Surrealismo Textos Selecionados
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Literatura
Apollinaire aparece com o designativo Surrealismo (ou Sobrerrealismo) em
1917 no prefácio do seu drama Les Mamelles de Tirésias, André Breton aplica-o,
quando quer referir «um certo automatismo psíquico que corresponde bastante bem ao
estado de sonho». Breton remonta a origem filosófica e literária do movimento aos
séculos XVIII e XIX e fala em Hugo, Hegel, Nerval, Baudelaire; mas Rimbaud,
Apollinaire, Tzara e Freud (com o inconsciente e o automatismo psíquico), entre outras
figuras do século XIX, marcam nele assinalada influência. Apollinaire, simpatizante do
Dadaísmo, dele se separa porque o nihilismo do movimento de Tzara (Dadaísmo)
opunha-se ao plano que tinha em vista o Surrealismo quanto à filosofia, à moral, e à
estética. Este movimento dá os seus primeiros passos em 1919 com Les Champs
Magnétiques de Breton e Soupault; mas só em 1924 o Manifeste du Surréalisme de
Breton - a Arte Poética do movimento - prepara a revista La Révolution Surréaliste.
Dissensões entre alguns membros não impedem que, até eclodir a Segunda Guerra
Mundial, o movimento atinja o seu ponto mais alto. Informa-nos destas dissensões o
2
Second Manifeste du Surréalisme (1929). Difunde-se pela Europa, menos
profundamente na Inglaterra e mais atrasado em Portugal; Breton promove a actividade
surrealista na sua deslocação à América, chegando ao México, ao Brasil; com o seu
regresso a Paris, o Surrealismo entra na fase final.
Além de movimento artístico-literário e estético, o Surrealismo aparece como
uma tomada de consciência face à civilização e cultura do Ocidente europeu. Aproveita,
amplia, transforma valores do Romantismo e volta-se para a filosofia que rejeita o
racionalismo cartesiano ou o equilíbrio do Classicismo. Rejeita o convencionalismo e
opõe-lhe a liberdade; substitui o positivismo pela sobrerrealidade, pelo sonho, pelo
inverosímil, pelo insólito porque sente que o homem ultrapassa as limitações da matéria
na busca do abstracto, do mistério. Daí a importância da metáfora. Alguns momentos do
Surrealismo aproximam-no da linha política marxista e comunista, o que provoca a
separação de Breton e de mais surrealistas. A rejeição das regras de Aristóteles e do
racionalismo de Descartes leva o poeta surrealista a sobrestimar o que é surpreendente,
fantástico, acidental, fortuito e a exprimir-se com acentuada liberdade de palavras e com
especial relevância para o símbolo, a metáfora, analogia (elementos que estão ao serviço
do maravilhoso, do insólito, do mistério). Por tudo isto se afirma o valor da liberdade
para os surrealistas na sua tentativa de objectivar, visualizar o subjectivo até com uma
estreita ligação à pintura, aparecendo mesmo trechos ilustrados com desenhos, pois o
movimento sente-se em pintores como Salvador Dalí, Joan Miró (Barcelona 1893), este
considerado um sobrerrealista inigualável pela frescura, fantasia e humor dos quadros.
(...)
Fonte: http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.com.br/2010/05/surrealismo.html
MÚSICA SURREALISTA
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[Num] curta lançado no mesmo ano do Primeiro Manifesto Surrealista, dirigido
por René Clair, com trilha composta por Satie, [percebe-se] que o cinema surrealista era
melhor formulado que a música no princípio do movimento. A utilização de stop
motions, sobreposição de imagens e planos não exatamente inter-relacionados.
(Para assistir ao curta-metragem de René Clair, com música de Erik Satie [Entr’Acte,
1924]- 20m18) acessar o site:
http://musicronicas.wordpress.com/2012/06/18/musica-surrealista/).
A obra de Stravinski que pode ser considerada surrealista está no período de 1910 a
1930, aproximadamente. “Les Noces”, ou “As Bodas” é também um ballet, assim como “Le
sacre du printemps” (“A sagração da primavera”), obra mais renomada deste compositor.
Apesar de este ballet utilizar ainda a sapatilha de ponta, a técnica deixa de ser
exclusivamente de ballet clássico e começa a sofrer influências do ballet contemporâneo e a
utilização de movimentos esteticamente menos agradáveis. Menos agradável alguns
poderiam considerar, é a percussão utilizada por Stravinski, bem marcada e fortíssima,
característica observada em outras obras do compositor. (...)
(Para assistir a trechos do balé “Les Noces” de Stravinski, 10m09, acessar o site
http://musicronicas.wordpress.com/2012/06/18/musica-surrealista/)
CINEMA SURREALISTA
Também em 1967, Luis Buñuel dirigiu o longa “A bela da tarde”, em que mescla realidade
e fantasia. Imperdível!
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O SURREALISMO
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, pp. 348-353
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razão e à margem de qualquer preocupação estética ou moral", "crença na realidade
superior de certas formas de associação que haviam sido subestimadas, na onipotência
do sonho, na atividade desinteressada do pensamento. Tende a provocar a ruína
definitiva de todos os outros mecanismos psíquicos, e a suplantá-los na solução dos
principais problemas da vida" (Breton, Manifesto do Surrealismo, 1924).
Não obstante a história externa do Surrealismo português durasse escassos anos,
o movimento exerceu profunda influência, até hoje visível, não só pela ebulição crítica
que estimulou e de que se prevaleceu, mas também pelos caminhos estéticos que abriu.
E dos vários participantes do movimento surrealista português, destacam-se os nomes
de António Pedro, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa e Alexandre
O'Neill.
