Cinema Panopticum de Thomas Ott Imagens Terror e C

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 17

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.

e2xxxx

Cinema Panopticum, de Thomas Ott: imagens, terror e


controle social1

Cinema Panopticum, by Thomas Ott: images, terror and


social control

Pascoal Farinaccio2
Universidade Federal Fluminense

10.11606/2316-9877.Dossiê.2023.e217297

Resumo:
Propõe a análise crítica da história em quadrinhos Cinema Panotpticum (2021), de
Thomas Ott. Na narrativa, uma garota vai a um parque de diversões onde assiste a
pequenos filmes em cabines de cinetoscópio (um aparelho de projeção de imagens
inventado em 1894). Pelo olhos da garota, o leitor acompanha, nos filmes, histórias
macabras e cruéis. Inicialmente, a reflexão debruça-se, aqui, sobre o conceito de
panóptico, estudado por Michel Foucault (2014), para estabelecer uma relação entre o
universo das imagens e o controle social. Na sequência, busca-se esclarecer, com apoio
em teorias do cinema, o diálogo criativo de Thomas Ott com o cinema expressionista
alemão e sua atmosfera de terror; por fim, demonstra-se como o autor recupera algo do
fascínio e temor dos primeiros espectadores em face das imagens cinematográficas.

Palavras-chave:
Thomas Ott (Autor). Cinema Panopticum. Histórias em quadrinhos. Cinema
expressionista alemão. Controle social.

Abstract:
It proposes a critical analysis of the graphic novel Cinema Panotpticum (2021), by
Thomas Ott. In the narrative, a girl goes to an amusement park where she watches short
films in kinetoscope booths (an image projection device invented in 1894). By the girl's
eyes, the reader follows macabre and cruel stories in the films. Initially, the reflection
focuses here on the concept of panopticon, studied by Michel Foucault (2014), to
establish a relationship between the universe of images and social control. Next, we seek
to clarify, with support from cinema theories, Thomas Ott's creative dialogue with
German expressionist cinema and its atmosphere of terror; finally, it is demonstrated

1Apresentado na Seção Temática 14 - “Quadrinhos, Artes e Mídia”, em 24 ago. 2023.


2 Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, com pós-doutorado pela Università di
Bologna. Professor de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou
diversos artigos em revistas acadêmicas e os livros Serafim Ponte Grande e as dificuldades da
crítica literária (Ateliê Editorial, 2001), Oswald Glauber: arte, povo, revolução (EdUFF, 2012) e A
Casa, a nostalgia e o pó: a significação dos ambientes e das coisas nas imagens da Literatura e
do Cinema: Lampedusa, Visconti e Cornélio Penna (Relicário Edições, 2019). Email:
[email protected]. ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-0675-2839.

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
1
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

how the author recovers something of the fascination and fear of the first spectators in
the face of cinematic images.

Keywords: Thomas Ott (Autor). Cinema Panopticum..Ccomics; German expressionist


cinema. Social control.

Introdução
Cinema Panopticum, de Thomas Ott, é uma história em quadrinhos publicada no
Brasil em 2021 pela editora DarkSide. Trata-se de obra que estabelece um forte
diálogo com outra forma de expressão artística, a saber, o cinema, e, muito
particularmente, com o cinema expressionista alemão de inícios do século XX,
como procuraremos demonstrar. Nessa perspectiva, talvez seja importante
informar que o autor, Thomas Ott, um suíço nascido em 1966 e artista versátil
(atua como quadrinista, músico e artista visual), estudou cinema na Escola de
Arte e Design de Zurique.
Consideradas isoladamente, as ilustrações de Cinema Panopticum,
lembram gravuras, sempre em preto e branco e hachuradas: são concebidas
mediante a técnica de scratchboard (ou carte à gratter), a qual consiste em se
fazer primeiramente um desenho em uma folha, o qual é copiado depois sobre
o papel de riscar, que por sua vez é talhado com um estilete, criando-se assim
um efeito de “rasgadura”, isto é, de pequenas linhas atravessando a superfície.
Para ilustrar a técnica inserimos aqui (figura 1) as duas páginas iniciais da
história, as quais nos servem também para introduzir a trama que se irá narrar:

Figura 1 - A garota chega ao parque de diversões

Fonte: Ott, 2021, p. 10-11. Acervo do autor.

