Estudos em Teatro Antigo & Moderno
Estudos em Teatro Antigo & Moderno
Estudos em Teatro Antigo & Moderno
E82
Livro em PDF
ISBN 978-65-5939-880-5
DOI 10.31560/pimentacultural/2024.98805
CDD 410.792
PIMENTA CULTURAL
São Paulo • SP
+55 (11) 96766 2200
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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Doutores e Doutoras
PARTE 1
TEATRO CLÁSSICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
CAPÍTULO 1
Edinaura Linhares Ferreira Lima
Mellyssa Coêlho de Moura
Prudência e desmedida
em Persas, de Ésquilo............................................................................. 16
CAPÍTULO 2
Aron Barcelos Vilar Guimarães
A figura do tirano em Persas a partir
do conceito de ἐπιθυμία de Platão......................................................36
CAPÍTULO 3
Vanessa Silva Almeida
Xerxes e Dario:
um contraste de caráter......................................................................................52
CAPÍTULO 4
Erimar Wanderson da Cunha Cruz
Ésquilo indo-europeu, arcaísmos e
inovações na poética d’Os persas:
a estrutura formular........................................................................................... 67
CAPÍTULO 5
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
A poética da narrativa em Prometeu
Acorrentado, de Ésquilo.........................................................................86
CAPÍTULO 6
Glaudiney Moreira Mendonça Junior
A corporização da comunicação
em Filoctetes, de Sófocles:
um estudo de semiótica discursiva.....................................................................100
CAPÍTULO 7
Francisco Vítor Macêdo Pereira
Mundo ordenado e transgredido:
a escolha da justiça na Electra, de Sófocles.......................................................... 113
PARTE 2
RECEPÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
CAPÍTULO 8
Ana Maria César Pompeu
Eurípides na comédia antiga e nova................................................ 128
CAPÍTULO 9
Jane Kelly de Oliveira
Sexo e poder em Lisístrata
e em A fonte das mulheres................................................................150
PARTE 3
CAPÍTULO 10
Edson Santos Silva
Thatiane Prochner
Teatralidade e performatividade na peça
Traga-Me a Cabeça de Lima Barreto................................................. 183
CAPÍTULO 11
Tiago Fortes
O mal-estar na academia..................................................................... 213
Bibliografia............................................................................................... 231
Sobre os organizadores.......................................................................242
SUMÁRIO 11
elementos intrinsecamente relacionados às desventuras do rei, com
resultados que atingem também a pólis subjugada por esse tirano.
SUMÁRIO 12
que, apesar da plena responsabilidade pelo seu destino, é impossí-
vel ao ser humano que a escolha seja só sua, concluindo, assim, que
Sófocles intentava discutir a caracterização do herói juntamente com
sua têmpera e seu poder de escolha e de assumir responsabilidades
ante a ordem imposta pelos acontecimentos.
SUMÁRIO 13
Agradecemos aos colaboradores que se empenharam na
tarefa de disseminação de suas reflexões sobre o teatro, do Clássico
ao Contemporâneo, de sua recepção à pesquisa acadêmica, com
o desejo de que, como espectadores de teatro, os leitores possam
apreciar e compartilhar desse deleite que é atuar na pesquisa dessa
arte, que, como dizia Nietzsche, “é a tarefa suprema” desta vida.
Os organizadores
SUMÁRIO 14
PAR T E
TEATRO
1
CLÁSSICO
1
Edinaura Linhares Ferreira Lima
Mellyssa Coêlho de Moura
PRUDÊNCIA
E DESMEDIDA EM
PERSAS, DE ÉSQUILO
“Portanto, com bons conselhos inspirai
àquele carente de prudência que cesse
de ofender a Deus com soberba audácia”
(Ésquilo)
SUMÁRIO 17
oposição à figura desmedida do rei Xerxes, cuja imprudência cul-
mina na destruição do exército Persa e na vitória dos Gregos. Por fim,
reflete-se que a presença de Atossa intensifica a desgraça pública
de seu filho, ao passo que reitera sua mortalidade e subserviência
perante a justiça divina. Logo, reflete-se que Ésquilo sublinha o para-
lelo existente entre a prudência de uma rainha-mãe e a desmedida
de seu rei de forma a articular esses elementos para assegurar a
tragicidade de sua obra.
ATOSSA E A PRUDÊNCIA
DE UMA RAINHA-MÃE
No início da peça, temos o conhecimento de que o rei Xer-
xes partiu para as terras gregas, com seu colossal exército, com o
intuito de sobrepujar os helênicos ao seu jugo ditatorial. Devido à sua
ausência, sua mãe, a rainha Atossa, desempenha o papel de sobe-
rana, acrescendo, assim, sua visibilidade na peça de Ésquilo. Ela é
caracterizada como uma rainha regente, o que pouco acontece nas
peças gregas, uma vez que comumente à frente da mulher existe
um homem responsável pela administração da pólis, seja um marido,
seja um filho do sexo masculino. Além de Atossa, somente a rainha
Clitemnestra, na ausência de seu marido Agamêmnon, assumiu o
poder, justamente por não ter um filho varão adulto para assumir o
trono, embora, para a consumação de tal feitio, ela tenha necessitado
de um amante, Egisto, primo de seu marido Agamêmnon.
SUMÁRIO 18
a sua particularidade ao analisarmos as demais mulheres descritas
nas tragédias gregas. Outra característica relevante à descrição atí-
pica da rainha pérsica é sua sensatez, que não era comumente atri-
buída às mulheres estrangeiras pelos tragediógrafos, uma vez que,
nativas de outras terras, eram caracterizadas como insensatas, ou
até mesmo, como loucas. É o caso de Medeia, por exemplo, descen-
dente da feiticeira Circe e do deus Hélio, uma mulher estrangeira,
independente e corajosa. Assim como Circe, Medeia detinha a arte
das porções, a prática de magia, do oculto e da feitiçaria. Além disso,
ela foi tida como cruel e insana ao ser acusada de matar os filhos
e de executar os inimigos por vingança, ao ser descrita na voz de
outro tragediógrafo, Eurípides. Para além de sua imagem deturpada,
no pensamento da estudiosa Maria Cândido (2001, p. 01, grifo no ori-
ginal), Medeia representa a sabedoria, pois:
[usava d]a emergência de antigos saberes integrando
novas práticas sociais como o uso do conhecimento
mágico das ervas e filtros para atender desejos individuais.
O uso das práticas mágicas das ervas e raízes tanto podia
atender às necessidades de medicamentos para curar as
doenças femininas, quanto ser usado como veneno para
efetuar uma vingança. Medeia com a sua sophia expõe a
ambiguidade de um saber que poderia ajudar um amigo
com os seus benefícios, mas poderia ser fatal e destruir os
inimigos. Como nos afirma Medeia, temido será sempre
quem possui este saber, pois aquele que provocou este
ódio não celebrará facilmente a bela vitória.
SUMÁRIO 19
na formação de sua identidade social e política. Na Atenas
democrática, as mulheres eram “essenciais na criação do
status político de suas famílias, de seus filhos e filhas e na
manutenção do status de cidadã de seus parentes e afins
do sexo masculino [...]1 (MCCLURE, 2006, p. 73)2.
SUMÁRIO 20
Tal explanação é necessária para que se conclua que, por ser
bárbara, a rainha Atossa possui um comportamento atípico da maio-
ria das mulheres gregas, o que pode inclusive justificar a sua pre-
sença e participação com a segunda maior quantidade de falas na
peça. Isso se dá devido ao fato de sua apropriação da fala, principal-
mente política, juntamente com os anciãos do coro; lugar este que
não se julga apropriado ao feminino por estar atrelado ao masculino.
A rainha então reverbera a voz pública e audível de uma mulher aris-
tocrata e regente de um império grandioso, bem como representa
um papel narratológico de suma importância, uma vez que é respon-
sável por apresentar a tragédia que acomete Xerxes.
3 Utiliza-se no corpus deste trabalho a tradução dos Persas de Jaa Torrano (2009).
SUMÁRIO 21
μῆτερ ἡ Ξέρξου γεραιά, χαῖρε, Δαρείου γύναι:
θεοῦ μὲν εὐνάτειρα Περσῶν, θεοῦ δὲ καὶ μήτηρ ἔφυς,
εἴ τι μὴ δαίμων παλαιὸς νῦν μεθέστηκε στρατῷ.
SUMÁRIO 22
Assim venho do palácio adornado de ouro
e do tálamo comum a mim e a Dario,
e um pensamento me dilacera o coração.
Dir-vos-ei, não por mim temerosa, amigos,
grande riqueza não reverta em pó no chão ao pé,
opulência que Dario ergueu não sem um Deus.
Esta aflição indizível em meu espírito é dupla:
Nem tesouros sem guardião o povo venera com honra,
nem sem tesouros brilha o homem conforme sua força.
A riqueza está intacta, mas pelos olhos é o temor:
olho do palácio penso que é a presença do dono.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 159-169)
SUMÁRIO 23
As preocupações da rainha se instauram também no âmbito
onírico, através de um sonho, no qual ela relata o que se assemelha
a um presságio da ruína futura do povo persa nas mãos dos gregos:
πολλοῖς μὲν αἰεὶ νυκτέροις ὀνείρασιν
ξύνειμ᾽, ἀφ᾽ οὗπερ παῖς ἐμὸς στείλας στρατὸν
Ἰαόνων γῆν οἴχεται πέρσαι θέλων:
ἀλλ᾽ οὔτι πω τοιόνδ᾽ ἐναργὲς εἰδόμην
ὡς τῆς πάροιθεν εὐφρόνης: λέξω δέ σοι.
ἐδοξάτην μοι δύο γυναῖκ᾽ εὐείμονε,
ἡ μὲν πέπλοισι Περσικοῖς ἠσκημένη,
ἡ δ᾽ αὖτε Δωρικοῖσιν, εἰς ὄψιν μολεῖν,
μεγέθει τε τῶν νῦν ἐκπρεπεστάτα πολύ,
κάλλει τ᾽ ἀμώμω, καὶ κασιγνήτα γένους
ταὐτοῦ: πάτραν δ᾽ ἔναιον ἡ μὲν Ἑλλάδα
κλήρῳ λαχοῦσα γαῖαν, ἡ δὲ βάρβαρον.
τούτω στάσιν τιν᾽, ὡς ἐγὼ ‹δόκουν ὁρᾶν,
τεύχειν ἐν ἀλλήλαισι: παῖς δ᾽ ἐμὸς μαθὼν
κατεῖχε κἀπράυνεν, ἅρμασιν δ᾽ ὕπο
ζεύγνυσιν αὐτὼ καὶ λέπαδν᾽ ἐπ᾽ αὐχένων
τίθησι. χἠ μὲν τῇδ᾽ ἐπυργοῦτο στολῇ
ἐν ἡνίαισί τ᾽ εἶχεν εὔαρκτον στόμα,
ἡ δ᾽ ἐσφάδαζε, καὶ χεροῖν ἔντη δίφρου
διασπαράσσει καὶ ξυναρπάζει βίᾳ
ἄνευ χαλινῶν καὶ ζυγὸν θραύει μέσον.
πίπτει δ᾽ ἐμὸς παῖς, καὶ πατὴρ παρίσταται
Δαρεῖος οἰκτείρων σφε: τὸν δ᾽ ὅπως ὁρᾷ
Ξέρξης, πέπλους ῥήγνυσιν ἀμφὶ σώματι.
καὶ ταῦτα μὲν δὴ νυκτὸς εἰσιδεῖν λέγω.
SUMÁRIO 24
bárbara, no sorteio recebidas por pátria.
Ao que me parecia ver, houve entre ambas,
uma querela, e meu filho, quando soube,
tentava conter e acalmar, e sob o carro
atrela as duas, e põe-lhes o jugo
no pescoço. Uma se orgulhava dos jaezes
e nas rédeas tinha a boca dócil ao mando,
a outra esperneia e despedaça os arreios
com as mãos, arrebata com violência,
desenfreada, e quebra o jugo ao meio.
Cai o meu filho e aproxima-se o pai
Dario a lastimá-lo. E quando o vê,
Xerxes rasga as vestes sobre si mesmo.
Isso é o que vos digo ter visto à noite.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 176-200)
SUMÁRIO 25
ὁρῶ δὲ φεύγοντ᾽ αἰετὸν πρὸς ἐσχάραν
Φοίβου: φόβῳ δ᾽ ἄφθογγος ἐστάθην, φίλοι:
μεθύστερον δὲ κίρκον εἰσορῶ δρόμῳ
πτεροῖς ἐφορμαίνοντα καὶ χηλαῖς κάρα
τίλλονθ᾽: ὁ δ᾽ οὐδὲν ἄλλο γ᾽ ἢ πτήξας δέμας
παρεῖχε. ταῦτ᾽ ἔμοιγε δείματ᾽ εἰσιδεῖν,
SUMÁRIO 26
σὸν πόσιν Δαρεῖον, ὅνπερ φὴς ἰδεῖν κατ᾽ εὐφρόνην,
ἐσθλά σοι πέμπειν τέκνῳ τε γῆς ἔνερθεν ἐς φάος,
τἄμπαλιν δὲ τῶνδε γαίᾳ κάτοχα μαυροῦσθαι σκότῳ.
SUMÁRIO 27
ξανθῆς ἐλαίας καρπὸς εὐώδης πάρα,
ἄνθη τε πλεκτά, παμφόρου γαίας τέκνα,
ἀλλ᾽, ὦ φίλοι, χοαῖσι ταῖσδε νερτέρων
ὕμνους ἐπευφημεῖτε, τόν τε δαίμονα
Δαρεῖον ἀνακαλεῖσθε, γαπότους δ᾽ ἐγὼ
τιμὰς προπέμψω τάσδε νερτέροις θεοῖς.
SUMÁRIO 28
A rainha Atossa faz então libações similares às de Odisseu,
invocando os deuses ctônicos para guiar seu marido de volta ao
mundo dos vivos, de forma que ela pudesse pedir conselhos ao pru-
dente rei para diminuir o sofrimento que caíra sobre o povo da Pér-
sia. Segundo Correia (2015, p.47), esse ato de “invocar a alma de um
morto para dela obter conselhos e prenúncios é a finalidade de um
tipo de adivinhação denominada de Necromancia”. Assim, a rainha
atua como uma espécie de sacerdotisa ao invocar os deuses infer-
nais com uma finalidade específica e com a ajuda de todo o Coro,
na ânsia de diminuir o desespero que se apoderou com a derrocada
dos Persas suscitada por Xerxes.
SUMÁRIO 29
da natureza de sua derrota” (MCCLURE, 2006, p. 80)4. Dessa forma,
a invocação de Dario se faz necessária, posto que sua autoridade se
constrói tanto pela sua caracterização como um rei justo e sábio5,
atribuída em vida, quanto pelo status que adquire na sua condição
de morto, possuindo uma percepção diferente sobre a dimensão do
mundo dos mortais. Assim, a sua presença é de suma importância
na tragédia, visto que:
Xerxes, o filho de Dario, é o foco para onde se direciona
o discurso do fantasma, e, por isso, suas falas possuem
estreita relação com as ações perpetradas por seu filho,
que cometeu excessos que não foram dignos de um bom
rei, o que desagradou deuses e homens. O castigo divino
que se abate sobre Xerxes faz dele uma figura trágica por
excelência e, por isso, para se entender a participação do
Fantasma de Dario nessa tragédia é necessário compre-
ender, sob a ótica do sobrenatural, como os crimes terre-
nos cometidos pelo jovem rei puderam lhe gerar tal cas-
tigo (NOGUEIRA, 2011, p. 266).
4 One might argue that provides a particularly Hellenic view of her son’ s character and the nature of
his defeat.
5 Alguns estudiosos afirmam que Ésquilo deturpa a história do reinado de Dario ao retratá-lo como
exemplo de sensatez e prudência, uma vez que ele havia tentado conquistar a Grécia e faleceu
com planos de uma nova tentativa de conquista. No entanto, compactuamos com o pensamento
de Oliveira (2002, p.47), que afirma que “O contraste entre a prudência de Dario e a ὕϐρις de
Xerxes obedece a uma necessidade dramática, e não histórica”. Para mais, ler OLIVERIA, F. R. Duas
Ou Três Coisas Sobre Mitos e História: Os persas De Ésquilo. LETRAS CLÁSSICAS, n. 6, 2002, p. 37-53.
SUMÁRIO 30
e grandeza tão extraordinária que se deixa confundir com
a manifestação mesma de Deus revele-se afinal o “frau-
dulento logro de Deus” (TORRANO, 2002, p.26).
SUMÁRIO 31
não dominou meu filho? Temo que vasta riqueza custosa
a minha entre os homens seja presa de quem se apresse.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 733, 745-752)
SUMÁRIO 32
Dario ressalta, ainda, que Xerxes “pensa novidades e não
se lembra de minhas instruções” (Ξέρξης δ᾽ ἐμὸς παῖς ὢν νέος νέα
φρονεῖ, κοὐ μνημονεύει τὰς ἐμὰς ἐπιστολάς:) (ÉSQUILO, Persas, vv.
782-6), justamente por agir com insensatez, levando seu exército a
padecer em solo asiático. Logo, tem-se justificada a ruína da Pérsia
nas mãos de seu rei, que comete um erro trágico dominado pelo
seu orgulho e imprudência. Afinal, os persas sucumbem perante a
hybris de seu governante, estando fadados à punição divina, já que
“do fraudulento logro de Deus, que homem mortal há de escapar?”
(δολόµητιν δ᾽ ἀπάταν θεοῦ τίς ἀνὴρ θνατὸς ἀλύξει;) (vv. 93-4). Ademais,
resta-nos inferir que:
Com toda a probabilidade, então, a arrogância de Xer-
xes que levou à sua queda também foi sua ganância
por um triunfo total sobre os gregos [...] Pela magnitude
da expedição que planejou e por sua ganância por um
triunfo completo, Xerxes transgrediu esse princípio filo-
sófico vital [da prudência], algo que tornou quase ine-
vitável sua queda com o socorro do elemento divino.
Esses dois fatores, que denotam excesso, devem ser
considerados como a base de sua arrogância (PAPADI-
MITROPOULOS, 2008, p. 456)6.
6 In all probability, then, the hubris of Xerxes which led to his fall was also his greed for a total
triumph over the Greeks […] By the sheer magnitude of the expedition he planned and by his
greed for a complete triumph Xerxes transgressed this vital philosophic principle, something
which made his fall with the succor of the divine element almost inevitable. These two fac-
tors, which denote excess, must be considered as the basis of his hubris.
SUMÁRIO 33
mulheres é culpa de um único homem, como nos lembra
o refrão, ‘A terra lamenta seus filhos nativos massacrados
por Xerxes (MCLURE, 2006, p. 86)7.
7 The motif of Persian abundance yields to the imagery of grief – cities once full of men now fill with
lamentations, marriage beds once populated with husbands now fill with tears. It also introduces
and sustains a discourse of blame directed against Xerxes: the mourning of women is the fault of
a single man, as the chorus reminds us, ‘The earth laments her native sons slaughtered by Xerxes.
8 On a dramatic level, the onstage presence of both parents (one in the form of a ghost), rather than
a spouse-as in the Herodotean version enforces the representation of Xerxes as an immature youth
incapable of leading an empire.
SUMÁRIO 34
Deste modo, em Persas, a rainha Atossa e seu papel como
regente, além de destoar da representação feminina nas tragédias
em geral, a caracteriza como representante da prudência através
de sua participação ativa e de sua apreensão acerca da pólis e do
destino do exército persa, além da cautela perante os excessos de
seu próprio filho. Sua presença na peça intensifica a desgraça de
Xerxes, bem como reforça a sua imprudência juvenil. Em oposição
a ela há a figura desmedida do rei, cuja soberba e excesso culmi-
naram na desgraça do povo persa. Assim, o papel proeminente de
Atossa simboliza a mortalidade do império dos persas, bem como de
seus “deuses”, Dario e Xerxes. Logo, reflete-se que Ésquilo sublinha o
paralelo existente entre a prudência de uma rainha-mãe e a desme-
dida de seu rei de forma a articular esses elementos para assegurar
a tragicidade de sua obra.
SUMÁRIO 35
2
Aron Barcelos Vilar Guimarães
A FIGURA DO TIRANO
EM PERSAS A PARTIR
DO CONCEITO DE
EΠΙΘΥΜIΑ
DE PLATÃO
A tragédia ΠΕΡΣΑΙ (Persas) foi primeiramente apresentada
em 472 a.C. no teatro de Dioniso, nas Dionísias Urbanas, na cidade
de Atenas. Era a segunda tragédia de uma trilogia, ordenadamente
Fineu (Fr. 258-60), Persas, Glauco Potnieu (Fr. 36-42) e o drama satí-
rico Prometeu, o Acendedor do Fogo (Fr. 204-9)9. A tetralogia esqui-
liana foi a grande vitoriosa no contexto das apresentações. Parte
dessa vitória, talvez, seja relacionada ao fato de que, oito anos antes,
Ésquilo lutara, no contexto das Guerras Médicas, ao lado de seus
concidadãos e aliados contra o Império Persa, comandado primei-
ramente por Dario I e, posteriormente, por seu filho Xerxes I, respec-
tivamente na Batalha de Maratona (490 a.C.), nesta perdendo seu
irmão Cinegiro (HERÓDOTO, 6.114), e dez anos depois na Batalha de
Salamina (480 a.C.), trazendo vitória aos gregos, que um mês antes
haviam tido sua Acrópole destruída em consequência da derrota da
batalha das Termópilas (480 a.C.). Tendo, portanto, sua ficção alicer-
çada em um acontecimento histórico de guerra, e sendo ela a única
obra dramática de cunho histórico do teatro antigo ateniense que
chegara até nós10, é importante destacarmos que a tragédia Persas
carrega não somente um forte marcador político que faz referência a
uma guerra entre dois grandes povos, um de caráter democrático e
o outro de caráter autocrático, mas também discute a melhor forma
de governar uma cidade. Lockwood (2017) propõe que Ésquilo esta-
ria não somente produzindo uma obra de cunho misto, literário e
histórico, mas também uma nova teorização política em sua tragé-
dia. É fato que a antiga Liga Pan-Helênica, criada no contexto das
Segundas Guerras Médicas, foi dissolvida após a vitória definitiva
dos gregos contra os Persas na Batalha de Plateia (479 a.C.). Alguns
anos depois, os atenienses fundaram a Liga de Delos, do qual eram
9 Cf. Rosenbloom, Aeschylus Persians (46). Consultar também Archive of Performances of Greek & Roman
Drama (APGRD), projeto de pesquisa localizado na faculdade clássica da Universidade de Oxford.
10 Entretanto, já é de conhecimento que outras obras baseadas em acontecimentos históricos béli-
cos, como, por exemplo, A Captura de Mileto, de Frínico, foram produzidas. Cf. Rosenbloom “Shou-
ting Fire In A Crowded Theather: Phrynicos’s “Capture of Miletos” and The Politics of Fear in Early
Attic Tragedy”, Philologus 137, 1993, páginas 159-196.
