Romance Social e Romance Intimista
Romance Social e Romance Intimista
Romance Social e Romance Intimista
Natal/RN, 2019
Mayara Costa Pinheiro
Natal/RN, 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
Aos meus pais Sebastião e Maria Da Paz, por acompanharem cada passo meu, pela força e
estímulo oferecidos em todas as fases de minha vida.
As minhas queridas irmãs Lorena e Viviane, e à minha prima-irmã Lidianne Melo, pela
amizade, carinho e pelo companheirismo. Vocês são meus elos de ligação com o passado, que
cresceram e crescem a cada dia ao meu lado.
A Willian Pinheiro Galvão, companheiro de todas as horas. Agradeço o afeto, o apoio amoroso,
moral e intelectual oferecidos a cada momento da produção deste trabalho.
Aos colegas de trabalho do IFRN – campus Currais Novos, em especial: Janaína, Maura,
Gabriela, Dayana, Jane, Marcos Queiroz, Raquel Maia, Hyrla Cunha, Andreilson, Elionardo,
Rejane, Danilo, Gutto, Edinalva, Gabriell John, Hanniel, Ronaldo Falcão, Ítala, Márcia, Uliana,
Duarte, Lúcia Carneiro, Lívia, Marcílio, Saint Clair, Jahynne, Eliézio, Mário, Sadart, Fábio
Rolim e meu substitutos Juan Santos e Maíra Dal’Maz.
Aos meus professores de Literatura durante todo esse percurso de formação na área de Letras:
Márcia Tavares, Derivaldo dos Santos, Humberto Hermenegildo, Marta Gonçalves, Rosanne
Bezerra, Gerardo Fajardo e em especial ao Professor Andrey.
À Professora Eva Barros, pelos conhecimentos transmitidos nas nossas conversas amistosas.
À Iara Maria, minha primeira professora de literatura no ensino médio, agradeço por ter me
apresentado o mundo contagiante da Literatura pelo qual hoje sou apaixonada.
Aos bibliófilos Rejane Cardoso e Vicente Serejo, por abrirem as portas de sua biblioteca para
a pesquisa em obras raras.
A Ésio Macedo Ribeiro, estudioso e editor das obras de Lúcio Cardoso no Brasil, pelas
conversas enriquecedoras sobre nosso querido Lúcio.
A Elisabete e Gabriel, funcionários da secretaria do PPGEL, por sempre me receberem com
atenção e tirarem minhas dúvidas com presteza.
À Monique Galvão, minha professora de Iyengar Yoga, por me apresentar o equilíbrio entre
corpo e mente.
As minhas terapeutas durante todo esse longo percurso de doutorado: Monalisa, Mayara Soares
e Natália Alves.
Clarice Lispector
Virginia Woolf
Nesta tese, procuramos analisar dois momentos da produção romanesca de Lúcio Cardoso: a
fase social e o estilo intimista. Para delinear esses dois vértices da produção do autor,
selecionamos os romances Salgueiro (1935) e Crônica da casa assassinada (1959). O
primeiro é abordado como um romance de transição da fase social para o estilo intimista, e
o segundo é considerado o ápice da narrativa intimista de Cardoso. No desenvolvimento desta
análise, utilizamos como método a concepção dialética entre a literatura e seu contexto de
produção, estabelecendo uma relação entre os elementos estético-formais e os sociais,
princípios da “crítica integradora” proposta por Antonio Candido (2010b). Inicialmente,
fazemos um panorama sobre a vida e obra de Lúcio Cardoso, bem como uma
contextualização sobre romance de 1930, mostrando tanto a vertente regionalista, quanto a
intimista/psicológica na perspectiva dos críticos literários Luís Bueno (2006), Afrânio
Coutinho (2004), Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004), Alfredo Bosi (2006),
Massaud Moisés (2004) e Luciana Stegagno Picchio (2004). Em seguida, para análise de
Salgueiro, utilizaremos a perspectiva de Luís Bueno (2006), Lúcia Miguel Pereira (1935),
Afrânio Coutinho (1995; 2004a), e Rosiane Vieira de Rezende (2007); bem como de Antonio
Candido (2010a) e Paulo Franchetti (2012) na comparação entre Salgueiro e O Cortiço, de
Aluísio Azevedo, entre os elementos da estética naturalista. Para desenvolver a análise
específica de Crônica da casa assassinada, foram utilizados dos conceitos de dialogismo e
polifonia propostos por Mikhail Bakhtin (2015b), a noção de “autor implícito”, de Wayne
Booth (1980) e a contextualização de Gilberto Freyre (2004) sobre a decadência do
patriarcalismo rural brasileiro. Por fim, a vinculação entre a análise de Salgueiro e Crônica
da casa assassinada ocorreu através da categoria estrutural do narrador, pois enquanto
Salgueiro é narrado em focalização fixa com o uso da onisciência, em Crônica da casa
assassinada ocorre a predominância do romance psicológico que é representado
esteticamente pelos vários narradores homodiegéticos. Procuramos mostrar como essa
mudança no elemento estrutural contribuiu para consolidar o estilo intimista de Lúcio
Cardoso por meio da noção de “polimodalidade focal” proposta por Gérard Genette (1979) e
comentada por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2009).
In this thesis, we try to show two moments in the novel production of Lúcio Cardoso: the social
phase and the intimate style. To delineate these two vertices of the author's production, we
selected the novels Salgueiro (1935) and Chronicle of the Murdered House (1959). The first
one is approached as a transitional novel from the social phase to the intimate style, and the
second one is considered the apex of Cardoso's intimate narrative. In the development of this
analysis, we use as a method the dialectical conception between literature and its production
context, establishing a relation between aesthetic-formal and social elements, principles of
"integrative criticism" proposed by Antonio Candido (2010b). First, we give an overview of the
life and work of Lucio Cardoso, as well as a contextualization about the 1930 novel, showing
both the regionalist and intimate / psychological aspects from the perspective of literary critics
Luís Bueno (2006), Afrânio Coutinho (2004), Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004),
Alfredo Bosi (2006), Massaud Moisés (2004) and Luciana Stegagno Picchio (2004). Then, for
Salgueiro analysis, we will use the perspective of Luís Bueno (2006), Lúcia Miguel Pereira
(1935), Afrânio Coutinho (1995; 2004a), and Rosiane Vieira de Rezende (2007); as well as
Antonio Candido (2010a) and Paulo Franchetti (2012) in the comparison between Salgueiro
and O Cortiço, by Aluísio Azevedo, among the elements of naturalistic aesthetics. To develop
the specific analysis of Chronicle of the murdered house, we used the concepts of dialogism
and polyphony proposed by Mikhail Bakhtin (2015b), Wayne Booth's (1980) notion implied
author and the contextualization of Gilberto Freyre (2004) on the decadence of Brazilian rural
patriarchy. Finally, the link between the analysis of Salgueiro and Chronicle of the murdered
house occurred through the structural category of the narrator, because while Salgueiro is
narrated in fixed focus with the use of omniscience, Chronicle of the murdered house occurs
the predominance of the psychological novel that is represented aesthetically by the various
homodiegetic narrators. We try to show how this change in the structural element contributed
to consolidate the intimate style of Lúcio Cardoso through the notion of focal polymodality
proposed by Gérard Genette (1979) and commented on by Vitor Manuel de Aguiar e Silva
(2009).
Keywords: Lúcio Cardoso; Novel of 1930; Intimate novel; Narrator; Brazilian literature.
RÉSUMÉ
Dans cette thèse, nous cherchons montrer deux moments de la production romanesque de
Lúcio Cardoso: La phase sociale et le style intimiste. À fin de déssiner ces deux vertex du
travail de l’auteur, nous avons choisi les romans Salgueiro (1935) et Cronica da casa
assassinada (1959). Le premier nous l’abordons en tant que roman de transition de la phase
sociale au style intimiste de l’écrivain, dans le deuxième est reconnu le sommet de la
narrative intimiste de Cardoso. Par rapport au développement de cette analyse, nous utilisons
comme méthode la conception dialectique entre la littérature et son contexte de production,
établissant une relation entre les éléments esthétique-formel et les sociaux, principe de la
“critique intégrative” proposée par Antonio Candido (2010b). Initialement, nous traçons un
panorama sur la vie et l’oeuvre de Lúcio Cardoso, ainsi qu’une contextualisation sur le roman
de 1930, en montrant les aspects régionalistes et intimiste/psychologique, selon la
perspective des critiques littéraires tels que Luís Bueno (2006), Afrânio Coutinho (2004),
Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004), Alfredo Bosi (2006), Massaud Moisés
(2004) et Luciana Stegagno Picchio (2004). Ensuite, pour l’analyse de Salgueiro, nous
utiliserons la perspective de Luís Bueno (2006), Lúcia Miguel Pereira (1935), Afrânio
Coutinho (1995; 2004a), et Rosiane Vieira de Rezende (2007); aussi bien celle d’Antonio
Candido (2010a) et Paulo Franchetti (2012) dans la comparaison entre Salgueiro et O
Cortiço, d’Aluísio Azevedo, et entre les éléments de l’esthétique naturaliste. Pour développer
l’analyse spécifique de Crônica da casa assassinada, nous nous sommes servis des conceptes
de dialogismes et polyphonie préconisés par Mikhail Bakhtin (2015b), ainsi que la notion
“d’auteur implicite ”, de Wayne Booth (1980) et la contextualisation de Gilberto Freyre
(2004) sur la décadence du patriarcat rural brésilien. Enfin, le lien entre l’analyse de Salgueiro
et de la Crônica da casa assassinada est apparu à travers de la catégorie structuralle du
narrateur. En effet, alors que Salgueiro est narré dans une focalisation figée avec la présence
de l’omniscience, sur Crônica da casa assassinada se manifeste la prédominance du roman
psychologique représenté esthétiquement par les plusieurs narrateurs homodiégétiques.
Donc, nous essayons de montrer en quoi ce changement dans le structural a contribué à
renforcer le style intimiste de Lúcio Cardoso par le biais de la notion de “polymodalité focale”
proposée par Gérard Genette (1979) et expliquée par Vitor Manuel de Aguiar et Silva (2009).
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
Capítulo 1 – Vida, obra e contexto de produção de Lúcio Cardoso................................... 13
1.1 BIOGRAFIA E OBRA DE LÚCIO CARDOSO ........................................................................................................................................... 13
1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ROMANCE DE 1930: O EMBATE ENTRE AS VERTENTES SOCIAL E A INTIMISTA ........................................ 21
Capítulo 2 – Salgueiro: a transição entre o coletivo naturalista e o individual do romance
intimista ................................................................................................................................... 31
2.1 Aspectos gerais sobre o enredo ........................................................................................ 31
2.2 O morro como um ambiente coletivo: os traços naturalistas ....................................... 32
2.2.1 A AMBIVALÊNCIA DO ESPAÇO: O COLETIVO E O INDIVIDUAL ........................................................................................................ 32
2.2.2 A CONFIGURAÇÃO DO AMBIENTE OPRESSOR ................................................................................................................................ 39
2.2.3 O INFERNO DO SALGUEIRO............................................................................................................................................................ 42
2.2.4 A ANIMALIZAÇÃO DAS PERSONAGENS ........................................................................................................................................... 47
2.3 A superação do determinismo naturalista................................................................. 54
2.3.1 O DESENVOLVIMENTO DA COMPLEXIDADE INTERIOR DO PERSONAGEM GERALDO..................................................................... 59
Capítulo 3 – Crônica da casa assassinada: o ápice do intimismo na narrativa romanesca
de Lúcio Cardoso .................................................................................................................... 75
3.1 Sinopse do romance .......................................................................................................... 75
3.2 Refletindo sobre a noção de crônica................................................................................ 82
3.3 O papel do autor implícito na organização do romance ............................................... 87
3.4 Crônica... um romance polifônico?.................................................................................. 96
3.4.1 UM CABO DE MADREPÉROLA: UM ELEMENTO DA CONFLUÊNCIA DE VOZES ................................................................................ 99
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 112
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 115
9
INTRODUÇÃO
O início da narrativa intimista na literatura brasileira ainda é uma incógnita. Afrânio Coutinho
(2003) aponta José de Alencar, ainda no romantismo, como aquele que esboçou o romance psicológico
na literatura brasileira. Alguns críticos, como Massaud Moisés (2004), Alfredo Bosi (2006) e o próprio
Coutinho (2003) concordam que o romance psicológico começou a se consolidar ainda no
realismo/naturalismo oitocentista com Machado de Assis e Raul Pompéia.
Na década de 1930, a narrativa acabou retomando alguns princípios do realismo/naturalismo,
chegando a ser chamada de Neorrealismo ou de Neonaturalismo. Esse estilo de narrativa ganhou
destaque naquela época por uma questão ideológica que procurava através da literatura mostrar as
mazelas sociais vivenciadas pelos habitantes de determinadas regiões do Brasil, por isso, também se
nomeia esse estilo de romance de regionalista. Ganharam destaque nessa época os romances que
apresentavam o meio como fator determinante da pobreza daqueles que viviam em determinados locais,
como foi o caso dos romances que retratavam os períodos de seca na região Nordeste.
Tanto boa parte da crítica, quanto os escritores dessa época tinham afinidades ideológicas com as
ideias ditas de esquerda e muitas vezes incutiam em suas obras um conteúdo engajado de suas
concepções. Esse movimento chegou a ser tão forte que se folhearmos os livros didáticos de hoje,
praticamente em quase todos irão considerar apenas esse estilo de romance como o único estilo presente
no romance de 1930. Há raras exceções nos manuais didáticos que já trazem a corrente psicológica
(também chamada de intimista durante do Modernismo) com existência concomitante ao romance
regionalista nessa mesma época.
A narrativa romanesca de Lúcio Cardoso começou a ser publicada ainda na década de 1930 com
a publicação de Maleita (1934) um romance no estilo regional/social. No ano seguinte, Cardoso lançou
Salgueiro (1935), que é considerado por alguns críticos e estudiosos da obra do autor apenas como
neonaturalista, mas também é visto por outro grupo como um romance de transição, por apresentar além
dos aspectos naturalistas, como o determinismo e a animalização dos personagens, também apresenta o
desenvolvimento da psicologia de alguns dos personagens, principalmente do personagem Geraldo,
mesmo sendo narrado em terceira pessoa.
Nesta tese, optamos pela perspectiva do segundo grupo, pois se pretende mostrar que há a
coexistência das duas tendências, porque tanto há em Salgueiro a estética neonaturalista, como há um
início da narrativa psicológica, especificamente na terceira parte do romance. É a partir desta concepção
que iremos desenvolver a análise de Salgueiro, perseguindo a hipótese de que o estilo da narrativa de
Lúcio Cardoso começou a se delinear desde o seu segundo romance, não apenas a partir do terceiro, A luz
no subsolo (1936), como aponta parte da crítica. Para mostrar essas duas fases da obra romanesca desse
autor, além do romance Salgueiro selecionamos também a obra que seria o ápice de seu estilo intimista: o
romance Crônica da casa assassinada (1959).
10
A categoria estrutural escolhida para comparar os dois romances deste estudo foi o narrador. Em
Salgueiro, temos um narrador em terceira pessoa onisciente que tem total conhecimento sobre as ações e
pensamentos de todos os personagens. Enquanto que em Crônica da casa assassinada, os seus
narradores contam em primeira pessoa a sua respectiva versão da história da decadência moral e
econômica da família Meneses, chegando a variar o ângulo de observação dos fatos entre centro e
periferia da história, e ainda apresentam as falas, as ações dos demais personagens e também os seus
próprios pensamentos. Procuraremos mostrar quais são as implicações que a escolha no modo de narrar
em cada romance provoca no contexto da narrativa e na percepção pelo leitor.
Iniciaremos o primeiro capítulo fazendo um panorama sobre a vida e obra de Lúcio Cardoso,
bem como uma contextualização sobre romance de 1930, mostrando tanto a vertente regionalista, quanto
a intimista/psicológica na perspectiva dos críticos literários: Luís Bueno (2006), Afrânio Coutinho
(2004), Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004), Alfredo Bosi (2006), Massaud Moisés (2004) e
Luciana Stegagno Picchio (2004).
No segundo capítulo, será realizada a análise do romance Salgueiro, a partir da apresentação das
características que o aproximam tanto da estética neonaturalista, quanto do romance intimista, mostrando
respectivamente a ambivalência entre o coletivo e o individual que segundo a nossa perspectiva constitui
a estrutura do romance. Especificamente no aspecto coletivo estabeleceremos uma comparação entre
Salgueiro e O Cortiço, romance naturalista oitocentista, de Aluísio de Azevedo. Nessa comparação serão
apontados, por exemplo, aspectos como a personificação do espaço de cada narrativa, a animalização de
alguns personagens e as semelhanças entre personagens dos romances. Ainda neste segundo capítulo,
mostraremos o ponto crucial que aproxima Salgueiro do romance intimista e o distancia do
neonaturalismo: a superação do determinismo através do conhecimento da existência divina, que segundo
a narrativa permitiu o personagem Geraldo se desgarrar das forças ocultas do morro e transformou-o em
dono de seu próprio destino.
O terceiro capítulo e último capítulo tem como pretensão analisar o romance Crônica da casa
assassinada, apogeu da narrativa intimista de Lúcio Cardoso. Primeiramente, faremos uma sinopse do
romance, mostrando o diálogo presente entre os textos dos personagens/narradores, bem como os
principais temas abordados no decorrer da narrativa, com destaque para a decadência do modelo
patriarcal rural que caracterizava a família Meneses. Esse declínio é representado no romance pelo
rompimento da autoridade masculina; pelo silenciamento de Demétrio, único irmão remanescente do
discurso patriarcal; o enfraquecimento da figura homem másculo, representado pelo personagem Timóteo
Meneses; e a má gestão e a crise latifundiária que arruinaram a Chácara Meneses, sendo esses temas
contextualizados a partir da perspectiva de Gilberto Freyre (2004).
Iniciaremos a análise de Crônica da casa assassinada discutindo a noção de crônica utilizada no
romance, em seguida será utilizada a noção de autor implícito, de Wayne Booth (1980), para discutir a
organização dos diversos gêneros e suportes textuais que compõe a estrutura romance; bem como serão
utilizados o conceito de dialogismo e polifonia de Mikhail Bakhtin (2015b). Durante a análise de
11
Crônica da casa assassinada sempre estabeleceremos comparações com Salgueiro, principalmente por
meio da categoria estrutural do narrador, aplicando a noção de polimodalidade focal proposta por Gérard
Genette (1979) e comentada por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2009).
12
Capítulo 1 – Vida, obra e contexto de produção de Lúcio Cardoso
13
Escrich, como elencou Mario Carelli (1988, p. 26).
