Surrealismo Textos Selecionados

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES / DEPARTAMENTO DE LITERATURA

Prof. Geraldo Augusto Fernandes, Literatura Portuguesa IV

SURREALISMO PORTUGUÊS (1947-1974)

Tela de Mário Cesariny de Vasconcelos, poeta e pintor português

Uma das principais correntes estéticas do século XX, o movimento surrealista


foi liderado por escritores como André Breton, Paul Éluard e Pierre Reverdy. Em 1924,
após o estudo da pintura de Giorgio De Chirico, André Breton publica aquele que se
tornaria o acto fundador e o programa estético do movimento, o "Manifesto do
Surrealismo", através do qual defendeu um processo criativo assente no automatismo
psíquico. A partir daí o poeta assumiu-se como o principal ideólogo do movimento,
publicando um segundo manifesto em 1929.
1
Artes Plásticas e Decorativas
Entre os artistas que integraram o grupo fundador do movimento destacaram-se
Marcel Duchamp, Francis Picabia, Max Ernst, Hans Arp e Man Ray. Em 1929
juntaram-se Pierre Roy, Georges Malkine, os espanhóis Salvador Dali e Joan Miró e o
suíço Giacometti. Em simultâneo, formaram-se grupos de artistas surrealistas em vários
países, como a Bélgica (com os pintores René Magritte e Paul Delvaux), Portugal,
Estados Unidos, Japão, etc. (...)
Apesar do carácter vanguardista e revolucionário e da aparente ruptura com a
história, os surrealistas apoiaram-se em trabalhos de artistas como Bosch, Piranesi,
Goya, Chagall ou Klee e em movimentos como o Maneirismo, o Romantismo, o
Simbolismo, a Pintura Metafísica e o Dadaísmo. Deste último retomaram algumas
experiências (como a criação através de processos automáticos ou aleatórios) que
levaram a um nível mais radical. Procurando apresentar o lado dissonante da
personalidade humana, desenvolveram novas formas expressivas, das quais se salientam
os desenhos automáticos de Masson e as colagens e frottages de Max Ernst.
O Surrealismo procurou ultrapassar a percepção convencional e tradicional da
realidade, desenvolvendo pesquisas estéticas fundamentadas nas descobertas freudianas
do valor do inconsciente enquanto complemento da vida consciente e da capacidade
comunicativa do sonho. Desta forma conseguem ultrapassar o nihilismo redutor do
Dadaísmo, procurando então associar elementos díspares, através da dissociação dos
objectos dos seus contextos convencionais de forma a obter significações inesperadas.
Recusando uma rígida unidade estilística, o surrealismo concretizou-se num
espectro muito alargado de linguagens que iam desde o realismo mais minucioso de
Dalí, de Magritte e de Paul Delvaux, às tendências mais abstractas de Miró ou de Hans
Arp, englobando expressões como a pintura, a escultura, a fotografia ou o cinema.
Desaparecendo enquanto movimento organizado com o eclodir da Segunda Guerra
Mundial, o Surrealismo teve repercussões consideráveis para o desenvolvimento de
muitas das correntes artísticas da segunda metade do século XX, como a Arte Pop, a
Performance Art, ou os grupos Cobra e Fluxus.

Sugestão de site para apreciar a arte surrealista (e de outros movimentos


estéticos): www.pinceladas-fms.com.br

Literatura
Apollinaire aparece com o designativo Surrealismo (ou Sobrerrealismo) em
1917 no prefácio do seu drama Les Mamelles de Tirésias, André Breton aplica-o,
quando quer referir «um certo automatismo psíquico que corresponde bastante bem ao
estado de sonho». Breton remonta a origem filosófica e literária do movimento aos
séculos XVIII e XIX e fala em Hugo, Hegel, Nerval, Baudelaire; mas Rimbaud,
Apollinaire, Tzara e Freud (com o inconsciente e o automatismo psíquico), entre outras
figuras do século XIX, marcam nele assinalada influência. Apollinaire, simpatizante do
Dadaísmo, dele se separa porque o nihilismo do movimento de Tzara (Dadaísmo)
opunha-se ao plano que tinha em vista o Surrealismo quanto à filosofia, à moral, e à
estética. Este movimento dá os seus primeiros passos em 1919 com Les Champs
Magnétiques de Breton e Soupault; mas só em 1924 o Manifeste du Surréalisme de
Breton - a Arte Poética do movimento - prepara a revista La Révolution Surréaliste.
Dissensões entre alguns membros não impedem que, até eclodir a Segunda Guerra
Mundial, o movimento atinja o seu ponto mais alto. Informa-nos destas dissensões o
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Second Manifeste du Surréalisme (1929). Difunde-se pela Europa, menos
profundamente na Inglaterra e mais atrasado em Portugal; Breton promove a actividade
surrealista na sua deslocação à América, chegando ao México, ao Brasil; com o seu
regresso a Paris, o Surrealismo entra na fase final.
Além de movimento artístico-literário e estético, o Surrealismo aparece como
uma tomada de consciência face à civilização e cultura do Ocidente europeu. Aproveita,
amplia, transforma valores do Romantismo e volta-se para a filosofia que rejeita o
racionalismo cartesiano ou o equilíbrio do Classicismo. Rejeita o convencionalismo e
opõe-lhe a liberdade; substitui o positivismo pela sobrerrealidade, pelo sonho, pelo
inverosímil, pelo insólito porque sente que o homem ultrapassa as limitações da matéria
na busca do abstracto, do mistério. Daí a importância da metáfora. Alguns momentos do
Surrealismo aproximam-no da linha política marxista e comunista, o que provoca a
separação de Breton e de mais surrealistas. A rejeição das regras de Aristóteles e do
racionalismo de Descartes leva o poeta surrealista a sobrestimar o que é surpreendente,
fantástico, acidental, fortuito e a exprimir-se com acentuada liberdade de palavras e com
especial relevância para o símbolo, a metáfora, analogia (elementos que estão ao serviço
do maravilhoso, do insólito, do mistério). Por tudo isto se afirma o valor da liberdade
para os surrealistas na sua tentativa de objectivar, visualizar o subjectivo até com uma
estreita ligação à pintura, aparecendo mesmo trechos ilustrados com desenhos, pois o
movimento sente-se em pintores como Salvador Dalí, Joan Miró (Barcelona 1893), este
considerado um sobrerrealista inigualável pela frescura, fantasia e humor dos quadros.
(...)

Fonte: http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.com.br/2010/05/surrealismo.html

MÚSICA SURREALISTA

Tentar definir o surrealismo soa como traição ao próprio movimento. Tentar


definir a música surrealista é uma tarefa mais complicada ainda.
Seria preciso, antes de tudo, definir o que é “real” na música: Levando em
consideração a série harmônica (toda nota é uma frequência de onda, e a série
harmônica são as frequências múltiplas dessa frequência, que gerariam outras notas), o
tonalismo é o realismo, já que foi baseado em um princípio físico. A partir disso,
poderíamos concluir que tudo o que é atonal, pantonal, modal ou serial, é surreal. Mas
aí a música surreal seria, basicamente, toda a música do século XX.
Outro pensamento que poderia ocorrer, é o de que toda música instrumental é
surreal. Não possui canto, consequentemente não possui texto, logo, não expressa algo
“real”. Os acadêmicos da cognição musical não ficariam muito felizes com isso, porque
do ponto de vista deles, a música por si só é linguagem e expressa algo.
André Breton, autor dos Manifestos Surrealistas (o primeiro, de 1924 e o
segundo, de 1930) e considerado “criador” ou “inventor” do movimento, manifestou-se
sobre a música no texto “Silence is Golden” (1946 – “silêncio é ouro” – tradução livre).
Coincidência ou não, alguns poucos anos mais tarde, John Cage expressaria idéias
similares às de Breton ao falar sobre a importância do silêncio na transcendência da
música, compondo inclusive, uma peça exclusivamente de silêncio.
Porém, John Cage não é considerado um compositor essencialmente surrealista,
apesar das idéias similares às de Breton. Os compositores mais próximos
temporalmente do Manifesto Surrealista são Erik Satie, Edgar Varèse e Igor Stavinski.

3
[Num] curta lançado no mesmo ano do Primeiro Manifesto Surrealista, dirigido
por René Clair, com trilha composta por Satie, [percebe-se] que o cinema surrealista era
melhor formulado que a música no princípio do movimento. A utilização de stop
motions, sobreposição de imagens e planos não exatamente inter-relacionados.

(Para assistir ao curta-metragem de René Clair, com música de Erik Satie [Entr’Acte,
1924]- 20m18) acessar o site:
http://musicronicas.wordpress.com/2012/06/18/musica-surrealista/).

A obra de Stravinski que pode ser considerada surrealista está no período de 1910 a
1930, aproximadamente. “Les Noces”, ou “As Bodas” é também um ballet, assim como “Le
sacre du printemps” (“A sagração da primavera”), obra mais renomada deste compositor.
Apesar de este ballet utilizar ainda a sapatilha de ponta, a técnica deixa de ser
exclusivamente de ballet clássico e começa a sofrer influências do ballet contemporâneo e a
utilização de movimentos esteticamente menos agradáveis. Menos agradável alguns
poderiam considerar, é a percussão utilizada por Stravinski, bem marcada e fortíssima,
característica observada em outras obras do compositor. (...)

(Para assistir a trechos do balé “Les Noces” de Stravinski, 10m09, acessar o site
http://musicronicas.wordpress.com/2012/06/18/musica-surrealista/)

CINEMA SURREALISTA

Filmes aprovados pelo movimento surrealista oficial, claramente influenciados


pelos seus conceitos, seriam, entre eles, “Entr’acte” (1924) de René Clair e Francis Picabia;
“Estrela do Mar” (L’Étoile de Mer, 1928) de Man Ray; “Um Cão Andaluz” (Un Chien
Andalou, 1929) e “L’Age d’or” (The Golden Age, 1930), ambos de Luis Buñuel e Salvador
Dalí, e também “O Sangue de Um Poeta” (Le Sang d’un Poète, 1930) de Jean Cocteau.