SUMÁRIO 37
líderes, e passaram a deter grande poder face às outras cidades-es-
tado. Assim sendo, a tese de Lockwood (2017) declara que a tragédia
Persas diz respeito a uma tentativa de Ésquilo para a correta orien-
tação política da hegemonia que nascia em Atenas, uma espécie de
alerta à cidade que estava em rápida expansão econômica e política.
SUMÁRIO 38
O autor menciona uma fala do espectro de Dario a respeito
das ações de Xerxes, a de que “quando alguém se aplica à própria
ruína, os deuses trabalham com ele” (ÉSQUILO, Persas, vv. 740-742).
Brandão (1984, p.19) também declara que “se o homem é, de certa
forma, responsável pela ὕβρις, essa responsabilidade não afeta ape-
nas o herói, mas a ordem universal”, fortalecendo seu argumento nos
princípios de carência e plenitude assinalados por Schüller (1976)11.
Poderia se pensar, de acordo com estas falas, que Temístocles não
se encaixaria nos pré-requisitos para o herói trágico, afinal, tanto
não é ele quem comete a ὕβρις, quanto limita-se a defender sua
pátria da investida inimiga, vencendo o império invasor. É estranho
por outro lado que Brandão (1984, p.12) afirme que “a tragédia só se
realiza quando o μέτρον é ultrapassado”, (que é o que, segundo ele,
caracteriza a ὕβρις do herói), mas que negue a Xerxes o caráter de
herói, apesar de ser o imperador quem ultrapassa esse μέτρον. Deste
modo, o próprio Brandão (1984) cai em contradição consigo mesmo,
resultando em duas alternativas: ou aquele que comete ὕβρις não
corresponde ao herói, ou ele sequer considera, stricto sensu, Persas
uma tragédia, o que incorre em absurdo no contexto das apresen-
tações teatrais. Deste modo, não há outra opção senão discordar
da primeira hipótese apresentada pelo autor em relação ao caráter
negado de herói a Xerxes em Persas. Autores como Correia (2015,
p. 3) ressaltam em seu trabalho que “uma das características mais
peculiares à estrutura dramática de Ésquilo é a de um movimento
ascendente e prolongado de tensão dramática que culmina com um
acontecimento trágico a ser lamentado”. De fato, é necessário que
Xerxes seja o herói para que o próprio conceito de ὕβρις seja res-
peitado, e a tensão ao longo da narrativa que culmina em seu final
trágico depende desta identidade.
SUMÁRIO 39
Munteanu (2011) afirma que Willamowitz-Moellendorff (1914, p. 151)
considerou o kommos (Pe, 931-1078) no qual Xerxes e o coro lamen-
tam a perda do exército mais divertido do que trágico. Adams (1952),
em concordância, afirmou que o coro carregava um tom satírico e
sem emoção. Munteanu (2011) também declara que ao longo da
peça muitos momentos dramáticos apelavam aos sentimentos patri-
óticos dos espectadores, como a evocação à batalha de Salamina
(Pe, 302-330, 337-347, 353,432), a de Psitaleia (447-471) e a de Pla-
teia (816-820). É citada ainda a tese de West (2006) que apresenta
a exaltação do sentimento de orgulho cívico e patriótico ateniense
em contraponto com a imagem do “bárbaro” como fator de exor-
tação à democracia ateniense onde os cidadãos eram livres. Esta
tese parece encontrar embasamento numa passagem de Aristófa-
nes na qual a personagem que representa Ésquilo declara “Então eu
produzi Os Persas, e com ela os ensinei a estar sempre dispostos a
vencer o adversário, embelezando um feito excelente” (ARISTÓFA-
NES, Rãs, vv. 1026-7). De fato, na própria tragédia, quando a rainha
Atossa pergunta quem comanda o exército inimigo, o coro responde
que os atenienses “não se dizem servos nem submissos a ninguém”
(οὔτινος δοῦλοι κέκληνται φωτὸς οὐδ’ ὑπήκοοι) (ÉSQUILO, Persas, vv.
241-2). É necessário relembrar, conforme mencionado na primeira
parte do artigo, que oito anos antes o Xerxes histórico havia invadido
Atenas. Nesta invasão, devastou parte do território, pilhou templos e
forçou os atenienses a abandonar a cidade. Portanto, é de se esperar
que sentimentos ambíguos atravessassem aqueles que estivessem
assistindo à representação teatral.
SUMÁRIO 40
eventos dramáticos pode, por extensão, levar a uma ansiedade sobre
o destino humano em geral. Ela utiliza o conceito de φαντασία (ima-
ginação) retirado do de Anima aristotélico para distinguir a emoção
de medo proveniente de uma imagem aterrorizante na arte, que não
se materializa em δόξα (crença), daquela representada em face a um
perigo real. À vista de um inimigo que é exaltado ao longo do párodo
anapéstico (ÉSQUILO, Persas, vv. 9, 28) composto por homens “terrí-
veis de ver, temíveis em combate” (φοβεροῖ μὲν ἰδεῖν, δεινοὶ δέ μάχην)
e com “multiáureo exército” (πολυχρύσου στρατιᾶς) ou no párodo
lírico (ÉSQUILO, Persas, vv. 81-82) onde o próprio Xerxes é caracte-
rizado como “brilhando negro nos olhos, o olhar de mortífera víbora”
(κυάνεον δ’ ὄμμασι λεύσσων φονίου δέργμα δράκοντος), tal afirmação
parece estar concordância. O argumento final de Munteanu (2011)
é realizar uma analogia equiparando o sofrimento da rainha Atossa
e o dos anciãos persas pelos jovens mortos em batalha e pelo luto
dos parentes ao sofrimento de Príamo, que é obrigado a implorar
piedade, após perder seu reino, a Aquiles para que este lhe devolva
o cadáver de Heitor (Ilíada 485-506). Deste modo, a tragédia Per-
sas acabaria provocando sentimentos de piedade em, pelo menos,
alguma parte dos espectadores.
SUMÁRIO 41
O “jugo” do primeiro ato constitui-se pelo ato de criar um
mecanismo de travessia, no Helesponto, utilizando sua armada marí-
tima, de modo que sua infantaria pudesse atravessar sobre os navios
o mar Egeu (ÉSQUILO, Persas, vv. 722), intentando assim novas con-
quistas e expansão no domínio territorial da Hélade. Sua motivação
seria vingança contra os gregos (HERÓDOTO, VII. VII), que outrora
impuseram derrota a seu pai, Dario I, na batalha de Maratona (490
a.C.). À primeira vista, é evidente identificar pela perspectiva literária
que a falta cometida se direciona diretamente a um aspecto cosmo-
lógico regido pelo deus Posêidon, que tem seu domínio desrespei-
tado quando as águas se tornam “solo”, isto é, quando Xerxes erige
uma ponte utilizando sua armada como partes constitutivas. Xerxes,
nesta primeira tentativa fracassada de construir uma ponte, que, logo
após ficar pronta, desaba devido a uma tempestade, ordenou que
o Helesponto sofresse trezentas chicotadas; além disso, pediu que
os executores da primeira ponte marcassem as águas do mar com
um ferro em brasa, exigindo que um de seus homens declamasse
um discurso no qual declarava ser Xerxes “senhor do mar”, e acu-
sando o próprio mar de ser traidor e vil (HERÓDOTO, VII. XXXV).
Logo em seguida, ordenou que os responsáveis pela construção
da primeira ponte fossem executados12. Do ato de marcar algo com
ferro em brasa, no contexto da Grécia Antiga, produz-se frequen-
temente a ideia de στίγμα (marca de reconhecimento). Στίγμα era
um sinal de propriedade, de posse de um senhor sobre um escravo
(HERÓDOTO, II. XIII), assim como também efetuado comumente
em criminosos, para que se tornasse ostensivo sua condição social
inferior, depauperada13 – por esses dois motivos, Xerxes declara o
mar como “vil” e “traidor”, concomitantemente se considerando seu
senhor, assim como o declarando inferior. Portanto, ao marcar o mar
com ferro em brasa, Xerxes não somente rebaixa-o à condição de
escravo, impondo-o sujeição sociopolítica, mas também, ao exigir
12 Heródoto. 6.35.
13 “στίγμα”, in Liddell & Scott (1940) A Greek–English Lexicon, Oxford: Clarendon Press.
SUMÁRIO 42
que seu encarregado declare o próprio imperador com o título de
“senhor do mar”, equipara-se a si mesmo ao deus Posêidon, enalte-
cendo-se como se fosse divino, na linguagem de Brandão (1984), se
tornando um competidor, um êmulo dos deuses.
14 Para entender melhor a relação de Posêidon e o culto em que era relacionado a cavalos, cf. Burkert,
Greek Religion, 2002, 136-139. Também Vernant, As Origens do Pensamento Grego, 1972, p.15.
SUMÁRIO 43
e de ouro se armou ele próprio em volta do corpo.
Agarrando no chicote de ouro bem forjado, subiu para
o carro,
que conduziu por cima das ondas. Por baixo dançaram
golfinhos das profundezas, pois conheciam seu soberano.
De felicidade se abriu o mar. E ele continuou depressa
em frente,
Sem que se molhasse do carro o eixo de bronze.
Às naus dos Aqueus o levaram os cavalos empinadores.
(HOMERO, Ilíada, vv. 23-31)
SUMÁRIO 44
885), Xerxes exige para si não somente uma parte que não lhe cabe
da perfeita harmonia da repartição após a Titanomaquia, ferindo a
memória do cosmo na partilha divina, como também, erroneamente,
se autodeclara senhor de algo que ele não pode controlar, saindo da
medida humana e cometendo ὕβρις. Suas ações se voltam exclusi-
vamente para seu próprio benefício e são facilmente realizáveis pelo
uso da força, pois Xerxes detém poder absoluto em seu contexto
sociopolítico. Ele, portanto, a partir de certa perspectiva, por meio de
sua conduta extremamente expansiva, começa a adquirir um caráter
altamente violento, tirânico.
SUMÁRIO 45
que culmina na derrota daqueles, ao mesmo tempo em que se
distancia da herança estratégico-militar herdada pelos gregos.
Poderia se contestar, por outro lado, que Xerxes se distancia de uma
atitude titânica à medida que se apresenta como um imperador inte-
ligente. No diálogo entre o espectro de Dario I e a rainha Atossa
(ÉSQUILO, Persas, vv. 715-738), é evidenciada sua capacidade de
“criar artifícios” para conquistar seus objetivos. A rainha revela como
o filho possui inteligência tática para a elaboração e execução de
μηχαναῖς (artifícios), mecanismos de estratégia utilizados para atra-
vessar a infantaria persa de um continente para outro, fazendo com
que o falecido marido se mostre perplexo, incrédulo de que Xerxes
fora capaz de fechar o “grande Bósforo” (vv. 721-725). Se por um lado
ao homem foi concedido pelo titã Prometeu ἔντεχνον σοφίαν (sabe-
doria técnica)15, por meio de um furto, para a criação de τέχναι (artes)
promovendo a manutenção de sua vida e aperfeiçoamento civilizató-
rio, por outro lado se faz necessário lembrar que tal presente partira
de um crime (BENARDETE, 1964) e, portanto, não constitui expres-
são prévia da vontade de Zeus. Alguns relatos parecem transparecer
que Zeus preferiria mesmo ter aniquilado a raça humana16. Quando
ἔντεχνον σοφίαν é utilizada de maneira extremamente audaz como
meio para o uso da violência e força bruta contra terceiros, o homem
parece se tornar duplamente detestável pelos deuses – tanto por ter
uma espécie de σοφία (sabedoria) que lhe foi adquirida de maneira
criminosa, quanto por usufruí-la de maneira incorreta. Ofende aos
deuses o fato de querer se impor dominação pela força bruta quando
já se foi agraciado pelo fogo sagrado, que traz concomitantemente
a razão, pois a guerra é odiosa aos deuses e aos homens. Essa ima-
gem, novamente, parece aproximar Xerxes à figura de Ares, que é
a representação da ausência de diplomacia e da natureza brutal da
15 Platão, Protágoras, 321d. Tradução e Estudo Introdutório de Eleazar Magalhães Teixeira. Edições
UFC. 2016.
16 Ésquilo, Prometeu Acorrentado, 314-315.(2009). Zeus já havia eliminado raças anteriores, cf. Hesí-
odo, Os Trabalhos e os Dias, 109-201 (2019). Cf também Benardete, The Crimes and Arts of Prome-
theus, pp. 126-139 (1964).
SUMÁRIO 46
guerra, a que utiliza a agressividade e a força para a resolução de
conflitos, e o mais detestável dentre os deuses do Olimpo aos olhos
de Zeus (Homero, Ilíada, V. 890). De fato, Xerxes é comparado ao
deus Ares no decorrer da tragédia (ÉSQUILO, Persas, vv. 81-6).
SUMÁRIO 47
mas é forçado por qualquer acaso a ser tirano, e, sendo incapaz de
se dominar a si mesmo, tenta mandar nos outros” (República, 579c).
Faz parte da alma tiranizada, que é injusta, portanto, querer honras
por sua utilidade prática.
SUMÁRIO 48
uma resposta efetiva. Ao contrário, se enche de uma autoridade epis-
têmica que não tem, concede à rainha não uma garantia, mas uma
profecia positiva a respeito do destino: “Isso de coração adivinho
com doçura te aconselho. Quanto a isso, discernimos que terás tudo
bem.” (ταῦτα θυμόμαντις ὤν σοι πρευμενῶς παρῄνεσα. εὖ δὲ πανταχῇ
τελεῖν σοι τῶνδε κρίνομεν πέρι) (vv. 224-225). Com a entrada do men-
sageiro e seu relato, declarando a derrota do exército Persa, Atossa
lamenta seu destino, e faz questão de ressaltar a má interpretação do
oráculo vinda do coro (vv. 517-520). O valor dos πιστὰ não é questio-
nado porque erram, mas porque afirmam saber algo que não sabem,
um erro socrático par excellence. E, sendo Xerxes que os escolhera
como conselheiros, se torna conspícuo o fato de que mesmo uma
multidão de opiniões equivocadas não trará nenhuma resolução aos
que precisam de alguma.
SUMÁRIO 49
ἥβαν Ξέρξᾳ κταμέναν, Ἄιδου
σάκτορι Περσῶν· ᾁδοβάται γὰρ
πολλοὶ φῶτες, χώρας ἄνθος,
τοξοδάμαντες, πάνυ ταρφύς τις
μυριὰς ἀνδρῶν ἐξέφθινται·
αἰαῖ αἰαῖ κεδνᾶς ἀλκᾶς·
Ἀσία δὲ χθών, βασιλεῦ γαίας,
αἰνῶς αἰνῶς ἐπὶ γόνυ κέκλιται.
ΞΕΡΞΗΣ
Ὄδ’ ἐγών, οἰοῖ, αἰακτός
μέλεος, γέννᾳ γᾷ τε πατρῴᾳ
κακὸν ἄρ’ ἐγενόμαν.
CORO
Ototoî, ó rei, pela brava campanha
pelo valor magnífico do poder persa,
pelo esplendor dos varões
que o Nume hoje massacrou!
Terra pranteia a enterrada
juventude morta por Xerxes, que povoa
de persas o palácio de Hades, onde
passeiam muitos varões, flor da terra,
hábeis arqueiros; uma compacta
miríada de varões pereceu.
Aiai aiaî! Que brava coragem!
Ó rei desta terra, a terra Ásia
mísera, mísera, pôs-se de joelhos.
XERXES
Eis-me aqui, oioî, gemente,
choroso! Tornei-me a ruína
do povo e terra pátria.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 918-934)
SUMÁRIO 50
ser reorganizadas após a morte de muitos de seus comandantes
(302:330), e de sátrapas (33:38), em assuntos tais como a reta deli-
beração, a administração, a capacidade de governança e execução
do poderio bélico enquanto unidade nacional ramificada. De certo
modo, o próprio Xerxes era uma “instituição” em ato, pois de seu
ambiente doméstico, o palácio de Susa, era emanado o maior poder
político persa. À chegada do mensageiro, e após o relato da queda
do exército persa, Atossa se despe de vestes suntuosas e adornos
(vv. 608) e se dirige ao túmulo do falecido Dario para buscar orienta-
ções para a pátria derrotada. O coro entoa um longo ritual de invo-
cação do espírito de Dario (vv. 628:680) na esperança de conforto.
Finalmente, nota-se que o impacto negativo da ὕβρις de Xerxes atra-
vessa o domínio da realidade das coisas sensíveis, irrompendo no
domínio dos espectros do Hades. Quando o coro recorre à memória
pátria para ressaltar os feitos e as conquistas de Dario, isto é, seus
triunfos sobre outras nações e territórios (852-908), e, no êxodo, Xer-
xes entra em cena arruinado, não somente é evidenciado que ele
é um governante inferior ao pai, mas que ferira a memória de uma
grande nação. Deste modo, ἐπιθυμία se torna causa motriz da ruína
de μοῖρα τῆς γαίας (destino da pátria). Sua ὕβρις atinge não somente
a realidade terrena, mas o cosmo como um todo e a memória de um
povo. Ao se declarar, portanto, que do sofrimento humano vem o
aprendizado, em Persas, Xerxes tido como ἰσοθεός (idêntico a Deus)
– assim como o tirano apresentado por Gláucon, “idêntico aos deu-
ses” (ἰσόθεον ὄντα) (República, II. 360c) – detentor de grandíssimo
poder, não determina exclusivamente o aprendizado, mas faz com
que todo o cosmo e uma nova memória seja reconfigurada: seu
castigo atinge proporções que são muitíssimo mais extensas que
aquelas meramente individuais, exigindo uma nova reconfiguração
da própria cidade, e, por consequência, aproximando-se finalmente
à ideia da necessidade de uma nova teoria política, conforme defen-
dida por Lockwood (2017).
SUMÁRIO 51
3
Vanessa Silva Almeida
XERXES E DARIO:
UM CONTRASTE DE CARÁTER
INTRODUÇÃO
É comum lermos em obras críticas e estudos acadêmicos que
Os Persas de Ésquilo é uma peça histórica. É inegável que o motivo
da peça seja um episódio histórico, mas diremos neste breve traba-
lho que Ésquilo não quis fazer história, e que, por isso, Os Persas,
como diz Kitto (1990, p. 76), é “só drama”. Longe de propor afirmações
categóricas, mas considerando que, em se tratando da poesia grega,
a relação com a realidade histórica se torna complexa, já que muitas
vezes corre-se o risco de anacronismo, propomos que Ésquilo, tendo
o tema de uma guerra histórica e recente diante de si, usou-o com a
mesma liberdade com que tratou a guerra de Tróia – a priori, mítica.
Seus personagens, históricos em um primeiro momento porque se
particularizaram naquele determinado episódio, são universais do
mesmo modo que um Prometeu ou um Agamêmnon, conforme
argumenta Oliveira (2002). Nesse sentido, Os Persas não encena o
que ocorreu na Batalha de Salamina em 480 a. C., mas o que poderia
ter ocorrido, e, deste modo, a peça sai do âmbito particular da história
para entrar no âmbito universal da poesia, como propõe Aristóte-
les na Poética (141b5).
17 Alguns exemplos desse contraste podem ser verificados entre Antígona e Creonte, Antígona e
Ismêne (Antígona, de Sófocles), Teseu e Creonte (Suplicantes de Eurípides), etc.
SUMÁRIO 53
a fim de propor outros pontos de vista acerca daquela que é conside-
rada a peça mais antiga que chegou até os nossos dias18.
18 Os Persas teria sido encenada por volta do ano de 472 a. C., oito anos depois da vitória ateniense
em Salamina.
19 Oliveira (2002) considera que só é possível falar de história a partir de Tucídides.
SUMÁRIO 54
Evidencia também Dario como um líder pragmático, capaz de reco-
nhecer suas próprias limitações e ajustar suas políticas de acordo
com as circunstâncias. Por exemplo, Heródoto menciona que Dario
percebeu a dificuldade de conquistar a Grécia continental após sua
derrota na Batalha de Maratona e optou por não continuar a invasão
imediatamente (Hist. 4. 1-142).
SUMÁRIO 55
A CARACTERIZAÇÃO
DE DARIO EM OS PERSAS
A primeira menção a Dario na peça esquiliana ocorre durante
a narração do sonho de Atossa no primeiro episódio (vv. 176-214),
sonho este que antecipa o desenvolvimento da ação. Precisamente,
nos versos 197 e 198, a rainha menciona que após Xerxes ser ven-
cido pela mulher de roupas gregas, aproxima-se o pai a lastimá-lo.
A menção da rainha ao marido neste momento da peça pode ser
entendida como uma espécie de mote para que, com a chegada do
mensageiro, que ocorrerá adiante, no verso 249, os personagens sin-
tam a necessidade de invocar o espírito do antigo rei. Os termos da
menção de Atossa são os seguintes:
Πίπτει δ’ ἐμὸς παῖς, καὶ πατὴρ παρίσταται
Δαρεῖος οἰκτείρων σφε: τὸν δ᾽ ὅπως ὁρᾷ
Ξέρξης, πέπλους ῥήγνυσιν ἀμφὶ σώματι.
Καὶ ταῦτα μὲν δὴ νυκτὸς εἰσιδεῖν λέγω.
20 A tradução utilizada em todo o trabalho é a de Jaa Torrano, publicada pela Editora Iluminuras
em 2009.
SUMÁRIO 56
O fantasma de Dario é invocado na peça no final do segundo
episódio, precisamente no segundo estásimo (vv. 623-680) pelo coro
de fiéis anciãos. No terceiro episódio, o público vê se materializar sua
figura no mundo dos vivos para falar com sua esposa, a rainha Atossa,
e com sua corte. A esta altura da peça, os personagens revelam seu
desespero perante os sinais de mau presságio, e o rei é invocado
quase que como um consolo, para que suas palavras, consideradas
sábias, trouxessem algum alento para o momento que vivenciavam
ali (vv. 658; 665-667), tanto é assim, que o mesmo coro que o invocou
se recusa a contar as desgraças para o rei, intimidado que fica pelo
peso da narrativa da destruição de seu império pela mão de Xerxes.
SUMÁRIO 57
Conforme se depreende a partir da citação do autor, é possí-
vel afirmar que o contraste entre pai e filho é intencional por parte de
Ésquilo, como se verá adiante.
SUMÁRIO 58
dolosos21 que teriam manipulado a mente de Xerxes é compreendida
por Atossa, que argumenta que, além dos deuses, Xerxes foi tam-
bém influenciado por maus conselheiros (vv. 753-756), levantando a
questão política do desejo de expansão pelas conquistas territoriais.
