essas palavras, o Ceifador avança, balançando sua foice mais


rápido do que meus olhos podem seguir.

Quem decidiu que lutar dentro desse espaço apertado era uma boa
ideia?

Oh, certo, esse psicopata Fome, que aparentemente toma muitas, muitas
decisões terríveis.

Morte dá um passo para trás, esquivando-se da lâmina com uma


facilidade que não deveria sentir.

Rápido como um raio, Thanatos avança, agarrando o punho da


espada embainhada do Ceifador. Ele retira a lâmina, e então os dois estão
brandindo suas armas.

A foice e a espada travam, o metal rangendo.

Eu os observo com cuidado enquanto passo por eles e me dirijo à


porta.

— Amarrar sua garota foi um belo toque, Thanatos, —Fome diz,


apoiando seu peso em sua foice. — Mas espero que você não se ache
especial. Essa é a única coisa que todos nós já fizemos. —Fome sorri
maliciosamente para seu irmão enquanto eu os contorno, movendo-me
devagar o suficiente para não chamar a atenção para mim. — E devo dizer,
a hipocrisia fica ótima em você.

Com um zing, suas lâminas se separam.

— Não sabia que você queria se machucar de novo, —diz Thanatos.

Fome gira sua foice e parece estar em vantagem quando, do nada,


Thanatos avança. Nem o vejo balançar a espada, acontece muito rápido.
Com um só golpe, a Morte arranca o braço da Fome.

Reprimo meu grito quando o apêndice decepado do Cavaleiro cai no


chão.

Jesus.

Fome grita, e então ele ataca seu irmão em um instante.

As espadas se chocam e o sangue jorra.

A terra abaixo de nós balança violentamente, me jogando no chão. Lá


fora, vejo o céu brilhar enquanto a chuva continua caindo dos céus.

As tábuas do piso abaixo de mim gemem ameaçadoramente.


Segundos depois, elas começam a se fragmentar e as plantas mutantes
surgem do solo, crescendo a cada segundo. Eles morrem com a mesma
rapidez, mas mais estão chegando e a terra está tremendo, e juro que ouço
o estrondo distante de um trovão.

Meus olhos retornam à Morte. Suas maçãs do rosto parecem afiadas


como lâminas, suas asas tensas atrás dele. Ele parece sobrenatural e se
move com velocidade sobrenatural. Já lutei com esse homem muitas vezes
e nunca foi assim. Só agora estou vendo a verdade.

Ele foi fácil comigo.

— Você bate como um maricas, irmão, —diz o Ceifador. Seu rosto,


no entanto, está comprimido de dor.

— Ainda não consegue controlar suas emoções ou o clima, não é,


Fome?

Eles incitam um ao outro enquanto se cortam.

Acho que eles se esqueceram quase totalmente de mim.

Agora é sua chance, Lazarus.

Por um segundo, hesito.

Os três Cavaleiros queriam minha ajuda, e Deus sabe que seria bom
fazer Thanatos pagar por me sequestrar. Mas Fome esteve tão perto de me
matar. Tudo para que ele pudesse agir em busca de alguma vingança
pessoal.

O filho da puta pode travar essa batalha sozinho.


Rastejo pela sala enquanto a casa continua a gemer e a rachar, e tenho
certeza de que a qualquer momento a Morte vai me notar.

Mas a luta não para. Eu rastejo pela porta aberta e silenciosamente


me levanto.

Lá fora, o vento uiva enquanto chicoteia meu cabelo e a chuva bate


em minha pele. No pouco tempo que esses dois cavaleiros lutaram, vinhas
cresceram ao redor de grande parte da casa. A casa está se despedaçando
à medida que mais plantas saem do solo e sobem pela estrutura da casa.

Corro pelo jardim da frente, contornando o lixo enferrujado enquanto


relâmpagos cortam o céu. Uma lembrança das feições esqueléticas da
Morte passa por trás dos meus olhos.

Tenho que ir embora.

Quase tropeço em uma pilha espalhada de suprimentos. Frutas, pão,


galões de água, cobertores e muito mais, tudo isso ficando encharcado
aqui na tempestade. Não estava aqui quando saí de casa uma hora antes.

Morte não me deixou para matar alguma cidade. Ele saiu para me
trazer suprimentos. Quero dizer, ele provavelmente matou a cidade de
onde os tirou, mas isso é meio que certo para ele.

Meu coração martela no meu peito enquanto eu olho para tudo.

Atrás de mim, ouço a Fome gritando e a casa gritando enquanto as


vigas quebram de verdade. A voz aveludada da Morte surge e, seja o que
for que ele esteja dizendo, não é inglês. O som disso arrepia os pêlos dos
meus braços.

Meu olhar se move até a abertura na cerca viva de espinhos.

Corra garota, corra.

E é exatamente isso que eu faço. Eu fujo para salvar minha vida.

Capítulo 28
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

CORRO QUILÔMETROS E QUILÔMETROS, MINHAS roupas


molhadas grudadas na pele. Cada centímetro quadrado de mim está
molhado, do topo da minha cabeça até a planta dos meus pés gelados. A
cada passo forte, a água espirra entre meus dedos dos pés.

Minha respiração está irregular e o ar frio queima meus pulmões a


cada respiração. A chuva parece me seguir o tempo todo.
Vá embora. Vá embora. Vá embora.

Esse é o único pensamento que ecoa em minha mente. Longe de todos


os cavaleiros e da sua violência.

Minhas pernas quase cederam quando tropecei no centro da cidade de


Pleasanton. É um soluço de lugar. Pisque e você nem perceberá. Mas os
mortos jaziam espalhados como neve recém-caída, e minha pele arrepia
como se pudesse sentir o poder da Morte mesmo agora.

Diminuo a caminhada, pressionando as costas da mão contra a boca


enquanto sigo meu caminho pelas ruas, ignorando a chuva que ainda bate
contra mim.

Agora que queimei minha adrenalina, a exaustão está se instalando.


Não sei como cheguei até aqui. Estou além da fome e da sede e tudo dói.
Olho ao meu redor, notando as casas que ladeiam a rua.

Preciso pegar alguns suprimentos e encontrar um lugar para comer e


descansar. Por alguma razão, os prédios aqui foram deixados de pé, mas
temo que se a Morte vier me procurar, ele começará a destruí-los um por
um. Não quero estar lá dentro quando ele fizer isso.

A ideia, porém, de acampar em algum campo úmido me dá vontade


de chorar.

…. aaah … aaahwahwahwahaaaa …
Eu congelo com o som distante. O que é aquilo? É impossível
distinguir o vento e a chuva – caramba, talvez seja o vento e a chuva.

Começo a andar novamente, tentando decidir em que casa arrombar.

… uaaaah … ahahah … uaaaah …

Faço uma pausa novamente.

Esse não é o clima.

É um animal? Talvez alguma criatura tenha ficado presa e agora esteja


clamando por ajuda. Mas há algo nesse som, algo que me deixa nervosa.
Uma sensação de enjôo se acumula em minha barriga.

Encontro-me caminhando em direção ao barulho, atraída apesar de


minhas próprias necessidades urgentes.

… uaaaahuaaaahuaaaah … UHAAAAAA!

Oh querido Deus.

Esqueço-me do cavaleiro, da comida, da água e da chuva que cai sobre


mim.

Isso é um bebê.

Outra pessoa sobreviveu à Morte.


Capítulo 29
Pleasanton, Texas

Janeiro, Ano 27 dos Cavaleiros

CORRO EM DIREÇÃO AO BARULHO. É IMPOSSÍVEL. Ninguém além


de mim sobreviveu à Morte.

O choro fica mais alto à medida que me aproximo de uma casa verde
oliva. Corro pela entrada, vou até a varanda e agarro a maçaneta ...

Trancada.

Merda.

UAHUAHUAAAAA!

Querido Deus, querido Deus, querido Deus. Pego uma das cadeiras
de ferro forjado na varanda e a arrasto até uma janela.

Levantando-o, bato-o no vidro. São necessárias duas tentativas, mas


quebro a janela. Chutando os cacos de vidro restantes, entro na casa.

AAAAAAHUAHUAHUAH!

Corro pela sala em que entrei e pelo corredor, mal notando o cadáver
sobre o qual salto. Chego a um quarto – um berçário – e lá, sentado em
um berço, está um bebê chorando.

Minhas pernas quase cederam com a visão.

Corro até o berço, tirando o bebê. Há vômito na criança e ela treme


muito em meus braços.

— Ssh, ssh, —eu digo, segurando o bebê perto.

O bebê ainda está chorando, com a voz rouca de tanto chorar. Suas
pequenas mãos agarram minhas roupas.

Meu Deus, esta criança sobreviveu a um Cavaleiro.

Assim como eu.

Fico em estado de choque com a ideia e, por um momento, tudo que


posso fazer é calar o bebê e olhar. Mas a criança ainda está tremendo e há
quanto tempo está presa naquele berço? O pensamento é horrível demais
para ser ponderado.

Invadi a casa em busca de leite. Tenho que engolir um soluço ao


passar pelo corpo sobre o qual saltei há apenas um minuto. O longo cabelo
ruivo da mulher está espalhado ao seu redor como uma auréola, essa deve
ser a mãe da criança.

Passei por inúmeros corpos nos últimos seis meses e me acostumei


com a visão deles. Mas agora minha própria história se sobrepõe a esse
momento, e tenho que inspirar pelo nariz para impedir que alguns soluços
descuidados escapem.

Quando entro na cozinha, vou direto para a geladeira. Dentro estão


várias garrafas de leite pré-cheias. Graças a Deus. Agarrando um deles,
levo-o aos lábios da criança.

O bebê bebe com avidez, engolindo o leite. E agora começo a chorar.


Esta criança nunca crescerá nesta casa e nunca conhecerá a mulher deitada
nela.

Mas ela vai viver. Isso eu juro.

THANATOS VIRÁ ATRÁS de mim.

Se ele me encontrar, a criança morrerá. É assim que a Morte é.

Talvez este bebê seja imune à morte. Esse pensamento me enche de


emoções estranhas e conflitantes. Olho para o bebê pela centésima vez,
tentando desembaraçar a confusão que está em minha mente. A vida sem
fim é um presente e uma maldição embrulhados em um só.

Apesar de todos os sinais que indicam que este bebê pode sobreviver
à morte, não devo presumir que estão fora de seu alcance.

Ando pela casa, uma mão segurando o bebê enquanto a outra reúne
todas as necessidades que nós dois possamos precisar. A criança se recusa
a me deixar ir.

Sinto-me vagamente doente. Muita adrenalina e exaustão e pouco


sustento e descanso.

Por favor, não desmaie. Por favor, não desmaie.

Tenho que me forçar a parar e beber a água que encontro em uma


jarra próxima, e enfio alguns restos de comida da geladeira na boca o mais
rápido que posso.

Encontro uma mochila e começo a acrescentar fraldas e roupas de


bebê, mamadeiras vazias e alguns potes de purê de comida. Até consigo
amarrar um ursinho de pelúcia que encontrei no berço na parte externa da
sacola.

Cada segundo que passa parece uma facada no peito. A qualquer


momento a casa poderia cair ou os mortos poderiam ressuscitar. Estou
trabalhando com tempo emprestado.

Faço uma última passagem. Paro no berçário, meu olhar percorrendo


a sala para ter certeza de que não perdi nada. Estou tão preocupado com
a sobrevivência desta criança que só agora noto as três letras de madeira
penduradas na parede.

B-E-N.

Reprimo outro soluço.

Olho para o bebê, que está olhando para mim, com os olhos ainda
inchados.

— Olá, Ben, —eu digo, minha voz vacilando apenas um pouco. — Eu


sou Lazarus.

Não posso transmitir muito a esta criança o que seus pais lhe deram,
mas pelo menos ele manterá seu nome e saberá que foi aquele que seus
pais escolheram para ele.

Ben continua a olhar para mim, seu lábio inferior projetando-se para
fora.

— Devemos ir, —digo a ele. — Há um homem mau atrás de mim e


não quero que ele encontre nenhum de nós.

Saio do berçário e volto para a sala. Meus olhos avistam um desenho


emoldurado pendurado na parede da sala. Nele, um homem e uma mulher
sentam-se um ao lado do outro, com um bebê no colo da mulher.

Por capricho, quebro a moldura e retiro o desenho de Ben e seus pais,


dobrando-o e colocando-o na mochila.
Mova-se, Lazarus. O tempo acabou há cinco minutos.

A última coisa que preciso é de um cavalo ou de uma bicicleta. Se esta


família já teve um cavalo—e é muito improvável, considerando o quão
pequeno é o lote—ele já se foi. Mas uma bicicleta ... eles ainda podem ter
uma bicicleta.

Sigo pelo corredor e abro a porta da garagem. As caixas estão


empilhadas ao longo de uma parede, mas encostada na outra está uma
bicicleta com uma cesta na frente e uma cadeira de bebê montada atrás
dela.

Eu exalo, meu alívio relaxando meus ombros. Coloco a mochila na


cesta da frente. Assim que coloco o cinto de segurança em Ben, ele começa
a chorar novamente.

Merda. Os bebês são as criaturas menos sutis do mundo. Alcançando


a mochila, pego uma das mamadeiras, desenrosco um dos bicos de
borracha e coloco na boca de Ben.

Provavelmente deveria ter procurado algumas chupetas.

— Sei que você teve algumas horas difíceis, garotinho, —eu digo, —
mas preciso que você seja corajoso por mais algumas horas.

Ainda não estamos fora de perigo.


NÓS ESCAPAMOS.

Nem sequer encontro a Morte, embora o pensamento dele seja tão


grande em minha mente que às vezes mal consigo respirar devido ao
medo. Talvez se eu não estivesse tão decidida a fugir dele, eu me
preocuparia com seu próprio bem-estar. Mas vamos encarar: ele estava
derrotando Fome da última vez que vi os dois.

A única coisa que eclipsa o meu medo da Morte é esta nova


preocupação: manter um bebê vivo. A maioria dos humanos já é frágil o
suficiente—os bebês ainda mais. E nenhuma experiência anterior como tia
me preparou para a realidade disso. Alimentar, dormir, trocar fraldas e
tudo isso.

Pego estradas vicinais, entro nas poucas estruturas vazias que ainda
estão de pé e recolho todo o dinheiro e suprimentos que posso, tudo isso
enquanto tento diminuir o ritmo pelo pequeno humano que agora é ...
merda, acho que ele é meu. De todas as reviravoltas que imaginei que
minha vida teria, essa nunca foi uma delas.

No terceiro dia, juro que o ar muda. Tento dizer a mim mesmo que é
apenas o tempo: o sol decidiu aparecer em toda a sua glória e o ar do
inverno parece um pouco quente. Seria um dia idílico para viajar, se não
fosse a figura que vejo ao longe.

Paro minha bicicleta, semicerrando os olhos para a pessoa. Já passei


por áreas tão solitárias do campo que não vejo outra alma—viva ou
morta—há mais de um dia.

A figura se aproxima cada vez mais, e só quando estão a cerca de cem


metros de distância é que noto que a pele da pessoa está manchada e o
cabelo emaranhado em um lado do rosto.

E eles estão se movendo em minha direção muito, muito rapidamente.

Isso não é uma pessoa viva.

Porra, porra, porra, porra, porra.

Giro minha bicicleta, o movimento empurrando Ben para acordá-lo,


e começo a sair correndo, mudando de marcha apressadamente para
maximizar minha velocidade.

Atrás de mim posso ouvir os passos batendo atrás de mim.

Querido Deus, a morte ressuscitou seus mortos.

E eles estão procurando por mim.

Sei que eles estão.

Pedalo o mais rápido que posso, minhas pernas queimando. Os passos


atrás de mim ficam cada vez mais distantes, mas não ouso olhar para trás.

A criatura deu uma boa olhada em mim? Mais virão? A própria Morte
estará aqui em breve? Cada possibilidade é mais aterrorizante que a
anterior, e o terror puro me faz pedalar o máximo que posso por horas, até
que minhas roupas ficam encharcadas de suor e minha respiração fica
irregular e Ben chora há mais tempo do que eu deveria ter permitido

Desse ponto em diante, estou em estado de pânico. Cada figura à


distância é um potencial revenant em busca para a Morte. Cada estrutura
permanente está potencialmente abrigando mais deles. Costumo viajar à
noite, o que é mais assustador do que consigo descrever. Nenhuma
história de revenant me preparou adequadamente para a realidade de
encontrar os revenants em estradas escuras e solitárias.

E eu encontro alguns deles. Eles ficam estranhamente silenciosos


enquanto rondam as estradas. Apenas uma vez alguém sai correndo de
um campo próximo, e o som da grama selvagem é meu único aviso.
Felizmente, minha bicicleta é mais rápida que o cadáver mais rápido, e a
noite encobre minha identidade.

Cada vez que me afasto, sou atormentada por incertezas: Morte sabe
onde estou? Eu realmente escapei dele?

Não me parece provável


O único lado bom dos mortos que agora caminham é que eles
deixaram as casas onde morreram. Nunca fico muito tempo, nem durmo
muito. E meu companheiro de pedalada é um esportista
surpreendentemente bom em relação a toda a provação.

Mais de uma vez, me pego olhando para ele com curiosidade.

Como você conseguiu sobreviver? Você é realmente como eu?

Seria muito, muito útil se ele fosse. Então eu não teria que fugir do
Cavaleiro. Mas não há como saber verdadeiramente. Não, a menos que
algo catastrófico aconteça. E, pessoalmente, o mundo já sofreu catástrofes
suficientes do jeito que está. Não estou interessado em manifestar outro
apenas para testar alguma teoria.

Então eu tenho medo e entro em pânico e viajo, viajo, viajo.

A certa altura, as cidades cheias de mortos dão lugar a cidades cheias


de vivos. Mesmo assim continuo cavalgando, procurando um lugar que
seja longe o suficiente da Morte para não ouvir os sussurros do cavaleiro.
Ainda não consigo me livrar do desconforto que sinto, como se, de alguma
forma, o pesadelo não tivesse acabado. Mas afasto esse pensamento da
minha mente, os dias já são difíceis o suficiente sem se preocupar com o
futuro.

Leva uma pequena eternidade cheia de bebês chorando e pequenos


colapsos (meus, não de Ben), mas, eventualmente, chegamos a
Alexandria45, Louisiana46, uma cidade que parece segura.

Então lá ficamos. Juntei dinheiro suficiente ao longo do caminho para


alugar uma pequena casa e nos instalarmos. Só então posso respirar
aliviada.

Eu olho para o garoto no meu quadril.

— Conseguimos, Ben, —digo baixinho. — Nós escapamos de Morte.

45
Alexandria é uma cidade localizada no estado americano de Luisiana, na Paróquia de Rapides. A cidade foi
fundada em 1785, e incorporada em 1882. Possui cerca de 120 mil habitantes em sua região metropolitana.

46
A Luisiana é um estado do sudeste dos EUA, no Golfo do México. Sua história como um caldeirão de
culturas francesa, africana, americana e franco-canadense se reflete nas culturas crioula e cajun. A maior cidade, Nova Orleans, é conhecida pelo
Bairro Francês, da era colonial, pelo animado festival Mardi Gras, pela música jazz, pela Catedral de St. Louis, de estilo renascentista, e pelas
exposições do tempo da guerra no gigantesco National WWII Museum.
Capítulo 30
Alexandria, Louisiana

Abril, Ano 27 dos Cavaleiros

OS DIAS SE TRANSFORMAM EM SEMANAS E AS SEMANAS se


transformam em meses e eu caio na rotina. Em algum lugar ali, Ben deixa
de ser filho de outra pessoa para se tornar meu.

Uma parte de mim odeia a facilidade com que deixei de lado meu
propósito, o quanto estava disposta a abandonar minha causa no
momento em que tropecei em um pequeno ser humano que precisava de
ajuda. Mas então, olho para Ben e não consigo me arrepender de minhas
ações. O mundo terá apenas que cuidar de si mesmo por enquanto.

Procuro uma doula para ser aprendiz, alguém que não se importa em
ter um bebê e se juntar a nós em nossas visitas domiciliares, e a vida
começa a parecer normal.

Até que, é claro, isso não aconteça.

Acordo na calada da noite, meus olhos se abrem. A princípio acho


que foi Ben quem me acordou, mas depois percebo aquela terrível
quietude. Aquela com o qual me familiarizei muito no ano passado.

Ele nos encontrou.

Eu respiro fundo.

Ben.

Tropeço até o berço dele. Mal consigo ver na escuridão, mas ele está
muito quieto e estou com tanto medo ...

Estendo a mão e o agarro e tenho que engolir meu soluço quando


ouço sua inspiração profunda e sinto seu corpo se mover.

Ele está vivo. O alívio que inunda meu sistema quase me deixa de
joelhos. Mas mesmo isso dura pouco.

Foge, Lazarus!

Se a Morte ainda não chegou, então chegará em breve. Talvez Ben


seja imune a ele, mas talvez eu tenha tido sorte e sentido o cavaleiro antes
que ele atacasse esta cidade.

Pego o arnês de bebê que comprei no mês passado e forço minhas


mãos trêmulas a prendê-lo em mim antes de prender um Ben exigente nele.
Tudo isso acontece em um torpor alimentado pelo pânico.

Pego a mochila de emergência. Deixei uma pronta para esta ocasião.


A pego do gancho em que está pendurada e, pendurando-a nas costas,
corro para o ar frio da noite.

Pego minha bicicleta e subo nela.

Por favor, tenha tempo. Por favor, estejam todos na minha cabeça.
Alterno os cantos, esperando o melhor, mas temendo o pior.

Não sei que caminho seguir; no entanto, na estrada, ouço um


cachorro latindo. Sigo em direção ao barulho, o pânico tomando conta de
meus pulmões. Cinco casas abaixo, ouço o cachorro batendo contra um
portão de madeira podre, ainda latindo. Pedalando todo o caminho até o
portão, agarro o trinco, então paro, me preparando.

Olho para Ben, que ficou quieto enquanto olha ao nosso redor.

— Nós conseguiremos fazer isso, Ben, —digo a ele, mais para o meu
próprio bem do que para o dele. — Nenhum de nós vai encontrar a Morte
esta noite.

Destranco o portão e liberto o cachorro. A criatura imediatamente sai


correndo pela rua e eu vou atrás dela. Ele rasga quintais, corta cantos e
arrasa arbustos e várias vezes tenho certeza que vou perder a coisa de vista.
Mas de alguma forma, consigo seguir o rastro do cachorro. A coisa toda é
um borrão de adrenalina e instinto. Mas quando o sol nasce, Alexandria
está muito atrás de nós e Ben ainda está vivo.

Só então me permito processar o que acabou de acontecer.


Ele está caçando você. Talvez a Morte nunca parou.

E agora ele está se aproximando.

Ben e eu encontramos uma nova cidade, um novo lugar para ficar e


eu consigo um novo emprego. Nada disso é tão confortável quanto
Alexandria, mas não culpo o novo lugar por isso. Minha sensação de
segurança foi destruída.

Com um bom motivo também. Nem um mês depois, o diabo quase


me encontrou de novo.

E de novo.

E de novo.

Atravesso a Louisiana e depois volto para o Texas. Tenho medo de


viver perto das cidades dos mortos—ainda tenho pesadelos com os
revenants da Morte perseguindo Ben e eu—mas viajar para o leste é um
beco sem saída, por assim dizer. Thanatos destruiu muitas áreas do país
por lá. Então, em vez disso, me forço a seguir para sudoeste.

Se eu conseguir chegar à costa, talvez Ben e eu consigamos uma


passagem num barco rumo a praias distantes. E se não conseguirmos,
atravessaremos o Texas e seguiremos para o Oeste, onde a terra ainda não
foi tocada pela Morte.

Há um ano, um plano como este—cheio de incertezas e lutas—teria


sido petrificante para uma garota do campo como eu, que passou as
primeiras duas décadas da sua vida a viver uma vida confortável e
previsível. Mas a amarga verdade é que não sou mais aquela garota que
costumava costurar margaridas nos jeans e pechinchar o custo dos
produtos. A morte me alterou de muitas maneiras fundamentais.

Talvez o aspecto mais chocante de tudo isso seja que eu não gostaria
de voltar a ser aquela garota que era. Não para o mundo inteiro. Sou mais
resiliente, mais aventureira e endurecida pela batalha. A morte,
ironicamente, me fez ganhar vida.
Capítulo 31
Orange47, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

BEN E EU NOS INSTALAMOS NA CIDADE DE ORANGE, Texas. O


porto mais próximo fica tentadoramente próximo, e já estou procurando
vários navios de cruzeiro que oferecem viagens para o México48, o Caribe49
e outros destinos distantes.

Sinto um arrepio toda vez que penso em encontrar um lugar onde Ben
estará a salvo da Morte, embora me obrigue a ignorar a estranha dor no
peito ao pensar em não ver o Cavaleiro novamente—talvez nunca mais.

Todas as minhas imaginações—boas e ruins—foram interrompidas

47
Orange é uma cidade localizada no estado norte-americano do Texas, no Condado de Orange.

48
O México é um país situado entre os Estados Unidos e a América Central, conhecido pelas praias no Pacífico e no
Golfo do México e pela paisagem diversificada que inclui montanhas, desertos e selvas. Ruínas antigas, como Teotihuacán e a cidade maia de Chichén
Itzá, estão espalhadas pelo país, assim como cidades da era colonial espanhola. Na capital, Cidade do México, lojas elegantes, museus renomados e
restaurantes gourmet atendem às necessidades da vida moderna.

49
O Caribe, também chamado Caraíbas e América Caribenha, é uma região do continente americano formada pelo Mar
do Caribe, suas ilhas e Estados insulares. Também é chamado de Antilhas ou Índias Ocidentais, n ome originado pela crença inicial europeia de que o
continente americano fosse a Índia.
abruptamente duas semanas depois.

Começa como uma febre bastante simples, que faz Ben chorar e
chorar. Dura dois dias e, quando passa, fico aliviada.

Mas então, ele retorna—e volta com força total.

Caminho pelo pequeno apartamento de um quarto como um animal


enjaulado, às vezes com Ben nos braços, outras vezes de mãos vazias,
enquanto meu filho dorme febrilmente na minha cama. Dou-lhe remédios
para ajudar a baixar a febre, mas, se funcionar, só funciona brevemente.

Na manhã seguinte ao retorno da febre, posso dizer que algo está


realmente errado.

Ben está inconsolável.

— Sshh, sshh, Ben, sshh, vai ficar tudo bem, —digo, balançando-o em
meus braços.

Ele grita, seus gritos ficando cada vez mais altos. Ele não come, não
bebe e até meu toque parece perturbá-lo.

A única coisa que parece ajudar são as músicas que canto para ele.
Então seus gritos diminuem—só um pouco—e ele me observa, sem sorrir
e choramingando um pouco, mas pelo menos distraído. Assim que a
música termina, seus gritos recomeçam.
Posso sentir minhas próprias lágrimas quentes escorrendo dos meus
olhos. Estou com tanto medo que meus braços estão tremendo.

Preciso encontrar um médico. Talvez eles tenham algo para dar ao


meu filho.

Mas isso presumindo que eles saibam o que está causando a febre de
Ben. E que eles tenham medicação para isso. E que Ben consiga engolir,
sem vomitar.

Estou quase hiperventilando com as probabilidades.

Ainda preciso tentar.

Ando pela casa, pegando o que posso enquanto Ben se debate em


meus braços. Eu não sei o que fazer. Ele não quer ficar em meus braços,
mas quando o coloco no chão, ele fica claramente infeliz.

Quando estou me preparando para colocar Ben na minha bicicleta,


um punho pesado bate na minha porta.

Pegando as minhas últimas coisas, jogo-as na cesta da bicicleta e vou


até a porta, enquanto Ben chora o tempo todo.

Abro e empalideço diante do visitante parado na minha porta.

Pestilência.

Por um momento, não consigo encontrar nenhuma palavra.


— Como ... o que você está fazendo aqui? —Finalmente consigo.
Tenho que levantar a voz para ser ouvida em meio aos gritos de Ben.

O olhar de Pestilence cai para o bebê em meus braços. — Ah. Então é


por isso que você está fugindo.

Ele coloca a mão no meu ombro e me leva de volta para dentro,


seguindo atrás de mim. E eu simplesmente deixei ele me conduzir. A
verdade é que ver um rosto familiar enfraquece meus joelhos. Bem quando
me senti tão desesperadamente perdida, Pestilência me encontrou.

Aperto os lábios para segurar tudo, embora ainda sinta meu lábio
inferior tremendo.

O Cavaleiro me conduz até minha mesa e cadeiras quebradas, mas


estou impaciente demais para me sentar.

Preciso ir…

— Como você sabia que eu estava fugindo? —pergunto, enquanto


meu olhar o percorre novamente. Sinto que meus olhos devem estar me
enganando.

Pestilência solta meu ombro, olhando para mim. Sinto como se ele
pudesse ver todo o estresse que carrego em meu rosto. Como isso me
desgastou nos últimos meses.

— Guerra, Fome e eu continuamos caçando a Morte—que, como


notamos, está viajando sozinho, apesar de todos sabermos de sua
existência. Combine esse conhecimento com os movimentos tortuosos de
Thanatos e os revenants despertados e bem, ele obviamente está
procurando por você.

Meu pulso está em meus ouvidos. Eu sei que Thanatos está


procurando por mim, mas ter Pestilência confirmando isso torna tudo
desconfortavelmente real.

— Como você me achou? —pergunto enquanto Ben continua


chorando em meus braços.

Pestilência agarra o encosto de uma das cadeiras da minha cozinha.


— Não existem muitas pessoas chamadas Lazarus e, ao contrário da
Morte, meus irmãos e eu estamos dispostos a interagir com os vivos. É
incrível o quão longe algumas perguntas vão.

Ainda é um pouco surpreendente, considerando como sou nova em


Orange.

— A que distância está Morte? —Eu pergunto. Eu preciso saber


quanto tempo eu tenho.

— Trinta e dois quilômetros, mais ou menos, —diz Pestilência.

Fecho os olhos por um momento. Isso é muito perto, o que significa


que preciso ir para Port Arthur50 hoje e comprar passagens para sair daqui.
Mas Ben não pode viajar. Assim não. Ele precisa de um médico. E
remédio. E descanso. Mas se não nos movermos, tudo pode acabar de
qualquer maneira.

Pestilência continua: — Da última vez que verificamos, a Morte


estava indo em uma direção diferente, então você provavelmente terá um
dia—talvez dois—antes que ele venha aqui.

Não é tempo suficiente. Seguro Ben perto de mim, mesmo que seus
gritos aumentem com a ação.

— Por que você está aqui, me avisando sobre isso? —Eu digo.

O olhar de Pestilência é pesado, e juro que vejo alguma preocupação


paternal neles enquanto ele me observa.

— Fome, guerra e eu nunca terminamos nossa discussão com você,


—diz ele. — Nós gostaríamos de terminar.

O olhar do Cavaleiro cai para Ben, que ainda está chorando. — Mas
talvez agora não seja um bom momento. —Os olhos dele demoram mais
um momento em meu filho. — A infecção está devastando seu corpo—e
está se espalhando a cada hora. Ele precisa de antibióticos, Lazarus.

50
Port Arthur é uma cidade localizada no estado americano do Texas, nos condados de Jefferson e Orange, constando neste
último uma pequena e inabitada porção da cidade.
É tudo demais. Meus ombros se curvam e começo a chorar,
inclinando a cabeça sobre a de Ben.

— Ei, ei, —diz Pestilência.

Este homem urso puxa a mim e a Ben para um abraço apertado. É um


aperto firme e rápido que termina antes mesmo de começar. Mas sua mão
permanece no meu ombro e ele o esfrega de forma tranquilizadora. — Está
tudo bem. Vai ficar tudo bem, —diz ele com tanta certeza. — Seque esses
olhos.

É só a força de vontade que me faz me recompor.

— O que eu deveria fazer? —Eu pergunto, minha voz quebrada.

— Cuide do seu filho—procure um médico, dê-lhe alguns


antibióticos. Ele vai ficar bem. Quando estiver pronto, venha encontrar a
mim e aos meus irmãos. Estamos hospedados em uma casa de fazenda
abandonada perto da estrada 3247. É azul ardósia e tem uma porta
vermelha com uma grande estrela de ferro nela.

Eu aceno distraidamente.

Pestilência hesita, depois olha ao redor do meu apartamento. Ao notar


o lápis e o caderno que guardo na bancada da cozinha, o cavaleiro pega
os dois itens e começa a anotar o endereço. Ele rasga a folha de papel e a
entrega para mim.
— Você tem cerca de um dia—mais ou menos. Lazarus, eu sei que
você está fugindo. E eu entendo o porquê. Mas queremos que você pare.

Capítulo 32
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

VOU DIRETO PARA O HOSPITAL, TIRANDO AS PALAVRAS finais


absurdas de Pestilência da minha cabeça. Eu não vou parar de fugir. Não
posso. Não, se isso significar que Ben morrerá nas mãos de Thanatos.

A espera para ser é abençoadamente curta. A enfermeira me chama,


com a prancheta na mão, e verifica os sinais vitais de Ben. Seus lábios se
pressionam em uma linha sombria e meu coração despenca.

— Quando os sintomas começaram? Ele comeu ou bebeu alguma


coisa hoje? Quando foi a última vez que ele se alimentou? Quando foi sua
última fralda molhada?

Eu respondo suas perguntas, enquanto ela mantém o rosto


cuidadosamente inexpressivo, parando apenas para fazer anotações em
sua prancheta.

Assim que termino de falar, ela diz: — Bem, seu filho está
definitivamente doente. —Ela enfia a prancheta debaixo do braço e se
levanta. — Vou fazer com que ele receba uma intravenosa para que
possamos colocar alguns líquidos nele. O médico estará aqui em breve.

O médico chega alarmantemente rápido e, embora eu esteja grata por


eles estarem levando a sério a condição do meu filho, estou com medo do
que isso pode significar.

— Sou o Dr. Conway, —diz ele, acenando para mim. Sua atenção se
volta para Ben, que está descansando em meus braços. — E este deve ser
o Ben. — O médico dá uma rápida olhada no prontuário de Ben, depois
puxa uma cadeira para nós e examina meu filho.

Quando termina, ele se recosta na cadeira. — Parece que é meningite,


—diz ele. — É grave, mas podemos tratá-lo. Iniciaremos o tratamento
com penicilina e administraremos líquidos ao seu filho. A partir daí,
esperaremos para ver, mas ele deve ficar bem.

Eu exalo, minha cabeça inclinada sobre Ben.

Ele vai ficar bem. Eu me apego a isso.

Depois que o Dr. Conway sai, uma enfermeira leva a mim e a Ben
para um quarto com um berço. Ela prepara o soro e administra o
antibiótico. O tempo todo choro ao lado do meu filho. Nunca me senti
menor do que agora, impotente para fazer qualquer coisa para salvar meu
filho. Os lamentos roucos de Ben lançam-se contra mim. São lembranças
assustadoras do dia em que o encontrei pela primeira vez, quando ele
chorou por tanto tempo que perdeu a voz.

Ele vai ficar bem, digo a mim mesma. Ele vai ficar bem.

Tento não pensar no fato de que a Morte está se aproximando desta


cidade, ou que os outros cavaleiros querem que eu pare de correr. Cada
vez que faço isso, não consigo recuperar o fôlego.

Em vez disso, escovo as mechas curtas do cabelo de Ben para trás e


canto para ele canções de ninar que oscilam em meus lábios, minha
tristeza deixando minha voz desafinada.

Uma hora se passa e nada parece mudar. Meu filho ainda chora sem
parar e, embora seus olhos não pareçam tão fundos e seus lábios pareçam
menos rachados, ele ainda parece estar com dor.

Mais duas horas se passam e nada mudou, exceto que a respiração de


Ben ficou mais rápida e seus gritos diminuíram com a exaustão.

Olho pela janela para o sol poente, temendo a noite que se aproxima.
Parece que o tempo está escorregando pelos meus dedos e não posso fazer
nada a respeito. Não posso fazer nada sobre nada disso.
A enfermeira retorna, verificando meu filho mais uma vez. Quero
perguntar a ela quanto tempo levará para que os antibióticos comecem a
fazer uma mudança perceptível. Ou se há alguma maneira de administrar
o resto do remédio em casa – ou melhor, na estrada.

Antes que eu possa, porém, ela sai correndo.

Poucos minutos depois, a mulher retorna, com um médico


desconhecido em seu encalço.

— Olá, Sra. Gaumond, —diz o médico, estendendo a mão para


apertar minha mão. — Eu sou o Dr. Patel. —Seus olhos se movem para o
berço. — E este é ... —Ela olha para o prontuário dele, — Ben.

Patel vai até o berço onde Ben está deitado. Ele pega um estetoscópio
e ouve o coração do meu filho, depois verifica sua cabeça e pescoço. A
ação faz com que Ben comece a chorar de novo.

Exalando uma respiração pesada, ele se vira do berço para me encarar.

— O que foi? —Eu digo antes que ele possa dizer uma palavra. Eu
juro que ela deve ser capaz de ouvir meu coração batendo.

— Deveríamos estar vendo alguma melhora agora. Infelizmente, esse


não é o caso.

Meu coração parece parar com essas palavras.


— Vamos continuar a administrar a penicilina a Ben, —continua o
Dr. Patel, — mas até agora não estou vendo nenhuma evidência de que
esteja funcionando.

Não está funcionando.

— Existe mais alguma coisa que você possa fazer? —Eu pergunto.

— Alguns casos de meningite são bacterianos e outros são virais, —


diz ele. — Os antibióticos não terão nenhum efeito sobre a meningite viral.
Isso pode ser o que seu filho tem. Há uma chance, no entanto, de que isso
seja meningite bacteriana e, se for, então, neste momento, daríamos a Ben
antibióticos mais especializados—se os tivéssemos. —O médico suspira,
esfregando as sobrancelhas com cansaço. — No entanto, eles não estão
mais disponíveis. Enviaremos uma solicitação para ver se algum dos
hospitais e farmácias vizinhos tem algum disponível, mas até lá ... —Ele
para de falar, seu significado claro.

A essa altura, Ben terá vencido essa coisa ou não.

Sinto como se alguém tivesse roubado o ar dos meus pulmões.

— O outro médico disse que ele ficaria bem, —eu sussurro.

O Dr. Patel assente. — Ele muito bem poderia estar. As crianças


lutam contra infecções tão graves como esta o tempo todo. Ele está
recebendo o melhor cuidado que podemos dar a ele. Tudo o que
precisamos fazer agora é deixar o corpo dele fazer o resto.

O médico se vira para a porta, e eu quero pegar a mão dele, quero


implorar para ele não ir, quero obrigar ele a ficar aqui até ele curar meu
filho.

— Não há mais nada que possamos fazer? —Eu pergunto, perdida.

— Reze, —diz ele. — Há sempre esperança na oração.

— Rezar? —eu eco.

A quem? Deus? Quase soltei uma risada amarga. Deus não vai nos
ajudar. Deus está torcendo pelo outro lado. Aquele que está caçando a
mim e a todos nesta cidade.

Dr. Patel vai até a porta, sem perceber meus pensamentos


tumultuados. — Continuaremos verificando Ben e garantindo que seu
corpo esteja o mais saudável possível para combater isso.

Com isso, ele vai embora e fico sozinha com Ben e meu desespero.

A NOITE PASSA E BEN parece estar ficando cada vez pior. No meio da
hora das bruxas, ele acorda com os olhos vidrados. A visão daqueles olhos
desfocados me fez pegá-lo e embalá-lo em meus braços, tomando cuidado
para não perturbar sua linha intravenosa.

Eu o encaro. — Você vai ficar bem, —eu sussurro para ele. — Você é
como eu. Você não pode morrer.

Isso nunca foi provado, sussurra uma vozinha em minha cabeça.

Mas eu já fiquei doente antes. Inferno, eu já morri antes. Talvez Ben


seja como eu ... talvez ... talvez as coisas fiquem bem.

Ele está assustadoramente quieto. Tudo o que eu queria ao longo do


dia era que ele parasse de chorar, mas não assim, quando o enjôo e o
cansaço roubaram seu choro.

Não sabia que você poderia amar algo tão profundamente e tão
rapidamente. Eu não dei à luz esse menino e o conheço há menos de um
ano, mas se ... se alguma coisa acontecer com ele, isso vai me esmagar
mais do que todas as mortes que já sofri.

Eu rezo—maldito médico—eu rezo ao deus que as pessoas da minha


cidade natal amavam e temiam, mesmo que esse deus tenha matado meus
pais e depois todo o resto da minha família e amigos. Mesmo que esse
deus tenha me deixado morrer tantas vezes apenas para me forçar a viver.
Mesmo que esse deus esteja preparado para levar meu filho.

Estou tão consumida pelo meu próprio medo e tristeza que não ouço
os animais ao longe, nem percebo o silêncio anormal que cai sobre o
hospital como uma mortalha. Não ouço os passos sinistros se
aproximando cada vez mais, nem o som escorregadio das pontas das asas
roçando o chão.

Só olho para cima quando a porta se abre, presumindo que seja uma
enfermeira.

Em vez disso, meus olhos pousam na Morte.

Capítulo 33
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

RESPIRO FUNDO AO VÊ-LO.

— Não, —eu sussurro baixo, a palavra como uma oração, apertando


Ben com mais força contra mim. Eu havia orado para que Deus poupasse
meu filho, e não para que me entregasse a morte em mãos.

Thanatos me encara com igual espanto. — Não acreditei, —diz ele,


com a voz abafada. — Não até agora.
Forço meu olhar para longe da Morte. O truque com ele é não olhar
muito longo ou muito severamente. Caso contrário, posso ver algo além
do meu oponente, algo real e humano.

Ele entra no quarto de hospital escuro e iluminado por lâmpadas.

— Fiquei meses procurando por você, —diz ele.

Apesar de tudo, meu olhar é atraído de volta para ele.

Os olhos escuros da morte estão febris. — Você parou de vir atrás de


mim, —ele acusa.

Não tenho resposta para ele. Ele quer falar sobre algo que parece ter
acontecido há muito tempo. Mas tudo em que consigo me concentrar é na
situação terrível que me consumiu no dia anterior.

Como se pudesse ler meus pensamentos, os olhos da Morte se voltam


para o bebê em meus braços.

— Você é mãe? —Thanatos diz, e a surpresa está de volta em sua


expressão.

Meu coração bate forte no peito. É agora que tudo está realmente
acontecendo: a morte está dentro do quarto de hospital de Ben—a morte
que mata todo mundo.

Olho para Ben, com muito medo do que verei. Ele está
assustadoramente imóvel, mas ouço suas inalações fracas.

Thanatos não matou meu filho. O Cavaleiro já chegou tão perto de


outra alma viva além de mim sem tirar sua vida?

— Por quê você está aqui? —Eu exijo.

Seu olhar está fixo em Ben. — Sinto todas as criaturas vivas, —diz ele.
— Eles abrem suas almas para mim quando chega a hora de partir.

O olhar da morte sobe para o meu. Seus olhos antigos estão tristes—
muito, muito tristes.

— Não, —eu digo novamente, minha voz quebrada, meu aperto em


Ben aumentando. Meu filho não solta nem um gemido.

— O menino em seus braços está muito, muito doente, Lazarus, —


Thanatos diz gentilmente, dando um passo à frente.

Balanço a cabeça, tentando banir suas palavras. — Ele vai ficar bem,
—eu digo, tentando tranquilizar nós dois.

— Não, —Morte diz suavemente, dando mais um passo em minha


direção, — ele não vai.

Meu rosto se contorce. Ouço a verdade em suas palavras, mesmo que


não queira acreditar.

— Por favor, —eu digo, com lágrimas escorrendo dos meus olhos. —
Ele é apenas um bebê.

Não o leve.

Thanatos está quieto, sua expressão agonizante. Para mim, eu


percebo. Ele está angustiado por mim. Não tenho certeza se sua pena é
pela criança.

Eu começo a tremer.

— Sua alma acenou, —Thanatos me lembra suavemente. — Chegou


a hora dele. Eu sei disso, e ele também.

Não. Não, não, não, não.

Mas não posso escapar da verdade das palavras da Morte. Se


Thanatos consegue sentir Ben, então meu filho deve ser mortal, afinal. Se
eu já não estivesse sentada, o pensamento teria me deixado de joelhos.

— Poupe-o, —eu imploro. — Eu sei que você pode. —Se Thanatos


pode tirar vidas à vontade, tenho certeza de que ele pode ignorar uma.

A morte balança a cabeça.

— Eu farei qualquer coisa, qualquer coisa, eu juro. —Odeio como


minha voz soa vazia, como já estou sem esperança. Mas ninguém mais
me deu nada em que acreditar, e não há razão para que este Cavaleiro seja
diferente.
Morte me lança um longo e curioso olhar. Algo pisca em seus olhos,
e eu me lembro que a última vez que o vi, ele estava determinado a me
manter cativa.

Agora, há uma centelha de esperança. Eu considero isso uma


abertura.

— Vou morar com você ... vou fazer isso... — digo, — apenas poupe
Ben. Por favor, cure-o como você me curou.

Thanatos nunca me viu assim, resumido à minha essência mais fraca


e vulnerável.

Seu olhar é pesado sobre o meu. — Eu só a curei, Lazarus, porque


você não pode morrer e eu não posso suportar o seu sofrimento.

— Mas estou sofrendo agora, —digo, com lágrimas escorrendo de


meus olhos.

Thanatos realmente parece dividido.

— Por favor, —imploro, — sei que somos inimigos, mas ... por favor,
—resmungo, — poupe-me disso.

A Morte fica quieta por um longo momento. Sinto aqueles olhos


pesados e antigos sobre mim e me pergunto distraidamente se, apesar de
toda a morte que testemunhou, ele não sabe o que fazer com a dor.
Finalmente, ele diz: — Eu darei a você o que dei a muitas mães antes
de você, —diz ele. — Tempo. Você tem um dia.

Capítulo 34
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

UM DIA?

Meu corpo parece ceder então, e eu caio da cadeira do hospital e caio


de joelhos, segurando o corpo doente de Ben perto de mim. Meus soluços
estremecem e, ali perto, percebo a presença agourenta da Morte. Ele não
foi embora, embora eu não saiba por que ainda permanece.

— Eu o odeio, —eu sussurro. — Eu o odeio, eu o odeio, eu o odeio.

A morte afunda ao meu lado e faz algo para o qual não estou
preparada: envolve os braços em volta de mim e de Ben e nos segura contra
ele.

Por um momento, seu abraço parece inseguro, mas então estou me


inclinando para ele, como se ele fosse o sol e eu fosse uma flor absorvendo
sua luz. E estou me separando. Começo a chorar de verdade, tudo dentro
de mim se desfaz de uma só vez. Fui forte por muito tempo, sozinho por
muito tempo, e agora estou em uma situação impossível.

— Achei que ele fosse como eu, —admito. — O encontrei vivo em


uma das cidades que você destruiu. Achei que ele poderia sobreviver à
morte.

Os olhos solenes de Thanatos encontram os meus, seu rosto perto o


suficiente para beijar. — Ninguém é como você, Lazarus, —ele diz
suavemente.

E começo a chorar de novo porque estou sozinha, estou sempre


sozinha, e todos que amo me abandonam, e não deveria ter ciúmes disso.

— Diga-me que ele vai ficar bem, —eu digo, meu espírito quebrado.

— Lazarus, ele vai ficar bem. Mais do que bem. Não há mais dor, não
há mais sofrimento. Ele estará cercado de amor.

Estou balançando a cabeça contra Thanatos porque não acredito


nesse tipo de bondade. Não quando tudo que vi do sobrenatural é dor e
morte.

— E quando chegar a sua hora, —continua o Cavaleiro, — ele estará


lá, esperando por você.
Choro mais forte porque as coisas não deveriam ser assim: os filhos
não deveriam morrer antes dos pais. E não me importo se tecnicamente não
sou sua mãe biológica, ou se as pessoas que lhe deram a vida já faleceram.
Ele não tem nem dois anos. Ele tem todo um futuro pela frente.

— Como eu sei que você não está mentindo para mim? — Eu sussurro,
minha voz embargada de emoção. Lágrimas estão caindo dos meus olhos
como chuva.

— Por que eu faria isso? —Morte diz. — Nunca protegi você da dor.
—Mas ele diz isso com tanta gentileza que quase acho que ele se
arrepende.

Seu domínio sobre mim aumenta e nós três ficamos assim.

Amanhã seremos inimigos, mas esta noite ele é meu consolo.


Capítulo 35
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

É O PIOR DIA DA MINHA VIDA.

Já tive tantos ruins que não sabia que eles poderiam ser eclipsados por
este.

Ben não come, não bebe e sempre que chora é um som fraco e
esganiçado. Posso ouvir a gravidade em sua voz. E talvez seja minha
imaginação, mas juro que ele está chamando aquele cavaleiro bastardo,
implorando para que ele tire sua vida de mim.

Quando acordei esta manhã com uma enfermeira fazendo a ronda, o


cavaleiro havia sumido e Ben estava de volta ao berço.

Agora eu olho para Ben, que está mais uma vez em meus braços.

Eu acaricio sua pequena bochecha. — Eu amo você, — eu sussurro.


Eu derramei todas as minhas lágrimas. Meu coração ainda está partido,
mas me deixou vazia. — Para sempre, sempre, sempre, —eu prometo. —
Lamento não ter conseguido fazer melhor. Você merecia muito mais.
Continuo acariciando sua bochecha, me sentindo perdida, meu futuro
solitário se desenrolando diante de mim. Sempre me perguntei quanto
tempo eu viveria se nada pudesse me matar. Agora, pensar nisso é
punitivo. Não há mais ninguém como eu, ninguém além dos Cavaleiros.

Meus dedos param quando um pensamento vem a mim, um


pensamento desesperado e esperançoso.

Os Cavaleiros.

Morte A morte não é a única com poder. Os outros já tiveram isso—


talvez ainda tenham.

A Fome deve. Talvez eles possam ajudar meu filho.

Engasgo com aquele sentimento tóxico e esperançoso em meu peito,


e uma parte de mim quer afastá-lo. Mas a ideia que tenho ... tem garras e
as crava em mim.

Antes que eu possa pensar melhor, coloco meu filho no berço e chamo
uma enfermeira.

Preciso tirar esse IV.

Infelizmente, isso não acontece imediatamente. As enfermeiras ainda


não querem removê-lo, embora esteja dolorosamente claro que meu filho
não pode mais receber antibióticos e líquidos.
É enquanto estou discutindo com a enfermeira que percebo um
detalhe surpreendente que perdi até agora: todos estão vivos. A equipe do
hospital, os pacientes, as pessoas que circulam do lado de fora das janelas
do hospital. A morte deu mais do que apenas ao meu filho um dia extra.

O pensamento rouba minha respiração. Junto com isso vem a


lembrança dos braços de Morte ao meu redor, me segurando enquanto eu
chorava. Um caroço se forma na minha garganta com seus estranhos
pedaços de bondade.

Volto a me concentrar na enfermeira. — Meu filho está morrendo, —


digo, e fico muito ressentida com ela por me fazer dizer essas palavras. —
Quero levá-lo para casa e deixá-lo sair deste mundo cercado pelas coisas
que ama.

Não tenho intenção de deixá-lo deixar este mundo.

A enfermeira aperta os lábios, mas, relutantemente, ela balança a


cabeça. — Vou ter que confirmar com o médico primeiro, —ela avisa.

Ela traz um médico de volta. Eles assinam alguns formulários.


Removem o soro de Ben. Murmuram algumas banalidades afetadas.

Eu cerro minha mandíbula contra tudo isso.

Depois do que parece uma eternidade, saio pelas portas da frente do


hospital, piscando contra o brilho do sol da manhã. Minha bicicleta está
onde a deixei ontem e é um choque vê-la ali. Parece que o deixei há muito
tempo.

Prendo Ben em seu assento, me encolhendo ao ver como seu corpo


está flácido e como resta pouca luz em seus olhos.

Eu acaricio sua bochecha. — Vou salvar você, Ben, —juro para ele
com uma convicção que não deveria sentir.

Subo na bicicleta e vou para casa, parando apenas o tempo suficiente


para pegar um mapa que comprei há uma semana e o bilhete que
Pestilência deixou para mim. Passo um momento localizando a estrada da
qual o cavaleiro falou, depois traço a rota necessária para chegar lá.

Dobro os papéis, coloco-os no bolso e Ben e eu saímos pela porta mais


uma vez. Vendo como uma louca, desesperada para chegar ao endereço.
O empurrão faz com que Ben se mexa um pouco, e até o ouço soltar um
grito fraco.

Algo perigoso como otimismo surge em minhas veias. Vou salvá-lo. Eu


vou.

Assim que viro na estrada 3247, começo a procurar a casa que


Pestilência mencionou, não me lembro se ele disse que era azul ou cinza,
apenas que tinha uma porta vermelha com uma estrela.

Entro em pânico várias vezes, claro que me perdi, mas, finalmente,


encontro a casa. É azul, não cinza, a tinta descascando do revestimento
de madeira, as janelas fechadas com tábuas. A porta vermelha da frente
está desbotada e a estrela solitária instalada nela enferrujou.

Vou direto até lá e me atrapalho para tirar Ben do assento, meu


nervosismo quase me vencendo. De frente para a porta, bato meu punho
contra a madeira desgastada.

Ouço murmúrios lá dentro, mas quando ninguém responde


imediatamente, bato novamente na madeira.

Quando estou prestes a agarrar a maçaneta, a porta se abre. Os olhos


de Pestilência encontram os meus por uma fração de segundo, então eles
caem para Ben.

— Preciso da sua ajuda, —eu falo rapidamente.

Antes que ele possa responder, entro na casa em ruínas. Guerra está
na cozinha, com os punhos cerrados na bancada laminada, inclinada sobre
o que parece ser um mapa.

— Isso é sobre seu filho? —Pestilência pergunta atrás de mim.

Guerra olha para cima. — Lazarus! —ele chama. — Não sabia que
você estava grávida da última vez que nos conhecemos. —Quando seus
olhos caem sobre meu filho apático, seu humor jovial desaparece.

— Não estava grávida, —digo, — mas ele é meu filho mesmo assim.
—Volto minha atenção para Pestilência. — Os antibióticos não ajudaram.
Ele está ... ele está morrendo. —Minha voz vacila, e eu tenho que parar e
puxar uma respiração estabilizadora, mesmo quando uma lágrima
escorre. — Morte pretende levá-lo esta noite, a menos que ...

— A menos que ele possa ser curado, —Pestilência termina para mim,
a compreensão inundando seus olhos. —Ele franze a testa, seu olhar cheio
de remorso. — Não posso lhe ajudar, —diz ele. — Nem Guerra. É verdade
que mantivemos alguns de nossos poderes anteriores, mas, —ele balança
a cabeça, — não tenho mais o poder de reverter tal doença.

— Mas você fez isso uma vez? —Eu pressiono, prendendo a


respiração.

Pestilência olha para mim por um momento, então acena com a


cabeça. —Todos nós temos a capacidade de ferir e curar …

Ele nem terminou de falar quando eu me viro, procurando pela casa


o único Cavaleiro que não é mortal. Aquele que pode, talvez, ajudar.

Meu olhar pousa nele recostado na parede, uma sobrancelha arqueada


enquanto ele faz com que uma muda à sua frente se levante das tábuas
lascadas do piso, a árvore se desenrolando diante dos meus olhos.

— Fome, —eu respiro.

— Não.
Estou desesperada demais para desanimar tão facilmente. Ando até o
Cavaleiro, com Ben nos braços, e olho para o impiedoso Ceifador.

— Morte vai tirar meu filho de mim, —eu digo. Meu corpo treme
enquanto falo.

— E? —Fome diz, imperturbável.

— Ajude-me, —eu imploro. — Salve a vida dele.

O Cavaleiro encosta a cabeça na parede. — Como eu disse, não.

Guerra murmura atrás de nós: — E pensar que você tentou desistir do


seu propósito para a humanidade.

A atenção do Ceifador passa por cima do meu ombro, e sei que ele
está se preparando para dizer algo contundente.

Ajoelho-me diante de Fome para que fiquemos na altura dos olhos.


Há apenas um pensamento enchendo minha cabeça.

Salvar o meu filho.

Olho profundamente nos olhos verdes do Cavaleiro até que eles se


afastam de Guerra e se concentrem em mim novamente. Este não é um
homem que tem muita empatia—pelo menos não por mim ou por meu
filho. Mas isso não significa que não possa persuadi-lo. Só preciso
descobrir o que ele quer.
— Eu farei qualquer coisa, —eu juro. — Tudo.

Deus me ajude, mas não há nada que eu não faça.

O olhar do Ceifador se estreita. Depois de um momento, seus olhos—


relutantemente—voltam-se para meu filho, que voltou a dormir.

Ele balança a cabeça. — Ele está muito longe.

Não.

O horror me preenche.

Não.

Não. Recuso-me a acreditar.

Eu não acredito.

— Você destruiu cidades, esmagou milhares em um instante, —eu


digo, minha voz forte. — Seu poder é quase ilimitado. Não me diga que
de repente você está fraco demais para ajudar um bebezinho.

A mandíbula de Fome se contrai. — Provocar-me não levará você a


lugar nenhum, mortal.

— Por favor, —eu digo lentamente. — Morte, aquele seu irmão


insuportável, não pode ser o único Cavaleiro com capacidade de curar.

O Ceifador me encara com aqueles olhos reptilianos, e não consigo


dizer o que está acontecendo por trás daquele rosto dele.
— Eu farei o que você quiser, —eu juro novamente.

Já não estou mais assustada. Apenas resoluta.

— Qualquer coisa? —Guerra diz atrás de mim.

Eu me viro para encará-lo assim que ele se aproxima.

— Qualquer coisa.

Guerra olha para mim, seus próprios olhos escuros cheios de


maquinações. — Seduza Morte.

Meu olhar se arregala, meu coração tropeçando em si mesmo.

— Guerra, —Pestilência adverte, entrando na sala atrás de nós.

O olhar de Guerra permanece fixo no meu. — Ela disse qualquer


coisa.

Minha mente pisca para o desejo nu que vi nos olhos de Thanatos.

‘Venha comigo, Lazarus. Deixe-me saber como é abraçá-la em vez de lutar contra
você’.

Eu cerro minha mandíbula, presa entre o medo e um tipo distorcido


de desejo que eu nutri pelo Cavaleiro por muito tempo.

Eu não tenho tempo para discutir.

— Feito, —eu digo, sentindo-me apenas um pouco desconfortável.


Vou me preocupar com as implicações disso mais tarde.

O canto da boca de Guerra se curva ligeiramente.

— Não concordei com isso, —protesta Fome.

O olhar de Guerra vai para o Ceifador. — Faça isso, irmão.

Fome faz uma careta. — Isso é ridículo, —ele murmura.

Seus olhos se voltam para mim, e posso ver o quanto o Ceifador não
gosta de mim—ou talvez seja simplesmente o que eu represento. Mas
quando sua atenção se volta para Ben, seu olhar suaviza.

Sem perguntar, a Fome estende a mão e tira meu filho de mim. Ele
embala Ben nos braços, e algo triste e vulnerável aparece no fundo dos
olhos do cavaleiro enquanto ele olha para meu filho.

O Ceifador coloca a mão na lateral do rosto de Ben. Respirando


fundo, suas pálpebras se fecham.

Ninguém na sala se move. Posso sentir Pestilência e Guerra por perto,


mas é como se estivessem em outro continente. Só tenho olhos para Fome
e Ben.

Nada acontece.

Os segundos passam, então é um minuto. Então aquele minuto se


transforma em dois, depois em quatro ... cada vez mais, e ninguém fala,
ninguém se move. E ainda assim o ar está denso com ... eu chamaria isso
de magia, só que faz parecer que tudo o que está acontecendo é algum tipo
de truque barato. Isso é vida e morte. Isso é nascer do barro e retornar à
terra e ao mundo girando e mudando. Parece que estou cercada pela
essência de tudo.

Quanto mais espero, mais insegura fico de repente. Não deveria ser
mais rápido? A morte estala os dedos e as cidades caem. Por que um ato
de criação—se é que você pode chamá-lo assim—é muito mais prolongado?

Mas então ...

A respiração de Ben parece mais forte e sua palidez parece mais


saudável. Ele se move um pouco e não parece fraco ou dolorido.

Já vi atrocidades, já vi desespero e horror inimaginável.

Nunca vi algo tão milagroso quanto isso.

Estou engasgando com minha própria respiração, com todo o meu


terror e desespero e tudo mais que me derrubou. E então está saindo do
meu corpo.

Fome abre seus olhos e, por um momento, enquanto ele olha para
Ben, o Cavaleiro lhe dá um breve sorriso.

Um soluço escapa dos meus lábios.


Os olhos do Ceifador relutantemente se movem para os meus. — Ele
está curado.

Capítulo 36
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

CURADO.

Lágrimas escorrem dos meus olhos enquanto tiro Ben da Fome. Meu
filho começa a chorar de novo e eu estremeço. Ele estava muito fraco antes
para chorar. Assim que ele se acomoda em meus braços, seus gritos
diminuem um pouco.

O beijo e abraço até que Ben fique oficialmente irritado. Ele está vivo.
Vivo e saudável quando foi marcado para morrer. Mal consigo entender
isso.

Guerra chega com um cantil e me oferece. — Para o seu filho, —diz


ele, apertando meu ombro. — Ele parece estar com sede.
Grata, pego o cantil de Guerra e levo-o aos lábios de Ben. Ele bebe a
água o mais rápido que pode, engasgando—depois chorando um pouco –
antes de beber mais um pouco.

Pestilência calmamente me entrega uma fatia de pão e algumas


framboesas, que provavelmente também devem ser dadas a Ben.

Minhas emoções estão uma bagunça. Esses homens que vieram à


Terra para destruir os humanos salvaram meu filho e agora estão cuidando
dele.

— Obrigada, —digo suavemente, encontrando o olhar de cada


cavaleiro enquanto Ben pega o pão com as mãos trêmulas e começa a
devorá-lo. Meus olhos recaem sobre Fome, que desvia o olhar, sua
mandíbula apertada.

— Obrigada, —digo a ele em particular. Estendo a mão e toco sua


mão, apenas para ele retirá-la.

— Não fiz isso por você, —ele diz com veemência, seus olhos
brilhando.

— Não me importo, ainda estou grata.

Ele se levanta e, murmurando algo baixinho sobre humanos


insuportáveis, se afasta.

— Não ligue para ele, —diz Guerra. — Ele está começando a se


importar com a humanidade, e não pode conter a si mesmo, e está irritado
com isso.

Concordo com a cabeça distraidamente, ainda segurando Ben


enquanto o garotinho devora a comida que Pestilência deu a ele. A sala
ao meu redor está silenciosa e, embora um milhão de coisas devessem
estar lotando minha mente, ela está estranhamente vazia.

— Seu filho terá que vir conosco, —Pestilência finalmente diz,


quebrando o silêncio.

Meu sangue gela.

— O que? —Devo ter ouvido mal.

Pestilência se aproxima. — A única pessoa além de nós que a Morte


não matará completamente é você. Seu filho não está incluído nessa lista.

— Posso manter meu filho seguro,— eu protesto.

— Só se você continuar fugindo. Mas você não vai mais fugir, —


Pestilência diz lentamente, seu olhar cheio de significado.

Meu próprio olhar se move para Guerra.

Seduzir a Morte.

Eu não consigo recuperar o fôlego com o pensamento.

— Isso não fazia parte da troca, —eu acuso.


— Morte é um homem de honra e de dever, —diz Guerra, — e seu
dever é a morte. Se ele vir seu filho, ele o libertará de seu corpo, porque
ele deve.

Começo a tremer com cada palavra que Guerra fala porque posso
ouvir a verdade nelas.

— Se você realmente se importa com esse seu garoto, —o Cavaleiro


continua, — você não vai arriscar ...

— Não, —eu aviso, e há violência em minha voz. — Não se atreva a


aproveitar do meu amor.

Guerra cruza seus braços maciços. — Sou um pai, assim como


Pestilência. Nós sabemos como cuidar dos nossos jovens. Cuidaremos do
seu como se fosse nosso. Isso eu prometo a você.

Tenho que continuar engolindo a emoção que surge dentro de mim.


Ou talvez seja bile. Sinto como se fosse vomitar.

— Mas acabei de recuperá-lo, —sussurro enquanto Ben come a


comida alegremente, sem saber que estamos discutindo seu futuro.

— Todos nós temos famílias, —diz Pestilência, intervindo. —


Famílias das quais tivemos que nos separar. Acredite em mim quando
digo que entendemos sua dor e sua hesitação.

Guerra começa. — Nossas esposas e filhos estão juntos na casa de


Pestilência e Sara na Ilha de Vancouver51. Está longe o suficiente de
Thanatos para que ele não possa alcançá-los tão facilmente.

— Vamos levar seu filho para nossas famílias, —diz Pestilência


suavemente, — e juro pela minha vida e honra, seu menino ...

— Ben, —eu digo. — O nome dele é Ben. —É uma facada no peito


abrir mão do nome do meu filho, porque sei que significa que já estou
aceitando isso em algum nível.

Pestilência sorri, as rugas ao redor de seus olhos se enrugando.

— Ben será cuidado e amado até que você possa voltar para ele. E
você retornará para ele, Lazarus—isso não será para sempre.

Inspiro e expiro pelo nariz. Tudo que eu quero para Ben é


sobreviver—essa foi a razão pela qual fomos para a costa em primeiro
lugar—embarcar em um barco e ficar o mais longe possível de Thanatos.
E agora esses cavaleiros estão oferecendo uma fuga semelhante—mas
acontece que não me inclui.

O Ceifador entra novamente na sala, passando enquanto se dirige para


a cozinha.

51
A Ilha de Vancouver, próxima da costa do Pacífico do Canadá, é conhecida pelo clima moderado e pela próspera
comunidade artística. Em seu extremo sul, fica Victoria, a capital da Colúmbia Britânica, com o Victoria Harbour, repleto de barcos, os Edifícios
Legislativos da Colúmbia Britânica em estilo neobarroco, o grande Fairmont Empress Hotel e os jardins em estilo inglês. A cidade portuária Nanaimo,
que dá nome à sobremesa feita de chocolate e creme de ovos típica do local, tem um bairro antigo com lojas, galerias e restaurantes.
— Juro a mesma coisa, —Guerra acrescenta, chamando minha
atenção de volta para os cavaleiros à minha frente. — Seu filho será
protegido e querido por mim e por minha família também. Minhas filhas
vão adorar ter outra criança com quem brincar—só não se surpreenda se,
quando voltar, seu filho souber hebraico e árabe.

— E português, —grita Fome da cozinha, como se tivesse participado


dessa conversa o tempo todo. Sua voz soa um tanto amarga, como se ele
odiasse querer ser incluído nesta conversa.

Olho para Ben, que está mexendo no cantil de Guerra. Uma carranca
puxa as bordas dos meus lábios para baixo. — Então vocês três vão levar
meu filho, e depois? Ir para o Canadá52 com ele?

Pestilência inclina a cabeça.

Enquanto isso estarei ... com Morte. Tento não me concentrar nas
emoções confusas que surgem.

— Quando poderei voltar para Ben? —Eu digo.

— Depois de cumprir sua parte do acordo, —diz Guerra, sua voz


profunda e solene.

52
O Canadá é um país norte-americano que se estende desde os EUA, no sul, até o Círculo Polar Ártico, no norte.
Entre suas grandes cidades estão a gigantesca Toronto; Vancouver, centro cinematográfico da costa oeste; Montreal e Québec Ci ty, que falam
francês; e a capital, Ottawa. As vastas regiões de natureza selvagem do Canadá compreendem o Parque Nacional de Banff, repleto de lagos nas
Montanhas Rochosas. Abriga também as Cataratas do Niágara, um famoso conjunto de enormes cachoeiras.
Meu olhar salta entre ele e Pestilência. — Como vou ... —Eu nem
quero dizer a palavra. — Como seduzir a Morte ajudará em alguma coisa?

Guerra sorri para mim, um brilho bem-humorado em seus olhos. —


O que você acha que impediu cada um de nós de destruir o seu mundo?

Meu olhar se move para Fome, que está servindo uma caneca de café
que alguém preparou, olhando para a caneca o tempo todo. Difícil de
acreditar que alguém daria a esse idiota uma hora do dia por qualquer
coisa, muito menos por amor.

Imediatamente, me sinto culpada por ter pensado nisso, considerando


que ele acabou de salvar meu filho—embora com relutância.

Minha atenção se volta para Guerra. — Você não pode estar falando
sério. —Este é realmente o plano deles? Eles estão colocando o destino de suas
famílias e do mundo em minhas mãos—ou melhor, em algumas outras
partes da minha anatomia?

— Vamos, tootsie, —Fome fala, — não me diga que você duvida de


sua capacidade de foder um homem para que ele veja a razão.

— Fome, —Pestilência estala, carrancudo.

Encaro o Ceifador, mas isso só parece diverti-lo, o canto de sua boca


se curvando em um sorriso malicioso.

— Bem, —Fome diz para Pestilência, passeando, sua caneca de café


na mão, — a outra opção é nós três, irmãos, nos unirmos e destruirmos a
Morte, mas vendo o quão decrépitos você e Guerra se tornaram, tenho
minhas dúvidas sobre esse plano.

Assim como eu.

Afinal, vi em primeira mão como Morte lidou facilmente com a


Fome, e ele é o único dos três que é imortal ainda.

Fome leva a caneca de café aos lábios. — Além disso, —ele continua,
abaixando a caneca, — quero ver aquele idiota justo se apaixonar
exatamente pela mesma coisa que o resto de nós.

— Então está combinado? —Pestilência diz, olhando fixamente para


mim.

Engulo em seco, olhando para Ben mais uma vez. Eu odeio isso. Eu
odeio tanto isso. Agora que Ben está vivo e bem, quero voltar atrás em
minha palavra.

Ben nunca estará verdadeiramente seguro até que a Morte seja detida. E isso
não acontecerá a menos que eu o impeça. Essa sempre foi minha verdade
mais profunda.

Meu propósito assenta sobre meus ombros como um manto. Estou


acostumada com a ideia de parar Thanatos. Só que agora terei que usar
armas diferentes e mais carnais.
O desejo se enrola em mim, e isso me deixa nervosa. Nunca ousei
ceder aos sentimentos de culpa e proibidos que tive por Morte, nem
mesmo quando ele me capturou.

Mas agora estão me pedindo para fazer isso e estou com medo de que,
quando o fizer, não haverá como voltar atrás.

— Tudo bem, —eu digo com a voz rouca. — Concordo com isso.—
Como se eu realmente tivesse escolha.

Ainda assim, vejo Pestilência relaxar um pouco.

— Mas, —acrescento, voltando minha atenção para a Fome, —


preciso que você jure que o manterá seguro. —Ele é o Cavaleiro em quem
eu menos confio.

Os olhos duros da Fome olham para mim. Depois de um momento,


eles se deslocam para o meu filho em meus braços. Mais uma vez, eles
parecem se suavizar a contragosto ao ver o menino. A mandíbula do
Ceifador se aperta.

Sua atenção volta para mim, seu olhar feroz: — Eu juro.

E por alguma razão, o juramento da Fome de proteger o meu filho


parece o mais genuíno de todos.

Respiro fundo e, olhando de homem para homem, finalmente aceno.


— Tudo bem. Vamos fazer isso.
LEVO BEN DE VOLTA para casa, alimento-o, troco-o e reúno suas coisas
o mais rápido que posso. Empacoto comida e garrafas, e todo o dinheiro
que economizei. Coloco seu urso e o retrato dele e de seus pais. Depois de
um momento de hesitação, tiro o anel de minha mãe do dedo. É o único
item que ainda tenho da minha vida antes da Morte, e é o meu bem mais
querido, por isso é apropriado enviá-lo com meu filho como um lembrete
de quanto o amo.