Em seus diários, é possível conhecer as leituras da idade adulta de Lúcio que ele
comentava e promovia reflexões impulsionadas pelo que lia. Dostoiévski ainda permaneceu
entre as suas leituras da idade adulta, além de surgirem outros nomes como Nietzsche, Freud,
Baudelaire, Rimbaud, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Lúcio também dedicou várias
páginas de seu diário a comentar a Bíblia, devido a sua forte aproximação com a religiosidade
que também está tão presente em suas obras.
A amizade com Nássara e José Sanz, da época em que estava matriculado no Instituto
Superior de Preparatórios, no Rio de Janeiro, para concluir os estudos secundários, resultou na
sua primeira experiência literária. Ele fundou, junto com seus amigos, um jornal chamado A
Bruxa, “para o qual Lúcio escreve contos policiais” (CARELLI, 1988, p. 26).
Seu primeiro emprego foi na companhia de seguros “A Equitativa”, de propriedade de
seu tio Oscar Neto, mas nos momentos vagos não deixava de rabiscar um verso ou rascunhar
algo em prosa. No mesmo prédio em que ficava a companhia de seguros, também se localizava
a sede da Editora Schmidt, de Augusto Frederico Schmidt. O destino acabou relacionando Oscar
Neto e Augusto Schmidt e ambos criaram “A Metrópole”, uma outra companhia de seguros, e
Lúcio Cardoso foi convidado para trabalhar nela. Essa nova companhia foi o caminho para que
Schmidt conhecesse alguns versos de Lúcio por intermédio de seu tio Oscar. Os poemas de
Lúcio acabaram agradando Augusto Schmidt, que demonstrou interesse em publicá-los e
quando questionou se Lúcio possuía algum romance escrito, ele respondeu que possuía vários
e acabou escolhendo Maleita para mostrar ao dono da editora. Esse encontro resultou na
publicação do primeiro romance de Lúcio em 1934 pela Editora Schmidt. Assim começava a
promissora carreira de Lúcio Cardoso na literatura.
Foi nessa mesma época que antecedeu a publicação de Maleita que Lúcio conheceu, por
intermédio de Schmidt, Otávio de Faria, que foi um dos grandes amigos do escritor mineiro.
Apesar de seu primeiro romance ter sido considerado regionalista, Lúcio sentia ter mais
afinidade com o grupo que Carelli (1988, p. 30-31) chama de “espiritualista” e que era formado
inicialmente por Schmidt, Otávio de Faria, Vinícius de Moraes e Cornélio Pena.
Salgueiro (1935), o segundo romance de Lúcio, ainda foi considerado da corrente
regionalista/social, por apresentar, predominantemente, em suas duas primeiras partes, fortes
traços neonaturalistas como a relevância dada a interferência do ambiente no destino dos
personagens e por tratar as dificuldades enfrentadas por um grupo que lá vivia. Porém, na
terceira parte romance, já se nota uma inclinação para a corrente mais intimista da literatura na
medida em que aprofunda o psicológico do personagem Geraldo, o que seria em suas obras
14
futuras um traço marcante da obra de Lúcio Cardoso.
Como ressalta Elisabeth da Penha Cardoso (2010), em sua tese intitulada Feminilidade
e transgressão: uma leitura da prosa de Lúcio Cardoso, Vinicius de Moraes em carta a Lúcio
Cardoso, datada em 30 de janeiro de 1935, elogia a terceira parte de Salgueiro, que na ocasião
ainda era inédito, e confessa que não gostou da presença da vertente social das duas primeiras
partes, tendo em vista a preferência de Vinicius pela corrente espiritualista. O poeta carioca
afirma: “se você fizer o seu terceiro romance nessa progressão de aperfeiçoamento breve teremos
o maior braço do romance no Brasil” (MORAES apud CARDOSO, 2010, p. 22). Lúcio acabou
seguindo essa espécie de conselho de Vinicius, pois em carta no mesmo ano de 1935, escreve:
“Reneguei a ‘Maleita’ e o ‘Salgueiro’. Não penso agora senão no ‘Demônio’ ” (CARDOSO
apud LAMEGO, 2012). Esse demônio que ele cita, provavelmente é aquele que habita o
subsolo da mente humana e que ele passa a investigar mais a fundo nos seus romances
posteriores a Salgueiro.
Lúcio Cardoso trocou diversas cartas com Vinicius de Moraes e essa em especial
expressa um desejo do próprio Lúcio em mudar de enfoque em sua obra romanesca, mesmo
que essa mudança tenha causado muitas críticas negativas de seus contemporâneos.
Essa passagem na obra de Cardoso do romance regionalista para o romance
psicológico/intimista foi também observada por Valéria Lamego:
Com o romance A luz no subsolo (1936), Lúcio Cardoso demonstra ter se vinculado de
vez a vertente intimista, seguido por Dias Perdidos (1943), Crônica da casa assassinada (1959)
e O viajante, que o autor não conseguiu concluir, mas que mesmo assim foi publicado
postumamente em 1973.
Cardoso também enveredou pelo gênero novela durante um bom tempo da sua
produção. Após a publicação de A luz no subsolo, em 1936, até 1959, o escritor mineiro
publicou apenas um romance: Dias Perdidos (1943). As demais obras nesse período foram do
gênero novela: Mãos Vazias (1938), Céu Escuro (1940), O Desconhecido (1940), Inácio
(1944) que junto com O Enfeitiçado (1954) e Baltazar (2002) fazem parte da trilogia que
Lúcio chamou de “O mundo sem Deus”. Baltazar acabou não sendo finalizado e seus
fragmentos foram publicados apenas em 2002. Lúcio também publicou as novelas A
Professora Hilda (1946) e O Anfiteatro (1946).
15
Massaud Moisés (2004) chama a atenção que o critério utilizado por Lúcio Cardoso para
considerar uma obra como novela ou romance era quantitativo, tendo em vista que as obras
mais volumosas eram consideradas romances: Maleita, Salgueiro, A luz no subsolo, Dias
Perdidos e Crônica da casa assassinada; enquanto que as menos volumosas eram chamadas de
novelas. Moisés salienta que “[...] hoje, que uma distinção atenta aos princípios de rigor optaria
pela estrutura e não pelo número de páginas. Assim, Dias Perdidos está mais próximo da novela
que do romance, enquanto Mãos Vazias seria mais propriamente um conto extenso e O
Anfiteatro, um romance” (MOISÉS, 2004, p. 231).1
Lúcio Cardoso também atuou como tradutor. As primeiras atividades de tradução de que
se tem registro foi na única edição de “Sua Revista”, publicada em 1932. Esse veículo foi criado
por Lúcio Cardoso e Tomás Santa Rosa, desenhista e cenógrafo paraibano. Segundo Ésio
Ribeiro nessa revista Lúcio “apresentou traduções de Ibsen, Pirandello e Dostoiévski”
(RIBEIRO, 2006, p. 34).
As traduções em livro se iniciaram em 1940, com Orgulho e Preconceito, de Jane
Austen, pela editora José Olympio. Ésio Ribeiro (2016), no texto de apresentação da edição de
2016 da tradução de Lúcio Cardoso para O vento da noite, de Emily Brontë, elenca as primeiras
edições das traduções de Lúcio Cardoso, são elas: Fuga (1941), de Ethel Vance; O fim do
mundo (1941), de Upton Sinclair; O livro de Job (1943); Drácula – o homem da noite (1943),
de Bram Stoker; Ana Karenina (1943), de Leon Tolstói; As confissões de Moll Flanders, Daniel
Defoë (1943); O fantasma da ópera (1944), de Gaston Leroux; A ronda das estações (1944),
de Kâlidâsa; O vento da noite (1944), de Emily Brontë; A caverna (1944), de Eugênio Zamiatin;
O assassino (1945), de Liam O’Flaherty; Os segredos de Lady Roxana (1945), de Daniel Defoë;
A princesa branca (1946), de Maurice Bauring; Memórias I – extratos de minha vida – poesia
e verdade (1948), de Goethe; Três novelas russas (1947), que inclui: A Primavera da vida, de
N. Garin; Ivan, o terrível, de Tolstói; A mulher do outro – aventura extraordinária, de
Dostoiévski.
Segundo Ribeiro (2016), pode-se dizer que Lúcio fez uma “transcriação” – utilizando-
se da nomenclatura da “Teoria da Transcriação”, de Haroldo de Campos – em O vento da noite,
de Emily Brontë, pois ele não realizou uma tradução ao “pé da letra”, mas, na verdade, uma
espécie de recriação. Assim, Ribeiro (2016) conclui que Lúcio Cardoso desenvolveu um
método de “tradução de poesia”, na década 1940, que só seria teorizado, posteriormente, na
década de 1960, por Haroldo de Campos.
1
Apesar de apresentarmos essa visão de Massaud Moisés, neste trabalho optou-se por seguir a classificação
adotada pelo próprio Lúcio Cardoso.
16
Outro exemplo de tradução que se pode mencionar é a “versão” que ele fez de Drácula,
de Bram Stocker, já que se nota pelo número inferior de páginas e pela ausência de alguns
detalhes da narrativa na edição publicada pela editora Civilização Brasileira, em 2013, que não
se tratou de uma tradução do texto na íntegra.
Acerca da tradução de O livro de Job, de 1943, tem as seguintes informações no próprio
livro: “Esta versão foi feita de acordo com a francesa de Samuel Kahen, por sua vez diretamente
traduzida do hebraico. Na sua revisão foram usadas as traduções de Lemaistre de Sacy e de A.
Crampon, bem como varias edições existentes em português. Convém notar que se trata de uma
tradução livre”. Como se pode perceber, pelo menos nessa tradução, Cardoso não traduziu do
hebraico, idioma em que a obra foi produzida, e acredita-se que isso ocorreu não só nessa
tradução, mas nas outras também.
Há poucos detalhes sobre esse trabalho de tradução que Lúcio Cardoso realizou durante
a década de 1940. Pouco se sabe sobre os idiomas de que ele tinha domínio, bem como de que
idioma ele traduzia os livros, se do original ou de outra tradução, como foi o caso de O livro de
Job, pois na época pouco se tinha esse cuidado editorial; bem como não há detalhes do método
que ele utilizou para desenvolver as traduções, mas que geralmente eram “traduções livres”.
Segundo Ribeiro (2006, p. 40), quando se aproximava dos quarenta anos, Lúcio se
dispôs a escrever um diário. O primeiro volume ainda foi publicado na década de 1960, sob o
título Diário I (1949-1951). Esse volume compreende o período entre agosto de 1949 até março
de 1951 e foi o único publicado em vida por Lúcio. Há controvérsias quanto ao ano de
publicação, pois na edição do Diário I não há menção do ano da publicação, mas há duas pistas
que nos levam a crer que esse volume foi publicado em novembro de 1960. A primeira pista é
uma nota presente na edição do Jornal do Brasil, publicado no Rio de Janeiro, em 16 de
novembro de 1960: “Simões ativo: edições e pesquisas – Será lançado dentro de poucos dias
um livro em torno do qual existe grande expectativa: o Diário de Lúcio Cardoso (1º volume).”
A segunda pista está em um dos exemplares do Diário I, especificamente numa dedicatória
redigida pelo próprio Lúcio Cardoso à Maristela Campos Barreto, na qual ele localiza e data:
“Rio, XI - 60”. O onze em algarismo romano seria equivalente ao mês de novembro e o sessenta
ao ano de 1960. A Simões, citada na nota, eram as “Organizações Simões”, como mencionou
Walmir Ayala em texto publicado na edição de 11 de setembro de 1960, do Jornal do Brasil.
O volume I do Diário saiu pelo selo Elos dessa organização e tinha-se a pretensão de serem
publicados mais quatro volumes, totalizando cinco volumes de diários, mas isso acabou não
ocorrendo.
O Diário II (1951-1962) foi publicado pela primeira vez em 1970, junto com o Diário I,
17
sob o título de Diário Completo, com a organização de Walmir Ayala, amigo de Lúcio. Em
2012, é publicado o volume Diários, organizado por Ésio Macedo Ribeiro, que inclui Diário
0, que é anterior ao Diário I, e compreende o período entre de novembro de 1942 e se estende
até 1947; bem como o Diário I e o Diário II, publicados anteriormente, mas também inclui
alguns textos dispersos que foram publicados em periódicos, como é o caso de: “Diário
proibido – páginas secretas de um livro e de uma vida”, “Diário de terror”, “Pontuação e
prece”, “Confissões de um homem fora do tempo”, “Livro de bordo”, “Diário não íntimo” e
outros registros que permaneciam inéditos no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa,
localizada no Rio de Janeiro/RJ.
Lúcio em seus Diários se intitulava católico, mas como ressalta Consuelo Albergaria,
no ensaio “Espaço e transgressão”, seria melhor chamá-lo de “escritor cristão”
(ALBERGARIA, 1991, p. 686), devido as suas críticas a algumas práticas do catolicismo e sua
preferência em comentar a Bíblia sem o intermédio de uma religião. Essa característica também
está presente em suas obras, como em Salgueiro, em que o narrador acaba criticando a crença
em imagens de santos e as rezas decoradas. O modo como Geraldo entra em contato com a
divindade também possui um diferencial, pois não é através de um padre que ele é tocado por
Deus, mas através da fala dos personagens Valério e Vicente, que encontraram na figura divina
o conforto para suas dores. Aliás, a própria ausência de uma igreja no morro Salgueiro,
demonstra esse descompromisso com a evangelização promovida pelas religiões, pois o
narrador do romance parece acreditar em uma crença em Deus de forma mais livre, distante
dos dogmas impostos pelas religiões. Desse modo, pode-se inferir que Cardoso acaba refletindo
no narrador do romance suas concepções acerca da religião e da fé. Essa reflexão sobre a
religião também vai ser representada em Crônica da casa assassinada pelas personagens Ana
e Padre Justino. Ela sempre fica se questionando em suas confissões sobre alguns dogmas e
práticas do catolicismo e o Padre Justino atua na narrativa como o representante de Deus e da
Igreja Católica. O padre reafirma em suas falas a noção de pecado, a presença do inferno nos
lugares onde Deus está ausente e realiza alguns sacramentos cristãos como a unção e a
encomenda da alma dos personagens que falecem durante a narrativa.
Lúcio também se aproximou do teatro ao escrever algumas peças e também do cinema,
chegando a redigir roteiros e a ser diretor do filme “A mulher de longe” (1949). O Escravo
(1945) e O filho pródigo (1949) foram duas peças que ele produziu e foram logo publicadas.
As demais peças só foram publicadas pela primeira vez em livro no volume Teatro Reunido
(2006), pois anteriormente seu acesso ficava restrito ao acervo da Fundação Casa Rui Barbosa.
Nesse novo volume, foram inclusas além das peças O Escravo e O filho pródigo, também outras
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obras da dramaturgia de Cardoso, como A corda de Prata; Angélica; O homem pálido; Os
desaparecidos; Prometeu libertado; e Auto de Natal. A encenação dessas peças foi resultado
da participação de Lúcio Cardoso em diversos grupos como: “O Comediantes”, que encenou a
sua primeira peça: O Escravo, em 1943; o grupo “Teatro Experimental do Negro”, que
selecionou a peça O filho pródigo, em 1947; e ainda no ano de 1947, funda seu próprio grupo
de teatro, o “Teatro de Câmara”, no qual foram encenadas as peças A cor de prata (1947) e
Angélica (1950). A extinta TV Continental exibiu O homem pálido, em 20 de agosto de 1961,
de acordo com as informações presentes no volume Teatro Reunido (2006, p. 400). As peças Os
Desaparecidos, Prometeu libertado e Auto de Natal não chegaram a ser encenadas.
O escritor mineiro também tentou enveredar na área da Literatura Infantil ao escrever
o livro História da Lagoa Grande. Sobre essa obra de Cardoso, Nelly Novaes Coelho (1995),
no Dicionário Crítico da Literatura Infantil/Juvenil Brasileira, considera que as histórias até
poderiam ser classificadas como fábulas, por terem como personagens animais que estão
envolvidos em situações semelhantes às humanas, porém as narrativas não trazem a famosa
“moral da história” e “nem a vitória dos fracos”, que vencem os fortes fisicamente através da
astúcia, características típicas das fábulas. Curiosamente o que rege a Lagoa Grande são
sentimentos e atitudes negativas, como: “presunção, orgulho, vingança, ambição de possuir o
que é do outro, agressividade gratuita etc” (COELHO, 1995, p. 615). Esse conjunto de fatores
acabou distanciando o público inicial do livro, que era o infantil, já que durante a infância o
recomendado é apresentar sentimentos e atitudes positivas para os seres em formação.
Lúcio Cardoso publicou seus poemas em dois volumes: Poesias (1941) e Novas Poesias
(1944). Postumamente, Octávio de Faria organizou Poemas Inéditos que foi publicado em
1982. Em 2011, foi publicada a edição crítica Poesia Completa, com estabelecimento de notas
por Ésio Macedo Ribeiro. Esse volume compreende além dos três primeiros livros de poesias de
Cardoso, as seções “Poemas publicados em periódicos” (1934-2009), “Poemas póstumos” e
“Poemas póstumos incompletos”. Boa parte desse material foi encontrado no Arquivo Lúcio
Cardoso (ALC) do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa
(FCRB), bem como a consulta nos diversos periódicos que Cardoso publicou.
O escritor mineiro teve uma intensa atividade de publicações nos jornais e revistas da
época, tais como os cariocas: “A Manhã”, “A Noite”, “Diário Carioca”, “Revista da Semana”,
“O Cruzeiro”, só para citar os principais. Nesses periódicos, Cardoso publicou poemas,
contos, crônicas, artigos, trechos de seus romances e partes de seus diários.
Na noite de 7 de dezembro de 1962, como relatou Maria Helena Cardoso em Vida- Vida
(1973, p. 81-86), Lúcio Cardoso sofreu um acidente vascular cerebral, que resultou numa
19
hemiplegia, paralisando todo o lado direito do autor, o que o impediu de falar e escrever, já
que era destro. Apesar do longo período de recuperação, marcado por diversos tipos de exercícios
e terapias variadas, não conseguiu retomar a fala e a escrita, interrompendo assim o ciclo
produtivo do escritor. Porém, a verve artística de Lúcio se manifestou desta vez nas artes
plásticas, quando passou a pintar com a mão esquerda. A sua produção em telas foi
apresentada em algumas exposições na maioria individuais e algumas coletivas em galerias nas
cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e até mesmo em Paris e Berlim, como
elenca Ribeiro (2006, p. 189-190).
