LE BOURLEGAT, Cleonice Alexandre. Do Território Produzido e Vivido Ao Dinamismo Territorial. Campo Grande, MS, 2008.

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DO TERRITÓRIO PRODUZIDO E VIVIDO

AO DINAMISMO TERRITORIAL
Cleonice Alexandre Le Bourlegat
junho de 2008

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1. INTRODUÇÃO

Os seres humanos, ao cristalizarem as relações entre si e com o ambiente vivido,


constroem-se como sujeitos (individuais e coletivos), ao mesmo tempo em que
constroem territórios como sistemas geográficos, com estrutura, conteúdo e sentido
existencial, dotados de meios com dinâmicas próprias.
Uma vez construído o território, a sociedade que lhe deu origem passa a manter
com ele relações dialéticas, num processo interativo, impregnando-se de seu modelo
construtivo (MORIN, 1998) e criando sentimentos e emoções que favorecem a
vinculação com o grupo/ ou coletividade e a vinculação com o próprio território, na
construção de um mundo particular, por meio do qual se comunica com outros mundos.
Nessa relação interativa, o sujeito – individual e coletivo – passa a manter no
território uma relação existencial, na medida em que vivencia ali o cotidiano de suas
relações sociais e com o território construído e que continua a construir. Nesse processo,
o sujeito –individual e coletivo- constrói sociedade e território, ao mesmo tempo sendo
construído por eles, numa circularidade constante.
O território se constrói por e a partir de relações estabelecidas por um conjunto
de indivíduos (atores), em um dado ambiente físico de referência (SOUZA, 1995), para
por em pratica um projeto em comum (portanto com um fim e assim é intencional), em
acordo ao modelo espacial presente na mente de seus construtores (RAFFESTIN, 1993),
a cultura nele impregnada e o conhecimento que os mesmos já detêm a respeito da
atividade e dos objetivos que eles pretendem alcançar.
O sistema territorial se constrói historicamente por um processo de apropriação,
em função do uso das capacidades e competências humanas na adaptação de recursos
disponíveis a fins previamente definidos coletivamente e que visam a adaptação ou
superação do modelo territorial constituído (SERFATY GARZON, 2003). Esse
processo também implica em experiência e aprendizado, cujo conhecimento resultante
fica incorporado nas pessoas e organizações e quando ele é compartilhado, fica também
enraizado no território.
2.TERRITÓRIO PRODUZIDO

O território construído, ou território produzido, configura-se como um sistema


que expressa um tipo de estrutura e ordenação sócio-espacial (BONNEMAISON,
2002). Cada conjunto estrutural de um sistema territorial é um “território produzido”.
Nasce do processo de produção e se estrutura em acordo com as próprias finalidades,
funções e nível tecnológico do território.

1.1 Dimensão tangível e intangível do território produzido


O território produzido apresenta uma estrutura em rede - constituída de uma
tessitura de linhas e nós – em duas dimensões:
(01) Dimensão tangível, constituída por estruturas de edificação e de
instrumentos de uso, de infra-estrutura de comunicações e transporte, de produção, entre
outros;
(02) Dimensão intangível, constituída por uma estrutura de regras, valores,
crenças, representações, símbolos, memória histórica, linguagem, conhecimento,
sentimentos.
A estrutura tangível constitui a dimensão objetiva do território, passível de ser
objeto de observação direta e de cartografia. Já a estrutura intangível constitui o
universo simbólico, a dimensão subjetiva do território, sendo possível de ser
interpretada por meio da fala dos sujeitos (atores) de cada território. Um elemento do
sistema tangível pode se revelar tangível, quando se materializa no território, a exemplo
de um símbolo religioso representado por meio de um templo construído, ou da
memória coletiva presente em um museu ou um monumento histórico.