Fonte (adapt.): http://ajanelaencantada.wordpress.com/surrealismo/

Sugestão: “Um cão andaluz”, de Luis Buñuel e Salvador Dalí:


https://www.youtube.com/watch?v=WL81wuYbFwI

Cena de “Um cão andaluz”, 1929

Também em 1967, Luis Buñuel dirigiu o longa “A bela da tarde”, em que mescla realidade
e fantasia. Imperdível!
4
O SURREALISMO
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, pp. 348-353

Terminada a guerra de 1939-1945, em pleno clima neorrealista começaram a


formar-se grupos de dissidência ou de individualismo inapetente das fórmulas aceitas ou
em voga. Na verdade, prolongavam sintomas de rebeldia e vanguardismo estético
observados desde 1935, com António Pedro e sua teoria do Dimensionismo e seus
laivos surrealistas, e 1940, com a pintura de António Dacosta, que se beneficiava do
libertarismo surrealista.
Até que, em outubro de 1947, por iniciativa de Cândido da Costa Pinto, cria-se
em Lisboa o Grupo Surrealista, congraçando, além de seu ideador, Marcelino Vespeira,
Fernando Azevedo, António Domingues, Alexandre O'Neill, José-Augusto França,
António Pedro, Moniz Barreto e Mário Cesariny de Vasconcelos. A primeira
manifestação do agrupamento constituiu-se de uma homenagem a Gomes Leal por
ocasião de seu centenário, intitulada Só Gomes Leal / o Mago Lesel / o Póro da Noite,
publicada a 4 de agosto de 1948.
A eles se acrescentariam no ano seguinte outras figuras interessadas no
Surrealismo, mas dissidentes das diretrizes assumidas pelo Grupo: Pedro Oom, Risques
Pereira e António Maria Lisboa. Finalmente, em carta de 29 de setembro de 1948,
Mário Cesariny de Vasconcelos desliga-se da agremiação, por julgá-la "nem grupo nem
surrealista", e organiza com os três últimos mencionados o grupo dos Surrealistas
Dissidentes. Entre 19 e 31 de janeiro do ano subsequente, o Grupo Surrealista de
Lisboa faz realizar uma exposição de arte, que escandalizou o público e provocou o
clima propício aos fins renovadores que objetivava. Expuseram: Alexandre O'Neill,
António Dacosta, António Pedro, Fernando Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto
França e Marcelino Vespeira. Nesse mesmo ano de 1949, a 6 de maio, os Surrealistas
Dissidentes lançam sua primeira comunicação, sob o título de A Afixação Proibida,
apenas dada a lume em 1953. A proclamação vinha assinada por António Maria Lisboa,
Pedro Oom, Henrique Risques Pereira e Mário Cesariny de Vasconcelos, mas, segundo
declaração de seu editor em 1953, a autoria do documento cabe ao primeiro e ao
derradeiro dos signatários.
Ainda no ano de 1949 são de assinalar os seguintes acontecimentos ligados aos
Surrealistas Dissidentes: a realização de uma exposição em julho, e o lançamento, em
novembro, de um comunicado contra António Pedro e José-Augusto França, sob o
rótulo de A Desavença Surrealista, subscrito por Mário Henrique Leiria, Mário
Cesariny de Vasconcelos, João Artur Silva, Artur Cruzeiro Seixas e Carlos Eurico da
Costa.
(…)
E quais postulados eram? Na esteira de Breton, um dos fundadores do
Surrealismo (Manifestos do Surrealismo, 1924 e 1930), entendiam que a Arte deveria
buscar a expressão do que paira além da realidade, acima da realidade, evidente no
prefixo francês sur. Em repúdio ao Neorrealismo, propunham uma visão do mundo que
recolocasse o "eu profundo" do artista em lugar das questões sociais; que desvelasse o
caos cósmico, as verdades oníricas e fantásticas, os arcanos secretos do subconsciente
individual.
Em suma, "automatismo psíquico puro, através do qual se intenta expressar tanto
verbalmente como por escrito, ou de qualquer outro modo, o funcionamento do
pensamento. Ditado do pensamento, com exclusão de todo o controle exercido pela

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razão e à margem de qualquer preocupação estética ou moral", "crença na realidade
superior de certas formas de associação que haviam sido subestimadas, na onipotência
do sonho, na atividade desinteressada do pensamento. Tende a provocar a ruína
definitiva de todos os outros mecanismos psíquicos, e a suplantá-los na solução dos
principais problemas da vida" (Breton, Manifesto do Surrealismo, 1924).
Não obstante a história externa do Surrealismo português durasse escassos anos,
o movimento exerceu profunda influência, até hoje visível, não só pela ebulição crítica
que estimulou e de que se prevaleceu, mas também pelos caminhos estéticos que abriu.
E dos vários participantes do movimento surrealista português, destacam-se os nomes
de António Pedro, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa e Alexandre
O'Neill.
António Pedro da Costa nasceu em Cabo Verde, em 1909. Estudou Direito e
Letras em Lisboa. Viajou pelo estrangeiro, às vezes em permanências demoradas:
África, Brasil, Paris, Londres. Nesta última, frequentou o grupo surrealista inglês (1944-
1945), e de lá trouxe a ideia de formar o Grupo Surrealista de Lisboa. Consagrou-se ao
teatro, à pintura, à poesia e ao romance. Na poesia, evoluiu de um lirismo de acentos
tradicionais (Ledo Encanto, 1927; Distância, 1928; Devagar, 1929; Máquina de Vidro,
1931, etc.) para o Surrealismo de Protopoema da Serra d'Arga (1948), em que o
refinamento da fase anterior se casa com uma irreverência que corresponde apenas à
contraface de uma sensibilidade apurada e vigilante. O romance (Apenas uma
Narrativa, 1942), das mais acabadas experiências da ficção surrealista, confirma tal
consórcio. António Pedro faleceu em 1966.
Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu em Lisboa, em 1923. Estudou música e
artes plásticas. Tomou parte no Grupo Surrealista de Lisboa (1947) e chefiou o grupo
dos Surrealistas Dissidentes. Dedica-se ao jornalismo. Escreveu: Corpo Visível (1950),
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de
Álvaro de Campos (1953), A Afixação Proibida (1953), Manual de Prestidigitação
(1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à
Circulação pelo Autor (1958), Nobilíssima Visão (1959), Poesia (1961), Planisfério e
Outros Poemas (1961). Se não o mais ortodoxo dos surrealistas portugueses, Mário
Cesariny de Vasconcelos tem sido o mais persistente de todos: quando os grupos se
desfizeram, permitindo que cada um seguisse o rumo apetecido, permaneceu fiel às suas
ideias e intuições. E quando, com o tempo, se processou natural mutação na obra dos
surrealistas da primeira hora, manteve-se convicto. Passados anos, ergue-se como o
grande remanescente do movimento, a ponto de não se poder falar em Surrealismo em
Portugal sem falar nele, e vice-versa.

Precursor da estética surrealista, ARTHUR RIMBAUD - França

ADORMECIDO NO VALE

Tradução: Ferreira Gullar

É um vão de verdura onde um riacho canta


A espalhar pelas ervas farrapos de prata
Como se delirasse, e o sol da montanha
Num espumar de raios seu clarão desata.

Jovem soldado, boca aberta, a testa nua,


Banhando a nuca em frescas águas azuis,
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Dorme estendido e ali sobre a relva flutua,
Frágil, no leito verde onde chove luz.

Com os pés entre os lírios, sorri mansamente


Como sorri no sono um menino doente.
Embala-o, natureza, aquece-o, ele tem frio.

E já não sente o odor das flores, o macio


Da relva. Adormecido, a mão sobre o peito,
Tem dois furos vermelhos do lado direito.

LE DORMEUR DU VAL

C'est un trou de verdure où chante une rivière,


Accrochant follement aux herbes des haillons
D'argent; où le soleil, de la montagne fière,
Luit: c'est un petit val qui mousse de rayons.

Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue,


Et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
Dort; il est étendu dans l'herbe, sous la nue,
Pâle dans son lit vert où la lumière pleut.

Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme


Sourirait un enfant malade, il fait un somme:
Nature, berce-le chaudement: il a froid.

Les parfums ne font pas frissonner sa narine;


Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine,
Tranquille. Il a deux trous rouges au côté droit.

ANDRÉ BRETON – MANIFESTO DO SURREALISMO - Excerto

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido,
a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia
mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que
lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou
trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão (o que ele chama
decisão!). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as
ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem
nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência
moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão
recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada
que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo
conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a
essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas.
Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores
condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai
dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância
apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a
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conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar
segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo
esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o
homem ao seu destino sem luz.
(...)
Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a
outra. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um
reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua
liberdade (o que se vê de sua liberdade) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam,
numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que
ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o
que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em
relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são
impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e
apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato,
alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada
sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa
mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares
malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas
de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso
Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura
cresceu, e durou.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da
imaginação.
(...)
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria
chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de
problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite
considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos,
ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos
limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se
apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de
civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com
ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade,
não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente
trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se
afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas
descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador
humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em
conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus
direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de
aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em
captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de
nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar
que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até
segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto
como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a
serem seguidas.

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Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com
efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica (pois que, ao menos do
nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma
dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do
sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos
de vigília) não tenha recebido a atenção devida. A extrema diferença de atenção, de
gravidade, que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do
sono, é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo
o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar
fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda consequência atual, e em
despedir o único determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas
antes: esta esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo que
vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a noite. E como a noite,
geralmente também não traz bom conselho
(...)
Os meios surrealistas reclamariam, aliás, uma ampliação. Tudo é bom para obter
de certas associações a desejável subitaneidade. Os papéis colados de Picasso e de
Braque têm o mesmo valor que a introdução de um lugar-comum num desenvolvimento
literário do estilo mais castiço. É até mesmo permitido intitular POEMA o que se obtém
pela agregação tão gratuita quanto possível (observemos, faz favor, a sintaxe) de
títulos e fragmentos de títulos recortados dos jornais:

POEMA
Uma risada
de safira na ilha de Ceilão
As mais belas palhas

Têm a cor esmaecida


Na prisão

Numa fazenda isolada


NO DIA-A-DIA
agrava-se
O agradável

Um caminho carroçável
vos conduz ao desconhecido

O Café
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roga por si mesmo
O ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA

Senhor a,
um par
de meias de seda
não é

Um salto no vazio
UM CERVO
Antes de tudo o amor

Tudo poderia acabar tão bem


Paris é uma grande aldeia
Vigial

o fogo incubado
a oração

Sabei que
os raios ultravioleta
terminaram seu trabalho
bom e rápido

O PRI MEI RO J ORNAL BRANCO


DO ACASO
Vermelho será
O cantor errante

ONDE ESTARÁ?
na memória
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em sua casa
NO BAILE DOS ARDENTES
Faço
Dançando
O que se fez, o que se fará
(...)

O surrealismo, tal como o encaro, declara bastante o nosso não-


conformismo absoluto para que possa ser discutido trazê-lo, no processo do mundo
real, como testemunho de defesa. Ao contrário, ele só pode justificar o estado completo
de distração da mulher em Kant, a distração das “uvas” em Pasteur, a distração dos
veículos em Curie são a esse respeito profundamente sintomáticos. Este mundo só
relativamente está à altura do pensamento, e os incidentes deste gênero são apenas os
episódios até aqui mais marcantes de uma guerra de independência, da qual tenho o
orgulho de participar. O surrealismo é o “raio invisível” que um dia nos fará vencer os
nossos adversários. “Não tremes mais, carcaça.” Neste verão as rosas são azuis, a
madeira é de vidro. A terra envolta em seu verdor me faz tão pouco afeito quanto um
fantasma. VIVER E DEIXAR DE VIVER É QUE SÃO SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS.
A EXISTÊNCIA ESTÁ EM OUTRO LUGAR.