Lúcio Cardoso morreu em 24 setembro de 1968, na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de
Janeiro, devido as complicações de um segundo acidente cardiovascular, que ele sofreu no dia
12 setembro desse mesmo ano. Cessava de vez o ciclo de uma existência marcada pela forte
verve artística nas áreas da literatura e das artes plásticas.
20
1.2 Contextualização do romance de 1930: o embate entre as vertentes social e a intimista
Em Uma história do romance de 30, Luís Bueno reconhece que durante a década de
1930, havia na literatura brasileira uma polarização artística que era um reflexo de um conflito
político entre direita-esquerda (BUENO, 2006, p.15). Na polarização artística, observou-se o
contraste entre o “romance social ou proletário”, que inicialmente teve maior prestígio, e o
“romance psicológico”, que foi ganhando o interesse dos leitores no decorrer da década:
Mas há concepções diferentes sobre esse mesmo período, pois se percebe que o romance
intimista também apresentava uma representação da identidade nacional do brasileiro, só que
de uma forma não tão explícita como se expressava no romance regionalista, como bem
observou Afrânio Coutinho (2004 [1970]):
21
Esse crítico percebeu que além de haver essa tentativa da construção do caráter nacional
nos romances sociais, também identificou essa temática naqueles romances com abordagem
psicológica. Na citação, Coutinho se refere a essa abordagem especificamente nos trechos em
que comenta sobre a análise do caráter dos personagens e quando a “matéria ficcional adquire
dimensão em profundidade (sondagem psicológica)”, pois segundo ele ambos os enfoques são
em função do ambiente, que no caso é o brasileiro. Dessa forma, pode-se entender que mesmo
não deixando explícita a influência do ambiente na constituição dos personagens, que foi a
abordagem do romance social, os romances intimistas podem até ter mostrado as angústias de
indivíduos específicos, mas na verdade esses sujeitos são uma alegoria de algo maior, pois
suas inquietações individuais também são as de seu povo.
É essa a perspectiva que adotamos nesta tese, pois simpatizamos com as ideias do grupo
que acredita que o romance psicológico foi o outro caminho para representar o Brasil ainda na
década de 1930, além do romance social e regional. Sendo esse caminho, diferente do que
pensavam alguns contemporâneos à época, que consideravam esse tipo de perspectiva alienante,
ao alegar que esse tipo de romance não expressava preocupações com os problemas sociais do
país, mas que na verdade os representava só que metaforizada nas angústias do indivíduo.
Antonio Candido (2006, p. 28-29), em Formação da literatura brasileira, reconhece
que boa parte do romance brasileiro possuía um “caráter empenhado”. Para ele, o início do
romance brasileiro com Joaquim Manuel de Macedo até as obras de Jorge Amado “[...] mostra
quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na
construção de uma cultura” (CANDIDO, 2006, p. 434).
O romance considerado como engajado ganhou destaque, porque boa parte da crítica
literária da década de 1930 simpatizava com as ideias da esquerda e esse grupo acabou
valorizando a literatura engajada, como reação aos regimes políticos da direita que para
alguns eram considerados grupos fechados (BUENO, 2006, p. 17). Segundo Wilson Martins
(2004), a produção inicial do Modernismo tinha uma “concepção sociológica da literatura”
(MARTINS, 2004, p. 602), por isso a crítica inicial ao Modernismo, na década de 1920,
julgava uma obra mais pela suas “qualidades de fidelidade ao meio [...] do que pela sua
perfeição estética” (MARTINS, 2004, p. 603). Isso acabou refletindo diretamente na crítica da
época, pois no período compreendido “entre 1930 e 1940, talvez um pouco mais, digamos,
1945, houve o predomínio da ‘ideia política’ na vida literária brasileira. A crítica dessa época
será igualmente doutrinária e extremista, propensa a julgar as obras pelo conteúdo
programático ou humanitário, desprezando as preocupações estéticas, ridicularizando a
perfeição formal [...]” (MARTINS, 2004, p. 599). Só por volta de 1945 é que a crítica se
22
desvincula do que Martins chama de “desorientação” e passa reconsiderar o fator estético
como item de análise das obras, não apenas o caráter engajado.
Mas perceber que boa parte da literatura brasileira possui esse caráter engajado não
significa dizer que esse tipo de literatura seja superior, quando comparada a que não é
empenhada ou desinteressada desses temas sociais, ou seja, não é porque a literatura engajada
ganhou destaque, isso significa dizer que ela é a melhor. Porém, como salientou o próprio
Bueno (2006), também não se deve estigmatizar a literatura considerada empenhada, porque
ela também possuiu vários atributos positivos. Dentre esses atributos estão até mesmo
algumas contribuições formais significativas às narrativas, que só foram reconhecidas
posteriormente, tais como o “estilo oral, construção e montagem cinematográficas,
expressionismo verbal”, conforme destacou Luciana Stegagno Picchio (1988, p. 93),
contrariando a omissão da crítica da época a esses aspectos formais. Em contrapartida, a
crítica empenhada acabou provocando um apagamento dos “autores ditos intimistas”, que
eram considerados como autores de concepções da direita e que por essa motivação política,
muitas vezes eram renegados pela crítica de ideologia política de esquerda: “um efeito claro
desse fenômeno, relativo aos anos 30, é o apagamento a que foram condenados os autores
ditos intimistas que surgiram naquele momento” (BUENO, 2006, p. 17). Talvez seja essa a
justificativa que quando se fala em romance de 1930 já se pense em romance regional/social e
se esqueça de mencionar a existência do romance intimista, como está posto na maioria dos
manuais didáticos e antologias literárias.
Alfredo Bosi menciona o retorno de alguns aspectos do Naturalismo nas letras
brasileiras e menciona também a presença de um “veio neo-realista da prosa regional” (2006,
p. 388), especificamente, pelo estilo de narração documental, que acabou se enfraquecendo na
produção da década de 1950. Nesta época, a produção documental deu lugar à intensificação
das obras de perspectiva psicológica, como salientou Bueno (2006), mas o aspecto
realista/naturalista retorna nas décadas de 1960 e 1970 através da literatura-reportagem, como
forma de reação a repressão do período político da ditadura militar. Nesse momento, a
literatura brasileira passa mais uma vez por um período engajado, e volta a ter o tom
documental, aproximando a hipótese de Flora Süssekind (1984) do “eterno retorno”
naturalista, a qual será abordada mais à frente.
Segundo Massaud Moisés, a ficção modernista também teria essas duas vertentes: a
realista e a ficção psicológica ou introspectiva. Percebe-se que ao chamar o “romance
regional/social” de “realista”, ele acaba destacando a influência do Realismo e do Naturalismo
23
do século XIX nessas obras típicas do romance de 1930, na medida em que retomava teses
científicas e sociais, como, respectivamente, as de Émile Zola e as de Karl Marx:
Essas “duas vertentes” da ficção década de 1930, denominadas por Massaud Moisés
(2004), são denominadas de “duas tradições” em A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho
(2004b), mas apesar dos nomes serem diferentes, a ideia é bem parecida. Essas duas tradições
na ficção brasileira, de que trata Coutinho, surgiram durante o romantismo e em ambas o
homem é a preocupação principal. Em uma, a regionalista ou regional, o homem aparece
situado no meio rural ou urbano, “em conflito ou tragado pela terra e seus elementos, uma
terra hostil, violenta, superior às suas forças” (COUTINHO, 2004b, p. 264). Na outra tradição,
a corrente a psicológica ou de análise de costumes, “o homem está diante de si mesmo ou de
outros homens” (COUTINHO, 2004b, p. 264) e há uma preocupação em apresentar
“problemas de conduta, dramas de consciência, meditações sobre o destino, indagações acerca
dos atos e suas motivações, em busca de uma visão da personalidade e da vida humana”
(COUTINHO, 2004b, p. 264). Coutinho ainda reforça que essas duas tradições corriam
paralelamente e atravessaram diversas escolas e estilos, inclusive durante do Modernismo da
Literatura Brasileira.
Especificamente no Modernismo, Coutinho expõe que a tradição “regionalista ou
regional” foi marcada por uma “corrente social e territorial”, na qual o ambiente se sobrepôs ao
homem, seja no ambiente rural, na sua problemática geográfica e social, tais como “seca,
cangaço, latifúndio, banditismo, etc” (COUTINHO, 2004b, p. 275); seja no ambiente urbano,
mostrando a vida da classe média e do proletariado, bem como as lutas de classe; e a técnica
narrativa dessa tradição seguiu o estilo realista e documental.
24
Coutinho ainda subdividiu essa “corrente social e territorial” em dois grupos: a)
documentário urbano-social realista, no qual se destacaram Érico Verissimo, Dyonélio
Machado, Oswald de Andrade, Ribeiro Couto, Alcântara Machado, Viana Moog, Lygia
Fagundes Teles, Carlos Heitor Cony, dentre outros; b) documentário regionalista, também
chamado de Neorealista ou Neoregionalista, que abordou os “ciclos da ficção brasileira”: “ciclo
da seca, do cangaço, do cacau, da cana de açúcar, do café, do sertão, do pampa, etc”
(COUTINHO, 2004b, p. 276). Nesse último grupo, os autores de destaque foram José Américo
de Almeida, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado etc. Houve também aqueles
autores que misturam as duas correntes como foi o caso de Graciliano Ramos. Guimarães Rosa
foi visto como aquele que conseguiu utilizar o material de origem regional trazendo para ele
uma visão mítica da realidade, por meio de símbolos e mitos com representatividade universal,
além de propulsionar praticamente uma revolução estética. Coutinho elenca ainda o grupo
neonaturalista socialista “que fundamenta a sua visão da realidade em postulados de ideologia
política, fazendo da ficção arma de propaganda e ação revolucionária. É o caso, entre outras, de
parte da obra de Jorge Amado” (COUTINHO, 2004b, p. 276).
25
começo da fase urbanizadora [...]”. No que seria o segundo plano, o romance introspectivo –
que é considerado raro na literatura Brasileira, tendo sido desenvolvido antes do Modernismo
por Machado de Assis e Raul Pompéia – teve como principais representantes no Modernismo:
Barreto Filho, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Jorge de Lima, José Geraldo Vieira, Lúcia
Miguel Pereira, Lúcio Cardoso, Mário Peixoto, Otávio de Faria, e como principais temas “os
conflitos internos da burguesia entre provinciana e cosmopolita” (BOSI, 2006, p. 386) e a
representação das angústias existenciais e religiosas da época. Com base nesses temas, pode-se
dizer que “socialismo, freudismo e catolicismo existencial” (BOSI, 2006, p. 389) foram os
norteadores ideológicos do romance de 1930 utilizados para refratar a realidade vivenciada pelo
homem da época. Sendo que o socialismo está para o romance social, assim como o freudismo
e o catolicismo existencial estão para o romance intimista.
Antonio Candido (1989), no texto “A Revolução de 1930 e a cultura”, presente na obra
A educação pela noite e outros ensaios, apontou que especificamente na década de 1930 houve
o despontar das literaturas regionais por meio do chamado “romance do Nordeste” e da
produção dos intelectuais espiritualistas, sendo que esses últimos se expressaram tanto na prosa
como na poesia. Enquanto José de Alencar trouxe em seus romances chamados de indianistas
aspectos gerais do Brasil, como a figura do nativo e a caracterização da fauna e da flora. Dessa
forma, pode-se perceber que a ficção modernista trouxe as especificidades regionais de diversos
pontos do Brasil.
Dessa forma, a literatura regional acabou mapeando várias partes do Brasil ao trazer
aspectos específicos de cidades e estados como “a Bahia, de Jorge Amado; a Paraíba e o
Recife, de José Lins do Rego; a Aracaju, de Amando Fontes; a Amazônia, de Abguar Bastos;
a Belo Horizonte, de Ciro dos Anjos; a Porto Alegre, de Érico Veríssimo, Dionélio Machado
e Viana Moog” (CANDIDO, 1989, p. 187). É importante salientar que boa parte dos autores
desse grupo simpatizava com as ideias do comunismo e tinham preocupações mais sociais.
Enquanto alguns integrantes do outro grupo possuía afeição pelo fascismo e expressavam em
suas obras preocupações religiosas e também sociais. Mas também havia aqueles autores que
apesar de produzir literatura regional ou espiritualista não possuíam nenhuma dessas
vinculações políticas e ideológicas da direita ou da esquerda, pois apenas seguiam a estética
de um determinado grupo, sem expressar um engajamento com as outras ideias desses grupos.
Essa possibilidade de desfiliação entre política e estética foi observada por Luciana Stegagno
Picchio (1988):
26
nordestino, regionalista e social, constitui uma literatura de esquerda, e que o
romance psicológico e de ambiente burguês pertence ao outro mundo.
(Graciliano Ramos é também um prosador introspectivo; José Lins do Rego
não era decerto um homem de esquerda.) Mas é verdade que todos esses
escritores ‘burgueses’ possuem em comum um mesmo fator espiritualista.
(PICCHIO, 1988, p. 99)
Para a maioria dos integrantes do grupo dos espiritualistas “o catolicismo se tornou uma
fé renovada, um estado de espírito e uma dimensão estética” (CANDIDO, 1989, p. 188) e citar
Deus, tê-lo como fonte de inspiração estava bastante em voga. Outra característica desse
grupo era criar em suas narrativas e seus poemas uma atmosfera espiritual de tensão e
mistério bem típico da estética simbolista. Na ficção, destacaram-se Otávio de Faria, Lúcio
Cardoso e Cornélio Pena; e na poesia Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, Augusto Frederico
Schmidt e Jorge de Lima.
Flora Süssekind (1984), em Tal Brasil, qual romance, foi a única dentre os autores
selecionados para essa contextualização a omitir a existência da segunda vertente do romance
de 1930: o romance psicológico. Talvez tenha sido uma opção de Süssekind não atrelar o
romance psicológico ao Naturalismo, mas daí a não mencionar a sua existência é uma grave
omissão que compromete até a contextualização que ela pretendeu fazer desse período
compreendido entre o final do século XIX, passando pelos anos de 1930 e finalizando na década
de 1970.
Para Süssekind, não foi produtivo para a literatura brasileira esse compromisso em
retratar as especificidades nacionais, que ela considera um “eterno retorno ao Naturalismo”,
pois a literatura fica mais longe de seu “desejo mimético”. Ao invés de representar o que
realmente existe: uma divisão cultural advinda dos diversos povos que aqui estiveram, quer-se
mostrar uma unidade que nunca existiu, e assim acaba tendo o efeito contrário, porque em vez
de mostrar o que realmente o país é, acaba contribuindo para um “ocultamento da dependência
e da falta de identidade próprias ao Brasil.” (SÜSSEKIND, 1984, p. 39). Dessa forma, uma
literatura que se propõe a representar a realidade do Brasil, acaba fugindo de tal propósito.
Esse eterno retorno ao Naturalismo se expressou por meio do caráter documental da
literatura em busca de uma verdade, com vinculação direta com a realidade, perseguindo o
desejo de construir uma identidade nacional, porém, contraditoriamente, o modelo para
construir essa identidade nacional foi estrangeiro, advindo da colonização pela qual o Brasil
passou. Assim, quando se pensava estar à procura das origens legítimas do país, buscando
uma unidade, dificilmente a alcançaria devido as suas origens advirem de povos diversos e não
de um tronco genealógico único, utilizando a analogia da própria Süssekind.
27
Chegou-se a “ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma maior referencialidade”
(SÜSSEKIND, 1984, p. 37, grifo do autor), do trabalho com a linguagem e de alguns outros
aspectos narrativos para obter uma ligação direta com a realidade. Dessa forma, restou ao leitor
buscar compreender o texto sempre através dos elementos extraliterários, ou seja, vincular a
sua compreensão com a realidade externa e não no contexto criado pela própria obra de ficção,
como deveria ser.
Süssekind menciona que após o Naturalismo ter sido iniciado por Aluísio Azevedo, no
final do século XIX, as características dessa estética são retomadas em dois momentos na
literatura brasileira: no romance de 1930, em que assume outras funções e chega a ser
chamada de Neonaturalismo, o que corrobora com a ideia de Bueno (2006), mencionada nesta
contextualização; e no chamado romance-reportagem de 1970, também considerado por
Süssekind como um Neonaturalismo. Dessa forma, o “eterno retorno” acaba se explicando
porque o Naturalismo não foi apenas uma estética, mas se expressa como uma “ideologia
estética naturalista” pela sua constante influência na literatura brasileira. Pode-se perceber
também que essa “ideologia estética” naturalista tenta apagar, através da ficção, as divisões e
dúvidas da configuração do país, e tem como principal finalidade restaurar a identidade do
Brasil, ou seja, praticamente encenar ficcionalmente uma unidade que na realidade não existe.
Outro aspecto salientado por Süssekind é a característica da continuidade da “estética
naturalista” em diversos momentos históricos do Brasil e a sua capacidade de se adaptar a
esses novos contextos (SÜSSEKIND, 1984, p. 46). No Naturalismo do final do século XIX, o
biologismo e fisiologismo eram os instrumentos utilizados para se tratar do Brasil nas obras
ficcionais. Na década de 1930, vê-se essas as ciências naturais caírem no desuso, em
contrapartida, vê-se a ascendência das ciências sociais e das ciências econômicas; enquanto
que na década de 1970, teve-se ênfase nas ciências de comunicação, em outras palavras, um
misto de literatura e jornalismo. Apesar dessas diferentes afinidades científicas, nos três
momentos do Naturalismo há a repetição de algumas características que acabam unindo os
três momentos: “a observação cuidadosa dos fatos” (SÜSSEKIND, 1984, p. 87), bem como a
objetividade na linguagem e o caráter documental da narrativa.O que se percebe no estudo de
Süssekind é que o fato de ela omitir o início do romance psicológico ainda na década de 1930,
o que seria a “segunda via” da narrativa modernista dessa década, chamado de “romance
psicológico e o romance de costumes”, utilizando a nomenclatura de Luciana Stegagno
Picchio (2004), justificaria o surgimento de autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector
quase de fora meteórica, como considerou Bueno (2006, p. 18). Segundo a perspectiva
apresentada por Süssekind, Lispector e Rosa despontaram na literatura brasileira sem advir de
28
uma tradição e sem praticamente surgir de um sistema já consagrado na produção literária
nacional. Flora Süssekind optou por apenas mencionar como autores do romance de 1930
apenas aqueles consagrados do romance regionalista: José Lins do Rego e Jorge Amado, além
da figura de Graciliano Ramos, que segundo ela foi o único a romper com traços
característicos da “ideologia estética naturalista”. Para a estudiosa, após o surgimento do
Naturalismo, no século XIX, na literatura brasileira, apenas Machado de Assis e Oswald de
Andrade foram os únicos autores que quebraram com a tradição naturalista instaurada na
literatura produzida no Brasil, seguidos por Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
Para Bueno, a forma como boa parte da crítica apresentou o romance 1930, a exemplo
de Süssekind, figuras como Guimarães Rosa e Clarice Lispector acabaram se apresentando
como uma espécie de “ilhas incomunicáveis e louváveis” (2006, p. 18), que nem chegaram a
constituir uma tradição e nem fazer parte de um sistema literário. Porém, atualmente já se
percebe que a presença do romance psicológico ainda na década de 1930, omitida por uma
parte da crítica, como a própria Süssekind, favoreceu para o surgimento de suas obras. Dessa
forma, não se deve enxergar Rosa e Lispector como “verdadeiros meteoros caídos sobre nós
para extinguir velhos dinossauros e iniciar uma era povoada de outros animais” (BUENO,
2006, p. 18) e que livraram a literatura brasileira do ranço naturalista que se alastrava desde o
final do século XIX.