Pego um pedaço de barbante e deslizo o anel nele, depois amarro-o


firmemente no pescoço de seu ursinho de pelúcia. Espero que quando eu
voltar para Ben, ele ainda seja muito jovem para perceber ou se preocupar
com a existência do anel. Não suporto a alternativa. De anos passando. O
peso dessa possibilidade assenta como uma bigorna no meu peito.

Não vai demorar tanto. Esse é o meu juramento.

Assim que coloco o urso na sacola, sinto uma sensação de


formigamento entre as omoplatas.

Viro-me para a janela e meus olhos percorrem a rua e os apartamentos


do outro lado. Além de algumas crianças jogando bola de futebol para
frente e para trás, não vejo ninguém. Mas os cães estão latindo ao longe,
e juro que um silêncio enervante permanece por trás disso e das risadas
das crianças.

Morte pode ter saído do meu lado, mas não tenho ilusão de que o
cavaleiro tenha ido longe, não depois de ter me encurralado com tanto
sucesso.

Respirando fundo, arrumo as últimas coisas de Ben. Depois que


termino, faço uma pausa, olhando para meu filho, que está colocando uma
fralda de pano sobressalente na cabeça, depois me viro e rio, como se fosse
uma piada compartilhada entre nós dois. É como se ele nunca tivesse
ficado doente.

Agora, tudo que quero fazer é ficar aqui o maior tempo possível e
aproveitar a presença do meu filho. Mas cada momento que passa me
aproxima do meu reencontro com a Morte. E essa é uma reunião que Ben
deve perder.

— Ben, —eu chamo.

Ele se vira para mim novamente e me dá aquele mesmo sorriso


meloso.

Vou até ele e o pego. Imediatamente ele quer voltar para baixo, mas
eu o seguro com força. Não sei da próxima vez que vou conseguir isso.

— Eu amo você, —eu digo.


Ainda segurando-o, pego a mochila que acabei de arrumar e, jogando-
a por cima do ombro, vou até minha bicicleta. Coloco minha bolsa na
cesta da frente e prendo meu filho em seu assento. Em seguida, empurro
ele e a bicicleta para fora, acomodo-me em meu assento e volto para a casa
da fazenda desgastada pelo tempo e para os Cavaleiros que me esperam.

QUANDO VOLTO PARA a casa da fazenda, os três irmãos já estão no


jardim da frente com seus corcéis. Guerra e Pestilência estão guardando
itens nos alforjes de seus cavalos enquanto Fome descansa entre a grama
alta, observando indolentemente enquanto uma roseira se forma à sua
frente. Flores roxas suaves e escuras florescem diante dos meus olhos.

Pestilência se afasta de seu cavalo quando me vê. Ele se aproxima


enquanto eu desafivelo Ben, e assim que coloco meu filho em meus braços,
o cavaleiro nos envolve em um abraço de boas-vindas. Eu não esperava
um abraço, mas precisava de um. Eu me agarro ao seu abraço caloroso.

Apesar de toda a minha amargura de longa data em relação a


Pestilência, ele é o Cavaleiro que tem sido mais compassivo comigo.

— Vai ficar tudo bem, —ele promete. — Tenho três filhos, Guerra
tem quatro e Fome é excessivamente protetor de coisas indefesas, —diz
ele. — Entre nós três, Ben estará seguro, bem cuidado e ... —Ele se afasta
para me olhar nos olhos, — nós realmente o amaremos como se fosse
nosso. Você é da família agora, Lazarus.

Eu engasgo com isso. Toda a minha vida girou em torno da minha


família e como senti falta desse sentimento de pertencimento. Pestilência
está me oferecendo algo que pensei ter perdido para sempre. Não tenho
palavras para descrever como isso me faz sentir.

— Tirei seus pais de você, Lazarus, —Pestilência continua, segurando


meu olhar. — Não posso devolver a vida deles a você, mas posso lhe dar
isso. Você entende?

Lágrimas picam meus olhos. Eu aceno, minha garganta trabalhando.

— Obrigada, Victor, —eu digo, minha voz rouca.

As sobrancelhas do Cavaleiro se erguem por um momento, e então


ele me dá um sorriso genuíno, que enruga os cantos dos olhos e ilumina
todo o rosto.

Eu seguro Ben perto. Meu filho se agarra a mim, olhando para os três
homens de aparência assustadora com clara suspeita.

Oh Deus, eu não quero fazer isso.

— Eu amo você, Ben, —eu sussurro, esfregando suas pequenas costas.


Eu o seguro por um longo minuto.
Vou ver você de novo em breve, digo a mim mesmo. Tudo isso não será em
vão.

Guerra vem até nós, agachando-se um pouco para ficar cara a cara
com Ben. Meu filho olha para o Cavaleiro, suas mãos cavando com mais
força em minhas roupas.

Isso está indo muito bem.

— Ah, olhe essa ferocidade. Pestilência e Fome não têm metade disso.
—Ele aponta para Ben. — Você tem as características de um futuro
general, —diz ele, e a maneira como diz isso me faz pensar que isso
deveria ser um elogio.

Pego a mochila cheia de coisas de Ben e entrego aos Cavaleiros.


Pestilência dá um passo à frente para pegá-lo.

Guerra estende a mão para o menino, mas Ben recua um pouco.

— Afastem-se, irmãos, —diz Fome, aproximando-se, carregando


uma daquelas flores roxas claras, — o garoto tem bom gosto.

O Ceifador para na nossa frente e olha para a flor em sua mão. Depois
de um momento, ele entrega para Ben.

Ben olha para Fome com ceticismo e depois olha para a rosa como se
isso fosse algum tipo de truque. Relutantemente, meu filho pega a flor.
Antes que ele possa agarrá-lo, Fome o puxa um pouco para trás. —
Isso não é realmente seu, —esclarece o Cavaleiro, porque ele é um idiota
nato, — mas a mulher a quem pertence iria querer que você a tivesse.

Ele estende a flor mais uma vez e, desta vez, não há hesitação da parte
de Ben. Ele estende a mão e agarra a coisa, que, percebo, foi
cuidadosamente arrancada dos espinhos.

Assim que a flor está nas mãos de Ben, ele rapidamente arranca as
pétalas.

Fome faz uma careta. — Os humanos são tão pagãos—mesmo os em


miniatura.

— Você está apenas amargurado, Ana não quer ser selada com o seu,
—Guerra, diz, batendo nas costas dele enquanto ele se vira para seu
cavalo.

O Ceifador olha para ele, mas não diz nada. Depois de um momento,
sua atenção volta para Ben, que arrancou a maior parte das pétalas da rosa.

Fome tira Ben dos meus braços com facilidade, como se fosse a coisa
mais natural do mundo. — Diga tchau para Lazarus, —diz o Cavaleiro,
mas Ben não se importa no momento. Sua atenção ainda está fixada nos
tristes restos da rosa.

Meus braços parecem vazios e tudo em mim grita com a ideia de


separação.

— Eu amo você, Ben, —eu digo, novamente, minha voz falhando.

Esta é a maior queda de confiança no universo.

Enquanto Fome sai com Ben, ouço-o dizer: — Posso fazer mais flores
para você, mas se você cagar em mim, o negócio está encerrado.

— Fome, —Pestilência dispara atrás dele.

— Relaxe, vovô, —Fome grita por cima do ombro, — Ben vai esperar
até que ele esteja em seu cavalo antes de fazer qualquer coisa engraçada.

Pestilência esfrega suas têmporas. — Ele vai ficar bem, —o Cavaleiro


insiste para mim, deixando cair a mão.

Concordo com a cabeça, mordendo o interior das minhas bochechas


para manter a compostura.

— Antes de você ir, —diz Pestilência. — Tenho algo para você. —Ele
enfia a mão em um dos bolsos, tira um pedaço de papel e o entrega para
mim. — Este é o endereço em que nossas famílias estão hospedadas.
Nosso plano é levar Ben para lá, onde minha esposa Sara e os outros
cuidarão dele.

Pego o papel dele e olho para o endereço. Meu coração martela com
o quão desesperadamente longe ele está. Isso é uma coisa boa, lembro a
mim mesma, embora agora tudo o que percebo é que parece meio mundo
de distância de mim.

Então o resto do que ele disse me alcança. — Elas vão cuidar dele? —
Eu pergunto. — E você e os outros Cavaleiros?

O rosto de Pestilência é sombrio. — Nós vamos voltar para você e


Morte. —Seu rosto escurece. — Espero que até lá, Thanatos tenha
mudado de ideia sobre sua tarefa, mas se não …

Caso contrário, Pestilência e seus irmãos terão que detê-lo eles


mesmos. Eu não acho que essa opção vai acabar bem para nenhum deles.

Pestilência olha para o horizonte atrás de mim. — Você precisa ir.


Temos que começar a cavalgar para colocar o máximo de distância
possível entre nós e a Morte.

Eu aceno, recuando. Meus olhos continuam se movendo para Fome.


Ele subiu na sela, Ben na frente dele. Meu filhinho vai andar a cavalo.

O pânico gelado sobe pela minha garganta e é preciso um esforço


obsceno para forçá-lo a descer.

Ben ainda está distraído com o fato de não estar mais em meus braços,
e isso é graças ao Ceifador, que criou uma trepadeira na perna de seu
cavalo muito paciente.

Uma flor branca se abre bem na frente de Ben e, embora a visão dela
seja inacreditável aos meus olhos, meu filho não se incomoda, colhendo a
flor imediatamente, inspecionando-a com uma expressão séria antes de
começar a colher suas pétalas uma por uma.

O pânico se agita dentro de mim e, sem pensar, vou até meu filho.
Estendendo a mão, aliso a mão em seu rosto. — Vejo você de novo em
breve, Ben, —prometo. — Fique seguro, meu coração.

Meu filho olha para mim e sorri, ele estende sua flor mutilada e a
exibe.

Eu pressiono meus lábios para não perdê-lo, então volto vários passos.

Fome se volta para mim, seus olhos de pedra.

— Lazarus, —ele diz suavemente. — Não se esqueça da sua parte no


acordo. —Suas palavras são misturadas com ameaças. — Chupe-o, transe
com ele, faça qualquer merda que tire esse meu irmão de seu caminho,
mas lembre-se de que tudo depende de você agora. Tudo.
Capítulo 37
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

MEU APARTAMENTO PARECE UM TÚMULO. DÓI OLHAR para as


sobras de fraldas e roupas empilhadas no chão—uma delas é a mesma
fralda com a qual Ben estava brincando recentemente.

Talvez o pior do que ver aquela pilha seja reconhecer o quão


lamentavelmente pequena ela é. Viajar muitas vezes significa viajar com
pouca bagagem, e a maioria das coisas do meu filho foram deixadas com
ele.

Curvando-me sobre a pilha, pego um par de meias de Ben que já não


cabem nele. Coloco-os em um dos bolsos, pressionando os lábios para me
impedir de ficar muito emocionada.

Ele está vivo, lembro a mim mesma. Isso é mais do que a Morte ou os
médicos poderiam me dar.

Vou para o meu quarto e pego minhas lâminas, prendendo-as nas


coxas. Pretendo usá-los no Cavaleiro? Não. Será que eu me arrependeria
de afundar um na barriga dele se surgisse a oportunidade? Também não.

Todos aqueles meses tentando criar um bebê olhando por cima do


ombro, tendo que largar tudo e fugir, mais do que alimentaram minha
raiva. Acrescente a isso o fato de que a Morte pretende recolher a alma do
meu filho esta noite e, sim, eu adoraria uma oportunidade de lutar contra
esse Cavaleiro.

Claro, a raiva não é a única emoção que sinto por Thanatos. Eu


gostaria que fosse. Isso tornaria tudo muito mais fácil. Em vez disso, tenho
que lidar com esse desejo insidioso que arde dentro de mim. E há o fato
de que Thanatos não destruiu esta cidade ontem à noite.

Vou até a porta da frente e saio do meu apartamento.

— Thanatos! —Eu chamo, meu olhar se movendo sobre o bairro.

Espero por alguma resposta—um arrepio na pele, uma sensação de


estar sendo observado, aquele maldito silêncio—mas não há nada. Se o
cavaleiro está me observando, parece que fez uma pausa.

Volto ao meu apartamento determinada a não apenas sentar aqui e


esperar por ele. Prefiro tirá-lo como veneno de uma ferida. E se eu
orquestrar isso direito, poderei até mesmo dar aos seus três irmãos uma
vantagem inicial em suas viagens.

Voltando para a cozinha, pego o lápis e o caderno e rabisco uma


mensagem no pedaço de papel, minha agitação torna minha escrita severa.

Se você me quiser, terá que me pegar primeiro.

Lazarus

PS.: Sugiro que você comece a procurar pela I-10 East.

Pegando uma faca de cozinha, saio e empalo aquele bilhete na porta


da frente.

Morte e eu teremos um último jogo de gato e rato.

ANDO PELAS RUAS de Orange como um fantasma, com o sol se pondo


no oeste. Meus olhos se movem sobre as poucas pessoas que vejo, todas
elas vivendo o dia como se nada estivesse errado. Eles não têm ideia de
que todos os quatro cavaleiros do apocalipse estiveram em sua cidade nas
últimas vinte e quatro horas. Ou que o próprio destino da humanidade foi
trocado por frutas no mercado.

Assim que chego à periferia da cidade, começo a pedalar cada vez


mais rápido, até minhas coxas queimarem e o vento assobiar em meus
ouvidos.

Deixei escapar um soluço. É um som feio e selvagem, mas liberar


minha dor assim é catártico, então faço isso de novo—e de novo e de novo
até gritar minha agonia para o céu. Isso não importa mais. Nada mais
importa.

Em algum momento, eu coloco tudo para fora. Tudo o que resta é esse
silêncio dentro de mim.

Pedalo até minhas pálpebras caírem—o que, para ser honesto, é


deprimente no início da noite. Mas posso sentir a exaustão penetrando em
cada centímetro do meu corpo; Não tenho um descanso adequado—ou
uma refeição adequada – há muito tempo.

Paro em um trecho escuro da rodovia. Não há nada aqui além de uma


espessa linha de árvores ao longo da estrada.

Desço da bicicleta e a deixo cair no chão. É significativo deixar aquela


bicicleta para trás. Sempre precisei de um para correr atrás—ou para
longe—do cavaleiro. Mas não vou precisar mais disso.

Quase durmo à beira da estrada só para que o cavaleiro me encontre


mais facilmente, mas até que a Morte mate todos, ainda há salteadores de
estrada com quem me preocupar. Então, em vez disso, arrasto-me além
da linha de árvores e avanço pela grama encharcada. Caminho em direção
ao contorno escuro de uma árvore que noto ao longe. O chão está úmido
aqui, assim como em qualquer outro lugar.

Deixei escapar um suspiro. Neste ponto, estou cansado demais para


me importar. Encosto as costas no tronco da árvore e fecho os olhos.
Demora alguns minutos de exaustão, mas eventualmente adormeço.

ACORDO COM O SOM estrondoso de animais fugindo e a sensação de


Morte se aproximando. Sento-me apenas para sentir o tapa de insetos
contra meu rosto enquanto enxames deles passam. Eu me abaixo o melhor
que posso. Enquanto faço isso, ratos e outros roedores passam correndo,
muitos deles subindo em cima de mim em sua corrida louca.

Acima, ouço os gritos dos pássaros e vejo centenas—não, milhares—


deles iluminados por trás contra o sol nascente.

Ele me encontrou.

Mais rápido do que eu esperava também.

Os animais passam e eu sou a única que fica para trás.

Uma leve brisa agita a grama selvagem, mas fora isso, o mundo está
ensurdecedoramente silencioso. Esse silêncio cresce e aumenta até que eu
juro que vai me engolir inteira.

Eu me levanto, saindo de debaixo da árvore. Minhas calças estão


úmidas, o frio da manhã gruda nelas.

A terra molhada faz barulho sob minhas botas enquanto atravesso a


grama pantanosa.

A batida das asas me faz parar.

Não percebo que peguei uma das minhas lâminas até que ela esteja
em minha mão. Meus músculos lembram o que minha mente esqueceu:
que estou acostumada com o som daquelas asas antes de uma luta. Por
muito tempo esse foi o som que anunciou a batalha, a dor e—muitas
vezes—a morte.

Agora, no entanto, não tenho certeza do que esperar.

Viro-me em direção ao barulho e o vejo bem alto no céu. Morte, o


último anjo de Deus. Ele circula acima, procurando por mim. Eu olho
para ele, paralisada por esta criatura celestial.

Como se pudesse sentir meu olhar, o cavaleiro para no ar, sua


armadura brilhando dolorosamente quando os raios da manhã a atingem.
Suas asas batem em suas costas enquanto seu olhar cai sobre mim. Eu
sinto isso como um dedo na minha espinha.
É bom acabar com a luta e o sofrimento entre nós. Parece certo,
embora eu saiba que é errado.

Morte se abaixa à terra. Ele cai a quinze metros de distância,


parecendo tão antigo e tragicamente mítico como sempre foi.

Seus olhos me examinam. — Lazarus, —diz ele, — você esteve


ocupada.

Minha pele fica um pouco úmida. Não sei o quanto ele já sabe sobre
Ben.

Thanatos inclina a cabeça. — Onde está seu filho? —ele diz, como se
estivesse lendo minha mente. — Certamente uma mãe enlutada não
deixaria seu filho para trás.

Levanto o queixo, mesmo quando a culpa e a angústia pressionam


meu peito. Ainda não me perdoei por deixar os cavaleiros levarem Ben.

Um sorriso cruel surge no canto da boca de Thanatos, embora não


alcance seus olhos. — Ah, Ah, como eu queria ver esse seu olhar
endurecido pela batalha. Minha kismet feroz, o que você fez com a alma
que eu deveria coletar?

— Isso importa? —Eu digo. — Não é ele que você quer.

Os olhos de Morte queimam quando olham para mim. — Lazarus, —


sua voz é despojada de toda pretensão, — era a hora dele.
Minha garganta funciona. Então o Cavaleiro sabe que meu filho ainda
vive.

— Seus irmãos não pensavam da mesma maneira, —eu digo. — Eles


me fizeram um acordo que você não fez.

Thanatos fica em silêncio por um longo momento.

— O que eles negociaram? —ele finalmente pergunta. Sua voz tem


uma nota de ... alguma coisa. Eu não posso colocar o quê.

Estou quieta.

A mandíbula de Morte se aperta. — Por mais que afirmem amar a


humanidade, eles não salvariam apenas uma criança prestes a morrer. O
que eles pediram? —Ele exige.

Olho para ele por um longo momento e então, muito


deliberadamente, deixo cair minha lâmina.

— Eu desisto,—eu digo. — Eu irei com você—onde você quiser.

Por um longo momento Thanatos apenas olha para mim, e eu juro


que aqueles olhos profundos e escuros veem tudo. Posteriormente, aquele
olhar se enche de triunfo acalorado.

A Morte dá um único passo à frente, depois outro, e outro, sua


armadura prateada tilintando com o movimento.
Ele leva a mão ao ombro e, pedaço por pedaço, remove a armadura
enquanto atravessa o campo. Seu olhar permanece fixo no meu o tempo
todo.

Ele joga o último de seus acessórios de metal de lado assim que se


aproxima de mim.

Eu olho para ele, sentindo-me ao mesmo tempo com medo e exposta.

Ele segura minha bochecha. — Há muito tempo que procuro por você,
—diz Morte, sua voz letalmente suave. Seus olhos brilham. — Não
pretendo deixar você ir.

Eu engulo.

Não posso acreditar que estou fazendo isso.

Seu olhar cai para os meus lábios, assim como fizeram muitas vezes
antes. Mas agora ele se inclina, sua boca a um fio da minha.

— Agora é sua última chance de fugir, Lazarus.

Eu não fujo. Eu não recuo, meu olhar paralisado para aqueles seus
lábios expressivos.

Seus olhos se voltam para os meus e por um breve momento ele sorri,
parecendo ao mesmo tempo vitorioso e perverso. Então sua boca
reivindica a minha.
O choque de seu beijo me faz cambalear para trás, mas o braço de
Thanatos está lá, primeiro me firmando, depois me puxando para perto
dele o máximo que pode, seus dedos pressionando minhas costas.

Sua boca se move contra a minha, e embora eu tenha beijado uma


dúzia de homens e a Morte provavelmente não tenha beijado ninguém,
nós dois nos sentimos iguais, seu fogo contra o meu.

É nesse momento que percebo que estou, de fato, retribuindo o beijo.


Estou com raiva, apavorada e perdida, e meus lábios estão lutando contra
os dele mais do que qualquer outra coisa. Mas ainda. Estou beijando ele.

Ele sorri contra a minha boca, como se também estivesse


colecionando essa pequena vitória. Eu sinto aquele sorriso direto no meu
âmago.

A Morte se curva um pouco, para poder deslizar o braço por trás dos
meus joelhos. Um momento depois, ele me pega, embalando meu corpo
contra o dele.

Não vejo suas asas abertas, mas sinto seus braços me apertarem.

E então Thanatos cumpre sua ameaça de longa data.

Ele me leva embora.


PARTE II
Capítulo 38
Orange, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

AGARRO THANATOS COM FORÇA ENQUANTO SUBIMOS cada


vez mais alto, meu coração martelando no peito.

Desisti e cedi, mas ainda não consigo banir o pavor de estar nos braços da
Morte. Tudo nele foi feito para acabar com vidas, e tão perto dele posso
sentir o erro da minha existência continuada.

Sem contar que a última vez que ele me segurou assim, ele me deixou
cair. E tudo bem, isso só aconteceu depois que eu o esfaqueei, mas ainda
assim, o pensamento me domina.

— Você não vai me deixar cair de novo, vai? —Eu pergunto, minha
voz abafada.

Sua boca roça minha orelha, seu hálito quente e sua voz baixa como
a de um amante quando ele diz: — Não na minha vida, Lazarus. Isso ficou
para trás.

Ele percebe que há sexo em sua voz? Suas palavras praticamente


gotejam, e meu corpo parece despertar—meu estômago vibrando e meu
núcleo aquecendo.

Voamos por horas, meu corpo apertado nos braços da Morte. Presumi
que mesmo esse cavaleiro todo-poderoso ficaria cansado tentando
permanecer no ar enquanto segurava uma mulher adulta, mas eu deveria
saber disso. O ser que pode matar a população de uma cidade num instante
é mais do que capaz de eliminar um mísero humano.

O tempo todo estou cheia de perguntas para o Cavaleiro: Onde está


seu cavalo? Para onde você está me levando? O que acontece agora?

Acima de tudo, quero perguntar a ele se ele deixou meu filho em paz
quando percebeu que Ben estava curado. Mas tenho medo de chamar a
atenção do cavaleiro de volta para Ben, caso meu filho esteja bem. Não
consigo imaginar que a Morte goste de ter uma alma roubada.

Concentro minha atenção no mundo abaixo de mim, apenas para me


distrair. É difícil ver muita coisa com meu cabelo balançando e o vento
ardendo em meus olhos, mas consigo ver alguns vislumbres. A maior parte
da terra é uma colcha de retalhos de campos com algumas casas salpicadas
como sardas no rosto. De vez em quando, porém, vejo cidades—ou, em
alguns casos sombrios, os restos delas. Estas últimas parecem uma mancha
cinzenta na paisagem, os edifícios derrubados, as estradas cobertas de
escombros. Aposto que se eu olhasse bem, veria corpos também. Eu não
me incomodo.

Estes são os lugares que a Morte reivindicou.

E agora ele está reivindicando você.

EM ALGUM MOMENTO, sinto que estamos diminuindo. Abaixo de nós


está uma cidade enorme, que a Morte já destruiu. Passamos quilômetro
após quilômetro por prédios nivelados. Vejo alguns trechos da
topografia—a curva de uma rua residencial, o brilho azul de uma piscina,
a torre de uma igreja—mas todo o resto está quase irreconhecível.

Por que a Morte está me trazendo aqui?

Porque ainda estamos baixando.

Quase a contragosto, os edifícios destruídos dão lugar a extensões


cada vez mais amplas de vegetação. Ao contrário da cidade atrás de nós,
as poucas estruturas que vejo nesta área estão intactas. Não tenho tempo
para me perguntar por que isso acontece antes que jardins bem cuidados
comecem a desaparecer sob nossos pés.

Com um suspiro final, pousamos em um desses pátios. Morte dá


alguns passos finais antes que suas asas se fechem atrás dele.
Ao nosso redor há um gramado verde brilhante. Meus olhos se
movem para cima, passando pelos jardins verdejantes e em direção à
enorme mansão que orgulhosamente fica diante de nós. Ela brilha como
um diamante e parece extraordinariamente deslocado em meio a toda a
morte e destruição sobre a qual acabamos de sobrevoar.

Quase relutantemente, a Morte me coloca no chão. Dou alguns passos


cambaleantes para frente, sentindo-me como um potro tentando encontrar
o equilíbrio pela primeira vez.

Olho para a Morte, suas asas negras parecendo uma capa nas costas.
Sem sua armadura, há algo vulnerável nele. Ou talvez seja simplesmente
porque ele não parece pronto para a batalha.

Respiro fundo, percebendo que tudo está voltando para mim. Aquele
ano lutando com ele, estudando-o, tentando descobrir quais eram suas
fraquezas. Estou caindo de volta nisso, como se meu tempo com Ben fosse
apenas um sonho, e esta, minha realidade.

O chão sob meus pés treme, interrompendo meus pensamentos.


Então, por todo o vasto perímetro da casa, crescem plantas monstruosas e
espinhosas, crescendo e se retorcendo até criarem uma enorme parede
viva.

— Isso parece dolorosamente familiar, —eu digo.


Morte é fria e dura enquanto ele me encara. Como eu pensei que havia
algo vulnerável nele?

— Eu já te disse, não vou deixar você fugir de novo.

— Não estou planejando fugir.

— Ah, sim, porque você tem um acordo a cumprir.

Nós dois nos olhamos por vários segundos.

Temos muita bagagem entre nós.

Literalmente, o valor das cidades.

— Você se escondeu de mim por meio ano, —diz ele.

Minhas sobrancelhas se juntam levemente. Acho que esse fato


realmente o perturba. Mesmo que isso significasse que ele poderia atacar
cidades sem ter que se preocupar em me enfrentar. E ainda assim o que
ele fez? Ele me caçou como um animal.

Isso me atinge então.

Morte passou todo esse tempo me procurando em vez de destruir


novas partes dos Estados Unidos.

Pela primeira vez desde que fiz um acordo com os irmãos da Morte,
de repente vejo a situação com clareza. Alterei os motivos de Thanatos.

— Você parou de me perseguir, —acrescenta ele, a acusação


impregnando sua voz.

— Tive que, —eu digo. — Você teria matado meu filho se eu não o
fizesse.

— Seu filho, —ele repete, e posso ouvir a pergunta em sua voz. O


Cavaleiro pode não saber muito sobre os humanos, mas acho que ele sabe
o suficiente para ficar confuso com a linha do tempo aqui. A última vez
que ele me viu, eu não parecia grávida, mas agora tenho um filho, que tem
bem mais de um ano.

Agora que o assunto de Ben surgiu, minhas preocupações ressurgem.

— Meu filho está ... ele está ... ele está ...? Morto? É a pergunta que eu
não deveria fazer, mas surgiu de qualquer maneira.

Os olhos de Thanatos são duros. — Não. —Ele faz uma careta. —


Seu filho está vivo.

— Ele está vivo? —Meus joelhos querem ceder.

Vejo tanta auto-aversão no rosto do Cavaleiro.

Porque ele não levou a alma do meu filho, eu percebo. A morte poderia ter
feito isso—e claramente ele acha que deveria—mas não o fez. Porque
aquela alma significava algo para mim.

Deixo escapar um pequeno ruído e então estou diminuindo a distância


entre nós.

Morte me lança um olhar confuso, mas antes que ele possa fazer mais
do que isso, agarro seu rosto. Sem pensar duas vezes, dou um beijo áspero
e agradecido em seus lábios. Posso sentir o gosto do choque dele.

Thanatos não tem tempo de reagir antes que eu me afaste.

— Obrigada, —eu digo, minha voz rouca. Ainda mantenho seu rosto
cativo, e ainda estamos a apenas alguns centímetros de distância, e
estamos perto o suficiente para ver seu desejo crescente. O olhar entra em
guerra com sua própria culpa, mas seus olhos vão para meus lábios, e vejo
um pouco mais dessa culpa recuar.

— Obrigada, —digo novamente, atraindo seu olhar de volta para o


meu.

Sua mandíbula aperta, mas ele balança a cabeça sutilmente.

Deixo cair minhas mãos e me afasto. Essas paredes que construí para
mantê-lo fora, caíram lá por alguns segundos, mas mesmo agora posso
senti-las se erguendo novamente. Não preciso colocar essas paredes de
volta no lugar, considerando todas as coisas, mas não posso evitar. No ano
passado, elas se tornaram confortáveis.

Eu respiro fundo. — Então, —eu digo, limpando minha garganta. —


Como você encontrou a mim e meu filho naquele quarto de hospital? —
Eu pergunto, tentando trazer a conversa de volta para algo civilizado.

— Sinto os vivos, mas só consigo ver através dos olhos dos mortos e
dos moribundos, —diz Thanatos. — Quando seu filho começou a morrer,
—eu estremeço com a palavra, — ele me convidou para entrar. Olhei
através dos olhos dele, e foi então que vi você. Voei o mais rápido que
pude e acredito que você conhece o resto da história.

E agora que sei que meu filho está seguro, posso realmente respirar
com facilidade. Tudo o que resta agora é navegar neste novo caminho em
que fui colocada.

Volto minha atenção para a casa.

Uma calçada elaborada ladeada por sebes cortadas em formas


agradáveis leva à enorme casa. Rosas cor-de-rosa pálidas sobem em uma
parte da casa e parece haver mais delas em um jardim próximo. Entre toda
a folhagem está uma estátua oxidada de um menino tocando flauta, os
depósitos de cálcio ao longo de seu corpo sugerem que já foi uma fonte,
embora não pareça estar funcionando no momento.

Uma cabeça de leão é montada acima da entrada e uma sala circular


equipada com um vitral fica em um lado da casa. E depois, é claro, estão
as outras janelas, que são tão grandes que parecem não ter fim.

Nunca estive perto de uma casa tão magnífica.


— Devo lhe mostrar lá dentro? —Morte pergunta.

É aí que percebo que enquanto eu estudava a casa, ele estava me


estudando, me observando com aqueles olhos que veem demais.

Minha atenção se volta para ele. — Nós vamos ficar aqui? —Eu
pergunto, só para ter certeza.

— Isso desagrada você? —Thanatos responde.

É o lugar mais deslumbrante que já vi.

Estou preso na teia do seu olhar. Não tenho ideia do que ele faria se
eu contasse, sim, esse lugar me desagrada. Provavelmente me arraste para
dentro de qualquer maneira, o pagão.

Mas isso não me desagrada. Não há muita coisa nessa situação que
me desagrada, exceto o fato de que fui forçada a me separar de Ben e não
tenho ideia de quando o verei novamente. Deixando isso de lado, estou
nervosa com o quanto de mim está bem em ser arrastada por alguma
antiga divindade da morte que está matando o mundo e agora quer morar
comigo.

— Nós realmente vamos fazer isso de novo? —Eu digo, tentando me


livrar da sensação estranha e desconfortável que tenho.

— Você preferiria que eu viajasse incessantemente, forçando você a


nunca parar, nunca descansar? —ele pergunta. — Porque eu preferiria
isso.

— Então por que você não faz isso? —Eu pergunto.

A expressão do Cavaleiro torna-se solene, e talvez um pouco


fervorosa. — Quero ver a expressão que seu rosto faz quando está feliz.
Não sei por que, mas quero. Eu a vi zangada, com ódio, desapontada e
triste—tão triste—Lazarus. Quero ver o que alimenta o fogo em sua alma
e a ilumina por dentro.

Tenho que desviar o olhar dele. Há tanta culpa que coloco a seus pés
que é difícil vê-lo quando sua humanidade se infiltra—e é especialmente
assim quando essa gentileza é dirigida a mim.

Afasto-me do Cavaleiro, tentando colocar distância entre nós. Suas


lindas palavras vão derrubar minhas barreiras mais rápido do que eu posso
suportar me separar delas.

Enquanto subo a entrada em direção à enorme porta da frente, ouço


a Morte atrás de mim e posso sentir aqueles olhos antigos me observando.
Mas ele parece contente em apenas me ver fazer minhas coisas. Só quando
alcanço a maçaneta é que me pergunto sobre os ocupantes da casa.

E agora não estou me sentindo tão ansiosa para entrar.

Sob minha mão, a maçaneta gira, mas não sou eu quem a gira. Ele
escorrega completamente da minha mão quando a porta é aberta.
No início, minha mente não consegue processar o que estou vendo.
Quero dizer, noto os ossos brancos e brilhantes que parecem ser mantidos
juntos apenas por magia, todos os duzentos e poucos deles desafiando as
leis da gravidade. Demora mais alguns segundos para entender que estou
olhando para um esqueleto. Um esqueleto em movimento.

Um grito escapa da minha garganta e, antes que eu possa pensar


melhor, estou chutando a coisa, uma parte primordial de mim querendo
ver aqueles ossos no chão, onde eles pertencem.

O esqueleto cai—não em pedaços, mas como um humano faria. Só


quando atinge o solo é que muitos dos ossos se desfazem.

Morte faz um barulho tsk-tsk atrás de mim. — Isso foi realmente


necessário? —Ele pergunta, dando um passo para o meu lado.

Viro-me para ele e, por um momento, sinto-me como um peixe


boquiaberto, incapaz de encontrar a voz. — Foi necessário que um
homem morto abrisse a porta? —Finalmente consigo falar.

— Era uma mulher. —Thanatos diz isso tão razoavelmente.

Um arrepio percorre todo o meu corpo quando percebo que é isso.


Tudo o que eu estava fugindo agora tenho que enfrentar.

Vou morar com um cara que consegue dar vida a esqueletos, entre outras
coisas.
Não apenas morando com ele, Lazarus, mas transando com ele também.

Meu coração acelera com o pensamento, e sinto-me corar só de pensar


nisso.

Sexo com a personificação da própria morte.

Olho para Thanatos e isso é um erro. Ele é lindo, algo que nunca
poderei esquecer, mas, puta merda, vou ter que dar uma surra nesse cara.
Eu deveria estar brava com isso. Tenho todos os motivos para estar brava.
Mas não estou, e isso é ainda mais repugnante.

Eu me movo para entrar e coloco um pouco de espaço entre nós.

— Ah, ah, —diz Thanatos, eliminando esse espaço. Sua mão cai no
meu quadril e um solavanco se move através de mim com o contato.

— O que você está fazendo? —Eu exijo, olhando para baixo entre nós,
onde sua mão ofensiva está colocada. Não é como se ele nunca tivesse me
tocado antes, mas agora estou pensando em sexo e aquelas mãos parecem
diferentes na minha pele—melhores e mais indesejáveis.

A mão em questão se move para o cabo de uma das minhas adagas.

— Removendo suas garras, —ele responde calmamente, puxando a


lâmina para fora e jogando-a de lado.

— Isso é realmente necessário? —Oponho-me.


Tenho que cerrar os dentes quando ouço o barulho daquele esqueleto
se recompondo e depois pegando a arma. Ele pega a lâmina e recua para
dentro da casa.

— Você veio até mim de bom grado, —ele me lembra.

Eu não posso discutir com isso também.

— Onde estão os donos? —Eu pergunto, olhando em volta para o piso


de mármore claro e os tetos abobadados.

— Recém-mortos.

Eu empalideço.

Morte se inclina tão perto que posso ver as estranhas manchas


prateadas brilhando em seus olhos. São íris não naturais e desumanas.

— Não pareça tão chocada, —diz ele. — Você me viu acabar com
cidades inteiras. Isso não é nada.

— Mas você nunca exigiu que eu comesse a comida deles ou dormisse


em suas camas, —eu respondo.

— Não, nunca exigi, —ele concorda. — E ainda no ano passado você


ainda tirou dos mortos, não é? —ele diz suavemente. — Você pegou de
seus bolsos e roubou sua comida e, sim, dormiu em suas camas.

— Isso é diferente, —eu digo, tentando me defender. Mas ele atingiu


meu ponto fraco.

Eu respiro fundo. — Onde estão seus corpos? —Eu pergunto.

— Estão sendo cuidados.

Eu franzir a testa. — Eles não vão aparecer como ... —Eu empurro
meu queixo para onde eu vi aquele esqueleto pela última vez. Agora não
está à vista. De alguma forma, isso é ainda mais desconcertante.

— Não, —diz ele solenemente.

Acho que devo pelo menos agradecer que Morte não tenha decidido
ressuscitar os antigos donos. Eu acho que poderia ser uma surpresa
desagradável demais.

Thanatos coloca a mão nas minhas costas (esse toque ainda está
fazendo coisas estranhas comigo) e me leva para dentro de casa.

Tenho vontade de chorar ao observar os móveis de veludo e as


cortinas brancas imaculadas. O piso além da entrada é de uma rica
madeira de castanheiro que parece da cor de açúcar queimado, e foi polido
até brilhar. Há papel de parede pintado à mão que brilha quando a luz o
atinge da maneira certa e um armário de curiosidades cheio de louças de
porcelana. É um mundo totalmente diferente, que parece pertencer a um
tempo antes dos apocalipses.

— Como você sabia que aquele esqueleto era uma mulher? —Eu
pergunto enquanto nos movemos pelo corredor.

— Hum? —Morte diz distraidamente.

— O esqueleto lá fora—aquele que eu disse ser um homem. Você me


corrigiu sobre seu gênero. Como você sabia que já foi uma mulher?

Ele olha para mim. — Kismet, há muitas coisas que eu sei.

E tenho a incômoda vontade de aprender todos eles.

— Isso não responde à pergunta, —eu digo.

Thanatos me lança um de seus olhares longos e prolongados. Estou


me acostumando com eles. Quero dizer, nunca ficarei cem por cento
confortável com a forma como o cavaleiro passa o tempo olhando para
mim, mas esta é a única parte do nosso relacionamento que tem sido
consistente: ele olhando para mim por muito mais tempo do que é
socialmente permitido normal.

— Você vê ossos e nada mais, —ele finalmente diz. — Eu vejo a


imagem residual da alma que os usou.

Morte nos conduz para um dos quartos, embora meu foco ainda esteja
nele.

— Para que você possa ver através dos olhos dos moribundos—e dos
mortos—e ver a pessoa cujo cadáver você controla? —Eu digo.
Essas habilidades ... são um aspecto íntimo e desconcertante de seu
poder.

— Você faz com que pareçam duas coisas separadas, —diz Morte, —
mas está tudo entrelaçado.

— Se o que você diz é verdade, então por que você não entende
melhor os humanos? —Eu pergunto.

Quero dizer, a primeira vez que ele me capturou, ele ficou totalmente
perplexo ao pensar que eu precisava de comida, água e uma cama.

Thanatos me lança um olhar perplexo. — Não sei como devo


responder a isso. Acho que ver algo não é o mesmo que compreendê-lo ou
vivê-lo.

Desvio o olhar, só por um momento, mas minha atenção se prende ao


que nos rodeia. Embora eu tenha investido totalmente nesta conversa, a
Morte me levou a ... parece errado chamar isso de quarto. É grandioso demais.
Quase desconfortavelmente assim. O lustre acima de nós é feito de cristal,
e o chão abaixo de nós é coberto por um tapete enorme que parece
importado de algum lugar distante. Vários vasos dourados repousam em
alcovas, as janelas são emolduradas por pesadas cortinas e a cama tem um
edredom combinando. Todo o quarto é decorada em tons de vinho tinto e
dourado e é tão impressionante quanto impessoal.
Eu realmente nunca estive em uma casa tão luxuosa.

— Este é o seu quarto, —diz Morte. Ele olha ao redor antes de seu
olhar retornar ao meu.

— Você gosta disso? —ele pergunta.

— Isso importa?

Sim, seus olhos parecem dizer.

É chocante pensar que esse ser poderoso e quase onipotente possa


realmente se sentir vulnerável perto de mim.

— Nunca dormi em um quarto como este, —eu digo.

Ele franze a testa e sinto a necessidade de esclarecer.

— Esta é a melhor casa de que qualquer uma em que já fiquei.

Juro que o vi relaxar um pouco.

Saio do seu lado então, atravessando o quarto. O homem atrás de mim


está me deixando nervosa, mas também o belo quarto com seus enfeites.
Posso sentir sujeira e fuligem na minha pele, e se este quarto fosse senciente,
aposto que torceria o nariz para mim com desgosto.

Dou uma espiada no armário, curiosa para saber o que vou encontrar
lá. Roupas femininas preenchem o espaço, todas bem penduradas ou
dobradas nas prateleiras. Os tamanhos aparecem em todos os lugares, mas
há tantas roupas que parecem abafar o fato de que o tamanho é
inconsistente.

— Isso é seu, —Morte diz suavemente.

Espere. O que?

Eu me viro, meus olhos arregalados. — O que você quer dizer com


isso é meu?

Thanatos inclina a cabeça para baixo, seus olhos olhando para mim
de uma forma que parece ao mesmo tempo tímida e intrigante. — São
itens que achei que você poderia gostar.

Roupas que ele pensou ...?

— Você quer dizer que não são coisas do antigo dono?

Thanatos balança a cabeça suavemente.

Se não são coisas do dono … então ele deve ter reunido esses itens de
outro lugar e trazido para cá.

Minhas sobrancelhas se unem enquanto estudo o cavaleiro. A morte


tem um olhar cauteloso, ele, entretanto, não parece envergonhado ou
possessivo, ou qualquer outra coisa que indique que é de fato estranho
encher um armário cheio de roupas femininas em preparação para o cativo
que você pretende sequestrar.
Respiro fundo quando, de repente, isso me atinge.

Ele está tentando cuidar de mim, como uma espécie de bom parceiro.
Eu zombei de sua primeira tentativa, então agora ele encontrou a maior
casa com as coisas mais bonitas para compensar.

Não se atreva a se comover com isso, Lazarus. Não faça isso.

Apesar do conselho muito sábio do meu cérebro, eu descongelo—só


um pouco.

— Você percebe que não é assim que os humanos fazem as coisas, não
é? —Eu sondei.

— Eu não sou humano, —diz ele.

Eu olho para longe dele, meus olhos pousando na cama encostada na


parede adjacente. O edredom vermelho vinho grita sexo decadente, e meu
coração acelera ao vê-lo.

— Eu deveria dormir lá? —Eu pergunto.

— Se você quiser, —diz Thanatos, e novamente, suas palavras


acordam meu corpo. E ele provavelmente está pensando em como escolhi
dormir do lado de fora da última vez que ele me levou, mas estou
pensando no peso dele sobre mim e na tarefa que me foi dada.

E se … ? E se eu fosse até ele agora e o beijasse como fiz antes? E se ele me


beijasse de volta? E se eu o puxasse para aquela cama e o deixasse nu e sitiasse seu
corpo letal?

Acho que ele iria querer isso. Sei que faria isso—posso me odiar por
isso, mas faria.

E ainda assim meu pulso está trovejando e estou em pânico com a


ideia de iniciar algo e é uma loucura poder machucar esse homem uma e
outra vez, mas estou com medo de realmente me expor para ele.

Mais tarde. Farei meu movimento mais tarde.

Sou tão covarde.

— Posso ter ... posso ter um momento? —Eu digo.

— Não sei o que isso significa, diz Morte.

— Quero ficar sozinha, —esclareço.

— Se você tentar fugir ...

Lanço-lhe um olhar intenso. — A última coisa que pretendo fazer é ir


embora.

Aqueles olhos estranhos e lindos dele vasculham meu rosto, e quanto


mais ele demora em minha expressão, mais quente seu próprio olhar fica.
Essa coisa entre nós que vem crescendo há um ano está crua e dolorida e
pronta para entrar em erupção.
Depois de alguns segundos concisos, Thanatos inclina a cabeça e, sem
outra palavra, ele me deixa com meus pensamentos.

Capítulo 39
Sugar Land53, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

EU OLHO PARA MINHAS MÃOS.

Fecho os olhos com força. Não tenho respostas. Não há como


entender o que os irmãos da Morte querem que eu faça, ou o que eu quero,
ou qualquer outra coisa.

Tudo o que sei é que seria muito fácil cair nos braços da Morte. Ele é
lindo e, apesar de todas as suas mortes, ele não é mau. Provavelmente é
isso que mais dói na minha cabeça. Ele levou minha família, quase levou
meu filho, vai tentar levar todo mundo, mas seu coração não é mau.

53
Sugar Land é uma cidade localizada no estado norte-americano do Texas, no Condado de Fort Bend. A cidade
foi fundada em 1838, em meio a um latifúndio cujo principal vegetal cultivado era a cana de açúcar. Esta é a origem do nome d a cidade. Sugar, em
inglês, significa açúcar.
Eu vi maldade.

Esfrego o rosto e respiro fundo, meu estômago revirando enquanto


meus pensamentos giram e giram.

Gostaria de dizer que a determinação é o que eventualmente me tira


do meu novo quarto, mas a verdade é que sinto o cheiro de algo delicioso
e sinto uma fome terrível.

Quem está cozinhando? Certamente não é a Morte? Isso seria uma


surpresa demais.

Além disso, onde fica essa cozinha?

Saio do meu quarto apenas para me perder ... e depois perdê-lo


novamente.

Quem precisa de tanto espaço?

Ainda não descobri onde fica a cozinha quando chego à sala de estar.
Paro quando vejo Morte parado diante de uma ampla janela, seu olhar
fixo em algo do lado de fora.

Engulo em seco ao ver aqueles ombros maciços e grandes asas


dobradas.

Neste momento, de costas para mim e com uma postura tão imóvel,
ele parece aqueles anjos de pedra que às vezes vejo nos cemitérios. Aqueles
que parecem dolorosamente tristes. A coisa toda me faz tremer.

— Estou de volta, —digo como forma de saudação.

As asas de Morte sobem, só um pouquinho, essa é a única indicação


que ele dá de que o surpreendi. Quando ele gira, seu olhar é de alguma
forma guardado e dolorosamente exposto.

Ele me observa por vários segundos. — Estou surpreso que você


queria ficar sozinha, —ele admite. — Estou sozinho há tanto tempo que
passei a detestar isso. Presumi que o mesmo fosse verdade para você.

— Era, —eu admito.

Antes de Ben, eu pensava que iria enlouquecer em algum lugar


daqueles trechos desertos da rodovia.

A mandíbula de Thanatos se aperta de emoção. Ou talvez ele


simplesmente não esteja acostumado com ninguém que se relacione com
ele. Esse é outro tipo de solidão—quando suas verdades mais profundas
estão trancadas e ninguém além de você pode ouvi-las.

— Era, —ele ecoa, deixando isso penetrar. Depois de um momento,


ele dá um passo à frente, e posso dizer pelo brilho em seus olhos que a
Morte está prestes a revelar mais segredos.

— A única coisa que me ajudou foi repetir nossas interações, —ele


admite. — E quando acabaram, imaginei sua voz e mil conversas
diferentes que poderia ter com você. Eu ansiava por ouvir meu nome sair
de seus lábios. Eu ansiava por ver seu rosto. Para tocar sua pele.

Minha respiração fica presa com suas palavras. Enquanto eu passei o


último ano me lembrando de todos os motivos pelos quais a Morte era
horrível, ele estava fazendo isso.

Ele me olha. — Agora que você está aqui, no entanto, tenho um medo
profundo e permanente de que isso não seja real—que você desapareça
durante a noite. E apesar de todo o meu poder, não consigo me livrar desse
sentimento.

— Não vou a lugar nenhum, —eu o lembro.

Thanatos me lança outro de seus longos olhares. Tenho certeza de que


ele ficaria ali o dia todo me olhando se eu deixasse.

Mas então ele me surpreende.

— Você deve estar com fome, —diz ele, avançando.

— Eu estou, —eu digo com cautela.

O Cavaleiro chega ao meu lado e pega minha mão.

Fecho os olhos com a sensação. Não acho que nenhum de nós tenha
sido realmente tocado há muito, muito tempo, o que torna cada contato
físico muito mais potente. E com as palavras da Morte ainda ecoando em
minha mente, sei que esse simples toque também deve significar muito
para ele.

— Venha, minha adversária caída, —diz ele suavemente, puxando


minha mão. — Tenho um jantar de vitória para participar e você é minha
convidada de honra.

Abro os olhos para olhá-lo, mas ele já está avançando, conduzindo-


me por esta casa enorme que ele claramente conhece.

Há quanto tempo ele está preparando este lugar para mim?

Thanatos me leva até uma grande sala de jantar que perdi porque fica
no extremo oposto desta mansão. Como o resto da casa, é ricamente
mobiliada, com outro lustre de cristal e um espelho dourado pendurado
acima de uma enorme lareira. A mesa em si é uma coisa enorme. Conto
doze cadeiras espalhadas ao redor, a superfície escura da madeira polida
até brilhar.

Sobre ela estão vários pratos fumegantes e dois talheres—um na ponta


da mesa e outro adjacente a ela.

Morte solta minha mão, deixando-me entrar na sala. Meus dedos


arrastam pela superfície lisa da mesa. Olho de volta para o Cavaleiro,
apenas para encontrá-lo me observando, seus olhos me acariciando como
um toque.
— Como você aprendeu a cozinhar?— Eu pergunto, gesticulando
para os pratos colocados. Tecnicamente, isto é muito mais do que apenas
cozinhar. Cada prato de comida parece estar perfeitamente servido e os
arranjos da mesa foram organizados com muito cuidado.

Morte ergue o queixo. — Isso a agrada? —ele pergunta curioso.

Aí está essa pergunta novamente.

— Isso importa? —Eu sussurro, com medo de dizer a verdade a ele—


que isso supera qualquer expectativa que eu tivesse.

— Você já sabe a resposta para isso, Lazarus, —ele diz.

Eu não consigo desviar o olhar dele. Ele é fascinante.

Ele acena em direção à mesa.

— Vá em frente, —ele finalmente diz.

Eu vou. Vou até o assento oferecido e, após um momento de


hesitação, puxo a cadeira e me sento.

Só então Morte se move, caminhando silenciosamente em direção ao


lugar restante no final da mesa. Só agora percebo que o encosto da cadeira
foi cortado.

O Cavaleiro puxa o assento, suas asas erguendo-se um pouco para que


ele possa se sentar confortavelmente nele.
Há uma semana, eu estava começando a pensar em viajar para o
exterior com Ben. Há dois dias eu tinha certeza de que meu filho morreria.
Um dia atrás eu negociei minha vida pela dele. E hoje fui levada pelo anjo
da morte pela segunda vez na minha vida.

E agora estou sentada à mesa com ele, prestes a fazer uma refeição
como se tudo isso fosse normal.

Olho para a distribuição de alimentos. Tem pão e queijo, mas também


tem salada e macarrão cremoso e pimentão recheado e frango empanado.

— Quem fez isso? —Eu pergunto.

Os olhos de Morte deslizam para uma porta próxima. Está fechado,


mas enquanto observo, a maçaneta gira e um esqueleto sai, carregando
uma garrafa aberta de vinho.

— Você só pode estar brincando comigo, —digo enquanto a coisa se


aproxima de nós. — Uma pessoa morta fez essa comida? Diga-me que
estou errada.

O Cavaleiro me lança um olhar curioso. — Você não está.

Meu olhar se move sobre os pratos. — Como? —Como um esqueleto


irracional fez tudo isso?

Enquanto falo, o esqueleto põe vinho no meu copo. Em seguida, ele


se move para Morte e enche seu copo antes de colocar a garrafa sobre a
mesa.

Thanatos levanta a mão e gesticula para a criatura. — Eu lhes digo o


que devem fazer, e eles fazem. Mas confesso que não entendo como a
comida humana é preparada, ou ... —ele faz uma careta diante dos pratos
em questão, — o que você acha particularmente atraente nela.

Enquanto ele fala, o esqueleto se retira silenciosamente, saindo pela


porta pela qual entrou.

— Bem, normalmente, a comida é atraente porque, você sabe, nos


mantém vivos, —eu digo, um pequeno sorriso puxando meus lábios.

— Diz a mulher que não pode morrer, —interrompe ele.

Minha atenção volta para os pratos à minha frente. Gostaria de não


ter apetite. Gostaria que o que Thanatos acabou de admitir fizesse algum
tipo de diferença, mas a verdade é que não comi muito nos últimos dias e,
agora, estou disposta a experimentar comida feita por um cadáver.

— Vai ter gosto normal? —Eu pergunto.

— Espero que tenha o mesmo sabor da comida feita pelos vivos, —


diz Thanatos.

Deixei escapar um suspiro trêmulo.

Tudo bem. Vamos fazer isso.


Pego a massa primeiro e coloco um pouco no meu prato. Depois de
um segundo de hesitação, adiciono um pouco ao prato de Morte também.

— O que você está fazendo? —Seus olhos curiosos estão fixos em


mim.

— Servindo você, —eu afirmo. — Afinal, foi você quem me convidou


para o seu 'jantar da vitória'.

Seus olhos estão duros, mas ele ainda parece terrivelmente satisfeito,
embora eu imagine que isso tenha mais a ver com a ideia deste jantar de
vitória do que com a comida em si.

Acabo colocando um pouco de tudo em nossos pratos enquanto o


cavaleiro se endireita em seu assento, me observando com uma expressão
tortuosa e calculista.

Quando termino, sento-me na cadeira e examino a mesa. — Então é


para isso que o poderoso Thanatos está usando seus poderes sombrios:
fazer com que os revenants cozinhem para ele, —eu digo.

Ele me dá um sorriso sombrio. — Você preferiria que eu simplesmente


deixasse os mortos saquearem as cidades e matarem os vivos? —ele
pergunta. — Guerra fez um grande nome para si mesmo fazendo
exatamente isso.

Sinto meus olhos se arregalarem de choque. O Gerra que conheci—e


admito que não o conheço muito bem—parece um homem razoável,
mesmo que ele tenha ‘me jogado debaixo de uma carroça’54 ao me forçar a
concordar com esta situação. Ele definitivamente não parece alguém que
faria algo tão ... horrível e perverso.

— Você não sabia, —Morte afirma, lendo minha expressão. —


Garanto a você, cada um dos meus irmãos matou regiões inteiras do
mundo. E ao contrário de mim, a maioria de suas ações foram cruéis e
cheias de sofrimento.

Procuro o rosto de Thanatos, procurando a mentira. Em vez disso,


encontro uma verdade inquietante.

E enviei Ben com eles.

— Meu filho está bem?

As sobrancelhas de Morte se juntam com a mudança de assunto. Ou


talvez ele esteja simplesmente confuso com a minha pergunta.

— Ele está vivo, —afirma. — E saudável. Não consigo sentir mais do


que isso.

Meu corpo cai para trás pesadamente contra a minha cadeira. Ben não
está morrendo. Se ele está bem ou não é outra questão.

54
A expressão original e ‘jogar alguém debaixo de um ônibus’: quer dizer é criticá-lo, culpá-lo ou puni-lo, principalmente para evitar culpa ou obter
vantagem. Pessoas assim abaladas ficam normalmente em uma posição vulnerável. Nesse caso quando Guerra sugeriu que ela seduzisse a Morte.
Forço meus medos a se afastarem. Conheci esses homens e aprendi
seus motivos. Talvez eles já tenham sido monstruosos, mas tenho que
confiar que não o são mais. Eles têm em mente os melhores interesses da
humanidade. Se não o fizessem, teriam deixado meu filho morrer e a
Morte e eu continuaríamos como inimigos.

Apesar de minhas próprias garantias, ainda tenho que respirar fundo


algumas vezes.

Thanatos estuda minha expressão e juro que ele está percebendo cada
pequeno tique como se fossem palavras em uma página.

— Para onde meus irmãos estão levando seu filho? —Thanatos


finalmente pergunta.

Em resposta, pressiono meus lábios.

Morte continua a observar minhas feições. — Você acha que eu quero


machucá-lo? Que procuro causar-lhe dor? Procuro não causar dor a
ninguém. Sou o fim disso, kismet.

Ele ainda não percebeu que não é preciso cortar alguém para fazê-lo
sangrar. Tire o que eles têm de mais precioso e eles sofrerão.

A morte se indireita em seu assento. — Então, meus irmãos tem um


plano. Não consigo imaginar o que eles esperam ganhar com você se
rendendo a mim.
As palavras de Guerra ecoam na minha cabeça.

‘Seduza a Morte’.

Eu mantenho meus pensamentos para mim. Mas então os segundos


se estendem, e a única coisa que os pontua é um som distante e arrastado
que deve ser os servos esqueléticos de Morte. O tempo todo, o Cavaleiro
me encara.

— É falta de educação encarar, —eu finalmente digo.

— Eu não me importo com seus tabus humanos tolos, —ele responde.


E ele continua encarando. E olhando..

Eu quero olhar em todos os lugares, menos nele, mas se ele não vai
seguir a etiqueta social, então foda-se, eu também não. Então ... decido o
encarar até me fartar.

Quase instantaneamente, percebo meu erro. Ele é totalmente perfeito.


Como algo criado a partir dos meus anseios mais profundos. Aquele
cabelo preto está me chamando para passar os dedos por ele, e aqueles
olhos tristes e solenes estão implorando por uma conexão que só eu posso
dar. E aqueles lábios ... como anseio por saboreá-los novamente.

Quanto mais olho, mais meu sangue parece esquentar. Eu não posso
evitar. Não fui feita para resistir a homens tão bonitos.

Mas não é apenas sua beleza. Minha atenção volta para aqueles olhos
antigos, que guardam todo tipo de segredos. Quanto mais olho, mais
pareço cair em suas profundezas. E quanto mais ele olha para mim, mais
aquecido fica seu olhar. Foda-se, mas meu pulso está acelerado e esta sala
de jantar cavernosa de repente parece pequena demais.

Eu me inclino para trás e suspiro enquanto olho para ele. Era para
parecer cem por cento irritado, mas sai soando sem fôlego e melancólico,
droga.

O olhar de Thanatos passa pelo meu rosto. — O que? —ele exige.

— Só agora estou percebendo que terei que conhecer você, —digo.

Ele arqueia uma sobrancelha enquanto me observa.

— E você inevitavelmente vai me conhecer, — acrescento.

Os olhos da Morte aquecem ainda mais, embora sua expressão


permaneça ilegível.

Eu continuo. — Vou descobrir todos os seus pequenos hábitos ...

— Eu não tenho hábitos, —ele interrompe.

— Ah, você tem hábitos. Tenho um mapa marcado com esses hábitos,
—eu digo.

Ele franze a testa. Se eu não o conhecesse melhor, diria que Thanatos


não gosta da ideia de ter tendências humanas. Pobre tolo. Ele tem algumas
revelações desagradáveis chegando quando percebe que toda essa coisa de
me levar cativa é uma gigantesca experiência humana.

— E, —eu continuo, — você vai descobrir sobre todas as pequenas


coisas irritantes que eu faço. E vamos enlouquecer um ao outro.

Ele junta os dedos. — Você realmente acha que eu procurei por você
tanto tempo para me assustar com algumas 'coisinhas irritantes'? Fiquei
como um louco te procurando. Duvido que enlouqueça saboreando você.

Como quero fazê-lo se arrepender dessas palavras, mas, ao mesmo


tempo, elas me deixam sem fôlego, desequilibrada.

— Mesmo assim, —eu digo, — nós temos sido péssimos um com o


outro ... e agora devemos viver juntos. Então, —eu respiro fundo, — acho
que devemos expor todas as nossas queixas.

— Queixas? —Ele ergue as sobrancelhas.

— Você me conta todas as coisas que odeia em mim, —digo, — e eu


direi todas as coisas que odeio em você.

Ele franze a testa. — Isso é ridículo, Lazarus. Não odeio nada em


você.

Levanto minhas sobrancelhas. — Realmente. —Chame-me de cético,


mas não estou acreditando.
Morte me observa de perto. — Este é o seu jogo, Lazarus. Então jogue
e acabe logo com isso.

Eu o encaro. — Odeio sua própria existência.

Essas palavras estão ali, no fundo da minha garganta, desde que o


conheci.

Os olhos de Thanatos brilham.

— Você nem percebe o que está dizendo. Não há vida sem morte, —
diz ele com veemência. — Então, a menos que você prefira ser uma pedra
ou alguma outra coisa inanimada, acho que minha existência combina
muito bem com você.

Depois que ele termina de falar, o silêncio se estende entre nós.

— É a sua vez, —eu digo.

Ele olha para mim. — Eu não a odeio.

— Claro que não.

— Ao contrário de você, kismet, eu realmente não, —diz ele, e agora


parece cansado.

Eu procuro seu rosto. Depois de um momento eu digo: — Ainda é a


sua vez.

Ele dá um longo suspiro. — Tudo bem, Lazarus. Não gosto quando


você me machuca.

Pego minha taça de vinho e tomo um longo gole. Não sei dizer se suas
palavras são imensamente satisfatórias ou dolorosas. Ambas, eu acho.

Eu coloco meu copo na minha frente. — Sinto muito, —eu digo.

Morte não diz nada, embora eu possa sentir sua confusão.

— Por machucá-lo, —eu esclareço.

Seu olhar procura o meu, e ele respira fundo.

— O que mais você odeia em mim? —ele pergunta depois de um


momento.

— Odeio que você tenha tirado minha família de mim. Odeio que
você tenha tirado meu filho de mim ...

— Ele ainda vive, —interrompe Morte.

Talvez, mas a verdade é que ele não está mais comigo.

— Odeio que você tenha matado tantas pessoas—que eu tive que ver
tudo. Eu odeio ter me sentido obrigado a impedi-lo. Odeio que, para
impedir você, tenha tido que roubar dos cadáveres, convencer os céticos e
me forçar a suportar ser ferida e morta repetidas vezes. Odeio que minha
vida tenha se tornado uma longa lista de sacrifícios.

— O quê mais? —ele pergunta.


Pego minha taça de vinho e me acomodo em minha longa lista. —
Odeio que você seja estranhamente gentil, —eu admito, — e odeio que
você não sinta alegria em sua tarefa. Isso faz você parecer tão nobre e faz
com que odiá-lo seja muito mais difícil.

Talvez seja minha imaginação, mas juro que o rosto dele se suavizou
com a minha admissão.

— Mais alguma coisa? —ele pergunta.

Levo a taça aos lábios, tomando outro gole do vinho caro. — Odeio
que você seja tão bonito. —Mais para mim do que para ele, acrescento:
Mal consigo pensar direito.

Eu expiro, sentindo-me estranhamente aliviada.

O calor voltou aos olhos do Cavaleiro.

Seduzir Morte.

— Odeio me sentir atraído por você, —ele admite.

Agora eu abaixo meu copo.

Quando ele vê meu choque, Thanatos diz: — Certamente isso não


pode ser nenhuma surpresa para você?

Sempre vai me surpreender que esse... esse... esse anjo monstruoso


esteja interessado em mim, a garota que nunca superou sua cidade natal e
nunca deixou uma marca.

— Estava melhor antes de conhecê-la, —diz ele. — Havia poucos


pensamentos em minha cabeça além de viajar e vencer. Não perdia tempo
pensando na cor dos seus olhos ou na expressão selvagem que você usa
quando está determinada. Nunca reparei na maneira como seu corpo se
movia quando você lutava.

Eu engulo e sei que tenho uma expressão em meus olhos, a mesma


que os animais selvagens usam quando sabem que estão presos.

Eu me forço a desviar o olhar dele, voltando minha atenção para o


meu prato. Só este homem poderia me fazer esquecer que sou uma mulher
faminta sentada antes de um banquete.

Largando meu vinho, levanto meu garfo e dou uma mordida na


massa. Há um momento em que o molho e o macarrão me enojam - onde
tudo que consigo pensar é que um cadáver fez isso - mas então o sabor
bate e tem um gosto perturbadoramente bom. Dou outra mordida, e mais
outra, e logo não me importo muito com quem fez isso, porque estou
faminto.

Posso sentir os olhos da Morte em mim. Tenho certeza de que pareço


uma selvagem. Estou além de me importar.

Finalmente, eu levanto para tomar fôlego.


Ao meu lado, Thanatos parece um pouco horrorizado—do qual tenho
muito orgulho—e também muito curioso.

— Você não vai comer? —Pergunto-lhe.

— Comida dos vivos? —ele diz, seu olhar fixo na minha boca.

Minha boca se curva com suas palavras. — Essa é uma maneira


estranha de colocar isso, —eu digo. — Você come comida dos mortos,
então?

— Sou uma divindade da morte. Não preciso de nenhum sustento.

Eu o observo—desde seu cabelo escuro e ondulado até suas feições


esculpidas, até as asas negras e a camisa que parecem devorar a luz.

— Você já experimentou comida? —Eu pergunto.

— Qual seria o motivo?

Ele não fez isso. Ele nunca mordeu uma maçã madura, nem girou
macarrão no garfo, nem comeu pão com manteiga derretida.

Já faz algum tempo que sei que a Morte não tem necessidades
humanas, mas nunca—nem uma vez—provou comida?

Eu abaixdei meu garfo.

Ele ainda está me observando com curiosidade ardente quando me


levanto da cadeira e me aproximo dele. Ignorando Thanatos por um
momento, pego uma fatia de pão. Pego a garrafa de azeite que está ali
perto e despejo um pouco num pratinho que parece ter sido preparado para
esse fim.

Mergulho o pão no azeite e depois dirijo-me ao Cavaleiro. Pão e óleo


são um dos alimentos mais básicos, parece um bom lugar para começar.

Eu respiro fundo. Aqui vamos nós.

Antes que ele possa fazer qualquer coisa, sento-me em seu colo. Ouço
a inspiração profunda de Thanatos, mas então suas mãos caem em meus
quadris.

— Se você tentar me esfaquear ...

— Com o quê, a faca de manteiga? —Eu digo provocativamente. Mais


sério, acrescento: — Deixei isso para trás, Thanatos.

Seus dedos pressionam minha pele ao som de seu nome.

Eu ergo o pão, uma linha de óleo deslizando pela crosta escamosa. —


Quero que você experimente isso.

Morte faz caretas. — Talvez eu prefira uma boa facada.

Eu seguro uma risada. Só este homem diria uma coisa tão ridícula.

— Isto é pão e azeite. Os humanos comem isso há milhares de anos.


É bom. E eu quero que você experimente.
Seu peito sobe e desce. — Por que? — ele pergunta. —Por que você
se importa?

— Há um ano, você me forçou a experimentar como é a morte. Talvez


seja hora de você experimentar um pouco de vida, para variar.

Ele hesita, parecendo meio convencido.

— Isso não vai te matar, —eu digo.

— Uma verdade infeliz, —ele murmura. — Com a morte, estou


confortável. Isso ... eu não estou.

Estou tentando muito, muito mesmo não rir do fato de que esse
homem—que foi flechado repetidamente por mim—tem medo de um
pouco de pão.

— Este é o seu jantar de vitória, —eu o lembro. — E os jantares são


feitos para serem comidos.

Ele franze a testa.

— E, —eu acrescento, — se você tentar, —eu hesito, meu olhar caindo


para seus lábios, — eu vou beijar você.

Seus olhos estrelados piscam. Num instante, sua mão se fecha sobre a
minha e ele leva o pão que levo aos lábios. Ele olha para ele por um
momento, carrancudo.
— Tudo em mim se revolta contra isso, —ele admite.

— Então você deve realmente querer aquele beijo. —Digo um pouco


sem fôlego. Estou tentando fazer pouco caso, mas por dentro me sinto
crua.

Os olhos de Morte encontram os meus. Sim, eles parecem dizer.

Enquanto nossos olhares estão presos, ele leva o pão até a boca. Sem
desviar o olhar de mim, ele dá uma mordida.

Isso parece quebrar o feitiço.

Seu rosto se contorce em uma careta, e eu o vejo engasgar um pouco


enquanto mastiga desajeitadamente, depois força a mordida.

— É horrível, —ele suspira.

Não consigo evitar, começo a rir—rio tanto que meu corpo inteiro
treme com isso.

— Na verdade não é, —eu digo, me acalmando.

Seus olhos voltaram para o meu rosto e, apesar de parecer um pouco


enjoado, ele me encara como se nunca tivesse visto nada parecido comigo
antes.

— Faça isso de novo, —diz ele em voz baixa.

— Fazer o que? —Eu pergunto.


— Rir.

Eu dou a ele um sorriso confuso. — Eu não posso fazer isso apenas


de prontidão. Me conte uma piada e eu posso ...

Ele olha para meus lábios um pouco mais. — Hmmm … —Em vez de
contar uma piada, ele pega minha mão e tenta outra mordida no pão—e
começa a engasgar novamente.

— Eu não consigo comer isso, —ele admite. — É ... atroz.

Ele pega o vinho que seu servo esquelético serviu para ele,
provavelmente para eliminar o gosto, mas é vinho que ele está bebendo,
não água, e este também é um gosto adquirido.

Thanatos quase cospe o líquido, apenas parando pressionando o


punho na boca. Atrás daquele punho, seu rosto parece doentio.

Sua garganta funciona repetidamente antes que ele consiga engolir


tudo.

— Demônios, mulher, —ele ofega, seu rosto se contorcendo com o


gosto. — O que é isso?

Mas agora estou rindo de novo. Balanço a cabeça, incapaz de contar


a ele.

A Morte está fazendo o possível para limpar a boca com a mão,


enquanto me observa atentamente. — E você quer que eu acredite que a
vida é agradável, —ele murmura.

Com uma última careta, ele abaixa a mão, os olhos fixos em mim, e
tenho quase certeza de que ele só deu uma segunda mordida no pão para
me ouvir rir novamente. Esse pensamento me deixa sóbria, mesmo
quando um calor indesejável se espalha por mim.

Pego o copo dele e bebo. Quero dizer, é um bom vinho e ele não vai
gostar.

Ele fica maravilhado comigo. — Isso é realmente vinho? —ele


pergunta com ceticismo.

Eu abaixo o copo dos meus lábios. — Sim, realmente é.

Morte é a imagem da desilusão. — Tenho visto e ouvido muito sobre


vinho ao longo dos tempos. Não imaginei que teria um gosto tão ...
decepcionante.

— Aposto que o pão também foi uma decepção.

— Não inteiramente, —diz ele. Ele estende a mão e pega o vinho de


mim, deixando-o de lado.

Eu dou a ele um olhar perplexo, sem saber onde ele quer chegar com
isso.
Em vez de responder, sua mão vai para a parte de trás da minha
cabeça. Thanatos me atrai para ele e é apenas alguns segundos antes de
meus lábios tocarem os dele que me lembro.

O beijo.

Então sua boca está ali, firme contra a minha. Respiro fundo porque
...

É requintado.

Segurar sua mão era uma coisa, mas ser pega no abraço da Morte,
seus lábios seduzindo os meus—eu tinha esquecido que beijá-lo era uma
experiência completa.

Minha boca se abre um pouco, e ele parece estar seguindo meu


exemplo, seus próprios lábios se separando. Minha língua pressiona a dele
e os dedos de Morte cavam em meu cabelo e ele está me segurando como
se não planejasse me soltar. Sua língua acaricia a minha e ele me beija com
toda a selvageria que sua reputação parece prometer.

Sou sugada para baixo.

Minhas mãos se levantam, segurando seu rosto, bochechas, e eu só


prometi um beijo, posso parar com isso. Deveria parar com isso.

Eu não paro.
Eu me jogo totalmente no beijo. Posso sentir o gosto do vinho na
língua da Morte, e tenho certeza de que ele pode sentir o gosto do vinho
na minha, mas ele não está engasgando—na verdade, ao que tudo indica,
ele parece gostar bastante da coisa, afinal.

A mão dele que ainda está no meu quadril se aperta e ele se esfrega
contra mim.

Deixo escapar um gemido ofegante quando sinto sua ereção contra


mim.

Ele está ao menos ciente das ereções e da excitação? Aposto que não, não
em nenhum sentido real. Aposto que isso é mais uma coisa de pão e vinho,
onde a Morte sabe, mas na verdade não sabe. Duvido que ele tenha
alguma ideia real do que está fazendo ou por que as coisas parecem assim.