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
2
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

O enredo, simples e engenhoso a um só tempo, é o seguinte: uma


menina, que dispõe de algumas moedas, vai a um parque de diversões no qual
irá procurar uma atividade lúdica que lhe seja possível realizar dentro de suas
parcas possibilidades financeiras. Como só possui algumas moedas, ela fica
restrita a uma única atração: justamente a tenda chamada de Cinema
Panopticum. Dentro dela encontram-se cinco cabines de cinetoscópio. O
cinetoscópio é um aparelhinho inventado por William Dickson nos estúdios de
Thomas Edison; lançado em 1894, considerado um primeiro projetor de cinema
(um dispositivo diferente, note-se de passagem, do cinematógrafo criado pelos
irmãos Lumière em 1895, o qual, além de projetar imagens, permitia também
gravá-las). A cabine de cinetoscópio possibilitava ao pagante, mediante a
inserção de uma moeda, assistir a filminhos de 30 a 60 segundos, isto é,
fotografias em movimento que passavam a ilusão de um fluxo imagético
contínuo: um aparelhinho do final do século XIX, período sabidamente obcecado
pelo desejo de compreender e apreender o movimento - desejo que culminaria,
em termos técnicos, na invenção do cinema e de sua “magia” do movimento.
Após a descoberta da tenda Cinema Panopticum, o que se seguirá é a
inserção das moedas no aparelho e a exibição dos filminhos. E aqui, cabe logo
destacar, é notável a capacidade de Ott em criar os filminhos, que assistimos a
partir da visão da menina. São cinco filmes breves intitulados: “O Hotel”, “O
Campeão”, “O Experimento”, “O Profeta” e, por fim, “A Garota”. Ott não se vale
de nenhuma estratégia verbal, a narrativa se articula exclusivamente com o uso
de imagens, como um filme do período do cinema mudo.
Com relação a esse diálogo dos quadrinhos com a linguagem
cinematográfica, cumpre lembrar que as duas expressões artísticas possuem
muitas afinidades, tendo inclusive surgido no mesmo momento histórico, o final
do século XIX. Ambas lidam com imagens e rapidamente se estabeleceram
como fenômenos de comunicação de massa, vinculados à formação das
grandes metrópoles do mundo e à emergência de uma cultura urbana vibrante e
em permanente transformação. Do ponto de vista formal, vale frisar, lembrando
a excelente observação de Scott McCloud, que “antes de ser projetado o filme é
só um gibi muito muito muito lento” (McCloud, 2005, p. 8). McCloud refere-se
aqui aos fotogramas que compõem um filme de cinema: projetados geralmente

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
3
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

numa velocidade de 24 fotogramas por segundo, isto é, numa velocidade que


impossibilita ao olho humano capturar as cesuras entre um fotograma e outro,
cria-se a impressão de uma continuidade imagética sem cortes.
No caso dos quadrinhos, quem imprime a velocidade de troca de uma
imagem à outra é o olho humano, sem a mediação do maquinismo
cinematográfico. Os filminhos do cinetoscópio, como já observado, duravam de
30 a 60 segundos; portanto, é de se notar que, no caso da história em quadrinhos
Cinema Panopticum, a “duração” do filme que nos é apresentado a partir da
perspectiva da menina no parque, é a duração do processo de leitura das
imagens, que pode variar muito de pessoa a pessoa, mas que certamente
ultrapassará os 30 a 60 segundos programados no dispositivo do cinetoscópio.
De fato, o filme aqui desnuda-se, precisamente por conta do diálogo criativo
entre linguagens artísticas diversas, como um gibi muito lento.

1 - O sistema panóptico
Antes de passarmos à apreciação dos filminhos representados na obra, é
importante que seja feito um esclarecimento sobre o termo panopticum, que está
no título da história em quadrinhos. Trata-se basicamente de um mecanismo de
vigilância e controle social, estudado por Michel Foucault em capítulo célebre de
seu livro Vigiar e punir. O sistema panóptico tem seu exemplo mais famoso na
penitenciária idealizada, em 1785, pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham
(1748-1832): na periferia, há uma construção em anel, tendo em seu centro uma
torre de vigia; no anel semicircular ficam as celas nas quais os prisioneiros são
vistos pelo vigia na torre. Conforme explica Foucault (2014), o panóptico é uma
máquina de dissociar o par ver / ser visto: no anel periférico o prisioneiro é o
tempo todo visto, mas sem nunca ver o seu vigia; na torre central, vê-se tudo,
mas sem jamais ser visto. Ou seja, o que garante a eficácia do sistema é a
consciência permanente, por parte do prisioneiro, de estar sendo vigiado a todo
tempo, independentemente de que isso esteja ocorrendo de fato (o vigia pode,
eventualmente, se ausentar em determinado momento da torre, mas o
prisioneiro não tem como saber disso, já que nunca o vê).
Com relação à Cinema Panopticum, de Ott, podemos dizer que nós,
leitores, ocupamos o lugar do vigia e assistimos às histórias que, via de regra,