António Pedro da Costa nasceu em Cabo Verde, em 1909. Estudou Direito e
Letras em Lisboa. Viajou pelo estrangeiro, às vezes em permanências demoradas:
África, Brasil, Paris, Londres. Nesta última, frequentou o grupo surrealista inglês (1944-
1945), e de lá trouxe a ideia de formar o Grupo Surrealista de Lisboa. Consagrou-se ao
teatro, à pintura, à poesia e ao romance. Na poesia, evoluiu de um lirismo de acentos
tradicionais (Ledo Encanto, 1927; Distância, 1928; Devagar, 1929; Máquina de Vidro,
1931, etc.) para o Surrealismo de Protopoema da Serra d'Arga (1948), em que o
refinamento da fase anterior se casa com uma irreverência que corresponde apenas à
contraface de uma sensibilidade apurada e vigilante. O romance (Apenas uma
Narrativa, 1942), das mais acabadas experiências da ficção surrealista, confirma tal
consórcio. António Pedro faleceu em 1966.
Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu em Lisboa, em 1923. Estudou música e
artes plásticas. Tomou parte no Grupo Surrealista de Lisboa (1947) e chefiou o grupo
dos Surrealistas Dissidentes. Dedica-se ao jornalismo. Escreveu: Corpo Visível (1950),
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de
Álvaro de Campos (1953), A Afixação Proibida (1953), Manual de Prestidigitação
(1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à
Circulação pelo Autor (1958), Nobilíssima Visão (1959), Poesia (1961), Planisfério e
Outros Poemas (1961). Se não o mais ortodoxo dos surrealistas portugueses, Mário
Cesariny de Vasconcelos tem sido o mais persistente de todos: quando os grupos se
desfizeram, permitindo que cada um seguisse o rumo apetecido, permaneceu fiel às suas
ideias e intuições. E quando, com o tempo, se processou natural mutação na obra dos
surrealistas da primeira hora, manteve-se convicto. Passados anos, ergue-se como o
grande remanescente do movimento, a ponto de não se poder falar em Surrealismo em
Portugal sem falar nele, e vice-versa.
ADORMECIDO NO VALE
LE DORMEUR DU VAL
Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido,
a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia
mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que
lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou
trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão (o que ele chama
decisão!). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as
ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem
nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência
moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão
recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada
que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo
conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a
essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas.
Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores
condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai
dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância
apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a
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conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar
segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo
esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o
homem ao seu destino sem luz.
(...)
Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a
outra. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um
reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua
liberdade (o que se vê de sua liberdade) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam,
numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que
ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o
que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em
relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são
impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e
apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato,
alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada
sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa
mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares
malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas
de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso
Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura
cresceu, e durou.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da
imaginação.
(...)
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria
chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de
problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite
considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos,
ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos
limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se
apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de
civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com
ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade,
não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente
trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se
afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas
descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador
humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em
conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus
direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de
aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em
captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de
nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar
que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até
segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto
como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a
serem seguidas.
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Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com
efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica (pois que, ao menos do
nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma
dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do
sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos
de vigília) não tenha recebido a atenção devida. A extrema diferença de atenção, de
gravidade, que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do
sono, é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo
o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar
fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda consequência atual, e em
despedir o único determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas
antes: esta esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo que
vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a noite. E como a noite,
geralmente também não traz bom conselho
(...)
Os meios surrealistas reclamariam, aliás, uma ampliação. Tudo é bom para obter
de certas associações a desejável subitaneidade. Os papéis colados de Picasso e de
Braque têm o mesmo valor que a introdução de um lugar-comum num desenvolvimento
literário do estilo mais castiço. É até mesmo permitido intitular POEMA o que se obtém
pela agregação tão gratuita quanto possível (observemos, faz favor, a sintaxe) de
títulos e fragmentos de títulos recortados dos jornais:
POEMA
Uma risada
de safira na ilha de Ceilão
As mais belas palhas
Um caminho carroçável
vos conduz ao desconhecido
O Café
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roga por si mesmo
O ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA
Senhor a,
um par
de meias de seda
não é
Um salto no vazio
UM CERVO
Antes de tudo o amor
o fogo incubado
a oração
Sabei que
os raios ultravioleta
terminaram seu trabalho
bom e rápido
ONDE ESTARÁ?
na memória
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em sua casa
NO BAILE DOS ARDENTES
Faço
Dançando
O que se fez, o que se fará
(...)
Fonte: http://www.dhnet.org.br/desejos/textos/surreal.htm
ANDRÉ BRETON
A UNIÃO LIVRE
Fonte: http://claudiowiller.wordpress.com/2013/06/17/a-uniao-livre-de-andre-breton/
PAUL ÉLUARD
DE UM E DE DOIS, DE TODOS
JACQUES PRÉVERT
O METEORO
A RIVIERA
LA RIVIERE
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SCEAUX D’HOMMES EGAUX MORTS
Sur les fesses du chef décapité était tatoué le prénom du soldat familier
et le prénom du chef était tatoué sur la poitrine de son homme fusillé
Leurs mains enlacées et crispées faisaient semblant de vivre encore
Misogynie mère des guerres
Tasses et théières
Seaux d’eau
Mégots morts
Deux corps sous les décombres
dans l’ombre du décor.
(in La pluie et le bon temps)
1.º - que não apoiamos qualquer partido, grupo, directriz política ou ideologia e que na
sua frente apenas nos resta tomar conhecimento: algumas vezes achar bom outras achar
mau. Quanto à nossa própria doutrina, os outros hão-de falar.
2.º - que não simpatizando com qualquer organização policial ou militar achamo-las no
entanto fruto e elemento exacto e necessário da sociedade – com quem não
simpatizamos igualmente.
3.º - que sendo nós indivíduos livres de compromissos políticos permaneceremos em
qualquer local com o mesmo à-vontade. Seremos nós os melhores cofres fortes dos
segredos do estado: ignoramo-los.
4.º - que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas
convencionais, temos o máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos
componentes da sociedade. Assim delas daremos por vezes testemunho e mesmo
ensino.
5.º - que não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o
conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela
Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes.
6.º - que a crítica é a forma da nossa permanência.
(...)
