Estudos em Teatro Antigo & Moderno

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

E82

Estudos em Teatro Antigo & Moderno / Organização Lucas


Matheus Vasconcelos Santos, Mellyssa Coêlho de Moura,
Orlando Luiz de Araújo. – São Paulo: Pimenta Cultural, 2024.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-880-5
DOI 10.31560/pimentacultural/2024.98805

1. Linguística e Literatura. 2. Literatura Clássica. 3. Teatro


Antigo. 4. Teatro Moderno. 5. Estudos Comparativos. I. Santos,
Lucas Matheus Vasconcelos. II. Moura, Mellyssa Coêlho de.
III. Araújo, Orlando Luiz de. IV. Título.

CDD 410.792

Índice para catálogo sistemático:


I. Linguística e Literatura - Teatro
Simone Sales – Bibliotecária – CRB: ES-000814/O
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.

Copyright do texto © 2024 os autores e as autoras.

Copyright da edição © 2024 Pimenta Cultural.

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Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
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Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Parecer e revisão por pares

Os textos que compõem esta


obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial
da Pimenta Cultural, bem como
revisados por pares, sendo
indicados para a publicação.
SUMÁRIO
Apresentação............................................................................................. 11

PARTE 1

TEATRO CLÁSSICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

CAPÍTULO 1
Edinaura Linhares Ferreira Lima
Mellyssa Coêlho de Moura
Prudência e desmedida
em Persas, de Ésquilo............................................................................. 16

CAPÍTULO 2
Aron Barcelos Vilar Guimarães
A figura do tirano em Persas a partir
do conceito de ἐπιθυμία de Platão......................................................36

CAPÍTULO 3
Vanessa Silva Almeida
Xerxes e Dario:
um contraste de caráter......................................................................................52

CAPÍTULO 4
Erimar Wanderson da Cunha Cruz
Ésquilo indo-europeu, arcaísmos e
inovações na poética d’Os persas:
a estrutura formular........................................................................................... 67
CAPÍTULO 5
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
A poética da narrativa em Prometeu
Acorrentado, de Ésquilo.........................................................................86

CAPÍTULO 6
Glaudiney Moreira Mendonça Junior
A corporização da comunicação
em Filoctetes, de Sófocles:
um estudo de semiótica discursiva.....................................................................100

CAPÍTULO 7
Francisco Vítor Macêdo Pereira
Mundo ordenado e transgredido:
a escolha da justiça na Electra, de Sófocles.......................................................... 113

PARTE 2

RECEPÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

CAPÍTULO 8
Ana Maria César Pompeu
Eurípides na comédia antiga e nova................................................ 128

CAPÍTULO 9
Jane Kelly de Oliveira
Sexo e poder em Lisístrata
e em A fonte das mulheres................................................................150
PARTE 3

TEATRO MODERNO E PESQUISA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

CAPÍTULO 10
Edson Santos Silva
Thatiane Prochner
Teatralidade e performatividade na peça
Traga-Me a Cabeça de Lima Barreto................................................. 183

CAPÍTULO 11
Tiago Fortes
O mal-estar na academia..................................................................... 213

Bibliografia............................................................................................... 231

Sobre os organizadores.......................................................................242

Sobre as autoras e os autores........................................................... 243


APRESENTAÇÃO
Apresentamos este livro com base na crença do envol-
vimento mútuo dos estudos literários com o teatro, bem como da
reverberação desse laço que perdura da Antiguidade até a contem-
poraneidade, como nos é mostrado nos onze artigos que compõem
o dossiê aqui apresentado. Engendrados através de diversas aborda-
gens teóricas dos textos teatrais do mundo antigo ocidental e do tea-
tro moderno, os estudos presentes neste livro se forjam na relação
contínua entre o mundo clássico, o teatro e a modernidade, ao passo
que reiteram a necessidade de se estudar essa relação.

Dividido em três partes, sendo estas: teatro clássico, recep-


ção e teatro moderno e pesquisa, a gama de metodologias críticas
utilizadas, dentre elas a comparativa, filológica e semiótica, comuni-
cam os resultados de pesquisas que destrincham o teatro através de
análises que percorrem desde o texto fonte à representação fílmica
e cênica, e que culminam na reflexão do próprio ato da pesquisa
acadêmica em si. Destarte, Estudos em Teatro Antigo & Moderno
compila uma gama de estudos críticos, propostos por pesquisado-
res diversos, mas que convergem para a maior disseminação dos
estudos do teatro em geral.

É dessa maneira que, iniciando a sequência de discussão


sobre o teatro clássico, o capítulo de título Prudência e desmedida em
Persas, de Ésquilo propõe uma reflexão acerca do paralelo existente
entre Atossa e Xerxes, e de como a caracterização da prudência e da
desmedida nesses personagens asseguram a tragicidade da peça
Persas, do tragediógrafo grego Ésquilo. No capítulo seguinte, A figura
do tirano em Persas a partir do conceito de ἐπιθυμία de Platão, com
foco na mesma peça de Ésquilo, o autor explora as ações causado-
ras de ὕβρις e ἐπιυθμία pela personagem Xerxes, mostrando esses

SUMÁRIO 11
elementos intrinsecamente relacionados às desventuras do rei, com
resultados que atingem também a pólis subjugada por esse tirano.

Ainda no que se refere aos Persas, o capítulo Xerxes e Dario:


um contraste de caráter mostra a oposição estabelecida entre os per-
sonagens Xerxes e Dario, apresentada pela autora, como forma de
evidenciar o caráter artístico que se sobrepõe ao histórico na peça
de Ésquilo. Encerrando o ciclo de análises da peça grega, ainda que
sem esgotá-la, em Ésquilo indo-europeu, arcaísmos e inovações na
poética d’Os persas: a estrutura formular busca-se compreender a
peça como resultado de uma interrelação criativa entre referências
de diferentes proveniências através do exercício de comparação
entre as estruturas formulares reconhecidas pelos especialistas na
tradição indo-europeia comum e n’Os persas de Ésquilo, refletindo
acerca desse diálogo ativo com produções anteriores.

No capítulo que se segue, A poética da narrativa em Prome-


teu Acorrentado, de Ésquilo, o autor visa analisar algumas passagens
da peça Prometeu Acorrentado a partir de categorias narratológicas
de narrador, tempo e espaço, a fim de demonstrar que o texto dra-
mático, embora não possa ser considerado narrativo por sua pró-
pria essência, faz uso de elementos narratológicos para se consti-
tuir enquanto gênero.

Já no viés de análise semiótico, A corporização da comunica-


ção em Filoctetes, de Sófocles: um estudo de semiótica discursiva, que
tem como objeto de estudo a tragédia grega Filoctetes, de Sófocles,
utiliza do Percurso Gerativo do Sentido da Semiótica Discursiva para
analisar de que maneira as comunicações corporal e verbal podem
se complementar ou se contradizer, destacando principalmente a
importância do corpo como elemento de comunicação.

Fechando o ciclo de contemplação sobre o teatro clássico,


Mundo ordenado e transgredido: a escolha da justiça na Electra, de
Sófocles, traz uma reflexão sobre o enredo trágico sofocliano: a de

SUMÁRIO 12
que, apesar da plena responsabilidade pelo seu destino, é impossí-
vel ao ser humano que a escolha seja só sua, concluindo, assim, que
Sófocles intentava discutir a caracterização do herói juntamente com
sua têmpera e seu poder de escolha e de assumir responsabilidades
ante a ordem imposta pelos acontecimentos.

Iniciando os estudos de recepção, o capítulo Eurípides na


comédia antiga e nova trabalha o uso que o comediógrafo grego Aris-
tófanes faz do tragediógrafo Eurípedes em suas peças por meio de
análises de citações das comédias e menções ao poeta, concluindo
também que Menandro e a Comédia Nova grega e romana herdam
esse Eurípides aristofânico. Prosseguindo, a autora de Sexo e poder
em Lisístrata e em A fonte das mulheres trabalha aspectos importantes
na retomada da comédia grega Lisístrata no filme A fonte das mulhe-
res, de Radu Mihăileanu, uma vez que as diversas possibilidades de
leitura da peça permitem sua apropriação ao cinema, por exemplo,
devido às suas respostas a demandas modernas, traduzidas nas pre-
ocupações dos autores às questões sociopolíticas de seu tempo.

Por fim, no que se refere ao teatro moderno e à pesquisa, o


capítulo Teatralidade e performatividade na peça Traga-Me a Cabeça
de Lima Barreto tem como corpus a peça contida em seu título e
discute a relação entre teatralidade e performatividade a partir de
conceitos apontados por pesquisadores da dramaturgia, como os
13 signos estudados por Kowzan (1978), evidenciando o que, no
espetáculo, são marcas da teatralidade e, na ação dramática, o que
essas marcas representam em termos de performatividade. O livro
se encerra, então, com O mal-estar na academia, que reflete o estado
em que o “nós” - alunos, professores, pesquisadores - se encontra
na academia, caracterizado pelo autor como um estado de mal-estar
gerado pela necessidade de transformação do que se faz em pes-
quisa científica, da objetivação que impede que o pesquisador seja
transformado pelo “modo de vigência daquilo que se abre diante dele”.

SUMÁRIO 13
Agradecemos aos colaboradores que se empenharam na
tarefa de disseminação de suas reflexões sobre o teatro, do Clássico
ao Contemporâneo, de sua recepção à pesquisa acadêmica, com
o desejo de que, como espectadores de teatro, os leitores possam
apreciar e compartilhar desse deleite que é atuar na pesquisa dessa
arte, que, como dizia Nietzsche, “é a tarefa suprema” desta vida.

Os organizadores

SUMÁRIO 14
PAR T E

TEATRO
1
CLÁSSICO
1
Edinaura Linhares Ferreira Lima
Mellyssa Coêlho de Moura

PRUDÊNCIA
E DESMEDIDA EM
PERSAS, DE ÉSQUILO
“Portanto, com bons conselhos inspirai
àquele carente de prudência que cesse
de ofender a Deus com soberba audácia”
(Ésquilo)

Encenada no ano de 472 a.C., a peça Persas, de Ésquilo (V


a.C.), é a primeira tragédia grega que chega completa até nós, ao
mesmo tempo em que é a única a discorrer acerca de um aconte-
cimento histórico em detrimento de um acontecimento mítico. Con-
tida em sua narrativa está a derrota dos persas na Hélade, espe-
cificamente durante a Batalha de Salamina (480 a.C.), descrita por
membros da realeza persa. Assim, a caracterização do povo bárbaro
é retratada do ponto de vista do tragediógrafo grego, ressaltada atra-
vés de elementos de alteridade entre gregos e persas presentes na
obra, elementos estes descritos de modo a ilustrar, e até mesmo jus-
tificar, a causa da ruína persa.

Ésquilo dispõe de uma tragédia de base histórica e conecta


fatos bélicos com a narrativa mítica, de forma a refletir acerca da
vitória sobre as forças invasoras ao apresentar a confiança na justiça
divina dos gregos, que atua como solucionadora do dilema trágico.
Para isso, o autor sublinha o contraste marcante entre a prudência,
representada pela rainha Atossa, e a desmedida, presente na figura
de seu filho, o rei Xerxes. Desse modo, em Persas, o caráter dos
personagens está profundamente ligado às suas ações, o que justi-
fica o propósito de análise das personagens Atossa, cuja função se
destaca por reinar sobre o império Persa na ausência de seu beli-
coso filho, e Xerxes, aquele cuja soberbia desmedida culmina na
ruína do império persa.

Dessa maneira, discute-se a figura destoante da rainha


Atossa, bem como de seu finado marido Dario, e de seu papel como
regente, mãe e sacerdotisa, representante, assim, da prudência, em

SUMÁRIO 17
oposição à figura desmedida do rei Xerxes, cuja imprudência cul-
mina na destruição do exército Persa e na vitória dos Gregos. Por fim,
reflete-se que a presença de Atossa intensifica a desgraça pública
de seu filho, ao passo que reitera sua mortalidade e subserviência
perante a justiça divina. Logo, reflete-se que Ésquilo sublinha o para-
lelo existente entre a prudência de uma rainha-mãe e a desmedida
de seu rei de forma a articular esses elementos para assegurar a
tragicidade de sua obra.

ATOSSA E A PRUDÊNCIA
DE UMA RAINHA-MÃE
No início da peça, temos o conhecimento de que o rei Xer-
xes partiu para as terras gregas, com seu colossal exército, com o
intuito de sobrepujar os helênicos ao seu jugo ditatorial. Devido à sua
ausência, sua mãe, a rainha Atossa, desempenha o papel de sobe-
rana, acrescendo, assim, sua visibilidade na peça de Ésquilo. Ela é
caracterizada como uma rainha regente, o que pouco acontece nas
peças gregas, uma vez que comumente à frente da mulher existe
um homem responsável pela administração da pólis, seja um marido,
seja um filho do sexo masculino. Além de Atossa, somente a rainha
Clitemnestra, na ausência de seu marido Agamêmnon, assumiu o
poder, justamente por não ter um filho varão adulto para assumir o
trono, embora, para a consumação de tal feitio, ela tenha necessitado
de um amante, Egisto, primo de seu marido Agamêmnon.

No caso da soberana mãe de Xerxes, por ser viúva, ela


assume sozinha a regência, a fim de dar continuação à manuten-
ção do reinado durante a ausência do filho, mantendo o poderio nas
mãos de sua família até o seu retorno. Desta forma, não há naquele
momento um homem dominador por trás de sua figura, o que atesta

SUMÁRIO 18
a sua particularidade ao analisarmos as demais mulheres descritas
nas tragédias gregas. Outra característica relevante à descrição atí-
pica da rainha pérsica é sua sensatez, que não era comumente atri-
buída às mulheres estrangeiras pelos tragediógrafos, uma vez que,
nativas de outras terras, eram caracterizadas como insensatas, ou
até mesmo, como loucas. É o caso de Medeia, por exemplo, descen-
dente da feiticeira Circe e do deus Hélio, uma mulher estrangeira,
independente e corajosa. Assim como Circe, Medeia detinha a arte
das porções, a prática de magia, do oculto e da feitiçaria. Além disso,
ela foi tida como cruel e insana ao ser acusada de matar os filhos
e de executar os inimigos por vingança, ao ser descrita na voz de
outro tragediógrafo, Eurípides. Para além de sua imagem deturpada,
no pensamento da estudiosa Maria Cândido (2001, p. 01, grifo no ori-
ginal), Medeia representa a sabedoria, pois:
[usava d]a emergência de antigos saberes integrando
novas práticas sociais como o uso do conhecimento
mágico das ervas e filtros para atender desejos individuais.
O uso das práticas mágicas das ervas e raízes tanto podia
atender às necessidades de medicamentos para curar as
doenças femininas, quanto ser usado como veneno para
efetuar uma vingança. Medeia com a sua sophia expõe a
ambiguidade de um saber que poderia ajudar um amigo
com os seus benefícios, mas poderia ser fatal e destruir os
inimigos. Como nos afirma Medeia, temido será sempre
quem possui este saber, pois aquele que provocou este
ódio não celebrará facilmente a bela vitória.

Logo, é válido ressaltar que a rainha Atossa, assim como


Medeia, também é estrangeira, destemida, corajosa e, em consonân-
cia com a personagem de Eurípides, se destaca positivamente justa-
mente por agir de forma oposta ao esperado de uma mulher grega,
tanto quanto mãe, como regente, uma vez que:
Esperava-se que as mães gregas exercessem um certo
grau de influência sobre seus filhos, tanto na tradição
literária quanto na pólis clássica, onde muitas vezes
desempenhavam um papel ativo, embora nos bastidores,

SUMÁRIO 19
na formação de sua identidade social e política. Na Atenas
democrática, as mulheres eram “essenciais na criação do
status político de suas famílias, de seus filhos e filhas e na
manutenção do status de cidadã de seus parentes e afins
do sexo masculino [...]1 (MCCLURE, 2006, p. 73)2.

É importante que atentemos ao fato de que as mulheres


atenienses possuíam sua participação na pólis, mas no recato e no
recolhimento do lar. Seu lugar apropriado de fala seria com as outras
gregas, aprendendo com outras mulheres os costumes pertinen-
tes que cabiam a elas, cuidando da família e sendo receptáculo de
filhos gregos legítimos. Pode-se dizer, dessa maneira, que o silen-
ciamento feminino, para os gregos, era uma virtude feminina, como
pondera Aristóteles:
Isto nos leva imediatamente de volta à natureza da alma:
nesta, há por natureza uma parte que comanda e uma
parte que é comandada, às quais atribuímos qualidades
diferentes, ou seja, a qualidade do racional e a do irra-
cional. [...] o mesmo princípio se aplica aos outros casos
de comandante e comandado. Logo, há por natureza
várias classes de comandantes e comandados, pois de
maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo, o
macho comanda a fêmea e o homem comanda a criança.
Todos possuem as diferentes partes da alma, mas pos-
suem-nas diferentemente, pois o escravo não possui
de forma alguma a faculdade de deliberar, enquanto a
mulher a possui, mas sem autoridade plena, e a criança
a tem, posto que ainda em formação. [...] Devemos então
dizer que todas aquelas pessoas tem suas qualidades
próprias, como o poeta (Sófocles, Ájax, vv.405-408) disse
das mulheres: “O silêncio dá graça as mulheres”, embora
isto em nada se aplique ao homem (ARISTÓTELES,
Política, I, 1260 a-b).

1 Todas as traduções do inglês presentes no artigo são de nossa autoria.


2 Greek mothers seem to have been expected to exert a degree of influence over their sons, both
in the literary tradition and in the classical polis, where they often played an active-albeit behind-
-the-scenes-role in shaping their social and political identity. In democratic Athens, women were
‘essential in creating the political status of their households, their sons and daughters, and uphol-
ding the citizen status of their male relatives and affines’ [...]

SUMÁRIO 20
Tal explanação é necessária para que se conclua que, por ser
bárbara, a rainha Atossa possui um comportamento atípico da maio-
ria das mulheres gregas, o que pode inclusive justificar a sua pre-
sença e participação com a segunda maior quantidade de falas na
peça. Isso se dá devido ao fato de sua apropriação da fala, principal-
mente política, juntamente com os anciãos do coro; lugar este que
não se julga apropriado ao feminino por estar atrelado ao masculino.
A rainha então reverbera a voz pública e audível de uma mulher aris-
tocrata e regente de um império grandioso, bem como representa
um papel narratológico de suma importância, uma vez que é respon-
sável por apresentar a tragédia que acomete Xerxes.

Destarte, justificada às atribuições que lhe renderam o posto


de soberana, analisemos o comportamento da rainha perante seu
breve reinado. Angustiada pela falta de notícias do exército persa
e de seu amado primogênito Xerxes, Atossa é torturada pelo silên-
cio aflitivo, onde a ausência de notícias desespera: “Nenhum men-
sageiro, nenhum cavaleiro chega à cidade dos persas” (κοὔτε τις
ἄγγελος οὔτε τις ἱππεὺς ἄστυ τὸ Περσῶν ἀφικνεῖται) (ÉSQUILO, Per-
sas, vv. 13-5)3. Consonante a esse lamento, ouve-se a voz do Coro,
no párodo, que clama por informações das distantes terras gregas,
assim como ecoam as vozes dos familiares dos homens que partiram
no exército para a batalha travada pelo rei. Mesmo com a demora no
retorno da vasta milícia, o povo persa acredita que a vitória é certeira,
pois não há derrota diante de um exército tão grandioso e de um
poder bélico tão opulente. Entre os clamores enaltecidos do Coro,
surge a rainha Atossa:
ἀλλ᾽ ἥδε θεῶν ἴσον ὀφθαλμοῖς
φάος ὁρμᾶται μήτηρ βασιλέως,
βασίλεια δ᾽ ἐμή: προσπίτνω:
καὶ προσφθόγγοις δὲ χρεὼν αὐτὴν
πάντας μύθοισι προσαυδᾶν.
ὦ βαθυζώνων ἄνασσα Περσίδων ὑπερτάτη,

3 Utiliza-se no corpus deste trabalho a tradução dos Persas de Jaa Torrano (2009).

SUMÁRIO 21
μῆτερ ἡ Ξέρξου γεραιά, χαῖρε, Δαρείου γύναι:
θεοῦ μὲν εὐνάτειρα Περσῶν, θεοῦ δὲ καὶ μήτηρ ἔφυς,
εἴ τι μὴ δαίμων παλαιὸς νῦν μεθέστηκε στρατῷ.

Eis que igual a olhos de Deuses


luz caminha mãe de rei
e rainha minha, prosterno-me,
e com palavras de saudação
todos devem saudá-la.
Ó suprema senhora de pérseas de funda cintura,
mãe de Xerxes, anciã, salve, ó mulher de Dario,
esposa de Deus de persas, és também mãe de Deus,
se o Nume antigo hoje não abandonou o exército.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 150-8)

Em sua entrada, Atossa é reverenciada como deusa, privile-


giada por ter sido companheira de um rei comparado a um deus, e
de ter sido agraciada com um primogênito varão. De fato, a esposa
do antigo rei Dario e mãe de Xerxes une três gerações de rei, o que
contribui para a sua perspectiva pessoal da guerra que, algumas
vezes, contrasta com as preocupações políticas do coro. A rainha,
então, demonstra sua inquietação que se instaura com o anseio de
que a riqueza e os tesouros do palácio necessitem da presença de
um guardião, pois o varão não se faz sem seu ouro, assim como o
ouro não existe sem aquele que o resguarda:
ταῦτα δὴ λιποῦσ᾽ ἱκάνω χρυσεοστόλμους δόμους
καὶ τὸ Δαρείου τε κἀμὸν κοινὸν εὐνατήριον.
κἀμὲ καρδίαν ἀμύσσει φροντίς: ἐς δ᾽ ὑμᾶς ἐρῶ
μῦθον οὐδαμῶς ἐμαυτῆς οὖσ᾽ ἀδείμαντος, φίλοι,
μὴ μέγας πλοῦτος κονίσας οὖδας ἀντρέψῃ ποδὶ
ὄλβον, ὃν Δαρεῖος ἦρεν οὐκ ἄνευ θεῶν τινος.
ταῦτά μοι διπλῆ μέριμνα φραστός ἐστιν ἐν φρεσίν,
μήτε χρημάτων ἀνάνδρων πλῆθος ἐν τιμῇ σέβειν
μήτ᾽ ἀχρημάτοισι λάμπειν φῶς ὅσον σθένος πάρα.
ἔστι γὰρ πλοῦτός γ᾽ ἀμεμφής, ἀμφὶ δ᾽ ὀφθαλμῷ φόβος:
ὄμμα γὰρ δόμων νομίζω δεσπότου παρουσίαν.

SUMÁRIO 22
Assim venho do palácio adornado de ouro
e do tálamo comum a mim e a Dario,
e um pensamento me dilacera o coração.
Dir-vos-ei, não por mim temerosa, amigos,
grande riqueza não reverta em pó no chão ao pé,
opulência que Dario ergueu não sem um Deus.
Esta aflição indizível em meu espírito é dupla:
Nem tesouros sem guardião o povo venera com honra,
nem sem tesouros brilha o homem conforme sua força.
A riqueza está intacta, mas pelos olhos é o temor:
olho do palácio penso que é a presença do dono.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 159-169)

Na passagem acima, percebe-se uma regente prudente, pre-


ocupada em continuar com a manutenção do poder e da riqueza
de seu filho, que apesar de estarem intactas, atraem a atenção de
outros. Nota-se também que Atossa tem uma voz forte, imponente,
semelhante a uma voz masculina, fazendo-se ouvir respeitosa-
mente para além das questões que se restringem ao oikos, isto é,
ao interior do lar, estendendo suas preocupações à riqueza e prote-
ção da fortuna do rei.

Conjectura-se, assim, que a rainha Atossa possui um desta-


que importante na tragédia, pois a ela não é dada uma voz periférica,
mas uma voz atuante. Isso se reforça diante da importância de suas
principais ações na peça, desde a sua saída do palácio para buscar
notícias de seu filho, como também em sua preocupação acerca da
guerra, presente em suas perguntas ao coro: “ó amigos, onde Ate-
nas se diz situada na terra?” (ὦ φίλοι, ποῦ τὰς Ἀθήνας φασὶν ἱδρῦσθαι
χθονός;) (ÉSQUILO, Persas, vv. 231), “tal multidão de homem ela tem
no exército?” (ὧδέ τις πάρεστιν αὐτοῖς ἀνδροπλήθεια στρατοῦ;) (vv.
235), “Como resistiriam a ataque de varões inimigos?” (πῶς ἂν οὖν
μένοιεν ἄνδρας πολεμίους ἐπήλυδας;) (vv. 242). Mesmo não tendo o
controle de deliberar sobre a guerra, ou de tomar qualquer decisão
que reverberasse na vitória ou na ruína de seu povo, é através de
seus olhos que as reflexões acerca da guerra se desenrolam.

SUMÁRIO 23
As preocupações da rainha se instauram também no âmbito
onírico, através de um sonho, no qual ela relata o que se assemelha
a um presságio da ruína futura do povo persa nas mãos dos gregos:
πολλοῖς μὲν αἰεὶ νυκτέροις ὀνείρασιν
ξύνειμ᾽, ἀφ᾽ οὗπερ παῖς ἐμὸς στείλας στρατὸν
Ἰαόνων γῆν οἴχεται πέρσαι θέλων:
ἀλλ᾽ οὔτι πω τοιόνδ᾽ ἐναργὲς εἰδόμην
ὡς τῆς πάροιθεν εὐφρόνης: λέξω δέ σοι.
ἐδοξάτην μοι δύο γυναῖκ᾽ εὐείμονε,
ἡ μὲν πέπλοισι Περσικοῖς ἠσκημένη,
ἡ δ᾽ αὖτε Δωρικοῖσιν, εἰς ὄψιν μολεῖν,
μεγέθει τε τῶν νῦν ἐκπρεπεστάτα πολύ,
κάλλει τ᾽ ἀμώμω, καὶ κασιγνήτα γένους
ταὐτοῦ: πάτραν δ᾽ ἔναιον ἡ μὲν Ἑλλάδα
κλήρῳ λαχοῦσα γαῖαν, ἡ δὲ βάρβαρον.
τούτω στάσιν τιν᾽, ὡς ἐγὼ ‹δόκουν ὁρᾶν,
τεύχειν ἐν ἀλλήλαισι: παῖς δ᾽ ἐμὸς μαθὼν
κατεῖχε κἀπράυνεν, ἅρμασιν δ᾽ ὕπο
ζεύγνυσιν αὐτὼ καὶ λέπαδν᾽ ἐπ᾽ αὐχένων
τίθησι. χἠ μὲν τῇδ᾽ ἐπυργοῦτο στολῇ
ἐν ἡνίαισί τ᾽ εἶχεν εὔαρκτον στόμα,
ἡ δ᾽ ἐσφάδαζε, καὶ χεροῖν ἔντη δίφρου
διασπαράσσει καὶ ξυναρπάζει βίᾳ
ἄνευ χαλινῶν καὶ ζυγὸν θραύει μέσον.
πίπτει δ᾽ ἐμὸς παῖς, καὶ πατὴρ παρίσταται
Δαρεῖος οἰκτείρων σφε: τὸν δ᾽ ὅπως ὁρᾷ
Ξέρξης, πέπλους ῥήγνυσιν ἀμφὶ σώματι.
καὶ ταῦτα μὲν δὴ νυκτὸς εἰσιδεῖν λέγω.

Com muitos sempre noturnos sonhos


convivo, desde que meu filho com o exército
foi-se à terra dos jônios para dispersá-la,
mas ainda não tinha visto nada tão claro
como ontem à noite, o que te contarei.
Pareceu-me que duas mulheres bem vestidas,
uma paramentada com véus pérsicos,
outra, com dóricos, viessem-me à vista,
mais notáveis que as de hoje no porte
e na beleza perfeita, irmãs do mesmo tronco,
uma habitava a Grécia, a outra, a terra

SUMÁRIO 24
bárbara, no sorteio recebidas por pátria.
Ao que me parecia ver, houve entre ambas,
uma querela, e meu filho, quando soube,
tentava conter e acalmar, e sob o carro
atrela as duas, e põe-lhes o jugo
no pescoço. Uma se orgulhava dos jaezes
e nas rédeas tinha a boca dócil ao mando,
a outra esperneia e despedaça os arreios
com as mãos, arrebata com violência,
desenfreada, e quebra o jugo ao meio.
Cai o meu filho e aproxima-se o pai
Dario a lastimá-lo. E quando o vê,
Xerxes rasga as vestes sobre si mesmo.
Isso é o que vos digo ter visto à noite.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 176-200)

As duas mulheres aparecem vestidas e ornamentadas como


os costumes de seus respectivos povos e a mulher insubmissa ao
jugo de Xerxes representa o povo grego, que luta por sua democra-
cia e liberdade, não se subjugando a ninguém senão aos deuses.
Tal como aponta Azevedo: “O motivo do sonho e a sua original con-
figuração alegórica constituem assim um dos momentos artísticos
marcantes na consciencialização que os Gregos elaboraram de si
como povo” (AZEVEDO, 2010, p.18), reiterando, assim, as palavras
do próprio Coro sobre os gregos, que “Não se dizem servos nem
submissos a ninguém” (οὔτινος δοῦλοι κέκληνται φωτὸς οὐδ᾽ ὑπήκοοι.)
(ÉSQUILO, Persas, vv. 242). Além disso, o jugo colocado nas mulhe-
res pode ser interpretado também como uma tentativa de Xerxes
em domar o indomável, como em sua tentativa de “prender o fluxo
do sacro Helesponto, como escravo em cadeias” (ὅστις Ἑλλήσποντον
ἱρὸν δοῦλον ὣς δεσμώμασιν ἤλπισε σχήσειν ῥέοντα) (vv. 745-6), o que
resultou apenas em males incontáveis para o povo persa.

Ademais, com esse sonho, a rainha também se apresenta


como detentora do aspecto religioso e onírico. Expressando assim seu
destemor e determinação em salvar seu povo e seu filho, Atossa vai
fazer libações aos deuses, como um pedido de proteção. No entanto,
ela se depara com um mal auspício, um falcão depenando uma águia:

SUMÁRIO 25
ὁρῶ δὲ φεύγοντ᾽ αἰετὸν πρὸς ἐσχάραν
Φοίβου: φόβῳ δ᾽ ἄφθογγος ἐστάθην, φίλοι:
μεθύστερον δὲ κίρκον εἰσορῶ δρόμῳ
πτεροῖς ἐφορμαίνοντα καὶ χηλαῖς κάρα
τίλλονθ᾽: ὁ δ᾽ οὐδὲν ἄλλο γ᾽ ἢ πτήξας δέμας
παρεῖχε. ταῦτ᾽ ἔμοιγε δείματ᾽ εἰσιδεῖν,

Vejo uma águia refugiar-se junto ao altar


de Febo, de pavor fiquei sem voz, amigos.
Depois avisto um falcão a vibrar velozes
asas e a depenar com as garras a cabeça
da águia, que nada senão encolher o corpo
contrapunha. Isto, para mim, é terrível de ver.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 205-210)

Dentre os presságios e prenúncios, destaca-se a águia, sím-


bolo de soberania e que está também relacionado à figura do pró-
prio Zeus, pai de deuses e homens, e que estaria atrelada a soberba
do próprio rei Xerxes, considerado pelo povo persa um rei tal qual
um deus. Ainda assim, ela é subjugada por um falcão, que sobre-
põe até a ave mais forte, representando a perda de poder do rei e,
consequentemente, dos persas. Acerca desse presságio, conclui-se,
segundo Beatriz Correia (2015, p. 01), que:
Os limites entre auspício e prodígio se embaraçam. E
esse auspício/ prodígio é sua vez uma parte integrante
do sonho que a Rainha narra ao Coro, fazendo parte de
um mesmo diálogo divinatório: um vem reforçar o sentido
e a inevitabilidade do outro.

Diante do temor advindo do mau auspício, bem como da pos-


sibilidade de sua realização, o Coro lamenta e aconselha, no primeiro
estásimo, que ela faça preces também ao finado rei, seu esposo e pai
de Xerxes, que habita o submundo:
οὔ σε βουλόμεσθα, μῆτερ, οὔτ᾽ ἄγαν φοβεῖν λόγοις
οὔτε θαρσύνειν. θεοὺς δὲ προστροπαῖς ἱκνουμένη,
εἴ τι φλαῦρον εἶδες, αἰτοῦ τῶνδ᾽ ἀποτροπὴν τελεῖν,
τὰ δ᾽ ἀγάθ᾽ ἐκτελῆ γενέσθαι σοί τε καὶ τέκνοις σέθεν
καὶ πόλει φίλοις τε πᾶσι. δεύτερον δὲ χρὴ χοὰς
Γῇ τε καὶ φθιτοῖς χέασθαι: πρευμενῶς δ᾽ αἰτοῦ τάδε,

SUMÁRIO 26
σὸν πόσιν Δαρεῖον, ὅνπερ φὴς ἰδεῖν κατ᾽ εὐφρόνην,
ἐσθλά σοι πέμπειν τέκνῳ τε γῆς ἔνερθεν ἐς φάος,
τἄμπαλιν δὲ τῶνδε γαίᾳ κάτοχα μαυροῦσθαι σκότῳ.

Ó mãe, não queremos por palavras excessivas


infundir-te pavor nem audácia. Se viste algum mal,
com súplicas pede aos Deuses dêem proteção
e perfeitos sejam os bens teus e de teu filho,
e do país e de todos os teus. Depois é preciso
libar à Terra e aos finados, e pede com doçura
a teu esposo Dario, a quem dizes ter visto à noite,
que a ti e ao filho envie os bens de sob a terra à luz,
e os reveses, cobertos de terra, percam-se por trevas.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 215-223)

Logo, a rainha executa um complexo ritual de invocação ao


rei Dario, no qual reúne elementos ritualísticos dedicados aos mor-
tos na cultura grega, assim como os une aos elementos próprios do
oriente. Em seguida, o Coro é responsável por entoar os hinos neces-
sários para trazer o morto de volta à luz dos vivos, pois “se ainda
sabe um remédio de males, só ele dos mortais diria o termo” (εἰ γάρ
τι κακῶν ἄκος οἶδε πλέον, μόνος ἂν θνητῶν πέρας εἴποι.) (ÉSQUILO,
Persas, vv. 631-2). Em seguida, há uma entoação sobrenatural vindo
da anábase, Ἀνάβασις, isto é, da subida do rei Dario do mundo dos
mortos. Por fim, o fantasma do rei foi invocado por sua esposa.

Ainda sobre o ritual feito por Atossa, vemos a suntuosa rai-


nha se abster de todo seu ouro e imponência e ir sozinha, a pé, de
forma humilde, verter libações aos ínferos deuses:
τοιγὰρ κέλευθον τήνδ᾽ ἄνευ τ᾽ ὀχημάτων
χλιδῆς τε τῆς πάροιθεν ἐκ δόμων πάλιν
ἔστειλα, παιδὸς πατρὶ πρευμενεῖς χοὰς
φέρουσ᾽, ἅπερ νεκροῖσι μειλικτήρια,
βοός τ᾽ ἀφ᾽ ἁγνῆς λευκὸν εὔποτον γάλα,
τῆς τ᾽ ἀνθεμουργοῦ στάγμα, παμφαὲς μέλι,
λιβάσιν ὑδρηλαῖς παρθένου πηγῆς μέτα,
ἀκήρατόν τε μητρὸς ἀγρίας ἄπο
ποτὸν παλαιᾶς ἀμπέλου γάνος τόδε:
τῆς τ᾽ αἰὲν ἐν φύλλοισι θαλλούσης βίον

SUMÁRIO 27
ξανθῆς ἐλαίας καρπὸς εὐώδης πάρα,
ἄνθη τε πλεκτά, παμφόρου γαίας τέκνα,
ἀλλ᾽, ὦ φίλοι, χοαῖσι ταῖσδε νερτέρων
ὕμνους ἐπευφημεῖτε, τόν τε δαίμονα
Δαρεῖον ἀνακαλεῖσθε, γαπότους δ᾽ ἐγὼ
τιμὰς προπέμψω τάσδε νερτέροις θεοῖς.

Por isso, fiz este percurso, de volta


do palácio, sem carro nem luxo de antes,
trazendo ao pai de meu filho libações
propiciantes, que aos mortos são lenientes:
alvo potável leite, de consagrada novilha,
e destilado por flórea operária, fúlgido mel,
com gotas de água de virgínea fonte,
e sem mescla, vindo de mãe silvestre,
este potável licor de vetusta videira,
e proveniente da sempre frondosa
loira oliveira o oloroso azeite,
e flores trançadas, filhas de terra fértil,
Eia, amigos! Com estas libações, aos ínferos
entoai propícios hinos, e invocai o Nume
Dario, eu encaminharei estas honras,
poção da terra, aos ínferos Deuses.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 607-622)

No momento em que a esposa de Dario derrama leite, mel,


vinho e azeite, ela está executando um ritual grego de anábase, que
consiste na invocação de um morto do submundo governado por
Hades. Igualmente fez o herói Odisseu na Odisseia, de Homero, para
trazer Tirésias, o adivinho, do reino de Hades:
ἀμφ᾽ αὐτῷ δὲ χοὴν χεόμην πᾶσιν νεκύεσσι,
πρῶτα μελικρήτῳ, μετέπειτα δὲ ἡδέι οἴνῳ,
τὸ τρίτον αὖθ᾽ ὕδατι: ἐπὶ δ᾽ ἄλφιτα λευκὰ πάλυνον.
πολλὰ δὲ γουνούμην νεκύων ἀμενηνὰ κάρηνα,

E em seu redor verti libação para todos os mortos,


Primeiro dei leite e mel, depois de vinho doce,
E em terceiro lugar de água, polvilhando com
branca cevada.
Ofereci muitas súplicas às cabeças destituídas de força
dos mortos.
(HOMERO, Odisseia, XXI. 26-9)

SUMÁRIO 28
A rainha Atossa faz então libações similares às de Odisseu,
invocando os deuses ctônicos para guiar seu marido de volta ao
mundo dos vivos, de forma que ela pudesse pedir conselhos ao pru-
dente rei para diminuir o sofrimento que caíra sobre o povo da Pér-
sia. Segundo Correia (2015, p.47), esse ato de “invocar a alma de um
morto para dela obter conselhos e prenúncios é a finalidade de um
tipo de adivinhação denominada de Necromancia”. Assim, a rainha
atua como uma espécie de sacerdotisa ao invocar os deuses infer-
nais com uma finalidade específica e com a ajuda de todo o Coro,
na ânsia de diminuir o desespero que se apoderou com a derrocada
dos Persas suscitada por Xerxes.

Justifica-se, dessa maneira, que “o ritual de invocação do


espectro de Dario, tal como apresentado por Ésquilo, remete a um
ritual necromântico, o que por sua vez remete à questão a respeito
do poder divinatório da alma do morto” (CORREIA, 2015, p.48). Logo,
trazer um rei morto para aconselhamento não se apresenta como
uma tarefa simples, mas, para a rainha, que novamente se impõe de
forma destemida, é a atitude necessária para um possível acalento
diante de toda essa situação de miséria pérsica. Desta maneira, é a
prudência da rainha Atossa, aliada ao seu diálogo com o sábio rei
Dario, que coloca às claras as desmedidas do rei Xerxes, bem como
as consequências devastadoras de suas ações para o seu povo.

XERXES E A DESMEDIDA DE UM REI-DEUS


É interessante enfatizar que, em oposição à prudência de
sua mãe, Xerxes, em seu excesso, age com desmedida ao comparar
seu poder de regência com o poder dos próprios deuses. Tal erronia
é reforçada pela própria Atossa, pois “pode-se argumentar que
fornece uma visão particularmente helênica do caráter de seu filho e

SUMÁRIO 29
da natureza de sua derrota” (MCCLURE, 2006, p. 80)4. Dessa forma,
a invocação de Dario se faz necessária, posto que sua autoridade se
constrói tanto pela sua caracterização como um rei justo e sábio5,
atribuída em vida, quanto pelo status que adquire na sua condição
de morto, possuindo uma percepção diferente sobre a dimensão do
mundo dos mortais. Assim, a sua presença é de suma importância
na tragédia, visto que:
Xerxes, o filho de Dario, é o foco para onde se direciona
o discurso do fantasma, e, por isso, suas falas possuem
estreita relação com as ações perpetradas por seu filho,
que cometeu excessos que não foram dignos de um bom
rei, o que desagradou deuses e homens. O castigo divino
que se abate sobre Xerxes faz dele uma figura trágica por
excelência e, por isso, para se entender a participação do
Fantasma de Dario nessa tragédia é necessário compre-
ender, sob a ótica do sobrenatural, como os crimes terre-
nos cometidos pelo jovem rei puderam lhe gerar tal cas-
tigo (NOGUEIRA, 2011, p. 266).

Logo, dentro da complexidade do discurso de Dario, diante


da ciência da ruína de seu povo, é possível notar a relação construída
entre a ação humana e a ação divina, algo inerente ao estilo trágico
de Ésquilo (NOGUEIRA, 2011). E é precisamente nesse elo, constru-
ído a partir da oposição de deus versus homem, que se estabelece o
excesso cometido por Xerxes. Ademais:
Essa sobreposição de poderes humano e divino na figura
do rei e de seu exército suscita no coro de conselheiros
persas um temor inevitável: o temor de que essa opulência

4 One might argue that provides a particularly Hellenic view of her son’ s character and the nature of
his defeat.
5 Alguns estudiosos afirmam que Ésquilo deturpa a história do reinado de Dario ao retratá-lo como
exemplo de sensatez e prudência, uma vez que ele havia tentado conquistar a Grécia e faleceu
com planos de uma nova tentativa de conquista. No entanto, compactuamos com o pensamento
de Oliveira (2002, p.47), que afirma que “O contraste entre a prudência de Dario e a ὕϐρις de
Xerxes obedece a uma necessidade dramática, e não histórica”. Para mais, ler OLIVERIA, F. R. Duas
Ou Três Coisas Sobre Mitos e História: Os persas De Ésquilo. LETRAS CLÁSSICAS, n. 6, 2002, p. 37-53.

SUMÁRIO 30
e grandeza tão extraordinária que se deixa confundir com
a manifestação mesma de Deus revele-se afinal o “frau-
dulento logro de Deus” (TORRANO, 2002, p.26).

No início do terceiro episódio, Dario questiona “Qual é entre


os persas o novo grave mal?” (τί ἐστι Πέρσαις νεοχμὸν ἐμβριθὲς κακόν:)
(ÉSQUILO, Persas, vv. 693), e se espanta ao saber que ela padece
não de questões naturais, como “surto de peste, ou sedição no país”
(λοιμοῦ τις ἦλθε σκηπτὸς ἢ στάσις πόλει;) (vv. 715), mas por males trazi-
dos por seu filho, o “tolo infeliz” (ἐμώρανεν τάλας) (vv. 719), que ousou
levar seu exército para Atenas. Indo contra os limites fixados pelos
deuses e pela natureza, Xerxes também desafia a própria autoridade
divina, ao romper a fronteira natural do mar, dado que “a moira fixada
para os Persas, de domínio no seu próprio continente, parece ter sido
ignorada por esse mar de homens que ‘aprenderam a contemplar o
recinto sagrado do mar’ e o não respeitam, nem às fronteiras que ele
impõe” (FIALHO, 2004, p. 214). Por fim, o finado rei delineia alguns
aspectos do caráter de Xerxes relacionados à loucura e que podem
ser vistos como causas de seu erro:
ὦ μέλεος, οἵαν ἄρ᾽ ἥβην ξυμμάχων ἀπώλεσεν.
[...]
ὅστις Ἑλλήσποντον ἱρὸν δοῦλον ὣς δεσμώμασιν
ἤλπισε σχήσειν ῥέοντα, Βόσπορον ῥόον θεοῦ:
καὶ πόρον μετερρύθμιζε, καὶ πέδαις σφυρηλάτοις
περιβαλὼν πολλὴν κέλευθον ἤνυσεν πολλῷ στρατῷ,
θνητὸς ὢν θεῶν τε πάντων ᾤετ᾽, οὐκ εὐβουλίᾳ,
καὶ Ποσειδῶνος κρατήσειν. πῶς τάδ᾽ οὐ νόσος φρενῶν
εἶχε παῖδ᾽ ἐμόν; δέδοικα μὴ πολὺς πλούτου πόνος
οὑμὸς ἀνθρώποις γένηται τοῦ φθάσαντος ἁρπαγή.

Ó mísero, que juventude aliada ele destruiu!


[...]
Quem esperou prender o fluxo do sacro Helesponto
como escravo em cadeias, fluente Bósforo de Deus,
e transmutou em passagem, e com peias compactas
compôs e conseguiu vasta via para vasto exército.
Mortal, supôs não com prudência que superaria
Posídon e todos os Deuses. Esta doença da mente

SUMÁRIO 31
não dominou meu filho? Temo que vasta riqueza custosa
a minha entre os homens seja presa de quem se apresse.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 733, 745-752)

Para Torrano (2002), em Ésquilo, na figura do rei persa


desenvolve-se a doutrina da hybris, da desmedida, na qual a riqueza
excessiva, seja em ouro ou em exército, atua como uma usurpação
de atribuições divinas, sendo assim uma grandeza imprópria para
a condição humana. Assim, tal excesso ocorre quando, conduzido
pela soberba, Xerxes age de forma a reforçar seu poder sobre os
homens, equiparando-se aos próprios deuses e esquecendo os cas-
tigos divinos que sucedem a erronia trazidos por Zeus, cujo olhar a
nenhum mortal escapa: “Zeus punitivo vigia os demasiado soberbos
pensamentos, severo juiz” (Ζεύς τοι κολαστὴς τῶν ὑπερκόμπων ἄγαν
φρονημάτων ἔπεστιν, εὔθυνος βαρύς.) (ÉSQUILO, Persas, vv. 827-8).
Dessa forma, tem-se que a imprudência é uma característica pre-
dominante e que acompanha Xerxes durante seu desejo de con-
quista das terras gregas.

Tomando a Grécia para si, o atual regente é a fonte de males


irreparáveis ao seu povo, pois ultrapassou a medida que lhe cabia
como rei, ao almejar que “toda a Grécia se tornaria submissa ao rei”
(πᾶσα γὰρ γένοιτ᾽ ἂν Ἑλλὰς βασιλέως ὑπήκοος.) (ÉSQUILO, Persas, vv.
234), mesmo com a incumbência de que “[...] não atacásseis o ter-
ritório dos gregos” (μὴ στρατεύοισθ᾽ ἐς τὸν Ἑλλήνων τόπον) (vv. 790).
Conclui-se, pois, que a intemperança do atual governante fora a
responsável pela destruição e pelo sofrimento do povo persa:
Ξέρξης μὲν ἄγαγεν, ποποῖ,
Ξέρξης δ᾽ ἀπώλεσεν, τοτοῖ,
Ξέρξης δὲ πάντ᾽ ἐπέσπε δυσφρόνως
βαρίδεσσι ποντίαις.

Xerxes conduziu, popoí!


Xerxes destruiu, totoí!
Xerxes tudo levou, imprudente,
ele e as barcas marinhas.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 550-3)

SUMÁRIO 32
Dario ressalta, ainda, que Xerxes “pensa novidades e não
se lembra de minhas instruções” (Ξέρξης δ᾽ ἐμὸς παῖς ὢν νέος νέα
φρονεῖ, κοὐ μνημονεύει τὰς ἐμὰς ἐπιστολάς:) (ÉSQUILO, Persas, vv.
782-6), justamente por agir com insensatez, levando seu exército a
padecer em solo asiático. Logo, tem-se justificada a ruína da Pérsia
nas mãos de seu rei, que comete um erro trágico dominado pelo
seu orgulho e imprudência. Afinal, os persas sucumbem perante a
hybris de seu governante, estando fadados à punição divina, já que
“do fraudulento logro de Deus, que homem mortal há de escapar?”
(δολόµητιν δ᾽ ἀπάταν θεοῦ τίς ἀνὴρ θνατὸς ἀλύξει;) (vv. 93-4). Ademais,
resta-nos inferir que:
Com toda a probabilidade, então, a arrogância de Xer-
xes que levou à sua queda também foi sua ganância
por um triunfo total sobre os gregos [...] Pela magnitude
da expedição que planejou e por sua ganância por um
triunfo completo, Xerxes transgrediu esse princípio filo-
sófico vital [da prudência], algo que tornou quase ine-
vitável sua queda com o socorro do elemento divino.
Esses dois fatores, que denotam excesso, devem ser
considerados como a base de sua arrogância (PAPADI-
MITROPOULOS, 2008, p. 456)6.