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
4
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

são marcadas pelo sofrimento físico e psicológico das personagens – tal como
o sofrimento daqueles, podemos conjecturar, confinados nas celas do presídio
ideal de Bentham (sem prejuízo do humor ácido que comparece em alguns
desses filmes da história em quadrinhos). Mais à frente veremos como o clima
de angústia, pavor, maus presságios dos filmes do cinetoscópio pode ser melhor
elucidado a partir de uma referência ao cinema expressionista alemão, com o
qual Ott nitidamente dialoga em seu processo criativo. Vemos o sofrimento alheio
como espectadores que não são vistos por ninguém.
Outro aspecto fundamental do sistema panóptico, e que nos interessa
especialmente, é a “leveza” que se lhe atribui. Nessa perspectiva, observa
Michel Foucault:

Bentham se maravilha de que as instituições panópticas


pudessem ser tão leves: fim das grades, fim das correntes, fim
das fechaduras pesadas, basta que as separações sejam nítidas
e as aberturas bem-distribuídas. O peso das velhas “casas de
segurança”, com sua arquitetura de fortaleza, é substituído pela
geometria simples e econômica de uma “casa de certeza”
(Foucault, 2014, p. 196).

Leveza que tende ao “incorpóreo”:


o poder externo, por seu lado, pode-se aliviar de seus fardos
físicos; tende ao incorpóreo: e quanto mais se aproxima desse
limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos
em caráter definitivo e continuamente recomeçados: vitória
perpétua que evita qualquer defrontamento físico e está sempre
decidida por antecipação (Foucault, 2014, p. 196).

A passagem realmente nos interessa porque, traçando uma linha histórica


dos procedimentos de vigilância, podemos observar que as imagens vão
ganhando um papel cada vez mais proeminente em todo tipo de controle social
nas sociedades modernas. A fotografia, desde sua invenção, está atrelada a
esse movimento de identificação, controle e incriminação dos sujeitos:

No passado, a identificação dos criminosos quase sempre


dependera de uma marca direta e visível aplicada pelas
autoridades legais no corpo do prisioneiro, equivalente à marca
bíblica de Caim. Muitos dos primeiros romances de aventura do
século XIX abordaram a descoberta da cicatriz feito a ferro
quente com a qual a França marcava os malfeitores para o resto
da vida (por exemplo, a marca no ombro de Milady em Os três

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
5
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

mosqueteiros, de Dumas, que revela seu passado criminoso)


(...) Os primeiros proponentes da fotografia policial
reconheceram que o novo procedimento imitava a aplicação da
marcação a ferro quente e a aperfeiçoava tecnologicamente. Em
1854, o inspetor geral das prisões francesas, Louis-Mathurin
Moreau-Christophe, promoveu a prática de fotografar a
população carcerária como a “infiltração de uma nova marca”
(Gunning, 2004, p. 39-40, grifo do autor).

A fotografia representa, portanto, um ponto avançado na constituição de um


sistema de vigilância “leve”, “incorpóreo”. Nos dias atuais, basta pensar nas redes
sociais da internet para vislumbrar, de forma muito concreta, a consolidação de
sistemas de vigilância incorpóreos, que não chegam a amedrontar seus
frequentadores – um perfeito panóptico digital, para cuja eficiência controladora os
próprios “vigiados” cooperam de bom grado. A imagem cumpre na sociedade
contemporânea, entre outras funções, a de vigilância permanente dos passos dos
sujeitos ligados às redes de informação na internet. Voltando à imagem fotográfica,
vale lembrar que cinema é, em sua essência, fotografia em movimento – e no caso
dos primórdios do cinema, a imagem tanto gerava fascinação (como ainda hoje)
quanto temor. Cinema Panopticum é um bom exemplo dessa mistura de
sentimentos contraditórios na contemplação das imagens.