António Maria Lisboa, Poesia, Assírio & Alvim.
Mário Cesariny diria que “o Homem só será livre quando tiver destruído toda e
qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa e quando for
universalmente capaz de existir sem limites.
Então o Homem será o Poeta e poesia será o Amor – Explosivo.”
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Numa entrevista, diz o mesmo Mário Cesariny:
“(...) o surrealismo é o que existe de mais parecido com a poesia. Não se ensina, não é
possível. Tudo o que é pedagógico é muito mau. Tudo o que nasce como revolta é um
tormento. O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação
pessoal. (...) Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre”.
Fonte:
http://www.homeoesp.org/livros_online/O%20MOVIMENTO%20SURREALISTA%20DE%2
0LISBOA%20-%20ALGUNS%20POEMAS.pdf
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
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que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde "a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela"
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
DE PROFUNDIS AMAMUS
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
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ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilômetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
AUTOGRAFIA
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
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porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
PASTELARIA
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
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Cotejar com TABACARIA, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
TABACARIA
Fonte: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/candid04.htm
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EXERCÍCIO ESPIRITUAL
Antes de tudo é importante que se entenda que quando se fala que os neorrealistas
defendiam uma literatura fundada no inconsciente não significa que estes só fossem
melancólicos, românticos ou coisa assim, até porque o nosso inconsciente depende de
nossa realidade, e este poema de Mário Cesariny de 1963 expressa perfeitamente o
estado de espírito do autor na expressão de seus sentimentos/pensamentos em dada
época.
Primeiro observamos uma comprovação de que realmente ele está expressando os
pensamentos, pois sempre pensa algo e fala outro, “É preciso dizer rosa em vez de dizer
ideia”.
Observa-se também que semelhante aos poemas neorrealistas, este faz uso da poesia
para mostrar a realidade do país, que é o que ele estava pensando e expressa através da
literatura, fazendo relação, por exemplo, a Salazar quando ele diz: “é preciso dizer o
mundo em vez de dizer um homem”; ao clima de mistério expressado em “arcano”; ao
tempo que parasse que não passa, um dia dura um ano; ao aspecto negro: “pantera” e a
esperança de dias melhores: “aurora”.
Fonte: http://escritosdemarcelita.blogspot.com.br/2011/07/poesia-portuguesa-pos-moderna.html
O HOMEM EM ECLIPSE
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fiquei desaparafusado
tradição cultura estilo
certeza amigos fatiota
tudo fora do seu sítio
um desaparafuso terrível
Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar
ANTÓNIO PEDRO
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[ ANGÚSTIAS DO MUNDO ]
Só eu ficara abandonado o tempo todo, naquele lugar do Minho que era o único
que estava perto da minha pele. Arranjei cama de camarinhas junto à raiz duma árvore,
à espera do meu fim. E ainda não sei se chegou...
Sei que a Lua, certa noite, tomou um bruto pifão. Surgiu lá das bandas do mar
inchadíssima e encarnada. Custou mesmo a despegar-se da água e deixou-a, por um
tempo, cheia de malhas de sangue. Depois, andou aos tombos pelo ar e minguou.
Encarrapitou-se nas nuvens, jogou com elas às escondidas e, finda a correria, caiu de
cansada nas galhas dum espinheiro.
Teria ficado aí, lindíssima, se não fosse aquela moleza de queijo que a
enlanguescia. Assim, foi-se desfazendo numa pasta empalidecida e, devagar, entornou-
se sobre mim.
Sei lá desde quando eu dormia ali, a cabeça no tufo das camarinhas, embotados
os sentidos por aquele cheiro da erva fresca e da areia humedecida! Sei que com o
banho da Lua fiquei translúcido e molhado, bêbado e imponderável. Sei que me pegou o
vento e me entremeou nos ramos das roseiras, me fez dansar na copa das árvores,
rebolar nos telhados mais íngremes, descer como uma avalanche a encosta das colinas e
estatelar-me nas planícies, encher-me de pólen por causa do apetite das flores. Sei que
andei como uma bola de roleta no côncavo esférico do céu. Sei finalmente que, ao bater
numa estrela, me incendiei como um fogo de artifício.
Foi delicioso e saborosíssimo aquele crepitar de meus ossos que se haviam
tornado invisíveis, aquele estalejar das bolinhas da gordura, salpicando tudo, aquele
perfume de cabelos queimados como nas estrebarias onde foi o ferrador, aquela festa de
S. João na estratosfera! Só por causa de ter batido numa estrela!
A estrela era bonita e tinha os olhos saídos como os das moscas, olhos míopes e
inúteis na escuridão do céu.
Vieram-me então à memória todas as angústias do mundo – as inundações e as
guerras, o medo dos fantasmas e a maldade dos homens, aquele cheiro de arroto de
certas bocas que só comem o suor dos miseráveis, aquela tristeza de flor quebrada que
apodreceu num monturo, aquele pst das prostitutas, aquele sorriso dos clérigos, aquele
olhar para o único vestido que se rompeu, o frio e o ciúme, o tédio e a malária ao
recolher das áfricas, os hospitais, as cadeias, aquele somar números abstractos toda a
vida no emprego mal pago, aquele adormecer nos portais, aquele agradecer o favor
indispensável, aquele ser coveiro e polícia, os leprosos, as feias, os marrecas, os
generais, a morte... Ao fim fiquei como uma nuvem de cinzas.
Caí então de novo sobre a Terra. Caí como uma chuva suave. Confundiram-me
com o luar quando me espalhei no descampado alucinando os gatos, pintando as casas,
murchando as flores e apodrecendo o peixe... Por mim sei, no entanto, que são humanos
este gosto das surpresas e esta permanente tentação de dilúvio. Sei que viverei
eternamente embora não tenha nem intestinos nem fígado.
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CARLOS EURICO DA COSTA
A CIDADE DE PALAGUIN
Na cidade de Palaguin
o dinheiro corrente era olhos de crianças.