Legitimando a hybris de Xerxes, as múltiplas imagens de far-


tura da peça contribuem ainda mais para a desonra do regente, lem-
brando-nos que os vastos recursos persas, tanto materiais quanto
humanos, foram esbanjados pelo regente:
O motivo da abundância persa cede lugar à imagem da
dor – cidades outrora cheias de homens agora cheias de
lamentações, leitos conjugais outrora povoados de mari-
dos agora cheios de lágrimas. Também introduz e sus-
tenta um discurso de culpa dirigido a Xerxes: o luto das

6 In all probability, then, the hubris of Xerxes which led to his fall was also his greed for a total
triumph over the Greeks […] By the sheer magnitude of the expedition he planned and by his
greed for a complete triumph Xerxes transgressed this vital philosophic principle, something
which made his fall with the succor of the divine element almost inevitable. These two fac-
tors, which denote excess, must be considered as the basis of his hubris.

SUMÁRIO 33
mulheres é culpa de um único homem, como nos lembra
o refrão, ‘A terra lamenta seus filhos nativos massacrados
por Xerxes (MCLURE, 2006, p. 86)7.

Por fim, a presença constante de Atossa como rainha e mãe,


juntamente com a de seu marido, invocado do mundo dos mortos,
reforça não somente a vulnerabilidade da dinastia persa, mas res-
salta a imaturidade de Xerxes, que se mostra inadequado para o
cargo de rei, uma vez que “em um nível dramático, a presença no
palco de ambos os pais (um na forma de um fantasma), ao invés de
uma esposa - como na versão de Heródoto - reforça a representação
de Xerxes como um jovem imaturo incapaz de liderar um império”
(MCCLURE, 2006, p. 84)8. Ao nos depararmos com o caráter trágico
da peça, podemos relacionar o erro trágico do herói a outros traços
relacionados ao seu caráter, como a sua juventude, o seu orgulho e a
falta de sabedoria; árbitros das ações que o levam à queda.

No fim, são as palavras de Dario que “elevam-no a um outro


plano de entendimento da conexão entre a queda e o que a motiva
– é o excesso audacioso dos mortais (hybris) quem propicia a sua
loucura cega (ate) e a converte em instrumento de aniquilação” (FIA-
LHO, 2004, p. 218). Ésquilo, então, destaca o lado mortal de Xerxes,
que está submetido à vontade dos deuses e que padece pela impru-
dência, característica intrínseca a sua raça, além de evidenciar, em
adição ao infortúnio individual, a magnitude da perda coletiva sofrida
pelo povo persa. A lei divina é nítida, àquele que se exceder a sua
medida está prevista a desgraça, consequência do restabelecimento
do equilíbrio existente no kosmos.

7 The motif of Persian abundance yields to the imagery of grief – cities once full of men now fill with
lamentations, marriage beds once populated with husbands now fill with tears. It also introduces
and sustains a discourse of blame directed against Xerxes: the mourning of women is the fault of
a single man, as the chorus reminds us, ‘The earth laments her native sons slaughtered by Xerxes.
8 On a dramatic level, the onstage presence of both parents (one in the form of a ghost), rather than
a spouse-as in the Herodotean version enforces the representation of Xerxes as an immature youth
incapable of leading an empire.

SUMÁRIO 34
Deste modo, em Persas, a rainha Atossa e seu papel como
regente, além de destoar da representação feminina nas tragédias
em geral, a caracteriza como representante da prudência através
de sua participação ativa e de sua apreensão acerca da pólis e do
destino do exército persa, além da cautela perante os excessos de
seu próprio filho. Sua presença na peça intensifica a desgraça de
Xerxes, bem como reforça a sua imprudência juvenil. Em oposição
a ela há a figura desmedida do rei, cuja soberba e excesso culmi-
naram na desgraça do povo persa. Assim, o papel proeminente de
Atossa simboliza a mortalidade do império dos persas, bem como de
seus “deuses”, Dario e Xerxes. Logo, reflete-se que Ésquilo sublinha o
paralelo existente entre a prudência de uma rainha-mãe e a desme-
dida de seu rei de forma a articular esses elementos para assegurar
a tragicidade de sua obra.

SUMÁRIO 35
2
Aron Barcelos Vilar Guimarães

A FIGURA DO TIRANO
EM PERSAS A PARTIR
DO CONCEITO DE
EΠΙΘΥΜIΑ
DE PLATÃO
A tragédia ΠΕΡΣΑΙ (Persas) foi primeiramente apresentada
em 472 a.C. no teatro de Dioniso, nas Dionísias Urbanas, na cidade
de Atenas. Era a segunda tragédia de uma trilogia, ordenadamente
Fineu (Fr. 258-60), Persas, Glauco Potnieu (Fr. 36-42) e o drama satí-
rico Prometeu, o Acendedor do Fogo (Fr. 204-9)9. A tetralogia esqui-
liana foi a grande vitoriosa no contexto das apresentações. Parte
dessa vitória, talvez, seja relacionada ao fato de que, oito anos antes,
Ésquilo lutara, no contexto das Guerras Médicas, ao lado de seus
concidadãos e aliados contra o Império Persa, comandado primei-
ramente por Dario I e, posteriormente, por seu filho Xerxes I, respec-
tivamente na Batalha de Maratona (490 a.C.), nesta perdendo seu
irmão Cinegiro (HERÓDOTO, 6.114), e dez anos depois na Batalha de
Salamina (480 a.C.), trazendo vitória aos gregos, que um mês antes
haviam tido sua Acrópole destruída em consequência da derrota da
batalha das Termópilas (480 a.C.). Tendo, portanto, sua ficção alicer-
çada em um acontecimento histórico de guerra, e sendo ela a única
obra dramática de cunho histórico do teatro antigo ateniense que
chegara até nós10, é importante destacarmos que a tragédia Persas
carrega não somente um forte marcador político que faz referência a
uma guerra entre dois grandes povos, um de caráter democrático e
o outro de caráter autocrático, mas também discute a melhor forma
de governar uma cidade. Lockwood (2017) propõe que Ésquilo esta-
ria não somente produzindo uma obra de cunho misto, literário e
histórico, mas também uma nova teorização política em sua tragé-
dia. É fato que a antiga Liga Pan-Helênica, criada no contexto das
Segundas Guerras Médicas, foi dissolvida após a vitória definitiva
dos gregos contra os Persas na Batalha de Plateia (479 a.C.). Alguns
anos depois, os atenienses fundaram a Liga de Delos, do qual eram

9 Cf. Rosenbloom, Aeschylus Persians (46). Consultar também Archive of Performances of Greek & Roman
Drama (APGRD), projeto de pesquisa localizado na faculdade clássica da Universidade de Oxford.
10 Entretanto, já é de conhecimento que outras obras baseadas em acontecimentos históricos béli-
cos, como, por exemplo, A Captura de Mileto, de Frínico, foram produzidas. Cf. Rosenbloom “Shou-
ting Fire In A Crowded Theather: Phrynicos’s “Capture of Miletos” and The Politics of Fear in Early
Attic Tragedy”, Philologus 137, 1993, páginas 159-196.

SUMÁRIO 37
líderes, e passaram a deter grande poder face às outras cidades-es-
tado. Assim sendo, a tese de Lockwood (2017) declara que a tragédia
Persas diz respeito a uma tentativa de Ésquilo para a correta orien-
tação política da hegemonia que nascia em Atenas, uma espécie de
alerta à cidade que estava em rápida expansão econômica e política.

Para o presente trabalho, em primeiro lugar, pretendo partir


do conceito de ὕβρις mencionado por Brandão (1984) para, inicial-
mente, criticar a tese do próprio autor de que no teatro de Ésquilo, o
sofrimento “é uma página de sabedoria”, de que é necessário “sofrer
para compreender”, ou, dito de outro modo, que o teatro esquiliano
é marcado pelo sofrimento do homem como motor para o aprendi-
zado, isto é, de que a ὕβρις implica necessariamente em movimento
ao aprendizado, e para isso explorarei as ações causadoras de ὕβρις
pela personagem Xerxes. No decorrer do processo, aproximarei o
conceito platônico de ἐπιυθμία (desejo) desenvolvido por Platão na
República às análises apresentadas, mostrando-o intrinsecamente
relacionado na tragédia Persas ao conceito de ὕβρις como fator cau-
sal das desventuras de Xerxes. Em segundo lugar, com as reflexões
obtidas, me apropriarei da proposta utilizada por Lockwood (2017)
para apontar como um poder excessivo se apresenta como grande
dificuldade para os habitantes de uma pólis em expansão quando
estão presentes ὕβρις e ἐπιυθμία em um tirano.

Antes de se começar propriamente a análise proposta, o tra-


balho já encontra algumas dificuldades, devido ao próprio caráter
histórico da obra. Brandão (1984) declara que o herói, quando comete
uma falta relacionada à falta de μέτρον (medida), incorre em ὕβρις, se
tornando assim um competidor, um êmulo dos deuses. Entretanto,
o mesmo autor relata que na tragédia Persas “não existe um herói,
uma personagem central” (BRANDÃO, 1984, p.19). Por um lado, cita
o fato de Temístocles, general ateniense responsável pela vitória dos
gregos, não estar presente na tragédia, a quem o próprio Brandão
(1984) considera ser o grande vencedor em Persas. Por outro lado,
discute a respeito da personagem Xerxes.

SUMÁRIO 38
O autor menciona uma fala do espectro de Dario a respeito
das ações de Xerxes, a de que “quando alguém se aplica à própria
ruína, os deuses trabalham com ele” (ÉSQUILO, Persas, vv. 740-742).
Brandão (1984, p.19) também declara que “se o homem é, de certa
forma, responsável pela ὕβρις, essa responsabilidade não afeta ape-
nas o herói, mas a ordem universal”, fortalecendo seu argumento nos
princípios de carência e plenitude assinalados por Schüller (1976)11.
Poderia se pensar, de acordo com estas falas, que Temístocles não
se encaixaria nos pré-requisitos para o herói trágico, afinal, tanto
não é ele quem comete a ὕβρις, quanto limita-se a defender sua
pátria da investida inimiga, vencendo o império invasor. É estranho
por outro lado que Brandão (1984, p.12) afirme que “a tragédia só se
realiza quando o μέτρον é ultrapassado”, (que é o que, segundo ele,
caracteriza a ὕβρις do herói), mas que negue a Xerxes o caráter de
herói, apesar de ser o imperador quem ultrapassa esse μέτρον. Deste
modo, o próprio Brandão (1984) cai em contradição consigo mesmo,
resultando em duas alternativas: ou aquele que comete ὕβρις não
corresponde ao herói, ou ele sequer considera, stricto sensu, Persas
uma tragédia, o que incorre em absurdo no contexto das apresen-
tações teatrais. Deste modo, não há outra opção senão discordar
da primeira hipótese apresentada pelo autor em relação ao caráter
negado de herói a Xerxes em Persas. Autores como Correia (2015,
p. 3) ressaltam em seu trabalho que “uma das características mais
peculiares à estrutura dramática de Ésquilo é a de um movimento
ascendente e prolongado de tensão dramática que culmina com um
acontecimento trágico a ser lamentado”. De fato, é necessário que
Xerxes seja o herói para que o próprio conceito de ὕβρις seja res-
peitado, e a tensão ao longo da narrativa que culmina em seu final
trágico depende desta identidade.

Todavia, pode-se pôr em dúvida se os espectadores real-


mente lamentavam o fato de a Xerxes ter sido imposta a derrota.

11 Schüller, D. Carência e Plenitude. Porto Alegre, Edit. Movimento, 1976, p.16.

SUMÁRIO 39
Munteanu (2011) afirma que Willamowitz-Moellendorff (1914, p. 151)
considerou o kommos (Pe, 931-1078) no qual Xerxes e o coro lamen-
tam a perda do exército mais divertido do que trágico. Adams (1952),
em concordância, afirmou que o coro carregava um tom satírico e
sem emoção. Munteanu (2011) também declara que ao longo da
peça muitos momentos dramáticos apelavam aos sentimentos patri-
óticos dos espectadores, como a evocação à batalha de Salamina
(Pe, 302-330, 337-347, 353,432), a de Psitaleia (447-471) e a de Pla-
teia (816-820). É citada ainda a tese de West (2006) que apresenta
a exaltação do sentimento de orgulho cívico e patriótico ateniense
em contraponto com a imagem do “bárbaro” como fator de exor-
tação à democracia ateniense onde os cidadãos eram livres. Esta
tese parece encontrar embasamento numa passagem de Aristófa-
nes na qual a personagem que representa Ésquilo declara “Então eu
produzi Os Persas, e com ela os ensinei a estar sempre dispostos a
vencer o adversário, embelezando um feito excelente” (ARISTÓFA-
NES, Rãs, vv. 1026-7). De fato, na própria tragédia, quando a rainha
Atossa pergunta quem comanda o exército inimigo, o coro responde
que os atenienses “não se dizem servos nem submissos a ninguém”
(οὔτινος δοῦλοι κέκληνται φωτὸς οὐδ’ ὑπήκοοι) (ÉSQUILO, Persas, vv.
241-2). É necessário relembrar, conforme mencionado na primeira
parte do artigo, que oito anos antes o Xerxes histórico havia invadido
Atenas. Nesta invasão, devastou parte do território, pilhou templos e
forçou os atenienses a abandonar a cidade. Portanto, é de se esperar
que sentimentos ambíguos atravessassem aqueles que estivessem
assistindo à representação teatral.

Por outro lado, autores como Kantzios (2004) afirmam que


a tragédia Persas é marcada ostensivamente pelo medo, superando
tragédias como Agamêmnon. De acordo com este autor, palavras
denotando angústia, intimidação, terror, como φρονττίς, τάρβος,
φόβος, τρόμος, e todas aquelas derivadas a estas aparecem em um
ritmo de 3.5 a cada 100 linhas. Munteanu (2011) utiliza o conceito de
“medo trágico”, à luz da teoria aristotélica, para supor que temer por

SUMÁRIO 40
eventos dramáticos pode, por extensão, levar a uma ansiedade sobre
o destino humano em geral. Ela utiliza o conceito de φαντασία (ima-
ginação) retirado do de Anima aristotélico para distinguir a emoção
de medo proveniente de uma imagem aterrorizante na arte, que não
se materializa em δόξα (crença), daquela representada em face a um
perigo real. À vista de um inimigo que é exaltado ao longo do párodo
anapéstico (ÉSQUILO, Persas, vv. 9, 28) composto por homens “terrí-
veis de ver, temíveis em combate” (φοβεροῖ μὲν ἰδεῖν, δεινοὶ δέ μάχην)
e com “multiáureo exército” (πολυχρύσου στρατιᾶς) ou no párodo
lírico (ÉSQUILO, Persas, vv. 81-82) onde o próprio Xerxes é caracte-
rizado como “brilhando negro nos olhos, o olhar de mortífera víbora”
(κυάνεον δ’ ὄμμασι λεύσσων φονίου δέργμα δράκοντος), tal afirmação
parece estar concordância. O argumento final de Munteanu (2011)
é realizar uma analogia equiparando o sofrimento da rainha Atossa
e o dos anciãos persas pelos jovens mortos em batalha e pelo luto
dos parentes ao sofrimento de Príamo, que é obrigado a implorar
piedade, após perder seu reino, a Aquiles para que este lhe devolva
o cadáver de Heitor (Ilíada 485-506). Deste modo, a tragédia Per-
sas acabaria provocando sentimentos de piedade em, pelo menos,
alguma parte dos espectadores.

Tendo em vista, finalmente, o herói trágico Xerxes, o argu-


mento central da tragédia Persas toma parte a partir das ações do
imperador persa. Duas são as principais, consideradas violadoras de
um limite, e que funcionam como motor trágico da obra. A primeira
está situada no párodo lírico, quando Xerxes acaba por lançar “um
jugo ao redor do pescoço do mar” (ζυγὸν ἀμφιβαλὼν αὐχένι πόντου)
(ÉSQUILO, Persas, vv. 71-2), e a segunda nos é informada pela fala
de Dario (vv. 809-812), quando Xerxes viola os templos de deuses
estrangeiros, pilhando suas imagens e incinerando seus templos.
Esta última, entretanto, parece suficientemente autoexplicativa nos
conceitos de piedade grega e honra aos deuses, carecendo de justi-
ficação do porquê de ser considerada ὕβρις.

SUMÁRIO 41
O “jugo” do primeiro ato constitui-se pelo ato de criar um
mecanismo de travessia, no Helesponto, utilizando sua armada marí-
tima, de modo que sua infantaria pudesse atravessar sobre os navios
o mar Egeu (ÉSQUILO, Persas, vv. 722), intentando assim novas con-
quistas e expansão no domínio territorial da Hélade. Sua motivação
seria vingança contra os gregos (HERÓDOTO, VII. VII), que outrora
impuseram derrota a seu pai, Dario I, na batalha de Maratona (490
a.C.). À primeira vista, é evidente identificar pela perspectiva literária
que a falta cometida se direciona diretamente a um aspecto cosmo-
lógico regido pelo deus Posêidon, que tem seu domínio desrespei-
tado quando as águas se tornam “solo”, isto é, quando Xerxes erige
uma ponte utilizando sua armada como partes constitutivas. Xerxes,
nesta primeira tentativa fracassada de construir uma ponte, que, logo
após ficar pronta, desaba devido a uma tempestade, ordenou que
o Helesponto sofresse trezentas chicotadas; além disso, pediu que
os executores da primeira ponte marcassem as águas do mar com
um ferro em brasa, exigindo que um de seus homens declamasse
um discurso no qual declarava ser Xerxes “senhor do mar”, e acu-
sando o próprio mar de ser traidor e vil (HERÓDOTO, VII. XXXV).
Logo em seguida, ordenou que os responsáveis pela construção
da primeira ponte fossem executados12. Do ato de marcar algo com
ferro em brasa, no contexto da Grécia Antiga, produz-se frequen-
temente a ideia de στίγμα (marca de reconhecimento). Στίγμα era
um sinal de propriedade, de posse de um senhor sobre um escravo
(HERÓDOTO, II. XIII), assim como também efetuado comumente
em criminosos, para que se tornasse ostensivo sua condição social
inferior, depauperada13 – por esses dois motivos, Xerxes declara o
mar como “vil” e “traidor”, concomitantemente se considerando seu
senhor, assim como o declarando inferior. Portanto, ao marcar o mar
com ferro em brasa, Xerxes não somente rebaixa-o à condição de
escravo, impondo-o sujeição sociopolítica, mas também, ao exigir

12 Heródoto. 6.35.
13 “στίγμα”, in Liddell & Scott (1940) A Greek–English Lexicon, Oxford: Clarendon Press.

SUMÁRIO 42
que seu encarregado declare o próprio imperador com o título de
“senhor do mar”, equipara-se a si mesmo ao deus Posêidon, enalte-
cendo-se como se fosse divino, na linguagem de Brandão (1984), se
tornando um competidor, um êmulo dos deuses.

Restam outras duas ofensas provenientes da primeira ὕβρις


de Xerxes: exigir ser declarado senhor do mar e chicoteá-lo trezentas
vezes. Estas ações se afastam dos poderes inerentes a Posêidon,
que é cantado nas literaturas antigas como:
[...] Posídon, grande deus,
abalador da terra e do mar imenso,
deus marinho, que sustém o Hélicon e a vasta Eges.
Dupla honra, ó agitador de terra, os deuses te concederam:
ser domador de cavalos14 e salvador de naus.
Salve, Posídon sustentáculo da terra, deus de negra cabeleira,
bem-aventurado e de coração benévolo, socorrei
os navegantes.
(Hinos Homéricos, h.Hom. 22, vv. 1-7)

Assim como, talvez, a representação mais pictórica que temos


provinda de Homero do deus:
ἔνθ᾽ ἐλθὼν ὑπ᾽ ὄχεσφι τιτύσκετο χαλκόποδ᾽ ἵππω
ὠυπέτα χρυσέῃσιν ἐθείρῃσιν κομόωντε,
χρυσὸν δ᾽ αὐτὸς ἔδυνε περὶ χροΐ, γέντο δ᾽ ἱμάσθλην
χρυσείην εὔτυκτον, ἑοῦ δ᾽ ἐπεβήσετο δίφρου,
βῆ δ᾽ ἐλάαν ἐπὶ κύματ᾽: ἄταλλε δὲ κήτε᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ
πάντοθεν ἐκ κευθμῶν, οὐδ᾽ ἠγνοίησεν ἄνακτα:
γηθοσύνῃ δὲ θάλασσα διίστατο: τοὶ δὲ πέτοντο
ῥίμφα μάλ᾽, οὐδ᾽ ὑπένερθε διαίνετο χάλκεος ἄξων:
τὸν δ᾽ ἐς Ἀχαιῶν νῆας ἐΰσκαρθμοι φέρον ἵπποι.

Foi aí que chegou e fez atrelar ao carro seus cavalos velozes


de brônzeos cascos com fartas crinas douradas;

14 Para entender melhor a relação de Posêidon e o culto em que era relacionado a cavalos, cf. Burkert,
Greek Religion, 2002, 136-139. Também Vernant, As Origens do Pensamento Grego, 1972, p.15.

SUMÁRIO 43
e de ouro se armou ele próprio em volta do corpo.
Agarrando no chicote de ouro bem forjado, subiu para
o carro,
que conduziu por cima das ondas. Por baixo dançaram
golfinhos das profundezas, pois conheciam seu soberano.
De felicidade se abriu o mar. E ele continuou depressa
em frente,
Sem que se molhasse do carro o eixo de bronze.
Às naus dos Aqueus o levaram os cavalos empinadores.
(HOMERO, Ilíada, vv. 23-31)

As imagens produzidas, especialmente pelo Posêidon Homé-


rico, entram em forte contraste com a autoimagem que Xerxes car-
rega de si mesmo como senhor do mar. Por um lado, Posêidon faz
com que o mar se abra em alegria, por outro, o mar rechaça Xerxes e
“sofre” violência física a seu mando. O eixo de bronze da carruagem
do deus que não é molhado demonstra a docilidade das águas do
mar que não respingam ao encontro de seu verdadeiro senhor. Em
contraponto, as ondas destroem a primeira ponte criada por Xerxes
na tentativa de andar sobre elas e, ao fim da guerra, pelas águas
são arruinadas quase completamente sua frota marítima. Os golfi-
nhos acompanham Posêidon em tranquilidade, dançando, enquanto
o séquito de Xerxes obedece às suas ordens em função do medo,
correndo o risco de serem executados. De modo geral, Posêidon
governa o domínio marítimo promovendo a felicidade e é exaltado
pelos habitantes daquele microcosmo, enquanto Xerxes exerce a
liberdade de governar sua hoste em meio à violência, ao medo e à
opressão que exerce nos seus. Como bem observado por Correia
(2015), quando, no primeiro estásimo, o excerto “o Coro diz que,
destruído o exército, o povo, liberto do ‘jugo da força’ [ζυγόν ἀκλᾶς]
poderá falar livremente” (ÉSQUILO, Pe. 594)” parece entrar em con-
sonância com a fala “um jugo ao redor do pescoço do mar” (ζυγὸν
ἀμφιβαλὼν αὐχένι πόντου) (ÉSQUILO, Persas, vv. 71-72). Se “‘subme-
ter ao jugo’ significa sujeição política” (CORREIA, 2015, p.18). Se os
mares são propriedades físicas detidas por Posêidon a partir de uma
justa divisão efetuada por Zeus a seus irmãos (Hesíodo, Teogonia, vv.

SUMÁRIO 44
885), Xerxes exige para si não somente uma parte que não lhe cabe
da perfeita harmonia da repartição após a Titanomaquia, ferindo a
memória do cosmo na partilha divina, como também, erroneamente,
se autodeclara senhor de algo que ele não pode controlar, saindo da
medida humana e cometendo ὕβρις. Suas ações se voltam exclusi-
vamente para seu próprio benefício e são facilmente realizáveis pelo
uso da força, pois Xerxes detém poder absoluto em seu contexto
sociopolítico. Ele, portanto, a partir de certa perspectiva, por meio de
sua conduta extremamente expansiva, começa a adquirir um caráter
altamente violento, tirânico.

O problema do poder absoluto aproxima a personagem Xer-


xes à figura do tirano Giges, personagem histórico em moldes fanta-
siosos relatado por Glauco no Livro II da República, o qual encontra
um dispositivo que lhe confere poder ilimitado de ação para cometer
quaisquer ações que desejar rumo à sua ascensão ao poder. Giges,
de fato, comete uma série de ações truculentas e se torna rei da
Lídia. O mito deseja retratar que, porque Giges está inserido em um
cenário de liberdade e poder absolutos, não vê outra opção senão
aquela de usufruir de sua vantagem. Desta forma, retomamos a pri-
meira tese de justiça de Trasímaco, a de que “A justiça não é outra
coisa senão a conveniência do mais forte” (República, 338c). Por trás
deste argumento, entretanto, esconde-se a tese basilar de que em
liberdade e poder completos para ação, a natureza do homem seria
fundamentada por ἐπιθυμία (desejo), sendo este desejo gerador de
πλεονεξία (ambição), para a conquista de bens, independentemente
do modo, se por ações pacíficas ou por violência, de sua aquisição
(República, 359a-361d). Em suma, no argumento de se esconde a
face de uma antropologia pleonéxica (ARAÚJO, 2011).

Por consequência, a imagem de alguém que procura subju-


gar o outro “desdenhando a astúcia e preferindo a presunçosa força
bruta” para “conquistar a vitória pela violência” (ÉSQUILO, Prome-
teu Acorrentado, vv. 281-285) se assemelha a estratégia de bata-
lha dos titãs, filhos de Urano e Gaia, contra Zeus na Titanomaquia,

SUMÁRIO 45
que culmina na derrota daqueles, ao mesmo tempo em que se
distancia da herança estratégico-militar herdada pelos gregos.
Poderia se contestar, por outro lado, que Xerxes se distancia de uma
atitude titânica à medida que se apresenta como um imperador inte-
ligente. No diálogo entre o espectro de Dario I e a rainha Atossa
(ÉSQUILO, Persas, vv. 715-738), é evidenciada sua capacidade de
“criar artifícios” para conquistar seus objetivos. A rainha revela como
o filho possui inteligência tática para a elaboração e execução de
μηχαναῖς (artifícios), mecanismos de estratégia utilizados para atra-
vessar a infantaria persa de um continente para outro, fazendo com
que o falecido marido se mostre perplexo, incrédulo de que Xerxes
fora capaz de fechar o “grande Bósforo” (vv. 721-725). Se por um lado
ao homem foi concedido pelo titã Prometeu ἔντεχνον σοφίαν (sabe-
doria técnica)15, por meio de um furto, para a criação de τέχναι (artes)
promovendo a manutenção de sua vida e aperfeiçoamento civilizató-
rio, por outro lado se faz necessário lembrar que tal presente partira
de um crime (BENARDETE, 1964) e, portanto, não constitui expres-
são prévia da vontade de Zeus. Alguns relatos parecem transparecer
que Zeus preferiria mesmo ter aniquilado a raça humana16. Quando
ἔντεχνον σοφίαν é utilizada de maneira extremamente audaz como
meio para o uso da violência e força bruta contra terceiros, o homem
parece se tornar duplamente detestável pelos deuses – tanto por ter
uma espécie de σοφία (sabedoria) que lhe foi adquirida de maneira
criminosa, quanto por usufruí-la de maneira incorreta. Ofende aos
deuses o fato de querer se impor dominação pela força bruta quando
já se foi agraciado pelo fogo sagrado, que traz concomitantemente
a razão, pois a guerra é odiosa aos deuses e aos homens. Essa ima-
gem, novamente, parece aproximar Xerxes à figura de Ares, que é
a representação da ausência de diplomacia e da natureza brutal da

15 Platão, Protágoras, 321d. Tradução e Estudo Introdutório de Eleazar Magalhães Teixeira. Edições
UFC. 2016.
16 Ésquilo, Prometeu Acorrentado, 314-315.(2009). Zeus já havia eliminado raças anteriores, cf. Hesí-
odo, Os Trabalhos e os Dias, 109-201 (2019). Cf também Benardete, The Crimes and Arts of Prome-
theus, pp. 126-139 (1964).

SUMÁRIO 46
guerra, a que utiliza a agressividade e a força para a resolução de
conflitos, e o mais detestável dentre os deuses do Olimpo aos olhos
de Zeus (Homero, Ilíada, V. 890). De fato, Xerxes é comparado ao
deus Ares no decorrer da tragédia (ÉSQUILO, Persas, vv. 81-6).

Entretanto, há na peça um argumento contrário decisivo


quanto ao modo de ser de Xerxes, revelador de sua conduta. Atossa,
em uma tentativa de justificar a atitude de Xerxes perante o fale-
cido marido, revela que Xerxes é impetuoso (θούριος), e, por conviver
com homens maus, caíra nas provocações deles, que o ridiculari-
zavam por não aumentar a riqueza paterna, alegando covardia por
parte do imperador (ÉSQUILO, Persas, vv. 753-8). De acordo com
a rainha, foi por este motivo que Xerxes incitou a marcha contra a
Grécia. Se o rei agiu com base no argumento histórico de vingança,
ou se é Ésquilo quem está correto, dispensaremos a análise para o
apontamento de algo mais essencial. Há um ponto de intersecção
entre as duas justificativas, pois ocultam conjuntamente o desejo de
honra (φιλοτιμίᾱ). Xerxes não deseja ser alvo de desonras perante os
seus, seja porque é considerado um imperador incapaz de promover
um desenvolvimento econômico como o pai, Dario, seja porque não
fora capaz de armar uma expedição para resgatar a honra do fale-
cido rei e, consequentemente, do próprio povo persa. Apesar de ser
amante de honra, Xerxes, todavia, não parece se adequar ao molde
do homem timocrata proposto por Platão (República, 549a). Entre-
tanto, por analogia, a imagem de Xerxes sendo influenciado pela
fala de seus aliados próximos remete claramente à ação da turba de
desejos descontrolados na alma em Platão, que é perturbada e deita
a perder o indivíduo por forçá-lo a ter de cumpri-los. Se ἐπιθυμία não
é responsável direta pela queda de Xerxes, é indiscutível que seja um
fator altamente influenciador a partir da relação com terceiros em
um ambiente corrompido. Platão se refere posteriormente “ao tirano
autêntico como um autêntico escravo, de uma adulação e servilismo
extremo, lisonjeador dos piores” (República, 579e), mas talvez a
mais precisa descrição que parece se encaixar perfeitamente em
Xerxes “o homem tirânico, quando não vive como um particular,

SUMÁRIO 47
mas é forçado por qualquer acaso a ser tirano, e, sendo incapaz de
se dominar a si mesmo, tenta mandar nos outros” (República, 579c).
Faz parte da alma tiranizada, que é injusta, portanto, querer honras
por sua utilidade prática.

É presumível nos moldes platônicos prever que um problema


relacionado à orientação correta apareça no decorrer da tragédia,
tendo em vista que, já no início do párodo anapéstico, Ésquilo men-
cione um estratégico grupo específico de persas que permanecera
na cidade de Susa, os fiéis, para vigiar a região (ÉSQUILO, Persas,
vv. 1-7). A palavra grega utilizada por Ésquilo para falar dos fiéis é
o nominativo neutro plural πιστὰ, e por isso são eles πιστὰ καλεῖται
(chamados fiéis). Os fiéis, que representam um coro de anciãos,
foram escolhidos por Xerxes, devido à sua avançada idade, para
zelarem por assuntos diversos, do qual, dentre eles, se destaca na
tragédia o papel de aconselhar a rainha Atossa em situações de difi-
culdade (ÉSQUILO, Persas, vv. 215-225). Em contraste com a ideia
de que alguém que possua πίστις possa aconselhar, Platão declara
que o “saber” proveniente da πίστις se encontra restrito ao campo
do mundo sensível, atingindo apenas os seres vivos e objetos do
mundo. πίστις, portanto, é mera opinião ancorada na realidade apa-
rente, sujeita à dúvida e ao erro, um tipo de saber pouco fundamen-
tado. Não é motivo de espanto, sendo assim, que o conhecimento
produzido pelos anciãos naturalmente encontraria dificuldade em
aconselhar corretamente Atossa. Quando Atossa busca no coro
orientação à interpretação de um sonho oracular (vv. 176-214), ele a
aconselha a suplicar proteção aos deuses para seus bens e seu filho
(vv. 215-225). Também pede que recorra a Dario, fazendo libações aos
finados e ao falecido marido, para que ele conceda a Xerxes os bens
subterrâneos, fazendo assim a reviravolta nos reveses que ameaçam
o rei persa. Entretanto, ao contrário do que parece, o coro não rea-
liza somente o papel de conselheiro indireto, isto é, que encaminha
um problema que não poderá resolver para terceiros, por um lado
aconselhando, mas se isentando quando não é capaz de produzir

SUMÁRIO 48
uma resposta efetiva. Ao contrário, se enche de uma autoridade epis-
têmica que não tem, concede à rainha não uma garantia, mas uma
profecia positiva a respeito do destino: “Isso de coração adivinho
com doçura te aconselho. Quanto a isso, discernimos que terás tudo
bem.” (ταῦτα θυμόμαντις ὤν σοι πρευμενῶς παρῄνεσα. εὖ δὲ πανταχῇ
τελεῖν σοι τῶνδε κρίνομεν πέρι) (vv. 224-225). Com a entrada do men-
sageiro e seu relato, declarando a derrota do exército Persa, Atossa
lamenta seu destino, e faz questão de ressaltar a má interpretação do
oráculo vinda do coro (vv. 517-520). O valor dos πιστὰ não é questio-
nado porque erram, mas porque afirmam saber algo que não sabem,
um erro socrático par excellence. E, sendo Xerxes que os escolhera
como conselheiros, se torna conspícuo o fato de que mesmo uma
multidão de opiniões equivocadas não trará nenhuma resolução aos
que precisam de alguma.

Levando em consideração as ações desmedidas de Xerxes


movidas por ἐπιθυμία e suas consequências, e que é atualizada ao
contexto literário auxiliado pela tese de Lockwood (2017), haverão
duas críticas que só poderão ser compreendidas quando dependen-
tes uma à outra: a primeira delas diz respeito a abrangência do cará-
ter do πάθος (afecção) da personagem Esquiliana, e a segunda a de
que é necessário que haja aprendizado com o sofrimento quando
cometida a ὕβρις. Conforme mencionado por Brandão (1984), o
cosmo violado pela ação desmedida exige reparação. De puramente
individual, as ações que desrespeitam o μέτρον (medida) Esquiliana
e incorrem na ὕβρις geram um πάθος que avança na tragédia Per-
sas não somente para o domínio doméstico (ÉSQUILO, Persas, vv.
133-138), mas também para o citadino, como representado em um
diálogo lamentoso entre o coro e Xerxes:
ΧΟΡΟΣ
Ὀτοτοῖ, Βασιλεῦ, στρατιᾶς ἀγαθῆς
Περσονόμου τιμῆς μεγάλης,
κόσου τ’ ἀνδρῶν
οὕς νῦν δαίμων ἐπέκειρεν.
Γᾶ δ’ αἰάζει τὸν ἐγγαίαν

SUMÁRIO 49
ἥβαν Ξέρξᾳ κταμέναν, Ἄιδου
σάκτορι Περσῶν· ᾁδοβάται γὰρ
πολλοὶ φῶτες, χώρας ἄνθος,
τοξοδάμαντες, πάνυ ταρφύς τις
μυριὰς ἀνδρῶν ἐξέφθινται·
αἰαῖ αἰαῖ κεδνᾶς ἀλκᾶς·
Ἀσία δὲ χθών, βασιλεῦ γαίας,
αἰνῶς αἰνῶς ἐπὶ γόνυ κέκλιται.

ΞΕΡΞΗΣ
Ὄδ’ ἐγών, οἰοῖ, αἰακτός
μέλεος, γέννᾳ γᾷ τε πατρῴᾳ
κακὸν ἄρ’ ἐγενόμαν.

CORO
Ototoî, ó rei, pela brava campanha
pelo valor magnífico do poder persa,
pelo esplendor dos varões
que o Nume hoje massacrou!
Terra pranteia a enterrada
juventude morta por Xerxes, que povoa
de persas o palácio de Hades, onde
passeiam muitos varões, flor da terra,
hábeis arqueiros; uma compacta
miríada de varões pereceu.
Aiai aiaî! Que brava coragem!
Ó rei desta terra, a terra Ásia
mísera, mísera, pôs-se de joelhos.

XERXES
Eis-me aqui, oioî, gemente,
choroso! Tornei-me a ruína
do povo e terra pátria.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 918-934)

Desde modo, o μέτρον (medida) que é violado por Xerxes


deixa de circunscrever exclusivamente consequências à sua pró-
pria vida individual, perpassando também seu palácio em Susa
- ambiente doméstico, que também é político –, a cidade e seus
habitantes, e as instituições do domínio público, que precisaram

SUMÁRIO 50
ser reorganizadas após a morte de muitos de seus comandantes
(302:330), e de sátrapas (33:38), em assuntos tais como a reta deli-
beração, a administração, a capacidade de governança e execução
do poderio bélico enquanto unidade nacional ramificada. De certo
modo, o próprio Xerxes era uma “instituição” em ato, pois de seu
ambiente doméstico, o palácio de Susa, era emanado o maior poder
político persa. À chegada do mensageiro, e após o relato da queda
do exército persa, Atossa se despe de vestes suntuosas e adornos
(vv. 608) e se dirige ao túmulo do falecido Dario para buscar orienta-
ções para a pátria derrotada. O coro entoa um longo ritual de invo-
cação do espírito de Dario (vv. 628:680) na esperança de conforto.
Finalmente, nota-se que o impacto negativo da ὕβρις de Xerxes atra-
vessa o domínio da realidade das coisas sensíveis, irrompendo no
domínio dos espectros do Hades. Quando o coro recorre à memória
pátria para ressaltar os feitos e as conquistas de Dario, isto é, seus
triunfos sobre outras nações e territórios (852-908), e, no êxodo, Xer-
xes entra em cena arruinado, não somente é evidenciado que ele
é um governante inferior ao pai, mas que ferira a memória de uma
grande nação. Deste modo, ἐπιθυμία se torna causa motriz da ruína
de μοῖρα τῆς γαίας (destino da pátria). Sua ὕβρις atinge não somente
a realidade terrena, mas o cosmo como um todo e a memória de um
povo. Ao se declarar, portanto, que do sofrimento humano vem o
aprendizado, em Persas, Xerxes tido como ἰσοθεός (idêntico a Deus)
– assim como o tirano apresentado por Gláucon, “idêntico aos deu-
ses” (ἰσόθεον ὄντα) (República, II. 360c) – detentor de grandíssimo
poder, não determina exclusivamente o aprendizado, mas faz com
que todo o cosmo e uma nova memória seja reconfigurada: seu
castigo atinge proporções que são muitíssimo mais extensas que
aquelas meramente individuais, exigindo uma nova reconfiguração
da própria cidade, e, por consequência, aproximando-se finalmente
à ideia da necessidade de uma nova teoria política, conforme defen-
dida por Lockwood (2017).

SUMÁRIO 51
3
Vanessa Silva Almeida

XERXES E DARIO:
UM CONTRASTE DE CARÁTER
INTRODUÇÃO
É comum lermos em obras críticas e estudos acadêmicos que
Os Persas de Ésquilo é uma peça histórica. É inegável que o motivo
da peça seja um episódio histórico, mas diremos neste breve traba-
lho que Ésquilo não quis fazer história, e que, por isso, Os Persas,
como diz Kitto (1990, p. 76), é “só drama”. Longe de propor afirmações
categóricas, mas considerando que, em se tratando da poesia grega,
a relação com a realidade histórica se torna complexa, já que muitas
vezes corre-se o risco de anacronismo, propomos que Ésquilo, tendo
o tema de uma guerra histórica e recente diante de si, usou-o com a
mesma liberdade com que tratou a guerra de Tróia – a priori, mítica.
Seus personagens, históricos em um primeiro momento porque se
particularizaram naquele determinado episódio, são universais do
mesmo modo que um Prometeu ou um Agamêmnon, conforme
argumenta Oliveira (2002). Nesse sentido, Os Persas não encena o
que ocorreu na Batalha de Salamina em 480 a. C., mas o que poderia
ter ocorrido, e, deste modo, a peça sai do âmbito particular da história
para entrar no âmbito universal da poesia, como propõe Aristóte-
les na Poética (141b5).

Nesse sentido, objetivamos, ao longo do trabalho, mostrar o


tratamento artístico dado por Ésquilo ao tema histórico que tinha em
mãos. Nosso recorte está centrado no contraste entre as figuras de Xer-
xes e Dario, considerando-o como uma técnica dramática de Ésquilo
para enfatizar o tema principal de sua peça: a hýbris de Xerxes. Consi-
derando que o contraste de caráter entre os personagens trágicos nos
vários dramas gregos17 é algo que suscita discussões interessantes e que
ajuda a construir a ação da peça, tomamo-lo por tema deste trabalho,

17 Alguns exemplos desse contraste podem ser verificados entre Antígona e Creonte, Antígona e
Ismêne (Antígona, de Sófocles), Teseu e Creonte (Suplicantes de Eurípides), etc.

SUMÁRIO 53
a fim de propor outros pontos de vista acerca daquela que é conside-
rada a peça mais antiga que chegou até os nossos dias18.

Os personagens em questão, do ponto de vista de sua parti-


cularização histórica, na época da encenação da peça, jamais tinham
sido apresentados ao Ocidente através de um discurso histórico. Este
só virá a ocorrer anos mais tarde (440 – 430 a. C.), com Heródoto,
que, em suas Histórias, dedica longos trechos descrevendo o caráter,
as ações, o estilo de governo dos reis persas Xerxes e Dario, ainda
que se afirme que o que faz Heródoto não seja ainda história19. Ape-
sar de serem posteriores ao texto de Ésquilo, que é o nosso objeto de
pesquisa, consideramos importante trazer algumas questões apre-
sentadas pelo historiador grego acerca dos reis persas em questão,
a fim de estabelecer a ligação dos discursos literário e histórico.

Ao longo dos livros das Histórias, o rei Dario é descrito como


um líder astuto e ambicioso, tendo governado o Império Persa de 522
a. C. até sua morte em 486 a.C. Dario expandiu significativamente o
império, conquistando várias regiões, incluindo a Macedônia e a Trá-
cia. E não somente ambicioso, é retratado também como um gover-
nante habilidoso, preocupado com a administração eficiente de seu
vasto império, bem como com a manutenção da ordem e da estabi-
lidade (HERÓDOTO, Hist. 3, 80).

Em relação à Primeira Guerra Greco-Persa, na qual os persas


tentaram conquistar a Grécia continental, Heródoto relata a tentativa
frustrada de Dario, incluindo a célebre Batalha de Maratona em 490
a.C., onde as forças persas foram derrotadas pelos gregos. Em relação
aos aspectos políticos e sociais do Império Persa, Heródoto descreve
positivamente o governo de Dario e suas políticas administrativas,
bem como a estrutura social e cultural do império persa (Hist. 3, 119).

18 Os Persas teria sido encenada por volta do ano de 472 a. C., oito anos depois da vitória ateniense
em Salamina.
19 Oliveira (2002) considera que só é possível falar de história a partir de Tucídides.

SUMÁRIO 54
Evidencia também Dario como um líder pragmático, capaz de reco-
nhecer suas próprias limitações e ajustar suas políticas de acordo
com as circunstâncias. Por exemplo, Heródoto menciona que Dario
percebeu a dificuldade de conquistar a Grécia continental após sua
derrota na Batalha de Maratona e optou por não continuar a invasão
imediatamente (Hist. 4. 1-142).

Em relação a Xerxes, Heródoto nos apresenta um líder ambi-


cioso, propenso a tomadas de decisão imprudentes e excessiva-
mente confiante em sua própria capacidade. Mostra-nos também um
rei poderoso e determinado a vingar a derrota de seu pai na Batalha
de Maratona. Sua motivação é o desejo de glória e a necessidade de
restaurar o orgulho persa abalado pela derrota anterior.

O historiador grego, assim como Ésquilo, também viu o jovem


rei como um hybristés (desmedido), isto é, excessivamente orgu-
lhoso, que ignorou os conselhos de seus bons conselheiros, como
Artabanes, e rejeitou os sinais e presságios desfavoráveis que suge-
riam que sua campanha estava fadada ao fracasso (Hist. 7. 137-140).

Ao detalhar a construção da ponte no Helesponto para per-


mitir a passagem de seu exército (7. 44-45), Heródoto enfatiza a
imprudência e a arrogância de Xerxes ao punir o mar, mandando
chicoteá-lo e lançar correntes contra ele, numa atitude insana contra
a natureza, que ele não poderia dominar.

Para Heródoto, a campanha de Xerxes na Grécia foi uma série


de decisões desastrosas. No entanto, todas as informações fornecidas
pelo historiador grego, embora concordem em parte com o texto de
Ésquilo, são posteriores. Poderíamos até nos perguntar se em alguma
medida Heródoto foi influenciado pela caracterização de Ésquilo a res-
peito de ambos os reis. Isso nos serviria como um ponto de partida
importante, já que teríamos espaço para refletir que, enquanto Ésquilo
enxergou a tragicidade na história, e a colocou no palco artisticamente,
Heródoto, vendo esse mesmo aspecto, o registrou historicamente.

SUMÁRIO 55
A CARACTERIZAÇÃO
DE DARIO EM OS PERSAS
A primeira menção a Dario na peça esquiliana ocorre durante
a narração do sonho de Atossa no primeiro episódio (vv. 176-214),
sonho este que antecipa o desenvolvimento da ação. Precisamente,
nos versos 197 e 198, a rainha menciona que após Xerxes ser ven-
cido pela mulher de roupas gregas, aproxima-se o pai a lastimá-lo.
A menção da rainha ao marido neste momento da peça pode ser
entendida como uma espécie de mote para que, com a chegada do
mensageiro, que ocorrerá adiante, no verso 249, os personagens sin-
tam a necessidade de invocar o espírito do antigo rei. Os termos da
menção de Atossa são os seguintes:
Πίπτει δ’ ἐμὸς παῖς, καὶ πατὴρ παρίσταται
Δαρεῖος οἰκτείρων σφε: τὸν δ᾽ ὅπως ὁρᾷ
Ξέρξης, πέπλους ῥήγνυσιν ἀμφὶ σώματι.
Καὶ ταῦτα μὲν δὴ νυκτὸς εἰσιδεῖν λέγω.

Cai o meu filho e aproxima-se o pai


Dario a lastimá-lo. E quando o vê,
Xerxes rasga as vestes sobre si mesmo.
Isto é o que vos digo ter visto à noite.
(ÉSQUILO, Persas, vv. 197-200)20

Um dos primeiros aspectos que notamos na citação do tre-


cho acima é que a atitude de Dario causa grande impacto em Xer-
xes. Seu movimento de rasgar as vestes, notadamente uma repre-
sentação do luto, demonstra, conforme Albuquerque (2022), não
apenas a frustração pela falha em conquistar a Grécia, representada
no sonho pela mulher de vestimentas gregas, mas por perceber sua
inferioridade perante o pai. Oliveira (2002) reconhece nisso um con-
traste dramático entre as duas figuras, como será visto adiante.

20 A tradução utilizada em todo o trabalho é a de Jaa Torrano, publicada pela Editora Iluminuras
em 2009.

SUMÁRIO 56
O fantasma de Dario é invocado na peça no final do segundo
episódio, precisamente no segundo estásimo (vv. 623-680) pelo coro
de fiéis anciãos. No terceiro episódio, o público vê se materializar sua
figura no mundo dos vivos para falar com sua esposa, a rainha Atossa,
e com sua corte. A esta altura da peça, os personagens revelam seu
desespero perante os sinais de mau presságio, e o rei é invocado
quase que como um consolo, para que suas palavras, consideradas
sábias, trouxessem algum alento para o momento que vivenciavam
ali (vv. 658; 665-667), tanto é assim, que o mesmo coro que o invocou
se recusa a contar as desgraças para o rei, intimidado que fica pelo
peso da narrativa da destruição de seu império pela mão de Xerxes.