A obra desses dois autores pode ser vista em conformidade com o contexto de uma
segunda corrente no romance brasileiro e não como uma “ilha incomunicável” ou como “a
pedra filosofal” para desvencilhar a literatura do Brasil de um compromisso eterno com a
realidade nacional. Não que se queira com essas afirmações diminuir a genialidade de Rosa e
Lispector, não é isso. O que se quer mostrar é que eles não criaram suas obras do nada e que um
contexto de produção intimista, paralelo ao naturalista, já existia na década de 1930 e que
contribuiu significativamente para o surgimento das obras de Clarice Lispector e Guimarães
Rosa. Esse grupo chamado por vezes de intimistas, mas também nomeado de espiritualistas
ou católicos, tinha como protagonista Lúcio Cardoso, bem como a participação de outros
autores como Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Jorge de Lima, José Geraldo Vieira, Lúcia
Miguel Pereira, Barreto Filho e Octávio de Faria só para citar alguns contribuíram para o
desenvolvimento do romance psicológico no final da década de 1930.
Bueno chega a afirmar a existência do “sistema intimista” em paralelo ao “sistema
social”, ambos concomitantes na década de 1930. Se o sistema social, teve como precursor A
Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, Bueno (2006, p. 22) aponta como o
prenunciador do sistema intimista a publicação de Sob o olhar malicioso dos trópicos (1929),
29
de Barreto Filho. Bueno ainda aponta Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, Érico Veríssimo
e Rachel de Queiroz como autores que são considerados na maioria das vezes como sociais ou
regionalistas, mas que na verdade também transitaram pela vertente intimista. Para se ter ideia,
da importância do reconhecimento da existência do sistema intimista, por exemplo, Bueno
(2006, p. 25) chega a ressaltar a forte presença do universo telúrico de Cornélio Pena, autor do
sistema intimista, na obra de Guimarães Rosa.
Traçado esse panorama sobre as duas perspectivas do romance de 1930, localizando a
produção de Lúcio Cardoso nesse contexto, tem-se Maleita (1934), a sua primeira obra, um
romance tipicamente regional/social; seguindo por Salgueiro (1935), que é considerado por
alguns estudiosos da obra do autor apenas como regionalista ou romance proletário, mas
também é visto por outro grupo como um romance de transição, já que para eles apresenta a
confluência dos dois grupos do romance de 1930. Nesta tese, optamos pela segunda opinião
que considera Salgueiro como um romance de transição, pois há a coexistência de traços
neonaturalistas, como o determinismo do meio interferindo na vida dos personagens, nas duas
primeiras partes do romance; e intimistas, na terceira parte, através da focalização interna nos
pensamentos dos personagens e na ênfase na fé em Deus como fator de libertação das amarras
do ambiente. Desse modo, procuraremos na análise de Salgueiro além de mostrar a vinculação
com o romance social, expor também o início do romance psicológico na obra de Cardoso.
A partir de Salgueiro, percebe-se que Cardoso iniciou o que seria o esboço do seu estilo
intimista, que se consolidou com o romance A luz no subsolo (1936), deu continuidade com
Dias Perdidos (1943) e atingiu seu ápice com Crônica da casa assassinada (1959). Desse
modo, Lúcio Cardoso se uniu, então, ao grupo de escritores que escreveram romance intimista
ou introspectivo, quando a predominância da literatura dos anos de 1930 era a ficção
regionalista, preocupada com o indivíduo na sociedade.
30
Capítulo 2 – Salgueiro: a transição entre o coletivo naturalista e o individual do romance
intimista
31
2.2 O morro como um ambiente coletivo: os traços naturalistas
2
A partir deste ponto, será utilizada citações da edição de Salgueiro de 2007.
34
Nas citações acima, nota-se um apelo sinestésico à audição representada através dos
“gritos”, do “choro das crianças”, do “canto áspero dos galos” e das vozes, sons esses que juntos
caracterizam a colmeia, metáfora zoomórfica que denota conglomerado de pessoas juntas ou
até mesmo de animais. Dessa forma, o narrador acaba considerando o Salgueiro como uma
conglomeração de pessoas que mesmo morando em barracos independentes, acabam juntas
formando uma coletividade que representa o cotidiano do morro carioca.
Essa ideia da animalização coletivizada pode ser comparada às “larvas do esterco” de O
cortiço:
O ruído emitido em Salgueiro é semelhante àquele que ressoa em O cortiço, num dos
momentos em que o narrador descreve o início de um dia na hospedaria. Abaixo é possível
perceber que, além dos zum-zuns, onomatopeia das abelhas da colmeia, o verbo verminar e o
substantivo formigueiro constroem a zoomorfização presente na coletividade do cortiço:
35
Mais um aspecto que aproxima Salgueiro de O cortiço é a personificação dos espaços.
No primeiro, o morro é personificado, no segundo, o próprio cortiço. Ao se comparar o
ambiente do morro do Salgueiro ao do cortiço, nota-se que ambos são considerados uma espécie
de corpo vivo, que em alguns momentos possuem ações que geralmente são atribuídas aos seres
com vida. O morro se move, possui forças de origens desconhecidas, sente sono, dorme e
acorda:
Todo o Salgueiro se move como um corpo de gigante, na noite larga que vai
crescendo. Uma força desconhecida brota daqueles casebres acocorados no
escuro, daqueles barrancos agressivos da estrada. Mas é uma força de doença
e de morte, de coisa estragada.
(p. 49)
O silêncio voltou a tombar. Tudo estava calmo, a noite corria serenamente,
todo o Salgueiro parecia, afinal, entregue ao sono.
(p. 102)
Mas o morro estava quieto, dormindo ao sol frio.
(p. 147)
Ao longe gritavam chamando alguém. O morro acordava. (p. 243)
O narrador afirma isso logo após a morte de Zé Gabriel, o que reafirma a ação das forças
ocultas do morro em seus moradores e o mantra do morro.
A estrutura do morro estava consolidada, enquanto o cortiço ainda estava em
construção, por isso em alguns momentos o narrador diz que a estalagem estava em
crescimento:
E, durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças,
socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela
exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que
lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais
grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o
chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo. (AZEVEDO, 2005, p. 23)
36
Ao chamar o cortiço de “floresta implacável” que crescia com suas raízes “mais grossas
do que serpentes”, o narrador confere um ritmo de crescimento quase que biológico à
hospedaria. Segundo Antonio Candido (2010, p. 117), no ensaio “De cortiço a cortiço”, o
cortiço apesar de ser uma construção humana parece relacionado à natureza, pois “[...] ele
cresce, se estende, aumenta de volume e é consequentemente tratado pelo romancista como
realidade orgânica, por meio de imagens orgânicas que o animam e fazem dele uma espécie de
continuação do mundo natural”. Ainda segundo Candido, isso acontece no princípio do romance
de Azevedo, pois inicialmente nota-se que o cortiço é estabelecido por leis biológicas,
reforçando a presença do naturalismo. Esse ritmo de crescimento natural e espontâneo vai sendo
substituído pelo planejamento direcionado de João Romão.
Assim como o morro do Salgueiro, o cortiço também dormia e acordava junto com seus
moradores:
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a
sua infinidade de portas e janelas alinhadas. (AZEVEDO, 2005, p. 3)
Devido a essa presença marcante do espaço nas duas narrativas, pode-se considerá-los
como personagens, como sugeriu Franchetti (2011) com relação ao cortiço, e podemos estender
essa analogia ao próprio morro, em Salgueiro. Pode-se considerá-los dessa forma, pois ambos
além de serem personificados, atuam no destino dos personagens. Sendo assim, tanto o morro,
como o cortiço representam o meio interferindo na vida de seus moradores, determinando os
caminhos de seus respectivos destinos.
O diferencial de Salgueiro, quando comparado a um romance naturalista, é que um dos
personagens consegue ultrapassar as limitações impostas pelo determinismo do ambiente, que
foi o caso de Geraldo. Esse aspecto individual se sobrepõe quando Geraldo, após conhecer a
figura divina através dos personagens Valério e Vicente, consegue se desprender da
animalidade e desenvolve a sua espiritualidade. Depois de vários momentos de reflexão, ele
se desprende das forças do morro e encontra a sua saída.
Apesar da individualização física tão presente no morro do Salgueiro, pois praticamente
cada grupo vive em barracos distintos, quando Seu Manuel vai para o hospital parece haver uma
comoção coletiva dentre os moradores do morro. Muitos querem ajudar na sua descida e esse é
um dos poucos momentos em que os moradores do Salgueiro agem coletivamente:
37
coletivamente, a fraternidade se denuncia mais impressiva quando aparece
algum caso de doença. Então, toda a gente se movimenta. Todos querem
ajudar e os braços se agitam incansáveis em torno daquele que vai descer.
Tomás de Aquino, o vendeiro, possuía uma cadeira, velha cadeira de braços,
que já fora de um salão de barbeiro e que agora servia para a descida dos
feridos e doentes. [...] (CARDOSO, 2007, p. 63-64)
38
outros fora de seu barracão, algumas pessoas chegavam para perguntar como ele estava e “ele
se encolhia, esmagado pela força de um mundo desabando. Mudo, amedrontado como um cão
batido” (p. 65). Percebe-se que mesmo em meio a uma multidão, Seu Manuel se sente só,
provavelmente certo de que não voltaria com saúde para o seu lar.
Desse modo, nota-se que mesmo num ambiente onde há uma certa indiferença entre
seus moradores, em certos momentos, a coletividade se faz presente através da compaixão, mas
também pensando que quem ajuda hoje, poderá precisar amanhã.
Um aspecto que pode ser notado, no trecho citado, é acerca da iluminação nas moradias
do morro, que ocorre por meio da contraposição entre as velas e as lamparinas e as armações
da empresa Light, companhia energética do Rio de Janeiro, para mostrar que o progresso
passa sobre o morro do Salgueiro, mas não é acessível aos seus moradores: “Em cima, perto
das armações da Light, a terra áspera surgia frisada de vermelho vivo, com fartas veias
rasgadas a esmo” (p.27-28).
Ainda com relação ao trecho citado, observa-se a presença de outro elemento
fundamental para a construção do tom sombrio: a escolha do ambiente noturno para ser o
cenário no qual ocorre a maioria dos acontecimentos da narrativa – “Já era noite
completamente” (p.11). Mas não era uma noite fria que tranquiliza e
39
favorece o descanso, era uma noite quente, caracterizada pelo calor que inquieta e impede o
sossego dos seres, inclusive das mariposas. E esse aspecto se repete em outros momentos da
parte analisada do romance: “A noite fechada estalava em estrelas miúdas” (p.17); e em “O
tempo estava quente e a noite aberta em estrelas” (p.37). Nestas duas citações, em momentos
posteriores à citação da página 11, percebe-se que o tom da noite fechada, conotando
provavelmente o tempo nublado, com poucas estrelas e abafado, contrapõe-se em partes com a
citação da página 37, em que a noite está aberta, mas a sensação de calor e inquietação ainda
permanece. A noite fechada é um provável reflexo de uma discussão que ocorreu entre José
Gabriel e sua amante Rosa por causa do filho do operário, Geraldo. A noite aberta é embalada
pela flauta do aleijado Vicente e associada ao momento em que Geraldo relembra uma visita que
fez a Valério na esperança de obter um emprego. Nos dois casos, observa-se a projeção do
estado de ânimo dos personagens no ambiente, um traço que aproxima a narrativa da vertente
intimista do romance de 1930. Ainda sobre a visita, foi naquele momento que Geraldo notou a
impossibilidade de Valério contratá-lo, tendo em vista que o senhor era um pobre ser ferido
impedido de trabalhar, devido a um tiro que sofrera e não cicatrizara, deixando uma ferida
aberta. É também nessa visita que Valério menciona a existência de Deus a Geraldo e a partir
disso o rapaz inicia o seu processo de autoconhecimento, que também será abordado no item 2.3
desta análise.
Esse calor, que também está presente durante a noite, possivelmente se relaciona com a
escolha do período no ano em que o narrador inicia a focalização da história dessa família
desventurada: “No morro, nenhum sopro movia as folhas. O calor de novembro abafava”
(p.11). No hemisfério Sul, onde se localiza o Brasil e especificamente a cidade do Rio de
Janeiro, cidade onde se passa a narrativa, o mês de novembro se aproxima do verão: “De todo
o Salgueiro partia um cheiro bom de brotos novos e o verão em começo” (p. 29). A primeira
parte do romance se passa durante o verão, provavelmente nos meses de novembro e
dezembro, por isso se justifica o calor dessa época. Mesmo durante o verão, dá-se preferência
a narrar as cenas no período da noite, contrariado aquela tradicional ideia de céu azul e alegria
dessa estação. Essa preferência pelo ambiente noturno, marcado pela escuridão e pela precária
iluminação de velas e lamparinas, vai se acentuar ainda mais na segunda e terceira partes do
romance, em que os acontecimentos ocorrem durante o inverno. Sendo esse outro fator que
contribuiu significativamente para a formação do tom sombrio e melancólico que parece
provocar desânimo nos personagens para a vida, como é o caso da personagem Marta. Esse
tom é obtido através de um céu que é na maioria das vezes escuro, nublado e marcado pelas
chuvas torrenciais, além do frio constante.
40
Percebe-se que há a comunhão entre o estado de espírito dos personagens e a expressão
do ambiente. Esse procedimento de estabelecer uma relação entre a projeção anímica das
personagens no ambiente foi uma prática bastante utilizada pelos autores do Romantismo, mas
o narrador de Salgueiro também utiliza. Outro aspecto interessante é que ao fazer esse
movimento de focar nos pensamentos dos personagens e depois expandir o campo de visão para
o ambiente, o narrador faz apelos sensoriais não só ao sentido da visão, mas também da audição
e do tato, concedendo assim um tom simbólico, bem aos moldes da estética simbolista, como no
seguinte trecho:
Na citação acima, o apelo sensorial ao olfato ocorre através de perfumes e cheiros: “ondas
de perfumes intensos e variados.”, “o cheiro dos jasmineiros”, bem como o cheiro “terra
requeimada”, de cinza e de barro cozido. Além do olfato, também se tem o apelo ao tato na
“cinza ainda quente” e o verão morno. Com esse exemplo, entende-se que o romance tem um
apelo sinestésico bastante forte que contribui significativamente para a construção desse
ambiente.
Como a maioria dos acontecimentos tem como ambientação o cinza do clima nublado
ou até mesmo a própria chuva que cai com frequência no morro, o céu azul e o sol brilhante
surgem de forma escassa durante a narrativa de Salgueiro. Cita-se como exemplo, o momento
em que seu Manuel tem esperança de recuperação:
Três dias depois o velho Manuel sentiu-se melhor. A voz saía mais forte e
descobriu-se mesmo com um interesse maior pela vida. [...]
Como a vida lhe pareceu bela! Entreviu o claro do sol lá fora e as galinhas
numerosas que ciscavam. [...] Era uma paz tão grande uma calma tão profunda
derramando-se ao calor do dia [...]. Invadiu-o uma suave alegria. (p. 59)
Nota-se nesse trecho a projeção do estado de ânimo de Seu Manuel no ambiente. Como
ele estava se sentindo melhor, o claro sol surge na cena agitando o dia, trazendo paz, calma e
uma “suave alegria”, sensações raras no decorrer no romance.
Outro momento com esse clima mais ameno ocorre no final do romance,
especificamente em seu penúltimo parágrafo, quando Geraldo deixa o morro:
Tudo agora estava diferente agora. Nunca vira manhã tão bela em sua vida. As
folhas tocadas pelo vento, sussurrando, uma fumaça escura subindo ao
41
longe, as nuvens brancas caminhando. [...] sente o peito estufar e respira
fundamente, olhando o céu azul. (p. 246)
Na citação acima, Geraldo, após fazer várias reflexões e ter superado o medo, decide
sair do morro. Por isso ele sente tudo diferente: a manhã ficando bela, as folhas denotando
esperanças, as nuvens brancas remetendo a paz e o céu azul contrastando com o céu acinzentado
do morro. As cores da descrição do ambiente passam a ser mais amenas e a “fumaça escura” é
separada pelo adjunto adverbial de lugar “ao longe”, provavelmente, com o intuito de
significar que as trevas não fazem mais parte de sua vida.
Luís Bueno (2006) atenta para o fato de o morro do Salgueiro ser chamado em vários
momentos pelo narrador e por alguns personagens de “inferno”:
Bueno ressalta que esse inferno, ao qual Salgueiro é comparado, deriva da inexistência
na crença em Deus por boa parte de seus moradores. Isso pode ser percebido nas falas dos
personagens Valério e Vicente, os únicos que falam da existência de Deus durante o romance.
Valério sente que não é ouvido pelos demais moradores, que acabam chamando-o de louco por
julgarem que ele fala de algo inexistente, uma provável criação de sua mente. Enquanto Vicente
só tocou no assunto em conversas com Geraldo.
O universo trágico do qual fala Bueno (2006) refere-se à tragédia grega motivada pela
hybris. Ela seria uma espécie de punição a um mortal por ter cometido uma infração, por isso
ele e todo o povo de sua comunidade seriam castigados pelos deuses por esse erro. Daí
decorre uma sequência de acontecimentos trágicos e de desgraças. Em Salgueiro, é provável
que a hybris seja o fato de não apenas um, mas a maioria dos moradores do morro não
acreditarem em Deus e por não acreditarem deixaram que as trevas tomassem de conta do
morro.