2 - Dois filmes exibidos no Cinema Panopticum


A história narrada na obra de Ott não apresenta nenhuma indicação de data; como,
entretanto, a garota diverte-se com cabines de cinetoscópio, lançadas, como dito
antes, em 1894, podemos supor que a trama se desenrola em algum momento
entre o fim do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. Na
impossibilidade de analisarmos todos os filmes do cinetoscópio aos quais a menina
assiste no parque, escolhemos aqui, para comentar brevemente, duas histórias que
nos parecem mais impactantes e pertinentes para se pensar a questão da imagem
utilizada nos quadrinhos em relação a certas características que informam o clima
psicológico específico do cinema expressionista alemão. O primeiro filme do
cinetoscópio intitula-se “O Hotel”. Um homem chega a um hotel, e logo percebe que
ele está, ao que tudo indica, completamente vazio (figura 2).

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
6
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Figura 2 - O homem e o hotel vazio

Fonte: Ott, 2021, p. 26-27. Acervo do autor.

O homem inicia então um périplo pelas dependências do hotel. Chega a


uma sala em que encontra uma mesa posta com diversos alimentos; sentindo-
se com fome, decide comer e o faz com bastante gosto. Satisfeito com a comida,
passa a sentir sonolência, boceja e decide, por fim, retornar ao saguão de
entrada, onde, como se dera em sua chegada, novamente não encontra
nenhuma pessoa. Por conta própria, pega aleatoriamente uma chave de um
quarto e nele se instala para descansar e dormir.
Após um certo período que passa dormindo, acorda subitamente se
sentindo muito mal; levanta-se e vai até o banheiro, vomitando então no vaso
sanitário. Acossado pelo sofrimento que não cessa, decide sair do quarto em
busca de ajuda. Anda pelos corredores do hotel, desesperado, batendo com os
punhos na porta de determinados quartos, mas sem obter nenhuma resposta.
Por fim, consegue adentrar alguns cômodos, nos quais vê, horrorizado, várias
pessoas mortas deitadas em suas camas ou simplesmente caídas sobre o chão,
como ilustrado na figura 3:

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
7
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Figura 3 - O homem passa mal e encontra pessoas mortas nos quartos

Fonte: Ott, 2021, p. 36-37. Acervo do autor.

O personagem prossegue em sua fuga aflitiva até que termina por sair do
hotel através da entrada pela qual inicialmente ingressara (figura 4). E nesse
passo Ott muda repentinamente o enquadramento da cena e o que vemos é uma
espécie de caixinha que se encontra depositada no chão, vista a partir de uma
perspectiva aérea, por assim dizer. O hotel era, em fim de contas, uma caixinha.
Mas efetivamente do que se trata?

Figura 4 - O homem consegue sair do “hotel”

Fonte: Ott, 2021, p. 38-39. Acervo do autor.

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
8
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

A imagem final do episódio (figura 5) deixa tudo terrivelmente claro para


o leitor/espectador:

Figura 5 - A barata e a armadilha para homens-insetos

Fonte: Ott, 2021, p. 40. Acervo do autor.

A caixinha/hotel desvela-se como uma armadilha para matar baratas


bastante conhecida: trata-se de um recipiente de papel em cujo interior se
encontra uma isca, em verdade um veneno, que atrai o inseto – quando come a
isca, a barata morre. Em “O Hotel” há uma brutal inversão (de sabor kafkiano,
diga-se de passagem): o ser humano é tratado como uma barata, é atraído para
um “hotel” no qual come alimento envenenado e morre de forma terrível, sentindo
muitas dores, como podemos notar pelas ilustrações. Por sua vez, a imagem
final da narrativa mostra uma barata imensa preparando tranquilamente comida
em um fogão caseiro. Ocorre, portanto, uma inversão de papeis entre ser
humano e inseto: um evento grotesco a que assistimos tranquilamente de nossa
segura torre panóptica.
O outro filme do cinetoscópio sobre o qual queremos nos deter é intitulado
“O Campeão”. Nessa história, temos um praticante de luta livre (ou algo do
gênero) chamado El Macho e suas batalhas no ringue. Na página dupla a seguir
(figura 6) vemos o lutador em plena ação: ele derruba e imobiliza um adversário,

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
9
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

vencendo, portanto, a luta e, na sequência, é agraciado com um cinturão – o que


justifica o título do filme.

Figura 6 - O campeão no ringue

Fonte: Ott, 2021, p. 48-49. Acervo do autor.