Para a caracterização de Dario, importa notar que seu espí-


rito é comparado a uma divindade, como se verifica na invocação no
verso 633-634: ἦ ῥ᾽ ἀίει μου μακαρίτας ∕ ἰσοδαίμων βασιλεὺς (“Ouve-me
o venturoso/ Rei igual a Nume”), e no verso 644: “Περσᾶν Σουσιγενῆ
θεόν” (“Deus dos persas nascido em Susa”). Além do caráter ele-
vado das invocações mencionadas, outras referências às glórias do
rei são evocadas pelo coro de anciãos, como o fato de nunca ter per-
dido varões (vv. 652), o que já estabelece um contraste com Xerxes,
que perdeu muitos, e seu papel de conselheiro prudente e guia do
exército persa (vv. 654-655). Como afirma Albuquerque (2022), este
intervalo de versos já é suficiente para estabelecer uma relação com
o enredo principal da peça, o excesso de Xerxes:
[...] a derrota de Xerxes, [...] reforça a ideia de que, com a
derrota, a guerra inicialmente tida como necessária e glo-
riosa, era, então, um grande desperdício de vidas. Em con-
trapartida, a figura de Dario sobressai como “θεομήστωρ”,
ou seja, “iluminado pelos deuses”, confirmando o nume
de Dario e ressaltando que este teria sido tomado sempre
por boas inspirações divinas, diferentemente de Xerxes
que é retratado como louco, e que mais a frente será con-
siderado corrompido por algum deus de más intenções
(ALBUQUERQUE, 2022, p. 58-59).

SUMÁRIO 57
Conforme se depreende a partir da citação do autor, é possí-
vel afirmar que o contraste entre pai e filho é intencional por parte de
Ésquilo, como se verá adiante.

Ainda em relação à caracterização positiva do rei Dario na


peça esquiliana como um rei quase divino, há também o seu estado
de morto que, ainda conforme Albuquerque (2022, p. 61), “o cobre
com uma aura intocável, tornando-o invulnerável por qualquer
ofensa ou crítica, pois para todos os efeitos, ele cumpriu seu tempo
entre os vivos sem trazer nenhuma desgraça ou desonra para o seu
povo”. No contexto da necessidade dos personagens da peça de
compreenderem a própria desgraça, apenas Dario, distanciado do
mundo dos vivos, tendo cumprido seu termo, teria a dimensão cor-
reta dos acontecimentos e saberia, como já em vida demonstrara,
analisar a situação.

Outro ponto importante na caracterização de Dario é a


consciência que ele tem de suas limitações: ἐστὶ δ᾽ οὐκ εὐέξοδον,/
ἄλλως τε πάντως χοἰ κατὰ χθονὸς θεοὶ /λαβεῖν ἀμείνους εἰσὶν ἢ μεθιέναι
(“A saída não é fácil,/ tanto mais que os subterrâneos Deuses/ são
mais propensos a pegar que a largar”) (vv. 688-690). Em seu discurso,
o rei se posiciona entre os deuses e os homens (vv. 691-692), afir-
mando que sua aparição foi possível graças ao poder que possui junto
aos deuses ínferos, de modo que não cometia ofensa às divindades.
Este trecho pode ser interpretado como uma demonstração do temor
do rei aos deuses, sendo mais um elemento de contraste com Xerxes.

Faz-se importante destacarmos o juízo que Dario tem acerca


da atitude de Xerxes em levar adiante a guerra. O rei a enxerga como
uma “tolice infeliz” (vv. 719). Ao longo de sua fala, o monarca não
quer crer que o seu filho tenha cometido tantas imprudências, o
que o faz atribuir os erros do filho aos deuses ou a alguma lou-
cura, como verificamos no verso 725. A fala de Dario sobre os deuses

SUMÁRIO 58
dolosos21 que teriam manipulado a mente de Xerxes é compreendida
por Atossa, que argumenta que, além dos deuses, Xerxes foi tam-
bém influenciado por maus conselheiros (vv. 753-756), levantando a
questão política do desejo de expansão pelas conquistas territoriais.

Ao concordar com a esposa, lamenta mais ainda a sina do


filho e do país e se despede admoestando alguns cuidados pater-
nais para com Xerxes (vv. 829-839). Desta forma, Ésquilo constrói
positivamente a imagem de Dario como um rei admirável, sensato
e prudente, o que provoca ainda mais a expectativa ominosa do
fracasso de Xerxes. Como vimos anteriormente, esta característica
positiva se repete exaustivamente em Heródoto, o que não deixa de
ser curioso em se tratando de autores atenienses, e da verificação de
suas reais personalidades.

A CARACTERIZAÇÃO
DE XERXES EM OS PERSAS
É possível perceber, ao longo da peça de Ésquilo, que Xerxes
está sempre associado a Dario, como que à sombra dos feitos do
pai, na tentativa de emulá-lo. Ésquilo constrói uma comparação
inicial positiva a partir da fala do coro, que vê o rei vigente como um
magnânimo líder (vv. 140-149). Ainda antes, no párodo anapéstico,
Xerxes é apresentado suntuoso, forte e semelhante aos deuses (vv.
21-28; 73-92), mas essa imagem vai se desfazendo completamente
ao longo do desenvolvimento da ação, de modo que a consideração
das duas figuras – Dario e Xerxes – se torna a de dois pólos opostos.

21 Sobre o engano dos deuses, vide o estudo de Jaa Torrano na introdução à sua tradução de
Os Persas, bem como o seu artigo “O fraudulento logro de Deus: a noção de apáte na teologia
de Ésquilo”, que integra a coletânea Estudos sobre o teatro Antigo, organizada por Zélia de
Almeida Cardoso e Adriane da Silva Duarte, pela Editora Alameda.

SUMÁRIO 59
O coro é quem faz a primeira menção ao jovem rei logo no
início do párodo. Ainda que pareça uma menção despretensiosa, a
expressão “nascido de Dario” feita no verso 6 evoca uma imediata
relação, que impele o público a compará-lo com o pai e a esperar
dele os mesmos feitos. Também não deixa de ser uma expressão
elogiosa, uma vez que, como se viu na seção anterior, Dario é apre-
sentado como um grandioso rei quase divino.

No párodo lírico, Xerxes é retratado pela expressão χρυσογόνου


γενεᾶς ἰσόθεος φώς (“de áureo sémen/, nascido varão igual a Deus”)
(vv. 79-80). Nota-se que tudo é grandioso na descrição dos elemen-
tos persas. De acordo com Avery (1964), a insistência de Ésquilo
em salientar a magnitude dos persas é justamente para construir o
impacto trágico no momento da confirmação da queda de Xerxes.
Kelley (1979), em consonância com Avery (1964), e estendendo essa
mesma ideia, identifica um elemento nefasto, que termina na fala de
Dario sobre o excesso de contingente que morre pelo próprio solo
grego (vv. 794). Mηδ’ εἰ στράτευμα πλεῖον ᾖ τὸ Μηδικόν (“Se o exército
persa não fosse tão grande...”) (vv. 791).

No entanto, as referências elogiosas no início da peça, for-


mando uma comparação equilibrada entre pai e filho, não estão
dispostas aleatoriamente. De acordo com Correia (2015), elas susci-
tam o temor aterrador do coro que, subitamente exclama: Ταῦτά μου
μελαγχίτων/ φρὴν ἀμύσσεται φόβῳ (“Assim vestido de negro o meu /
coração dilacera-se de pavor”) (vv. 115).

O coro, ignorando a real situação do exército, e inflando-se


de confiança, reafirma e enfatiza a glória e a força de Xerxes, mesmo
após a rainha Atossa narrar o seu sonho, introduzindo de forma mais
clara o elemento ominoso na peça. É apenas no momento em que o
Mensageiro relata a funesta derrota em Salamina, que as exaltações
feitas ao rei são desfeitas, e de gloriosas, passam a ser lamentosas.
O sentimento de confiança expresso nos párodos anapéstico e lírico
transforma-se em um sentimento magoado. O coro agora se volta,

SUMÁRIO 60
não mais à imponência de Xerxes em sua magnificência, mas ao
lamento da sua imaturidade, da sua vaidade e da sua inexperiên-
cia em lidar com um exército tão numeroso (vv. 515-516; 532-597).
Volta-se, assim, à comparação com Dario: à medida que o último é
exaltado, Xerxes é humilhado.

A estupefação é tão grande que tanto o coro como Dario


procuram uma explicação razoável para o que vão descobrindo.
Ao narrar para a Atossa como ocorreu a derrota, e como os gregos
desenvolveram a sua estratégia (vv. 353-432), o Mensageiro sugere
que um Nume dominara a mente de Xerxes, provocando-lhe uma
cegueira ou loucura inexplicável, advinda dos deuses. Esta cegueira
ou loucura, que Torrano (2010) chama de ápate, é retomada por Dario
ao tentar entender as atitudes do filho. Quando o Mensageiro fina-
liza sua narrativa, a imagem magnífica de Xerxes está reduzida a
de um rei humilhado.

Para a caracterização de Xerxes, também é importante res-


saltar a atuação de Atossa. No relato de seu sonho, o atual rei dos
persas não possui a grandeza exposta pelo coro no início da peça.
O que vemos é um homem inexperiente, impotente diante de um
ataque e subjugado pela presença paterna, que lhe exige, indireta-
mente, a valorização de seu nome.

A figura da mãe aflita pelo destino do filho reforça ainda


mais a imagem de um jovem inábil em Xerxes, pois o apresenta
como dependente da mãe, conforme afirma Albuquerque (2022).
Tal imagem ganha novamente relevo quando Dario orienta a
esposa a acolher o filho e providenciar roupas condizentes com a
sua majestade. Nesse sentido, Albuquerque (2022) observa que o
uso do termo paidós, no verso 834 merece cuidadosa atenção. De
acordo com o pesquisador,
[...] o termo utilizado, nestes versos, para se dirigir a
Xerxes merece um foco, pois a palavra παιδί em grego
significa “garoto” ou “menino”, nunca é utilizado para se

SUMÁRIO 61
referir ao adulto a não ser que queira diminuí-lo, como
por exemplo a forma de utilizar esta palavra para se refe-
rir a um servo. Nesta ocorrência percebe-se que Dario
entende Xerxes como um simples “menino” que não tem
totais faculdades para ser o rei que deveria ser (ALBU-
QUERQUE, 2022, p. 72).

Diante das considerações de Albuquerque (2022), podemos


observar que a relação entre Xerxes e a mãe é mais complexa do
que se imagina: quando Atossa se retira para seguir a orientação
de Dario, Xerxes aparece em cena. A ausência da mãe aí pode ser
vista como uma tentativa de se demonstrar algum grau de amadu-
recimento por parte de Xerxes, mas também não se pode excluir a
ênfase na derrota, no estado de desolação em que o rei se encontra,
já que a figura de Atossa poderia lhe trazer um consolo que quebraria
os efeitos desoladores que a peça intenciona representar.

Ainda de acordo com Albuquerque (2022), esta ideia pode


ser considerada a partir da Poética, de Aristóteles, quando o filósofo
diz que para que se opere a catarse, Ἐπεὶ δὲ τὴν ἀπὸ ἐλέου καὶ φόβου
διὰ μιμήσεως δεῖ ἡδονὴν παρασκευάζειν τὸν ποιητήν, φανερὸν ὡς τοῦτο
ἐν τοῖς πράγμασιν ἐμποιητέον (“é preciso o poeta propiciar o prazer
oriundo da compaixão e do terror mediante mímesis”) (ARISTÓTE-
LES, Poética, 1453b10, grifos nossos). Desse modo, a presença de
Atossa provocaria um desequilíbrio pelo excesso da compaixão e a
ausência do terror. Estando ela ausente, vemos Xerxes solitário, rele-
gado à sua própria sorte, tendo que aprender a lidar com a humilha-
ção da derrota perante todo o seu país, mas de uma forma honrada,
sem nenhum obstáculo à piedade gerada pela própria cena.

Outro ponto importante a se considerar na caracterização de


Xerxes, é a visão que Dario tem do filho. Aqui retomaremos algumas
considerações feitas anteriormente. O antigo rei enxerga no filho um
mero jovem inexperiente, e atribui a esta sua característica a falta de
sensatez e limites: “Xerxes, meu filho, novo, pensa novidades/ e não
se lembra de minhas instruções” (vv. 783-784). Nesta falta de limites

SUMÁRIO 62
está também o desejo de conquistas territoriais, que perpassa tanto
a fala de Dario como a do coro, que consideram que Xerxes não
deveria ter avançado para as terras gregas (vv. 791-797). Sobre esta
questão, Kitto (1990), na célebre obra A Tragédia Grega, no capítulo
em que comenta Os Persas, afirma o seguinte:
Xerxes teria de ser castigado pelo céu porque come-
tera ὓβρις. O poeta, querendo um símbolo claro dessa
ὓβρις, usa a distinção nítida entre Europa e Ásia; aqui se
encontram limites traçados pelo Céu. Evidentemente,
com história ou sem ela, não pode ter sido permitido a
Dario ultrapassar estes limites ou o julgamento do Céu
teria caído sobre ele. Portanto, Dario deve ser judicioso
e prudente; deveria ter respeitado escrupulosamente
esta lei (KITTO, 1990, p. 79-80).

É precisamente neste ponto citado por Kitto (1990) que o


contraste entre Dario e Xerxes ocorre mais nitidamente. Enquanto
o primeiro se contém e respeita os limites (territoriais) fixados pelos
deuses, o segundo os desconsidera completamente. Esta é uma das
razões elencadas por Dario para a terrível derrota persa (vv. 743-750).

O penúltimo ponto a se considerar na caracterização do


jovem rei persa é a sua entrada em cena. Contrariamente à expec-
tativa gerada pelo coro, Xerxes não aparenta estar furioso, mas cho-
roso, compungido pela destruição que ele mesmo causara a seu
povo. Albuquerque (2022) fala numa certa calma advinda da ver-
gonha sentida pelo personagem, que teria lhe sufocado a fúria. Não
diremos que se trata de calma. Claramente o personagem não está
calmo, o que é possível verificar pelos seus gestos e seu discurso,
mas apenas o sentimento de vergonha, acabrunhamento e humilha-
ção experimentado por ele é que suprime o ímpeto da ira, esperada
por todos os personagens da peça.

Por fim, o último ponto que argumentamos nesta seção da


caracterização de Xerxes é a sua motivação para o ataque à Grécia.
Albuquerque (2022) considera a possibilidade da emulação ao pai,

SUMÁRIO 63
com a qual concordamos, pois, em sua imaturidade, e estando à
sombra de Dario, acreditou ser capaz de imitar o antigo rei, dignifi-
cando os seus feitos.
[...] Movido por este sentimento acreditou que tudo o
que desejava conquistar lhe pertencia e talvez por isso
nunca tenha questionado a sua capacidade de fazê-lo.
Possuía, pois, um exército muito superior em número ao
de seus inimigos, e, provavelmente, sua emulação tenha
sido tanta que tenha lhe gerado virtudes falsas como
a coragem, levando-o a acreditar numa guerra ganha
(ALBUQUERQUE, 2022, p. 76).

A partir das palavras de Albuquerque, podemos depreender


que o contraste entre Dario e Xerxes tem também lugar na tentativa
de emulação. No entanto, não sendo o jovem rei prudente o sufi-
ciente para se igualar, ou mesmo superar o pai, suas atitudes o levam
ao caminho contrário ao do seu predecessor, e é então que ocorre o
contraste trágico: tentando imitar o que considera elevado e digno,
mas ignorando as virtudes, Xerxes se torna um hybristés. Foi esse
caráter trágico que Ésquilo enxergou não exatamente na história – já
que, de acordo com Oliveira (2002), só se pode pensar nela como
discurso a partir de Tucídides, mas no acontecimento particular das
Guerras Médicas. Assim, contrastando a hýbris com a moderação,
tema caro à tragédia grega, transformou seu personagem em um
herói tão trágico e universal quanto um Agamêmenon ou um Orestes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste breve trabalho, intentamos propor uma leitura
de Os Persas, de Ésquilo a partir do contraste estabelecido entre os
personagens Xerxes e Dario a fim de evidenciar o caráter artístico
que se sobrepõe ao histórico na peça de Ésquilo. Tal contraste, longe
de se submeter à exatidão histórica sobre a personalidade de ambos

SUMÁRIO 64
os monarcas, funciona antes como uma técnica dramática advinda
da necessidade da ação. O principal objetivo de Ésquilo é expor a
hýbris de Xerxes, é este o tema da tragédia. Para isso, o dramaturgo
encontra no contraste com o rei predecessor e pai do protagonista
um motor necessário para a construção impactante da queda do
herói. Isto é, à medida que Dario é dotado de todas as virtudes de um
bom governante, Xerxes, possuindo o modelo do pai, desperdiça seu
exemplo e leva seu povo à ruína.

Não nos parece que isso force o dramaturgo a considerar


um discurso histórico e nem, muito menos, fornecer ao público uma
representação histórica. Concordamos com a afirmação de Oliveira
(2002), já mencionada anteriormente, de que só é possível falar em
história como discurso particular a partir de Tucídides, o que, em
relação a Ésquilo configura anacronismo. Para o autor, antes de
Tucídides – e isso inclui Heródoto – a narração dos fatos passados
tinha caráter mítico.

Com esta consideração, ficamos relativamente amparados


para afirmar que Ésquilo não relata uma realidade, mas cria uma
versão dela, isto é, o Dario e o Xerxes de Os Persas não são exata-
mente o Dario e o Xerxes históricos. Ambos os reis, tornados per-
sonagens no drama esquiliano e colocados deliberadamente em
contraste para se atingir o efeito máximo da tragédia são, sobretudo,
personagens literários.

Desse modo, consideramos que o contraste colocado por


Ésquilo em sua peça entre os personagens em questão é demasiado
marcante e, além de ser uma técnica dramática, é também um eixo
norteador da ação da peça. Por um lado, Dario, retratado como um
líder prudente, sábio e respeitado estabelece um modelo; por outro,
dispondo deste mesmo modelo, Xerxes, desprezando-o, personifica
a arrogância, a hýbris e a imprudência, e é por meio desse contraste,
que Ésquilo atinge o objetivo de representar as consequências
trágicas de seu drama.

SUMÁRIO 65
Em suma, a partir das questões apresentadas, podemos
ainda dizer que o contraste entre Dario e Xerxes, além de reforçar
os temas trágicos da hybris e da queda de alguém muito poderoso,
também oferece uma reflexão mais ampla sobre o homem na sua
condição de mortal. Ésquilo nos convida a refletir sobre a natureza
da prudência e da ordem divina, bem como sobre os perigos da
ambição desmedida e da ignorância de si mesmo, algo que sempre
atormentou o espírito grego. Há sempre mais possibilidades de lei-
tura em obras literárias, e não pretendemos, com este breve trabalho,
definir uma via única, mas uma entre as várias possíveis.

SUMÁRIO 66
4
Erimar Wanderson da Cunha Cruz

ÉSQUILO INDO-EUROPEU,
ARCAÍSMOS E INOVAÇÕES
NA POÉTICA D’OS PERSAS:
A ESTRUTURA FORMULAR
Ésquilo ocupa um lugar sui generis na periodologia da lite-
ratura grega, não apenas pelo fato de ter sido o primeiro autor do
qual se preservaram obras dramáticas, mas por sua produção ter
determinado um ponto de inflexão no panorama estético grego, pro-
fissionalizando um gênero e uma performance radicados no interior
da dinâmica cívica de Atenas, trazendo a cidade para o centro do
campo literário e cultural do mundo de língua helênica. Evidente
que essa proeminência não se tratava apenas de um dado estético,
a pólis da Ática ter assumido a vanguarda da campanha vitoriosa
das Guerras Médicas, garantiu-lhe, junto com a pródiga economia,
um status de liderança simbólica apenas rivalizado com Esparta.
Atenas se converte num modelo a ser reproduzido, e, nesse parti-
cular, o teatro, tanto como edifício, quanto como expressão cultural,
torna-se um signo de civilidade e de distinção, sendo, não por acaso,
uma figura recorrente na paisagem urbana pela extensão do Medi-
terrâneo a partir do século V a. C.

Essa conjuntura é bem substanciada n’Os persas, que foi


levada à cena na primavera de 472 a. C. no festival das Grandes
Dionísias, como celebração do triunfo final contra poderio de Xerxes
em Salamina, contando com, nada menos que, Péricles como seu
corego; o que, por si só, justifica uma leitura da peça enquanto um
grande elogio da democracia ateniense. É oportuno verificar que, já
em sua recepção antiga, o drama esquiliano era reconhecido por um
duplo caráter, de um lado, pela exortação ao ímpeto marcial e cívico,
na medida que Aristófanes colocou na boca de seu Ésquilo: “com
isso, eu ensinei a desejarmos/ vencer os nossos oponentes sempre,
com uma obra de excelência”22 (Aristófanes, Rãs, vv. 1026-1027); de
outro, a sublimidade de sua elocução e de sua performance, que foi
objeto de troça e de louvor em um dos agónes d’As rãs:

22 Tradução de Tadeu Bruno da Costa Duarte (2014).

SUMÁRIO 68
Eurípides: E poetar que nem você
Enormes Licabetos e Parnasos é
lhes mostrar o valoroso?
Você nem fala que nem gente!
Ésquilo: O quê?! Seu imbecil! É necessário
De ideias e sentenças grandiosas parir uma expressão
que as puxe!
Por outro lado, cabe aos semideuses usar palavras
mais altivas,
Pois mesmo as roupas que costumam ter são mais
distintas do que as nossas.
E, mesmo eu tendo feito isso tão bem, você acabou com tudo!
(Aristófanes, Rãs, vv. 1058-1062).

Conforme se pode depreender da arenga entre os finados


poetas, a audiência ateniense posterior a Ésquilo deve ter reconhe-
cido, em seu estilo, um pendor para um rebuscamento lexical e para
uma grandiloquência em sua dicção, representados pela recorrência
de longos substantivos compostos e pelo registro elevado empre-
gado por suas personagens, que, no mais das vezes, são aristocratas
ou mantém alguma relação com o divino. A opção por um estilo buri-
lado, afastado, portanto, de uma representação mais corrente, como
a verificada em Eurípides, indica uma afinidade com o discurso épico
legado pela tradição homérica e cíclica.

Esse diálogo ativo com produções anteriores é ainda mais


vívido quando se fala d’Os persas, pois seu autor não teria sido o pri-
meiro a levar ao palco um dos episódios das Guerras Pérsicas. Frínico
havia montado uma Tomada de Mileto (Μιλήτου ἄλωσις, Milḗtou álōsis),
que, movendo o público a um frenesi emocional pelas cenas do evento
histórico, constituiu um fracasso retumbante, levando-o a ser proces-
sado e multado por romper com o decoro do ambiente ritual dionisíaco
(vd. Hdt., Hist., 6.21). Inclusive, a hipótese ao drama (Arg., A., Pers.) de
Ésquilo chega a informar que certo erudito o considerou uma imitação
de outra peça atribuída a Frínico. Não se torna relevante, aqui, verificar
a facticidade desses acontecimentos, pois, de uma maneira ou de outra,
essas informações apontam para o papel da interação com estratos
mais vetustos para a composição da poética esquiliana.

SUMÁRIO 69
Um aspecto fundamental para compreender Os persas como
resultado de uma interrelação criativa entre referências de diferentes
proveniências, é reconhecer que essa se encontra num momento
de transição entre a idade Arcaica e as primícias da era Clássica,
em que a oralidade era o fundamento da comunicação literária.
A própria forma híbrida da tragédia, composta por variados metros,
dialetos e por uma intercalação de gêneros textuais (hinos, lamen-
tos, orações etc.), evidencia um amálgama de usos poéticos. A ori-
gem dessas tradições pode ser perscrutada não apenas nas fontes
gregas, podendo-se aventar um substrato ainda mais antigo, com-
partilhado com poéticas que mantêm laços linguísticos ou culturais
com o idioma helênico.

Nos últimos decênios, uma modalidade de inquirição que


tem movido pesquisadores é o exame de traços comuns das obras
literárias de matriz indo-europeia e aquilo que verifica nos autores
gregos23. Tendo em vista as limitações inerentes ao tipo textual aqui
adotado, o presente artigo pretende elaborar um exercício de com-
paração entre os expedientes formulares mais emblemáticos reco-
nhecidos pelos especialistas na tradição indo-europeia comum e
n’Os persas de Ésquilo, verificando de que modo o dramaturgo ate-
niense lida com esses precedentes.

Há muito, a ideia de uma origem comum de culturas e de


espécies motiva o imaginário popular, desde o relato bíblico da torre
de Babel até a teoria da evolução de Darwin, o ser humano veri-
fica, na monogênese dos fenômenos, um discurso instigante, capaz
de mobilizar incursões de ordem historiográfica, filosófica, política
entre outras. Tal imperativo por buscar as raízes mais primevas dos
artefatos culturais ganhou incremento por meio do contato e conse-
quente comparação de culturas distintas da Europa Ocidental, facul-
tados pelo processo de mundialização econômica instaurada pelo
capitalismo comercial das grandes navegações e pelo movimento

23 Exemplos dessa vertente investigativa são os trabalhos de Gripp (2015), Masseti (2019) e Meusel (2020).

SUMÁRIO 70
de colonização das Américas, da África e da Ásia. William Jones, juiz
da Coroa Britânica lotado na Suprema Corte de Calcutá (Índia), em
seu terceiro discurso anual diante da Sociedade Asiática, imbuído
dessa inclinação, por assim dizer, arqueológica, afirmará:
A língua sânscrita, seja qual for sua antiguidade, é de uma
estrutura maravilhosa; mais perfeita que a grega, mais
copiosa que a latina, e mais primorosamente refinada do
que ambas, ainda comportando com ambas uma afini-
dade mais forte, tanto nas raízes dos verbos quanto nas
formas da gramática, do que poderia ter sido produzida
por acidente; tão forte, de fato, que nenhum filólogo
poderia examiná-las todas as três, sem acreditar que
elas surgiram de alguma fonte comum24 (JONES, 1967
[1786], p. 15, sem grifos no original).

A “descoberta” das semelhanças do sânscrito com outras lín-


guas de matriz afim do grego e do latim instaura, a partir do século
XIX, uma profusão de estudos que procuravam dar conta de um
horizonte mais amplo de comparação da família linguística sugerida
e da reconstrução dos elementos comuns dessa língua primordial
(Ursprache), que foi denominada, por convenção, indo-europeu. Num
primeiro momento, as pesquisas voltaram-se, especificamente, para
a descrição lexical e morfológica, mas com o tempo, começaram a
explorar o comparativismo cultural por meio do confronto entre as
narrativas mitológicas, religiosas e históricas de diferentes proveni-
ências e temporalidades.

Dentro deste projeto, um aspecto que começou a ser


demonstrado foram as convergências identificadas entre os procedi-
mentos estilísticos e conceituais entre as obras poéticas de variadas
tradições indo-europeias, como o fez, de modo pioneiro, Adalbert

24 Tradução livre do original: The Sanskrit language, whatever be its antiquity, is of a wonderful structure;
more perfect than the Greek, more copious than the Latin, and more exquisitely refined than either, yet
bearing to both of them a stronger affinity, both in the roots of verbs and in the forms of grammar, than
could possibly have been produced by accident; so strong indeed, that no philologer could examine
them all three, without believing them to have sprung from some common source.

SUMÁRIO 71
Kuhn, em 1853, ao aproximar a expressão védica ákṣiti śrávaḥ (“gló-
ria imperecível”, RV 1.40.4, 8.103.5) e a homérica κλέος ἄφθιτον (kléos
áphthiton, “glória imorredoura”, Hom., Il., 9.413), que, mais tarde, come-
çou a ser considerada uma fórmula poética compartilhada, advinda
de um substrato anterior *kléwos ṇdʰgʷʰitom. Esse tipo de descoberta
pelos etimologistas deu origem à análise da viabilidade formal de
uma poética indo-europeia (indogermanische Poetik) e do exame de
uma gramática poética comum, na qual Antoine Meillet reconheceu
“um elemento da civilização indo-europeia” (MEILLET, 1923, p. 03).

As incursões analíticas acerca da poética indo-europeia,


destaca Hajnal (2008), são bastante heterogêneas, versando desde
elementos segmentais (dicção, vocabulário, fórmulas) até questões
genéricas e de conteúdo, o que demanda a adoção de categorias
que permitam ordenar o exame dos aspectos em discussão. Para
fins de organização, nossa reflexão focará nas estruturas formulares
presentes n’Os persas.

Consoante o panorama apresentado, na esteira da gramática


comparada, um dos primeiros temas adentrados pelos investigado-
res da poética indo-europeia foi a determinação de sua estrutura lin-
guística. Nesse particular, chamava a atenção a produtividade com
que os textos poéticos fixavam certos sintagmas em determinadas
posições no texto, desenvolvendo um padrão reconhecível de cons-
trução, as fórmulas. Essa recorrência tinha relação direta com caráter
oral do relato e contribuía para sua memorização e para seu enca-
deamento narrativo. Exemplos destes tipos formulares são os epíte-
tos compostos assíduos no dialeto homérico, que contam com um
registro em outros ramos poéticos e manifestam resquícios de um
repertório pregresso:
Outro e ainda mais significativo testemunho da antigui-
dade da tradição [...] é dado por aqueles arcaísmos, pre-
servados em estado fóssil, que refletem condições de
língua ou cultura que foram eliminadas [...]. Este é o caso
da fórmula devāñ janma ( jánmanā) “a estirpe dos deuses”.

SUMÁRIO 72
[...]. O tipo de compostos com o primeiro membro verbal
em -ti também deve ser considerado uma relíquia pro-
toindo-europeia, por exemplo, dā́tivāra – “que dá tesou-
ros”. [...]. Este tipo de composição deve ser mais antigo do
que uma inovação indo-iraniana, que também se torna
pouco produtiva após o Ṛgveda. Que essa construção
remonta à fase das relações indo-europeias é provado
pelo tipo grego τερψίμβροτος25 [“que aos mortais traz o
deleite”] (DURANTE, 1976, p. 38).

De acordo com o juízo de Marcello Durante (1976), o emprego


de epítetos compostos, em especial, daqueles formados com radical
verbal, fazem parte de uma fase prístina do desenvolvimento da poé-
tica indo-europeia, tornando-se cada vez menos presentes em fases
posteriores dentro de cada ramo e sendo bastante raras naquelas
produções que emergiram já numa fase em que a oralidade havia
sido sobrepujada pela escritura. Ao que parece demonstrar o exame
quantitativo do artifício nos textos, esse tinha a priori relação direta
com a celebração do sagrado, ressaltando os dons de divindades
ou de entes mitológicos, demarcando sua distinção com os demais
seres. Conforme se pode constatar nos exemplos seguintes (sem
grifos no original):
agníṃ dūtáṃ vr̥ṇīmahe hótāraṃ viśvávedasam, “Nós
escolhemos a Agni, mensageiro, ofertante onisciente26”
(Ṛgveda, 1.12.1).
havyavā́ḍ juhúvāsiyaḥ, “[Agni] portador das oferendas,
provido de língua na boca” (Ṛgveda, 1.12.6).

25 Tradução livre do original: Un’altra e ancor più significativa testimonianza dell’antichità della tra-
dizione [...] è data da quegli arcaismi, conservati allo stato fossile, che riflettono condizioni di lin-
gua o di cultura che dovettero essere eliminate [...]. È questo il caso della formula devāñ janma
(jánmanā) ‘la stirpe degli dei’ ”. [...] Si deve considerare parimenti un relitto protoario il tipo di
composti con primo membro verbale in -ti, ad esempio dā́tivāra- ‘che dà tesori’. [...] . Questo tipo
composizionale deve essere più antico di un’innovazione indoiranica, che pur essa diventa impro-
duttiva dopo il Rigveda. Che essa risalga alla fase dei rapporti indoeuropei, è provato dal tipo greco
τερψίμβροτος.
26 As traduções dos excertos védicos foram elaboradas a partir da versão espanhola de Francisco
Villar Liébana (2002).

SUMÁRIO 73
devám amīvacā́tanam, “[Agni] divindade que afasta os
espíritos atormentadores”
(Ṛgveda, 1.12.7).

Iuppiter omnipotens, “Júpiter onipotente27” (Virgílio,


Eneida, 2.689).
pius arquitenens, “piedoso arcitenente [Apolo]” (Virgílio,
Eneida, 3.75).
legiferae Cereri, “legífera Ceres” (Virgílio, Eneida, 4.58).
tergeminamque Hecatem, “e trigêmina Hécate” (Virgílio,
Eneida, 4.511).

αἰγιόχοιο Διὸς τέκος , “filha de Zeus detentor da égide28”


(Homero, Ilíada, 1.202).
Ζεὺς ὑψιβρεμέτης, “Zeus que troveja nas alturas”
(Homero, Ilíada, 1.354).
καὶ μετ’ Ἀχιλλῆα ῥηξήνορα θυμολέοντα, “além de Aqui-
les, desbaratador de varões, com ânimo de leão”
(Homero, Ilíada, 7.228).
Ἀχιλλῆα πτολίπορθον, “Aquiles, saqueador de cidades”
(Homero, Ilíada, 8.372).

A verificação desses excertos reitera a posição do linguista ita-


liano, tais expressões costumam acompanhar nomes de deuses (como
no Ṛgveda e na Eneida) ou de indivíduos dotados de caracteres extraor-
dinários (nos épicos homéricos), reforçando atributos que lhes colocam
numa ordem existencial superior e numa relação ativa com o mundo
e a humanidade. Ainda seguindo essa proposta, observa-se a tendên-
cia de diminuição no emprego dos epítetos compostos: na Eneida, por
exemplo, que compartilha com a Ilíada o mesmo gênero, sua quanti-
dade é exígua, dando preferência para as construções perifrásticas, evi-
denciando indícios que esse tipo de composição lexical devesse causar
estranheza na audiência, mesmo tratando-se de um registro poético; o
que também ocorre no contexto indiano. Durante chega a supor que
seu uso fosse uma marca de arcaísmo intencional, principalmente,

27 As traduções da Eneida são livres e do próprio autor, feitas a partir do original.


28 As traduções dos épicos homéricos citados no decorrer do artigo são de Frederico Lourenço (2013, 2011).

SUMÁRIO 74
quando envolvia um tema verbal e que “a natureza dessa formação era
mal compreendida já na época védica” (DURANTE, 1976, p. 38).

Outro profuso recurso reconhecível na prática literária indo-eu-


ropeia são as enumerações poéticas, tais listas ou catálogos, conforme
propõe Ana Galjanic (2007, p. 6-12) podem ser, estruturalmente, clas-
sificadas em ordem crescente de complexidade: a) fórmulas bipartite,
como τε ἔται τε/ τύμβῳ τε στήλῃ, “honras fúnebres/com sepultura e
estela” (Homero, Ilíada, 16.457, sem grifos no original), b) listas curtas
com três ou mais constituintes, ex.: ἐν δὲ κύπειρον/ πυροί τε ζειαί τε ἰδ’
εὐρυφυὲς κρῖ λευκόν, “onde há abundância de lótus,/junça, espelta e
trigo e da branca cevada de espiga larga” (Homero, Odisseia, 16.603-
604, sem grifos no original) e c) catálogos longos com múltiplas entra-
das, emblemáticos exemplos são o catálogo das naus na Ilíada (2.494-
785), os elencos do poderio persa em Heródoto (3.89-ss, 7.59-ss) e as
extensas listas de linhagens que compõem boa parte da Teogonia de
Hesíodo. Essa modalidade de enumeração, geralmente, é introduzida
e articulada por expressões e partículas formulares, podendo constituir
o escopo do relato, como acontece em Hesíodo, ou podem adentrar,
de modo digressivo, na narrativa para introduzir informações adicionais:

SUMÁRIO 75
Νέστωρ αὖ τότ’ ἐφῖζε Γερήνιος, Aqui se sentou Nestor de Gerênia, guardião
οὖρος Ἀχαιῶν, dos Aqueus,
σκῆπτρον ἔχων. περὶ δ’ υἷες de cetro na mão; em seu redor reuniam-se
ἀολλέες ἠγερέθοντο os filhos,
ἐκ θαλάμων ἐλθόντες, Ἐχέφρων vindos de seus quartos: Equefronte, Estrácio,
τε Στρατίος τε
Περσεύς τ› Ἄρητός τε καὶ Perseu e Areto, assim como o divino Trasimedes.
ἀντίθεος Θρασυμήδης.
415 τοῖσι δ› ἔπειθ› ἕκτος 415 Em sexto lugar veio depois o herói Pisístrato,
Πεισίστρατος ἤλυθεν ἥρως,
πὰρ δ› ἄρα Τηλέμαχον junto ao qual sentaram o divino Telémaco.
θεοείκελον εἷσαν ἄγοντες.
τοῖσι δὲ μύθων ἦρχε Γερήνιος Para eles começou a f alar Nestor de Gerênia,
ἱππότα Νέστωρ· o cavaleiro29.
(HOMERO, Odisseia, 3.411-417, sem grifos no original). (HOMERO, Odisseia, 3.411-417, sem grifos no original).

75 ταῦτ’ ἄρα Μοῦσαι ἄειδον 75 isto as Musas cantavam, tendo o palácio olímpio,
Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσαι,
ἐννέα θυγατέρες μεγάλου Διὸς nove filhas nascidas do grande Zeus:
ἐκγεγαυῖαι,
Κλειώ τ’ Εὐτέρπη τε Θάλειά τε Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Μελπομένη τε
Τερψιχόρη τ’ Ἐρατώ τε Πολύμνιά Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
τ’ Οὐρανίη τε
Καλλιόπη θ’· ἡ δὲ προφερεστάτη e Belavoz, que dentre todas vem à frente.
ἐστὶν ἁπασέων.
(HESÍODO, Teogonia, vv. 75-79, sem grifos no original) (HESÍODO, Teogonia, vv. 75-79, sem grifos no original)

29 As citações de Hesíodo são feitas a partir da tradução de Jaa Torrano (2001).

SUMÁRIO 76
Ao comparar-se as passagens, é possível constatar a estru-
tura formular que configura os catálogos poéticos: uso de partícu-
las copulativas (τε, te; καί, kaí), paralelismo dos membros e, quando
pertinente, a integração de epítetos modificadores. A enumeração
homérica, nesse momento, é elaborada como aposto à figura de Nes-
tor, os limites da listagem são determinados, inclusive, pela repetição
de seu nome, e ocupa uma função ilustrativa de elencar o número e
a nomeação de seus filhos presentes na cena, ressaltando a abun-
dante prosperidade de sua prole e de sua condição. Entretanto, essa
informação poderia ser omitida sem causar uma lacuna determinante
no contínuo da narração, ao passo que, em Hesíodo, a citação lite-
ral das Musas ocupa um lugar central no relato teogônico, uma vez
sendo elas padroeiras e inspiradoras do canto do poeta. Essa forma
de catálogo que estabelece vínculos pronunciados com a diegese é
identificada num excerto logo no início do Bhagavad Gītā (1.3-6):

1.3 paśyaitāṃ pāṇḍuputrāṇām ācārya mahatīṃ 3. Vê, mestre,/este grandioso exército/


camūm/vyūḍhāṃ drupadaputreṇa tava śiṣyeṇa dos filhos de Paṇḍu,/ organizado pelo teu inteligente
dhīmatā discípulo,/ o filho de Drupada.

1.4 atra śūrā maheṣvāsā bhīmārjunasamā yudhi 4. Aqui estão guerreiros/e grandes arqueiros,/semelhantes
yuyudhāno virāṭaśca drupadaś ca mahārathaḥ na batalha a Bhīma e Arjuna:/Yuyudhana, Virāṭa, Drupada,/o
grande condutor de carros de batalha,
1.5 dhṛṣṭaketuś cekitānaḥ kāśirājaś ca vīryavān 5. Dhṛṣṭaketu, Chekitāna/e o poderoso rei de Kāśi
purujit kuntibhojaś ca śaibyaś ca narapuṅgavaḥ (Varanasi),/Purujit e Kuntibhoja e o rei dos Shibis,/um
touro entre os homens,

1.6 yudhāmanyuś ca vikrānta uttamaujāś ca 6. E o corajoso Yudhamanyu,/e o poderoso


vīryavān/saubhadro draupadeyāś ca sarva eva Uttamaujas, o filho de Subhadra/e os filhos de
Draupadi, todos de fato/grandes guerreiros em
mahārathāḥ
carros de batalha30.
(Bhagavad Gita, 1.3-6, sem grifos no original). (Bhagavad Gita, 1.3-6, sem grifos no original).

30 Tradução de Carlos Eduardo G. Barbosa (2019).

SUMÁRIO 77
Em um dos quadros mais emotivos da literatura sânscrita, o
príncipe Arjuna, um dos cinco Pândavas, desolado com a iminência
da Guerra de Kurukṣetra, comtempla os preparativos do campo de
batalha e verifica que entre seus adversários, encontram-se paren-
tes, amigos diletos e mestres dignos de sua reverência. Consciente
dessa situação, o nobre hesita, larga seu arco e começa a refletir se é
digno ou não entrar em contenda contra pessoas pelas quais nutria
tamanha afeição. Diante do dilema, Arjuna empreende um longo
debate com seu cocheiro e guia Krishna, atual reencarnação do deus
Vishnu, sobre a plausibilidade do embate, em que também se tratam
de questões éticas, filosóficas e morais.

O narrador opera uma homologia que aproxima a grandiosi-


dade dos exércitos à extensão do dilema interno do Pândava, para
a qual contribui a elaboração do catálogo das tropas: os persona-
gens são caracterizados por epítetos que acentuam o seu furor guer-
reiro (maha, “grande”, vīryavān “viril, poderoso”, vikrānta “corajoso”);
sua filiação, por vezes, comum (drupadaputreṇa “filho de Drupada”,
pāṇḍuputrāṇām “os filhos de Pandu, os Pândavas”, draupadeyāś “os
filhos de Draupadi”); suas funções (ācārya “mestre”, śiṣyeṇa “discí-
pulo”, rathaḥ “auriga”, ṣvāsā “arqueiro”, rāja “rei”) e sua proveniência
(Kāśi, atual Vārāṇasī)). À similitude das enumerações poéticas mais
extensas helênicas, sua coesão se dá por meio do paralelismo dos
membros e do emprego da partícula copulativa ca. Encontrando-se
num momento posterior aos Vedas, já não se observa a recorrência
de epítetos com raízes verbais, dando-se preferência à composição
com temas nominais e adjetivos.

Uma descrição afim dessa paisagem bélica descortina o


relato d’Os persas. Quiçá tendo em vista o malogro de Frínico ao
situar a ação dramática na representação dos eventos em trânsito
e em in situ do campo marcial, o tragediógrafo eleusino desenvolve
uma virada estratégica e inovadora: falar do acontecimento como
fato consumado e pelo prisma do inimigo vencido. Para tanto, des-
loca o foco narrativo para o castelo real sediado na capital persa,

SUMÁRIO 78
onde se encontra, acompanhada de venerandos guardiães, a rainha-
-mãe Atossa apreensiva com a falta de novas do filho, Xerxes, que
partira em expedição militar contra a Hélade.

Conhecido pela sofisticação de suas montagens, Ésquilo


deve ter-se aproveitado do exotismo que o ambiente oriental ins-
tigava entre os gregos para demarcar uma clara oposição entre o
caráter grego e asiático. Apesar do mundo de expressão não-helê-
nica ocupar um espaço cativo no imaginário ateniense, a notar pelas
representações em vasos, a fantasia cênica proporcionava a possi-
bilidade única, de contemplar de frente, desde o espaço do Teatro
de Dioniso, ainda que enquanto ficção, uma terra bárbara separada
por milhares de quilômetros, o que deve ter causado notável impres-
são aos expectadores.

Ésquilo forja, deste modo, mediado pelo seu olhar de grego,


um milieu asiático e serve-se de um expediente muito caro ao drama
para dar organicidade formal desse na narrativa, o discurso relatado.
A peça de Ésquilo, por meio do cruzamento de pontos de vistas de
personagens que se movimentam entre diferentes espaços e tem-
poralidades sugeridos pelo enredo, é capaz de mobilizar uma vasta
amplitude de fatos dentro da estrutura contingente da tragédia, que
pretende, enquanto narrativa, performar apenas um dia na vida de
um protagonista, em que, geralmente, sua sorte volta-se da felici-
dade para o infortúnio por um desvio passado cujo efeito final ocorre
no presente das ações (vd. Aris., Poet., 1451a). Nesse ínterim, a narra-
ção dos preparativos das forças lideradas pelo filho do rei Dario sob
a forma de um longo catálogo, no párodo, é um irônico prelúdio de
seu retorno infausto:

SUMÁRIO 79
οἷος Ἀμίστρης ἠδ’ Ἀρταφρένης Assim Anistres e Artafernes
καὶ Μεγαβάτης ἠδ’ Ἀστάσπης, e Megabates e Astaspes
ταγοὶ Περσῶν, βασιλῆς βασιλέως chefes dos persas, do grande rei
25 ὕποχοι μεγάλου, σοῦνται, στρατιᾶς vice-reis, avançam, vigias
πολλῆς ἔφοροι, τοξοδάμαντές de vasto exército, hábeis arqueiros 25
τ’ ἠδ’ ἱπποβάται, φοβεροὶ μὲν ἰδεῖν, e cavaleiros, terríveis de ver,
δεινοὶ δὲ μάχην temíveis em combate,
ψυχῆς εὐτλήμονι δόξῃ· na nobre glória da vida.
Ἀρτεμβάρης θ’ ἱππιοχάρμης Artembares, árdego cavaleiro,
30 καὶ Μασίστρης, ὅ τε τοξοδάμας e Masistres e o hábil arqueiro 30
ἐσθλὸς Ἰμαῖος Φαρανδάκης θ’, bravo Imaios e Farandaces
ἵππων τ’ ἐλατὴρ Σοσθάνης. e o condutor de cavalo Sostanes.
ἄλλους δ’ ὁ μέγας καὶ πολυθρέμμων Outros o grande e multinutriente
Νεῖλος ἔπεμψεν· Σουσισκάνης, Nilo enviou: Susiscanes,
35 Πηγασταγὼν Αἰγυπτογενής, chefe de fontes nascido de Egisto, 35
ὅ τε τῆς ἱερᾶς Μέμφιδος ἄρχων e o governador da sagrada Mênfis
μέγας Ἀρσάμης, τάς τ’ ὠγυγίους grande Ársames, e da prístina
Θήβας ἐφέπων Ἀριόμαρδος, Tebas mandatário Ariomardos,
καὶ ἑλειοβάται ναῶν ἐρέται e os pantaneiros remadores de navios,
40 δεινοὶ πλῆθός τ’ ἀνάριθμοι. terríveis, e em número incontáveis, 40
ἁβροδιαίτων δ’ ἕπεται Λυδῶν e segue a turba dos lídios luxuriosos
ὄχλος, οἵτ’ ἐπίπαν ἠπειρογενὲς junto: eles contêm toda nação
κατέχουσιν ἔθνος, τοὺς Μητρογαθὴς nativa do continente: Metragates
Ἀρκτεύς τ’ ἀγαθός, βασιλῆς δίοποι, e o bravo Arcteus, reis vígeis,
45 χαἰ πολύχρυσοι Σάρδεις ἐπόχους e a multiáurea Sardes os enviaram 45
πολλοῖς ἅρμασιν ἐξορμῶσιν, montados em muitos carros
δίρρυμά τε καὶ τρίρρυμα τέλη, de duas e de três rédeas,
φοβερὰν ὄψιν προσιδέσθαι. visão terrível de ver.
στεῦται δ’ ἱεροῦ Τμώλου πελάτης Dizem os vizinhos do sagrado Tmolo
50 ζυγὸν ἀμφιβαλεῖν δούλιον Ἑλλάδι, que lançarão jugo servil sobre a Grécia: 50
Μάρδων, Θάρυβις, λόγχης ἄκμονες, Márdon, Taríbis, bigorna de dardo,
καὶ ἀκοντισταὶ Μυσοί· Βαβυλὼν δ’ e lanceiros mísios. E Babilônia
ἡ πολύχρυσος πάμμεικτον ὄχλον a multiáurea envia a diversa
πέμπει σύρδην, ναῶν τ’ ἐπόχους turba copiosa, posta em navios,
55 καὶ τοξουλκῷ λήματι πιστούς· fiéis à vontade vulnerante do arco. 55
τὸ μαχαιροφόρον τ’ ἔθνος ἐκ πάσης A nação cimitarreira de toda
Ἀσίας ἕπεται δειναῖς βασιλέως ὑπὸ πομπαῖς. a Ásia segue sob terríveis séquitos do rei.31
(ÉSQUILO, Os persas, vv. 21-58, sem grifos no original) (ÉSQUILO, Os persas, vv. 21-58, sem grifos no original)

31 As citações de Ésquilo são feitas a partir da tradução de Jaa Torrano (2009).

SUMÁRIO 80
Por meio de um burilado mosaico de expedientes poéticos,
Ésquilo urde uma modelar peça que coaduna variados usos tradi-
cionais formulares numa construção que prima pelo colorido. Isso
é notável pela rede coesiva adotada pelo autor: aquilo que se arti-
culava, convencionalmente, apenas nomes ou sintagmas nominais
com uma ou duas partículas copulativas (τε, te; καί, kaí), dá-se, nesse
catálogo, por diferentes sortes de pronomes (οἵτε, hoíte; οἷος, hoîos;
ἄλλους, állous), por numerosas formas aditivas (δέ, dé; ἠδέ, ēdé; τε,
te; τε καί, te kaí; τε ἠδέ te ēdé; καί, kaí) ou pela simples justaposição
nominal. Tal variação estrutural contribui, ainda, para a distinção que
o narrador pretende apontar para os caracteres não-bárbaros.