42
Essa sequência de acontecimentos trágicos se manifesta no romance de Cardoso na
pobreza das habitações; na prostituição que afetou Rosa e Marta, que era concentrada no
Terreiro Grande através do recrutamento de Chico Padre; na exploração dos preços dos
aluguéis, demonstrando a ganância de Tomás de Aquino e Chico Padre; nos constantes atos de
violência; e no abandono dos moradores doentes: Seu Manuel, Valério e Vicente. Esse universo
trágico, do qual trata Bueno, possui como “[...] motivadores das ações das personagens são
muito remotamente sociais e mesmo a pobreza aparece menos como resultado das forças e
econômicas e sociais e mais como decorrência do afastamento de Deus” (2006, p. 275). Desse
modo, pode-se dizer que a motivação da tragicidade em que vivem os moradores do Salgueiro
é espiritual e não econômica e social como propunha o romance regional. Eles estão nessa
situação de penúria por não acreditarem em Deus conforme exige a doutrina do catolicismo
existencial que rege a narrativa.
A ausência, no Salgueiro, de um Deus do bem que salva, perdoa e mostra um caminho
melhor para a vida de quem nele crê, também reforça a ideia de inferno. No morro, parece haver
um outro tipo de Deus, aquele que pune e causa medo. Esse tipo de divindade é mencionado
durante a narrativa por Vicente e é citado na cena final, quando Geraldo deixa o Salgueiro
definitivamente: “[...] compreende que Deus havia, afinal, descido ao seu coração. Não o Deus
do Salgueiro, mas um outro Deus” (p. 247).
Outro aspecto que aproxima o Salgueiro do inferno é que a sua saída é difícil de
encontrar, como bem observou Bueno:
43
caracterizado pelas chamas e labaredas de fogo.
Essa predominância do clima frio comunga com o fato de a narrativa se desenrolar
predominantemente durante o inverno, como também esse é mais um elemento que constitui
“alegoria da impossibilidade”, pois as baixas temperaturas junto com a pouca luminosidade do
morro contribuem para a indisposição para o trabalho e para a vida.
Na tradição cristã, a luz seria o céu e as trevas o inferno. Então, se o Salgueiro é um
morro com pouca luz e em alguns momentos com nenhuma, devido à ausência de Deus, a
noção: “Se a luz se identifica com a vida e com Deus, o inferno significa a privação de Deus e
da vida” (CHEVALIER, 2017, p. 506), expressa bem a condição do morro.
Assim sendo, supõe-se que o inferno do Salgueiro seria a união do inferno mitológico
grego, devido as suas baixas temperaturas, com o inferno judaico-cristão já que a pouca luz e o
abandono de Deus também o caracteriza: “Sim, o Salgueiro era uma terra condenada, uma
terra de exílio, sem culpa, ali é que eles pagavam a pena de não serem lembrados por Deus”
(CARDOSO, 2007, p. 204).
O Salgueiro era uma espécie de reduto dos seres que não tinham uma vida espiritual
pautada na experiência com Deus e por isso eles viviam ali exilados sofrendo as
consequências de seus atos, como foi o caso de Vicente que roubou e gastou, numa farra, todo
o dinheiro que Mateus juntou para Adélia, sua filha com deficiência visual. 3
Vicente após contar o que aconteceu na vida dele para perder a sua perna e depois vir
parar no inferno do Salgueiro: “– Perdi tudo ... parecia maldição ... até a minha perna... até parar
neste inferno! Oh, quem vem para aqui não volta ao mundo nunca mais...” (p. 202), ele acaba
reafirmando o que dissera o narrador na citação anterior: “Os que ali viviam eram seres
exilados, culpados de algum tremendo crime, e que jamais sairiam de seus sombrios limites”
(p.181). Nas falas de Vicente, é como se o Salgueiro fosse um lugar separado do mundo e no
qual aqueles que cometeram algum pecado pagariam por ele, reforçando a ideia de inferno.
Outro ponto da narrativa em que se percebe a descrença dos personagens na figura de
Deus é durante uma conversa na venda de Tomás de Aquino, entre Geraldo e Damião, um negro
musculoso que bebia aguardente na cena descrita. Geraldo chega a perguntar ao negro se ele
acredita em Deus e recebe como resposta uma grande risada. Tomás de Aquino, que havia saído
do salão do armazém para pegar um copo de água para Geraldo, diz: “Larga isto para os padres,
rapaz... Deus é Deus e não quer saber da gente” (p. 209). Após beber o copo
3
Mateus era um velhinho que trabalhava como guarda no Jardim Zoológico, na Vila Isabel, e que é mencionado
apenas uma vez no romance para justificar o castigo divino dado a Vicente por ter cometido tal roubo.
44
de água, Geraldo sai refletindo que apenas ele tem medo de Deus e chega a duvidar que exista
naquele morro escuro qualquer tipo de divindade: “Tolices... naquele mundo escuro jamais
houvera o rastro de qualquer espécie de divindade” (p. 209). A reação de Damião e a fala de
Tomás de Aquino acabam reforçando a ideia do distanciamento dos moradores da crença em
Deus e por isso, como uma espécie de castigo, estariam vivendo nessa espécie de inferno que é
o morro do Salgueiro.
Nota-se que depois de estar no Salgueiro além de ser difícil de deixá-lo, por muitas vezes
é ressaltada a presença de forças que faziam seus moradores permanecerem nele: “o Salgueiro
se erguia à parte de tudo, sozinho no seu silêncio e no seu abandono como uma determinada
espécie de inferno” (p. 180-181).
O desejo de sair do morro era compartilhado por vários de seus moradores, como Tomás
de Aquino, Marta, Zé Gabriel, Vicente e Geraldo. Até mesmo Tomás de Aquino, dono de uma
venda e que também possuía alguns barracões para aluguel, tinha o desejo de deixar o morro:
Tomás está desconsolado. Tanto barracão por uma miséria! Talvez que jamais
consiga abandonar aquele lugar horrível. Nunca reunirá dinheiro bastante para
ser gente. Não passará de um pobre vendeiro, no fim do inferno, no morro do
Salgueiro. (p. 48)
As garras que prendiam os moradores ao Salgueiro eram tão fortes que alguns, mesmo
com a oportunidade de sair dele, sentiam-se presos por uma força oculta, como foi o caso de
Veva:
– Vamos, mãe – disse. [...]
Marta avançou, impaciente.
– Vamos depressa, olha só como chove.
A velha lançou um olhar angustiado para o morro. [...]
– Preciso arrumar as minhas coisas – murmurou com voz sumida. Marta
bradou, agitando o chapéu:
– Coisas? Que é que tu tem? Vive aí atirada...
[...] Dissera aquilo para ganhar tempo... porque estava com pena de descer
para sempre... para sempre!
– Marta! A gente não pode ir assim... largar tudo... Aqui é que a gente vive.
– Não, mãe – bradou Marta.
– Por quê? Não voltaremos mais a este morro... [...]
– Nunca mais? - perguntou a Marta. [...]
– Não. Nunca mais.
[...]
Se quisessem fugir do inferno, sabiam que deveriam partir, mas ainda assim
qualquer coisa os ligava ao morro. A saúde era fora, longe dali, mas eles
pertenciam àquela espécie de morte. (p. 156-157)
Esse parágrafo encerra a segunda parte do romance, chamada “O pai”. Mesmo vendo as
duas últimas pessoas de sua família deixarem o morro, Geraldo ainda não sentia que estava
pronto para descê-lo, pois a ideia de reencontrar o pai ainda o prendia àquele lugar: “Sentia-se
preso ao morro por uma ideia mais forte do que o desânimo: o pai. Percebia que nem tudo estava
perdido. A ideia de encontrá-lo ainda alimentava a sua vida” (p. 164).
Além de todo o Salgueiro ser considerado um inferno, há também o inferno individual
de Zé Gabriel. Em seu leito de morte, Zé Gabriel acaba deixando de forma trágica o inferno do
Salgueiro, mas também deixa o seu inferno particular: “Pela última vez seus olhos
contemplavam o cenário escuro do seu inferno” (p. 223). Desse modo, a afirmação de Mario
Carelli (1988) acaba se confirmando: “[...] os personagens compreendem que o inferno não é
apenas o Salgueiro nem mesmo os outros, mas que o inferno está neles” (CARELLI, 1988, p.
161).
Sendo assim, entende-se que a comparação com o inferno é outro elemento que contribui
para configuração do determinismo naturalista no romance, junto com a personificação, o
ambiente obscuro e a atuação das forças desconhecidas do morro analisadas na subseção
anterior. A animalização de alguns personagens será o próximo e último elemento a ser
46
analisado nessa vinculação do romance à estética naturalista.
47
Rosa também gostava de provocar conflitos dentro do barracão da família ao insultar
com frequência Marta e Veva, mas também com as vizinhas: “O pai saíra para o trabalho e
Rosa gritava no caminho. Prestou atenção e ouviu que a negra ameaçava alguém: — Sua safada,
um dia a gente acaba tirando a diferença!” (p. 28).
Como a música despertava em Rosa sensações estranhas e inconscientes, José Gabriel,
com ciúmes, tentava impedi-la de participar desses festejos, não a deixando nem sequer ir à
janela:
O seu doentio ciúme estendia-se até aí, não gostando que a negra se perdesse no
meio dos tocadores de samba do Salgueiro. Quando a dança, nalgum ponto do
morro, atraía gente de todos os cantos, Rosa não tinha o direito de chegar à
janela do barracão. Esses eram os momentos em que ela se revoltava, incapaz
de conter a índole impetuosa que despertava. Transformava-se no que
realmente era, uma fúria capaz de morder os que se aproximassem, sem querer
ouvir ninguém, apenas com o rancor cegando-a e tornando-a alucinada, capaz
de cometer todos os desatinos. (p. 12)
Observa-se que Rosa foi descrita pelo narrador mais uma vez como animalesca:
“Transformava-se no que realmente era, uma fúria capaz de morder os que se aproximassem”.
A mordida é mais uma forma de aproximá-la a mais um aspecto animalesco, como também a
fúria. Nota-se que quando contrariada, os traços animalescos dela ficam ainda mais evidentes.
Rosa também se utiliza de termos que remetem a animais quando vai se referir aos
outros entes da família: Marta, Geraldo, e Genoveva, respectivamente irmã, filho e mãe de Zé
Gabriel. Com relação a Marta, pode-se observar, no trecho a seguir, que o narrador dá voz a
amante de Zé Gabriel em discurso direto “— Essa diaba... Parece que vive pra morrer... nem
parece fêmea!” (p.13). Ao chamar Marta de fêmea, Rosa utiliza uma terminologia da biologia
“macho e fêmea” típica da estética literária Naturalista, empregada para caracterizar os
animais. Na verdade, quando quer se referir a seres mais humanizados, deveria ser utilizada
terminologia “homem e mulher”.
A própria Marta também nutria um forte ódio por Rosa. Marta culpava Zé Gabriel, seu
irmão, por trazer Rosa, aquela espécie de “doença trazida da rua”, que contaminou a família
com a discórdia e acabou desagregando-a: “Culpava-o da existência da negra naquela casa,
como de uma doença trazida da rua, em ameaça à vida de todos” (p. 13).
Com relação à Genoveva, sua sogra, não é diferente o uso dos termos animalizados, que
acabam por caracterizar a linguagem de Rosa, que é marcada pelos palavrões e adjetivações
pejorativas, os quais denegriam a quem ela odiava. Aliás, ela odiava a todos os membros da
família de Zé Gabriel e eles a ela:
48
Genoveva, a mãe, procurava consertar as coisas. Rosa repelia com furor,
desmanchando-se em palavrões:
− Sai, besta velha... Quem é que te chamou aqui, estupor?
E se ela, por acaso, não ouvisse os vitupérios, Rosa se erguia com uma
fúria, empurrando-a violentamente:
− Vai, diaba... O teu velho tá chamando, vai morrer! (p. 13)
Rosa chama a sua sogra de “besta velha”, “estupor” e “diaba”, e mais uma vez expressa-
se através da sua fúria que se apresenta com frequência na narrativa. Esse tratamento se repete
constantemente, como, por exemplo, quando houve uma briga entre Rosa e Zé Gabriel. Mesmo
Veva chamando a atenção de seu filho para não bater na sua amante, ou seja, a sogra tenta
defender a nora, mesmo assim Rosa pronunciava palavras de afronta a Veva:
Desta vez, o substantivo “velha” é reiterado, inclusive é utilizado pelo próprio narrador,
conjuntamente com “diabo do inferno”, “traste” e “peste”. Mas pouco importa para Zé Gabriel
o insulto que sua amante profere em desfavor de Veva. A ira dele era tão grande que ele
continuou a agredir Rosa. Essa postura de Zé Gabriel denota que ele não tinha apreço por sua
própria mãe, pois não tem a mínima atitude de defendê-la dos insultos de sua amante.
Ao se referir a Geraldo, Rosa chamava-o constantemente de idiota. Numa das vezes que
o filho de Zé Gabriel chegou em casa e disse que estava ajudando a Dona Zica, uma senhora
paralítica que vivia em um dos barracos do morro, quando Geraldo disse que ela não pode pagá-
lo pelo serviço, ele foi revidado por Rosa em tom de afronta:
− Quando é que este traste deixará de ser idiota? Será que pensa ser escravo
dessa gente?
− Aquele “idiota” fez Geraldo estremecer ligeiramente. [...] (p. 19)
Ser chamado de idiota era algo que incomodava bastante a Geraldo como se pode
perceber na reação dele ao “estremecer ligeiramente” (p.19) quando ouviu as palavras de
Rosa, bem como em outros momentos na narrativa, que serão contemplados mais à frente nesta
análise.
Rosa também tinha um desejo imenso de se ver livre de Geraldo, pois o via como um
estorvo: “Tudo se confundia, para a negra inconsciente, num enorme desejo de se ver livre do
rapaz, de afastá-lo o mais distante possível do seu olhar” (p. 15). Nesse
49
trecho, o narrador refere-se a Rosa ressaltando mais uma vez a inconsciência dela ao agir, assim
como um animal irracional.
Numa noite em que Rosa foi até a casa de Chico Padre, a convite dele, ao voltar para
casa, Geraldo e Zé Gabriel já esperam por ela. Ao chegar, seu amante trata-a por “porca”: “—
Sua porca! Sua porca! — gritou” (p. 116). Quando Zé Gabriel pergunta se ela bebeu, Rosa
também o trata por “porco”: “ — Porco! Porco! Você é que é porco, tá ouvindo? [...] — Bebi
sim, porco! Bebi! Bebi! Olha, bebi!” (p. 117). Nessas passagens, reforça-se a ideia de que não é
só o narrador que animaliza os personagens, mas que eles fazem isso entre si.
Não suportando o atrevimento de sua amante, ao dizer que foi à casa de outro homem,
Zé Gabriel não se conteve e passa a agredir Rosa. O narrador caracteriza essa briga como uma
luta entre animais: “Continuaram a luta no escuro, arfando, como dois animais” (p. 118).
Após a briga com José Gabriel, Rosa se abrigou na venda de Tomás de Aquino. Lá na
venda, ela
esbravejou como uma fera furiosa. Todos os palavrões que sabia brotaram dos
seus lábios. [...] Chegou mesmo a assustar o vendeiro, dando gritos agudos e,
com os cantos da boca cheios de espuma, deitou-se, retorcendo-se no chão.
Exausta, pensou em armar uma cilada ao amante; fechou os olhos calculando
vinganças tremendas, jurou que tinha sede daquele sangue. [...] E como
desaparecera da casa do amante, desapareceu também do armazém de Tomás
de Aquino. O vendeiro sorriu, não a encontrando. Disse:
− Ora, cão que ladra muito... (p. 124)
No trecho citado, as expressões “fera furiosa” e “cantos da boca cheios de espuma” são
mais uma forma de equipará-la a aspectos animalescos. Nesse mesmo trecho, tem-se a fala do
personagem Tomás de Aquino: “— Ora, cão que ladra muito...” (p. 124) referindo-se à Rosa.
Sendo assim, enfatiza-se a ideia de que os traços animalizados de Rosa não são de percepção
apenas do narrador, mas também dos outros personagens.
O narrador até ao falar sobre os odores que Rosa exala, apela para o traço animalizante.
Na segunda parte, numa cena em que Zé Gabriel mostra um dinheiro que ele obteve de forma
ilícita a sua amante, Geraldo percebe a movimentação dentro do barracão e seu pai, sem saber
se ele estava acordado, pergunta a Rosa:
50
por um momento. Após, uma onda de ar mais puro. (p. 101)
Rosa, muito mais moça do que ele [José Gabriel], negra de gênio pior do que a
primitiva, e que, além de leviana, era hostil e impetuosa. Eulália tinha o gênio
calmo e gostava de lidar com todo mundo. Rosa agitava a vizinhança, fazia
intrigas de barracão em barracão, brigava com as amigas, espancava Geraldo.
(p. 21-22)
O traço racial de Rosa também é bastante evidenciado pelo narrador, como se pode
perceber no trecho acima “negra de gênio pior do que a primitiva” (p. 21). Por várias vezes
ele usa “negra” como elemento de substituição do nome Rosa. Chamá-la de negra significa
criar uma diferenciação entre ela e os membros da família, pois Marta, Seu Manuel e Veva
são descritos como mulatos, e apenas Zé Gabriel e Geraldo são caracterizados como negros.
O tom “amulatado” da pele de Marta chegava a causar inveja na amante de Zé Gabriel:
“Rosa sabendo-se negra e invejando o amulatado vago de Marta, murmurava, devorando-a com
os olhos [...]” (p.13). Com relação a Seu Manuel, no início da narrativa sua pele é descrita
como: “não era um negro; mesmo, pela extrema magreza, o rosto amulatado se tornara cor de
cinza, quase branco” (p. 9). O tom amulatado de Seu Manuel
51
também causava inveja dos seus antigos colegas de trabalho: “Os companheiros de trabalho,
todos negros, chalaceavam que ele tinha luxos de branco só porque nascera mulato” (p. 20).
Manuel era “filho de um branco e de uma negra [...]” (p. 21), por isso a cor mulata da pele.
Genoveva também é descrita como mulata: “Casara- se com mulata uma pequena e humilde
mulata de Deodoro [...]” (p. 20-21). É possível que essa apresentação do mulato como uma cor
superior ao negro, tenha sido influência da valorização da mestiçagem no final do século XX
até por volta da década de 1930, tema tratado pelos intelectuais da “Escola de Direito de
Recife”: Tobias Barreto, Sílvio Homero e Gilberto Freyre, em momentos distintos.4
A menção à cor da pele de Zé Gabriel praticamente só ocorre em seu leito de morte,
quando Geraldo, após socorrer o pai, observa-o em seus últimos segundos de vida:
A cor de Geraldo fica subentendida, pois não há menção direta a ela. Supõe-se que ele
seja negro, porque a cor negra de sua mãe, Eulália, é sugestionada quando comparada a de Rosa:
“Rosa, muito mais moça do que ele [José Gabriel], negra de gênio pior do que a [amante]
primitiva” (p. 21); e do seu pai, Zé Gabriel, descrito na citação acima pelo narrador como
“negro legítimo” (p. 225).