O pensamento me faz sorrir contra sua boca.

— Eu gosto disso, —Thanatos rosna, sua voz áspera.

Eu paro, me afastando um pouco. — De que?

— O sorriso que você me deu enquanto seus lábios estavam nos


meus—e a outra coisa, o som que você fez há pouco

O gemido. Querido Senhor.

Tudo isso deveria estar acontecendo dessa maneira. Estou fazendo


tudo certo, mas de repente ...

Eu me afasto mais dele, minha respiração ofegante e meu coração


disparado como um louco.

Os olhos da Morte ficam semicerrados quando ele olha para mim, e


ele pode não ter nenhuma experiência real com sexo, mas está claro que
ele está louco de desejo. Esse olhar é suficiente para que eu me sinta mais
uma vez como um animal encurralado.

Deslizo para fora de seu colo, balançando um pouco enquanto ganho


equilíbrio. Não durmo bem há várias noites e tudo está me afetando. O
vinho também não ajuda. Eu recuo, mesmo quando meu corpo grita em
protesto.

Thanatos me observa, o desejo em sua expressão se acumula até que


tudo o que resta é um anseio tão profundo que quase posso senti-lo. Ou
talvez seja minha própria alma solitária em busca de conexão, embora a
Morte seja a última pessoa com quem eu deveria encontrá-la.

— Não vá, Lazarus, —ele implora.

Mas eu vou. Eu fujo dele como já fiz tantas vezes antes.

O problema é que tenho um desejo dentro de mim que rivaliza com o


do Cavaleiro. E não estou pronta para enfrentar isso ... ainda não.

Mas terei que fazer isso, e logo.


Capítulo 40
Sugar Land, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

ESFREGO OS OLHOS NA MANHÃ SEGUINTE ENQUANTO ando


pela casa. Não dormi muito bem ontem à noite. Fiquei acordando com a
sensação de que estava esquecendo alguma coisa, só para então lembrar
que essa coisa era Ben.

Mesmo que minha mente saiba que ele se foi, o instinto continua
exigindo que eu siga os mesmos velhos hábitos parentais que tenho
praticado nos últimos seis meses.

Atravesso a sala de jantar, que foi esvaziada da refeição da noite


anterior, e entro numa enorme cozinha industrial, atraída pelo cheiro do
café da manhã. Paro quando vejo vários esqueletos trabalhando
arduamente na cozinha.

Quantos desses revenant existem?

Um deles está fritando ovos em uma frigideira, outro está cortando


frutas. E, ah, Deus, pessoas mortas estão realmente preparando comida e
nunca temi tanto a minha própria fome como agora.

Pelo menos os revenants nada mais são do que ossos. Se eles ainda
tivem carne sobre eles ... acho que não teria estômago para isso.
Infelizmente, há um leve cheiro grudado neles, um cheiro para o qual não
tenho nome, mas deve ser o cheiro das coisas velhas e ressecadas. Isso ou
esta cozinha tem um odor desagradável por si só.

Um dos esqueletos faz uma pausa no trabalho e se vira para mim.


Olho para o servo morto-vivo por vários segundos antes de eu perceber—
eu acho que está esperando por mim.

Eu limpo minha garganta. — Hum, bom dia.

Por que você está dizendo bom dia para o esqueleto, Laz?

— Uh, —eu continuo, — você não teria café, não é?

O esqueleto gira e se dirige para uma prensa francesa que eu não notei
antes.

Eu fico maravilhada.

Isso me entende.

O esqueleto pega uma caneca pendurada em um armário próximo e a


enche com o rico líquido.

Atrás de mim, a porta da cozinha se abre e sinto a Morte um momento


antes de ouvir sua voz profunda.

— Vejo que você começou a cozinhar com meus servos, afinal de


contas, —diz ele atrás de mim.

Eu giro, minha respiração fica presa ao vê-lo. Aqueles olhos escuros


quase me acenam para me aproximar.

É aí que registro que da cintura para cima Thanatos está nu. Sem
armadura, sem camisa. Apenas centenas de tatuagens estranhas e
brilhantes que o banham em luz prateada. Eu respiro fundo com a visão.

Como eu nunca notei isso antes?

Exceto ... Guerra tinha tatuagens assim ao longo dos nós dos dedos.
Só que os dele era vermelho.

Eu analiso as marcações. Eles se parecem com ... linguagem, embora


nunca tenha visto nenhuma, e cobrem cada centímetro de pele, da base do
pescoço da Morte até os pulsos. Pelo que parece, as marcas estranhas
continuam abaixo da cintura de suas calças.

Tento não pensar onde mais essas tatuagens poderiam estar.

— Onde está sua camisa? —Digo sem fôlego, meu olhar ainda preso
em seu peito nu. O cavaleiro é verdadeiramente construído como um deus,
seu físico é fortemente musculoso.
— Em outro lugar, —diz Thanatos.

O olhar da Morte passa por cima do meu ombro e olho para trás,
apenas para ver o esqueleto se aproximando de mim com uma caneca
fumegante de café em uma mão e um creme de porcelana na outra. Atrás
dele, os outros esqueletos ainda estão ocupados trabalhando.

Estendo a mão para pegar o café. Meus dedos roçam os ossos dos
dedos do esqueleto e quase deixo cair a caneca.

Controle-se.

Me firmando, pego o creme, dando um sorriso tenso para o esqueleto,


sentindo como se tivesse enlouquecido.

Enquanto isso, sinto Thanatos observando tudo com uma quantidade


perversa de prazer, embora talvez eu esteja apenas presumindo que ele
gosta do meu desconforto.

Despejo um pouco de creme na bebida e devolvo o creme, orgulhosa


de que minha mão não treme. Já vi e fiz muitas coisas perturbadoras, mas
é isso que me assusta. Um esqueleto.

Praticamente afasto Thanatos do caminho para escapar dos revenant,


empurrando a porta e indo para a sala de jantar. Somente em algum
momento desde que entrei na cozinha, servos revenant também entraram
nesta sala. Dois deles estão começando a preparar mais travessas de
comida, enquanto outro limpa as cortinas que já parecem impecáveis.
Pelas janelas noto outros dois esqueletos cuidando dos arbustos que
cercam a casa.

Fico olhando para todos eles com horror absoluto.

— Não me diga que há algo de que minha Lazarus de coração


selvagem está com medo, —Morte diz, estudando meu rosto quando ele
se aproxima de mim.

Minha Lazarus de coração selvagem. Um arrepio percorre meu corpo e


digo a mim mesma que é pela visão e não por suas palavras.

— Faça-os parar, —eu digo, sem me importar se eles são ou não


capazes de se ofender. Isto está errado.

— Não ousaria, —responde Thanatos com o mesmo fervor.

Viro-me para encará-lo, meu café meio esquecido.

— Você não se lembra, kismet? —ele diz, inclinando a cabeça. — Você


me disse que eu não sabia como cuidar de você. Então eu aprendi.

Todo o ar parece escapar dos meus pulmões com a sua admissão.


Tinha assumido isso, mas para ter isso confirmado ...

Meu olhar percorre os esqueletos mais uma vez e agora, em vez de ver
o horror de sua existência, vejo ... vejo um Cavaleiro tentando provar seu
valor para uma mulher que o desprezava.

— Eu esperava que você gostasse, —continua ele. — Quero que você


se sinta confortável. Te dei um motivo para fugir da última vez. Desta vez,
quero lhe dar um motivo para ficar.

Minha garganta balança.

— Há quanto tempo você está preparando este lugar? —Pergunto


baixinho.

— Essa casa em particular? —ele pergunta, olhando em volta de nós.


— Um mês. Mas houve outras casas que encontrei e preparei e outros
criados que me ajudaram ao longo do caminho. Passei nosso tempo
separados acumulando todas as ... necessidades que você possa precisar:
roupas, comida e uma moradia digna de uma rainha.

Meu Deus. Enquanto isso, eu me ressentia muito dele. Quer dizer, eu


tinha um bom motivo para isso: ele estava fazendo da minha vida um
pesadelo. Mas ainda.

Apoio a mão no encosto de uma cadeira perto de mim, afundando um


pouco nela.

Os olhos do cavaleiro percorrem minha forma. — Quer sentar? —


Thanatos aponta para um sofá desmaiado em uma sala adjacente.

Distraída, vou até lá, sento e coloco meu café em uma mesa lateral
próxima. O Cavaleiro me segue. Só quando ele se senta ao meu lado é que
percebo que esse móvel pode muito bem ter sido um dos itens que o
Cavaleiro levou para esta casa, a forma dele permite que Morte se sente
facilmente enquanto acomoda suas asas.

Quero perguntar sobre aquelas asas, que são tão grandes que caem no
chão atrás dele como a cauda de um vestido. Quero perguntar sobre as
marcas brilhantes também, aquelas para as quais meus olhos ficam
mergulhando. Descubro que quero muito tocá-los e tenho que apertar as
mãos para reprimir o desejo.

Morte me pega olhando e, envergonhada, forço meu olhar para longe.


Posso sentir seus olhos curiosos em mim.

— Como esses esqueletos sabem o que fazer? —Pergunto, acenando


para um deles passando apressado. Qualquer coisa para me distrair do fato
de que quero desvendar esse homem—e lamber suas tatuagens enquanto
faço isso.

— Já disse a você, kismet, embora a alma possa ter desaparecido, ainda


há uma imagem residual da pessoa que existiu.

— O que isso tem a ver com limpeza? —Eu pergunto. Até ontem eu
nunca simplesmente sentei ao lado do Cavaleiro e briguei com ele. É quase
tão desestabilizador quanto observar o trabalho desses esqueletos.
— Você está fazendo perguntas que não têm respostas humanas
agradáveis e ordenadas, Lazarus. Os mortos estão limpando porque eu
mando.

— Mas eles sabem como limpar e você não. —Isso é estranho, certo?
— Eles têm um pensamento superior?

— Seus espíritos se foram, kismet, —ele diz suavemente. — O que resta


não é autoconsciente. Mas seus ossos ainda lembram o que suas mentes já
sabiam.

Ele olha para mim enquanto eu processo isso. E então ele continua a
olhar para mim, mesmo quando o silêncio se estende entre nós.

— Ainda é rude ficar encarando, —eu digo, pegando meu café mais
uma vez.

— Ainda não me importo, —responde Thanatos suavemente.

Viro-me para encará-lo um pouco melhor. — No que você está


pensando quando olha para mim? —atrevo-me a perguntar.

— Que eu poderia olhar para você por mil anos e nunca ficar
entediado, —diz ele sem perder o ritmo. — Estou acostumado a ver a
essência de uma pessoa, não suas características, e considero isso um dado
adquirido.

Dou-lhe um pequeno sorriso, embora ele tenha me perturbado.


— E quando eu olho para você, —ele continua. — Gostaria de poder
sentir completamente sua alma da mesma forma que posso sentir dos
outros humanos. Tenho certeza que acharia isso estranho e adorável. Isso
... você ... é um mistério para mim, e não estou acostumado com mistérios.

Fico ali sentada, sem saber o que dizer. Porque não tenho nada de
recíproco a dizer, exceto, talvez, que, sob seus poderes, Thanatos também
é estranho e adorável.

— Venha, —diz o Cavaleiro de repente, levantando-se do sofá. Ele


estende a mão para mim. — Nunca mostrei a você o lado de fora da casa.

Pego sua mão e deixo que ele me leve para longe daquele sofá de
desmaiado55. Atravessamos a sala e passamos por uma porta que se abre
para um amplo pátio nos fundos. A morte está quieta enquanto ele me
conduz, suas tatuagens brilhando ao sol.

Uma piscina brilha ao longe, e essa deveria ser a característica mais


atraente neste dia quente, mas meus olhos se fixam no extravagante jardim
situado na esquina da casa.

Agora sou eu quem está puxando sua mão enquanto nos conduzo até

55
Em inglês fainting couch. Por que eles chamam isso de sofá de desmaio? O que é um sofá para desmaiar versus uma
espreguiçadeira e um sofá-cama? A história por trás do nome desmaio? Parece que eles tiveram que se contentar em desmaiar em um sofá normal .
Especificamente, estudos feitos sobre o período descobriram que as mulheres da elite vitoriana desmaiavam regularmente porque os seus
espartilhos eram demasiado apertados.
lá. Eu nos conduzo pelas fileiras de canteiros elevados, observando cada
um deles. Quando noto as árvores frutíferas correndo ao longo dos fundos
do jardim, vou até elas.

Paro diante de uma macieira com galhos carregados de frutas. Há um


balde de metal na base da árvore, como se alguém estivesse pensando em
colhê-lo em breve.

— Era isso que você queria ver? —diz o Cavaleiro atrás de mim,
inspecionando a árvore como se ela guardasse algum segredo decifrável.

— Estou com fome, —digo a ele.

— Meus servos fizeram ...

— Sei o que seus servos prepararam para o café da manhã, —digo a


ele, suprimindo um estremecimento ao pensar. — Mas eu queria algo um
pouco … —menos tocado pela morte, — mais palatável.

O olhar de Thanatos se estreita. — Passei meses procurando os


empregados mais qualificados quando se trata de preparar comida.
Garanto a você, kismet, eles podem atender a todas as suas necessidades.

— Eu sei, —digo suavemente. Isso não me impede de ainda recuar ao


pensar naqueles ossos tocando a comida que como.

Meu olhar voa sobre as maçãs. Localizando uma madura, estendo a


mão e a pego.
— Sabe, —digo, olhando para ele, — nosso relacionamento começou
com uma maçã.

Este pedaço de fruta estúpido e inócuo. Estava lá levando Adão e Eva


à tentação, e agora aqui estamos, fechando o círculo. Da primeira suposta
queda da humanidade até a última.

Se, é claro, devemos acreditar na Bíblia.

Uma parte de mim quer jogar as frutas o mais longe que puder e
queimar todo o pomar. Em vez disso, limpo a maçã na minha camiseta e
dou uma mordida.

Afinal, é apenas uma maçã.

Depois de engolir, ofereço a Morte. — Quer provar?

Ele faz uma careta. — Não, a menos que você tenha outro beijo para
me subornar.

Abaixo a fruta, inclinando um pouco a cabeça. — Você realmente iria


querer isso? —Eu pergunto.

Seus olhos se movem para os meus, brilhando com intensidade. — Eu


iria querer mais, kismet. Mas vou me contentar em aceitar o que você
oferece.

Mantenho meu olhar focado nele. — Acho que você não sabe o que
está pedindo, Thanatos.

— Talvez eu não, —diz ele, sua expressão magnética. — Mas eu sei


das coisas que os humanos fazem quando não conseguem ficar longe uns
dos outros.

Ele não se aproxima de mim, mas parece que não há distância entre
nós e nenhum ar para respirar. Não ajuda que ele ainda não tenha
encontrado sua camisa, e suas tatuagens brilhantes estão fazendo com que
pareça particularmente sobrenatural.

— E é isso que você quer? —Eu pergunto novamente baixinho, meu


batimento cardíaco começando a acelerar.

Não acredito que estamos falando sobre isso. Ou que o homem que
acha que o pão não presta está aberto à intimidade.

— Já lhe disse, kismet. Gostaria de mais. Sua carne promete muito,


mas para mim é apenas o começo.

ESTAMOS FORA POR um longo tempo. Comecei a colher muito mais


maçãs do que preciso, mas literalmente não há mais ninguém por perto
para apreciá-las, então tento não me sentir muito culpada.
Morte arrastou um banco de pedra e bateu a coisa contra uma árvore
próxima. Ele descansa nele, com as costas apoiadas no tronco da árvore,
uma perna esticada à sua frente e a outra dobrada na altura do joelho. Este
é o mais confortável que já o vi. É mais do que apenas sua postura. Nós
dois passamos a manhã conversando sobre coisas que não giram em torno
do destino da humanidade ou da tensão sexual entre nós.

Ao contornar uma segunda árvore agora, começo a cantarolar—e


depois a cantar—“Scarborough Fair56”, a música que desperta lembranças
antigas e dolorosamente doces. Era uma música que minha mãe
costumava cantar enquanto lavava a louça ou pendurava roupas para
secar, com a qual alguns de meus irmãos e eu nos harmonizávamos.

Não sei há quanto tempo estou cantando quando ouço o arrastar de


uma bota.

Olho por cima do ombro e cambaleio um pouco quando vejo o


Cavaleiro parado logo atrás de mim, com o olhar fixo na minha boca.

— Então isso é música, —ele diz maravilhosamente, como se tivesse


acabado de dar um nome ao som.

Acho que essa é a ironia de Thanatos. Ele existe desde sempre e parece
ser uma fonte de sabedoria quando se trata de humanos, mas o Cavaleiro

56
Simon & Garfunkel - Scarborough Fair (from The Concert in Central Park) - https://www.youtube.com/watch?v=4Ccgk8PXz64
só é homem há pouco tempo.

Dando-lhe um olhar hesitante, eu aceno.

Seu olhar percorre meu rosto. —Não pare,— ele sussurra.

Calor sobe em minhas bochechas.

Eu realmente não quero cantar agora que tenho platéia.

— Por favor, —acrescenta Morte. Ele ainda está olhando para os


meus lábios.

Quero dizer a ele que as pessoas não fazem perguntas desse tipo, mas
ele sabe disso. E ele parece genuinamente ... comovido pela música. Então,
limpo a garganta e, depois de vacilar por mais um momento ou dois,
começo a cantar novamente, voltando-me para a árvore para poder voltar
a colher frutas e fingir que não tenho um público ávido.

Só que não fico sozinha por muito tempo.

Thanatos contorna a árvore, seu olhar percorrendo meus olhos, meus


lábios, meu cabelo. Ele está olhando para mim como se eu fosse a Oitava
Maravilha do Mundo57 e não tenho defesa para o desejo flagrante em seu

57
Oitava Maravilha do Mundo é uma hipérbole comumente utilizada na cultura ocidental para descrever a qualidade de
pessoas, organizações, construções ou ideias comparando-as às sete maravilhas do mundo, uma lista de proeminentes construções humanas de
Antiguidade Clássica que os antigos gregos puderam admirar.
rosto.

Minha música termina e fica em silêncio por um longo momento.

Morte balança a cabeça, ainda parecendo possuído. — Isso foi ...


opodanao.

A palavra estrangeira provoca uma reação instantânea. Sinto-me


banhado pela luz, como se ela acariciasse minha pele e passasse os dedos
pelos meus cabelos. Acho que entendi o significado da palavra, mas o
cavaleiro traduz para mim mesmo assim.

— Lindo.
Capítulo 41
Sugar Land, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

PRECISO COMEÇAR A CUMPRIR MINHA PROMESSA aos


Cavaleiros.

Seduzir a Morte.

Esse era o acordo.

Saio do banho frio que preparei para mim, pegando uma toalha
próxima e enrolando-a em volta do meu corpo. Poças de água aos meus
pés quando atravesso o banheiro e entro no meu quarto, o mundo além
das janelas está escuro.

O enorme armário se abre e eu avisto todas aquelas roupas


cuidadosamente penduradas lá dentro. A curiosidade me puxa. O que
exatamente o Cavaleiro—ou seus servos revenant—pensaram em escolher
para mim? Pegando uma lanterna próxima, vou até ela.

A chama tremula no recipiente de vidro, fazendo as sombras


dançarem ao longo dos diversos materiais.
Meus dedos vagam pelas roupas, tamanhos e estilos por todo lado.
Minha mão faz uma pausa quando chego a um vestido preto, que parece
ser justo. Eu o retiro, notando que uma fenda sobe pela lateral até o meio
da coxa.

É perfeito para minhas necessidades.

Parece que vai caber também. O agarro e o coloco. O vestido é um


pouco apertado, e estou tão acostumada com roupas largas e práticas que
o puxo distraidamente, tentando torná-lo menos apertado.

Há uma dúzia de pares de sapatos guardados no armário também,


mas apenas dois deles chegam perto do meu tamanho, um é uma bota de
montaria até o joelho e o outro é um par de chinelos surrados. Nenhum
dos dois realmente combina com a roupa.

Olho para os meus pés descalços.

Dane-se. Vou descalça.

Também no armário há várias gavetas rasas que contêm algumas joias


aleatórias, incluindo uma única pulseira de ouro e uma delicada
tornozeleira de corrente—ambas eu coloquei também. Não sei dizer se
esses itens pertenciam a quem viveu aqui antes de mim ou se—assim como
as roupas—eram bugigangas que a Morte mandou seus servos recolherem.

Acho que isso realmente não importa de qualquer maneira. Os mortos


não precisam mais deles, embora eu precise.

Entrando no banheiro mais uma vez, encontro um estoque de


maquiagem em uma das gavetas.

Isso é mais complicado.

A maquiagem usada não pode me machucar mais do que qualquer


outra coisa, mas ainda assim é um tanto desanimador. Felizmente,
encontro alguns batons e uma sombra dourada que parecem intocados e,
em vez disso, uso-os.

O resultado final … me tira o fôlego. Olho para o meu reflexo. Faz


muito, muito tempo que não uso maquiagem. Grande parte dos últimos
dois anos tem sido sobre sobrevivência—a sobrevivência de Ben e a da
humanidade—que eu não tinha pensado muito na aparência física. Mas
agora minha pele brilha onde coloco a sombra e meus lábios estão rosados.
Eu até adicionei um toque de ambos às minhas maçãs do rosto, e o efeito
geral é …

Pareço feminina. Linda e feminina.

Nem mesmo meu cabelo úmido e despenteado pode tirar isso, embora
eu faça o possível para deixar meu cabelo o mais apresentável possível.

Espero que isso funcione.

Não consigo acreditar que estou realmente tentando seduzir alguém,


muito menos a Morte. Sou melhor arqueira do que sedutora.

Com aquela conversa encorajadora, eu saio do meu quarto, forçando-


me a encontrar o Cavaleiro antes que eu possa me acovardar novamente.

Thanatos já está na sala de jantar, esperando por mim. Ele tem um


prato cheio de comida à sua frente e uma taça de vinho, mas duvido que
algo entre em seus lábios.

Não, a menos que eu possa convencê-lo a tentar novamente.

Vale a pena arriscar. Vale a pena tentar tudo isso. Comer. Dormir. Seduzir.
Salvar o mundo.

Basta um pouco de convencimento.

Assim que ele me vê, seus olhos ardem com algum fogo interior. Mas
então seu olhar passa por mim, do meu rosto maquiado ao meu vestido
justo, até meus pés descalços, e uma fome toma conta de sua expressão.

Oh Deus, parece que ele quer me devorar.

Talvez tenha sido uma má ideia, afinal.

Me preparo e entro na sala como se estivesse indo para uma batalha.


Não sou a única. Em algum momento entre a última vez que o vi e agora,
Thanatos encontrou sua camisa e sua armadura. Ele parece pronto para
liderar um exército e derrotar seus inimigos.
Agora ou nunca.

Passo pelo meu assento e vou até o dele. Deixando o prato de lado,
subo na mesa e sento onde deveria estar a comida. Esta noite, eu sou o
prato principal.

É verdade que isso não é tão drástico quanto sentar no colo dele, como
fiz ontem à noite, mas eu não estava planejando me deixar levar.

Esta noite eu estou.

— Sentar em mesas não é violar alguma regra humana arbitrária? —


Morte diz com um torcer de lábios. Ele parece absolutamente encantado
com a ideia.

Em vez de responder, pego seu garfo. Pegando uma batata escaldada


de seu prato, eu a enfio na boca, tentando não pensar na entidade que fez
o prato.

Coloco o garfo de volta no lugar e, depois de um momento, ponho um


pé, depois o outro, no colo de Morte.

Quebrar as regras de etiqueta é realmente divertido. Acho que poderia


me acostumar com isso.

Thanatos olha para minhas pernas. Muito lentamente, ele move a


mão para uma das minhas panturrilhas, descansando-a ali. O tecido preto
do meu vestido escorregou, revelando minha pele nua.
— Sempre me surpreenderá ver você resistir ao meu toque, —ele
murmura, olhando para onde sua mão pálida toca minha pele.

— Oh, seu toque faz coisas comigo. —Não sei o que me dá para
expressar esse pensamento, mas as palavras saem antes que eu possa
pensar duas vezes sobre elas.

O olhar de Morte se volta para meu rosto, enquanto sua mão


tentadora desliza pela minha perna.

Ele não tem ideia do que está fazendo.

Pego o garfo da Morte de volta e espeto outra fatia de batata, tentando


ignorar minha ansiedade crescente.

— Como está a comida? —Ele pergunta, seu olhar penetrante em


mim.

— Ainda não encontrei nenhum osso nela, muito bom. —Estou


apenas meio brincando. Na verdade, estou com mais do que um pouco de
medo de que o polegar de alguém apareça em um dos pratos.

A mão de Thanatos continua subindo pela minha coxa, mudando


meus pensamentos de um assunto perturbador para outro. Ele deve saber
quão íntimo é seu toque, ele deve ...

De repente, Thanatos tira as mãos das minhas pernas, mas apenas


para poder me agarrar pela cintura e me puxar para seu colo.
Deixei escapar um pequeno grito, meu garfo escorregando da minha
mão e caindo no chão. E então estou de volta onde estava ontem à noite.

O rosto da Morte está tão próximo que posso ver aquelas estranhas
manchas prateadas em seus olhos escuros como a noite e como suas
pupilas se dilatam com a minha proximidade. Sua armadura fria e
inflexível me morde, e posso sentir o cheiro esfumaçado de olíbano e mirra
exalando dele.

Muito lentamente, ele levanta a mão e envolve minha nuca. Ele me


puxa para ele.

Morte tem uma expressão faminta e predatória no rosto.

Ele vai me beijar.

Só que ... ele não faz isso.

Ele traz minha orelha para sua boca. — Ontem à noite conversamos
sobre todas as maneiras como você me odiava, —diz ele. — Esta noite é a
minha vez de escolher o jogo.

Eu estou ainda em seus braços.

Ele se afasta de mim para poder me olhar nos olhos. — Chega de


dançar com as palavras, Lazarus, —diz ele. — Quero que suas paixões e
suas verdades sejam expostas. Eu lhe farei perguntas e você falará comigo
claramente.
— Este é o seu jogo? —Eu digo, cética. Acho que não gosto do que ele
tem em mente.

— Sim, —diz ele com prazer.

Suas mãos se acomodam em meus quadris, um de seus polegares


acariciando o material macio ali. — Diga-me o que você sente quando
olha para mim.

Minha garganta aperta. Tudo bem, eu oficialmente odeio este jogo.

Tecnicamente, dizer a verdade deveria ser fácil. Guardo todas as


respostas para essas perguntas dentro de mim. Infelizmente, enterrei
minhas verdades sob tantas mentiras convenientes que tenho medo de
desenterrá-las.

— O que eu sinto agora quando olho para você? Ou quando o


conheci? —Estou enrolando. Eu sei que estou enrolando. Mas Deus, eu não
quero admitir nada disso.

— Tudo isso.

Claro que ele quer tudo isso.

Meus olhos mergulham em sua armadura e traço um dedo sobre o


esqueleto e a mulher que ele está abraçando intimamente.

— Quando coloquei os olhos em você pela primeira vez ... —Faço


uma pausa. Porra, eu não quero fazer isso, — Pensei que você era o homem
mais bonito que eu já tinha visto.

Aí. Consegui, apenas um pouco da minha alma morreu no processo.

Os olhos de Morte têm um brilho feroz. — Isso … é uma coisa boa?


—ele pergunta curioso.

Dou uma risada porque a beleza é realmente uma coisa boa? Não sei

— Isso me faz querer você mesmo quando não deveria, —eu admito.

— Me quer? —ele ecoa.

Dou uma olhada para ele, tentando ao máximo ignorar aquela beleza
autoritária dele. — Você sabe o que eu quero dizer.

— Você está dançando com suas palavras de novo, —ele murmura,


afastando uma mecha de cabelo preto do rosto. — Gostaria da verdade
nua e crua—despojada de todas as suas suposições humanas.

Eu suspiro. Deus, ele realmente vai me fazer soletrar isso.

— Você é tão irritantemente bonito que, embora eu tenha odiado você,


sempre desejei tocar e beijar você ... —Deixei minhas palavras morrerem,
petrificada por continuar contando a ele toda a verdade.

Thanatos se inclina para a frente, esperando o resto da frase. Maldito


seja por ser perspicaz o suficiente para perceber que eu estava omitindo
parte disso.

Murmuro um palavrão baixinho e depois me viro, pegando a taça


cheia de vinho do cavaleiro. Tomo um longo gole de álcool antes de
colocá-lo de volta na mesa. Estava pronta para a sedução, não estava
pronta para ser confrontada com essas questões que cortam as minhas
partes mais reservadas.

Você não precisa respondê-las, sussurra uma voz interior covarde. Você
poderia simplesmente apressar as coisas. Um ou dois beijos o fariam esquecer.

O problema é que—como a maioria das pessoas sabem—a sedução


não é apenas física. É mental também. Isso faz parte da sedução tanto
quanto prová-lo e provocá-lo. Acontece que é a parte para a qual estou
menos preparada.

Meu olhar cai para os lábios de Thanatos. — Ansiava por remover


esta armadura, tocar suas asas e passar meus lábios sobre sua carne nua.
—Eu paro antes de mencionar qualquer outra coisa.

Os olhos de Morte ficaram encapuzados. — Então faça isso, kismet.

Eu recuo um pouquinho.

Faça isso?

Morte fica muito quieta. Esperando.


Estendendo uma mão hesitante, meus dedos tocam uma das asas
aveludadas que se erguem sobre seus ombros. Morte suga uma respiração
áspera, mas permanece imóvel.

Odeio que, desde que o conheci, eu queira fazer isso. Mesmo nos
meus momentos mais sombrios, ainda havia a curiosidade e o desejo
estranho e perverso de senti-lo, meu inimigo.

Continuo acariciando sua asa, paralisado. As penas pretas são


surpreendentemente macias. Sei disso por meio de toques anteriores com
eles, mas ainda me surpreende.

Encaro as penas pretas enquanto passo meus dedos sobre elas. — Elas
são ... lindas, —eu digo.

Meus olhos encontram os dele. Algo se move em sua expressão.

Ele está certo, eu tenho dançado em torno da verdade sobre nós.

Nunca desviando o olhar, Thanatos desafivela uma de suas ombreiras


e a deixa cair no chão. Então ele remove a outra, a armadura caindo com
um barulho pesado. Seu peitoral é o próximo, depois suas braçadeiras.
Embora ele pareça calmo, posso ver seus dedos trabalhando
freneticamente para desfazer os fechos.

Minhas mãos se movem para seu peito. No momento em que minhas


palmas afundam em seus peitorais, eu o sinto estremecer. Seu olhar pisca
para o meu e vejo a necessidade em seus olhos.

Voltando-se para os protetores de braço, ele arranca o resto, as fivelas


quebrando e o couro rasgando. Ele joga tudo de lado.

Minhas mãos alisam seu torso até as bordas da camisa. Thanatos pega
o material preto, e já posso dizer que ele pretende arrancá-lo com tanta
selvageria quanto sua armadura.

— Espere, —eu digo, segurando sua camisa com mais força. — Deixe-
me fazer isso. —Minhas bochechas coram enquanto falo.

Morte faz uma pausa, então solta o pano, recostando-se em sua


cadeira, embora seus olhos estejam um pouco cautelosos.

Eu puxo o material escuro. Espero que ele prenda nas raízes das asas,
mas o material desliza facilmente. Percebo então as fendas nas costas da
camisa que abrem espaço para suas asas; eles cortam a camisa até a bainha
inferior.

Morte é tão alto, mesmo sentado, que tenho que me levantar para tirar
a camisa preta por cima de sua cabeça e de seus braços. Uma vez livre, eu
o jogo entre a crescente pilha de itens descartados.

Eu olho para baixo, para Thanatos, em seu peito nu e tatuagens


brilhantes.

Faça isso, ele me disse. Beije, toque e pegue.


Me abaixo mais uma vez em seu colo, sentindo seus olhos em mim.
Minha própria atenção se move para seu torso.

Se o rosto da Morte é o de um herói trágico, seu peito é o de um


guerreiro. Faixas grossas de músculos se curvam ao redor de seu corpo,
seu torso afinando até uma cintura estreita.

Estendo a mão novamente, desta vez para traçar uma de suas


tatuagens brilhantes. Meu dedo formiga um pouco, como se houvesse
magia apenas em traçar a forma do símbolo.

Thanatos faz um barulho de dor com o contato.

— Mais, Lazarus, —ele sussurra.

Coloco minhas duas mãos em sua pele, deixando-me descobrir o


formato de seus ombros e braços. Eu tremo um pouco. Nunca estive com
alguém que se sentisse assim. Ele parece talhado em pedra.

Passo a mão sobre seus músculos abdominais, cada um claramente


definido. Logo, tocar não é o suficiente. Eu não estava mentindo quando
disse que queria beijar sua carne.

Me inclino. No momento em que meus lábios tocam sua pele, ele


geme.

Ele segura a parte de trás da minha cabeça, segurando-me levemente


contra sua pele. Tão perto dele, ele cheira como o incenso que queima em
sua tocha, só que agora tenho que me perguntar se o cheiro veio da própria
fumaça ou se é uma parte mais inata dele.

Minha boca percorre vários símbolos brilhantes.

Não posso acreditar que estou realmente fazendo isso.

Dou outro beijo em sua pele, desta vez, lambendo um pouco sua pele.

Morte suspira. — Não me diga que poderíamos estar fazendo isso o


tempo todo em que persegui você, —diz ele.

— Nós nunca saberemos, —eu respiro contra ele.

Ele fecha os olhos e inclina a cabeça para trás. — Mas eu tenho você
agora, —ele murmura, acariciando meu cabelo. Parece que ele está
tentando se tranquilizar.

— Você pode me tocar também, —eu digo. Quer dizer, eu sei que ele
já está me tocando, mas há toque e depois há toque. Estou oferecendo a ele
o último.

Seus olhos se abrem e ele inclina a cabeça para baixo para olhar para
mim. — Onde? —ele diz, sua voz áspera.

Ah, isso mesmo. Ele prefere respostas mais literais.

Eu estudo aquelas estranhas sardas prateadas em suas íris. —


Qualquer lugar.
Ele sustenta meu olhar por vários segundos antes de seus olhos
descerem para o resto de mim.

Thanatos tira a mão do meu cabelo e passa as pontas dos dedos pelas
minhas maçãs do rosto e depois desce até meu queixo.

— Como eu queria ouvir essas palavras saírem de seus lábios, —ele


admite, sua voz áspera pelo desejo.

Apesar de suas palavras, ele está se contendo. Praticamente posso


sentir seu corpo tremendo com sua contenção, e imagino que seja porque
os lugares que ele deseja tocar estão escondidos.

Pressiono a palma da mão dele, que ainda segura meu rosto. Por um
momento eu me inclino para o toque. Quando sinto o toque frio do metal
contra minha carne, afasto sua mão para inspecionar o que é.

No dedo ele usa aquele estranho anel, aquele que tem a moeda fixada
com o rosto da Medusa.

Eu movo seu anel para frente e para trás. — Qual é a história por trás
disso? —Eu pergunto. A esta altura descobri que tudo que adorna o
Cavaleiro tem um significado mais profundo.

— Obol de Charon, —diz Morte, distraído. Quando minhas


sobrancelhas franzem, ele esclarece: — Uma moeda dos mortos.

— Por que os mortos precisariam de moedas? —Eu pergunto.


— Eles não precisam. É apenas um dos presentes que recebi ao longo
dos séculos.

— Quem deu isso a você? —Eu pergunto, minha voz cuidadosamente


leve.

Isso não funciona.

Thanatos arqueia uma sobrancelha. — Por que você se importa,


Lazarus? Eles já seguiram em frente há muito tempo.

Eu olho fixamente para ele. — Agora é você quem está dançando com
suas palavras.

Morte me dá um sorriso que não chega aos olhos. — Embora eu


consiga me lembrar da forma de sua alma, a pessoa que me deu esta moeda
não tem mais significado para mim do que qualquer outra pessoa ... exceto
você. —Seu olhar é intenso enquanto ele diz esta última parte.

— Não conheci ninguém tão intimamente quanto conheço você, —


continua ele. — Ninguém. Cruzo-me com alguns indivíduos repetidas
vezes durante suas vidas, mas não consigo conhecer os vivos. Assim não.

Não como um homem que vive e respira.

Nós dois nos encaramos.

Não sei quem se move primeiro, mas nossos lábios se chocam, o anel
há muito esquecido. O beijo deveria parecer uma mentira. Deveria parecer
errado, coagido—tudo, menos o que parece.

Como roçar no céu.

Meus lábios se movem avidamente sobre os dele. Eu sabia que ele


estava ansiando por isso, não esperava que o contrário também fosse
verdade.

Thanatos se entrega ao beijo com toda a intensidade que espero dele.


Mas justamente quando sinto que sua paixão vai consumir nós dois, suas
mãos sobem para meu rosto, o embalando. Ele desacelera seus
movimentos e o beijo passa de apaixonado a íntimo.

— Minha kismet, —ele murmura contra meus lábios, — minha


Lazarus.

Aperto os olhos diante das palavras carinhosas, querendo excluir essa


parte—a parte em que ele desliza sob minha pele e afunda em meus ossos.

— Como posso fazer você gostar de mim tanto quanto eu gosto de


você? —ele diz entre golpes de seus lábios.

Eu riria se não achasse o pensamento tão alarmante.

Me afasto e encosto minha cabeça na dele. — Não é tão simples assim.

Nosso beijo pode ter terminado aí, mas o Cavaleiro ainda não
terminou comigo. Ele dá beijos leves ao longo da minha mandíbula,
depois no meu pescoço. Ele move a boca para o meu ombro, seus lábios
arrastando sobre a pele. Seus dedos agarram a alça fina do meu vestido e
ele a puxa, sua boca deslizando sobre minha carne.

Você não está cansada de lutar?

Suas palavras de muito tempo atrás me provocam. Estou cansada, e


não apenas desta batalha entre a Terra e tudo o que existe além dela.

Estou cansada de lutar contra essa atração por ele. Estou cansada de
minha cabeça dominar meu coração. Estou cansada de tudo ser tão
complicado quando não precisa ser.

Este é o apocalipse. Todas as regras foram jogadas pela janela.

Então eu me inclino para frente, pressionando meus lábios em sua


orelha. — Toque-me, —eu exijo. Só que agora, enquanto me inclino para
trás, sou eu quem pega as alças do vestido.

Não estou usando nada por baixo do vestido, então quando o puxo
para baixo, exponho meus seios.

Thanatos respira fundo, em transe, e então ele me puxa para ele, me


levantando um pouco para que meu peito fique mais perto de seu rosto.
Ele me toca então, mas não com as mãos.

Ele inclina a cabeça, dando um beijo na carne macia acima de um dos


meus seios. Ele passa os dentes sobre a pele, e não consigo evitar os
arrepios que surgem ao longo da minha pele.

Passo meus dedos por seus cabelos ondulados, apreciando os fios


sedosos, que são quase tão macios quanto suas asas.

E agora a mão da Morte chega ao meu outro seio. Ele aperta


levemente, seu polegar deslizando sobre meu mamilo, me fazendo ofegar.

Thanatos geme, encostando a testa no meu peito.

— Meu Deus, kismet, você se sente melhor do que as palavras podem


dizer.

Inclino sua cabeça para cima, meus olhos encontrando os dele.

É aqui que eu caio.

Meus lábios se chocam contra os dele. Isso não é como nossos outros
beijos. Talvez a mudança seja da carnalidade que despertei em Thanatos,
ou talvez seja minha. De qualquer maneira, estou livre de minhas
inibições.

Eu me movo descontroladamente contra ele, absorvendo os sons


guturais que ele faz.

Thanatos agarra meus quadris, mantendo a pressão entre nós.

— Lazarus.
Não sei dizer se ele está dizendo meu nome como uma advertência ou
como um apelo. Não tenho certeza se ele também pode. Mas suas mãos
estão me prendendo no lugar e seus olhos estão turvos de desejo.

Eu me esfrego contra ele novamente, mais para incitá-lo do que


qualquer outra coisa.

— O que ... é essa sensação que você provocou em mim? —ele diz, se
afastando um pouco. Ele ainda mantém meus quadris prisioneiros.

Dou-lhe um sorriso malicioso. — Vamos, Thanatos, você deve ter


alguma ideia.

Ele fecha os olhos e inclina a cabeça para trás. Eu o vejo engolir.

— Deus misericordioso. —Ele abre os olhos. — Mas isso não é sexo.

— Não, —eu concordo, — não é.

Me inclino para frente, meus lábios a centímetros dos dele. — Você


sabe o que os humanos fazem juntos. Você ainda quer isso ... comigo?

Há um momento, um único momento, em que me sinto exposta. Ele


poderia me rejeitar agora, eu dei a ele o poder de ...

— Sempre, —ele diz, seu rosto brilhantemente vivo. — Eu sempre vou


querer isso com você.

Sorrio para ele novamente, embora este seja genuíno. É difícil não se
sentir genuíno quando o Cavaleiro o faz de forma tão assumida.

Seus olhos brilham ao ver meu sorriso e ele se inclina para frente,
capturando minha boca novamente. — Seus sorrisos me enredam, kismet.

O beijo de volta, ainda sorrindo como uma idiota contra sua boca.
Thanatos começa a cair nisso, mas não, não, não, não pretendo que
fiquemos aqui.

Interrompendo o beijo, começo a deslizar para fora do colo do


Cavaleiro. Ele me pega, e eu não posso evitar a risada suave que escapa
da minha garganta.

— Confie em mim, Thanatos, para isso você vai me querer fora do seu
colo.

— Eu duvido, —diz ele, com os olhos tempestuosos.

Minhas mãos se movem para suas calças.

— Isso precisa sair, —eu digo.

Pela primeira vez, Morte parece alarmada. É esse único olhar que
dissipa um pouco da minha tensão sobre o que estou prestes a fazer.

— Não seja tímido, —eu provoco.

— Não sou tímido, — diz ele, um pouco ofendido. — O que eu tenho


é seu.
Ele está fazendo muitas promessas bonitas para mim. Não sei se devo
ficar comovida ou alarmada.

Thanatos se levanta, sua expressão ao mesmo tempo curiosa e


desafiadora enquanto abaixa as calças e o que quer que esteja por baixo
delas.

Seu pênis salta livre, já duro e grande. Muito, muito relativamente


grande. Também é adornado com as mesmas marcações que o resto dele.
Puta merda. Seu criador colocou marcas em seu pênis ... e no resto dele,
pelo que parece. Mais glifos brilhantes cobrem seu abdômen e descem por
suas coxas.

Antes que Morte possa começar a tirar suas perneiras e suas botas e a
tirar totalmente as calças, coloco a mão em seu ombro e o pressiono de
volta na cadeira. Eu meio que gosto da ideia de suas calças mantê-lo preso
no lugar.

— Kismet, por favor, diga-me ...

Minhas mãos caem sobre cada uma das coxas da Morte, e suas
palavras são interrompidas, como uma vida interrompida.

Minha bravura desapareceu; meu coração está batendo a mil por hora.
Não sou uma sedutora e sinto minha fachada confiante desmoronando.

Eu me ajoelho.
Um último suspiro antes de cruzar a linha que tracei para mim mesma
há um ano.

Inale.

Expire.

Eu pego seu pênis tenso em minha mão.

A ação faz Thanatos respirar fundo.

— Você sempre pode me dizer para parar, —eu digo, o calor


queimando logo abaixo da minha pele.

Meu núcleo lateja e meus mamilos estão tensos, apesar do fato de que
a Morte é quem está sendo tocado. Estou excitada e envergonhada com o
fato, e de alguma forma isso só parece aumentar tudo.

Eu seguro o olhar da Morte. Suas bochechas estão coradas, ele ainda


parece alarmado, mas também parece frenético por mais.

E ele não diz pare.

Dou um bombeio em seu eixo.

Ele resiste impotente contra mim.

— Lazarus, —ele ofega. — O que você está ...?

— Relaxe, —eu digo suavemente. — Esta é a parte divertida.


E então me inclino para frente e o coloco na boca.

Capítulo 42
Sugar Land, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

THANATOS QUASE SE LEVANTA DO ASSENTO. ELE parece


estupefato.

Isso não vai funcionar.

Gentilmente coloco a mão em seu peito e o empurro de volta para


baixo.

— Lazarus, —ele respira, com a voz dolorida. Seu peito está subindo
e descendo rapidamente. Ele parece frenético e confuso, como se não
tivesse ideia de que um corpo humano pudesse se sentir assim.

Ele nunca transou?

Faço uma pausa, minha boca escorregando de seu pau.

— Você sempre pode me dizer para parar, —eu o lembro.


— Nunca, —diz ele com toda a convicção de um verdadeiro crente.

O canto da minha boca se curva para cima, então eu o coloco de volta


na minha boca. Ele geme, uma das mãos fechando o punho no apoio de
braço.

Não consigo encaixá-lo inteiro em minha boca, então aperto a base de


seu eixo, bombeando no ritmo do deslizamento dos meus lábios—para
cima, para baixo, para cima, para baixo.

Eu o levo tão profundamente quanto posso. Não há muita sutileza no


que faço. Para ser honesta, é tudo o que posso fazer para ignorar meu
reflexo de vômito e a dor surda em minha mandíbula. Apesar do
desconforto, minha boceta lateja pelo Cavaleiro.

Olho para ele enquanto seu pau desliza entre meus lábios. A
respiração de Thanatos ficou pesada e irregular. Uma de suas mãos ainda
está fechada, a outra se move como se fosse me tocar, mas ele a puxa para
trás, em vez disso, agarrando o apoio de braço para salvar sua vida.

Pego a mão dele e levo-a para o meu cabelo.

Você ainda pode me tocar, quero dizer a ele. Meus seios, meu rosto—em
qualquer lugar. Por enquanto, é seu.

Os dedos de Morte mergulham em meus cabelos, sua outra mão se


movendo para minha cabeça também.
Ele olha para mim com admiração.

— O que é ... —Ele interrompe quando outro golpe da minha boca o


deixa sem fôlego. — O que é isto?

Eu sorrio ao redor de seu pênis, e a visão faz com que um arrepio o


percorra.

— A visão de você ajoelhada—entre minhas pernas—kismet, —diz ele


asperamente. — É ... erótico. —Ele diz essa última palavra como se a
descobrisse pela primeira vez.

Não respondo, não quando encontro um ritmo. Aumento o ritmo e


Thanatos agora está me acompanhando, golpe por golpe. Seus dedos
apertaram meu cabelo.

Seus movimentos ficam frenéticos, seu rosto contraído no que parece


ser uma agonia enquanto ele olha para mim, com as mãos em punhos no
meu cabelo.

— Lazarus, algo está ... —Ele amaldiçoa. — Lazarus! —ele berra.

Jatos quentes de esperma cobrem minha boca enquanto ele encontra


sua liberação. Eu engulo, mesmo enquanto Thanatos continua vindo e
vindo, seu corpo se sacudindo a cada impulso.

Posso ouvir sua respiração áspera enquanto suas estocadas diminuem.


Parece que o homem conheceu seu criador. Quase relutantemente, suas mãos
escorregam do meu cabelo.

Minha boca desliza para baixo ao longo de seu eixo mais uma vez, e
então eu o libero, sentando-me de cócoras, meus seios ainda expostos.

Morte, normalmente tão rígida e equilibrada, está esparramado em


seu assento, com o peito subindo e descendo. Ele parece completamente
desfeito. Ele me encara como se eu fosse um espectro.

Limpo discretamente o canto da boca, lambendo uma última gota de


esperma, e me levanto.

Espero ainda parecer confiante porque por dentro estou tremendo.

Acabei de dar um boquete na própria Morte. Tenho que morder o


interior da bochecha para impedir a risada maluca que quer sair de mim.

Puxo meu vestido de volta, deslizando meus braços pelas alças.


Afastando-me do cavaleiro, pego um pão e a garrafa aberta de vinho.
Então, lançando-lhe um último olhar com as pálpebras pesadas, recuo.

Pela primeira vez, não vou fugir do Cavaleiro.

Um conquistador não foge de suas conquistas, ele faz o que bem


entende. E agora, eu desejo vinho e pão e uma cama onde eu possa lidar
com esse latejar agudo entre minhas pernas.

— Lazarus! —Thanatos chama por mim, uma sugestão de alguma


nova emoção em sua voz.

— Boa noite, —eu digo por cima do ombro.

Esta noite foi apenas o primeiro gosto real do que tenho para oferecer.
Pretendo fazer isso excruciante e lentamente. No final, pretendo ter o
Cavaleiro sob meu domínio: corpo, mente e espírito.

Para a humanidade, nada mais servirá.

Capítulo 43
Sugar Land, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

NÃO ME SURPREENDE ENCONTRAR O CAVALEIRO andando de um


lado para o outro na sala de estar da casa na manhã seguinte. Morte
caminhava para cima e para baixo em uma fileira de janelas que dão para
o quintal. Neste momento ele está de costas para mim, suas asas abrindo
e fechando com agitação.

Ao nosso redor, servos esqueléticos se movem pelas salas, carregando


caixotes e outras bugigangas.

— Bom dia, —eu digo.

Assim que ele me ouve, a Morte fica sobrenaturalmente imóvel – até


mesmo suas asas param.

Por fim, ele se vira. Seus olhos primeiro encontram os meus, depois
deslizam para minha boca—a mesma boca que o envolveu na noite
passada. Uma das mãos da Morte se fecha e vejo sua garganta balançar.

Sei que ele está se lembrando do que fiz com ele. Aposto que mesmo
agora ele está tentando descobrir como deslizar aquele pau entre meus
lábios e continuar de onde paramos. Esse é o problema da sedução; uma
pessoa detém muito mais poder do que a outra. E apesar de toda a
onipotência da Morte, sou eu quem está no controle.

— Você foi embora, —ele acusa. É um eco de uma acusação anterior:


quando ele pensa que me pegou, eu corro. Posso ver sua solidão em seus
olhos, junto com sua frustração—ele construiu muros e prisões
improvisadas para me segurar, mas mesmo assim eu escorrego por entre
seus dedos.

— Eu estava cansada, —eu digo.

Um músculo em sua mandíbula salta e seus olhos continuam voltando


para minha boca.
— Estou aqui há horas, relembrando o que fizemos—o que você fez,
—ele admite. — A visão de você à luz de velas, a sensação da sua boca ao
meu redor ... —As asas da Morte se agitam um pouco, como se ele
estivesse se lembrando disso agora mesmo. — Não sabia que o corpo
humano conseguia sentir coisas assim. —Ele solta uma respiração
irregular. — Porque você fez isso?

Eu levanto um ombro. — Eu queria prová-lo.

Aquele músculo na bochecha da Morte treme novamente. — Mas


então você fugiu. —Suas asas se abrem e se acomodam.

Decido buscar um pouco de verdade. — Ainda não estou


completamente confortável ... com você.

Por um instante, suas feições tremem, e juro que o Cavaleiro parece


arrasado. Então desaparece de novo, suas feições limpas. — Como posso
deixar você confortável?

— Isso cabe a você descobrir. —Não vou fazer o trabalho por nós dois.
A sedução já é difícil o suficiente.

Ele dá um passo à frente. — Todos os humanos ... fazem o que você


fez? —Ele pergunta, seu olhar de volta na minha boca.

Posso sentir um rubor subindo pelas minhas bochechas.

— Quero dizer, nem todos eles. —Quero dizer, deve haver alguns
filhos da puta piedosos por aí que não ousariam. O resto de nós, no entanto

Morte dá um aceno lento, processando isso.

— E isso acontece nos dois sentidos? —ele pergunta.

Minhas sobrancelhas se juntam. Não entendo.

— Mas deveria, —diz ele, mais para si mesmo do que para mim. —
Posso fazer você sentir as mesmas sensações que você me fez sentir?

Meus olhos se arregalam. Oh.

— É um pouco diferente, —começo, percebendo como suas feições


são nítidas. Ele está se apegando a cada palavra. — Não tenho a mesma
anatomia, —aponto vagamente para minha pélvis, — mas, de um modo
geral, sim.

Os olhos de Morte se iluminam como um inferno. Ele dá um passo à


frente, a intenção escrita em cada linha solene de seu corpo. — Então você
me provou e me deu prazer, mas não ficou por aqui tempo suficiente para
eu retribuir. Eu teria feito isso. — Outro passo ameaçador em frente. —
Isso eu posso jurar para você.

Pelo olhar em seus olhos, eu acredito nisso.

Ele dá mais um passo. — Você deve ansiar como eu ansiei, como


ainda anseio. Deixe-me aliviar isso.

Aliviar?

O pensamento dos meus dedos em seus cabelos finos enquanto


aqueles lábios macios acariciam meu núcleo – a própria dor da qual ele
fala agora floresce dentro de mim.

— O que você faria se eu dissesse sim? —As palavras saem antes que
eu possa impedi-las.

Por que eu disse isso?

Agora Thanatos avança, com os olhos brilhando. —Deixe-me lhe


mostrar.

Quase tropeço nos próprios pés porque recuo tão rápido.

Eu coloquei um braço para fora. — Espere, espere! —Eu digo.

Com muita, muita relutância, ele faz uma pausa.

Minha mente está acelerada. Eu não queria que ele realmente agisse
de acordo com a questão, mas agora que o pensamento está na minha
cabeça, não consigo tirá-lo.

Quem sabe o que teria acontecido se, naquele momento, dois


esqueletos não tivessem atravessado a sala, erguendo um baú entre eles.

Estava tão concentrada no Cavaleiro que esqueci os mortos se


movendo ao nosso redor, mas agora que olho, vejo sinais deles por toda
parte, empilhando pratos, carregando caixotes, vagando pelos corredores.

— O que está acontecendo? —Eu pergunto.

Thanatos não parece querer responder.

— Fazendo as malas, —ele morde.

Meus olhos se movem sobre eles novamente. — Por que?

— Não vamos terminar nossa conversa anterior? —ele exige.

— Não há nada para terminar, —eu digo.

— Pelo contrário, há a questão de terminar o seu prazer.

Mais calor sobe às minhas bochechas. Ele dá mais um passo à frente,


como se fosse recomeçar.

Levanto minha mão novamente. Oh meu Deus, Thanatos, pare. Eu


não quero isso agora! —Digo isso enquanto minha boceta lateja em
protesto.

— Eu discordo, —ele diz veementemente, como se também pudesse


sentir isso. — Acho que você descobrirá que qualquer experiência que me
falte nisso, ficarei feliz em compensar com entusiasmo.

Ele acha que eu não quero isso porque ele é inexperiente? Quero rir. Ser um
amante generoso supera em muito qualquer inexperiência. É sua
ansiedade que me faz recuar. Posso sentir o poder que arranquei dele
ontem à noite agora escorregando por entre meus dedos, e não estou
disposta a me separar dele.

— Ainda não tomei café da manhã, —digo, jogando fora a primeira


desculpa que consigo pensar. — E seus servos estão fazendo as malas—
por que estão fazendo as malas? O que está acontecendo?

A Morte pode não admitir a derrota tão facilmente, mas posso ver que
minhas palavras o detiveram—por enquanto.

Sua mandíbula aperta. — Você tem seus instintos … e eu tenho os


meus.

— O que isso significa? —Eu pergunto.

— Preciso continuar me movendo. —A confissão sai silenciosa.

Movendo-se ... e matando.

O pensamento gela meu sangue.

— Nós, Cavaleiros, fomos feitos para viajar e destruir, —continua ele.


— Eu poderia estalar meus dedos e acabar com a humanidade em menos
de um dia ...

O medo coagula em meu peito.

— ... mas não vou, —ele continua. — Essa não é a tarefa proposta a
nenhum de nós, Cavaleiros. Todos nós quatro, irmãos, devemos
compreender as criaturas que estamos aniquilando. É por isso que visito
cada cidade. Somente quando eu realmente entender os humanos poderei
tomar minha decisão final sobre eles.

Olho para ele horrorizada quando me ocorre mais uma vez que ele
detém o poder de destruir ou salvar todos nós. E de alguma forma devo
fazê-lo mudar de ideia.

— Mas você não sabe nada sobre nós,—digo baixinho. — Você mata
uma cidade antes mesmo de passar por ela.

— Ainda assim, devo passar por eles. —Ele olha para as paredes ao
nosso redor. — E agora você irá comigo também, Lazarus.

DO LADO DE FORA DA mansão, uma procissão de mortos espera sob o


sol do meio-dia. Dezenas de outros se movem pelo pátio, suas formas
frágeis carregando os últimos baús de roupas e engradados de comida e
vinho em carroças atreladas a cavalos esqueléticos. Todos aqueles ossos
branqueados pelo sol—humanos e equinos—movem-se como os vivos,
como se tendões, músculos e carne os mantivessem unidos, em vez de
apenas magia. Alguns dos servos revenant até parecem ter um andar
próprio, uma característica que deve ter sido transmitida da vida para a
morte.

Eles se movem com uma eficiência alarmante, nunca se cansando e


nunca pronunciando uma palavra não que pudessem, mas isso torna tudo
muito mais assustador.

Estremeço quando Thanatos vem até mim, pegando minha mão e me


levando até seu cavalo. Nenhum de nós fala enquanto ele me iça em seu
corcel malhado, embora eu prenda a respiração quando ele se junta a mim
um momento depois. A pressão de suas coxas e peito parece igualmente
íntima e aprisionadora.

Morte não dá ordens aos seus servos, ele simplesmente gira o cavalo
e depois assobia. Ao ouvir o som, seu cavalo dá um solavanco para frente,
e então estamos avançando pela longa entrada de automóveis, os cascos
do cavalo trovejando contra a estrada de asfalto.

À nossa frente posso ver o espesso anel de folhagem monstruosa que


circunda a propriedade.

Thanatos não diminui a velocidade enquanto avançamos em direção


a ele, e eu me preparo. No último minuto, as plantas se abrem como uma
faca na carne, e então estamos do outro lado.

Olho por cima do ombro, tentando vislumbrar a procissão esquelética


que deve estar nos seguindo, mas não consigo ver nada além do amplo
movimento do ombro e da asa dobrada da Morte.

É só quando estamos na estrada aberta que ouço o Cavaleiro respirar


com facilidade de onde está sentado atrás de mim.

— Onde estamos indo?— Eu pergunto.

— Oeste, —é sua única resposta.

Isso eu realmente sabia. Morte passou os últimos seis meses


perseguindo a mim e ao Ben pelo leste do Texas e um pouco da Louisiana.
Tenho certeza de que ele está mais do que ansioso para seguir em direção
a terras novas e intocadas.

O pensamento me faz fazer caretas.

— Você já entrou em uma cidade e simplesmente não matou? —Eu


pergunto curiosamente.

— Eu não prejudiquei a cidade em que a encontrei, — diz ele.

Quase tinha esquecido. — Por que você não fez?

— Estava preocupado.

Comigo, ele quer dizer.

Arrepios picam minha pele. Essa foi uma das poucas vezes em que vi
em primeira mão que tipo de poder eu tinha sobre o cavaleiro. Claro, isso
não importava muito para mim porque ele não salvaria Ben. Mas ele
poupou aquela cidade—mesmo que apenas por um dia.

— E se você entrasse e saísse de uma cidade e não matasse todos os


seus habitantes? —Eu pergunto.

Fica quieto por um longo e prolongado momento. Percebo


tardiamente que é porque Morte está olhando para mim. Olho para ele
apenas para ver sua expressão cética.

— O que? —Eu digo defensivamente.

— Devo acabar com a vida, —ele responde. — Esse é mais um dos


meus instintos.

— Foi você quem mencionou que os Cavaleiros devem experimentar


a humanidade antes de tomar sua decisão final sobre acabar com ela, —
eu digo. — Parece que você não será capaz de fazer isso a menos que deixe
as pessoas viverem o suficiente para realmente entendê-las.

Ele ainda está olhando para mim, mas algo brilha em seus olhos. Ele
está ... ele está realmente considerando minhas palavras?

— Nem sempre mato imediatamente, —diz ele.

— Verdade, —eu concordo. — Mas você realmente fala com algum


humano? Interage com alguém?
— Eu interajo com você, —diz ele.

— Eu sou uma pessoa. Não acho que sou um bom exemplo de


humanidade.

— Você está errada, —diz ele. — Você é o melhor exemplo.

Eu engulo. Acho que ele está tentando me elogiar.

— Há muito mais do que eu lá fora, —eu digo. Mas está claro que
Morte é muito inflexível para tentar convencê-lo a deixar qualquer cidade,
por menor que seja, ilesa.

— E se você deixar uma cidade viver o suficiente para você


experimentar mais da humanidade? —Eu continuo, minhas palavras
cuidadosamente leves. Estou com medo de que minha própria ansiedade
possa sabotar até mesmo essa concessão.

— Tenho asas, Laz. Não vou apenas me encaixar, —Morte diz


rispidamente.

— Isso não o impediu naquela noite no hospital, —eu digo.

— Entrei no seu quarto sem ser visto, —diz ele.

Eu suspiro. — Ninguém está pedindo para você se encaixar, —eu


digo. — Você é um mensageiro de Deus. As pessoas estão cientes da sua
existência.
Há uma longa pausa.

— Lazarus, —ele finalmente diz, — o que você está propondo é uma


loucura.

— Qual o pior que pode acontecer? —Eu digo. — Nenhum de nós


pode ser morto.

— Nada de bom virá disso, —diz Morte, sua voz solene.

— Isso é um sim? —Parece um sim.

Ele olha furioso para mim, mas depois de um momento ele inclina a
cabeça.

Meu coração pula uma batida.

Este meu plano pode realmente funcionar.


Capítulo 44
Rosemberg58, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE NÃO APENAS CONFIRMA SUA DECISÃO, MAS A estende


um passo adiante. Os viajantes com quem cruzamos na estrada são
poupados. Eles olham para nós dois com olhos arregalados e petrificados
enquanto passamos.

Espere até ver a procissão de mortos atrás de nós.

Estendo a mão e enfio os dedos na mão que me segura com força,


apertando-a. Eu não tinha percebido o quanto esse pequeno compromisso
realmente significava para mim até agora.

Atrás de mim, sinto Morte se inclinar, seus lábios roçando minha


orelha.

— Você gosta da minha misericórdia? — ele diz suavemente enquanto,


à nossa frente, um homem se vira e corre de volta por onde veio.

58
Rosenberg é uma cidade localizada no estado norte-americano do Texas, no Condado de Fort Bend.
— Isso é tudo que eu sempre quis, —eu digo.

Ele não diz nada sobre isso, embora sua mão aperte a minha de volta.

Cavalgamos em silêncio até que, mais à frente, edifícios aparecem.

Uma cidade.

Fico tensa, embora não saiba por que isso acontece. Thanatos não vai
destruir ninguém. Talvez seja simplesmente porque ainda não discuti o
que devo mostrar à Morte, agora que consegui que ele concordasse em
deixar esta cidade vivo por um tempo.

Passamos por mais e mais pessoas, pessoas que gritam, pessoas que
correm e pessoas cujo medo as enraíza no lugar. A única coisa que todos
têm em comum é o medo palpável.

— Diga-me novamente como isso é uma boa ideia? —Morte diz


enquanto dirige seu corcel para fora da estrada.

— Vai ficar tudo bem, —eu o asseguro.

Agora, a que experiência humana devo apresentá-lo? Um restaurante?


Uma loja? Um lugar de adoração?

Não sei.

Quando estamos nas ruas da cidade, vemos pessoas ainda mais


assustadas. De forma alarmante, noto vários que estão armados. Mais de
um deles coloca a mão sobre as armas embainhadas.

— Kismet, —Morte diz, — se era isso que você queria que eu visse, eu
poderia ter lhe poupado alguns problemas. Eu sei que é assim que os
humanos reagem a mim.

Eu exalo. Claro que ele está certo. As pessoas não são exatamente
conhecidas por serem amigáveis com coisas que não entendem—coisas
que já destruíram grande parte de seu mundo—eu apenas presumi que,
uma vez que vissem a Morte e percebessem que ele não estava tentando
machucá-las ativamente, elas iriam perder o medo. E para ser justo,
algumas pessoas parecem mais curiosas do que assustadas, embora sejam
definitivamente a minoria.

Apesar da resposta fria, passo uma perna por cima da sela.

— O que você está fazendo, —Thanatos exige, seu aperto apertando


minha barriga.

— Descendo do seu cavalo, se você me soltar. —Enquanto falo, eu


levanto a mão do Cavaleiro. Ela não se move. — Você não pode
experimentar a humanidade em cima de um cavalo.

Sinto mais do que vejo a careta de Morte. — É uma má ideia, Laz, —


diz ele, com a voz baixa. Mas ele me solta e eu escorrego do cavalo.
Segundos depois, ele também está desmontando.
— E agora, kism ...?

— Pare! —alguém grita atrás de nós.

O som me faz girar.

Uma fila de indivíduos sai de trás de um shopping desbotado na


estrada. Cada um deles segura um arco e uma flecha encaixada em suas
mãos.

— Não se mova ou vamos atirar! —Isso vem da mesma voz que gritou
pela primeira vez.

Morte se move na minha frente. — Farei o que quiser, —diz ele, sua
voz ecoando pela rua.

Os espectadores ficam presos no lugar, temerosos, mas paralisados


pela cena que se desenrola diante deles.

E é por isso que meu plano era bom demais para ser verdade. Presumi
que as melhores partes da humanidade estariam trabalhando, mas nessa
suposição estava a crença de que melhor significava incruento e empático,
quando claramente neste momento significa corajoso e protetor. Estas
pessoas estão dispostas a defender as vidas da sua comunidade, mesmo
contra uma entidade sobrenatural que não pode ser detida.

— Volte pelo caminho por onde veio, —instrui um dos homens,


levantando o arco em advertência.
Infelizmente, voltar atrás é a única coisa que a Morte não fará.

Ele avança e, a cada passo que dá, vejo meu plano escapando cada
vez mais do meu alcance.

— Este é o seu último aviso! —o homem grita.

A linha de arqueiros está agora posicionada do outro lado da rua, com


as flechas posicionadas e prontas.

Eu corro para a frente. — Ele não está aqui para machucá-los! —Eu
grito enquanto alcanço a Morte.

Bem, ele não está planejando machucar ninguém ainda.

Minhas palavras caem em ouvidos surdos. Vejo a mão do arqueiro


líder se mover e então ele solta a flecha.

Não sei o que estou pensando. Talvez eu não esteja. Tudo o que vejo
é aquela flecha traçando um arco no ar, indo direto para Thanatos. É
literalmente isso. A soma total dos meus pensamentos.

Eu corro para o cavaleiro, colidindo com ele. Ele cambaleia um passo,


pego de surpresa.

Ouço o silvo suave do projétil cortando o vento uma fração de


segundo antes de atingir meu peito com uma força agonizante. Ele rasga
a carne enquanto perfura meu peito.
— Lazarus! —O rugido da morte soa distante enquanto cambaleio,
engasgando com a própria respiração. Eu olho para a haste da flecha
projetando-se do meu peito.

Esqueci ... o quanto ... isso doía.

Assim que minhas pernas começam a fraquejar, o cavaleiro me


segura. Suas asas sobem e nos rodeiam, protegendo-me de mais flechas.
Mais delas chegam, afundando naquelas asas com sons suaves e
repugnantes.

Ele os ignora completamente.

— Porque você fez isso? —ele exige, parecendo aflito.

Caio em seus braços, me forçando a focar em seu rosto.

Tudo parece errado.

Acho que eles atingiram meu coração.

— Por que? —ele exige, aqueles lindos olhos em pânico. O universo


realmente deixou o rosto da Morte perfeito. Esta é realmente a visão pela
qual eu mais gostaria de morrer, seu rosto heróico é a memória final que
levo para o túmulo.

Estendo a mão para aquele rosto no momento em que ouço mais


flechas cortando o ar. Um por um, eles afundam nas asas da Morte. Além
do movimento em sua bochecha, Thanatos não reage.

Mas, vários segundos depois, acho que ouço o baque coletivo de


corpos de uma cidade caindo no chão, embora não tenha certeza se o
imaginei. Tudo parece tão distante de mim neste momento.

Tudo o que existe é Thanatos, suas asas e o céu acima de nós. Posso
me sentir caindo naquele abismo que passei a reconhecer como morte.
Enquanto isso, a própria Morte quer que eu continue viva.

Eu coloco minha mão sobre a dele. — Tire isso ... depois, —eu respiro.

Depois que eu morrer. Vai doer menos assim. Isso é tudo que posso
realmente pedir.

A expressão do Cavaleiro se transforma quando ele percebe o que


quero dizer.

— Então devo assistir você morrer e não fazer nada? —ele diz. Ele
parece quase irritado.

— Pensei ... que isso era ... sua perversidade, —eu sussurro, mesmo
enquanto sinto o último da minha vida escorregando ... escorregando ...

A mandíbula de Thanatos abre e fecha, e oh, que ironia terrível que ele
de todas as pessoas não gosta de me ver morrer. Quando foi que isso
aconteceu?
Ele olha para mim, olhando impotente. — Nada pode ser normal
conosco, pode? —ele diz.

Morte não conseguiu salvar a garota imortal.

Eu dou a ele um pequeno sorriso. — Não tenho certeza ... eu iria


querer ... de qualquer ... outra maneira.

Capítulo 45
Rosemberg, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

GEMO AO ACORDAR NOS BRAÇOS DA MORTE.

— Lazarus. —Ele parece aliviado.

Movo-me um pouco e gemo de novo, caindo de volta nos braços do


Cavaleiro. Sinto como se tivesse sido pisoteada por uma manada de
cavalos selvagens.

Os olhos de Morte apertam um pouco nas laterais, e não tenho certeza


se é de tensão ou humor.
— Você me protegeu, —ele diz suavemente. Suas sobrancelhas estão
franzidas em confusão, mas seus olhos são maravilhosos.

Fui atingida por uma flecha por ele.

Estendo a mão para o peito, sentindo onde o material da minha


camisa foi rasgado. Abaixo dela, posso sentir o sangue escorregadio que
ainda cobre minha pele, mas ... a ferida cicatrizou completamente.

Curo mais rápido que a maioria dos humanos, mas para um ferimento
mortal pode levar muitas, muitas horas para cicatrizar. Aperto os olhos
para ver o sol—ele está pendurado no mesmo lugar em que o vi pela última
vez—e a Morte ainda está me segurando no abraço em que me prendeu.

Meu corpo não curou sozinho desse ferimento.

Meu olhar se move para Morte. — Você me curou.

O Cavaleiro ainda está olhando para mim como se estivesse tentando


ver as profundezas da minha alma. O escrutínio me deixa inquieto.

— Claro que curei você, kismet. —Disse como se não pudesse


imaginar o contrário. Como se os últimos dois anos de violência entre nós
nunca tivessem existido.

Me sento mais completamente, as asas da Morte ainda enroladas


firmemente em torno de nós. Por um momento, o cavaleiro me segura
com mais força, mas depois de outro momento, ele me solta.
Enquanto me endireito em seu colo, algo afiado cutuca meu braço.
Virando-me, vejo a ponta da flecha ensanguentada aninhada entre as
penas escuras de Thanatos. É uma de quase uma dúzia que perfurou as
asas do Cavaleiro.

Eu inspiro asperamente. — Você ainda está ferido.

— Não é nada, —diz ele, ignorando-o completamente.

— Não é nada, —eu digo, dando uma olhada em Morte. Ele


concentrou toda a sua energia em me curar enquanto ignorava suas
próprias feridas.

Fico de pé para dar uma olhada melhor neles.

— O que você está fazendo? —o Cavaleiro pergunta, começando a se


levantar também.

Coloco a mão em seu ombro para mantê-lo sentado. — Estou olhando


para seus ferimentos. —Contorno levemente o ponto de entrada de uma
flecha, as penas ao redor coaguladas com sangue.

— Você gostaria que eu removesse isso? —Eu pergunto.

Thanatos ainda aceita a oferta. Finalmente, ele olha por cima do


ombro para mim. — Essa é uma oferta honesta?