A CARACTERIZAÇÃO
DE XERXES EM OS PERSAS
É possível perceber, ao longo da peça de Ésquilo, que Xerxes
está sempre associado a Dario, como que à sombra dos feitos do
pai, na tentativa de emulá-lo. Ésquilo constrói uma comparação
inicial positiva a partir da fala do coro, que vê o rei vigente como um
magnânimo líder (vv. 140-149). Ainda antes, no párodo anapéstico,
Xerxes é apresentado suntuoso, forte e semelhante aos deuses (vv.
21-28; 73-92), mas essa imagem vai se desfazendo completamente
ao longo do desenvolvimento da ação, de modo que a consideração
das duas figuras – Dario e Xerxes – se torna a de dois pólos opostos.
21 Sobre o engano dos deuses, vide o estudo de Jaa Torrano na introdução à sua tradução de
Os Persas, bem como o seu artigo “O fraudulento logro de Deus: a noção de apáte na teologia
de Ésquilo”, que integra a coletânea Estudos sobre o teatro Antigo, organizada por Zélia de
Almeida Cardoso e Adriane da Silva Duarte, pela Editora Alameda.
SUMÁRIO 59
O coro é quem faz a primeira menção ao jovem rei logo no
início do párodo. Ainda que pareça uma menção despretensiosa, a
expressão “nascido de Dario” feita no verso 6 evoca uma imediata
relação, que impele o público a compará-lo com o pai e a esperar
dele os mesmos feitos. Também não deixa de ser uma expressão
elogiosa, uma vez que, como se viu na seção anterior, Dario é apre-
sentado como um grandioso rei quase divino.
SUMÁRIO 60
não mais à imponência de Xerxes em sua magnificência, mas ao
lamento da sua imaturidade, da sua vaidade e da sua inexperiên-
cia em lidar com um exército tão numeroso (vv. 515-516; 532-597).
Volta-se, assim, à comparação com Dario: à medida que o último é
exaltado, Xerxes é humilhado.
SUMÁRIO 61
referir ao adulto a não ser que queira diminuí-lo, como
por exemplo a forma de utilizar esta palavra para se refe-
rir a um servo. Nesta ocorrência percebe-se que Dario
entende Xerxes como um simples “menino” que não tem
totais faculdades para ser o rei que deveria ser (ALBU-
QUERQUE, 2022, p. 72).
SUMÁRIO 62
está também o desejo de conquistas territoriais, que perpassa tanto
a fala de Dario como a do coro, que consideram que Xerxes não
deveria ter avançado para as terras gregas (vv. 791-797). Sobre esta
questão, Kitto (1990), na célebre obra A Tragédia Grega, no capítulo
em que comenta Os Persas, afirma o seguinte:
Xerxes teria de ser castigado pelo céu porque come-
tera ὓβρις. O poeta, querendo um símbolo claro dessa
ὓβρις, usa a distinção nítida entre Europa e Ásia; aqui se
encontram limites traçados pelo Céu. Evidentemente,
com história ou sem ela, não pode ter sido permitido a
Dario ultrapassar estes limites ou o julgamento do Céu
teria caído sobre ele. Portanto, Dario deve ser judicioso
e prudente; deveria ter respeitado escrupulosamente
esta lei (KITTO, 1990, p. 79-80).
SUMÁRIO 63
com a qual concordamos, pois, em sua imaturidade, e estando à
sombra de Dario, acreditou ser capaz de imitar o antigo rei, dignifi-
cando os seus feitos.
[...] Movido por este sentimento acreditou que tudo o
que desejava conquistar lhe pertencia e talvez por isso
nunca tenha questionado a sua capacidade de fazê-lo.
Possuía, pois, um exército muito superior em número ao
de seus inimigos, e, provavelmente, sua emulação tenha
sido tanta que tenha lhe gerado virtudes falsas como
a coragem, levando-o a acreditar numa guerra ganha
(ALBUQUERQUE, 2022, p. 76).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste breve trabalho, intentamos propor uma leitura
de Os Persas, de Ésquilo a partir do contraste estabelecido entre os
personagens Xerxes e Dario a fim de evidenciar o caráter artístico
que se sobrepõe ao histórico na peça de Ésquilo. Tal contraste, longe
de se submeter à exatidão histórica sobre a personalidade de ambos
SUMÁRIO 64
os monarcas, funciona antes como uma técnica dramática advinda
da necessidade da ação. O principal objetivo de Ésquilo é expor a
hýbris de Xerxes, é este o tema da tragédia. Para isso, o dramaturgo
encontra no contraste com o rei predecessor e pai do protagonista
um motor necessário para a construção impactante da queda do
herói. Isto é, à medida que Dario é dotado de todas as virtudes de um
bom governante, Xerxes, possuindo o modelo do pai, desperdiça seu
exemplo e leva seu povo à ruína.
SUMÁRIO 65
Em suma, a partir das questões apresentadas, podemos
ainda dizer que o contraste entre Dario e Xerxes, além de reforçar
os temas trágicos da hybris e da queda de alguém muito poderoso,
também oferece uma reflexão mais ampla sobre o homem na sua
condição de mortal. Ésquilo nos convida a refletir sobre a natureza
da prudência e da ordem divina, bem como sobre os perigos da
ambição desmedida e da ignorância de si mesmo, algo que sempre
atormentou o espírito grego. Há sempre mais possibilidades de lei-
tura em obras literárias, e não pretendemos, com este breve trabalho,
definir uma via única, mas uma entre as várias possíveis.
SUMÁRIO 66
4
Erimar Wanderson da Cunha Cruz
ÉSQUILO INDO-EUROPEU,
ARCAÍSMOS E INOVAÇÕES
NA POÉTICA D’OS PERSAS:
A ESTRUTURA FORMULAR
Ésquilo ocupa um lugar sui generis na periodologia da lite-
ratura grega, não apenas pelo fato de ter sido o primeiro autor do
qual se preservaram obras dramáticas, mas por sua produção ter
determinado um ponto de inflexão no panorama estético grego, pro-
fissionalizando um gênero e uma performance radicados no interior
da dinâmica cívica de Atenas, trazendo a cidade para o centro do
campo literário e cultural do mundo de língua helênica. Evidente
que essa proeminência não se tratava apenas de um dado estético,
a pólis da Ática ter assumido a vanguarda da campanha vitoriosa
das Guerras Médicas, garantiu-lhe, junto com a pródiga economia,
um status de liderança simbólica apenas rivalizado com Esparta.
Atenas se converte num modelo a ser reproduzido, e, nesse parti-
cular, o teatro, tanto como edifício, quanto como expressão cultural,
torna-se um signo de civilidade e de distinção, sendo, não por acaso,
uma figura recorrente na paisagem urbana pela extensão do Medi-
terrâneo a partir do século V a. C.
SUMÁRIO 68
Eurípides: E poetar que nem você
Enormes Licabetos e Parnasos é
lhes mostrar o valoroso?
Você nem fala que nem gente!
Ésquilo: O quê?! Seu imbecil! É necessário
De ideias e sentenças grandiosas parir uma expressão
que as puxe!
Por outro lado, cabe aos semideuses usar palavras
mais altivas,
Pois mesmo as roupas que costumam ter são mais
distintas do que as nossas.
E, mesmo eu tendo feito isso tão bem, você acabou com tudo!
(Aristófanes, Rãs, vv. 1058-1062).
SUMÁRIO 69
Um aspecto fundamental para compreender Os persas como
resultado de uma interrelação criativa entre referências de diferentes
proveniências, é reconhecer que essa se encontra num momento
de transição entre a idade Arcaica e as primícias da era Clássica,
em que a oralidade era o fundamento da comunicação literária.
A própria forma híbrida da tragédia, composta por variados metros,
dialetos e por uma intercalação de gêneros textuais (hinos, lamen-
tos, orações etc.), evidencia um amálgama de usos poéticos. A ori-
gem dessas tradições pode ser perscrutada não apenas nas fontes
gregas, podendo-se aventar um substrato ainda mais antigo, com-
partilhado com poéticas que mantêm laços linguísticos ou culturais
com o idioma helênico.
23 Exemplos dessa vertente investigativa são os trabalhos de Gripp (2015), Masseti (2019) e Meusel (2020).
SUMÁRIO 70
de colonização das Américas, da África e da Ásia. William Jones, juiz
da Coroa Britânica lotado na Suprema Corte de Calcutá (Índia), em
seu terceiro discurso anual diante da Sociedade Asiática, imbuído
dessa inclinação, por assim dizer, arqueológica, afirmará:
A língua sânscrita, seja qual for sua antiguidade, é de uma
estrutura maravilhosa; mais perfeita que a grega, mais
copiosa que a latina, e mais primorosamente refinada do
que ambas, ainda comportando com ambas uma afini-
dade mais forte, tanto nas raízes dos verbos quanto nas
formas da gramática, do que poderia ter sido produzida
por acidente; tão forte, de fato, que nenhum filólogo
poderia examiná-las todas as três, sem acreditar que
elas surgiram de alguma fonte comum24 (JONES, 1967
[1786], p. 15, sem grifos no original).
24 Tradução livre do original: The Sanskrit language, whatever be its antiquity, is of a wonderful structure;
more perfect than the Greek, more copious than the Latin, and more exquisitely refined than either, yet
bearing to both of them a stronger affinity, both in the roots of verbs and in the forms of grammar, than
could possibly have been produced by accident; so strong indeed, that no philologer could examine
them all three, without believing them to have sprung from some common source.
SUMÁRIO 71
Kuhn, em 1853, ao aproximar a expressão védica ákṣiti śrávaḥ (“gló-
ria imperecível”, RV 1.40.4, 8.103.5) e a homérica κλέος ἄφθιτον (kléos
áphthiton, “glória imorredoura”, Hom., Il., 9.413), que, mais tarde, come-
çou a ser considerada uma fórmula poética compartilhada, advinda
de um substrato anterior *kléwos ṇdʰgʷʰitom. Esse tipo de descoberta
pelos etimologistas deu origem à análise da viabilidade formal de
uma poética indo-europeia (indogermanische Poetik) e do exame de
uma gramática poética comum, na qual Antoine Meillet reconheceu
“um elemento da civilização indo-europeia” (MEILLET, 1923, p. 03).
SUMÁRIO 72
[...]. O tipo de compostos com o primeiro membro verbal
em -ti também deve ser considerado uma relíquia pro-
toindo-europeia, por exemplo, dā́tivāra – “que dá tesou-
ros”. [...]. Este tipo de composição deve ser mais antigo do
que uma inovação indo-iraniana, que também se torna
pouco produtiva após o Ṛgveda. Que essa construção
remonta à fase das relações indo-europeias é provado
pelo tipo grego τερψίμβροτος25 [“que aos mortais traz o
deleite”] (DURANTE, 1976, p. 38).
25 Tradução livre do original: Un’altra e ancor più significativa testimonianza dell’antichità della tra-
dizione [...] è data da quegli arcaismi, conservati allo stato fossile, che riflettono condizioni di lin-
gua o di cultura che dovettero essere eliminate [...]. È questo il caso della formula devāñ janma
(jánmanā) ‘la stirpe degli dei’ ”. [...] Si deve considerare parimenti un relitto protoario il tipo di
composti con primo membro verbale in -ti, ad esempio dā́tivāra- ‘che dà tesori’. [...] . Questo tipo
composizionale deve essere più antico di un’innovazione indoiranica, che pur essa diventa impro-
duttiva dopo il Rigveda. Che essa risalga alla fase dei rapporti indoeuropei, è provato dal tipo greco
τερψίμβροτος.
26 As traduções dos excertos védicos foram elaboradas a partir da versão espanhola de Francisco
Villar Liébana (2002).
SUMÁRIO 73
devám amīvacā́tanam, “[Agni] divindade que afasta os
espíritos atormentadores”
(Ṛgveda, 1.12.7).
SUMÁRIO 74
quando envolvia um tema verbal e que “a natureza dessa formação era
mal compreendida já na época védica” (DURANTE, 1976, p. 38).
SUMÁRIO 75
Νέστωρ αὖ τότ’ ἐφῖζε Γερήνιος, Aqui se sentou Nestor de Gerênia, guardião
οὖρος Ἀχαιῶν, dos Aqueus,
σκῆπτρον ἔχων. περὶ δ’ υἷες de cetro na mão; em seu redor reuniam-se
ἀολλέες ἠγερέθοντο os filhos,
ἐκ θαλάμων ἐλθόντες, Ἐχέφρων vindos de seus quartos: Equefronte, Estrácio,
τε Στρατίος τε
Περσεύς τ› Ἄρητός τε καὶ Perseu e Areto, assim como o divino Trasimedes.
ἀντίθεος Θρασυμήδης.
415 τοῖσι δ› ἔπειθ› ἕκτος 415 Em sexto lugar veio depois o herói Pisístrato,
Πεισίστρατος ἤλυθεν ἥρως,
πὰρ δ› ἄρα Τηλέμαχον junto ao qual sentaram o divino Telémaco.
θεοείκελον εἷσαν ἄγοντες.
τοῖσι δὲ μύθων ἦρχε Γερήνιος Para eles começou a f alar Nestor de Gerênia,
ἱππότα Νέστωρ· o cavaleiro29.
(HOMERO, Odisseia, 3.411-417, sem grifos no original). (HOMERO, Odisseia, 3.411-417, sem grifos no original).
75 ταῦτ’ ἄρα Μοῦσαι ἄειδον 75 isto as Musas cantavam, tendo o palácio olímpio,
Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσαι,
ἐννέα θυγατέρες μεγάλου Διὸς nove filhas nascidas do grande Zeus:
ἐκγεγαυῖαι,
Κλειώ τ’ Εὐτέρπη τε Θάλειά τε Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Μελπομένη τε
Τερψιχόρη τ’ Ἐρατώ τε Πολύμνιά Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
τ’ Οὐρανίη τε
Καλλιόπη θ’· ἡ δὲ προφερεστάτη e Belavoz, que dentre todas vem à frente.
ἐστὶν ἁπασέων.
(HESÍODO, Teogonia, vv. 75-79, sem grifos no original) (HESÍODO, Teogonia, vv. 75-79, sem grifos no original)
SUMÁRIO 76
Ao comparar-se as passagens, é possível constatar a estru-
tura formular que configura os catálogos poéticos: uso de partícu-
las copulativas (τε, te; καί, kaí), paralelismo dos membros e, quando
pertinente, a integração de epítetos modificadores. A enumeração
homérica, nesse momento, é elaborada como aposto à figura de Nes-
tor, os limites da listagem são determinados, inclusive, pela repetição
de seu nome, e ocupa uma função ilustrativa de elencar o número e
a nomeação de seus filhos presentes na cena, ressaltando a abun-
dante prosperidade de sua prole e de sua condição. Entretanto, essa
informação poderia ser omitida sem causar uma lacuna determinante
no contínuo da narração, ao passo que, em Hesíodo, a citação lite-
ral das Musas ocupa um lugar central no relato teogônico, uma vez
sendo elas padroeiras e inspiradoras do canto do poeta. Essa forma
de catálogo que estabelece vínculos pronunciados com a diegese é
identificada num excerto logo no início do Bhagavad Gītā (1.3-6):
1.4 atra śūrā maheṣvāsā bhīmārjunasamā yudhi 4. Aqui estão guerreiros/e grandes arqueiros,/semelhantes
yuyudhāno virāṭaśca drupadaś ca mahārathaḥ na batalha a Bhīma e Arjuna:/Yuyudhana, Virāṭa, Drupada,/o
grande condutor de carros de batalha,
1.5 dhṛṣṭaketuś cekitānaḥ kāśirājaś ca vīryavān 5. Dhṛṣṭaketu, Chekitāna/e o poderoso rei de Kāśi
purujit kuntibhojaś ca śaibyaś ca narapuṅgavaḥ (Varanasi),/Purujit e Kuntibhoja e o rei dos Shibis,/um
touro entre os homens,
SUMÁRIO 77
Em um dos quadros mais emotivos da literatura sânscrita, o
príncipe Arjuna, um dos cinco Pândavas, desolado com a iminência
da Guerra de Kurukṣetra, comtempla os preparativos do campo de
batalha e verifica que entre seus adversários, encontram-se paren-
tes, amigos diletos e mestres dignos de sua reverência. Consciente
dessa situação, o nobre hesita, larga seu arco e começa a refletir se é
digno ou não entrar em contenda contra pessoas pelas quais nutria
tamanha afeição. Diante do dilema, Arjuna empreende um longo
debate com seu cocheiro e guia Krishna, atual reencarnação do deus
Vishnu, sobre a plausibilidade do embate, em que também se tratam
de questões éticas, filosóficas e morais.
SUMÁRIO 78
onde se encontra, acompanhada de venerandos guardiães, a rainha-
-mãe Atossa apreensiva com a falta de novas do filho, Xerxes, que
partira em expedição militar contra a Hélade.
SUMÁRIO 79
οἷος Ἀμίστρης ἠδ’ Ἀρταφρένης Assim Anistres e Artafernes
καὶ Μεγαβάτης ἠδ’ Ἀστάσπης, e Megabates e Astaspes
ταγοὶ Περσῶν, βασιλῆς βασιλέως chefes dos persas, do grande rei
25 ὕποχοι μεγάλου, σοῦνται, στρατιᾶς vice-reis, avançam, vigias
πολλῆς ἔφοροι, τοξοδάμαντές de vasto exército, hábeis arqueiros 25
τ’ ἠδ’ ἱπποβάται, φοβεροὶ μὲν ἰδεῖν, e cavaleiros, terríveis de ver,
δεινοὶ δὲ μάχην temíveis em combate,
ψυχῆς εὐτλήμονι δόξῃ· na nobre glória da vida.
Ἀρτεμβάρης θ’ ἱππιοχάρμης Artembares, árdego cavaleiro,
30 καὶ Μασίστρης, ὅ τε τοξοδάμας e Masistres e o hábil arqueiro 30
ἐσθλὸς Ἰμαῖος Φαρανδάκης θ’, bravo Imaios e Farandaces
ἵππων τ’ ἐλατὴρ Σοσθάνης. e o condutor de cavalo Sostanes.
ἄλλους δ’ ὁ μέγας καὶ πολυθρέμμων Outros o grande e multinutriente
Νεῖλος ἔπεμψεν· Σουσισκάνης, Nilo enviou: Susiscanes,
35 Πηγασταγὼν Αἰγυπτογενής, chefe de fontes nascido de Egisto, 35
ὅ τε τῆς ἱερᾶς Μέμφιδος ἄρχων e o governador da sagrada Mênfis
μέγας Ἀρσάμης, τάς τ’ ὠγυγίους grande Ársames, e da prístina
Θήβας ἐφέπων Ἀριόμαρδος, Tebas mandatário Ariomardos,
καὶ ἑλειοβάται ναῶν ἐρέται e os pantaneiros remadores de navios,
40 δεινοὶ πλῆθός τ’ ἀνάριθμοι. terríveis, e em número incontáveis, 40
ἁβροδιαίτων δ’ ἕπεται Λυδῶν e segue a turba dos lídios luxuriosos
ὄχλος, οἵτ’ ἐπίπαν ἠπειρογενὲς junto: eles contêm toda nação
κατέχουσιν ἔθνος, τοὺς Μητρογαθὴς nativa do continente: Metragates
Ἀρκτεύς τ’ ἀγαθός, βασιλῆς δίοποι, e o bravo Arcteus, reis vígeis,
45 χαἰ πολύχρυσοι Σάρδεις ἐπόχους e a multiáurea Sardes os enviaram 45
πολλοῖς ἅρμασιν ἐξορμῶσιν, montados em muitos carros
δίρρυμά τε καὶ τρίρρυμα τέλη, de duas e de três rédeas,
φοβερὰν ὄψιν προσιδέσθαι. visão terrível de ver.
στεῦται δ’ ἱεροῦ Τμώλου πελάτης Dizem os vizinhos do sagrado Tmolo
50 ζυγὸν ἀμφιβαλεῖν δούλιον Ἑλλάδι, que lançarão jugo servil sobre a Grécia: 50
Μάρδων, Θάρυβις, λόγχης ἄκμονες, Márdon, Taríbis, bigorna de dardo,
καὶ ἀκοντισταὶ Μυσοί· Βαβυλὼν δ’ e lanceiros mísios. E Babilônia
ἡ πολύχρυσος πάμμεικτον ὄχλον a multiáurea envia a diversa
πέμπει σύρδην, ναῶν τ’ ἐπόχους turba copiosa, posta em navios,
55 καὶ τοξουλκῷ λήματι πιστούς· fiéis à vontade vulnerante do arco. 55
τὸ μαχαιροφόρον τ’ ἔθνος ἐκ πάσης A nação cimitarreira de toda
Ἀσίας ἕπεται δειναῖς βασιλέως ὑπὸ πομπαῖς. a Ásia segue sob terríveis séquitos do rei.31
(ÉSQUILO, Os persas, vv. 21-58, sem grifos no original) (ÉSQUILO, Os persas, vv. 21-58, sem grifos no original)
SUMÁRIO 80
Por meio de um burilado mosaico de expedientes poéticos,
Ésquilo urde uma modelar peça que coaduna variados usos tradi-
cionais formulares numa construção que prima pelo colorido. Isso
é notável pela rede coesiva adotada pelo autor: aquilo que se arti-
culava, convencionalmente, apenas nomes ou sintagmas nominais
com uma ou duas partículas copulativas (τε, te; καί, kaí), dá-se, nesse
catálogo, por diferentes sortes de pronomes (οἵτε, hoíte; οἷος, hoîos;
ἄλλους, állous), por numerosas formas aditivas (δέ, dé; ἠδέ, ēdé; τε,
te; τε καί, te kaí; τε ἠδέ te ēdé; καί, kaí) ou pela simples justaposição
nominal. Tal variação estrutural contribui, ainda, para a distinção que
o narrador pretende apontar para os caracteres não-bárbaros.
SUMÁRIO 81
Por intermédio da enumeração das tropas mobilizadas por
Xerxes, Ésquilo oferece o panorama continental dos territórios e dos
povos e submetidos ao jugo persa: são egípcios, lídios, mísios, babi-
lônios, enfim, “toda a Ásia” (πάσης Ἀσίας, pásēs Asías, vv. 56-57), que
não à toa, é alcunhada de “nação cimitarreira” (τὸ μαχαιροφόρον τ’
ἔθνος, tò makairophóron t’éthnos, vv. 56). Essa verve impetuosa é atri-
buída aos generais e ao efetivo que reforçavam as tropas aliadas per-
sas, ora com modificadores simples: “vasto” (πολλῆς, pollē̂s, vv. 26),
“bravo” (ἐσθλὸς, esthlòs, vv. 31), incontáveis (ἀνάριθμοι, anárithmoi, vv.