É peculiar observar como o narrador n’Os persas escamo-


teia a presença direta do tipo helênico, deixando-a circunscrita a
momentos pontuais de clímax dramático. Essa moderação quantita-
tiva se opõe ao excesso com o qual são referidos os bárbaros. Desde
o princípio do relato do coro, as sedes pérsicas são caracterizadas
como “opulentas e multiáureas” (ἀφνεῶν καὶ πολυχρύσων, aphneō̂n
kaì polykhrýsōn, vv. 3) e seu senhor apresentado com o correspon-
dente, em grego, da pomposa fórmula para a casa imperial persa32
xšāyaθiya xšāyaθiyānām, βασιλῆς βασιλέως, basilē̂s basiléōs (vv. 24),
significando “rei dos reis”. Xerxes e seu exército são caracterizados,
no decorrer da trama, com atributivos que enfatizam uma confiança
e uma (auto)imagem desmedidas antes da batalha: “multiviril”
(πολυάνδρου, polyándrou, vv. 73), “igual a deus” (ἰσόθεος, isótheos,
vv. 80), “Deus” (θεοῦ, theoû, vv. 157). O autor demarca um duplo
caráter de exceção dos asiáticos, de um lado, um furor beligerante
pronunciado e uma soberba por sua abundância de recursos.

32 Esse protocolo de soberania é verificado em muitas inscrições monumentais aquemênidas, como


no seguinte passo: adam Dārayavauš xšāyaθiya vazạrka xšāyaθiya xšāyaθiyānām xšāyaθiya
dahạyūnām vispazanānām, “Eu sou Dario, o grande rei, rei dos reis, rei de todas as gentes”
(DNa 8-11, SKJÆRVØ, 2002, p. 44, sem grifos no original).

SUMÁRIO 81
Por intermédio da enumeração das tropas mobilizadas por
Xerxes, Ésquilo oferece o panorama continental dos territórios e dos
povos e submetidos ao jugo persa: são egípcios, lídios, mísios, babi-
lônios, enfim, “toda a Ásia” (πάσης Ἀσίας, pásēs Asías, vv. 56-57), que
não à toa, é alcunhada de “nação cimitarreira” (τὸ μαχαιροφόρον τ’
ἔθνος, tò makairophóron t’éthnos, vv. 56). Essa verve impetuosa é atri-
buída aos generais e ao efetivo que reforçavam as tropas aliadas per-
sas, ora com modificadores simples: “vasto” (πολλῆς, pollē̂s, vv. 26),
“bravo” (ἐσθλὸς, esthlòs, vv. 31), incontáveis (ἀνάριθμοι, anárithmoi, vv.
40), “temíveis” (δεινοὶ, deinoì, vv. 40); ora com epítetos compostos:
“hábeis arqueiros” (τοξοδάμαντές, toxodámantés, vv. 25) “árdego cava-
leiro” (ἱππιοχάρμης, hippiocharmēs, vv. 29). Ao lado dessa visão terri-
ficante, as terras e os povos asiáticos são descritos em sua magnifi-
cência e antiguidade: “multinutriente” (πολυθρέμμων, polythrémmōn,
vv. 33), “sagrada” (ἱερᾶς, hierâs, vv. 36), “grande” (μέγας, mégas, vv.
33), “prístina” (ὠγυγίους, ōgygíous, vv. 37), “multiáurea (πολύχρυσοι,
polýkhrysoi, vv. 45 e vv. 53). Por meio da construção formular, o enun-
ciador coloca o poderio bárbaro num alto relevo para acentuar ainda
mais o peso de sua derrocada.

SUMÁRIO 82
Ἀρτεμβάρης δὲ μυρίας ἵππου βραβεὺς Artembares, guia de equestre miríade,
στύφλους παρ’ ἀκτὰς θείνεται Σιληνιῶν. colide com duros pontais de Silênias,
χὠ χιλίαρχος Δαδάκης πληγῇ δορὸς e o quiliarca Dadaces, por golpe de lança,
305 πήδημα κοῦφον ἐκ νεὼς ἀφήλατο· num salto ligeiro, pulou do navio. 305
Τενάγων τ’ ἄριστος Βακτρίων ἰθαιγενὴς Tenágon, campeão báctrio, nobre nato,
θαλασσόπληκτον νῆσον Αἴαντος πολεῖ. volteia a golpeada-pelo-mar ilha de Ájax.
Λίλαιος Ἀρσάμης τε κἀργήστης τρίτος, Lílaios, Arsames e, terceiro, Argestes,
οἵδ’ ἀμφὶ νῆσον τὴν πελειοθρέμμονα estes, ao redor da ilha nutriz de pombas,
310 νικώμενοι κύρισσον ἰσχυρὰν χθόνα· vencidos cabeceiam a vigorosa terra. 310
πηγαῖς τε Νείλου γειτονῶν Αἰγυπτίου Dentre os vizinhos de fontes do egípcio Nilo,
Ἀρκτεύς, Ἀδεύης, καὶ † φρεσεύης τρίτος Arcteus, Adeues e, terceiro, o escudado
Φαρνοῦχος, οἵδε ναὸς ἐκ μιᾶς πέσον. Farnucos, estes caíram do mesmo navio.
314 Χρυσεὺς Μάταλλος μυριόνταρχος θανών, Mátalos de Crisa, miriontarca, morto, 314
316 πυρσὴν ζαπληθῆ δάσκιον γενειάδα tingiu a farta umbrosa barba cor de fogo 316
317 ἔτεγγ’, ἀμείβων χρῶτα πορφυρᾷ βαφῇ. trocando a cor com o purpúreo banho. 317
318 καὶ Μᾶγος Ἄραβος, Ἀρτάβης τε Βάκτριος, O mago Árabos e o báctrio Artames, 318
315 ἵππου μελαίνης ἡγεμὼν τρισμυρίας, guia de três negras miríades equestres, 315
319 σκληρᾶς μέτοικος γῆς, ἐκεῖ κατέφθιτο. são residentes da terra cruel, lá pereceram. 319
320 Ἄμιστρις Ἀμφιστρεύς τε πολύπονον δόρυ Ámestris, Anfistreus, senhor de laboriosa 320
νωμῶν, ὅ τ’ ἐσθλὸς Ἀριόμαρδος Σάρδεσι lança, e o bravo Ariomardos portador
πένθος παρασχών, Σεισάμης θ’ ὁ Μύσιος, de luto a Sardes, e o mísio Seisames,
Θάρυβίς τε πεντήκοντα πεντάκις νεῶν Táribis, capitão de cinco vezes cinqüenta
ταγός, γένος Λυρναῖος, εὐειδὴς ἀνήρ, naves, nascido em Lerna, formoso varão,
325 κεῖται θανὼν δείλαιος οὐ μάλ’ εὐτυχῶς· jaz morto, mísero, não por boa sorte. 325
Συέννεσίς τε πρῶτος εἰς εὐψυχίαν, Siénisis, o primeiro por sua valentia,
Κιλίκων ἄπαρχος, εἷς ἀνὴρ πλεῖστον πόνον senhor dos cílices, varão que deu mais dor
ἐχθροῖς παρασχών, εὐκλεῶς ἀπώλετο. aos inimigos, com bela glória sucumbiu.
(ÉSQUILO, Os persas, vv. 302-328, sem grifos no original) (ÉSQUILO, Os persas, vv. 302-328,, sem grifos no original)

Dentro de uma reviravolta de ponto de vista, o relato opõe a grandiosi-


dade inicial do exército persa à sua mísera condição após o fracasso em Salamina
(“a ilha de Ájax”, νῆσον Αἴαντος, nē̂son Aíantos, vv. 307), apresentada sob forma
de um catálogo recategorizado: generais antes destacados pelos seus predica-
dos varonis (“campeão”, ἄριστος, áristos, v. 306; “bravo”, ἐσθλὸς, esthlós, v. 321) são

SUMÁRIO 83
agora destroçados pelas ondas e perecem deixando seus corpos
como presas das aves marinhas. De pouco lhes valem as armas
reforçadas (“escudado”, φρεσεύης, phreseúēs, vv. 312), as numerosas
tropas (“guia de três negras miríades equestres”, σκληρᾶς μέτοικος
γῆς, sklērâs métoikos gē̂s, vv. 319; “capitão de cinco vezes cinquenta
naves”, τε πεντήκοντα πεντάκις νεῶν ταγός, te pentḗkonta pentákis
neō̂n tagós, vv. 323), a beleza (“formoso”, εὐειδὴς, eueidḕs, vv. 324) ou
a distinta linhagem (“nobre nato”, ἰθαιγενὴς, ithaigenē̂s, vv. 306), tudo
no quadro é morte e desolação (“morto” θανών thanṓn, vv. 314 e 326;
“mísero” δείλαιος, deílaios, vv. 325; “sucumbiu” ἀπώλετο apṓleto, vv.
328). Quanto à estrutura, a unidade magnificente inicial demarcada
pelos epítetos compostos, pela variação das estratégias coesivas
e pelo jogo de correlação paralelística, é substituída por adjetivos
simples e por locuções que mimetizam a fragmentação do exército
asiático, focalizando no melancólico destino final de alguns eminen-
tes estrategos: “Mátalos de Crisa, miriontarca, morto, tingiu a farta
umbrosa barba cor de fogo trocando a cor com o purpúreo banho”
(vv. 314, 316, 317).

Essa transição de registro também é observada no trata-


mento dispensado ao comandante da ofensiva persa: Xerxes, repre-
sentado na passagem pelo Helesponto como um impetuoso símile
do deus da guerra (vv. 73-86), torna-se o “imprudente” (δυσφρόνως,
dyysphrónōs, vv. 552), “o tolo infeliz” (ἐμώρανεν τάλας, emṓranen tálas
v. 719) e suas hostes são classificadas de “soberbo e copioso exér-
cito” (μεγαλαύχων καὶ πολυάνδρων στρατιὰν, megalaúkhon kaì stratiàn,
vv. 533-534). Consolida-se, deste modo, a evidência de que preten-
são humana é um afã, sendo reduzida à desventura quando os deu-
ses não lhe são propícios, preceito que se expressa como máxima: “A
soberbia (ὕβρις, hýbris), ao florescer, produz a espiga da erronia (ἄτης,
átēs), cuja safra toda será de lágrimas” (vv. 821-822).

O exame dos fenômenos destacados demonstra a perma-


nência das estruturas formulares, desde as mais simples até as
mais complexas, como parte de um repertório de imagens comuns

SUMÁRIO 84
às práticas poéticas da família indo-europeia. Entre essas, as que
gozam de mais distinção e antiguidade demonstram ser os epíte-
tos complexos com raízes verbais, conforme se verifica nos Vedas.
Restritos a priori à esfera da celebração ritual, adentram na literatura
grega por via homérica, consagrando seu uso na caracterização de
heróis, aparentemente, cumprindo ainda uma função mnemônica e
articulatória nos relatos poéticos, em especial, em uma fase em que
a oralidade se sobressaía como canal de comunicação cultural, con-
ferindo elevação ao seu registro.

N’Os persas, evidencia-se, por meio da constante recorrên-


cia a procedimentos formulares (epítetos, enumerações poéticas e
máximas), um diálogo com uma tradição, já em seus dias, vista como
arcaizante. Ésquilo desenvolve, a partir dessa referência, uma arti-
culação própria dos recursos enumerativos, integrando-os, por meio
de uma burilada estruturação, como parte indissociável no contínuo
narrativo. Tal jogo entre o arcaísmo e a novidade lhe possibilita colo-
car as fórmulas à serviço de um escopo argumentativo, que pretende
acentuar a distinção entre os caracteres grego (ateniense) e persa
(asiático/bárbaro) e veicular um discurso de exortação à piedade, à
moderação e à democracia, inaugurando, ao menos naquilo que se
encontra supérstite, um horizonte de criação poética de longa reper-
cussão na literatura antiga.

SUMÁRIO 85
5
Lucas Matheus Vasconcelos Santos

A POÉTICA
DA NARRATIVA
EM PROMETEU
ACORRENTADO,
DE ÉSQUILO
INTRODUÇÃO
Para Aristóteles, existem tentativas de distinguir e classificar
os gêneros literários, a resumir por gênero épico (narrativo), lírico e
dramático; desses três, dois me interessam neste trabalho, que são
o épico e o dramático, aqui tratados como, respectivamente, texto
narrativo e texto dramático.

Didaticamente, e pensando em nossa contemporaneidade,


texto narrativo é aquele constituído por parágrafos, com presença
de discurso direto ou não, presença de elementos como narrador,
enredo, tempo e espaço (DIANA, 2023), além de estabelecer uma
relação entre escritor (locutor) e leitor (interlocutor). Por outro lado, o
texto dramático é aquele constituído apenas com as falas das perso-
nagens, a contar com pequenos comandos (rubricas)33, presença de
diálogos e monólogos, além do predomínio do discurso em segunda
pessoa (DIANA, 2023), e estabelece uma relação entre atores ence-
nando (locutor) e espectadores (interlocutor).

Para Aristóteles, e agora pensando no contexto da Gré-


cia clássica, o gênero épico é composto pelas grandes epopeias,
enquanto o gênero dramático, pelas tragédias e comédias (ARISTÓ-
TELES, 1994). Meu foco aqui são as tragédias, mais especificamente
o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, representada no século V a.C..

As distinções entre um gênero e outro vão além de caracte-


rísticas meramente didáticas, se pensarmos que a
epopeia e a tragédia concordam somente em serem,
ambas, imitação de homens superiores, em verso; mas
difere a epopeia da tragédia, pelo seu metro único e a
forma narrativa. E também na extensão, porque a tragé-
dia procura, o mais que é possível, caber dentro de um

33 Pensando no contexto das tragédias e comédias gregas clássicas, as rubricas não existiam, eram
textos constituídos apenas de falas.

SUMÁRIO 87
período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopeia não
tem limite de tempo — e nisso diferem, ainda que a tra-
gédia, ao princípio, igualmente fosse ilimitada no tempo,
como os poemas épicos (ARISTÓTELES, 1994, p. 109).

E mais especificamente sobre a tragédia como sendo uma


imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de
certa extensão, em linguagem ornamentada e com as
várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas
partes [do drama], [imitação que se efetua] não por nar-
rativa, mas mediante atores, e que, suscitando o ‘terror e
a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções’”
(ARISTÓTELES, 1994, p. 110).

Esse pensamento de Aristóteles é o ponto de partida desta


pesquisa, uma vez que o filósofo gera uma tensão ao assumir que a
tragédia não é composta por narrativa, e de fato ele tem um ponto,
o texto dramático é contado a partir da ação, porém é possível
encontrar dentro dessa composição acional elementos da narrativa,
gerando uma convergência entre os dois gêneros, sendo assim, este
trabalho visa analisar algumas passagens da peça Prometeu Acor-
rentado a partir de categorias narratológicas de narrador, tempo e
espaço, para com isso demonstrar que o texto dramático embora
não possa ser considerado narrativo por sua própria essência, este
faz uso de elementos narratológicos para se constituir enquanto
gênero, até porque, em linhas muito gerais, “um texto teatral narra
eventos, no todo ou em parte imaginários, e que eles estão interco-
nectados” (SEGRE, 1981, p. 95), além disso, o “poder sedutor de con-
tar histórias era certamente uma noção familiar na tradição grega”
(EASTERLING, 2014, p. 233), então é possível pensar que mesmo
sendo o gênero da ação, pode ter sido influenciado pelos elementos
narrativos de textos anteriores.

Como suporte teórico para sustentar esta pesquisa, utiliza-


rei as contribuições dadas por Mieke Bal (1990), em seu livro “Teo-
ria da Narrativa: uma introdução a narratologia”, e duas coletâneas

SUMÁRIO 88
de artigos que falam sobre narrativa e teatro grego clássico, sendo
uma organizada por Irene de Jong (2012) e a outra por Ruth Scodel e
Douglas Cairns (2014).

Sobre a tragédia, utilizarei a tradução de Maria Aparecida de


Oliveira Silva, por ser a mais recente em português brasileiro, além
de ser “fluente e poética, com o uso preciso dos termos, [...] [nos
permitindo] refletir acerca não apenas da tradição do texto dramá-
tico, mas também acerca da barbárie e do poder abusivo dos nossos
dias” (ARAÚJO, 2018, p. 12).

A análise será dividida em dois momentos: primeiro discuti-


rei sobre a ideia de narrativa como performance, e depois analisarei
algumas passagens da peça a partir de três categorias da narratolo-
gia: narrador, tempo e espaço.

A AÇÃO E A NARRATIVA
Antes de adentrar em uma análise mais profunda da
peça, é necessário discutir um conceito muito importante no que
diz respeito ao estudo de narrativa e teatro, que é o da narra-
tiva como performance.

Em primeiro lugar, meu objetivo aqui não é assumir que o


texto dramático é narrativo, ou mesmo dizer que um gênero é melhor
que o outro; na verdade, minha pretensão é demonstrar que nem
sempre é possível categorizar algo tão multidimensional como um
gênero literário, uma vez que os dois tipos de texto aqui trabalha-
dos se influenciam e convergem em sua constituição, e, embora um
gênero possua características bem demarcadas que o denominam,
pode ter também aspectos “pertencentes” a outro gênero.

SUMÁRIO 89
A Tragédia, embora possua elementos característicos que são
comuns ao gênero dramático, também possui em sua composição
aspectos narrativos como, por exemplo, os longos discursos das
personagens que contam eventos que são de grande importância
para o enredo central da peça, mas que não acontecem aos olhos
do público (EASTERLING, 2014). As narrativas dessa natureza pre-
sentes em Prometeu Acorrentado contam com cerca de cinquenta
versos cada e são narrativas detalhadas sobre eventos anteriores
ou posteriores ao momento da peça e que são de suma importân-
cia para a apresentação do enredo principal, contudo são momen-
tos que não acontecem na ação e, sim, na narrativa, sendo os dois
melhores exemplos o discurso de Prometeu sobre como Zeus che-
gou ao poder, e a descrição sobre o percurso quase infindável de Io,
sendo que o primeiro representa um evento anterior ao momento da
peça, e o segundo, um evento posterior.

Isso tudo me faz refletir que “quaisquer que sejam as varia-


ções na técnica para alcançar a maior concentração e intensidade,
não há dúvida de que o próprio meio narrativo foi apreciado como
tendo grande poder teatral” (EASTERLING, 2014, p. 233). Esse efeito
de contar e ouvir é muito marcado no Prometeu Acorrentado, visto que
temos um personagem divino que está acorrentado a um rochedo
e embora seu corpo esteja nesse estado de prisão, sua mente tem
conhecimento não só de acontecimentos do passado, mas também
de eventos futuros; esses episódios fazem com que o personagem
tenha muita coisa para contar e durante a peça, ele recebe vários
visitantes que estão curiosos para ouvir,
Revela tudo e conta-nos tua história,
por qual acusação Zeus te aprisionou
e te ultraja com tanta desonra e amargura;
explica-nos, a não ser que te prejudiques com tua história.
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 193-196)

A estrutura da peça, em que temos um personagem que


conhece muitas histórias para contar e visitantes que querem ouvi-las,

SUMÁRIO 90
demonstra que esta é uma tragédia de narrativas, pois o ato de “con-
tar e ouvir se tornam a ação” (EASTERLING, 2014, p. 231), e pode-
mos ainda pensar no próprio contexto de apresentação da peça,
pois de um lado temos um ator representando um personagem que
conta uma história (narrador) e de outro, um público espectador que
as ouve (narratário).

A ESTRUTURA NARRATIVA
EM PROMETEU ACORRENTADO
A tragédia Prometeu Acorrentado, dentre os muitos temas
que apresenta, se destaca por fazer uma apresentação de vários
lugares e uma reflexão a respeito do tempo; é por isso que escolhi
as categorias tempo e espaço da narratologia para fazer a análise de
algumas passagens da peça, além disso, trago também uma breve
discussão sobre a figura do possível narrador na tragédia.

O(S) NARRADOR(ES)
Uma vez que se entende que esse ato de contar e ouvir pode
ser possível dentro da tragédia, e que essas narrativas vêm nas pró-
prias falas das personagens, é possível dizer que determinado per-
sonagem, quando está fazendo um discurso que se enquadra como
narrativo, pode ser considerado um narrador dentro da peça, afinal
enquanto “esses enunciados linguísticos constituírem um texto nar-
rativo, haverá um narrador, um sujeito que narra” (BAL, 1990, p. 127).

Pensando assim, diferentes tipos de personagens podem


assumir essa figura do narrador, e, às vezes, mais de um persona-
gem pode narrar em uma mesma peça, em momentos diferentes; o
coro, o servo, o próprio protagonista e especialmente o mensageiro

SUMÁRIO 91
podem assumir esse papel de narrador, e, em geral, esse personagem
narra algo que ele presenciou, ele é uma testemunha ocular do
evento (EASTERLING, 2014).

Em Prometeu Acorrentado, dois são os personagens que


possuem falas que podem se enquadrar como sendo discursos
narrativos: Prometeu, que é o protagonista, e Io, uma personagem
secundária que tem grande importância para o enredo. Io se apre-
senta para Prometeu em forma de vaca sendo perseguida por uma
mutuca e uma vez que se faz presente na prisão do protagonista
é perguntada pelo coro sobre sua história, e ela responde com
um discurso narrativo:
Não sei como eu preciso vos obedecer,
mas, com um relato breve claro, dizei tudo o que
desejais; Porém, ao contar, envergonho-me
da calamitosa doença enviada pelo deus, a perda
da minha forma, que se abateu sobre mim, miserável.
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 640-644)

Nesta mesma fala, a personagem continua contando sobre


como Zeus se apaixonou por ela e tentou aliviar seus desejos carnais,
algo que ela recusou e por isso acabou sendo expulsa de sua casa
e de sua pátria, além disso, ainda sofreu a ira de Hera enciumada e
por isso foi transformada em vaca e se viu perseguida pelo inseto
gigante. Ainda na fala, Io também conta como foi o seu percurso até
chegar diante de Prometeu.

A fala acima revela um caráter narrativo a partir do termo


“com um relato breve claro” e também pelo verbo “dizer” (que é
sinônimo de contar), e esse caráter narrativo se estabelece a par-
tir de uma dinâmica entre narrador e narratário, sendo que o coro
assume essa figura de interlocutor ao perguntar sobre a história de
Io e fica ali escutando essa história, gerando na ação o efeito de con-
tar e ouvir. Na verdade, nesta obra, o coro se apresenta como peça
importante, se olharmos sob o viés da narrativa, pois ele é o narra-
tário da ação, que pergunta, que está sempre curioso para ouvir as

SUMÁRIO 92
histórias que os personagens têm para contar, é ele quem impulsiona
a narrativa dentro da tragédia.

Agora sobre Prometeu, que é um protagonista diferente do


usual das tragédias gregas, pois ele é um ser divino e, para pensar-
mos nele como narrador da peça, é importante termos em mente
que “os seres divinos são narradores convenientemente versáteis.
Sendo deuses, eles podem ser impenetravelmente misteriosos e dis-
tantes, ou desconfortavelmente próximos” (EASTERLING, 2014, p.
230). Na peça, Prometeu é um personagem ambíguo e esférico, pois
embora seja divino, está muito próximo dos mortais, e sua situação
de confinamento no fim do mundo o coloca numa posição de vulne-
rabilidade; pensando nisso, ele é esse personagem que sabe tudo
o que vai sofrer e até sabe quando será libertado, mas depende da
vontade de Zeus para isso, ele sente ódio do chefe dos deuses, mas
está disposto a fazer amizade com ele quando necessário.

Pensando nele enquanto narrador, ele assume uma figura


que relata discursos de narrativa profética, pois está quase sempre
dizendo coisas que vão acontecer, como, por exemplo, quando Io
lhe pergunta sobre seu destino e o titã que roubou o fogo dos deu-
ses lhe responde assim:
Teu pedido anterior foi atendido por mim
com facilidade; primeiro queríeis saber
do tormento dela relatado por ela;
agora escutai o resto, quais sofrimentos
enviados por Hera é preciso que esta jovem suporte.
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 700-704)

Na fala acima, Prometeu narra o famoso caminho das lamen-


tações de Io, em que ela passará por vários lugares até chegar ao
Egito, onde terminará sua jornada e seu sofrimento. Neste momento,
a dinâmica entre narrador e narratário é um pouco diferente, pois
não só o coro se coloca na posição de ouvinte, como a própria Io, que

SUMÁRIO 93
escuta sobre tudo o que está prestes a passar, e isso pode ser notado
a partir do verbo “escutai”.

O TEMPO
Ao meu ver, falar de tempo no gênero dramático é uma tarefa
bastante complexa, pois temos, ao mesmo tempo, a instância perfor-
mática que é própria do teatro e as possibilidades narrativas dentro
dos discursos. Sendo assim, é possível entender que no presente
temos atores atuando a partir da forma mimética dentro do período
de um dia, segundo o próprio Aristóteles. Além disso, pensando nar-
rativamente, os eventos de um enredo “ocorrem durante um determi-
nado período de tempo e ocorrem em uma determinada ordem” (BAL,
1990, p. 45), e no que diz respeito à performance, falar do presente
é complicado pelo fato de que os personagens e refrões
são extraídos do mundo passado dos heróis épicos e
usam uma linguagem cheia de ecos de narrativas épicas
e líricas, muitas vezes evocando, a título de exemplo,
as histórias de outras pessoas ainda mais distantes
naquele passado distante (EASTERLING, 2014, p. 229).

Deixando um pouco de lado a questão performática e


olhando a categoria de tempo no Prometeu Acorrentado sob a ótica
narratológica, é possível enxergar de forma muito emblemática como
o tempo é um ponto importante na constituição da peça, a começar
pela figura do próprio protagonista e como esse é apresentado.

Prometeu é muitas vezes colocado como aquele que tem um


vasto conhecimento sobre o tempo, não só em relação ao futuro,
mas também em relação ao passado; ele sempre está, em vários
momentos da peça, colocado em situações em que precisa falar
sobre o que já aconteceu ou de acontecimentos que ainda estão por
vir, além disso, me parece que a própria estrutura da tragédia brinca
com essa questão do tempo, pois é sabido que as tragédias eram

SUMÁRIO 94
apresentadas em trilogias nos festivais, e Prometeu Acorrentado seria
a peça do meio e fica entre Prometeu Portador do Fogo (a primeira)
e Prometeu Libertado (a terceira) (KURY, 1993); e essas duas outras
peças das quais só nos restaram fragmentos são evocadas dentro do
Prometeu Acorrentado, a partir de discursos que podem ser conside-
rados narrativos e enfatizam essa questão temporal.

Trago primeiro o discurso do personagem que fala sobre pos-


síveis acontecimentos da primeira tragédia, em uma fala que enfa-
tiza o tempo passado, quando ele conta sobre a guerra dos deuses
olimpianos contra os Titãs, sobre como ele teve um papel funda-
mental na vitória de Zeus e o mais importante, sobre como quando
roubou o fogo divino:
Assim que se sentou no trono
paterno, logo distribuiu privilégios
distintos a diferentes divindades, organizou
seu poder, não teve consideração nenhuma
pelos miseráveis mortais, mas quis destruir
toda a sua raça, porque precisava criar uma nova.
E ninguém se contrapôs a isso, exceto eu.
Eu ousei. Libertei os mortais
para que não fossem destroçados e enviados ao Hades.
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 228-236)

Em seguida, trago o discurso do protagonista que faz uma


evocação de seu libertador (possível tema da terceira peça), em uma
fala que enfatiza o tempo futuro, quando por um pedido do Coro,
Prometeu conta sobre a descendência de Io e explica que será um
de seus descendentes, o seu libertador:
Desta semente nascerá um audacioso,
célebre por seu arco, que me libertará
destas penas.
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 871-873)

Os dois discursos demonstram que para falar de um tempo


passado ou um tempo futuro, o personagem se utiliza de discursos

SUMÁRIO 95
narrativos para fazer essa imersão, e tudo isso me leva a pensar que,
pensando apenas no contexto da tragédia Prometeu Acorrentado, a
segunda peça está localizada na ação, no presente, enquanto temos
um Prometeu preso e solitário sofrendo uma punição severa, já os
acontecimentos das outras duas peças estão localizados na narra-
tiva, sendo os da primeira, no passado, e os da terceira, no futuro.

O ESPAÇO
Tratar do espaço na tragédia é uma tarefa tão complexa
quanto falar de tempo, isso porque a natureza específica do teatro
“é a exposição em forma mimética (personagens que falam, sem a
intervenção do narrador)” (SEGRE, 1981, p. 95).

Sendo assim, é importante entender que em uma peça


os personagens e eventos também estão localizados em
três tipos de espaço imaginado: o cenário imediato à vista
do público; a área entendida como imediatamente fora do
palco (“nos bastidores”: o interior do palácio/ tenda/ bos-
que); e os outros lugares relevantes — locais estrangeiros
ou divinos (EASTERLING, 2014, p. 227).

Meu interesse aqui é pela evocação de espaços presente


nas falas de algumas personagens, até porque essa ligação do que
estava aos olhos do público e o que eles deveriam imediatamente
imaginar era crucial para gerar engajamento deste com esses dis-
cursos narrativos dentro do drama (EASTERLING, 2014).

A ideia de evocação de espaço envolve basicamente o nar-


ratário imaginar um lugar a partir de informações que o narrador lhe
oferece (BAL, 1990). Por exemplo, quando Prometeu diz,
Após deixar a planície da Europa,
chegarás ao continente da Ásia.
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 734-735)

SUMÁRIO 96
e não oferece mais nenhuma informação a respeito desses
dois lugares, deixa que os narratários imaginem, a partir do que já
conhecem ou desconhecem, a constituição desses espaços.

E se trago essa questão é porque Prometeu Acorrentado é


uma tragédia que apresenta mais de quarenta lugares diferentes,
gregos e estrangeiros, e grande parte desses lugares é apresen-
tada com carência de detalhes, às vezes, apenas o nome do terri-
tório é mencionado, e isso me gera o pensamento de que talvez,
fazer evocações espaciais era um dos objetivos de Ésquilo com esta
peça e é por isso que a questão do espaço é um ponto tão impor-
tante desta discussão.

Além disso, a apresentação desses lugares gregos e estran-


geiros parece ter uma função caracterizante na peça, que é “quando
o espaço nos diz algo sobre uma pessoa, seu meio, caráter ou
situação” (JONG, 2012, p. 16) e podemos alargar o conceito para
dizer que caracteriza também um povo ou uma região. Isso acon-
tece, por exemplo, em
os planos campos da Sicília de belos frutos
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, v. 369)

para caracterizar lugares gregos de forma positiva; e em

eu te pregarei neste desértico rochedo,


onde nem a voz nem a forma dos mortais
verás, queimado pela brilhante chama do sol.34
(ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 20-22)

para caracterizar lugares estrangeiros de forma negativa.

É fato que este tópico merece uma análise muito mais apro-
fundada com cotejamento de outras passagens para um estudo mais

34 Essa descrição é referente à região da Cítia, território estrangeiro em relação à Grécia.

SUMÁRIO 97
microscópico, porém por conta do espaço reduzido neste artigo, dei-
xarei a presente discussão para estudos futuros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho demonstrou alguns aspectos importan-
tes a respeito da natureza do texto dramático, a partir da análise da
tragédia Prometeu Acorrentado, e como este é influenciado, em algu-
mas instâncias, pelo texto narrativo, o ato de contar e ouvir. Primeiro,
vimos que não é possível aferir que o gênero dramático é narra-
tivo, pois possui características e essência próprias, contudo possui
em sua composição alguns elementos que são “pertencentes” ao
gênero narrativo, e que por isso se torna possível a análise de textos
dramáticos da antiguidade grega a partir de uma ótica narratológica.

Outra questão é o fato de que não se pode afirmar que um


gênero é melhor que outro, na verdade os dois coexistem num
mesmo sistema literário, cada um possui características que os tor-
nam únicos, porém isso não impede que ambos se influenciem e
que possuam, em suas composições, aspectos que, em geral, são
“pertencentes” a um ou a outro.

Além disso, é importante ressaltar que Prometeu Acorrentado


ainda é uma tragédia pouquíssima explorada no que diz respeito a
estudos da narratologia no Brasil35; são poucos os estudiosos da
narrativa que se aventuram pelos versos dessa tragédia, sendo que
ela, como foi apresentado nesta pesquisa, é tão rica em narrativas

35 Essa afirmação parte de consulta realizada em diversas bases de dados relacionadas aos estudos
clássicos no Brasil, tais como as revistas “Clássica”, “Phaos”, “Codex”, “Rónai”, “Letras Clássicas” e
“Romanitas”, além de buscas também realizadas no portal “Periódicos Capes”. Tais buscas reali-
zadas pelos termos “prometeu acorrentado”, “narrativa” e “narratologia” geraram um retorno que
se mostrou pouco expressivo ou inexistente. A consulta foi realizada durante a produção deste
trabalho e envolve apenas o contexto brasileiro.

SUMÁRIO 98
quanto, por exemplo, as tragédias que compõem a Orésteia36, tam-
bém de Ésquilo. E se afirmo tais palavras, é com o intuito de mostrar
a relevância deste trabalho para os estudos que envolvem os textos
antigos e a narratologia, além de, é claro, ser um convite àqueles
que se sintam inspirados a contribuir com suas pesquisas narrato-
lógicas sobre a peça.

Para concluir, reitero mais uma vez que compreendo que


algumas discussões possam parecer um tanto vagas, mas isso se
dá pelo espaço reduzido que é comum do gênero artigo. Em ver-
dade, este trabalho é apenas o pontapé inicial no que diz respeito
às pesquisas narratológicas relacionadas à tragédia Prometeu
Acorrentado no Brasil.

36 Agamêmnon, Coéforas e Eumênides.

SUMÁRIO 99
6
Glaudiney Moreira Mendonça Junior

A CORPORIZAÇÃO
DA COMUNICAÇÃO
EM FILOCTETES,
DE SÓFOCLES:
UM ESTUDO
DE SEMIÓTICA DISCURSIVA
INTRODUÇÃO
Ottmar Ette, em seu livro “SaberSobreViver”, traz uma reflexão
sobre a possibilidade de utilizar uma metáfora corporal para repre-
sentar o poder da linguagem em comunicar-se com outros e com o
próprio eu. “Dessa forma, o contato linguístico é compreendido de
maneira muito corporal” (ETTE, 2015, p. 129). Para ele, a linguagem
constitui o invólucro sensorial do corpo.

Tomando essa reflexão como base, este estudo realizou uma


investigação sobre como o corpo e suas expressões podem tam-
bém ser utilizados como uma linguagem para que a comunicação e
a aquisição de conhecimento possam ocorrer.

Tendo como objeto de estudo a tragédia grega Filoctetes, de


Sófocles, e utilizando o Percurso Gerativo do Sentido da Semiótica
Discursiva (SARAIVA; LEITE, 2017), analisamos como essas comuni-
cações corporal e verbal podem se complementar ou se contradizer.

De acordo com Saraiva e Leite (2017. p. 44), o Percurso Gera-


tivo do Sentido se caracteriza por ser
um método de transposição que disciplina e orienta o
olhar de quem procura maior rigor na descrição e explica-
ção desse processo gerador. O método divide o percurso
de geração do sentido em três estratos de significação
(fundamental, narrativo e discursivo) dispostos numa
ordem que parte do mais simples e abstrato para o mais
complexo e concreto.

Partindo assim da isotopia /corporal/ - /verbal/, analisare-


mos alguns trechos selecionados da obra nos quais esses diferentes
tipos de comunicação ocorrem e como se relacionam.

SUMÁRIO 101
CORPUS E TEXTO
O objeto de investigação utilizado é a tragédia Filoctetes de
Sófocles. Composta de 1471 versos, conta a história do resgate de
Filoctetes, herói que parte a caminho de Troia com os gregos, porém
é abandonado em uma ilha por ter adquirido uma ferida causadora
de muito sofrimento e geradora de aflições para todos os presentes
na embarcação. No entanto, um presságio indica que Troia só pode-
ria ser conquistada se o arco de Filoctetes, herdado de Héracles,
estivesse presente na batalha. Sendo assim, dois heróis, Odisseu e
Neoptólemo, retornam para a ilha a fim de levá-lo a Troia.

Já no começo da peça, encontramos indícios de que os ele-


mentos corporais e verbais serão importantes para a comunicação
entre os personagens. Odisseu diz:
ODISSEU

Eis que descortina o cabo que ôndulas


lêminias circum-envolvem. Rastros de homem
não há, tampouco traços de morada.
Ali deixei o filho maliano
de Poianto, ó Neoptólemo aquileu,
estirpe magna! Executei as ordens
dos líderes helenos. Pus manava-lhe
dos pés, gangrena corrosiva. Não
libávamos, ouvindo-lhes os queixumes,
as maldições ecoando em nossas tendas.
Mas não percamos tempo com parlendas!
Deve ignorar que vim; caso contrário,
não frutificará todo sofisma
com que pretendo capturá-lo em breve.
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 1-14, grifos nossos)

Elementos como /rastros/, /traços/, /capturar/ indicam uma


relação corporal presente na obra, assim como /ordens/, /maldições/
e /parlendas/ indicam os componentes verbais para a realização da

SUMÁRIO 102
comunicação. Partindo assim da isotopia /corporal/ - /verbal/ pode-
mos iniciar a investigação com o seguinte quadrado semiótico:

Corporal Verbal
| |
Não-verbal Não-corporal

Para a análise, selecionamos alguns trechos da obra nos


quais podemos encontrar uma relação entre a comunicação verbal e
a corporal, destacando principalmente a importância do corpo como
elemento de comunicação.

CORPORIZAÇÃO
DA COMUNICAÇÃO
Na Tabela 1, apresentamos a divisão da peça, em um nível
discursivo, e uma descrição dos acontecimentos principais de cada
parte, assim como os respectivos versos.

SUMÁRIO 103
Tabela 1 - Partes da tragédia Filoctetes, de Sófocles
Parte Versos Descrição
Neoptólemo e Odisseu chegam em Lemnos
Prólogo 1 – 134
Odisseu revela seu plano para enganar Filoctetes
Entrada do coro
Párodo 135 – 218
Examinam a caverna de Filoctetes
Filoctetes conta sua história
1º Episódio 219 – 675 Neoptólemo conta suposto desentendimento com Odisseu
Falso mercador avisa de supostos navios vindos de Troia
1º Estásimo 676 – 729 Coro lamenta o sofrimento de Filoctetes
Sofrimentos de Filoctetes
2º Episódio 739 – 826
Filoctetes entrega o arco para Neoptólemo e desmaia
2º Estásimo 827 – 864 Coro questiona se Neoptólemo roubará as armas
Neoptólemo revela a enganação
3º Episódio 865 – 1080
Odisseu aparece e decide levar somente o arco
3º Estásimo 1081 – 1217 Neoptólemo lamenta e prefere se matar a enganar Filoctetes
Neoptólemo entrega o arco para Filoctetes
Êxodo 1218 – 1471
Héracles surge e convence Filoctetes a retornar para Troia

Fonte: Ribeiro Junior, 2013.

Utilizando a isotopia /corporal/ - /verbal/ podemos desta-


car no texto alguns elementos que se relacionam com essas confi-
gurações figurativas:

■ Corporal: pus, ausentar-se, não ver, força, enredar, sinais de


mão, roupas, aspecto, lavar as mãos, aprumar o corpo, agre-
dir, mordido, língua, ajoelhar-se, gesto, partir, feito etc.

■ Verbal: maldições, sofisma, parlendas, história, ouvir, falar,


mentira, enganar, convencer, reclamar, calar, som, súplicas,
contestar, gritos etc.

SUMÁRIO 104
Para um maior aprofundamento da isotopia escolhida, sele-
cionamos alguns momentos da narrativa para uma análise mais
aprofundada, no nível narrativo, das relações entre os actantes. A
escolha utilizou algumas características da comunicação percebi-
das na peça. Acreditamos que utilizar três exemplos em cada carac-
terística será suficiente para alcançar as condições necessárias
para a escolha do corpus: representativo, exaustivo e homogêneo
(GREIMAS, 1976, p. 187).

O RECONHECIMENTO ATRAVÉS DO CORPORAL


Na peça, os elementos corporais são fundamentais para que
os personagens se reconheçam ou estejam cientes de sua presença.
O surgimento de Filoctetes é antecedido pelo iminente aviso corpo-
ral de sua chegada. O coro alerta:
CORO
Irrompe um rumor,
típico do alquebrado:
vem das lonjuras ou daqui?
Sim! Chega a mim – sim! – a voz de quem
coxeia, submisso ao impositivo;
capto o agravo longínquo
de um ser tripudiado:
os gritos que emite são por demais
n-í-t-i-d-o-s!
[...]
Seus olhos fuzilam o ancoradouro
vazio de nau, avesso ao homem?
Os gritos contínuos terribilizam!
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 202-219, grifos nossos)

O coro, como sujeito de estado, percebe a aproximação do


objeto-valor (saber onde está Filoctetes), porém o sujeito do fazer
não é verbal, apresentando-se na forma de um barulho de desloca-
mento (rumor) de alguém que anda curvado (alquebrado). A “voz de

SUMÁRIO 105
quem coxeia”, ou seja, o barulho realizado pelo movimento denuncia,
juntamente com gritos, a aproximação de Filoctetes. O elemento cor-
poral reforça a comunicação dos gritos verbais. O sujeito do fazer é
bastante competente para realizar a conjunção do sujeito de estado
com o objeto-valor e ninguém questiona o sucesso de sua perfor-
mance de anunciar a sua chegada, uma vez que os sinais são bas-
tante “n-í-t-i-d-o-s!”.

Do mesmo modo, Filoctetes também almeja um objeto-valor


(encontrar uma nau no porto) que, em sua ausência, indica a disjun-
ção com o sujeito. Vemos que a ausência do “corpo” (ou seja, o /não-
-corporal/) comunica um fato: o porto vazio indica a permanência da
disjunção e a ausência de qualquer sujeito do fazer que tenha com-
petência de realizar a conjunção: Filoctetes não pode deixar a ilha.

Ao chegar, Filoctetes deseja saber quem são os estrangeiros


e esse reconhecimento vem de elementos que não são verbais:
FILOCTETES
Ignoro estirpe e pátria de onde vindes.
Quem sois? O estilo do vestuário evoca
em mim a Hélade adorável! Quero
ouvir como falais. Perplexidade
ou medo não pretendo despertar
com meu aspecto rude. [...]
Seria um erro sonegar-me isso,
como eu, calar quem sou, um grave equívoco.
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 222-231, grifos nossos)

O sujeito da ação (Filoctetes) busca o objeto-valor (saber


quem são os estrangeiros) e, para isso, o sujeito do fazer (vestuá-
rio) é corporal, à medida que seu estilo visual denota sua aproxima-
ção com a Hélade. Porém, parece que a competência do sujeito do
fazer é questionável, pois ele ainda não está satisfeito com o que
seus olhos veem. Assim, ele busca outro sujeito do fazer (forma de
falar), pois deseja ouvir como falam os estrangeiros. O que é dito
não é relevante, mas “como” se diz, ou seja, qual o sotaque, a forma,

SUMÁRIO 106
a língua. O “corpo” da fala é mais relevante para o sujeito de estado
do que o verbo. Percebemos que a sanção ocorre um pouco mais a
frente na peça quando Filoctetes diz: “Que som sutil! Depois de tanto
tempo, / ouvir desse rapaz a doce música!” (SÓFOCLES, Filoctetes,
vv. 234-235, grifo nosso). Filoctetes reconhece o modo de falar grego
e, assim, identifica os estrangeiros como semelhantes.

Além disso, percebemos que o sujeito de estado (Filoctetes)


busca outro objeto-valor (não despertar medo) e, para isso, utiliza-se
de um sujeito de fazer verbal, já que o corporal depõe o contrário.
Temos uma contradição entre o que se vê e o que se fala, o ver-
bal é necessário para ratificar o que a comunicação corporal de seu
“aspecto rude” apresenta.

Do mesmo modo, Filoctetes espera ser reconhecido pelo seu


arco e por sua chaga, afinal Filoctetes significa “aquele que estima
o que possui” (φίλος = querido, κτάομαι = possuir) (MALHADAS;
DEZOTTI; NEVES, 2008; 2010):
FILOCTETES
Ignoras, filho, quem teus olhos miram?
[...]
Meu nome, a fama do meu desalento,
nada sabes da ruína que me oprime?
[...] Menino,
filho de Aquiles, creio que conheces
de ouvir dizer o dono do armamento
de Héracles, filho de Poianto. Aquele
é este com quem falas: Filoctetes!
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 249-263, grifos nossos)

Vê-lo deveria ser suficiente para reconhecê-lo. Afinal, a corpo-


rização de seu sofrimento e o arco que possui já comunica quem ele
é. O sujeito de estado (Filoctetes) deseja seu reconhecimento pelos
sujeitos do fazer (armamento e desalento), mas parece que eles não
possuem competência para tal, e por isso, o sujeito necessita dizer
o seu nome de forma verbal. O reconhecimento corporal deveria vir

SUMÁRIO 107
mediante um conhecimento verbal, um “ouvir dizer”, porém, como
não tem a competência de fazê-lo nesta situação, Filoctetes recorre
à comunicação verbal para que ocorra o reconhecimento.

A INTENÇÃO ATRAVÉS DO CORPORAL


O corpo também é meio da comunicação das intenções, ou
seja, do objeto-valor do sujeito de estado. Filoctetes, ao descrever os
outros encontros com humanos que teve, lamenta:
FILOCTETES
Choram comigo, filho, reconfortam-me,
não denegam comida, me oferecem
um par de roupa, mas ninguém aceita,
diante da mais sutil insinuação,
levar-me para casa.
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 307-311, grifo nosso)

O desejo de estar em conjunção com o objeto-valor (voltar


para casa) é comunicado através de insinuações, ou seja, tenta-se
dar a entender sem expressá-lo clara e verbalmente. Porém, o sujeito
do fazer (insinuações) não teve competência de realizar a conjun-
ção com o objeto-valor e a sanção é negativa, pois Filoctetes não
conseguiu voltar para casa.

Também, quando Filoctetes descobre sobre a morte de


Aquiles, engendrada por Apolo, intenciona expressar sua dor pela
comunicação corporal:
FILOCTETES
Algoz e morto, dupla nobre! Não
sei se começo perguntando sobre
como te sentes ou choro por ele.

NEOPTÓLEMO
Padeces suficiente para
lamentares o sofrimento alheio.
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 336-340, grifo nosso)

SUMÁRIO 108
Para Filoctetes, existe uma dúvida se o sujeito do fazer
(choro) tem mais competência de realizar a conjunção com o objeto-
-valor (expressar os sentimentos) do que o sujeito do fazer (pergun-
tar como se sente). Vemos aqui uma dúvida entre uma comunicação
corporal e verbal. Porém, Neoptólemo responde à questão indicando
que o sofrimento (corporal) de Filoctetes é o sujeito do fazer que tem
maior competência para alcançá-lo.

Podemos encontrar também o corpo auxiliando o pedido


verbal de Filoctetes para que o devolva ao convívio dos humanos:
FILOCTETES
Concede, filho, pelo protetor
que invoco agora: Zeus! Me ajoelho tal
qual permite a limitação de um coxo.
Não me sequestres do convívio humano!
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 484-487, grifo nosso)

O sujeito do fazer verbal (invocar Zeus), por mais que seja uma
invocação de uma divindade superior, não demonstra competência
suficiente para realizar a conjunção do sujeito de estado (Filoctetes)
com o objeto-valor (conviver com os humanos). Sendo necessário
um outro sujeito de fazer (ajoelhar-se), agora corporal, para comple-
tar sua súplica. Este sujeito é ainda mais forte pois parte de um corpo
coxo que necessita de um maior esforço para realizar a ação, o que
demonstra uma maior competência para realizar o que pretende.