Fonte: http://www.dhnet.org.br/desejos/textos/surreal.htm

ANDRÉ BRETON

A UNIÃO LIVRE

Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha


Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com a cintura de ampulheta
Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira
grandeza
Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca
Com a língua de âmbar e vidro friccionado
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra inacreditável
Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
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E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com as axilas de marta e faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro
De encontro no próprio leito da correnteza
Com os seios de noite
Minha mulher com os seios de toupeira marinha
Minha mulher com os seios de crisol de rubis
Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e giz molhado
E queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com os quadris de escaler
Com os quadris de lustre e penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de lírio roxo
Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos
Minha mulher com o sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

Este poema é de 1930 – uma das portas de entrada do surrealismo, junto


com “Nadja” e “O amor louco”, também de Breton. (...) Extenso, ao mesmo tempo há
condensação, síntese – como se unisse os extremos de uma analogia ou uma história.
12
Saiu na coletânea Clair de terre (Clareira). A mulher a que se dirige é provavelmente
Suzanne Muzard, com quem teve um relacionamento desastroso. Período difícil na vida
de Breton, separando-se de Simone Kahn, sem dinheiro, polemizando pesadamente no
âmbito do movimento surrealista, principalmente por causa da adesão ao marxismo –
que resultou na saída, entre outros, de Antonin Artaud e Robert Desnos – e ao mesmo
tempo do impossível relacionamento com a militância comunista de orientação
soviética. Foi quando escreveu o controvertido e contraditório Segundo manifesto do
surrealismo, e um ensaio, (...) simultaneamente brilhante e paranóico, “Les vases
communicants”, no qual formulou o “acaso objetivo”. Ao mesmo tempo, criou um
poema sublime como este. (Cláudio Willer)

Fonte: http://claudiowiller.wordpress.com/2013/06/17/a-uniao-livre-de-andre-breton/

PAUL ÉLUARD

DE UM E DE DOIS, DE TODOS

Sou o espectador o actor e o autor


Sou a mulher o marido e o filho
E o primeiro amor e o derradeiro amor
E o furtivo transeunte e o amor confundido

E de novo a mulher seu leito e seu vestido


E seus braços partilhados e o trabalho do homem
E seu prazer em flecha e a fêmea ondulação
Simples e dupla a carne nunca se exila

Pois onde começa um corpo ganho eu forma e


[consciência
E mesmo quando na morte um corpo se desfaz
Eu repouso em seu cadinho desposo o seu
[tormento
Sua infâmia me honra o coração e a vida.

JACQUES PRÉVERT

O METEORO

Pelas grades do bloco penitenciário


uma laranja
passa como um raio
e cai como uma pedra
dentro do sanitário
E o prisioneiro
todo lambuzado de merda
resplandece
todo iluminado de alegria
Ela não me esqueceu
Ela pensa sempre em mim ainda.
13
LE METEORE

Entre les barreaux des locaux disciplinaires


une orange
passe comme un éclair
et tombe dans la tinette
comme une pierre
Et le prisonnier
tout éclaboussé de merde
resplendit
tout illuminé de joie
Elle ne m’a pas oublié
Elle pense toujours à moi.
(in Histoires)

A RIVIERA

Teus jovens seios brilhavam ao luar


Mas arremeti o
Gelo frio
Da pedra gélida do ciúme
Contra o rio
Que refletia o
Dançar de tua nudez na riviera
Pelo esplendor do estio.

LA RIVIERE

Tes jeunes seins brillaient sous la lune


Mais il a jeté
Le caillou glacé
La froide pierre de la jalousie
Sur le reflet
De ta beauté
Qui dansait nue sur la rivière
Dans la splendeur de l’été.

SOLDADOS MAS IGUAIS MORREM

Nas nádegas do chefe decapitado estava tatuado o nome do soldado familiar


e o nome do chefe estava tatuado no peito do homem fuzilado
As mãos enlaçadas e crispadas pareciam ainda viver
Misoginia mãe bélica
Xícaras e bules
O sol doma
Igual a morte
Dois corpos sob os escombros
na sombra do decoro.

14
SCEAUX D’HOMMES EGAUX MORTS

Sur les fesses du chef décapité était tatoué le prénom du soldat familier
et le prénom du chef était tatoué sur la poitrine de son homme fusillé
Leurs mains enlacées et crispées faisaient semblant de vivre encore
Misogynie mère des guerres
Tasses et théières
Seaux d’eau
Mégots morts
Deux corps sous les décombres
dans l’ombre du décor.
(in La pluie et le bon temps)

POEMAS E TEXTOS SURREALISTAS PORTUGUESES


MANIFESTO “AVISO A TEMPO POR CAUSA DO TEMPO”

O Manifesto do “Aviso a Tempo por Causa do Tempo”, de António Maria Lisboa,


exemplifica-nos a atitude dos surrealistas portugueses:

Declara-se para que se saiba:

1.º - que não apoiamos qualquer partido, grupo, directriz política ou ideologia e que na
sua frente apenas nos resta tomar conhecimento: algumas vezes achar bom outras achar
mau. Quanto à nossa própria doutrina, os outros hão-de falar.
2.º - que não simpatizando com qualquer organização policial ou militar achamo-las no
entanto fruto e elemento exacto e necessário da sociedade – com quem não
simpatizamos igualmente.
3.º - que sendo nós indivíduos livres de compromissos políticos permaneceremos em
qualquer local com o mesmo à-vontade. Seremos nós os melhores cofres fortes dos
segredos do estado: ignoramo-los.
4.º - que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas
convencionais, temos o máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos
componentes da sociedade. Assim delas daremos por vezes testemunho e mesmo
ensino.
5.º - que não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o
conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela
Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes.
6.º - que a crítica é a forma da nossa permanência.
(...)
António Maria Lisboa, Poesia, Assírio & Alvim.

Em Abril do ano de 1950, finalizando o “Comunicado dos Surrealistas Portugueses”,


assinado por Artur do Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Mário Henriques Leiria, lê-se:
“Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.”

Mário Cesariny diria que “o Homem só será livre quando tiver destruído toda e
qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa e quando for
universalmente capaz de existir sem limites.
Então o Homem será o Poeta e poesia será o Amor – Explosivo.”
15
Numa entrevista, diz o mesmo Mário Cesariny:
“(...) o surrealismo é o que existe de mais parecido com a poesia. Não se ensina, não é
possível. Tudo o que é pedagógico é muito mau. Tudo o que nasce como revolta é um
tormento. O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação
pessoal. (...) Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre”.

Fonte:
http://www.homeoesp.org/livros_online/O%20MOVIMENTO%20SURREALISTA%20DE%2
0LISBOA%20-%20ALGUNS%20POEMAS.pdf

MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

AMA COMO A ESTRADA COMEÇA

Em todas as ruas te encontro


Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

VOZ NUMA PEDRA

Não adoro o passado


não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada


sei muito bem que soube sempre umas coisas

16
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde "a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela"
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?

Passa-me então aquele canivete


porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
“a machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão
ao sol coisa nenhuma"
nada está escrito afinal

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco.

DE PROFUNDIS AMAMUS

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
17
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilômetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me


os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro temo estranho
verbo nosso

VOTA POR SALAZAR

Paro. Paro de novo. Pararei sempre enquanto


afixarem cartazes deste gênero.
Curioso, curiosíssimo este gênero.
Um chefe não é grande pelo nome que arranjou.
18
Salazar Xavier Francisco da Cunha Altinho isso que
importa.
Um chefe é grande,
pelas suas obras, pelo amor que
inspira.
Pois os fascistas os nossos bons fascistas
querem que a gente vote por um nome
por um nome calcula essa coisa qualquer que qual-
quer fulano tem!
Vota por Salazar ora pois ó meu povo
vota por sete letras muito bem arrumadas em três
sí-la-bas.

Deito a cabeça para trás para deixar sair a gar-


galhada
e aproximo-me do homem em cima do escadote
aproximo-me tanto que ele nota
alguém que se aproxima
e o braço cai-lhe, grosso, pingando água num balde

AUTOGRAFIA

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
19
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!

Cotejar com AUTOPSICOGRAFIA, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

AUTOPSICOGRAFIA (REFLEXÃO SOBRE O FAZER POÉTICO)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
20
[O que] concebeu Cesariny a propósito da poesia de Teixeira de Pascoaes, acrescentando-lhe, agora, o
que lhe segue na nota:
“(…) a poesia (re)começa a exercer-se na individuação-despersonalização do enunciado. Importa não
ler “despersonalização” como ela parece que aparece na invenção fernandiana: levando a uma ficção de
outras-a-mesma-personalidade com cada uma delas afirmando personalidades; mas sim como real
destruição do conceito, e da prática da personalidade, e dos seus referentes, para emersão do indivíduo
ausente de nome próprio, de tempo e de lugar (…).” (p. 28)
Procurar diversamente as “capacidades da vida lírica” pela incorporação da potência do corpo seria
exigir à escrita (autografia) não ficar pela auto-psico-grafia e incitá-la, deslocá-la até passar
necessariamente também pela inscrição do propriamente corporal – inscrição corpográfica –, assumindo
todas as consequências dessa atitude. Poderíamos falar, até, de um trajecto do corpo, uma mobilização
de todas as suas forças, no sentido da expressão que se cumpre a cada acto de escrita, e que puxa e
trabalha com o “irracional” – com o inconsciente e com o impensado – que vem do mais fundo dele.
Trata-se de pôr em causa o dito “fingimento poético”, por dele duvidar-se altamente, reivindicando uma
verdade não contraditada nela mas decorrente da força de expressão, que é “sempre mentirosa por
excesso, sempre ardente de febre que só há na infância, mas que o pintor [leia-se “o poeta”] recria em
perspectiva adulta: Eleição – Amor – Morte.”.
Fonte (Emília Isabel Monteiro Pacheco Pinto de Almeida). Projeto:
http://run.unl.pt/bitstream/10362/5251/1/Para%20a%20Considera%C3%A7%C3%A3o%20de%20um%20Plan
o%20de%20Cria%C3%A7%C3%A3o%20Po%C3%A9tica%20na%20Obra%20d.pdf

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura


nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio


nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante


- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola


antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome


porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo


de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo


à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta


ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

21
Cotejar com TABACARIA, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

TABACARIA

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)

Não ser nada, ser uma figura de romance,


Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.
(...)

Não: não quero nada.


Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!


A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!


Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!


Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.


Fora disso sou doido, com todo o direto a sê-lo.
Com todo o direto a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?


Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!


22
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –


Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...


E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!.

(“Lisbon Revisited, 1923”. Poesias de Álvaro de Campos, 1983, pp. 94-95).