40), “temíveis” (δεινοὶ, deinoì, vv. 40); ora com epítetos compostos:
“hábeis arqueiros” (τοξοδάμαντές, toxodámantés, vv. 25) “árdego cava-
leiro” (ἱππιοχάρμης, hippiocharmēs, vv. 29). Ao lado dessa visão terri-
ficante, as terras e os povos asiáticos são descritos em sua magnifi-
cência e antiguidade: “multinutriente” (πολυθρέμμων, polythrémmōn,
vv. 33), “sagrada” (ἱερᾶς, hierâs, vv. 36), “grande” (μέγας, mégas, vv.
33), “prístina” (ὠγυγίους, ōgygíous, vv. 37), “multiáurea (πολύχρυσοι,
polýkhrysoi, vv. 45 e vv. 53). Por meio da construção formular, o enun-
ciador coloca o poderio bárbaro num alto relevo para acentuar ainda
mais o peso de sua derrocada.
SUMÁRIO 82
Ἀρτεμβάρης δὲ μυρίας ἵππου βραβεὺς Artembares, guia de equestre miríade,
στύφλους παρ’ ἀκτὰς θείνεται Σιληνιῶν. colide com duros pontais de Silênias,
χὠ χιλίαρχος Δαδάκης πληγῇ δορὸς e o quiliarca Dadaces, por golpe de lança,
305 πήδημα κοῦφον ἐκ νεὼς ἀφήλατο· num salto ligeiro, pulou do navio. 305
Τενάγων τ’ ἄριστος Βακτρίων ἰθαιγενὴς Tenágon, campeão báctrio, nobre nato,
θαλασσόπληκτον νῆσον Αἴαντος πολεῖ. volteia a golpeada-pelo-mar ilha de Ájax.
Λίλαιος Ἀρσάμης τε κἀργήστης τρίτος, Lílaios, Arsames e, terceiro, Argestes,
οἵδ’ ἀμφὶ νῆσον τὴν πελειοθρέμμονα estes, ao redor da ilha nutriz de pombas,
310 νικώμενοι κύρισσον ἰσχυρὰν χθόνα· vencidos cabeceiam a vigorosa terra. 310
πηγαῖς τε Νείλου γειτονῶν Αἰγυπτίου Dentre os vizinhos de fontes do egípcio Nilo,
Ἀρκτεύς, Ἀδεύης, καὶ † φρεσεύης τρίτος Arcteus, Adeues e, terceiro, o escudado
Φαρνοῦχος, οἵδε ναὸς ἐκ μιᾶς πέσον. Farnucos, estes caíram do mesmo navio.
314 Χρυσεὺς Μάταλλος μυριόνταρχος θανών, Mátalos de Crisa, miriontarca, morto, 314
316 πυρσὴν ζαπληθῆ δάσκιον γενειάδα tingiu a farta umbrosa barba cor de fogo 316
317 ἔτεγγ’, ἀμείβων χρῶτα πορφυρᾷ βαφῇ. trocando a cor com o purpúreo banho. 317
318 καὶ Μᾶγος Ἄραβος, Ἀρτάβης τε Βάκτριος, O mago Árabos e o báctrio Artames, 318
315 ἵππου μελαίνης ἡγεμὼν τρισμυρίας, guia de três negras miríades equestres, 315
319 σκληρᾶς μέτοικος γῆς, ἐκεῖ κατέφθιτο. são residentes da terra cruel, lá pereceram. 319
320 Ἄμιστρις Ἀμφιστρεύς τε πολύπονον δόρυ Ámestris, Anfistreus, senhor de laboriosa 320
νωμῶν, ὅ τ’ ἐσθλὸς Ἀριόμαρδος Σάρδεσι lança, e o bravo Ariomardos portador
πένθος παρασχών, Σεισάμης θ’ ὁ Μύσιος, de luto a Sardes, e o mísio Seisames,
Θάρυβίς τε πεντήκοντα πεντάκις νεῶν Táribis, capitão de cinco vezes cinqüenta
ταγός, γένος Λυρναῖος, εὐειδὴς ἀνήρ, naves, nascido em Lerna, formoso varão,
325 κεῖται θανὼν δείλαιος οὐ μάλ’ εὐτυχῶς· jaz morto, mísero, não por boa sorte. 325
Συέννεσίς τε πρῶτος εἰς εὐψυχίαν, Siénisis, o primeiro por sua valentia,
Κιλίκων ἄπαρχος, εἷς ἀνὴρ πλεῖστον πόνον senhor dos cílices, varão que deu mais dor
ἐχθροῖς παρασχών, εὐκλεῶς ἀπώλετο. aos inimigos, com bela glória sucumbiu.
(ÉSQUILO, Os persas, vv. 302-328, sem grifos no original) (ÉSQUILO, Os persas, vv. 302-328,, sem grifos no original)
SUMÁRIO 83
agora destroçados pelas ondas e perecem deixando seus corpos
como presas das aves marinhas. De pouco lhes valem as armas
reforçadas (“escudado”, φρεσεύης, phreseúēs, vv. 312), as numerosas
tropas (“guia de três negras miríades equestres”, σκληρᾶς μέτοικος
γῆς, sklērâs métoikos gē̂s, vv. 319; “capitão de cinco vezes cinquenta
naves”, τε πεντήκοντα πεντάκις νεῶν ταγός, te pentḗkonta pentákis
neō̂n tagós, vv. 323), a beleza (“formoso”, εὐειδὴς, eueidḕs, vv. 324) ou
a distinta linhagem (“nobre nato”, ἰθαιγενὴς, ithaigenē̂s, vv. 306), tudo
no quadro é morte e desolação (“morto” θανών thanṓn, vv. 314 e 326;
“mísero” δείλαιος, deílaios, vv. 325; “sucumbiu” ἀπώλετο apṓleto, vv.
328). Quanto à estrutura, a unidade magnificente inicial demarcada
pelos epítetos compostos, pela variação das estratégias coesivas
e pelo jogo de correlação paralelística, é substituída por adjetivos
simples e por locuções que mimetizam a fragmentação do exército
asiático, focalizando no melancólico destino final de alguns eminen-
tes estrategos: “Mátalos de Crisa, miriontarca, morto, tingiu a farta
umbrosa barba cor de fogo trocando a cor com o purpúreo banho”
(vv. 314, 316, 317).
SUMÁRIO 84
às práticas poéticas da família indo-europeia. Entre essas, as que
gozam de mais distinção e antiguidade demonstram ser os epíte-
tos complexos com raízes verbais, conforme se verifica nos Vedas.
Restritos a priori à esfera da celebração ritual, adentram na literatura
grega por via homérica, consagrando seu uso na caracterização de
heróis, aparentemente, cumprindo ainda uma função mnemônica e
articulatória nos relatos poéticos, em especial, em uma fase em que
a oralidade se sobressaía como canal de comunicação cultural, con-
ferindo elevação ao seu registro.
SUMÁRIO 85
5
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
A POÉTICA
DA NARRATIVA
EM PROMETEU
ACORRENTADO,
DE ÉSQUILO
INTRODUÇÃO
Para Aristóteles, existem tentativas de distinguir e classificar
os gêneros literários, a resumir por gênero épico (narrativo), lírico e
dramático; desses três, dois me interessam neste trabalho, que são
o épico e o dramático, aqui tratados como, respectivamente, texto
narrativo e texto dramático.
33 Pensando no contexto das tragédias e comédias gregas clássicas, as rubricas não existiam, eram
textos constituídos apenas de falas.
SUMÁRIO 87
período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopeia não
tem limite de tempo — e nisso diferem, ainda que a tra-
gédia, ao princípio, igualmente fosse ilimitada no tempo,
como os poemas épicos (ARISTÓTELES, 1994, p. 109).
SUMÁRIO 88
de artigos que falam sobre narrativa e teatro grego clássico, sendo
uma organizada por Irene de Jong (2012) e a outra por Ruth Scodel e
Douglas Cairns (2014).
A AÇÃO E A NARRATIVA
Antes de adentrar em uma análise mais profunda da
peça, é necessário discutir um conceito muito importante no que
diz respeito ao estudo de narrativa e teatro, que é o da narra-
tiva como performance.
SUMÁRIO 89
A Tragédia, embora possua elementos característicos que são
comuns ao gênero dramático, também possui em sua composição
aspectos narrativos como, por exemplo, os longos discursos das
personagens que contam eventos que são de grande importância
para o enredo central da peça, mas que não acontecem aos olhos
do público (EASTERLING, 2014). As narrativas dessa natureza pre-
sentes em Prometeu Acorrentado contam com cerca de cinquenta
versos cada e são narrativas detalhadas sobre eventos anteriores
ou posteriores ao momento da peça e que são de suma importân-
cia para a apresentação do enredo principal, contudo são momen-
tos que não acontecem na ação e, sim, na narrativa, sendo os dois
melhores exemplos o discurso de Prometeu sobre como Zeus che-
gou ao poder, e a descrição sobre o percurso quase infindável de Io,
sendo que o primeiro representa um evento anterior ao momento da
peça, e o segundo, um evento posterior.
SUMÁRIO 90
demonstra que esta é uma tragédia de narrativas, pois o ato de “con-
tar e ouvir se tornam a ação” (EASTERLING, 2014, p. 231), e pode-
mos ainda pensar no próprio contexto de apresentação da peça,
pois de um lado temos um ator representando um personagem que
conta uma história (narrador) e de outro, um público espectador que
as ouve (narratário).
A ESTRUTURA NARRATIVA
EM PROMETEU ACORRENTADO
A tragédia Prometeu Acorrentado, dentre os muitos temas
que apresenta, se destaca por fazer uma apresentação de vários
lugares e uma reflexão a respeito do tempo; é por isso que escolhi
as categorias tempo e espaço da narratologia para fazer a análise de
algumas passagens da peça, além disso, trago também uma breve
discussão sobre a figura do possível narrador na tragédia.
O(S) NARRADOR(ES)
Uma vez que se entende que esse ato de contar e ouvir pode
ser possível dentro da tragédia, e que essas narrativas vêm nas pró-
prias falas das personagens, é possível dizer que determinado per-
sonagem, quando está fazendo um discurso que se enquadra como
narrativo, pode ser considerado um narrador dentro da peça, afinal
enquanto “esses enunciados linguísticos constituírem um texto nar-
rativo, haverá um narrador, um sujeito que narra” (BAL, 1990, p. 127).
SUMÁRIO 91
podem assumir esse papel de narrador, e, em geral, esse personagem
narra algo que ele presenciou, ele é uma testemunha ocular do
evento (EASTERLING, 2014).
SUMÁRIO 92
histórias que os personagens têm para contar, é ele quem impulsiona
a narrativa dentro da tragédia.
SUMÁRIO 93
escuta sobre tudo o que está prestes a passar, e isso pode ser notado
a partir do verbo “escutai”.
O TEMPO
Ao meu ver, falar de tempo no gênero dramático é uma tarefa
bastante complexa, pois temos, ao mesmo tempo, a instância perfor-
mática que é própria do teatro e as possibilidades narrativas dentro
dos discursos. Sendo assim, é possível entender que no presente
temos atores atuando a partir da forma mimética dentro do período
de um dia, segundo o próprio Aristóteles. Além disso, pensando nar-
rativamente, os eventos de um enredo “ocorrem durante um determi-
nado período de tempo e ocorrem em uma determinada ordem” (BAL,
1990, p. 45), e no que diz respeito à performance, falar do presente
é complicado pelo fato de que os personagens e refrões
são extraídos do mundo passado dos heróis épicos e
usam uma linguagem cheia de ecos de narrativas épicas
e líricas, muitas vezes evocando, a título de exemplo,
as histórias de outras pessoas ainda mais distantes
naquele passado distante (EASTERLING, 2014, p. 229).
SUMÁRIO 94
apresentadas em trilogias nos festivais, e Prometeu Acorrentado seria
a peça do meio e fica entre Prometeu Portador do Fogo (a primeira)
e Prometeu Libertado (a terceira) (KURY, 1993); e essas duas outras
peças das quais só nos restaram fragmentos são evocadas dentro do
Prometeu Acorrentado, a partir de discursos que podem ser conside-
rados narrativos e enfatizam essa questão temporal.
SUMÁRIO 95
narrativos para fazer essa imersão, e tudo isso me leva a pensar que,
pensando apenas no contexto da tragédia Prometeu Acorrentado, a
segunda peça está localizada na ação, no presente, enquanto temos
um Prometeu preso e solitário sofrendo uma punição severa, já os
acontecimentos das outras duas peças estão localizados na narra-
tiva, sendo os da primeira, no passado, e os da terceira, no futuro.
O ESPAÇO
Tratar do espaço na tragédia é uma tarefa tão complexa
quanto falar de tempo, isso porque a natureza específica do teatro
“é a exposição em forma mimética (personagens que falam, sem a
intervenção do narrador)” (SEGRE, 1981, p. 95).
SUMÁRIO 96
e não oferece mais nenhuma informação a respeito desses
dois lugares, deixa que os narratários imaginem, a partir do que já
conhecem ou desconhecem, a constituição desses espaços.
É fato que este tópico merece uma análise muito mais apro-
fundada com cotejamento de outras passagens para um estudo mais
SUMÁRIO 97
microscópico, porém por conta do espaço reduzido neste artigo, dei-
xarei a presente discussão para estudos futuros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho demonstrou alguns aspectos importan-
tes a respeito da natureza do texto dramático, a partir da análise da
tragédia Prometeu Acorrentado, e como este é influenciado, em algu-
mas instâncias, pelo texto narrativo, o ato de contar e ouvir. Primeiro,
vimos que não é possível aferir que o gênero dramático é narra-
tivo, pois possui características e essência próprias, contudo possui
em sua composição alguns elementos que são “pertencentes” ao
gênero narrativo, e que por isso se torna possível a análise de textos
dramáticos da antiguidade grega a partir de uma ótica narratológica.
35 Essa afirmação parte de consulta realizada em diversas bases de dados relacionadas aos estudos
clássicos no Brasil, tais como as revistas “Clássica”, “Phaos”, “Codex”, “Rónai”, “Letras Clássicas” e
“Romanitas”, além de buscas também realizadas no portal “Periódicos Capes”. Tais buscas reali-
zadas pelos termos “prometeu acorrentado”, “narrativa” e “narratologia” geraram um retorno que
se mostrou pouco expressivo ou inexistente. A consulta foi realizada durante a produção deste
trabalho e envolve apenas o contexto brasileiro.
SUMÁRIO 98
quanto, por exemplo, as tragédias que compõem a Orésteia36, tam-
bém de Ésquilo. E se afirmo tais palavras, é com o intuito de mostrar
a relevância deste trabalho para os estudos que envolvem os textos
antigos e a narratologia, além de, é claro, ser um convite àqueles
que se sintam inspirados a contribuir com suas pesquisas narrato-
lógicas sobre a peça.
SUMÁRIO 99
6
Glaudiney Moreira Mendonça Junior
A CORPORIZAÇÃO
DA COMUNICAÇÃO
EM FILOCTETES,
DE SÓFOCLES:
UM ESTUDO
DE SEMIÓTICA DISCURSIVA
INTRODUÇÃO
Ottmar Ette, em seu livro “SaberSobreViver”, traz uma reflexão
sobre a possibilidade de utilizar uma metáfora corporal para repre-
sentar o poder da linguagem em comunicar-se com outros e com o
próprio eu. “Dessa forma, o contato linguístico é compreendido de
maneira muito corporal” (ETTE, 2015, p. 129). Para ele, a linguagem
constitui o invólucro sensorial do corpo.
SUMÁRIO 101
CORPUS E TEXTO
O objeto de investigação utilizado é a tragédia Filoctetes de
Sófocles. Composta de 1471 versos, conta a história do resgate de
Filoctetes, herói que parte a caminho de Troia com os gregos, porém
é abandonado em uma ilha por ter adquirido uma ferida causadora
de muito sofrimento e geradora de aflições para todos os presentes
na embarcação. No entanto, um presságio indica que Troia só pode-
ria ser conquistada se o arco de Filoctetes, herdado de Héracles,
estivesse presente na batalha. Sendo assim, dois heróis, Odisseu e
Neoptólemo, retornam para a ilha a fim de levá-lo a Troia.
SUMÁRIO 102
comunicação. Partindo assim da isotopia /corporal/ - /verbal/ pode-
mos iniciar a investigação com o seguinte quadrado semiótico:
Corporal Verbal
| |
Não-verbal Não-corporal
CORPORIZAÇÃO
DA COMUNICAÇÃO
Na Tabela 1, apresentamos a divisão da peça, em um nível
discursivo, e uma descrição dos acontecimentos principais de cada
parte, assim como os respectivos versos.
SUMÁRIO 103
Tabela 1 - Partes da tragédia Filoctetes, de Sófocles
Parte Versos Descrição
Neoptólemo e Odisseu chegam em Lemnos
Prólogo 1 – 134
Odisseu revela seu plano para enganar Filoctetes
Entrada do coro
Párodo 135 – 218
Examinam a caverna de Filoctetes
Filoctetes conta sua história
1º Episódio 219 – 675 Neoptólemo conta suposto desentendimento com Odisseu
Falso mercador avisa de supostos navios vindos de Troia
1º Estásimo 676 – 729 Coro lamenta o sofrimento de Filoctetes
Sofrimentos de Filoctetes
2º Episódio 739 – 826
Filoctetes entrega o arco para Neoptólemo e desmaia
2º Estásimo 827 – 864 Coro questiona se Neoptólemo roubará as armas
Neoptólemo revela a enganação
3º Episódio 865 – 1080
Odisseu aparece e decide levar somente o arco
3º Estásimo 1081 – 1217 Neoptólemo lamenta e prefere se matar a enganar Filoctetes
Neoptólemo entrega o arco para Filoctetes
Êxodo 1218 – 1471
Héracles surge e convence Filoctetes a retornar para Troia
SUMÁRIO 104
Para um maior aprofundamento da isotopia escolhida, sele-
cionamos alguns momentos da narrativa para uma análise mais
aprofundada, no nível narrativo, das relações entre os actantes. A
escolha utilizou algumas características da comunicação percebi-
das na peça. Acreditamos que utilizar três exemplos em cada carac-
terística será suficiente para alcançar as condições necessárias
para a escolha do corpus: representativo, exaustivo e homogêneo
(GREIMAS, 1976, p. 187).
SUMÁRIO 105
quem coxeia”, ou seja, o barulho realizado pelo movimento denuncia,
juntamente com gritos, a aproximação de Filoctetes. O elemento cor-
poral reforça a comunicação dos gritos verbais. O sujeito do fazer é
bastante competente para realizar a conjunção do sujeito de estado
com o objeto-valor e ninguém questiona o sucesso de sua perfor-
mance de anunciar a sua chegada, uma vez que os sinais são bas-
tante “n-í-t-i-d-o-s!”.
SUMÁRIO 106
a língua. O “corpo” da fala é mais relevante para o sujeito de estado
do que o verbo. Percebemos que a sanção ocorre um pouco mais a
frente na peça quando Filoctetes diz: “Que som sutil! Depois de tanto
tempo, / ouvir desse rapaz a doce música!” (SÓFOCLES, Filoctetes,
vv. 234-235, grifo nosso). Filoctetes reconhece o modo de falar grego
e, assim, identifica os estrangeiros como semelhantes.
SUMÁRIO 107
mediante um conhecimento verbal, um “ouvir dizer”, porém, como
não tem a competência de fazê-lo nesta situação, Filoctetes recorre
à comunicação verbal para que ocorra o reconhecimento.
NEOPTÓLEMO
Padeces suficiente para
lamentares o sofrimento alheio.
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 336-340, grifo nosso)
SUMÁRIO 108
Para Filoctetes, existe uma dúvida se o sujeito do fazer
(choro) tem mais competência de realizar a conjunção com o objeto-
-valor (expressar os sentimentos) do que o sujeito do fazer (pergun-
tar como se sente). Vemos aqui uma dúvida entre uma comunicação
corporal e verbal. Porém, Neoptólemo responde à questão indicando
que o sofrimento (corporal) de Filoctetes é o sujeito do fazer que tem
maior competência para alcançá-lo.
O sujeito do fazer verbal (invocar Zeus), por mais que seja uma
invocação de uma divindade superior, não demonstra competência
suficiente para realizar a conjunção do sujeito de estado (Filoctetes)
com o objeto-valor (conviver com os humanos). Sendo necessário
um outro sujeito de fazer (ajoelhar-se), agora corporal, para comple-
tar sua súplica. Este sujeito é ainda mais forte pois parte de um corpo
coxo que necessita de um maior esforço para realizar a ação, o que
demonstra uma maior competência para realizar o que pretende.
SUMÁRIO 109
arco para Troia) e, para isso, se utiliza de um sujeito do fazer (engano)
que deve aprisioná-lo em uma trama (teia). A metáfora corporal é
necessária para deixar mais claro como irá realizar a conjunção
com seu objeto-valor.
SUMÁRIO 110
Somente um “ato” (ação física) poderia ser sujeito do fazer
para alcançar seu objeto-valor (agradecimento). O próprio Filoctetes
diz que “cala fundo”, indicando que não existem palavras que sejam
suficientes para realizar o agradecimento, apenas uma atitude física.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exemplos apresentados nos permitem perceber o quanto
a comunicação corporal é importante para a comunicação dos fatos
na peça e, consequentemente, para a comunicação em geral.
SUMÁRIO 111
Em alguns momentos existe uma relação de contrariedade
entre \corporal\ e \verbal\, quando os elementos corporais não emi-
tem a comunicação desejada, porém, em muitos outros momentos
essa relação é de complementaridade. A comunicação verbal pode
ser reforçada pelos elementos corporais, sendo até substituída em
alguns casos, mas também precisa ratificar a comunicação corporal,
quando esta não expressa o objeto-valor desejado.
SUMÁRIO 112
7
Francisco Vítor Macêdo Pereira
MUNDO ORDENADO
E TRANSGREDIDO:
A ESCOLHA DA JUSTIÇA
NA ELECTRA, DE SÓFOCLES
INTRODUÇÃO
Em grande parte dos registros da Antiguidade, dos sábios
aos sofistas gregos, sempre percebemos as tentativas de se com-
preender e se interpretar a natureza, o ser e o mundo, a fim de que
se inscrevam as regras de deveres e sentidos ante a realidade. Na
concepção da maioria desses sábios (e não tão sábios), a crença e
o respeito às leis e aos deuses são a base sólida para que a humani-
dade atinja a sabedoria e a virtude, advindas da ação prudente e da
reflexão ética, o que permite às almas tornarem-se nobres e puras.
SUMÁRIO 114
que a escolha seja só sua. Segundo Nietzsche (2005), para que o
indivíduo atinja uma estrela brilhante, é necessário possuir o caos
dentro de si, a vontade lacunar e propulsora que lhe permitirá orga-
nizar-se e determinar-se.
SUMÁRIO 115
O que os trágicos, nesse sentido, desenvolvem - e trazem à cena
- não é senão a representação do afrontamento do humano, nesse
seu desejo de ser livre, em sua vontade por justiça diante da ordem
do mundo. Ésquilo, Sófocles e Eurípides apresentam essa complexi-
dade da alma humana nas agônicas sínteses de suas tramas.