Há outros moradores do morro que não eram membros da família, mas que também são
descritos como negros: Arlete, Chica Prudência, Timóteo e Damião. Há também outros
personagens cuja cor da pele o narrador não chega a descrever, são eles: Valério, Chico Padre,
Tomás de Aquino e Vicente. Teresa-Homem é caracterizada como mulata e não há menção
explícita a personagens brancos.
Segundo Cerqueira Filho (2013), o morro do Salgueiro real começa a ser ocupado nos
fins nos anos 1920 e a expressão “Salgueiro” começou a ser associada à negritude, à afro-
descendência, ao batuque e ao samba, que aparece sutilmente no romance: “Um silêncio
profundo caíra no Salgueiro. De vez em quando, vinham do Terreiro Grande o som rouco de
uma cuíca e o grito dos negros no saracoteio da dança Caxambu” (p. 25).
A partir dessa caracterização da cor da pele, é possível identificar um traço social do
Salgueiro ficcional na medida em que caracteriza seus moradores como negros ou como
4
SCHWARZ, L.M. Gilberto Freyre: adaptação, mestiçagem, trópicos e privacidade em Novo Mundo nos
trópicos. Philia&Filia, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 85-117, jul./dez. 2011.
52
mestiços, pois acaba estabelecendo uma vinculação entre a raça e o ambiente de exclusão social
do morro.
A relação entre a cor da pele e a situação econômica acaba ficando tão evidente que
nenhum branco, considerado superior nas teorias naturalistas, mora no Salgueiro ficcional. Essa
constatação acaba refletindo um aspecto cultural brasileiro, especificamente a ideia na qual às
raças consideradas inferiores, na sua maioria descendentes de negros libertos da escravidão, são
historicamente relegadas aos espaços marginais das cidades.
Especificando apenas os personagens negros nos romances de 1930, Luís Bueno
enfatiza o aspecto da cor da pele de Geraldo:
Veja-se o caso dos protagonistas negros. Não é coincidência que num único
ano, 1935, três escritores muito diferentes — Jorge Amado, comunista, Lúcio
Cardoso, católico muitas vezes rotulado como de direita, e José Lins do Rego,
autor visto como regionalista, mas não ligado à esquerda — tenham publicado
romances com protagonistas pobres e negros. [...] Em Salgueiro, de Lúcio
Cardoso, era Geraldo, também criado no morro, mas no Rio, como indica o
título, que procura fugir da pobreza e busca uma solução espiritual para si. [...]
(BUENO, 2014)
Assim como Rosa, Geraldo também chega a ser animalizado pelo narrador, só que
diferentemente dela, apesar de também ser negro, a cor de sua pele não é posta em destaque
pelo narrador e nem por outros personagens, aliás ela não é nem mencionada, como dissemos
anteriormente.
Após esse levantamento dos traços animalizados dos personagens e do determinismo do
ambiente, elementos que aproximam o romance Salgueiro da estética naturalista, a seção a
seguir mostrará a superação do meio obtida pelo personagem Geraldo, fato que acaba
distanciando a narrativa do naturalismo e aproximando-a da vertente intimista do romance de
1930.
53
2.3 A superação do determinismo naturalista
Valério foi o primeiro personagem a tocar no nome de Deus na narrativa e falou sobre
o assunto nessa conversa com Geraldo. Esse foi o início da mudança na vida do protagonista
de Salgueiro, pois a voz de Valério continuou ecoando nos pensamentos de Geraldo no decorrer
da narrativa. A luz que brotava das palavras dele pode ser associada à chegada do elemento
divino na vida do rapaz. Valério fez uma reflexão de que todos são filhos de Deus. Mesmo ele
se sentindo um homem abandonado e ao ter a convicção de que seu o destino seria sofrer mais,
contraditoriamente, ele continuava a reafirmar a existência de Deus. Provavelmente, porque para
ele quanto mais se sofre mais próximo se está de Deus. Valério talvez agia assim, pois tinha a
esperança que Deus o retiraria daquela situação de abandono.
Geraldo decidiu ir embora ao perceber que não conseguiria um emprego com Valério,
54
mas passou a imaginar um mundo diferente “lá fora” do morro: “E pensa num campo verde, no
sol que arde sobre as folhas, no rio manso que passa lá fora, no ar, no céu, na liberdade inteira”
(p. 36). Essa foi a primeira vez que Geraldo pensou numa vida fora do morro, pois as palavras
de Valério fizeram-no abrir seu campo de percepção. Nota-se que o ambiente da liberdade
fora do morro é descrito com cores mais vibrantes como o verde, no campo e nas folhas; na
adjetivação “manso” para o rio; e seguindo pelo ar, o azul do céu, numa gradação para
representar a liberdade. Essa não é qualquer liberdade, é uma “liberdade inteira”. Essa
imagem destoa dos ambientes escuros e sufocantes com o ar poluído, como o da casa de Valério:
“o cheiro de óleo e ranço pareceu mais forte” (p. 32) e até do próprio morro que geralmente é
descrito com uma sensação de abafado: “O calor de novembro abafava” (p. 11).
A conversa que Geraldo teve com Valério despertou a primeira reflexão no filho de José
Gabriel, por isso acredita-se que essa conversa foi o primeiro passo para a mudança no destino
de Geraldo. Ao voltar para casa, Geraldo tem suas palavras postas em dúvida por Rosa e pelo
seu próprio pai, ao afirmar que ele não foi falar com Valério:
Geraldo não se importava com o que haviam dito. Trazia ainda no espírito a
fala sibilada de angústia do pobre ferido, clamando na colmeia indiferente.
Seu desejo era gritar as mesmas palavras de Valério, gritar alto como se todos ali
fossem surdos. Ele não sabia por quê, mas aquele desejo latejava na sua alma;
pensava no pobre homem atirado num casebre daqueles, pregando para os que
passavam... Como ouviria aquela gente a voz do louco, falando de coisas
estranhas e aterradoras? (p. 37)
Valério é caracterizado pelo narrador por “pobre ferido”, “pobre homem” e “louco”.
Os adjetivos depreciativos “pobre”, que é reiterado duas vezes, e “louco” acentuam a
caracterização da penúria que ele vivia. Pode-se pensar ainda nos passantes na frente na casa
de Valério que o consideram louco, por “falar coisas estranhas e aterradoras”. Talvez a vida dos
moradores do Salgueiro não mudava, porque eles não ouviam as palavras de Valério, pois
achavam o que ele dizia uma loucura. Eles preferiam ir vivendo, aceitando conformados o
destino que lhes foi imposto, sem tentar mudar.
55
palpitava dentre de si tinha a violência de um apelo de quem deseja viver e
não encontra senão silêncio e treva em torno. (p. 37-38)
Nessa citação, percebe-se uma descrição psicológica pelo narrador, a medida em que
ele tenta descrever os pensamentos desordenados de Geraldo, utilizando a técnica do monólogo
interior. Ao descrever a voz rouca de Valério, talvez o narrador tentou expressar as várias vezes
em que ele entoou a sua pregação, provavelmente, até insistentemente e de forma melancólica.
Chama-nos à atenção o detalhe do “casebre deserto”, isto é, sua pregação não tinha público,
pois ele não era ouvido pelas pessoas que passavam. O curioso é que Geraldo não expressou
em nenhum momento vontade de comentar essas novas sensações que ele passa a sentir para
outra pessoa, nem ao menos para Arlete.
56
Após esse primeiro contato com a existência de Deus através Valério, a outra
personagem que vai falar da existência divina é “Vicente, o aleijado”, outra figura vítima do
destino miserável predestinado aos moradores do morro do Salgueiro. O som de sua flauta
embalava os acontecimentos no morro, sendo esse um constante apelo sensorial à audição
durante a narrativa. A primeira aparição desse personagem ocorreu no barracão da família do
protagonista e a personagem Rosa foi quem se lembrou da situação de Vicente:
Mais forte, desceu o som de uma flauta. Era o aleijado Vicente, exercitando- se
na diversão predileta. Rosa lembrou-se da sua figura pequena, das muletas
encostadas a um canto, os cabelos sujos caindo pelos ombros. Tinha fama de
santo. Ninguém falava em virtude sem trazer à baila sua figura melancólica.
Vivia trancado em casa, envergonhado e humilde, afinando a flauta no
silêncio das longas tardes. Rosa pensou, com um leve estremecimento, no seu
olhar gelado e enigmático, seguindo os passantes da janela. (p. 11-12)
57
o Deus de Vicente não trouxe a sensação de liberdade almejada por Geraldo, pois essa figura
divina era punidora, vingativa e lhe causava medo, como o Deus do Velho Testamento.
Mesmo vivendo recluso em seu barracão, Vicente não deixava de estar informado sobre
os acontecimentos do morro, inclusive sobre o desaparecimento de Zé Gabriel. Ao perguntar a
Geraldo sobre a fuga de Zé Gabriel, ele repetiu um boato que ouviu sobre o operário ter feito
coisa feia. Além disso, Vicente chegou a duvidar que Zé Gabriel e Veva acreditavam em Deus.
A descrença em Deus também acaba sendo a justificativa de Vicente para os acontecimentos
ruins na vida de Zé Gabriel, em específico no episódio da confusão entre ele e Rosa. Ao afirmar
que ele mesmo era um homem de bem: “— Eu, por exemplo. Sou honesto, pobre, sozinho, mas
homem de bem, amigo de Deus” (p. 140), talvez Vicente quisesse insinuar que Zé Gabriel era
o seu contrário, um homem mal: “— Ouvi dizer que foi por causa de uma coisa feia...” (p.
140).
Um trecho que demonstra a incompreensão das pessoas do morro, no que diz respeito
às opiniões de Vicente sobre religiosidade, é quando ele diz que os moradores não gostam de
ouvir pessoas de bem como ele: “O aleijado, muito debruçado para fora, balançada a cabeça:
“— Não gostam de ouvir os homens de bem... Cambada de orgulhosos ouviu? Orgulho, orgulho
só!” (p. 141).
Outro momento em que ocorre essa reafirmação da necessidade da crença em Deus é
quando Geraldo segue Rosa e acaba vendo-a entrando na casa de Timóteo, que é descrito pelo
narrador como um “negro da toca azul” (p. 171). Rosa e Geraldo acabam discutindo e as falas
exaltadas acabam chamando a atenção de Vicente, que passava próximo. Por isso, ele decide
entrar onde os três estavam. Então, Vicente adentra o barracão, atraído pelos gritos da discussão
entre Geraldo e Rosa: “– Silêncio! Para que esta briga? Lá de fora a gente está ouvindo os
gritos” (p. 171). Ao saber que Timóteo está doente e não consegue andar, Vicente o aconselha
a procurar Deus: “– Devia procurar Deus – murmurou em tom diferente. – Pois é quem ajuda a
todos” (p. 172).
Porém, a forma de abordagem do tema por Valério é bem distinta da maneira de
Vicente. Valério é mais sutil, procura convencer Geraldo, que mesmo dentre as dificuldades, se
ele acreditar em Deus, a divindade poderá fazer algo para mudar a vida de cada um deles. Desse
modo, o senhor acidentado acabou trazendo uma possibilidade de mudança para a vida de
Geraldo e talvez até de outras pessoas. Enquanto Vicente apresentou sua crença em Deus como
algo particular e que não poderia ser compartilhado com os outros. Vicente não procurava cativar
os outros para que tenham fé como ele, o que ele acabava fazendo era uma espécie de deboche
daqueles que não acreditavam em Deus. Sobre a diferença entre as crenças de Valério e Vicente,
58
Bueno ressalta que:
No trecho citado, percebe-se que a fé a qual trará diferença na vida de Geraldo não é
aquela institucionalizada em igrejas, com seus santos e rezas repetidas, é tanto que “não há
igrejas e nem padres no morro do Salgueiro” (BUENO, 2006, p. 282). Não houve uma
catequização de Geraldo, pois “para Lúcio Cardoso a fé não pode ser libertadora num universo
de opressão e de convencionalismo – essa, afinal, é a falsa fé de Vicente” (BUENO, 2006, p.
282).
Essa crítica a alguns dogmas e concepções da igreja católica também foi abordada em
Crônica da casa assassinada, romance a ser analisado no capítulo seguinte desta tese, pela
personagem Ana em suas confissões direcionadas ao Padre Justino. Em suas confissões, Ana
questionou por várias vezes alguns posicionamentos e práticas da igreja.
Até aqui foram expostos os fatores que foram responsáveis pela mudança no destino de
Geraldo. Na próxima parte, serão expostas as mudanças que esses fatores provocaram no
comportamento do protagonista do romance e como ele se percebeu capaz de guiar seu próprio
destino a partir da sua aproximação a Deus. Em seguida, o ponto de vista em terceira pessoa do
narrador será analisado para definir as aproximações e o distanciamento do romance da estética
Naturalista. Os traços desta estética aproximam Salgueiro do romance social de 1930 e a ênfase
nos pensamentos de Geraldo, a partir da terceira parte do romance, estabelece um vínculo com
o romance intimista, que acabou sendo a principal característica na produção romanesca de
Lúcio Cardoso desde A luz no subsolo em diante.
Ficaram silenciosos por um momento. Rosa deixou escapar uma risada. Então
José Gabriel avançou para ele e, agitando o punho, esbravejou:
− Quando é que este traste deixará de ser idiota? Será que pensa ser escravo
dessa gente?
Aquele ‘idiota’ fez Geraldo estremecer ligeiramente. Fixou o olhar no pai
60
que se debatia, caminhando até a porta.
− Olha, tu vai trabalhar amanhã... Seu Valério deve arranjar qualquer coisa...
Sabe onde ele mora?
− Sei.
Rosa deu-lhe as costas e puxou o amante pelo braço:
− Escuta, Zé, está na hora da gente ir...
Fez um movimento como quem ia falar alguma coisa com o filho. Depois
ergueu os ombros e caminhou para a porta, arrastado pela negra. (p. 19)
Observa-se nesse trecho que é Rosa quem induz Zé Gabriel a se afastar de seu filho.
Talvez até ele tente uma aproximação: “Fez um movimento como quem ia falar alguma coisa
com o filho”, mas sai de cena “arrastado pela negra”.
Mais à frente na narrativa, especificamente na parte 3 – depois do desaparecimento de
Zé Gabriel e após de uma briga séria com Rosa – ela ainda tem o mesmo tratamento para com
Geraldo, e sua raiva aumenta quando o rapaz a provoca ao dizer que se seu pai não voltará, que
ele estava com outra mulher e não tem mais interesse em Rosa:
− Ele não voltará mais – repetiu Geraldo, sombrio. – Quando aparecer, será de
outra... Até já sei quem ela é.
Rosa se calara. [...]
− Também ele não gosta de ti – respondeu Rosa. – Nunca se importou... Seu
Timóteo, ele dava neste cão porque eu mandava... Apanhava todo dia, só
vendo.
− Coisa ruim... – cuspiu Geraldo. (p. 170-171)
Ao ser ofendida pela fala de Geraldo, Rosa reage reafirmando que Zé Gabriel não gosta
do filho e nunca se importou com ele. Ela volta a chamar Geraldo de um animal, desta vez
chama-o de “cão” e ele reage numa atitude de nojo ao falar e cuspir em seguida. No trecho citado
acima, também há uma revelação de Rosa, quando ela diz que Zé Gabriel batia em Geraldo
porque ela mandava, o que reforça o ódio que ela tinha por ele e o poder de manipulação que
ela tinha sobre seu amante.
Mesmo sendo deixado de lado pela família, Geraldo não se importava muito pela
ignorância que sofria. Inicialmente, ele apresentou esse comportamento diante de sua família,
mas será observado que à medida que ele vai superando o determinismo sua concepção sobre
ela vai se modificando.
Geraldo é descrito fisicamente como
61
e as calças demasiadamente curtas não chegavam aos grandes pés, que
enlameados, pareciam maiores ainda. (p. 18)
Geraldo chegara ao barracão dos avós com cinco anos, junto de sua mãe Eulália, a
primeira amante de José Gabriel:
Nesse trecho, vemos que Zé Gabriel tinha planos para o futuro de seu filho, pois sonhava
em lhe oferecer uma boa educação, mas parece que com o início do relacionamento com Rosa,
ele se esquece desse desejo. Esse é mais um elemento que reforça a ideia que ela é o elemento
desagregador da família: “Pois bem que ele [Seu Manuel] percebia onde iria parar tudo aquilo.
Em breve estariam todos dispersos, separados pela força daquela mulher estranha” (p. 22).
A relação entre José Gabriel e Geraldo só vai se reatar após uma grande briga entre o
operário e Rosa, após ela retornar ao barracão da família, depois de ter ido à casa de Chico
Padre. Rosa, por ter sido agredida por Zé Gabriel, acaba fugindo de casa e Geraldo acaba
sugerindo o mesmo para seu pai para que a polícia não o pegue. O rapaz o aconselha, pois ele
ouviu toda a conversa que teve com Rosa sobre o dinheiro ilícito que Zé Gabriel havia roubado:
62
previsor, que o obrigou a procurar as roupas, sem vontade, quase
inconsciente. [...]
[...]
E José Gabriel fitou-o como se fosse a primeira vez em sua vida que o fizesse.
Geraldo sentiu que pela primeira vez ele era o “filho”.
− Adeus. (p. 122-124)
Vê-se nessa passagem o único momento da narrativa em que há cumplicidade entre pai
e filho, pois “Geraldo andava beirando os vinte anos” (p. 15) e não tinha uma boa relação com
seu pai, e no momento em que iriam se aproximar, o destino ou talvez o determinismo os
separa:
[...] Não podia, pois, ter amizade a um pai que mal lhe dirigia a palavra,
conservando-o apenas como um objeto de casa, familiar e desconhecido.
Não era difícil adivinhar para que ele o procurava às vezes: as surras que lhe
dera estavam bem gravadas no seu espírito, como um selo que o tempo, em
vez de consumir, reavivava (p. 127).
