Qualidade Socialmente Referenciada e A Gestão Democrática Almenara Lima
Qualidade Socialmente Referenciada e A Gestão Democrática Almenara Lima
Qualidade Socialmente Referenciada e A Gestão Democrática Almenara Lima
DEMOCRÁTICA
Socially referenced quality and democratic management
Gilsemara Vasques Rodrigues Almenara – UFSCar/Sorocaba*
Paulo Gomes Lima – UFSCar/Sorocaba**
Resumo: O artigo tem por objetivo refletir o tema da qualidade da educação, destacar diferentes
significações que os conceitos têm assumido nos referenciais das políticas educativas
brasileiras, apresentando-se muitas vezes com entendimentos dúbios e interesses vários. A
participação da sociedade civil na educação de forma geral, nos espaços intra e extra
escolares criados para fins democráticos/participativos, como os conselhos escolares e os
conselhos municipais de educação, assim como, nos instrumentos de participação que se
caracterizam no Projeto Político Pedagógico, fortalecem a possibilidade de concretização de
uma gestão democrática e, portanto, de uma qualidade socialmente referenciada. Ao motivar
a criação dos Conselhos Municipais de Educação, o governo federal objetiva qualificar a
participação da sociedade civil. O estudo enfoca a qualidade da educação considerando
estas polissemias de conceitos e inter-relações, os significados assumidos, seus impactos,
cujo resultado pode contribuir para que a sociedade avance com melhor educação e menor
desigualdade.
Palavras-chave: Qualidade socialmente referenciada. Conselhos de Educação. Participação.
Abstract: The article aims to reflect the theme of quality education, to highlight different meanings that
the concepts have assumed in the benchmarks of Brazilian educational policies, often
presenting with dubious understandings and various interests. The participation of civil
society in education in general, in intra and extracurricular spaces created for democratic /
participative purposes, such as school councils and municipal education councils, as well as
in the participation instruments that are characterized in the Political Pedagogical Project,
strengthen the possibility of achieving a democratic management, and therefore of a socially
referenced quality. By motivating the creation of the Municipal Councils of Education, the
federal government aims to qualify the participation of civil society. The study focuses on the
quality of education, considering these polysemy’s concepts and interrelationships, the
assumed meanings, their impacts, the result of which can contribute to society advancing
with better education and lower inequality.
Keywords: Socially referenced quality. Education councils. Participation.
INTRODUÇÃO
O termo “qualidade”, além de ser passível de diferentes interpretações, carrega consigo, também,
quando aplicado à educação, diferentes contextos teóricos e políticos aos quais se vincula. Este artigo
problematiza tanto o próprio conceito de qualidade, que não é único ou neutro, quanto a necessidade
da gestão democrática na escola para a construção de uma qualidade na educação socialmente
referenciada. Para o fortalecimento da gestão democrática ressaltamos a importância do Projeto
Político Pedagógico e os Conselhos de Educação.
A qualidade é normalmente tomada como atributo que qualifica um dado objeto, conferindo-lhe certas
características que o distinguem de outro objeto. É, portanto, um conceito relacional de valoração que
exige comparações, ainda mais quando se busca avaliar se um processo foi desenvolvido com boa ou
má qualidade. A avaliação da qualidade, ao deslocar-se do foro individual e debruçar-se sobre
questões sociais, passa, inevitavelmente, pelo debate coletivo, já que os diferentes contextos sociais,
econômicos e políticos dos indivíduos produzirão diferentes formas de encarar a qualidade.
A qualidade em educação que foi defendida, no Brasil, a partir dos anos 1980 e mais acentuadamente
posta em prática nas reformas educacionais dos anos 1990, conhecida como “qualidade total”,
vinculava-se, conforme Gentili (1999), a certa concepção de mundo própria do universo empresarial,
em que se destacava um ideal de eficiência e produtivismo dirigido aos interesses do mercado.