SUMÁRIO 116
É interessante pensar que a tragédia de Electra se inicia
precisamente no instante em que Orestes se põe diante dessa
paisagem anelada: “ὦ… Ἀγαμέμνονος παῖ, νῦν ἐκεῖν᾽ ἔξεστί σοι παρόντι
λεύσσειν, ὧν πρόθυμος ἦσθ᾽ ἀεί” (Ó filho de Agamêmnon, agora podes
encarar fixamente aquilo por que tanto ansiavas)37 (SÓFOCLES, Elec-
tra, vv. 1-3). Do exílio, Orestes volve então referto no desejo (πρόθυμος)
de novamente ver a velha Argos, da qual justamente sentia tanta
falta: τὸ γὰρ παλαιὸν Ἄργος οὑπόθεις τόδε (porque a velha Argos está
lá) (SÓFOCLES, Electra, v. 4), tal como era antes do sucesso que ora
lhe impelia àquele retorno.
37 Todas as traduções livres para o português são aqui de minha alçada e responsabilidade.
SUMÁRIO 117
O que Sófocles faz é expor essa ação. Do desenrolar dos
acontecimentos, ele destaca a vontade como determinação do herói,
sem detrimento da fatalidade que lhe apressa e que se lhe sucede.
Como afirma Pignarre (1964, p. 09), no prefácio ao Teatro completo de
Sófocles, “[...] o traço comum às sete peças é, sem dúvida, o desen-
volvimento conferido ao estudo das personagens, e que parece
constituir, mais de uma vez, a razão de ser do próprio drama”38.
38 No original: [...] le trait commun aux septs pièces est, sans doute, le développement donné à l’étude
des caractères, étude qui semble même constituer plus d’une fois la raison d’être du drame.
39 No original: the Sofoclean hero acts in a terrible vacuum, in a present that has no future to comfort,
nor a past to guide, an isolation in time and space that imposes on the hero full responsibility for
his own action and its consequences.
SUMÁRIO 118
É nesse vazio, sem abstenções, que eles - Electra e Orestes -
devem agir. Agindo, tornam-se sujeitos de suas justas (?) ações. Não
há, todavia, satisfação em sua empreitada, haja vista que o mundo se
lhes revela não consentâneo, como um exílio inadequado. Dali, em
suas ações, o divino e o humano, coonestados, se separam, e o alija-
mento dos deuses ser-lhes-á - de qualquer sorte - doloroso demais.
Por fim, o herói/a heroína têm consciência de sua solidão, e nela hão
de forjar-se desgraçadamente. Ele/ela sabe dever atuar segundo as
suas próprias decisões, malgrado o espectro de quaisquer libelos ou
designações ulteriores.
SUMÁRIO 119
O herói sofocliano, portanto, premedita todo o tempo, e não
hesita em nenhum momento à consecução do que tem de ser feito.
A decisão está tomada, cabe-lhe somente executar o ato planeado.
Electra nem deseja esquecer, sequer um minuto, o plano de matar
a mãe para vingar a morte do pai. Ela lembra ao Coro que olvidar
um pai morto é assunto para néscios. A sua dor é comparável à de
Niobe, lamentando os próprios filhos. Sempre lamuriante, ela tem
vontade e consciência do que quer. Ela arquiteta, há muito tempo, o
plano de sua vingança.
SUMÁRIO 120
as libações a um mundo assaz íntimo, na medida em que a morada
dos vivos revela-se-lhe extrema ou totalmente inóspita.
NÊMESE E LIBERDADE
É dessa forma que, em Sófocles, Electra e Orestes - juntos
ou separados - concorrem todo o tempo em não desistir nunca,
em não recuar um só instante (REINHARDT, 1994). Afinal, as suas
têmperas são fortes demais para hesitar ante a decisão tomada.
Eles podem, em definitivo, arcar com quaisquer vindouras conse-
quências. Não fosse assim, acreditamos, não haveria tanta reflexão,
tanto planejamento... tampouco a cura insopitável de tanta espera
para a realização de um crime.
SUMÁRIO 121
Dessa forma, com o matricídio consumado, de acordo com
Manuel Pulquério de Oliveira (s/d, p. 98):
Sófocles elimina o conflito, introduzido por Ésquilo no
plano divino, entre Apolo e as Erínias, encarando a ati-
vidade dos deuses de um ponto de vista unitário [...]
Sófocles realiza implicitamente o seu objetivo de situar a
ação predominantemente no plano humano.
42 No original: the confrontation of their destiny by a heroic individuality whose freedom of action
implies full responsibility.
SUMÁRIO 122
Do lado de Orestes, há inequívoca e igualmente a disposição
em cometer o matricídio. Isso se manifesta em sua ida ao Oráculo,
a fim de tão somente obter a confirmação do que já havia plane-
jado - conforme o desimpedido alvedrio de sua ação. Encontrando,
segundo a sua vontade, uma resposta favorável, Orestes esquece,
todavia, o que costumeiramente assinala o autor do Oráculo de Del-
fos: “οὔτε λέγει οὐτε κρύπτει, ἀλλὰ σημαίνει” (nem diz, nem esconde,
mas sinaliza) (PLUTARCO, 1922, p. 470).
Desse modo, como lhe apraz - uma vez que é livre -, ele
interpreta o Oráculo; responsabilizando-se conseguintemente (por
inteiro) ante o que percebe das palavras píticas: as quais lhe servirão
de consolo diante do mais terrível dos crimes (?) - a morte de uma
mãe. Sem grande comoção, sem nenhum conflito, Orestes põe em
prática o seu plano, guiado por seus próprios passos. Não haverá
erro, o estratagema fora bem traçado. Definitivamente, o filho de
Agamêmnon restaurará a casa dos Atridas, tencionando restabele-
cer uma ordem familiar que foi arruinada no tempo.
SUMÁRIO 123
Electra, vv. 402). Ela, no entanto, não se acabrunha, e desdenha da
imprecação da irmã: “ἐμοὶ πιθέσθαι μηδ᾽ ἀβουλίᾳ πεσεῖν” (que confies
em mim e não mais em tolices) (SÓFOCLES, Electra, vv. 429).
SUMÁRIO 124
acontecimentos: dimensão trágica e fundamental do ser e de sua
liberdade, humana e divinamente inseridos (e unificados) no mundo.
É assim que o autor de Electra nos guia por uma terceira mar-
gem, intentando, talvez, encontrar uma saída para que o ser humano
- ao menos circunstancialmente - perceba-se livre e/ou feliz. Em
Édipo em Colono, ele sinaliza - sem perder de vista a concepção
do herói (como único responsável pelos seus atos) - o que seria a
melhor sorte do mundo para todo aquele que nele vive: “μὴ φῦναι τὸν
ἅπαντα νικᾷ λόγον᾽ τὸ δ᾽, ἐπεὶ φανῇ, βῆναι κεῖθεν ὅθεν περ ἥκει, πολὺ
δεύτερον, ὡς τάχιστα” (não ter nascido prevalece sobre todo o sentido
expresso em palavras; e, de longe, a segunda melhor coisa para a
vida, uma vez que se tenha nascido, é retornar o mais rapidamente
possível e liberto para o lugar de onde se veio) (SÓFOCLES, Édipo
em Colono, vv. 1224-26).
SUMÁRIO 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quiçá a grande mensagem que Sófocles nos envia é a de
que, uma vez se tendo nascido, há de se viver: do modo mais intenso,
corajoso e autônomo possível. Ninguém poderá, para nos utilizarmos
de uma metáfora cristã, fazer a via crucis pelo outro. Cada um é res-
ponsável por sua própria trajetória, e isso Sófocles representa em seu
teatro com maestria e exuberância.
SUMÁRIO 126
Par te
2
RECEPÇÃO
8
Ana Maria César Pompeu
EURÍPIDES
NA COMÉDIA
ANTIGA E NOVA
EURÍPIDES E ARISTÓFANES43
A Comédia de Aristófanes recepciona Eurípides de diversas
formas. Há citações das tragédias, menções às soluções fantásticas,
à impiedade e misoginia do poeta. Eurípides é personagem de três
comédias de Aristófanes: Acarnenses, Tesmoforiantes e Rãs. Nelas
compreenderemos melhor o uso que o comediógrafo faz do trage-
diógrafo em sua obra.
ACARNENSES
Acarnenses é a primeira comédia que nos chegou de
Aristófanes. Foi encenada em 425a.C., no Festival das Leneias. Nela,
o ateniense Diceópolis (Justinópolis, na nossa tradução) consegue
negociar tréguas com os Peloponésios somente para si e sua família,
enquanto toda a Grécia continua em guerra.
JUSTINÓPOLIS
Tá na hora do isprito se fortalecê.
Preciso é ir pra casa de Eurípides.
43 Texto publicado nos Anais XXIX Semana de Estudos Clássicos Mundos Antigos, Perspectivas
Modernas Recepção e Autoria / Orlando Luiz de Araújo (Org.), Ana Maria César Pompeu (Org.)
Fortaleza/CE: Substânsia, 2020.
SUMÁRIO 129
SERVO DE EURÍPIDES
Quem é?
JUSTINÓPOLIS
Eurípides tá em casa?
SERVO DE EURÍPIDES
Não está e está em casa, se é que me entendes.
JUSTINÓPOLIS
Como tá em casa e num tá?
SERVO DE EURÍPIDES
Correto, ó velho.
A mente está fora recolhendo versinhos
E não está em casa, mas ele está e de pés para o alto compõe
Uma tragédia.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 391-399)
JUSTINÓPOLIS
Ó sortudo Eurípides,
Que iscravo ele tem isperto nas resposta. Chama ele.
SERVO DE EURÍPIDES
Mas é impossível.
JUSTINÓPOLIS
Mermo assim;
Pois num vô mimbora, vô é batê na porta. Eurípides,
Euripidezin!
Me ouve, se alguma vez tu ôviu um home.
Justinópolis de Colides te chama, eu.
EURÍPIDES
Não tenho tempo.
JUSTINÓPOLIS
Roda cá pra fora, vai lá!.
SUMÁRIO 130
EURÍPIDES
Mas é impossível.
JUSTINÓPOLIS
Mermo assim.
EURÍPIDES
Vou rodar pra fora, mas não tenho tempo para descer.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 400-407)
EURÍPIDES
Por que gritas?
JUSTINÓPOLIS
SUMÁRIO 131
Aristófanes aproveita para citar uma série de mendigos,
cegos e coxos de Eurípides.
EURÍPIDES
Quais trapos? Acaso aqueles com que aqui Eneu
O coitado do velho concorria?
JUSTINÓPOLIS
De Eneu num era, era de ôtro mais miserave.
EURÍPIDES
Os de Fênix, o ceguinho?
JUSTINÓPOLIS
Não de Fênix, não.
Tinha ôtro mais miserave que Fênix.
EURÍPIDES
Que mantos esfarrapados o homem me pede? Será que
falas dos de Filoctetes, o mendigo?
JUSTINÓPOLIS
Dele não, de um muito, muito mais ismoleu.
EURÍPIDES
Acaso queres os mantos sujos
Que Belerofonte tinha, este coxo aqui?
JUSTINÓPOLIS
Não era Belerofonte. Mas também o tipo era
Manco, ismoleu, quexudo, bom de lábia.
EURÍPIDES
Sei quem é o homem, o mísio Télefo.
JUSTINÓPOLIS
É isso, Télefo.
Dele me dá, eu te imploro, os mulambo.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 418-431)
SUMÁRIO 132
E expande a galeria.
EURÍPIDES
Ó rapaz, dá-lhe os trapos do Télefo.
Estão por cima dos trapos do Tiestes
No meio dos de Ino. Aqui tens, toma lá.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 432-434)
JUSTINÓPOLIS
Ó Zeus vigiadô e ispiadô de tudo no mundo,
Q’eu me vista como o mais miserave de tudin.
Eurípides, tu já me fez mermo essa graça,
Também me dá os cumplemento dos mulambo,
O bonezin mísio pra botá na cabeça.
É que tenho que achá que sô um ismoleu hoje,
Sê quem sô, não parecê;
Os ispectadô vão sabê que sô eu,
Mas os coreuta vão fica abestaiadin,
Pra eu caçoá deles c’uns leriado.
EURÍPIDES
Eu dou; pois com uma mente astuta tramas sutilezas.
JUSTINÓPOLIS
Que tu seja feliz; e pro Télefo o q’eu tô pensano.
Bem, eu já tô é chein de leriado.
Mas tô cum falta duma bengala d’ ismoleu.
EURÍPIDES
Toma esta e vai-te dos pórticos de pedra.
JUSTINÓPOLIS
Ó coração, tá veno como ele me bota pra fora da casa,
Muita miudeza eu num teno ainda, mas agora tu vai fica
Grudento, pedinte e teimoso. Eurípides,
Dá pra mim um cestin chamuscado na lamparina.
SUMÁRIO 133
EURÍPIDES
E que utilidade, ó infeliz, tem este cesto para ti?
JUSTINÓPOLIS
Utilidade ninhuma, mermo assim eu quero pegá ele.
EURÍPIDES
Sabe que és enfadonho, afasta-te da casa!
JUSTINÓPOLIS
Ai!
Que tu seja feliz, como foi a tua mãe.
EURÍPIDES
Vai embora então!
JUSTINÓPOLIS
Não, mas me dá só mais uma coisa,
Uma taça com o beiço lascado.
EURÍPIDES
Vai pro inferno! Toma aí. Sabe que és importuno nesta
casa. 460
JUSTINÓPOLIS
Não, por favor, tu num sabe o mal que me faz. Ó muito
quirido Eurípides, só mais isto
Me dá uma panelinha com uma isponja melada nela.
EURÍPIDES
Homem, vais me levar a tragédia.
Vai embora! Toma aí esta.
SUMÁRIO 134
JUSTINÓPOLIS
Tá, eu vô.
Mas o que vô fazê? Priciso de uma coisa, se num tivé
Vô morrê. Iscuta, ó muito querido Eurípides;
Pegano esta coisa vô mimbora e num volto mais;
Pro meu cestin me dá umas fôia seca.
EURÍPIDES
Acabas-me com a paciência. Toma aí. Lá se vai a minha peça!
JUSTINÓPOLIS
Inda não, mas vô mimbora. Já incomodo
É dimais, num achano que os rei me odêam.
Ai coitado de mim, tô pirdido. Isquici
A coisa mais importante nisso tudo pra mim.
Euripidizin ó meu docin, ó meu quirido,
Quero é morrê da pió morte, se pidi mais algo pra ti
A não sê uma só coisa, só isto, só isto,
Uns cuentro me dá que tu ganhô da tua mãe.
EURÍPIDES
Cara de pau, o sujeito. Fecha a porta da casa.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 456-479)
TESMOFORIANTES OU
DEMETERCOREANTES
A peça Tesmoforiantes foi encenada em 411 a.C. e traz um
enredo voltado ao próprio Eurípides, que, dessa vez, será o prota-
gonista junto com o seu parente. As mulheres casadas de Atenas se
reúnem todo ano durante o mês Pianepsion, para celebrar as deu-
sas Tesmóforas, Deméter e Kore (ou Perséfone), as legisladoras da
natureza. É um festival que promove a fertilidade dos campos e das
mulheres. Eurípides está muito preocupado, pois soube que nesse
ano as mulheres planejam matá-lo, por ele falar e mal das mulheres
SUMÁRIO 135
em suas tragédias, fazendo com que os homens fiquem desconfia-
dos e reduzam cada vez mais o campo de ação feminina, no espaço
em que elas dominam, a casa.
PARENTE
Como é este Agatão?
Há um Agatão...
Acaso é moreno e forte?
EURÍPIDES
Não é este, é um outro.
PARENTE
Nunca vi.
Acaso é barbudo?
EURÍPIDES
Não viste nunca?
PARENTE
Não, por Zeus, não, pelo menos que eu saiba.
EURÍPIDES
E tens tu trepado com ele, mas talvez não saibas.
Mas vamos nos esconder lá, pois está saindo um servo
dele, com fogo e ramos de mirto, para sacrificar, parece,
ao sucesso da poesia.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 28-38)
SUMÁRIO 136
Da mesma forma que aconteceu em Acarnenses com o servo
de Eurípides, o servo de Agatão apresenta características do patrão,
ao recitar suas poesias.
SERVO
O povo todo seja propício,
boca fechada; pois está presente
um tíaso de Musas dentro da casa
do mestre, que compõe um canto.
Que o sereno éter contenha a respiração,
e as ondas brilhantes do mar não façam
ruídos...
PARENTE
Bum bum!
EURÍPIDES
Cala-te. O que ele diz?
SERVO
que adormeçam as raças aladas,
que as patas das feras selvagens que correm no bosque
não se movam...
PARENTE
Bum bum! Bum bum!
SERVO
pois Agatão, o criador de versos lindos, meu amo,
está prestes...
PARENTE
a trepar?
SERVO
Quem disse isto?
PARENTE
O sereno éter.
SUMÁRIO 137
SERVO
a compor estruturas e fundamentos de um drama e dobra
novas rodas de versos,
torneia-os, ajusta uns aos outros,
faz sentenças e opõe nomes
e modela, arredonda,
afunila...
PARENTE
e se prostitui.
SERVO
Que grosseiro se aproxima deste recinto?
PARENTE
O que está pronto a entrar no teu recinto
e no do poeta de belos versos,
tendo arredondado e torcido
este pênis para pô-lo no funil.
SERVO
Quando jovem, eras mesmo petulante, ó velho.
EURÍPIDES
Ó demônio, deixa este homem em paz, e tu
chama Agatão aqui para mim, por todo meio.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 39-65)
EURÍPIDES
O que eu faço então?
SERVO
Espera até ele sair.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 66-70)
SUMÁRIO 138
E finalmente Eurípides explica a situação para o seu parente,
que não entendeu ainda por que ele veio procurar Agatão.
EURÍPIDES
Ó Zeus, o que planejas fazer comigo hoje?
PARENTE
Pelos deuses, eu quero saber
que negócio é este? Por que gemes? Por que estás irritado?
Não deves esconder nada, sendo meu parente.
EURÍPIDES
Um grande mal para mim está moldado.
PARENTE
De que tipo?
EURÍPIDES
Hoje será decidido
se Eurípides vive ou se está morto.
PARENTE
E como, já que agora nem os tribunais
estão julgando nem há assembleia do Conselho?
Uma vez que estamos no meio das Tesmofórias.
EURÍPIDES
É por isso mesmo que espero morrer,
pois as mulheres conspiraram contra mim e no Tesmofó-
rion devem se reunir hoje
em assembleia em vista da minha morte.
PARENTE
E por quê?
EURÍPIDES
Porque delas faço tragédias e falo mal.
PARENTE
Por Posêidon, tu sofrerias com justiça. Mas tu tens algum
ardil para sair dessa?
SUMÁRIO 139
EURÍPIDES
Persuadir Agatão, o tragediógrafo,
a ir ao templo das Tesmofórias.
PARENTE
Para fazer o quê? Conta-me.
EURÍPIDES
Para se reunir com as mulheres e, se for preciso,
falar em meu favor.
PARENTE
Às claras ou secretamente?
EURÍPIDES
Secretamente. Vestido com roupa de mulher.
PARENTE
É engenhoso e completamente do teu estilo; pois com
este artifício o bolo será nosso.
EURÍPIDES
Cala-te.
PARENTE
O que é?
EURÍPIDES
Agatão está saindo.
PARENTE
E onde está?
EURÍPIDES
Onde está? Ali, rolando para fora.
PARENTE
Mas será que estou cego? Pois não vejo
nenhum homem ali, mas vejo Cirene.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 71-99)
SUMÁRIO 140
Novamente, o artifício do teatro é descoberto. Agatão não
aceita a proposta de Eurípides, mas ajuda-o a montar o seu parente
como uma mulher, para ele ingressar no Tesmofórion e fazer a defesa
do poeta. Assistimos a uma completa retirada da máscara do teatro,
ao criticar os fundamentos da representação séria, a trágica, que uti-
liza atores homens em papéis femininos, o ridículo se manifestando
pelo travestimento, no palco, do parente de Eurípides em uma mulher.
SUMÁRIO 141
Sóc. Por isso amigo, preciso purificar-me. Para os que
cometem pecado de mitologia, há uma purificação
antiga que passou despercebida a Homero, não, porém,
a Estesícoro. Privado da vista, por haver injuriado Helena,
não lhe escapou, como a Homero, a causa de seme-
lhante fato; por frequentar as Musas, reconheceu-a e de
pronto compôs os versos:
AS RÃS
A peça As Rãs foi representada em 405 a.C. e teve grande
sucesso. O próprio deus do teatro, Dioniso, é o protagonista. Ele
desce ao Hades para resgatar Eurípides, de quem sente uma sau-
dade inesgotável. Eurípides realmente morreu no ano anterior à
representação de As Rãs. Esse Dioniso é aristofânico, é a comédia
sentindo falta do poeta trágico que muito a inspirou.
SUMÁRIO 142
DIONISO, parando diante de uma porta
Salta daí, malandro! Que depois desta caminhada, cá estou
eu diante da porta aonde, para começar, me propunha vir.
(Xântias desmonta, o burro é retirado de cena e Dioniso
bate e chama para dentro de casa.)
Ei, moço! Ó moço! Moço!
DIONISO (a Xântias)
Ó moço.
XÂNTIAS
Que é?
DIONISO
Não reparaste?
XÂNTIAS
Em quê?
DIONISO
No susto que eu lhe preguei.
XÂNTIAS (à parte)
Lá isso foi! Não vá que te tivesses passado da bola!
DIONISO (a Hércules)
Ó amigo, chega aqui! Preciso de falar contigo.
SUMÁRIO 143
Que ideia se te meteu na cabeça? O que fazem juntos
um par de botas de senhora e um cacete? Por que para-
gens tens tu andado?
DIONISO
Andei... embarcado, às ordens do Clístenes.
(ARISTÓFANES, As rãs, vv. 35-48)
DIONISO
Bati pois. Navios inimigos, metemos no fundo
uma boa dúzia deles.
HÉRCULES
Vocês os dois?
DIONISO
Sim, claro!
XÂNTIAS (à parte)
Esta até me deixou de olhos arregalados!
DIONISO
Pois estava eu, na coberta do navio, a ler, cá com
os meus botões, a Andrómeda, quando de repente uma
nostalgia me bate ao coração, sabes lá tu de que maneira!
HÉRCULES
Uma nostalgia te bate ao coração? De
que dimensão?
SUMÁRIO 144
DIONISO
Coisa pequena, pela medida de Mólon!
HÉRCULES
Por uma mulher?
DIONISO
Nada disso.
HÉRCULES
Por um rapazinho, então.
DIONISO
Nem pensar!
HÉRCULES
Por um homem, se calhar.
HÉRCULES
Com que então de panelinha com o Clístenes, hem?!