Após a luta, o campeão retorna para casa, onde é recebido com carinho
pela mulher e pela filhinha. Esse clima de felicidade familiar é rapidamente
alterado, entretanto, com a chegada à janela de um corvo que traz um bilhete:
El Macho é desafiado a lutar na madrugada com La Muerte... Sua esposa fica
preocupadíssima, mas na hora sugerida para o confronto o campeão parte para
o local da luta. Chegando ao ringue no estádio Coliseo, àquela hora
completamente vazio, ele encontra de fato a Morte, representada de maneira
bastante tradicional: um esqueleto sob um manto com capuz. Inicia-se a luta.
Enquanto Macho luta pela vida, Ott insere outra sequência de ilustrações
que mostram o que está acontecendo na casa do campeão naquele mesmo
momento (figura 7). Sua filhinha desembrulha o papel do bilhete da Morte que
chegara com o corvo, e que havia sido deixado amassado sobre a mesa pelo
pai. Dentro do papel há um escorpião...

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
10
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Figura 7 - A menina e o escorpião

Fonte: Ott, 2021, p. 58-59. Acervo do autor.

A página dupla também mostra o resultado da luta de El Macho com La


Muerte: ainda dessa vez, o lutador vence a batalha e aparentemente derrota a
Morte... Ledo engano! Também nessa história as coisas acabarão muito mal
para o protagonista. Chegando em casa depois de vencer o desafio, o lutador
fica sabendo que sua filha havia sido picada pelo escorpião e morrido, o que o
leva ao desespero.
Eis a imagem final da narrativa (figura 8):

Figura 8 - A menina e a Morte

Fonte: Ott, 2021, p. 62. Acervo do autor.

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
11
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Aqui vemos a criança de mão dada com a Morte, que a levou para outro
plano. A mensagem é cristalina: ninguém vence a Morte. Pode-se tentar adiar
sua chegada (como no famoso filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman,
de1957, em que um cruzado do Medievo joga xadrez com a Morte para ganhar
mais tempo de vida...), mas quem sempre há de dar o xeque-mate, literalmente,
é a Morte, como descobre o campeão El Macho.

3 - Cinema Panopticum e cinema expressionista alemão


A atmosfera sombria dos filmes do cinetoscópio, como realizados pela
imaginação de Ott, encontra um paralelo forte, a nosso ver, com as produções
do cinema expressionista alemão. De fato, trata-se mais de uma atmosfera, um
clima psicológico comum, do que uma semelhança em termos de procedimentos
formais. Não encontramos nas ilustrações de Ott, por exemplo, as deformações
expressionistas dos cenários – que transformam objetos materiais em
ornamentos emocionais – dos filmes alemães; de modo geral, as imagens de Ott
são mais realistas na representação do mundo material e das figuras humanas,
sem prejuízo, logicamente, do forte efeito de estranhamento que causam, como
no caso do “hotel,” que é uma armadilha assassina, e da terrível barata que
cozinha ao fogão.
O parentesco forte com o cinema expressionista alemão está na criação
de uma atmosfera sombria e de maus presságios, que leva o leitor a sempre
esperar que o pior aconteça... Em estudo clássico sobre essa produção
cinematográfica, Siegfried Kracauer demonstra como os filmes alemães do pós-
guerra (produzidos entre 1918 e 1933) preanunciam a emergência da tirania e
do desejo de destruição e autodestruição que tomaria conta da Alemanha com
a ascensão de Hitler ao poder em 1933. Filmes repletos de assassinos,
criminosos, hipnotizadores, vampiros e outros monstros sanguinários, os filmes
anunciam o que estava sendo gestado como um ovo da serpente.
Um dos filmes mais famosos e paradigmáticos do período, O gabinete do
Dr. Caligari (1920), dirigido por Robert Wiene e escrito por Hans Janowitz e Carl
Mayer, é um exemplo extraordinário dessa cinematografia macabra. Nele,
Caligari é um tirano (o tema da tirania é o mais recorrente no cinema
expressionista alemão) e hipnotizador, cuja personalidade pode ser assim

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
12
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

descrita: “ele exemplifica uma autoridade ilimitada que idolatra o poder como tal
e que, para satisfazer sua avidez pela dominação, viola cruelmente todos os
direitos e valores humanos” (Kracauer, 1988, p. 82). Nessa perspectiva, Caligari
é uma premonição de um líder histórico, que será um grande hipnotizador das
massas, e que levará o caos e a destruição ao mundo:

Caligari é uma premonição muito específica, no sentido de que


usa seu poder hipnótico para forçar seu desejo sobre seu
instrumento – uma técnica pressagiando, em conteúdo e
propósito, a manipulação da alma que Hitler foi o primeiro a
colocar em prática em escala gigantesca (Kracauer, 1988, p. 89).