Seguro seu olhar. Ele está tão acostumado com meus truques e com a
dor que inflijo, que posso dizer que isso o confunde.

Lentamente, eu aceno. — É.

Thanatos me encara por mais um tempo, então olha para frente,


cruzando os braços sobre os joelhos.

— Então sim, —diz ele. — Gostaria disso.

Ele fica parado, com o rosto virado para longe de mim. Continuo a
estudar as flechas perfurando suas asas, tateando um pouco antes de
começar. As penas de Morte fazem suas asas parecerem mais grossas do
que realmente são, mas a própria carne não passa de uma fina membrana.

Já que é esse o caso, a coisa mais fácil seria simplesmente puxar as


flechas até o fim. Eu pego a primeira ponta de flecha. Algo sobre o meu
aperto faz com que as asas de Morte subam.

— Desculpe, —murmuro.

— Você não tem nada para se desculpar, —diz ele, virando a cabeça
um pouco para mim.

Lentamente, puxo a flecha pelo buraco que ela fez em sua pele. Ele
não reage à sensação, embora eu não consiga imaginar que seja agradável.

— Eu tenho, no entanto, —insisto, dando um último puxão no projétil


para forçar a passagem de sua extremidade traseira. — Eu não estaria
arrancando flechas de você se você não tivesse concordado com meu
plano.

Fico quieta por alguns longos segundos.

— Você tem um coração excepcional, Lazarus, —ele finalmente diz.


— Você não deveria se desculpar por isso.

Olho para a nuca da Morte, engolindo a estranha mistura de emoções


que surgem em mim. Eu vejo o melhor nos humanos, e ele vê o melhor
em mim, e não tenho certeza se somos ambos tolos por isso.

É UM TRABALHO íntimo, retirar as flechas. As asas da morte sacodem


quando eu empurro os projéteis, então comecei a passar a mão sobre suas
penas. Mais de uma vez ouvi o cavaleiro suspirar; ele não disse isso, mas
acho que esses toques o acalmam.

— Como é ter asas? —pergunto enquanto levanto uma para acertar


uma flecha mais complicada. Observo fascinado enquanto as penas
primárias da Morte se espalham.

— Não sei como responder a isso, —diz. — É tudo que eu já conheci.

Puxo a flecha o mais rápido que posso, certificando-me de manter


minha mão firme, mesmo quando sua carne fica presa nas penas do
projétil.

Tudo fica quieto novamente enquanto me concentro no meu trabalho,


minhas mãos escorregadias com o sangue do Cavaleiro. Estou na ferida
final.

— Por que você fez isso? —Thanatos pergunta do nada.

— Fez o que? —Eu pergunto distraidamente.

— Você pulou na frente de uma flecha destinada a mim.

Agora faço uma pausa. Morte está olhando para frente, mas posso
sentir que todo o seu foco está em mim.

— Não quero falar sobre isso, —eu digo.

— Por que?

Porque isso só deveria ser unilateral.

Puxo esta última flecha com um pouco de força demais.

— Porque eu não quero, —eu digo, jogando o projétil de lado. Uma


pilha de flechas ensanguentadas agora está espalhada pela estrada. — Eu
terminei.

Thanatos se levanta, abrindo e fechando as asas como se quisesse


testá-las. Ele se vira para mim e posso praticamente sentir seu poder
sombrio me pressionando.

— Lembra do nosso jogo ontem à noite? —ele diz. — Diga-me suas


verdades desprotegidas.

— Esse era o seu jogo, —digo a ele, — e não vamos mais jogar.

Morte dá um passo mais perto de mim, seu sangue escorrendo de suas


asas. — Por que você pegou uma flecha destinada a mim? —ele pergunta
novamente. — Você sabe que eu não posso morrer.

— Eu também não posso, —eu mordo de volta.

— Lazarus. —Ele diz meu nome como se estivesse chamando minha


própria essência.

Eu suspiro. Estou fraca demais para brigar e cansada demais para me


importar mais. O mundo está acabando. O que meus sentimentos
importam?

— Eu não sei, —eu digo. — Sério, eu não sei. Vi aquela flecha vindo
e tudo que eu sabia era que preferia me machucar do que ver você sofrer.

Thanatos recua um pouco, seus olhos vasculhando meu rosto,


presumivelmente para procurar a mentira. Quando ele não encontra, ele
olha ... ele parece muito satisfeito com minhas palavras, embora eu esteja
mais do que um pouco inquieta.
Viajar com a Morte—seduzir a Morte—nunca deveria ser sobre mim
ou meus sentimentos complicados. Mas temo que, apesar de tudo, eu me
importe com esse homem monstruoso.

Enquanto cavalgamos pela cidade de Rosenberg, meus olhos


percorrem a carnificina. Alguns corpos jazem ao ar livre e, lá em cima,
comedores de carniça já começam a circular.

Meu grandioso plano foi levado como poeira ao vento. Na verdade, não
tenho certeza se o tiro poderia ter saído pela culatra de forma mais
espetacular do que aconteceu.

Só quando o sol se põe é que a Morte pára seu cavalo do nada. Ele
desce do cavalo sem qualquer tipo de explicação, saltando para o chão.

Quando ele começa a se afastar de mim, sinto uma sensação


indesejável de abandono.

— Onde você está indo? —Eu chamo.

Ele se vira, embora continue recuando. — Já está com saudades de


mim, kismet? —ele diz, com um sorriso curvo nos lábios.

Eu franzo a testa com aquele sorriso, mesmo quando meu estômago


revira da maneira mais desanimadora.

Primeiro peguei uma flecha nele, agora isso.


Antes que eu possa responder, a expressão de Morte fica séria, seus
olhos intensos. — Nada neste mundo poderia me separar de você por
muito tempo.

Parece um voto e acho que deveria ser reconfortante. E meu estômago


definitivamente não deveria fazer aquela coisa estúpida de virar de novo.

As asas de Thanatos se abrem e ele parece estar se preparando para


voar, mas então ele faz uma pausa.

Seu olhar encontra o meu. — Você gostaria de se juntar a mim, Laz?

— Onde? —Eu pergunto com ceticismo. — No céu?

Ele inclina a cabeça.

Não, eu não faria isso. Odeio claramente voar e o Cavaleiro e ...

Desço do cavalo dele antes de poder concluir o pensamento.

Vou até onde ele está, no meio da estrada, nada além de campos se
estendendo de cada lado de nós.

Morte estende a mão. Ignorando isso, eu entro nele, meus braços em


volta de seu pescoço. Digo a mim mesma que estou fazendo tudo isso por
Ben e pela humanidade, mas então a Morte sorri para mim e agora a
leveza no meu estômago está de volta.

Os enormes braços do Cavaleiro me envolvem.


— Por favor, não me deixe cair, —eu digo suavemente.

Um músculo em sua mandíbula salta. — Nunca mais, —ele jura.

Então, enquanto ele olha para mim, outro sorriso lento e delicioso se
espalha em seu rosto, mesmo quando algo mais suave entra naqueles olhos
brilhantes dele.

— Primeiro você me protegeu, e agora você vem a mim por sua


própria vontade.

Ele agora está percebendo o mesmo padrão terrível que eu estou ...
estou ficando mole.

Morte se aproxima. — Vou garantir que você não se arrependa.

Com isso, ele envolve uma das minhas pernas em volta de sua cintura,
depois a outra. Minha pélvis está pressionada contra a parte inferior de seu
abdômen, e com meus braços em volta de seu pescoço e meu rosto a
poucos centímetros dele, isso parece íntimo. Muito, muito íntimo.

Esse sentimento só aumenta quando os braços de Morte voltam a me


envolver, me segurando contra ele.

— Espere, Lazarus, —ele respira, olhando para mim.

Suas asas se abrem e, com um salto, estamos subindo no ar. O bater


das asas do Cavaleiro é quase violento, mas é como se nós dois
estivéssemos no olho do furacão.

Olho para Thanatos enquanto subimos. Bebo naquele rosto antigo


enquanto o vento agita seu cabelo, meus olhos demorando-se em seus
lábios sedutores e maçãs do rosto afiadas. Pela primeira vez, seu próprio
olhar não está fixo em mim. Em vez disso, ele percorre a terra ao nosso
redor.

— O que você está procurando? —Eu pergunto.

— Uma casa digna de uma rainha, —ele responde, seus olhos ainda
examinando a paisagem.

Continuo a encará-lo, sentindo que, embora esteja voando alto,


também estou em queda livre. Me inclino para frente e pressiono um beijo
suave na parte inferior de sua mandíbula. Sei que sou imune à morte, mas
de alguma forma tenho certeza de que não vou sobreviver a isso.

DEPOIS DE UMA pequena eternidade no ar, descemos em direção a um


pedaço de terra pouco notável. Vejo grama verde e árvores aninhadas
juntas e algumas estradas de terra que de tão longe parecem
grosseiramente esculpidas na terra. É só quando meus olhos seguem
aquela estrada de terra que percebo que Thanatos encontrou outra casa,
tão suntuosa quanto a anterior.

O terreno fica cada vez mais próximo, e consigo distinguir uma colina
suave que dá lugar a um lago lamacento e uma pequena capela construída
ao lado da casa. Por último, meus olhos pousam na casa em estilo de
fazenda com paredes em cor terracota e telhado de telhas vermelhas.

Morte pousa na frente dela comigo em seus braços. Estou relutante


em soltá-lo, mas digo a mim mesma que é só porque meus braços estão
rígidos de tanto tempo.

Dando-me um olhar indulgente, o Cavaleiro me solta.

O sol está baixo no horizonte e os postes de iluminação ao redor da


propriedade já foram acesos. Alguém teve que acender cada um
manualmente, o que significa que ou as pessoas que vivem aqui ainda
estão vivas… ou a Morte acabou de matá-las.

Estremeço só de pensar.

— Frio? —Thanatos pergunta.

Balanço a cabeça, mesmo enquanto envolvo meus braços em volta de


mim. Começo a andar perto da casa, meus olhos fixando-se nos azulejos
pintados que margeiam cada janela.

— É aqui que vamos ficar? —Pergunto por cima do meu ombro.


— Mmm, —Morte murmura, o que eu tomo como um sim.

Passo a mão pela parede, só me afastando quando noto os cactos


grandes e espinhosos crescendo à frente.

— Se eu fosse você, eu não voltaria lá, —Morte grita para mim.

Para a parte de trás da casa?

— Por que ...? —A palavra morre na minha língua quando avisto um


movimento à frente.

As pessoas saem de casa em direção às árvores que cercam a


propriedade. Ninguém fala, ninguém interage entre si, todos apenas
marcham roboticamente na mesma direção.

Assim como os esqueletos da Morte.

Um arrepio percorre meu corpo.

— Lazarus. —A voz do Cavaleiro contém um mundo de significado.


— Desvie o olhar.

— Por que? —Eu digo, paralisada pela visão à minha frente. — Você
nunca me deu esse luxo antes.

O chão treme violentamente e mal consigo me segurar para não cair.


Ao longe, ouço um gemido profundo vindo da própria terra.

Sessenta metros à minha frente, o solo se abre, abrindo-se como a boca


de algum monstro primitivo. O grupo de pessoas que estou observando
parece estar indo direto para aquela fenda na terra. A primeira pessoa
entra, seu corpo desaparecendo de vista.

Engulo meu grito, mesmo quando outra pessoa calmamente sai da


borda do solo e entra naquele buraco, caindo de vista. Um por um, os ex-
habitantes desta propriedade fazem isso até que todos tenham
desaparecido.

A terra treme mais uma vez e com outro estrondo a fenda se fecha
novamente.

Eu fico lá por mais alguns segundos, apenas olhando.

— Você não deveria ter olhado, —Morte diz atrás de mim.

Faço um pequeno ruído—meu horror é quase palpável.

— Eles já estavam mortos, —continua ele.

Como se isso fizesse alguma diferença.

Thanatos vem para o meu lado, observando meu rosto. O que quer
que ele vê causa uma centelha de pânico em seus olhos.

A terra treme mais uma vez, e cactos espinhosos começam a crescer


ao redor do perímetro da propriedade, selando a mim e Morte lá dentro.

— Porque você fez isso? —Minha voz sai sussurrando suavemente.


— Vi o seu medo, —diz ele. — Não vou deixar você escapar.

Sinto que estamos de volta onde começamos. Como faço para parar esse
homem? Como não me perco ou a minha integridade no processo? Eu não
descobri nada disso, e não vejo como vou fazer. Os outros Cavaleiros
estavam errados. Não há como superar todo o sangue ruim entre nós.

Eu inclino minha cabeça. — Você me levaria também? —Eu


pergunto. — Se eu me tornasse verdadeiramente mortal?

As asas de Thanatos se abrem e se acomodam. —Isso não importa.


Você não é mort ...

— Você faria? —Eu insisto.

Ele fica quieto, nós dois nos enfrentamos. Finalmente, ele diz: —
Lazarus, eu não teria escolha. Um toque da minha pele ...

— Não me importo com isso, —eu digo. — Você me mataria


intencionalmente se pudesse, mesmo agora?

Ele olha para mim, aqueles seus olhos estranhos e adoráveis


particularmente trágicos.

— Sim, Lazarus, se eu pudesse, eu o faria. Devo.

Não sei por que isso dói, mas dói. Parece uma faca no meu peito.

Eu olho em volta para a propriedade, então para as estrelas, piscando,


piscando.

— Kismet, não importa ...

Meu olhar se volta para ele. — Você sabe que importa, —eu digo. Este
é o mesmo homem que recusou a mortalidade da Fome porque o Ceifador
tinha os motivos errados.

Morte se encolhe com minhas palavras. Ele deve me ver recuando


emocionalmente porque ele fecha a distância entre nós, estendendo a mão
para mim.

— Não me toque, —eu o advirto.

Os olhos de Morte brilham e suas asas se abrem um pouco atrás dele


no que parece ser uma estranha exibição de dominância, se eu soubesse
algo sobre pássaros.

— Ou o quê, Lazarus? —Ele diz, sua voz irritantemente calma. Ele


dá um passo para o meu espaço.

— Talvez devêssemos inverter sua pergunta: o que você faria, kismet,


se pudesse realmente me matar para sempre? —ele exige. — Imagine se
minha morte pudesse fazer com que toda a humanidade voltasse ao que
era, e você pudesse se reunir com seu filho mais uma vez. Você faria isso?
Você me mataria?

Por um instante eu o mataria, Deus me ajude.


Olho para ele, minha mandíbula apertando.

Thanatos vê minha resposta escrita em meu rosto. Eu sei que ele faz.

— Pare de fingir que somos normais, —diz ele. — Nós não somos.
Não há ninguém como nós. Não posso lhe matar e você não pode me
matar. Nós tentamos isso. Não funcionou. Então, vamos tentar outra
coisa.

Com isso, ele fecha o último espaço entre nós e me beija selvagemente.
Capítulo 46
Hallettsville59, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

DISSE QUE NÃO QUERIA QUE ELE ME TOCASSE, MAS sou uma
mentirosa. Esta é a única verdade que conheço na bagunça do nosso
relacionamento.

Caio no beijo, meus braços serpenteando sob os do cavaleiro, meus dedos


roçando a base de suas asas.

Ele geme com o toque, me puxando com mais força contra ele.

Pare de fingir que somos normais. Nós não somos.

Acho que precisava dessa garantia. Precisava ser desenterrada de


todas as suposições de certo e errado que mantive durante toda a minha
vida.

Enquanto meus lábios deslizam contra os dele, ele se curva. Um de


seus braços desliza sob meus joelhos e, sem interromper o beijo, ele me

59
Hallettsville é uma cidade localizada no estado norte-americano do Texas, no Condado de Lavaca.
levanta em seus braços. Ele começa a se mover e, à distância, percebo que
ele está se dirigindo para casa.

Só sou afastada do beijo quando Thanatos chega à porta da frente. Ele


levanta uma perna e ...

Crack, ele chuta a porta, a madeira se soltando das dobradiças.

Estremeço com o som, afastando meus lábios. Com mão firme, a


Morte vira minha cabeça para ele e recupera minha boca.

Thanatos cruza a soleira, seus passos ecoando pela casa enquanto ele
volta a avançar, ainda me segurando perto. Estou distraída com o beijo,
mas não tão distraída a ponto de não perceber quando entramos em um
quarto, uma cama enorme à mostra. Meu estômago revira com a visão,
mesmo quando meu pulso acelera.

Tenho estado tão focada em seduzir Morte que nunca pensei muito
sobre ele me seduzindo. Mas está claro o suficiente para onde as coisas
estão indo.

Ele me coloca na cama, recuando apenas para me observar enquanto


começa a remover sua armadura de prata pouco a pouco.

— O que você está fazendo? —Pergunto sem fôlego, empurrando-me


para cima em meus antebraços.

Seus olhos brilham. — Reivindicando o que eu deveria ter feito há


muito tempo.

Braçadeiras, fora, peitoral, fora, protetores, fora. Ele remove tudo e


então pega sua roupa.

— Você sempre pode me dizer para parar, —diz ele, repetindo minhas
palavras anteriores. Isso arranca um sorriso de mim, mesmo quando meus
nervos zunem.

Ele tira a camisa, jogando-a de lado.

Prendo a respiração enquanto observo todas as suas tatuagens


brilhantes. Elas cobrem sua pele como manchas de leopardo.

Com sua armadura, Morte parece um anjo de Deus, sem isso, ele
parece algo mais. Mais do que angelical, mais do que sobrenatural. É difícil
acreditar que ele possa se passar por humano na maior parte do tempo, é
tão óbvio para mim agora que ele é algo totalmente diferente.

Sua mão se move para as botas e ele as tira uma a uma.

Quase acho que ele vai parar por aí.

Ele não para.

Suas calças, e o que quer que esteja por baixo, saem e ele está
completamente, gloriosamente nu.

Thanatos retorna para onde eu deito na cama, ainda totalmente


vestida. Ele coloca um punho em cada lado da minha cabeça, me
segurando.

Tudo o que consigo ver são quilômetros de músculos ondulantes e


tatuagens, e não consigo pensar direito. Minhas mãos torcem no cobertor
debaixo de mim. Sinto como se tudo entre nós tivesse virado de cabeça
para baixo, e todo aquele poder e controle que reuni ontem à noite foram
desviados.

Ele se inclina para perto. — Eu lhe causei tanta dor, kismet. Deixe-me
dar-lhe o prazer de corresponder.

Enquanto nós dois nos encaramos, suas mãos se movem para a gola
da minha camisa e ...

Riiip.

Prendo a respiração quando ele rasga o tecido, expondo minha pele


nua por baixo. Meu batimento cardíaco está acelerando. Dor e prazer
sempre andarão de mãos dadas com a Morte. Tenho muitas lembranças
de lutar com ele para que fosse de outra forma.

Começo a me sentar, ação da qual o cavaleiro se aproveita. Ele se


inclina e me beija rudemente. Apesar de tudo, rio um pouco do quão
explorador o cavaleiro é.

Ele geme contra minha boca, mordendo meu lábio inferior. — Se eu


pudesse, devoraria essa sua risada. Não há nada mais doce.

Meu sorriso desaparece. Toda vez que Thanatos diz algo assim, um
calor enervante floresce sob meu esterno.

Para me distrair, interrompo o beijo e desfaço o sutiã, tirando a roupa


de baixo. Eu recosto-me na cama, embora não haja nada de relaxante
nisso. Estou tensa de tanta tensão.

Morte tem um olhar selvagem sobre ele, e seus olhos estão paralisados
em meus seios. Estendendo a mão, ele pega um.

Thanatos faz um barulho baixo em sua garganta. — Não consigo


superar o quão suave você é, —ele respira. — Ou por que acho isso tão
atraente. —Enquanto ele fala, seu polegar varre meu mamilo.

Eu assobio em uma respiração, minha pele tão sensível.

Morte sorri e passa o polegar sobre meu mamilo novamente. Sem


pensar, eu arqueio para o toque.

— Você gosta disso? —ele pergunta.

Antes que eu possa responder, ele começa a desenhar círculos ao redor


do meu mamilo, olhando fixamente para mim. E maldito seja, mas não
consigo não reagir a esses dedos hábeis dele, meu peito subindo e descendo
cada vez mais rápido.
—Eu sei que gosto disso, —continua ele. — E eu realmente gosto
desse olhar em seus olhos. —A voz de Morte ficou áspera, e este é um lado
totalmente desconhecido para ele.

Que olhar eu tenho em meus olhos?

— Mas, —ele acrescenta, inclinando-se para mim mais uma vez, —


eu quero esses seus lábios perversos de volta nos meus.

Isso é tudo o que ele tem a dizer para eu me levantar para encontrá-lo
mais uma vez. Meu braço envolve seu pescoço enquanto retomo o beijo.
Thanatos cai nele ansiosamente. Seus lábios se separam dos meus, e então
sua língua varre a minha, reivindicando cada centímetro que pode.

Seus quadris balançam contra mim, e Jesus, eu quero fazer coisas


ruins, muito ruins para este Cavaleiro.

Eu coloco uma bota entre nós, forçando-o a recuar. O homem parece


meio selvagem enquanto olha para mim, a luxúria espessa em seus olhos.

— O que poderia fazer você querer parar? —ele pergunta.

— Tire o resto das minhas roupas, —eu exijo baixinho.

Se antes havia calor nos olhos de Morte, agora ele aumenta quando
seu olhar desce para minha metade inferior. Sem responder, ele agarra o
pé que o segura e, lançando-me um olhar maldoso, tira minha bota e
depois a meia por baixo.
Ele olha para o meu pé. — Até os dedos dos pés me deliciam, Lazarus.
Que maravilha você é. Que maravilha isso é.

Isso.

Essa última linha fez meu coração disparar.

Eu quero lhe dizer que ele é a maravilha, com suas tatuagens brilhantes e asas
e magia mortal. Mas tenho medo de que, se eu falar, se ceder à massa
agitada de pensamentos que ele provoca, vou deslizar direto para os meus
sentimentos por esse homem e nunca mais conseguir sair.

Morte remove a outra bota e meia, e então suas mãos estão subindo
pelas minhas pernas e apenas aquele toque sensual me deixa em pânico.

Como passamos de inimigos determinados a destruir um ao outro para isso?

O pensamento mal passou pela minha cabeça quando sinto Morte


abrir meu jeans e começar a puxá-lo para baixo. Seus dedos agarram
minha calcinha, e eles vêm junto. Centímetro por centímetro tentador, ele
remove a última das minhas roupas. Ele joga tudo de lado, seu olhar se
banqueteando em mim.

— Lazarus.

Parecendo um homem possuído, ele espreita na cama. Seus lábios e


algumas mechas de seu cabelo deslizam ao longo da minha pele enquanto
ele sobe pelo meu corpo. Ele não para até que nós dois estejamos cara a
cara.

Seus olhos procuram os meus. — Você me rouba o fôlego.

— É você quem me tira o fôlego, —eu digo. Eu não posso deixar de


admitir isso, pelo menos. Morte é a coisa mais linda e sobrenatural que eu
já vi.

O olhar de Morte baixa para os meus lábios. — Quis beijá-la desde o


momento em que você me emboscou pela primeira vez e exigiu que eu
parasse com as mortes, —diz ele. — Isso me deixou louco, essa necessidade
que eu sentia, mas não entendia—uma necessidade que ainda não
entendo. Achei que meus irmãos eram fracos por sucumbir a isso.

Eu expiro lentamente, tentando processar tudo isso. — Você queria


me beijar esse tempo todo? —Eu pergunto.

Seus olhos se enchem de alegria. — Entre muitas outras coisas.

— Que outras coisas? —Eu digo curiosamente.

Ele passa um dedo pela curva do meu nariz, sobre meus lábios e
queixo. — Queria roubá-la no primeiro momento em que pus os olhos em
você. A queria completamente. Foi uma experiência terrível e agonizante.
Pensei que isso só provava o quão perversos os humanos eram, ter desejos
como esse, desejos que agora eu era forçado a sentir.

Meu coração troveja ao pensar que ele me queria mesmo assim. Mal
consigo imaginar, considerando como tudo aconteceu entre nós.

— E quando você não morreu ... —Thanatos continua, seus dedos


deslizando pelo meu lado, acariciando minha carne nua, — quando todo
o meu poder provou ser inútil contra você, eu sabia que você era minha,
kismet. Sabia com tanta certeza quanto você sabe seu próprio nome.

Isso deve ser aterrorizante, especialmente à luz do fato de que, mesmo


depois de ter essas realizações, ele me machucou repetidas vezes.

Mas não estou apavorada. De jeito nenhum.

Não há ninguém como nós.

— Por que você finalmente cedeu aos seus ... desejos humanos? —Eu
pergunto.

Agora sua expressão se suaviza, e estou achando difícil respirar.

— Todos aqueles meses solitários na estrada, a monotonia da minha


tarefa apenas interrompida por seus escassos atentados contra a minha
vida ...

— Não foram escassos, —digo, esquecendo por um momento que um


Cavaleiro muito nu está pressionado contra mim e que estamos prestes a
fazer coisas sujas um com o outro.

Ele me dá um sorriso indulgente como se eu estivesse sendo fofa.


— Lutar com você ficou difícil e depois agonizante, —ele admite com
o sorriso vacilante. — Mas por pior que tenha sido a luta, a separação foi
pior. Passei meses me perguntando quem você era e o que havia nessa
miserável existência humana que você achava tão valioso.

— E então, finalmente, eu queria saber outras coisas, coisas humanas,


sobre você. Coisas que até agora eu luto para nomear porque tudo sobre
viver é muito diferente de morrer. Queria, ainda quero saber de você, o
que lhe traz alegria, o que a deixa triste. Mais selvagem ainda, quero ser
uma das coisas que lhe traz alegria.

Minha garganta aperta com sua confissão e não consigo desviar o


olhar das profundezas escuras de seus olhos. Ele já me disse algumas
dessas coisas antes, mas na luz fraca do crepúsculo, com meu corpo colado
ao dele, isso me atinge de forma diferente.

— Em algum lugar entre todos os nossos confrontos, Lazarus, passei


a me preocupar com você, e deixá-la para trás tornou-se impensável.

— Então eu parei de lutar contra aquele desejo perverso de possuí-la,


e eu cedi. E aqui estamos, —ele diz.

— Aqui estamos nós, —eu ecoo.

O momento se estende até que, finalmente, não aguento mais.

Movendo-me para baixo dele, deixo uma das minhas pernas se abrir.
O Cavaleiro levanta um pouco o corpo para olhar entre nós. Eu vejo
suas narinas se dilatarem, e depois de um momento, ele passa a mão pela
minha carne, para baixo, para baixo, para baixo até chegar à minha
boceta.

Agora ele volta a ficar de cócoras, suas asas negras penduradas na


beirada da cama enquanto ele estuda meu sexo, com os olhos ardendo.

Seu olhar retorna ao meu enquanto ele deliberadamente passa o dedo


pela costura da minha fenda.

Eu respiro fundo, meus quadris se movendo contra ele.

— Você gosta disso? —ele pergunta.

Abro meus lábios para responder, mas ele já está passando o dedo
pelas minhas dobras novamente. No momento em que seu dedo acaricia
meu clitóris, meus quadris se movem impotentes mais uma vez.

Seus olhos se iluminam e seu toque volta para o meu clitóris.

— O que é isto? —ele pergunta, roçando-o mais uma vez.

— Meu Deus, Thanatos, —eu suspiro. Seu leve toque está me


deixando louca.

Alcanço seu pênis, que já parece dolorosamente duro, seus estranhos


glifos brilhando ao longo de seu eixo. O Cavaleiro pega minha mão e a
prende contra a cama.

— Não, Lazarus. Deixe-me aprender com você.

Meu corpo está tenso como a corda de um arco e tenho quase certeza
de que sou eu quem parece agonizante. Estremeço e aceno com relutância.
Ele nunca explorou outro corpo antes. Posso ser paciente com isso. Só
tenho que acalmar minha própria libido furiosa.

Os dedos de Morte continuam a explorar meu corpo. Eles viajam pelo


meu clitóris, direto para o meu núcleo. Quase por acidente, um deles
mergulha dentro de mim e deixo escapar um suspiro.

Tenho mesmo que acalmar essa libido.

Em um instante, os olhos do cavaleiro se concentram em mim e na


minha reação. Enquanto isso, seu dedo recua—apenas para deslizar de
volta, desta vez um pouco mais longe.

Eu me contorço sob seu toque, e a expressão de Thanatos escurece de


desejo.

— Acho que estou começando a entender como isso funciona.

Depois de vários golpes tentadores com seu dedo, ele desliza para fora
do meu núcleo e sua mão continua viajando de volta até que seu dedo
encontra algo completamente diferente.
— Por favor, não me faça dizer o que isso faz, —digo, sem fôlego,
enquanto ele traça minha outra abertura.

Os olhos da Morte brilham, sua expressão é ao mesmo tempo intensa


e divertida. — Realmente não me importo com o que isso faz, apenas se
você gosta que eu toque você aí. —Enquanto fala, ele pressiona um dedo
contra ela.

Eu mordo meu lábio porque essa é a entrada da minha bunda. Apesar


de tudo, ainda estou excitada.

Thanatos observa minha expressão, seu olhar procurando o meu. —


Você gosta disso. —Mas então sua mão recua e ele volta sua atenção para
minha boceta.

Suas mãos deslizam sobre minhas pernas, sua atenção fixa entre
minhas coxas. De repente, ele agarra uma das minhas pernas e a coloca
sobre o ombro, suas penas fazendo cócegas na planta do meu pé.

Juro que vejo um arrepio percorrendo-o com o contato, mas ele não
liga. Em vez disso, ele coloca minha outra perna sobre o outro ombro.

Olho para ele, um tanto confusa com essa reviravolta específica nos
acontecimentos.

— O que você está … ?

Antes que eu possa terminar, Morte se inclina para frente e dá um


beijo no meu clitóris.

Meu corpo estremece com a sensação, meus quadris subindo para


encontrar aqueles lábios dele.

— Thanatos.

Ele sorri contra a minha carne.

Quase morro com a sensação daquele sorriso contra a minha pele.

— Você gosta disso, —diz ele, uma nota de triunfo perverso em sua
voz.

— Isso é ...

Mas ele não me deixa terminar.

Sua boca volta a beijar meu clitóris, só que agora ele começa a fazer
algo com a língua que... puta merda. Meus quadris batem contra ele, a
sensação é tão forte que é quase dolorosa.

Estendo a mão para sua cabeça, meus dedos enroscando-se em seu


cabelo preto. Pretendo afastá-lo, mas não há como afastar esse homem. E
aquela língua dele ...

Passo de gemidos a ofegante bem rápido.

Como ele está fazendo isso? Ele não tem prática.

Morte faz uma pausa: — Eu estava errado antes quando disse que não
havia nada mais doce do que seus sorrisos, — diz ele. — Isto é mais doce.

Não vou pensar no fato de que o homem não comerá pão, mas ele me
comerá com prazer.

Faço um barulho sem sentido, implorando porque ele me deixou toda


excitada e então ele parou.

Os olhos do Cavaleiro brilham com orgulho masculino. E então sua


boca está de volta no meu clitóris, sua língua lambendo novamente e
novamente.

— Você tem que se movimentar, —eu imploro a ele. — Por favor ...

— Farei o que quiser, kismet, —ele murmura contra minha carne. —


E você vai suportar isso. —E então ele volta a me devorar.

Homem imundo e mandão. Eu usaria isso contra ele se não fosse meu
prazer que ele estivesse exigindo.

As almofadas dos meus pés deslizam contra suas asas enquanto eu me


contorço, e o cavaleiro emite um som satisfeito, como se gostasse da
sensação.

Ele desce um pouco, sua língua deslizando em meu núcleo.

Eu grito.

Ah, isso é sujo.


— Morte. —Isso sai como um gemido.

Estou doendo.

Ele olha para mim por entre minhas coxas e absorve minha expressão.
O que quer que ele veja lá o faz me lançar um sorriso de lobo. Thanatos
pausa seu trabalho para apoiar o queixo em meu osso pélvico, parecendo
infinitamente satisfeito consigo mesmo.

— O que acontecerá se eu continuar assim? —ele pergunta, uma


centelha de curiosidade em seus olhos. — Você vai desmoronar como eu?

Sim, e provavelmente nos próximos trinta segundos também, se ele continuar


fazendo o que quer que esteja fazendo com a língua.

— É chamado de ...

Thanatos se abaixa e me morde, me fazendo gritar novamente.

— Eu sei como se chama.

— Por favor, —eu suspiro.

Ele olha de volta para mim. Há um inferno em seus olhos, mas


também posso ver sua hesitação.

Ele nunca fez isso antes.

Eu começo a me sentar.

É como se ele soubesse onde minha mente está. Subindo pelo meu
corpo, ele captura minhas mãos e as prende em cada lado da minha
cabeça, sua ereção roçando minha coxa.

— Você deve ficar aqui, —ele me ordena, sua expressão feroz.

— Mas ...

— Devo trazer a chuva e os relâmpagos ou arrancar as raízes e os


mortos do chão? Ou fazer a terra tremer e os edifícios caírem para lembrar
quem eu sou? Coloquei meus olhos em você há um ano, mas ainda não
tomei você completamente. Então deite-se, kismet, e deixe-me mostrar a você
o que significa ser minha.
Capítulo 47
Hallettsville, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE É MAGNÍFICO ENTÃO, SUAS ASAS SE ABRINDO atrás dele,


suas tatuagens brilhando na sala iluminada por velas, seus olhos brilhantes
prometendo coisas sobre as quais nem eu sei nada.

Mantenho seu olhar e, sutilmente, afundo de volta na cama,


relaxando.

Sua expressão não parece mudar, mas seu olhar parece tão satisfeito.

Suas mãos ainda estão segurando as minhas, e agora seus dedos


entrelaçam os meus. Morte se inclina, sua boca tomando a minha mais
uma vez. Só que não há dúvidas sobre a carnalidade desse beijo enquanto
sua língua desliza entre meus lábios. Sua boca está queimando. É como se
um fogo tivesse sido aceso sob minha pele. E eu estou beijando ele de
volta, e nós dois estamos passando de gentis e doces para quentes e
pesados bem rápido.

A chuva começa a bater na casa, exatamente como ele ameaçou


momentos antes.

Thanatos solta uma das minhas mãos e agarra minha coxa, alinhando
nossos corpos. Sinto seu pau então, bem na minha entrada. Thanatos
interrompe o beijo, apertando a mão.

É isso.

Nós dois nos entreolhamos enquanto Morte mexe os quadris e


começa a empurrar.

Ele é grande, muito, muito grande, e mesmo que eu esteja bastante


molhada, ainda é um ajuste. Meus dedos apertam os dele, me preparando
contra a sensação de ser esticada.

Morte fica imóvel, seu pau latejando enquanto descansa parcialmente


dentro de mim.

— Diga-me para parar e eu pararei, —ele me lembra. Suas pupilas


estão arregaladas e sua mandíbula continua abrindo e fechando com o
esforço de ficar absolutamente imóvel, e tenho certeza de que o Cavaleiro
descobriria o que é o verdadeiro sofrimento se eu aceitasse a oferta.

Mas eu não disse. Nunca experimentei nada assim. Sinto como se a


eletricidade fosse assim: nítida e ofuscantemente brilhante.

— Não pare, —eu respiro, temendo o pensamento tanto quanto a


Morte deve. Minha carne já está se ajustando à sua circunferência.
Assim que falo, ele simplesmente cede. Com um gemido, o Cavaleiro
avança, embainhando cada centímetro de seu pênis dentro de mim.

Meus lábios se abrem e meus dedos apertam os dele a ponto de doer.


Estou latejando—ou talvez ele esteja latejando. É difícil dizer; há muito
mais sensações lá embaixo do que jamais senti antes.

O olhar da morte devora o meu. Há uma borda afiada em suas feições


e um músculo em sua bochecha continua contraindo e abrindo. Lá fora, a
chuva cai forte e, ao longe, trovões ressoam.

Eu puxo minhas mãos cativas livres para que eu possa segurá-lo perto
de mim. — Isso é viver.

Ele dá uma risada suave, embora suas feições rapidamente fiquem


sóbrias, especialmente quando ele se afasta, apenas para empurrar de volta
para mim um momento depois. Meus quadris sobem para encontrar os
dele.

Deixei escapar um gemido com a intensidade de tudo isso. A morte


faz isso de novo, um arrepio percorrendo-o com a sensação.

— Como eu ansiava por este momento. —Seus dedos roçam minha


bochecha. — E, no entanto, nenhum dos meus anseios mais selvagens
poderia ter me preparado para a visão de você embaixo de mim, ou a
pressão de sua pele contra a minha.
Eu me mexo um pouco, a ação fazendo com que ele faça um barulho
baixo em sua garganta.

— E a sensação de você apertando meu pau como se não quisesse que


ele fosse embora.

— Eu não quero, —eu admito.

O chão treme com a minha resposta.

As estocadas de Morte começam a ganhar velocidade, sua respiração


fica mais rápida enquanto ele encontra o ritmo. Uma linha se forma entre
suas sobrancelhas e nunca vi ninguém tão sexy quanto Thanatos neste
momento, com toda sua agonia requintada em exibição.

— Não consigo superar a sensação de você. —Seus dedos deslizam


sobre minha carne. — E o seu gosto, —acrescenta ele, pressionando um
beijo rápido nos meus lábios. — Você é como eu esperava que o vinho
fosse saboroso.

Suas asas se flexionam a cada impulso, e não posso deixar de estender


a mão e correr meus dedos sobre as penas pretas como tinta.

Ele geme, entrando mais fundo em mim. Seu pênis entra e sai de novo
e de novo e de novo.

Eu abro minhas pernas arbitrariamente, gemendo. Isso


definitivamente vale o golpe direto que minha moral está levando.
— Thanatos.

Seus olhos brilham. — Diga meu nome de novo, —ele exige.

— Thanatos. —Eu mal consigo. Sou toda sensação.

A chuva bate forte na casa e lá fora há relâmpagos. Por um instante,


vejo estranhas marcas esqueléticas sobrepondo a pele e as asas de
Thanatos, depois desaparecem. De alguma forma, a exibição aterrorizante
só aumenta seu apelo perigoso.

Estou me contorcendo contra o Cavaleiro, meu corpo inteiro se


movendo a cada estocada latejante, levando-me ao orgasmo.

Sem preparação.

Praticamente sem preparação.

Este é o melhor sexo da minha vida e quero durar mais do que alguns
minutos.

Mas Morte não aceita nada disso. Ele se entregou completamente ao


prazer, bombeando em mim com abandono enquanto devora minha
expressão. Em algum lugar ao longo do caminho isso passou de suave e
sensual para primitivo.

Não posso mais adiar ...

— Morte!
Meu orgasmo explode através de mim, minha visão escurecendo.

O chão treme, sacudindo a cama, e então Thanatos grita, suas asas


bem abertas. Seus quadris batem nos meus, seu pau afundando
profundamente dentro de mim. A terra treme e relâmpagos brilham
novamente, iluminando aquela camada esquelética. Lá fora ouço ruídos
estranhos e assustadores por causa da chuva.

Nós dois descemos lentamente dos nossos orgasmos. As asas do


cavaleiro se dobram e seus golpes tornam-se lânguidos. Eventualmente,
ele sai. Mas então ele está me beijando em todas as bochechas e na ponta
do nariz, nas pálpebras e na testa e, finalmente, na boca.

Sinto minha garganta apertar com o quão gentil ele está sendo, o quão
querida ele está me fazendo sentir.

— Lazarus, Lazarus, Lazarus, —ele murmura. Lá fora a chuva está


diminuindo. — Diga-me que foi a experiência mais incrível que você já
sentiu—porque foi a coisa mais incrível que já vivi.

Digo a esse virgem que ele acabou de me dar o melhor sexo da minha vida? Se
eu não estivesse tão incrivelmente satisfeita, ficaria irritada com a pura
audácia que Morte tem de não estragar o ato de transar com alguém pela
primeira vez.

Meus dedos deslizam por seu cabelo e pego sua boca com a minha. E
então eu aceno contra ele. — Isso foi.

Ele se afasta, seus olhos escuros intensos. Seu olhar desce pelo meu
corpo, sua expressão nebulosa de orgulho possessivo. Seu olhar para na
junção entre minhas coxas, e ele deve estar vendo evidências de seu
próprio orgasmo.

Ele balança a cabeça em descrença. — Isso é muito, muito estranho


para mim, Lazarus. —Ele passa os dedos pela minha boceta, espalhando
seu esperma. — Estranho e apaixonante.

Agora que minha pele está esfriando e a ação foi cumprida, meu
coração começa a bater forte, meu estômago dá um nó quando olho para
ele.

Eu não sei o que fazer.

No passado, tive muitos motivos para afastar Thanatos. Mas agora,


eles evaporaram. Mais do que isso, tenho um medo profundo de que, de
alguma forma, seja isso que quebra o feitiço que se abateu sobre a Morte.
Agora que ele está dentro de mim, qualquer força que tenha impulsionado
sua obsessão por mim desaparecerá.

Ontem, deixei Thanatos depois de fazê-lo gozar com a minha boca.


Me preparo para que ele faça o mesmo.

Em vez disso, ele retira a mão entre minhas coxas e se estica de lado.
Um momento depois, ele me puxa para ele, seu rosto dolorosamente
próximo.

Meu coração ainda está batendo forte, mas aquela sensação doentia
está evaporando, principalmente quando ele coloca uma das pernas sobre
a minha.

Estendo a mão e toco aquele rosto perfeito, com suas maçãs do rosto
invejáveis, e acaricio sua pele pálida. Ele realmente tem o tipo de rosto de
que são feitos os mitos. Nunca na minha vida vi alguém com essa
aparência e nunca poderia imaginar como seria se eles olhassem para mim
do jeito que a Morte está olhando para mim agora - como se eu fosse a
única coisa que valesse a pena ter neste mundo. Seus olhos estão me
devorando, a luz das velas os faz parecer água ao luar.

Eu não desvio o olhar. Eu olho, fico olhando e deixo esse sentimento


aterrorizante crescer entre nós.

— Lazarus, —Thanatos diz suavemente. Ele molha os lábios e nós dois


nos equilibramos em algum precipício.

Eu não respondo, enredada por seus olhos.

— Kismet, me diga que você é minha, —diz ele suavemente.

Passei tanto tempo lutando, é uma sensação estranha, ceder.

— Eu sou sua.
Para o bem ou para o mal, eu sou.

Capítulo 48
Hallettsville, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

ACORDO COM A PRESSÃO DA BOCA DE MORTE CONTRA meu


corpo. Já estou arqueando contra ele, minha carne faminta por mais de
seu toque.

— Tentei deixar você dormir—eu deixei—mas não consigo tirar esse


fogo que você alimentou das minhas veias, —ele sussurra contra a minha
pele.

Por que não pensei em ceder ao Cavaleiro antes? Isso é muito preferível a lutar.

À medida que a Morte sobe pelo meu corpo, deixando um rastro de


beijos em seu caminho, sinto o roçar de sua ereção. Ele só para quando
nós dois estamos cara a cara, seus quadris aninhados entre os meus.

— Diga-me que você não me quer mais como eu quero você, —diz
ele, procurando meus olhos. — Diga-me que estou louco.

— Você está louco, —eu digo.

Algo pisca em seus olhos. Desapontamento?

— Mas então, —acrescento, — eu também estou.

Com isso, eu o puxo para mim.

A LUZ DO SOL DA manhã entra pelo quarto e alguém está desenhando


formas na minha pele. Sorrio, me alongando enquanto me deleito com a
sensação de tudo isso.

Eu me assusto quando me lembro.

Thanatos.

Eu me viro e lá está ele, apoiado em um antebraço, seu corpo nu


pressionado contra o meu, e posso sentir um leve cheiro de incenso e mirra
flutuando em sua pele—ou talvez esteja na minha pele. Ou os lençóis. De
alguma forma, ele está em todo lugar.

Na luz moderada da manhã, tudo isso é real de uma forma que a noite
passada não foi. Não seguimos caminhos separados. Isso continuará
indefinidamente.
Os olhos de Morte se enrugam nos cantos. — Parece que eu deixei
minha marca em você.

Passo discretamente a língua pelos lábios inchados e aliso o cabelo


despenteado. — Você parece satisfeito com isso.

— Eu estou. Nunca deixei minha marca em nenhum mortal, pelo


menos não assim.

Sinto minhas bochechas esquentarem.

Sua mão está de volta em mim, seus dedos traçando linhas em meu
corpo mais uma vez.

— E pensar que uma vez machuquei esta pele. —Um estremecimento


muito real o percorre. — Incompreensível.

Quero dizer, minha boceta levou uma surra ontem à noite e


provavelmente levará outra hoje, então não é tão incompreensível …

— Machuquei você também, —eu o lembro.

— Para proteger a si mesma e ao seu povo. Eu sempre fui o agressor,


mesmo quando você esperava para me emboscar. Sei que você só fez isso
para proteger aquelas pessoas, pessoas que eram estranhas para você.

Ele atinge algo cru e real, e isso dói.

— Eu também caçaria meus inimigos se soubesse que eles estão


determinados a destruir tudo o que eu aprecio. — Ele tem um olhar intenso
quando diz isso.

Eu engulo. — Você tem muita percepção para um homem que nem é


humano. —Não sei se muitas pessoas conseguem ter empatia tão bem.

Morte exala, ainda olhando para mim. — Tive horas sozinho para
pensar sobre tudo.

— Mas isso não muda nada, —digo calmamente, quase


interrogativamente.

— Mas isso não muda nada, —ele concorda.

— Ainda pretendo impedir você, —digo. Apenas no caso de ele ter


esquecido.

— Eu sei, —Morte concorda, seus olhos tristes.

Agora é minha vez de expirar, a manhã fácil e descomplicada se


dissipando. Pensar na humanidade me lembra de Ben, e tudo que devo
fazer para salvá-lo para sempre.

Tenho um apelo para Thanatos, um apelo que quero tanto fazer que
dói. Mas estar na cama deste homem não muda nada—ele mesmo disse
isso—e tenho medo de chamar sua atenção nessa direção específica.

— O que foi, Lazarus?— ele pergunta. — Parece que uma nuvem


cobriu o sol—o que a preocupa?

Olho nos olhos estranhos e complexos da Morte e tomo uma decisão.

— Passei um ano inteiro me escondendo de você, tudo para manter


meu filho vivo, —digo.

O rosto de Thanatos fica solene.

— Você pode me prometer que não vai matá-lo? —Eu sussurro.

— Kismet, —diz ele, — eu levo todos. Nem mesmo seu filho está
isento desse destino, mas não tenho planos de levá-lo tão cedo.

Quase engasgo de alívio, mesmo que uma parte de mim agora queira
analisar a definição de tão cedo do Cavaleiro.

Agarro a mão da Morte e aperto-a com força na minha. — Prometa-


me que não vai.

Deveria estar estar seduzindo a Morte pelo bem da humanidade, mas


sempre coloquei a vida de Ben acima do bem maior. Não vou me tornar
magnânima de repente.

Uma linha se forma entre as sobrancelhas do Cavaleiro.

— Farei tudo o que você quiser. —Aproximo-me enquanto falo.

As narinas da Morte se dilatam e sua mandíbula se aperta com sua


contenção. — Pare com isso, Lazarus. Não faço acordos assim. — Mesmo
que ele queira. Ele definitivamente quer.

Ele ainda é inflexível nisso. Tento não deixar que isso me preocupe,
mas preocupa. Dormir com ele deveria amolecê-lo. O que eu faço se isso
não acontecer?

Você passou um ano lutando contra esse homem para mudar seus hábitos.
Você pode passar um ano forçando a mudança dele. Tenha um pouco de paciência,
Laz.

— Conte-me sobre o seu Ben, —diz Thanatos. — Naquela noite no


hospital, você disse que achava que ele era imortal, assim como você. Por
que você achou isso?

Eu estremeço e solto um suspiro. — A primeira vez que você me levou


em cativeiro, logo depois de eu escapar, me deparei com uma cidade
próxima ... —Caio de volta na memória. — As pessoas estavam todas
mortas, mas as estruturas ainda estavam de pé. — Ainda posso sentir o frio
da chuva e o desespero que me empurrou para frente. — Só pretendia
parar o tempo suficiente para pegar suprimentos, mas então ouvi um bebê
chorando dentro de uma das casas.

Meus olhos encontram os de Morte. — Ben sobreviveu ao seu ataque


à cidade.

O Cavaleiro escuta absorto, embora agora seus lábios se contraiam em


uma leve carranca. — Isso é impossível, —ele murmura, embora eu possa
dizer que ele acredita em mim.

— Você também pensou que minha sobrevivência era impossível, —


eu digo.

Thanatos inclina a cabeça.

Prendo a respiração e continuo. — Então peguei Ben e fugi de você.

Eu corro meus dentes sobre meu lábio inferior, perdida em


pensamentos. — O que é realmente estranho, —admito, — é que é quase
idêntico ao modo como minha mãe me encontrou há duas décadas.

Juro que o olhar do Cavaleiro se fixa em mim.

— Como assim? —ele pergunta.

— Minha mãe me encontrou em uma cidade pela qual Pestilência


havia passado. Ela ouviu meus gritos enquanto passava, assim como eu
ouvi os de Ben, e ela me salvou e me acolheu como se fosse um dos seus.

Morte parece perturbado com essa informação, mas antes que


qualquer um de nós possa dizer mais alguma coisa, um movimento com
o canto do olho me assusta. Sem pensar, agarro a Morte perto de mim.

Sinto o Cavaleiro olhando para mim enquanto ele me puxa para mais
perto.
— São apenas meus revenant, —ele diz enquanto os esqueletos em
questão se movem pelo quarto, carregando um baú. — Queria esperar até
você acordar antes de pedir que trouxessem suas coisas.

Sento-me, mantendo-me coberta com um cobertor, embora a única


outra pessoa neste quarto que tenha olhos de verdade seja a Morte, e ele
já tenha visto tudo. Observo enquanto mais esqueletos entram e enchem o
armário e o banheiro com roupas e amenidades.

Agora também vejo pela primeira vez o que nos rodeia.

O interior da casa tem um toque do sudoeste, com azulejos pintados


inseridos nas portas e janelas e um piso de azulejos vermelhos coberto por
um grande tapete de pele de carneiro.

Mesmo enquanto observo, os esqueletos estão removendo alguns dos


objetos menos permanentes que decoravam o espaço. Eles levam chapéus,
sapatos, roupas—todas aquelas pequenas lembranças pessoais dos
proprietários anteriores.

Continuo observando os revenants. Eles ainda me dão calafrios, mas


quando um chega trazendo uma travessa de pão fatiado e queijos, não
paro muito para pensar sobre isso antes de começar a comer.

— Isso foi atencioso da sua parte, —eu digo para Morte.

— Vivo com medo do dia em que ouvirei seu estômago falar


novamente, —diz ele. — Acho que ele me odeia mais do que o resto de
você.

Quase me esqueci daquela vez em que Thanatos ouviu meu estômago


roncar.

— Não sabia que isso causou tanta impressão em você, —eu digo.

— Tudo o que você faz me impressiona, —diz ele solenemente.

Com isso, eu fico quieta.

Morte não tem muito espaço para remorso nele, mas parece ter
guardado um pouco para mim.

Termino o pão e o queijo, sem me preocupar em oferecer nada ao


cavaleiro. Eu já sei que ele vai recusar. Assim que termino, espano minhas
mãos sobre a bandeja.

— Você pode fazer com que seus esqueletos preparem um banho—


um com água quente? —Eu pergunto curiosamente. É a mais rara das
indulgências nos dias de hoje.

As sobrancelhas de Thanatos se juntam, mas seu olhar desliza para os


revenants mais próximos. Abruptamente, um deles para o que estava
fazendo e vai para o banheiro adjacente.

Posso ouvir uma bomba manual funcionando e depois o barulho da


água.

— Você já tomou banho? —Pergunto ao Cavaleiro, animando-me um


pouco.

Morte balança a cabeça. — Não.

Pego sua mão e o puxo enquanto deslizo para fora da cama. — Então
vamos torcer para que a banheira seja grande o suficiente para nós dois - e
para suas asas.

— Por que precisaria ser? —ele pergunta.

— Porque você vai se juntar a mim.

A BANHEIRA É GRANDE o suficiente para nós dois, descubro quando


puxo o Cavaleiro para dentro do quarto. É uma banheira rebaixada,
grande o suficiente para acomodar dois adultos—embora a Morte tenha
que colocar suas asas sobre a borda.

A banheira está quase cheia, embora a água ainda esteja sendo


aquecida. Um esqueleto entra no banheiro segurando uma chaleira.
Ignoro o desejo ardente de cobrir meu corpo nu—eles não têm olhos—
embora eu volte para uma das asas de Thanatos.
Ele se curva ao meu redor e, quando olho para cima, vejo o cavaleiro
olhando para mim com um pequeno sorriso.

— Vi você enfrentar a dor e a morte certa estoicamente, kismet.


Certamente meus revenants não assustam você.

— Claro que não, —eu concordo, não me afastando de sua asa.

O sorriso de Morte atinge seus olhos. Depois de um momento, ele


pega meu queixo. — Você sempre pode se esconder em minhas asas,
embora eu exija um beijo de vez em quando.

Antes que eu possa responder, o Cavaleiro se abaixa e rouba um dos


meus lábios. Acabou antes mesmo de começar, e fico olhando para o rosto
de Thanatos enquanto ele se afasta.

— Isso foi sorrateiro, —eu digo, embora minha fala saia totalmente
errada. Eu pareço cheia de desejo.

— Estou nu ao seu lado, —diz Morte, em voz baixa, — nada em mim


é sorrateiro agora.

Ele tem razão.

O Cavaleiro volta sua atenção para a banheira, onde mais esqueletos


despejam água quente na bacia.

— Fale-me sobre banheiras, —diz ele.


Tento não rir. — Tenho certeza que você sabe sobre elas.

Ele franze a testa um pouco. — Sei que os humanos se lavam. Mas é


só isso?

Certo. Ok.

— Não há muito para eles, —eu digo enquanto os esqueletos saem do


banheiro. — Você enche a banheira com água, entra e toma banho.

Morte franze a testa novamente e faz meu coração bater um pouco


mais rápido. Realmente não entendo o que divide o vasto conhecimento
do Cavaleiro sobre certos assuntos com sua ignorância sobre outros, mas
com isso ... ele parece estar mais do que um pouco perdido.

— Aqui, —eu disse, entrando na banheira. Quase suspiro com a


temperatura quente. Faz muito tempo desde que tomei um banho quente.
Virando-me, estendo a mão para ele. — Entre, eu prometo que você vai
gostar.

Ele pega minha mão, mas não me deixa guiá-lo imediatamente. Em


vez disso, ele coloca a outra mão na água.

— Vamos nos lavar? —ele pergunta, com uma nota de curiosidade em


sua voz.

— Claro, —eu digo, soltando sua mão para que eu possa afundar na
banheira.
Ahhh. Isso é divino.

Acho que foi minha facilidade que finalmente convenceu o cavaleiro


a entrar—isso ou meus peitos, já que basicamente estão acenando para ele.

Thanatos entra na água, fazendo o possível para se sentar na minha


frente. Ele olha por cima do ombro para suas asas, que na verdade ficam
penduradas na borda da bacia. — Claramente não fui projetado com
banheiras em mente.

Ele realmente não foi projetado para a vida humana em geral—não


com aquelas asas.

O Cavaleiro se acomoda o melhor que pode. — E agora? —ele


pergunta.

— Agora você aproveita. Quero dizer, se fosse um banho frio, você


pegaria uma barra de sabonete e se esfregaria o mais rápido que pudesse.
Mas banhos quentes você mergulha.

Morte fica ali olhando para a água, uma carranca puxando os cantos
dos lábios, como se ele não soubesse como ficar sentado preguiçosamente
e desfrutar de alguma coisa.

Por capricho, eu me movo até ele, deslizando em seu colo e montando


em suas coxas, seu pênis preso entre nós. Abaixo de mim, posso senti-lo
engrossando.
Suas mãos deslizam pela minha cintura e posso ver o desejo em seu
olhar, mas ele não me pressiona por qualquer tipo de intimidade. Para ser
sincera, o Cavaleiro provavelmente não tem ideia de quanto sexo é demais
para um mortal. Morte realmente não tem limites.

A ideia de me envolver nele faz meu núcleo doer, apesar de estar


dolorida. Em vez de agir por impulso, deslizo as mãos pelos braços do
Cavaleiro, tocando suas inúmeras marcas. Meus olhos continuam
voltando para eles, esses glifos brilhantes que cobrem quase todo o seu
corpo. Eles começam na parte inferior do pescoço e escorrem pelos braços
e tronco, diminuindo apenas perto das mãos e tornozelos.

— O que são isso? —Eu pergunto, traçando um. Meu dedo formiga
um pouco enquanto faço o formato.

Morte olha para mim, seus olhos intensos. — Eles são minha
linguagem mais inata—angelical.

— Angelical, —eu repeti, olhando para eles. Acho que entendi isso
desde a primeira vez que os vi, mas ainda não tinha pensado no que isso
significava.

Meus dedos se movem de seus braços para seu peito. — O que eles
dizem?

— Muitas coisas, kismet, mas principalmente, elas falam de criação ...


e destruição.

Um arrepio percorre meu corpo. Há tanta escrita – todo o seu corpo


está pintado com isso. O brilho de todos eles torna a água do banho
luminosa.

— Você pode ler alguns deles para mim?

Ele me encara. — Essas palavras não são para ouvidos humanos.

Imagino. Traço um particularmente incomum..

— No entanto, —ele continua, — você também não é totalmente


humana, não é, Lazarus?

Meus olhos se voltaram para os dele. Morte olha para mim com um
desejo tão nu. Nós provamos e tocamos um ao outro—não deveria haver
mais nada pelo que desejar. Mas está lá, nos olhos dele.

Ele segura meu olhar. — Inwapiv vip jurutav pua, uwa epru juriv petda og
ruvawup keparip pufip hute. Ojatev uetip gurajaturwa, oraponao uetip hijaurwa. Reparu
pue peyudirwit petwonuv, uwa worjurwa eprao fogirwa. Uje urap haraop pirgip.

Eu fecho meus olhos, meus dedos cavando na pele de Morte enquanto


ele fala. Começo a tremer porque sinto essas palavras, embora não as
entenda, e juro que me estrangulam de dentro para fora, embora também
sinta a sua santidade.
Morte traduz. — Sou o último da minha espécie e trago comigo todo
tipo de doença para atormentar a humanidade. Seus campos escurecerão,
suas criaturas fugirão. Os mortais tremerão diante do meu nome e todos
cairão ao meu toque. Porque vou acabar com o mundo.

Quando abro os olhos, vejo o Cavaleiro como ele é: A Morte. E sinto


aquela quietude ao nosso redor, aquela com a qual me acostumei desde
que estive com ele, e mais uma vez sinto o cheiro de incenso e mirra,
embora a água devesse ter enxaguado a maior parte.

— Sim, você entende, não é? —ele diz baixinho. — Eu não sou


homem.

Eu engulo. — Diga-me outra coisa, —eu digo suavemente.

Seus olhos se movem para os meus. — Você quer saber mais? —ele
diz.

— Quero saber tudo sobre você, —admito. E é a verdade, mesmo que


seja um eco das próprias palavras da Morte.

Quero aprender sobre ele da mesma forma que ele quer aprender sobre
mim.

Os olhos de Thanatos brilham. Acho que ele ficou realmente


comovido com a minha resposta.

Depois de um momento, ele diz: — Pergunte e responderei da melhor


maneira possível

Devo escolher uma pergunta? Eu nem sei por onde começar.

Eu me contento com: — Por que eu?

Ele me examina. — Você quer dizer, por que, dentre os milhões de


pessoas vivas, é você quem está aqui, ao meu lado?

Eu concordo.

— Você não pode ver por si mesma o quão excepcional você é? —ele
diz, inclinando a cabeça.

Meu olhar mergulha e traço um glifo em um de seus peitorais,


deixando pequenas gotas de água em meu rastro.

— Quero dizer, não posso morrer, —digo, — e entendo como isso me


torna especial, mas por que me foi dada essa habilidade? Não há nada
particularmente extraordinário em mim. —Sou uma péssima atiradora, fui
uma aluna medíocre apesar de meus melhores esforços e, embora fosse
uma atleta decente, nunca me destaquei. Na verdade, nunca me destaquei
por nada—deixando de lado a imortalidade.

Morte se aproxima, a água batendo em torno de nós. Ele acaricia


minha bochecha. — Se você pudesse se ver através dos meus olhos, você
pensaria de forma diferente, kismet. A mulher que trabalhou bravamente
para me impedir—que lutou e morreu repetidas vezes para proteger seu
filho—conheci inúmeras almas e posso dizer em primeira mão que
nenhuma delas provou seu valor dessa forma.

— Mas mesmo que você não se considere excepcional, eu me


considero, e o universo também deve, ou então você nunca teria acabado
em minhas garras. —Ele se abaixa e aperta minha bunda para enfatizar o
que quer dizer.

Dou um grito e, para minha surpresa, Thanatos joga a cabeça para


trás e ri.

Eu bebo em sua diversão, hipnotizada pela visão dele. Estou tão


acostumada com a solenidade da Morte que, quando ela ri, se transforma
em outra pessoa. Acho que quero conhecer essa parte dele muito, muito
melhor.

Mesmo quando ele para de rir, o riso não sai de seus olhos. — Cada
um de nós, Cavaleiros, foi lhe dado uma mulher. Você é minha.

— Dado? —Eu ecoo, fazendo uma careta. Discordo dessa frase.

Ele ri novamente da minha expressão, o som dela ...

Isto é o que soa a euforia.

— Você ficou com a mesma expressão que fiz quando descobri isso.
Se isso faz você se sentir melhor, também fui dado a você.
A personificação literal da morte me foi dada como marido? Isso
deveria parecer assustador, mas agora, sentada em seu colo com seu rosto
absurdamente bonito a poucos centímetros do meu, não estou tão
decepcionada quanto deveria.

Eu limpo minha garganta. — Isso não me faz sentir melhor,— eu


minto.

— Mmm ... — ele murmura pensativo, —então talvez isso faça.

Antes que eu possa responder, ele me levanta, mas apenas por um


momento. Então ele abaixa meus quadris, entrando em minha boceta
apertada.

Eu suspiro. Tanta coisa para Thanatos se conter.

Meus dedos cavam em sua pele onde eu o agarro. — Você realmente


vai usar sexo para fazer ...?

O Cavaleiro me interrompe com um beijo, e sim, ele de fato usa o sexo


para me fazer sentir melhor.

E maldito bastardo, mas também funciona.


Capítulo 49
Hallettsville, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

NENHUM DE NÓS SAI DA SUÍTE MASTER POR DIAS. DE vez em


quando, um esqueleto traz comida e água—nenhuma das quais a Morte
participa. Fora isso, todas as nossas necessidades estão encapsuladas nas
quatro paredes que nos rodeiam.

De vez em quando, os trajes completos do cavaleiro aparecem em seu


corpo por alguma mão invisível. Nunca fica com ele por muito tempo
antes que ele o descarte novamente. Até sua tocha aparece, e a fumaça
perfumada dá ao ambiente um cheiro enjoativo e perfumado.

Os dias se confundem. Mas, quanto mais o tempo passa, mais


frenético se torna o sexo com a Morte e mais frequentemente ocorre.
Parece que ele está desesperado para afastar sua necessidade de viajar
apoiando-se em sua necessidade por mim.

Não sei que dia é quando deslizo das garras do cavaleiro e me


aventuro no armário. Posso sentir seu olhar aquecido sobre mim enquanto
olho através das roupas, escolhendo uma camisa branca e uma calça jeans
que não odeio.

Morte não diz nada até eu terminar de vestir as roupas e pegar um par
de botas.

— Onde você está indo? —Ele pergunta preguiçosamente, seus olhos


me chamando de volta para ele. É quase o suficiente para me convencer a
voltar para a cama com ele.

— Minha boceta precisa de uma pausa, Thanatos. —Quantas vezes


ele deslizou para dentro de mim hoje? Cinco? Seis? Mais? Estou esgotada
de orgasmos e ainda é de manhã. Neste ponto, preciso colocar gelo em
minha boceta.

— Você está dolorida? —Morte pergunta. — Venha aqui, kismet. Vou


acalmá-la.

Sei exatamente como ele planeja fazer isso.

Dou uma olhada nele, enquanto pego um par de meias e começo a


calçá-las. — Sei que você precisa viajar novamente. Nenhuma quantidade
de sexo vai mudar isso.

Ele franze a testa. Quaisquer que sejam suas razões, a Morte está
tentando evitar seu dever. Duvido que seja porque ele tem algum coração
partido pela humanidade—mas fico comovida com isso mesmo assim.
Ainda assim, tal como muitos outros aspectos deste cavaleiro, não
consigo acompanhar o seu apetite sexual. Não quando está acelerado
assim.

— Não quero que isso acabe, —ele admite.

Dou-lhe um olhar estranho. — Isso não vai acontecer.

— Mas isso acontecerá. Abrirei um caminho pelas próximas cidades


e você testemunhará tudo, e se lembrará de que, por baixo de cada toque
gentil que compartilhamos, você ainda me odeia.

Eu engulo. Posso sentir a verdade em suas palavras.

— Por que isso importa? —Eu pergunto, pegando uma bota e


puxando-a.

— Não quero que você me odeie.

Olho de volta para ele, sem saber o que dizer. Num momento ele é
onipotente e no outro está vulnerável.

Esta é sua chance. Aquele que os irmãos da Morte esperavam quando


fecharam aquele acordo comigo. A morte não quer que eu o odeie; há uma
maneira fácil de fazer isso ...

— Não mate a próxima cidade, então, —eu digo.

Suas penas negras se agitam um pouco. — Você sabe que eu não


posso.

Eu não esperava que ele dissesse algo diferente.

— Então, pelo menos, adie a matança até que você tenha percorrido
a cidade e visto como é a vida, —digo, concentrando-me em calçar a outra
bota para não ter que olhar para ele.

— Kismet, não vou fazer isso de novo.

Olho para Morte bem a tempo de pegá-lo olhando para meu peito,
bem onde aquela flecha me perfurou. Tenho a estranha sensação de que
ele está se lembrando de como mergulhei na frente dele e de como ele me
segurou enquanto eu morria.

— Você queria que eu tivesse um vislumbre da humanidade, —


continua Morte. — Eu tive—é o mesmo vislumbre que sempre vejo. Eles
me querem morto e não se importam em machucar você para conseguir
isso.

Minha garganta engrossa de emoção. Ele está sendo protetor comigo.


Deixando o contexto de lado, é bom ser cuidada.

— Thanatos, —digo suavemente, — se todos fossem realmente assim,


eu não estaria lutando pela nossa sobrevivência.

Ele me lança um olhar penetrante. — Não, —ele relutantemente


concorda, — você não faria isso. —Depois de um momento, ele
acrescenta: — E você está certa, nem todos os humanos são assim. —Ele
analisa meu rosto por um momento.

Respirando fundo, ele assente. — Posso negar pouco a você. Só por


favor, não me faça me arrepender disso.

ME MOVO PELA CASA como um espectro, Morte ao meu lado, meus


olhos percorrendo as poucas decorações em estilo do sudoeste que os
esqueletos não removeram da casa. Mas não estou realmente vendo nada
disso, não quando meus sentidos estão mais focados no raspar metálico
da armadura da Morte e no farfalhar mais silencioso de suas asas. Sua
presença, mesmo agora, faz minha pele arrepiar. Era muito mais fácil no
quarto, quando a pele encontrava a pele e simplesmente cedíamos à tensão
entre nós.

Agora, porém ... Thanatos estava certo em estar nervoso. Não tenho
ideia de como agir ou sentir perto dele.

Atravessamos a entrada, onde os esqueletos já estão entrando e saindo


da casa, carregando barris e caixas em seus braços ossudos. A porta da
frente anteriormente quebrada é aberta, suas dobradiças anteriormente
arrancadas são reparadas e recolocadas. Ao avistar o que está além da
porta aberta, respiro fundo.

O que diabos?

Não consigo entender o que estou vendo, não até realmente sair, com
o cavaleiro atrás de mim.

A última vez que vi a casa, pude ver claramente as paredes cor de


terracota. Agora, elas estão escondidas sob espessas camadas de vinhas
mortas.

— O que é tudo isso?— Eu pergunto.

— Não me diga que você não percebeu que a luz ficou mais fraca nos
últimos dias, —diz Thanatos atrás de mim.

Não, na verdade não tinha. Assim como não tinha notado a decoração
da casa. Esta é apenas mais uma coisa que terei que arquivar em ‘Merda
que Lazarus não percebe quando está transando com um cara gostoso’.

Mas não vou dizer isso ao Cavaleiro.

Eu dou a ele um olhar de olhos arregalados. — Você estava tentando


me manter trancada aqui?

— Você acha que é isso que eu tenho feito esse tempo todo? —ele diz,
com alegria em seus olhos. Ele se aproxima. — Kismet, há mil maneiras
pelas quais eu poderia forçar você a ficar ao meu lado. Por que eu me
incomodaria em selá-la intencionalmente dentro desta casa quando
seduzi-la provou ser muito mais bem-sucedido e prazeroso?

Eu endureço com essa palavra em particular. Seduzir. Eu deveria estar


seduzindo-o e não o contrário. Ele deveria estar se divertindo alegremente
e caindo estupidamente sob meu feitiço. Mas pensar que ele está tentando
me seduzir? Eu não gosto disso. Nem um pouco.

Thanatos continua: — Eu me permiti liberar meus poderes quando


estava dentro de você. Isso, —ele acena para as vinhas mortas, — é apenas
uma evidência disso.

Enfrento o vasto jardim da frente mais uma vez. Não consigo ver
muita coisa—as vinhas se enrolaram em uma parede improvisada na
minha frente, embora ela tenha sido cortada. Os servos da Morte devem
tê-lo atravessado para obter acesso externo.

Dou um passo à frente, minhas botas esmagando mais vinhas mortas


e folhas espalhadas pelo chão.

Só quando passo pela espessa parede de vegetação é que noto ossos


espalhados pelo chão. Eles estão por toda parte—alguns deles ainda têm
pedaços grotescos e carnudos ainda presos a eles. Eles não estão se
movendo—não como os outros revenants que posso ver agora na entrada.
Muitos desses ossos nem parecem humanos. Eles, no entanto, cheiram
horrivelmente a Deus.
Coloquei as costas da mão na boca.

Morte se aproxima de mim. — Como eu disse, eu me soltei.

Ele passa por mim, assobiando para o cavalo, como se isso fosse tudo
o que precisa ser dito sobre o assunto. Eu fico olhando para ele. Ele
literalmente trouxe os mortos de volta à vida quando me fodeu.

Eu vou ... precisar de alguns cuidados posteriores para isso.

O corcel da Morte trota vindo dos fundos da casa, e o cavaleiro olha


por cima do ombro para mim, esperando.

Respiro fundo e vou até lá. Não olho para Thanatos quando chego ao
seu lado, em vez disso, subo na sela. Aqui fora, além das vinhas que
circundam a mansão, dezenas de esqueletos carregam carroças que
aguardam.

Thanatos sobe na sela atrás de mim. Ele está estranhamente calmo,


considerando sua ansiedade anterior, mas agora que está pressionado
contra mim, posso sentir seu corpo tremendo de necessidade de se mover.

Ainda assim, ele faz uma pausa. — Quero ficar aqui para sempre e
esquecer tudo o que atrapalha isso, —admite.

Mas ele não pode.

No entanto, deixando os ossos e as vinhas de lado ...


— Eu também, —eu digo baixinho. Aqui, o mundo não estava
pegando fogo. Aqui éramos apenas amantes.

O braço da Morte me envolve, me segurando com força. Ele estala a


língua e seu cavalo sai galopando pela longa entrada.

Apesar de nossas palavras sentimentais, nenhum de nós olha para


trás.

PERCORREMOS APENAS cerca de oito quilômetros na estrada, quando


uma percepção me atinge, me roubando o fôlego.