A METÁFORA UTILIZANDO O CORPORAL


Por fim, vamos investigar os momentos em que a comuni-
cação verbal se utiliza de metáforas corporais para deixar mais cla-
ros seus objetivos. No início da peça, quando conta seu plano para
Neoptólemo, Odisseu diz: “Enreda Filoctetes numa trama!” (SÓFO-
CLES, Filoctetes, v. 101, grifo nosso). O sujeito de estado (Odisseu)
deseja enganar Filoctetes para conseguir seu objeto-valor (levar o

SUMÁRIO 109
arco para Troia) e, para isso, se utiliza de um sujeito do fazer (engano)
que deve aprisioná-lo em uma trama (teia). A metáfora corporal é
necessária para deixar mais claro como irá realizar a conjunção
com seu objeto-valor.

Também quando Neoptólemo engana Filoctetes com meias


verdades, usa metáforas corporais para completar o sentido do
que fala:
NEOPTÓLEMO
Sou testemunha de que falas só
verdade, pois sofri nas mãos dos pústulas
atridas e do ríspido Odisseu.
[...]
Só espero com as mãos lavar a alma,
demonstrar a micênios e espartanos
que Ciro deu à luz heróis de escol.
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 319-326, grifo nosso)

“Lavar a alma” significa desabafar, porém, parece que esse


sujeito do fazer (desabafar) não tem competência suficiente para
alcançar o objeto-valor (retribuição do sofrimento), sendo necessário
complementá-lo com as “mãos”, ou seja, palavras não serão suficien-
tes, alguma ação física e corporal é necessária.

Assim também, quando Filoctetes vai agradecer pelos mari-


nheiros aceitarem levá-lo de volta para casa, recorre a elementos
corporais para expressar o que sente:
FILOCTETES
Marujos magnos, como manifesto
em ato o apreço que me cala fundo?
Vamos, meu jovem, mas saúdo antes
meu habitáculo inabitável,
para saberes o que suportei
sem desfibrar! Quem se habilita a, não
direi viver como eu, tão só olhar?
Curvei-me ao mal premido pelos fatos!
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 531-538, grifo nosso)

SUMÁRIO 110
Somente um “ato” (ação física) poderia ser sujeito do fazer
para alcançar seu objeto-valor (agradecimento). O próprio Filoctetes
diz que “cala fundo”, indicando que não existem palavras que sejam
suficientes para realizar o agradecimento, apenas uma atitude física.

Do mesmo modo, somente a “visão” de sua habitação tem


competência para realizar o desejo de expressar o quanto ele sofreu
naquele lugar. Novamente um elemento físico, corpóreo, é necessá-
rio para alcançar a necessidade da comunicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exemplos apresentados nos permitem perceber o quanto
a comunicação corporal é importante para a comunicação dos fatos
na peça e, consequentemente, para a comunicação em geral.

Além disso, a ausência de componentes físicos também é


um elemento importante para a comunicação, como podemos ver
nos momentos em que a ausência de Odisseu é importante para
que o subterfúgio funcione (SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 124), e como
a ausência de naus representa a característica inóspita da ilha
de Lemnos e a desesperança de Filoctetes de retornar para casa
(SÓFOCLES, Filoctetes, vv. 218).

Sendo assim, temos a comunicação não-corporal represen-


tada na ausência de elementos, assim como temos a comunicação
não-verbal representada na ausência de palavras verdadeiras em
alguns discursos da peça ou a incapacidade de se expressar com
palavras. Assim, podemos retornar ao quadrado semiótico inicial e
discutir as relações entre os elementos.

SUMÁRIO 111
Em alguns momentos existe uma relação de contrariedade
entre \corporal\ e \verbal\, quando os elementos corporais não emi-
tem a comunicação desejada, porém, em muitos outros momentos
essa relação é de complementaridade. A comunicação verbal pode
ser reforçada pelos elementos corporais, sendo até substituída em
alguns casos, mas também precisa ratificar a comunicação corporal,
quando esta não expressa o objeto-valor desejado.

Investigações futuras poderiam abordar mais exemplos des-


sas relações, como também busca os sentidos do /não-verbal/ e
do /não-corporal/, que podem estar relacionados com a mentira, ou
seja, os elementos verbais que não tem relação com o que realmente
deve ser comunicado, ou com a ausência, pois o não-estar ou não-
-fazer também comunica sentidos próprios.

SUMÁRIO 112
7
Francisco Vítor Macêdo Pereira

MUNDO ORDENADO
E TRANSGREDIDO:
A ESCOLHA DA JUSTIÇA
NA ELECTRA, DE SÓFOCLES
INTRODUÇÃO
Em grande parte dos registros da Antiguidade, dos sábios
aos sofistas gregos, sempre percebemos as tentativas de se com-
preender e se interpretar a natureza, o ser e o mundo, a fim de que
se inscrevam as regras de deveres e sentidos ante a realidade. Na
concepção da maioria desses sábios (e não tão sábios), a crença e
o respeito às leis e aos deuses são a base sólida para que a humani-
dade atinja a sabedoria e a virtude, advindas da ação prudente e da
reflexão ética, o que permite às almas tornarem-se nobres e puras.

Sob esse aspecto é que o temor aos deuses afigura-se


como chave, para o entendimento ordenado da atividade do pen-
sar e do agir humanos no mundo. As célebres máximas do Orá-
culo de Delfos - γνῶθι σεαυτόν (conhece-te a ti mesmo) ou μηδὲν
ἄγαν (nada em excesso) - poderiam assim guiar as ações humanas,
imprimindo-lhes o necessário recuo da ação conforme o que já está
inauguralmente estabelecido, impedindo-lhes o devastador senti-
mento de rebeliões ou achaques, contra a autoridade dos deuses e a
ordem natural do mundo.

Embora as sentenças delimitem e convidem os seres e as


suas vontades à justa medida e ao agir em conformidade com as
regras postas, ao contrariá-las, eles se afirmam como entes desejan-
tes, e o desejo torna-se lhes querer (θήλεμα). Do que disso se impõe,
a palavra final, a cada ato, é invariavelmente do ser humano, cabe-lhe
tão inteiramente refletir (ἐννοέω), decidir (διαγιγνώσκω) e, por fim,
responsabilizar-se (δεὸν λαμβάνειν πρό ou δεὸν λαμβάνω πρό) (cada
qual recebe o que lhe é devido) pelas suas atitudes.

A despeito disso, o que de original nos ensina o enredo trá-


gico sofocliano - representante da genuína condição humana no
mundo - é que: apesar da plena responsabilidade pelo seu destino,
numa encruzilhada entre o bem e o mal, é impossível ao ser humano

SUMÁRIO 114
que a escolha seja só sua. Segundo Nietzsche (2005), para que o
indivíduo atinja uma estrela brilhante, é necessário possuir o caos
dentro de si, a vontade lacunar e propulsora que lhe permitirá orga-
nizar-se e determinar-se.

Assim, caso pensemos que o mundo ordenado é falta, com-


preenderemos que há um desejo de potência escondido nos refo-
lhos de cada alma individual; desejo que se pode confundir e exter-
nar como transgressão, ao mesmo tempo em que é condição pro-
piciatória das deliberações do querer e das escolhas da liberdade.
A fim de que as carências da humanidade sejam então supridas, a fim
de que cada um seja outro, ante a referência à ordem e a deferência
ao divino, todo ser humano há de inventar-se (a si e ao seu destino),
responsabilizando-se por si (desde o seu nascimento) e o desejo de
sua vontade como afirmação da liberdade no mundo ordenado.

A JUSTIÇA ENTRE A VONTADE


E A TRANSGRESSÃO
Esse desejo de vontade sobre si se expressa no fragmento
114, através das palavras de Heráclito (1991, p. 89): “todas as leis dos
homens, humanas, se alimentam de uma lei una, a divina; é que esta
impera o quanto se dispõe, basta e excede a todas”. A lei divina é,
por isso mesmo, única. A única em si. As leis humanas conseguinte-
mente se alimentam dela. Do que disso se segue, o grande conflito
humano se configura, consigo, no embate ante a vontade de si e de
cada um: a do ser e a do mundo, ou à do ser no mundo - que são
necessariamente, e por fim, equivalentes.

Nesse conflito (aparente?), perfaz-se a peripécia entre a


existência e o pensamento acerca da condição do ser no mundo:
de Homero à Filosofia, da Antiguidade ao tempo presente.

SUMÁRIO 115
O que os trágicos, nesse sentido, desenvolvem - e trazem à cena
- não é senão a representação do afrontamento do humano, nesse
seu desejo de ser livre, em sua vontade por justiça diante da ordem
do mundo. Ésquilo, Sófocles e Eurípides apresentam essa complexi-
dade da alma humana nas agônicas sínteses de suas tramas.

Na galeria de vários personagens trágicos - como Prometeu,


Édipo, Antígona, Electra, Medeia e tantos outros - o que sobressai
no clímax trágico é precisamente a fácies obscura da vontade por
justiça: ante a verdade inexcedível de si, a qual os conduzirá ao infor-
túnio como termo de sua humanidade, acatadas e mantidas as suas
decisões conforme uma lei que não é sua. Em seis das sete tragédias
de Sófocles, os heróis chegam até às últimas consequências, e aos
mais profundos dilemas de sua condição, para permanecerem firmes
na decisão que lhes convém.

Assim acontece com Édipo em Tebas, que sustenta a von-


tade em querer descobrir o assassino de Laios e, quando já velho
em Colono, em decidir qual será o justo lugar para a sua morte; com
Antígona, na decisão irresoluta de sepultar o irmão Poliníces, e com
Electra, na proposição inolvidável de vingar o assassínio do pai. Não
é diferente com Filoctetes, que não cede aos argumentos de Neop-
tolemo e de Odisseus em voltar à Tróia, tampouco com o canhestro
Ájax, em seu desassisado impulso de matar - por justiça à sua honra
- os chefes da armada aqueia.

Segundo Frère (1981, p. 06), “desejar é mover-se e comover-


-se”. Como indica a citação, o desejo implica no movimento que per-
mite a ação preencher as faltas, posto que da crença e da convicção
do que deve ser se extrai, por justiça, a força criativa e incauta da
liberdade. É dessa forma que acontece com Orestes. No movimento
de regresso ao reino paterno, a emoção o atinge - no momento em
que ardentemente divisa o solo de Argos - e ele contempla, à sua
frente, a paisagem toda anelada.

SUMÁRIO 116
É interessante pensar que a tragédia de Electra se inicia
precisamente no instante em que Orestes se põe diante dessa
paisagem anelada: “ὦ… Ἀγαμέμνονος παῖ, νῦν ἐκεῖν᾽ ἔξεστί σοι παρόντι
λεύσσειν, ὧν πρόθυμος ἦσθ᾽ ἀεί” (Ó filho de Agamêmnon, agora podes
encarar fixamente aquilo por que tanto ansiavas)37 (SÓFOCLES, Elec-
tra, vv. 1-3). Do exílio, Orestes volve então referto no desejo (πρόθυμος)
de novamente ver a velha Argos, da qual justamente sentia tanta
falta: τὸ γὰρ παλαιὸν Ἄργος οὑπόθεις τόδε (porque a velha Argos está
lá) (SÓFOCLES, Electra, v. 4), tal como era antes do sucesso que ora
lhe impelia àquele retorno.

Desde o prólogo, pois, o preceptor lhe descerra toda a cidade,


remontando-o ao passado de aproximadamente vinte anos; para,
ao fim de sua fala, anunciar o propósito desse regresso ao reino de
Argos, e impeli-lo por justiça à consecução de seu ato - há muito já
premeditado. Ele reconhece então que deve agir, que lhe cabe agir,
que tem de agir... e elogia o seu preceptor, por não apenas ser alguém
que o concita à execução da tarefa, mas igualmente por seguir con-
sigo na empreitada. Em seguida, ele expõe o seu plano: desde o iní-
cio, quando primeiro decidiu ir consultar o Oráculo de Febo Apolo, a
fim de saber como mataria a mãe.

Diferentemente em Ésquilo e em Eurípides, a consulta de


Orestes ao Oráculo do deus cíntio - na trama de Sófocles - não foi
para saber se deveria matar a mãe, mas como deveria matá-la. Assim,
a sua decisão já estava toda tomada, e ele deveria estar ciente das
consequências de tudo o que executaria. Vê-se, assim, que o primor-
dial no drama sofocliano é a figura solitária do herói, que existencial-
mente exerce a reflexão crucial e excêntrica de sua máxima huma-
nidade (vontade e deliberação em ser). Diante de sua relação com
o divino e com a ordem do mundo, ele avança; sem aparentemente
perder-se em nenhum individualismo desesperador.

37 Todas as traduções livres para o português são aqui de minha alçada e responsabilidade.

SUMÁRIO 117
O que Sófocles faz é expor essa ação. Do desenrolar dos
acontecimentos, ele destaca a vontade como determinação do herói,
sem detrimento da fatalidade que lhe apressa e que se lhe sucede.
Como afirma Pignarre (1964, p. 09), no prefácio ao Teatro completo de
Sófocles, “[...] o traço comum às sete peças é, sem dúvida, o desen-
volvimento conferido ao estudo das personagens, e que parece
constituir, mais de uma vez, a razão de ser do próprio drama”38.

Essa característica se estende aos personagens Electra e


Orestes, em correspondência à marca peculiar de suas humanas
ações; as quais - incontrastáveis - desembocam sempre à ordem
na fatalidade, como a grande promotora da liberdade e do infortú-
nio humanos diante do mundo. Toda ação que distingue a liberdade
deve, então, ser praticada pelo indivíduo de um modo ou de outro,
não excluídas nunca a colaboração e a participação dos outros: o
que acreditamos ser parte na complexidade da natureza e do alve-
drio humanos, e também no próprio significado da tragédia como
gênero literário (SEGAL, 1998).

A SOLIDÃO E A TÊMPERA DO HERÓI


O herói sofocliano, no caso de Orestes e de Electra, expressa
esse reconhecimento através do abismo da solidão e de sua determi-
nação livre, de acordo com o que assinala Knox (1983 a, p. 5):
o herói sofocliano age em um vácuo terrível, em um pre-
sente que não tem futuro para confortar nem passado
para guiar, em um isolamento no tempo e no espaço que
lhe impõe a total responsabilidade por sua própria ação e
suas consequências39.

38 No original: [...] le trait commun aux septs pièces est, sans doute, le développement donné à l’étude
des caractères, étude qui semble même constituer plus d’une fois la raison d’être du drame.
39 No original: the Sofoclean hero acts in a terrible vacuum, in a present that has no future to comfort,
nor a past to guide, an isolation in time and space that imposes on the hero full responsibility for
his own action and its consequences.

SUMÁRIO 118
É nesse vazio, sem abstenções, que eles - Electra e Orestes -
devem agir. Agindo, tornam-se sujeitos de suas justas (?) ações. Não
há, todavia, satisfação em sua empreitada, haja vista que o mundo se
lhes revela não consentâneo, como um exílio inadequado. Dali, em
suas ações, o divino e o humano, coonestados, se separam, e o alija-
mento dos deuses ser-lhes-á - de qualquer sorte - doloroso demais.
Por fim, o herói/a heroína têm consciência de sua solidão, e nela hão
de forjar-se desgraçadamente. Ele/ela sabe dever atuar segundo as
suas próprias decisões, malgrado o espectro de quaisquer libelos ou
designações ulteriores.

Em Electra, o personagem homônimo e Orestes estão, por-


tanto, resolutos na decisão de matar os assassinos do pai - Egisto e
Clitemnestra. Essas resoluções os enquadram no que Knox (1983b)
denomina heroic temper (têmpera heróica): eles têm uma índole que
lhes permite ir até o termo de suas decisões, ao limite do abismo - o
qual, mediante uma simples reflexão, não ousariam transpor.

Electra demonstra isso lastimando e vociferando até o último


instante contra aqueles que a reduziram injustamente à condição de
uma estrangeira; sua vingança é então a solução final, a qualquer
preço e custo. Ela deverá vingar a morte do pai a expensas da vida
da própria mãe e do amante Egisto.

Qualquer indulgência faz-se presente no teatro de Sófocles


apenas para reforçar essa têmpera do herói, pois para ele
perdoar equivaleria a restaurar a sua justa ira, portanto,
ceder e ser infiel ao próprio ideal. Muitas vezes, como B.
M. W. Knox demonstrou40, o confronto entre os heróis e
aqueles ao seu redor se resume na luta entre essa firmeza
e as pressões dos outros41 (ROMILLY, 1979, p. 42).

40 KNOX, 1983 b, p. 83.


41 No original: pardonner serait rénouncer à sa juste colère, donc céder, donc être infidèle à son
propre ideal. Et souvent, comme B. M. W. Knox l’a montré#, l’affrontement entre les héros et son
entourage se ramène à la lutte entre cette fermeté et les pressions des autres.

SUMÁRIO 119
O herói sofocliano, portanto, premedita todo o tempo, e não
hesita em nenhum momento à consecução do que tem de ser feito.
A decisão está tomada, cabe-lhe somente executar o ato planeado.
Electra nem deseja esquecer, sequer um minuto, o plano de matar
a mãe para vingar a morte do pai. Ela lembra ao Coro que olvidar
um pai morto é assunto para néscios. A sua dor é comparável à de
Niobe, lamentando os próprios filhos. Sempre lamuriante, ela tem
vontade e consciência do que quer. Ela arquiteta, há muito tempo, o
plano de sua vingança.

Ora, sabendo que Orestes seria o único que poderia vingar


a morte do pai, ela tratou de salvá-lo, ainda pequeno, enviando-o
ao exílio - a fim de que, um dia, retornasse para efetuar o matricí-
dio. Enquanto isso, no palácio, os seus lamentos e trenos parecem
não se consumir, o seu coração recrudesce dia e noite, na ânsia de
que - cada vez mais - se avizinhe o sonhado dia que porá fim ao seu
sofrimento. A volta de Orestes será um consolo para ela, posto que a
espera seja longa em demasia.

Por isso, a notícia da morte do irmão a enfraquece brutal-


mente. Ainda assim, mesmo sabendo-se sozinha, o seu desejo
de vingança, tal como antes, não tarda em florescer novamente.
Ela busca logo outras fontes para seguir em seu ânimo matricida,
embora saiba que a única possibilidade - daí então - seria ela mesma.
A sua decisão segue clara: de qualquer forma ela matará os assassi-
nos de Agamêmnon, com Orestes ou com Crisótemis, sem Orestes
ou sem Crisótemis. Sozinha, não descansará se o seu pai não tiver
um justo sono no Hades.

Vivendo no limbo, na suspensão insólita entre dois mundos


que não lhe portam referência alguma, Electra delimita o espaço de
seu itinerário: o vácuo. Não há mais por quem chamar, os seus gritos
reboam soezes em seus próprios tímpanos; o infatigável lamento, dia
e noite, é o seu consolo; as imprecações ao deus do subterrâneo são

SUMÁRIO 120
as libações a um mundo assaz íntimo, na medida em que a morada
dos vivos revela-se-lhe extrema ou totalmente inóspita.

Enquanto durarem os dias, e as noites voltarem, Electra per-


manecerá assim de luto - jamais esquecendo o passado. Ela está,
pois, ciente de que o tempo é a sua salvação; a dor, quanto mais
pungente, faz-lhe reconhecer que, em breve, ela estará livre da
parte que lhe cabe. Todavia, o mesmo tempo a subjuga; quem ela
tanto esperava, Orestes, agora estaria (?) morto. A sua irmã, por
sua conta, não passava de uma débil covarde, o seu sofrimento não
tinha então mais termo.

O horizonte que o olho divisava parecia-lhe, por isso, um


desarrazoado infinito... implacável às suas angústias. O fim seria o
prantear, não havia para si qualquer outro sentido útil, exceto a sua
nêmese, ainda que esta fosse sempre, mais e mais, adiada. A fim de
realizar custasse o que custasse a sua vingança - da qual não tinha
como desbastar-se - Electra seguia rogando e lamentando. O des-
tino trágico, como ergástulo à execução de seu plano, fez-lhe, con-
tudo, desconhecer - até ali - que Orestes inventara a própria morte.

NÊMESE E LIBERDADE
É dessa forma que, em Sófocles, Electra e Orestes - juntos
ou separados - concorrem todo o tempo em não desistir nunca,
em não recuar um só instante (REINHARDT, 1994). Afinal, as suas
têmperas são fortes demais para hesitar ante a decisão tomada.
Eles podem, em definitivo, arcar com quaisquer vindouras conse-
quências. Não fosse assim, acreditamos, não haveria tanta reflexão,
tanto planejamento... tampouco a cura insopitável de tanta espera
para a realização de um crime.

SUMÁRIO 121
Dessa forma, com o matricídio consumado, de acordo com
Manuel Pulquério de Oliveira (s/d, p. 98):
Sófocles elimina o conflito, introduzido por Ésquilo no
plano divino, entre Apolo e as Erínias, encarando a ati-
vidade dos deuses de um ponto de vista unitário [...]
Sófocles realiza implicitamente o seu objetivo de situar a
ação predominantemente no plano humano.

Não há, depois desse matricídio - como veríamos em Ésquilo


-, a figura horrenda das Erínias, vingadouras da transgressão (ύβρις)
humana (PISCINI, 1997). Isso pode causar certa perplexidade ao
expectador; porém, como ainda nos lembra Pulquério de Oliveira
(s/d, p. 98), “os desejos e os estímulos pela palavra não vinculam, aos
olhos do poeta, uma personagem ao ato que outrem pratica. Só o exe-
cutante é responsável, e a liberdade da conduta está em assumir isso”.

Naturalmente que a heroína é Electra, que a personagem


central da peça é ela própria, mas quem executa a ação é Orestes.
Por isso, Sófocles não parece preocupado em julgar a intenção de
Electra. Ao contrário, ele a liberta. Caso houvesse julgamento, o réu
principal seria Orestes. Ainda assim, o autor não demonstra nenhum
interesse em apresentar no proscênio o cumprimento da vingança
(por outro crime anterior e originalmente cometido).

Knox afirma que uma das grandes invenções de Sófocles,


quanto ao caráter de seus heróis trágicos, é “a confrontação de seus
destinos por uma individualidade heroica, cuja liberdade de ação
implica total responsabilidade42 (KNOX, 1983 b, p. 32). Orestes e
Electra agem, com efeito, de forma plenamente livre e responsável,
posto que imunes ou indiferentes à imputação de qualquer libelo;
apesar de terem de arcar com todas as consequências daquele ato.

42 No original: the confrontation of their destiny by a heroic individuality whose freedom of action
implies full responsibility.

SUMÁRIO 122
Do lado de Orestes, há inequívoca e igualmente a disposição
em cometer o matricídio. Isso se manifesta em sua ida ao Oráculo,
a fim de tão somente obter a confirmação do que já havia plane-
jado - conforme o desimpedido alvedrio de sua ação. Encontrando,
segundo a sua vontade, uma resposta favorável, Orestes esquece,
todavia, o que costumeiramente assinala o autor do Oráculo de Del-
fos: “οὔτε λέγει οὐτε κρύπτει, ἀλλὰ σημαίνει” (nem diz, nem esconde,
mas sinaliza) (PLUTARCO, 1922, p. 470).

Desse modo, como lhe apraz - uma vez que é livre -, ele
interpreta o Oráculo; responsabilizando-se conseguintemente (por
inteiro) ante o que percebe das palavras píticas: as quais lhe servirão
de consolo diante do mais terrível dos crimes (?) - a morte de uma
mãe. Sem grande comoção, sem nenhum conflito, Orestes põe em
prática o seu plano, guiado por seus próprios passos. Não haverá
erro, o estratagema fora bem traçado. Definitivamente, o filho de
Agamêmnon restaurará a casa dos Atridas, tencionando restabele-
cer uma ordem familiar que foi arruinada no tempo.

Electra, inteirando-se de que Orestes seguia vivo, novamente


se ajunta a ele na empresa. Seguem, mais do que nunca, livres con-
sortes e senhores absolutos de suas decisões. O crime não poderia
mais ser protelado. Agora veriam as suas vontades se concretizar.
As aparentes impiedade e intransigência dos dois são as próprias
potências impulsionadoras de suas ações: como petição de liber-
dade e em resolução de uma vingança muito bem amadurecida em
meio ao tempo e ao ódio (TEIXEIRA, 1991), posto que livre e sufi-
cientemente refletida.

Por último, não há para ambos nenhum sentimento de culpa


ou pesar na consciência. Para eles, tão somente um crime original
haveria de ser expiado. Nada os demoveria... apesar das tentativas
em detê-los. A própria Crisótemis pediu à irmã que se contivesse, e
a obedecesse: “να σταματήσει σὺ δ᾽οὐχὶ πείσει καὶ συναινέσεις ἐμοί;”
(detém-te, tu não estás convencida e de acordo comigo?) (SÓFOCLES,

SUMÁRIO 123
Electra, vv. 402). Ela, no entanto, não se acabrunha, e desdenha da
imprecação da irmã: “ἐμοὶ πιθέσθαι μηδ᾽ ἀβουλίᾳ πεσεῖν” (que confies
em mim e não mais em tolices) (SÓFOCLES, Electra, vv. 429).

Depois disso, o Coro ainda a alerta, postulando-lhe que se dei-


xasse persuadir: “πείθου” (convence-te) (SÓFOCLES, Electra, vv. 1015).
A este pedido se ajunta, por último, a advertência de que nenhum
lucro seria melhor a uma mortal do que receber uma previsão e um
juízo sábio, devendo por isso agir com prudência e espírito avisado.
Inútil. Nada a dissuadiria da firmeza e da liberdade de sua escolha.

Electra estava surda às opiniões todas e aos seus próprios


ouvidos. Como ela mesma assevera, não haveria nada pior do que
as decisões covardes, e o que parecia ser uma vontade má era algo
inevitável (βουλῆς γὰρ οὐδὲν ἐστιν ἔχθιον κακῆς) (pois nenhuma von-
tade é inimiga do mal) (SÓFOCLES, Electra, vv. 1047). Quando, ao
final, Crisótemis intenta mais uma vez replicá-la - a (des)propósito da
maldade de sua resolução - ela completa: “πάλαι δέδοκται ταῦτα κοὐ
νεωστί μοι” (essas escolhas são antigas para mim, não são recentes)
(SÓFOCLES, Electra, vv. 1049).

O seu plano, portanto, já estava eleito. Não era nenhuma


deliberação ingênua. Tudo já estava maturado e em consenti-
mento à ordem e seu restabelecimento. O retorno de Orestes só
veio corroborar o seu propósito, e somar-se à sua resolução incon-
fundível. Tendo cumprido o seu plano, pois desde o primeiro verso
da peça até o último tudo concorria para essa efetivação, Electra
liberta-se: fazendo-nos pensar que, para Sófocles, o tema do matri-
cídio pouca importância tinha.

Entretanto, o que ele almejava verdadeiramente discutir


era a caracterização do herói, no que diz respeito à sua têmpera,
ao seu poder de livre e inalienavelmente exercer as próprias esco-
lhas... e assumir responsabilidades ante a ordem imposta pelos

SUMÁRIO 124
acontecimentos: dimensão trágica e fundamental do ser e de sua
liberdade, humana e divinamente inseridos (e unificados) no mundo.

Desse modo, reflexão, decisão, ato e responsabilidade são


os pilares da vontade humana. Todavia, essa vontade se encontra
nas peças de Sófocles como uma fatalidade da vida, engenhada na
divina e agônica ordenação do mundo; não obstante conferindo -
sempre de maneira inconfundível - livres possibilidades de escolha e
ação a todos os personagens e heróis.

É assim que o autor de Electra nos guia por uma terceira mar-
gem, intentando, talvez, encontrar uma saída para que o ser humano
- ao menos circunstancialmente - perceba-se livre e/ou feliz. Em
Édipo em Colono, ele sinaliza - sem perder de vista a concepção
do herói (como único responsável pelos seus atos) - o que seria a
melhor sorte do mundo para todo aquele que nele vive: “μὴ φῦναι τὸν
ἅπαντα νικᾷ λόγον᾽ τὸ δ᾽, ἐπεὶ φανῇ, βῆναι κεῖθεν ὅθεν περ ἥκει, πολὺ
δεύτερον, ὡς τάχιστα” (não ter nascido prevalece sobre todo o sentido
expresso em palavras; e, de longe, a segunda melhor coisa para a
vida, uma vez que se tenha nascido, é retornar o mais rapidamente
possível e liberto para o lugar de onde se veio) (SÓFOCLES, Édipo
em Colono, vv. 1224-26).

Isso não obstante, Sófocles, ao contrário do que possa pare-


cer, exalta a vida. Mister é, como nos lembra Platão no Fédon (85,
c-d), “διαπλεῦσαι τὸν βίον”, que quer dizer atravessar a vida: uma vez
que não nos resta nada mais a cumprir senão a travessia; ainda que
dorida, ou aparentemente sem significado. Pois que, para o cami-
nhante solitário, o único sentido é a estrada.

SUMÁRIO 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quiçá a grande mensagem que Sófocles nos envia é a de
que, uma vez se tendo nascido, há de se viver: do modo mais intenso,
corajoso e autônomo possível. Ninguém poderá, para nos utilizarmos
de uma metáfora cristã, fazer a via crucis pelo outro. Cada um é res-
ponsável por sua própria trajetória, e isso Sófocles representa em seu
teatro com maestria e exuberância.

Finalmente, a última cena de Electra, nos versos 1507-10,


dá-nos a impressão de uma reordenação geral dos sentidos, algo
mais ou menos como verseja Fernando Pessoa (2017, p. 241), na
intenção de: “arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação”.

SUMÁRIO 126
Par te
2
RECEPÇÃO
8
Ana Maria César Pompeu

EURÍPIDES
NA COMÉDIA
ANTIGA E NOVA
EURÍPIDES E ARISTÓFANES43
A Comédia de Aristófanes recepciona Eurípides de diversas
formas. Há citações das tragédias, menções às soluções fantásticas,
à impiedade e misoginia do poeta. Eurípides é personagem de três
comédias de Aristófanes: Acarnenses, Tesmoforiantes e Rãs. Nelas
compreenderemos melhor o uso que o comediógrafo faz do trage-
diógrafo em sua obra.

ACARNENSES
Acarnenses é a primeira comédia que nos chegou de
Aristófanes. Foi encenada em 425a.C., no Festival das Leneias. Nela,
o ateniense Diceópolis (Justinópolis, na nossa tradução) consegue
negociar tréguas com os Peloponésios somente para si e sua família,
enquanto toda a Grécia continua em guerra.

Apresentamos os trechos da nossa tradução (POMPEU,


2014), com versão matuta cearense para os personagens do campo.
[Para seu discurso, que envolve a defesa dos espartanos,
na justificativa das tréguas individuais, Justinópolis vai à
casa de Eurípides pedir os trapos de Télefo, personagem
da tragédia homônima, que, sendo rei da Mísia, havia se
disfarçado de mendigo, para causar piedade aos gregos.]

JUSTINÓPOLIS
Tá na hora do isprito se fortalecê.
Preciso é ir pra casa de Eurípides.

43 Texto publicado nos Anais XXIX Semana de Estudos Clássicos Mundos Antigos, Perspectivas
Modernas Recepção e Autoria / Orlando Luiz de Araújo (Org.), Ana Maria César Pompeu (Org.)
Fortaleza/CE: Substânsia, 2020.

SUMÁRIO 129
SERVO DE EURÍPIDES
Quem é?

JUSTINÓPOLIS
Eurípides tá em casa?

SERVO DE EURÍPIDES
Não está e está em casa, se é que me entendes.

JUSTINÓPOLIS
Como tá em casa e num tá?

SERVO DE EURÍPIDES
Correto, ó velho.
A mente está fora recolhendo versinhos
E não está em casa, mas ele está e de pés para o alto compõe
Uma tragédia.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 391-399)

O Servo de Eurípides tem características do próprio tragediógrafo.

JUSTINÓPOLIS
Ó sortudo Eurípides,
Que iscravo ele tem isperto nas resposta. Chama ele.

SERVO DE EURÍPIDES
Mas é impossível.

JUSTINÓPOLIS
Mermo assim;
Pois num vô mimbora, vô é batê na porta. Eurípides,
Euripidezin!
Me ouve, se alguma vez tu ôviu um home.
Justinópolis de Colides te chama, eu.
EURÍPIDES
Não tenho tempo.

JUSTINÓPOLIS
Roda cá pra fora, vai lá!.

SUMÁRIO 130
EURÍPIDES
Mas é impossível.

JUSTINÓPOLIS
Mermo assim.

EURÍPIDES
Vou rodar pra fora, mas não tenho tempo para descer.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 400-407)

A impossibilidade não impossibilita o plano da comédia, pois


os artifícios de Eurípides serão usados de forma mais ampla do que
na tragédia. O tragediógrafo aparece como um Deus ex machina, tão
do seu próprio estilo, como a crítica de Aristófanes apresenta.

Diceópolis/Justinópolis vai à casa de Eurípides para se dis-


farçar de um personagem do tragediógrafo que poderia salvá-lo,
quando discursasse diante dos Acarnenses, homens rudes, carvoei-
ros de Acarnes, povoado mais prejudicado pelas incursões dos Pelo-
ponésios na Ática. Só com um artifício de Eurípides, ele poeria se
salvar. Veremos que o personagem Télefo da tragédia homônima de
Eurípides, infelizmente perdida para nós, será o escolhido.
JUSTINÓPOLIS
Eurípides…

EURÍPIDES
Por que gritas?
JUSTINÓPOLIS

Tu compõe de pé pra riba,


Podeno tá de pé no chão, por isso tu compõe os manco.
Mas por que tu tá vestido cum’s mulambo da tragédia,
Rôpas de dá dó? Por isso tu compõe os ismoleu.
Mas, te imploro, pelos teus jueio, Eurípides,
Dá pra mim um mulambo daquela peça antiga;
Pois tenho que falá pro coro uma leriado grande.
Ele traz a morte, s’eu falá mal.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 408-417)

SUMÁRIO 131
Aristófanes aproveita para citar uma série de mendigos,
cegos e coxos de Eurípides.

EURÍPIDES
Quais trapos? Acaso aqueles com que aqui Eneu
O coitado do velho concorria?

JUSTINÓPOLIS
De Eneu num era, era de ôtro mais miserave.

EURÍPIDES
Os de Fênix, o ceguinho?

JUSTINÓPOLIS
Não de Fênix, não.
Tinha ôtro mais miserave que Fênix.

EURÍPIDES
Que mantos esfarrapados o homem me pede? Será que
falas dos de Filoctetes, o mendigo?

JUSTINÓPOLIS
Dele não, de um muito, muito mais ismoleu.

EURÍPIDES
Acaso queres os mantos sujos
Que Belerofonte tinha, este coxo aqui?

JUSTINÓPOLIS
Não era Belerofonte. Mas também o tipo era
Manco, ismoleu, quexudo, bom de lábia.

EURÍPIDES
Sei quem é o homem, o mísio Télefo.

JUSTINÓPOLIS
É isso, Télefo.
Dele me dá, eu te imploro, os mulambo.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 418-431)

SUMÁRIO 132
E expande a galeria.
EURÍPIDES
Ó rapaz, dá-lhe os trapos do Télefo.
Estão por cima dos trapos do Tiestes
No meio dos de Ino. Aqui tens, toma lá.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 432-434)

E a Comédia vai além no uso do artifício teatral, fazendo seu


personagem mendigar pelos acessórios do mendigo, ao vestir os tra-
pos de Télefo e adquirir suas características.

JUSTINÓPOLIS
Ó Zeus vigiadô e ispiadô de tudo no mundo,
Q’eu me vista como o mais miserave de tudin.
Eurípides, tu já me fez mermo essa graça,
Também me dá os cumplemento dos mulambo,
O bonezin mísio pra botá na cabeça.
É que tenho que achá que sô um ismoleu hoje,
Sê quem sô, não parecê;
Os ispectadô vão sabê que sô eu,
Mas os coreuta vão fica abestaiadin,
Pra eu caçoá deles c’uns leriado.

EURÍPIDES
Eu dou; pois com uma mente astuta tramas sutilezas.

JUSTINÓPOLIS
Que tu seja feliz; e pro Télefo o q’eu tô pensano.
Bem, eu já tô é chein de leriado.
Mas tô cum falta duma bengala d’ ismoleu.

EURÍPIDES
Toma esta e vai-te dos pórticos de pedra.

JUSTINÓPOLIS
Ó coração, tá veno como ele me bota pra fora da casa,
Muita miudeza eu num teno ainda, mas agora tu vai fica
Grudento, pedinte e teimoso. Eurípides,
Dá pra mim um cestin chamuscado na lamparina.

SUMÁRIO 133
EURÍPIDES
E que utilidade, ó infeliz, tem este cesto para ti?

JUSTINÓPOLIS
Utilidade ninhuma, mermo assim eu quero pegá ele.

(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 435-455)

A inutilidade de um acessório não o inutiliza para a cena


cômica e sua crítica ao exagero da artificialidade no teatro de Eurí-
pides. Justinópolis/Télefo passa a falar da mãe de Eurípides, a qual,
para a comédia, era uma verdureira.

EURÍPIDES
Sabe que és enfadonho, afasta-te da casa!

JUSTINÓPOLIS
Ai!
Que tu seja feliz, como foi a tua mãe.

EURÍPIDES
Vai embora então!

JUSTINÓPOLIS
Não, mas me dá só mais uma coisa,
Uma taça com o beiço lascado.

EURÍPIDES
Vai pro inferno! Toma aí. Sabe que és importuno nesta
casa. 460

JUSTINÓPOLIS
Não, por favor, tu num sabe o mal que me faz. Ó muito
quirido Eurípides, só mais isto
Me dá uma panelinha com uma isponja melada nela.

EURÍPIDES
Homem, vais me levar a tragédia.
Vai embora! Toma aí esta.

SUMÁRIO 134
JUSTINÓPOLIS
Tá, eu vô.
Mas o que vô fazê? Priciso de uma coisa, se num tivé
Vô morrê. Iscuta, ó muito querido Eurípides;
Pegano esta coisa vô mimbora e num volto mais;
Pro meu cestin me dá umas fôia seca.

EURÍPIDES
Acabas-me com a paciência. Toma aí. Lá se vai a minha peça!

JUSTINÓPOLIS
Inda não, mas vô mimbora. Já incomodo
É dimais, num achano que os rei me odêam.
Ai coitado de mim, tô pirdido. Isquici
A coisa mais importante nisso tudo pra mim.
Euripidizin ó meu docin, ó meu quirido,
Quero é morrê da pió morte, se pidi mais algo pra ti
A não sê uma só coisa, só isto, só isto,
Uns cuentro me dá que tu ganhô da tua mãe.

EURÍPIDES
Cara de pau, o sujeito. Fecha a porta da casa.
(ARISTÓFANES, Acarnenses, vv. 456-479)

TESMOFORIANTES OU
DEMETERCOREANTES
A peça Tesmoforiantes foi encenada em 411 a.C. e traz um
enredo voltado ao próprio Eurípides, que, dessa vez, será o prota-
gonista junto com o seu parente. As mulheres casadas de Atenas se
reúnem todo ano durante o mês Pianepsion, para celebrar as deu-
sas Tesmóforas, Deméter e Kore (ou Perséfone), as legisladoras da
natureza. É um festival que promove a fertilidade dos campos e das
mulheres. Eurípides está muito preocupado, pois soube que nesse
ano as mulheres planejam matá-lo, por ele falar e mal das mulheres

SUMÁRIO 135
em suas tragédias, fazendo com que os homens fiquem desconfia-
dos e reduzam cada vez mais o campo de ação feminina, no espaço
em que elas dominam, a casa.

Eurípides tem um plano astucioso para sua salvação. Vai até


a casa de Agatão, poeta trágico com aspecto de uma mulher, para
pedir a ele que entre no Tesmofórion, interdito aos homens, e faça
sua defesa diante das mulheres.
EURÍPIDES
Aqui se encontra morando o famoso Agatão,
o tragediógrafo.

PARENTE
Como é este Agatão?
Há um Agatão...
Acaso é moreno e forte?

EURÍPIDES
Não é este, é um outro.

PARENTE
Nunca vi.
Acaso é barbudo?

EURÍPIDES
Não viste nunca?

PARENTE
Não, por Zeus, não, pelo menos que eu saiba.

EURÍPIDES
E tens tu trepado com ele, mas talvez não saibas.
Mas vamos nos esconder lá, pois está saindo um servo
dele, com fogo e ramos de mirto, para sacrificar, parece,
ao sucesso da poesia.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 28-38)

SUMÁRIO 136
Da mesma forma que aconteceu em Acarnenses com o servo
de Eurípides, o servo de Agatão apresenta características do patrão,
ao recitar suas poesias.
SERVO
O povo todo seja propício,
boca fechada; pois está presente
um tíaso de Musas dentro da casa
do mestre, que compõe um canto.
Que o sereno éter contenha a respiração,
e as ondas brilhantes do mar não façam
ruídos...

PARENTE
Bum bum!

EURÍPIDES
Cala-te. O que ele diz?

SERVO
que adormeçam as raças aladas,
que as patas das feras selvagens que correm no bosque
não se movam...

PARENTE
Bum bum! Bum bum!

SERVO
pois Agatão, o criador de versos lindos, meu amo,
está prestes...

PARENTE
a trepar?

SERVO
Quem disse isto?

PARENTE
O sereno éter.

SUMÁRIO 137
SERVO
a compor estruturas e fundamentos de um drama e dobra
novas rodas de versos,
torneia-os, ajusta uns aos outros,
faz sentenças e opõe nomes
e modela, arredonda,
afunila...

PARENTE
e se prostitui.

SERVO
Que grosseiro se aproxima deste recinto?

PARENTE
O que está pronto a entrar no teu recinto
e no do poeta de belos versos,
tendo arredondado e torcido
este pênis para pô-lo no funil.

SERVO
Quando jovem, eras mesmo petulante, ó velho.

EURÍPIDES
Ó demônio, deixa este homem em paz, e tu
chama Agatão aqui para mim, por todo meio.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 39-65)

A poesia de Agatão é apresentada como material de


um artífice.
SERVO
Não supliques, pois ele já sairá;
é que ele começa a compor um canto. Sendo, então,
inverno não é fácil dobrar as estrofes,
se não vier para fora sob o sol.

EURÍPIDES
O que eu faço então?

SERVO
Espera até ele sair.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 66-70)

SUMÁRIO 138
E finalmente Eurípides explica a situação para o seu parente,
que não entendeu ainda por que ele veio procurar Agatão.
EURÍPIDES
Ó Zeus, o que planejas fazer comigo hoje?

PARENTE
Pelos deuses, eu quero saber
que negócio é este? Por que gemes? Por que estás irritado?
Não deves esconder nada, sendo meu parente.

EURÍPIDES
Um grande mal para mim está moldado.

PARENTE
De que tipo?

EURÍPIDES
Hoje será decidido
se Eurípides vive ou se está morto.

PARENTE
E como, já que agora nem os tribunais
estão julgando nem há assembleia do Conselho?
Uma vez que estamos no meio das Tesmofórias.

EURÍPIDES
É por isso mesmo que espero morrer,
pois as mulheres conspiraram contra mim e no Tesmofó-
rion devem se reunir hoje
em assembleia em vista da minha morte.

PARENTE
E por quê?

EURÍPIDES
Porque delas faço tragédias e falo mal.

PARENTE
Por Posêidon, tu sofrerias com justiça. Mas tu tens algum
ardil para sair dessa?

SUMÁRIO 139
EURÍPIDES
Persuadir Agatão, o tragediógrafo,
a ir ao templo das Tesmofórias.

PARENTE
Para fazer o quê? Conta-me.

EURÍPIDES
Para se reunir com as mulheres e, se for preciso,
falar em meu favor.

PARENTE
Às claras ou secretamente?

EURÍPIDES
Secretamente. Vestido com roupa de mulher.

PARENTE
É engenhoso e completamente do teu estilo; pois com
este artifício o bolo será nosso.

EURÍPIDES
Cala-te.

PARENTE
O que é?

EURÍPIDES
Agatão está saindo.

PARENTE
E onde está?

EURÍPIDES
Onde está? Ali, rolando para fora.

PARENTE
Mas será que estou cego? Pois não vejo
nenhum homem ali, mas vejo Cirene.
(ARISTÓFANES, Tesmoforiantes, vv. 71-99)

SUMÁRIO 140
Novamente, o artifício do teatro é descoberto. Agatão não
aceita a proposta de Eurípides, mas ajuda-o a montar o seu parente
como uma mulher, para ele ingressar no Tesmofórion e fazer a defesa
do poeta. Assistimos a uma completa retirada da máscara do teatro,
ao criticar os fundamentos da representação séria, a trágica, que uti-
liza atores homens em papéis femininos, o ridículo se manifestando
pelo travestimento, no palco, do parente de Eurípides em uma mulher.

Bowie (1993), em Aristophanes Mith, ritual and comedy, no


capítulo dedicado à comédia Tesmoforiantes, sugere que Aristófanes
demarca, nessa peça, os limites na tragédia de Eurípides, que pare-
cia ter incorporado traços cômicos especialmente nas duas peças do
ano anterior à Tesmoforiantes, Helena e Andrômeda. Aristófanes usa
técnicas semelhantes às de Eurípides para demonstrar que a comé-
dia com sua flexibilidade tem mais potencial para criticar de forma
radical a tragédia e suas convenções. Para Bowie, nessa peça, há
a paródia de todo um dia do festival, com três tragédias, um drama
satírico e uma comédia (Télefo, Palamedes, Helena e Andrômeda, que
mesmo não sendo um drama satírico, é transformada em um pelo
comediógrafo, e uma peça cômica obscena com uma dançarina e
um guarda) (Bowie, 1993, p. 217-225).

E na parábase, fazendo a defesa feminina, há a paródia de


Helena, peça que traz a retratação de Eurípides em relação a Helena,
que foi divinizada pelos espartanos. Após tê-la ofendido duramente
nas peças As troianas e Hécuba, como a responsável pela destrui-
ção de Troia, Eurípides parece se desculpar, trazendo uma Helena de
outra versão do mito. Ela não teria ido a Troia com Páris, mas o seu
eidolon é que foi e enganou a todos. Helena tinha ficado presa no
Egito, onde o rei queria por força desposá-la, mas Menelau, voltando
da guerra, a encontra e a leva de volta para Esparta.

Em Fedro (243 a-b), Sócrates, para purificar-se por ter pro-


ferido um discurso impiedoso sobre Eros, cita Estesícoro, acerca da
retratação ou palinódia que compôs para Helena:

SUMÁRIO 141
Sóc. Por isso amigo, preciso purificar-me. Para os que
cometem pecado de mitologia, há uma purificação
antiga que passou despercebida a Homero, não, porém,
a Estesícoro. Privado da vista, por haver injuriado Helena,
não lhe escapou, como a Homero, a causa de seme-
lhante fato; por frequentar as Musas, reconheceu-a e de
pronto compôs os versos:

Foi mentira quanto eu disse.


Nunca subiste nas naves
De belas proas recurvas,
Nem no castelo de Tróia
Jamais pisaste algum dia.
Havendo escrito nesse estilo toda a denominada Palinó-
dia ou Retratação, imediatamente recuperou a vista.44

Além de haver a retratação de um “crime de mitologia”, que


é o mesmo cometido por Eurípides, há, ainda, no Fedro, três discur-
sos analisados por Sócrates sob os critérios da oratória e sua conse-
quente persuasão. Em Tesmoforiantes, também há três discursos, na
assembleia feminina, para deliberarem sobre a morte de Eurípides:
são os discursos de duas mulheres contra Eurípides e o discurso do
parente de Eurípides contra as mulheres, que faz aumentar ainda
mais o ódio delas em relação ao tragediógrafo.

AS RÃS
A peça As Rãs foi representada em 405 a.C. e teve grande
sucesso. O próprio deus do teatro, Dioniso, é o protagonista. Ele
desce ao Hades para resgatar Eurípides, de quem sente uma sau-
dade inesgotável. Eurípides realmente morreu no ano anterior à
representação de As Rãs. Esse Dioniso é aristofânico, é a comédia
sentindo falta do poeta trágico que muito a inspirou.

44 Tradução de Carlos Alberto Nunes, UFP, 1975.

SUMÁRIO 142
DIONISO, parando diante de uma porta
Salta daí, malandro! Que depois desta caminhada, cá estou
eu diante da porta aonde, para começar, me propunha vir.
(Xântias desmonta, o burro é retirado de cena e Dioniso
bate e chama para dentro de casa.)
Ei, moço! Ó moço! Moço!