A polémica e dinâmica semiose textual dos surrealistas portugueses só alcançará pleno


entendimento se, desde logo, for concebida como o espaço de um amplo e
revolucionário intertexto paródico. Isto é, a primeira e talvez a mais explícita modalidade de
Paródia é aquele que confronta dois ou mais textos, relação textual em que um se apresenta
como texto parodiante (hipertexto) e outro(s) como texto(s) parodiado(s). A escrita poética
surrealista, possuidora de uma boa memória literária, gera frequentemente um tecido
intertextual onde dialogam, parodicamente, vozes ou textos plurais, podendo ser encarada
como um espaço de afirmação conflitual e agónica de novos escritores que se revelam "em
competição e em confronto com os detentores do poder do campo literário", processo
emulativo que "implica a luta consciente ou inconsciente pelo domínio do fundamento e do
instrumento primordial de todo o poder simbólico — a linguagem verbal".
Nem sempre é fácil detectar as influências e matrizes hipotextuais do intertexto surrealista.
Se é certo que em muitas passagens os poetas citam outros textos (com ou sem aspas) ou
disseminam inúmeras referências facilmente identificáveis, já noutros casos isso não
acontece. A estas modalidades forte e branda do intertexto surrealista, devemos acrescentar
uma característica essencial. Referimo-nos aos desafios de interpretação suscitados por um
intertexto conscientemente conflitivo; isto é, à obscuridade de alguns textos, explicável pelo
profundo desejo de inovação e ruptura. Não satisfeito com uma explicação tradicional, que
aponta a técnica da escrita automática como uma das técnicas geradoras
da obscuridade surrealista, M. Riffaterre reitera posições críticas de outros ensaios
anteriores: para este teorizador, a obscuridade da escrita surrealista radica principalmente na
proliferação das relações intertextuais (...)
Na realidade, o texto surrealista apresenta-se diante do leitor como um espaço intertextual
polifónico, isto é, como um discurso literário plural, onde o texto presente nos reenvia para
outro(s) texto(s). Mais concretamente, o texto surrealista é animado frequentemente de
conotações paródicas, isto é, como texto parodístico, aparece-nos enxertado de outros textos
que ele re-escreve, transposiciona ou desconstrói. A Paródia surrealista nutre-se, assim,
pantagruelicamente, de um imenso e variado intertexto, não se limitando a uma época, a
determinados autores ou certas obras específicas da história da Literatura Portuguesa.

Fonte: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/candid04.htm

23
EXERCÍCIO ESPIRITUAL

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia


é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano


é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora. (in Poesia 1963)

Antes de tudo é importante que se entenda que quando se fala que os neorrealistas
defendiam uma literatura fundada no inconsciente não significa que estes só fossem
melancólicos, românticos ou coisa assim, até porque o nosso inconsciente depende de
nossa realidade, e este poema de Mário Cesariny de 1963 expressa perfeitamente o
estado de espírito do autor na expressão de seus sentimentos/pensamentos em dada
época.
Primeiro observamos uma comprovação de que realmente ele está expressando os
pensamentos, pois sempre pensa algo e fala outro, “É preciso dizer rosa em vez de dizer
ideia”.
Observa-se também que semelhante aos poemas neorrealistas, este faz uso da poesia
para mostrar a realidade do país, que é o que ele estava pensando e expressa através da
literatura, fazendo relação, por exemplo, a Salazar quando ele diz: “é preciso dizer o
mundo em vez de dizer um homem”; ao clima de mistério expressado em “arcano”; ao
tempo que parasse que não passa, um dia dura um ano; ao aspecto negro: “pantera” e a
esperança de dias melhores: “aurora”.

Fonte: http://escritosdemarcelita.blogspot.com.br/2011/07/poesia-portuguesa-pos-moderna.html

O HOMEM EM ECLIPSE

Ora foi que certo dia


o homem eclipsou-se
a data digam a data
a datazinha faz favor
qual data foi por decreto
que a gente se eclipsou
foi só manobra espertice
um dois três e pronto é noite
que nem a lua apareça
seja de que lado for
Uns seguraram-se logo
eram espertos bem se viu
outros caíram ao mar
com cabeça pernas e tudo
quanto a mim perdi a calma

24
fiquei desaparafusado
tradição cultura estilo
certeza amigos fatiota
tudo fora do seu sítio
um desaparafuso terrível

Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar

ANTÓNIO PEDRO

Das múltiplas formas em que se manifestaram as suas ricas e variadas aptidões


de artista, na literatura, na criação plástica e no teatro, ficou de António Pedro na
novelística um único livro que, talvez significativamente, se intitula Apenas uma
Narrativa (1942, 2.ª ed. 1978). Nele se demarca, porém, algo do que o surrealismo
preencheu e, sobretudo, do que poderia ter preenchido na nossa literatura moderna, se
não tivesse surgido em Portugal tão tardiamente, depois das versáteis expressões
ocasionais em que se manifestou (e em certos casos relativamente antecipatórias) desde
a geração de Orpheu. António Pedro participou, de facto, num grupo surrealista de
Londres em 1944-45 e, em 1947, no grupo, depressa disperso, de tendência estética
similar que se afirmou em Lisboa e que só na poesia (como na pintura) teve alguma
continuidade.
O romance Apenas uma Narrativa – se romance se pode chamar, com a
liberdade de definição que se tornou usual – antecipou-se em data às tentativas
surrealistas posteriores mais determinadas e não é muito certo que as tenha inspirado
decisivamente. Deste livro escreveu Jorge de Sena que é «uma das obras-primas da
prosa portuguesa» e «sem dúvida uma das tentativas mais admiravelmente bem
sucedidas de romance surrealista de qualquer literatura». O texto desenrola-se com
claridade de linguagem, sem indícios de automatismo verbalista, apenas dissolvendo a
visão comum do real no insólito das imagens e no fantástico do descritivo, em que esse
mesmo real, apesar disso, não se ausenta de todo. A estilização surrealista de António
Pedro assume-se nesse livro, até há pouco injustamente esquecido, sobretudo como
prosa poética – e é essa a impressão essencial que a sua leitura suscita. Essa impressão,
sobretudo, e a presença na escrita de «um homem de mil ofícios e de nenhum, dando a
tudo o que tocava a dedada mágica dos criadores disponíveis» (Eduardo Lourenço) e
fazendo lamentar que não tivesse sido mais extensa e diversificada a sua criação
novelística.

Fonte: Antologia da Ficção Portuguesa Contemporânea. Org. Jacinto do Prado Coelho .


Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.

25
[ ANGÚSTIAS DO MUNDO ]

(De Apenas Uma Narrativa, 2.ª ed., pp. 93 a 95)

Só eu ficara abandonado o tempo todo, naquele lugar do Minho que era o único
que estava perto da minha pele. Arranjei cama de camarinhas junto à raiz duma árvore,
à espera do meu fim. E ainda não sei se chegou...
Sei que a Lua, certa noite, tomou um bruto pifão. Surgiu lá das bandas do mar
inchadíssima e encarnada. Custou mesmo a despegar-se da água e deixou-a, por um
tempo, cheia de malhas de sangue. Depois, andou aos tombos pelo ar e minguou.
Encarrapitou-se nas nuvens, jogou com elas às escondidas e, finda a correria, caiu de
cansada nas galhas dum espinheiro.
Teria ficado aí, lindíssima, se não fosse aquela moleza de queijo que a
enlanguescia. Assim, foi-se desfazendo numa pasta empalidecida e, devagar, entornou-
se sobre mim.
Sei lá desde quando eu dormia ali, a cabeça no tufo das camarinhas, embotados
os sentidos por aquele cheiro da erva fresca e da areia humedecida! Sei que com o
banho da Lua fiquei translúcido e molhado, bêbado e imponderável. Sei que me pegou o
vento e me entremeou nos ramos das roseiras, me fez dansar na copa das árvores,
rebolar nos telhados mais íngremes, descer como uma avalanche a encosta das colinas e
estatelar-me nas planícies, encher-me de pólen por causa do apetite das flores. Sei que
andei como uma bola de roleta no côncavo esférico do céu. Sei finalmente que, ao bater
numa estrela, me incendiei como um fogo de artifício.
Foi delicioso e saborosíssimo aquele crepitar de meus ossos que se haviam
tornado invisíveis, aquele estalejar das bolinhas da gordura, salpicando tudo, aquele
perfume de cabelos queimados como nas estrebarias onde foi o ferrador, aquela festa de
S. João na estratosfera! Só por causa de ter batido numa estrela!
A estrela era bonita e tinha os olhos saídos como os das moscas, olhos míopes e
inúteis na escuridão do céu.
Vieram-me então à memória todas as angústias do mundo – as inundações e as
guerras, o medo dos fantasmas e a maldade dos homens, aquele cheiro de arroto de
certas bocas que só comem o suor dos miseráveis, aquela tristeza de flor quebrada que
apodreceu num monturo, aquele pst das prostitutas, aquele sorriso dos clérigos, aquele
olhar para o único vestido que se rompeu, o frio e o ciúme, o tédio e a malária ao
recolher das áfricas, os hospitais, as cadeias, aquele somar números abstractos toda a
vida no emprego mal pago, aquele adormecer nos portais, aquele agradecer o favor
indispensável, aquele ser coveiro e polícia, os leprosos, as feias, os marrecas, os
generais, a morte... Ao fim fiquei como uma nuvem de cinzas.
Caí então de novo sobre a Terra. Caí como uma chuva suave. Confundiram-me
com o luar quando me espalhei no descampado alucinando os gatos, pintando as casas,
murchando as flores e apodrecendo o peixe... Por mim sei, no entanto, que são humanos
este gosto das surpresas e esta permanente tentação de dilúvio. Sei que viverei
eternamente embora não tenha nem intestinos nem fígado.

26
CARLOS EURICO DA COSTA

A CIDADE DE PALAGUIN

Na cidade de Palaguin
o dinheiro corrente era olhos de crianças.
Em todas as ruas havia um bordel
e uma multidão de prostitutas
frequentava aos grupos casas de chá.
havia dramas e histórias de era uma vez
havia hospitais repletos:
o pus escorria da porta para as valetas.
Havia janelas nunca abertas
e prisões descomunais sem portas.
havia gente de bem a vagabundear
com a barba crescida.
Havia cães enormes e famélicos
a devorar mortos insepultos e voantes.
Havia três agências funerárias
em todos os locais de turismo da cidade.
Havia gente a beber sofregamente
a água dos esgotos e das poças.
Havia um corpo de bombeiros
que lançava nas chamas gasolina.
Na cidade de Palaguin
havia crianças sem braços e desnudas
brincando em parques de pântanos e abismos.
Havia ardinas a anunciar
a falência do jornal que vendiam;
havia cinemas: o preço de entrada
era o sexo dum adolescente
(as mães cortavam o sexo dos filhos
para verem cinema).
Havia um trust bem organizado
para a exploração do homossexualismo.
Havia leiteiros que ao alvorecer
distribuíam sangue quente ao domicílio.
havia pobres a aceitar como esmola
sacos de ouro de trezentos e dois quilos.
E havia ricos pelos passeios
implorando misericórdia e chicotadas.
Na cidade de Palaguin
havia bêbados emborcando ácidos
retorcendo-se em espasmos na valeta.
havia gatos sedentos
a sugar leite nos seios das virgens.
Havia uma banda de música
que dava concertos com metralhadoras;
havia velhas suicidas
27
que se lançavam das paredes para o meio da multidão.
Havia balneários públicos
com duches de vitríolo – quente e frio
- a população banhava-se frequentes vezes.
Na cidade de Palaguin
havia Havia HAVIA...
Três vezes nove um milhão.