Morte e eu temos feito sexo.

Sexo.

Isso vem com repercussões, repercussões que ignorei até agora porque
estive muito envolvida com o próprio Cavaleiro.

Sinto como se alguém tivesse me chutado no peito.

— Você quer filhos? —Eu pergunto com cuidado.

Morte esteve acariciando minha coxa preguiçosamente até agora.


Com minhas palavras, seus dedos param.

— Por que você pergunta, kismet? —ele diz.


Isso não é um não. Há, no entanto, uma nota em sua voz... uma nota
que não consigo identificar.

— Estamos fazendo sexo, —tento controlar o pânico em minha voz.


Vai ficar tudo bem. Tudo ficará bem. — Sexo leva a filhos. —Mal consigo
ouvir minhas próprias palavras por causa das batidas do meu coração. Não
consigo nem dizer do que estou particularmente petrificada.

— Não, —ele diz suavemente, — não importa. Não comigo.

Não?

Soltei um suspiro trêmulo. Sem filhos. Posso ficar tranquila.

Então me lembro de outra coisa.

— Mas seus irmãos têm família.

— Ah, —diz Morte, compreendendo. — Você acha que porque eles


podem engravidar as mulheres, eu também posso?

Quer dizer ... ele não pode?

— É possível? —Eu digo.

Thanatos fica em silêncio por um longo momento antes de responder.


— Tecnicamente, sim. Mas eu reino sobre a Morte, kismet. Isso inclui
impedir a concepção de vida

Olho de volta para o Cavaleiro, abro minha boca, então a fecho


novamente antes de olhar para frente mais uma vez. Tudo bem. O homem
está atirando em branco. Entendi.

Eu respiro fundo. — Então não posso engravidar, —eu digo. Só


preciso de alguma afirmação.

— Não sem minha permissão, —diz ele.

Permitir isso?

Então ele pode escolher se quer ou não ser fértil? Faço uma careta
porque isso é muito mais informação do que estou pronta para processar.

— E você não vai permitir isso, —eu digo. Só para ficarmos


absolutamente claros.

— Não vou, —ele concorda.

Eu expiro, relaxando contra o Cavaleiro mais uma vez.

Bem, pelo menos é uma coisa a menos com que se preocupar.

Depois de um longo momento, Morte pergunta: — Você quer filhos?

— Eu já tenho um filho, —eu digo.

— Mas você gostaria de mais? Você iria querer ... meus filhos?

Por vários segundos, tudo o que qualquer um de nós ouve é o barulho


constante dos cascos de seu cavalo.
— Lazarus? —ele cutuca.

— Não, —eu admito.

Atrás de mim, sinto Morte ficar sobrenaturalmente imóvel.

— Não? —ele ecoa. — Por que não? —Mais uma vez, algo entra em
sua voz, mas não consigo dizer o quê.

— Porque você está um inferno-obcecado60 a matar o mundo, e isso faz


de você a pior escolha para um pai, —eu digo.

— Destinado pelo céu61, —ele corrige friamente.

Ele está ofendido? Por que? Ele literalmente acabou de me dizer que
a última coisa que ele quer são filhos.

Limpo minha garganta. — De qualquer maneira, não importa porque,


como você disse, isso não está acontecendo.

Um silêncio tenso cai sobre nós. Apesar de todas as suas orgulhosas


proclamações, tenho a impressão de que o poderoso Thanatos está
realmente magoado com a minha resposta.

Que ideia.

60
Em inglês quer dizer Hell-Bent - inferno-obcecado, inferno-decidido
61
Em inglês qyer dizer Heaven Bent
Capítulo 50
Dripping Springs62, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

SEGUIMOS PARA O NORTE, REFAZENDO NOSSOS passos antigos


por Austin.

Ou, pelo menos, o que resta dela.

Os prédios caíram e a Morte precisa nos guiar pelos destroços


espalhados pela rodovia. Não vejo muitos danos de perto, já que nunca
andamos pelas ruas da cidade, mas não vejo outra alma, viva ou morta.

O cheiro, no entanto, permanece no ar, e seu fedor profundamente


enraizado me faz pensar que havia recentemente carcaças mortas
espalhadas por aí que ou os necrófagos arrastaram para fora de vista ... ou
a Morte o fez.

Eu não ficaria surpresa se fosse o último. Eu sei que ele sente que
nosso romance recém-descoberto é frágil, e ele provavelmente quer fazer

62
Dripping Springs é uma cidade localizada no estado norte-americano do Texas, no Condado de Hays.
tudo o que puder para não estragar tudo—o que incluiria esconder corpos.

Ah, cavalheirismo de Cavaleiro. Que conceito.

Passamos por Austin e continuamos. O sol acaba de se pôr quando


começo a ver estruturas em pé no lugar de outras desabadas. Terra
intocada. Mesmo assim, porém, as casas são esporádicas.

— Cometi um erro, — Morte admite, do nada.

Olho para ele por cima do ombro. — Qual? —Eu pergunto.

— Estou tão interessado em passar pelas terras que toquei que esqueci
de encontrar um lugar para ficarmos.

Tocar? É assim que ele vai chamar a destruição ao nosso redor?

Estou quieta.

— Não gosto desse seu silêncio, —admite. — Parece ... acusador.


Diga-me onde está sua mente.

— Estou pensando que você ainda entende muito pouco sobre mim,—
eu digo. — Caso contrário, você saberia que não estou chateada com a
ideia de dormir sob as estrelas.

Atrás de mim, o Cavaleiro faz uma pausa.

— Mas quando eu levei você pela primeira vez, você odiava estar ao
ar livre. Você estava com frio ...
— Estava desconfortável, —eu concordo, — mas, principalmente,
estava tentando envergonhar você para me deixar ir.

O domínio da morte se aperta sobre mim.

— Nunca, —ele jura.

Faço uma careta quando uma emoção elétrica percorre meu corpo.
Odeio gostar dessa declaração.

Eu limpo minha garganta. — Eu estou bem dormindo em uma casa


normal, ou fora, desde que eu tenha uma cama para me manter aquecido,
—eu digo. — E eu estava quieta um momento atrás porque estava
pensando em todas as cidades que você ... tocou, —digo essa palavra com
desdém.

É a vez de Thanatos ficar quieto.

— Vou encontrar uma ... casa normal para você esta noite, —diz ele
suavemente, sem se preocupar em abordar a outra parte do que eu disse.
— Mas não pretendo fazer disso um hábito. Não posso lhe dar o que você
mais deseja, —um fim para a matança, ele quer dizer, — mas posso lhe dar
isso, pelo menos.

UM POUCO DEPOIS, noto um aglomerado de luzes ao longe.


Uma cidade.

Parece uma pequena eternidade antes de realmente alcançarmos essas


luzes. Os lampiões a gás que ficam em ambos os lados da estrada
iluminam vitrines tão desgastadas que parecem ter sido abandonadas há
cerca de vinte anos, quando os cavaleiros chegaram. Se não fossem
aquelas lâmpadas a gás espalhadas pela cidade—lâmpadas que alguém
tinha que acender manualmente—eu teria presumido que este lugar não
era nada mais do que os ossos do mundo que existia antes de tudo ir para
o inferno.

— Você se lembra do nosso acordo? —Eu digo baixinho para


Thanatos.

Aquele em que ele não mata todo mundo imediatamente.

— Não me esqueci.

Eu posso ouvir a carranca em sua voz.

Seu cavalo só dá mais alguns passos quando o chão começa a tremer,


e posso ouvir vidros batendo nas vidraças empenadas de um prédio
próximo e o som de uma placa de madeira pendurada batendo na loja de
antiguidades que anuncia.

O tremor cresce e aumenta até que as lâmpadas de gás começam a cair


como dominós, suas caixas de vidro estilhaçando ao atingir o chão. Ao
longe, alguém grita.

— Thanatos, —eu suspiro.

Algumas das lâmpadas derrubadas ainda brilham, e as chamas ficam


mais brilhantes à medida que o fogo segue o rastro de querosene
derramado. Ele lança um brilho laranja sinistro sobre os edifícios—que
felizmente ainda estão de pé.

— Você me proibiu de matar, —diz ele. — Isto é tudo o que me resta.

Dou-lhe uma olhada por cima do ombro. Espero que ele saiba que
parece ridículo.

A morte encontra meu olhar quando a chuva começa a cair, passando


de um chuvisco a uma torrente em segundos. Ele lava o querosene,
apagando efetivamente as luzes da rua. E encharcando nós dois
completamente no processo.

— Você está fazendo isso? —Eu pergunto, estreitando meu olhar


enquanto a chuva cai cada vez mais rápido.

— Não estou muito interessado em que nenhum humano perdido me


aviste.

Ah, agora os postes quebrados fazem sentido.

Franzo a testa. — E eu não gosto muito de me molhar.


Mal consigo distinguir o sorriso se espalhando pelo rosto do
Cavaleiro. — Ah, mas eu discordo, kismet. Dadas as circunstâncias certas,
acho que você gosta muito de se molhar.

Calor sobe para minhas bochechas, seu significado claro.

Morte me puxa para perto. — Mas, se você estiver desconfortável, eu


poderia tirar sua roupa encharcada e beijar a umidade de sua pele, —ele
respira. — Basta pedir, e será feito.

Meu Deus.

Na verdade, considero a proposta dele. É assim que estou desesperada.

— Por que você não encontra um lugar para passarmos a noite? Então
poderemos discutir ... o resto da oferta.

— Tudo bem, —ele concorda, seus lábios roçando minha orelha, —


Vou encontrar uma casa para nós se você se concentrar em ficar molhada.

— Thanatos.

Como ele já se tornou mais obsceno do que eu?

Morte solta uma risada rouca e depois incita seu cavalo a seguir em
frente. É difícil ver alguma coisa agora que as lâmpadas estão quebradas e
espalhadas pelo chão. Percebo algumas casas mal iluminadas, e há até
uma ou duas com alguém espiando pela janela, provavelmente se
perguntando o que aconteceu com a luz do lampião. Mas a chuva os
mantém presos e espero que a noite esconda deles a identidade da Morte.

Estremeço um pouco, meu corpo encharcado pela água da chuva. O


cavaleiro me agarra mais perto dele e suas asas avançam, envolvendo as
laterais do cavalo. Parece uma posição estranha de se manter, mas ele os
mantém ali e eles afastam o frio.

Numa rua à nossa direita, ouço a voz de alguém ...

— Não sei por que Coco está agindo assim, ela nunca fez isso antes.

É quando percebo que, por cima da chuva torrencial, há latidos


frenéticos, quase de dor.

Os animais sentem a Morte.

Percorremos mais quatrocentos metros quando o cavaleiro diz: —


Você me derrotou, Lazarus.

— Do que você está falando?

— Você não quer ficar em uma casa abandonada, mas não quer que
eu mate a cidade até que passemos por ela, então também não posso ficar
com uma das casas ocupadas. Estou sem saber o que fazer.

Meu coração bate forte. Ele está certo, embora eu não tenha pensado
nisso nesses termos. Claro, ainda há sempre a opção de acampar, mas não vou
sugerir isso enquanto chove.

— Estou bem em ficar em uma casa abandonada ...

— Mentirosa.

— Eu estou, —eu insisto. — Você pode até fazer todas aquelas coisas
sujas que você estava fantasiando há um minuto ...

— Sério, minha kismet? —ele diz, parecendo descaradamente não


convencido. — Você ficaria feliz em ter intimidade se estivesse deitada no
chão mofado, o fedor de paredes podres e vermes molhados ao seu redor?

Quando ele coloca assim ...

— Como eu pensava.

— Tenho certeza de que nem toda casa abandonada é tão terrível.

— Você acha que estou disposto a arriscar? —ele ri, ao mesmo tempo
em que incita seu cavalo a galopar a todo vapor. — Vou cavalgar por esta
cidade, depois acabarei com ela e depois encontrarei um lugar para
ficarmos.

— Espere, —eu digo, mesmo quando o cavalo de Morte continua a


galopar. Quero que este homem veja um pouco de como são os humanos.
— Podemos fazer do seu jeito, mas, por favor, já estamos aqui. Vamos
pelo menos parar em uma casa por um momento para que eu possa lhe
mostrar como é a vida.

— Você deseja me apresentar a alguma família infeliz? —ele diz,


horrorizado com a ideia. Como se seu trabalho não o obrigasse a esbarrar
em inúmeras almas o tempo todo.

Acho que as almas vivas são muito diferentes das almas mortas.

— Não, —eu digo, — só quis dizer que poderíamos espiar alguém.

Okay, isso pareceu muito mais assustador do que o pretendido.

No entanto, a ideia faz com que a Morte diminua a velocidade de seu


cavalo.

— Você gostaria que eu observasse alguns humanos vivos por um


período de tempo? —ele pergunta.

— Sim, —eu digo.

— Quanto tempo? —ele exige.

Não sei. — Só um pouquinho.

— E então você não vai lutar comigo quando eu matar esta cidade?

Eu engulo. — Nunca vou me sentir confortável com isso, —eu digo.


— Mas não, eu não vou lutar com você, —eu concordo.

O Cavaleiro respira fundo. — Tudo bem, —diz ele. — Tudo bem.


Posso fazer o que você pede. —Ele olha ao redor. — Onde você quer que
eu vá?

A verdade é que não tenho ideia de para onde ir. Eu realmente não
tinha planejado isso com tanta antecedência.

— Vamos encontrar um bairro, —eu digo.

Não há muitos. Não em uma cidade tão pequena. Eventualmente, no


entanto, tropeçamos em um. A maioria das casas está escura, mas há uma
mais à frente onde posso ver o brilho da luz das velas. À medida que nos
aproximamos, vozes e risadas intermitentes surgem.

Quase suspiro de alívio.

Sempre havia a chance de eu escolher uma casa onde as pessoas lá


dentro se odiassem. Isso apenas convenceria ainda mais Thanatos do que
ele já acredita: que os humanos estão melhor mortos do que vivos.

— Ali, —eu digo, apontando para a casa em questão.

Nós cavalgamos até lá e descemos. É uma casa de fazenda térrea, com


uma chaminé decorativa de pedra e uma cerca baixa. Mesmo em uma
noite escura e chuvosa, ficar do lado de fora da casa de alguém é uma
ótima maneira de chamar a atenção.

Pegando a mão da Morte, eu o levo até o portão. Silenciosamente, eu


a destranco e conduzo nós dois, indo em direção ao quintal.
Aqui atrás, posso ver mais luz piscando de dentro. As cortinas não
estão fechadas e eu chamo Thanatos até uma janela afastada que dá para
a sala de estar da casa.

Aqui atrás, posso ver mais luz tremeluzindo de dentro. As cortinas


não estão fechadas e eu levo Thanatos até uma janela escondida que dá
para a sala de estar da casa.

Lá dentro, uma família parece estar encerrando a noite. Um menino


e duas meninas estão esparramados no chão, jogando um jogo de
tabuleiro. Um menino mais velho está enrolado em uma cadeira lateral,
lendo um livro. Seus pais estão sentados juntos no sofá, cada um deles
bebendo um líquido âmbar em potes de vidro. As pernas da mulher estão
jogadas sobre o colo do marido enquanto os dois conversam.

O Cavaleiro olha para mim. — E agora?

— Apenas ... observe-os por um tempo, —eu digo.

Ele franze a testa para mim, água pingando de seu cabelo escuro. Ele
estende uma de suas asas escuras, me protegendo do pior da chuva, que
ainda bate em nossa pele.

Olho para o céu. — Você pode parar com a chuva.

— Eu devo? —ele diz. — Gosto muito da maneira como suas roupas


se moldam à sua pele, kismet.
— Thanatos.

O canto de sua boca se curva para cima. — Você só está chateada


porque estou com uma armadura e você não pode apreciar a mesma visão.

Uma risada ridícula escapa, uma que eu tenho que segurar


imediatamente. Mas quando ninguém lá dentro olha pela janela, sei que
ninguém me ouviu.

Ainda assim, dou um empurrão amigável no Cavaleiro. Ele balança


um pouco, mas usa sua asa para me empurrar para ele. Eu caio contra ele,
e ele envolve um braço em minha volta, capturando-me em um beijo.

Conforme seus lábios se movem contra os meus, a chuva diminui,


então para completamente.

Morte interrompe o beijo. — Eu ainda pretendo molhá-la de novo


mais tarde.

— Pare com isso, —eu sussurro, um rubor subindo pelas minhas


bochechas.

Ele sorri, mas volta sua atenção para a família.

A noite deles é bastante mundana, mas ao meu lado, o Cavaleiro ficou


imóvel, seu foco voltado para a família.

Os pais conversam baixinho enquanto as crianças no chão discutem


sobre as regras do jogo que estão jogando. O menino vira o tabuleiro do
jogo e então sua irmã está chorando e correndo para a mãe, que a abraça
e a consola.

O menino mais velho, que estava lendo pacificamente no sofá, agora


aproveita esse momento para pegar um travesseiro e bater no irmão mais
novo. O menino cai, mas antes que ele possa reagir, o pai deles pega outro
travesseiro e bate no menino mais velho. Logo o choro para e toda a
família faz uma guerra de travesseiros improvisada.

Sinto minha garganta fechar. Poderíamos ser eu e minha família dez


anos atrás se você adicionasse algumas crianças lá. Não há grandes
proclamações de amor, mas é tão óbvio na maneira tola e familiar como
eles interagem.

A luta de travesseiros termina com a mãe fazendo cócegas nos filhos


e o marido jogando um deles para o alto e pegando-o, e agora todo o resto
dos irmãos está clamando ao redor do pai, implorando para ser jogado
para cima também.

— Tudo bem, hora de dormir, —ouço a mãe dizer.

Uma das meninas geme e seu irmão mais novo abaixa a cabeça. No
entanto, em dez minutos, a sala de estar está vazia e ponto final.

Morte pisca, como se estivesse acordando de um transe.


— É estranho observá-los, Lazarus, —admite ele, afastando-se da
janela. — Presumi que viver é o que você e eu fazemos, —diz Morte. —
Esqueço que é exatamente a mesma coisa que milhões de outros humanos
fazem todos os dias.

Milhões de humanos. Ele mencionou esse número antes, e eu me apego


a ele. Milhões. Ainda há muitos de nós vivos. Toda a esperança não está
realmente perdida.

Morte está quieto quando voltamos para seu cavalo, que está
mastigando o gramado como se fosse um cavalo de verdade.

Silenciosamente, nós dois voltamos para a sela. É só agora que sinto


o resto do nosso acordo se aproximando de mim. Morte prometeu adiar a
morte de uma cidade até que ele tivesse um vislumbre de sua humanidade.

Agora ele tem.

Talvez ele espere até que realmente cruzemos os limites da cidade,


como ele mencionou antes. Sinceramente, não importa. A ideia do que
vem a seguir faz meu estômago revirar do mesmo jeito. Esta é a parte onde
as pessoas boas morrem, levando consigo todo o seu amor, toda a sua luz,
todo o seu espírito.

A ideia daquelas crianças pequenas não existirem amanhã é dolorosa,


assim como a ideia daquele casal, que bebia álcool em potes de vidro e
colocava as pernas no colo um do outro.

— Deixe todos dormirem primeiro, —eu digo com a voz rouca.

O silêncio se estende entre mim e o cavaleiro, pontuado apenas pelo


som dos cascos do seu corcel.

Sinto a forte inspiração de ar da Morte e quero acreditar que ele sente


alguma hesitação ou arrependimento pelo que está prestes a fazer. Quero
acreditar, mas não sei.

Finalmente, ele diz: — Eu deixarei, kismet. Eu prometo.

AINDA ESTAMOS ABRINDO caminho pela cidade quando Morte diz:


— Ainda preciso encontrar um lugar para você descansar.

— Não quero parar, —eu digo. — Não aqui, pelo menos. —A ideia
de acordar naquela cidade quando todos se forem ... se eu tiver uma
escolha, então eu quero qualquer outra opção.

Depois de outra pausa, Thanatos diz: — Vou encontrar uma casa para
nós fora da cidade, embora não possa prometer nada grandioso.

Não me importo. Nunca me importei.

Vários minutos se passam e ainda estou arrasada com o que vai


acontecer com aquela família—com toda a cidade. Nunca fica mais fácil.

— Conte-me um segredo, —eu digo, minha voz rouca. — Algo que


você sabe que ninguém mais sabe.

Talvez seja o fatalismo que há em mim agora, mas preciso dar sentido
a toda essa angústia. Se o mundo vai queimar—se algum grande Deus lá
fora quer que ele queime—então preciso entender por quê—ou pelo menos
se isso está certo de alguma forma. Porque olhei para isso de todos os
ângulos que pude e ainda não consigo entender.

— Criatura curiosa, —Morte murmura com carinho. — Vou lhe


contar todos os tipos de segredos, —diz ele, — mas você deve abrir mão
dos segredos humanos em troca, —diz ele.

— Que humanos? —Eu não tenho segredos.

— Ah, você tem muitos, —diz ele.

Quer dizer, eu poderia dar a ele a receita secreta da família para a


melhor torta de pêssego da Geórgia, mas, honestamente, isso é o mais
louco que meus segredos podem ser.

— O que você quer saber? —Eu digo.

— Como é ser criança?—ele pergunta.

A pergunta me pega de surpresa. Acho que não deveria, não quando


literalmente passamos uma noite observando minúsculos humanos
correndo.

— Sempre vai ser estranho para mim que você ainda não saiba essas
coisas, —eu digo.

—Conheci muitas almas que morreram jovens, —concorda Morte, —


mas quero saber como são as crianças vivas.

— Não sei ... —eu começo. Quero dizer, essa é uma questão tão
grande que é difícil formar qualquer tipo de resposta real. — São como
todas as emoções desprotegidas que você já teve, —eu digo. — E às vezes
eles são irritantes.

— Irritantes?

Quase rio ao ver o tom de indignação chocada na voz da Morte. O


que quer que ele tenha visto esta noite definitivamente o aqueceu para as
crianças.

— Sim, elas podem ser realmente irritantes, —eu digo, pensando nos
filhos dos meus irmãos, Deus abençoe suas almas. — Quando as crianças
estão irritadas, elas podem ser os merdinhas mais cruéis que você já viu.
E eles ficarão felizes em fazer um milhão de perguntas diferentes. E eles
contam as histórias mais longas—e quero dizer as mais longas.

Sorrio um pouco, lembrando de uma das últimas histórias que minha


sobrinha Briana me contou sobre seu gato Melon. Minha garganta
engasga com a memória. O que eu daria para ter tudo de volta.

— Mas, —acrescento, — na maior parte são apenas alegria e potencial


não filtrados. O mundo ainda não os desgastou e eles são amorosos e
felizes.

Há uma longa pausa.

— Acho que não entendo mais de crianças do que antes de perguntar,


—diz Morte.

Eu rio um pouco. — Não prometi a você que seria boa em responder


às suas perguntas. —Me recosto contra ele. — Agora você vai me contar
um de seus segredos? —Eu digo.

Fica quieto por vários segundos.

— Não gosto de tirar vidas, —admite ele suavemente.

Ainda vou contra ele.

— O que? —Viro-me na sela, tentando ver Thanatos melhor.

— Não gosto de tirar vidas, —ele diz novamente, com mais força, seu
olhar quase desafiador enquanto olha para mim.

Isso é ... eu não esperava por isso. Morte já admitiu que não gosta de
violência, mas não disso.
— Ao contrário de meus irmãos, nunca gostei, —continua ele. —
Faço isso porque devo, mas, Lazarus, é uma agonia terrível na maioria
das vezes.

Estou ouvindo-o corretamente? — Mas ...

—Não estou dizendo que a morte é errada, —continua ele, — ou que


o que está além não seja melhor. Não estou nem dizendo que não acredito
na minha tarefa. Mas o ato de levar alguém que tem medo da morte, ou
que está feliz com a vida, ou que não está pronto—e tão poucos estão
prontos— me cansa até os ossos. Faço meu trabalho severamente, mas
nunca tive alegria em tirar uma vida.

Estou cambaleando.

— Existe alegria no que você faz? —Pergunto depois de um momento.

Ele está quieto novamente.

— Sim, —ele finalmente admite. — Depois de libertá-los. Quando uma


alma vê o que está além, quando ela realmente se lembra do que é e do
que foi durante todo esse tempo—esse momento é de alegria.
Capítulo 51
US Route 29063, Centro do Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

JÁ É TARDE. OU TALVEZ EU ESTEJA APENAS EXAUSTA por ficar


na sela o dia todo. De qualquer forma, meus olhos estão fechando antes
de encontrarmos uma casa para passar a noite.

Luto para manter as pálpebras abertas e acho que estou fazendo um bom
trabalho, só que estou à deriva ... Vou descansar um pouco ...

Acordo sobressaltada quando a Morte percebe meu corpo quase


escorregando da sela.

— Lazarus? —Thanatos diz, uma nota de preocupação em sua voz. —


Você está bem?

— O que? —Pisco, forçando meus pensamentos a se concentrarem. O


cheiro enfumaçado da tocha da Morte está impregnado em minhas
narinas, e é estranhamente reconfortante. — Ah, sim, apenas cansada. —

63
A US Route 290 é uma rodovia leste-oeste dos EUA localizada inteiramente no estado do Texas. Seu terminal
oeste fica na Interstate 10, a sudeste de Segóvia, e seu terminal leste está na Interstate 610, no noroeste de Houston.
Mesmo enquanto digo isso, posso sentir que estou caindo para trás.

Morte faz seu cavalo parar e depois desce.

— O que você está fazendo? —Ainda estou com muito sono para ficar
alarmada.

Em vez de responder, ouço o tilintar da armadura prateada do


cavaleiro. Ele tira o peitoral, depois as braçadeiras e as grevas. Ele não
para até que todos os pedaços caiam na terra ao lado da estrada.

Silenciosamente, ele retorna ao cavalo, montando-o novamente.

Eu fico olhando para a armadura, o metal emitindo um brilho opaco


mesmo no meio da noite. — Por que você o removeu?

O Cavaleiro se acomoda ao meu redor. — Ainda estou procurando


uma casa adequada, kismet. Enquanto isso, você pode dormir em
segurança em meus braços

Minha mente lenta leva mais um minuto para perceber que ele
removeu a armadura para meu conforto.

Não sinta, não sinta, não ...

O calor se espalha pelo meu núcleo e fico emocionada com o gesto,


mesmo que não queira. Não é a mesma sensação de leveza que tenho
sentido perto dele com cada vez mais frequência. Esse sentimento é
profundo e é muito mais assustador do que qualquer outra coisa que senti
por Thanatos até agora.

Morte estala a língua, seu cavalo avançando novamente. Me encaixo


contra o Cavaleiro, ainda enervada. Thanatos passa um braço sobre meu
ombro e sobre meu peito, como uma espécie de cinto de segurança
improvisado.

Inclino minha cabeça contra aquele braço e me deixo adormecer.

— ENCONTREI UMA casa para nós, Lazarus.

Brevemente, a voz da Morte me tira do sono, mas quase


imediatamente volto a dormir. Em alguma parte distante da minha mente,
tenho consciência de que fui tirada do cavalo e carregada para uma casa.

Estou deitada em uma cama e alguém está tirando minhas botas. Me


espreguiço um pouco e depois caio de bruços. Um minuto depois, sinto o
peso reconfortante de um cobertor.

Os lábios de Morte roçam minha têmpora. — Durma bem ... amor.

E eu faço isso.
ACORDO EM UMA cama desconhecida. Uma cama desconhecida e
vazia.

É insano como essa parte vazia parece errada. Só estou dormindo com
o cavaleiro há uma semana—e costumo dormir no contexto mais solto e
sexualizado—mas já me acostumei com a proximidade da Morte.

Esfregando os olhos, sento-me e reprimo um bocejo. Em algum


momento da noite passada, o cavaleiro encontrou uma casa para nós.

Ao meu redor, os livros estão por toda parte. Nas estantes, em cima das
estantes, empilhados ao lado das estantes.

Alguém gosta muito de ler.

Gostava de ler. Eles não estão mais por perto para desfrutar de sua
enorme coleção.

Saio da cama apenas para notar minhas botas esperando por mim nas
proximidades.

Morte tirou minhas botas—e me colocou na cama—e tudo isso deve


ter acontecido poucos minutos depois que ele matou o antigo dono da
casa. Franzo a testa diante das emoções conflitantes que sinto.
Respirando fundo, coloco as botas e saio do quarto.

— Morte? —Eu chamo, indo pelo corredor. Me forço a não olhar para
os retratos de família pendurados nas paredes ou para as obras de arte em
ponto de cruz penduradas ao lado deles. Não quero sentir nada por esses
estranhos cujas vidas tiveram um fim trágico.

— Lazarus, —Morte diz assim que eu entro na sala de estar. Ele está
descansando em um sofá cinza, com as costas apoiadas em um apoio de
braço, as asas penduradas na lateral. Ele está sem armadura, assim como
na noite anterior, e as mangas de sua camisa preta foram puxadas até os
cotovelos. O mais interessante de tudo é que ele tem um dos muitos,
muitos livros desta casa nas mãos.

— Por que você não começou com esse segredo humano? —ele diz,
segurando um romance em formato de brochura. Não consigo ler o título,
mas pela capa parece um mistério de assassinato. — São absolutamente
incríveis, —diz ele.

— Você sabe ler? —Pergunto estupidamente. Nem todo mundo hoje


em dia sabe.

— É claro, —ele responde, como se fosse a coisa mais natural do


mundo. Mas aparentemente, embora saiba ler, ele nunca o fez até agora.

Minhas sobrancelhas se juntam, mesmo quando começo a sorrir. —


Foi isso que você fez a noite toda enquanto eu dormia?

— Era isso, ou ... —Seus olhos ficam semicerrados.

Ou fazer aquilo que temos feito sem parar. Mesmo agora, ao seu olhar,
tudo reacende.

Morte coloca o livro sobre uma mesa de centro de vidro próxima e se


levanta. Ele parece um predador—um predador lindo e letal.

— Como eu quero levar você de volta para aquela cama, —diz o


cavaleiro, sua forma enorme e ameaçadora. — Mas você deve estar com
fome e quero que tenha energia para as coisas que pretendo fazer com
você.

Calor lava meu rosto. — Thanatos, —eu sussurro.

Atrás de nós, posso ouvir o raspar de ossos e o barulho de talheres


vindo do que deve ser a cozinha. Meu estômago revira. Os servos da morte
são apenas mais um lembrete de toda a morte que nos rodeia. Há ossos,
livros e esboços, e em algum lugar desta propriedade há um túmulo com
corpos frescos empilhados, mas não há mais ninguém vivo—ninguém
além de mim e Thanatos.

O Cavaleiro estreita os olhos para minha boca. — Você diz meu nome
assim quando está me repreendendo. Diga-me, Laz, você não quer que
minha língua lave sua boceta ou que minha boca chupe seu clitóris? Devo
parar de falar sobre como desejo entrar em sua boceta apertada até que
seus seios saltem e você geme meu nome? E já que estou nisso, não deveria
mencionar o quanto é erótico ter seus pés pressionados contra minhas asas
enquanto eu me empurro para dentro de você?

Acho que não consigo respirar.

— Humanos não falam uns com os outros dessa maneira, —


murmuro. Pelo menos, ninguém nunca falou comigo dessa maneira.

— Bom, —diz Thanatos, segurando meu rosto. — De qualquer forma,


eu particularmente não gosto das regras arbitrárias de sua espécie, nem de
sua propensão a dançar com as palavras. —Ele sorri um pouco
nefastamente, embora seus olhos estejam sérios. — Acima de tudo, não
quero que você me confunda com algum homem mortal. Eu, Morte, escolhi
você. E você me escolheu.
Capítulo 52
US Route 290, Central Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

OLHO PARA O MUNDO AO MEU REDOR DO ALTO DO corcel da


Morte, nós dois na estrada mais uma vez. Há grama morta, aglomerados
de árvores e alguns carros enferrujados de cada lado de nós. De vez em
quando passamos por um entreposto comercial, por uma casa de fazenda
ou por um prédio fechado com tábuas que há muito perdeu uso.

Nenhum pássaro canta, nenhum inseto zumbe. Até o ar está parado.


Está tudo tão quieto quanto um túmulo. Tem sido assim desde que
Thanatos me levou cativa, mas às vezes o erro desse silêncio toma conta
de mim novamente.

— Quando você viaja, há um destino específico em mente? —Eu


pergunto.

— Vou aonde mais almas me chamam, —diz ele.

Lembro-me de ter assumido isso quando o localizei.

— E para onde eles estão o chamando agora? —Eu pergunto, temendo


a resposta.

— Oeste.

Tenho que reprimir o pânico que surge com esse pensamento. Oeste é
onde Ben está. Especificamente, o noroeste do Pacífico64. Ainda estamos a
milhares de quilômetros de distância, digo a mim mesma, só para acalmar
meus nervos.

— Em primeiro lugar, por que você e seus irmãos vieram para a Terra?
—Eu pergunto.

— Deus olha o mundo através de muitos olhos. Seus, esses arbustos


... — ele aponta vagamente para as plantas que crescem perto da rodovia.
— Os animais fugindo de nós em algum lugar distante.

— Se você entende que Deus—ou o Universo, se você preferir chamá-


lo assim—é tudo, vê tudo, sente tudo, e os humanos têm, até
recentemente, aniquilado grande parte desta terra—então você percebe
que Ela tem machucados.

— Você pode pensar no seu fim como o Universo amputando uma

64
Designa-se po r Noroeste Pacífico (em inglês: Pacific Northwest ou abreviadamente PNW) a região do noroeste da América
do Norte. Segundo as definições, a zona coberta por esta pode ser mais ou menos estendida mas em geral inclui toda a região c ompreendida entre
a costa do oceano Pacífico e a Continental Divide (a divisória de águas das Montanhas Rochosas) e inclui a totalidade dos estados norte-americanos
de Washington, Oregon, Idaho, uma grande parte da província canadiana da Colúmbia Britânica e o Sudeste do Alasca, o norte da Califórnia, uma
parte do Montana e do Território do Yukon.
ferida purulenta, em vez de permitir que a infecção o tome por inteiro. É
por isso que meus irmãos e eu fomos enviados para cá. Devemos parar os
humanos para salvar todo o resto.

Por que eu fiz esta pergunta? A resposta é muito pesada.

— Mas seus irmãos acham que os humanos devem ser salvos, —eu
argumento. Eles mesmos me disseram isso. Deve haver algo para nós que
valha a pena poupar.

— Sim, —Morte concorda. — Eles acham. Mas não é a opinião deles


que importa. A minha é.

E ele deixou bem claro qual é essa opinião.

Tento imaginar o mundo daqui a cem anos, cidades cheias de


esqueletos de uma raça extinta, os edifícios desabados e cobertos de
folhagens. Não é difícil imaginar—já estamos na metade do caminho.

— O que aconteceria se você decidisse poupar a humanidade? —Eu


pergunto.

— De que adianta falar dessas coisas, Lazarus? —ele pergunta. —


Não vou mudar de ideia. Nem mesmo você e sua mente brilhante são
capazes de tal façanha.

Esta não é a primeira vez que a Morte dá a conhecer a sua opinião e,


normalmente, eu consideraria a sua resposta um desafio. Agora, porém,
suas palavras penetram em minha pele.

Ainda não o impedi. A morte ainda mata e continua tão inflexível


como sempre quanto à sua necessidade de matar. Já fiz sexo com o
cavaleiro—muitas, muitas vezes e isso não abalou sua determinação.

Fico ali senta na sua sela por vários segundos antes que minha mágoa
se transforme em raiva.

Qual é a porra do sentido disso tudo?

Normalmente não sou imprudente, mas neste momento passo a perna


por cima da sela e desço do cavalo ainda em movimento da Morte.

Thanatos fica tão surpreso com a ação que, no momento em que ele
tenta me agarrar, já estou desmontada do cavalo e saio andando

— O que você está fazendo, Lazarus? — Ele chama atrás de mim.

Não me preocupo em olhar para ele, minha mente e meu coração em


tumulto, meu sangue esquentando com minha raiva.

Atrás de mim, ouço Thanatos desmontar, mas nada mais.

— Você realmente acha que pode escapar de mim? —Ele diz em tom
de conversa.

Eu o ignoro.

— Não há nada aqui além de mim.


Ainda o ignorando.

Ouço o farfalhar das asas do cavaleiro enquanto elas se abrem, depois


a batida pesada delas enquanto erguem a Morte no ar.

Sua sombra se move sobre mim. Ele se vira no céu, de frente para
mim, a luz do sol brilhando em sua armadura.

O Cavaleiro se abaixa até o chão, aquelas asas escuras dobrando-se


suavemente atrás dele.

— O que está acontecendo, Lazarus? Isso é por causa do que eu disse?


—ele pergunta. — Isso não era para ...

— O que estamos fazendo, Morte? —Eu o interrompo. — O que


estamos realmente fazendo?

Estou cansada—já faz muito, muito tempo. Fingi que minha exaustão
havia passado porque era necessário, mas agora todo o peso de tudo isso
cai sobre meus ombros.

— Você está acabando com o mundo e eu sou o quê? Um pouco de


diversão ao longo do caminho? —Meus olhos ardem quando forço essas
palavras.

— Claro que você não é diversão, kismet. Eu me importo com você


acima de todos os outros.
— As pessoas se dobram, Thanatos, —eu digo com fervor. — Quando
eles cuidam um do outro, elas se dobram.

— Não sou humano, —diz ele.

Ah, seu antigo sistema de segurança.

— Tudo bem, você não é humano e nenhuma das regras se aplica a


você, —eu concordo. — Apenas me deixe ir. —Aponto para a estrada
atrás dele. — Deixe-me me separar de você de uma vez por todas. —Então
posso encontrar meu filho e viver qualquer breve tempo que passarmos
juntos.

A mandíbula de Morte se aperta.

Começo a andar de novo, sem me importar se vou ter que passar por
ele.

— Não, —ele diz, suas asas se abrindo. — Eu não vou deixar você ir.

Eu jogo minhas mãos para o ar.

— Então você quer sua experiência humana e sua tarefa celestial, —


eu digo. — E suponho que você queira que eu cale a boca e siga em frente
com tudo isso.

Ele dá um passo à frente. — Isso está além de mim ...

— Pare, —eu digo. — Pare com toda essa história de 'eu não sou
humano', 'isso está além de mim', 'estou apenas seguindo ordens'. Você
zombou de seus irmãos por tomarem uma decisão ...

— A decisão errada, —ele me corrige.

— Pelo menos eles fizeram uma. Enquanto isso, aqui está você,
pensando que pode brincar de casinha comigo enquanto acaba com o
mundo? Você é o maior hipócrita.

— O que gostaria que eu fizesse? —ele exige, sua voz como um trovão.

Eu poderia arrancar os cabelos. — Tome uma maldita decisão pelo


menos uma vez na vida! —Eu digo com veemência. — E não faça isso por
mim—ou mesmo por Deus. Faça isso por si mesmo. Por você. Você é mau
e amoroso e gentil e impiedoso e refinado e ingênuo e sábio e complicado.
Esse é o humano em você. Pare de fingir que não existe e reconheça isso.

Ele me encara por um longo tempo, sua mandíbula se mexendo.

E esta é a história de como eu, Lazarus Gaumond, fodi o mundo.

— Sou inflexível porque sou velho, —ele admite. — Sou intransigente


porque sempre ... sempre tive que ser assim. Ninguém escapa da morte.
Ninguém.

Exceto eu. Embora, considerando a minha situação, alguém possa


argumentar que na verdade não escapei da morte.
— Mas, —continua Thanatos, parecendo pesar suas palavras, — eu
ouço o que você está dizendo. Não questionei minhas próprias suposições.
Não pensei nisso até agora, quando você me pediu isso. —Ele concorda.
— Vou tentar. Eu farei isso por você.

Passamos um longo momento olhando um para o outro.

— Não vou prometer à humanidade um final feliz, —diz ele, com


olhos escuros tristes. — Não posso lhe dar isso. Mas posso te dar
felicidade. Eu quero te dar isso. Então, Lazarus, —ele diz
cuidadosamente, — o que faria você feliz?

Levo um momento para realmente processar essa virada na conversa.


Ele realmente quer me dar algo. A Morte Inflexível está tentando se dobrar.

Eu recupero minha compostura.

— Ben, —eu finalmente digo, encontrando minha voz. — Ben é o que


me faria feliz.

— Seu filho, —Morte diz cuidadosamente. — Você gostaria dele ao


seu lado?

— Vivo e ao meu lado. —Meu coração bate loucamente. Por que estou
pensando nisso? É uma ideia maluca, muito maluca.

Vejo Thanatos engolir delicadamente e aquele músculo em sua


bochecha flexiona novamente. Merda, só essa reação significa que ele está
falando sério.

— Então, assim que chegarmos à Costa Oeste65, —Morte diz


cuidadosamente, — viajaremos para o norte e pegaremos seu filho.

Não consigo respirar, estou sufocando com minha própria esperança.

— E depois? —Eu forço as palavras.

— E então seu filho estará com você, conosco—vivo e bem—até o fim.

Nem percebo que estou chorando até sentir uma lágrima escorrer do
meu rosto.

À minha frente, as feições duras da Morte suavizam.

Em vários passos longos ele diminui a distância entre nós. Estendendo


a mão, ele enxuga minhas lágrimas.

— Este é um choro bom ou ruim? —ele pergunta, erguendo as


sobrancelhas.

— Um bom, —eu admito suavemente.

Ben não vai morrer.

Me afasto. — Pensei ... —as palavras ficam presas na minha garganta,

65
A Costa Oeste dos Estados Unidos, também conhecida por Costa do Pacífico designa geralmente os três estados
mais ocidentais do grupo de estados contíguos: Califórnia, Oregon, Washington, e Alasca.
— pensei que você não fizesse exceções sobre matar humanos. —Por mais
que eu queira ver Ben de novo, abraçá-lo novamente, eu o quero mais
vivo.

— Você me pediu para dobrar. Isso é dobrar, certo?

Não sei o que é, mas também não me importo muito. A ideia de ter
Ben de volta em meus braços deixa meus joelhos fracos.

Morte parece sentir isso também.

Ele me pega como se fosse um herói valente e eu uma donzela


indefesa. E por um momento, posso acreditar naquele conto de fadas.

— Venha, kismet, —ele diz, nos levando de volta ao seu cavalo. —


Vamos cumprir minha promessa.

AGORA QUE TENHO outro objetivo além de seduzir Morte, estou mais
impaciente do que nunca para chegar até meu filho. Então, quando, no
meio da tarde, Thanatos tira seu cavalo da estrada, fico ansiosa para voltar
a ele.

— Não preciso ir ao banheiro, —digo, supondo que seja por isso que
saímos da rodovia.
— Não foi por isso que nos paramos, kismet, —diz Morte, saltando do
cavalo. Ele aterrissa com um baque pesado.

Voltando-se para mim, ele estende a mão para me ajudar a descer de


seu cavalo.

Eu encaro suas mãos, mas não faço nenhum movimento para descer
de sua montaria. — Então por que paramos?— Eu pergunto.

Ele me dá um olhar engraçado, como se fosse óbvio. — Cometi o erro


na noite passada de esperar muito para procurar uma casa. Não cometerei
o mesmo erro novamente.

Uma casa. Certo. Morte colocou na cabeça que preciso ser mimado
com as casas mais luxuosas, embora para ele isso signifique escolher
lugares que às vezes ficam longe das rodovias por onde passa. E quando
chegarmos lá, ficaremos por dias. Já posso sentir o corpo coberto de suor
do Cavaleiro deslizando contra o meu enquanto ele empurra para dentro
de mim, e posso imaginar a maneira exata como suas asas vão pairar sobre
nós, fechando o mundo exterior.

Meu sangue corre em minhas veias só de pensar nisso. Eu quero tanto


isso. Tanto, desesperadamente.

Mas há outro desejo conflitante que me mantém firmemente sentada


na sela: Ben. No momento, sinto uma necessidade urgente de chegar até
ele o mais rápido que puder, mesmo que isso signifique roubar mais alguns
dias de vida das cidades no caminho.

— Lazarus? —Morte ainda está me alcançando, ainda esperando.

Eu olho para baixo em um de seus antebraços revestidos de armadura.


Uma procissão de enlutados é martelada no metal prateado. Eu sigo a
linha daqueles enlutados, o desenho continuando em seu brasão e em seu
peitoral.

Meu olhar se move até o dele. — Não vamos parar.

Uma linha se forma entre suas sobrancelhas, e ele franze a testa. —


Mas você precisa descansar. —E não quero que você me considere um monstro.
Quase posso ouvir aquelas palavras não ditas dele.

— Quando a noite cair,—eu digo, — podemos descansar na beira da


estrada.

— Não. —Há ferro em sua voz.

Ainda não saio da sela.

— Não preciso de casas chiques, —digo. — Só preciso ... de você. —


Essa última parte escapa.

— Kismet, —ele finalmente diz. A palavra está cheia de muita


esperança sem fôlego. Seus olhos estranhos e adoráveis procuram os meus.
— Ansiava por ouvir você dizer tais coisas. E há muito temo que nunca o
faria. —Sua atenção cai para meus lábios, e posso sentir seu desejo de
roubar um beijo—e muito mais.

O olhar do Cavaleiro retorna aos meus olhos. — Posso negar muito


pouco a você. —Ele trabalha sua mandíbula. — Tudo bem, —diz ele, —
eu lhe concederei esse desejo—por enquanto. Esta noite, seremos apenas
você e eu e o mundo diante de nós.
Capítulo 53
Harper66, Texas

Julho, Ano 27 dos Cavaleiros

QUANDO FINALMENTE PARAMOS, É REALMENTE NO meio do


nada. A terra é uma colcha de retalhos de olmos selvagens67 e extensões
gramadas e pouco mais.

— Você tem certeza de que não quer ficar dentro de uma casa? —
Thanatos pergunta pela vigésima vez. O sol poente está lançando sobre ele
a luz mais suave e temperando todas as suas arestas duras.

— Está tudo bem, —insisto, tentando ignorar o que a visão dele está
fazendo comigo.

Ele franze a testa como se não acreditasse em mim.

Morte desata seu peitoral, jogando-o de lado. Posso ver em seus olhos

66
Harper é uma Região censo-designada localizada no estado norte-americano do Texas, no Condado de Gillespie.

67
Os olmos são árvores decíduas e semidecíduas que compõem o gênero Ulmus da família Ulmaceae . Eles estão distribuídos pela
maior parte do Hemisfério Norte, habitando as regiões temperadas e tropicais - montanas da América do Norte e da Eurásia, estendendo-se
atualmente para o sul no Oriente Médio até o Líbano e Israel, e através do Equador no Extremo Oriente até a Indonésia.
estrelados que ele gosta de se livrar disso.

Como tirar o sutiã no final do dia.

Um sutiã de metal grande.

Meu olhar retorna para o peitoral enquanto ele remove o resto de sua
armadura. Por capricho, vou até o pedaço de metal descartado,
ajoelhando-me ao lado dele para poder estudar as imagens marteladas
nele. Há rosas, lápides, esqueletos e um barco que atrai as pessoas. Há o
que parece ser um ovo e uma cobra comendo o próprio rabo. Há luas
crescentes e espirais, e bem acima do coração está a imagem da mulher
presa no abraço de um esqueleto.

Passo os dedos pelas imagens estranhas e aparentemente não


relacionadas. Quanto mais olho, mais encontro, e fico muito confusa com
tudo isso.

— O que são todos esses desenhos? —Eu digo. Já vi detalhes


semelhantes na sela da Morte.

O cavaleiro joga de lado outra peça da armadura.

— São imagens ctônicas.

Eu o encaro sem expressão.

— Imagens da morte, —diz ele.


— Nem todos parecem a morte. —Esqueletos e sepulturas à parte. —
Tem um ovo aqui, —eu digo.

— Esse é o ovo cósmico, do qual tudo nasceu.

Franzo a testa, olhando para a imagem. — Tudo começou com um


ovo?

— Eles são símbolos humanos, kismet, não celestiais, —diz ele,


removendo a última peça da armadura e vindo para o meu lado.

Minha atenção se afasta do ovo, em direção à imagem desenhada


sobre o que seria o coração do cavaleiro, caso ele estivesse usando a
armadura. Eu traço aquela imagem perturbadora do esqueleto e da mulher
embrulhados nos braços um do outro. Vida e morte, os amantes.

— Eles estão inextricavelmente ligados um ao outro, —diz Morte


agora, percebendo para onde minha atenção se desviou.

Enquanto reflito sobre isso, a procissão de mortos de Thanatos chega


ao nosso acampamento. Os esqueletos e suas carroças nos cercam, criando
uma espécie de parede com seus corpos e as carroças. Eles já estão tirando
bugigangas das carroças, sacudindo cobertores, desarrolhando vinho,
descobrindo e acendendo lanternas. Quando eles finalmente terminam a
configuração, fico sem fôlego.

Já dormi ao ar livre antes, com pouco mais que uma mochila como
travesseiro. Sei como é isso. O que eu nunca experimentei é ... isso.

Eles cobriram o chão com cobertores e colocaram lanternas nas


bordas, dando um brilho suave e romântico contra o céu crepuscular. Há
uma bandeja com comida adequada para viagens artisticamente
arrumada, e tento não pensar nos dedos esqueléticos que meticulosamente
posicionaram cada item exatamente assim.

Acredito que glamping68 seja isso.

— Você não precisava que eles armassem tudo isso, —eu digo.

— Sim, Laz, —Thanatos diz muito sério, — eu precisava.

Sob o brilho das lanternas, Morte parece um santo, seu corpo e asas
polvilhados pela suave luz âmbar. Também brilha em seus olhos, fazendo-
os parecer derretidos.

Pela segunda vez desde que paramos, fiquei sem fôlego só de vê-lo.
Ele sempre me afetou dessa maneira?

Cada centímetro de autopreservação dentro de mim quer dizer sim,


mas a verdade é que isso parece diferente. Tem sido diferente, como se
meus olhos finalmente estivessem vendo algo que meu coração já conhece.

68
Glamping é um portmanteau de "glamouroso" e "acampamento" e descreve um estilo de acampamento com comodidades
e, em alguns casos, serviços de estilo resort geralmente não associados ao acampamento "tradicional".
Como se pudesse ouvir meus pensamentos, a Morte se move em
minha direção.

— Sério, linda Lazarus, —ele murmura. Ele estuda meu rosto como
se quisesse imortalizá-lo em sua mente. — Você arrancou minha solidão
de mim, —ele respira, — e espero que nunca a devolva.

Com isso, ele me beija. As asas do cavaleiro me envolvem até que a


Morte seja tudo o que existe.

Ouço cada som suave que nossos lábios fazem e sinto como se meu
coração estivesse à mostra.

O beijo é longo e demorado, e quando ele finalmente se afasta, posso


ver seu desejo esticado como uma corda de arco.

— Lazarus, o que está acontecendo comigo? Não consigo saciar esta


sede que tenho por você.

Meu coração bate mais forte enquanto olho para ele. — É assim que
acontece com os humanos, —eu digo. Quando eles se apaixonam. Estou com
muito medo de pronunciar essa última parte.

Então, em vez disso, minhas mãos vão para as roupas de Thanatos,


porque a intimidade física é muito, muito mais fácil do que falar sobre
amor com meu antigo inimigo. Puxo a camisa do cavaleiro até que ele me
ajuda a levantá-la pela cabeça.
Esse é todo o incentivo que a Morte precisa. Suas mãos encontram a
gola da minha camisa.

Riiiip.

Eu suspiro quando ele rasga o material ao meio, expondo meu sutiã.


Suas mãos se movem para pegar meu jeans, mas eu agarro seu pulso antes
que ele possa destruí-lo também.

Bons jeans são difíceis de encontrar.

Sob o olhar aquecido da Morte, tiro as botas e as meias, desabotoo as


calças e saio delas, chutando-as para o lado. O cavaleiro tira a última peça
de roupa, deixando-o nu—exceto pelos glifos brilhantes que cobrem seu
corpo do pescoço à panturrilha. São tantos que dão a ilusão de que seu
interior nada mais é do que pura luz branca.

Thanatos se ajoelha, seus dedos longos e hábeis retirando suavemente


minha calcinha antes de voltar para pegar meu sutiã. Isso também ele
remove com precisão, deixando-o cair no chão. Então ele me pega e me
leva para a cama improvisada.

É no momento em que ele me deita que percebo o barulho de ossos e


me lembro das dezenas e dezenas de esqueletos ao nosso redor.

— Não posso fazer isso com seus revenant assistindo, —eu sussurro.

Thanatos dá uma risada rouca. — Lazarus, eles não têm alma nem
mente. Eles não conseguem compreender o que fazemos.

Apesar das palavras da Morte, um instante depois, os esqueletos caem


em pedaços, seus ossos batendo ao cairem na grama.

— Melhor? —ele pergunta.

Concordo com a cabeça e estremeço quando o ar fresco da noite


acaricia minha pele.

Estou com frio apenas por um momento.

Morte se estende sobre mim, suas asas roçando nossas pernas.


Justamente quando penso que as coisas estão prestes a esquentar, o
cavaleiro dá um beijo suave no fundo da minha garganta.

— Entregue-se a mim, Lazarus, —ele sussurra contra a minha pele.

— Não é isso que estamos fazendo? —Eu digo, meus dedos


enroscando-se em seu cabelo sedoso.

Ele ri contra a minha carne, onde ele trilha mais beijos pelo meu
esterno. — Não estou falando de sexo.

— Então do que você está falando? —pergunto, sentindo-me


repentinamente pouco à vontade.

Lentamente, o olhar de Thanatos se ergue e, quando se fixa no meu,


vejo em seus olhos.
Quero o seu amor.

Ele não diz as palavras, mas não é necessário.

Estou balançando a cabeça, minha garganta fechando. — Não


consigo. —Eu mal consigo pronunciar as palavras.

Ele tirou minha família de mim. Ele quase tirou meu filho de mim.
Eu não me importo que ele seja a Morte e esse seja o trabalho dele. Eu
nem me importo que ele não goste do ato. Ele ainda fez isso e continuará
fazendo. Essa é uma linha difícil para mim.

— Você não consegue o quê?— ele diz suavemente.

Ele vai me fazer dizer isso.

— Não consigo amar você.

Por um instante, o cavaleiro parece ferido. Então a expressão


desaparece como se nunca tivesse existido.

Vejo seus ombros subirem e descerem enquanto ele respira fundo. —


Você não pode ou não quer?

Eu hesito.

Thanatos percebe.

— Ah, você não vai. —O triunfo brilha em seus olhos e seus lábios se
curvam em um sorriso astuto. — Estou correto, não estou?
Eu não me incomodo em negar.

— Por que você está sorrindo? —Eu exijo em vez disso.

— Uma coisa seria se você não pudesse me amar—você seria incapaz


disso, —diz ele. — Mas você não vai me amar, e isso é uma escolha.

— Exatamente. — Estou escolhendo não amá-lo.

Por que ele ainda parece tão satisfeito?

Ele responde como se tivesse ouvido meus pensamentos. — Eu não


preciso que sua mente mude, kismet, simplesmente seu coração.

Meu pulso está subindo. — Eu não sei o que você quer dizer.

— Sua mente é forte, Laz, mas seu coração é ainda mais forte. Tudo
o que preciso fazer é convencer seu coração de que isso é real e verdadeiro,
e sua mente o seguirá.

—Eu ainda não vou mudar de ideia, —eu digo teimosamente. Ele viu
por quanto tempo consigo me apegar a uma causa.

Agora sua expressão é absolutamente perversa. — Você e eu somos


imortais. Mesmo que leve séculos, mesmo que você e eu sejamos as últimas
criaturas existentes, prometo-lhe o seguinte: farei com que você me ame—
mente, corpo e coração.
Capítulo 54
Interestadual 1069, sudoeste dos Estados Unidos

Agosto, Ano 27 dos Cavaleiros

OS DIAS PASSAM COMO TERRA PELAS PONTAS DOS meus dedos


e a estrada se estende diante de nós. Alguns dias não saímos da casa que
ocupamos ou do acampamento que montamos—às vezes nem saímos da
cama. Morte pode não ter apetite por comida, mas é quase insaciável
quando se trata de sexo. Dificilmente estou melhor.

Digo a mim mesma que estou ganhando um pouco mais de tempo


para o mundo—ou talvez, se esse plano maluco realmente funcionar, um
fim total para esse apocalipse—mas a verdade é que estou igualmente
ávido por ceder a esse desejo que tenho ignorado por meses e meses.

No entanto, quando voltamos à sela e continuamos, a culpa toma


conta de mim. Deveria estar encorajando a Morte a viajar o mais rápido
possível para chegar até meu filho. Qualquer coisa menos parece uma

69
A Interstate 10 é uma autoestrada interestadual de sentido leste-oeste, a mais meridional desse tipo nos
Estados Unidos. Ela se estende desde o Oceano Pacífico na Pacific Coast Highway, na Califórnia, e segue até a Flórida.
traição para Ben. Mas nem mesmo essa culpa é suficiente para eu mudar
de atitude, especialmente quando cada hora extra nos braços do cavaleiro
me deixa muito mais perto de convencê-lo a parar com a matança.

E assim a Morte e eu viajamos em um ritmo lento e tranquilo.

Quanto mais para oeste vamos, mais as cidades ficam mais estreitas.
Esta parte do país está verdadeiramente vazia. Apenas quilômetros e
quilômetros de deserto inóspito. É uma paisagem nítida e estranha, sem
cor, exceto pelos arbustos baixos e pelo céu azul acima de mim—embora
mesmo estes também pareçam apagados, como se o sol tivesse
branqueado toda a cor.

Anseio pela terra verdejante onde cresci.

Ainda descansamos em casas se as encontrarmos, mas a Morte teve


que desistir de sua busca para me abrigar em propriedades grandiosas. A
verdade é que esta terra seca é demasiado dura para se ganhar a vida. Com
base nas poucas evidências que vi, a única ocupação constante nestas
regiões vem dos fazendeiros e vaqueiros que conduzem rebanhos
selvagens de gado pelas planícies, e eles não vivem como reis.

Das casas pelas quais passamos, a maior parte delas são


remanescentes da época anterior aos cavaleiros. À medida que o sol
começa a pôr-se, paramos numa destas habitações abandonadas. É uma
coisa desgastada e chata, o sol branqueou seus ossos e o poço da casa já
secou há muito tempo. O interior está cheio de sujeira fina e alguns
lagartos assustados.

Me movo por ela como já fiz cem casas antes. Noto alguns papéis de
parede descascados, uma televisão quebrada, alguns livros infantis
rasgados e algumas estrelas que brilham no escuro que deveriam ter estado
no teto, mas agora estão espalhadas pelo chão.

Faço uma pausa e realmente absorvo tudo. Já se passou um quarto de


século desde que esta casa foi afetada pela chegada dos cavaleiros. A
criança que leu esses livros ou olhou para aquelas estrelas agora é um
adulto—se, de fato, ainda estiver viva. Uma geração inteira—a minha
geração—cresceu com as nossas vidas de cabeça para baixo. E a próxima
geração pode nem crescer.

Ouço os passos da Morte no corredor.

— Não quero ficar aqui. —Minha voz sai como um murmuro.

Ele pára na porta do quarto. — Tudo bem, kismet.

É tão simples assim. Cinco minutos depois estamos de volta ao cavalo


de Thanatos.

Atrás de nós, a casa desaba. Parece que um sonho antigo e desgastado


finalmente está desmoronando para sempre—algo triste, mas há muito
esperado.
Forço minha mente a partir da família que viveu lá. Já tenho muitos
fantasmas que me assombram.

Realmente não preciso de mais nenhum.

Ouvi dizer que os humanos podem se acostumar com praticamente


qualquer situação. Não sei se isso é verdade, mas me acostumei com esse
estilo de vida: viajar, depois acampar e depois viajar um pouco mais.

Até me acostumei com o meu ... relacionamento entre a Morte e a


morte.

— Conte-me outro segredo, —digo, recostando-me nos cobertores que


cobrem o chão. Um prato de comida e vinho está ao lado, e ao nosso redor
os esqueletos e suas carroças circulam em nosso acampamento.

Thanatos está deitado de lado, vestindo apenas as calças. Suas


tatuagens iluminam todos os planos nítidos de seu rosto.

— Hmm ... —Ele está passando os dedos pelas minhas feições, mas
agora sua mão se move para os botões da minha camisa. — Não vou lhe
contar um segredo, —diz ele, — mas vou lhe mostrar um.

Não tenho ideia do que ele está falando.

Thanatos desabotoa minha camisa e a tira dos meus braços. Então ele
tira meu sutiã. Depois minhas calças—depois as dele.
Uma risada escapa. — O que você está fazendo? —Pergunto. Não há
mais nada sobre isso que seja segredo entre nós.

Morte acaba de me despir e me puxa para seus braços. Ele envolve


minhas pernas em volta de sua cintura, nos prendendo nesse abraço
íntimo.

— Você me mostrou como os humanos fazem sexo, —diz ele, me


levantando enquanto se levanta da cama. Suas asas negras se abriram atrás
dele. — Agora é hora de mostrar a você como os anjos fazem isso.

Assim que ele fala, ele salta no ar. Suas asas batem em suas costas,
cada golpe poderoso nos levando cada vez mais alto para o céu noturno
frio.

Me agarro a Thanatos, meus braços em volta de seu pescoço e minha


bochecha pressionada na dele. O cabelo escuro do cavaleiro faz cócegas
na minha pele. Não importa que a Morte já tenha voado comigo em seus
braços antes, meu medo ainda aumenta. A terra está muito abaixo.

— Relaxe, —ele respira, — eu estou segurando-a.

Eu tento, eu realmente tento, mas então os céus estremecem ao nosso


redor quando uma tempestade se aproxima, e eu aperto meu aperto.

— Lazarus, estou segurando você, —diz ele, passando a mão pelas


minhas costas. — Eu juro.
Relutantemente, eu afrouxo meu aperto sobre ele. Consigo até afastar
meu rosto quando o céu brilha. Por um momento, aquela caveira se
sobrepõe às feições de Thanatos. Então se foi.

— Seu rosto ... —eu paro. Já vi isso diversas vezes, mas nunca fica
menos perturbador.

— A vida e a morte são amantes, kismet, —ele sussurra, movendo


meus quadris para nos alinhar. — Somos amantes. Tem sido sempre assim.
Será sempre assim.

Com isso, Thanatos se dirige para dentro de mim. Um suspiro escapa


quando eu o agarro com mais força. Não há nada em que se agarrar,
exceto a própria Morte, e é tão assustador quanto emocionante.

Seu pau me estica, e alguma coisa já foi tão boa?

— Quero ouvir seus gemidos, kismet, —ele sussurra em meu ouvido.

Quando não respondo imediatamente, seus lábios caem em um dos


meus seios. Ele beija com força, seus dentes roçando meu mamilo.

Agora eu gemo, mudando um pouco as pernas para acomodá-lo


melhor. Ele penetra em mim de novo e de novo enquanto atrás dele, suas
asas batem contra o vento. Ele guia febrilmente seu pau para dentro e para
fora, para dentro e para fora.

— Thanatos. —Gemo o nome dele.


— Não há nada melhor do que estar enterrado em seu calor apertado,
—diz ele. Ele beija a parte inferior da minha mandíbula. — Quero enchê-
la de mim e garantir que você nunca esqueça que eu estive aqui.

Puxo seus lábios nos meus e roubo um beijo, uma das minhas mãos
se enroscando em seu cabelo.

O sexo dos anjos é selvagem.

Uma das mãos da Morte desliza entre a costura da minha bunda, até
que seus dedos tocam o outro buraco.

Interrompendo o beijo, fico tensa em seus braços. A ação faz o pau de


Thanatos estremecer.

Ele faz um barulho de dor. — Relaxe, kismet. Você pode me dizer para
parar e eu paro. —Ele espera que eu o faça.

Uma parte de mim pensa nisso, mas outra parte está curiosa demais
para parar as coisas agora.

Quando não digo nada, um dos dedos da Morte pressiona minha


entrada traseira até ceder.

Respiro fundo, mesmo quando a pressão de alguma forma aumenta


dentro de mim. Cada impulso dele se torna muito mais sensível.

— Não acredito que isso foi ideia sua, —digo.


Na escuridão, posso ver o brilho dos olhos escuros do cavaleiro
enquanto ele observa minha expressão. — Da próxima vez, pode ser seu.

— Você é obsceno, —eu respiro.

Em resposta, ele pressiona mais o dedo.

Jesus. Eu me sinto incrivelmente satisfeita assim, e tê-lo trabalhando


em mim de ambos os lados está fazendo com que a sensação aumente
rapidamente ... e aumente ...

— Thanatos ...

É muito.

Com um grito, eu desmorono, meu orgasmo explodindo através de


mim.

Ele geme quando eu gozo, e então seus quadris bombeiam febrilmente


contra os meus. Momentos depois, sinto-o engrossar dentro de mim.
Morte grita meu nome quando ele goza, seu pau batendo em mim de novo
e de novo.

Nosso clímax parece durar para sempre, mas, eventualmente, sinto-o


retirar o dedo para poder me abraçar.

Fico desossada em seus braços, meu corpo trêmulo e exausto.

Lentamente, Thanatos nos abaixa de volta ao chão, pousando ao pé


da nossa cama improvisada.

Ele me deita nos lençóis antes de se colocar ao meu lado.

Morte olha para mim e minha respiração fica presa. Por um instante,
uma sensação estranha passa por mim, como se tudo que eu pensei ter
entendido fosse uma miragem, e que a cortina que separa a vida da morte
é tão fina que eu poderia realmente ter um vislumbre ...

— Lazarus.

Meu olhar se concentra em Thanatos. As marcas em sua pele brilham


como estrelas e parecem antigas – ele parece antigo. Antigo e de outro
mundo.

— Você é excelente, —diz ele. Ele se inclina para frente e beija meu
pescoço, seu cabelo escuro fazendo cócegas em minha pele. —
Requintada, problemática, curiosa e viva.

— Achei que você não gostasse do fato de eu estar viva.

Ele me dá um sorriso suave. — Até mesmo os anjos podem estar


errados.
Capítulo 55
Interestadual 10, Arizona 70

Agosto, Ano 27 dos Cavaleiros

EU ACORDO AO SOM DE UIVOS ECOANDO.

Sento-me, meus olhos examinando a escuridão em busca de qualquer


animal que possa fazer aquele barulho. Não consigo ver além da parede
de carroças e dos revenant ao nosso redor, embora aqueles gritos estranhos
pareçam estar próximos.

Espere, uivos?

Mas todos os animais fogem da morte ...

Os carrinhos de madeira tremem e agora posso ouvir gritos e berros e,


porra, aqueles não são lobos.

São os gritos de guerra dos saqueadores.

Respiro meu grito no momento em que Thanatos se levanta ao meu

70
O Arizona, um estado no sudoeste dos EUA, é conhecido pelo Grand Canyon, uma fenda com quilômetros de
profundidade esculpida pelo rio Colorado. Flagstaff, uma cidade montanhosa coberta de pinheiros da espécie pinus ponderosa, é um importante
ponto de acesso ao Grand Canyon. Outro local natural de destaque é o Parque Nacional de Saguaro, que protege a paisagem repleta de cactos do
Deserto de Sonora. Tucson é território da Universidade do Arizona e abriga o Arizona-Sonora Desert Museum.
lado, com o cabelo despenteado. Não tenho tempo para ler isso antes que,
ao nosso redor, dezenas de figuras se materializem na escuridão.

Eles descem sobre nosso acampamento como um enxame de


gafanhotos. Um homem pula em uma carroça, fazendo com que ela quase
tombe. Outro quebra um esqueleto.

Morte levanta a mão, mas antes que ele tenha a chance de liberar seu
poder letal, uma flecha o perfura no coração. Uma fração de segundo
depois, outra acerta em sua cabeça.

— Thanatos! — grito, investindo contra ele enquanto, por todo o


acampamento, os esqueletos restantes desmoronam, seus ossos caindo
contra o chão.

Pego o Cavaleiro quando ele cai para trás e o aninho em meus braços,
enquanto nossos atacantes avançam em nossa direção.

— Morte, —digo novamente, segurando seu rosto.

Sei que ele está morto, sei que a atitude perseverante a fazer é largar o
corpo e lutar, mas sou tomada por um pânico paralisante ao ver meu
Cavaleiro ferido em meus braços. Um soluço escapa.

Quantas vezes eu o vi morrer? Uma dúzia? Mais?

Nunca me senti assim antes. Como se o mundo estivesse desabando


ao meu redor. Mal consigo respirar perto dele.
Outra flecha passa assobiando, atingindo meu ombro. Grito,
alcançando a ferida. Isso me tira da minha dor.

Levante-se, Lazarus.

Me forço a ficar de pé, minhas mãos e antebraços escorregadios com


o sangue do cavaleiro. É um pequeno favor que eu decidi vestir uma
camisa grande e uma calcinha. Nem sempre faço isso quando me deito
com a Morte.

— Não machuquem a mulher! —alguém grita.

É quando eu realmente noto os homens se aproximando de mim, com


armas em punho e apontadas.

Parei de usar lâminas em mim. Qual é a necessidade quando estou me


deitando com meu inimigo mortal? Ele foi a única pessoa para quem as
guardei.

Só que agora, ao ver figuras sombrias desmantelando o nosso


acampamento, é que me arrependo. Posso ouvi-los mexendo em nossas
coisas e assobiando enquanto encontram isso ou aquilo.

— A criatura está morta? —uma profunda voz masculina chama.

— É melhor que esteja, —outro responde.

— Peguem a mulher! —mais uma ordem.


Mudo meu peso, me preparando enquanto observo aquelas formas na
escuridão. Posso não ter minhas lâminas, mas não estou totalmente
indefesa.

O primeiro homem que me alcança agarra meu antebraço, mas assim


que toca minha pele, sua mão cai e, um segundo depois, ouço o baque de
seu corpo caindo no chão.

Olho em sua direção confusa, mas então outro homem se aproxima


de mim. Eu ataquei, batendo meu punho em seu nariz.

— Filha da puta! —ele grita, sua mão escorregando de mim.

Outro tenta me agarrar por trás e eu enfio o cotovelo em seu estômago.


Ele grunhe, tropeçando. Eu giro e me aproximo dele. Posso ver o cabo de
uma lâmina no coldre ao seu lado e faço um ataque desesperado para pegá-
la.

Meus dedos roçam o punho por uma fração de segundo antes que
outro homem me ataque pelo lado.

Bato no chão com força, meus dentes estalando juntos enquanto


minha cabeça bate de volta contra a terra.

Ainda assim eu luto. Melhor lutar até a morte do que suportar


quaisquer planos que essas pessoas tenham reservado para mim.

Meu agressor agarra um dos meus braços, mas depois cai para longe
de mim, inerte. Não tenho tempo para me preocupar com ele antes que
outro homem se ajoelhe sobre mim e eu me debata, tentando tirá-lo de
cima de mim.

— Pare—de—lutar—vadia, —ele diz, trazendo seu rosto para perto


do meu.

Bato minha testa em seu nariz o mais forte que posso, sorrindo quando
ouço um estalo. Ele faz um som que está em algum lugar entre um uivo e
um gemido.

Não vejo seu punho se mover, mas o sinto bater em meu rosto. Minha
cabeça cai para trás e a dor é tão intensa que me tira o fôlego que preciso
para gritar. Antes mesmo que eu possa processar o golpe, seu punho atinge
minha bochecha de novo—e de novo e de novo. Tento cobrir o rosto, mas
é inútil, aquele punho continua me batendo.

— Não a mate! Não a mate! —Alguém grita.

O homem não responde, nem para. Não até que alguém o tire de cima
de mim.

Outro homem me coloca de pé. Eu balanço ali, enquanto tudo ao meu


redor, a noite dá lugar a uma escuridão mais profunda, na qual caio
felizmente.
ACORDO COM PRESSÃO nos ombros e uma dor latejante e surda.
Estremecendo, tento mover meus braços, apenas para encontrar
resistência. Piscando os olhos abertos, observo o que me rodeia.