HÉRCULES (ainda de dentro)


Quem é? Seja lá quem for mandou-se aos coices à
porta que nem um centauro. (Abre a porta e é surpreendido
pela sua imagem; enfim reconhece Dioniso.) Ei! Explica-
-me lá! Que raio de ideia vem a ser esta?

DIONISO (a Xântias)
Ó moço.

XÂNTIAS
Que é?

DIONISO
Não reparaste?

XÂNTIAS
Em quê?

DIONISO
No susto que eu lhe preguei.

XÂNTIAS (à parte)
Lá isso foi! Não vá que te tivesses passado da bola!

HÉRCULES (a tentar controlar-se)


Esta é de cabo de esquadra! Não consigo deixar de rir.
Por mais que me morda, rio-me na mesma.

DIONISO (a Hércules)
Ó amigo, chega aqui! Preciso de falar contigo.

HÉRCULES (que se aproxima, ainda incapaz de suster o riso)


Mas é que não consigo espantar o riso, ao ver uma
pele de leão por cima de um vestido amarelo.

SUMÁRIO 143
Que ideia se te meteu na cabeça? O que fazem juntos
um par de botas de senhora e um cacete? Por que para-
gens tens tu andado?

DIONISO
Andei... embarcado, às ordens do Clístenes.
(ARISTÓFANES, As rãs, vv. 35-48)

Do mesmo modo que Agatão confundiu o parente de Eurípi-


des em Tesmoforiantes, por vestir-se de mulher, sendo homem, Dio-
niso, confunde Héracles, por colocar as roupas de Héracles sobre
seus trajes efeminados de Deus do Teatro. Há ainda o contraste entre
a valentia de Héracles diante dos monstros, incluindo Cérbero, o cão
do Hades, e a covardia de Dioniso, que se treme de medo ao perce-
ber a proximidade da Empusa, uma espécie de Bicho Papão grego.
HÉRCULES
E bateste-te no combate naval?

DIONISO
Bati pois. Navios inimigos, metemos no fundo
uma boa dúzia deles.

HÉRCULES
Vocês os dois?

DIONISO
Sim, claro!

XÂNTIAS (à parte)
Esta até me deixou de olhos arregalados!

DIONISO
Pois estava eu, na coberta do navio, a ler, cá com
os meus botões, a Andrómeda, quando de repente uma
nostalgia me bate ao coração, sabes lá tu de que maneira!

HÉRCULES
Uma nostalgia te bate ao coração? De
que dimensão?

SUMÁRIO 144
DIONISO
Coisa pequena, pela medida de Mólon!

HÉRCULES
Por uma mulher?

DIONISO
Nada disso.

HÉRCULES
Por um rapazinho, então.

DIONISO
Nem pensar!

HÉRCULES
Por um homem, se calhar.

DIONISO (com um suspiro)


Ai, ai!

HÉRCULES
Com que então de panelinha com o Clístenes, hem?!

DIONISO
Deixa-te de gozo, mano, que quem se vê nelas sou eu. Tal
é a paixão que me devora.

HÉRCULES
Paixão? Que paixão, maninho?

DIONISO
Nem te sei dizer. Mas enfim, vou tentar explicar-ta-
por analogia. Já alguma vez sentiste, assim, um desejo
súbito de sopa?

HÉRCULES
De sopa?! Bolas, mil vezes na vida!

SUMÁRIO 145
DIONISO
E então, faço-me entender ou é preciso mais explicações?

HÉRCULES
Quanto à sopa, não. Percebi perfeitamente.

DIONISO
Pois tal é o desejo que me consome... por Eurípides.

HÉRCULES
Como assim?! Por Eurípides, o falecido?

DIONISO
E não há quem me tire da cabeça a ideia de ir à procura dele.

HÉRCULES
O quê? Ao Hades, lá em baixo?

DIONISO
Sim, pois, e mais abaixo ainda, se um tal lugar existir.

HÉRCULES
Com que intenção?

DIONISO
Sinto falta de um poeta de talento. É que uns já não exis-
tem, e os que existem não prestam.
(ARISTÓFANES, As rãs, vv. 49-72)

ENFEZADO, DE MENANDRO
Dyscolos ou Misantropo é a única peça completa que nos
chegou da comédia nova de Menandro. Data de 317 a.C. e apresenta
características bem distintas da comédia antiga de Aristófanes.
Já não é uma comédia política, mas de costume, não tem uma
linguagem obscena sexual ou escatológica. Apresenta um caractere

SUMÁRIO 146
de um homem enfezado, nossa tradução para Dyscolos. O Prólogo
da peça traz o deus Pã, explicando todo o enredo, muito ao gosto de
Eurípides, e a trama parece nascer de um contraste com a tragédia
Hipólito de Eurípides, pois Sóstrato, o rapaz rico da cidade, se desvia
numa caçada e acaba por se apaixonar pela jovem filha de Cnêmon,
o enfezado, a qual está na fonte pegando água.

Da Ática considerai ser o lugar
File, e o Ninfeu de onde saio
dos Filésios que podem até as pedras
aqui arar, um templo muito famoso.
E este campo da direita habita
Cnêmon, um homem antissocial demais
e enfezado com todos, não saudando o povo....
Digo “povo”? Vivendo este já tempo
bastante não tem falado com prazer na vida
com ninguém, nunca iniciando uma conversa,
exceto quando obrigado sendo vizinho passa por mim
Pã; e isto logo o constrange,
bem sei. No entanto, de caráter sendo assim,
com uma mulher viúva casou-se, tendo morrido
para ela recentemente o que a tomou primeiro
e um filho tendo deixado pequeno então.
Com ela brigando não só durante os dias
mas atacando também à maior parte da noite
vivia mal. Uma filhinha nasce-lhe;
ainda mais. E quando o mal era tal que nenhuma
outra coisa surgiria, a vida penosa e amarga,
partiu a mulher de volta para o filho
o primeiro a ela nascido. Um terreninho
era propriedade dele algo pequeno aqui
na vizinhança, onde alimenta agora mal
a mãe, ele próprio, e um fiel criado
paterno. Mas já é adolescente
o menino acima da idade tendo a mente;
pois o faz avançar a experiência das coisas.
O velho vive solitário, na companhia da filha
e de uma serva velha. Carrega madeira e escava a terra, está
sempre trabalhando. A começar por seus vizinhos

SUMÁRIO 147
e por sua esposa, chegando até o litoral de Colargos,
um por um, o velho odeia a todos. A sua filha
tornou-se (alguém igual a criação que teve), não conhece
uma única palavra vil. Devotando-se cuidadosamente
às Ninfas, minhas companheiras, e honrando-as,
convence-nos a ter algum cuidado com ela.
Há, também, um jovem cujo pai muito rico
cultiva, aqui perto, uma propriedade muito valiosa.
Citadino na maneira de agir, (na residência, i. é, mora
na cidade)
Vindo a uma caçada com um amigo
caçador e desviando-se, por acaso, do caminho
faço com que ele se apaixone loucamente.
(MENANDRO, Enfezado, vv. 1-44)

O deus Pã faz aqui o papel do coro da Comédia Antiga de


Aristófanes, apresentando a cena, como se fosse um espectador.
Esta é a trama principal, mas cada coisa, detalhadamente,
assistireis, se desejardes, e espero que desejeis.
Parece que vejo o amante que se aproxima e,
com ele, vem também seu amigo caçador,
conversam entre si a respeito do que acabei de vos falar.45
(MENANDRO, Enfezado, vv. 45-49)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como já havíamos concluído em um texto anterior sobre
Eurípides Aristofânico:

As três peças (Acarnenses, Tesmoforiantes e Rãs) ana-


lisadas apresentaram uma cena de travestimento com
a procura de um adjuvante que emprestasse as rou-
pas, Eurípides e Agatão, ou quem indicasse o caminho,
Héracles. Todas são relacionadas com personagens de

45 Tradução inédita do GENEA, Grupo de Estudos da Comédia Nova – GENEA.

SUMÁRIO 148
Eurípides, que servem como artifício para a salvação pro-
posta pela comédia. Em Acarnenses, parece ser o poeta
cômico quem está em apuros e precisa de Télefo para se
defender diante do coro de velhos do demo de Acarnes;
em Tesmoforiantes, é o próprio Eurípides que deve pedir
perdão às mulheres, através de suas próprias peças paro-
diadas por um parente cômico e, em Rãs, será o desejo do
deus do teatro pelo poeta Eurípides que o levará ao res-
gate da tragédia de Ésquilo como proposta de salvação
da cidade em guerra (POMPEU, 2008, p. 97).

Menandro e a Comédia Nova grega e romana parecem her-


dar um Eurípides aristofânico.

SUMÁRIO 149
9
Jane Kelly de Oliveira

SEXO E PODER
EM LISÍSTRATA
E EM A FONTE
DAS MULHERES
GREVE DE SEXO COMO FORMA DE PODER
Radu Mihăileanu, em A fonte das mulheres (2011)46, propõe
uma reflexão sobre a possibilidade de a mulher mudar a realidade
que a cerca.47 Ambientado em local indefinido, o filme trata de um
grupo de mulheres islâmicas, que, lideradas por Leila, empreendem
uma greve de sexo diante da injustiça de terem a tradicional tarefa
de buscar, numa fonte de difícil acesso — um não lugar importante
à narrativa fílmica —, a água que abastece o vilarejo. A primeira ima-
gem imprime em tela escura as seguintes palavras coloridas em
tom ocre, que lembra a secura e o dourado da areia de um deserto:
“Conto de fadas ou história real? Conto de fadas, é claro. O que é
real? Não estamos na corte de um sultão, mas numa pequena aldeia
norte-africana ou árabe. Ou onde quer que uma fonte corra e o amor
seque” (A FONTE, 2011, 1 min). Então, em uma tomada aérea, logo
vemos uma pequena cidade cravada entre montanhas e, num corte,
somos apresentados às mulheres, vestidas com coloridas roupas,
com o hijab em volta dos cabelos, carregando pesados baldes por
um terreno pedregoso, em busca da água.

Outra cena bastante importante, dessa vez na fonte, nos apre-


senta a barriga prenhe de Karima, em close. A grávida carrega baldes,
e, quando questionada se “estava muito pesado”, responde com um
breve “sim”. A passagem também mostra a personagem tropeçando
nas pedras e o sangue lhe escorre pelas pernas em um claro sinal de
aborto. A esse episódio segue-se, concomitantemente, um parto na
cidade, com as mulheres cantando reunidas em torno da parturiente,
num sentimento de alegria que contagia a todas do vilarejo.

46 Longa-metragem coproduzido por França, Bélgica e Itália, indicado, em 2011, ao prêmio Palma de
Ouro, no Festival de Cinema de Cannes.
47 Questões relativas à divisão sexual do trabalho, à alternância entre trabalho e descanso, ao discurso
opressor da religião, entre outras, também são evocadas no filme, mas não serão abordadas aqui.

SUMÁRIO 151
Figura 1 - Queda e aborto de Karima (Farida Bouaazaoui)

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

Figura 2 - Nascimento de um menino

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

O não lugar proposto intencionalmente pelo diretor, o sofri-


mento do aborto e a alegria do nascimento de um bebê fazem com que
essas mulheres de lugar nenhum sejam todas as mulheres de todos
os lugares. Nesse sentido, apesar de ambientar o enredo em uma
comunidade muçulmana, percebe-se que o diretor deixa claro, logo
no início, que se trata de um filme que versa sobre uma questão femi-
nina geral e sobre o papel da mulher na sociedade à qual pertence.

SUMÁRIO 152
Por certo, a greve de sexo proposta pelas personagens do
filme traz de imediato a lembrança da comédia Lisístrata, de Aristófa-
nes, apresentada em 411 a.C., em Atenas. Essa vinculação inclusive é
confirmada pelo diretor em entrevista ao jornal O Globo, na ocasião
do lançamento no Brasil, não obstante, como se pode ver a seguir,
ele tenha dito que a principal inspiração foi uma notícia48:
RADU MIHĂILEANU: […] O que me inspirou foi uma notí-
cia que li em 2001 sobre uma aldeia no interior da Turquia
na qual as moradoras fizeram uma greve de amor para
forçar seus maridos a resolver o problema de abasteci-
mento de água no local. De cara, aquela notícia me fez
rir, pelo inusitado de ver uma reação assim, similar ao
que ocorria na Antiguidade, ser tomada neste mundo de
alta tecnologia. […] Voltei a Aristófanes para buscar seu
humor preservando a dimensão política do gesto daque-
las mulheres. A atitude delas foi uma afirmação de poder
pelo sexo. Era um gesto que servia para criar uma ale-
goria cinematográfica sobre a recente ascensão feminina
à liderança governamental de vários locais em diversos
países (FONSECA, 2012).

De fato, é natural a um diretor de cinema inspirar-se em notí-


cias cotidianas para criar seus enredos, mas Mihăileanu equivocou-
-se ao vincular a greve de sexo feminina a algo “similar ao que acon-
tecia na Antiguidade”, como vimos na citação acima, já que é muito
frequente e atual mulheres usarem a sexualidade como instrumento
de poder. No Togo, em 2012, por exemplo, integrantes do grupo Sal-
vemos Togo deflagraram uma greve de sexo para coagir os homens
a engajarem-se na luta contra a modificação do código eleitoral. Isa-
belle Amegavi, ativista do movimento, convocou as mulheres
a privar de atividade sexual seus maridos durante uma
semana […]. Trata-se de obrigar todos os homens a se
comprometerem mais na luta levada adiante pelo grupo
Salvemos Togo. […] As mulheres são as primeiras vítimas

48 Sobre a notícia que inspirou o filme, veja mais em Lessa (2001).

SUMÁRIO 153
no Togo. Razão pela qual dizemos a todas as mulhe-
res: uma semana sem sexo também é uma arma de
luta (NO TOGO, 2012).

Um ano antes, três mulheres haviam ganhado o Prêmio Nobel


da Paz como recompensa “por sua luta não violenta pela segurança
das mulheres e pelos seus direitos a participar dos processos de
paz” (TRÊS, 2012), segundo Thorbjørn Jagland, antigo presidente do
comitê que concede a honraria. Para Leymah Gbowee, uma das três
ganhadoras, o sexo pode ser uma arma de mudança social. Por isso
ela o usou como estratégia, em 2002, na Libéria, numa iniciativa que
levou as liberianas de todas as confissões religiosas a
negar sexo aos homens até que cessassem os comba-
tes, o que obrigou Charles Taylor, ex-chefe de guerra con-
vertido em presidente, a associá-las às negociações de
paz. “Leymah Gbowee mobilizou e organizou as mulheres
além das linhas de divisão étnica e religiosa para pôr fim
a uma longa guerra na Libéria e garantir a participação
das mulheres nas eleições”, disse Thorbjørn Jagland, pre-
sidente do comitê do Nobel (GANHADORA, 2011).

Mais recentemente, em 2014, mulheres do Sudão do Sul


propuseram uma greve contra a guerra civil do país. A sugestão foi
“mobilizar todas as mulheres do Sudão do Sul para que neguem aos
maridos os direitos conjugais até que [eles] consigam estabelecer
a paz” (MULHERES, 2014). Para que não se pense que ações assim
acontecem apenas em países africanos, oferecemos ao leitor uma
notícia da Europa: a senadora belga Marleen Temmerman sugeriu,
em 2011, que as mulheres dos parlamentares fizessem uma greve de
sexo para pressionar os negociadores a pôr fim a um impasse político
que deixou o país sem governo por mais de duzentos dias (RAATZ,
2011). Do mesmo modo, recentemente, no Brasil, a então senadora
Gleisi Hoffmann propôs que no dia 8 de março, Dia Internacional da
Mulher, as mulheres fizessem um dia de greve para evidenciar o que
representam na sociedade. Entre as atividades suspensas estava
“inclusive [a] sexual” (JUNGBLUT, 2017).

SUMÁRIO 154
Esses exemplos são uma pequena seleção de notícias de
mulheres que se organizaram em prol de causas sociopolíticas e
recusaram-se a praticar sexo, ou ao menos sugeriram isso, como
forma de forçar uma negociação. Assim, abordar greve de sexo num
filme de 2011 liga Mihăileanu diretamente a situações atuais. Isso não
desvaloriza a tributação de A fonte das mulheres à comédia Lisís-
trata; antes, demonstra como uma peça do século V a.C. ainda pode
ser atual e nos fazer refletir sobre nossa vida no século XXI. Essa
afirmação torna-se mais evidente quando observamos o histórico
da recepção de Lisístrata na modernidade. Nesse sentido, Adriane
Duarte49 (2011) traz dados sobre a sua recepção nos teatros da cidade
de São Paulo entre os anos de 1990 e 2000, quando somente três
peças do comediógrafo foram à cena: Paz, Assembleia de mulheres
e Lisístrata: “mas enquanto as duas primeiras tiveram apenas uma
montagem cada, a última foi encenada sete vezes por grupos distin-
tos” (DUARTE, 2011, p. 124). Outro sintoma da preferência por Lisís-
trata é indiciada em Ancient Comedy and Reception (2014), editado
por Douglas Olson. Seus capítulos mapeiam a recepção da comédia
antiga grega e romana, e, na parte destinada a recepções modernas
(“Modern Receptions”), dos dezessete capítulos, quatro tratam da
recepção de Lisístrata! O favoritismo pela comédia pode ser expli-
cado pelo fato de ela conter matrizes temáticas caras à modernidade.
É o que diz explicitamente Duarte (2011, p. 123), para quem
Lisístrata é a que melhor representa para os leitores atuais
os percalços do século que passou. Seu enredo conjuga
uma greve sexual deflagrada pelas mulheres, discursos
antibelicistas, invasão de prédios públicos como forma de
protesto, enfim, estratégias reconhecíveis aos que viram
no transcorrer de cem anos dois conflitos de propor-
ções mundiais, inúmeros outros de expressão regional, a

49 Neste artigo, Adriane Duarte analisa um episódio do filme de Christian-Jaque, Destino de mulher (Des-
tinées, França, 1954). O mesmo filme foi analisado por Maria Cecília de Miranda Coelho no texto “Who
is Afraid of Lysistrata”, enviado à American Philological Association (APA), mais especificamente para o
Three-Year Colloquium on KINHMA: Classical Antiquity and Cinema/Gladiatrix! Fighting Women of the
Screen, coordenado pelos professores Martin M. Winkler e Hanna Roisman, em 2008.

SUMÁRIO 155
revolução sexual, a ascensão de movimentos operários,
as conquistas dos direitos das mulheres.

Apesar do anacronismo em ver explicitamente todos esses


tópicos na comédia do século V a.C., como nos diz Italo Calvino
(1993, p. 11), “um clássico é um livro que nunca terminou aquilo que
tinha a dizer”, e, devido às renováveis possibilidades de leitura, é pos-
sível ao cinema, como a outras artes, convocar e reapresentar os
textos clássicos em resposta a demandas modernas. Martin Winkler
(2014), por sua vez, em seu artigo “Aristophanes in the Cinema; or,
the Metamorphoses of Lysistrata”, investiga a recepção da comédia
antiga no cinema e nota que, nas produções americanas e euro-
peias, a versatilidade seminal de Lisístrata permite adaptações sérias
ou cômicas, com temáticas variadas capazes de contemplar ques-
tões sociais diversas.

SOBRE LISÍSTRATA,
DE ARISTÓFANES
Lisístrata retrata uma greve de sexo das mulheres que, lide-
radas pela personagem homônima50, assumem o poder da cidade
em prol da paz. Segundo Duarte (2005), o sucesso obtido por essa
comédia no século XX, graças às semelhanças vistas pelo público
atual com os movimentos políticos e feministas, afasta-se bastante
da sua recepção original em Atenas de 411 a.C. A greve não seria de
mulheres em geral, mas de esposas, e não estaria relacionada ao
impedimento da satisfação sexual dos maridos, mas à impossibili-
dade de manter a organização familiar.

50 Os trechos citados da obra são traduzidos por Adriane Duarte (2005), que usa o nome Dissol-
vetropa em vez de Lisístrata.

SUMÁRIO 156
O fato de a greve estar restrita às esposas é o que a torna
eficaz, pois […] a elas é que compete a transmissão da cida-
dania. Os maridos podem se satisfazer sexualmente com
outros parceiros, mas esses relacionamentos não propor-
cionariam herdeiros legítimos (DUARTE, 2005, p. XXVII).

Em jogo estão, pois, dois interesses legítimos e antagônicos


dos atenienses: um particular, a organização da residência; outro,
público, a administração da cidade. Os interesses políticos dos
homens em manter a guerra afetavam de forma absoluta o bom fun-
cionamento do oîkos — tarefa eminentemente feminina —, uma vez
que as riquezas eram destinadas a gastos com a manutenção des-
sas guerras; os campos estavam ociosos, pois os lavradores refugia-
vam-se nas cidades; e a ausência dos maridos, soldados, impedia as
mulheres de engravidarem.

Para Maria Dezotti (2005), o conflito entre desejo sexual e


a guerra subjaz ao mito de amor entre Afrodite e Ares. O deus da
guerra é cativo das artimanhas de sedução de Afrodite, e, em Lisís-
trata, os homens se confessam escravos desse desejo. Essa vertente
do mito é a chave para o triunfo das mulheres em seu plano de forçar
os homens a acabarem com o conflito por meio de uma greve sexual
das esposas. A presença dos homens excitados, por sua vez, é uma
referência à faloforia, presente no mito de Dioniso.

Os extratos mitológicos utilizados por Aristófanes na cons-


trução do enredo também relacionam-se à fertilidade do solo e das
pessoas. Na comédia, a guerra afeta estes domínios — de Dioniso e
de Afrodite —, uma vez que as batalhas impediam tanto as mulheres
de engravidarem, e oferecerem cidadãos legítimos à cidade, quanto
os lavradores de cultivarem a terra.

A peça inicia com Dissolvetropa esperando pela chegada


de outras mulheres. Depois de uma breve queixa, ela percebe que
sua vizinha, Lindavitória, chega para a reunião e a questiona sobre
o assunto a ser tratado. Dissolvetropa responde: “a salvação de toda

SUMÁRIO 157
a Grécia está nas mulheres” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 30). E con-
tinua: “que dependem de nós os negócios da cidade ou ela deixa
de existir” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 32-33). De fato, nos primeiros
quarenta versos, mesmo antes de terem chegado todas as mulheres
convocadas para a reunião, parte do projeto da heroína já é reve-
lada ao público: “Quando as mulheres se reunirem aqui, as da Beó-
cia, as peloponésias e nós, juntas salvaremos a Grécia” (Aristófanes,
Lisístrata, vv. 39-41).

Os detalhes do plano, porém, serão explicitados apenas


quando as demais mulheres entrarem, o que aumenta a expectativa
do público e adia a apresentação do conflito ficcional. Assim, Vul-
verina, de Anagiro, entra em cena no verso 69, e Lampito, a espar-
tana, no 82; juntamente com elas, chegam outras, representadas por
figurantes. Quando as mulheres esperadas por Dissolvetropa estão
em cena, Lampito pergunta: “Quem mesmo pediu a reunião desta
tropa de mulheres?” (τὸν στόλον τὸν τᾶν γυναικῶν) (Aristófanes, Lisís-
trata, vv. 93-94). A escolha da palavra στόλον, traduzida por “tropa”,
é importante, pois faz referência ao campo semântico das batalhas
e, por isso, direciona a recepção do público. Isto é, em cena não
está um simples grupo feminino, mas uma tropa, e, como o enredo
revelará, esta deve preparar-se para a guerra que oporá homens e
mulheres. Eis que Dissolvetropa incita a curiosidade delas e, conse-
quentemente, a dos espectadores, ao adiar, novamente, a divulgação
dos pormenores do plano: “Eu poderia dizer já. Mas antes de contar
vou fazer umas perguntinhas a vocês. […] Vocês estão com sauda-
des dos pais de seus filhos que estão servindo o exército?” (Aristó-
fanes, Lisístrata, vv. 97-100). Por meio das respostas, percebe-se que
a abstinência sexual é o principal motor da ação das mulheres, pois,
com os maridos distantes há muito tempo e a falta de um amante
(Aristófanes, Lisístrata, vv. 107-108), elas decidem agir em prol do
desfecho da batalha.51

51 Dezotti (1997) também considera a abstinência sexual motivação para a ação de Lisístrata.

SUMÁRIO 158
Depois de ouvir das mulheres o desejo e o comprometimento
com o fim da guerra, Dissolvetropa conclui: “Então é preciso que nos
abstenhamos da rola” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 124). A proposta pro-
voca reação negativa: primeiro, fisicamente, virando as costas para
Dissolvetropa (Aristófanes, Lisístrata, vv. 125), negando com a cabeça
(Aristófanes, Lisístrata, vv. 126), chorando (Aristófanes, Lisístrata, vv.
127); depois, verbalmente, dizendo que não são capazes de tal feito.
Qualquer outra coisa fariam para obter o resultado esperado: dar par-
tes do corpo, caminhar sobre o fogo (Aristófanes, Lisístrata, vv. 132);
mas ficar sem sexo é insuportável. Apenas Lampito apoia o plano.
Com a adesão da espartana, sela-se o acordo entre as duas cidades
líderes da Guerra do Peloponeso — Atenas e Esparta. Lampito então
adverte que os homens atenienses dificilmente seriam convencidos
a firmar uma paz justa e sem trapaças “enquanto as trirremes tiverem
pés e dinheiro sem fim houver junto à deusa” (Aristófanes, Lisístrata,
vv. 173-174). “Mas também isso está bem preparado [diz Dissolve-
tropa], pois hoje tomaremos a acrópole. Cabe às mais velhas fazer o
seguinte: enquanto nós combinamos nossa parte, elas, aparentando
sacrificar, tomarão a Acrópole” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 175-179).

Com o acordo firmado, propõe-se um juramento — ocasião


para Aristófanes inserir outros elementos de humor. Primeiro há uma
discordância quanto à forma do juramento. Dissolvetropa pede que
alguém traga escudo e testículos picados, mas esses objetos voti-
vos não se relacionam à paz, adverte Lindavitória, que sugere um
juramento feito com o sacrifício de um cavalo branco, ideia descar-
tada pela líder do grupo devido à evidente dificuldade em se obter
o animal. Finalmente definem: “Depois de colocar uma grande taça
negra emborcada e degolar uma jarra de vinho tásio, juraremos não

SUMÁRIO 159
verter água nela” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 195-197).52 Logo após
todas repetirem a promessa ditada por Dissolvetropa, por meio da
qual se comprometem a não fazer sexo com maridos ou aman-
tes, a líder “consagra a vítima”, e todas bebem uma parte do vinho.
Então um barulho é ouvido; Dissolvetropa reconhece o tumulto e
avisa: “As mulheres mais velhas já tomaram a cidadela da deusa.
Vamos, Lampito, vá e coordene bem o seu lado. […] E, nós, junto
com as outras na Acrópole, ajudemos a colocar trancas” (Aristófa-
nes, Lisístrata, vv. 241-246).

Definem-se as próximas ações. Enquanto Lampito volta


para Esparta, as demais mulheres vão para a Acrópole ajudar o coro
feminino. Todos saem de cena para que o coro entre e desempenhe
o párodo. No párodo, o público presencia um combate entre dois
semicoros, um feminino, outro masculino, em torno da tomada do
Partenão. Idosos e idosas medem forças na disputa pelo espaço da
Acrópole e tornam essa parte da comédia um combate ideológico
e rítmico. Os dois coros usam o pé iâmbico na cena. Como mostra
L. P. E. Parker (1997), o iambo é o mais natural e mais popular ritmo
em que um grego poderia compor. Foi usado amplamente na poe-
sia lírica e adquiriu sofisticação com os compositores de tragédia.
A comédia, ao tomar emprestado tal metro, acessa a memória rít-
mica que o público tinha graças ao frequente contato com perfor-
mances musicais53, a transforma e a ajusta às necessidades humo-
rísticas da peça, fazendo o ritmo do verso ligar-se ao movimento
cênico dos grupos na cena.

52 Os objetos cênicos utilizados no juramento são altamente significativos. O vinho, bebida de Dio-
niso, é símbolo da fertilidade do solo; a jarra (σταμνίον) na qual o vinho está contido, pelo seu
formato alongado, faz alusão ao órgão sexual masculino; a taça, com seu formato côncavo, pronta
para receber o líquido da fertilidade que jorra, remete ao órgão sexual feminino. O juramento, por
sua vez, antecipa o fim da peça e expressa o desejo íntimo das mulheres de se unirem sexualmen-
te com seus maridos e garantir a fecundação.
53 O que Herington (1985) chama de song culture.

SUMÁRIO 160
O semicoro de velhos entra na orquestra “passo a passo”
(βάδην), ou em marcha, como sugere o termo grego. As primei-
ras palavras do semicoro de homens velhos são: “Avance, Draces,
guie-nos, passo a passo, mesmo que doa seu ombro por suportar
tamanho peso do galho da verde oliveira” (Aristófanes, Lisístrata, vv.
254-255). Eles carregam galhos de oliveira, tochas enfumaçadas e
têm intenção de envolver a cidadela com madeira incendiada para
obrigar as mulheres a saírem. As toras pesadas e a carga (Aristófa-
nes, Lisístrata, vv. 291, 314) bem como a fumaça (Aristófanes, Lisís-
trata, vv.. 301, 305) que faz arder os olhos são motivos para queixas.
Mas o semicoro sabe da urgência da situação e, por querer logo
chegar à “cidadela da deusa”, diz frequentes palavras de incentivo:
“Vamos, rápido, apressemo-nos para a cidadela” (Aristófanes, Lisís-
trata, vv. 266), “apresse-se até a cidadela e socorra a deusa” (Aris-
tófanes, Lisístrata, vv. 302). O semicoro de mulheres velhas entra
na cena, também no ritmo iâmbico. As velhas tinham ido buscar
água e voltaram com jarros cheios: “Voe, voe, Nicódice, antes que
sejam queimadas Cálice e Crítila, sufocadas pelos ventos terríveis e
pelos velhos horríveis” (Aristófanes, Lisístrata, vv. 321-326). Elas têm
pressa e sabem do perigo que as companheiras correm dentro do
templo de Atena; enquanto se posicionam para a batalha contra o
outro semicoro, cantam:
Deusa, que eu jamais as veja arder em chamas, mas sal-
var a Grécia e seus cidadãos da guerra e das loucuras.
Nessa condição, deusa do penacho de ouro, protetora da
cidade, eu te conclamo nossa aliada, Tritogêna, se algum
homem atear fogo nelas, traga água conosco (Aristófa-
nes, Lisístrata, vv. 341-349).

O semicoro de velhos vem para salvar a deusa, mas o de


velhas a considera aliada da causa feminina. A disputa territorial
posta em cena fica clara. Os dois semicoros têm objetos cenicamente
pesados, são compostos por idosos e idosas e utilizam ritmos
semelhantes. Parker (1997, p. 368), nesse sentido, mostra que em
ambos o ritmo remete aos passos e aos gestos do coro, que, apesar

SUMÁRIO 161
do cansaço próprio da idade e do peso carregado, são apressados
dada a urgência da ação.

Assim, a partir do verso 350, a alternância dos cantos vai


num crescendo e a intercalação entre os versos do grupo de velhos
e os do grupo de velhas dá dinamicidade à cena, que chega ao clí-
max quando as mulheres jogam água nos homens, no verso 381.
Em vista disso, Paul Mazon (1904, p 114) acredita que o ritmo indi-
cia que a cena era marcada por movimentos cênicos de ataque e
retração. Já Parker (1997, p. 361), com a escansão dos versos, chega
à conclusão de que a aceleração rítmica do fim da cena mostra um
curto pnigos54, reflexo da euforia do combate, cada vez mais dinâ-
mico entre as duas partes. Mas o fato é que, quando, ao término do
prólogo, as mulheres invadem a Acrópole, onde se localiza o templo
de Atena, transformam aquele espaço, antes utilizado pelos homens
como banco de reservas de divisas públicas, em espaço feminino,
fechado e interdito aos homens. Como dissemos, o párodo da peça
é antes uma disputa territorial encenada na orquestra do teatro, mas
essa disputa ganha significados simbólicos quando observamos o
ritmo dos versos, a movimentação cênica da peça, a proxêmica e a
configuração espacial.

O grupo de velhos carrega galhos de oliveira — armas fáli-


cas —, e a intenção é justamente entrar no templo da Atena, que,
diga-se de passagem, é uma deusa casta. Essa configuração do
espaço cênico da comédia retoma e resume os desejos masculinos
e femininos de cópula. A greve de sexo, a consequente proibição
do corpo masculino de entrar no corpo feminino, é reafirmada pela
configuração espacial e pela movimentação cênica. Eles desejam ter
acesso à Acrópole, ou seja, ao reduto feminino, mas esse ingresso é
vedado, da mesma maneira que as mulheres interditam aos homens
as relações sexuais.

54 Pnigos significa, literalmente, sufocação. É o nome dado ao fim do agón, quando o verso é dito
rapidamente, pondo desfecho à discussão.

SUMÁRIO 162
A dança dos coros na orquestra, com os movimentos de vai
e vem depreendidos pela escolha métrica de Aristófanes, a finali-
zação, com um verso que remete à dificuldade de respirar, e jatos
de líquido na cena simulam o ato sexual. Apesar dessa leitura sim-
bólica, o párodo de Lisístrata é estruturado métrica, cênica e nar-
rativamente como uma batalha que opõe velhos e velhas armados
com tochas e toras de madeira, por um lado, e jarros de água, por
outro. São fortes oponentes, que, além do enfrentamento discursivo,
agridem-se mutuamente.

De fato, o coro é essencial nesta comédia, pois a intriga da


peça é centralizada em sua ação. O foco da disputa é encenado por
esse corpo coletivo da comédia grega dividido em dois semicoros.
Dissolvetropa, a líder no começo da peça, está totalmente apartada
do núcleo desse conflito no momento. E a sua função fica sendo a
de controlar as mulheres e convencer os homens a selarem a paz
no último quarto da peça. Carlo F. Russo (1994, p. 166) expressou a
mesma ideia ao dizer que
a posição do protagonista e de seus companheiros é fun-
damental para a comédia e, consequentemente, governa
a ação de cena, que é, em grande parte, sustentada,
ao mesmo tempo, pelo coro (subdividido por esta pre-
cisa razão em um semicoro de velhos atenienses hostis
a Lisístrata e um semicoro de velhas atenienses favorá-
veis a ela; o párodo 244-385 é deixado inteiramente para
estes dois semicoros).

O Delegado então entra em cena (Aristófanes, Lisístrata, vv.


387), e nada em sua fala indicia que a greve de sexo surte algum
efeito, já que ele vem para buscar dinheiro a fim de fomentar a guerra:
Coisas assim levam a este outro aqui,
quando eu, que sou delegado, tendo encontrado como
confeccionarmos remos, faltando agora o dinheiro,
estou trancado para fora das portas pelas mulheres.
Mas ficar parado não ajuda nada. Traga as alavancas
para que eu acabe com a insolência delas.
(Aristófanes, Lisístrata, vv. 420-425)

SUMÁRIO 163
Quando o Delegado e os guardas estão prestes a forçar a
porta, sai do Partenão Dissolvetropa. Fracassando em convencê-
-lo quanto à justiça na ação das mulheres e ameaçada pelos sol-
dados, convoca as que estão dentro do templo, o que acarreta um
embate físico entre os soldados acompanhantes do Delegado e
as escudeiras de Dissolvetropa: nessa briga, as mulheres levam a
melhor e deixam a cena.

A sequência (Aristófanes, Lisístrata, vv. 476-613) é o agón55


da peça. Dele participam não apenas o Delegado e Dissolvetropa,
mas também os dois semicoros. O desenho da cena é interessante,
pois temos dois grupos com seus respectivos líderes, o que remete
às reminiscências do drama, quando os grupos corais começaram
a destacar um ator para debater com ele. Por certo, os dois semi-
coros têm atribuições importantes no agón. Eles introduzem as
discussões entre Dissolvetropa e o Delegado de forma calorosa
e com enfrentamentos.

A parábase da peça (Aristófanes, Lisístrata, vv. 614-705) é


influenciada pela falta de veredicto do fim do agón, desenvolvendo-
-se como uma nova cena de debate56, que termina ainda sem uma
definição. Depois da parábase, a greve de sexo é, finalmente, perce-
bida. Quatro mulheres sucessivamente saem do Partenão e inven-
tam pretextos a fim de irem para casa, mas Dissolvetropa sempre as
impede, quando percebe que desejam fazer sexo com os maridos.

A esta cena feminina da necessidade de sexo sucede a cena


em que um marido, Trepásio, chega com o pênis ereto à procura da
esposa, Vulverina, que o provoca e lhe aguça o desejo para no fim
deixá-lo desapontado, quando diz que só se deitará com ele depois
que houver paz. É então que presenciamos um desfile de falos eretos

55 Lisístrata é uma das quatro peças de Aristófanes que possui agón completo. As demais são
Os cavaleiros, As vespas e As aves (FÉRAL, 2009, p. 41).
56 Cláudia Féral (2009, p. 152) nota que a parábase de Lisístrata conserva características de agón.

SUMÁRIO 164
dos homens. Trepásio, o embaixador lacedemônio, e o embaixador
ateniense, com os respectivos cortejos de homens, vêm à procura
de Dissolvetropa, consumidos por tal doença (Aristófanes, Lisístrata,
vv. 1088). E o embaixador ateniense diz o seguinte: “Por Zeus, afe-
tados por ela, estamos sendo consumidos./ Assim, se alguém não
nos reconcilia logo,/ não há como não traçarmos Clístenes” (Aristó-
fanes, Lisístrata, vv. 1090-93). Pois que Dissolvetropa intermedeia a
negociação de paz entre os embaixadores e, depois de entrarem em
acordo, autoriza a entrada dos homens na Acrópole, sendo, por fim,
reestabelecida a ordem social em Atenas. Ela então afirma:
Agora tratem de se purificar,
de modo que nós, mulheres, possamos recebê-los
na cidadela com o que temos em nossas cestas.
Ali, façam juras e promessas uns aos outros,
e, então, cada um de vocês pega a sua mulher
e vai embora.
(Aristófanes, Lisístrata, vv. 1182-87)

O coro, dividido em toda a peça, une-se e canta a uma só


voz; juntamente, os atores também cantam e dançam: uma grande
festa acontece. Essa análise de Lisístrata revela como ele é impor-
tante nessa comédia e como centraliza o conflito. A divisão em dois
grupos rivais cria, na estrutura narrativa desse gênero, a permanên-
cia de polos axiais marcados pelos elementos feminino e mascu-
lino. Ambos enfrentam-se, e a disputa entre os semicoros de mulhe-
res velhas e de homens velhos ocupa aproximadamente dois ter-
ços da comédia. A quantidade de versos que lhe são destinados57,
além dos variados papéis ocupados pelos semicoros, indica como
a configuração espacial da peça remete à disputa de dois grupos, e
não de dois indivíduos.

57 O coro de velhos entra em cena no verso 254, e, desse verso até o fim da comédia, as cenas de de-
bate entre os coros são intensas, apenas suavizadas pela chegada e saída de algum personagem
ou por cenas curtas que se interpunham ao diálogo dos semicoros.

SUMÁRIO 165
Vejamos, então, alguns aspectos importantes na retomada
de Lisístrata em A fonte das mulheres.

A FONTE DAS MULHERES,


DE RADU MIHĂILEANU
Em A fonte das mulheres, assim como em Lisístrata, a greve
de sexo é central na trama. Ela é contextualizada no cotidiano de
um pequeno vilarejo muçulmano, desprovido dos avanços tecnoló-
gicos e esquecido pela administração pública. Sendo assim, a aldeia
não conta com tubulações de água nem com energia elétrica. Para
garantir que as casas tenham o recurso natural, as mulheres preci-
sam percorrer grandes distâncias até a fonte. Esse desgastante tra-
balho feminino é atribuição de uma antiga tradição, da época em
que os homens lutavam nas guerras e as mulheres cuidavam da
casa. Mas guerra já não há mais; os homens passam o dia tomando
chá, conversando e fumando no centro comercial da aldeia. Como
agravante da situação, várias mulheres tiveram gestações interrom-
pidas em decorrência da tarefa, pois o peso excessivo dos baldes
e as frequentes quedas em decorrência do caminho pedregoso e
acidentado provocaram muitos abortos. Além disso, as mulheres
que não geravam eram acusadas pelos maridos de estéreis e ame-
açadas com o repúdio.

O fato é que os primeiros minutos do filme já enfocam jus-


tamente a importância da maternidade, frente à dor da perda de
uma gestação. Karima, por exemplo, perde o bebê voltando da fonte,
enquanto outra mulher dá à luz um menino. A festa que percorre a
aldeia com esse nascimento é contraponto para o silêncio sobre o
aborto que Karima viveu.

SUMÁRIO 166
Figura 3 - Choro de Karima (Farida Bouaazaoui) e Leila (Leila Bekhti) pelo aborto

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

Figura 4 - Comemoração das mulheres da vila pelo nascimento

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

O primeiro canto coral das mulheres acontece nessa cele-


bração. Elas cantam, com acompanhamento de percussão, e a letra
da música remete ao amor, à beleza e à sorte de se ter um filho.
Leila, sozinha, contrapõe-se à voz coletiva, a capella, com canto que
fala sobre a morte de bebês e relembra o aborto que aconteceu na
cena anterior. Opõem-se, claramente, o grupo de mulheres, em pé,
e Leila, sentada. Os versos desta denotam essa dor: “A água traz a

SUMÁRIO 167
vida, a água leva a vida/ A vergonha cala as línguas/ para que elas
não falem da tragédia/ lágrimas pretas inundam o solo sedento” (A
FONTE, 2011, 7 min). Leila é então silenciada com o som da percus-
são, que volta a ser ouvido, e as mulheres cantam em coro: “A nossa
terra é árida/ essa é a tragédia./ Eu concebi a felicidade/ dei à luz a
um menino” (A FONTE, 2011, 7 min).

Figura 5 - Canto de Leila (Leila Bekhti) opõe-se ao canto coral das mulheres

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

Temos, dessa maneira, questões importantes sendo debati-


das no filme. Como no caso em que à opressão feminina imposta
pela sociedade machista faz frente Leila, a jovem esposa do profes-
sor da aldeia e a única mulher alfabetizada da localidade. Ela propõe
e lidera uma greve de sexo com o decisivo apoio de Zumi, uma velha
senhora que tem o apelido de Velho Fuzil.

O fato é que, assim como em Lisístrata, a greve de sexo é


utilizada como instrumento de poder. Mas, além dela, outros aspec-
tos da comédia antiga são reutilizados. Numa entrevista, o diretor do
filme confirma isso: “Voltei a Aristófanes para buscar seu humor, pre-
servando a dimensão política do gesto daquelas mulheres” (FON-
SECA, 2018). Por certo, a capacidade de captar e reelaborar crítica
e esteticamente os assuntos da comunidade está presente nos dois

SUMÁRIO 168
artistas, mas evidentemente as demandas sociais e políticas de cada
época são bem diferentes, e consequentemente os tópoi retomados
pelo cineasta são recobertos com novos significados.

A greve de sexo em Aristófanes é estratégia para que os


homens ponham fim à Guerra do Peloponeso e retornem para casa.
Quer dizer, não há em Lisístrata uma proposta de alteração defini-
tiva das relações de poder. Já em Mihăileanu a greve é ocasião para
discutir e questionar a divisão de trabalho calcada no gênero e é
também um forte ataque ao machismo muçulmano. Como apontam
Moura e Silva (2016, p. 20),
o contexto de produção e recepção de A fonte das mulhe-
res, no século XXI, se dá após as três fases (ou “ondas”) do
movimento feminista, em um momento no qual as reivindi-
cações em prol da defesa dos direitos femininos são cada
vez mais sólidas. Assim, a condição social da mulher não
é apenas uma temática a partir da qual outras questões
são desenvolvidas (como ocorre no texto aristofânico),
mas traz em si discussões relativas às violências impos-
tas pelas estruturas de poder da hegemonia masculina.
A temática da greve de sexo, no filme, surge como uma
oposição à opressão à qual os homens na aldeia relega-
vam as mulheres. Para o espectador atual, essa discussão
não suscita simplesmente o riso, mas o reconhecimento
de todas as lutas históricas feministas e das violências
vivenciadas no passado e no presente pelas mulheres.

Os pontos de contato entre as duas obras são vários: a greve


de sexo, o sofrimento feminino com a abstenção sexual, a presença
da fonte, a oposição entre os sexos feminino e masculino, a discussão
sobre guerra e paz, espaço público e espaço privado, a forte presença
do canto e da música etc. Mas são evidentes também as diferenças
no tratamento desses assuntos. A começar pelo tom dramático que

SUMÁRIO 169
o longa-metragem constrói, com cenas de violência sexual58 e outras
agressões sofridas pelas mulheres e pelo destaque à opressão e à
subalternação feminina numa comunidade machista. A fonte apa-
rece nas duas obras, mas, enquanto na comédia antiga é apenas
citada, no filme ela é central: está nos diálogos, nas músicas e, inclu-
sive, no título da obra; é o local em que vários abortos acontecem, é a
lembrança da submissão feminina e é o que motiva a greve de sexo.

Greve esta que é proposta por Leila, aos onze minutos do


longa, em uma sala de banho, quando estão reunidas mulheres de
todas as idades. A cena abre com ela sentada ao lado de Karima, em
silêncio, enquanto Rachida conta suas ótimas experiências sexuais
com o marido e todas se divertem: “Meu marido não é um trapo,
como o de vocês”, pois “meu forno é quente e a pá dele é habili-
dosa”. Esse tom jocoso acontece até que Leila lembra a todas, em
tom urgente: “Outro bebê morreu na montanha!”. Imediatamente, a
perspectiva da cena muda, e não ouvimos mais risos. Leila é repre-
endida por tratar desse assunto naquele local, mas reafirma a neces-
sidade de se falar sobre o acontecido e aponta, uma a uma, todas as
que perderam bebês na fonte e depois foram injustamente acusadas
de estéreis. Então ela propõe que os homens devem buscar a água,
como já acontece em outras aldeias, ao que é contraposta por sua
sogra, Fátima, que argumenta raivosamente: “A água serve para a
casa. É a mulher que deve ir buscar. É assim desde o início dos tem-
pos. É a tradição”. Leila, pois, insiste mostrando que “antes os homens
trabalhavam nos campos e iam para as guerras. Hoje, a maioria está
nas cidades. E o que eles fazem? Dormem, tomam chá e jogam car-
tas no bar. Eles podem trazer água!” (A FONTE, 2011, 12 min).

58 Em Lisístrata, quando se delineia a proposta de greve de sexo, a personagem é questionada sobre


como as mulheres devem agir se forçadas ao sexo. Assim, fica evidenciada a presença de violên-
cia sexual na comédia do século V; mas esse tema não é aprofundado, e, ao contrário, a violência
é naturalizada. Já no longa esse tema é retratado mais enfaticamente.

SUMÁRIO 170
As mulheres mostram-se divididas. As mais velhas apoiam a
manutenção da tradição. É então que Leila ganha uma forte aliada. A
Velho Fuzil faz um discurso importantíssimo, que lembra bastante o
de Medeia na tragédia homônima de Eurípides, revelando a violência
sofrida pelas mulheres naquela comunidade:
Um dia um francês me perguntou: “Quais foram os
momentos mais felizes da sua vida?”. E eu respondi:
“Até os meus catorze anos”. Todas vocês sabem por quê.
Quando eu tinha catorze anos, fizeram-me casar. Eu o
conheci na noite de núpcias. Não antes. E, como vocês
todas, eu só o vi na manhã seguinte quando ele abriu as
persianas. À noite eu não o vi. Estava escuro. Ele só me
violentou. Eu achava que um marido sentava na cama ao
lado da esposa e segurava a mão dela. E que era gos-
toso. Ele tinha quarenta anos e já tinha dois filhos. Um de
dez e outro de onze. […] Aos catorze anos, eu me tornei
mãe de crianças da minha idade. Depois dei à luz deze-
nove vezes. Doze morreram, dos quais dois na montanha
perto da fonte. Você, Moufida, deu à luz doze vezes. Cinco
bebês morreram. Você, oito vezes. Três bebês mortos.
Você, Yasmina, seis vezes, não é? Três bebês mortos. É
a tradição, estamos acostumadas. Metade das crianças
que tivemos morre. Por muito tempo fui tratada como um
pária. Meu marido queria me repudiar, dizendo que eu era
estéril. Hoje tenho sete filhos, todos bem de saúde, graças
a Deus. Então, como eu poderia ter sido feliz depois dos
catorze anos? Quando? (A FONTE, 2011, 13 min).