ALBERTO PIMENTA

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

PORCO TRÁGICO I

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta


não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros

o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também

BALADA DITIRÂMBICA DO PEQUENO E DO GRANDE FILHO-DA-


PUTA

I
o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,que não tenha
a sua própria grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem grandes
e
filhos-da-puta
28
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser o pequeno filho-da-puta.

todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

tudo o que é mau


para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.
29
é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.

(...)

ANTÓNIO JOSÉ FORTE

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

UMA FACA NOS DENTES

O MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS.


Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas
cicatrizes frescas todas as manhãs, nem estas palavras que envelhecem no curto espaço
de um dia. A noite recebe as nossas mãos como se fossem intrusas, como se o seu reino
não fosse pertença delas, invenção delas. Só a custo, perigosamente, os nossos sonhos
largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. A nossa miséria vive entre as
quatro paredes, cada vez mais apertadas, do nosso desespero. E essa miséria, ela sim
verdadeiramente nossa, não encontra maneira de estoirar as paredes. Emparedados, sem
possibilidade de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso amor, assim
vivemos. Procuramos a saída - a real, a única - e damos com a cabeça nas paredes. Há
então os que ganham a ira, os que perdem o amor.
Já não há tempo para confusões - a Revolução é um momento, o revolucionário
todos os momentos
Não se pode confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor.
Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à
liberdade. NÃO SE PODE CONFUNDIR! Quem ama a terra natal fica na terra natal;
quem gosta do folclore não vem para a cidade. Ser pobre não é condição para se ganhar
o céu ou o inferno. Não estar morto não quer forçosamente dizer que se esteja vivo,
como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. Há
mortos nas sepulturas

30
muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma
linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores.
A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a
amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para
com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua
comunicação esotérica.
Os profetas, os reformistas, os reaccionários, os progressistas arregalarão os
olhos e em seguida hão-de fechá-los de vergonha. Fechá-los como têm feito sempre,
afinal, e em seguida mergulharem nas suas profecias. Olharem para a parte inferior da
própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha. Abandonarem-se
desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima das
nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o amor e em seguida
fecharem os olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor.
(...)

EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU


MEU AMOR

minha aranha mágica agarrada ao meu peito


cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século

agora um alfinete na garganta deste pássaro


tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar

DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE


O TEU ÚLTIMO CABELO

RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM

Com o focinho entre dois olhos muito grandes


por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior latindo docemente a cada lua
31
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual


és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra

Um retrato do artista quando jovem é romance de estreia do escritor irlandês James


Joyce publicado em 1916. Semiautobiográfico, o livro conta o processo de transição do
jovem Stephen Dedalus para a maturidade e o autoconhecimento. Ele deseja
profundamente ser um artista, mas, primeiro, precisa vencer as forças que reprimem sua
imaginação - as convenções da Igreja Católica, da escola, da sociedade. Nesta obra,
Joyce apresenta o uso sistemático do monólogo interior - desde o primeiro capítulo
somos introduzidos na mente de Stephen Dedalus e convidados a acompanhar seus
pensamentos, reações e os processos psíquicos de sua consciência. Trata-se de um dos
primeiros exemplos da técnica narrativa do fluxo da consciência. Um retrato do artista
quando jovem reflete a profunda relação de amor e ódio que o autor manteve durante
toda a vida com sua terra natal, Dublin, e com a cultura que o formou.

ALEXANDRE O'NEILL

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos


vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo


à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira


onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
32
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo


em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo


à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces


esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira


da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante


que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

A MEU FAVOR

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
33
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça

POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo


pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo


fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
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(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais


países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos

beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo


tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo


quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL

A uma luz perigosa como água


De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos

(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da


provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)

Por isso fecho os olhos


E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher
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E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços

Experimento um grito
Contra o teu silêncio

Experimento um silêncio

Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos

Assobio às pequenas esperanças


Que vêm lamber-me os dedos

Perco-me no teu retrato


Horas seguidas

E ao trote do ciúme deito contas


Deito contas à vida.

PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos


o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,


perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,


o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,


já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

O BEIJO

Congresso de gaivotas neste céu


Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
QUrela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
36
Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha colorida,


Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,


De duas bocas que se juntam, loucas!
de inveja as gaivotas a gritar...

APROVEITANDO UMA ABERTA

«Ó virgens que passais ao sol-poente»


com esses filhos-família,
pensai, primeiro, na mobília,
que é mais prudente.

Sim, que essa qualidade,


tão bem reconstituída,
nem sempre, revirgens, há-de
proporcionar-vos a vida

que levais
Se um tolo nunca vem só,
quando não vem, não vem mais
ou vem, digamos por, por dó...

E o dó dói como um soco,


até mesmo quando parte
de um tolo que a vossa arte
promoveu de tolo a louco.

Eu quando digo mobília,


digo lar, digo família
e aquela espiada fresta,
aberta, patente, honesta,

retrato oval da virtude,


consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste.

Assim, sim, virgens sensatas!


(Nos telhados só as gatas...)
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Pensai antes na mobília,
honestas mães de família,
e aceitai respeitos mil
do vosso

Cotejar com ELEGIA, de António Nobre (Simbolismo)

ELEGIA

Ó virgens que passais, ao sol poente,


Pelas estradas ermas, a cantar:
Eu quero ouvir uma canção ardente
Que me recorde as afeições do lar.

Cantai-me, n´essa voz omnipotente,


O sol que tomba, aureolando o mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formosura, o luar!

Cantai, cantai as límpidas cantigas!


Das ruínas do meu lar desenterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho como um ai...


Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me n´essa voz... Cantai!

DEIXA

A tua mãe o marfim crucificado


ao teu pai o vício mais ronceiro
e a quem quiser
os lindos pentes da virtude

Frases célebres
todas
e não esqueças aquela
que diz assim

PAIS
que fazeis?
OS VOSSOS FILHOS
não são tostões
GASTAI-OS DEPRESSA!

Deixa também a ilusão de que te amaram


àquelas duas que ali não vês

Só no tempo em que os suicidas


como os animais falavam
valia a pena desiludir
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Deixa ainda
o que a álgebra mais secreta
decidiu a teu favor

A sombra que projectaste


talvez alguém a resolva
num diamante cruel

CÃO

Cão passageiro, cão estrito,


cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.

Cão marrado, preso por um fio de cheiro,


cão a esburgar o osso
essencial do dia-a-dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão prefabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!

Assista à representação portuguesa: “Cão-Alexandre O'Neill + Frágil Som (Ana Brandão &
João Paulo)” https://www.youtube.com/watch?v=kMT3e4YcEdU

MÁRIO HENRIQUE LEIRIA

Mário Henrique Leiria nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou por pouco tempo a
Escola de Belas Artes. Entre 1949 e 1951 participou nas actividades da movimentação
surrealista em Portugal. Teve vários empregos: marinha mercante, caixeiro de praça,
operário metalúrgico, construção civil. Viajou. Em 1961 foi para a América Latina onde
39
desenvolveu várias actividades, entre as quais a de encenador de teatro e de director
literário de uma editora. Voltou nove anos depois. Colaborou em várias revistas e
jornais nacionais.
Obras principais: A Afixação Proibida (manifesto surrealista de vários autores),
1949; Contos do Gin Tonic, 1973; Novos Contos do Gin, 1978;Imagem Devolvida,
1974.

Para saber mais sobre o poeta e o pintor:


http://www.biblioteca-nacional.pt/org/colecoes/reservados/acpc/leiria.html
Para ler: Mais Contos do Gin Tonic:
http://www2.dem.ist.utl.pt/~jsantos/Literature/Mario_p.html
Poema musicado e cantado por Fausto:
http://shiva.di.uminho.pt/~jj/musica/html/fausto-flober.html

POEMA-COLAGEM

A VIAGEM, ENFIM – conto


Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/contomes/07/texto.html

Isto de ter sempre o mesmo sonho todas as noites torna-se aborrecido.


Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família «vamos lá fazer essa viagem».
Primeiro entravam a mulher e as duas crianças, depois os pais, ele instalava-se ao
volante e pronto, não havia lugar para os sogros! Era sempre a mesma coisa. Por mais
que empurrassem, não conseguiam metê-los lá dentro.
Acordava a suar, empurrando ainda qualquer coisa que não estava lá.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites. É verdade que empurrava menos, talvez os
calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar os sogros no
carro alucinante.
Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam
velhos para viagens.
Os pais prontificaram-se a ceder os lugares deles.
40
Toda a família colaborava, mas o sonho continuava.
Chegou a fazer experiências, a meter a família completa no velho Citroën arrastadeira. E
conseguia, lá se metiam todos, mais ou menos apertados mas entravam. Mas no sonho não.
A coisa tornava-se desesperante.
- Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso – insistia a
mulher, já arreliada, e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas e frustradas em
que ele se envolvia sem culpa.
O Mora era amigo de infância, nem sequer permitia que ele pagasse, era extraordinário!
Às vezes até ia lá jantar. E respondeu à mulher:
- Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão menina.
Contou tudo. O Mora mandou-lhe contar mais, o passado continua sempre oculto, ao que
disse. Deitado, contou-lhe o que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer
coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro.
Agradeceu e convidou o Mora para jantar no sábado. O Mora não podia e deu-lhe uma
palmada nas costas.
Chegou a casa aliviado e esclareceu a Xuxa:
- Vou derivar, menina.
- Derivar?
Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa.
(...)
À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes.
Tudo voltou à normalidade, os sogros deixaram de se preocupar com a viagem, as crianças
entusiasmaram-se com os estoiros da moto. E o carro na garagem.
E, de repente, tornou a sonhar. O sonho.
Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família «vamos lá fazer essa viagem». A
mulher e as crianças entraram, depois os pais, e ele instalou-se ao volante. E não havia
lugar para os sogros! Começaram a empurrar para os meter lá dentro, e nada. Então virou-
se para a garagem. Estava um pouco diferente mas a moto continuava lá dentro. Deixou
tudo, montou a moto, pôs o chapéu de palha e avançou pela estrada. Uma estrada larga,
muito aberta a tudo. Pareceu-lhe já a ter visto alguma vez. Olhou para trás e lá ao longe, à
porta da casa, continuavam a empurrar-lhe os sogros. Acenou uma despedida, acelerou e
continuou, olhando árvores e nuvens. Ainda não voltou.

(In Contos do Gin-Tonic, pp. 117-119)

CEGARREGA PARA CRIANÇAS

A Velha dormindo o rato roendo


a Velha zumbindo o rato correndo
a Velha rosnando o rato rapando
a Velha acordando o rato calando
a Velha em sentido o rato escondido
a Velha marchando o rato mirando
a Velha dizendo o rato escutando
a Velha ordenando o rato fazendo
a Velha correndo o rato fugindo
a Velha caindo o rato parando
a Velha olhando o rato esperando
a Velha tremendo o rato avançando
a Velha gritando o rato comendo

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TELEFONEMA
Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa. Foi então que deu pelo
facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias. Por vezes as perguntas estúpidas
são de extrema utilidade.