Há tendas ao meu redor, algumas feitas de lona, outras de couro.


Além das tendas, consigo distinguir um prédio velho e desgastado, embora
não saiba dizer o que é. E o calor me pressiona por todos os lados.

Ainda no deserto.

À minha frente há um caminho de terra que corta entre as tendas. Ao


longo do caminho estão quase uma dúzia de outras mulheres, com as
mãos atadas e amarradas a estacas de madeira próximas. Algumas delas
estão chorando, várias outras parecem catatônicas. O resto tem olhos
aguçados, mas todos parecem queimadas de sol e miseráveis.

Pessoas—noto que a maioria são homens—estão circulando por esse


estranho posto avançado. Eles usam lâminas, arcos e aljavas, e têm uma
aparência cruel e intransigente.

Olho para minha camisa excessivamente grande, que agora está


coberta de respingos de sangue e sujeira. Minhas últimas lembranças
voltam para mim de uma só vez.
Os saqueadores atacaram nosso acampamento ontem à noite. Eles
saquearam nossos pertences, e a Morte ... Morte ...

Faço um pequeno barulho ao me lembrar de Thanatos sendo ferido.


Minha garganta se fecha e algo que parece muito com tristeza surge em
mim.

Ele está bem, ele está bem, ele está bem, tento dizer a mim mesma. Ele
provavelmente foi deixado para morrer e é apenas uma questão de tempo
até que ele acorde.

Mas o sol está subindo no céu e o ar da manhã já está


desconfortavelmente quente e a Morte já deveria estar acordada, não
deveria?

A menos que eles o tenham. A menos que eles o estejam machucando.


A náusea toma conta de mim, seguida pela ansiedade.

Tenho que afastar o terror absoluto que sinto por Thanatos. É tolice
temer por um cavaleiro que não pode morrer e que está, na verdade,
matando pessoas aos milhares. Mesmo assim, minha ansiedade aumenta,
eclipsando minha própria situação terrível.

Outro pensamento preocupante surge na minha cabeça: essas pessoas


conseguiram se aproximar da Morte.

Presumi que Thanatos mataria sem esforço—sua própria existência


acena para as pessoas morrerem. É para manter os humanos vivos que ele
luta.

No entanto, quando fomos atacados, ele estava acordado, pelo menos


por alguns segundos, e ninguém havia caído morto. Isso deveria ter
acontecido—era assim que sempre acontecia.

Era quase como se o que antes era natural para ele agora tivesse uma
intenção real.

Por que isso aconteceria?

E o que, aliás, a Morte estava fazendo quando eles atacaram? Porque


se eu não soubesse, teria dito que o Cavaleiro adormeceu ao meu lado.

Puxo minhas restrições. Nenhuma das minhas perguntas importa


muito no momento. Não quando estou amarrado e mantido em cativeiro.

Minha cabeça ainda lateja, minha garganta está seca e minha pele tem
uma sensação de aperto e formigamento, como se eu estivesse sentado ao
sol por muito tempo—o que provavelmente já aconteceu.

Pelo menos estou vestida. Quero dizer, realmente poderia ter sido pior.

Meus olhos voltam para as mulheres, que estão amarradas e


ensanguentadas.

— Onde estamos? —Minha voz sai como um murmúrio, e eu tenho


que limpar minha garganta enquanto meu olhar se move de um rosto para
o outro. Nenhum deles vai olhar para mim.

Dois homens passam, um deles olhando para nós, como se houvesse


algo inerentemente sexual em mulheres sujas e espancadas.

Eu olho para o homem. — Quem são essas pessoas?

— Você vai calar a boca? —sussurra uma mulher na minha frente.


Seus olhos percorrem o caminho até um homem que eu não notei antes.
Ele está sentado em uma velha cadeira dobrável do lado de fora de uma
tenda próxima, com os braços cruzados sobre uma barriga generosa
enquanto se recosta e conversa com outro homem. Em seu quadril há um
chicote de aparência perversa. Outro chicote está apoiado na tenda atrás
dele.

Jesus.

— Cynthia, seja legal, —diz outra pessoa.

— Você quer ser chicoteada de novo? —Cynthia sibila de volta. —


Porque eu não quero.

Meu estômago se revira. Ataques violentos à meia-noite? Mercadorias


saqueadas e mulheres mantidas como reféns? Tudo no meio de um deserto
desolado? Já ouvi falar de salteadores de estrada, mas isso é muito mais
complexo e organizado.
— O que eles estão planejando fazer conosco?— Eu digo suavemente.

Uma mulher choraminga com a minha pergunta.

Cynthia, que parece totalmente aborrecida, diz: — Cale a boca.

— Ei! —o homem corpulento na cadeira grita. Seu assento range


quando ele se levanta um momento depois, sua mão movendo-se para o
chicote. Ele tem um rosto insípido, mas há algo em seus olhos que me faz
pensar que ele gosta de machucar as mulheres.

O homem se aproxima, olhando para Cynthia antes de seu olhar


pousar em mim. Ele me olha de cima a baixo, então, sem dizer nada, se
vira e volta por onde veio.

Todos nós o vemos ir. Ele passa por sua cadeira, segue pela fileira de
tendas, até desaparecer de vista.

Depois que ele sai, todo o grupo de mulheres parece relaxar.

— Podemos muito bem conversar agora, —diz a mulher ao meu lado.


Ela tem cabelos sujos e olhos verdes vívidos.

— Sim, agora que todas nós vamos apanhar, —Cynthia murmura,


lançando-me outro olhar.

Uma das mulheres do outro lado diz: — Você queria saber que lugar
é esse, certo?
Cautelosamente, eu aceno.

Respirando fundo, ela diz: — Esses caras fazem parte do Sixty-Six71.

Quando minha expressão não muda, a mulher exala. — Eles são um


grupo de bandidos que patrulham as estradas nesta parte do país.

— Por que ninguém os parou? —Eu digo.

Ninguém diz nada, e tenho a impressão de que ninguém sabe


realmente por que razão foi permitida a existência de um crime
organizado como este. É bastante fácil imaginar que este canto quase
deserto do país é demasiado remoto para ser bem policiado.

— Eles atacaram todos os seus acampamentos? —pergunto, mudando


um pouco para aliviar a pressão nos braços e ombros.

A pergunta faz outra mulher choramingar. O resto do grupo está


quieto. Finalmente, Cynthia diz: — Sim. Ou, no caso de Morgan, —ela
acena para a mulher de cabelos castanhos sentada ao lado dela, — foi um
suborno que deu errado.

Há claramente mais em tudo isso. E o fato de saberem o nome uma


da outra ...

— Há quanto tempo vocês estão aqui? —Eu pergunto.

71
Quer dizer sessenta e seis
— Ele está voltando, —Cynthia sibila, me interrompendo. — Todas
calem a boca. —Ela me dá um olhar significativo.

Estreito os olhos para ela, mas me viro para encarar o homem com o
chicote. Ao lado dele está outro homem com chapéu de cowboy. Os dois
não param até que estejam bem na minha frente.

O homem com chapéu de cowboy se agacha na minha frente.

— Bom dia, doçura, —ele diz. Enquanto ele fala, avisto um dente
frontal prateado. — Estávamos esperando você acordar.

Olho para ele. Quem quer que seja esse homem, ele teve algo a ver
com a morte de Thanatos e minha captura.

— Por que não começamos com as coisas fáceis—eu sou Shane, —


diz ele.

Apenas continuo olhando para ele. As mulheres ao meu redor estão


ameaçadoramente silenciosas, embora eu possa ouvir uma delas fazendo
barulhos suaves, como se estivesse tentando parar de chorar.

Quando o silêncio se estende por muito tempo, Shane me dá um


sorriso fácil, mostrando aquele dente de prata.

— Agora, não seja rude, —diz ele. — Apresente-se.

Bem, agora que sei que boas maneiras significam muito para ele ...
Cuspo na cara dele.

Ele é rápido, eu admito isso. Não vejo a mão dele se mover antes que a
parte de trás dela toque minha bochecha.

Tapa.

Minha cabeça vira para o lado, minha pele lateja. Minha cabeça já
latejante parece que vai explodir de dor e pressão.

— Não deixamos nossas bocetas agirem aqui, —diz ele em tom de


conversa. — A menos, é claro, que esse seja o tipo de coisa que gostamos.

O homem atrás dele ri.

Mexo meu queixo enquanto olho para os dois, minha bochecha em


chamas.

— Então, diga-me, —ele continua, semicerrando os olhos enquanto


me avalia, — como é que uma mulher como você acaba ficando com um
Cavaleiro do Apocalipse?

Ele sabe quem é Thanatos?

Shane deve ter visto algo em meu rosto porque ele diz: — Eu não teria
acreditado se não tivesse visto aquelas asas com meus próprios olhos.

Minha pulsação bate entre meus ouvidos. O que essas pessoas fizeram
com meu Cavaleiro?
— Mas isso ainda não responde à minha pergunta, —continua Shane.

Dou-lhe um sorriso hostil. — Você pode morrer confuso.

Outro tapa.

Minha cabeça vira para o lado quando ele me ataca novamente.


Tenho que segurar um grito.

— Você sabe quantos homens foram necessários para amarrar você?

O encaro passivamente.

Ele se inclina de forma conspiratória. — Cinco. —Ele balança a


cabeça. — Desperdicei cinco bons homens para capturá-la.

Demoro um momento para perceber que ele quis dizer que cinco
homens morreram na tentativa de me capturar. Lembro-me de como, na
noite passada, alguns dos meus agressores caíram logo depois de me
agarrarem pelos antebraços ... antebraços cobertos pelo sangue do
Cavaleiro. Meus olhos se arregalam.

Até o sangue de Morte é letal.

— Então, —Shane continua, — você responderá minhas perguntas,


começando com como é que você pode tocar aquela criatura e viver. —
Seus olhos passam por mim novamente, e posso vê-lo se perguntando:
quem é você?
Já sei que não pareço particularmente especial.

Eu levanto um ombro em resposta à sua pergunta. — Eu não sei como


ou por quê. Eu simplesmente posso.

— Ele está realmente morto? —Shane pressiona.

— Quem? —Eu pergunto. — Seus homens? Sim, eles realmente estão


...

Tapa.

Esse tapa é mais leve que os outros, mas ainda sinto gosto de sangue
na boca enquanto meus dentes cortam minha bochecha.

— Não seja estúpida, garota, —diz Shane. — O Cavaleiro. Ele está


morto?

Faço cara feia para ele. — Claro que ele está morto, —eu respondo
com veemência. — Ele tinha uma flecha atravessada no rosto.

— Uma flecha que mais tarde saiu sozinha, —diz ele, observando-me
com atenção.

Tento não reagir, embora me sinta alarmada.

— Ele pode se regenerar, não pode? —Shane pressiona.

Ao nosso redor, o homem corpulento e as mulheres cativas ficaram


quietos, ouvindo nossa conversa.
— Até que você me desamarre, não vou te contar nada ...

Tapa!

Grito quando o homem me dá um backhand72 com todo o seu peso


atrás dele, o golpe jogando minha cabeça para o lado. Tenho que cerrar os
dentes enquanto supero a dor latejante. A pele ao redor dos meus olhos
está começando a inchar e o latejar na minha cabeça está me deixando
enjoado.

— Você não está em posição de fazer exigências, doçura, —diz Shane.


— Agora, você pode cooperar ou posso fazer você cooperar. A escolha é
sua.

Levanto meus olhos para ele, deixando-o ver quão pouco medo está
em meu rosto. Então, sem querer, abro um sorriso e uma risadinha escapa.
Ao nosso redor, está terrivelmente quieto.

— Você realmente acha que me assusta? —Eu digo. — Já vi cidades


inteiras caírem e todos que amo morrerem. Fui ferida mais vezes do que
posso contar e fui forçada a sobreviver a tudo isso. Conheci o diabo e ele
realmente é um anjo caído. Então vá se foder, suas ameaças não assustam

72
O backhand é um golpe no ténis no qual se balança a raquete ao redor do corpo com as costas da mão precedendo a
palma da mão. Exceto na frase backhand volley, o termo refere-se a um groundstroke (ou seja, aquele em que a bola quicou antes de ser atingida).
Contrasta com o outro tipo de groundstroke, o forehand.
...

Shane bate com o punho na minha cara e eu desmaio.

Quando acordo novamente, fui desamarrada do poste, embora


minhas mãos ainda estejam amarradas nas costas. Dois homens estão me
segurando pelos braços e me puxando para frente, meus pés arrastando-se
contra o chão. Meu cabelo solto está pendurado na cabeça e posso ver
gotas de sangue escorrendo do meu nariz dolorido para a terra.

Eu gemo. Não é a pior dor que já suportei, mas ainda dói muito.

— Shane! Shane! —um homem grita ao longe.

Levanto um pouco a cabeça só para ver o que é toda essa comoção.

Um homem de vinte e poucos anos está empurrando as pessoas para


fora do seu caminho enquanto corre em nossa direção, com os olhos fixos
no homem na minha frente—Shane, provavelmente.

O corredor para, com suor escorrendo pela testa enquanto tenta


recuperar o fôlego.

— Shane, —diz ele, respirando fundo, — ele desapareceu.

Fico imóvel, concentrando-me na conversa.

À minha frente, Shane para, assim como os homens que me seguram.

— O que você quer dizer com ele desapareceu? —diz Shane. Posso ouvir
a violência acumulada em sua voz.

— O Cavaleiro, —diz o homem, sem fôlego. — Sua jaula estava vazia


...

A terra estremece então. Só um pouco. Algumas pedras deslizam e


algumas pessoas próximas olham em volta.

Shane se aproxima do mensageiro, sua voz ficando baixa: — Então


onde ... diabos ... ele ...

De repente, o chão balança. Shane fica tenso e o homem à sua frente


tropeça um pouco. Há uma pausa momentânea em que a terra parece se
reinstalar, mas então começa a tremer violentamente. As tendas
balançam—algumas delas até caem. Mais à frente, ouço pessoas gritarem
e fugirem de um ponto no caminho onde o chão está inchando. O monte
fica cada vez maior até que, de repente, se abre. Dele, uma mão ressecada
se estende.

Agora os gritos se transformam em berros e as pessoas estão fugindo


da criatura morta-viva que se ergue do chão.

Ao me ajoelhar ali, sorrio.

Thanatos finalmente acordou. E ele vai se vingar.


Capítulo 56
Interestadual 10, Arizona

Agosto, Ano 27 dos Cavaleiros

O REVENANT ABRE CAMINHO PARA FORA, MESMO quando alguns


dos homens e mulheres mais corajosos estão agarrando facões e facas de
caça e se movendo em direção à criatura. Shane é um deles.

À distância, posso ouvir mais gritos começando, junto com sons


úmidos e carnudos. É o suficiente para assustar meus guardas. Um deles
me solta, correndo de volta pelo caminho. O outro homem hesita, depois
me solta, recuando antes de virar-se e fugir também.

No alto, ouço o grande rugido de asas. Meu coração bate loucamente


enquanto olho para o céu. Vejo a forma escura da Morte vindo em nossa
direção.

Eu sorrio novamente.

— Eu correria se fosse você, —eu digo para as costas de Shane.

Ao nosso redor, os gritos estão aumentando. As pessoas estão


começando a correr para todos os lados. Posso ouvir alguém gritando: —
Zumbi! Zumbi! Zumb ... —A voz se interrompe em um gorgolejo.

Shane gira para me encarar assim que o revenant termina de se


arrastar para fora da terra.

Ele me olha quando me levanto.

— Lidarei com você em um momento, —diz ele, apontando sua


lâmina para mim.

— Mas você não vai, —eu digo enquanto o cavaleiro se abaixa no


chão vários metros atrás de Shane. — A Morte vai matar você e então, se
você tiver muito azar, ele forçará seu cadáver a me servir.

Thanatos pousa, em meio à carnificina como um verdadeiro anjo do


apocalipse. Suas asas negras se dobram atrás dele.

Sei que Morte está ciente de mim, mas seus olhos irados estão focados
em Shane. Ele caminha em direção ao homem no momento em que Shane
se vira. Ele quase perde o equilíbrio quando avista o Cavaleiro.

— Lazarus está certa, —diz Thanatos. — Você morrerá e então servirá


a minha companheira.

Por cima do ombro da Morte, o revenant recém-ressuscitado agarra


um homem com barba ruiva e cabelo ruivo pegajoso.

O homem barbudo balança a lâmina que segura contra o revenant,


cortando tendões ressecados e quebrando várias costelas. O zumbi o
agarra pela cabeça e o torce.

Estalo.

Shane pragueja, cambaleando para trás. Enquanto isso, a Morte o


observa, com um olhar frio e ameaçador no rosto.

Segundos depois, o homem barbudo se levanta, o pescoço


estranhamente curvado, os olhos cegos.

— Jackson? —Shane diz para o homem.

Jackson caminha em direção a Shane, sua arma ainda na mão. Shane


mal tem tempo de bloquear o golpe.

— Que porra é essa, cara! —Ele grita. Mas Jackson vem até ele
novamente. E então o zumbi mumificado e alguns outros homens recém-
mortos se aproximam de Shane até que ele se torne o centro de todas as
atenções. Ouço um osso quebrar, depois outro. Shane grita de dor e posso
vê-lo lutando contra todos esses novos adversários.

Ele olha por cima do ombro, com verdadeiro terror em seus olhos,
quando eles começam a despedaçá-lo.

Leva menos de um minuto para Shane morrer, e apenas alguns


segundos para ele voltar à vida. Seus olhos estão opacos e sem vida, se foi
aquele temperamento explosivo e a confiança cruel. Agora ele se move
sem pensar com os outros.

O grupo deles vem em minha direção, mas em vez de atacar como


fizeram com todos os outros, os revenant me cercam, montando guarda.

O olhar da Morte cai sobre o meu e vejo sua vingança se dissolver em


alívio.

— Lazarus.

Ele avança, e o círculo de revenants se abre para deixá-lo passar. Ele


me toma em seus braços. Suas mãos deslizam pelas minhas costas e pelas
minhas amarras.

— O que é isso? —Como ele pergunta, ele os tira.

Eu desabo contra ele, meu corpo parecendo desossado.

Morte se afasta por tempo suficiente para olhar meu rosto. Seu olhar
para sobre meu olho inchado e minha bochecha.

Por um instante, há assassinato em seus olhos, e pode ser minha


imaginação, mas juro que os gritos ao nosso redor aumentam.

Ele estende a mão, acariciando suavemente minha carne ferida. —


Sinto muito, Lazarus, sinto muito.

Sob seu toque, sinto o calor se espalhar sob minha pele. Minha carne
formiga enquanto a dor em meu rosto diminui.
Eu me inclino em sua mão. — Não há nada pelo que se desculpar. —
Fomos emboscados no meio da noite. Ele foi uma vítima tanto quanto eu.

— Eu deveria estar em guarda, —ele insiste. — Eu não deveria ter ...


—adormecido. Ele não consegue falar essa última parte.

Um grito alto e feminino desvia minha atenção do cavaleiro. Ao nosso


redor, o resto do acampamento ainda está sendo massacrado.

As mulheres. Prendo a respiração.

Merda.

Volto-me para Thanatos. — Por favor, pare seus revenant.

Sua mandíbula endurece. — Por que?

— Apenas, por favor, faça isso.

De repente, os mortos caem no chão.

Eu estremeço e solto um suspiro.

— Obrigada, —eu digo. Deslizo do abraço da Morte e volto correndo


pelo caminho.

— Lazarus! —Morte me chama, mas eu não paro e não respondo.

Onde elas estão? Onde elas estão?

Cada centímetro deste lugar parece igual—apenas barracas, caminhos


de terra e mais barracas—e estou desorientada com tudo isso.

Escorrego em uma poça de sangue, quase caindo antes de me


recuperar e continuar correndo.

— Cynthia! —eu grito. — Morgan!

O resto do acampamento está em silêncio. Muito silencioso.

Eu corro e corro e corro.

Eventualmente, eu encontro as mulheres. Cheguei tarde demais.

Elas ainda estão amarradas aos seus postes—Cynthia, Morgan e


tantas outras—com os corpos caídos, os olhos sem vida abertos.

De repente, meus joelhos cedem. Deixo escapar um grito de


frustração, com lágrimas ardendo em meus olhos. Elas mereciam coisa
melhor. Muito melhor.

Ouço novamente o bater das asas da Morte, mas tudo o que tenho
olhos no momento são essas mulheres.

Estou respirando com dificuldade enquanto a última poeira ao meu


redor assenta, o silêncio é quase doloroso.

Quando pedi à Morte que parasse com seus revenants, ele não fez
simplesmente isso. Ele também matou os últimos vivos.

— Lazarus, o que você está fazendo aqui? —ele pergunta, se


aproximando de mim. — Você está chorando? —Ele parece chocado com
a visão, como se a ideia de eu chorar por alguém neste acampamento fosse
absurda. E como a Morte saberia que essas mulheres não eram os
bandidos? Ainda há muito sobre nós, humanos, que ele não entende.

Lágrimas estão escorrendo dos meus olhos. — Essas outras mulheres


foram vítimas, assim como nós, —digo.

Thanatos olha para as mulheres em questão.

— E isso é importante para você, —diz ele. Não é uma pergunta e, no


entanto, há confusão nela. Elas eram estranhas apenas um dia atrás.

— Elas não mereciam morrer.

— Kismet, todo mundo merece morrer, até mesmo aquele homem


abominável que eu matei há poucos minutos.

Ele se ajoelha na minha frente e estende a mão, acariciando a pele que


ele curou recentemente.

— Viver é morrer, —acrescenta. — Esse foi o acordo que você fez


quando veio a este mundo. Você não pode ter um sem o outro.

Morte continua. — Toda a sua vida, todo o seu sofrimento, toda a sua
perda—foi tudo por isso. —Ele gesticula para os mortos ao nosso redor,
suas asas bem abertas. — Todos vocês correram em minha direção durante
toda a sua vida.
Capítulo 57
Interestadual 10, Arizona

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

PRESUMO QUE O ACAMPAMENTO EM QUE FUI MANTIDA FOI o


último que vi dos Sixty-Six—ou quem quer que fossem essas pessoas.

Mas ... não. Uma semana depois do nosso último encontro,


enfrentamos mais problemas.

Ao lado da estrada à nossa frente há um grande armazém


abandonado. É uma das poucas estruturas que vimos neste trecho solitário
da estrada.

Não estamos a mais de cem metros dele quando uma rajada de flechas
se afasta da estrutura em direção à Morte e a mim. Já vi ataques aéreos
suficientes para saber que a trajetória deles é muito rasa para nos atingir,
mas ainda assim me faz recuperar o fôlego.

Os projéteis batem na estrada desgastada à nossa frente.

— Pare! —uma voz masculina profunda chama, afastando-se do


armazém. — Temos mais flechas apontadas para você. — Ele aponta o
dedo para cima, em direção ao topo do prédio.

Meu olhar se move para a linha do telhado da estrutura. Só agora noto


a dúzia de homens e mulheres postados ali, com seus arcos apontados para
mim e para a Morte.

O controle de Thanatos sobre mim aumenta e sei que este é o fim


deles. Prendo a respiração, esperando que seus corpos atinjam o telhado.

Em vez disso, Morte para nosso cavalo.

— Sabe, —ele diz suavemente, — eu realmente passei a desprezar arcos


e flechas.

O homem no chão continua a caminhar, uma das mãos apoiada


levemente em uma lâmina embainhada no quadril. Não sei o que ele
pretende fazer com aquela lâmina, ele está muito longe até mesmo para
jogá-la em nós.

— Esta aqui é uma estrada com pedágio, — ele grita, apontando para
a rodovia. — Ninguém passa sem pagar.

No telhado do armazém, ouço muito claramente um dos arqueiros


dizer: — O que em nome do diabo ... São asas?

Um silêncio cai sobre todo o grupo—eu, Thanatos, os arqueiros. Até


o homem no chão ficou rígido, como se também tivesse ouvido.
— Cavaleiro, —ouço alguém sussurrar. Isso é seguido por murmúrios
baixos e frenéticos.

Morte inclina a cabeça em minha direção, seus lábios roçando minha


orelha. — Eu levo todos os homens para o túmulo, —diz o Cavaleiro. —
Tenho compaixão por todas as almas. Mas não tenho nenhum para um
comportamento como esse. Eles profanam a sacralidade que tenho em
relação à vida e me profanam.

Thanatos se endireita na sela. — Todos vocês vão morrer, —ele


anuncia. — Mas vou fazer você sofrer por isso antes de levar isso adiante.

Aparentemente, esse é todo o incentivo que o grupo assustado precisa.


O homem no chão corre em direção ao armazém, desaparecendo lá dentro
no momento em que os arqueiros disparam outra saraivada de flechas.

Uma rajada de vento afasta os projéteis. O grupo já está recarregando


e liberando mais uma rodada. O vento também os leva embora.

Indiferente às armas apontadas contra nós, a Morte guia seu cavalo


para frente.

— Por que você não está matando eles? —Pergunto baixinho


enquanto o grupo recarrega mais uma vez.

— Tão ansiosa por suas mortes? —Thanatos pergunta, com diversão


sombria em sua voz.
Viro-me e dou uma olhada ao cavaleiro. Ele dá um sorriso malicioso,
mas no momento em que seu olhar volta para nossos agressores, ele se
dissolve. Sinto um arrepio ao olhar para aquele rosto impiedoso dele.

Assim que mais uma rodada de flechas é lançada—e imediatamente


desviada do curso—ouço um som sufocado vindo de um dos homens no
telhado. Olho para cima bem a tempo de ver nosso negociador—o homem
que fugiu de volta para o armazém—cambalear perto da beirada do
telhado. Ele aperta a garganta e desmaia, desaparecendo de vista.

— Vince! —grita uma mulher perto dele.

Outro grita: — Levante sua bunda, cara!

Vince, no entanto, não se levanta.

Dois arqueiros deixam seus postos para verificar o homem caído,


enquanto os outros continuam atirando flechas e a Morte continua
desviando-os do curso.

Estamos quase no armazém quando ouço as pessoas acima de mim


começarem a gritar.

— Ei, ei, ei!

— Que porra é essa, Vince?

Não posso dizer o que está acontecendo, não até que duas pessoas
cheguem à beira do telhado. Um deles—nosso ex-negociador—está com
a mão na garganta de outro homem.

Agora eu sei o que aconteceu com Vince.

— Vince, solte Roy!

Mas Vince não é mais Vince.

Roy agarra a mão de Vince no ponto em que ela aperta sua garganta,
e os outros tentam separar os dois, mas então, em meio ao caos, outro
homem parece tropeçar e engasgar, depois desaparece de vista. Um
momento depois, ele também se levanta.

Thanatos para nosso cavalo e observa tudo isso com calma de onde
está sentado atrás de mim.

— Thanatos, —eu digo.

— Ah, eu adoro quando você diz meu nome assim, —ele responde.

Desta vez, porém, estou escandalizada por um motivo totalmente


diferente, que nada tem a ver com sexo.

— Pare com isso, —eu digo.

— Vidas violentas levam a mortes violentas, kismet. Este é o dízimo


que os obrigarei a pagar.

Presumi que estar comigo estava fazendo com que Thanatos se


suavizasse em relação aos humanos, mas depois da última demonstração
de poder da Morte e agora disso, não tenho mais certeza. Acho que talvez,
em vez disso, eu o tenha tornado humano da pior maneira.

Pego sua mão, segurando-a com força. — Por favor.

Meu apelo cai em ouvidos surdos.

Leva mais um minuto para todos morrerem, e é horrível, muito, muito


horrível. Posso ouvir seus gritos e só posso imaginar seu terror confuso
enquanto seus antigos amigos os matam. É um tipo de traição sem sentido.

Uma vez que cada um deles morre, e aquele silêncio se instala, aquele
silêncio formigante e chocante. Tudo o que consigo ouvir é minha própria
respiração irregular.

— Você poderia simplesmente ter matado todos eles de uma vez, —


eu digo. Mesmo que eles nos extorquem e nos ameacem e provavelmente
nos machuquem, ainda estou nervosa com o poder cruel da Morte.

— Eu poderia, —o Cavaleiro concorda.

Ele estala a língua, e isso é aparentemente tudo o que ele tem a dizer
sobre isso.
Capítulo 58
Interestadual 10, oeste do Arizona

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

QUANDO IREMOS DEIXAR ESTE DESERTO amaldiçoado? Passamos


semanas atravessando-o e, pelo que posso dizer, ainda estamos bem no
meio.

O dia começa quente e a temperatura só parece subir. Eu suo, suo e


suo. Tão rapidamente quanto chega, o suor evapora.

Acho que este canto do mundo queimou o memorando de que o verão


acaba.

Morte me passa uma jarra de água de um dos alforjes. Sem palavras,


eu aceito, engolindo o líquido.

Estamos ficando sem água. As duas últimas bombas pelas quais


passamos estavam secas e não tenho ideia de quando encontraremos
outra. Não ajuda o fato de termos acabado de passar pelos restos do
esqueleto de um cavalo, seus ossos brancos como alvejantes limpos por
necrófagos. Nas últimas semanas, passamos por muitas áreas que eram
em grande parte inabitáveis, mas, por alguma razão, eu não me sentia tão
perto da morte como agora.

Talvez seja simplesmente porque já faz muito tempo que não vejo
campos de grama verde e terra úmida. Parece que viajamos para um lugar
onde as coisas morrem.

Meu pânico aumenta e tenho que dizer a mim mesmo que nem o calor
nem a falta de água realmente importam—vou sobreviver a tudo isso. Mas
é desconfortável pra caralho mesmo assim.

Como se estivesse lendo minha mente, a Morte diz: — Precisaremos


encontrar água para você em breve. Este não é lugar para você, minha
Laz.

Minha Laz. Meu coração pula com o carinho. Não deveria, não depois
de tudo o que vi o Cavaleiro fazer, mas tente dizer isso ao meu estúpido
órgão.

Sei Eu sei que a Morte está esperando que eu ceda à emoção que sinto
por ele. Eu sei que ele quer que eu o chame de coisas doces também, para
que eu mostre qualquer sinal de que isso é mais do que apenas carne e
luxúria se unindo. E eu sei que ele está disposto a esperar.

‘Mesmo que demore séculos, mesmo que você e eu sejamos as últimas criaturas
existentes, prometo-lhe o seguinte: farei com que você me ame—mente, corpo e coração.’
Suas palavras ainda ecoam em minha mente.

E sinto que isso está acontecendo. Isso tem acontecido.

Eu empurro esses sentimentos para baixo. Em vez disso, estudo o anel


que Thanatos usa enquanto me segura na sela. Aquele feito de uma moeda
dos mortos.

— Como funciona? —Eu pergunto, correndo meu dedo sobre o rosto


da moeda. — Como você conduz as pessoas para a vida após a morte se
você também está aqui comigo na sela?

Não sei por que demorei tanto para expressar essa pergunta. É um dos
primeiros que tive sobre o Cavaleiro da Morte.

— Eu continuo dizendo a você, kismet. Não sou verdadeiramente


humano. Posso fazer coisas que desafiam a natureza e a lógica humanas.
Assim como posso libertar milhares de almas de sua carne com um único
pensamento, também posso liderá-las enquanto estou sentado aqui na sela
com você—assim como a Fome pode fazer com que colheitas a milhares
de quilômetros de distância se estraguem ao mesmo tempo. Assim como
a Pestilência pode espalhar doenças em vários lugares—e em várias
espécies—ao mesmo tempo. É uma parte intrínseca de quem somos.

Eu penso sobre isso por vários momentos.

— Conte-me sobre todas as pessoas que você conheceu ao longo do


tempo, —eu começo de novo.

Seus lábios roçam minha têmpora e posso sentir seu sorriso contra
minha pele. Ele gosta das minhas perguntas e acho que também adora
respondê-las. Até ele me capturar, seus pensamentos eram apenas dele.

— Isso levaria vidas inteiras, Lazarus, —ele diz suavemente. — Acho


que você quer uma resposta mais curta do que essa.

Ele é muito literal.

— Dê-me um resumo—você conheceu todo mundo, não é? —eu


disse. — George Washington73, Cleópatra74 e Marco Antônio75, Genghis
Khan76 ... —eu poderia continuar.

— Por um momento, e nada mais, —diz ele.

73
George Washington (Condado de Westmoreland, 22 de fevereiro de 1732 – Mount Vernon, 14 de dezembro de 1799) foi um líder
político, militar, agricultor, empresário do tabaco e estadista norte-americano. Um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, foi o primeiro presidente
daquele país de 1789 a 1797. Anteriormente, liderou as forças patriotas à vitória na Guerra de Independência.

74
Cleópatra VII Filopátor (em grego clássico: Κλεοπᾰ́τρᾱ Φιλοπάτωρ; romaniz.:Kleopátrā Philopátōr; 69 – 10 ou 12 de
agosto de 30 a.C.) foi a última governante ativa do Reino Ptolemaico do Egito. Como membro da dinastia ptolemaica, foi descen dente de Ptolemeu
I Sóter, um general greco-macedônio e companheiro de Alexandre, o Grande.

75
Marco Antônio ou Marco António (83–30 a.C.; em latim: Marcus Antonius), conhecido também apenas como Antônio, foi um
político da gens Antônia da República Romana nomeado cônsul por três vezes, em 44, 34 e 31 a.C. com Júlio César, Lúcio Escribônio Libão e Otaviano
respectivamente. Foi ainda mestre da cavalaria do ditador em 48 e 47 a.C..

76
Gengis Khan (em mongol: Чингис Хаан; romaniz.:Tchingis Khaan; 1162 — 18 de agosto de 1227), também grafado como Gengis
Cã, Gêngis Cã ou Gengiscão, foi o primeiro grão-cã e o fundador do Império Mongol.
— Como foi isso? Como eles são?

— As almas são diferentes quando removidas de sua carne. Você quer


o humanismo deles, não posso dar isso a você melhor do que suas próprias
histórias escritas podem, embora eu lhe diga o seguinte: George
Washington estava em paz quando vim buscá-lo, Marco Antônio e Cleópatra
lamentaram as vidas que deixaram para trás, e Genghis Khan ficou
terrivelmente satisfeito com seu fim.

— E aquelas pessoas que encontramos lá atrás ... —ele gesticula atrás


de nós, — o que a maioria deles sentiu foi choque. Eles tiveram problemas
para processar o fato de que estavam mortos.

Estou fascinada por isto—poder ouvir os pensamentos das pessoas


que morreram. Minha mente vagueia pela minha própria família.
Naturalmente, a dor aumenta, como sempre acontece. Mas é um presente
estranho ouvir sobre a continuidade de suas personalidades, mesmo após
a morte.

— Então, —eu digo, — meus irmãos e irmãs, minha mãe e meus


sobrinhos e sobrinhas ...

— Eles ficaram confusos por um momento porque suas mortes


ocorreram sem aviso ou dor. Depois disso, houve paz.

Forço a súbita onda de emoção.


— Como é, pegar almas? —Eu pergunto, desviando o assunto da
minha família.

Morte fica muito quieto e, por alguns momentos, tudo o que ouço é o
barulho dos cascos do cavalo.

— Pisco e os séculos se passaram, —ele finalmente diz. — O homem


que eu peguei há pouco se deteriorou em pó. As estradas da cidade que
acabei de visitar alteraram seus caminhos. A roda do tempo dá voltas e
mais voltas, mais rápido do que consigo entender.

— Ainda parece assim, mesmo agora? —Eu pergunto.

Há outra pausa longa.

— Não, —ele admite. — Ser humano me fez vivenciar o tempo de


maneira muito diferente. —Depois de um momento, ele acrescenta: —
Costumava odiar isso. Cada minuto parecia uma eternidade, e a única
coisa que pontuava a monotonia da minha existência era o barulho dos
cascos do meu cavalo. Achei que poderia enlouquecer.

— Mas então, —ele diz, sua mão encontrando a borda da minha


camisa. Seus dedos roçam a pele abaixo, — as coisas mudaram quando eu
encontrei você. Agora, fico absurdamente grato quando o sol demora a se
pôr ou a nascer. Vim a saboreá-lo como faço com sua pele, kismet. Cada
minuto que se passa é mais um gasto com você, e não consigo imaginar a
vida voltando a ser como era antes.

Minha garganta se fecha. Ninguém nunca falou assim comigo—como


se o mundo só girasse porque estou nele—e isso me deixa sem fôlego. Mal
consigo processar que a Morte se sente assim—e que eu reajo a isso. Isso
seria muito mais fácil se Thanatos não fosse também responsável por toda
a minha dor.

Aperto os lábios e, embora meus pensamentos estejam acelerados,


não digo nada, e nós dois ficamos cavalgando em um silêncio incerto.
Capítulo 59
Interestadual 10, sudeste da Califórnia 77

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

ACABAMOS ENCONTRANDO ÁGUA LOGO DEPOIS DE entrarmos


na Califórnia. Meu coração dispara quando percebo que estamos quase
chegando ao extremo oeste dos Estados Unidos. Estou mais longe de casa
do que jamais imaginei que estaria e muito mais perto de ver meu filho
novamente.

Também estamos muito mais perto do fim do mundo e há muitas,


muitas pessoas vivendo neste lado do país. Passei todo o meu tempo
ressentido com as grandes extensões de terra árida que cruzamos e nunca
parei um momento para me deleitar com o fato de que então não havia
ninguém para a Morte matar.

O mesmo não pode ser dito da Costa Oeste.

77
A Califórnia, estado no oeste dos EUA, estende-se da fronteira mexicana ao longo da costa do Pacífico por
quase 1.500 km. Seu território inclui praias à beira de penhascos, floresta de sequoias, montanhas na Serra Nevada, campos ag rícolas no Central
Valley e o deserto de Mojave. A cidade de Los Angeles é a sede da indústria do entretenimento de Hollywood. A cidade de São Francisco é conhecida
pela ponte Golden Gate, a Ilha de Alcatraz e os bondes.
— O que aconteceria se você apenas deixasse as pessoas viverem? —
Eu digo suavemente. É uma pergunta antiga, mas que vale a pena repetir.

— Não posso, —responde Thanatos, e há verdadeiro remorso em sua


voz. — Você tem seus instintos, eu tenho os meus.

Depois de um momento, ele acrescenta: — Este é o mesmo impulso


que a Fome combate até hoje.

O pensamento me dá arrepios. Ben está aos seus cuidados E pensar


que essa necessidade de matar e destruir ainda persiste dentro dele …

Minha respiração falha.

— É apenas a Fome que se sente assim? —Eu pergunto, segurando a


esperança de que os outros irmãos moderem os ... instintos de Fome.

— Guerra e Pestilência são diferentes, —diz Thanatos. — Seus


impulsos foram separados deles junto com sua imortalidade. Mas Fome
... ele ainda é imortal.

— Por que ele ainda é imortal? —Eu pergunto. Já ouvi o suficiente da


história para saber que ele queria desistir de seu propósito e de sua
imortalidade. E ele provou que quer deter a Morte tanto quanto a Guerra
e a Pestilência.

— Meu irmão tentou deixar de lado sua tarefa por motivos pessoais,
—diz Thanatos severamente. — Não teve nada a ver com a humanidade,
que ele ainda quer queimar.

Ele tentou? Já testemunhei o suficiente da raiva e do ressentimento da


Fome para acreditar na Morte, mas então, vi a maneira desprotegida como
ele olhou para meu filho, e sei que há mais naquele Cavaleiro espinhoso.
Acho que a Morte também sabe disso.

Eu franzo a testa. — Mas se Fome acreditava que desistir de sua


imortalidade por um único ser humano valia a pena mesmo assim, isso
ainda não deveria contar? — Isso diz muito sobre o poder do amor. Será
então egoísta escolher isso em vez da destruição?

Morte não responde, mas não creio que seja porque esteja
reconsiderando.

Cavalgamos pelo resto do dia em silêncio.


Capítulo 60
Interestadual 10, sul da Califórnia

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

NAQUELA NOITE, ACORDO DO SONO COM UM único pensamento.


A constatação mais óbvia e estúpida, que fui cega demais para reconhecer.

Isso não vai acabar.

Posso ouvir minha respiração suave e posso sentir a pressão quente do


Cavaleiro nas minhas costas. Ele ainda não percebeu que estou acordada.
Ao nosso redor, consigo distinguir os ossos dos mortos que nos seguem.
Felizmente, Shane não é um deles. Apesar dos votos anteriores da Morte
e de mim, o corpo do homem foi deixado para apodrecer no deserto.

As coisas com o cavaleiro não vão acabar. Não se eu quiser que ele
desista de seu propósito. Porque a questão é que, se eu convencer a Morte
a dar as costas a toda a matança, ele não estará apenas se afastando de sua
tarefa, mas também me escolhendo em vez dela.

Meu acordo com o cavaleiro não termina apenas com essa escolha.
Fui uma tola em acreditar no contrário. Se isso funcionar como os outros
cavaleiros esperam—como eu espero que funcione—então passarei o resto
da minha vida com Thanatos.

Minha respiração fica presa com isso. Eu deveria sentir horror—ou


pelo menos o peso esmagador da realidade. Em vez disso, o calor se
espalha através de mim. Eu ... não tinha previsto uma vida inteira assim.

Se, claro, a Morte me escolher em vez de sua tarefa.

E isso é um grande se.

A humanidade está tão perto da aniquilação, e não parece importar o


que eu faça—posso matar a Morte repetidas vezes, posso fazer amor com
ele. Mas até agora, nada disso foi suficiente. Estou com medo de que,
mesmo depois de ter Ben em meus braços novamente, a bela e assustadora
humanidade ainda caia.

E há outro pensamento igualmente assustador que não tinha


considerado até agora. Trazer a Morte à porta dos cavaleiros significa
expor Thanatos às esposas e filhos dos outros cavaleiros. E há o fato de
que os cavaleiros estão voltando para me buscar e para a Morte. Esse tinha
sido o limite de tempo.

Se eles nos encontrarem antes de eu ter convencido a Morte a desistir


de sua tarefa ...

Estamos todos ferrados.


Com o pânico aumentando, começo a calcular o tempo que a Morte
e eu poderemos ter até encontrarmos os ditos cavaleiros. Isso só serve para
me assustar. Andamos devagar e demoramos dias em nossas paradas para
descanso.

Nesse período, os irmãos da Morte certamente já deixaram Ben—


talvez já o tenham deixado há muito tempo. Não sei quanto tempo nos
resta antes que eles se aproximem de nós.

Por que não considerei isso antes?

Não teria importado, diz uma vozinha na minha cabeça. O tempo teria
passado do mesmo jeito.

Respiro fundo várias vezes para acalmar meu coração acelerado.


Ainda há tempo para mudar a opinião da Morte. Ele só precisa me
escolher em vez de sua tarefa.

Ele tem que me escolher.

Minha respiração falha.

Às minhas costas, a mão do Cavaleiro se move para o meu cabelo,


acariciando-o para trás.

— Tenho você, Lazarus. É apenas um sonho. Vai passar, —diz ele,


sem saber que estou acordada.
Tenho que morder o lábio. Aqui está ele, me acalmando de um
pesadelo no meio da noite. E parece que ele já fez isso antes: murmurou
coisas doces para mim quando eu estava inquieta.

Fico feliz que ele não possa me ver, esse homem que fica acordado ao
meu lado por horas só para estar perto. Este homem com quem lutei e
matei muitas vezes e que em troca me machucou. Este homem que, apesar
de tudo, me escolheu repetidas vezes.

Não há ninguém como nós.

Mesmo agora, quando penso nele, posso sentir essa leveza dentro de
mim. Aceitei andar com o cavaleiro e aceitei dormir com ele. Mas nunca
me dei permissão para amá-lo.

Fiquei com tanto medo do que significaria dar-lhe meu coração se ele
ainda decidisse matar todos nós. Mas se eu realmente ceder à esperança
de que o mundo não acabe, de verdade, não perco nada.

Então, enquanto eu estava deitado no deserto, com nossa comitiva de


revenant espalhada ao nosso redor, deixei cair a última parede em volta do
meu coração.

SEXO COM THANATOS é uma dança lenta.


— Mais rápido, —eu sussurro para ele.

Morte sorri para mim, os músculos do seu peito ondulando enquanto


ele se move. — Acho que não vou, —diz ele enquanto desliza para fora de
mim. — Gosto deste ritmo. —Ele empurra de volta, a ação fazendo com
que meus lábios se separem e minhas costas arqueiem. — E eu gosto
especialmente do jeito que você olha para mim quando eu te fodo nesse
ritmo.

Ele prolonga a atuação por um tempo agonizantemente longo, e


justamente quando penso que ele vai acelerar, ele se acalma.

— Conte-me uma piada, —diz ele suavemente.

— Uma piada? —Eu digo sem fôlego. — Agora?

— Anseio por sua risada.

Não é assim que isso funciona.

Eu dou a ele um olhar louco. — As pessoas não contam piadas


quando estão ... —fazendo amor, — fazendo sexo.

— Oh, que bom—eu gosto muito de quebrar a tradição, —diz Morte,


empurrando para dentro em mim uma vez mais e arrancando um gemido
de mim.

Ele continua olhando para mim e, merda, ele realmente está esperando
por uma piada.

— Hum ... —Tentando pensar com o pau enorme dentro de mim.

Uma velha piada que minha irmã Juniper me contou quando criança
me veio à mente.

Eu não posso acreditar que estou fazendo isso.

— O que um pássaro doente deve fazer?

As sobrancelhas de Thanatos se unem. — Eu não entendo ...

— Conseguir um tweets.

Ele olha para mim e não há nada em sua expressão. Nem mesmo a
menor centelha de compreensão.

E ainda tenho um pau gigante e imóvel dentro de mim.

— Você sabe, —eu digo, querendo ajudá-lo a entender, — porque os


pássaros piam ...

— Isso não pode ser uma piada, —diz Morte, incrédulo.

— O humor é um desperdício com você, —respondo, mudando um


pouco porque seu pau ainda está pendurado dentro de mim e deveríamos
estar fazendo sexo, não debatendo a qualidade de uma piada que me
pediram para fazer nessa hora.

— Não preciso ser experiente para saber que foi uma piada horrível, —
ele insiste.

Quer dizer, se ele tivesse me perguntado em outro momento, talvez


eu tivesse um material melhor.

Eu levanto meus braços em um gesto de “o-que-posso-dizer”. — Não


sou comediante.

— Sim, Lazarus, você deixou isso bem claro.

Pego um punhado de terra e jogo nele, sem me importar que grande


parte dela também caia sobre mim.

Thanatos solta uma risada estrondosa, que transforma seu rosto


normalmente sombrio. Sinto como se estivesse caindo enquanto olho para
ele.

Ele percebe a mudança em mim porque o riso morre em seu rosto. —


O que foi,

Eu balanço minha cabeça. — Amo o jeito que você ri, —eu digo com
fervor.

Ainda caindo …

Toda a alegria desapareceu das feições do cavaleiro, mas em seu lugar


há uma intensidade abrasadora. Em vez de responder, Morte me beija com
força, seus quadris começando a penetrar em mim mais uma vez.
Repetidamente ele empurra, seu ritmo acelerando e aprofundando até que
estou ofegante contra ele.

Entre nós dois, a Morte pode ter começado como novato, mas
definitivamente se tornou o mestre.

Esse é o último pensamento que tenho antes de um orgasmo me pegar


de surpresa. Enfio meus dedos em suas costas, agarrando-me a ele
enquanto onda após onda de prazer passa por mim.

Com um gemido, Morte encontra sua própria liberação, seus quadris


batendo em mim repetidamente.

Uma vez que ambos estamos cansados, ele me pega em seus braços.

— Esta é a magia mais potente, kismet, —ele diz, procurando meu


olhar. — Quando estou com você—quando estou em você—estou vivo.

Minhas narinas se dilatam e tenho que apertar os lábios para me


impedir de dizer algo doce e dolorosamente verdadeiro para ele.

Thanatos percebe a ação. — O que foi, Lazarus?

Eu balanço minha cabeça. Ontem à noite me dei permissão para amar


o cavaleiro; isso não significa que estou pronta para expressar esses
sentimentos a ele, não quando estou apenas aceitando-os.

Então, em vez disso, mudo minha atenção para seu peito. Estendendo
a mão, traço suas marcas brilhantes.

— O que esta frase diz? —Eu pergunto, meu dedo se movendo sobre
uma linha de símbolos que se curva para baixo em seu peito e abdômen.

Morte me observa por um longo momento, claramente relutante em


mudar de assunto. O homem deve sentir o quão perto ele está de me
quebrar.

Sua atenção se volta para o peito. — Petav paka harav epradiva arawaav
uvawa, tutipsiu epraip ratarfaraip uvawa. Uje vip sia revavip yayev uwa petawiev
vivafawotu. Annu sia tuvittufawitiva orapov rewuvawa.

Sinto calafrios quando as palavras se movem através de mim e posso


sentir o poder contido nelas.

— Sou a Morte, —ele traduz, — um fim para todos os começos, um


começo para todos os fins. Sou aquele que pode pegar os vivos e ressuscitar
os mortos. Aquele que pode ressuscitar almas.

Meus olhos caem para seu abdômen, meu dedo deslizando pela frase
do texto. Há muito mais escrito em sua carne.

— Você algum dia vai me contar o resto do significado das suas


tatuagens? —Eu pergunto baixinho.

Há uma pausa longa e pesada enquanto o olhar da Morte passa pelo


meu rosto.
— Um dia eu vou, —ele promete.

— Por que esperar? —Eu pergunto. Não sei como, mesmo com toda
a minha importunação, ainda há tanta coisa sobre esse homem que não
sei.

Ele pega minha mão, levando-a aos lábios. — Agora não é a hora.

— Quando será a hora? —Eu pergunto, olhando para sua boca.

— Na verdade, Laz, não tenho certeza, —diz ele, soltando minha


mão. — Mas saberei quando isso acontecer.
Capítulo 61
Interestadual 10, sul da Califórnia

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

SÓ DEPOIS DE TOMAR O CAFÉ DA MANHÃ E ME PREPARAR para


montar no cavalo de Thanatos é que as palavras anteriores do cavaleiro
ecoam na minha cabeça.

Sou aquele que pode pegar os vivos e ressuscitar os mortos. Aquele


que pode ressuscitar almas.

Faço uma pausa no meio do passo.

Aquele que pode ressuscitar almas.

Respiro profundamente.

Minha atenção se volta para a Morte, que está do outro lado do


cavalo, guardando meu jarro de água e um cobertor em um dos alforjes.

— Você pode ressuscitar pessoas? —Eu pergunto, minha voz abafada.

— Lazarus, você já sabe disso, —ele diz. Ele nem mesmo faz uma
pausa em seu trabalho.
— Não, —eu digo cuidadosamente, minha pele formigando, — eu sei
que você pode reanimar os restos mortais de uma pessoa, mas você disse
antes que pode ressuscitar almas.

Isso chama a atenção do Cavaleiro.

Ele pausa o que está fazendo. Depois de um momento, seu olhar se


move para mim. Seu rosto está tão frio e intransigente como eu já vi.

— Você pode, —eu respiro, lendo a verdade em suas feições.

Não sei por que, mas o pensamento fecha minha garganta. Talvez seja
esperança nas habilidades da Morte ou talvez seja ressentimento por ele
ter deliberadamente escondido isso de mim até agora. Se eu não tivesse
percebido a nuance, ele teria admitido isso?

Ser capaz de ressuscitar almas … Isso abre todo um reino de


possibilidades. Talvez eu não precise simplesmente me contentar com a
morte desistindo de sua tarefa. Talvez ele também possa desfazer os danos
que ele e seus irmãos causaram.

Todas aquelas pessoas que já morreram …

Eu poderia recuperar minha família. Todos eles. Minha mãe, meus


irmãos, minhas irmãs, seus cônjuges e filhos. Mesmo meus pais
biológicos, que foram tirados de mim quando a Pestilência apareceu pela
primeira vez, talvez eles também pudessem retornar ...
Ando até ele e estou desesperada, tão desesperada. E é claro que é por
isso que Thanatos nunca falou sobre isso. Agarro sua mão, segurando-a
no meu peito.

— No dia em que te conheci, você tinha acabado de tirar mais de uma


dúzia de membros da minha família de mim, —digo sem fôlego. Só posso
imaginar o quão febril deve ser minha expressão.

Morte me lança um olhar cauteloso. — E você quer que eu traga todos


de volta para você, —diz ele.

Sim.

Ele já está balançando a cabeça. — Lazarus, você não sabe o que está
pedindo.

— Você me mostrou todos os seus outros poderes, —aperto sua mão,


— mostre-me este.

— É um poder condenável e profano, —a voz de Morte se eleva. Ele


tira a mão da minha.

— E seus outros não são? —Eu desafio. Eu o vi matar cidades,


derrubar prédios, cultivar plantas, mudar o clima e ressuscitar os mortos.

— Não.

— Você está errado, —eu digo a ele com fervor. — Este, este poder, é
um milagre.

Um músculo em sua mandíbula salta. — Você acha que entende meus


poderes melhor do que eu? —Morte diz com veemência. — Você acha que
estou tão cego pelo meu propósito que não consigo ver a verdade como
ela é? —Suas narinas dilatam. — Há uma razão pela qual a vida começa
com o nascimento e não com a ressurreição. Isso não é um milagre, —ele
promete.

Não acredito nele, acho que ele está cego por seu propósito.

— Por favor, —eu digo, mesmo que seja inútil. O homem que não
poupará uma única cidade definitivamente não trará alguém de volta dos
mortos.

Sinto minha esperança se estilhaçando, mas não vou deixar isso para
lá. Eu não vou.

O Cavaleiro me encara por um longo momento.

— Tudo bem, —ele rosna.

Eu abro minha boca, pronta para argumentar.

Tudo bem?

… Isso significa que ele vai fazer isso?

— Sério? —Sai como um sussurro rouco.


Morte parece tão furiosa quanto eu já o vi. Irritado, mas resolvido. —
Vou lhe mostrar a futilidade do que você pede, —ele diz sombriamente.

Eu fecho minha boca, meu pulso batendo tão rápido que me sinto
vagamente doente.

Ele vai fazer isso.

— Quem você gostaria que eu trouxesse de volta? —ele exige, o


mesmo brilho de raiva em seus olhos.

Meus lábios se separam enquanto olhamos um para o outro. Há tantas


pessoas que eu poderia escolher. Meus amigos, meus vizinhos, meus pais
biológicos, meus irmãos.

Mas, no final, escolho a pessoa que me salvou. É a minha vez de salvá-


la.

— Jill Gaumond, minha mãe.


Capítulo 62
Interestadual 10, sul da Califórnia

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

UM MÚSCULO NA MANDÍBULA DE MORTE SE FLEXIONA. Ele se


vira e se afasta de mim, suas botas esmagando os arbustos mortos. Eu o
encaro, me perguntando se ele não está disposto a fazer isso, afinal.

— Você vem ou não? —ele chama por cima do ombro.

Oh.

Eu o sigo, me sentindo cada vez mais desconfortável a cada passo que


dou. Não há nada aqui, apenas quilômetros e quilômetros de arbustos do
deserto e colinas solitárias. Olho ao meu redor, mas tudo está como
sempre.

Thanatos para e estende a mão para o chão. Ele ainda parece irritado,
e a visão me enerva. Aproximo-me dele, sem saber o que está prestes a
acontecer.

Então eu sinto isso.

Minha pele arrepia quando uma brisa fresca sopra, agitando os


arbustos próximos. Aos nossos pés a terra começa a subir, criando um
monte de tamanho humano. A sujeira se desprende do monte e os pelos
dos meus braços se arrepiam enquanto, a partir da própria terra, o corpo
toma forma. Quadris e pernas e ombros, seios e dedos das mãos e dos pés
e um rosto.

Um rosto.

Mal tenho tempo de me importar com o fato de a mulher estar nua


antes de cair de joelhos ao lado dela, um soluço escapando dos meus
lábios. Não consigo desviar o olhar daquele rosto—o rosto da minha mãe.
Um que eu tinha certeza de que nunca mais veria.

Por um momento, ela fica lá, imóvel.

Morte olha para mim, seus lábios pressionados severamente.

E então ...

O peito da minha mãe sobe quando ela respira fundo, e então seus
olhos se abrem.

— Mãe. —Minha voz falha, e então a ajudo a se sentar, a última sujeira


escorregando de seu corpo enquanto faço isso.

Eu provavelmente deveria dar a ela um segundo, mas só de ver seus


olhos piscarem e seu corpo se mover—vê-la viva—não posso deixar de
fazer a única coisa que queria fazer desde que a perdi.
A abraço com força contra mim.

— Eu te amo, —eu sussurro. Eu mal consigo pronunciar as palavras


antes de chorar. — Estou tão perdida sem você. —Tão, tão perdida. Toda
a minha força de longa data desaba. Sou apenas uma criança que precisa
da mãe.

Sinto a pressão leve e quase confusa das pontas dos dedos dela contra
meu braço. Então, perto do meu ouvido, minha mãe solta um gemido. O
som arrepia os cabelos da minha nuca.

Ele se transforma em um gemido.

— O-o que é isso? —ela sussurra.

Eu me afasto a tempo de vê-la olhando para seus braços e mãos com


olhos assustados.

Um som agudo sobe por sua garganta. — O que está acontecendo?


Por que estou aqui? —Ela pega o cabelo e o puxa, como se estivesse
pensando em arrancá-lo.

— Mãe, —eu digo, olhando freneticamente para Morte, mas ele está
parado rigidamente ao lado. — Mãe, —eu digo novamente. Pego suas
mãos e aperto com força. — Sou eu, sua filha.

Para Thanatos, eu digo: — Você pode pegar um cobertor para ela?


Sem responder, ele se vira e se dirige ao cavalo.

Os olhos selvagens e assustados da minha mãe se voltam para mim.

Ela suga uma respiração. — Lazarus.

Eu pressiono meus lábios para segurar outro soluço, e então estou


balançando a cabeça, mesmo com as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.

— O que está acontecendo … ? —Suas palavras se transformam em


outro gemido e os olhos da minha mãe perdem o foco. Ela os fecha,
balançando a cabeça enquanto começa a balançar para frente e para trás.

— Mãe, mãe. —Estou tentando não entrar em pânico, mas sinto


minha ansiedade aumentando. Ela parece tão angustiada. — Está tudo
bem, estou aqui. —Praticamente engasgo com as palavras. Só assim, me
forço a reunir minhas forças mais uma vez.

Atrás de mim, posso ouvir as botas da Morte esmagando os arbustos


ressecados enquanto ele se aproxima de nós.

Sem palavras, ele se aproxima de mim e me entrega um cobertor.

— Obrigada, —murmuro, sacudindo-o e envolvendo-o em volta de


minha mãe.

Minha mãe parece não notar. Ela ainda está balançando para frente e
para trás, um olhar distante e assombrado em seus olhos. Enquanto
observo, ela leva a mão ao rosto e começa a soluçar.

Meu coração despenca enquanto olho para ela, sentindo-me ao


mesmo tempo impotente e aterrorizada.

Olho por cima do ombro para a Morte. — Por que ela está agindo
desse jeito? —Eu pergunto, minha voz alta e em pânico.

— Eu já te disse por quê, —diz Morte, com a mandíbula cerrada e os


olhos duros. — Sua mãe não pertence aqui. Ela sabe disso, eu sei disso. É
só você, Lazarus, que não pode aceitar que os mortos não queiram voltar
à vida.

Suas palavras são como um golpe físico.

Eu giro de volta para minha mãe e coloco a mão em suas costas. —


Mãe. Mãe, —eu digo. — Você está viva.

— Não, —ela geme novamente, balançando a cabeça e fechando os


olhos como se pudesse excluir a verdade.

Fico olhando para ela, horrorizada, algo revirando meu estômago.

— Morte trouxe você de volta. Ele tirou sua vida injustamente, —eu
digo.

Ela começa a rir, e acho que perdeu completamente o controle, mas


então ela abre os olhos e eles se fixam em mim.
— Lazarus Gaumond, minha amada filha, que vergonha por fazer
isso.

Por um momento, não reajo às palavras dela. Eu simplesmente não


posso. Mais uma vez sou aquela criança perdida e confusa, com o coração
partido.

— Agora você me escute, —ela diz soando exatamente como ela era
antes. Meu peito dói—dói muito—porque esta é minha mãe. Não a
criatura chorosa que eu segurava em meus braços, mas esta mulher
energica e que não aceita besteiras. E é claro que essa situação deu errado,
mas ainda ontem eu teria dado qualquer coisa para ouvi-la me repreender.

E agora eu entendo isso.

— O que quer que você tenha feito para me trazer aqui, você desfaz.
—Seus olhos se movem para Morte. — Você desfaz isso, —ela repete para
ele.

Ele fica imóvel.

Ela se vira para mim, seu corpo tremendo como se estivesse em estado
de choque. — Não quero estar aqui, Laz. Eu vivi, amei e morri, —ela diz
cuidadosamente. — E você não pode mudar as regras.

Respiro fundo e minhas lágrimas, que nunca pararam de verdade,


estão vindo mais rápido agora.
Ela estende a mão, indiferente ao fato de o cobertor ter escorregado
de seus ombros, expondo-a mais uma vez. Ela segura meu rosto em sua
mão. — Eu te amo, Lazarus. Você é forte e corajosa e sei que suportou
muito mais do que deveria ser pedida a você. Você me deixa orgulhosa.
Mas agora, querida, você precisa me deixar ir.

— Mãe, —eu protesto.

— Minha hora chegou e se foi. Deixe-me ir, minha doce menina.

Começo a soluçar, todo o meu corpo tremendo. Minha mãe me puxa


para um abraço e posso sentir seu próprio corpo tremendo.

— Deixe-me ir, —ela murmura para mim mais e mais, acariciando


meu cabelo. — Deixe-me ir.

E estou chorando em seus braços e isso é tudo que consigo, e sei que
é mais do que qualquer outra pessoa consegue, mas ainda me sinto
roubada.

Relutantemente, começo a assentir. — Okay, mãe, —eu sussurro,


minha voz rouca.

Ela me solta e eu me levanto, recuando. Eu aperto minhas bochechas


e me forço a parar de chorar, mesmo que as lágrimas continuem brotando
em meus olhos.

Olho para a Morte.


Ele olha para mim estoicamente.

Deixando meu olhar cair em derrota, eu dou a ele um aceno de


cabeça.

Sinto seu próprio olhar suavizar sobre mim antes de se virar para
minha mãe. Ele não diz nada, mas vejo o momento em que seu poder
entra em vigor.

Por um instante, há um brilho de alívio nos olhos da minha mãe, e


então suas feições relaxam quando a Morte a solta. O corpo da minha mãe
se desintegra diante dos meus olhos, pele, músculos e ossos se
transformando em terra mais uma vez. Uma rajada de vento sopra,
soprando-o até que não haja mais vestígios da mulher que esteve aqui há
pouco.

Caio de bunda pesadamente. Parece que foi tudo uma espécie de


sonho horrível, mas eu sei que aconteceu, sei que a Morte chamou minha
mãe aqui porque eu pedi, e então ele a soltou porque eu pedi isso também.

Pressiono as palmas das mãos nos olhos e, de repente, soluços


horríveis e miseráveis caem dos meus lábios, e choro violentamente, todo
o meu corpo tremendo com o esforço.

Não consegui lamentar a morte da minha mãe—na verdade não. Eu


me dediquei à caça do cavaleiro, e isso me deixou muito pouco espaço
para lamentar. A única vez que sofri foi durante aquelas horas tranquilas
em que viajava, mas mesmo assim, isso ficou em segundo lugar em relação
ao meu propósito: encontrar—e impedir—a Morte.

Agora sou forçada a reviver a morte da minha mãe novamente, e o


ferimento da morte dela é mais agudo do que da primeira vez.

Thanatos se move para o meu lado, ajoelhando-se ao meu lado. Então


ele passa os braços em volta de mim, me segurando perto de mim,
exatamente como fez na noite em que Ben estava morrendo. Então foi
reconfortante, mas agora zomba de mim. É ele quem está levando todos
os meus entes queridos embora. Não quero o conforto dele, quero que ele
pare.

Empurro a Morte para longe. — Não me toque, —digo a ele.

O Cavaleiro franze a testa, mas a raiva que fervia sob sua pele
desapareceu. Parece que é ele quem carrega o fardo pesado.

— Vejo sua dor, —diz ele, — e ouço, mas não gosto. Isso me deixa
frenético.

Eu o ignoro, minha cabeça baixa enquanto choro.

Depois de um momento, Morte se levanta. — Trazer os mortos de


volta—de volta de verdade—é uma maldição, Lazarus. Sei que você está
de luto, mas é em vão. Sua mãe está em um lugar melhor.
Faço uma pausa para olhar para ele. — Minha dor é em vão? —Ele
tirou minha família de mim e agora acha que a única coisa que me resta—
minha dor—também deveria desaparecer?

Eu rio dele, mas estou com muita raiva. — Como você ousa dizer isso.
Você nem sabe o que é perda, —eu digo com veemência, levantando-me.
— Você nunca amou nada o suficiente para se importar se isso vai
acontecer.

— Lazarus, —ele diz, seu rosto feroz, — na verdade, nada acontece.


Ela se transforma, mas a transmutação na verdade não se perde nem
desaparece. Você era você antes de ter um corpo e ainda será você quando
não tiver mais um. Uma lagarta pode tornar-se uma borboleta—e um ser
humano pode tornar-se um espírito—mas ainda é a mesma essência.
Simplesmente foi transformado.

— Lazarus, —ele continua, examinando meu rosto, —se você pudesse


ver a vida como eu a vejo, você saberia que está tudo bem—que tudo ficará
bem. Essa morte é o fim do sofrimento.

— A vida é muito mais do que sofrimento, —eu praticamente grito


para ele. — Por que você acha que todos nós nos apegamos a isso tão
desesperadamente?

Seus olhos brilham. — Porque você não conhece nada melhor.


Eu balanço minha cabeça. —Você está errado,— eu digo.

Mas o que eu sei? Nunca estive morta. Minha mãe parecia preferir. Talvez
ele esteja certo. Talvez eu tenha lutado pelo lado errado esse tempo todo.

Essa é a possibilidade mais assustadora de todas.

Capítulo 63
Los Angeles78, Califórnia

Setembro, Ano 27 dos Cavaleiros

É UMA MANHÃ DIFÍCIL. SINTO COMO SE TIVESSE UM soluço preso


na garganta e estou com raiva de Thanatos, mas não é realmente dele que
estou com raiva.

Achei que tinha desvendado o segredo da vida. Por um breve instante,


cheguei a cogitar a ideia de que talvez pudesse fazer mais do que apenas
impedir o apocalipse—poderia revertê-lo. Mas claramente não há como

78
Los Angeles é uma grande cidade do sul da Califórnia e também o centro da indústria de cinema e televisão do país.
Perto do famoso letreiro de Hollywood, é possível conhecer os bastidores das produções nos estúdios Paramount Pictures, Unive rsal e Warner
Brothers. Na Hollywood Boulevard, o TCL Chinese Theatre exibe impressões de mãos e pés de celebridades na Calçada da Fama, uma homenagem a
milhares de astros, e se pode comprar mapas das casas dos artistas.
reverter os danos que os cavaleiros causaram. Então, em vez disso, sento-
me na sela, com o coração pesado.

Morte me abraça, seus lábios roçando minha têmpora de vez em


quando. Acho que ele percebe o quão perto estou de me desintegrar.

Gradualmente entramos na extremidade leste de Los Angeles, uma


cidade satélite de cada vez. A primeira coisa que me chama a atenção são
as montanhas de eletrodomésticos e veículos enferrujados deixados aqui
nesta paisagem seca. Meu olhar percorre todas as coisas que as pessoas
perderam de uso quando pararam de funcionar. De vez em quando vejo
um ou dois corpos caídos entre os escombros, e fica claro que a Morte já
exerceu seus poderes letais.

Passamos por centros comerciais abandonados e bairros castigados


pelo sol, edifícios sem janelas, portas, telhas e tudo o mais que as pessoas
possam reutilizar. O paisagismo ao redor dos edifícios já morreu há muito
tempo; tudo o que resta são cascas de árvores e arbustos.

A visão de tudo isso me tira o fôlego.

Não sei muito sobre esta parte do mundo, mas ouvi histórias sobre
uma época em que este lugar era sede do glamour.

Eu não vejo isso.

Talvez seja aquela época e o apocalipse que destruiu qualquer beleza


que já existiu aqui, porque tudo que vejo são viadutos desabados, edifícios
fechados com tábuas e montanhas de escombros.

E cadáveres.

Quanto mais avançamos em Los Angeles, mais eu os vejo, espalhados


pela estrada e esparramados na calçada, com seus pertences espalhados ao
redor deles. Vejo até um deles descansando na varanda, com a cabeça
caída no ombro, como se tivessem simplesmente adormecido.

Essa dor no meu peito aumenta, aquela que me faz sentir que toda
essa luta contra o cavaleiro é inútil.

Diga-me algo que faça tudo isso valer a pena.

Quase expresso a pergunta, mas qual seria o sentido? Nenhuma


resposta que Thanatos der me fará sentir melhor, e nenhum argumento
que eu apresentar irá convencê-lo do contrário. Então mantenho a boca
fechada e seguimos em frente.

LEVA MAIS UM DIA PARA atingirmos literalmente a fronteira dos


Estados Unidos. E de repente, surpreendentemente, surge o Pacífico79.

Não tenho palavras para isso. Já vi lagos, já vi enseadas e rios, mas


nunca vi o mar.

É como um segundo céu, tão vasto e azul que parece engolir o mundo
inteiro.

Respiro fundo, todas as minhas preocupações esquecidas por um


instante.

Thanatos deve ouvir minha reação porque ele se inclina na sela para
poder ver meu rosto. Enquanto eu absorvo a água, ele me absorve.

— O que é que estou vendo em seu rosto? —ele pergunta.

— Maravilha, —murmuro. — Nunca vi o oceano antes. —É quase


engraçado, considerando quantos milhares de quilômetros viajei.

Morte está quieta, embora um momento depois, ele pare seu cavalo.

Lancei-lhe um olhar despreocupado. — O que você está fazendo?—


Eu pergunto.

Mas ele já está desmontando. Assim que seus pés tocam o chão, ele

79
O Oceano Pacífico é o maior oceano da Terra, situado entre a América, a leste, a Ásia e a Austrália, a oeste, e a
Antártida, ao sul. Com 180 milhões de km² de área superficial, o Pacífico cobre quase um terço da superfície do planeta e corresponde a quase metade
da superfície e do volume dos oceanos.
agarra minha cintura e me puxa para baixo.

Eu franzo a testa para ele, minhas sobrancelhas juntas em confusão.

— Quero dar-lha uma visão melhor, —explica ele.

Suas asas se abrem atrás dele e, pegando-me, Morte nos levanta no ar.

O vento chicoteia meu cabelo e arrasta as lágrimas dos meus olhos,


mas quanto mais alto subimos, mais aquele oceano azul ocupa minha
visão, até que é tudo que consigo ver.

Thanatos aproxima os lábios do meu ouvido. — Quero ficar aqui,


Lazarus, só por um tempo.

Presumo que ele esteja se referindo a estar no ar, mas então, menos de
dez minutos depois, estamos descendo de volta à terra.

Abaixo de nós, vejo uma faixa de praia repleta de casas. Chegamos


cada vez mais perto dele e então sobrevoamos as casas, com as telhas
brilhando abaixo de nós. A morte nos leva até o jardim da frente de uma
das casas à beira-mar.

Saio dos braços da Morte e aprecio a casa palaciana. Buganvília80


brilhantes e florescentes sobem pela lateral da casa. Um cata-vento fica no

80
Bougainvillea ou ‘Primavera’ é um gênero botânico da família Nyctaginaceae, de espécies geralmente designadas como
buganvílias.
topo do telhado e uma fonte de pedra está instalada em uma das paredes
da casa. Esse tipo de casa nunca deixará de me chocar—que alguém possa
viver um estilo de vida tão grandioso em uma época em que a maioria das
pessoas está sobrevivendo. Enquanto olho, posso ouvir o oceano
chamando, as ondas rugindo enquanto batem na areia.