Em todas as ruas havia um bordel
e uma multidão de prostitutas
frequentava aos grupos casas de chá.
havia dramas e histórias de era uma vez
havia hospitais repletos:
o pus escorria da porta para as valetas.
Havia janelas nunca abertas
e prisões descomunais sem portas.
havia gente de bem a vagabundear
com a barba crescida.
Havia cães enormes e famélicos
a devorar mortos insepultos e voantes.
Havia três agências funerárias
em todos os locais de turismo da cidade.
Havia gente a beber sofregamente
a água dos esgotos e das poças.
Havia um corpo de bombeiros
que lançava nas chamas gasolina.
Na cidade de Palaguin
havia crianças sem braços e desnudas
brincando em parques de pântanos e abismos.
Havia ardinas a anunciar
a falência do jornal que vendiam;
havia cinemas: o preço de entrada
era o sexo dum adolescente
(as mães cortavam o sexo dos filhos
para verem cinema).
Havia um trust bem organizado
para a exploração do homossexualismo.
Havia leiteiros que ao alvorecer
distribuíam sangue quente ao domicílio.
havia pobres a aceitar como esmola
sacos de ouro de trezentos e dois quilos.
E havia ricos pelos passeios
implorando misericórdia e chicotadas.
Na cidade de Palaguin
havia bêbados emborcando ácidos
retorcendo-se em espasmos na valeta.
havia gatos sedentos
a sugar leite nos seios das virgens.
Havia uma banda de música
que dava concertos com metralhadoras;
havia velhas suicidas
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que se lançavam das paredes para o meio da multidão.
Havia balneários públicos
com duches de vitríolo – quente e frio
- a população banhava-se frequentes vezes.
Na cidade de Palaguin
havia Havia HAVIA...
Três vezes nove um milhão.
ALBERTO PIMENTA
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
PORCO TRÁGICO I
conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também
I
o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,que não tenha
a sua própria grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.
no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem grandes
e
filhos-da-puta
28
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.
o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.
no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser o pequeno filho-da-puta.
todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.
29
é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.
(...)
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
30
muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma
linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores.
A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a
amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para
com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua
comunicação esotérica.
Os profetas, os reformistas, os reaccionários, os progressistas arregalarão os
olhos e em seguida hão-de fechá-los de vergonha. Fechá-los como têm feito sempre,
afinal, e em seguida mergulharem nas suas profecias. Olharem para a parte inferior da
própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha. Abandonarem-se
desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima das
nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o amor e em seguida
fecharem os olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor.
(...)
MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar
ALEXANDRE O'NEILL
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
ADEUS PORTUGUÊS
A MEU FAVOR
A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
33
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento um silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos
PERFILADOS DE MEDO
O BEIJO
que levais
Se um tolo nunca vem só,
quando não vem, não vem mais
ou vem, digamos por, por dó...
ELEGIA
DEIXA
Frases célebres
todas
e não esqueças aquela
que diz assim
PAIS
que fazeis?
OS VOSSOS FILHOS
não são tostões
GASTAI-OS DEPRESSA!
CÃO
Assista à representação portuguesa: “Cão-Alexandre O'Neill + Frágil Som (Ana Brandão &
João Paulo)” https://www.youtube.com/watch?v=kMT3e4YcEdU
Mário Henrique Leiria nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou por pouco tempo a
Escola de Belas Artes. Entre 1949 e 1951 participou nas actividades da movimentação
surrealista em Portugal. Teve vários empregos: marinha mercante, caixeiro de praça,
operário metalúrgico, construção civil. Viajou. Em 1961 foi para a América Latina onde
39
desenvolveu várias actividades, entre as quais a de encenador de teatro e de director
literário de uma editora. Voltou nove anos depois. Colaborou em várias revistas e
jornais nacionais.
Obras principais: A Afixação Proibida (manifesto surrealista de vários autores),
1949; Contos do Gin Tonic, 1973; Novos Contos do Gin, 1978;Imagem Devolvida,
1974.
POEMA-COLAGEM
41
TELEFONEMA
Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa. Foi então que deu pelo
facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias. Por vezes as perguntas estúpidas
são de extrema utilidade.
ÚLTIMA TENTAÇÃO
E então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção.
Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida. Ficaram os dois numa
desesperante frustração. Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais
chato!
RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera estava na cama deitada muito calada a ver o que acontecia
chegou a Velha e disse olha uma nêspera e zás comeu-a
é o que acontece às nêsperas que ficam deitadas caladas a esperar o que acontece.
TORAH
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a
Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça
ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se
não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à
espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não
quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
HERBERTO HÉLDER
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
O AMOR EM VISITA
*
Nem sempre me incendeia o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
FONTE
II
OS ANIMAIS CARNÍVOROS
Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz – difundia
uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si
mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera
um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada,
descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa
na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo
muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do
louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para
isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma
plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar
imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as
suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.
EQUAÇÃO
(De Os Passos em Volta, pp. 115 a 118)
49
movimento. Para diante, para diante. Rompendo as ficções do estatismo, o mito
incomportável das fotografias.
– Avó...
Ela está na sua cama de madeira escura, uma avó que levanta um minúsculo
volume de colcha branca lavrada; e do pescoço para cima, uma avó cor de limão, cor de
azeitona. Uma avó de dois braços pela colcha branca abaixo, e as mãos saindo das
mangas claras e amarrotadas do casaquinho de lã. Mãos cor de azeitona, duras, imóveis.