O Gabinete do Dr. Caligari é um filme que se inicia em um parque de


diversões, onde o tirano faz demonstrações de seu poder de hipnose. É muito
interessante a reflexão que Kracauer elabora sobre o parque de diversões como
lugar que dá vazão ao “caos de instintos” humanos, libertando-o
momentaneamente da repressão psicológica induzida pelas normas da
civilização e pela vida adulta:

As pessoas de todas as idades se divertem perdendo-se na


selva de cores brilhantes e sons agudos, habitada por monstros
e repleta de sensações corporais – de violentos choques a
sabores de incrível doçura. Para os adultos é uma regressão aos
dias da infância, nos quais jogos e negócios se misturam, e
desejos anárquicos testam sem objetivo possibilidades infinitas.
Através dessa regressão, o adulto escapa de uma civilização
que tende a crescer demais e a matar de fome o caos de
instintos – escapa dela para restaurar aquele caos sobre o qual
a civilização sempre repousa (Kracauer, 1988, 90).

Vale lembrar que a história de Cinema Panopticum também se passa em


um parque de diversões, no qual a menina encontra as cabines de cinetoscópio
e assiste aos pequenos filmes recheados de eventos cruéis e trágicos. Como em
Caligari, há neles uma atmosfera geral de horror – um mundo, como o de
Caligari, como posteriormente também o mundo nazista, “abundante de sinistros
presságios, atos de terror e explosões de pânico” (Kracauer, 1988, p. 90).

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
13
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

4 - Fascínio e estranhamento nos primórdios do cinema


Como a história de Cinema Panopticum se passa entre o final do século XIX e o
início do XX é preciso registrar ainda outro elemento importante que nos parece
incidir decisivamente na elaboração do enredo: o cinema estava em seus inícios e
a relação das pessoas com as tecnoimagens era um fenômeno novo e capaz de
despertar sentimentos ambíguos. Como escreve Erik Felinto sobre esse momento
de emergência do cinema enquanto meio de comunicação de massa: “As reações
iniciais ao fenômeno das imagens em movimento foram de estranheza e de fascínio
com essa duplicação irreal do mundo” (Felinto, 2013, p. 74).
O século XIX, em especial seu último quartel, sabidamente é marcado por
grande avanço científico, desenvolvimento tecnológico e revolução industrial.
Aparentemente, uma vitória da racionalidade científica e instrumental contra toda
forma de mistificação ou crendice; entretanto, essa é apenas uma face da
moeda, sendo a realidade concreta muito mais complexa que esse pano de
fundo chapado – enfim, já se escreveu que a contradição é o próprio nervo da
vida. Como lembra Felinto, “o século XIX testemunhou também um vigoroso
ressurgimento do interesse por tudo aquilo que, precisamente, parecia escapar
à normatização da ciência: fenômenos psíquicos e paranormais, espíritos e
assombrações, ilusões e fantasmagorias” (Felinto, 2013, p. 69).
O cinema nascia, portanto, “num momento em que o homem moderno se
enamorava profundamente pelos mistérios do além” (Felinto, 2013, p. 68); de
forma inusitada, a tecnologia cinematográfica entrava em sintonia fina com esse
fascínio pelo enigmático e pelo inexplicável: “os limites entre a ciência e a
tecnologia e os espantosos domínios do além estavam longe de ter sido
inteiramente traçados. O tecnológico se ligava à sensação de maravilhamento,
à produção de efeitos extraordinários e inusitados” (Felinto, 2013, p. 70).
Reportando-se justamente aos filmes do cinema expressionista alemão,
Felinto observa que essa produção pode nos oferecer uma espécie de “teoria do
filme”, podendo-se pensar, a partir dela, o cinema como uma forma de hipnose.
Mesmo porque não foram poucos os teóricos, nos primórdios do cinema, a
estabelecer uma conexão entre o filme e o próprio funcionamento da mente, a
exemplo de Hugo Münsterberg (1863-1916): na obra teórica desse polonês que
se radicaria nos Estados Unidos da América, o cinema é “caracterizado como

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
14
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

uma expressão perfeita das emoções e faculdades mentais, como a memória e


a atenção” (Felinto, 2013, p. 77). No cinema, cada sonho parece se tornar real e
fantasmas estranhos aparecem do nada e desaparecem no nada, isso tudo em
perfeita concordância com o funcionamento da mente humana: “Na tela
iluminada não vemos apenas duplos do mundo, das pessoas e objetos, mas
também uma reflexão da própria mente” (Felinto, 2013, p. 77).