Depois dessa fala, em que os rostos das mulheres são reve-


lados pela câmera, todos tristes, Velho Fuzil conclui: “Leila tem
razão!”. “E como vai convencê-los?” é a questão de Moufida. Então
Leila sugere: “Vamos fazer greve de amor!”. A maioria das mulheres
retira-se da casa de banho, e a proposta não tem a adesão geral.
Ela só será aceita plenamente num espaço fechado, íntimo, infor-
mal. A escolha do local para a deflagração da greve indicia a inter-
dição feminina ao espaço público. Já os homens conversam no bar
ou reúnem-se na mesquita ou no salão comunitário para deliberar

SUMÁRIO 171
sobre a greve e a falta d’água — sempre em espaços públicos ou for-
mais. Então uma segunda reunião de mulheres acontece no rio, onde
lavam roupas. Elas questionam sua própria força para manter a greve
diante da violência masculina, pois alguns homens batem ou estu-
pram as esposas. Vendo esse enfraquecimento do movimento, Velho
Fuzil canta uma música cuja estrutura é dividida em duas partes.
Na primeira, tem melodia suave. Enquanto ouvimos sua voz, vemos
cenas aéreas e paisagens. A personagem canta:

A mulher é uma rosa


De sua vida, faz-se um buquê
A mulher é uma brisa
Que suaviza o calor
A mulher é mel
Que escorre da colmeia
A mulher é um mar
Quantos rios ela alimentou?
E quantos oceanos ela encheu?
(A FONTE, 2011, 29 min)

Figura 6 - Cena aérea das mulheres

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

SUMÁRIO 172
Na segunda parte, a voz da atriz imprime um tom agressivo
e contrapõe esse discurso de brandura e docilidade à realidade de
opressão vivida por elas. A cena, antes aérea e distante, passa a
enfocar os rostos, enfatizando a diferença entre um discurso ideali-
zado sobre a mulher e a dura realidade que vivem:
A mulher é um capacho
Pisado por quem quer que seja
A mulher, como o animal,
Um burro de carga para o homem
Para agradar a ele,
Ela faz as tarefas
Como o burro que carrega o fardo sozinho
Que vergonha, suas tontas,
Completamente subjugadas
Acordem!
Se eles são cegos,
Enxerguem por dois
Ergam a cabeça, como bandeiras,
se não querem ser devoradas!
(A FONTE, 2011, 31 min)

Figura 7 - Velho fuzil (Baya Bouzar)

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

SUMÁRIO 173
Figura 8 - Mulheres convencidas a lutar

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

O movimento ganha força depois desse canto, e manifes-


tações públicas começam a acontecer. Percebemos, desse modo,
que os cantos das mulheres e dos homens assim como os corais da
comédia grega são importantes cenas, muito significativas, na cons-
trução do enredo de A fonte das mulheres.

Os enfrentamentos públicos, por seu turno, ocorrem em duas


cenas. Uma em que as mulheres cantam e dançam na presença de
turistas (que não entendem a língua), afirmando que “sem água na
aldeia/ Não há trégua para nós […] Sua semente não fertilizará/
Nosso belo solo” (A FONTE, 2011, 25 min), e também questionam
sobre o que é feito com o dinheiro do turismo, que desaparece. A pas-
sagem é marcante, pois demonstra o interesse feminino em deliberar
sobre a economia da localidade. Segundo elas, o recurso dos turistas
deve ser usado para a construção do encanamento, mas os homens,
acomodados com a situação, não o fazem. A outra cena, decisiva
para que a greve das mulheres tenha sucesso, desenvolve-se numa
reunião de aldeias na aldeia principal. Esse momento faz lembrar niti-
damente o embate dos semicoros em Lisístrata. Primeiro, os homens,
dentro de um círculo formado pela multidão, dançam e cantam:

SUMÁRIO 174
Os homens livres cumprimentam vocês
Vigilantes e alertas noite e dia
A pomba dá as boas-vindas a vocês
Diante do trabalho árduo eu nunca fujo
Mangas arregaçadas, testas suadas
A paz e o silêncio confortam meu coração
Os homens são a raiz da autenticidade
Saboreio o suor dos ombros pela manhã
A colheita é boa, que benção
(A FONTE, 2011, 1h42)

Figura 9 - Coro de homens

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

O canto mentiroso dos homens, que noticia abundância na


colheita e trabalho árduo, é calado com a entrada das mulheres no
círculo. Estão em fila, todas embaixo de um mesmo tecido vermelho,
bordado com fio dourado. O esplendoroso véu que lhes cobre o rosto
marca também a união das mulheres, pois demonstra que todas elas
são uma só na luta contra a injustiça.

SUMÁRIO 175
Figura 10 - Mulheres sob o mesmo véu

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

Quando chegam dentro do círculo, se revelam e continuam a


música, com acompanhamento de percussão:
Dizem que é um bom ano
O ano é bom porque a colheita é boa
Eis as notícias da nossa aldeia:
Nossos homens estão ocupados tomando chá
Mas o que é isso?
Suas bolas estão cheias, mas o coração vazio.
Não é triste deixar a flor murchar
Quando os homens desde sempre a regaram?
O homem rega com prazer
Abram bem os ouvidos e ouçam
Não há água na aldeia?
Então, não há trégua
Nós, mulheres, estamos em greve
O dinheiro do turismo deve trazer água à aldeia.
Acabou, não daremos a outra face.
(A FONTE, 2011, 1h43)

SUMÁRIO 176
Figura 11 - Coro de mulheres

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

A divulgação da greve nesse grande evento é noticiada nos


jornais em um artigo que acusa o governo de deixar o povo pas-
sar sede. A prefeitura convoca os homens da aldeia, pois teme que
as mulheres de todo o país se aliem à causa por solidariedade, e
com outras exigências além da água. Assim, muito rapidamente a
instalação dos encanamentos é viabilizada. A greve teve um efeito
positivo, pois a aldeia passa a ser abastecida com a água encanada.
A poucos metros de distância do bar onde os homens se reúnem,
vemos, nas cenas finais do longa-metragem, um cano jorrando água.
Mas também vemos uma mulher, e não um homem, indo buscá-la.
A construção do encanamento facilitou a vida de todas, mas não pro-
vocou uma alteração na tradicional divisão de trabalho entre homens
e mulheres. Isto é, enquanto eles estão no bar, uma mulher continua
sendo a responsável por essa tarefa. Nesse sentido, o filme, assim
como a comédia, é bastante conservador, pois não propõe uma alte-
ração da organização social.

Um importantíssimo aspecto do longa é a leitura. Leila apren-


deu a ler com o marido Sami, apoiador da causa feminina. Ele é um
professor que defende e insiste que as meninas frequentem a escola,
mas, quando vai pedir ajuda ao imã, líder religioso da comunidade,

SUMÁRIO 177
para que este incentive as famílias a encaminharem as meninas para
a escola, não encontra apoio, pois, segundo o líder: “Se todas par-
tirem, quem vai fazer o serviço de casa?” (A FONTE, 2011, 23 min).
Essa fala é mais uma mostra do processo de subordinação feminina.
A falta de acesso aos textos oficiais, sejam eles religiosos, literários
ou cívicos, submete a mulher à imobilidade. Sendo assim, Sami, ao
alfabetizar Leila, concede-lhe a chave para a mudança. Por certo,
algumas cenas de leitura são ambientadas em locais fechados e
escuros. As aulas que o professor dá à esposa acontecem no quarto
do casal, à noite, com iluminação de um capacete de mineração. As
cartas de amor que Leila escreve ou lê para a cunhada Esmeralda
são ditadas rapidamente, com voz segredada, a portas fechadas,
num pequeno cômodo da casa. Mihăileanu cria essas cenas como
clandestinas e secretas — uma atividade que não deve ser desem-
penhada pelas mulheres.

Figura 12 - Leila (Leila Bekhti) e Sami (Saleh Bakri) lendo o alcorão

Fonte: A Fonte das Mulheres, 2011.

Nas aulas que Leila tem com Sami, ela conhece As mil e uma
noites e estuda o Alcorão e outros livros de preceitos do islamismo.
O marido tem plena consciência do poder que concede à esposa,
pois, quando trabalha com o Alcorão, indica à mulher as passagens
que demonstram que homens e mulheres são amados igualmente
por Alá, dando a ela as armas para defender a greve. Quando ele

SUMÁRIO 178
lhe apresenta As mil e uma noites, diz que é um tesouro da cultura
árabe e que guarda a história de um povo. Esses ensinamentos são
importantíssimos para que a líder consiga destaque na comunidade,
que leve adiante a proposta da greve e que ganhe, inclusive, o apoio
do guia religioso, o qual tenta dissuadir as mulheres do projeto de
greve, mas acaba sendo surpreendido com os argumentos de Leila.
Esta o convence da justiça na ação das mulheres quando, com base
nos livros sagrados, diz o seguinte:
O Islã nos dá regras de vida em comunidade, respeito e
amor, e sacia nossa sede de espiritualidade, e nos eleva
a todos, homens e mulheres. Todo o resto é apenas inter-
pretação, desvios da escritura por interesses pessoais.
[Ela lê:] “As mulheres são as irmãs dos homens”: o pro-
feta — bendito seja ele — quis os homens e as mulheres
iguais. Não homens superiores, dando ordens e deci-
dindo, e mulheres inferiores, obedecendo e procriando.
Iguais! Não mulheres apanhando (A FONTE, 2011, 1h16).

Se a greve de sexo não se mostra eficiente na mudança da


organização social do trabalho, a leitura, ao contrário, é índice de
revolução. A cena em que o líder religioso muçulmano se dobra
diante da leitura feminina é exemplo disso. Outra parte do filme que
indica o valor transformador dessa prática é quando Esmeralda, que
tinha suas cartas de amor escritas por Leila, resolve ir embora da
aldeia. Na última cena, configurada como uma grande festa em que
as mulheres cantam em coro, Leila recebe uma carta escrita por sua
aprendiz e a lê em silêncio. A carta diz: “Obrigada por tudo, grande
irmã, por ter me ensinado a ler e a escrever. […] Decidi ir embora sem
dizer a ninguém. Não sei para onde irei nem que vida levarei, mas
serei livre” (A FONTE, 2011, 1h38).

SUMÁRIO 179
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lisístrata, de Aristófanes, e A fonte das mulheres, de Radu
Mihăileanu, são importantes obras que discutem questões decisi-
vas para suas épocas de composição. Ambos os autores estavam
atentos às demandas sociopolíticas de cada tempo e traduziram
as angústias em arte. Mihăileanu aponta essa sensibilidade, expli-
citamente, quando diz, em entrevista, que, de alguma forma, ante-
cipa “que é tempo de o direito das mulheres e o direito dos homens
serem os mesmos e que alguma coisa deve mudar nos países ára-
bes” (UN VERRE, 2017, 4 min, tradução nossa), pois ele começa a
escrever o filme em 2005, termina em 2010 e, em 2011, explodem
as revoluções árabes59.

Sobre a retomada de obras clássicas na reescritura de


modernas, Henrique Cairus (2011) afirma que o clássico relaciona-se
às ideias de perenidade, permanência e referência. Segundo esse
autor, em relação ao clássico ocidental, as culturas grega e romana
funcionam como um “supercânone”, uma fonte de valores e mode-
los identitários atemporais que permeia a literatura ocidental. Nesse
sentido, podemos transferir essa reflexão para as narrativas fílmicas,
entre as quais está A fonte das mulheres. Sendo assim, é pratica-
mente inevitável que aconteçam recuperações desse referencial
identitário construído na Antiguidade ocidental, mas ainda presente
em nossas produções atuais (seja para reafirmá-lo ou negá-lo).
Com a retomada em A fonte das mulheres de Lisístrata, uma comédia
que põe em cena uma revolucionária provavelmente muito diferente
da mulher ateniense — a ponto de uma das tradutoras ao portu-
guês brasileiro afirmar que, “para um cidadão ateniense, seria mais
fácil acreditar que os pássaros pudessem dominar o universo, como
sugere o enredo de outra comédia aristofânica, as Aves, do que que

59 A Primavera Árabe foi uma série de manifestações e protestos que acorreram no Oriente
Médio e no norte da África.

SUMÁRIO 180
suas esposas, mães e filhas pudessem ditar a política da cidade”
(DUARTE, 2005, p. XXIII-XXIV) —, propõe-se ao espectador moderno
que as impossibilidades podem se tornar reais. É esta a conclusão de
A fonte das mulheres. O que está no texto que o jornalista publica
sobre a greve das mulheres, pois, resume bem a mensagem cen-
tral do filme: “Nunca devemos nos dar por vencidos. O infinitamente
pequeno pode se revelar mais majestoso do que tudo que parece
grande” (A FONTE, 2011, 1h31). É assim a luta diária de muitas mulhe-
res nas comunidades machistas. Elas precisam ser fortes, alegrar-se
com as grandes pequenas vitórias e mostrarem-se gigantes diante
de um ambiente que deseja esmagá-las.

SUMÁRIO 181
Par te
3
TEATRO MODERNO
E PESQUISA
10 Edson Santos Silva
Thatiane Prochner

TEATRALIDADE
E PERFORMATIVIDADE
NA PEÇA TRAGA-ME
A CABEÇA
DE LIMA BARRETO
INTRODUÇÃO
Disponível online, via YouTube, a peça de 2018, Traga-me a
cabeça de Lima Barreto (dramaturgia de Luiz Marfuz, direção de Fer-
nanda Júlia e atuação de Hilton Cobra), discorre, durante 52 minu-
tos, sobre a história do famoso escritor brasileiro Afonso Henriques
de Lima Barreto, refletindo no drama o seu drama real. Diante de
uma sociedade como a da primeira metade do século XX, extrema-
mente pautada em ideias eugênicas60, o autor, no palco, transfor-
mado em personagem, defende-se dos ataques contra a cor da sua
pele, bem como de sua questionada capacidade artística na criação
de suas obras, consideradas de caráter duvidoso, dadas as concep-
ções defendidas pelos princípios de superioridade da raça branca
em comparação à raça negra. Uma discussão bastante intensa e
construída no diálogo entre o personagem principal e as imagens
em telão, no embate que se mostra na defesa do autor a si próprio,
diante de seus “avaliadores”.

O título da peça faz alusão à história de João Batista, perso-


nagem bíblico, que foi preso e morto por conta das ideias que pre-
gava. Tal prisão se deu a mando do governador Herodes, alegando
a seus oficiais que João Batista havia ressuscitado dos mortos e que
“certos poderes” agiam sobre ele. No evangelho, Jesus afirma ser
João Batista a reencarnação do profeta Elias: “Mas digo-vos que
Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quise-
ram.” (Mt 17, 12). Suas ideias, na presente existência, feriam a índole
de muitos poderosos, dentre eles Herodias, amante de Herodes. No
banquete de comemoração ao aniversário do governador, a filha de
Herodias, Salomé, dança diante de todos, fazendo agrados ao anfi-
trião que, inebriado pela beleza da moça, promete-lhe qualquer coisa
que deseje. Pressionada pela mãe, ela pede: “Dá-me a cabeça de

60 “eu.ge.ni.a sf Ciência que investiga as condições mais propícias para a reprodução e o aperfeiçoa-
mento genético da espécie humana.” (MUNIZ; CASTRO, 2005, p. 422).

SUMÁRIO 184
João Batista numa bandeja!” (Mt 14, 8). Encarnado como Elias, mais
de 800 anos antes, João Batista teria mandado degolar 450 sacer-
dotes de Baal, por duvidarem dos poderes de Deus: “Elias ordenou:
Prendam os profetas de Baal! Não deixem escapar nenhum! Todos
foram presos, e Elias fez com que descessem até o riacho de Cison
e ali os matou.” (1Rs 18, 40). De acordo com a lei de causa e efeito, ou
cármica, João Batista é, por sua vez, degolado.

Uma relação que pode ser estabelecida entre o texto bíblico


e a peça é o caráter de denúncia presente nas obras de Lima Bar-
reto, cujo objetivo era protagonizar o subalterno, as injustiças por
eles sofridas e a cruel realidade de suas vidas, colocando-as em
evidência. Assim, temos dois lados sob tensão, como já apon-
tado antes, o superior, dotado de poder, e o considerado “inferior”.
Temos, assim, a cabeça de Lima Barreto sendo trazida e exposta à
uma autópsia social.

Outra possível referência, que ao longo da peça é constan-


temente citada, trata-se da menção ao escritor Machado de Assis,
especificamente no trecho em que o personagem cita as palavras
de abertura de Memórias póstumas de Brás Cubas: “Ao verme que
primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa
lembrança estas memórias póstumas.” (ASSIS, 2002, p. 15). Entre
desdéns e devaneios quanto a apreciação, ou não, de Lima Barreto
em relação ao autor de Cosme Velho, cabe lembrar que Brás Cubas,
o “defunto autor”, volta do mundo dos mortos, para fazer um relato de
suas histórias, desde o nascimento, assim como o faz Lima Barreto
que, de além túmulo, ergue-se em sua própria defesa.

Um ponto em evidência é a afirmação da negritude, do


reavivamento da ancestralidade; a junção da vida real, ficcionali-
zada no drama, e ressignificada no “retorno” do autor e na repre-
sentatividade negra no palco. Lima Barreto, nesse sentido, é
problematizado em cena.

SUMÁRIO 185
Ora, tendo essas referências como base, pensaremos em
“como” a peça trabalha com tais informações na ação dramática.
Logo, desde esta apresentação, podemos notar que aspectos rela-
cionados ao contexto e à referenciação contribuem para o encami-
nhamento de nossa análise, considerando que, em cima do palco, o
texto dramático se efetiva e, a partir da teatralidade ali presente, a
performatividade, por sua vez, também se efetiva.

TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE
A teatralidade, nas palavras de Pavis (2015, p. 372), tem algo
de mítico em seu conceito, “de excessivamente genérico, até mesmo
de idealista e etnocentrista. Só é possível (considerada a pletora de
seus diferentes empregos) observar certas associações de ideias
desencadeadas pelo termo teatralidade.”. Nesse sentido, Suzana
Thomaz (2016), em seu artigo “Teatralidade, entre teorias e práticas”,
realiza um levantamento histórico da teatralidade, a fim de revisitar
suas relações com as noções de performance e performatividade,
sendo que existe uma problemática atual na tentativa de “definição
do termo”. Segundo ela, “a noção de teatralidade é problemática
entre artistas e teóricos desde o momento em que começou a ser
empregada, no início do século XX.” (p. 310). A autora ainda comple-
menta, citando Féral (2002, p. 4), que “é justamente porque a noção
de teatralidade mudou, que temos que continuar a redefinir a noção
de teatralidade.” (Féral apud Thomaz, 2016, p. 310).

Para a pergunta “Que é teatralidade?”, Barthes (apud Pavis,


2015), responde:
É o teatro menos o texto, é uma espessura de signos
e de sensações que se edifica em cena a partir do
argumento escrito, é aquela espécie de percepção
ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons,

SUMÁRIO 186
distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto
sob a plenitude de sua linguagem exterior (BARTHES
apud PAVIS, 2015, p. 372).

De acordo com Barthes, podemos compreender que a tea-


tralidade se manifesta a partir do argumento escrito, da existência de
um roteiro, no entanto, em cena, a percepção da teatralidade sub-
merge desse argumento escrito. Temos a cena e o que transborda
desse princípio textual, já que nos deparamos com a “presença viva
e carnal do ator” (Prado, 1968, p. 84).

A teatralidade depende, entre outros aspectos, de conven-


ções criadas com as ferramentas disponíveis no espaço, figurinos,
música, iluminação, etc., que sustentam o jogo cênico. Assim, tudo
é criado dentro de uma perspectiva do todo. Cabe lembrar a “lei
de interdependência”, desenvolvida por Augusto Boal, a partir da
dialética de Hegel, isto é, cada elemento da composição faz parte
do conjunto no todo.

Além disso, Thomaz (2016, p. 310) segue afirmando que “a


teatralidade depende tanto da performance dos artistas quanto da
identificação e do olhar do espectador”. O que muito nos escla-
rece, uma vez que a performatividade está relacionada de forma
efetiva com o público e suas percepções e interpretações do que
está sendo encenado.

A autora vai mais a fundo, comentando acerca das formas de


se fazer teatro nos dias de hoje, e como essas formas contemporâ-
neas se diferenciam das mais tradicionais, remetendo-nos, principal-
mente, ao teatro grego. O olhar do espectador faz emergir a teatrali-
dade. E esse fenômeno depende de um sujeito ou objeto observado,
que é o emissor ou portador de signos, e o observador / espectador,
que será capaz de decifrar esses signos.

Mas o decifrar desses signos ou códigos dependerá de inú-


meras condições, isto é: “o contato entre os dois, a bagagem e o

SUMÁRIO 187
meio cultural, a época e o espaço de apresentação, o contexto social
e político em questão, e, é claro, o desejo de comunicar (transmi-
tir e receber) por meio de convenções, signos e códigos comuns.”
(Thomaz, 2016, p. 311).

A teatralidade cria um outro espaço, paralelo ao real, em que a


ficção possa tomar forma. Gestos simples do dia a dia de uma pessoa
comum, não são simples gestos no palco; gestos, no palco, passam a
fazer parte da ação dramática e, portanto, a produzir um significado.

É possível notarmos, até o momento, que a teatralidade


contribuirá para a performatividade, ou seja, trata-se de como se faz
uso dela a fim de construir significados. De maneira geral, assumi-
mos que ambas se interligam no espetáculo.

É possível falar dessas duas perspectivas individualmente,


no entanto, a percepção delas em ação conjunta, proporciona-nos
uma visão mais ampla a respeito dos conceitos elucidados. Sendo
assim, pensemos, agora, na performatividade; uma linguagem que
funciona, também, como forma de ação social, proporcionando efei-
tos de mudança, conforme se nota em definição encontrada no site
de pesquisas Oxford Bibliographies:
Performatividade é o poder da linguagem de efetuar
mudanças no mundo: a linguagem não só descreve o
mundo como deve ao contrário (ou também) funcionar
como uma forma de ação social. O conceito de performa-
tividade foi apresentado, primeiramente, pelo filósofo John
L. Austin, o qual postulou a diferença que havia entre lin-
guagem constativa, a qual descreve o mundo e pode ser
avaliada como verdadeira ou falsa, e performativa, que faz
algo no mundo61 (OXFORD, 2021, tradução e grifo nossos).

61 Performativity is the power of language to effect change in the world: language does not simply
describe the world but may instead (or also) function as a form of social action. The concept of per-
formative language was first described by the philosopher John L. Austin who posited that there
was a difference between constative language, which describes the world and can be evaluated
as true or false, and performative language, which does something in the world.

SUMÁRIO 188
Ainda sobre o termo, em comparação com a teatralidade, e
dialogando com a definição da Oxford, Josette Féral (2009), em seu
artigo “Por uma poética da performatividade”, aponta:
Mais recente que a de teatralidade, e de uso quase exclu-
sivamente norte-americano (...), sua origem poderia ser
retraçada nas pesquisas linguísticas de Austin e Searle,
que foram os primeiros a impor o conceito pelo viés dos
verbos performativos que “executam uma ação”. (...) Essa
noção valoriza a ação em si, mais que seu valor de repre-
sentação, no sentido mimético do termo. O teatro está
inexoravelmente ligado à representação de um sentido,
passe ele pela palavra ou pela imagem. O espetáculo
nele segue uma narrativa [récit], uma ficção. Ele projeta
ali um sentido, um significado. Essa ligação com a repre-
sentação, que Artaud recolocou em questão na sequên-
cia das grandes correntes artísticas do início do século
XX, deixou igualmente sua marca no teatro, ainda que
mais tardiamente. Não reconstituirei aqui toda a história
da evolução da prática artística no decorrer do século
XX, mas é possível dizer que diversos autores e ence-
nadores buscaram criar essa dissociação unívoca entre
um discurso (verbal ou visual) e um sentido dado. Logo,
quando Schechner menciona a importância da “execução
de uma ação” na noção de ‘performer’, ele, na realidade,
não faz senão insistir neste ponto nevrálgico de toda
performance cênica, do ‘fazer’. É evidente que esse fazer
está presente em toda forma teatral que se dá em cena
(FÉRAL, 2009, p. 197).

Diante dessas considerações, podemos chegar a um pos-


sível conceito para teatralidade e performatividade, sendo que: a
teatralidade, condição do que é teatral, remete-nos ao concreto na
cena, aquilo que podemos visualizar; já a performatividade é o que
extrapola esses elementos mais estruturais, partindo para elemen-
tos associados a vários outros campos do conhecimento, em sen-
tido mais pragmático.

SUMÁRIO 189
Analisaremos esses elementos, partindo do quadro elabo-
rado por Tadeusz Kowzan, quanto aos signos no teatro. Trabalhamos,
portanto, tendo como corpus a peça Traga-me a cabeça de Lima Bar-
reto, a relação entre as duas perspectivas: teatralidade e performati-
vidade, respectivamente, a partir de cada um dos 13 signos estuda-
dos por Kowzan (1978).

13 SIGNOS TEATRAIS PARA


A ANÁLISE DA TEATRALIDADE
E DA PERFORMATIVIDADE EM
TRAGA-ME A CABEÇA DE LIMA BARRETO
Em seu artigo “Os signos no teatro – introdução à semiologia
da arte do espetáculo”, Kowzan (1978) realiza toda uma reflexão no
que concerne ao signo e em como a análise semiológica adentra
o campo da arte, mais especificamente o da arte teatral. Explora a
manifestação dos signos em cena, diferenciando signos naturais e
artificiais, sendo que no palco, todos os signos pertencem à cate-
goria de artificiais, pois resultam de um processo voluntário, são
criados, geralmente premeditados, com a finalidade de comunicar
no ato. Nesse sentido, “os signos teatrais são perfeitamente funcio-
nais” (1978, p. 102), isso quer dizer que quando utilizados em cena,
obtêm “valores significativos bem mais pronunciados do que em seu
emprego primitivo” (1978, p. 102).

Segundo o autor, “a arte do espetáculo é, entre todas as


artes e, talvez, entre todos os domínios da atividade humana, aquela
onde o signo manifesta-se com maior riqueza, variedade e densi-
dade.” (1978, p. 97). E as formas de manifestação partem de inúme-
ros aspectos, considerando que “tudo é signo na representação
teatral”, visto que o espetáculo se serve tanto da palavra como de

SUMÁRIO 190
sistemas de significação não linguística. Desse modo, Kowzan parte
dos resultados da aplicação dos signos, para perceber como eles
se configuram e podem ser representados em uma peça. Logo, a
partir de seus estudos, elencando e analisando signos possíveis de
representação no teatro, e com base nos conceitos já apontados por
demais estudiosos e estudiosas da dramaturgia, analisamos a peça
Traga-me a cabeça de Lima Barreto, evidenciando o que, no espetá-
culo, são marcas da teatralidade e, na ação dramática, o que essas
marcas representam em termos de performatividade.

Os signos propostos pelo autor são: a palavra, o tom, a


mímica facial, o gesto, o movimento cênico do ator, a maquilagem, o
penteado, o vestuário, o acessório, o cenário, a iluminação, a música
e o ruído, os quais apresentaremos por partes, como se segue.

1. A PALAVRA
Na peça em questão, a teatralidade é evidente pelo uso que
o ator faz da palavra, portanto, encena o texto dramático no palco. A
palavra, nesse sentido, já garante um significado, pelo fato de estar
sendo proferida em espaço cênico. Mas ela não se desvincula do dis-
curso, do caráter de denúncia que nos leva a pensar e refletir a res-
peito de uma época que fez e faz parte de nossa raiz histórica. O per-
sonagem mescla uma linguagem coloquial a uma linguagem mais
formal, inclusive fazendo uso de algumas expressões em francês, e
afirmando ser um leitor ávido de grandes obras da literatura univer-
sal, portanto um homem culto, que sabia adequar a linguagem em
seu contexto, sabendo de onde partia a sua voz. Ou seja, a performa-
tividade decorre do uso que se faz da palavra; tem-se o recurso da
palavra e com ela ideias são expressadas, problematizadas, repensa-
das, discutidas, etc.

SUMÁRIO 191
2. O TOM
Na peça, o tom é bastante importante e, certamente, nos fará
compreender muito bem a relação que existe entre a palavra e as
emoções que com ela podem ser apresentadas. A teatralidade se
manifesta no recurso do tom, que poderá ser modificado de acordo
com a necessidade cênica, com o destaque que se queira dar.

Já a performatividade fica evidente na postura firme e decidida


do personagem que, apesar de vacilar em momentos de lembrança
e dor, de maneira geral, sua entonação é vívida e resgata a sua negri-
tude, reafirmando suas origens. A entonação, nesse sentido, enfatiza
o poder do discurso que é proferido no decorrer da encenação.

3. A MÍMICA FACIAL
Durante a peça, destacam-se inúmeras expressões faciais,
bastante associadas à própria palavra, que garantem a teatrali-
dade, isto é, são expressões que voluntariamente aparecem com o
intuito de causar efeitos. De maneira mais evidente, com exceção
dos momentos em que o personagem usa do deboche, da ironia,
sua expressão se mostra, na maioria das vezes, séria, preocupada e
ansiosa, condizente com a situação de julgamento que está vivendo
e na tentativa de extravasar suas frustações. Ou seja, suas expres-
sões corroboram para o entendimento da gravidade da situação, o
que, por sua vez, demarca a performatividade, o efeito de maior gra-
vidade que se busca evidenciar na peça.

4. O GESTO
Os gestos, depois da palavra, são meios maleáveis de
exprimir pensamentos, não são somente mãos, braços ou pernas,

SUMÁRIO 192
mas o corpo todo que se expressa através deles. Na peça, os ges-
tos são bastante marcados, sabemos que remontam à teatralidade
da peça, uma vez que podem determinar situações. Mas o que
esses gestos representam?

Nos momentos em que o personagem lembra de fatos mais


pessoais, a sua trajetória de vida, por exemplo, ele se ajoelha no
chão, ao sentir a falta da mãe, senta-se e cobre o rosto ao lembrar a
morte do pai, deita-se no colo de um dos espectadores quando está
bêbado, mas ao defender-se de seus acusadores, quase sempre se
coloca em pé e aponta os dedos para eles, em tom de defesa calo-
rosa; isso porque os movimentos em que ele está mais próximo ao
chão poderiam indicar sua fragilidade e o lugar no qual ele se sente
muitas vezes, enquanto que os momentos em que ele se levanta
é uma forma de reagir contra as injúrias das quais é acusado e da
forma como é visto, rejeitado e “desqualificado” pela sociedade de
então. Essa movimentação e uso dos gestos é o que podemos cha-
mar de performatividade.

5. O MOVIMENTO CÊNICO DO ATOR


O ator se movimenta de várias formas durante todo o espe-
táculo, utilizando-se bem do espaço do palco. É nesse espaço
paralelo que o ator movimenta não só a si mesmo, mas também o
público. A teatralidade está na movimentação, no uso que se faz do
espaço de que se dispõe.

O palco em semiarena contribui para uma proximidade do


ator com o público, sugerindo uma intimidade maior, tanto que ele se
aproxima consideravelmente dos espectadores, inclusive compar-
tilhando elementos do cenário, interagindo com eles, evidenciando
marcas de performatividade.

SUMÁRIO 193
6. A MAQUILAGEM
A maquilagem cria signos mais duradouros do que a mímica
facial; e ela pode apresentar signos relativos à raça, idade, estado
de saúde, temperamento do personagem, etc. Uma maquilagem
característica não se usa em dias comuns, mas com intenções espe-
cíficas; dentro do palco, tais características passam a ter uma evi-
dência maior, certamente. A maquilagem, aqui, se associa com a
tonalidade da pele do ator em questão, pois sugere, antes de tudo,
a aproximação visual com o autor Lima Barreto. A teatralidade se
consolida não só pelo efeito da maquilagem, mas fortemente pela
cor da pele do ator.

Na peça, ele faz menção ao termo “mulato” ser atribuído


não só a ele, como também a Machado de Assis, e assume, apon-
tando para o seu braço, que eles são negros e que, ao contrário de
Machado, ele não nega a sua cor, apesar de ter vivido com vergonha
e dizer em determinado momento da sua “tristeza de não ter nascido
branco”. De antemão, as características físicas do ator nos permitem
a associação com o autor, desde o momento em que ele se apresenta
como Lima Barreto de além-túmulo. Portanto, a face do ator no per-
sonagem marca de forma significativa essa relação; a maquilagem
torna-se um detalhe, pois a performatividade enfatiza a importância
de se discutir a cor da pele, ou seja, do quanto ela significa.

7. O PENTEADO
Até mais do que a maquilagem, o penteado pode possuir um
papel autônomo na peça, porque ele poderá indicar, por exemplo,
uma área geográfica ou cultural, uma época específica, uma classe
social, uma raça. Isso fica evidente na peça, pela textura dos cabelos
do ator e pela opção de mantê-los mais longos; é algo visível na
cena, contribuindo para a identificação da teatralidade.

SUMÁRIO 194
Além de os cabelos serem crespos, eles estão crescidos, a
fim de mostrar bem a sua característica. São cabelos grisalhos que
sugerem a sabedoria de alguém com uma idade já avançada e que,
portanto, possui um conhecimento empírico da vida, que carrega
uma história (isso é bastante importante, pensando no contexto da
peça); além disso, ligam-se aí dois tempos: o passado, pois Lima
Barreto faleceu ainda jovem, aos 41 anos, e o presente, a contempo-
raneidade, já que o autor, agora com mais idade, levanta do túmulo
e vem em própria defesa, isto é, temos uma obra de ressignifica-
ção nesse sentido. As entradas nos cabelos sugerem também uma
cabeça mais à mostra, o que enfatiza a questão do próprio título da
obra; uma cabeça que está em xeque, que está sendo analisada, ava-
liada, um cérebro “submetido à dissecação pública”. Uma cena inte-
ressante é quando ele, ao lembrar da família e de sua casa, “a casa
do louco” (referindo-se à possível insanidade de seu pai e dele pró-
prio), puxa com força os cabelos que, ao serem friccionados, ficam
elétricos, dando uma impressão de desalinhamento, porém suge-
rindo a imagem de grandes gênios incompreendidos ou criticados,
ou mesmo a imagem dos gênios consagrados, como Albert Einstein,
por exemplo. A seguir, as imagens das cenas que contribuem para
essa interpretação (frames 1 e 2)62:

62 De modo que a peça se encontra disponível no YouTube, sem restrições de público e, portanto, sob
domínio público, fazemos uso de frames da obra, com o intuito de complementar nossa pesquisa,
no sentido de analisar visualmente os elementos da cena.

SUMÁRIO 195
Figura 1 - frame 1 – os cabelos crespos e embranquecidos

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Figura 2 - frame 2 – os cabelos sendo friccionados

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Os detalhes que advêm dessa encenação com os cabelos


trazem visibilidade e significado ao signo primeiro. Logo, reconhe-
cemos a performatividade, pois ela nos permite ir além de sentidos
superficiais e buscar a fundo nossas referências.

SUMÁRIO 196
8. O VESTUÁRIO
Diz Kowzan (1978, p. 109) que “no teatro, o hábito faz o
monge”. O vestuário seria o modo mais convencional e exteriorizado
de definir o indivíduo humano no teatro. Ele vai significar sexo, idade,
profissão, posição social, nacionalidade, religião, etc.; o vestuário diz
muito a respeito do nosso personagem. O figurino que o ator usa é
a marca da teatralidade. A princípio, ele traja calças com suspensó-
rios, uma camisa branca, sem abotoaduras ou goma, nem quaisquer
outros adereços, e um colete com bordados coloridos, como pode-
mos visualizar abaixo:

Figura 3 - frame 3 – o vestuário no início da peça

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

É um traje simples e que abraça a ideia de quando, no


início, o personagem menciona o seu “esbodegado vestuário” e,
mais adiante, que gostaria de ser “doutor” para usar sobrecasaca e
cartola com o poder de mudar o seu destino. Logo, seu traje também
demonstra sua origem, a simplicidade até de seu comportamento
perante a sociedade. Ao longo da encenação, o ator se despe de
parte de seu figurino, tirando o colete, baixando os suspensórios,

SUMÁRIO 197
abrindo os botões da camisa e arregaçando suas mangas. Já
suado e bebendo alternadamente pequenos goles de cachaça,
percebemos que a imagem do personagem vai se modificando no
transcorrer das cenas; entre nervosismos e momentos de crise, ele
vai construindo outra imagem, até mesmo a imagem que nós, como
leitores e espectadores de Lima Barreto, em partes, fazemos dele e
de sua obra (frame 4).

Figura 4 - frame 4 – a transformação ao longo da peça

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Esse vestuário, ao fim da peça, será substituído por um


manto africano (frame 5), colorido, o qual sugere a aceitação e
a afirmação do local ao qual o autor pertence, como um retorno
à sua ancestralidade.

SUMÁRIO 198
Figura 5 - frame 5 – o traje que se converte em manto africano

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Toda essa transformação que ocorre ao longo da peça é o


que o personagem faz com o seu traje e o que essa mudança poderá
significar. Temos, assim, a performatividade.

9. O ACESSÓRIO
Acessórios são um sistema autônomo de signos, situando-
-se melhor entre o vestuário e o cenário, porque numerosos casos
limítrofes aproximam-nos um do outro. Os casos são particulares, a
depender do contexto, do uso no palco. Podemos dizer dos signos de
primeiro e de segundo grau, que tratam da denotação e da conotação,
respectivamente, ou seja, um signo pode tomar outro sentido dentro
da cena, como exemplo uma cabaça fazendo a vez de uma cabeça63.

63 De modo que os acessórios apresentam casos limítrofes entre vestuário e cenário, pensamos na
cabaça tanto como elemento de cenário, como elemento acessório, considerando a sua relação
direta com o ator.

SUMÁRIO 199
Os acessórios, objetos ou adereços utilizados durante o espetáculo,
denotam a teatralidade.

Dentre os acessórios utilizados, primeiramente pensamos na


própria cabaça que representa a cabeça do autor, no canto esquerdo
do palco (simbólico, visto que a esquerda sugere essa conotação de
“estar do outro lado”), e o arranjado de conchas que é usado como
representação do cérebro e que aparece ao final da peça, como que
se desmontando e fazendo um enfeite à cabeça do escritor, uma
“cabeça encantada”64 (frames 6 e 7).

Figura 6 - frame 6 – o cérebro formado por búzios

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

64 As conchas, ou “búzios”, ficam no fundo do mar e são trazidos para a praia pelas ondas; dizem que
eles possuem a energia da água, do céu e da terra. Além de trazer sorte, proteção e limpeza, o bú-
zio simboliza um sinal positivo da vida, trazendo luz e força para lidar com os desafios, problemas
e decisões a serem tomadas. São conchas preparadas para uso em rituais do Candomblé. A caba-
ça, assim como os búzios, compõe um instrumento musical chamado afoxé; usa-se uma cabaça
pequena e redonda, e posteriormente ela é recoberta com uma rede de bolinhas de plástico ou
miçangas. É um instrumento que também possui profunda vinculação às manifestações religiosas
do Candomblé. Juntos, esses elementos são bastante importantes para a construção simbólica
sugerida pela encenação.

SUMÁRIO 200
Figura 7 - frame 7 – a cabeça encantada, o afoxé

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

No decorrer da encenação, vez ou outra, o personagem tam-


bém se movimenta com o copo de bebida, trazendo a ideia dos pro-
blemas de Lima Barreto com o alcoolismo, ele inclusive apresenta
um temperamento jocoso e irônico ao se referir a esse tema, compa-
rando-o ao chá de camomila bebido pelos membros da academia;
mas o copo e a bebida (frame 8), servindo de acessórios, são neces-
sários ao entendimento do contexto da peça.

Figura 8 - frame 8 – a bebida

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

SUMÁRIO 201
Outro detalhe notável são as próprias obras do autor sendo
utilizadas em cena, como algo concreto e abstrato ao mesmo tempo;
concreto porque são palpáveis e acessíveis a quem quiser ler e pes-
quisar, e abstrato porque a palavra as tornou imortais. Se compa-
rarmos esse momento em que o personagem reúne suas obras ao
momento anterior na peça em que ele utiliza vários papéis escritos
e joga-os ao alto, podemos entender que essas palavras, as teses
eugênicas, ao vento, são apenas argumentos infundados, que par-
tem de uma sociedade preconceituosa e racista, já o concreto seria
aquilo que apresenta uma vivência, de olhar por outros olhos, espe-
cialmente daquele que vive na sociedade do preconceito, sendo
rechaçado por ela. A imagem que se cria dos papéis é interessante,
pois jogados ao ar, eles flutuam e caem por terra. Dessa mesma
terra brota a obra de Lima Barreto, como defesa; surge a sua escrita,
representada nos livros.

Com as imagens, fica evidente essa questão, ao visualizarmos


todos esses elementos em cena, sobrepostos. Os papéis já rabis-
cados, jogados e espalhados pelo chão, e a organização dos livros,
colocados um a um pelo personagem, estabelecendo uma ordem,
uma imagem específica, lembrando, quiçá, um trono africano. Ao
passo que o frame 9 destaca um momento de certa insatisfação do
personagem, o frame 10 nos mostra o estabelecimento de algo novo.

SUMÁRIO 202
Figura 9 - frame 9 – escritos e anotações; papéis ao alto

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Figura 10 - frame 10 – as obras de Lima Barreto

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Além disso, outra cena importante, face aos acusadores, é


quando o personagem une duas folhas de papel, uma branca e uma
preta. Ele solta a folha branca e rasga em vários pedaços a folha
preta que lhe fica nas mãos. Isso mostra a visível diferença no trato
para com a cor da pele. O preto é estraçalhado (frame 11).

SUMÁRIO 203
Figura 11 - frame 11 – a folha branca e a folha preta

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

O uso que se faz com os recursos do palco indica a performa-


tividade em cena. Os significados possíveis observados e analisados
pelo espectador é que efetivamente construirão os efeitos de sentido
pretendidos pela encenação; portanto, todas as cenas apresentadas
no quesito acessórios, que mostram o uso desses objetos e os ressig-
nificam dentro do contexto da peça, demarcam a performatividade.

10. O CENÁRIO
A tarefa primordial do cenário é a de representar o lugar:
lugar geográfico, social ou os dois ao mesmo tempo; também pode
significar o tempo, época histórica, estações do ano, certa hora do
dia, etc. Os signos que o cenário contém podem se relacionar às
mais variadas circunstâncias. O cenário pode ser caracterizado pela
movimentação e construção em tempo real ou pode até ser dispen-
sado de todo, permanecendo vinculado à movimentação e gestos
do ator ou atores. O cenário da peça não possui muitos adereços,
além dos acessórios. Temos um telão, uma cadeira, o suporte com “a

SUMÁRIO 204
cabeça”, o palco em semiarena e a movimentação e gestos do ator;
portanto, signos da teatralidade.

A performatividade se manifesta, entre outros, no telão, que


reproduz imagens e informações históricas (textos escritos), as quais
contribuem para o encaminhamento da ação dramática, com vozes
em off. Nos frames da sequência, 12 e 13, observamos um detalhe
interessante da versatilidade no uso do recurso tecnológico, atrelado
à encenação, do modo como a imagem é reproduzida para o público
que assiste ao vivo e para o público que assiste virtualmente: a tela
reproduzida como que para um telespectador e a tela reproduzida ao
público presencial, como em uma sala de cinema. Os recursos são
ampliados, nesse sentido.

Figura 12 - frame 12 – a reprodução da imagem em telão (tela cheia)

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

SUMÁRIO 205
Figura 13 - frame 13 – a reprodução das imagens em telão, para o público presencial

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

Outro elemento que nos mostra a performatividade é


a cadeira que o ator usa o tempo todo em sua movimentação,
mudando a sua posição, ou seja, dando liberdade até para o objeto,
quando ele serve para o mesmo fim, no entanto, em posição oposta
à convencional (frame 14).

Figura 14 - frame 14 – o uso da cadeira, movimentação no palco

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

SUMÁRIO 206
Na imagem acima, a cadeira é utilizada pelo ator como
uma espécie de compasso, quando ele gira o objeto em círculos,
relembrando um episódio em que fora acusado de ladrão, na ado-
lescência; o que causa um efeito de vertigem dessa reminiscên-
cia, de ciclo vicioso.

11. A ILUMINAÇÃO
A iluminação valoriza outros meios de expressão, apresenta
mecanismos aperfeiçoados de distribuição de comandos, encon-
tra cada vez mais amplo e rico emprego nos espetáculos, tanto em
cenas fechadas como em cenas ao ar livre; é capaz de iluminar e
delimitar lugares teatrais, entre outros elementos relacionados ao
próprio temperamento e situações vividas pelo personagem. Tudo
dependerá do contexto e do uso que se faz do recurso da iluminação;
inclusive, a projeção de imagens, muito recorrente em várias peças,
poderá representar sonhos, outros personagens, delírios, etc.

A iluminação, na peça em questão, sendo ela em espaço


fechado, contribui sobremaneira para enfatizar as passagens do per-
sonagem, seja o seu estado de espírito, seja os momentos de jul-
gamento, destaques para um ponto em específico, entre outros. De
modo que a iluminação direciona o foco nas cenas, torna-se evi-
dente a teatralidade para o espectador nesse quesito.

Porém, o efeito que a iluminação causa ao espectador contri-


bui para evidenciarmos as marcas da performatividade. São várias as
cenas que podemos apontar como exemplos; seguem algumas delas.

Cada destaque tem uma razão de ser, identifica algo em par-


ticular. Conforme observamos anteriormente, nos momentos em que
aparecem no telão as teses da eugenia, todo o ambiente ao redor é
escurecido, a fim de dar um destaque aos textos escritos, como em
uma tela de cinema. Já no momento em que o personagem relembra

SUMÁRIO 207
e sofre a perda da mãe, a luz é incidida sobre ele na cor vermelha;
essa cor, além de sugerir a ideia de sangue, pode representar a força
que advém desse sangue, pois se trata da raiz, do ventre que gerou
esse ser e que o marca subjetivamente (frame 15).

Figura 15 - frame 15 – lembranças da mãe

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

As figuras femininas são enfatizadas de forma interessante:


a mãe associada à cor vermelha, enquanto a bisavó é lembrada e
associada à cor azul e ao mar, em cena mais adiante.

Uma cena marcante, ao final da peça, é quando o ator monta


no chão a cadeira e os livros no entorno e o telão mostra novamente
a imagem do mar e a luz azul (frame 16).

SUMÁRIO 208
Figura 16 - frame 16 – o retorno à ancestralidade

Fonte: Tragra-me a Cabeça, 2018.

A luz azul, a cor azul, simboliza a nostalgia e a tristeza, mas


também uma calmaria, na afirmação do autor de que findada a sua
vida, mesmo sem ter conseguido escrever toda a história do povo
negro, ele crê que outros escritores virão e cumprirão a promessa.
O mar, na história de vários países, tem uma conotação de tristeza
e saudade, marcada pelo deslocamento geográfico de muitos povos
para terras estrangeiras. No caso do Brasil, podemos citar o des-
locamento do povo africano, marcado pelo tráfico de escravos e a
violência impingida contra eles nesse processo de “barbárie tropical”.
O mar relembra a ancestralidade, mais uma vez.

12. A MÚSICA
A música tem uma função bastante interessante e impor-
tante, porque ela pode entrar num espetáculo em momentos espe-
cíficos para mudar algo, caracterizar algo, substituir algo, ou marcar
os personagens especificamente, tornando essa marca um símbolo
daquele personagem, por exemplo. Instrumentos específicos tam-
bém podem designar lugares ou etnias específicos. Lembrando que

SUMÁRIO 209
tudo irá depender de como o dramaturgo faz uso desses signos, ou
seja, os significados que se pretende atribuir a eles e os efeitos que
deles são depreendidos. Em termos de teatralidade, temos, na peça,
a presença da música, a presença do canto e a presença de sons
prolongados para efeitos de sentido.

A performatividade se manifesta nas músicas, em momentos


específicos, por exemplo: no início, após a abertura com o vídeo rela-
tivo à eugenia (que contextualiza e caracteriza a peça), o persona-
gem se apresenta com uma canção entusiasta, lembrando até uma
abertura de um show, o que leva o espectador a ser atraído por ele,
pela sua simpatia; nos momentos em que as imagens e teses são
mostradas no telão, a música é grave, fazendo lembrar um ambiente
frio, cinza, de morte, necrotério; em outros momentos, especialmente
os de crise de Lima Barreto, o som é agudo, lembrando lâminas cor-
tantes; ao assumir-se militante, no meio do debate em sua defesa, o
personagem canta uma canção, também grave, afirmando que “vai”
em frente, mesmo tendo o mundo como seu adversário; em cenas
de suspense ou de lembrança, temos a presença do piano, causando
efeitos de sentido (melancolia, nostalgia), a depender do que a cena
solicita; e a música cantada pelo ator, ao final da peça, pelo soar
das batidas, lembra sons africanos, combinados com a letra, que
remete aos ancestrais, bem como com o figurino que o personagem
traja nesse momento.