Vamos: podres. Duas mãos podres. E tudo isto – que é o pouco do presente, com um
significado de súbito espantoso na minha própria carne – está no meio da penumbra do
quarto, enquanto lá fora o mês quente se desenvolve, atormentado pela sua grande
felicidade vital, mês feroz com a sua atmosfera de impiedade luminosa. É fascinante
para mim poder dar alguns passos leves entre a fotografia (sobre a cómoda) e a enorme
cama negra – eu que compreendo alguma coisa (e com que abalo!), procurando sorrir
quando a Velha Avó levanta as pálpebras e me fixa não sei entre que hesitações de
torpor e vigilância. Sorriso sem experiência, o meu. Porque não sei bem como está aqui
essa fotografia e este corpo. E não sei, do mesmo modo, quase nada acerca do corpo das
pessoas, acerca do seu tempo ou dos seus tempos, da sua verdade ou verdades. E depois,
como se o sorriso, com a sua inépcia, não fosse bastante sinal da minha confusão, eu
digo, numa voz ainda mais inexperiente:
– Avó...
E a Avó mexe ligeirissimamente a mão direita e fecha os olhos. Então fico só,
porque a fotografia recua para uma região secreta e a Avó cor de azeitona vai
avançando como só ela sabe e a minha inexperiência não pode pretender acompanhar –
para uma situação inacessível.
Colocai agora uma desordenada massa cinzenta e frouxa sobre a cabeça e tereis
algo ainda mais difícil. Um sabor adocicado arrefece-me na língua, porque o horror
(suponho que seja horror) é frio e adocicado. Cabelo horrível, coroa da enorme, da
excessiva experiência. Em que sítio se encontra este ser, ele, de que para fora chegam
tais indicativos monstruosos? O ser do retrato, esplêndido na teoria insólita da sua
juventude, preso mas forte no seu melhor momento?
Existe um ser assim? Ou o que há é simplesmente um bolbo profundo,
estendendo as suas raízes, com terrifica placidez, no fundo, no fundo, onde não
permanece nenhum brilho, bolbo frio e paciente trabalhando no completo silêncio sem
passado, bolbo absolutamente eterno numa carne absolutamente actual?
– Avó... – E a mão direita estremece sobre a minha louca atenção. – Quer que
chame o padre?
É que eu fora encarregado pela família de conduzi-la, utilizando a preferência
que a Avó me dava, à ideia de que a morte poderia ter começado um hipotético passo
entre a terra e a feliz eternidade. O sacerdote viria fornecer a essa palavra feliz uma mais
radical convicção e carregá-la dos sentidos da ilimitação que desaguam na outra palavra
eternidade.
A Avó sempre fora católica e praticara com assiduidade os ritos. Com que
distracção, ou velozes intenções, acertado ou desviado interesse – não sei, eu que não
sei nada das pessoas, mesmo que alguma coisa julgue conhecer dos valores.
E então repeti o apelo, imaginando que as paredes entre mim e a moribunda
eram as paredes que as vozes talvez possam atravessar e que, por detrás delas, uma
atenção espera precisamente ser reconduzida pelas vozes exteriores, mesmo as vozes
ineptas de um jovem colocado entre confusões ou mistérios, se é que servem estas
50
palavras para designar maciços pedregulhos dentro de um quarto, dentro do encontro de
tempos, pessoas, coisas, pensamentos.
Repeti: – Avó – e a mão agitou-se, sem que eu soubesse o que poderia isso
significar quanto à eficácia das vozes e à existência dessa tal atenção que se
reconduziria, etc. – Quer que chame um padre?
Sim, decerto: já expliquei tudo. Ela frequentava o culto, mandava celebrar
missas pelos seus mortos, confessava-se e comungava. Já disse: com que distracção,
intenções, etc., etc. Bem: vejo-me assim a servir os poderes que ignoro, a realidade que
ignoro, a ficção, as ficções que ignoro. Papel próprio para a juventude. E agora há mais
forças. Estou cercado por forças de que mal vislumbro a capacidade e natureza. Cada
vez mais forças, porque estou diante da idade e ela chama novos poderes, sombrios
poderes, sombrios enigmas. E, depois, com a ideia de que lá fora a estação é de alto
esplendor, inteira falta de pensamento, exaltada inexperiência – fico ainda mais inepto.
A Avó abre os olhos e eu vejo uma nova luz áspera e gelada – a inteligência,
algo que de repente recompõe todo o corpo e traz agora o retrato para o centro do
tempo, tornando-o movimentado e audaz durante um segundo. Sobre esse olhar
progride agudamente um sorriso que limpa a velhice e deixa o sal de uma malícia
madura. Os lábios secos perturbam-se e crescem devagar, e a garganta palpita. É um
corpo que cresce sobre o seu próprio esgotamento, e a Avó diz:
– É tudo mentira...
Depois as pálpebras caem, e todo o corpo é absorvido pelo enigma. As paredes
levantam-se, o retrato recua, a minha juventude fica sem armas – brilhante e estúpida.
Assim é, porventura, a sabedoria: vil, esmagadora. O único lugar que lhe
pertence deve ser a idade, mas quando dela se aproxima um jovem fascinado que a si
próprio impôs o estado de mensageiro, como se quisesse tocar o gelo, convencido, ele!,
de que o calor dos poucos anos poderá fundir o gelo, então o gelo absorve a idiota mão
quente, e queima-a.
A Avó morreu nesse mesmo dia.
O QUARTO
(De Os Passos em Volta, 1963)
Ele pareceu não entender a minha alusão. Voltou para mim o rosto irónico e
perguntou: – A que se referia?
– À morte – respondi eu.
– Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a
pensar no mesmo.
– Pensamos todos no mesmo, a partir de certa altura.
– Talvez – murmurou, e a sua voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos
da mesma maneira. Sabe que sou forte? É por isso que penso nela. Detesto a fraqueza
que se remedeia na imaginação do fim. Não creio em nada. Não desejo crer seja no que
for.
– Pensa que vai morrer quando quiser?
Ele olhou-me em cheio e sorriu. Tinha a cabeça viva e nobre de um homem
antigo. Parecia saber muito, e realmente em nada devia acreditar. Notava-se-lho no
olhar, que era culto e virilmente triste.
– É isso. Eu preparo a minha morte. Um verdadeiro homem tem direitos e
deveres em relação à sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
– Sim, já mo disse.