3.TERRITORIO VIVIDO CONCEBIDO COMO ESPAÇO E COMO MUNDO


EXISTENCIAL

A dimensão subjetiva do território nasce do processo de vivência dos sujeitos –


individuais e coletivos- com o território construído e se manifesta como território
concebido e como mundo existencial..
2.1 Território concebido: o espaço geográfico
O território construído deixa seu modelo impregnado nas mentes de quem o
vivencia como “espaço concebido”, em forma e conteúdo. A cultura territorial inscreve
sua marca nos atores que dela fazem parte, tanto em sua maneira de conhecer – dado
pelo modelo e estrutura do pensamento e lógica de raciocínio – como de se comportar e
de projetar e construir estruturas construtivas.
E é com base nesse modelo espacial (espaço geográfico) que os sujeitos –
individuais e coletivos- continuam se reproduzindo e produzindo novos territórios
(RAFFESTIN, 1993). Assim, os indivíduos interagem e planejam suas ações com base
num modelo concebido de território anteriormente vivido (o espaço), mas o modelo
efetivamente construído da realidade vivida (território) acaba sendo fruto das
probabilidades de ações interativas e condições dadas pelo contexto espaço-temporal
(IDEM, 1993).

2.2 Território construído como mundo existencial: o “lugar”


As experiências diretamente vividas pelo corpo humano no território construído
e a relação intersubjetiva com esse território, por meio da herança sócio-cultural e do
papel assumido no cotidiano constituem condições básicas para que os seres humanos
criem a conscientização de um mundo compartilhado, apreendendo e comungando os
horizontes de mundo de outras pessoas e da coletividade como um todo (BUTTIMER,
1985).
As relações de vizinhança, os deslocamentos cotidianos pelos diferentes
lugares conhecidos e os pequenos atos corriqueiros no processo de vivência no território
construído, propiciam a busca de significações, carregadas de afetividade, símbolos e
emoções (CARLOS, 1996). Tuan (1980) denominou “topofilia” ao elo afetivo
estabelecido entre a pessoa e o lugar físico de existência que teria origem na maneira
como o ser humano percebe e estrutura seu mundo.
De fato, esse tipo de relação existencial permitiria uma integração total do
sujeito com o objeto construído (BUTTIMER, 1985), num processo de construção
holística (integração do ser no todo) possibilitando-lhe a percepção do território vivido
como seu “lugar” e seu “mundo particular”, ao mesmo tempo revelando por ele e por
quem nele vive um sentimento de reconhecimento e afetividade e de um “sentir-se em
casa”, tanto social como espiritualmente. Cria-se por esse processo o sentimento de
pertença ao lugar e ao grupo/ ou coletividade, assim como um sentimento de auto-
identificação de si mesmo e de si em relação a esse mundo. Nessa relação existencial
cria-se valores, sentimentos e símbolos em relação ao território, e que dão origem a
expressões como “meu lar” para a residência ou de “pátria” para o país de origem.
O lugar, conscientizado como mundo existencial, tem se manifestado como local
de resistência social frente aos processos de globalização (SANTOS, 1996). Tem sido
através do lugar que a sociedade vem se rebelando e construindo racionalidades próprias
como contra-ordens, por meio de reconstituição de significados, diante da imposição
desorganizadora que emana da globalização (Idem, 1986).