Toda visão do que seja qualidade traz junto consigo mecanismos de avaliação dessa mesma
qualidade. Logo, a partir desse modelo de qualidade empresarial e tecnicista na educação, surgem
testes padronizados e em larga escala, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB),
estabelecendo a lógica da competição, própria dos modelos de gestão privada, ao efetivar o
“ranqueamento” das escolas públicas, o que promove discriminação, exclusão social e
aprofundamento das desigualdades, instaurando, assim, a ênfase no resultado, no produto escolar, e
não mais no processo. Morre, então, o ideal do “Estado provedor” e nasce o “Estado avaliador”,
ausentando-se, cada vez mais, do controle direto sobre os processos educacionais ao apropriar-se
dos princípios da administração pública gerencial (BARROSO, 2005).
Por outro lado, houve e há, ainda hoje, resistências de parte da sociedade a esse viés mercadológico
de qualidade, estabelecendo uma disputa em torno desse termo, evidenciando que não há uma
qualidade universal, neutra, sem intencionalidades políticas que refletem, por sua vez, diferentes
visões de mundo. O que se encontra em choque, por trás da disputa da “qualidade”, são diferentes
modelos de “sociedade” e do “homem” que se deseja formar:
Partindo, portanto, da compreensão de que “qualidade” não é um conceito absoluto, é importante que
se tenha clareza de qual qualidade se busca na educação, pois esta pautará, em grande medida, os
objetivos do projeto educativo (formar para o mercado ou para a vida), seu modo de formação (mais
ou menos democrático), sua abrangência e escopo (isolada nas questões internas da escola ou
conectada ao seu entorno e às questões da política nacional de educação). A qualidade na educação
deve ser construída e avaliada enfrentando-se essas tensões e contradições próprias do fazer social,
a partir dos parâmetros gerais estabelecidos nacionalmente, mas em negociação com as
necessidades locais, compreendendo-se a comunidade escolar num fluxo dinâmico entre o micro e o
macro, referenciando-a, portanto, socialmente, tendo por construto basilar o diálogo e a participação
numa gestão democrática da educação.
Ao focar apenas em critérios mercadológicos para pensar a qualidade da educação e sua avaliação
(tecnicismo com medidas descontextualizadas e generalizantes), a gestão pública torna-se refém dos
interesses do capital e dos negócios, desprezando as questões sociais e de ordem regional e
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comunitária, que, assim, tendem a se agravar. A qualidade e a avaliação devem englobar o complexo
educativo, envolvendo diferentes sujeitos internos e externos:
Pensar a qualidade necessária para a educação é pensar a complexidade social da escola, com seus
objetivos formativos específicos, mas, também, a partir de valorações e marcos mais amplos da
sociedade e comunidade em que está inserida. A escola, como instituição social, não se restringe
apenas à sua capacidade de mediar o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades dos alunos,
mas resulta de uma intrincada negociação, entre diferentes setores e classes, acerca de qual
sociedade se deseja construir. Por isso mesmo, a qualidade almejada para a educação envolverá,
inevitavelmente, confrontos políticos e ideológicos, o que torna necessária a mediação social dessa
qualidade, através de mecanismos internos coletivos (como o Projeto Político Pedagógico) e
instâncias externas de debate (como os Conselhos de Educação em seus diversos níveis).
Partindo-se, portanto, da necessidade, na educação, da qualidade socialmente referenciada, entende-
se que a escola deve preparar para o trabalho, para o mercado, mas de forma alguma deve se limitar
a ele, devendo propiciar uma formação humana completa, formando o aluno, acima de tudo, para a
vida em sociedade, para seus diferentes aspectos e desafios.