51
– Conhece o sítio? – E as palavras aludiam a todo um mundo de significações.
No entanto, a voz era imperturbável. Este homem morreria dentro da sua morte.
– Conheço. Fica na outra costa da Ilha. Atrás, há a montanha sem árvores.
Pedras e urzes. Pavoroso. Em frente, o mar. O mar lá é bravio.
– É água cinzenta e branca. Por detrás, a grande montanha onde só andam
cabras. Mas na planície, ao lado direito, existem muitas árvores onde o vento do mar
vem bater. De noite, aquilo vibra e uiva. E, no outro lado, estende-se a terra arenosa.
Quando há tempestade, é de uma beleza diabólica. Bom para nos sentirmos sós e saber
se ainda há em nós o orgulho do medo.
– Compreendo que construa aí a sua casa.
– Construo a casa muito devagar. É a minha última tarefa. Obrigo os operários a
trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou
tão cara uma casa de um só piso. Quando ficar pronta, já nada mais terei a fazer. Seria
horrível procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. Isto é de sangue. Meu avô
correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai foi voluntário para a
guerra, depois de me ter gerado, e lá morreu. Tudo homens que fizeram uma tarefa e
nela puseram a significação da vida. E deram-se por cumpridos, regressando ou
morrendo. Não é sabedoria? Não quero ser fútil. É o único pecado do espírito. Ponho
toda a minha força religiosa na razão da vida, que é dada pela oportunidade e qualidade
da morte.
Riu.
– Sabe que sou um homem religioso?
– No entanto...
– Claro, não acredito em nada do que diz respeito a isso... a essas coisas... da
imortalidade da alma... da existência de Deus... no bem e no mal... na caridade e
piedade... Detesto essas crenças e virtudes da baixa religiosidade. O meu pensamento
religioso é de outra ordem...
– Talvez creia – disse eu – na necessidade de manter incorruptível o sentimento
da vida. Talvez também o dever da morte...
– Quer exprimi-lo assim? – Vejo as suas mãos fazerem um gesto subtil e
inacabado de irónica concepção. – Talvez seja quase isso... Aos vinte e cinco anos fui
viajar. Percorri a Europa, a América do Sul, África. Estive na Austrália, no Japão. Vivi
alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem
países. O homem é estúpido. E precisa de ser amado e amar. É um ser repugnante. Hoje
sei amá-lo, assim repugnante. Aos quarenta anos deixei de viajar. Fiquei em Paris. Aos
quarenta e cinco fixei-me em Lisboa. Cinco anos mais tarde, vim para a Ilha. E os
círculos foram-se apertando cada vez mais. Hoje não saio deste café e do hotel, quando
não estou a seguir o andamento das obras. Daqui a algum tempo, mudo-me para a casa.
Depois... Compreende o que digo, quando falo do meu espírito religioso?
– Sim, parece-me que sim...
– A casa tem três quartos, além de cozinha, casa de banho e despensas. Um é o
quarto de dormir; o outro, a sala de jantar; e o terceiro... Não adivinha?... Não, não pode
adivinhar...
– Noutras circunstâncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca...
– Noutras circunstâncias. Agora não leio. Vou morrer. Ouça: a casa é toda
assoalhada. As casas são naturalmente assoalhadas, não é assim?
– Claro.
– Sim, mas esse quarto não é assoalhado.
– Mais um espanto para o capataz – disse eu, sorrindo.
52
– E para si também.
– Também para mim. Porque não assoalha esse quarto?
– Durante um ano ou dois vou viver naquela montanha, na mata, na terra arenosa
em frente do mar. Vou entrar e sair da casa e passear por esses lugares todos. Em
seguida sentirei que não devo sair mais, e ficarei em casa, andando de um quarto para
outro.
– No quarto sem soalho, também?
Não respondeu.
– Lembra-se de eu lhe ter falado no vento marítimo a bater nos pinheiros? E na
alta montanha intransitável, por detrás da casa?
– Lembro-me. Eu conheço também o sítio, como lhe disse.
– O barulho do mar e do vento. A ideia da montanha impraticável. A terra
arenosa por ali adiante. E a solidão. E, sobretudo, saber que já não pode haver qualquer
espécie de medo. Então fecharei todas as portas da casa, a porta para fora e as portas dos
quartos entre si. Ficarei no quarto sem soalho e deitar-me-ei no chão. Hei-de ouvir o
mar e o vento, e hei-de saber que a montanha está atrás de mim, poderosa e só. Poderei
ouvir também o sussurro da terra húmida debaixo do meu corpo. Encostarei a cara a
essa terra profundíssima. Até que morrerei.
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
MINIBIOGRAFIA
A CASA DO MUNDO
É a casa do mundo:
desaparece em seguida.
AS SOFRIDAS AMORAS
As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos
Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.
JORGE DE SENA
Fonte: http://pt.scribd.com/doc/14543657/Poesia-Surrealista-Portuguesa
54
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping,
de Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. - Eu quero ver publicadas
as suas obras completas - diz-lhe o discípulo.
- Também eu - responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura – Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e reescritas! Como
Não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite - creiam - a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu - ó Spartacus –
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião de amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
55
ANTÓNIO MARIA LISBOA
RECUSA
I
É muito possível durante os primeiros meses
uma importante viagem à Asia – essa
é uma das consequências
secretas
em que não se tomaram quaisquer resoluções finais
e ambas chegaram igualmente
II
ainda um céu marinho de agonia onde eu
sou um copo de aguardente francesa e tu
uma gaivota que passa rente ao barco que me leva
III
- Eu sou uma coisa qualquer
Eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer
O-AMOR
MEU AMOR
I
Deve haver uma maneira tranquila
uma tranquilidade
uma certeza.
Deve haver uma febre
uma febre que seja, quando menos,
56
que nos dê olhos para ler tudo.
Depois dizem que há uma salvação...
Da minha infância
não guardo agora senão o chão que piso
e esse não chega.
Talvez a minha face
o meu vulto
a sombra
possam servir de algo.