[Veva] Foi saindo, lentamente, sem olhar para ninguém. Marta seguiu-a, mas
seu olhar encontrou o de Geraldo. Durante um momento, sentiu travado em si
um áspero combate. Falaria com ele? Afinal, por que o maltratava assim? Mas
também... por que se importava? Que valia para ela o sobrinho? Por que pensar
ainda nele? ‘Roubará’ — pensou. ‘Roubará se tiver necessidade disso.’ E
passou, sem lhe dirigir nenhuma palavra. Ganharam a estrada, sob a chuva
gelada. (p. 158-159)
Se fossem familiares mais próximos, a saída seria um momento de grande emoção com
lágrimas e abraços, porém o desejo de Marta é sair o mais rápido possível daquele morro,
enquanto Geraldo só pensava que ficaria sozinho e que estava sendo abandonado pela sua
família. Da mesma forma que Veva e Marta não esboçaram nenhuma reação, Geraldo também
não se expressou. Talvez elas até aguardassem que ele reagisse, mas lembremos que elas não o
criaram dessa forma, expressando carinho e sentimentalismo, então a espera de Marta era em
vão. A relação entre eles sempre foi muito adversa, mesmo assim, quando Geraldo se vê sem
nenhum membro da sua família por perto e angustiado com as conversas de Vicente sobre Deus,
ele acaba pouco tempo depois pensando em sua tia Marta:
63
Quis se esquecer daquilo e procurou imaginar onde estaria Marta naquele
instante. Muitas vezes ouvira dizer: caiu na boca do mundo... Agora, ele tinha a
impressão de que essa boca escura se abrira e ela para sempre desaparecera no
vazio da cidade grande e misteriosa. (p.177)
Após a saída de sua tia Marta e de sua avó, a única pessoa que ainda prendia Geraldo
no morro era seu pai. Saber como e onde ele estava era a sua maior obsessão: “Esquecia pouco
a pouco a partida de Marta e da avó. Sentia-se preso ao morro por uma ideia mais forte do que
o desânimo: o pai” (p. 163).
Na parte 2, percebe-se uma alteração nos pensamentos de Geraldo com relação a sua
família, quando ele percebe que não verá nunca mais seu avô, que havia morrido a esta altura
da narrativa, e que também ele nunca mais iria rever sua tia Marta, que fugira de casa no final
da primeira parte do romance:
E logo após era do avô que se lembrava, no dia da sua partida, cobrindo os
olhos com as mãos, por causa do sol forte. Achava impossível que o velho
tivesse morrido, que nunca mais o visse encostado no seu canto.
[...] De novo o seu espírito se enchia de imagens confusas ... a tia ... o avô
estendido num caixão de madeira preta ... Ambos tinham ido embora. Nunca
mais os veria de volta. Ele, que nunca pensara naquelas pessoas, sentia assim
subitamente uma angústia, quase uma necessidade de revê-los. Em seus
lugares restava agora aquela mulher que o maltratava, que não se lembrava
dele senão para ameaçar. Ouvia os seus palavrões, o "idiota!" gritado como
um escárnio na meia da estrada. (p.97-98)
Após a morte de Seu Manuel, Geraldo reconsidera os seus sentimentos pelo seu avô e
pela sua tia, pois Marta havia deixado o barracão da família após se envolver com Chico Padre.
Esses acontecimentos acabam por promover mudanças no pensamento de Geraldo com relação
a sua família e esse é mais um fato que contribuiu para a paulatina superação do personagem
ao determinismo, que manipulava o destino da maioria dos demais personagens da história.
Não viu as suas personagens por fora, não imaginou as suas sensações
segundo as suas próprias necessidades de intelectual e de homem habituado a
um certo nível de conforto. Não pôs nelas o desespero que sentiria se se
encontrasse nas mesmas condições. Sentiu-as por dentro, compreendeu as
suas almas balbuciantes as suas necessidades rudimentares. E por isso as fez
sem amargura, e o seu livro, porejante de simpatia humana, não tem entretanto
uma só declamação, nem o menor sentimentalismo. O que domina em toda essa
gente é o seu desemparo moral ainda maior do que psíquico. (PEREIRA,
1935, p. 6, col.5)
A mudança nos sentimentos de Geraldo pelo pai é um pouco lenta, porque ele chega a
confessar que gostava do pai, mas não muito, pois ele lembrava das surras que levou dele. Então
a principal razão dele ainda estar ali no morro era a vontade que ele tinha de ver Rosa se dar
mal. Geraldo apoiava o pai naquela situação não por gostar dele, mas pelo ódio que alimentava
por Rosa, o mesmo ódio que seus familiares nutriaram por ela: “Sem dúvida, era um ódio
trazido do mais fundo de si mesmo, um ódio que herdara da família, mas profundo, grande e
indomável” (p. 128). Na verdade, ele queria fazer o mal para Rosa e não o bem para o seu pai:
“Sentia-se levado para o combate e sentia que o inimigo era aquela negra de espírito rebelde e
atrevido” (p. 128). O ódio era tanto que quando Geraldo descobriu onde seu pai estava
escondido, por intermédio de Vicente, ele cogitou fugir do Salgueiro com Zé Gabriel para se
vingar de Rosa: “Ah! com se vingaria ele de Rosa, fugindo do Salgueiro com o pai! Era uma
ideia instantânea que lhe ocorrera, esta, de abandonar o morro para sempre... Para sempre, e na
companhia do pai, a quem ajudaria a viver na cidade, lá embaixo” (p. 179).
De Veva, sua avó, ele só sentia a sua presença como uma sombra que passava em
silêncio, “sem força nem movimento para deter a marcha dos acontecimentos” (p. 128). Após
a saída de Seu Manuel para o hospital, o destino dos moradores do barracão tornou-se incerto.
Marta não teve certeza se Zé Gabriel ainda iria pagar o aluguel do barracão. Geraldo não se
importava com sua avó, porque ela também não demonstrava nenhum carinho por ele. É tanto
que quando Seu Manuel vai para o hospital, por ter piorado da tuberculose, Veva especula o
pior para o seu neto numa conversa com Marta: roubaria, seria um homem mau e iria para a
prisão.
Como Geraldo perdeu a mãe por volta dos cinco anos, o esperado era que sua avó ou
sua tia assumisse a função materna, mas isso não ocorreu. Ao deixar o garoto largado, não
deram educação para ele e dessa forma pareciam induzi-lo a um destino trágico. Assim, Geraldo
foi criado como “cachorro solto” e pouco ou quase nada sabemos da infância dele, pois o
narrador focaliza a vida do filho de Zé Gabriel quando ele tinha quase 20 anos.
Não foi a idade que fez Geraldo mudar, pois ele continuava “perto dos vinte anos”, como
66
no início da narrativa. Foram os acontecimentos que o fizeram amadurecer e não a passagem
do tempo, porque “antes, não se importava com Marta nem tampouco com o pai.”; muito menos
pela avó, “esta não o interessava absolutamente” (p. 128).
Geraldo, por estar morando com Vicente, ficou mais próximo desse Deus que ele cultua.
Vê-se a presença da religiosidade na vida de Vicente também através da presença do oratório
em sua casa: “Vicente dirigiu seus passos para uma caixa fechada junto ao oratório e retirou
dela umas costuras antigas” (p. 175).
O modo como Vicente rezava foi analisado por Geraldo. Ele não sentia segurança nesse
ato de Vicente: “Era sempre a mesma coisa, como uma reza decorada, onde não estremecia a
mínima emoção, nem o mais leve sentido de verdade” (p.176). A visão de Deus que ele
apresentava para Geraldo era daquele “[...] Deus estranho e vingador assumia para o seu pobre
coração a figura terrível de um juiz que não perdoa” (p. 176). Daquele que causa mais medo
do que conforto: “Era a única coisa que conseguia sentir depois daquilo tudo – medo, e um
medo que vinha do próprio aleijado [...]” (p. 176).
Nota-se um tom de crítica do narrador, ao descrever o modo como Vicente orava com
uma “reza decorada, onde não estremecia a mínima emoção” e, além disso, a visão do Deus
punidor que Vicente apresenta a Geraldo. Na medida que o narrador critica, ele também
apresenta que é possível ter uma outra visão sobre Deus: aquele traz a divina Providência, o
Deus apresentado por Valério.
Vicente ao ser questionado por Geraldo sobre onde estava Zé Gabriel ficava mudando
de assunto. Diante desse comportamento de Vicente, Geraldo pensa: “Por que se divertia ele
daquele modo com seus sentimentos? Ah! Como era miserável este homem que tanto falava
em Deus!” (p. 177). Se Vicente era um homem que falava em Deus não deveria se divertir
com os sentimentos de Geraldo. Talvez o narrador esteja através dos pensamentos de Geraldo
fazendo uma crítica a certos tipos de crenças que pregam o respeito ao próximo, mas que
hipocritamente não põem em prática os preceitos que tanto pregam.
Para ilustrar que o Deus caracterizado por Vicente era aquele punidor, ao iniciar a
conversa sobre onde está Zé Gabriel ele diz:
67
− Deus não tem perdão para quem jura falso...
Geraldo procurou sorrir e apertou as mãos contra o peito.
− Olha, Vicente, eu não seria capaz de... Então, curvou-se bruscamente e
sussurrou:
− Teu pai está bem perto daqui. [...]
− Jura! Jura! – exclamou. [...]
− Juro – respondeu ele afinal –, juro por Deus.
Então Geraldo abandonou-o. Aquele “por Deus” soara
lugubremente no casebre miserável. [...]
− Ah, Vicente! Se fosse mentira? (CARDOSO, 2007, p. 177)
O elemento religioso aparece no gesto de Vicente ao fazer o sinal da cruz com os dedos.
Nessa fala de Vicente, reafirmar-se a visão do Deus punidor que castiga quando se cometem
erros. Além do Deus punidor, Vicente apresenta um Deus revelador a Geraldo, quando ele
pergunta a Vicente como ele descobriu onde Zé Gabriel estava escondido. Vicente afirma que
foram os santos de seu oratório que o ajudaram a descobrir onde Zé Gabriel estava. Diante dessa
afirmação, Geraldo acabou sentido um início de rancor “ante a onipotência daqueles santos que
de tudo sabiam” (p. 179).
Geraldo ao questionar Vicente sobre quem lhe disse a verdade, pergunta se foi Deus,
mas Vicente nega que foi a divindade e afirma que foi ele mesmo que falou a verdade. Logo
em seguida, Geraldo pergunta se Vicente conhece Deus, pois, provavelmente, tenha a ideia de
Deus como um ser materializado e quando Vicente nega conhecê-lo, mas sabe que ele existe, o
que causa ainda mais confusão na mente do jovem:
Em seguida, Vicente muda de estratégia, passa a indagar Geraldo se ele sabia como
Deus fez o mundo. Essa pergunta do aleijado provoca um turbilhão de pensamentos em Geraldo:
Teve medo de gritar. Por que lhe vinha aquilo ao peito, subindo, subindo
sempre, como se o sangue lhe fervesse no peito? Pavor? Angústia? Como
aquele homem o torturava? Que lhe importava Deus? Não tinha vivido bem
68
até esse instante? Mas um grito despertou a sua consciência e tudo pareceu
varrido por um vento mau: vivido bem? Oh! E aquela coisa martelava na sua
cabeça, pausadamente, como batidas de um grande relógio no silêncio de um
quarto fechado! Deus... vivido bem? Moveu a cabeça, hesitante. [...]
(CARDOSO, 2007, p. 191)
Várias questões vieram à mente de Geraldo. Ele chegou a se questionar se até então, ele,
que não conhecia Deus, achava que vivia bem, qual diferença faria conhecê-lo agora. Mas em
seguida, logo após ouvir um grito, ele passa a pensar diferente, e começa a se questionar se
realmente ele havia “vivido bem” até aquele momento. Esse grito, provavelmente, seria a
representação da voz divina que passava a interferir nos pensamentos de Geraldo, martelando
em sua cabeça “como batidas de um grande relógio no silêncio de um quarto fechado!” (p.
191).
A resposta para a pergunta que o aleijado fizera para Geraldo: “– Sabe como Deus fez o
mundo?”, o próprio aleijado responde:
− Deus fez primeiro as cobras... e o vento... foi assim que ele fez primeiro.
Então, tudo se confundiu como num sonho. O martelo voltou a vibrar na sua
cabeça, encostou-se à parede, temendo cair. Reabriu, porém, os olhos e
perguntou:
− Por que... o vento? Por que as cobras? [...]
− Tu não compreende. O vento há de matar os homens todos. E as cobras hão
de envenenar o sangue do mundo. (p. 192)
Em alguns momentos, Geraldo pensava estar sendo ludibriado por Vicente, que apenas
zombava dele através de uma brincadeira maldosa. A ideia de ludíbrio foi crescendo nos
pensamentos do filho de José Gabriel e de uma sensação vaga, passou para uma sensação real,
até o ludíbrio vencer quando Vicente disse que Deus criou primeiro as cobras e o vento.
Geraldo percebe que Vicente queria apenas apavorá-lo, pois o jovem tinha pleno
conhecimento que a divindade criou, no princípio, o céu e o dia.
Depois de abordar a questão da criação, Vicente conduz a conversa sobre a onipresença
e a onisciência de Deus:
69
peito. Apenas, ante o sangue que corria pelo pedestal, teve asco como diante
de uma coisa nojenta.
− É por isso que morrem os homens que pecam... Os anjos espiam para
contar... Vem depois o vento... e sopra, e sopra. Tudo fica gelado, e Deus,
sozinho, passeia de novo pelo mundo. Ele não nos quer, não nos ama, porque
somos anjos e fazemos porcarias. O mundo dele é branco e limpo... O nosso é
o Salgueiro. (p. 192-193)
Nesse trecho, Vicente ainda menciona que o pecado é a causa de Deus matar o homem
e que o mundo da divindade “é branco e limpo”. Por suposição e extensão, ao dizer “O nosso é
o Salgueiro”, Vicente, provavelmente, estava querendo dizer que o mundo deles seria por
comparação negro e sujo, como muitas vezes o narrador chega a afirmar.
O narrador acaba trazendo uma reflexão sobre Deus através do personagem Geraldo que
até um determinado ponto da narrativa desconhecia o ente divino e por isso sente “um rancor
concentrado por ignorá-lo tanto tempo” (p. 189). Geraldo se questiona: “Por que Deus não era
para ele também? Por que não o escolhera como a outros que o conheciam e falavam dele sem
cerimônia?” (p. 189) Geraldo chega a se considerar uma “pobre criatura” quando percebe que
há uma grande intimidade entre Vicente e Deus, quando Vicente “fala nele como se
conversasse de noite com ele [Deus]” (p. 193).
Enquanto as palavras de Vicente causavam medo em Geraldo, a visão de Valério sobre
Deus, apresentadas ainda na parte 1 do romance, foram fundamentais para a mudança no
comportamento do rapaz. Elas foram tão importantes que ao serem retomadas no final do
romance, quando o filho de Zé Gabriel e Eulália, finalmente consegue se desprender das
amarras do morro do Salgueiro:
De súbito, cerra os olhos e abaixa a cabeça, vencido pela emoção que sobre o
seu peito. Depois, prossegue lentamente a descida, ouvindo ainda o grito das
mulheres que estendem roupas no caminho. O morro desaparece numa curva
brusca. Marcha sem hesitação, ganhando a calçada larga, escutando ruídos de
bondes e gritos de vendedores. Mas, de repente, ele se detém e sente a alma
invadida pela alegria. Diante daquelas faces desconhecidas, daquelas janelas
abertas e daqueles gritos diferentes, compreende que Deus havia, afinal,
descido ao seu coração. Não Deus do Salgueiro, mas um outro Deus. (p. 247)
70
sua chegada na cidade representada pela “calçada larga, escutando ruídos de bondes e gritos de
vendedores”, são na verdade uma elevação na sua vida. E isso ocorre, porque um Deus diferente
daquele do Salgueiro desce ao seu coração, provocando alegria. Essa sobreposição da voz de
Vicente pela de Valério, foi percebida por Lúcia Miguel-Pereira:
A lembrança de Valério, um infeliz que também lhe falara em Deus, mas com
amor, aplaca a inquietação despertada nele pelas palavras de Vicente. Sente
afinal, a presença divina velando pela sua miséria. (PEREIRA, 1935,
p. 6, col. 3)
Traçado o percurso do personagem Geraldo, conclui-se que ele é o único que consegue
superar totalmente o que o meio, no caso o morro, determinava no destino de seus moradores.
Desse modo, o desfecho da história dos personagens mostra que a descida do morro do
Salgueiro por Geraldo, na verdade, é uma ascendência: “O livro termina nessa descida que é
uma ascensão, que dá um sentido a toda aquela desgraça.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 3),
enquanto que os representantes das duas gerações anteriores a Geraldo, seu pai e seu avô foram
vencidos pelo determinismo provocado pelo morro: “O avô e pai foram tragados pelo morro,
mas o filho se libertou do sortilégio” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 3).
Sendo assim, nota-se que apenas Geraldo, agiu de forma contrária aos personagens de
Émile Zola que seguiam o Determinismo de Taine, à medida que ele consegue superar essa
teoria. Essa utilização da teoria determinista permaneceu nos romances da década de 1930, no
período do modernismo brasileiro, e por isso eram chamados de Neorrealistas ou
neonaturalistas.
Como foi exposto, na parte 1.2 desta tese, a presença desses elementos da narrativa
naturalista oitocentista ainda estiveram presente no romance de 1930, chamado também de
regional/ social, pois mostrou as personagens vítimas do espaço em que viviam, como foi o
caso dos romances de ambientação no nordeste brasileiro, em que os personagens eram vítimas
da seca. No caso de Salgueiro eram as forças do morro que pareciam manipular a vida da maioria
dos personagens.
Apesar de se aproximar do Naturalismo, isso não queria dizer que havia uma
proximidade de Salgueiro com o realismo, como afirmou, Pereira (1935):
71
Salgueiro é um romance real, mas não é um romance realista. Com o seu raro
temperamento de narrador e de animador, Lúcio Cardoso não é em absoluto
um escravo do fato, do acontecido. Os seus livros não tem nada de
fotográficos. E nem poderiam ter, porque ele é essencialmente um criador –
criador como o são os poetas – capaz de plasmar a sua própria realidade.
Criação subjetiva, mas execução objetiva. Dentro do plano em que as ideou
respeita a liberdade das suas personagens. Dentro do ambiente do livro, elas
são inteiramente verossímeis.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 6)
Massaud Moisés (2004) contraria o que disse Pereira, ao afirmar que em Salgueiro o
“realismo sem tese, ainda não oferece o melhor aspecto do autor por assemelhar-se a outros
ficcionistas da época” (2004, p. 231). Mas preferimos concordar com a opinião de Pereira, pois
os traços naturalistas são bastante fortes no romance.