4. DINÂMICA INTERATIVA DO “MEIO TERRITORIAL”

O sistema territorial se manifesta por um “campo interativo”, fruto da ação dos


sujeitos – individuais e coletivos- entre si, mediados pelo ambiente natural, assim como
da interação dos atores desse território com aqueles de outros territórios ou escalas
territoriais. Esse campo de interações constitui o meio ou o ambiente territorial,sendo
considerado o “conteúdo” do sistema territorial.
Assim, o meio territorial que emerge das interações estabelecidas (tanto em
nível interno como externo) constitui o “campo de forças” do território, pois é esse o
meio impulsionador de seu dinamismo e de onde emerge sua capacidade organizativa e
de inovação. O território local, a exemplo do que afirma Souza (1995) constitui esse
campo de poder ou de forças que se manifesta na rede de relações sociais. O poder,
segundo o autor, jamais é propriedade de um indivíduo, mas pertence a um grupo e
existe apenas enquanto o grupo permanecer unido, manifestando-se como uma
habilidade de agir em conjunto.
Esse “campo de poder” estabelecido no meio territorial é de natureza, sobretudo,
intangível, já que nasce de forças sociais interativas que se relacionam com capacidades
e sentimentos sociais desenvolvidos internamente nesse processo relacional. Destacam-
se entre essas forças sociais:
• Divisão social de trabalho – força que nasce da soma de esforços individuais
numa forma de colaboração coletiva, envolvendo divisão de trabalho - feita
por especialidade – de modo a possibilitar o aumento da produtividade do
conjunto social. Essa foi por longo tempo o tipo de força mais valorizada
pela sociedade capitalista industrial.
• Sinergia social – força social que nasce da multiplicação voluntária de
esforços individuais numa forma de cooperação coletiva do tipo horizontal –
sem controles hierárquicos. Surge da capacidade em se praticar solidariedade
social – criando nós de convergência coletiva por processos interativos. Na
economia, esse tipo de força é denominado de “capital social” pela sua
capacidade de dinamizar os processos econômicos. Por se constituir em
força multiplicada, a sinergia tem um papel mais significativo que a divisão
de trabalho no dinamismo do território. A força social pode ser ainda mais
ampla quando divisão de trabalho e cooperação conseguem se combinar.
• Aprendizagem coletiva – capacidade do grupo ou coletividade para se abrir
constantemente ao conhecimento novo – tanto aquele de origem interna
como externa - combinando-o com o conhecimento historicamente
acumulado no lugar e adequando-o à situação contextual, cultura e condições
dadas no local. Tem como fim a adequação e/ou superação do modelo
territorial vivenciado. A aprendizagem é interativa, sendo compartilhada
socialmente numa dinâmica de diálogo de saberes. É preciso distinguir nesse
processo o “conhecimento tácito” – aquele historicamente enraizado nos
indivíduos, organizações e território e que move suas idéias e práticas sociais
- do “conhecimento científico” como aquele que foi sistematizado pela
academia científica (conhecimento científico ou codificado) e que se torna
disponível como informação nos manuais, textos científicos, na fala dos
pesquisadores e professores. “Territórios inteligentes” na atualidade são
aqueles capazes de criar arranjos ou sistemas de inovação, constituídos por
indivíduos, empresas e organizações de apoio (público, privadas e do
terceiro setor) em rede, mantidos num constante diálogo de saberes,
incluindo o saber tácito e o científico. Esse tipo de força social tem sido
considerado nos processos econômicos como “capital cognitivo” pela
significativa capacidade inovativa que ele pode atribuir ao território.
• Poder organizativo social – capacidade do grupo ou coletividade em criar
ações de coordenação política, com participação ativa dos atores territoriais,
visando o protagonismo local na ampliação do controle sobre os recursos e
gestão do território. Ele se origina do pacto realizado entre atores, visando o
fortalecimento e manutenção da estabilidade do sistema territorial, sendo
movido por um conjunto de regras consentidas e compartilhadas
coletivamente (LELOUP et al, 2004). Esse poder organizativo, chamado de
“governança territorial” se respalda, sobretudo, na capacidade participativa e
interativa do grupo ou coletividade que deu origem ao território. O processo
implica em negociação constante dos atores envolvidos, buscando acomodar
interesses conflituosos. A governança territorial, além de favorecer os
acordos internos atribui maior autonomia ao grupo para atuar em prol de
opções comuns. E essa força se amplia quando a ação de coordenação é feita
a partir de maior diversidade de representação de atores (privado, estatal, da
sociedade civil) e atinge escalas mais amplas de organização. A forma de
governança revela o conteúdo cultural do território e a força local para se
manter a “autonomia relacional” do território, ou seja, sua capacidade para se
auto-determinar frente ao processo de relações estabelecidas interna e
externamente.
• Sentimento de identidade de grupo e de lugar – representação particular que
cada indivíduo e coletividade apresentam de si mesmos e de sua história (DI
MEO, 1999) e que se expressam na relação com os outros. São as ações
solidárias e em comum acordo entre os atores envolvidos no tecido de
relações que geram a cultura particular de valores e representações
simbólicas e fortalecem a coesão e identificação do grupo ou da coletividade.
Nesse mundo relacional e subjetivo, se constrói a sentimento de pertença ao
grupo/ coletividade e ao lugar de vida. Nesse processo interativo, a
coletividade edifica sua integridade e a integridade do território. Assim, cada
unidade territorial revela sempre uma unidade social e a unidade social e
cultural revela sempre um território. Essa força também tem sido chamada
de “capital cultural” em processos econômicos, pela capacidade de atribuir
coesão ao grupo ou ao território econômico.