Considerações finais
Essas observações de Felinto sobre o maravilhamento, o fascínio e, também, certa
desconfiança e temor diante das recentes imagens cinematográficas que viriam
posteriormente a se disseminar de forma muito rápida pelo mundo todo nos parecem
muito pertinentes para avançar uma possível interpretação acerca das ilustrações
finais de Cinema Panopticum. Com uma última moeda em mãos a menina prepara-
se para assistir a seu último filme na cabine do cinetoscópio (figura 9).

Figura 9 - A última moeda e o último filme

Fonte: Ott, 2021, p. 105. Acervo do autor.

Chama a atenção, na imagem acima, que a menina irá assistir, conforme


se pode ler na cabine do cinetoscópio, a um filme intitulado “A garota”. Com esse

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
15
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

procedimento, Ott produz uma espécie de circularidade no andamento da


narrativa, que se inicia com a chegada da garota ao parque e irá se concluir com
um espelhamento da imagem da própria menina – como se ela fosse enfim
absorvida pelas tecnoimagens a que, até então, vira com curiosidade e espanto,
mas com certo distanciamento.
No entanto, o filme de agora dirá respeito diretamente a ela: a sua história
em imagens. Ocorre aqui que, diferentemente de todos os outros filmes
assistidos pela menina, no caso de “A garota” não teremos acesso ao que ela vê
na tela. Apenas percebemos que se trata de algo amedrontador, que faz com
que a menina fuja da tenda do Cinema Panopticum (figura 10).

Figura 10 - A menina foge aterrorizada com o que vê

Fonte: Ott, 2021, p. 106-107. Acervo do autor.

Se levarmos em conta os outros filmes da história em quadrinhos, como


os dois abordados neste artigo, podemos imaginar que “A garota” possa ter um
desfecho tão cruel ou trágico como o daqueles, daí o horror demonstrado pela
menina e sua consequente fuga. Mas também podemos aventar outra hipótese,
ligada ao fascínio e ao temor despertados pelas imagens cinematográficas em
seus primórdios. Pois a imagem, como bem lembra Erik Felinto, é ela mesma um
“fantasma”: “O duplo cinematográfico é um fantasma, pois não tem materialidade
nem dimensão; porém é aterrorizante como o fantasma, já que anuncia a
preocupante imaterialidade do próprio eu” (Felinto, 2013, p. 79).

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
16
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Talvez o que a garota tenha visto em “A garota” possua alguma afinidade


com o mistério maior, a saber, a morte; e que tenha vislumbrando ou pressentido
que, em algum dia do futuro, sua própria figura humana subsistirá apenas na
condição de imagem, esse fantasma moderno.

Referências
FELINTO, Erik. O estranho caso do Doutor Mabuse e o fantasma de
Münsterberg: o cinema como experiência psíquica entre a ortopedia e a
patologia. In: MÜLLER, Adalberto; SCAMPARINI, Julia (Org.). Muito além da
adaptação: literatura, cinema e outras artes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

O GABINETE DO DR. CALIGARI. Direção de Robert Wiene. Roteiro de: Hans


Janowitz e Carl Mayer. 1920. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=yQn1j34-f4A. Acesso em: 28 out. 2023.

GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os


primórdios do cinema. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. Schwartz
(Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
p. 33-65.

KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema


alemão. Trad. Tereza Ottoni. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M.Books do Brasil


Ltda, 2005.

O SÉTIMO SELO. Direção: Ingmar Bergman. 1957. 96m, p&b. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=E5XDZrLBorQ. Acesso em: 28 out. 2023.

OTT, Thomas. Cinema Panopticum. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2021.

Recebido em: 18.10.2023


Aprovado em: 25.10.2023

Artigo está licenciado sob forma de uma licença


Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx


9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx
São Paulo – Dossiê da 7ª JIHQ.e217297
17

Você também pode gostar