ÚLTIMA TENTAÇÃO
E então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção.
Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida. Ficaram os dois numa
desesperante frustração. Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais
chato!

RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera estava na cama deitada muito calada a ver o que acontecia
chegou a Velha e disse olha uma nêspera e zás comeu-a
é o que acontece às nêsperas que ficam deitadas caladas a esperar o que acontece.

TORAH
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a
Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça
ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se
não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à
espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não
quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.

HERBERTO HÉLDER

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra


e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.


Uma mulher com quem beber e morrer.
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Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.


E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina


e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro


pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte

*
Nem sempre me incendeia o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,


tua boca penetra a minha voz como a espada
43
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura,
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,


a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza partida,
os ombros violados,
o sangue penetrado de paredes nuas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
se transfiguram, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo –
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti


que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma


o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta


44
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
por teu poder angélico e fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,


eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,


é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,


onde a beleza que transportas como um peso árduos
e quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.

- Para consagração da noite erguerei um violino,


beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria dos instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura


com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
45
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa gratidão.

Felizmente estás na pedra e a pedra em mim, ó urna


salina, imagem fechada em sua pungência e castidade.
E o que se perde em ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite,
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de angústia e prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade


inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento


na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisse
sem minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.


Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida.
As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim o instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
46
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo,
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso deserto, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto,
- no amor mais impossível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz


o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Corre em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo do meu ardente pensamento.
Onde estará o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E eu peço ao vento: traz do espaço a luz inocente


das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Ó amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,


o povo renasce,
o tempo ganha alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se


entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
47
contra o ar. Tua voz encanta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

FONTE

II

No sorriso louco das mães batem as leves


gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e
apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas

DIA ORDENA OS CÂNTAROS UM A UM EM FILAS VIVAS

O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas.


A noite cerra-lhes os corações que sorviam
o caos
pelas aortas
de argila. Flancos contra flancos.
O tempo só existe por estes corpos selados.
E o azeite repousa. O vinho ensombra-se.
O mel amadurece com a voltagem de uma jóia
onde mergulha a lua.
Se alguém se fecha com a noite por cima.
Estou cheio desta noite, deste sono, desta riqueza
côncava,
48
arrefecida.
Ordena a luz o que o escuro tranca, o sonho
atado ao sono numa imagem concêntrica
radiando
dentro. A imagem diurna ordena
em filas que respiram as palavras
profundas, as crateras,
os cântaros
- profundamente.
As palavras encostadas ao papel. E o barro
suspira. O peso dessa
vida insondável: vinho,
azeite, mel – o caos que se transforma em número.
A imagem multiplica a consciência.
A jóia sazonada contra a morte.
Uma a uma, as coisas do mundo, as noites desarrumadas,
as mãos que as arrumam
entre chama e sono, as bilhas uma a uma do tesouro,
uma a uma
as palavras contra o papel profundo que suspira
- bilhas profundas na casa mais profunda
ainda.

OS ANIMAIS CARNÍVOROS

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz – difundia
uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si
mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera
um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada,
descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa
na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo
muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do
louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para
isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma
plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar
imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as
suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

EQUAÇÃO
(De Os Passos em Volta, pp. 115 a 118)

Através do amarelo antigo e da sua psicológica tradução em tempo – um


sentimento, uma noção doce e alarmante – a Velha Avó, nas circunstâncias um corpo
jovem subtilmente inclinado para a frente como se preocupado com a própria força, a
Velha Avó jovem sai das esquadrias que a delimitaram, e irrompe para além desse seu
exaltado verão. Bate-me em cheio. Bate em mim, junto à cama, em mim que assisto a
um tempo bem presente, à terrível demonstração desse corpo que continuou o

49
movimento. Para diante, para diante. Rompendo as ficções do estatismo, o mito
incomportável das fotografias.
– Avó...
Ela está na sua cama de madeira escura, uma avó que levanta um minúsculo
volume de colcha branca lavrada; e do pescoço para cima, uma avó cor de limão, cor de
azeitona. Uma avó de dois braços pela colcha branca abaixo, e as mãos saindo das
mangas claras e amarrotadas do casaquinho de lã. Mãos cor de azeitona, duras, imóveis.
Vamos: podres. Duas mãos podres. E tudo isto – que é o pouco do presente, com um
significado de súbito espantoso na minha própria carne – está no meio da penumbra do
quarto, enquanto lá fora o mês quente se desenvolve, atormentado pela sua grande
felicidade vital, mês feroz com a sua atmosfera de impiedade luminosa. É fascinante
para mim poder dar alguns passos leves entre a fotografia (sobre a cómoda) e a enorme
cama negra – eu que compreendo alguma coisa (e com que abalo!), procurando sorrir
quando a Velha Avó levanta as pálpebras e me fixa não sei entre que hesitações de
torpor e vigilância. Sorriso sem experiência, o meu. Porque não sei bem como está aqui
essa fotografia e este corpo. E não sei, do mesmo modo, quase nada acerca do corpo das
pessoas, acerca do seu tempo ou dos seus tempos, da sua verdade ou verdades. E depois,
como se o sorriso, com a sua inépcia, não fosse bastante sinal da minha confusão, eu
digo, numa voz ainda mais inexperiente:
– Avó...
E a Avó mexe ligeirissimamente a mão direita e fecha os olhos. Então fico só,
porque a fotografia recua para uma região secreta e a Avó cor de azeitona vai
avançando como só ela sabe e a minha inexperiência não pode pretender acompanhar –
para uma situação inacessível.
Colocai agora uma desordenada massa cinzenta e frouxa sobre a cabeça e tereis
algo ainda mais difícil. Um sabor adocicado arrefece-me na língua, porque o horror
(suponho que seja horror) é frio e adocicado. Cabelo horrível, coroa da enorme, da
excessiva experiência. Em que sítio se encontra este ser, ele, de que para fora chegam
tais indicativos monstruosos? O ser do retrato, esplêndido na teoria insólita da sua
juventude, preso mas forte no seu melhor momento?
Existe um ser assim? Ou o que há é simplesmente um bolbo profundo,
estendendo as suas raízes, com terrifica placidez, no fundo, no fundo, onde não
permanece nenhum brilho, bolbo frio e paciente trabalhando no completo silêncio sem
passado, bolbo absolutamente eterno numa carne absolutamente actual?
– Avó... – E a mão direita estremece sobre a minha louca atenção. – Quer que
chame o padre?
É que eu fora encarregado pela família de conduzi-la, utilizando a preferência
que a Avó me dava, à ideia de que a morte poderia ter começado um hipotético passo
entre a terra e a feliz eternidade. O sacerdote viria fornecer a essa palavra feliz uma mais
radical convicção e carregá-la dos sentidos da ilimitação que desaguam na outra palavra
eternidade.
A Avó sempre fora católica e praticara com assiduidade os ritos. Com que
distracção, ou velozes intenções, acertado ou desviado interesse – não sei, eu que não
sei nada das pessoas, mesmo que alguma coisa julgue conhecer dos valores.
E então repeti o apelo, imaginando que as paredes entre mim e a moribunda
eram as paredes que as vozes talvez possam atravessar e que, por detrás delas, uma
atenção espera precisamente ser reconduzida pelas vozes exteriores, mesmo as vozes
ineptas de um jovem colocado entre confusões ou mistérios, se é que servem estas

50
palavras para designar maciços pedregulhos dentro de um quarto, dentro do encontro de
tempos, pessoas, coisas, pensamentos.
Repeti: – Avó – e a mão agitou-se, sem que eu soubesse o que poderia isso
significar quanto à eficácia das vozes e à existência dessa tal atenção que se
reconduziria, etc. – Quer que chame um padre?
Sim, decerto: já expliquei tudo. Ela frequentava o culto, mandava celebrar
missas pelos seus mortos, confessava-se e comungava. Já disse: com que distracção,
intenções, etc., etc. Bem: vejo-me assim a servir os poderes que ignoro, a realidade que
ignoro, a ficção, as ficções que ignoro. Papel próprio para a juventude. E agora há mais
forças. Estou cercado por forças de que mal vislumbro a capacidade e natureza. Cada
vez mais forças, porque estou diante da idade e ela chama novos poderes, sombrios
poderes, sombrios enigmas. E, depois, com a ideia de que lá fora a estação é de alto
esplendor, inteira falta de pensamento, exaltada inexperiência – fico ainda mais inepto.
A Avó abre os olhos e eu vejo uma nova luz áspera e gelada – a inteligência,
algo que de repente recompõe todo o corpo e traz agora o retrato para o centro do
tempo, tornando-o movimentado e audaz durante um segundo. Sobre esse olhar
progride agudamente um sorriso que limpa a velhice e deixa o sal de uma malícia
madura. Os lábios secos perturbam-se e crescem devagar, e a garganta palpita. É um
corpo que cresce sobre o seu próprio esgotamento, e a Avó diz:
– É tudo mentira...
Depois as pálpebras caem, e todo o corpo é absorvido pelo enigma. As paredes
levantam-se, o retrato recua, a minha juventude fica sem armas – brilhante e estúpida.
Assim é, porventura, a sabedoria: vil, esmagadora. O único lugar que lhe
pertence deve ser a idade, mas quando dela se aproxima um jovem fascinado que a si
próprio impôs o estado de mensageiro, como se quisesse tocar o gelo, convencido, ele!,
de que o calor dos poucos anos poderá fundir o gelo, então o gelo absorve a idiota mão
quente, e queima-a.
A Avó morreu nesse mesmo dia.