A busca pela qualidade socialmente referenciada abarca tanto os fatores internos à escola, quanto os
externos, o que obriga a olhar o processo de escolarização de forma mais profunda, para além de
instituição isolada do meio. No interior da escola, a qualidade social da educação é respaldada por
um conjunto de fatores como: o respeito às diferenças; diálogo entre escola e famílias; a organização
do trabalho pedagógico e gestão da escola; seus projetos; estrutura, organização técnica e
pedagógica, formação docente etc. As políticas nacionais, estaduais e municipais de educação,
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construídas fundamentalmente fora da escola, também devem ser abarcadas pela comunidade
escolar, assim como o debate acerca das condições de existência e permanência de todos os sujeitos
dessa comunidade (professores, alunos, funcionários, gestores). Tendo em vista essa complexidade
de fatores sociais (macro e micro) e de diferentes sujeitos envolvidos com o desenvolvimento da
qualidade socialmente referenciada na educação, ressalta-se, em especial, um elemento chave, que
deve mediar todos esses processos para que haja, realmente, construção social e coletiva da
qualidade: a gestão democrática.
A luta por uma política democrática na educação é antiga, sendo centro dos debates entre as décadas
de 1960 e 1980, presente, por exemplo, nas disputas pela constituinte de 1988, período em que
finalmente se consagra a gestão democrática do ensino público, instituída na Constituição Federal. A
implantação da gestão democrática como forma de gerenciamento da escola pública, assumida como
princípio de ensino com a Constituição Federal de 1988 e reafirmada com a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional nº 9.394/96, implica na organização e fortalecimento de mecanismos para
efetivação da participação da comunidade na escola.
Mas, obviamente, apenas a existência da lei, como evidencia Gadotti (2001), não estabelece a
democracia, é preciso que todos os membros da comunidade escolar se apropriem de seu significado
político, numa construção contínua e coletiva através de espaços dinâmicos abertos ao diálogo e ao
conflito saudável entre as diferentes formas de se enxergar esse espaço formativo.
No Brasil, o tema autonomia na escola aparece na Constituição federal de 1988, sendo desta forma,
um debate ainda recente. Segundo Gadotti (2006), este tema é eminentemente político, pois relaciona-
se à crítica quanto ao papel do Estado. Gadotti (2006) ainda cita o conselho de escola como essencial
para a autogestão, que é um sistema no qual os próprios colaboradores administram a instituição, no
caso, a escola. A ideia de autonomia está relacionada à ideia de democracia e cidadania e, como disse
Bernard Charlot durante um debate no III Fórum Mundial de Educação: “Não há democracia sem escola
pública forte, afinal somente com uma escola pública de qualidade é possível construir um verdadeiro
Estado Republicano” (CHARLOT, 2004 apud GADOTTI, 2006). A autonomia admite a diferença e por
isso supõe a parceria e a construção conjunta.
Um instrumento coletivo fundamental para pautar a democracia, a autonomia e a participação na
gestão é o Projeto Político Pedagógico (PPP), construído como eixo norteador orgânico e vivo dos
rumos da comunidade educativa. É através desse projeto que se pode articular os objetivos
pedagógicos e administrativos com o envolvimento de todo o coletivo escolar, estabelecendo um
plano de ação, indicando caminhos possíveis na busca e alcance da qualidade socialmente
referenciada, pensando, portanto, não só a ação educativa como as condições de vida dos membros
dessa comunidade.
Lima (2015) defende que o PPP pode funcionar como instrumento para construção da gestão
democrática da escola, construindo uma consciência coletiva do contexto sociopolítico em que se
insere. O PPP pressupõe a participação de todos os sujeitos envolvidos na escola, trabalhadores da
educação, alunos e pais, portanto, está aberto às transformações sociais que afetam esses sujeitos e
às suas posições diante do mundo. O PPP pode, portanto, através de seus mecanismos democráticos,
reivindicar direitos e contestar o que impeça o acesso a eles. Ao se educarem através do processo
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Conselho vem do latim Consilium. Por sua vez, consilium provém do verbo
consulo/consulere, significando tanto ouvir alguém quanto submeter algo a
uma deliberação de alguém, após uma ponderação refletida, prudente e de
bom-senso. Trata-se, pois, de um verbo cujos significados postulam a via de
mão dupla: ouvir e ser ouvido. Obviamente a recíproca audição se compõe
com o ver e ser visto e, assim sendo, quando um Conselho participa dos
destinos de uma sociedade ou de partes destes, o próprio verbo consulere já
contém um princípio de publicidade (CURY, 2000, p. 47).
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