13. O RUÍDO
Os ruídos produzidos no teatro podem significar a hora, o
tempo que está fazendo, o lugar, o deslocamento, o transporte,
podem ser signos de fenômenos e circunstâncias as mais diversas.
Até mesmo a voz humana pode imitar ruídos. Na peça, percebemos o
uso dos ruídos em momentos específicos: a digitação dos nomes dos
adeptos da teoria eugênica, bem como os títulos de suas obras, nas
referências dos trechos selecionados. Isso evidencia a teatralidade.

SUMÁRIO 210
Não em vão esses ruídos são utilizados na tela, pois eles
sugerem que, além do tempo do enunciado ali presente nos textos
datados da primeira metade do século XX, a digitação remete ao
tempo de enunciação, do tempo corrente, dando uma característica
de contemporaneidade, ou seja, o texto pode ter sido escrito há mui-
tos anos, mas ele ainda perdura nas mentes de muitas pessoas na
atualidade. O ruído das teclas sendo digitadas remete ainda a uma
sensação de veracidade, isto é, o que está sendo dito foi realmente
pensado e publicado, trazido à sociedade e debatido, porque era
algo em que se acreditava. Nesse sentido, os detalhes vão nos tra-
zendo a tônica da peça e o que está além da teatralidade, portanto,
o efeito de sentido e o significado do som no ato de digitar diz res-
peito à performatividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos, diante da análise dos elementos de teatrali-
dade e performatividade, que uma peça de teatro, uma obra de arte
como o drama, abarca não somente o texto dramático e o seu espe-
táculo, mas a junção desses e os efeitos que eles causam no público
espectador, a partir de seus conhecimentos de mundo, suas leituras
e bagagem intelectual. A discussão nos leva a refletir, entre outros
aspectos, acerca da multiplicidade dos olhares que contemplam o
teatro, dado o seu alcance.

É imprescindível, para a compreensão dessa união, a con-


textualização da peça e seu repertório, a fim de que as primeiras
impressões, desde o título da obra, nos permitam o estabelecimento
de referências e conteúdos ali ressignificados, uma vez que o texto
sempre parte de algum caminho já traçado. Tais referências se cor-
porificam no decorrer da peça, tanto a analogia à cabeça de João
Batista, quanto o romance machadiano.

SUMÁRIO 211
Não somente as referências de mundo são importantes, mas
também um levantamento teórico concernente aos elementos que
constituem o espetáculo e como esses têm sido estudados e repen-
sados ao longo dos anos. Para tanto, pesquisadores e pesquisado-
ras traçam panoramas que nos permitem visualizar as configurações
do teatro contemporâneo. Por isso, nos pautamos em discussões de
Féral, Thomaz, Pavis e Prado, para a compreensão da teatralidade e
da performatividade.

A partir desse levantamento, evidenciamos os 13 signos tea-


trais possíveis de serem abordados no palco, de acordo com Kowzan,
lembrando: a palavra, o tom, a mímica facial, o gesto, o movimento
cênico do ator, a maquilagem, o penteado, o vestuário, o acessório, o
cenário, a iluminação, a música e o ruído.

O espetáculo em questão, Traga-me a cabeça de Lima Bar-


reto, visto e analisado sob os aspectos da teatralidade e performativi-
dade, traz à tona discussões que, apesar de remontarem uma época
distante da nossa, contribuem para se pensar a necessidade de vol-
tar ao passado como forma de compreensão da história e reconstru-
ção de uma nova concepção de mundo e de sociedade.

SUMÁRIO 212
11
Tiago Fortes

O MAL-ESTAR
NA ACADEMIA
Para começar a escrever (ou mesmo falar) sobre alguma
coisa na academia, parece haver uma série de protocolos a serem
cumpridos como condição a priori para todo e qualquer começar
(isso pode nos levar a nos perguntarmos se jamais começamos, de
fato, alguma coisa). Podemos destacar, como um passo fundamental
que antecede todo e qualquer começar, a capacidade de nomear
aquilo sobre o qual se está escrevendo (ou falando), para que pos-
samos nos pôr a escrever, cientes de que estamos escrevendo sobre
isso ou aquilo. É exatamente este passo que me sinto incapaz de dar
para aqui começar (e ainda assim ciente de que já me pus a escre-
ver). Na verdade, o que me impulsiona agora a escrever (e que me
impulsionou nos últimos meses a levantar todo o material bibliográ-
fico, pois esta escrita não está começando agora) é exatamente uma
necessidade gritante de problematizar esses passos ou etapas que
supostamente deveriam anteceder a escrita acadêmica. Portanto,
recuso-me, nesse momento, a escrever a partir deles. Talvez esteja
tentando escrever apesar deles, ou num embate com eles.

Seja um constrangimento ético ou uma inconsistência teó-


rica, o fato é que prefiro não me deixar levar por uma força conspirató-
ria que me impulsionaria a denunciar essa enigmática entidade eles,
que seriam os responsáveis por manter a academia estabelecida em
tal estado de coisas e de espírito. Prefiro não direcionar minha aten-
ção questionadora para o eles, mas permitir que minha inquietação
espantada permaneça voltada para o nós. E o estado em que sinto
que nós nos encontramos na academia, é um estado de mal-estar.

Pronto, se me exigirem justificar todas as questões que levan-


tarei daqui pra frente com fatos, se me for dado como condição loca-
lizar os sujeitos que representam e defendem tal estado de coisas e
de espírito que me parece predominar na academia, direi apenas que
não importa, que a única coisa que importa é se sentir assombrado
e se pôr a pensar sobre esse mal-estar que se encontra em todos
os cantos da academia. É o mal-estar dos alunos de graduação
que se aproximam do trabalho de conclusão de curso e se põem a

SUMÁRIO 214
tentar adequar-se ao tal formato acadêmico de escrita, que deve ser,
segundo dizem (ou dizemos, para não recorrer ao eles), bem estru-
turado numa metodologia científica. É o mal-estar que volta quando
se pretende tentar uma seleção de mestrado e é preciso saber definir
com clareza qual é o seu objeto de pesquisa, seus objetivos gerais e
específicos, ou sua hipótese (no caso do doutorado). É o mal-estar
(que acaba por parecer da natureza da área de artes) do artista que
entra na academia, e passa toda sua estadia nesse lugar se pergun-
tando se é possível fazer arte nesta instituição científica, se este é o
lugar propício à formação do artista. E, principalmente, é o mal-estar
que não se cola a nenhum sujeito, mas que se acumula na atmosfera
quando nós, professores, insistimos com nossos alunos ou orientan-
dos, que isso é a academia, que esse é o rito de passagem pelo qual
é preciso passar para que se possa viver na carne o que é fundamen-
talmente a experiência acadêmica.

E que não confundamos este mal-estar com a angústia ou


inquietação própria ao processo de pesquisa ou à crise inevitável em
toda criação artística; essa angústia que, segundo Heidegger (1969,
p. 32), “nos corta a palavra”, “emudece qualquer dicção do ‘é’”. O mal-
-estar é responsável, pelo contrário, por nos afastar dessa angústia,
por nos fazer acreditar que seria melhor não se deixar ser levado por
ela, apesar de insistentemente sermos invadidos pela mesma.

Uma primeira questão que o assombro diante de tal mal-es-


tar me faz levantar é: porque associamos academia ou universidade
com ciência? Pesquisa acadêmica é sinônimo de pesquisa científica,
ou seria esta apenas uma área entre outras da pesquisa acadêmica?
Podemos falar em pesquisa artística, pesquisa filosófica na acade-
mia, ou é mais acertado dizer pesquisa científica em artes, pesquisa
científica em filosofia?

Seria muito mais elegante e refinado, de minha parte, manter


essas perguntas em aberto, mas me permitirei a grosseria de afir-
mar minha posição, ou melhor, minha desesperada necessidade de

SUMÁRIO 215
desvincular atividade acadêmica de atividade científica. Mais ainda,
me permitirei atribuir como causa do tal mal-estar a necessidade
de dizer que o que fazemos é pesquisa científica em artes, e não
simplesmente pesquisa artística acadêmica. Sendo mais específico,
percebo que essa associação entre academia e ciência instaura no
ambiente acadêmico uma certa confusão entre a dimensão teórica
e a dimensão prática, dando uma impressão bastante nítida de que
existe uma predominância absoluta da primeira, e de que é preciso
fazer de tudo para que a segunda encontre seu espaço dentro da
pesquisa acadêmica. Isso tem levado, nas últimas décadas, a uma
ultravalorização da prática, e a uma certa desconfiança da teoria.
Ou seja, o mal-estar com o que é acadêmico acaba assumindo a
feição de um mal-estar com um suposto excesso de teoria e uma
suposta falta de prática na academia.

Por mais absurdo que pareça, começo a desconfiar (e essa


desconfiança ganhou corpo a partir dos estudos de Hannah Arendt e
Heidegger) que se trate justamente do contrário. Isso que chamamos
de teoria está, na verdade, completamente contaminado por precei-
tos práticos, por uma lógica que diz respeito muito mais à prática do
que à teoria. Na verdade, nem isso podemos dizer, pois hoje em dia
(e com isso talvez me refiro aos últimos 5 séculos) não parece possí-
vel pensar ou fazer nem a prática nem a teoria. Com esta afirmação
não estou defendendo uma separação purista das duas dimensões,
mas uma abordagem plena de cada uma delas para que o atraves-
samento possa se dar de uma maneira potente, ou seja, uma relação
que não se dê por submissão. Esse quadro é muito bem desenhado
pelas definições que podemos encontrar no dicionário. Ao fazer uma
busca no Larousse (1992, p. 1081 – o grifo é meu), me deparo com
uma definição bem interessante de teoria: “Conjunto relativamente
organizado de ideias, conceitos e princípios que fundamentam uma
atividade, e que lhe determinam a prática”. Em tal definição, a primeira
coisa que me chama a atenção é esse lugar, que a teoria assume,
de fundamentação de uma atividade, e esse poder de determinar

SUMÁRIO 216
uma prática, entendendo-o como determinação de seus rumos pos-
síveis ou mesmo de sua razão de ser. Com isso poderíamos concluir
que a prática se encontra submetida à teoria, situação desfavorável
de dependência da legitimação desta. Isso é reforçado por uma das
definições de prática encontrada no mesmo dicionário: “Aplicação
na realidade dos conceitos formulados no espírito” (Idem, p. 892).
Mas é preciso atentar também que, em tal definição, a teoria parece
obrigada a assumir um papel, também desfavorável, de ter que fun-
damentar algo que lhe é externo, a prática. E parece-me que esse
papel, que aparentemente dá à teoria um status elevado, desvia a
teoria de uma pulsão que lhe parece ser mais originária, pois é ape-
nas numa lógica cientificista que os “conceitos formulados no espí-
rito” têm como razão de ser a “aplicação na realidade”.

Para tentar me aproximar dessa pulsão originária da teoria (e


com isso não quero dizer sua essência, mas aquilo que ela concre-
tamente foi antes de lhe ser imputada esse papel cientificista), devo
retornar ao modo como os gregos tratavam a teoria. Em seguida ana-
lisarei sua transformação gradual, ao longo da história, até assumir
plenamente o papel que a tornou serva da prática, de uma prática
objetivista, de uma prática como senso de realidade que definitiva-
mente não condiz com a prática que tanto se luta hoje para que ganhe
seu devido espaço dentro das pesquisas acadêmicas em arte, e que
está mais ligada a uma necessidade de encarnação da experiência.

Antes de tudo, não podemos deixar escapar a relação etimo-


lógica entre a palavra teoria e a palavra teatro, ambas relacionadas a
“thauma, algo que atrai o olhar, uma maravilha” (SCHECHNER, 2012,
p. 134). Hannah Arendt (2014, p. 345) também leva em consideração
essa relação entre teatro e teoria quando define o significado desta
última entre os gregos como “mirada contemplativa do espectador
que se interessa pela realidade aberta diante de si e a acolhe”. Hei-
degger (2012, p. 45) é ainda mais específico ao mostrar que o termo
teoria provém do verbo grego θεωρεῖν. O substantivo correspondente
é θεωρία. O verbo nasceu da composição dos étimos θέα e ὁράω,

SUMÁRIO 217
sendo θέα a fisionomia, o perfil em que alguma coisa é e se mostra, a
visão que é e oferece, e ὁράω significa ver alguma coisa, tomá-la sob
os olhos, percebê-la com a vista. O importante nessa origem etimo-
lógica do termo teoria é a revelação de sua relação fundamental com
o Real que, segundo Heidegger (Idem, p. 42), é o vigente, tanto aquilo
que leva quanto aquilo que é levado à vigência.

Essas etimologias revelam uma estreita ligação entre o tea-


tro grego, a epistemologia ocidental e o ato de ver. Porém, é preciso
pensar este ato com mais cautela devido à ultravalorização que este
sentido da visão ganhou na epistemologia ocidental e a consequente
desconfiança gerada sobre a mesma para que se pudesse abrir
espaço aos outros sentidos, considerados (com razão) mais sutis.
José Gil (1996, p. 48) faz uma interessante distinção entre a visão e o
olhar, que interessa muito à presente discussão. Ele nos lembra que
para ver é preciso olhar, mas pode-se olhar sem ver. Ele chama a
atenção para a diferença entre “ver passar os barcos” e “olhar os bar-
cos que passam”, diferença entre receber os estímulos visando deco-
dificá-los e participar no espetáculo da paisagem, diferença entre
uma distância imposta por aquele que vê e uma sutil aproximação
daquele que, ao olhar, desposa as coisas e entra numa atmosfera
onde nada de preciso é ainda dado.

Essa experiência do olhar se aproxima do thaumazein, a


chocante admiração ante o milagre do Ser, que, segundo Platão, é
o começo de toda filosofia. E Hannah Arendt (2014, p. 375) afirma
que “na verdade, theoria é apenas outra palavra para thaumazein”.
Não interessa aqui discutir o conceito de Ser, mas me interessa
muito pensar que não há teoria sem essa “chocante admiração”
perante algo que nos espanta, que nos corta a palavra, podendo
este algo estar diante de nós, ou nos invadir como a angústia que,
como supracitado, “emudece qualquer dicção do ‘é’”. Evidente-
mente, Hannah Arendt faz a ressalva de que, se o thaumazein é o
começo da filosofia, ele não pode ser seu fim, que ele precisa ser
“filosoficamente purificado” (Idem), ou, em termos menos platônicos,

SUMÁRIO 218
que essa admiração, esse espanto que nos corta a palavra, precisa
passar por um rigor conceitual e teórico que dê conta de pensá-lo,
de expressá-lo em palavras (o que não necessariamente significa tra-
duzi-lo). Porém, esse rigor conceitual (que não é o mesmo que rigor
científico) não deve submeter a experiência do espanto a uma estru-
tura que a torne dizível (ou pior, reconhecível). Não se deve encarar o
rigor (fundamental à pesquisa acadêmica) como estrutura. Antes de
tudo, o rigor é uma força, próxima do desejo ou mesmo da obsessão.
E esta força é desencadeada no pesquisador pelo próprio espanto. A
coisa que o espanta impregna-o de um desejo que o faz olhar para
ela com um rigor que torna inevitável o esforço de abarcá-la em sua
plenitude (o que não quer dizer totalidade). Virgínia Kastrup (2010, p.
49) me parece abordar este encontro entre pesquisador e material
de pesquisa de modo a esclarecer melhor este tal rigor acadêmico,
que não é necessariamente científico, é preciso reforçar:
Trata-se, em certa medida, de obedecer às exigências
da matéria e de se deixar atentamente guiar, acatando o
ritmo e acompanhando a dinâmica do processo em ques-
tão. Nesta política cognitiva a matéria não é mero suporte
passivo de um movimento de produção por parte do
pesquisador. Ela não se submete ao domínio, mas expõe
veios que devem ser seguidos e oferece resistência à ação
humana (o grifo é meu).

Isso nos coloca diante de um jogo bastante paradoxal entre


distância e aproximação no ato do pesquisar em sua relação com a
realidade. A tradição cientificista postula, como condição do conhe-
cimento científico, sua neutralidade e objetividade. Podemos pen-
sar esta pela necessidade concreta de manter um objeto a uma
distância suficiente dos olhos para que o mesmo possa tomar uma
forma nítida. Sempre que aproximamos em demasia um objeto dos
olhos, começamos a perder o foco e o objeto se torna embaçado.
Porém, é bastante ilusória a crença de que, uma vez mantida esta
distância neutra, estamos diante do objeto tal como dado, em sua
ordem autêntica, na natureza. Este objeto que se apresenta em sua

SUMÁRIO 219
forma nítida diante de mim (não estou aqui me referindo apenas a
um objeto enquanto coisa palpável, mas também a qualquer fenô-
meno que esteja sendo investigado pelo pesquisador), só se apre-
senta enquanto tal devido a uma elaboração prévia de sua realidade,
de uma representação que se faz condição para que agora eu possa
reconhecê-lo. Ou seja, todo distanciamento objetivista conta com
uma aproximação prévia radicalmente intervencionista que faz com
que todo fato observado seja subsumido a conceitos, levando o pes-
quisador a extrair dos fenômenos somente os caracteres que lhe são
pertinentes. Porém, ao invés de se tratar de uma aproximação onde
o pesquisador vai na direção do objeto, trata-se de trazer o objeto
para perto de si, para que este venha até o território do pesquisador.
É a diferença entre lançar um anzol para que, sem sair do barco,
o pescador traga o peixe até si, e mergulhar no mar para pegar o
peixe com as próprias mãos (ou se afogar tentando). É preciso enten-
der, acompanhando Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros
(2010, p. 20), que “não há neutralidade do conhecimento, pois toda
pesquisa intervém sobre a realidade mais do que apenas a repre-
senta”. Na verdade, o próprio processo de representação do real é
intervencionista no sentido de limitar, de estreitar as possibilidades
de apresentação do real diante do olhar do pesquisador.

O paradoxo é que abdicar da perspectiva da terceira pes-


soa do conhecimento, da perspectiva da distância como condição
do conhecimento, nos permite perceber que a representação do
real, que o revela em sua forma nítida, é apenas um modo de sua
vigência. Portanto não devemos entrar numa disputa de qual modo
seria o mais verdadeiro. E se, ao invés do pesquisador se distanciar
para poder reconhecer o modo pelo qual o real se oferece através da
representação, ele pudesse, como diz Kastrup (supracitado), “obe-
decer às exigências da matéria”, se deixar atentamente guiar por ela,
acatando seu ritmo, percebendo que “a matéria não é mero suporte
passivo de um movimento de produção por parte do pesquisador”,

SUMÁRIO 220
que ela “não se submete ao domínio”, que, pelo contrário, “oferece
resistência à ação humana”?

Assim, aproximar-se do real pode significar se deixar ser


levado por seus movimentos e seu ritmo, permitindo que ele se apre-
sente de modo inusitado, surpreendendo e abalando as expectati-
vas do pesquisador; e, inversamente, distanciar-se para conhecer
pode significar impor ao real que ele se apresente em sua objeti-
dade, sobrepujar sua resistência para que possa ser representado
de acordo com o interesse do pesquisador. É neste sentido que
Heidegger (2012, p. 48) afirma que:
como teoria, a ciência seria justamente ‘teórica’. Prescin-
diria de qualquer elaboração do real. Faria de tudo para
apreender o real puramente em si. Não interviria no real
para alterá-lo. A ciência pura, como se proclama, seria
desinteressada e ‘sem propósito’. E, no entanto (...) a ciên-
cia é uma elaboração do real terrivelmente intervencio-
nista (...) estabelece e consolida a sua vigência, transfor-
mando-a em objetividade.

A Ciência Moderna – e junto com ela, a pesquisa acadê-


mica – se afastou completamente do modo como os gregos viviam
a teoria. Esta já não é mais uma relação do olhar com o modo em
que aparece o vigente, ou seja, o Real. A Ciência Moderna trans-
formou a teoria numa prática, numa prática de “elaboração do real
terrivelmente intervencionista”. Nesta prática não há espaço para o
thaumazein, para a admiração diante daquilo que nos espanta e nos
corta a palavra, ou seja, nos põe a pensar. Nesta prática não há mais
espaço para o pesquisador ser afetado e transformado pelo modo
de vigência daquilo que se abre diante dele, pois agora é ele, pes-
quisador, que “estabelece e consolida” a vigência do Real, “transfor-
mando-a em objetidade”.

SUMÁRIO 221
CONVERSÃO DA TEORIA EM
HIPÓTESE E DO REAL EM OBJETO
Não é possível pensarmos a transformação do sentido de teo-
ria independente da transformação do sentido de Real. Muito antes
do advento da Ciência Moderna, os romanos já começaram a com-
preender o Real de modo bastante distinto dos gregos. Como Hei-
degger (2012) nos mostra em Ciência e Pensamento do Sentido, os
romanos, pelo próprio espírito da língua latina, acrescentam ao Real,
como aquilo que está em vigência, a actio. O vigente aparece então
como o resultado de uma operação. O Real é, agora, o sucedido.
Todo sucesso é produzido por algo que o antecede, a causa. Assim,
o Real aparece à luz da causalidade, como aquilo que é causado.
Mas não só isso. Sendo um resultado, o efeito é sempre feito por um
fazer. O resultado do feito de um fazer é o fato. Este é o sentido que
o real assume na Idade Moderna. Aqui o Real, no sentido de fato, se
opõe ao que não consegue consolidar-se numa posição de certeza
e se reduz a algo apenas mental, sendo considerado algo irreal, uma
ilusão ou erro. Ou seja, o Real é aquilo que chega a consolidar-se
enquanto fato, aquilo que obtêm êxito, que foi bem sucedido, e que
possui uma causa. É nessas condições que o Real pode se tornar
objeto da representação. Mas só será possível compreender plena-
mente a transformação do Real em Objeto através da transformação
do sentido de teoria.

O mesmo Heidegger nos mostra que os romanos traduzi-


ram o termo grego para teoria (θεωρείv) por contemplari. Com esta
tradução, o essencial da palavra grega desaparece, pois contemplari
significa “separar e dividir uma coisa num setor e aí cercála e circun-
dá-la” (HEIDEGGER, 2012, p. 46). A tradução alemã de contemplatio
é Betrachtung, observação. Esta vem do latim tractare, tratar, pre-
tender e aspirar a alguma coisa, empenhar-se todo para alcançá-la,
persegui-la e correr atrás dela para dela se apossar. “Neste sentido, a

SUMÁRIO 222
teoria, como observação, seria uma elaboração que visa apoderar-se
e assegurar-se do real” (Idem, p. 48). E assim a teoria está apta a
tornar-se, com a Ciência Moderna, uma “representação processa-
dora, que assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade
processável” e “todo real se transforma, já de antemão, numa varie-
dade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas
científicas” (Idem).

O ponto-chave a ser discutido é este “já de antemão”. Mais


a frente iremos discutir o objetivo final e pressuposto deste, que é
“o asseguramento processador das pesquisas científicas”, e que faz
as pesquisas científicas (e as pesquisas acadêmicas acabam por se
submeter a essa lógica) entrarem num círculo vicioso, uma cobra
comendo o próprio rabo. Mas antes nos atenhamos a este a priori da
pesquisa que acaba por sempre submetê-la a algo que a transcende.

Talvez já se tenha notado que, apesar de desde o início eu


ter feito a defesa de que academia e ciência não são sinônimos, o
tempo todo acabo por misturar essas duas instâncias, confundi-las
como se fossem a mesma coisa. É que o desejo de dissociá-las não
desfaz, por si só, o quadro em que nos encontramos na academia,
onde, mesmo que surja aqui ou ali programas de pós-graduação,
ou apenas professores isolados, que abracem modos de pesquisa
qualitativa, como a cartografia, por exemplo, estes sempre surgem
como uma exceção, um movimento à margem que continua a gerar
desconfiança quanto à seriedade acadêmica das pesquisas que
geram. Isso obriga essas estratégias alternativas de pesquisa (que
não deveríamos chamar de Método) a ter de continuar dialogando,
prestando contas a noções e protocolos de pesquisa que não
potencializam o seu processo. Quando nos pomos a consultar
(oh, tarefa árdua!) um manual de metodologia da pesquisa, esta
associação, esta confusão entre academia e ciência torna-se evidente
A pesquisa é fundamentada e metodologicamente cons-
truída objetivando a resolução ou o esclarecimento de um

SUMÁRIO 223
problema. Problema é uma questão que a pesquisa pre-
tende responder. Todo o processo de pesquisa irá girar
em torno de sua solução (MORESI, 2003, p.58).

Poderíamos associar o problema da pesquisa ao thaumazein


dos gregos, se, e somente se o problema não estivesse já de ante-
mão sendo colocado visando sua solução, pois nessas condições o
problema se torna um mero trampolim para alcançar a verdade cien-
tífica. Ou seja, a pesquisa é apenas um meio para se chegar a um fim,
“a pesquisa é fundamentada e metodologicamente construída obje-
tivando a resolução ou o esclarecimento de um problema” (MORESI,
2003, p. 58). Através desta lógica nos afastamos da potência do pro-
blema, ou melhor, tornamos irreconhecível aquilo de que nos apro-
ximamos, pois não olhamos para o mesmo. Olhamos sempre além,
para o fim aonde o problema deve nos levar: sua solução.

Este mesmo manual de metodologia de pesquisa descreve


as atividades de um médico como exemplo esclarecedor à com-
preensão do que consiste um problema de pesquisa: quando um
médico recebe alguém que se queixa de alguns sintomas, ele per-
cebe que há uma doença da qual não é possível ainda saber a causa.
Ou seja, ele percebe que há um problema a ser resolvido, e a partir
daí formula uma hipótese (ou hipóteses) para resolver o problema.
O médico então passa a realizar observações e experiências para
testar sua hipótese. Caso a hipótese se confirme, ela será aceita, pelo
menos provisoriamente, e o médico receitará os medicamentos ade-
quados para combater a doença. Se os testes não confirmarem sua
hipótese, outras hipóteses terão que ser testadas ou talvez alguns
testes tenham que ser refeitos. Desse modo, a hipótese poderá ser
confirmada ou refutada pela experiência (MORESI, 2003, p. 58).

Ao se acreditar que a atividade de um médico é o melhor


exemplo para compreendermos o processo de pesquisa acadêmica,
chama a atenção o lugar reservado à experiência no processo de
pesquisa. Cabe a ela confirmar ou refutar hipóteses. “O processo

SUMÁRIO 224
de pesquisa estará voltado para a procura de evidências que com-
provem, sustentem ou refutem a afirmativa feita na hipótese”, e,
portanto, esta será “a diretriz de todo o processo de investigação”
(MORESI, 2003, p. 58).

Como diz Hannah Arendt (2014, p. 345), “... a prova da teoria


passou a ser uma prova ‘prática’ – se funcionará ou não. A teoria con-
verteu-se em hipótese...”, e toda hipótese deve ser passível de verifi-
cação. É claro que não se pode passar nesta prova sem um método
cientificamente fundamentado. O método é a maneira da ciência
proceder (e deve necessariamente ser a maneira da academia pro-
ceder?), em suas pesquisas, com vistas ao asseguramento proces-
sador. Podemos pensar que o que está em jogo aqui é a decisão do
que deve valer, e acredito que isso seja fundamental no processo de
pesquisa acadêmica. Mas não acredito que seja fundamental, para
a mesma, que a decisão dependa “da possibilidade de se medir e
mensurar a natureza, dada em sua objetidade e, em consequência,
das possibilidades dos métodos e procedimentos de medida e quan-
tificação” (HEIDEGGER, 2012, p. 49). Quando entramos no terreno
da mensuração, entramos no terreno do cálculo que, segundo Hei-
degger (2012, p. 50), não significa simplesmente operar com núme-
ros, “calcular significa contar com alguma coisa (...) ter expectativas,
esperar dela alguma outra coisa, contar antecipadamente”. E conclui:
“Neste sentido, toda objetivação do real é um cálculo”. E o que faze-
mos na academia é exatamente objetivar o real, transformá-lo em
objeto para nossas pesquisas.

Oswald Ducrot (1987) também se refere à decisão, ao falar


de método científico, porém divide a mesma em dois momentos,
que ele distingue enquanto hipóteses externas e hipóteses internas.
A primeira concerne à aplicação dos conceitos gerais ao detalhe
dos fenômenos observados, e serve para determinar o objeto que os
procedimentos metodológicos devem analisar. Essas decisões não
podem mais, uma vez tomadas, serem rediscutidas. Já as hipóteses

SUMÁRIO 225
internas, por se tratarem de escolhas relativas aos procedimentos
metodológicos, são perfeitamente revogáveis.
Seu abandono significa somente que se reprograme o
plano anterior da máquina, porque chegou-se à conclu-
são de que este ou aquele de seus aspectos ia contra o
objetivo buscado, ou então complicava inutilmente a rea-
lização deste objetivo (Idem, p. 51).

Esta possibilidade de abandono de procedimentos metodo-


lógicos no meio do processo de pesquisa pode nos dar a impressão
de autonomia da experiência do pesquisar. Porém, a citação é bem
clara: só se reprograma o plano anterior “porque chegou-se à con-
clusão de que este ou aquele de seus aspectos ia contra o objetivo
buscado”. O plano metodológico está absolutamente submetido ao
objetivo traçado no pré-projeto, aquele que é realizado antes que se
tenha começado o pesquisar. É por isso que me parece fundamental
a reversão metodológica proposta pelo método da Cartografia (que
recebe o nome de método por uma questão política, para que possa
ser mais facilmente aceita no meio acadêmico, mas que, por sua
natureza, não pode ser considerado um método), a de transformar
o méta-hódos em hódos-méta. Se no primeiro temos um caminho
(hódos) pré-determinado pelas metas dadas de partida, no segundo
temos o primado do caminhar (da experiência) que traça, no per-
curso, suas metas (PASSOS, KASTRUP, ESCÓSSIA, 2010). E não
se trata de uma ação sem direção, mas de uma direção que surge
através da ação, pois
[...] não se pode orientar a pesquisa pelo que se suporia
saber de antemão acerca da realidade: o know what da
pesquisa. Mergulhados na experiência do pesquisar, não
havendo nenhuma garantia ou ponto de referência exte-
rior a esse plano, apoiamos a investigação no seu modo
de fazer: o know how da pesquisa [...] um saber que vem,
que emerge do fazer (grifos no original, Idem, p. 18).

SUMÁRIO 226
Esta reversão metodológica permite que o processo de pes-
quisa não seja apenas uma busca por soluções para problemas
prévios, abre a possibilidade de encontro com o inesperado, e que
eventualmente surja a necessidade de redesenhar o próprio pro-
blema, o próprio objeto de pesquisa. Ou melhor, o problema deixa
de estar vinculado a um objeto determinado de antemão. Este, se
ainda deve ter lugar no processo de pesquisa, vai se desenhando ao
longo da mesma, através do embate com o problema que, enquanto
acontecimento, potencializa o pensar exatamente por ser o que é:
ainda não determinado. É preciso abdicar dessa impaciência meto-
dológica, desta maneira de questionar que se precipita para o seu
fim: a resposta. Não somos nós, pesquisadores, que devemos ques-
tionar o problema, é este que nos questiona insistentemente, sem
que sejamos capazes de neutralizar, pela explicação, o seu poder de
inquietação, sem que sejamos capazes de transformá-lo num objeto
de pesquisa a partir do qual geraremos hipóteses que o resolverão,
tornando nossa pesquisa relevante para a comunidade acadêmica.

Arrisco-me a considerar este “já de antemão” como a prin-


cipal causa disso que estou chamando de mal-estar na acade-
mia. Ele condiciona não apenas nossa escrita, mas até mesmo os
modos de discussão na academia. Percebo nesta o mesmo que Paul
Feyerabend (2007, p. 264, grifo no original) denuncia na comuni-
dade científica, onde
[...] exigem que os termos principais da discussão sejam
‘esclarecidos’. E ‘esclarecer’ os termos de uma discussão
não significa estudar as propriedades adicionais e ainda
desconhecidas do domínio em questão das quais se pre-
cisa para torná-los inteiramente compreendidos, mas sig-
nifica preenchê-los com noções existentes [...] Permite-
-se que a discussão prossiga só depois que suas etapas
iniciais tenham sido modificadas dessa maneira. Assim,
o curso de uma investigação é desviado para os canais
estreitos das coisas já compreendidas e a possibilidade
de descoberta conceitual fundamental (ou de alteração
conceitual fundamental) fica consideravelmente reduzida

SUMÁRIO 227
[...] conduz de volta a ideias familiares e trata o novo como
um caso especial de coisas já compreendidas.

Só devemos avançar depois que o “já de antemão” tenha


garantido que seguiremos pelo rumo certo, que não nos afastaremos
em demasia do rumo das “coisas já compreendidas”. Já compreen-
didas pelos membros da banca de seleção, já compreendidas pelo
orientador, já compreendidas pela banca de qualificação, já compre-
endidas pela banca de defesa. Sem o esclarecimento prévio, sem
delimitar claramente o problema que impulsiona o pesquisador a
pensar, a pesquisa não deve começar, pois corre o risco de não ser
exequível. Sem um recorte que processe todo novo fenômeno até
que ele se enquadre no domínio decisivo dos objetos existentes, não
será possível julgar do que se trata a pesquisa, portanto esta não está
apta a começar. Paul Feyerabend (Idem, p. 265) sugere que “é preciso
aprender a argumentar com termos inexplicados e usar sentenças
para as quais nenhuma regra clara de uso está ainda disponível”. Lyo-
tard (1997, p. 80) nos diz que pensar “é uma peregrinação no deserto”.
É um risco que devemos correr para podermos sair deste círculo
vicioso. Hannah Arendt (2014, p. 357) formula-o do seguinte modo:
os cientistas formulam suas hipóteses para organizar seus
experimentos e em seguida empregam esses experimen-
tos para verificar as hipóteses; é óbvio que, durante toda
essa empresa, eles lidam com uma natureza hipotética.

É chegada a hora de começarmos a nos perguntar o que


nossas pesquisas têm a ver com o real, uma vez que (como supra-
citado) “todo real se transformou, já de antemão, numa variedade
de objetos para o asseguramento processador das pesquisas cien-
tíficas”. Talvez estejamos mais preocupados com a lógica de nossos
procedimentos metodológicos do que com aquilo que nos mobiliza
a pesquisar. Ao invés de submeter as condições da pesquisa ao
real, talvez estejamos fazendo o inverso. É o critério de conveniên-
cia. Deveríamos estar tão preocupados assim com o asseguramento
processador de nossas pesquisas? Para que a academia continue

SUMÁRIO 228
a produzir monografias, dissertações e teses é preciso mesmo sub-
meter o real às nossas condições metodológicas, garantindo que ele
não nos atrapalhe com sua lógica caótica de acontecimento inde-
terminado? Talvez seja chegada a hora de assumir, depois de cinco
séculos, que o real e a razão humana se divorciaram. E que sempre
que procuramos aquilo que não somos, o desconhecido, o indeter-
minado, na medida em que utilizarmos instrumentos metodológicos
criados por nossa razão, encontramos apenas os padrões de nossa
lógica racional e científica.

O que estamos pesquisando afinal? Temos tanto medo que


aquilo que estamos pesquisando venha a comprometer nosso pes-
quisar, que começamos a criar armas metodológicas para nos defen-
der daquilo que nos gera espanto, daquilo que nos corta a palavra.
Antes mesmo que o assombroso, o sublime possa nos cortar a
palavra, possa (como supracitado) “emudecer qualquer dicção do
‘é’”, nos pomos a falar, a dizer exatamente o que isso “é”, e se não
for, o fazemos sê-lo.

Heidegger (2012, p. 55) afirma sobre a física, enquanto ciên-


cia, uma condição que, penso eu, não a impede de avançar naquilo
que ela se propõe a ser enquanto disciplina científica:
Nenhuma física tem condições de falar da física, como
física. Todas as sentenças da física falam sempre a partir da
física. Em si mesma, nenhuma física pode vir a ser objeto
de uma pesquisa física [...] É o que vale para toda ciência.

Não é dado à ciência tratar cientificamente daquilo que ela


é, pois a condição para que se possa tratar cientificamente do que
quer que seja, é que já esteja determinado de antemão o que é a
ciência. Não cabe à ciência discutir o que é a ciência. É por esta con-
dição que as pesquisas científicas geram avanços e progressos para
a comunidade científica, que é possível pisar nos degraus criados
por aquelas pesquisas que a antecederam.

SUMÁRIO 229
Mas podemos ou devemos pensar o mesmo para uma área
como o teatro? Há aqui alguma perspectiva de avanço ou progresso
enquanto área de pesquisa? É mesmo preciso, para haver pesquisa
em teatro, que se delimite um território a partir do qual poderemos
pensar teatro? Não seria exatamente a constituição deste território
instável que chamamos de teatro que nos mobiliza a fazer pesquisa
nesta área? Não estamos infinitamente questionando o que é isso
que estamos fazendo sem nunca estabelecermos em definitivo um
território de onde partir? Parece-me que ter de partir de objetos
dados para pesquisar a sua própria realidade é uma grande limitação
para a pesquisa numa área como o teatro.

Parece-me que nenhuma outra área, como no teatro, há de


sofrer tanto esse mal-estar por ter se afastado da teoria como thau-
mazein, por se ver obrigado a, como condição de pesquisa, transfor-
mar isso que lhe espanta em objeto a ser processado pelo método
científico. Nenhuma outra área, como no teatro, há de sofrer tanto
esse mal-estar por ter se afastado da teoria enquanto “mirada con-
templativa do espectador que se interessa pela realidade aberta
diante de si e a acolhe”. Nenhuma outra área, como no teatro, há
de sofrer tanto o mal-estar por ter transformado a teoria em hipó-
tese e o real em objeto.

SUMÁRIO 230
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SUMÁRIO 240
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SUMÁRIO 241
SOBRE OS ORGANIZADORES
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com
bolsa de estudos concedida pela CAPES, e graduado em Letras com habilitação em língua portuguesa e suas lite-
raturas pela mesma instituição. Além disso, é escritor premiado de contos e romances, tendo publicado a duologia
No Domínio, composta pelos livros No Dominio do Mal (2022) e No Domínio da Agonia (2023). É membro do Grupo de
Estudos de Narrativa e Teatro (γ-Ente), do Núcleo de Cultura Clássica (UFC/CNPQ), e desenvolve pesquisas acerca
da tragédia Prometeu Acorrentado, no que diz respeito a questões que envolvem as aproximações entre os gêneros
dramático e narrativo, além de questões que envolvem a representação do estrangeiro na civilização grega antiga.
Contato: [email protected]

Mellyssa Coêlho de Moura


É doutoranda do Programa de Pós Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com
bolsa de estudos concedida pela FUNCAP, e mestre pela mesma instituição. É membro do Grupo de Estudos de Nar-
rativa e Teatro (γ-Ente), do Núcleo de Cultura Clássica (UFC/CNPQ), e desenvolve tradução e pesquisa acerca da
recepção clássica nas obras da autora inglesa Mary Shelley.
Contato: [email protected]

Orlando Luiz de Araújo


É professor Associado da Universidade Federal do Ceará, onde atua na graduação em Letras e em Teatro, e no Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras, Literatura Comparada, do qual foi coordenador (2016-2019), além disso, realizou
um Pós-Doutorado com bolsa CAPES no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Possui Doutorado e Mestrado em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, Especialização em Filosofia
Política e Licenciatura em Português-Literatura pela Universidade Federal do Ceará. Traduziu Electra (2014), de Sófo-
cles, e organizou em coautoria Literatura, Sociedade e Interdisciplinaridade: Articulações Literárias (2019), Recepção
dos Mitos Gregos na Dramaturgia Brasileira (v.1 e 2, 2021), Corpos e Masculinidades na Dramaturgia de Bernardo Santa-
reno (2022) e As mulheres de Aristófanes: revolução e recepção (Tomos 1 e 2, 2022). Traduziu também Calígula (2015),
de Albert Camus, para encenação pela companhia teatral Comedores de Abacaxi S/A. É líder do Grupo de Estudos de
Narrativa e Teatro (γ-Ente) e membro do Grupo de Pesquisa Estudos sobre o Teatro Antigo (USP/CNPQ) e do Núcleo
de Cultura Clássica (UFC/CNPQ).
Contato: [email protected]

SUMÁRIO 242
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
Ana Maria César Pompeu
É Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e fez um estágio pós-doutoral na Universidade de
Coimbra, em Portugal. Atualmente, é Professora Titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) e atua nos Programas
de Pós-graduação em Letras (PPGLetras) e em Estudos da Tradução (POET). É líder do grupo de pesquisa/CNPQ/SBEC:
Núcleo de Cultura Clássica. Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (2020-2021). Publicou Aris-
tófanes e Platão: a justiça na pólis (2011), Dioniso matuto: uma abordagem antropológica do riso na tradução de Acar-
nenses de Aristófanes para o cearensês (2014; 2021), Acrópole, agora! Mulher, dentro! Homem, fora! Uma introdução à
Lisístrata de Aristófanes (2018), Aristófanes, o dramaturgo da cidade justa (2019) e traduziu, de Aristófanes, Lisístrata
(1998; 2010), Tesmoforiantes (2015), Cavaleiros (2017), e, de Plutarco, em colaboração, Epítome da comparação de
Aristófanes e Menandro (2017). Organizou em colaboração os livros: O riso no mundo antigo (2012), Oralidade, Escrita
e Performance na Antiguidade (2013), Identidade e alteridade no mundo antigo (2013), Grécia e Roma no Universo
de Augusto (2015), Os Estudos Clássicos na Pandemia (2022) e As mulheres de Aristófanes: revolução e recepção
(Tomos 1 e 2, 2022).
Contato: [email protected]

Aron Barcelos Vilar Guimarães


Nasceu no Vale do Aço, região abençoada por Hefesto. Durante sua peregrinação, conheceu os gregos em um belo
acidente na Terra de Hélios. Lá, durante uma parte de seu percurso, aprendeu a língua e foi monitor de cultura grega
na Universidade Federal do Ceará. Veio a se formar em filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto, onde traba-
lhou duas vezes como monitor na área de história da filosofia antiga. Atualmente convive com o amigo Kierkegaard
em terras nórdicas, dinamarquesas, sem nunca se esquecer da serena grandeza e nobre simplicidade helênica.
Contato: [email protected]

Edinaura Linhares Ferreira Lima


É doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestre pela mesma instituição. Especialista em
Literatura e Português (UVA) e em Gestão Escolar (UFC). Graduada em Letras com habilitação em língua portuguesa
pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora de Língua Portuguesa (SEDUC/CE). Tem interesse de pesquisa
em questões relativas à produção literária do escritor mineiro Guimarães Rosa e de questões relativas à cultura e
literatura clássica, especialmente à literatura grega. Pesquisadora voluntária do Grupo de Estudos de Narrativa e
Teatro (γ-Ente).
Contato: [email protected]

SUMÁRIO 243
Edson Santos Silva
É Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), com Pós-Doutorado na mesma
instituição, sob a supervisão do Prof. Dr. Francisco Maciel Silveira. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Língua e Literatura Portuguesa. Dedica-se à pesquisa da dramaturgia lusa do século XIX. É professor associado da
UNICENTRO/PR: Letras – graduação (Irati) e pós-graduação (Irati e Guarapuava).
Contato: [email protected]

Erimar Wanderson da Cunha Cruz


É piauiense de Teresina, doutor em Estudos Literários (UFC) e professor do Instituto Federal do Piauí - Campus Campo
Maior. Atualmente, dedica-se aos estudos comparados de literaturas indo-europeias e à filologia clássica.
Contato: [email protected]

Francisco Vítor Macêdo Pereira


É professor de Filosofia do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
-brasileira. Doutor em Filosofia Prática pela Universidade Federal de Pernambuco.
Contato: [email protected]

Glaudiney Moreira Mendonça Junior


Possui graduação em Ciências da Computação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e mestrado em Ciência
da Computação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente é Doutorando em Literatura Comparada pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) da UFC e é professor da Universidade Federal do Ceará, lotado no
Instituto UFC Virtual, ministrando aulas no curso de Bacharelado em Sistemas e Mídias Digitais. Tem experiência na
área de Jogos, Narrativas, Mitologia e Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Jogos de Tabuleiro,
Design de Jogos, Gamificação, Narrativas Multimídia, Psicologia Analítica, Contos de Fadas, Mitologia Grega e Nórdica.
Contato: [email protected]

Jane Kelly de Oliveira


É Professora Associada do Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no
Paraná. Realizou tanto seu mestrado, quanto seu Doutorado, em Estudos Literários, área de concentração em Teoria
e Crítica do Drama, na Unesp/Araraquara, e seu pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Suas pesquisas atuais
voltam-se para o teatro grego antigo e para a recepção da literatura clássica greco-romana na modernidade.
Contato: [email protected]

SUMÁRIO 244
Lucas Matheus Vasconcelos Santos
É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com
bolsa de estudos concedida pela CAPES, e graduado em Letras com habilitação em língua portuguesa e suas lite-
raturas pela mesma instituição. Além disso, é escritor premiado de contos e romances, tendo publicado a duologia
No Domínio, composta pelos livros No Dominio do Mal (2022) e No Domínio da Agonia (2023). É membro do Grupo de
Estudos de Narrativa e Teatro (γ-Ente) do NUCLAS-UFC e desenvolve pesquisas acerca da tragédia Prometeu Acorren-
tado, no que diz respeito a questões que envolvem as aproximações entre os gêneros dramático e narrativo, além de
questões que envolvem a representação do estrangeiro na civilização grega antiga.
Contato: [email protected]

Mellyssa Coêlho de Moura


É doutoranda do Programa de Pós Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com
bolsa de estudos concedida pela FUNCAP, e mestre pela mesma instituição. É membro do Grupo de Estudos de Nar-
rativa e Teatro (γ-Ente) do NUCLAS-UFC e desenvolve tradução e pesquisa acerca da recepção clássica nas obras da
autora inglesa Mary Shelley.
Contato: [email protected]

Thatiane Prochner
É graduada em Letras Português / Inglês, Especialista em Letras - Língua Portuguesa, Linguística e Literatura - e
Mestra em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Doutoranda
em Letras - Interfaces entre Língua e Literatura - pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), sob
orientação do Professor Dr. Edson Santos Silva, com pesquisa intitulada Carlota Joaquina: história portuguesa na
literatura brasileira.
Contato: [email protected]

Tiago Fortes
É Doutor em Artes da Cena pela UNICAMP, professor do PPGLetras da UFC e do curso de Teatro-Licenciatura da UFC,
onde dirigiu diversos espetáculos como As suplicantes (2012), que participou do XIX festival nordestino de teatro de
Guaramiranga em 2012, e Como representar os Negros? (2013), que participou do IX festival de teatro de Fortaleza
em 2013. Em 2021, dirigiu Santiago do Chile, 1973 (Edital das Artes 2019 - SECULTFOR), seu primeiro longa-metragem.
Em 2020, publicou seu primeiro livro, A condição do ator em formação: por uma fenomenologia da aprendizagem e
uma politização do debate. Coordena, desde 2022, na UFC, o projeto de pesquisa “A dimensão pública do teatro na
prática do Viewpoints”.
Contato: [email protected]

SUMÁRIO 245
Vanessa Silva Almeida
Licenciou-se em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Possui mestrado em Estudos
da Tradução, com a dissertação intitulada “Lamento e Luto na Tradução de Suplicantes de Eurípides” pela mesma
universidade. Integrou a organização da coletânea de artigos A Literatura na Teoria e na Prática, publicada em 2020,
e contribuiu como autora com um capítulo do livro Estudos Clássicos e Filológicos, organizado por Adílio de Sousa
Júnior, e publicado em 2021. É professora de língua e literatura inglesa e latina do Instituto Federal do Ceará (IFCE)
desde 2016, onde desempenha, além do ensino, atividades extracurriculares e de extensão voltadas ao conheci-
mento, pesquisa e difusão da literatura grega antiga. Atualmente cursa um doutorado na Universidade Federal do
Ceará com o projeto voltado ao estudo do personagem mítico Teseu na construção da identidade ateniense.
Contato: [email protected]

SUMÁRIO 246

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