O QUARTO
(De Os Passos em Volta, 1963)

Ele pareceu não entender a minha alusão. Voltou para mim o rosto irónico e
perguntou: – A que se referia?
– À morte – respondi eu.
– Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a
pensar no mesmo.
– Pensamos todos no mesmo, a partir de certa altura.
– Talvez – murmurou, e a sua voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos
da mesma maneira. Sabe que sou forte? É por isso que penso nela. Detesto a fraqueza
que se remedeia na imaginação do fim. Não creio em nada. Não desejo crer seja no que
for.
– Pensa que vai morrer quando quiser?
Ele olhou-me em cheio e sorriu. Tinha a cabeça viva e nobre de um homem
antigo. Parecia saber muito, e realmente em nada devia acreditar. Notava-se-lho no
olhar, que era culto e virilmente triste.
– É isso. Eu preparo a minha morte. Um verdadeiro homem tem direitos e
deveres em relação à sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
– Sim, já mo disse.
51
– Conhece o sítio? – E as palavras aludiam a todo um mundo de significações.
No entanto, a voz era imperturbável. Este homem morreria dentro da sua morte.
– Conheço. Fica na outra costa da Ilha. Atrás, há a montanha sem árvores.
Pedras e urzes. Pavoroso. Em frente, o mar. O mar lá é bravio.
– É água cinzenta e branca. Por detrás, a grande montanha onde só andam
cabras. Mas na planície, ao lado direito, existem muitas árvores onde o vento do mar
vem bater. De noite, aquilo vibra e uiva. E, no outro lado, estende-se a terra arenosa.
Quando há tempestade, é de uma beleza diabólica. Bom para nos sentirmos sós e saber
se ainda há em nós o orgulho do medo.
– Compreendo que construa aí a sua casa.
– Construo a casa muito devagar. É a minha última tarefa. Obrigo os operários a
trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou
tão cara uma casa de um só piso. Quando ficar pronta, já nada mais terei a fazer. Seria
horrível procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. Isto é de sangue. Meu avô
correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai foi voluntário para a
guerra, depois de me ter gerado, e lá morreu. Tudo homens que fizeram uma tarefa e
nela puseram a significação da vida. E deram-se por cumpridos, regressando ou
morrendo. Não é sabedoria? Não quero ser fútil. É o único pecado do espírito. Ponho
toda a minha força religiosa na razão da vida, que é dada pela oportunidade e qualidade
da morte.
Riu.
– Sabe que sou um homem religioso?
– No entanto...
– Claro, não acredito em nada do que diz respeito a isso... a essas coisas... da
imortalidade da alma... da existência de Deus... no bem e no mal... na caridade e
piedade... Detesto essas crenças e virtudes da baixa religiosidade. O meu pensamento
religioso é de outra ordem...
– Talvez creia – disse eu – na necessidade de manter incorruptível o sentimento
da vida. Talvez também o dever da morte...
– Quer exprimi-lo assim? – Vejo as suas mãos fazerem um gesto subtil e
inacabado de irónica concepção. – Talvez seja quase isso... Aos vinte e cinco anos fui
viajar. Percorri a Europa, a América do Sul, África. Estive na Austrália, no Japão. Vivi
alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem
países. O homem é estúpido. E precisa de ser amado e amar. É um ser repugnante. Hoje
sei amá-lo, assim repugnante. Aos quarenta anos deixei de viajar. Fiquei em Paris. Aos
quarenta e cinco fixei-me em Lisboa. Cinco anos mais tarde, vim para a Ilha. E os
círculos foram-se apertando cada vez mais. Hoje não saio deste café e do hotel, quando
não estou a seguir o andamento das obras. Daqui a algum tempo, mudo-me para a casa.
Depois... Compreende o que digo, quando falo do meu espírito religioso?
– Sim, parece-me que sim...
– A casa tem três quartos, além de cozinha, casa de banho e despensas. Um é o
quarto de dormir; o outro, a sala de jantar; e o terceiro... Não adivinha?... Não, não pode
adivinhar...
– Noutras circunstâncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca...
– Noutras circunstâncias. Agora não leio. Vou morrer. Ouça: a casa é toda
assoalhada. As casas são naturalmente assoalhadas, não é assim?
– Claro.
– Sim, mas esse quarto não é assoalhado.
– Mais um espanto para o capataz – disse eu, sorrindo.
52
– E para si também.
– Também para mim. Porque não assoalha esse quarto?
– Durante um ano ou dois vou viver naquela montanha, na mata, na terra arenosa
em frente do mar. Vou entrar e sair da casa e passear por esses lugares todos. Em
seguida sentirei que não devo sair mais, e ficarei em casa, andando de um quarto para
outro.
– No quarto sem soalho, também?
Não respondeu.
– Lembra-se de eu lhe ter falado no vento marítimo a bater nos pinheiros? E na
alta montanha intransitável, por detrás da casa?
– Lembro-me. Eu conheço também o sítio, como lhe disse.
– O barulho do mar e do vento. A ideia da montanha impraticável. A terra
arenosa por ali adiante. E a solidão. E, sobretudo, saber que já não pode haver qualquer
espécie de medo. Então fecharei todas as portas da casa, a porta para fora e as portas dos
quartos entre si. Ficarei no quarto sem soalho e deitar-me-ei no chão. Hei-de ouvir o
mar e o vento, e hei-de saber que a montanha está atrás de mim, poderosa e só. Poderei
ouvir também o sussurro da terra húmida debaixo do meu corpo. Encostarei a cara a
essa terra profundíssima. Até que morrerei.

LUÍZA NETO JORGE

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

MINIBIOGRAFIA

Não me quero com o tempo nem com a moda


Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço


Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda

E se nave vier do fundo espaço


Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:


Meia palavra a bom entendedor.

A CASA DO MUNDO

Aquilo que às vezes parece


um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
53
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante


arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.


O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.


Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval


é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.

AS SOFRIDAS AMORAS

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos

Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.

JORGE DE SENA

Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa

UMA SEPULTURA EM LONDRES

No frio e no nevoeiro de Londres


numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas

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modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping,
de Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. - Eu quero ver publicadas
as suas obras completas - diz-lhe o discípulo.
- Também eu - responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura – Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e reescritas! Como
Não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite - creiam - a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu - ó Spartacus –
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião de amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.

Que mais precisamos de saber?

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ANTÓNIO MARIA LISBOA

RECUSA

I
É muito possível durante os primeiros meses
uma importante viagem à Asia – essa
é uma das consequências
secretas
em que não se tomaram quaisquer resoluções finais
e ambas chegaram igualmente

II
ainda um céu marinho de agonia onde eu
sou um copo de aguardente francesa e tu
uma gaivota que passa rente ao barco que me leva

III
- Eu sou uma coisa qualquer
Eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer

EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER


- eu sou uma cidade
- eu sou ZANONI de Bulwer Lyton
- eu sou uma errata
- onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
- onde está Deus deve-se ver o Diabo
- onde está o Amor deve estar o Grande Amor Mágico
Amor Meu
- onde estou Eu deves estar Tu
- onde estão os lábios da nossa vida HÁ uma porta
secreta minúscula

O-AMOR
MEU AMOR

FERNANDO ALVES DOS SANTOS

DOIS POEMAS DA TRANQUILIDADE

I
Deve haver uma maneira tranquila
uma tranquilidade
uma certeza.
Deve haver uma febre
uma febre que seja, quando menos,
56
que nos dê olhos para ler tudo.
Depois dizem que há uma salvação...
Da minha infância
não guardo agora senão o chão que piso
e esse não chega.
Talvez a minha face
o meu vulto
a sombra
possam servir de algo.
Mas não.
Assim sem alegria
arrefecido, antigo
como posso comover-me
arder exausto
ou beijar o ar
o ar simplesmente
enleado!

II
Porque não posso senão trazer esta humildade
como posso dar-me ou pedir-me
se me pedem e me dão
dizendo fazê-lo por uma esperança.
Mas eu vejo
o que a morte me tem sido para que veja
e não respondo ao que imagino
porque sei que só posso desejar o que desejo

MARCELINO VESPEIRA

MANEQUIM VISADO

Ter fomes polidas


de desejos vadios
e mapas sensatos
de aventuras falidas
E ter um sorriso morno
de manequim visado...

HOJE

O dia não foi meu


e tantos outros que o não são
erro no calendário
ou voluntária distracção
E os dias que foram meus
gestos de outros são
que se dão a quem os quer
nos dias que o não são
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E da pressa de os perder
do cansaço de os contar
ganho vícios da noite
que me sabem perdurar
Rir com riso
rir sem riso
riso do riso
rir de tudo
riso do nada
rir por todos
riso de medo
rir sem medo
rir ainda com medo
riso de perder o medo
rir para ter medo
riso do medo de rir
riso sem o medo do riso
rir do riso com medo
riso do rir de medo
rir e morrer
riso de morte
morte do riso

PEDRO OOM

ACTUAÇÃO ESCRITA

Pode-se escrever
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem se saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
Pode-se não escreve

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AS VIRTUDES DIALOGAIS

Dentro
de mim
há uma planta
que cresce
alegremente
que diz
bom dia
quando nos amamos
ao entardecer
e boa noite
quando florimos
à alvorada
uma árvore
que não está com o tempo
este tempo
a que chamamos
nosso.

Virtudes Teologais são as virtudes que nos ligam diretamente a Deus. São três
fundamentais: a fé, a esperança e a caridade. O Catecismo da Igreja Católica ensina que:
1812 – As virtudes humanas se fundam nas virtudes teologais, que adaptam as
faculdades do homem para participarem da natureza divina. Pois as virtudes teologais se
referem diretamente a Deus. Dispõem os cristãos a viver em relação com a Santíssima
Trindade e têm a Deus Uno e Trino por origem, motivos e objeto.
1813 – As virtudes teologais fundamentam, animam a caracterizam o agir moral do
cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na
alma dos fiéis para serem capazes de agir como seus filhos e merecer a vida eterna. São
o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano.

IDADE SEM RAZÃO

Os animais
cuja vivência
são as visitas
que todos temos feito
a girafa
ou o crocodilo
bastam
para romper
a fascinação
idade cartesiana
tanto do direito
como
do avesso

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RUBEN A.

Ruben Alfredo Andresen Leitão dividiu-se entre a literatura – diário, autobiografia,


romance, conto, teatro –, onde adoptou o nome abreviado de Ruben A., e a pesquisa
historiográfica em torno de D. Pedro V e a sua época.
Nas Páginas, que começou a publicar em 1949 e que se alongaram por mais
cinco volumes (1950, 1956, 1960, 1967 e 1970), descobriu José-Augusto França «um
sentido psicológico muito fino» que conduz a análise crítica «até planos duma
sinceridade irreverentes, atravessada por um «humor perturbante». A original
personalidade que deste modo se afirmava espraia-se, progressivamente amadurecida,
em Caranguejo (1954), romance de duas personagens, Ele e Ela, que vai recuando
desde a estagnação do actual até aos «preparativos para a “Criação”; e depois em Cores,
contos (1960); Um Adeus aos Deuses, impressões duma viagem à Grécia (1963); Júlia,
peça em dois actos (1963); O Mundo à Minha Procura, autobiografia em três volumes
(1964, 1966 e 1968); A Torre da Barbela, romance (1964, 3.ª ed. 1966); O Outro que
Era Eu, novela (1966); Silêncio para 4, romance (1973). Inédito e inacabado, outro
romance ainda, Kaos. Espírito aberto, europeu, libérrimo, Ruben A. explora com delicia
os meandros do mundo subjectivo, o que é e o que foi, mas integra-se, como
personagem-fulcro, na sociedade portuguesa, concretamente a do salazarismo, com que
está em conflito. A Torre da Barbela, sua obra mais densa, complexa e trabalhada,
«única na literatura portuguesa» (no julgar de Palla e Carmo), surge na confluência
duma experiência concreta, que vincula afectivamente o A. às terras e tradições de
Entre-Douro-e-Minho, duma reflexão sobre Portugal no presente e numa perspectiva
histórica e, enfim, do caudal duma fantasia desconcertante, louca, estimulada pelo
surrealismo, a um tempo lúdica e ao serviço dum pensamento que se exprime pela
alegoria – fantasia cuja criatividade se manifesta, já na efabulação, já num estilo muito
pessoal, cheio de verve, de surpreendentes associações, de saborosos neologismos, e,
por vezes, de encanto evocativo. Na Torre de Barbela se desenrolam as cenas nocturnas
em que os mortos de várias épocas, algumas remotas, dialogam com os vivos, sendo
assim que se retratam ao vivo a mitologia e a mentalidade nacionais, um Portugal
provinciano, marginalizado, reino dos medíocres.