Mas não.
Assim sem alegria
arrefecido, antigo
como posso comover-me
arder exausto
ou beijar o ar
o ar simplesmente
enleado!
II
Porque não posso senão trazer esta humildade
como posso dar-me ou pedir-me
se me pedem e me dão
dizendo fazê-lo por uma esperança.
Mas eu vejo
o que a morte me tem sido para que veja
e não respondo ao que imagino
porque sei que só posso desejar o que desejo
MARCELINO VESPEIRA
MANEQUIM VISADO
HOJE
PEDRO OOM
ACTUAÇÃO ESCRITA
Pode-se escrever
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem se saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
Pode-se não escreve
58
AS VIRTUDES DIALOGAIS
Dentro
de mim
há uma planta
que cresce
alegremente
que diz
bom dia
quando nos amamos
ao entardecer
e boa noite
quando florimos
à alvorada
uma árvore
que não está com o tempo
este tempo
a que chamamos
nosso.
Virtudes Teologais são as virtudes que nos ligam diretamente a Deus. São três
fundamentais: a fé, a esperança e a caridade. O Catecismo da Igreja Católica ensina que:
1812 – As virtudes humanas se fundam nas virtudes teologais, que adaptam as
faculdades do homem para participarem da natureza divina. Pois as virtudes teologais se
referem diretamente a Deus. Dispõem os cristãos a viver em relação com a Santíssima
Trindade e têm a Deus Uno e Trino por origem, motivos e objeto.
1813 – As virtudes teologais fundamentam, animam a caracterizam o agir moral do
cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na
alma dos fiéis para serem capazes de agir como seus filhos e merecer a vida eterna. São
o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano.
Os animais
cuja vivência
são as visitas
que todos temos feito
a girafa
ou o crocodilo
bastam
para romper
a fascinação
idade cartesiana
tanto do direito
como
do avesso
59
RUBEN A.
[ O MUNDO DA BARBELA ]
60
espaço era a sua grandeza. Mesmo São Cyro, lendo o breviário, subia o olhar para a
Torre e persignava-se por respeito do Além. E quando tocavam as Trindades todos se
vinculavam à sua altura. Fora em torno da Torre que a família construíra poder, segura
união. Tragédias ou momentos de vitória, estampados, invisíveis, permaneciam em
respeito gravados nas pedras seculares da Barbela.
D. Mafalda entretinha-se a ver passar Frei Cyro que, na intimidade de certo ar
bonacheirão, cochichava de soslaio com D. Mendo. Ouvia. Decerto seriam os últimos
pecados. Coisa triste, pecar – parecia dizer com a cabeça Frei Cyro ao esticar o ouvido
para a confissão mais íntima de D. Mendo.
– Passou-se assim? De certeza?
– Oh, meu Deus, eu até jurava que foi diante dos meus olhos.
– E quantas vezes?
– Ó primo, isso é mais difícil de responder. A gente distrai-se... Eu cá na
consciência às vezes sinto uns calafrios de meter medo, mas depois passam. Não sei
explicar. Fico embaraçado e deito às de vila-diogo. Sabe, isto de ser cristão e filho de
Deus também tem os seus quês. Não andamos bem à solta, atravessa-nos um solstício
na alma que nos põe a latejar os sentidos. Olhe, eu, pelo sim, pelo não, se um dia peco,
no outro guardo abstinência. E à confissão é só com o Abade da Moutosa, que está meio
surdo...
– Ah, meu maganão! Tenho que te apanhar na sacristia a confessar apuradinho,
com as histórias de Viana e a festa em casa dos da Beringela. Disseram-me que
assaltaste o fumeiro e com um naipe de amigos aproveitaste as enguias do século XVIII
para um merendeiro. Ah, malvado, que andas fora das graças de Deus! Às enguias como
os garotos aos ninhos! Vai rezando, mas não me andes a arreliar os mortos. Já me
bastam os vivos para viver embaraçado.
– Frei Cyro, mas... não tem mal o que eu faço sem o ter na ideia?
– Pois não. Mas depois é que é pior, vem só a maldade e lá ficou a ideia perdida.
Distrai-te um pouco. Fala com o primo Dr. Ramiro, com D. Mafalda, com o Cavaleiro
ou mesmo com D. Raymundo, nosso fundador e ajudador-mor destas bandas. E quando
quiseres sangrar a consciência vem cá ao Jardim: mesmo a conversarmos no passeio eu
te absolvo. Todos gostam tanto de ti, vejo que passas bem o tempo sem te aborrecer.
Repara nas distracções que aqui temos, de todos os séculos e para todas as idades.
Brinca com o menino Sancho, que está para ali abandonado. Dizem-me que é com
saudades de Mademoiselle Madeleine, mas não acredito. Baboseiras de criança. Há
tanta coisa na vida que traz felicidade e tu para aí a pecar só por ripanço! Sabes que
também há prazer quando se não peca?! Eu antes de me ordenar andei às bolandas de
pasmar a Santa Madre Igreja. Depois, um dia... oh, eu nem conto! Isto de dar
atabalhoadamente o nosso íntimo... até parece que te quero converter à Ordem. Olha
que não. O que eu quero é que tu temperes o pecado com as boas acções, e assim,
quanto melhores e maiores boas acções praticares, menos pecas. Vai lá com Deus e a
minha bênção que tenho de me preparar nas orações e ler o breviário. Não é indigesto,
não. Não estejas a olhar para mim com ar enjoado. Faz bem falar com quem não se fala
todos os dias.
Dom Mendo, enfiado, não tugia nem mugia. Olhava para Frei Cyro como quem
olha para alguém que possui o privilégio de ser visitado por um ente estranho e fora do
alcance das imaginações. Nem mesmo ao passar por D. Mafalda reparou na cara que ela
fazia ao ouvir «demos mais mil contos para o estádio do Limense».