DIONISO
Deixa-te de gozo, mano, que quem se vê nelas sou eu. Tal
é a paixão que me devora.
HÉRCULES
Paixão? Que paixão, maninho?
DIONISO
Nem te sei dizer. Mas enfim, vou tentar explicar-ta-
por analogia. Já alguma vez sentiste, assim, um desejo
súbito de sopa?
HÉRCULES
De sopa?! Bolas, mil vezes na vida!
SUMÁRIO 145
DIONISO
E então, faço-me entender ou é preciso mais explicações?
HÉRCULES
Quanto à sopa, não. Percebi perfeitamente.
DIONISO
Pois tal é o desejo que me consome... por Eurípides.
HÉRCULES
Como assim?! Por Eurípides, o falecido?
DIONISO
E não há quem me tire da cabeça a ideia de ir à procura dele.
HÉRCULES
O quê? Ao Hades, lá em baixo?
DIONISO
Sim, pois, e mais abaixo ainda, se um tal lugar existir.
HÉRCULES
Com que intenção?
DIONISO
Sinto falta de um poeta de talento. É que uns já não exis-
tem, e os que existem não prestam.
(ARISTÓFANES, As rãs, vv. 49-72)
ENFEZADO, DE MENANDRO
Dyscolos ou Misantropo é a única peça completa que nos
chegou da comédia nova de Menandro. Data de 317 a.C. e apresenta
características bem distintas da comédia antiga de Aristófanes.
Já não é uma comédia política, mas de costume, não tem uma
linguagem obscena sexual ou escatológica. Apresenta um caractere
SUMÁRIO 146
de um homem enfezado, nossa tradução para Dyscolos. O Prólogo
da peça traz o deus Pã, explicando todo o enredo, muito ao gosto de
Eurípides, e a trama parece nascer de um contraste com a tragédia
Hipólito de Eurípides, pois Sóstrato, o rapaz rico da cidade, se desvia
numa caçada e acaba por se apaixonar pela jovem filha de Cnêmon,
o enfezado, a qual está na fonte pegando água.
PÃ
Da Ática considerai ser o lugar
File, e o Ninfeu de onde saio
dos Filésios que podem até as pedras
aqui arar, um templo muito famoso.
E este campo da direita habita
Cnêmon, um homem antissocial demais
e enfezado com todos, não saudando o povo....
Digo “povo”? Vivendo este já tempo
bastante não tem falado com prazer na vida
com ninguém, nunca iniciando uma conversa,
exceto quando obrigado sendo vizinho passa por mim
Pã; e isto logo o constrange,
bem sei. No entanto, de caráter sendo assim,
com uma mulher viúva casou-se, tendo morrido
para ela recentemente o que a tomou primeiro
e um filho tendo deixado pequeno então.
Com ela brigando não só durante os dias
mas atacando também à maior parte da noite
vivia mal. Uma filhinha nasce-lhe;
ainda mais. E quando o mal era tal que nenhuma
outra coisa surgiria, a vida penosa e amarga,
partiu a mulher de volta para o filho
o primeiro a ela nascido. Um terreninho
era propriedade dele algo pequeno aqui
na vizinhança, onde alimenta agora mal
a mãe, ele próprio, e um fiel criado
paterno. Mas já é adolescente
o menino acima da idade tendo a mente;
pois o faz avançar a experiência das coisas.
O velho vive solitário, na companhia da filha
e de uma serva velha. Carrega madeira e escava a terra, está
sempre trabalhando. A começar por seus vizinhos
SUMÁRIO 147
e por sua esposa, chegando até o litoral de Colargos,
um por um, o velho odeia a todos. A sua filha
tornou-se (alguém igual a criação que teve), não conhece
uma única palavra vil. Devotando-se cuidadosamente
às Ninfas, minhas companheiras, e honrando-as,
convence-nos a ter algum cuidado com ela.
Há, também, um jovem cujo pai muito rico
cultiva, aqui perto, uma propriedade muito valiosa.
Citadino na maneira de agir, (na residência, i. é, mora
na cidade)
Vindo a uma caçada com um amigo
caçador e desviando-se, por acaso, do caminho
faço com que ele se apaixone loucamente.
(MENANDRO, Enfezado, vv. 1-44)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como já havíamos concluído em um texto anterior sobre
Eurípides Aristofânico:
SUMÁRIO 148
Eurípides, que servem como artifício para a salvação pro-
posta pela comédia. Em Acarnenses, parece ser o poeta
cômico quem está em apuros e precisa de Télefo para se
defender diante do coro de velhos do demo de Acarnes;
em Tesmoforiantes, é o próprio Eurípides que deve pedir
perdão às mulheres, através de suas próprias peças paro-
diadas por um parente cômico e, em Rãs, será o desejo do
deus do teatro pelo poeta Eurípides que o levará ao res-
gate da tragédia de Ésquilo como proposta de salvação
da cidade em guerra (POMPEU, 2008, p. 97).
SUMÁRIO 149
9
Jane Kelly de Oliveira
SEXO E PODER
EM LISÍSTRATA
E EM A FONTE
DAS MULHERES
GREVE DE SEXO COMO FORMA DE PODER
Radu Mihăileanu, em A fonte das mulheres (2011)46, propõe
uma reflexão sobre a possibilidade de a mulher mudar a realidade
que a cerca.47 Ambientado em local indefinido, o filme trata de um
grupo de mulheres islâmicas, que, lideradas por Leila, empreendem
uma greve de sexo diante da injustiça de terem a tradicional tarefa
de buscar, numa fonte de difícil acesso — um não lugar importante
à narrativa fílmica —, a água que abastece o vilarejo. A primeira ima-
gem imprime em tela escura as seguintes palavras coloridas em
tom ocre, que lembra a secura e o dourado da areia de um deserto:
“Conto de fadas ou história real? Conto de fadas, é claro. O que é
real? Não estamos na corte de um sultão, mas numa pequena aldeia
norte-africana ou árabe. Ou onde quer que uma fonte corra e o amor
seque” (A FONTE, 2011, 1 min). Então, em uma tomada aérea, logo
vemos uma pequena cidade cravada entre montanhas e, num corte,
somos apresentados às mulheres, vestidas com coloridas roupas,
com o hijab em volta dos cabelos, carregando pesados baldes por
um terreno pedregoso, em busca da água.
46 Longa-metragem coproduzido por França, Bélgica e Itália, indicado, em 2011, ao prêmio Palma de
Ouro, no Festival de Cinema de Cannes.
47 Questões relativas à divisão sexual do trabalho, à alternância entre trabalho e descanso, ao discurso
opressor da religião, entre outras, também são evocadas no filme, mas não serão abordadas aqui.
SUMÁRIO 151
Figura 1 - Queda e aborto de Karima (Farida Bouaazaoui)
SUMÁRIO 152
Por certo, a greve de sexo proposta pelas personagens do
filme traz de imediato a lembrança da comédia Lisístrata, de Aristófa-
nes, apresentada em 411 a.C., em Atenas. Essa vinculação inclusive é
confirmada pelo diretor em entrevista ao jornal O Globo, na ocasião
do lançamento no Brasil, não obstante, como se pode ver a seguir,
ele tenha dito que a principal inspiração foi uma notícia48:
RADU MIHĂILEANU: […] O que me inspirou foi uma notí-
cia que li em 2001 sobre uma aldeia no interior da Turquia
na qual as moradoras fizeram uma greve de amor para
forçar seus maridos a resolver o problema de abasteci-
mento de água no local. De cara, aquela notícia me fez
rir, pelo inusitado de ver uma reação assim, similar ao
que ocorria na Antiguidade, ser tomada neste mundo de
alta tecnologia. […] Voltei a Aristófanes para buscar seu
humor preservando a dimensão política do gesto daque-
las mulheres. A atitude delas foi uma afirmação de poder
pelo sexo. Era um gesto que servia para criar uma ale-
goria cinematográfica sobre a recente ascensão feminina
à liderança governamental de vários locais em diversos
países (FONSECA, 2012).
SUMÁRIO 153
no Togo. Razão pela qual dizemos a todas as mulhe-
res: uma semana sem sexo também é uma arma de
luta (NO TOGO, 2012).
SUMÁRIO 154
Esses exemplos são uma pequena seleção de notícias de
mulheres que se organizaram em prol de causas sociopolíticas e
recusaram-se a praticar sexo, ou ao menos sugeriram isso, como
forma de forçar uma negociação. Assim, abordar greve de sexo num
filme de 2011 liga Mihăileanu diretamente a situações atuais. Isso não
desvaloriza a tributação de A fonte das mulheres à comédia Lisís-
trata; antes, demonstra como uma peça do século V a.C. ainda pode
ser atual e nos fazer refletir sobre nossa vida no século XXI. Essa
afirmação torna-se mais evidente quando observamos o histórico
da recepção de Lisístrata na modernidade. Nesse sentido, Adriane
Duarte49 (2011) traz dados sobre a sua recepção nos teatros da cidade
de São Paulo entre os anos de 1990 e 2000, quando somente três
peças do comediógrafo foram à cena: Paz, Assembleia de mulheres
e Lisístrata: “mas enquanto as duas primeiras tiveram apenas uma
montagem cada, a última foi encenada sete vezes por grupos distin-
tos” (DUARTE, 2011, p. 124). Outro sintoma da preferência por Lisís-
trata é indiciada em Ancient Comedy and Reception (2014), editado
por Douglas Olson. Seus capítulos mapeiam a recepção da comédia
antiga grega e romana, e, na parte destinada a recepções modernas
(“Modern Receptions”), dos dezessete capítulos, quatro tratam da
recepção de Lisístrata! O favoritismo pela comédia pode ser expli-
cado pelo fato de ela conter matrizes temáticas caras à modernidade.
É o que diz explicitamente Duarte (2011, p. 123), para quem
Lisístrata é a que melhor representa para os leitores atuais
os percalços do século que passou. Seu enredo conjuga
uma greve sexual deflagrada pelas mulheres, discursos
antibelicistas, invasão de prédios públicos como forma de
protesto, enfim, estratégias reconhecíveis aos que viram
no transcorrer de cem anos dois conflitos de propor-
ções mundiais, inúmeros outros de expressão regional, a
49 Neste artigo, Adriane Duarte analisa um episódio do filme de Christian-Jaque, Destino de mulher (Des-
tinées, França, 1954). O mesmo filme foi analisado por Maria Cecília de Miranda Coelho no texto “Who
is Afraid of Lysistrata”, enviado à American Philological Association (APA), mais especificamente para o
Three-Year Colloquium on KINHMA: Classical Antiquity and Cinema/Gladiatrix! Fighting Women of the
Screen, coordenado pelos professores Martin M. Winkler e Hanna Roisman, em 2008.
SUMÁRIO 155
revolução sexual, a ascensão de movimentos operários,
as conquistas dos direitos das mulheres.
SOBRE LISÍSTRATA,
DE ARISTÓFANES
Lisístrata retrata uma greve de sexo das mulheres que, lide-
radas pela personagem homônima50, assumem o poder da cidade
em prol da paz. Segundo Duarte (2005), o sucesso obtido por essa
comédia no século XX, graças às semelhanças vistas pelo público
atual com os movimentos políticos e feministas, afasta-se bastante
da sua recepção original em Atenas de 411 a.C. A greve não seria de
mulheres em geral, mas de esposas, e não estaria relacionada ao
impedimento da satisfação sexual dos maridos, mas à impossibili-
dade de manter a organização familiar.
50 Os trechos citados da obra são traduzidos por Adriane Duarte (2005), que usa o nome Dissol-
vetropa em vez de Lisístrata.
SUMÁRIO 156
O fato de a greve estar restrita às esposas é o que a torna
eficaz, pois […] a elas é que compete a transmissão da cida-
dania. Os maridos podem se satisfazer sexualmente com
outros parceiros, mas esses relacionamentos não propor-
cionariam herdeiros legítimos (DUARTE, 2005, p. XXVII).
SUMÁRIO 157
a Grécia está nas mulheres” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 30). E con-
tinua: “que dependem de nós os negócios da cidade ou ela deixa
de existir” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 32-33). De fato, nos primeiros
quarenta versos, mesmo antes de terem chegado todas as mulheres
convocadas para a reunião, parte do projeto da heroína já é reve-
lada ao público: “Quando as mulheres se reunirem aqui, as da Beó-
cia, as peloponésias e nós, juntas salvaremos a Grécia” (Aristófanes,
Lisístrata, vv. 39-41).
51 Dezotti (1997) também considera a abstinência sexual motivação para a ação de Lisístrata.
SUMÁRIO 158
Depois de ouvir das mulheres o desejo e o comprometimento
com o fim da guerra, Dissolvetropa conclui: “Então é preciso que nos
abstenhamos da rola” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 124). A proposta pro-
voca reação negativa: primeiro, fisicamente, virando as costas para
Dissolvetropa (Aristófanes, Lisístrata, vv. 125), negando com a cabeça
(Aristófanes, Lisístrata, vv. 126), chorando (Aristófanes, Lisístrata, vv.
127); depois, verbalmente, dizendo que não são capazes de tal feito.
Qualquer outra coisa fariam para obter o resultado esperado: dar par-
tes do corpo, caminhar sobre o fogo (Aristófanes, Lisístrata, vv. 132);
mas ficar sem sexo é insuportável. Apenas Lampito apoia o plano.
Com a adesão da espartana, sela-se o acordo entre as duas cidades
líderes da Guerra do Peloponeso — Atenas e Esparta. Lampito então
adverte que os homens atenienses dificilmente seriam convencidos
a firmar uma paz justa e sem trapaças “enquanto as trirremes tiverem
pés e dinheiro sem fim houver junto à deusa” (Aristófanes, Lisístrata,
vv. 173-174). “Mas também isso está bem preparado [diz Dissolve-
tropa], pois hoje tomaremos a acrópole. Cabe às mais velhas fazer o
seguinte: enquanto nós combinamos nossa parte, elas, aparentando
sacrificar, tomarão a Acrópole” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 175-179).
SUMÁRIO 159
verter água nela” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 195-197).52 Logo após
todas repetirem a promessa ditada por Dissolvetropa, por meio da
qual se comprometem a não fazer sexo com maridos ou aman-
tes, a líder “consagra a vítima”, e todas bebem uma parte do vinho.
Então um barulho é ouvido; Dissolvetropa reconhece o tumulto e
avisa: “As mulheres mais velhas já tomaram a cidadela da deusa.
Vamos, Lampito, vá e coordene bem o seu lado. […] E, nós, junto
com as outras na Acrópole, ajudemos a colocar trancas” (Aristófa-
nes, Lisístrata, vv. 241-246).
52 Os objetos cênicos utilizados no juramento são altamente significativos. O vinho, bebida de Dio-
niso, é símbolo da fertilidade do solo; a jarra (σταμνίον) na qual o vinho está contido, pelo seu
formato alongado, faz alusão ao órgão sexual masculino; a taça, com seu formato côncavo, pronta
para receber o líquido da fertilidade que jorra, remete ao órgão sexual feminino. O juramento, por
sua vez, antecipa o fim da peça e expressa o desejo íntimo das mulheres de se unirem sexualmen-
te com seus maridos e garantir a fecundação.
53 O que Herington (1985) chama de song culture.
SUMÁRIO 160
O semicoro de velhos entra na orquestra “passo a passo”
(βάδην), ou em marcha, como sugere o termo grego. As primei-
ras palavras do semicoro de homens velhos são: “Avance, Draces,
guie-nos, passo a passo, mesmo que doa seu ombro por suportar
tamanho peso do galho da verde oliveira” (Aristófanes, Lisístrata, vv.
254-255). Eles carregam galhos de oliveira, tochas enfumaçadas e
têm intenção de envolver a cidadela com madeira incendiada para
obrigar as mulheres a saírem. As toras pesadas e a carga (Aristófa-
nes, Lisístrata, vv. 291, 314) bem como a fumaça (Aristófanes, Lisís-
trata, vv.. 301, 305) que faz arder os olhos são motivos para queixas.
Mas o semicoro sabe da urgência da situação e, por querer logo
chegar à “cidadela da deusa”, diz frequentes palavras de incentivo:
“Vamos, rápido, apressemo-nos para a cidadela” (Aristófanes, Lisís-
trata, vv. 266), “apresse-se até a cidadela e socorra a deusa” (Aris-
tófanes, Lisístrata, vv. 302). O semicoro de mulheres velhas entra
na cena, também no ritmo iâmbico. As velhas tinham ido buscar
água e voltaram com jarros cheios: “Voe, voe, Nicódice, antes que
sejam queimadas Cálice e Crítila, sufocadas pelos ventos terríveis e
pelos velhos horríveis” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 321-326). Elas têm
pressa e sabem do perigo que as companheiras correm dentro do
templo de Atena; enquanto se posicionam para a batalha contra o
outro semicoro, cantam:
Deusa, que eu jamais as veja arder em chamas, mas sal-
var a Grécia e seus cidadãos da guerra e das loucuras.
Nessa condição, deusa do penacho de ouro, protetora da
cidade, eu te conclamo nossa aliada, Tritogêna, se algum
homem atear fogo nelas, traga água conosco (Aristófa-
nes, Lisístrata, vv. 341-349).
SUMÁRIO 161
do cansaço próprio da idade e do peso carregado, são apressados
dada a urgência da ação.
54 Pnigos significa, literalmente, sufocação. É o nome dado ao fim do agón, quando o verso é dito
rapidamente, pondo desfecho à discussão.
SUMÁRIO 162
A dança dos coros na orquestra, com os movimentos de vai
e vem depreendidos pela escolha métrica de Aristófanes, a finali-
zação, com um verso que remete à dificuldade de respirar, e jatos
de líquido na cena simulam o ato sexual. Apesar dessa leitura sim-
bólica, o párodo de Lisístrata é estruturado métrica, cênica e nar-
rativamente como uma batalha que opõe velhos e velhas armados
com tochas e toras de madeira, por um lado, e jarros de água, por
outro. São fortes oponentes, que, além do enfrentamento discursivo,
agridem-se mutuamente.
SUMÁRIO 163
Quando o Delegado e os guardas estão prestes a forçar a
porta, sai do Partenão Dissolvetropa. Fracassando em convencê-
-lo quanto à justiça na ação das mulheres e ameaçada pelos sol-
dados, convoca as que estão dentro do templo, o que acarreta um
embate físico entre os soldados acompanhantes do Delegado e
as escudeiras de Dissolvetropa: nessa briga, as mulheres levam a
melhor e deixam a cena.
55 Lisístrata é uma das quatro peças de Aristófanes que possui agón completo. As demais são
Os cavaleiros, As vespas e As aves (FÉRAL, 2009, p. 41).
56 Cláudia Féral (2009, p. 152) nota que a parábase de Lisístrata conserva características de agón.
SUMÁRIO 164
dos homens. Trepásio, o embaixador lacedemônio, e o embaixador
ateniense, com os respectivos cortejos de homens, vêm à procura
de Dissolvetropa, consumidos por tal doença (Aristófanes, Lisístrata,
vv. 1088). E o embaixador ateniense diz o seguinte: “Por Zeus, afe-
tados por ela, estamos sendo consumidos./ Assim, se alguém não
nos reconcilia logo,/ não há como não traçarmos Clístenes” (Aristó-
fanes, Lisístrata, vv. 1090-93). Pois que Dissolvetropa intermedeia a
negociação de paz entre os embaixadores e, depois de entrarem em
acordo, autoriza a entrada dos homens na Acrópole, sendo, por fim,
reestabelecida a ordem social em Atenas. Ela então afirma:
Agora tratem de se purificar,
de modo que nós, mulheres, possamos recebê-los
na cidadela com o que temos em nossas cestas.
Ali, façam juras e promessas uns aos outros,
e, então, cada um de vocês pega a sua mulher
e vai embora.
(Aristófanes, Lisístrata, vv. 1182-87)
57 O coro de velhos entra em cena no verso 254, e, desse verso até o fim da comédia, as cenas de de-
bate entre os coros são intensas, apenas suavizadas pela chegada e saída de algum personagem
ou por cenas curtas que se interpunham ao diálogo dos semicoros.
SUMÁRIO 165
Vejamos, então, alguns aspectos importantes na retomada
de Lisístrata em A fonte das mulheres.
SUMÁRIO 166
Figura 3 - Choro de Karima (Farida Bouaazaoui) e Leila (Leila Bekhti) pelo aborto
SUMÁRIO 167
vida, a água leva a vida/ A vergonha cala as línguas/ para que elas
não falem da tragédia/ lágrimas pretas inundam o solo sedento” (A
FONTE, 2011, 7 min). Leila é então silenciada com o som da percus-
são, que volta a ser ouvido, e as mulheres cantam em coro: “A nossa
terra é árida/ essa é a tragédia./ Eu concebi a felicidade/ dei à luz a
um menino” (A FONTE, 2011, 7 min).
Figura 5 - Canto de Leila (Leila Bekhti) opõe-se ao canto coral das mulheres
SUMÁRIO 168
artistas, mas evidentemente as demandas sociais e políticas de cada
época são bem diferentes, e consequentemente os tópoi retomados
pelo cineasta são recobertos com novos significados.
SUMÁRIO 169
o longa-metragem constrói, com cenas de violência sexual58 e outras
agressões sofridas pelas mulheres e pelo destaque à opressão e à
subalternação feminina numa comunidade machista. A fonte apa-
rece nas duas obras, mas, enquanto na comédia antiga é apenas
citada, no filme ela é central: está nos diálogos, nas músicas e, inclu-
sive, no título da obra; é o local em que vários abortos acontecem, é a
lembrança da submissão feminina e é o que motiva a greve de sexo.
SUMÁRIO 170
As mulheres mostram-se divididas. As mais velhas apoiam a
manutenção da tradição. É então que Leila ganha uma forte aliada. A
Velho Fuzil faz um discurso importantíssimo, que lembra bastante o
de Medeia na tragédia homônima de Eurípides, revelando a violência
sofrida pelas mulheres naquela comunidade:
Um dia um francês me perguntou: “Quais foram os
momentos mais felizes da sua vida?”. E eu respondi:
“Até os meus catorze anos”. Todas vocês sabem por quê.
Quando eu tinha catorze anos, fizeram-me casar. Eu o
conheci na noite de núpcias. Não antes. E, como vocês
todas, eu só o vi na manhã seguinte quando ele abriu as
persianas. À noite eu não o vi. Estava escuro. Ele só me
violentou. Eu achava que um marido sentava na cama ao
lado da esposa e segurava a mão dela. E que era gos-
toso. Ele tinha quarenta anos e já tinha dois filhos. Um de
dez e outro de onze. […] Aos catorze anos, eu me tornei
mãe de crianças da minha idade. Depois dei à luz deze-
nove vezes. Doze morreram, dos quais dois na montanha
perto da fonte. Você, Moufida, deu à luz doze vezes. Cinco
bebês morreram. Você, oito vezes. Três bebês mortos.