Fonte: Antologia da Ficção Portuguesa Contemporânea. Org. Jacinto do Prado Coelho .


Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.

[ O MUNDO DA BARBELA ]

(De A Torre da Barbela, 3.ª ed., pp. 33 a 37)

Ao fundo a Torre elevava-se no real. Vista do Jardim dos Buxos sobressaía


ainda mais. A brisa corria pelas folhas vacilantes dos plátanos. O mundo da Barbela
comprazia-se em contar as suas fábulas de interesse sempre constante.
Aquele recorte triangular irrompendo pelo céu, no contraste da pedra carcomida
por um misto de líquenes vermelho-escuro, permanecia altivo como a História. Parecia
que o vento procurava lá a sua direcção e que da Torre nasciam as origens do
movimento do ar. Então, quando o céu se escolhia em azul, o milagre operava-se
placidamente. Pássaros recolhiam aos altos da Torre amortecendo as asas num descair
vagaroso, bem desenhado. Um ritmo desapaixonado embranquecia as fileiras de nuvens
que em sentinela tomavam conta da rosa-dos-ventos. Aquela projecção da Torre no

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espaço era a sua grandeza. Mesmo São Cyro, lendo o breviário, subia o olhar para a
Torre e persignava-se por respeito do Além. E quando tocavam as Trindades todos se
vinculavam à sua altura. Fora em torno da Torre que a família construíra poder, segura
união. Tragédias ou momentos de vitória, estampados, invisíveis, permaneciam em
respeito gravados nas pedras seculares da Barbela.
D. Mafalda entretinha-se a ver passar Frei Cyro que, na intimidade de certo ar
bonacheirão, cochichava de soslaio com D. Mendo. Ouvia. Decerto seriam os últimos
pecados. Coisa triste, pecar – parecia dizer com a cabeça Frei Cyro ao esticar o ouvido
para a confissão mais íntima de D. Mendo.
– Passou-se assim? De certeza?
– Oh, meu Deus, eu até jurava que foi diante dos meus olhos.
– E quantas vezes?
– Ó primo, isso é mais difícil de responder. A gente distrai-se... Eu cá na
consciência às vezes sinto uns calafrios de meter medo, mas depois passam. Não sei
explicar. Fico embaraçado e deito às de vila-diogo. Sabe, isto de ser cristão e filho de
Deus também tem os seus quês. Não andamos bem à solta, atravessa-nos um solstício
na alma que nos põe a latejar os sentidos. Olhe, eu, pelo sim, pelo não, se um dia peco,
no outro guardo abstinência. E à confissão é só com o Abade da Moutosa, que está meio
surdo...
– Ah, meu maganão! Tenho que te apanhar na sacristia a confessar apuradinho,
com as histórias de Viana e a festa em casa dos da Beringela. Disseram-me que
assaltaste o fumeiro e com um naipe de amigos aproveitaste as enguias do século XVIII
para um merendeiro. Ah, malvado, que andas fora das graças de Deus! Às enguias como
os garotos aos ninhos! Vai rezando, mas não me andes a arreliar os mortos. Já me
bastam os vivos para viver embaraçado.
– Frei Cyro, mas... não tem mal o que eu faço sem o ter na ideia?
– Pois não. Mas depois é que é pior, vem só a maldade e lá ficou a ideia perdida.
Distrai-te um pouco. Fala com o primo Dr. Ramiro, com D. Mafalda, com o Cavaleiro
ou mesmo com D. Raymundo, nosso fundador e ajudador-mor destas bandas. E quando
quiseres sangrar a consciência vem cá ao Jardim: mesmo a conversarmos no passeio eu
te absolvo. Todos gostam tanto de ti, vejo que passas bem o tempo sem te aborrecer.
Repara nas distracções que aqui temos, de todos os séculos e para todas as idades.
Brinca com o menino Sancho, que está para ali abandonado. Dizem-me que é com
saudades de Mademoiselle Madeleine, mas não acredito. Baboseiras de criança. Há
tanta coisa na vida que traz felicidade e tu para aí a pecar só por ripanço! Sabes que
também há prazer quando se não peca?! Eu antes de me ordenar andei às bolandas de
pasmar a Santa Madre Igreja. Depois, um dia... oh, eu nem conto! Isto de dar
atabalhoadamente o nosso íntimo... até parece que te quero converter à Ordem. Olha
que não. O que eu quero é que tu temperes o pecado com as boas acções, e assim,
quanto melhores e maiores boas acções praticares, menos pecas. Vai lá com Deus e a
minha bênção que tenho de me preparar nas orações e ler o breviário. Não é indigesto,
não. Não estejas a olhar para mim com ar enjoado. Faz bem falar com quem não se fala
todos os dias.
Dom Mendo, enfiado, não tugia nem mugia. Olhava para Frei Cyro como quem
olha para alguém que possui o privilégio de ser visitado por um ente estranho e fora do
alcance das imaginações. Nem mesmo ao passar por D. Mafalda reparou na cara que ela
fazia ao ouvir «demos mais mil contos para o estádio do Limense».
Realmente aquilo de pecar era o diabo. Já ia sendo tempo de ter juízo. Se o
Abade da Moutosa fosse mais exigente, ele já se teria emendado. Mas era tão boa
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pessoa. – «Sim, sim, meu filho, e foi com a... ah sim sim meu filho! Vê lá o que fazes.
Sim, reza a Cristo para te perdoar e à Senhora Milagrosa da Aparecida uma dúzia de
Salve-Rainhas. De joelhos! Nada de rezas como da última vez! Quero uma penitência
bem dita e com fervor. Vá, reza comigo: «Confiteor... Com Deus, menino!»
D. Mendo bem se queria escapar destes estilhaços de consciência que Frey Cyro
atirava ao ar cortando a brisa dos encantos pagãos. De nada lhe valia. Era lá dentro um
tremor que o assustava. E porque é que um fidalgo dos quatro costados, de linhagem
limpa, com direito a Dom por extenso, de varonia antiga, tendo no passado uma
Beringela por fêmea, morgado de senhorio de vários concelhos, alferes-mor do
condado, etc., etc., não podia usufruir de bula própria para perdoar pecados? Mal ia o
mundo cristão! Assim não havia jeito! Precisava de ter uma dispensa!
– Pensa bem e vai lá com os teus botões. Na próxima vez quero-te são como a
uva em tempo de São Miguel. E não te esqueças da confissãozinha, senão eu falo ao
Abade da Moutosa.
– Ele já me conhece os fracos...
– Ah, meu malandro! Anda-me lá com essas conversas que eu dou-te! Chego-te
mesmo – «e mais quatrocentos contos só na montagem de um periscópio na costa de
Sesimbra». – Daqui a uns dias volta.
– Primo Cyro, deixe-me agradecer-lhe as suas palavras e pedir-lhe a bênção –
«cinquenta mil contos para a modernização dos transportes a sul do Tejo. Uma verdade
insofismável, a juntar ao reforço de verba de vinte mil contos só para as estruturas». –
Então até logo!
– Até logo.
De um lado para o outro todos se entusiasmavam no Jardim dos Buxos. Era uma
alegria ver a família a jogar, a ler, a brincar, a beber, a falar, a passear, a cantar, a
representar, a folgar (a fazer tudo o que é agradável fazer depois da morte e que durante
a vida nunca houve tempo). Os mortos divertiam-se. D. Raymundo entretinha-se a ditar
ao escudeiro uns poemas de Martin Codax que lhe haviam mandado da Galiza:
Ondas do mar de Vigo,
se viste meu amigo!
– É bonito, sim senhor! Gosto destes versos simples que atravessam a história
cantando um lirismo tranquilo e saudoso. Recebo tantos destes poemas que às vezes é-
me difícil guardar cópia para a biblioteca da Barbela. Já há poucos escribas e o
pergaminho é cada vez mais raro. Entretenho-me com os cancioneiros.
D. Gil, leia-me a de um tal Soares de Tabeirós e aquela do primo D. Dinis que
começa:
Ai flores, ai, flores do verde piño
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
– A prima Mafalda não faz ideia do que se conseguiu no capítulo dos trifásicos,
nem na tecnologia aplicada. Mais de cinco mil contos só em aparelhagem de rastreio.
Então o novo projecto da ponte sobre o rio Lima em que se prevê a demolição
sistemática das árvores não enquadráveis no plano urbanístico. É uma obra audaciosa
com um arco de um só lanço iluminado a néon. Uma verdadeira vitória dos pré
esforçados!
– Sim, no moderno português piño é pino, pinheiro, e u é quer dizer onde está.
– Ai, sim, Gil? Não sabia. Como evoluem os dizeres!
De um lado ao outro, o Jardim dos Buxos fantasiava-se para distrair os
momentos noctâmbulos dos componentes do mundo da Barbela. Um vaivém contínuo
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de balbúrdia apaziguada saltava imprevistamente aos olhos e aos ouvidos dos presentes.
Barracas, com ornamentos artísticos de todos os séculos, coloriam a visão pelo garrido
das lonas. A um lado, uma exposição de flores; mais além, um aquário de transparências
remexidas pelo abanar caudal de peixes dormentes; no centro, um estrado para bailados
e música. Na natureza respirava-se uma apoteose que só a morte nocturna pode
comunicar – as coisas, os bancos e os livros misturavam-se de barraca em barraca e de
sentimento em sentimento.
Atravessava o mediano buxo um cheiro crespuscular que atraia a sonhos os
passos mais esquecidos e imperceptíveis dos vivos. Um feixe de alegria cantava-se no ar
e todos captavam, através de ondas cerebrais próprias da sua situação, os
acontecimentos e as músicas que nas diferentes partes do mundo àquela hora se
vinculavam aos ouvidos. Junto à Torre, aquele Jardim servia de pátria aos que
chegavam – era o primeiro contacto público com os membros passados da família.
O fim de tarde depositava-os ali e só os alvores do amanhecer extinguiam tão
fantástica quermesse. Dava a impressão de que até os novos satélites e outros planetas
mais em voga com as descobertas modernas espirravam de vez em quando colorações
desconhecidas. E na calma, sem se embrenharem bem na transcendência do acto que
normalmente praticavam, os Barbelas ali viviam, conversavam e morriam. Nunca
ninguém conseguiu penetrar em todos os recantos do Jardim, em todos os seus
meandros de entretenimento e de estudo, pois a biblioteca da Barbela, em parte patente
nos Buxos, parecia prolongar-se por fileiras intermináveis de fundo. Se uns passeavam
em direcção ao banco das roseiras e outros caminhavam silenciosos pelas veredas
menos comuns, conversar e sentir resumia o passatempo ideal dos mortos. E nesse
convívio adivinhava-se como que uma revisão geral do mundo prematuramente
acabado. O Menino Sancho, para ali a brincar na inconsciência do divertimento,
respirava a fidalguia atenta dos primos; precoce como todos os idealistas, imaginava
amores distribuídos em barda pelas fêmeas da Barbela.

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