Realmente aquilo de pecar era o diabo. Já ia sendo tempo de ter juízo. Se o
Abade da Moutosa fosse mais exigente, ele já se teria emendado. Mas era tão boa
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pessoa. – «Sim, sim, meu filho, e foi com a... ah sim sim meu filho! Vê lá o que fazes.
Sim, reza a Cristo para te perdoar e à Senhora Milagrosa da Aparecida uma dúzia de
Salve-Rainhas. De joelhos! Nada de rezas como da última vez! Quero uma penitência
bem dita e com fervor. Vá, reza comigo: «Confiteor... Com Deus, menino!»
D. Mendo bem se queria escapar destes estilhaços de consciência que Frey Cyro
atirava ao ar cortando a brisa dos encantos pagãos. De nada lhe valia. Era lá dentro um
tremor que o assustava. E porque é que um fidalgo dos quatro costados, de linhagem
limpa, com direito a Dom por extenso, de varonia antiga, tendo no passado uma
Beringela por fêmea, morgado de senhorio de vários concelhos, alferes-mor do
condado, etc., etc., não podia usufruir de bula própria para perdoar pecados? Mal ia o
mundo cristão! Assim não havia jeito! Precisava de ter uma dispensa!
– Pensa bem e vai lá com os teus botões. Na próxima vez quero-te são como a
uva em tempo de São Miguel. E não te esqueças da confissãozinha, senão eu falo ao
Abade da Moutosa.
– Ele já me conhece os fracos...
– Ah, meu malandro! Anda-me lá com essas conversas que eu dou-te! Chego-te
mesmo – «e mais quatrocentos contos só na montagem de um periscópio na costa de
Sesimbra». – Daqui a uns dias volta.
– Primo Cyro, deixe-me agradecer-lhe as suas palavras e pedir-lhe a bênção –
«cinquenta mil contos para a modernização dos transportes a sul do Tejo. Uma verdade
insofismável, a juntar ao reforço de verba de vinte mil contos só para as estruturas». –
Então até logo!
– Até logo.
De um lado para o outro todos se entusiasmavam no Jardim dos Buxos. Era uma
alegria ver a família a jogar, a ler, a brincar, a beber, a falar, a passear, a cantar, a
representar, a folgar (a fazer tudo o que é agradável fazer depois da morte e que durante
a vida nunca houve tempo). Os mortos divertiam-se. D. Raymundo entretinha-se a ditar
ao escudeiro uns poemas de Martin Codax que lhe haviam mandado da Galiza:
Ondas do mar de Vigo,
se viste meu amigo!
– É bonito, sim senhor! Gosto destes versos simples que atravessam a história
cantando um lirismo tranquilo e saudoso. Recebo tantos destes poemas que às vezes é-
me difícil guardar cópia para a biblioteca da Barbela. Já há poucos escribas e o
pergaminho é cada vez mais raro. Entretenho-me com os cancioneiros.
D. Gil, leia-me a de um tal Soares de Tabeirós e aquela do primo D. Dinis que
começa:
Ai flores, ai, flores do verde piño
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
– A prima Mafalda não faz ideia do que se conseguiu no capítulo dos trifásicos,
nem na tecnologia aplicada. Mais de cinco mil contos só em aparelhagem de rastreio.
Então o novo projecto da ponte sobre o rio Lima em que se prevê a demolição
sistemática das árvores não enquadráveis no plano urbanístico. É uma obra audaciosa
com um arco de um só lanço iluminado a néon. Uma verdadeira vitória dos pré
esforçados!
– Sim, no moderno português piño é pino, pinheiro, e u é quer dizer onde está.
– Ai, sim, Gil? Não sabia. Como evoluem os dizeres!
De um lado ao outro, o Jardim dos Buxos fantasiava-se para distrair os
momentos noctâmbulos dos componentes do mundo da Barbela. Um vaivém contínuo
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de balbúrdia apaziguada saltava imprevistamente aos olhos e aos ouvidos dos presentes.
Barracas, com ornamentos artísticos de todos os séculos, coloriam a visão pelo garrido
das lonas. A um lado, uma exposição de flores; mais além, um aquário de transparências
remexidas pelo abanar caudal de peixes dormentes; no centro, um estrado para bailados
e música. Na natureza respirava-se uma apoteose que só a morte nocturna pode
comunicar – as coisas, os bancos e os livros misturavam-se de barraca em barraca e de
sentimento em sentimento.
Atravessava o mediano buxo um cheiro crespuscular que atraia a sonhos os
passos mais esquecidos e imperceptíveis dos vivos. Um feixe de alegria cantava-se no ar
e todos captavam, através de ondas cerebrais próprias da sua situação, os
acontecimentos e as músicas que nas diferentes partes do mundo àquela hora se
vinculavam aos ouvidos. Junto à Torre, aquele Jardim servia de pátria aos que
chegavam – era o primeiro contacto público com os membros passados da família.
O fim de tarde depositava-os ali e só os alvores do amanhecer extinguiam tão
fantástica quermesse. Dava a impressão de que até os novos satélites e outros planetas
mais em voga com as descobertas modernas espirravam de vez em quando colorações
desconhecidas. E na calma, sem se embrenharem bem na transcendência do acto que
normalmente praticavam, os Barbelas ali viviam, conversavam e morriam. Nunca
ninguém conseguiu penetrar em todos os recantos do Jardim, em todos os seus
meandros de entretenimento e de estudo, pois a biblioteca da Barbela, em parte patente
nos Buxos, parecia prolongar-se por fileiras intermináveis de fundo. Se uns passeavam
em direcção ao banco das roseiras e outros caminhavam silenciosos pelas veredas
menos comuns, conversar e sentir resumia o passatempo ideal dos mortos. E nesse
convívio adivinhava-se como que uma revisão geral do mundo prematuramente
acabado. O Menino Sancho, para ali a brincar na inconsciência do divertimento,
respirava a fidalguia atenta dos primos; precoce como todos os idealistas, imaginava
amores distribuídos em barda pelas fêmeas da Barbela.
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