A “territorialidade” diz respeito à condição em que se manifesta o modelo de


um sistema territorial, revelando o conjunto de formas objetivas e subjetivas ali
construídas e vivenciadas, o lugar como mundo existencial e o comportamento
dinâmico do meio territorial constituído. Georges Benko (1996) considerou 04
categorias de meios territoriais locais (ou ambientes locais) levando em conta o
dinamismo do meio territorial:
( 01) meios inovadores – considerados os meios mais complexos e dinâmicos
que conseguem controlar as forças micro e macro da globalização no local;

(02) meios dinâmicos – aqueles que tiram partido de oportunidades dadas pela
globalização, embora prejudicados pela ausência de políticas e cultura estimuladoras
desse tipo de comportamento;

(03) meios sem dinâmica endógena – (pseudo-sistemas territoriais) são aqueles


meios territoriais que ainda se encontram desestruturados e se submetem às políticas
hegemônicas de multinacionais e do Estado, com resultados ambivalentes;

(04) meios destituídos de dinâmica própria – são aqueles que se mantém por
meio da dinâmica de meios locais de sistemas territoriais exógenos.

O desenvolvimento sustentável de um território local depende não só da


capacidade de dinâmica inovativa de seu meio, como também da coerência de seu
modelo sistêmico - como estrutura (forma) e dinamismo (conteúdo).

5. REFERÊNCIAS

BONEMAISSON, Joel. Viagem em torno do Território. In ROSENDHAL, Zeny e


CORRÊA Roberto Lobato (orgs.) Geografia Cultural (3). Rio de Janeiro: EDUERJ,
2002.
BUTTIMER, Anne. Aprendendo o dinamismo do mundo vivido. In:
CHRISTOFOLETTI, A. Perspectivas da geografia. São Paulo: Difel, 1985, pp. 165-
193.
CARLOS, Ana Fani A. O Lugar no/do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
DI MEO, G. Géographies tranquilles du quotidien: Une analyse de la contribution des
sciences sociales et de la géographie à l’étude des pratiques spatiales. In Cahiers de
Géographie du Québec u Volume 43, n° 118, avril 1999 u Pages 75-93.

LELOUP. Fabienne et al. La gouvernance territoriale comme nouveau mode de


coordination territoriale ? In 4emes Journéss de la proximité : La proximité, reseaux et
coordination. 17-18 junho de 2004.

MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In Thot, Associação Palas Athena, São


Paulo (67), 1998, p. 12-19.

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.
SANTOS, M. A natureza do espaço - técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996.

SANTOS, Milton. O retorno do território. In Território: globalização e fragmentação.


Milton Santos et al. (orgs). São Paulo: Hucitec, 1994.

SERFATY-GARZON, Perla. L’appropriation. In Dictionnaire Critique de L’habitat et


du Logement. Marion Segaud, Jacques Brun, Jean-Claude Driant (orgs). Paris, Editions
Armand Colin, 2003, p27-30.
SOUZA, M. J. L. de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento.
In: Castro, I. et al (org.).Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1995.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente
(trad.Lívia de Oliveira) São Paulo: Difel, 1980. 288p.

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