Viro-me para encarar Thanatos.

— Por que aterrissamos aqui? —Eu pergunto.

— Você precisa de um descanso adequado, —diz ele, franzindo um


pouco a testa enquanto seus olhos passam por mim.

Não sei o que ele vê. Não me sinto desgastado pelas viagens. Mas
talvez ele esteja reagindo menos ao meu estado físico e mais ao meu estado
emocional. Tenho carregado uma grande tristeza desde que vi minha mãe.

— Estou bem, —insisto.

Thanatos se aproxima, a luz do sol moribunda tocando em suas


feições. — Deixe-me ser humano com você por alguns dias—ou você já
desistiu da perspectiva de me convencer de que vale a pena salvar?

Prendo a respiração e procuro o olhar do Cavaleiro.

Tinha desistido de convencer a Morte. Talvez tenham sido os


criminosos que encontramos, ou talvez tenha sido ver minha mãe. Talvez
fosse simplesmente porque, apesar de todo o meu esforço, a Morte não
estava mudando.

— Não olhe para mim assim, —diz ele, com a voz baixa.

— Como?

— Como se você estivesse de luto. Como se eu fosse a razão para isso.

Distraidamente, toco a lateral do meu rosto, sem perceber que estava


olhando para ele daquele jeito.

Solto minha mão. Não sei o que Thanatos quer que eu faça. Estou de
luto e ele é a razão por trás disso. Nós dois sabemos disso. Posso gostar
dele, posso até, até ... amá-lo, mas isso não importa. Você pode amar algo
e saber que isso é ruim para você.

— Você lutou comigo por meses, —diz Morte se aproximando. Ele


traz os nós dos dedos até minhas bochechas.

— Estou cansada de lutar, —eu digo.

— Não estou pedindo que você lute, só estou pedindo que não desista
de mim.

— Não seria mais fácil? —Eu digo. Este pode ser o momento mais
exposto que qualquer um de nós já esteve um com o outro. — Você não
teria que lidar comigo agonizando por cada cidade perdida, e eu não faria
você duvidar de si mesmo.
— Se isso faz você perder aquela luz nos olhos, então não, não valeria
a pena. Nunca valeria a pena.

Thanatos parece dividido em dois, seus desejos humanos atrapalham


sua natureza básica. E neste momento, parece que os seus desejos
humanos estão a vencer.

Apesar de tudo, sinto um leve sopro de esperança.

Talvez nem tudo esteja perdido.

Aceno um pouco com a cabeça. — Tudo bem, —eu digo suavemente.


— Vamos ficar aqui—só por um tempo.

Morte sorri, e o mundo inteiro poderia estar desabando ao nosso redor


e eu não perceberia porque aquele sorriso me enfeitiça.

— Só por um tempo, —ele concorda, depois sela a promessa com um


beijo.
Capítulo 64
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

O INTERIOR DA CASA É AINDA MAIOR DO QUE O EXTERIOR, tudo


feito em branco, creme e neutro claro que eu nunca, jamais poderia manter
bonito e limpo.

A parte de trás da casa é pouco mais que uma parede de janelas, e


através delas posso ver onde reside a verdadeira magnificência desta casa.
O quintal é enorme, o pátio dos fundos cercado por uma grade baixa de
pedra. Um caminho desce pelo gramado inclinado, dando lugar à areia
dourada. Além disso fica o Pacífico.

Num impulso, agarro a mão da Morte e vou para as portas dos fundos.
Ele me deixa arrastá-lo para fora. Não fico naquele pátio espaçoso,
embora uma parte de mim queira. Quase consigo ver os luxuosos jantares
que um dia poderiam ter sido realizados aqui, sob as estrelas cintilantes, o
cheiro do oceano denso no ar. Se fechar os olhos, posso imaginar aquele
mundo, cheio de vestidos brilhantes, bebidas borbulhantes e música suave
tocando ao fundo.
Isso nunca mais acontecerá, pelo menos não aqui e nem tão cedo.

Levo Thanatos para fora do pátio e pelo caminho inclinado até a


praia. A luz do dia já está dando lugar à noite, o céu tem uma cor púrpura
pálida. A forma como o sol reflete na água faz com que ela pareça
metálica.

— Para onde você está me levando? —Morte finalmente pergunta,


com um sorriso na voz.

Eu sei, sem olhar, que ele está imensamente satisfeito por ser o único
arrastado. Acho que ele se cansou de estar no papel oposto.

— Para o oceano, —eu digo. Presumi que fosse óbvio.

— Lazarus, acabamos de ver o oceano. Não preciso ver isso de novo.

Olho para ele por cima do ombro. — Mas você já nadou nele?

Ele hesita, e eu já sei a resposta.

— Nem eu, —admito. — Mas eu quero, e ... eu quero que você venha
comigo.

Thanatos me lança um olhar penetrante, que faz meu coração


acelerar.

O caminho termina e meus pés afundam na areia. Solto a mão do


Cavaleiro para poder tirar minhas botas.
Morte paira sobre mim. — O que você está fazendo, Laz?

— Preparando-me para entrar. —Olho sua armadura. — Você vai


querer tirar isso. Caso contrário, você afundará como uma pedra. —Quase
estremeço ao pensar em Morte preso no fundo do oceano, acordando
apenas para se afogar de novo e de novo.

Ele toca seu peitoral, não parecendo mais tão animado em ser
arrastado até aqui, afinal.

— Você não sabe nadar? —Eu pergunto.

— Claro que sei, —diz Thanatos, afrontado.

— Então por que você está hesitando? —Eu pergunto. — Eu pensei


que você gostasse de se molhar, —eu digo, insinuação grossa em minha
voz.

Ele não perde isso.

Os olhos da Morte ficam encapuzados e agora ele alcança as tiras de


seu peitoral, desabotoando-as uma por uma.

Ainda olhando para ele, eu abro minhas calças e tiro-as.

Se a Morte antes não tinha certeza sobre entrar na água, ele não tem
mais.

Eu tiro minha camisa, jogando-a de lado. Meu sutiã e calcinha são os


últimos a ir. Thanatos ainda está removendo a armadura, mas não espero
que ele termine.

Com uma risada imprudente, corro pela praia, a areia molhada


espremendo entre os dedos dos pés. Eu sibilo quando a água fria atinge
meus tornozelos, mas não paro de correr, levantando água salgada
enquanto ando. Quando estou longe o suficiente, mergulho em uma onda.

Por um instante, estar totalmente submersa é um choque para o


sistema. O mar está dolorosamente frio. Talvez seja por isso que me faz
sentir tão viva. Subo à superfície, alisando meu cabelo para trás.

— Porra.

O xingamento me faz virar em direção à costa.

Morte faz uma careta no rosto enquanto avança pela água salgada.

Apesar de seu humor, ele é um espetáculo para ser visto. Meu olhar
percorre os músculos duros de seus ombros e braços antes de descer por
seu peito cônico. Suas tatuagens estão à mostra e seu reflexo brilha na
superfície da água.

— Achei que o calor e o frio não o incomodassem, —digo. Meus


dentes já estão batendo, mas estou tão animado com o barulho das ondas
e a areia entre os dedos dos pés que não consigo me importar.

— Isso incomodaria até os mortos, — diz Morte com veemência.


Eu rio porque ele está sendo ridículo, ele provavelmente nem sente
frio.

Thanatos faz uma careta para a água. — Isto é pior do que vinho.

Isso só me faz rir ainda mais. O som levanta seu olhar para meus
lábios. Morte se move em minha direção, a água passando por sua cintura
e suas asas. A maneira como ele está olhando para mim... eu diria que ele
parecia angustiado se não houvesse suavidade em seus olhos.

Thanatos me alcança e segura meu rosto. Ele me observa por vários


segundos.

— Eu te amo, —ele respira.

Então seus lábios descem sobre os meus.

Minhas mãos tremem onde seguro seus braços e tenho vontade de


chorar e rir ao mesmo tempo.

Ele se separa. —Eu te amo, —ele diz novamente, ainda segurando


meu rosto, seus olhos procurando os meus.

Estou balançando a cabeça—não sei por que estou balançando a


cabeça. Isso é tudo que eu quero ouvir.

— Eu amo, —ele insiste. — Tenho esperado por você desde o


momento em que fui formado, muito antes de você respirar. —Ele pega
minha mão e a pressiona sobre o coração. — Você esteve aqui o tempo
todo, mesmo quando eu pensei que não queria, mesmo quando acreditei
que o amor era uma maldição e uma fraqueza. Nada foi o mesmo desde
que nos cruzamos pela primeira vez, Lazarus. Nada jamais será o mesmo
novamente. E eu juro para você, até o dia da minha morte, eu vou te amar.

Ele passa um braço em volta da minha cintura, me puxando contra


ele e apagando a pouca distância que restava entre nós. Lá no alto, o céu
ficou de um azul profundo e as primeiras estrelas apareceram.

Nenhum de nós fala enquanto envolvo minhas pernas em volta dele,


prendendo meus tornozelos atrás de suas costas.

Ele leva apenas um momento para nos alinhar antes de entrar em


mim. Eu grito com a sensação, mas a Morte já está se afastando e
empurrando de volta. Enrolo meus braços em volta de seu pescoço
enquanto ele bombeia em mim como se estivesse tentando chegar o mais
fundo possível.

— Deus, —ele geme, — o jeito que você me agarra, kismet. Eu poderia


viver aqui, dentro de você, para sempre.

Capturo sua boca e o beijo enquanto uma onda quebra ao nosso redor
e sinto gosto de água salgada em seus lábios.

O cavaleiro afasta a boca para dar beijos em minha bochecha. Ele


morde o lóbulo da minha orelha enquanto desliza para fora de mim,
depois volta para dentro.

Eu gemo, minha mente explodiu pelas incontáveis vezes com a


bruxaria que é esse cavaleiro.

Suas estocadas são profundas e lânguidas, e seus glifos brilhantes


iluminam seus olhos, dando-lhes um brilho extra enquanto ele olha para
mim.

— Você é tudo que eu pensei que não poderia ter, —ele respira.

Quero me esconder de sua confissão crua, mas apenas porque tenho


o hábito de fazer isso há muito tempo. Em vez disso, inclino-me para
aquela sensação de leveza que me preenche.

Toco o rosto da Morte. — E você é tudo que eu pensei que não deveria
ter, —eu respondo.

Não poderíamos, não deveríamos—nós nos desafiamos a ficar juntos.

As investidas de Thanatos ficam mais profundas e poderosas. As


ondas batem em nossa direção, mas, presa nos braços do cavaleiro, mal
percebo.

Ele se inclina para um beijo, sua língua acariciando a minha por um


breve momento antes de recuar.
Morte interrompe o beijo, sua mão em concha contra minha
bochecha, seu rosto a centímetros do meu. — Como eu gosto de provar
você, kismet. —Ele ainda está entrando em mim, e seus olhos ficam
derretidos com qualquer expressão que eu use. — E esse olhar ... esse olhar
me garante que eu te enlacei tanto quanto você me prendeu.

O cavaleiro move as mãos para meus quadris, balançando em mim


repetidamente até que minhas pernas se apertam em volta de sua cintura.
Quando ele se empurra o mais fundo que pode, ele faz uma pausa, nos
mantendo nessa posição.

— Thanatos, —eu ofego.

Ele sorri. — Isso, no entanto, é talvez o que eu mais gosto: quando


estou tão firmemente encaixado dentro de você que não tenho certeza de
onde termino e você começa. Amo tudo isso demais para o meu próprio
bem.

Minhas mãos passam por seu cabelo. — Acho que você também gosta
de me torturar.

Morte sorri novamente. — Só um pouco.

Com isso ele começa a se mover novamente, empurrando cada vez


mais forte até que a água comece a espumar ao nosso redor.

Sua mão desliza até meu clitóris e ele começa a acariciá-lo e, oh, meu
Deus, ele não está mais jogando limpo.

Eu pego seu pulso, tentando tirar sua mão da minha carne.

— É demais, —eu ofego.

— Você vai aceitar, —insiste Morte. Ele continua a brincar com meu
clitóris, a ponta do dedo deslizando sobre ele repetidamente enquanto ele
se move dentro de mim.

Realmente é demais.

Eu gemo, perdida na sensação. Minha outra mão aperta o cabelo de


Thanatos, e ele rosna com a sensação.

Ele abaixa a cabeça, seus lábios pegando a ponta do meu seio. Seus
dentes roçam meu mamilo e eu estou acabada.

Grito enquanto me despedaço, meu orgasmo é quase violento. E


assim por diante, cada golpe dos quadris da Morte esticando-o um pouco
mais. Mesmo quando finalmente chega ao fim, o cavaleiro não tira a mão
do meu clitóris.

Pego seu pulso novamente e ele ri.

— Acho que não, kismet. Você ainda não terminou.

Olho para ele como se tivessem brotado duas cabeças—pelo menos eu


tento. É realmente difícil quando ele está me acariciando tanto por dentro
quanto por fora.

— Thanatos.

— Sim, —diz ele, dando-me um sorriso de lobo, — diga meu nome


de novo assim.

— É demais, —insisto.

— Bem, nós dois sabemos que você não vai morrer disso.

Ha-ha, ele é tão engraçado. Não.

Estou ofegante de novo e posso sentir outro orgasmo crescendo como


se o primeiro nunca tivesse acontecido.

Agora eu solto uma risada. — Eu não posso acreditar em você.

A água está gelada, as ondas estão batendo em nós, e nada disso


distrai tanto quanto esse Cavaleiro sádico que quer me torturar com
prazer. Morte está batendo com seu pau em mim, e minha boceta dolorida
está latejando.

Thanatos me lança um olhar diabólico, então belisca meu clitóris.

Só assim, um segundo orgasmo passa por mim. Minhas unhas cravam


em sua pele enquanto inclino a cabeça para trás, entregando-me à
sensação.

Morte se inclina, pressionando um beijo na minha garganta enquanto


eu monto meu clímax.

E embora ele tenha parado de beliscar meu clitóris, a mão do


Cavaleiro ainda não o deixou. Quase choro com a sensação, que foi
maravilhosa um segundo atrás, mas agora é demais.

Tenho certeza de que Thanatos quer ver quantos orgasmos


consecutivos ele pode arrancar de mim.

Acho que ele não percebe que também posso tocá-lo como um
instrumento.

Minha mão desliza para baixo, entre suas pernas, e seguro suas bolas.

Morte geme, suas pernas tremendo um pouco.

— Oh, você pensou que era o único com as chaves do reino? —Eu
digo, minha voz rouca. Enquanto falo, deixo minhas unhas rasparem sua
pele sensível.

Os olhos do cavaleiro se arregalam. — Lazarus, —ele ofega.

— Sim, —eu concordo. — Diga meu nome assim. —Jogo suas


palavras anteriores de volta para ele. — Melhor ainda, implore. —
Enquanto falo, continuo a brincar com suas bolas, ignorando como seu
próprio toque está me brutalizando da maneira mais requintada.

Os impulsos de Morte tornam-se erráticos. — Você ... é ... impiedosa


... —ele morde. Então, com um grito, ele vem, martelando em mim de
novo e de novo.

Suspiro quando finalmente sua mão deixa meu clitóris. Seu pau me
acaricia várias vezes antes de sair. E então ele simplesmente me abraça.

Eu envolvo meus braços firmemente em volta de seu pescoço, meu


corpo gasto colado ao dele.

— Você é um bastardo, —eu sussurro.

Eu o sinto sorrir contra a minha bochecha. — Sou seu bastardo.

Eu engulo.

— Sim, eu concordo. — Você é meu.

NÓS DOIS ESTÁVAMOS deitados na praia, ainda completamente nus.


O ar do oceano está frio, mas as asas da Morte são quentes, e consegui me
enfiar sob uma delas.

Acima de nós, posso ver a Via Láctea81 estendendo-se pelo céu

81
A Via Láctea é uma galáxia espiral, da qual o Sistema Solar faz parte. Vista da Terra, aparece como uma faixa brilhante
e difusa que circunda toda a esfera celeste, recortada por nuvens moleculares que lhe conferem um intrincado aspecto irregular e recortado.
noturno. As estrelas brilham como jóias.

— O que você sente quando olha para as estrelas? —Eu pergunto.

Thanatos vira a cabeça e posso sentir seu olhar em mim. — Eu deveria


sentir alguma coisa?

Uma risada me escapa. — Estou tentando me aprofundar aqui e você


está estragando tudo.

Ele ainda está olhando para mim, e quando inclino minha cabeça para
encará-lo, posso ver o desejo em seus olhos, como se ele desejasse toda a
minha essência.

— Você sente em algum lugar o que eu sinto? —ele pergunta.

Uma gota de água salgada gruda em uma mecha molhada de seu


cabelo. Eu me concentro nisso enquanto engulo.

— Sim, —eu respondo seriamente, meu olhar encontrando o dele.

Seus olhos estrelados se aprofundam com a minha admissão.

Depois de um momento, desvio meu olhar para olhar de volta para o


céu.

— Toda vez que eu olho lá para cima, —eu digo. — Sinto que lembro
quem eu sou.

— E quem é essa? —ele pergunta baixinho.


Juro que ele está se preparando para a minha resposta.

— Essa é a coisa engraçada, —eu digo. — Nem me sinto como quem


quando olho para aquelas estrelas—mais como o quê. Como se eu fosse
algo que não tem preocupações ou medos. Eu apenas sou.

Morte ainda está olhando para mim, e posso sentir o peso desse olhar.

Finalmente, ele vira o rosto para o céu. — Vivi por muito, muito
tempo. Já vi pessoas morrerem repetidas vezes. Tive tantos vislumbres da
vida e aprendi muito sobre o mundo aqui. E, no entanto, muito disso é um
mistério. Ser o que sou—a Morte—torna a experiência da vida muito
esquisita e estranha. A única coisa que parece me fundamentar é estar com
você, kismet. Essa sensação que tenho quando estou com você é ... não há
palavras humanas para isso. É incomparável. Tudo o que posso realmente
dizer é que quando seguro você perto de mim, tenho certeza de que
ninguém nunca se sentiu tão feliz quanto eu. Então, para responder à sua
pergunta, não me lembro de mim quando olho para o céu. —Ele pega
minha mão e inclina a cabeça para me encarar mais uma vez. — Lembro-
me de mim mesmo quando olho para você.

Meu coração bate loucamente enquanto me perco naqueles olhos


dele. Não há nada que eu possa dizer que corresponda às suas palavras,
então, em vez disso, me inclino e beijo meu Cavaleiro.

Morte envolve um braço em volta da minha cintura e nos rola. Ao


fazer isso, ele sobe por uma das minhas pernas e desliza para dentro de
mim. E então nós dois estamos perdidos um no outro mais uma vez.

Capítulo 65
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

O SOL ESTÁ SE PONDO NO DIA SEGUINTE QUANDO convenço


Morte a entrar na grande cozinha da casa. Não que isso tenha exigido
muito esforço. Estamos jogando o jogo de vamos batizar cada cômodo
desta casa, então Thanatos provavelmente pensa que sou eu tentando
adicionar um toque alimentar ao nosso sexo, o que é uma boa ideia, mas
não é aí que minha cabeça está.

Ao meu redor há meia dúzia de esqueletos, cada um ocupado


cortando, assando ou mexendo em alguma coisa.

Virando-me para Thanatos, pergunto: — Você pode dizer a seus


servos para sairem da cozinha?

Ele inclina a cabeça. — Por que? Você não está com fome?
— Achei que poderíamos fazer algo um pouco diferente esta noite, —
eu digo.

Ele me encara por um longo momento e, sim, ele definitivamente acha


que vai transar.

Morte deve dar a seus servos algumas instruções sem palavras porque,
de repente, cada esqueleto para o que está fazendo. Largando colheres,
facas e todos os outros tipos de utensílios, eles saem da sala
imediatamente.

É estranho, essas criaturas nada mais são do que marionetes puxadas


por cordas mágicas, mas agora que elas se foram, a cozinha parece muito
mais íntima.

Thanatos dá um passo em minha direção, seu olhar cada vez mais


faminto.

Antes que ele possa fazer algo que me distraia para batizar a cozinha,
coloco a mão em seu peito.

— Espere, —eu digo sem fôlego.

Os olhos da Morte estão aquecidos e, embora ele faça uma pausa, ele
claramente está apenas esperando que eu termine o que quer que eu queira
dizer para que ele possa continuar.

E estou ficando terrivelmente distraída com o olhar em seus olhos.


— Queria mostrar uma coisa a você—algo sobre mim. —Estou me
agarrando às palavras, tentando desviar minha mente do pensamento de
sua pele pressionada contra a minha, seus lábios se arrastando ao longo da
minha carne ...

— Você quer meus segredos humanos, —eu digo. — E eu queria


mostrar este para você.

Os olhos de Thanatos brilham.

— Não é sexo, —sinto necessidade de acrescentar.

— Tudo bem, —ele diz bem-humorado. — Você compartilhará esse


segredo, eu me deleitarei com a maravilha de sua existência e então farei
amor com você.

Meu Deus.

Ele inclina o quadril contra um balcão próximo, suas asas farfalhando


enquanto ele cruza os braços. Ele ainda está me olhando como se pudesse
me comer, e tudo o que posso fazer é me concentrar em encontrar farinha,
açúcar e todos os outros ingredientes de que vou precisar. Então,
vasculhando, consigo uma tigela e alguns copos e colheres medidores.

Pegando uma tábua de madeira, levo os itens para um balcão que os


servos da Morte ainda não usaram.

— O que você está fazendo? —Thanatos pergunta, apontando para os


ingredientes reunidos. É como se ele nunca tivesse visto seus esqueletos
trabalhando com os mesmos itens.

Olho então, um pequeno sorriso curvando o canto de um dos meus


lábios para cima. Na verdade, estou emocionada por fazer isso. — Quero
cozinhar com você.

Agora alguma apreensão entra nos olhos do Cavaleiro. — O que


estamos ... estamos cozinhando?

Relaxo um pouco, ouvindo suas palavras. Morte pode não gostar de


comida, mas está disposto a fazer isso comigo.

Me volto para a tábua e os ingredientes reunidos. — Minha mãe


gostava de chamar isso de pão da alma.

Apenas o pensamento dela evoca a memória de sua breve


ressurreição.

‘O que quer que você tenha feito para me trazer aqui, você desfaz.’

Engulo a dor e a culpa que sinto.

As sobrancelhas de Morte se juntam. — Sei o que são espíritos e sei o


que é pão. Não sei como os dois se encontram.

— Mamãe costumava me dizer que existem certas comidas que você


faz com amor. Você coloca um pouco de sua alma nos ingredientes—daí
o nome.

— Que pensamento monstruoso, —diz Morte, parecendo ofendido.


— Posso garantir, Lazarus, que as almas que coleciono estão inteiramente
intactas.

Eu rio disso. — Nem tudo é literal, Thanatos.

Seus olhos aquecem quando ele ouve seu nome em meus lábios.

— Supostamente esta é uma receita de família que se estende por


centenas de anos, —continuo, começando a juntar os ingredientes. Mais
tranquila, eu digo: — Às vezes gosto de imaginar todas aquelas
mulheres—ou pelo menos presumo que fossem mulheres—fazendo esta
receita. Que neste momento estou ligada a uma cadeia ininterrupta de
pessoas, todas unidas pela alegria de alimentar os seus entes queridos.

— Não é assim que funciona, —insiste.

Rio de novo. — Para um ser sobrenatural, você não tem imaginação.


—Me movo um pouco. — Aqui, —eu digo, entregando-lhe um recipiente
de sal, — me ajude.

Morte olha para o sal como se lhe pudessem crescer olhos e dentes,
mas afasta-se do balcão e pega-o com relutância.

Juntos, ajudo-o a medir o sal e o último dos ingredientes.


Agora a parte divertida.

Pego suas mãos e as movo para a tigela.

— O que você está ...?

Empurrando para baixo, eu mergulho suas mãos na mistura, uma


nuvem de farinha em pó subindo ao redor de nossos pulsos.

— Lazarus.

— Oh, meu Deus, —eu digo, — não aja como se eu tivesse levado seu
primogênito. É assim que misturamos a massa do pão.

Morte faz uma careta, embora eu não tenha certeza se é esse método
de misturar ou a própria ideia do pão que o desagrada. E para ser honesta,
eu poderia ter usado uma colher para esta parte.

Independentemente disso, ele me deixou orientá-lo na mistura e


depois na amassadura da massa.

Os movimentos não são familiares ao cavaleiro, mas de alguma forma


aquelas mãos hábeis não são desajeitadas. Não que isso o faça apreciar
mais.

— Isso parece uma tarefa frívola, —diz ele, a ponta de uma de suas
asas roçando minhas costas.

— Imagino que se eu fosse um anjo eterno e imortal que não


precisasse comer, isso também poderia parecer frívolo para mim, —digo.

Os olhos de Thanatos se movem para meu rosto e depois de um


momento, encontro seu olhar.

Você me vê, sua expressão parece dizer.

Eu brevemente olho para nossas mãos.

— Agora você pressionou um pouco de sua alma na receita também.

— Isso é ridículo, kismet. —Mas agora ele parece menos cético e mais
curioso.

Um pequeno sorriso escapa.

— Então está feito? —ele pergunta.

— Tecnicamente está, mas ... —Ainda temos que assá-lo.

Nunca consigo dizer essa última parte.

Morte me coloca em um dos balcões, derrubando uma tigela de molho


vermelho que um dos esqueletos trabalhou duro para preparar. Ele se
estilhaça no chão, respingando em mim e nele.

Nenhum de nós presta atenção nisso.

— Bem. Esse foi um segredo divertido, —diz ele, com o olhar fixo em
meus lábios. Suas mãos se movem para a borda da minha camisa, seus
dedos ainda pegajosos da massa. Ele tira a roupa por cima da minha
cabeça.

Morte olha especulativamente ao redor. — Agora, parece-me que uma


cozinha é o último tipo de lugar onde alguém deveria ser pego transando.
—Ele me dá um sorriso malicioso e me puxa para a beirada do balcão.
Agarrando minhas pernas, ele as envolve, uma a uma, ao redor de sua
cintura.

Quero dizer, nesta paisagem infernal pós-apocalíptica de um mundo, há


definitivamente lugares piores para se transar …

Puxo sua camisa preta, tirando-a dele e revelando seu peito esculpido
e as linhas de escrita brilhante que fluem por ele.

O sorriso de Thanatos desaparece e ele segura meu rosto, seu olhar


ficando cada vez mais quente.

— Você foi feita para mim, —diz ele com fervor. — E eu para você.

Ele me beija selvagemente e esquecemos tudo sobre o pão da alma.

O PÃO TOTALMENTE ASSADO fica em uma travessa na mesa da sala


de jantar. Morte olha para ele como um adversário.

— Você não precisa provar, —eu digo.


— Claro que devo, —ele responde. — É o alimento da alma e eu sou
o superintendente das almas.

Lanço um olhar cauteloso para Thanatos enquanto começo a cortá-


lo. Da última vez que o Cavaleiro experimentou pão, ele odiou.

Corto um pedaço fino de pão e entrego a ele. Relutantemente, a Morte


aceita. Não me preocupo em oferecer ao cavaleiro um pouco de manteiga
ou azeite ou qualquer outra coisa que possa acrescentar algum sabor.
Receio que alguma coisa possa assustá-lo.

Ao nosso redor, as velas tremeluzem, e o único ruído na sala são os


sons suaves que as chamas fazem enquanto queimam os pavios. Parece
que a própria sala está observando, esperando.

A Morte olha para o pão, com uma leve carranca no rosto, como se
temesse o que está prestes a fazer. Ele o leva aos lábios e, após uma pausa
momentânea, dá uma mordida. Ele mastiga por um longo momento, seu
rosto inexpressivo, e meu estômago despenca com a visão.

Não sei o que realmente esperava ou por que isso importa. Ele é um
Cavaleiro. Ele não precisa comer comida nem apreciá-la.

Eu só queria que ele fizesse isso, eu acho. É simples assim.

Thanatos engole em seco e suas sobrancelhas se juntam enquanto ele


estuda a fatia de pão novamente.
— Gosto disso, —ele admite, carrancudo. Ele dá outra mordida.

— Alimento da alma, —ele diz para si mesmo, com um sorriso


particular no rosto. Seus olhos encontram os meus, e eles brilham como
se estivéssemos compartilhando uma piada interna.

E talvez estejamos—mas comida da alma ou comida humana,


Thanatos come até o último pedaço.

Capítulo 66
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

JÁ ME ACOSTUMEI COM A SENSAÇÃO DE ACORDAR confusa.


Cidade diferente, cama diferente, ambiente diferente. Sempre parece que
estou caindo por um momento, como se meus pés não estivessem mais em
terra firme.

É isso que acontece esta noite. Quando meus olhos se abrem e olho
para as enormes janelas, não sei onde estou. Mas então há um braço
familiar jogado sobre minha cintura, os glifos brilhando suavemente, e
meu corpo relaxa quando me lembro que estou com a Morte.

Um sorriso surge em meu rosto. Continuo fazendo isso


ultimamente—sorrindo com os pequenos detalhes que noto ao redor do
cavaleiro. É uma emoção mais suave e sutil do que a onda de desejo que
normalmente sinto perto dele.

Acho que é assim que se sente estar apaixonada.

Pego a mão da Morte, entrelaçando meus dedos nos dele. Espero que
ele dê um aperto no meu. Quando ele não o faz, eu me viro.

Seus olhos estão fechados, seus lábios ligeiramente entreabertos. Os


ângulos agudos de seu rosto são de alguma forma suavizados na
penumbra, e aquele peito cheio de tatuagens sobe e desce em um ritmo
constante.

Ele está dormindo. Morte realmente conseguiu adormecer. Primeiro


ele comeu o pão e agora isto. Não é a primeira vez que isso acontece, mas
é a primeira vez que vejo com meus próprios olhos.

Não me atrevo a fazer nenhum som enquanto observo suas asas


subirem e descerem levemente a cada respiração. Seu braço ainda está
pendurado na minha cintura e o outro está enterrado debaixo do meu
travesseiro. Uma mecha de seu cabelo escuro caiu em sua bochecha.

Meu coração palpita com a visão. Ah, com tanta delicadeza que
estendo a mão e coloco seu cabelo atrás da orelha. E eu olho e olho.

Eu o vi inconsciente várias vezes. Isso é diferente. Não há dor ou


conflito nas feições do cavaleiro, este é o conjunto suave de um rosto que
conhece a paz.

Num impulso, me inclino para frente, pressionando meus lábios nos


dele. Ao meu lado, Thanatos se mexe. Ele joga uma perna sobre a minha
e me puxa para perto.

— Amo você, kismet, —ele murmura enquanto dorme. Uma de suas


asas se estende um pouco, me cobrindo como um cobertor.

Eu sorrio para mim mesma, o calor se espalhando pelo meu estômago.


— Também amo você.
Capítulo 67
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE

ACORDO ASSUSTADO, MEUS OLHOS SE ABRINDO. O quarto está


escuro.

Ainda é de noite.

Observo a mulher debaixo do meu braço. Lazarus está enrolada


firmemente em meu peito, tão perto que mesmo na escuridão posso ver o
arco de suas sobrancelhas e o movimento de seus cílios. A visão faz meu
peito apertar da maneira mais doce antes que eu me lembre ...

Adormeci.

De novo.

Isso tem acontecido cada vez mais. Toda a experiência não é natural
e desanimadora. Humanos com asas não foram feitos para dormir assim—
embora uma dessas minhas asas tenha se estendido sobre Lazarus e, ao
vê-la, sinto uma sensação profunda e primordial de satisfação de que a
mulher que amo está bem aqui comigo, escondida dentro do meu abraço.

Não sou mais o homem que costumava ser. Nem um pouco. E esta
mulher é quase totalmente culpada por isso.

Seria mentira dizer que não brinquei com a ideia de desistir de tudo
por Lazarus. O pensamento surgiu em mim mais vezes do que eu deveria
admitir. Ela acha que não fiquei tentado a me afastar da minha tarefa,
mas, na verdade, sempre fui tentado. Quando pensei nisso pela primeira
vez, simbolizava minha queda e era algo a temer.

Agora ... agora eu poderia viver com ela aqui para sempre, fazendo
amor sob as estrelas, nadando naquele oceano desagradável só para ouvir
o trinado da risada de Lazarus. Passaria minhas noites dormindo ao lado
dela, seu corpo colado ao meu—assim mesmo.

Sofro por isso.

Minha mão desliza por sua pele macia, descansando na parte inferior
de seu estômago.

E se?

E se as coisas fossem diferentes?

E se eu parasse de matar? E se eu cedesse? Viver verdadeiramente


como humano?

E se eu formasse a vida?

Meu pau endurece com a simples ideia.

Estou tão perto de acordá-la. Para abrir aquelas suas coxas e me


conduzir para dentro dela. Para cumprir esta coisa verdadeiramente
proibida.

Ela não quer filhos com você. Ela pensou que você seria um péssimo pai.

Isso me impede completamente.

Eu poderia mudar. Se eu fizesse isso, talvez ela reconsiderasse. Quero


que ela reconsidere. Nada disso precisa ser assim ...

Foi assim que Fome caiu.

Naquele dia, quando o Ceifador tentou despojar-se de sua


imortalidade e de seu propósito, senti suas intenções enquanto estava em
meu estado de estupor. Foram eles que me despertaram. E como agora
eles espelham os meus.

Aqui estou, prestes a desistir de tudo, tudo pelo amor de uma boa
mulher.

Passei tanto tempo pensando que era melhor que meus irmãos,
pensando que era diferente. E talvez, de certa forma, eu seja.
Mas meu Deus, foi assim que Fome caiu.

Ao contrário do Ceifador, porém, acredito na humanidade. Sempre


acreditei. Nada disso é sobre a bondade inata dos humanos. Um olhar
para suas almas e é claramente óbvio.

Não, sempre se tratou de cumprir a tarefa que nos foi confiada a nós
quatro cavaleiros.

Enquanto penso nisso, sinto aqueles meus irmãos. Não mencionei a


Lazarus o quão próximos eles estão, mas agora estão nos arredores desta
cidade. Amanhã eles estarão aqui.

Uma decisão deve ser tomada.

Meus dedos apertam Lazarus. Com a sensação, ela murmura em seu


sono, então seus olhos se abrem e ela me dá um sorriso sonolento.

Ela está prestes a rolar e voltar a dormir quando eu acaricio sua


bochecha. — Em toda a minha existência, nunca encontrei nada pelo qual
valesse a pena abandonar meu dever até conhecer você, —digo com
fervor. — Você é meu tudo, kismet.

Ela usa um sorriso sonolento. — Não é justo dizer coisas tão bonitas
quando estou cansada demais para processá-las. —Ela se inclina para
frente e me dá um beijo, seu corpo roçando o meu. Meu aperto aumenta
sobre ela.
Em resposta, ela se move, abrindo as pernas em um convite. Eu sou
um anjo, mas nem eu consigo resistir a isso.

Com uma única mão, tiro sua calcinha, em seguida, empurro meu
caminho para dentro dela, sibilando com sua sensação inebriante em volta
do meu pau. Quase me desfaço ali mesmo. Em vez disso, eu bombeio
dentro e fora dela com um frenesi que ela confunde com paixão, cada
impulso profundo arrancando gemido após gemido dela até que, de
repente, sua boceta aperta em minha volta e seus gemidos se transformam
em um grito, meu nome da sua língua.

Ao sentir seu orgasmo e o som de sua liberação, não posso mais


resistir. Dirijo para ela, mais forte do que deveria, berrando seu nome
enquanto gozo.

Antes mesmo de sair dela, eu a puxo para mim.

O rosto de Lazarus aninha-se em meu peito, e posso sentir neste


momento a confiança que ela deposita em mim. Aqui ela está deitada em
meus braços, nua, vulnerável, com minha semente derramando dela como
se não fosse escolher outro destino para si mesma a não ser este.

E sinto uma perda, uma perda cortante, pelo que sei que não posso ter.

Porque sei que não posso ter isso, uma vida humana—cheia de risos,
crianças e ... Lazarus.
Sempre Lazarus.

Sem querer, eu a agarro com mais força.

Eu não vou deixá-la ir.

O mundo inteiro poderia queimar até virar cinzas, e eu não me


importaria, mas não vou desistir de Lazarus. Não minha Lazarus.

Foi-me dada uma breve experiência humana—cheia de horror e


tragédia, mas depois, a mais poderosa de todas, beleza, esperança e amor.
Recebi isso, e esta noite quase caí de todo o coração naquela existência,
quase joguei fora tudo por isso.

Foi isso que Pestilência fez.

Foi o que Guerra fez.

É o que a Fome tem tentado fazer.

É o que não posso fazer.

Eu questionei meus próprios motivos por muito tempo. Mas isso deve
acabar. É para isso que nós, Cavaleiros, fomos enviados aqui. É o que farei.

E nada, nada—nem mesmo Lazarus—irá me impedir.


PARTE III
Capítulo 68
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

LAZARUS

NA MANHÃ SEGUINTE, ENTRO NA SALA DE JANTAR, ONDE uma


variedade de ovos, torradas e frutas frescas nos espera. Estou tão distraída
com isso que quase não percebo Thanatos. Ele está no fundo da sala, em
frente às enormes janelas que dão para o quintal e para o oceano.

— Eu estava errado, —diz ele, de costas para mim.

Dou a volta na mesa.

— Bom dia para você também, —digo, pegando a caneca fumegante


de café que foi preparada para mim. Pegando o creme que está por perto,
coloco um pouco.

Morte ainda não se vira. É uma coisa pequena, mas mesmo assim dói
na parte de trás do meu pescoço.
— Sobre o que você estava errado? —Eu pergunto, minha voz
cautelosa. Puxo uma cadeira e deslizo para o assento.

— Ficando aqui.

Levanto as sobrancelhas enquanto pego uma torrada. Ah. Ele precisa se


manter em movimento, e nenhuma quantidade de sexo na praia pode distraí-lo
disso.

Esta foi uma fuga feliz, mas também estou ansioso para ir embora,
para ir buscar Ben. Agora que estamos na Costa Oeste, ele parece
tentadoramente próximo, mesmo que centenas e centenas de quilômetros
ainda nos separem.

— Você acha que alguma dessas coisas foi aleatória? — diz Thanatos,
do nada. — Que Deus não estendeu a mão e fez de você uma marionete?

Minhas sobrancelhas se juntam. Neste momento, o Cavaleiro tem


uma energia sinistra que está me deixando nervosa.

— Do que você está falando? —eu digo.

— Você realmente achou que foi aleatório quando sua mãe te


encontrou quando criança? —ele diz, ainda olhando pelas janelas. — Ou
quando você encontrou Ben vivo em uma cidade morta, apesar do fato de
ele ser dolorosamente mortal—você também achou que isso foi aleatório?

Suas palavras fazem os cabelos da minha nuca se arrepiarem.


— Que tal nossos caminhos se cruzarem? E quanto a isso? Ou quando
você conheceu os outros cavaleiros bem a tempo de eles salvarem seu filho
e levá-lo embora?

Morte se vira para mim então, e seus olhos parecem tão tristes. —
Você realmente acha que tudo isso foi aleatório? Porque não foi. Isso foi
intercessão. Isso acontece com os humanos o tempo todo, mas vocês estão
tão cegos pelas suas próprias percepções da realidade que não percebem.
Vocês não percebem as forças mais poderosas da magia em suas vidas,
mesmo quando elas se desdobram bem diante de vocês.

Meu coração bate tão forte que tenho certeza de que o Cavaleiro pode
ouvi-lo. — Porque você está me dizendo isso?

Ele dá um passo em minha direção, seus olhos magnéticos. — Porque


está acontecendo de novo—agora.

Me levanto, a cadeira sendo arrastada para trás, é muito estranho ficar


sentada quando Thanatos não é ele mesmo.

Algo deve estar muito errado.

O Cavaleiro avança em minha direção e tenho que me esforçar para


não dar um passo para trás. Quando ele me alcança, ele segura meu rosto.
Ele parece tão triste.

Seus olhos procuram os meus. — Eu ainda não mudaria nada disso—


exceto talvez o final. Mas é tarde demais para isso.

Antes que eu possa perguntar o que ele quer dizer, ele me beija, a
pressão feroz de seus lábios é um tanto surpreendente.

Thanatos se afasta de forma igualmente abrupta. — Eu te amo, kismet,


—diz ele, apertando a mandíbula. — Eu te amo com tudo que sou. Por
favor, não se esqueça disso.

Minhas sobrancelhas se juntam. — Por que eu esqueceria isso?

Mas o cavaleiro já me soltou. Ele se afasta da sala e eu o vejo sair,


perplexa com seu comportamento. Tenho a estranha sensação de que, pela
primeira vez em muito tempo, ele está fugindo de mim novamente.

O COMPORTAMENTO estranho de Morte dura a manhã toda. Ele


manteve distância de mim e há um medo torturante infestando meu
coração. Não consigo descobrir o que está errado, apenas que algo está
errado. Pela primeira vez, sinto-me insegura perto de Thanatos.

Mesmo quando saímos definitivamente da casa de praia, o cavaleiro


mantém distância, andando na minha frente.

Fico na varanda da frente, observando aquelas asas dobradas de seu


balanço a cada passo. Meu instinto está me dizendo que algo não está
certo.

Ele admitiu para você que a amava. Ele dormia ao seu lado e comeu sua
comida. Talvez não seja que algo não esteja certo. Talvez ele esteja apenas diferente.
Mudado.

Relutantemente, reúno-me à Morte em seu cavalo. A fumaça envolve


o animal, a tocha de Thanatos já presa na lateral da sela. Ao nosso redor,
esqueletos carregam nossos pertences nas carroças. Sou totalmente a favor
de manter um ritmo constante em nossas viagens. Mesmo assim, quando
olho para trás, para a casa, sinto um nó na garganta.

As coisas entre nós mudaram aqui, e temo que, quando montarmos


naquele cavalo, elas possam voltar a ser como eram.

Sinto os olhos da Morte em mim e giro para encará-lo. Como antes,


ele ainda parece um pouco melancólico, mas talvez eu esteja apenas lendo
as coisas. Talvez eu esteja lendo tudo isso.

— O que foi? —eu digo, um pouco constrangida.

— O que você estava pensando naquele momento? —ele pergunta.

Minha atenção se volta para a casa, com as buganvílias crescendo em


suas paredes e aquele cata-vento empoleirado no telhado. Mesmo daqui,
posso ouvir o oceano quebrando à distância.
— Vou sentir falta deste lugar, —admito.

Agora sei que não estou imaginando a tristeza de Thanatos quando


seu olhar percorre o que nos rodeia. — Assim como eu, Lazarus.

Relutantemente, subo no corcel de Thanatos. O cavaleiro se acomoda


atrás de mim e, sem outro olhar para trás, nós dois partimos.

Seguimos para o norte, por uma das muitas rodovias de Los Angeles.
Os poucos corpos pelos quais passamos já estão em decomposição, e o
leve cheiro de morte permeia o ar, até mesmo por cima do incenso que
queima em sua tocha.

Morte me segura com mais força do que o normal, como se eu pudesse


escapar.

— Thanatos, —eu digo, colocando minha mão sobre a dele: — Você


pode relaxar ... —Faço uma pausa quando percebo o tremor em sua mão.

— Você está tremendo,— eu digo.

— Não é nada.

Algo não está certo. E, para ser honesta comigo mesma, não está certo
desde que acordei esta manhã.

— O que está acontecendo? —Eu exijo.

Nada.
— Thanatos, —eu digo, — Desde que eu te conheço, você nunca
contornou verdades duras, —eu digo. — Isso é ruim? —Eu pergunto.

Silêncio sinistro.

Finalmente ... — Eu amo você, Lazarus. Tudo vai ficar bem.

Estou começando a entrar em pânico. Seu aperto de torno apenas


aumenta ainda mais.

Eu pego sua mão novamente. — Por que você está me segurando com
tanta força?

Mas então isso me atinge ...

Ele acha que eu vou fugir.

E agora tenho que me perguntar o que poderia ser tão ruim que ele
pensasse que vou fugir dele. Ele ressuscitou mortos, matou cidades inteiras
e fez quase todas as outras coisas assustadoras do livro.

— Seja o que for, Morte, você pode me contar sobre isso, —eu digo,
tentando parecer razoável quando o pânico interno está se instalando.

Seria outro poder terrível? É ... Ben?

— Meu filho, —eu digo. — Ele está bem?

— Seu filho está bem, —Morte diz severamente.

Por um momento, fico apaziguada.


Talvez qualquer que seja o humor que tenha invadido a pele de
Thanatos, não seja tão ruim.

Continuamos em direção ao norte, passando por um prédio decadente


após o outro, e as coisas quase voltam ao normal – até que paramos.

Vários arranha-céus pairam sobre nós, muitos deles sem janelas. Entre
eles estão outras estruturas de vários andares com paredes desgastadas e
pintura descascada; tudo isso está amontoado como se não houvesse
espaço suficiente para construir, então eles tiveram que se espremer para
cima. A estrada em si está relativamente livre de corpos e escombros,
embora haja uma bicicleta tombada e uma mulher morta esparramada ao
lado dela, e mais adiante na rodovia posso ver vários outros corpos caídos
na estrada.

Atrás de mim, Morte salta de seu cavalo.

Eu olho para ele. — Por que paramos?

— Os sinto chegando, —murmura Thanatos, olhando para o norte.

Uma onda de apreensão passa por mim.

— Quem? —Eu digo, temendo a resposta.

— Meus irmãos, —diz Thanatos, lançando um olhar sombrio para a


estrada à nossa frente.
Porra.

Porra, porra, porra.

Achei que tivéssemos mais tempo.

— Então vamos contorná-los, —eu digo.

Explicarei meu raciocínio mais tarde. Eu só quero que Thanatos volte


a montar em seu cavalo.

— Eles pretendem me impedir, —diz ele, ignorando minhas palavras.


— Não vou deixar que eles se interponham entre mim e meu propósito.

Meu sangue gela, mesmo quando meu coração começa a disparar.

— Seu propósito? —Eu digo, meu tom leve.

Ele se vira para mim agora. — Está na hora, kismet.

Minhas sobrancelhas se juntam, mesmo quando meu peito sobe e


desce cada vez mais rápido. — Hora de quê?

Morte alcança as fivelas de seu peitoral e começa a desfazê-las uma


por uma.

— O que ... o que você está fazendo? —Eu exijo. Não pretendo que
minha voz vacile, mas vacila.

Ele continua removendo sua armadura até que cada pedaço dela fique
a seus pés. Então ele tira a camisa, seus olhos nunca deixando os meus. —
Nunca li para você todas as minhas marcações.

Algo está muito, muito errado aqui.

Deslizo da sela, minhas botas batendo pesadamente no chão. Eu giro


para a Morte. — O que você está fazendo? —Pergunto-lhe. — Você não
está agindo como você mesmo, Thanatos.

Aqueles olhos tristes encontram os meus. — Estou agindo exatamente


como deveria.

Ele dá um passo à frente, a mão indo até o peito, o dedo tocando uma
de suas muitas marcas.

Ele lê tudo em sua língua nativa. Não entendo nada disso, mas o
poder das palavras me invade, fazendo meus joelhos fraquejarem.

Eu recuo enquanto o Cavaleiro avança. Ele começa a traduzir:

— Dos confins mais sombrios do universo minha forma foi forjada. Sou

a Morte , o fim de todos os começos, o começo de todos os fins. Sou aquele

que pode pegar os vivos e ressuscitar os mortos. Aquele que pode

ressuscitar almas. Tenho para mim todos os poderes dos meus

antepassados e aquilo que amarra firmemente os fios da criação.


— Sou o último da minha espécie e trago comigo todo tipo de doença

que atormenta a humanidade. Seus campos escurecerão, suas criaturas

fugirão. Os mortais tremerão diante do meu nome e todos cairão ao meu

toque. Pois eu vou acabar com o mundo.

— Os edifícios vão quebrar, as estradas serão destruídas. O mundo

irá desfazer-se até que cada remanescente da criação do homem se desfaça

em pó. Os corajosos retornarão à terra, e os covardes e cruéis também. E

a cevada crescerá selvagem mais uma vez, e os animais antigos poderão

retornar às suas terras. Tudo será como antes. Pois eu sou o coração de

Deus e cumprirei a Sua vontade. Sou o último julgamento da humanidade.

Caí de joelhos e lágrimas escorrem pelo meu rosto e não me lembro


de chorar ou cair.

A mão de Morte cai de sua pele. — Você sabe o que acontece depois
que eu tomo minha decisão final?

Posso sentir a mortalidade coletiva do mundo pairando no ar entre


nós.
— Por que você está fazendo isso? —Eu sussurro.

— Você sabe? —ele pressiona.

Fecho os olhos e engulo. Já ouvi falar o suficiente sobre o Fim dos


Dias para saber a que ele está se referindo. Ele mesmo falou disso há
apenas um momento.

— O Juízo Final, —eu digo suavemente.

O fim da vida humana tal como a conhecemos.


Capítulo 69
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE

OLHO PARA LAZARUS E QUERO DIZER A ELA QUE ISSO nunca foi
ideia minha. Pego almas, mas nunca desejei a morte delas. Apenas cumpri
as ordens que me foram dadas, desde a primeira morte até esta.

De vez em quando abro exceções—as esposas dos meus irmãos são


prova disso. Mas no final, nós quatro cavaleiros devemos terminar a nossa
tarefa, independentemente dos nossos sentimentos pessoais.

Mesmo assim, estou arrasado porque amo Lazarus e ela vai me odiar
como antes. Porque todo o resto da humanidade me odeia e eu os amo e
não posso ajudá-los a se apegarem a essas vidas que cobiçam. Não sem
trair todo o universo senciente.

E eu não farei isso.


LAZARUS

EU ... FALHEI.

Seduzi a Morte, fiz com que ele se apaixonasse por mim, até me
apaixonei por ele. Desisti de tudo—minha causa, meu filho, meu corpo,
meu coração—e a Morte ainda está pronta para destruir o mundo.

O pensamento fecha minha garganta. Não consigo respirar perto


desse medo paralisante.

Ele parece aflito, então acho que há algum consolo nisso. Não que isso
mude alguma coisa.

— Sinto muito, meu amor ...

— Não, —eu digo, minha voz falhando. — Não me chame assim.

Sua expressão se fecha. Depois de um momento, ele se afasta de mim.


Ele pega suas roupas descartadas e as veste mais uma vez.

Preparando-se para a batalha. Porque eu acho que é isso que está prestes a
acontecer.
Ao longe, ouço o som de cascos de cavalo, e isso me tira dos
pensamentos.

A estrada faz uma curva em torno de uma colina íngreme, então não
vejo nada além dos corpos já espalhados pela estrada.

Um minuto depois, porém, uma figura a cavalo faz a curva e aparece.


Pouco depois, outros dois indivíduos seguem a pé.

Irmãos de Morte.

Sinto a última areia da ampulheta escorregar por entre meus dedos. A


tarefa que me deram—seduzir a Morte—não funcionou. Tudo o que isso fez
foi me fazer amar a única coisa que não deveria. Nem consegui segurar
Ben nos braços uma última vez.

Quanto mais próximos os três homens chegam, mais detalhes consigo


distinguir. O mais óbvio é Fome com seu corcel negro como carvão e
armadura de bronze, com sua foice erguida nas costas. Tanto Guerra
quanto Pestilência usam preto, embora não tenham a armadura de seu
irmão. Pestilência carrega um arco e uma aljava, e Guerra tem uma
enorme espada amarrada a ele.

Eles também vieram prontos para a batalha.

Os Cavaleiros param a cerca de dez metros de nós, embora pareça que


ainda estão a um oceano de distância.
O olhar de Guerra cai pesadamente sobre mim, e sei o que ele deve
estar pensando.

Ela falhou.

— Lazarus, é bom ver você de novo, —Pestilência grita. Ele me


observa, seus olhos cheios de preocupação. Eles endurecem um pouco
quando se movem para o homem atrás de mim. Voltando sua atenção para
mim, Pestilência diz: — Você está bem?

Essa única pergunta—essa preocupação simples, mas sincera—


ameaça me esmagar.

Não, não estou bem. Achei que sim, mas isso é muito, muito ruim e sou
apenas uma mulher e acho que estamos prestes a testemunhar o fim do
mundo.

Meu próprio olhar se move de cavaleiro em cavaleiro. Sem sequer ter


a intenção, começo a caminhar em direção a eles.

Morte não me impede, embora eu juro que ele quer. Acho que, apesar
de quão distante ele está, ele quer me apertar contra o peito para garantir
que eu nunca vá embora.

Fome salta de seu cavalo enquanto os outros lançam seus olhares


duros para a Morte, como se o cavaleiro alado pudesse detonar a qualquer
momento.
Não paro de andar até chegar a Pestilência.

Ele gosta de ser chamado de Victor, lembro a mim mesma.

O Cavaleiro não hesita. No momento em que estou ao alcance do meu


braço, ele me puxa para um abraço que eu não esperava. Sua mão esfrega
minhas costas de cima a baixo de uma forma quase paternal. Sem querer,
eu meio que desabo no abraço, e ele me abraça com ainda mais força.

Nada disso faz sentido. Meu amante matou minha família, o homem
que me abraçou matou meus pais e os outros dois mataram incontáveis
outros. Meu filho está morando com pessoas que eu nunca conheci, e tudo
isso pode não importar muito, muito em breve.

— Você está bem, —o Cavaleiro diz, sua voz gentil. — Vai ficar tudo
bem. Verdadeiramente, vai.

É uma linha tão pequena e inócua, mas estou engasgando da mesma


forma que quando vi minha mãe alguns dias atrás.

Concordo com a cabeça, talvez um pouco rápido demais, e me afasto,


exibindo um sorriso tenso para Pestilência.

— Como está Ben? —Eu pergunto, embora Morte provavelmente


tenha mais percepção do que ele.

— Ele está bem cuidado, —diz ele, com os olhos enrugados nos
cantos. — Minha esposa Sara se intitulou sua fada madrinha. —
Pestilência pisca. — Ela estava alimentando-o com biscoitos açucarados
quando saímos. —Seus olhos deslizam sobre mim novamente. — Como
você está?

Estou apaixonada por Morte, e minha alma está gritando, mas ...

— Bem. —A palavra sai rouca e errada. É tão óbvio que é mentira.

Pestilência franze a testa, franzindo a sobrancelha. Seus olhos se


voltam para a Morte, seu olhar ficando duro.

— O que você fez com ela? —Pestilência exige.

Thanatos dá um passo adiante. — Como ousa me acusar de tal coisa?


—Sua voz troveja. — Lazarus é a única coisa que amo acima de tudo.

— Ela é? —Fome diz, puxando a foice das costas enquanto avança


arrogantemente. Ele gira a arma em sua mão. — Porque me parece que
você não desistiria de sua tarefa por ela.

O Ceifador parece quase exultante.

Eu franzo a testa para ele.

— Estou feliz que vocês, meus irmãos, estejam aqui, —diz Morte, sua
voz ecoando pelas colinas. — Viemos à Terra para acabar com a
humanidade. E hoje finalmente faremos isso, de uma vez por todas.
Capítulo 70
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

— THANATOS, PARE DE SER TOLO, —DIZ PESTILÊNCIA. — Você


não vê que nenhum de nós quer isso? Nem mesmo você.

Ao ouvir as palavras do Cavaleiro, juro que o olhar da Morte pisca e


há aquela agonia em seus olhos.

— Se você quer uma guerra, terá que passar por mim, —diz Guerra,
parecendo um deus apesar de sua mortalidade.

Thanatos franze a testa para ele, dando um passo à frente. — Com


que facilidade você esquece que salvei sua esposa e filho da morte certa.

— E você deseja mais uma vez tirá-los de mim antes de seu tempo.

— Depois de seus tempos, —corrige Morte. — Muitos, muitos anos


depois de seus tempos. Você se tornou tão ganancioso quanto o resto
desses humanos.

Fome passa por Guerra, sua foice firmemente segura em sua mão. —
Se alguém consegue parar esse idiota, sou eu.
A boca de Thanatos se curva em um sorriso zombeteiro, tornando
suas feições trágicas arrogantes.

— Você deseja fazer isso de novo, irmão? —Morte exige, avançando


como um grande gato, com as asas bem abertas. — Duas vezes eu o
machuquei. Não posso ser derrotado.

— Parem com isso, —eu digo. Passando pelos cavaleiros, volto para
a Morte mais uma vez.

Coloquei a mão em seu peito, meu olhar indo para seus olhos. Já lutei
com esse homem tantas vezes que minha cabeça gira. Eu não quero mais
lutar com ele. E sei que não imaginei aquele brilho de desconforto nos
olhos dele.

— Você não tem que fazer isso, —eu digo, minha voz baixa.

Os olhos escuros e profundos da Morte brilham, e me lembro de que


ele não é um homem de verdade.

— Devo.

— Não, —eu insisto, — você não precisa. Seus irmãos fizeram sua
escolha. Você também pode escolher—ou pode optar por esperar. —Vou
aceitar até isso no momento.

Thanatos lança um olhar rancoroso por cima do meu ombro. — Meus


irmãos se perderam aqui, e eu mesmo estou prestes a me perder, mas não
devo.

— Você disse que me amava. —Minha voz falha. — Isso não é


suficiente?

As feições duras da Morte suavizam e os nós dos dedos acariciam


minha bochecha. — Meu amor por você é eterno e inabalável, Lazarus.
Não duvide disso. Estrelas se formarão e morrerão, e o que sinto por você
permanecerá intacto.

Morte levanta meu queixo. Enquanto ele faz isso, a terra começa a
tremer e, ao longe, ouço o gemido de edifícios antigos.

— O que eu faço hoje é um assunto totalmente separado. Este, —seu


olhar percorre o ambiente antes de retornar para mim, — é meu fardo e
meu dever. Eu não vou ser parado.

Sua expressão é resignada. Triste mesmo.

Ele não quer fazer isso. Me apego a isso.

— E quanto a Ben? —A pergunta sai como um sussurro. É a única


coisa que temi perguntar esse tempo todo.

Os olhos da Morte estão pesados sobre os meus. — Me perdoe.

Um soluço sufocado escapa e meus joelhos quase dobram. Estou


balançando a cabeça. — Como você pode me pedir isso? —Eu digo. —
Você prometeu.

Ele pressiona os lábios.

Agora minhas pernas dobram. Morte me pega antes que eu caia no


chão, me puxando até ele.

Eu estou balançando minha cabeça mais e mais. — Por favor, —eu


imploro. — Eu farei qualquer coisa. Só por favor, não Ben. Ele é só um
bebê.

O Cavaleiro me segura perto. — Vai ficar tudo bem, Laz.

São quase as mesmas palavras que Pestilência acabou de dizer e, mas


ainda assim acertaram tudo errado.

— Não faça isso, —eu sussurro. — Por favor, não faça isso.

A terra está tremendo violentamente agora, os prédios ao nosso redor


balançando e gemendo. Eu posso ouvir coisas à distância quebrando com
a tensão.

— Não posso gratificar você e o universo, kismet, —diz Thanatos. —


Mas eu não quero isso. Eu não quero fazer isso de jeito nenhum.

Um edifício à distância desmorona.

ESTRONDO!

A terra treme violentamente e, se não fosse pelo controle de Thanatos


sobre mim, eu teria sido jogada no chão.

Lancei um olhar selvagem ao nosso redor. O mundo está prestes a ser


desfeito pedra por pedra, e a Morte é a responsável.

Morte, que me abraçou nos meus piores momentos. Que agonizou


com meu sofrimento, mesmo quando éramos inimigos.

— Então é assim que tudo termina? —Eu digo. — É assim que eu


termino?

Morte cobre meu rosto. — A Vida e a Morte são amantes, Lazarus.


Não há fim para nós, não há eu sem você, e não há você sem mim. Você
é a única exceção a tudo isso. Minha única exceção. Posso colher o mundo
... mas não posso—não vou—levar você junto com o resto. Eu não vou
deixar você de jeito nenhum.

Não consigo entender o que a Morte está dizendo, mas o que entendo
é que ficarei para trás. Todo o resto irá embora, mas eu não.

A mera possibilidade desse futuro é assustadora.

A expressão do cavaleiro fica distante e posso ver a Morte como ela


deve parecer para os outros: distante, sem remorsos e intransigente.

Meu coração bate loucamente. Ele realmente vai fazer isso. Posso ver
que ele está. Querido Deus.
Thanatos se afasta de mim, sua atenção voltada para seus irmãos. —
O tempo de conversar acabou, —diz Morte. — Junte-se a mim ou lute
comigo, mas o Julgamento Final está agora sobre nós.

Capítulo 71
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

É UM DIA CLARO, O DIA EM QUE O MUNDO ACABA.

O chão trêmulo balança com mais violência do que nunca, fazendo


uma das rodas da bicicleta tombada próxima começar a girar. Pedras e
outros detritos deslizam pela rodovia.

Eu me afasto da Morte enquanto ele abre as asas.

Com um salto, o cavaleiro alado sobe para o céu. Seu rosto é todo
afiado. Beleza solene e trágica apenas temperada por seu propósito feroz.

Ele abre os braços. — Venham até mim, irmãos—venham até mim se


tiverem coragem! —ele desafia.
Com suas palavras, vários edifícios explodem ao nosso redor. Vidro e
madeira, drywall explodiram como fogos de artifício antes de choverem
de volta à terra. O tempo todo, a Morte parece o anjo negro que é.

O vento chicoteia, jogando meu cabelo contra meu rosto.

— Thanatos, por favor, pare!

Ele me ignora.

Viro-me então e corro de volta para os outros Cavaleiros, que estão


todos buscando suas armas, se preparando para a batalha.

— Vocês sabem como pará-lo? —Pergunto-lhes quando chego ao lado


deles.

Guerra olha para mim de onde ele está amarrando um arnês de couro
cheio de lâminas em seu peito.

— Você quer dizer, se existe uma maneira de privá-lo de seus poderes?


—Guerra diz. Ele balança a cabeça, os olhos brilhando enquanto estuda
seu irmão no ar. — Nada pode fazer isso, exceto Deus ou a própria Morte.

Bem, foda-se.
MORTE

POSSO SENTIR A VIDA de Lazarus queimando como uma chama


enquanto meu poder é liberado. Seu espírito não se parece com o de
Pestilência ou Guerra—esses dois são mortais, suas almas são oferendas
fáceis. Eu poupo suas vidas apenas porque, querendo ou não, eles verão
isso até o amargo fim. O espírito de Fome é um pouco mais complicado.
Ele ainda é imortal, mas seria um trabalho fácil livrá-lo de sua
imortalidade, se eu assim desejasse. E a partir daí eu poderia reivindicar
sua alma também.

Lazarus, no entanto, sua vida interminável ainda está além do meu


alcance e, embora eu não a aceitasse de qualquer maneira, estou
absurdamente grato por a escolha ter sido tirada de mim.

Sempre foi para ser assim. Isso é claro o suficiente.

Depois que tudo acabar, vou fazer Lazarus ver que tinha que ser
assim, e vou reconquistar o seu amor. Porque, ao contrário de todo
mundo, ela e eu temos todo o tempo do mundo.
LAZARUS

EU ENCARO MORTE.

O olhar de Guerra segue o meu. — Cada minuto que passa é mais um


quilômetro de morte que ele espalha, —diz ele solenemente.

Meu coração bate fundo e imagino que todos nós—Pestilência,


Guerra, Fome e eu—estamos fazendo as contas.

Quantos quilômetros existem entre aqui e a Ilha de Vancouver?


Quanto tempo temos até que a Morte destrua os humanos com quem nos
importamos acima de todos os outros?

Pestilência remove feixes de flechas de um dos alforjes de Fome,


colocando-os perto de seus pés. Ele puxa outra flecha de sua aljava e a
coloca enquanto Fome gira sua foice como se estivesse afrouxando o
pulso.

Uma mão quente cai sobre meu ombro, apertando-o. Olho para
Guerra, assim que o enorme Cavaleiro retira uma enorme adaga de uma
das bainhas cruzadas em seu peito. Ele o pressiona na minha mão, seus
glifos vermelhos brilhando contra os nós dos dedos.

— Não vamos morrer sem lutar, —diz ele, em voz baixa. Seus olhos,
no entanto, dançam com uma excitação sombria. O anjo da guerra
praticamente tem sede disso. — E não importa quão imortal você possa
ser, você precisa de uma arma. Prepare-se.

Preparar-me? Para que?

Minha mão se fecha sobre o punho da adaga no momento em que


Pestilência levanta seu arco em direção ao céu. Ele faz uma pausa apenas
por um instante e depois atira.

A flecha faz um arco alto no céu. Por um segundo, acho que vai atingir
a Morte, mas uma rajada de vento a desvia do curso.

Thanatos nem sequer olha em nossa direção, embora ao longe eu ouça


um gemido estrondoso, e então outro prédio está caindo ...

ESTRONDO!

O chão abaixo de nós estremece.

Sem perder o ritmo, Pestilência arremessa outra flecha e a solta.

Mais uma vez, uma rajada de vento o afasta. Pestilência dispara uma
flecha e, ajustando a pontaria, dispara outro tiro à esquerda do Cavaleiro.

Quando o vento da Morte afasta a primeira flecha, ele impulsiona a


segunda flecha no curso. O projétil passa por Thanatos, cortando a borda
externa de sua perna.
Morte vacila no céu e depois sobe mais alto. Enquanto olho para ele,
as nuvens começam a se formar, parecendo hematomas manchados.

— Ele saiu do alcance, —diz Pestilência. — Não poderei acertá-lo, a


menos que ... —Pestilência esquadrinha o horizonte. Ao nosso redor há
edifícios.

Edifícios em ruínas.

Os olhos de Pestilência fixam-se em um em particular. Eu sigo seu


olhar. Um arranha-céu abandonado fica logo à nossa direita. A estrutura
parece já estar a meio caminho da sepultura, a coisa se inclinando
precariamente.

— Posso pegá-lo de lá, —diz ele, acenando com a cabeça.

— Irmão, ele está destruindo os prédios enquanto falamos, —


argumenta Guerra.

Como que para pontuar o pensamento, uma igreja próxima


desmorona, suas torres desaparecendo na nuvem de poeira que sobe.

Mas Pestilência já está correndo em direção à estrutura fechada.

— Idiota de merda, —murmura Fome, mas é para Morte que o


Ceifador lança seu olhar letal. — Deixe-me dar a este bastardo uma
chance, —diz ele, malevolência atando sua voz.
Um vento forte sopra, mas assim que chega, a Morte parece combatê-
lo com um dos seus.

— Vai ter que fazer melhor do que isso, irmão, —diz Guerra, virando
a espada repetidamente na palma da mão, claramente impaciente para
fazer alguma coisa.

— Acalme seus peitos por um momento, porra, sim? —Fome diz.


Enquanto ele fala, uma gota de chuva cai na minha cabeça.

O Ceifador levanta o braço e um raio lança-se diretamente em Morte.


Suspiro com a visão. Por um instante, vejo um esqueleto alado e não meu
Cavaleiro.

As batidas das asas de Thanatos vacilam e eu fico tensa, esperando


que ele caia do céu. Ele cai vários metros, depois se endireita.

Suas asas se abrem mais uma vez, e ele parece ... ileso.

— Isso é melhor? —Guerra zomba

— Isso deveria ter funcionado! —Fome diz.

— Seu poder é o poder dele também, e ele é imune aos efeitos disso.

Morte volta sua atenção brevemente para Fome, seus olhos


desfocados como se ele não estivesse realmente vendo seu irmão.

Um instante depois, outro raio corta o céu, atingindo o Ceifador.


THA-BUM!

Engolindo meu grito, tropeço para trás quando a luz ofuscante lança
Fome a três metros de distância. Ele fica deitado no asfalto, imóvel.

Lá se foi ser imune ao seu próprio poder …

— Ele vai ficar bem, —Guerra me tranquiliza. Para o Ceifador, ele


grita: — Levante-se, irmão! Você tem mais guerra para travar.

Fome geme. Um momento depois, ele rola para o lado e se levanta.


Ele balança um pouco, seus pés instáveis.

Um som como um trovão ruge ao nosso redor.

O Ceifador franze a testa quando se aproxima de Guerra e de mim.


— Essa não é minha tempestade.

— Não, —Guerra diz sombriamente, — Essa é minha.

Olho para o Cavaleiro. — O que você quer dizer com sua? —Eu
pergunto inquieta. — Eu pensei que seus poderes foram retirados de você.

Enquanto falo, o chão treme violentamente, quase me derrubando.

A fome me pega pelo braço, encontrando meus olhos enquanto ele me


endireita. Ele dá um aceno único e solene. Idiota ou não, nós dois estamos
juntos nisso.

Guerra encara a Morte, que parece tão intocável como sempre.


— Você se atreve a virar meus antigos aliados contra mim, irmão? —
Guerra grita para o céu.

Thanatos não olha para baixo, sua expressão distante.

Para mim, Guerra diz: — É melhor você se preparar com essa faca.
Estamos prestes a ter muita companhia.

— Muita companhia? —Eu ecoo, voltando-me para o nosso entorno,


— Mas não há ninguém ... —Vivo.

Existe, porém, uma cidade cheia de cadáveres.

O chão trêmulo fica cada vez mais intenso. Enquanto treme, vários
prédios à distância desabam.

— Pestilência! —Fome grita: — Saia desse prédio!

Pestilência, no entanto, não está à vista e, se ele ouviu o Ceifador, não


o está escutando.

Ao longo da estrada, um cadáver próximo se levanta. Eu giro, apenas


para ver mais pessoas surgirem atrás de nós. Quanto mais olho, mais
vejo—nos prédios, nas ruas que margeiam a rodovia. Os mortos
reanimam, seus rostos podres fixados em nós.

Por um segundo, tudo o que fazem é olhar fixamente. Então, como


um só, eles começam a correr em nossa direção.
Capítulo 72
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

O DIA DO JULGAMENTO ESTÁ ACONTECENDO—NADA menos


que na Cidade dos Anjos.

Aperto ainda mais a adaga enquanto os mortos avançam em nossa


direção. Alguns minutos atrás, a arma parecia excessiva. Agora, parece
que não será suficiente.

Conto nossos oponentes: um-dois-três, cinco-oito-dez-doze-quinze. E


mais continuam chegando.

— Preparem-se, —diz Guerra enquanto os cadáveres se aproximam


de nós três.

Fico tensa, levantando minha arma. O Ceifador gira sua foice uma
última vez, a lâmina fazendo um som sinistro de corte ao cortar o ar.

E então os mortos estão sobre nós.

Os revenants vão para a Guerra e a Fome, com os dentes à mostra. Eles


são muito piores do que os cadáveres que vieram me buscar em San
Antonio, quando Thanatos tentou me capturar pela primeira vez. Aqueles
estavam mortos há minutos. Essas criaturas, no entanto, são pura
podridão, com a pele manchada, flácida e deteriorada—ou comida—em
alguns lugares.

E o cheiro. O pouco que comi esta manhã vem à tona.

Os revenants me ignoram enquanto eu fico doente, o que é uma sorte


para mim. Caso contrário, provavelmente estaria faltando um ou dois
apêndices. Em vez disso, eles se movem ao meu redor, sua crueldade
focada inteiramente nos irmãos da Morte.

Guerra ri como um maníaco quando eles o atacam. Ele corta a massa


de cadáveres, sangue coagulado e outros pedaços voando enquanto ele
arranca seus braços ou os corta abaixo das pernas.

Eu me junto então, apesar de tudo em mim recuar ao ver e cheirar os


revenants. Afasto um da Fome, chutando a mulher no peito.

Seu corpo faz um som nauseante quando atinge o chão, e eu faço uma
careta. Eu deslizo para outro.

— Apontem para suas pernas e braços, —Guerra comanda o resto de


nós. — O objetivo é torná-los inúteis, não há como matá-los.

Olho para o enorme Cavaleiro no momento em que ele balança sua


espada como um taco de beisebol, cortando uma linha de oponentes. Evito
olhar para eles enquanto se desfazem.