Você, Yasmina, seis vezes, não é? Três bebês mortos. É
a tradição, estamos acostumadas. Metade das crianças
que tivemos morre. Por muito tempo fui tratada como um
pária. Meu marido queria me repudiar, dizendo que eu era
estéril. Hoje tenho sete filhos, todos bem de saúde, graças
a Deus. Então, como eu poderia ter sido feliz depois dos
catorze anos? Quando? (A FONTE, 2011, 13 min).
SUMÁRIO 171
sobre a greve e a falta d’água — sempre em espaços públicos ou for-
mais. Então uma segunda reunião de mulheres acontece no rio, onde
lavam roupas. Elas questionam sua própria força para manter a greve
diante da violência masculina, pois alguns homens batem ou estu-
pram as esposas. Vendo esse enfraquecimento do movimento, Velho
Fuzil canta uma música cuja estrutura é dividida em duas partes.
Na primeira, tem melodia suave. Enquanto ouvimos sua voz, vemos
cenas aéreas e paisagens. A personagem canta:
SUMÁRIO 172
Na segunda parte, a voz da atriz imprime um tom agressivo
e contrapõe esse discurso de brandura e docilidade à realidade de
opressão vivida por elas. A cena, antes aérea e distante, passa a
enfocar os rostos, enfatizando a diferença entre um discurso ideali-
zado sobre a mulher e a dura realidade que vivem:
A mulher é um capacho
Pisado por quem quer que seja
A mulher, como o animal,
Um burro de carga para o homem
Para agradar a ele,
Ela faz as tarefas
Como o burro que carrega o fardo sozinho
Que vergonha, suas tontas,
Completamente subjugadas
Acordem!
Se eles são cegos,
Enxerguem por dois
Ergam a cabeça, como bandeiras,
se não querem ser devoradas!
(A FONTE, 2011, 31 min)
SUMÁRIO 173
Figura 8 - Mulheres convencidas a lutar
SUMÁRIO 174
Os homens livres cumprimentam vocês
Vigilantes e alertas noite e dia
A pomba dá as boas-vindas a vocês
Diante do trabalho árduo eu nunca fujo
Mangas arregaçadas, testas suadas
A paz e o silêncio confortam meu coração
Os homens são a raiz da autenticidade
Saboreio o suor dos ombros pela manhã
A colheita é boa, que benção
(A FONTE, 2011, 1h42)
SUMÁRIO 175
Figura 10 - Mulheres sob o mesmo véu
SUMÁRIO 176
Figura 11 - Coro de mulheres
SUMÁRIO 177
para que este incentive as famílias a encaminharem as meninas para
a escola, não encontra apoio, pois, segundo o líder: “Se todas par-
tirem, quem vai fazer o serviço de casa?” (A FONTE, 2011, 23 min).
Essa fala é mais uma mostra do processo de subordinação feminina.
A falta de acesso aos textos oficiais, sejam eles religiosos, literários
ou cívicos, submete a mulher à imobilidade. Sendo assim, Sami, ao
alfabetizar Leila, concede-lhe a chave para a mudança. Por certo,
algumas cenas de leitura são ambientadas em locais fechados e
escuros. As aulas que o professor dá à esposa acontecem no quarto
do casal, à noite, com iluminação de um capacete de mineração. As
cartas de amor que Leila escreve ou lê para a cunhada Esmeralda
são ditadas rapidamente, com voz segredada, a portas fechadas,
num pequeno cômodo da casa. Mihăileanu cria essas cenas como
clandestinas e secretas — uma atividade que não deve ser desem-
penhada pelas mulheres.
Nas aulas que Leila tem com Sami, ela conhece As mil e uma
noites e estuda o Alcorão e outros livros de preceitos do islamismo.
O marido tem plena consciência do poder que concede à esposa,
pois, quando trabalha com o Alcorão, indica à mulher as passagens
que demonstram que homens e mulheres são amados igualmente
por Alá, dando a ela as armas para defender a greve. Quando ele
SUMÁRIO 178
lhe apresenta As mil e uma noites, diz que é um tesouro da cultura
árabe e que guarda a história de um povo. Esses ensinamentos são
importantíssimos para que a líder consiga destaque na comunidade,
que leve adiante a proposta da greve e que ganhe, inclusive, o apoio
do guia religioso, o qual tenta dissuadir as mulheres do projeto de
greve, mas acaba sendo surpreendido com os argumentos de Leila.
Esta o convence da justiça na ação das mulheres quando, com base
nos livros sagrados, diz o seguinte:
O Islã nos dá regras de vida em comunidade, respeito e
amor, e sacia nossa sede de espiritualidade, e nos eleva
a todos, homens e mulheres. Todo o resto é apenas inter-
pretação, desvios da escritura por interesses pessoais.
[Ela lê:] “As mulheres são as irmãs dos homens”: o pro-
feta — bendito seja ele — quis os homens e as mulheres
iguais. Não homens superiores, dando ordens e deci-
dindo, e mulheres inferiores, obedecendo e procriando.
Iguais! Não mulheres apanhando (A FONTE, 2011, 1h16).
SUMÁRIO 179
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lisístrata, de Aristófanes, e A fonte das mulheres, de Radu
Mihăileanu, são importantes obras que discutem questões decisi-
vas para suas épocas de composição. Ambos os autores estavam
atentos às demandas sociopolíticas de cada tempo e traduziram
as angústias em arte. Mihăileanu aponta essa sensibilidade, expli-
citamente, quando diz, em entrevista, que, de alguma forma, ante-
cipa “que é tempo de o direito das mulheres e o direito dos homens
serem os mesmos e que alguma coisa deve mudar nos países ára-
bes” (UN VERRE, 2017, 4 min, tradução nossa), pois ele começa a
escrever o filme em 2005, termina em 2010 e, em 2011, explodem
as revoluções árabes59.
59 A Primavera Árabe foi uma série de manifestações e protestos que acorreram no Oriente
Médio e no norte da África.
SUMÁRIO 180
suas esposas, mães e filhas pudessem ditar a política da cidade”
(DUARTE, 2005, p. XXIII-XXIV) —, propõe-se ao espectador moderno
que as impossibilidades podem se tornar reais. É esta a conclusão de
A fonte das mulheres. O que está no texto que o jornalista publica
sobre a greve das mulheres, pois, resume bem a mensagem cen-
tral do filme: “Nunca devemos nos dar por vencidos. O infinitamente
pequeno pode se revelar mais majestoso do que tudo que parece
grande” (A FONTE, 2011, 1h31). É assim a luta diária de muitas mulhe-
res nas comunidades machistas. Elas precisam ser fortes, alegrar-se
com as grandes pequenas vitórias e mostrarem-se gigantes diante
de um ambiente que deseja esmagá-las.
SUMÁRIO 181
Par te
3
TEATRO MODERNO
E PESQUISA
10 Edson Santos Silva
Thatiane Prochner
TEATRALIDADE
E PERFORMATIVIDADE
NA PEÇA TRAGA-ME
A CABEÇA
DE LIMA BARRETO
INTRODUÇÃO
Disponível online, via YouTube, a peça de 2018, Traga-me a
cabeça de Lima Barreto (dramaturgia de Luiz Marfuz, direção de Fer-
nanda Júlia e atuação de Hilton Cobra), discorre, durante 52 minu-
tos, sobre a história do famoso escritor brasileiro Afonso Henriques
de Lima Barreto, refletindo no drama o seu drama real. Diante de
uma sociedade como a da primeira metade do século XX, extrema-
mente pautada em ideias eugênicas60, o autor, no palco, transfor-
mado em personagem, defende-se dos ataques contra a cor da sua
pele, bem como de sua questionada capacidade artística na criação
de suas obras, consideradas de caráter duvidoso, dadas as concep-
ções defendidas pelos princípios de superioridade da raça branca
em comparação à raça negra. Uma discussão bastante intensa e
construída no diálogo entre o personagem principal e as imagens
em telão, no embate que se mostra na defesa do autor a si próprio,
diante de seus “avaliadores”.
60 “eu.ge.ni.a sf Ciência que investiga as condições mais propícias para a reprodução e o aperfeiçoa-
mento genético da espécie humana.” (MUNIZ; CASTRO, 2005, p. 422).
SUMÁRIO 184
João Batista numa bandeja!” (Mt 14, 8). Encarnado como Elias, mais
de 800 anos antes, João Batista teria mandado degolar 450 sacer-
dotes de Baal, por duvidarem dos poderes de Deus: “Elias ordenou:
Prendam os profetas de Baal! Não deixem escapar nenhum! Todos
foram presos, e Elias fez com que descessem até o riacho de Cison
e ali os matou.” (1Rs 18, 40). De acordo com a lei de causa e efeito, ou
cármica, João Batista é, por sua vez, degolado.
SUMÁRIO 185
Ora, tendo essas referências como base, pensaremos em
“como” a peça trabalha com tais informações na ação dramática.
Logo, desde esta apresentação, podemos notar que aspectos rela-
cionados ao contexto e à referenciação contribuem para o encami-
nhamento de nossa análise, considerando que, em cima do palco, o
texto dramático se efetiva e, a partir da teatralidade ali presente, a
performatividade, por sua vez, também se efetiva.
TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE
A teatralidade, nas palavras de Pavis (2015, p. 372), tem algo
de mítico em seu conceito, “de excessivamente genérico, até mesmo
de idealista e etnocentrista. Só é possível (considerada a pletora de
seus diferentes empregos) observar certas associações de ideias
desencadeadas pelo termo teatralidade.”. Nesse sentido, Suzana
Thomaz (2016), em seu artigo “Teatralidade, entre teorias e práticas”,
realiza um levantamento histórico da teatralidade, a fim de revisitar
suas relações com as noções de performance e performatividade,
sendo que existe uma problemática atual na tentativa de “definição
do termo”. Segundo ela, “a noção de teatralidade é problemática
entre artistas e teóricos desde o momento em que começou a ser
empregada, no início do século XX.” (p. 310). A autora ainda comple-
menta, citando Féral (2002, p. 4), que “é justamente porque a noção
de teatralidade mudou, que temos que continuar a redefinir a noção
de teatralidade.” (Féral apud Thomaz, 2016, p. 310).
SUMÁRIO 186
distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto
sob a plenitude de sua linguagem exterior (BARTHES
apud PAVIS, 2015, p. 372).
SUMÁRIO 187
meio cultural, a época e o espaço de apresentação, o contexto social
e político em questão, e, é claro, o desejo de comunicar (transmi-
tir e receber) por meio de convenções, signos e códigos comuns.”
(Thomaz, 2016, p. 311).
61 Performativity is the power of language to effect change in the world: language does not simply
describe the world but may instead (or also) function as a form of social action. The concept of per-
formative language was first described by the philosopher John L. Austin who posited that there
was a difference between constative language, which describes the world and can be evaluated
as true or false, and performative language, which does something in the world.
SUMÁRIO 188
Ainda sobre o termo, em comparação com a teatralidade, e
dialogando com a definição da Oxford, Josette Féral (2009), em seu
artigo “Por uma poética da performatividade”, aponta:
Mais recente que a de teatralidade, e de uso quase exclu-
sivamente norte-americano (...), sua origem poderia ser
retraçada nas pesquisas linguísticas de Austin e Searle,
que foram os primeiros a impor o conceito pelo viés dos
verbos performativos que “executam uma ação”. (...) Essa
noção valoriza a ação em si, mais que seu valor de repre-
sentação, no sentido mimético do termo. O teatro está
inexoravelmente ligado à representação de um sentido,
passe ele pela palavra ou pela imagem. O espetáculo
nele segue uma narrativa [récit], uma ficção. Ele projeta
ali um sentido, um significado. Essa ligação com a repre-
sentação, que Artaud recolocou em questão na sequên-
cia das grandes correntes artísticas do início do século
XX, deixou igualmente sua marca no teatro, ainda que
mais tardiamente. Não reconstituirei aqui toda a história
da evolução da prática artística no decorrer do século
XX, mas é possível dizer que diversos autores e ence-
nadores buscaram criar essa dissociação unívoca entre
um discurso (verbal ou visual) e um sentido dado. Logo,
quando Schechner menciona a importância da “execução
de uma ação” na noção de ‘performer’, ele, na realidade,
não faz senão insistir neste ponto nevrálgico de toda
performance cênica, do ‘fazer’. É evidente que esse fazer
está presente em toda forma teatral que se dá em cena
(FÉRAL, 2009, p. 197).
SUMÁRIO 189
Analisaremos esses elementos, partindo do quadro elabo-
rado por Tadeusz Kowzan, quanto aos signos no teatro. Trabalhamos,
portanto, tendo como corpus a peça Traga-me a cabeça de Lima Bar-
reto, a relação entre as duas perspectivas: teatralidade e performati-
vidade, respectivamente, a partir de cada um dos 13 signos estuda-
dos por Kowzan (1978).
SUMÁRIO 190
sistemas de significação não linguística. Desse modo, Kowzan parte
dos resultados da aplicação dos signos, para perceber como eles
se configuram e podem ser representados em uma peça. Logo, a
partir de seus estudos, elencando e analisando signos possíveis de
representação no teatro, e com base nos conceitos já apontados por
demais estudiosos e estudiosas da dramaturgia, analisamos a peça
Traga-me a cabeça de Lima Barreto, evidenciando o que, no espetá-
culo, são marcas da teatralidade e, na ação dramática, o que essas
marcas representam em termos de performatividade.
1. A PALAVRA
Na peça em questão, a teatralidade é evidente pelo uso que
o ator faz da palavra, portanto, encena o texto dramático no palco. A
palavra, nesse sentido, já garante um significado, pelo fato de estar
sendo proferida em espaço cênico. Mas ela não se desvincula do dis-
curso, do caráter de denúncia que nos leva a pensar e refletir a res-
peito de uma época que fez e faz parte de nossa raiz histórica. O per-
sonagem mescla uma linguagem coloquial a uma linguagem mais
formal, inclusive fazendo uso de algumas expressões em francês, e
afirmando ser um leitor ávido de grandes obras da literatura univer-
sal, portanto um homem culto, que sabia adequar a linguagem em
seu contexto, sabendo de onde partia a sua voz. Ou seja, a performa-
tividade decorre do uso que se faz da palavra; tem-se o recurso da
palavra e com ela ideias são expressadas, problematizadas, repensa-
das, discutidas, etc.
SUMÁRIO 191
2. O TOM
Na peça, o tom é bastante importante e, certamente, nos fará
compreender muito bem a relação que existe entre a palavra e as
emoções que com ela podem ser apresentadas. A teatralidade se
manifesta no recurso do tom, que poderá ser modificado de acordo
com a necessidade cênica, com o destaque que se queira dar.
3. A MÍMICA FACIAL
Durante a peça, destacam-se inúmeras expressões faciais,
bastante associadas à própria palavra, que garantem a teatrali-
dade, isto é, são expressões que voluntariamente aparecem com o
intuito de causar efeitos. De maneira mais evidente, com exceção
dos momentos em que o personagem usa do deboche, da ironia,
sua expressão se mostra, na maioria das vezes, séria, preocupada e
ansiosa, condizente com a situação de julgamento que está vivendo
e na tentativa de extravasar suas frustações. Ou seja, suas expres-
sões corroboram para o entendimento da gravidade da situação, o
que, por sua vez, demarca a performatividade, o efeito de maior gra-
vidade que se busca evidenciar na peça.
4. O GESTO
Os gestos, depois da palavra, são meios maleáveis de
exprimir pensamentos, não são somente mãos, braços ou pernas,
SUMÁRIO 192
mas o corpo todo que se expressa através deles. Na peça, os ges-
tos são bastante marcados, sabemos que remontam à teatralidade
da peça, uma vez que podem determinar situações. Mas o que
esses gestos representam?
SUMÁRIO 193
6. A MAQUILAGEM
A maquilagem cria signos mais duradouros do que a mímica
facial; e ela pode apresentar signos relativos à raça, idade, estado
de saúde, temperamento do personagem, etc. Uma maquilagem
característica não se usa em dias comuns, mas com intenções espe-
cíficas; dentro do palco, tais características passam a ter uma evi-
dência maior, certamente. A maquilagem, aqui, se associa com a
tonalidade da pele do ator em questão, pois sugere, antes de tudo,
a aproximação visual com o autor Lima Barreto. A teatralidade se
consolida não só pelo efeito da maquilagem, mas fortemente pela
cor da pele do ator.
7. O PENTEADO
Até mais do que a maquilagem, o penteado pode possuir um
papel autônomo na peça, porque ele poderá indicar, por exemplo,
uma área geográfica ou cultural, uma época específica, uma classe
social, uma raça. Isso fica evidente na peça, pela textura dos cabelos
do ator e pela opção de mantê-los mais longos; é algo visível na
cena, contribuindo para a identificação da teatralidade.
SUMÁRIO 194
Além de os cabelos serem crespos, eles estão crescidos, a
fim de mostrar bem a sua característica. São cabelos grisalhos que
sugerem a sabedoria de alguém com uma idade já avançada e que,
portanto, possui um conhecimento empírico da vida, que carrega
uma história (isso é bastante importante, pensando no contexto da
peça); além disso, ligam-se aí dois tempos: o passado, pois Lima
Barreto faleceu ainda jovem, aos 41 anos, e o presente, a contempo-
raneidade, já que o autor, agora com mais idade, levanta do túmulo
e vem em própria defesa, isto é, temos uma obra de ressignifica-
ção nesse sentido. As entradas nos cabelos sugerem também uma
cabeça mais à mostra, o que enfatiza a questão do próprio título da
obra; uma cabeça que está em xeque, que está sendo analisada, ava-
liada, um cérebro “submetido à dissecação pública”. Uma cena inte-
ressante é quando ele, ao lembrar da família e de sua casa, “a casa
do louco” (referindo-se à possível insanidade de seu pai e dele pró-
prio), puxa com força os cabelos que, ao serem friccionados, ficam
elétricos, dando uma impressão de desalinhamento, porém suge-
rindo a imagem de grandes gênios incompreendidos ou criticados,
ou mesmo a imagem dos gênios consagrados, como Albert Einstein,
por exemplo. A seguir, as imagens das cenas que contribuem para
essa interpretação (frames 1 e 2)62:
62 De modo que a peça se encontra disponível no YouTube, sem restrições de público e, portanto, sob
domínio público, fazemos uso de frames da obra, com o intuito de complementar nossa pesquisa,
no sentido de analisar visualmente os elementos da cena.
SUMÁRIO 195
Figura 1 - frame 1 – os cabelos crespos e embranquecidos
SUMÁRIO 196
8. O VESTUÁRIO
Diz Kowzan (1978, p. 109) que “no teatro, o hábito faz o
monge”. O vestuário seria o modo mais convencional e exteriorizado
de definir o indivíduo humano no teatro. Ele vai significar sexo, idade,
profissão, posição social, nacionalidade, religião, etc.; o vestuário diz
muito a respeito do nosso personagem. O figurino que o ator usa é
a marca da teatralidade. A princípio, ele traja calças com suspensó-
rios, uma camisa branca, sem abotoaduras ou goma, nem quaisquer
outros adereços, e um colete com bordados coloridos, como pode-
mos visualizar abaixo:
SUMÁRIO 197
abrindo os botões da camisa e arregaçando suas mangas. Já
suado e bebendo alternadamente pequenos goles de cachaça,
percebemos que a imagem do personagem vai se modificando no
transcorrer das cenas; entre nervosismos e momentos de crise, ele
vai construindo outra imagem, até mesmo a imagem que nós, como
leitores e espectadores de Lima Barreto, em partes, fazemos dele e
de sua obra (frame 4).
SUMÁRIO 198
Figura 5 - frame 5 – o traje que se converte em manto africano
9. O ACESSÓRIO
Acessórios são um sistema autônomo de signos, situando-
-se melhor entre o vestuário e o cenário, porque numerosos casos
limítrofes aproximam-nos um do outro. Os casos são particulares, a
depender do contexto, do uso no palco. Podemos dizer dos signos de
primeiro e de segundo grau, que tratam da denotação e da conotação,
respectivamente, ou seja, um signo pode tomar outro sentido dentro
da cena, como exemplo uma cabaça fazendo a vez de uma cabeça63.
63 De modo que os acessórios apresentam casos limítrofes entre vestuário e cenário, pensamos na
cabaça tanto como elemento de cenário, como elemento acessório, considerando a sua relação
direta com o ator.
SUMÁRIO 199
Os acessórios, objetos ou adereços utilizados durante o espetáculo,
denotam a teatralidade.
64 As conchas, ou “búzios”, ficam no fundo do mar e são trazidos para a praia pelas ondas; dizem que
eles possuem a energia da água, do céu e da terra. Além de trazer sorte, proteção e limpeza, o bú-
zio simboliza um sinal positivo da vida, trazendo luz e força para lidar com os desafios, problemas
e decisões a serem tomadas. São conchas preparadas para uso em rituais do Candomblé. A caba-
ça, assim como os búzios, compõe um instrumento musical chamado afoxé; usa-se uma cabaça
pequena e redonda, e posteriormente ela é recoberta com uma rede de bolinhas de plástico ou
miçangas. É um instrumento que também possui profunda vinculação às manifestações religiosas
do Candomblé. Juntos, esses elementos são bastante importantes para a construção simbólica
sugerida pela encenação.
SUMÁRIO 200
Figura 7 - frame 7 – a cabeça encantada, o afoxé
SUMÁRIO 201
Outro detalhe notável são as próprias obras do autor sendo
utilizadas em cena, como algo concreto e abstrato ao mesmo tempo;
concreto porque são palpáveis e acessíveis a quem quiser ler e pes-
quisar, e abstrato porque a palavra as tornou imortais. Se compa-
rarmos esse momento em que o personagem reúne suas obras ao
momento anterior na peça em que ele utiliza vários papéis escritos
e joga-os ao alto, podemos entender que essas palavras, as teses
eugênicas, ao vento, são apenas argumentos infundados, que par-
tem de uma sociedade preconceituosa e racista, já o concreto seria
aquilo que apresenta uma vivência, de olhar por outros olhos, espe-
cialmente daquele que vive na sociedade do preconceito, sendo
rechaçado por ela. A imagem que se cria dos papéis é interessante,
pois jogados ao ar, eles flutuam e caem por terra. Dessa mesma
terra brota a obra de Lima Barreto, como defesa; surge a sua escrita,
representada nos livros.
SUMÁRIO 202
Figura 9 - frame 9 – escritos e anotações; papéis ao alto
SUMÁRIO 203
Figura 11 - frame 11 – a folha branca e a folha preta
10. O CENÁRIO
A tarefa primordial do cenário é a de representar o lugar:
lugar geográfico, social ou os dois ao mesmo tempo; também pode
significar o tempo, época histórica, estações do ano, certa hora do
dia, etc. Os signos que o cenário contém podem se relacionar às
mais variadas circunstâncias. O cenário pode ser caracterizado pela
movimentação e construção em tempo real ou pode até ser dispen-
sado de todo, permanecendo vinculado à movimentação e gestos
do ator ou atores. O cenário da peça não possui muitos adereços,
além dos acessórios. Temos um telão, uma cadeira, o suporte com “a
SUMÁRIO 204
cabeça”, o palco em semiarena e a movimentação e gestos do ator;
portanto, signos da teatralidade.