Esta é a situação mais nauseante em que já estive.

Guerra encontra meu olhar. Ele acena para minha lâmina. — Isso
pode cortar ossos, embora eu teria como objetivo as articulações, —diz ele
em tom de conversa, mesmo quando um morto-vivo pula em suas costas.
Ele agarra a criatura pelo pescoço e a joga para longe dele e para mais
revenant que se aproximam, derrubando o grupo deles.

— Pense nisso como se estivesse cortando um peru, —Guerra


continua enquanto, do meu outro lado, Fome gira sua foice ao redor de
seu corpo, ceifando os mortos que o cercam.

Eu lanço um olhar horrorizado para Guerra, mesmo quando eu


deslizo minha lâmina no ombro de um morto-vivo próximo. — Nunca
mais vou comer carne.

Guerra me lança um sorriso feroz e depois volta sua atenção para seus
agressores.

Miro nas articulações, cortando ombros, pulsos e cotovelos, a carne


podre se desfazendo sob minha lâmina, o sangue e outros sucos
inomináveis deles caindo em mim.

Estas não são mais pessoas, estas não são mais pessoas, tenho que me
lembrar.
Os mortos continuam chegando, mesmo enquanto montes de corpos
quebrados e contorcidos se acumulam ao nosso redor.

Do outro lado, avisto Pestilência no telhado do prédio que ele foi visto
antes. Há apenas alguns revenants no telhado e, quando olho, vejo o
cavaleiro chutar um morto-vivo para fora da estrutura, o corpo do cadáver
girando ao cair. Mas enquanto observo, mais mortos estão subindo pelas
paredes. Eles não estão indo muito longe antes de perderem o controle e
caírem de volta ao chão, mas mais estão se movendo dentro do prédio.

Perto de mim, Fome deixa cair sua foice, carrancudo enquanto seus
olhos observam as hordas de mortos que fervilham na estrada enquanto
eles correm em nossa direção. O Ceifador move as mãos como se estivesse
retirando magia do ar, com os dedos abertos. Seus braços tremem com o
esforço.

Bem abaixo de nós, a terra estremece.

O asfalto e o concreto racham à medida que plantas enormes e


retorcidas emergem do solo. Videiras e galhos agarram os mortos-vivos
enquanto eles passam correndo, enrolando-se nos cadáveres como cobras.
Posso ouvir o som doentio de centenas de ossos quebrando. Mais
enervante ainda é que não há gritos de dor. Os mortos não fazem barulho
algum enquanto seus corpos são esmagados.

À minha direita, o edifício que o Pestilência está gemendo.


— Irmão! —Fome grita com mais emoção do que pensei que ele fosse
capaz.

Antes que ele possa dizer mais, uma parte do arranha-céu desmorona.
Cadáveres caem com os escombros e, bem no topo da estrutura, vejo
Pestilência avançar para a borda do telhado enquanto o chão cai.

Fome estende a mão, e uma linha de videiras retorcidas brota de onde


estamos até a base do edifício, subindo e se entrelaçando para formar uma
espécie de ponte. Do outro lado desta ponte improvisada, uma
monstruosidade espessa e com videiras desliza pelas paredes do prédio.
Na metade do caminho para o topo, ele diminui.

— Eu não posso fazer isso maior! —Fome grita. Duvido que


Pestilência possa ouvi-lo, mas está claro que esse é o limite da ajuda do
Ceifador.

Pestilência se levanta e, atirando o arco no peito, ele se move


diretamente acima de onde a ponte de videiras de Fome se prendeu à
planta que cresce nas paredes do prédio. O arranha-céus geme novamente
e, em seguida, o resto da estrutura começa a desmoronar.

Eu sugo meu grito quando Pestilência pula, seu corpo caindo em


direção à terra. Antes que ele atinja o solo, as plantas de Fome se estendem
e pegam o Cavaleiro. A folhagem sussurra ao depositá-lo na extremidade
mais distante da ponte.
Pestilência leva um momento para se orientar, mas assim que ele se
orienta, ele se move pela ponte de corda com agilidade surpreendente. Ele
sai dela, dando um aceno para Fome.

— Obrigado, irmão, —diz Pestilência, levantando o arco do peito.

— Apenas fazendo meu trabalho, —diz Fome. — Ana me diz que


devemos cuidar dos nossos idosos.

O Ceifador seriamente não sabe como lidar com a gratidão.

Mas Pestilência ri e dá um tapinha nas costas dele. — Espero que você


tenha a chance de experimentar isso também, irmão.

A expressão de Fome fica séria. — Eu vou.

Agora que os Cavaleiros estão todos seguros e contabilizados,


observamos a carnificina ao nosso redor. Centenas, senão milhares de
cadáveres estão se contorcendo, apanhados nas plantas de Fome ou
empilhados. Uma mão decadente se agarra ao tornozelo de Guerra. O
Cavaleiro lança o membro para o outro lado da estrada, a coisa acertando
o rosto de um morto-vivo preso.

À distância, posso ver mais revenant escalando a folhagem e, embora


as plantas façam um trabalho rápido desses novos cadáveres, não há como
eles conseguirem conter a horda por muito tempo.

O Ceifador faz uma careta para os corpos. — Eles cheiram ... a merda.
— Eles são cadáveres, —diz Pestilência, cavando entre os mortos. De
baixo deles, ele pega um dos feixes de flechas que reservou antes. — Você
esperava que eles cheirassem como suas preciosas rosas roxas que você
gosta de esfregar em si mesmo quando pensa que ninguém está olhando?

Em resposta, um arbusto perto do cavaleiro se abre, liberando um


revenant quase pulverizado. A criatura avança para Pestilência.

— Oops, —diz Fome.

Amaldiçoando baixinho, Pestilência larga suas armas assim que a


criatura colide com ele. Agarrando-o com as duas mãos, Pestilência joga
o morto-vivo por cima do ombro, apontando o corpo direto para o
Ceifador.

O cadáver cai em Fome, quase derrubando-o. O Ceifador começa a


praguejar quando Guerra avança e balança sua espada, cortando os
revenants na altura dos joelhos.

No céu, Thanatos vacila. Ele olha para baixo, para a visão diante dele.
Se ele me nota, não dá sinal disso.

Em vez disso, ao nosso redor, as plantas que a Fome cresceu


murcharam. Eles não liberam os revenants presos, mas não precisam fazê-
lo. Outras centenas já estão passando pela parede de plantas.

— Merda, —o Ceifador amaldiçoa. O chão treme à medida que mais


plantas passam.

Enquanto a Fome se concentra em recuperar as nossas defesas, os


corpos à nossa volta começam a vibrar.

— Pestilência, Lazarus, Fome, —chama Guerra, — preparem-se.

Meu olhar varre os mortos no momento em que pilhas de partes de


corpos cortadas se juntam, cadáveres se recompondo como se nunca
tivessem sido cortados. Já vi isso antes com os servos de Morte, quando
parecia que a magia e nada mais unia suas formas. Mas nunca o vi com
corpos carnudos.

Os apêndices cortados não se reconectam fisicamente; em vez disso,


a magia parece mantê-los no lugar. Em segundos, legiões de mortos estão
inteiras novamente. Adolescentes, adultos, crianças e idosos. Todos eles
nos olham com olhos podres.

Então, como um só, eles atacam.

Eu chuto o braço anteriormente decepado de um revenant próximo.


Minha bota encontra resistência, mas então, nem um segundo depois, o
braço cai. Epero que ele se reconecte. Em vez disso, tateia o chão.

Bem, isso torna as coisas consideravelmente mais fáceis. Começo a


chutar os joelhos e braços, passando minha lâmina pelos braços e pernas
e qualquer outra coisa que esteja ao meu alcance. Mesmo assim, os
Cavaleiros estão sobrecarregados.

Fome continua cultivando plantas, e elas estão pegando alguns dos


mortos, mas há tantos outros cadáveres se aproximando de nós que seus
esforços apenas estancam o fluxo deles, não os param completamente.

Em meio ao caos, avisto uma fila de esqueletos marchando pela


rodovia. Deve haver uma dúzia deles, e eles escapam das garras das
plantas de Fome e abrem caminho entre os escombros. Ao contrário dos
outros mortos, eles não são apressados e não estão focados nos Cavaleiros.

Em vez disso, eles se movem em minha direção.

— Lazarus, —chama Pestilência enquanto ele corta um morto-vivo,


— eles estão vindo atrás de você!

Eu corro para longe dos esqueletos, balançando minha lâmina


emprestada e cortando membros de revenant atacantes onde posso.

Os servos de Morte se aproximam de mim como uma unidade, e o


fato de eu estar me movendo não parece incomodá-los. Metade do grupo
simplesmente passa por mim e pelos Cavaleiros, enquanto a outra metade
se espalha na nossa frente. É só então que eles realmente se aproximam de
mim, movendo-se em uma formação cada vez mais fechada até me
cercarem. Uma vez no lugar, eles ficam estranhamente parados.

Tento passar por eles, mas no momento em que dou um passo em


direção a um dos esqueletos, todo o grupo se move na mesma direção,
mantendo um limite de um metro ao meu redor da melhor maneira
possível. Isso os coloca frustrantemente fora de alcance.

Eu tento novamente, seguindo em direção a outro esqueleto no lado


oposto do círculo, e novamente, o mesmo resultado. Eu solto um suspiro
antes de me perguntar: o que aconteceria se eu ignorasse completamente os
esqueletos e me aproximasse de um dos revenant lutando fora do círculo?

Vejo um avançando em direção a Pestilência e me movo para


interromper a criatura. Os esqueletos se movem comigo, mas assim que
chego ao ataque dos revenant, meus guardas param de avançar,
impedindo-me de chegar mais perto da criatura.

Golpeio o cadáver pútrido além dos esqueletos. Minha adaga afunda


na pele manchada da mulher, mas não adianta muito, não com um
esqueleto entre nós duas. Então, retirando minha lâmina, eu fecho meu
punho em volta do cabo da minha arma e soco o esqueleto na minha frente
bem no crânio. Ele recua, colidindo com o cadáver em decomposição e
desequilibrando os dois revenant.

O cadáver mais fresco cai no chão e, indo até ele, coloco uma bota no
peito da mulher morta-viva e corto seus braços nas juntas, tentando não
engasgar com o cheiro horrível dela ou o fato de que ela já foi um humano.
Removo suas pernas da mesma forma, apenas parando para virar de lado
e vomitar quando as imagens, sons e cheiros me dominam.

Não sou um monstro, eu canto para mim mesma. Porque morto ou não,
isso parece monstruoso.

Meus guarda-costas esqueléticos já se reformaram ao meu redor, mas


isso não faz diferença porque de repente posso lutar novamente.

Mais revenant chegam a cada segundo, e parece estar fazendo de tudo


para mantê-los afastados.

— Fome! —Gritos de Guerra, cortando mais revenant enquanto fala.


— Esqueça-os!

Com isso, o Ceifador parece ficar parado, com um olhar incrédulo em


seu rosto. — Você está louco? —ele grita de volta.

— Posso ser mortal, mas ainda sou um senhor da guerra e você


obedecerá ao meu comando. Pare de usar seus poderes contra os revenants
e crie uma barreira ao redor de você e Pestilência, forte e apertada o
suficiente para manter os mortos-vivos afastados.

Assim que Guerra fala, dois círculos separados de árvores se erguem


do chão. Cada tronco de árvore está tão próximo do outro que nem mesmo
os menores revenant poderiam passar. Os círculos de árvores se fecham
em torno de Fome e Pestilência.

— E quanto a você e Lazarus? —O Ceifador diz, pela primeira vez


não brigando com seu irmão.

— Lazarus não precisa de proteção. Morte não ousaria machucá-la.

Os olhos do Ceifador se voltam para mim antes de voltar para Guerra.


— E você?— ele pergunta.

— Um de nós ainda precisa se mover livremente, —diz Guerra,


mesmo enquanto corta uma fileira de cadáveres que chegam.

— Agora, meu irmão, —Guerra continua, — use tudo ao seu alcance


para tirar nosso irmão do céu.

Meu coração está martelando.

— Pestilência, —ele grita, — prepare seu arco, assim que Fome


derrubar Morte o suficiente, quero que você atire nele.

— Lazarus, —ele diz, cortando mais alguns revenant antes de olhar


para mim, — uma vez que Morte estiver fora do céu, se ele ainda não
estiver morto, você será a única que deve matá-lo.

Eu empalideço.

Guerra deve ter notado minha expressão porque acrescenta: — Você


é a única que pode chegar perto o suficiente.

Matei Morte muitas vezes, mas isso foi quando eu não amava o
Cavaleiro.
Eu o amo agora.

— Não sei se posso, —eu sussurro, minha voz rouca.

— Então estamos todos condenados. —Os olhos de Guerra são duros.


É a voz de um general, alguém que sabe que não há espaço para
compaixão no campo de batalha, não quando seu inimigo não tem nada
a oferecer.

Mas Morte não é meu inimigo, e o que ele está fazendo pode ser
equivocado e errado, mas não sei se é mau. Para ser sincera, não tenho
mais certeza do que é o mal.

Faça isso por Ben e todos os outros que ainda não perderam a vida.

Respiro fundo pelas narinas e aceno com a cabeça, principalmente


para me convencer.

Guerra segura meu olhar com seu olhar astuto, e sinto que
subliminarmente ele está dizendo: Todos devemos fazer sacrifícios. Esse é
o seu.

Percebo então o que ele não está dizendo—que enquanto a Fome e a


Pestilência estão trabalhando para derrubar Morte do céu, e enquanto eu
estiver me preparando para matar o cavaleiro impossível de matar,
Guerra—o mortal Guerra—estará enfrentando os revenants sozinho.

Ele não vai sobreviver a isso.


É por isso que ele está me dando um olhar intenso.

Eu respiro fundo. — Eu vou fazer isso, —eu digo. E estou falando


sério, mesmo que isso signifique partir meu coração no processo.

Lentamente, Guerra acena com a cabeça. — Bom.

Ainda olhando para mim, ele grita: — Fome, Pestilência, Lazarus—


foi uma honra lutar ao seu lado. Será uma honra morrer por eles também.
Vamos fazer com que valha a pena.

— Ah, não seja emocinal conosco agora, —brinca Fome, mas a


expressão de sua boca está toda errada e seus olhos penetrantes brilham.

— Uma honra, —diz Pestilência, acenando para Guerra.

Não sei nada sobre honra e toda essa questão da morte gloriosa. A
vida ainda se estende diante de mim, vasta, insondável e assustadora.

Mas enquanto os revenant correm em direção ao cavaleiro, tenho que


enfrentar tudo isso, do mesmo jeito. Eu corto e chuto e às vezes, quando
meus guardas ficam no caminho, quebro ossos. Minha respiração fica
ofegante enquanto tento estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

Guerra está fazendo o possível para ajudar seus irmãos, arrastando os


revenant para fora das jaulas improvisadas da Fome e também pegando as
últimas flechas de Pestilência e entregando-as ao cavaleiro. Enquanto ele
faz isso, eu o sigo, cortando as criaturas que estão tentando quebrar os
ossos do senhor da guerra e rasgar sua carne.

Acima de nós, as nuvens se acumulam e o ar muda. Uma forte gota


de chuva atinge minha cabeça, depois outra e mais outra. Ele começa a
cair sobre nós, lavando a sujeira, mas também deixando os revenants
ainda mais ... pegajosos.

Relâmpagos brilham e eu levanto meu olhar no momento em que o


raio atinge Thanatos. Suas costas arqueiam um pouco enquanto a
eletricidade passa por ele, e minha garganta fecha com a visão. Outro raio
atinge a Morte. Ele não se recuperou disso antes que um terceiro o
atingisse. Fome atinge Thanatos repetidas vezes. A cada golpe, o cavaleiro
cai vários metros antes de recuperar a compostura.

Me sinto mal porque meu verdadeiro amor está sendo queimado até
a morte por raios sobrenaturais? Sim. Eu acho que ele merece por ser um
bastardo e forçar o Dia do Julgamento a todos?

Também sim.

— Não pode roubar almas agora, irmão, pode? —as provocações do


Ceifador.

— É isso aí, Fome! —Pestilência encoraja, colocando uma flecha em


seu arco enquanto War corta os revenants que sobem na jaula de
Pestilência.
Pestilência aponta seu arco e, por um instante, paro de lutar, só para
observar. Não posso dizer o que sinto. Minhas emoções estão
emaranhadas. Quero que o plano de Guerra funcione, também estou com
medo de que isso aconteça.

Pestilência lança sua flecha, o projétil formando um arco em direção


a Thanatos. Assim que se aproxima da Morte, uma rajada de vento a
despedaça.

Claro, esqueci disso.

Pestilência amaldiçoa, então puxa outro, mirando-o e deixando-o


voar. Ele também é desviado do curso no último momento.

— Preciso de ajuda com o vento! —Pestilência grita.

— Estou um pouco ocupado assando esse filho da puta! —Fome grita


de volta.

Volto a esmagar os ossos de meus captores e cortar membros dos


revenant, mas é um trabalho lento e irritante.

Quantos minutos nos restam antes que o poder da Morte chegue a Ben
e aos outros? Estou me movendo em frenesi agora, em pânico com a ideia
de que tanto tempo já se passou e, ainda assim, nossos esforços não nos
levaram muito longe.

Pestilência começa a mirar não apenas na Morte, mas também ao seu


redor, na esperança de que algo possa passar pelo cavaleiro alado e pousar
onde for necessário.

ESTRONDO! ESTRONDO! ESTRONDO!

A chuva parou, mas os relâmpagos não. Raio após raio atinge


Thanatos, o ataque é tão intenso que o manto esquelético que cobre o rosto
e o corpo da Morte parece permanente. Suas costas estão arqueadas, suas
batidas de asas são um pouco erráticas. Por baixo da caveira que cobre seu
rosto, posso ver que ele está fazendo uma careta. Poder compartilhado ou
não, isso está fazendo algo com ele.

Perto de mim, Guerra está dando um grito de guerra enquanto luta.


Ele corta os mortos dois ou três de cada vez. Os corpos estão se
acumulando ao nosso redor, mas a cada segundo, mais estão chegando.

— Estou com meu último feixe de flechas! —Pestilência chama.

Eu olho para Morte assim que, finalmente, ela dobra suas asas e cai.

Por um instante, o raio para quando atinge a parede de folhagem a


cerca de trinta metros de nós.

Meus ouvidos zumbiam no silêncio repentino.

Os revenants ainda estão vindo e atacando, mas Thanatos está caído


nos galhos, com suas asas estranhas.
Dou um passo vacilante em direção a ele, meu coração batendo
loucamente.

Não há alívio ou vitória nisso. Eu deveria estar satisfeito, mas tudo


que sinto é pânico com o estado dele e tristeza com a situação.

Corto mais revenants, meu olhar fixo em meu Cavaleiro.

Enquanto ele fica lá, as plantas ao seu redor parecem murchar e virar
pó, os mortos presos em suas garras livres mais uma vez. Morte cai na
estrada cheia de destroços.

Guerra grita, desviando minha atenção da Morte. Dois revenants


estão segurando o braço da espada do senhor da guerra, e o próprio braço
está dobrado em um ângulo engraçado. Quebrado.

Guerra joga sua espada na outra mão e começa a balançar a lâmina


como se não fizesse diferença. Ainda assim, meu estômago revira. Está
claro o suficiente que ele não pode mais lutar com força total, e os revenant
já o cercavam mais rápido do que ele poderia matá-los.

Guerra olha para mim e acena com a cabeça.

Foda-se, é aqui que eu entro em jogo.

Aperto minha adaga com mais força, minha náusea anterior


aumentando mais uma vez.
Dou um passo hesitante, depois outro, me preparando para o que devo
fazer.

Posso tornar o fim da Morte rápido. Não será para sempre. Ele
colocou seu dever para com Deus acima de mim. Posso colocar meu dever
para com a humanidade acima dele.

Ainda assim, parece errado, cada passo agonizante que dou.

Ao nosso redor, Los Angeles já não se parece consigo mesma. Todos


os edifícios caíram e montanhas de escombros ocuparam seus lugares. Os
mortos estão se movendo sobre os escombros, e há muitos deles.

Eles estão todos vindo para cá.

Estou quase a meio caminho da Morte quando uma de suas asas se


contrai.

Segundos depois, os raios da Fome estão de volta.

ESTRONDO! ESTRONDO! ESTRONDO!

Eles se chocam com a Morte, a força deles é tão intensa que perco o
equilíbrio e caio em uma pilha de membros se contorcendo.

O cheiro, a textura e o movimento, tudo isso é demais. Viro-me para


o lado e vomito, mas não sai nada. Meu estômago já desistiu de todo o
seu conteúdo.
— Lazarus! —Guerra grita. — Agora!

Olho para Morte, respirando pesadamente. Ele está a apenas quinze


metros de mim, mas parece que um oceano nos separa.

Eu me forço a ficar de pé, mesmo quando minhas pernas tremem. Os


relâmpagos continuam a atingir Thanatos, mas enquanto observo, as asas
do cavaleiro movem-se um pouco mais, e não tenho a certeza, mas não
creio que seja um movimento reflexivo provocado pelo relâmpago.

Então, os braços da Morte se movem sob ele, e isso definitivamente


não é reflexo.

Ando através de cadáveres retorcidos, meus guardas esqueléticos se


movendo comigo.

Morte coloca uma perna sob seu corpo e se levanta enquanto um raio
continua a atingi-lo. É difícil ver ao redor do manto esquelético que o
cobre, mas acho que seus olhos escuros brilham de fúria enquanto ele olha
para Fome.

Ele estende a mão, seus dedos parecendo meio ossos, meio carne que
são.

Abruptamente, o relâmpago para. Olho para trás, para Fome a tempo


de vê-lo tropeçar nas barras vivas de sua jaula, com os olhos e as bochechas
afundados.
Pestilência dispara uma flecha, que se crava em uma das asas da
Morte, depois em outra que o empala direto na garganta.

Thanatos estende a mão por trás da cabeça e puxa a flecha da nuca,


seu ferimento cicatrizando bem diante dos meus olhos.

— Morte! —Eu grito com ele, passando por cima de outro corpo.

Mas ele ainda está focado em Pestilência, que agora está chovendo
flechas sobre ele. O vento sopra ao redor de Thanatos, derrubando as
flechas.

Depressa, digo a mim mesma, acelerando o passo enquanto tropeço em


restos humanos que se contorcem.

Há apenas seis metros entre mim e a Morte agora. Seis metros de


carnificina.

Pestilência faz um som sufocante e suas costas se arqueiam. Seu arco


escorrega de suas mãos quando ele cai de joelhos. Sua aljava e as poucas
flechas preciosas caem no chão, e enquanto observo, o Cavaleiro, o
mesmo que levou meus pais há tanto tempo, agora murcha diante de meus
olhos.

O pânico corre por mim.

— Pare. —A palavra sai como um sussurro quando começo a correr


em direção à Morte. — Pare! —Eu chamo de novo, mais alto.
Mas o rugido de Guerra ofusca minhas palavras. Eu me viro a tempo
de ver que ele caiu de joelhos. Eu mal consigo distingui-lo da montanha
de revenant se aproximando dele. Ele alcança uma das adagas
embainhadas em seu peito, sua espada não está à vista.

Guerra empurra os cadáveres para o lado por tempo suficiente para


lançar uma faca fina como uma agulha em Morte. A lâmina faz um ruído
sibilante enquanto gira no ar. Mas Thanatos o derruba com aquele vento
estranho tão facilmente quanto com as flechas de Pestilência. Guerra lança
outra e outra.

Quando ele pega uma quarta lâmina, vejo um brilho de metal no


momento em que um morto-vivo a empurra para frente, no abdômen de
Guerra. O Cavaleiro berra novamente e eu percebo, finalmente, o que está
acontecendo.

Os revenant pegaram sua espada e agora o estão matando com ela.

Mas Thanatos também não terminou com esse seu irmão. Guerra
ainda está tentando pegar outra arma quando suas bochechas se contraem
e sua pele cede.

Todos os três irmãos murcham, sucumbindo a qualquer poder


sombrio que a Morte exerce sobre eles.

Enfrento Thanatos mais uma vez e agora estou correndo para frente,
saltando sobre corpos e asfalto quebrado, meus guarda-costas esqueléticos
mantendo formação ao meu redor.

— Pare! —É um grito esfarrapado e agonizante.

Morte move a mão em minha direção, os olhos desfocados, e por um


momento assustador, acho que ele vai fazer comigo o que fez com seus
irmãos. Em vez disso, o chão racha e um emaranhado de folhagens se
ergue, criando uma jaula assustadoramente semelhante às que cercam os
outros dois cavaleiros.

— Thanatos! —Eu grito, tentando me arrastar para fora da jaula. Um


dos esqueletos ao meu redor me empurra de volta para ele enquanto
termina de se formar, galhos se entrelaçando. — Por que você está fazendo
isso?

Por um momento, os olhos de Morte se aguçam e ele parece agoniado.


Então sua atenção volta para seus irmãos, e ele é frio e implacável mais
uma vez.

Minha gaiola viva continua a crescer e se enrolar em si mesma. Depois


de preenchida, os esqueletos que me serviram por semanas caem no chão,
nada além de ossos mais uma vez. Um momento depois, os outros
revenant os seguem, seus corpos apodrecidos fazendo sons molhados
quando atingem o chão.
Atrás deles, o silêncio é ensurdecedor.

Ao meu redor, os outros cavaleiros estavam morrendo. Não há mais


relâmpagos, nem flechas, nem facas. Vejo o gentil Pestilência, o Guerra
feroz, e a Fome inconstante se contorcendo no chão, seus corpos
envelhecendo diante dos meus olhos.

— Você está matando eles! —eu grito. Duas lágrimas escorregam de


minhas bochechas. Quando eu comecei a chorar?

— Eles não podem morrer de verdade, Lazarus, —Morte diz, sua voz
sem emoção. — Nenhum de nós pode.

Usando minha adaga, vi uma das árvores, mas a cada segundo que
passava, seu tronco parecia engrossar. Desisto de cortá-la e começo a
escalá-la. Escorrego várias vezes enquanto subo e, quando finalmente
chego ao topo, as plantas se entrelaçam entre si, criando uma espécie de
teto abobadado que é frustrantemente impenetrável.

Eu ainda serrei com minha lâmina, meu coração batendo


freneticamente.

Rápido, rápido.

Não pode faltar muito tempo.

Minha adaga desliza de minhas mãos escorregadias e cometo o erro


de pegá-la. Essa reação instintiva me deixa desequilibrada e eu perco o
controle. Escorrego e caio no chão, deixando escapar um gemido quando
caio de costas com força.

Rolo para o lado, meu corpo parecendo frágil e machucado. Através


da minha jaula improvisada, avisto o recinto da Fome. Não é mais
necessário, agora que os revenants recuaram. Dentro dele, o Ceifador está
enrolado em posição fetal, com seu cabelo cor de caramelo caindo
escorrido sobre ele. Sua pele adquiriu uma tonalidade acinzentada e caiu
de seus ossos. Uma de suas mãos está pressionada contra o peito, e seu
rosto está em uma careta.

Um pequeno som escapa de meus lábios ao ver o outrora temível


homem levado à beira da morte.

Ao som, os olhos de Fome se abrem e encontram os meus. O terrível


e mal-humorado Cavaleiro e eu trocamos um longo olhar.

Termine isso, seus olhos parecem dizer.

Fome estende a mão para as plantas que me aprisionam, com o braço


tremendo. As árvores que me prendem se abrem apenas o suficiente para
eu passar.

Fome abaixa o braço, dando-me um leve aceno de cabeça—um que


eu devolvo para ele.

Agarrando minha adaga, eu me forço a ficar de pé e me lanço para


fora do recinto.

Morte começa a se virar para mim quando Fome grita: — Seu idiota!
—Sua voz é fraca, apesar do fato de que eu acho que ele está tentando
gritar. — Você segurou o mundo inteiro em seus braços e o desperdiçou
para quê? Isto? —Ele dá uma risada oca que se transforma em tosse. —
Você pode apodrecer por toda a eternidade, Thanatos. Você vai se
arrepender deste momento até o fim de sua existência de merda.

Estranhamente lento, a Morte se vira para ele. Ele parece mítico, sua
armadura prateada imaculada, suas asas escuras aparecendo atrás dele.

Fome comprou-me este momento. Silenciosamente, vou em direção


a Thanatos. Neste momento, a Morte só tem olhos para a Fome.

Thanatos dá um passo à frente, sua bota triturando o osso, suas asas


se arrastando pela podridão no chão.

— Você queria sua mortalidade, irmão? —Morte diz. — Você


mereceu. Quando tudo isso acabar, você morrerá ao lado de seus amados
humanos.

Um som abafado sai dos lábios de Fome. Enquanto observo, sua


armadura de bronze desaparece de seu corpo. Ao seu lado, a foice que ele
uma vez colocou em meu pescoço desaparece até não restar nada.

Então, de repente, Fome fica mole. Acho que ele está morto por um
segundo, mas então ouço sua respiração rasa. Com o olhar de Morte ainda
fixo nele, dou mais alguns passos em direção ao meu Cavaleiro, quase
prendendo a respiração.

Com o canto do olho, vejo Fome colocar a mão no peito.

Ele solta uma risada fraca. — Seu bastardo, —o Ceifador resmunga.


— Seu desgraçado.

Temo que Guerra e Pestilência já estejam mortos. Temo que, se eu


perder mais tempo sendo sutil, Fome morrerá também.

Passo por cima dos ossos e cadáveres espalhados, sem me preocupar


em abafar meus passos. O mundo ao nosso redor está quieto, tão
dolorosamente quieto.

Dolorosamente lento, Thanatos volta sua atenção para mim.

Ele está tão bonito e trágico quanto na primeira vez que o vi. Só agora,
vejo que ele foi moldado para esse momento.

— Não posso deixar você fazer isso, —eu digo.

Aqueles olhos estranhos e adoráveis dele, aqueles que parecem conter


todo o universo, me absorvem.

— O que há para temer, kismet? —ele diz suavemente. Seu cabelo está
ondulando com a imensidão de seu poder. — Você não vai morrer e eu
não vou te deixar para trás.

— Maldito seja, Thanatos, isso não é sobre mim. —Nunca foi sobre
mim.

Morte falou de Deus observando—até mesmo se intrometendo.

Certamente neste momento eu tenho Sua atenção.

Deixe-me parar com isso. Seja qual for o papel que devo desempenhar, deixe-
me interpretá-lo. Deixe-me acabar com isso.

Há um som como o estalo de um trovão e uma luz ofuscante que


parece vir de trás dos meus olhos.

Eu tropeço, incapaz de ouvir além do zumbido em meus ouvidos ou


ver além da luz que obscurece minha visão.

Lentamente, o zumbido em meus ouvidos se transforma no som do


meu pulso batendo.

Th-thump-thump-thump.

Eu pisco várias vezes, o mundo voltando ao foco.

— Lazarus. —Há uma mão nas minhas costas, e eu olho para os olhos
sobrenaturais de Morte. Essas sardas prateadas em suas íris parecem
brilhar mais do que antes, e estão cheias da preocupação que estou
acostumada a ver no rosto de Thanatos.
Thanatos solene e trágico, que não tem medo da morte, mas odeia o
sofrimento. Thanatos, que é odiado universalmente, até mesmo por seus
próprios irmãos. Aquele que está para sempre acorrentado à sua terrível
tarefa. Para sempre incompreendido. Para sempre sozinho.

Exceto quando estamos juntos.

Apertando meu aperto em minha arma, eu levanto a lâmina, meus


olhos encontrando os de Thanatos. Somos apenas nós. Os outros
Cavaleiros já se foram. A cidade está em ruínas e seus habitantes estão
espalhados ao nosso redor.

A mão que segura minha adaga treme quando a aponto para o peito
de Morte, a ponta pairando sobre aquelas imagens ctônicas marteladas no
metal. Fico petrificada quando meu olhar se eleva para o Cavaleiro. O que
estou prestes a fazer vai contra tudo em que acredito.

Por um instante, os olhos de Morte piscam com traição. Eu respiro


fundo, meu corpo inteiro tremendo.

— Você me machucaria? —ele diz suavemente.

Eu engulo enquanto olho para ele.

Sua boca forma uma linha sombria quando ele percebe minha
expressão.
Thanatos ajeita o peito. — Faça isso, — ele ousa. —Essa é a única
chance que vou lhe dar.

Eu respiro fundo. Dê-me força.

Existem duas maneiras de parar Morte: matá-lo ...

Ou me matar.

Eu viro a adaga para mim e a enfio no meu peito.

Capítulo 73
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

EU LI HISTÓRIAS SOBRE PESSOAS CAINDO SOBRE SUAS próprias


espadas. Eles sempre fizeram tudo parecer nobre e trágico.

Foda-se tudo isso. Isso dói demais.

— NÃO! —Morte ruge como uma criatura ferida.

Mal ouço por causa do som acelerado do sangue pulsando em meus


ouvidos. A maneira estranha como meu coração sofre espasmos deixa
claro que acertei em algo importante.

Engasgo com a dor enquanto olho para o meu peito. A lâmina ainda
está parcialmente para fora, mas dói tanto que acho que não consigo
empurrá-la mais fundo.

Estendo a mão para o ferimento, cortando-me com a lâmina exposta.


O sangue escorre entre meus dedos e sai ... rápido. Muito rápido.

Então a Morte está lá, seu corpo envolvendo o meu. Ele nos abaixa
no chão, me embalando em seus braços.

— Por que, Lazarus? —ele diz, com a voz embargada, — Por quê? —
Ele não é mais remoto e maior que a vida.

É preciso esforço para mover meus olhos para os dele.

— Alguém ... precisava ... parar ... você.

As asas da morte nos rodeiam. A batalha foi esquecida. A


humanidade e o Dia do Julgamento foram esquecidos. Tudo isso foi
deixado de lado enquanto ele olha para mim.

Ele está balançando a cabeça. — Você não pode me parar.

Eu caio contra ele, um som irregular escapa dos meus lábios.

Ele pressiona a mão na minha ferida e eu suspiro com a dor que isso
provoca.

— Eu preciso tirar isso, —diz ele, envolvendo a mão no cabo da


adaga.

Balanço a cabeça, mas ele não está ouvindo.

Fazendo uma careta, vejo seu rosto ficar resolvido. Então ...

Ele puxa a lâmina do meu peito.

Eu grito—ou pelo menos tento. Sai como um gemido agonizante e,


felizmente, eu desmaio.

— KISMET …

Eu me mexo, despertada por aquela voz lamentosa.

Eu pisco meus olhos abertos, e ...

Agonia. Uma agonia ardente e sufocante. É tudo o que sinto—isso e


os riachos de sangue encharcando meu peito enquanto saem do meu
corpo.

— Sinto muito, Laz. Vai ficar tudo bem em breve, —promete


Thanatos. — Ficará.
Ele coloca a mão sobre a ferida, e eu assobio em uma respiração.
Mesmo aquele toque leve é brutalmente doloroso.

Sinto o poder de Morte roçar minha pele. Espero minha carne


esquentar e coçar enquanto meu corpo se recompõe.

Apenas ...

— Não está funcionando. —O pânico toma conta da voz do


Cavaleiro.

A criatura mais poderosa não pode me curar. Eu suspiro para ele.

Aquele meu apelo desesperado, aquele raio de luz atrás dos meus
olhos ...

Isso foi intercessão.

Acontece com os humanos o tempo todo, mas vocês estão tão cegos por suas
próprias percepções da realidade que não percebem. Você sente falta das forças mais
poderosas da magia em suas vidas, mesmo quando elas se desenrolam bem diante
de você.

Acho ... acho que me tornei verdadeiramente mortal.

Lanças de terror através de mim. Nunca temi a morte antes porque


nunca estive realmente morta.

Mas desta vez, isto parece que vai demorar.


Oh Deus, pensei que teria mais tempo. Tempo infinito.

Fecho os olhos, exausta de dor.

Quero dizer que estou em paz, mas porra, eu sinto que estou indo
embora antes do ato final.

— Thanatos, —murmuro. Cegamente alcanço sua mão.

Particularmente não quero deixá-lo. Ele é todas as razões pelas quais


eu quero viver.

— Laz …

Laz. Abro os olhos com a intimidade daquele nome.

Eu encontro o olhar de Thanatos. O medo enche seus olhos. Ele


também está com medo. Mas é apenas a morte. É o seu estado mais
natural.

— Está tudo bem, —eu respiro, mesmo quando começo a tremer.

Ele me segura com força. — Não, Lazarus, não vou deixar você ir, —
ele promete.

— A vida e a morte são amantes. —Eu o lembro. — Nada ... muda


isso. —Eu aperto sua mão. — Eu amo você, —eu finalmente admito.

Sua expressão desmorona. — Não. —Ele diz isso como um apelo, uma
lágrima escorrendo pelo canto do olho.
Meus olhos começam a fechar.

— Lazarus, fique comigo.

Mas meu corpo teimoso ignora seus comandos.

Ele beija meus lábios e, mesmo nesse ato, sinto a pressão desesperada
de seu poder, desejando que eu viva.

Não faz diferença.

Com aquele beijo, minha respiração para, meu coração para e estou
finalmente, verdadeiramente livre.

MORTE

NO MOMENTO EM QUE meus lábios deixam os dela, eu sei.

Ela se foi.

E pela primeira vez desde que a conheci, sinto seu espírito se


desvencilhar de seu corpo.

Não.
A imortalidade de Lazarus não é tão diferente da nossa. Pode ser
removida.

Foi removida.

Ao longe, Fome ri, um som sibilante e úmido. Não consigo pensar em


uma reação mais inadequada.

— Ela fez outro acordo pelas suas costas, irmão, —diz ele.

Prendo a respiração enquanto olho para minha Lazarus.

Você fez isso?Eu silenciosamente pergunto a ela.

Mas é claro que ela deve ter feito. Ela não poderia remover sua
imortalidade sozinha. E há apenas uma pessoa que pode tirar e dar a vida
livremente.

Deus me abandonou.

— Finalmente, você entende como todos nós fomos obrigados a


entender, —resmunga Fome. — Você não pode ter os dois. Você deve
fazer uma escolha. —Fome chia.

— A escolha foi tirada de mim, —eu cuspo.

— Não foi.

Olho para ele então. Posso sentir meu coração firme acelerar com o
que ele está insinuando.
Minha mão treme quando olho para Lazarus. Lazarus, que nunca
deveria ter morrido.

Lazarus negociou pela humanidade. Não sei se a voz na minha cabeça é


minha ou dela. Esta forma confunde meus sentidos extras. O que você vai
fazer? A decisão é sua no final.

— A decisão não é minha, —digo veementemente. Eu apenas segui


as ordens do universo.

Meu olhar passa pela Fome antes de tocar nas formas imóveis da
Pestilência e de Guerra. Meus três irmãos estavam dispostos a fazer tudo
para me impedir. Eu aceitei a decisão deles de lutar pela humanidade. Eu
até entendi o impulso profundo que os alimentava. Eles amavam suas
esposas e filhos, e todos passaram a apreciar a humanidade—incluindo a
Fome e seu coração endurecido.

Vi cada um dos meus irmãos agarrar a sua mulher até à morte. Ouvi
suas barganhas. Eu me considerava acima de tudo, de todos.

E agora aqui estou, com esta mulher de carne e osso, que lutou comigo
e me alimentou, e que me amou. A mulher por quem estou perdidamente
apaixonado.

— Pegue sua mulher e corra, Thanatos, —Fome fala.

— Não posso. —Minha voz falha.


Nunca quebrei as regras. Não em todos os meus longos anos de
existência. Eu entreguei cada alma à vida após a morte.

Assim como eu farei com a dela.

Tenho que levá-la.

Estou arfando enquanto deito seu corpo suavemente.

— Tolo, —Fome sussurra.

Me levanto e encaro a alma de Lazarus. É tão brilhante quanto eu


imaginava que seria.

Abraçando-a, eu nos deslizo para o mundo dos espíritos e levo minha


kismet para a vida após a morte.
Capítulo 74
O Além

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

LAZARUS

MORTE É ... A PALAVRA ERRADA PARA ISSO. A MORTE É um fim,


mas não é um fim. Parece um começo. Como o renascimento.

Transmutação.

Eu sorrio—ou pelo menos sinto que estou sorrindo, embora não tenha
certeza se sou sólido. Sinceramente não sei o que sou, apenas que existo e
tenho consciência.

Eu olho em volta. Onde quer que eu esteja, uma luz suave me rodeia.
Dou um passo para trás, meu corpo—ou essência—esbarra em algo
sólido.

Eu me viro e a primeira coisa que vejo é aquela armadura prateada


brilhante, depois aquelas grandes asas negras. Finalmente, meus olhos
pousam naquele rosto amado que juro que sempre conheci.

— Thanatos. —Eu digo seu nome suavemente. Achei que o tinha


deixado, mas claro que não, ele é a morte. — Você estava certo, isso não
é tão ruim.

Mas agora percebo como seus olhos ainda estão agoniados.

Em vez de responder, a Morte olha para baixo. Sigo seu olhar, e a luz
fraca se dissipa em flocos, como se fosse apenas uma fumaça espessa.
Abaixo, vejo meu corpo sem vida descansando entre os destroços.

Finalmente, a luta acabou. E eu perdi—toda a humanidade perdeu—


mas isso não é tão ruim. Aquele desejo de pedir e implorar, de tirar
proveito, ameaçar e negociar para chegar a algum acordo desapareceu. O
tempo para isso passou com a minha vida.

Morte pega minha mão espectral e eu aperto a dele com força.


Enquanto observo, meu corpo fica cada vez menor, como se estivéssemos
flutuando para longe dele.

— Onde estamos indo? —Eu pergunto.

Os olhos tristes de Thanatos queimam quando olham para mim. —


Founipa.

Paraíso.
A LUZ FRACA AO NOSSO redor aumenta, e é como o sol rompendo as
nuvens.

Ao longe, figuras aparecem. Pelo menos, acho que são figuras. Para
ser honesta, são mais impressões de pessoas do que corpos físicos reais.
Em vez de pele e ossos, suas formas parecem feitas de luz.

À medida que eles entram em foco, começo a reconhecê-los. Na frente


está minha mãe. Depois, há River, e Nicolette, e Robin, e Ethan, Owen e
Juniper. Vejo minhas sobrinhas e sobrinhos—até vejo Harrison, meu pai
adotivo. Eu só o conheci através de fotos, mas ele ainda está aqui, me
dando as boas-vindas.

Perto da frente do grupo estão mais duas pessoas das quais não me
lembro, mas que as conheço inerentemente. Meus pais biológicos.

Faço um pequeno ruído. Eles estão todos aqui, todos esperando por
mim. E embora não faça sentido, posso sentir o amor deles por mim.

Você é amada. Você está em casa.

Olho para Thanatos e seus olhos atormentados.

Morte, o barqueiro, que leva as almas e as entrega, mas não se junta


aos mortos. A morte, que não pertence nem à terra nem à vida após a
morte.

Ele pertence a mim. Essa é a única coisa da qual tenho certeza.

Ele solta minha mão para tocar minha bochecha. — Vou sonhar com
você todos os dias, Lazarus. —Ele parece estar queimando em seu próprio
tipo de inferno.

— Venha comigo, —eu insisto.

— Não posso, —diz ele, com a voz rouca. Pior, sinto sua devastação
como se fosse minha.

Ele me dá um sorriso tenso e acena para as pessoas que esperam por


mim. — Vá para seus entes queridos. Eles estão à sua espera.

É aqui que eu deveria sentir medo, mas o mais próximo que chego
disso é confusão. Isso ... não deveria ser a nossa separação. Mas minha
essência está sendo chamada para minha família e é difícil ignorar.

— Eu te amo, Thanatos, —eu digo, olhando para ele. — Para sempre


e sempre. Nada jamais mudará isso. E estarei esperando por você quando
até você, o Anjo da Morte, encontrar seu próprio fim.
Capítulo 75
O Além

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE

AS PALAVRAS DE LAZARUS SÃO QUASE O MEU FIM. Sofri muito


durante minha existência, mas este momento faz com que todos os
traumas do passado sejam insignificantes em comparação.

Como posso deixá-la ir?

Apesar de suas palavras, ela permanece na minha frente. Eu olho para


ela enquanto, com um dedo espectral, Lazarus desenha uma forma na
minha armadura.

Para ela, deve ser simplesmente um rabisco estúpido, mas a forma que
seu dedo faz, eu conheço esse símbolo.

Opotu.

Amor.
A compreensão bate em mim, tão potente que mal consigo recuperar
o fôlego.

Eu sabia que Deus tinha me dado uma palavra, assim como Ela deu
aos meus irmãos, uma palavra que era ao mesmo tempo uma lição e uma
escolha reunidas em uma só. Eu até sabia desde cedo qual era a minha
palavra: vida. Achei que tinha descoberto e continuei.

Mas eu não tinha entendido a minha tarefa e o meu desafio, nem tinha
entendido a palavra. Não até agora.

Eu estava errado. Entendi tudo errado. A palavra—a escolha, a


lição—nunca foi vida.

Foi amor.

Amor.

E por alguma razão, isso muda a forma como vejo tudo.

Lazarus franze a testa, seus olhos arrependidos enquanto ela olha para
mim. — Até nos encontrarmos novamente, Thanatos, —diz ela.

Posso sentir a ponta afiada de seu amor enquanto ela se afasta de mim.

Ela olha para a multidão reunida mais uma vez, com os olhos
procurando. Eu sei quem ela está procurando. É o único humano que ela
ama acima de todos os outros, aquele por quem ela tentou negociar sua
vida. Bem.

O momento em que Lazarus salvou aquele bebê e o reivindicou como


seu também foi o momento em que ela realmente parou de lutar comigo.
Ela desistiu da humanidade por causa daquela criança porque o amava.

Existe aquele egoísmo humano—escolher um ser humano em vez de


milhões.

Mas será egoísmo?

Essa escolha tornou Lazarus vulnerável à manipulação dos meus


irmãos—e à minha própria. Tudo por um garotinho que ela acabou de
salvar. Talvez você pudesse chamar isso de egoísmo, mas talvez também
pudesse dizer que o que ela tinha era um amor tão intenso e altruísta que
eclipsava todo o resto.

Meus pulmões paralisam com o pensamento.

Esse mesmo amor fez Lazarus negociar desesperadamente a sua vida


pela do filho. Um sacrifício extraordinário—um sacrifício que não
aceitei—mas também um sacrifício que ouvi muitas e muitas vezes dos
humanos.

Minha vida pela deles ...

Eu faria qualquer coisa …


E talvez tenha sido esse mesmo amor que fez Lazarus virar sua lâmina
contra si mesma em vez de afundá-la em minha própria carne.

Meus irmãos e eu presumimos que éramos melhores do que esses


humanos que fomos encarregados de destruir, mas fomos nós que
lançamos sua compaixão contra eles.

Segui ordens esse tempo todo. É nisso que eu sou bom. Até Lazarus
foi destinada a mim por Deus, então ela também se sentou
confortavelmente em meu mundo ... até que, é claro, ela não o fez. Ela me
deu uma humanidade crua, dolorosa e confusa. Com toda a sua
espontaneidade e beleza. Ela me acordou, e não importa como o dia de
hoje termine, não posso voltar a ser quem e o que era antes.

Vejo Lazarus hesitar e olhar para mim. Vejo claramente em seus olhos
que ela não quer me deixar, mesmo que a vida após a morte e todos os
seus entes queridos a chamem de casa. Meu coração dói muito ao vê-la.

Tremo só de pensar em existir sem ela.

O que você vai fazer? A decisão é sua no final.

Essas palavras ressoam em meus ouvidos. Eles parecem um truque,


embora não seja assim que o universo funciona.

Cidades desmoronaram e legiões morreram e eu não senti nada. Mas


o som da risada de Lazarus mexeu com meu coração, e o deslizamento de
seu corpo sob o meu despertou minha alma. Quantos quilômetros
solitários viajei com a lembrança de sua voz me fazendo companhia?

Como seria o meu futuro quando Lazarus não passasse de uma


memória mais uma vez?

O pensamento é como um golpe físico. Esse futuro é insondável.

Você nem sabe o que é perda, ela disse há não muito tempo. Você nunca
amou nada o suficiente para se importar se isso acontecer.

Agora eu sei disso.

Não posso perdê-la.

Não é nem uma pergunta. É uma certeza. Simplesmente não posso. É


a mesma escolha maldita que Lazarus fez quando descobriu Ben. Uma
única pessoa pode mudar sua vida. Como humano, você pode amar
profundamente o suficiente para condenar a humanidade.

Ou resgatá-la.
Capítulo 76
O Além

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE

— ESPERE, —EU CHAMO.

A família de Lazarus já a está acolhendo, ela está assustadoramente


perto daquela luz ofuscante do Além. Eu já considerei o céu assustador
antes deste momento? Porque agora, é. E ela está a um fio de cabelo disso.

— Espere, —eu digo novamente, mais suave desta vez.

Lazarus se vira para mim. A esperança crua em seus olhos me corta


profundamente. Por muito tempo essa esperança foi frustrada.

Não será nunca mais. Não me importo se tiver que me desculpar todos
os dias pelo resto de nossas vidas mortais, contanto que tenhamos essas
vidas.

Eu me movo em direção aos espíritos que a cercam, passando por eles


para chegar até Lazarus.

Eu aperto seu rosto espectral em minhas mãos. Quando olho em seus


olhos, tenho uma profunda sensação de certeza não apenas de que posso
desistir de minha tarefa, mas de que devo. Nem mesmo os mandamentos
de Deus podem abafar esse impulso que sinto. Eu arrancaria minha
imortalidade, meu paraíso, e desfaria o mundo, tudo pela pressão dos
lábios dessa mulher contra minha pele e sua voz em meu ouvido.

— Se eu lhe desse tudo o que você quer: seu filho, o fim do Apocalipse
e da matança, você voltaria para a Terra? —Eu pergunto.

Suas sobrancelhas se juntam em confusão, e a visão disso me


machuca. Coloquei suas expectativas tão baixas que ela não consegue
entender isso.

— Você ... —minha voz falha, e eu tenho que começar de novo. —


Você pode ir com seus entes queridos e entrar na vida após a morte. Não
haverá mais dor. —Respiro fundo, a possibilidade aterrorizante para mim.
— Ou, você poderia ficar com Ben, na Terra. Não posso prometer que não
haverá dor. Viver é sentir dor.

Ela não diz nada e não consigo ler seu rosto.

— E você? —ela finalmente diz.

Eu inspiro profundamente, e é como se eu tivesse puxado minha


primeira respiração. — Eu quero você, Lazarus. Com cada parte de mim,
eu quero. Isso nunca vai mudar. —Meu amor é tão vasto e infinito quanto
o resto de mim. — Mas eu lhe machuquei, e então eu sequestrei você e
então a decepcionei ...

Uma de suas mãos espectrais pressiona meus lábios, me silenciando.

— Fiz o mesmo com você, —diz ela. — Está perdoado. —Ela procura
minhas feições. — Passamos todo o nosso relacionamento lutando por
nossas causas. E se começássemos a lutar uns pelos outros?

Continuo com a implicação.

Lazarus continua. — Quero voltar para a Terra—e quero tudo o que


você prometeu. Mas também quero mais uma coisa ... —Ela sorri, — você.
Capítulo 77
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

LAZARUS

RESPIRO FUNDO E MEUS PULMÕES SE EXPANDEM. Pedras estão


cravadas em minhas costas e tudo parece ... bem, nada extravagante.

Pisco meus olhos abertos e olho para Thanatos.

Exceto por aquele rosto. Esse rosto é puro capricho.

O cavaleiro sorri para mim, e esse sorriso consegue afastar todas as


sombras que permanecem em seu rosto.

Sorrio de volta para ele, meu corpo inteiro parecendo vivo.

Mas então o sorriso desaparece do rosto da Morte. Por um momento,


ele parece confuso.

— Thanatos?
Assim que começo a me sentar, ele engasga.

— Thanatos! O que está acontecendo?

Eu deslizo de seus braços para que eu possa me ajoelhar na sua frente.

— Morte?

Ele olha para mim, mas seus olhos estão desfocados. O cavaleiro se
levanta e por um instante penso que ele está bem. Mas então ele cambaleia
para trás, olhando para algo distante que só ele pode ver. Sua armadura se
dissolve completamente e percebo que estou vendo um anjo sendo
despojado de sua imortalidade.

As asas da morte se abrem e ele grita, seu corpo tenso de dor. Ele
estende a mão para as costas enquanto as penas começam a se desprender
de suas asas, uma por uma, a plumagem preta como tinta lançada ao
vento. As penas caem cada vez mais rápido. Eu me preparo para ver a
carne abaixo deles, mas não há nada ali. É como se os próprios apêndices
estivessem sendo destruídos.

Sofro com a perda deles. Sei que eram incômodos para ele, mas achei
que eram um dos aspectos do Cavaleiro que eram bonitos porque eram
desumanos.

Ele respira pesadamente. Tudo o que resta de seu traje imortal são
suas roupas e botas. Com esforço, ele se endireita.
— Suas asas, —eu digo, levantando-me.

Ele olha para mim. — Watorava. Transmutação.

Na verdade, nada acontece. Está transformado, mas a transmutação não está


realmente perdida ou desaparecida.

Eu rio em meio às lágrimas.

Diminuo a distância entre nós e o beijo selvagemente.

Capítulo 78
Los Angeles, Califórnia

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

MORTE NOS ESCOLHEU. NO FINAL, ELE NOS escolheu.


Humanidade.

E ele me escolheu.

Bem, tecnicamente ele me escolheu e então eu o escolhi e então ele


me escolheu de novo—ou algo parecido—mas tanto faz, nós escolhemos
um ao outro.
Eu não consigo entender isso.

Eu olho para ele. Aqueles flocos prateados ainda brilham como joias
em seus olhos, e posso ver um leve indício de seus glifos brilhantes na gola
da camisa, e quando olho para suas mãos, ele ainda usa aquele anel com
a moeda dos mortos.

— Então, acabou?

Ele acena com a cabeça enquanto se inclina para perto, seu nariz
roçando o meu. — Sim, —diz ele suavemente.

Eu me afasto dele e olho em volta. Há pilhas de cadáveres


desmembrados, plantas retorcidas e pedaços quebrados de asfalto. Tudo
está muito quieto.

Mortalmente quieto.

Os outros Cavaleiros.

Eu me afasto de Morte e me dirijo para o primeiro Cavaleiro em que


meus olhos caem, que por acaso é Guerra. Tenho medo do que vou
encontrar quando chegar até ele.

O homem temível estava caído de lado, uma montanha de mortos o


cercando. Não consigo ver muito de seu rosto desse ângulo, mas a última
vez que o vi, ele foi esfaqueado e seu corpo murchou.
Ainda vejo sangue em sua pele, e seu cabelo está escondendo suas
feições, mas o braço da espada ... juro que não está mais quebrado.

Ainda assim, hesito por um momento antes de me agachar na sua


frente. Tomando uma respiração estabilizadora, eu movo o cabelo de seu
rosto.

Os olhos de Guerra estão fechados, mas ele parece... melhor. Muito


melhor. Sua pele morena tem o mesmo brilho saudável de que me lembro.
Ao tocá-lo, ouço-o murmurar: — Esposa.

Uma expiração irregular escapa de mim.

Ele está vivo.

— Desculpe desapontá-lo, —eu digo.

Seus olhos se abrem. Ele geme um pouco enquanto se empurra para


cima. — Ele fez isso? —ele pergunta.

Olho por cima do ombro e encontro o olhar de Morte. Ele está onde
o deixei, e sem suas asas e armadura, o Cavaleiro parece ainda mais
vulnerável.

— Ele fez, —eu confirmo, dando a Thanatos outro pequeno sorriso.


Volto para Guerra. — A humanidade foi salva, de uma vez por todas.

— Aquele ... bastardo, —Guerra resmunga. — Sabia que ele tinha isso
nele.

Falou como se não estivéssemos completamente ferrados trinta


minutos atrás.

A uma curta distância, vejo Fome no momento em que ele cai de


costas e ri para o céu.

— Sou mortal! —Ele grita. Suas palavras são interrompidas por uma
tosse seca e aguda. — Porra, —ele chia, — eu sou mortal.

— Apenas espere até você envelhecer, —Pestilência grita com a voz


rouca.

— Estou ansioso por isso, vovô, —responde Fome.

Um a um, os homens se levantam. Afinal, Morte não os matou. Ou


talvez ele tenha, e então os salvou. Ou talvez não foi ele. Talvez Deus, o
universo, como você quiser chamá-lo, se intrometeu mais uma vez.

Independentemente disso, é uma maravilha vê-los vivos.

Assim que eles se levantam, fico tensa mais uma vez, com medo das
consequências que podem vir. Mas se pensei que os irmãos de Morte iriam
odiá-lo pelo que ele fez, pensei errado.

Os homens deixam suas armas para trás antes de se aproximarem de


Thanatos. E então, quando eles se aproximam dele, eles lhe dão abraços
fortes.

— Tudo está perdoado, —ouço Fome dizer baixinho para ele. Morte
segura seu irmão um pouco mais forte depois que ele ouve isso.

— Você lutou bem, —Guerra admite. — Mas, no final, nada é tão


tenaz quanto uma mulher humana. —Os dois homens compartilham um
olhar divertido.

O último a abraçá-lo é Pestilência.

— Bem-vindo à mortalidade, irmão, —ele diz simplesmente. — Você


vai adorar.
Capítulo 79
Costa Oeste, América do Norte

Outubro, Ano 27 dos Cavaleiros

THANATOS ADORA.

Enquanto os Quatro Cavaleiros e eu viajamos pela Costa Oeste, rumo


à Ilha de Vancouver, Morte é forçado a aprender sobre as alegrias da fome,
ir ao banheiro e tantos outros pequenos humanismos dos quais sua
imortalidade o protegeu.

E ... é uma alegria. Ele é uma alegria. Há uma luz e emoção em seus
olhos que eu nunca vi antes. Mesmo quando ele reclama de como é bárbaro
cagar. Ou quando ele resmunga sobre dores de fome. Ele realmente está
apaixonado pela vida, é como se antes ele tivesse se forçado a evitar
apreciá-lo. Agora ele não precisa.

Pestilência, Guerra, Fome e eu passamos a dar a ele alimentos como


limões e azeitonas, queijo, iogurte e peixe, apenas para avaliar sua reação.
Talvez ele os experimente por culpa, ou talvez seja curiosidade, mas Morte
concorda corajosamente. E agora que tem apetite, come como um
cavalo—assim como a Fome. Esses dois aproveitam a curva de
aprendizado da mortalidade juntos.

Quanto a mim, minha própria mortalidade é menos aparente, mas


percebo isso muito bem quando corto minha mão por acidente ou ralo
minha canela. Esses pequenos machucados teriam cicatrizado em poucas
horas. Agora demoram dias.

Apesar da alegria que todos sentimos por sobreviver ao apocalipse,


não podemos escapar de suas terríveis consequências. Há tantos mortos.
Passamos por eles por quilômetros e quilômetros, dias e dias, o cheiro
sufocante, e as moscas e necrófagos que desceram sobre eles apenas
tornam a cena mais horrível.

Os mortos se estendem vai do sul da Califórnia, passando pelo


Oregon82, até Washington83. Guerra estava errado quando disse que
Thanatos estava destruindo o mundo a um quilômetro por minuto. Morte
estava matando pessoas de forma muito mais agressiva.

82
O Oregon é um estado costeiro dos EUA, situado na região do Noroeste Pacífico e conhecido pela paisagem
diversificada de florestas, montanhas, fazendas e praias. A cidade de Portland é famosa pela excêntrica cultura de vanguarda e abriga cafés famosos,
butiques, restaurantes "farm-to-table" (que servem alimentos adquiridos diretamente de produtores locais) e microcervejarias. Alguns destaques
são a arte nativo-americana no Portland Art Museum, o Jardim Japonês e o Jardim Chinês Lan Su.

83
Washington é um estado na região do Noroeste Pacífico, nos EUA, com relevos que abrangem desde a Cordilheira
das Cascatas, coberta de neve, até as ilhas florestadas de Puget Sound. A maior cidade, Seattle, é conhecida pelo próspero setor de tecnologia, pelo
vibrante cenário musical e pelos famosos cafés. Entre os principais monumentos, estão o futurista Space Needle, o centenário mercado Pike Place
Market e o Seattle Aquarium. Inovadoras obras de arte em vidro são exibidas no Chihuly Garden & Glass.
Os corpos são um lembrete espinhoso e desconfortável do que
Thanatos fez e do que o resto de nós escapou por pouco. Mas então minha
própria perspectiva é alterada. Eu vislumbrei a vida após a morte. Morte
estava certa—não há nada a temer.

Só em algum lugar de Washington é que vemos a primeira pessoa viva


viajando pela estrada. Os olhos do homem parecem assombrados e,
quando ele nos vê, sua atenção permanece um pouco demais nos quatro
irmãos.

O viajante mal passa por nós quando Pestilência pigarreou. — A


menos que algum de vocês esteja interessado em mais lutas ...

— Estou sempre interessado em mais lutas, —interrompe Guerra.

— Psicótico, —Fome murmura baixinho.

Guerra se vira em sua sela para Fome. — Irmão, você diz isso como
se não fosse um, —a voz de Guerra ressoa, mais alta do que o resto.

Os dois riem então, como se estivessem compartilhando a piada mais


hilária e não uma verdade traumatizante.

— Deixe-me reformular. —Pestilência continua, ignorando seus


irmãos, — a menos que todos vocês desejem abreviar sua mortalidade
duramente conquistada, sugiro que saiamos da estrada principal a partir
deste ponto.
Apesar do entusiasmo de Guerra pela batalha, saímos da estrada.

À noite, depois de apagarmos nossas fogueiras, Morte e eu nos


afastamos dos outros. Esta noite, como todas as outras desde o quase-fim-
do-mundo, Thanatos me segura, nós dois olhando para as estrelas.

Bem, estou olhando para as estrelas. Thanatos está traçando meus


lábios e fazendo o possível para me distrair.

— Não acredito que demorei tanto para ver o que deveria ter feito o
tempo todo, —ele admite.

— Não uso isso contra você, —eu digo, sorrindo suavemente contra
seu toque. — Você estava pensando na morte e eu estava pensando na
vida.

— Sim, mas a vida e a morte são amantes, kismet. Eles sempre se


escolhem no final.

Eu viro meu rosto das estrelas e encontro o olhar escuro de Morte. —


Nós escolhemos, —eu concordo, e então eu o beijo.

QUANDO PARECE QUE estaremos condenados a viajar para sempre,


chegamos à Ilha de Vancouver. Tive borboletas no estômago o dia todo.
Hoje eu vou ver meu filho.

As árvores ao nosso redor farfalham com a brisa, e este lugar é um dos


locais mais bonitos que já vi em muito tempo. Todo o noroeste do Pacífico
é. E talvez seja porque pela primeira vez em mais de um ano eu sei que
não preciso continuar viajando, mas também gostaria de acreditar que é
porque este lugar parece um pedaço do paraíso.

Falando figurativamente, é claro.

Ainda tenho tantas perguntas para Thanatos, sobre o início do


Apocalipse, sobre seu resultado, sobre os sentimentos de Deus sobre tudo
isso, você sabe, aquelas grandes perguntas que o mantêm acordado à
noite. Mas, por enquanto, vou me contentar com o fato de ter parado
Morte no final. Detive-o e decidi mantê-lo por perto.

Pestilência conduz o grupo para fora da estrada pavimentada, e eu


lanço um olhar para os Cavaleiros. Pestilência, Victor (eu vou acertar um
dia desses), Guerra e Fome, todos têm um brilho excitado em seus olhos.

Devemos estar perto.

Minhas mãos começam a tremer, e o aperto de Morte sobre mim


aumenta. Nos próximos minutos, nosso grupo cavalga em silêncio.

Ouço o riso das crianças antes de ver a casa.

— Minhas meninas, —ouço Guerra murmurar, agora sorrindo como


um tolo louco.

Estico o pescoço para ver qualquer coisa, mas as árvores bloqueiam


minha visão.

Mas então as árvores se separam e o sol do fim da tarde brilha na


grama verde, verde que se afasta de uma enorme casa de dois andares.

E na frente dessa casa está um grupo de pessoas, a maioria mulheres.


Elas estão preparando algo para churrasco, e um jovem está sentado nos
degraus, afinando seu violão. No gramado da frente há um bando de
crianças, também principalmente meninas.

Ouço uma das mulheres gritando.

— Eles conseguiram! Pussy power84 para a vitória!

Ouço alguém gargalhar.

Uma das mulheres com cabelo escuro e encaracolado vem correndo


em direção ao nosso grupo, e o mal-humorado Fome basicamente se joga
do cavalo como se fosse a coisa mais dramática que já entrou na América
do Norte. Ele corre o que resta da distância entre eles e balança a mulher
em seus braços.

Estou absorvendo tudo quando avisto Ben. Ele está jogando uma bola

84
Poder da buceta venceu novamente kkkkkkkkkkkkk
na grama com uma jovem que tem uma estranha semelhança com Guerra.

Fazendo um pequeno som, eu deslizo dos braços de Morte e de seu


cavalo, meus olhos fixos em meu filho.

— Ben! —Eu grito, meu corpo inteiro tremendo de excitação e


felicidade e o melhor tipo de nervosismo.

Ben olha para cima então, me avistando. Por um instante, fico


paralisada por uma onda de medo. Ele se lembra de quem eu sou? Faz
apenas quatro meses, mas para uma criança pequena, isso é uma
eternidade.

Minhas preocupações evaporam no momento em que Ben larga a bola


e começa a correr. Correndo! Quando ele ficou tão bom em correr?

Mas então é claro que ele tropeça e cai porque suas perninhas ainda
estão instáveis e eu estou rindo, embora minhas bochechas estejam
molhadas.

Corro em direção a ele, diminuindo a distância entre nós enquanto ele


se levanta e, com um sorriso ofuscante, começa a correr em minha direção
novamente. Assim que ele está ao alcance do meu braço, eu o envolvo em
um abraço, girando ele enquanto eu faço isso. E então estou beijando sua
têmpora e posso ouvi-lo dizer: — Mamãe! Mamãe! —E eu ainda estou
chorando lágrimas grandes, gordas e estúpidas, e ele está me segurando
como se nunca fosse me soltar e estou mil por cento bem com isso.

Houve inúmeras vezes em que temi que esse dia nunca chegasse, mas
chegou. Finalmente aconteceu.

Sento-me com meu filho na grama, penteando seu cabelo para trás e
tentando memorizar suas feições.

Uma sombra cai sobre mim e minha pele pica com consciência.
Thanatos não traz mais aquela quietude mortal com ele, mas ele ainda tem
uma presença sobrenatural.

Olho para o Cavaleiro, surpreso ao ver um sorriso suave em seu rosto.


Mas seus olhos estão cheios de incerteza.

Eu pertenço aqui? Sua expressão parece dizer.

Estico a mão e aperto a mão dele porque ele pertence a este lugar.

Ben se afasta de mim e olha para cima, e para cima, para o cavaleiro,
esticando o pescoço para ver o homem. Ele inclina o braço para o lado,
com os olhos um pouco cautelosos.

Morte se agacha de modo que ele e Ben fiquem mais ou menos no


mesmo nível dos olhos. Fico maravilhada com o fato de o cavaleiro não
precisar mais se inclinar para a frente nessa posição para dar espaço às
suas asas. Meu coração bate loucamente. Fiquei tão triste ao ver aquelas
asas partirem, mas há tantas coisas casualmente humanas que a Morte
pode fazer agora. Como se agachar.

— Olá, Ben, —diz ele. — Sou Thanatos.

Ben continua olhando para Morte sem piscar, e acho que essa será a
soma total de sua reação, mas então Ben estende a mão para o rosto de
Morte.

Vejo os olhos do Cavaleiro se arregalarem de surpresa quando Ben


aponta para um deles.

— Olho, —Ben diz muito sério.

Thanatos acena com a cabeça, igualmente sério. Depois de um


momento, ele mesmo estende a mão. A cerca de um centímetro da pele de
Ben, ele hesita, seus dedos se curvando para dentro. Lembro que, até
algumas semanas atrás, o toque de Morte matava. Mesmo assim, ele
poderia controlar esse poder, mas ainda entendo sua relutância.

— Está tudo bem, —eu digo suavemente, dando-lhe permissão.

O Cavaleiro respira fundo e passa os dedos pela lateral do rosto de


Ben.

E…

Ben olha para o Cavaleiro por vários segundos e então sorri


timidamente.
Morte sorri de volta, a incerteza não está mais em seus olhos. — Mal
posso esperar para conhecê-lo, —diz ele com sinceridade.

Depois de um momento, Morte envolve seus braços em volta de Ben


e de mim. É um abraço assustadoramente semelhante ao que ele nos deu
meses e meses atrás, quando a vida de Ben estava por um fio.

Só que agora tudo é diferente.

Capítulo 80
Algum Lugar do Mundo

Março, Ano 28 dos Cavaleiros

EM UMA LONGA ESTRADA ABANDONADA, EM UM bairro


abandonado em uma das muitas cidades abandonadas do mundo, um
poste de luz pisca. Acende ... apaga ... Acende ... apaga ...

Acende.

E permanece acesa.
Epílogo

MORTE

NO FINAL, É EXATAMENTE COMO EU ESPERAVA QUE FOSSE.

Uma vida boa e longa. Crianças. Netos. Todos eles são mortais, todos
não têm asas, alguns compartilham meu sangue e outros não, e—
felizmente—nenhum parece ter herdado minha habilidade de tirar uma
alma de sua carne. Obrigado Senhor. Numa única vida, criei um legado
humano que pensei que seria impossível.

Existe uma magia inerente à vida, uma magia que nem mesmo a vida
após a morte pode proporcionar. É por isso que a criação existe e é por
isso que os humanos, que se equilibram no limite entre o Bem e o Mal, são
como são.

Ainda tenho meus segredos—as conversas tranquilas com o Universo.


Ainda sou seu intermediário, mesmo que tenha renunciado aos meus
poderes. Nunca serei totalmente humano. Minhas memórias remontam a
muito mais tempo do que qualquer um—até mesmo meus irmãos—
consegue se lembrar. Serei sempre a pausa entre as frases, o silêncio que
se segue ao final de uma história. Eu me encaixo entre as coisas, e
nenhuma mortalidade pode apagar isso.

O tempo aqui não funciona como antes de eu me transformar em


homem. É incrivelmente rápido e dolorosamente lento.

Mas eventualmente chega ao fim.

Meus irmãos e suas esposas se foram. Não escolho o dia. Não posso
mais. Esse aspecto do meu poder desapareceu. E um dia terrível, Lazarus
também se foi e nenhum dos meus conhecimentos sobre a vida após a
morte faz nada para atenuar a agonia insuportável de sua morte. Sinto sua
alma escapar, vejo seu voo para o céu e, desta vez, embora uma parte de
minha essência a leve até lá, não é esta parte de mim—o homem consciente
e mortal que me tornei.

E então ela se foi.

E de alguma forma, eu ainda vivo, embora por todos os direitos, a


parte de mim que importa foi embora. Por alguns anos eu existo sem ela,
e finalmente entendo, verdadeiramente, as palavras de Lazarus sobre a
perda.

Então, chega um dia em que sinto minha própria morte sobre mim e
quero rir que, de alguma forma, fechei o círculo—sou tanto a Morte
quanto os moribundos.

Meus filhos e netos se reúnem ao meu redor—e também os de carne


dos meus irmãos. Ben, que também é um homem idoso, segura minha
mão enquanto dou meu último suspiro.

Entre um pensamento e outro, eu me afasto. Não há barqueiro para


me guiar, mas isso não importa. Conheço o caminho. Memorizei isso ao
longo das eras.

Lá, no limiar da vida após a morte, estão meus irmãos, suas esposas
...

E Lazarus, minha doce Lazarus.

Ela abre os braços e eu entro neles.

E mais uma vez estou em casa.

Fim ...

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