SUMÁRIO 205
Figura 13 - frame 13 – a reprodução das imagens em telão, para o público presencial
SUMÁRIO 206
Na imagem acima, a cadeira é utilizada pelo ator como
uma espécie de compasso, quando ele gira o objeto em círculos,
relembrando um episódio em que fora acusado de ladrão, na ado-
lescência; o que causa um efeito de vertigem dessa reminiscên-
cia, de ciclo vicioso.
11. A ILUMINAÇÃO
A iluminação valoriza outros meios de expressão, apresenta
mecanismos aperfeiçoados de distribuição de comandos, encon-
tra cada vez mais amplo e rico emprego nos espetáculos, tanto em
cenas fechadas como em cenas ao ar livre; é capaz de iluminar e
delimitar lugares teatrais, entre outros elementos relacionados ao
próprio temperamento e situações vividas pelo personagem. Tudo
dependerá do contexto e do uso que se faz do recurso da iluminação;
inclusive, a projeção de imagens, muito recorrente em várias peças,
poderá representar sonhos, outros personagens, delírios, etc.
SUMÁRIO 207
e sofre a perda da mãe, a luz é incidida sobre ele na cor vermelha;
essa cor, além de sugerir a ideia de sangue, pode representar a força
que advém desse sangue, pois se trata da raiz, do ventre que gerou
esse ser e que o marca subjetivamente (frame 15).
SUMÁRIO 208
Figura 16 - frame 16 – o retorno à ancestralidade
12. A MÚSICA
A música tem uma função bastante interessante e impor-
tante, porque ela pode entrar num espetáculo em momentos espe-
cíficos para mudar algo, caracterizar algo, substituir algo, ou marcar
os personagens especificamente, tornando essa marca um símbolo
daquele personagem, por exemplo. Instrumentos específicos tam-
bém podem designar lugares ou etnias específicos. Lembrando que
SUMÁRIO 209
tudo irá depender de como o dramaturgo faz uso desses signos, ou
seja, os significados que se pretende atribuir a eles e os efeitos que
deles são depreendidos. Em termos de teatralidade, temos, na peça,
a presença da música, a presença do canto e a presença de sons
prolongados para efeitos de sentido.
13. O RUÍDO
Os ruídos produzidos no teatro podem significar a hora, o
tempo que está fazendo, o lugar, o deslocamento, o transporte,
podem ser signos de fenômenos e circunstâncias as mais diversas.
Até mesmo a voz humana pode imitar ruídos. Na peça, percebemos o
uso dos ruídos em momentos específicos: a digitação dos nomes dos
adeptos da teoria eugênica, bem como os títulos de suas obras, nas
referências dos trechos selecionados. Isso evidencia a teatralidade.
SUMÁRIO 210
Não em vão esses ruídos são utilizados na tela, pois eles
sugerem que, além do tempo do enunciado ali presente nos textos
datados da primeira metade do século XX, a digitação remete ao
tempo de enunciação, do tempo corrente, dando uma característica
de contemporaneidade, ou seja, o texto pode ter sido escrito há mui-
tos anos, mas ele ainda perdura nas mentes de muitas pessoas na
atualidade. O ruído das teclas sendo digitadas remete ainda a uma
sensação de veracidade, isto é, o que está sendo dito foi realmente
pensado e publicado, trazido à sociedade e debatido, porque era
algo em que se acreditava. Nesse sentido, os detalhes vão nos tra-
zendo a tônica da peça e o que está além da teatralidade, portanto,
o efeito de sentido e o significado do som no ato de digitar diz res-
peito à performatividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos, diante da análise dos elementos de teatrali-
dade e performatividade, que uma peça de teatro, uma obra de arte
como o drama, abarca não somente o texto dramático e o seu espe-
táculo, mas a junção desses e os efeitos que eles causam no público
espectador, a partir de seus conhecimentos de mundo, suas leituras
e bagagem intelectual. A discussão nos leva a refletir, entre outros
aspectos, acerca da multiplicidade dos olhares que contemplam o
teatro, dado o seu alcance.
SUMÁRIO 211
Não somente as referências de mundo são importantes, mas
também um levantamento teórico concernente aos elementos que
constituem o espetáculo e como esses têm sido estudados e repen-
sados ao longo dos anos. Para tanto, pesquisadores e pesquisado-
ras traçam panoramas que nos permitem visualizar as configurações
do teatro contemporâneo. Por isso, nos pautamos em discussões de
Féral, Thomaz, Pavis e Prado, para a compreensão da teatralidade e
da performatividade.
SUMÁRIO 212
11
Tiago Fortes
O MAL-ESTAR
NA ACADEMIA
Para começar a escrever (ou mesmo falar) sobre alguma
coisa na academia, parece haver uma série de protocolos a serem
cumpridos como condição a priori para todo e qualquer começar
(isso pode nos levar a nos perguntarmos se jamais começamos, de
fato, alguma coisa). Podemos destacar, como um passo fundamental
que antecede todo e qualquer começar, a capacidade de nomear
aquilo sobre o qual se está escrevendo (ou falando), para que pos-
samos nos pôr a escrever, cientes de que estamos escrevendo sobre
isso ou aquilo. É exatamente este passo que me sinto incapaz de dar
para aqui começar (e ainda assim ciente de que já me pus a escre-
ver). Na verdade, o que me impulsiona agora a escrever (e que me
impulsionou nos últimos meses a levantar todo o material bibliográ-
fico, pois esta escrita não está começando agora) é exatamente uma
necessidade gritante de problematizar esses passos ou etapas que
supostamente deveriam anteceder a escrita acadêmica. Portanto,
recuso-me, nesse momento, a escrever a partir deles. Talvez esteja
tentando escrever apesar deles, ou num embate com eles.
SUMÁRIO 214
tentar adequar-se ao tal formato acadêmico de escrita, que deve ser,
segundo dizem (ou dizemos, para não recorrer ao eles), bem estru-
turado numa metodologia científica. É o mal-estar que volta quando
se pretende tentar uma seleção de mestrado e é preciso saber definir
com clareza qual é o seu objeto de pesquisa, seus objetivos gerais e
específicos, ou sua hipótese (no caso do doutorado). É o mal-estar
(que acaba por parecer da natureza da área de artes) do artista que
entra na academia, e passa toda sua estadia nesse lugar se pergun-
tando se é possível fazer arte nesta instituição científica, se este é o
lugar propício à formação do artista. E, principalmente, é o mal-estar
que não se cola a nenhum sujeito, mas que se acumula na atmosfera
quando nós, professores, insistimos com nossos alunos ou orientan-
dos, que isso é a academia, que esse é o rito de passagem pelo qual
é preciso passar para que se possa viver na carne o que é fundamen-
talmente a experiência acadêmica.
SUMÁRIO 215
desvincular atividade acadêmica de atividade científica. Mais ainda,
me permitirei atribuir como causa do tal mal-estar a necessidade
de dizer que o que fazemos é pesquisa científica em artes, e não
simplesmente pesquisa artística acadêmica. Sendo mais específico,
percebo que essa associação entre academia e ciência instaura no
ambiente acadêmico uma certa confusão entre a dimensão teórica
e a dimensão prática, dando uma impressão bastante nítida de que
existe uma predominância absoluta da primeira, e de que é preciso
fazer de tudo para que a segunda encontre seu espaço dentro da
pesquisa acadêmica. Isso tem levado, nas últimas décadas, a uma
ultravalorização da prática, e a uma certa desconfiança da teoria.
Ou seja, o mal-estar com o que é acadêmico acaba assumindo a
feição de um mal-estar com um suposto excesso de teoria e uma
suposta falta de prática na academia.
SUMÁRIO 216
uma prática, entendendo-o como determinação de seus rumos pos-
síveis ou mesmo de sua razão de ser. Com isso poderíamos concluir
que a prática se encontra submetida à teoria, situação desfavorável
de dependência da legitimação desta. Isso é reforçado por uma das
definições de prática encontrada no mesmo dicionário: “Aplicação
na realidade dos conceitos formulados no espírito” (Idem, p. 892).
Mas é preciso atentar também que, em tal definição, a teoria parece
obrigada a assumir um papel, também desfavorável, de ter que fun-
damentar algo que lhe é externo, a prática. E parece-me que esse
papel, que aparentemente dá à teoria um status elevado, desvia a
teoria de uma pulsão que lhe parece ser mais originária, pois é ape-
nas numa lógica cientificista que os “conceitos formulados no espí-
rito” têm como razão de ser a “aplicação na realidade”.
SUMÁRIO 217
sendo θέα a fisionomia, o perfil em que alguma coisa é e se mostra, a
visão que é e oferece, e ὁράω significa ver alguma coisa, tomá-la sob
os olhos, percebê-la com a vista. O importante nessa origem etimo-
lógica do termo teoria é a revelação de sua relação fundamental com
o Real que, segundo Heidegger (Idem, p. 42), é o vigente, tanto aquilo
que leva quanto aquilo que é levado à vigência.
SUMÁRIO 218
que essa admiração, esse espanto que nos corta a palavra, precisa
passar por um rigor conceitual e teórico que dê conta de pensá-lo,
de expressá-lo em palavras (o que não necessariamente significa tra-
duzi-lo). Porém, esse rigor conceitual (que não é o mesmo que rigor
científico) não deve submeter a experiência do espanto a uma estru-
tura que a torne dizível (ou pior, reconhecível). Não se deve encarar o
rigor (fundamental à pesquisa acadêmica) como estrutura. Antes de
tudo, o rigor é uma força, próxima do desejo ou mesmo da obsessão.
E esta força é desencadeada no pesquisador pelo próprio espanto. A
coisa que o espanta impregna-o de um desejo que o faz olhar para
ela com um rigor que torna inevitável o esforço de abarcá-la em sua
plenitude (o que não quer dizer totalidade). Virgínia Kastrup (2010, p.
49) me parece abordar este encontro entre pesquisador e material
de pesquisa de modo a esclarecer melhor este tal rigor acadêmico,
que não é necessariamente científico, é preciso reforçar:
Trata-se, em certa medida, de obedecer às exigências
da matéria e de se deixar atentamente guiar, acatando o
ritmo e acompanhando a dinâmica do processo em ques-
tão. Nesta política cognitiva a matéria não é mero suporte
passivo de um movimento de produção por parte do
pesquisador. Ela não se submete ao domínio, mas expõe
veios que devem ser seguidos e oferece resistência à ação
humana (o grifo é meu).
SUMÁRIO 219
forma nítida diante de mim (não estou aqui me referindo apenas a
um objeto enquanto coisa palpável, mas também a qualquer fenô-
meno que esteja sendo investigado pelo pesquisador), só se apre-
senta enquanto tal devido a uma elaboração prévia de sua realidade,
de uma representação que se faz condição para que agora eu possa
reconhecê-lo. Ou seja, todo distanciamento objetivista conta com
uma aproximação prévia radicalmente intervencionista que faz com
que todo fato observado seja subsumido a conceitos, levando o pes-
quisador a extrair dos fenômenos somente os caracteres que lhe são
pertinentes. Porém, ao invés de se tratar de uma aproximação onde
o pesquisador vai na direção do objeto, trata-se de trazer o objeto
para perto de si, para que este venha até o território do pesquisador.
É a diferença entre lançar um anzol para que, sem sair do barco,
o pescador traga o peixe até si, e mergulhar no mar para pegar o
peixe com as próprias mãos (ou se afogar tentando). É preciso enten-
der, acompanhando Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros
(2010, p. 20), que “não há neutralidade do conhecimento, pois toda
pesquisa intervém sobre a realidade mais do que apenas a repre-
senta”. Na verdade, o próprio processo de representação do real é
intervencionista no sentido de limitar, de estreitar as possibilidades
de apresentação do real diante do olhar do pesquisador.
SUMÁRIO 220
que ela “não se submete ao domínio”, que, pelo contrário, “oferece
resistência à ação humana”?
SUMÁRIO 221
CONVERSÃO DA TEORIA EM
HIPÓTESE E DO REAL EM OBJETO
Não é possível pensarmos a transformação do sentido de teo-
ria independente da transformação do sentido de Real. Muito antes
do advento da Ciência Moderna, os romanos já começaram a com-
preender o Real de modo bastante distinto dos gregos. Como Hei-
degger (2012) nos mostra em Ciência e Pensamento do Sentido, os
romanos, pelo próprio espírito da língua latina, acrescentam ao Real,
como aquilo que está em vigência, a actio. O vigente aparece então
como o resultado de uma operação. O Real é, agora, o sucedido.
Todo sucesso é produzido por algo que o antecede, a causa. Assim,
o Real aparece à luz da causalidade, como aquilo que é causado.
Mas não só isso. Sendo um resultado, o efeito é sempre feito por um
fazer. O resultado do feito de um fazer é o fato. Este é o sentido que
o real assume na Idade Moderna. Aqui o Real, no sentido de fato, se
opõe ao que não consegue consolidar-se numa posição de certeza
e se reduz a algo apenas mental, sendo considerado algo irreal, uma
ilusão ou erro. Ou seja, o Real é aquilo que chega a consolidar-se
enquanto fato, aquilo que obtêm êxito, que foi bem sucedido, e que
possui uma causa. É nessas condições que o Real pode se tornar
objeto da representação. Mas só será possível compreender plena-
mente a transformação do Real em Objeto através da transformação
do sentido de teoria.
SUMÁRIO 222
teoria, como observação, seria uma elaboração que visa apoderar-se
e assegurar-se do real” (Idem, p. 48). E assim a teoria está apta a
tornar-se, com a Ciência Moderna, uma “representação processa-
dora, que assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade
processável” e “todo real se transforma, já de antemão, numa varie-
dade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas
científicas” (Idem).
SUMÁRIO 223
problema. Problema é uma questão que a pesquisa pre-
tende responder. Todo o processo de pesquisa irá girar
em torno de sua solução (MORESI, 2003, p.58).
SUMÁRIO 224
de pesquisa estará voltado para a procura de evidências que com-
provem, sustentem ou refutem a afirmativa feita na hipótese”, e,
portanto, esta será “a diretriz de todo o processo de investigação”
(MORESI, 2003, p. 58).
SUMÁRIO 225
internas, por se tratarem de escolhas relativas aos procedimentos
metodológicos, são perfeitamente revogáveis.
Seu abandono significa somente que se reprograme o
plano anterior da máquina, porque chegou-se à conclu-
são de que este ou aquele de seus aspectos ia contra o
objetivo buscado, ou então complicava inutilmente a rea-
lização deste objetivo (Idem, p. 51).
SUMÁRIO 226
Esta reversão metodológica permite que o processo de pes-
quisa não seja apenas uma busca por soluções para problemas
prévios, abre a possibilidade de encontro com o inesperado, e que
eventualmente surja a necessidade de redesenhar o próprio pro-
blema, o próprio objeto de pesquisa. Ou melhor, o problema deixa
de estar vinculado a um objeto determinado de antemão. Este, se
ainda deve ter lugar no processo de pesquisa, vai se desenhando ao
longo da mesma, através do embate com o problema que, enquanto
acontecimento, potencializa o pensar exatamente por ser o que é:
ainda não determinado. É preciso abdicar dessa impaciência meto-
dológica, desta maneira de questionar que se precipita para o seu
fim: a resposta. Não somos nós, pesquisadores, que devemos ques-
tionar o problema, é este que nos questiona insistentemente, sem
que sejamos capazes de neutralizar, pela explicação, o seu poder de
inquietação, sem que sejamos capazes de transformá-lo num objeto
de pesquisa a partir do qual geraremos hipóteses que o resolverão,
tornando nossa pesquisa relevante para a comunidade acadêmica.
SUMÁRIO 227
[...] conduz de volta a ideias familiares e trata o novo como
um caso especial de coisas já compreendidas.
SUMÁRIO 228
a produzir monografias, dissertações e teses é preciso mesmo sub-
meter o real às nossas condições metodológicas, garantindo que ele
não nos atrapalhe com sua lógica caótica de acontecimento inde-
terminado? Talvez seja chegada a hora de assumir, depois de cinco
séculos, que o real e a razão humana se divorciaram. E que sempre
que procuramos aquilo que não somos, o desconhecido, o indeter-
minado, na medida em que utilizarmos instrumentos metodológicos
criados por nossa razão, encontramos apenas os padrões de nossa
lógica racional e científica.
SUMÁRIO 229
Mas podemos ou devemos pensar o mesmo para uma área
como o teatro? Há aqui alguma perspectiva de avanço ou progresso
enquanto área de pesquisa? É mesmo preciso, para haver pesquisa
em teatro, que se delimite um território a partir do qual poderemos
pensar teatro? Não seria exatamente a constituição deste território
instável que chamamos de teatro que nos mobiliza a fazer pesquisa
nesta área? Não estamos infinitamente questionando o que é isso
que estamos fazendo sem nunca estabelecermos em definitivo um
território de onde partir? Parece-me que ter de partir de objetos
dados para pesquisar a sua própria realidade é uma grande limitação
para a pesquisa numa área como o teatro.
SUMÁRIO 230
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SUMÁRIO 241
SOBRE OS ORGANIZADORES
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com
bolsa de estudos concedida pela CAPES, e graduado em Letras com habilitação em língua portuguesa e suas lite-
raturas pela mesma instituição. Além disso, é escritor premiado de contos e romances, tendo publicado a duologia
No Domínio, composta pelos livros No Dominio do Mal (2022) e No Domínio da Agonia (2023). É membro do Grupo de
Estudos de Narrativa e Teatro (γ-Ente), do Núcleo de Cultura Clássica (UFC/CNPQ), e desenvolve pesquisas acerca
da tragédia Prometeu Acorrentado, no que diz respeito a questões que envolvem as aproximações entre os gêneros
dramático e narrativo, além de questões que envolvem a representação do estrangeiro na civilização grega antiga.
Contato: [email protected]
SUMÁRIO 242
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
Ana Maria César Pompeu
É Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e fez um estágio pós-doutoral na Universidade de
Coimbra, em Portugal. Atualmente, é Professora Titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) e atua nos Programas
de Pós-graduação em Letras (PPGLetras) e em Estudos da Tradução (POET). É líder do grupo de pesquisa/CNPQ/SBEC:
Núcleo de Cultura Clássica. Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (2020-2021). Publicou Aris-
tófanes e Platão: a justiça na pólis (2011), Dioniso matuto: uma abordagem antropológica do riso na tradução de Acar-
nenses de Aristófanes para o cearensês (2014; 2021), Acrópole, agora! Mulher, dentro! Homem, fora! Uma introdução à
Lisístrata de Aristófanes (2018), Aristófanes, o dramaturgo da cidade justa (2019) e traduziu, de Aristófanes, Lisístrata
(1998; 2010), Tesmoforiantes (2015), Cavaleiros (2017), e, de Plutarco, em colaboração, Epítome da comparação de
Aristófanes e Menandro (2017). Organizou em colaboração os livros: O riso no mundo antigo (2012), Oralidade, Escrita
e Performance na Antiguidade (2013), Identidade e alteridade no mundo antigo (2013), Grécia e Roma no Universo
de Augusto (2015), Os Estudos Clássicos na Pandemia (2022) e As mulheres de Aristófanes: revolução e recepção
(Tomos 1 e 2, 2022).
Contato: [email protected]
SUMÁRIO 243
Edson Santos Silva
É Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), com Pós-Doutorado na mesma
instituição, sob a supervisão do Prof. Dr. Francisco Maciel Silveira. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Língua e Literatura Portuguesa. Dedica-se à pesquisa da dramaturgia lusa do século XIX. É professor associado da
UNICENTRO/PR: Letras – graduação (Irati) e pós-graduação (Irati e Guarapuava).
Contato: [email protected]
SUMÁRIO 244
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com
bolsa de estudos concedida pela CAPES, e graduado em Letras com habilitação em língua portuguesa e suas lite-
raturas pela mesma instituição. Além disso, é escritor premiado de contos e romances, tendo publicado a duologia
No Domínio, composta pelos livros No Dominio do Mal (2022) e No Domínio da Agonia (2023). É membro do Grupo de
Estudos de Narrativa e Teatro (γ-Ente) do NUCLAS-UFC e desenvolve pesquisas acerca da tragédia Prometeu Acorren-
tado, no que diz respeito a questões que envolvem as aproximações entre os gêneros dramático e narrativo, além de
questões que envolvem a representação do estrangeiro na civilização grega antiga.
Contato: [email protected]
Thatiane Prochner
É graduada em Letras Português / Inglês, Especialista em Letras - Língua Portuguesa, Linguística e Literatura - e
Mestra em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Doutoranda
em Letras - Interfaces entre Língua e Literatura - pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), sob
orientação do Professor Dr. Edson Santos Silva, com pesquisa intitulada Carlota Joaquina: história portuguesa na
literatura brasileira.
Contato: [email protected]
Tiago Fortes
É Doutor em Artes da Cena pela UNICAMP, professor do PPGLetras da UFC e do curso de Teatro-Licenciatura da UFC,
onde dirigiu diversos espetáculos como As suplicantes (2012), que participou do XIX festival nordestino de teatro de
Guaramiranga em 2012, e Como representar os Negros? (2013), que participou do IX festival de teatro de Fortaleza
em 2013. Em 2021, dirigiu Santiago do Chile, 1973 (Edital das Artes 2019 - SECULTFOR), seu primeiro longa-metragem.
Em 2020, publicou seu primeiro livro, A condição do ator em formação: por uma fenomenologia da aprendizagem e
uma politização do debate. Coordena, desde 2022, na UFC, o projeto de pesquisa “A dimensão pública do teatro na
prática do Viewpoints”.
Contato: [email protected]
SUMÁRIO 245
Vanessa Silva Almeida
Licenciou-se em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Possui mestrado em Estudos
da Tradução, com a dissertação intitulada “Lamento e Luto na Tradução de Suplicantes de Eurípides” pela mesma
universidade. Integrou a organização da coletânea de artigos A Literatura na Teoria e na Prática, publicada em 2020,
e contribuiu como autora com um capítulo do livro Estudos Clássicos e Filológicos, organizado por Adílio de Sousa
Júnior, e publicado em 2021. É professora de língua e literatura inglesa e latina do Instituto Federal do Ceará (IFCE)
desde 2016, onde desempenha, além do ensino, atividades extracurriculares e de extensão voltadas ao conheci-
mento, pesquisa e difusão da literatura grega antiga. Atualmente cursa um doutorado na Universidade Federal do
Ceará com o projeto voltado ao estudo do personagem mítico Teseu na construção da identidade ateniense.
Contato: [email protected]
SUMÁRIO 246