Lúcia Miguel Pereira chega a comparar as personagens de Salgueiro a personagens de
Dostoievski: “Todas as criaturas se movem como sob impulso de forças superiores à sua
vontade ─ força do instinto, em Rosa, força do ódio de Martha, força da submissão em
Genoveva. Nisso o jovem escritor brasileiro se aproxima do grande russo Dostoievski” (1935,
p. 6, col. 4). São justamente por meio dessas “forças superiores”, de que fala Pereira, que atuam
o determinismo na maioria das personagens do romance de Cardoso.
O período em que o Seu Manuel fica no hospital é outro momento da narrativa em que
Pereira compara a Dostoievski: “O mero aspecto da sala de hospital enche Genoveva e Martha
de pasmo e acanhamento. Até nesse ambiente de dor, as duas destoam, desajeitadas e
ligeiramente ridículas. (Outra nota a Dostoievski, esse pobre e comovente ridículo dos
humildes.)” (PEREIRA, 1935, p. 6, col.5-6). Sobre essa última caracterização do escritor russo
“esse pobre e comovente ridículo dos humildes”, que aproxima Salgueiro das personagens de
Dostoiévski, era também um traço comum nos romances brasileiros de 1930, nos quais havia
um protagonismo dos personagens pobres, mostrados como vítimas das injustiças sociais. Por
isso na produção dessa época “os escritores — mas não só eles, os leitores também —
mergulharam na vida brasileira em toda sua amplitude, seja geográfica, seja social. Todas as
classes interessavam, todos os lugares, todas as raças, todos os sexos” (BUENO, 2006, 2014).
Eduardo de Assis Duarte, em Jorge Amado: romance em tempo de utopia (1996), ao
tratar do personagem Balduíno, do romance Jubiabá (1935), caracterizado como proletário e o
primeiro herói negro da literatura brasileira, acaba ressaltando uma característica do percurso
do personagem de Jorge Amado que se aproxima ao de Geraldo, como foi observado por Bueno
(2006). Ambos os personagens através de seus atos “tocam para frente” os seus respectivos
destinos. Essa característica dos dois personagens é contraposta a de Ricardo (Moleque Ricardo
72
(1935), de José Lins do Rego), porque ele acaba “regredindo ao invés de tocar para a frente o
seu destino” (DUARTE, 1996, p. 108)
O significativo é notar que esse herói negro anterior a Balduíno não foi criado
por um autor de esquerda, entusiasta do romance proletário, e sim por um
autor católico, Lúcio Cardoso, e justamente no romance em que se vê com
clareza seu ingresso na fileira dos ditos intimistas. Trata-se de Geraldo,
protagonista de Salgueiro, publicado um pouco antes de O moleque Ricardo,
que foi posto a venda no início do segundo semestre de 1935, e de Jubiabá,
que saiu apenas no final do ano. (BUENO, 2006, p. 275, grifos do autor)
E basta notar a diversidade das forças que atuam sobre esses pobres seres para
se ver que Salgueiro é um livro complexo, onde a presença do mistério, do
sobrenatural, introduz uma dimensão a mais. Uma dimensão que não estamos
habituados a ver nos romances brasileiros. Apanha o homem na sua realidade
completa, e não apenas na sua realidade visível. Há uma evasão para cima,
para o alto, aberta aqueles que, como Geraldo, não se contentam em comer e
amar, mas tentam lutar contra a fatalidade que os domina. Esses são, aliás, os
únicos desambientados. Os outros, bem ou mal, vão carregando o seu destino.
Sua vida é horrível, mas estão atolados nela até a alma. (PEREIRA, 1935, p.
6, col. 4-5)
Mesmo tendo a força do espaço determinante no destino dos personagens, aqueles que
creem na figura divina conseguem superar essa força, aqueles que não demonstram crer são
vítimas dos cerceios do morro: “O morro, com a sua promiscuidade, com a sua imundície,
domina a todos e limita o seu horizonte.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 5)
73
Outro diferencial de Salgueiro com relação a outros romances, conhecidos como
romance de 1930, é que os personagens possuem uma vida interior bem desenvolvida,
diferentemente, por exemplo, do personagem Antônio Balduíno, do romance Jubiabá, de Jorge
Amado:
Se o proletário de Jorge Amado não tem vida interior, sua psicologia se
desenvolvendo de modo muito implícito, o proletário de Lúcio Cardoso se
debate em uma movimentada vida interior que tem a tendência de eclipsar as
causas sociais de sua pobreza. (BUENO, 2006, p. 281)
Como bem observou Adelto Gonçalves (2009), Bueno considera proletário não apenas
o trabalhador do lúmpen marxista, mas também “o mendigo, o marginalizado, ou seja, o pobre
em geral”. Por esse motivo, Geraldo estaria incluído como protagonista de um romance
proletário, pois se fosse levada em consideração apenas a noção marxista de proletário ele não
estaria incluso, pois ele não trabalhava. No caso de Geraldo há um diferencial, pois as causas
de ele ser daquela maneira não são abordadas apenas de forma exterior, apenas como reflexo
do meio social em que vive, daí a sua superação ao determinismo, pois sua vida interior
prevalece, o que o torna um personagem mais profundo.
A presença do elemento divino atua como fator fundamental para a “salvação da alma”
de Geraldo, sendo esse um aspecto que distancia o romance do Naturalismo. Desse modo,
percebe-se que, fazendo Geraldo encontrar um novo caminho fora do morro para a sua vida,
caminho esse indicado pela presença de Deus, o romance acaba por “romper as amarras” da
teoria científica Determinista.
Assim constata-se o distanciamento do naturalismo e a aproximação de aspectos das
estéticas literárias romântica e simbolista, que foi uma retomada empreendida pelo romance
intimista do século XX, à medida que toca nas especificidades do indivíduo, ao representar as
suas reflexões. Essa aproximação se justificaria pela presença desse aspecto mais místico e
religioso no que diz respeito à alteração do destino do personagem. Desse modo, tem-se uma
confluência de estéticas, representada pela ambivalência entre o coletivo e o individual, o que
permite afirmar que Salgueiro é uma obra de transição na produção literária de Lúcio Cardoso,
já que nas suas obras posteriores, especificamente a partir de A luz no subsolo (1936),
percebe-se o predomínio da narrativa intimista, estilo que se tornou traço peculiar na obra
ficcional do autor.
74
Capítulo 3 – Crônica da casa assassinada: o ápice do intimismo na narrativa romanesca
de Lúcio Cardoso
A obra Crônica da casa assassinada não é dividida em três partes, como é comum
encontrarmos nos demais romances de Lúcio Cardoso. Ela é estruturada em diversos gêneros:
diários, cartas, narrativas, confissões, depoimentos, livro de memórias e pós-escritos que são
entremeados durante o romance. Os personagens, que em sua maioria também são narradores,
realizam durante o desenrolar da trama uma espécie de desconstrução não intencional do
discurso um dos outros, pois cada um deles apresenta a sua perspectiva sobre o mesmo fato: a
decadência da família Meneses que ocorreu aproximadamente na primeira metade do século
XX. O que se sabe sobre Demétrio e Alberto é o que os outros dizem sobre eles, o máximo que
se pode encontrar é a citação em discurso direto de suas falas, mas sempre dentro de um texto
de autoria de outro personagem, pois no romance não há nenhum capítulo escrito por eles.
Esse declínio foi causado tanto por uma má gestão da propriedade rural da família, que
arruinou as suas finanças e resultou na destruição física das estruturas da chácara, conhecida
como “Chácara dos Meneses”, quanto pela degradação moral que tem como ponto crucial o
casamento de Valdo Meneses com Nina, uma meretriz do Rio de Janeiro.
Esse processo de decadência é representado nos discursos de alguns
personagens/narradores por meio das descrições da Chácara em ruínas, em contraposição ao
discurso saudosista dos tempos áureos que vai surgindo de vez em quando nas lembranças de
alguns deles, como Valdo, um dos irmãos Meneses, e Betty, governanta da casa desde a época
em que Malvina Meneses, a matriarca da família, ainda era viva.
A Chácara dos Meneses se localizava em Vila Velha, cidade ficcional do interior de
Minas Gerais. Os Meneses eram uma família tradicional da cidade e boa parte dos comentários
de seus moradores tinham eles como tema principal. Quando chegou a notícia de que Valdo
havia se casado com uma mulher no Rio de Janeiro, os moradores da cidade ficaram indagando
quem seria essa mulher misteriosa. A notícia da chegada de Nina à Vila Velha também causou
muita expectativa na cidade, muitas pessoas ficaram na estação de trem esperando-a chegar,
porém Nina adiou a sua chegada e no dia em que ela desembarcou na estação não havia ninguém
para recebê-la. Ao chegar à Chácara, Nina chamou a atenção de todos pela sua beleza, tanto
dos moradores da propriedade, quanto do farmacêutico e do médico que prestavam serviços aos
Meneses.
75
André, Nina, Demétrio (irmão mais velho), Valdo Meneses (irmão do meio), Aurélio
dos Santos (o farmacêutico), Betty (a governanta), Dr. Villaça (o médico), Ana (esposa de
Demétrio), o Coronel, Padre Justino e Timóteo Meneses (irmão mais novo) são as
personagens que também são narradoras do romance, enquanto que Demétrio Meneses, o
irmão primogênito da família e Alberto (o jardineiro) não possuem textos de autoria deles,
como dissemos anteriormente.
É compreensível que Alberto não tenha textos de sua autoria no romance, pois ele é um
personagem secundário, mas Demétrio ser o único dos irmãos Meneses que pouco tem voz,
mesmo sendo o primogênito, é de se estranhar. Ele é o único dos descendentes dos Meneses
que não teve os seus textos selecionados pelo autor implícito5 para compor a narrativa da
família, além do mais, nem se sabe se ele escreveu algo, pois no discurso dos outros narradores
eles não chegam a fazer nenhuma menção nem a cartas de sua autoria. Mas analisando o
personagem mais profundamente, ele é o irmão mais ligado à tradição patriarcal, e é justamente
essa tradição que as personagens Ana, Timóteo e Nina queriam assassinar.
Na edição crítica de Crônica...6 , há menção aos manuscritos de Lúcio Cardoso quando
ele produzia o romance e num desses materiais Cardoso escreveu que: “Demétrio: não fala, não
tem voz, como a casa.” (CARDOSO, 1996, p. 614)7
Assim, arruinar a casa, símbolo dessa imponente família tradicional de Vila Velha, seria
a metonímia da destruição da tradicional família mineira. Silenciar Demétrio, o representante
dessa tradição, seria uma espécie de metáfora para representar a decadência do discurso
patriarcal que estava em curso no período que Crônica.. focaliza.
Demétrio é a representação do patriarcalismo, da manutenção da tradição de uma
organização social que estava em decadência. Esse declínio do patriarcado tem os seguintes
símbolos na narrativa: a maneira falha em administrar os bens da família que acabou ruindo a
fortuna deixada pelos seus pais; as personagens femininas Ana e Nina que romperam com a
autoridade masculina por meio do adultério; e a desconfiguração do homem másculo, símbolo
do patriarcalismo, representado na figura de Timóteo com seus trejeitos e hábitos afeminados.
No período focalizado pela narrativa, manter uma propriedade do tamanho da Chácara
Meneses não era mais vantajoso, pois, na década de 1930, a região do centro-sul do Brasil
5
Utilizamos o conceito de autor implícito de Wayne Booth, em específico no aspecto que considera o autor
implícito como um alter ego do autor empírico. Esse conceito será mais bem delineado no item 3.3 deste capítulo.
6
Desde ponto em diante, iremos nos referir ao romance Crônica da casa assassinada apenas pela primeira palavra
que compõe seu título e reticências: Crônica... .
7
Citação presente na edição crítica que reuniu as variantes da escrita de Crônica , publicada na primeira edição,
em 1991, e na segunda edição, esta que citamos, em 1996.
76
estava iniciando o seu processo de industrialização e aos poucos o êxodo rural foi se
intensificando, dando lugar a urbanização. Na literatura brasileira, temos o conjunto de seis
romances de José Lins do Rêgo que narram essa crise latifundiária: Menino de Engenho (1932),
Doidinho (1933), Banguê (1934), O Moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo Morto
(1943).
A desobediência feminina das personagens Ana e Nina começa a partir do momento em
que elas cometem adultério, ambas com o mesmo homem: Alberto, o jardineiro. As duas
também engravidaram mais ou menos no mesmo período de Alberto e enganaram toda a família
sobre quem eram os verdadeiros pais de André.
Seguindo linguagem de Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos (2014), o macho
ostentava poder sobre a fêmea, que eram considerados respectivamente o “sexo forte” e o “sexo
fraco”. Uma mulher enganar seu marido como Nina e Ana fizeram é um claro ato de
representação do declínio do poder patriarcal, pois demonstra a desobediência do sexo feminino
ao sexo masculino.
Em Salgueiro, apesar de não haver essa discussão mais direta sobre o patriarcalismo, é
possível perceber que as personagens Marta e Rosa transgrediram a ordem masculina. Inclusive
devido a influência do naturalismo no romance, as denominações de macho e fêmea são bem
adequadas para representar essas relações de poder entre José Gabriel e Marta, sua irmã, e Rosa,
sua amante. Marta começou se prostituir com o intuito de envergonhar seu irmão e Rosa ao
desobedecer Zé Gabriel acabava sendo violentada por ele, como analisamos no capítulo anterior
desta tese.
Outro aspecto da narrativa que contribui significativamente para representar a queda do
modelo patriarcal é Timóteo: um homem com trejeitos afeminados, que usava roupas, joias e
maquiagem exagerada. A reclusão de Timóteo em seu quarto foi a maneira que ele encontrou
de não arriscar ser deserdado, pois foi ameaçado por Demétrio a perder a sua respectiva parte
nos bens da família, caso continuasse levando uma vida de farras, como mencionou Ana em
uma de suas confissões:
(Devo dizer, a bem da verdade, que Timóteo quase sempre chegava bêbado
em casa – um estroína autêntico, que dilapidava o dinheiro deixado pelo pai,
zombando da usura dos irmãos e triturando-os com o seu desprezo.) (8.
Primeira confissão de Ana, p. 105)8
A reclusão de Timóteo também era cômoda para os seus irmãos Demétrio e Valdo, pois
8
Como durante toda a análise iremos manipular várias vozes achamos mais prudente, até para melhor
entendimento do leitor da tese, indicar em qual capítulo do romance o trecho citado está.
77
era a maneira de escondê-lo como se ele tivesse uma doença contagiosa que envergonhava a
família:
[...] Timóteo sempre foi um temperamento esquisito, de hábitos fantásticos, o
que obrigou a família silenciar sobre ele – como se silencia uma doença
reservada (8. Primeira confissão de Ana, p. 104)
Demétrio apesar de não ensejar um título nobre, ansiava desde muito tempo receber a
visita do Barão de Santo Tirso, bem como a ser convidado a participar das reuniões na casa
dele, que era uma forma de se sentir incluído na alta sociedade de Vila Velha. Ainda quando
Ana estava sendo preparada para ser a esposa de Demétrio Meneses, ele chega a dizer a mãe
dela que: “A senhora sabe... receberemos um dia a visita do próprio Barão. Quero apresentar
uma esposa digna, alguém que possa ofuscar, pelas suas graças, essa Baronesa que trouxe de
Portugal” (8. Primeira confissão de Ana, p. 104). A visita do Barão só vai ocorrer no velório
de Nina e quando o nobre finalmente faz a tão esperada visita Chácara dos Meneses é
recepcionado pela cena tosca de Timóteo vestido com roupas femininas e suspenso numa rede
levada por quatro negros.
Para percebemos o quanto Demétrio era um sujeito deslocado do tempo em que vivia,
podemos começar pelo ar de superioridade que ele sustentava perante os moradores de Vila
Velha mesmo devendo a muitos dos comerciantes da cidade. Outro fator de deslocamento é que
ele ainda valorizava os títulos nobres da época do Império Brasileiro, quando na verdade após
a Proclamação da República, em 1889, os títulos aristocráticos perderam tanto o valor na
sociedade brasileira. Nessa época, não era mais necessário ser de uma família de alta estirpe
para obter um título nobre, bastava ter dinheiro para comprá-lo.
Sobre essa valorização de títulos de nobreza, esse tema também foi abordado em O
Cortiço, quando João Romão, mesmo sendo rico, sente a necessidade de ter um título nobre.
Para isso, ele negocia com Botelho, um agregado da família de Miranda, o casamento com
Zulmirinha, a filha de Miranda, com a finalidade de ser um Visconde.
78
Os Meneses são remanescentes da sociedade rural escravocrata, que mesmo após a
abolição dos escravos ainda tratavam os empregados da casa por pretos ou negros, ou seja, não
eram tratados pela função que exerciam, mas pela cor da pele e pela raça. Vale a pena
mencionar, que dentro da propriedade dos Meneses havia um “antigo cemitério dos pretos” o
que para época denotava que a família possuía muitos escravos, o que significava ter muitas
posses. Mas devemos levar em consideração que as mudanças na sociedade são lentas e a
assinatura da Lei Áurea é apenas um marco do início da abolição da escravatura e que a partir
dela a situação do trabalho escravo aos poucos foi se modificando.
Assim como foi relatado na análise de Salgueiro, no capítulo anterior desta tese,
observou-se também essa abordagem racial, especificamente dos remanescentes da escravidão
que depois de libertos não tiveram o apoio do Estado, pelo menos no setor de habitação, o que
os levou a ocupar os territórios periféricos dos morros cariocas.
Com relação à decadência moral, ela estava em curso desde que Timóteo, segundo irmão
Meneses, iniciou suas farras exageradas, regadas a muita bebida e altos gastos, bem como a
falta de gestão dos bens da família por Demétrio e Valdo. Esses atos juntos dilapidaram a
fortuna deixada por Antônio Meneses, patriarca da família, curiosamente mencionado apenas
uma vez em todo o romance. Tanto Sr. Antônio Meneses, como a Sra. Malvina já haviam
falecido quando a história começa a ser narrada e os tempos primorosos da família Meneses
ficaram apenas na lembrança daqueles que as vivenciaram.
Se fosse narrada cronologicamente, a história se iniciaria com o casamento entre Valdo
e Nina, mulher que ele conheceu em uma das suas viagens ao Rio de Janeiro, mas na verdade
a história começa a ser narrada depois que ela morre, especificamente em seu velório.
Nina acreditava ter casado com um homem de família rica, como o próprio Valdo se
apresentou para ela, mas, para sua decepção, os Meneses estavam falidos e logo na primeira
refeição em família, Demétrio faz questão de ressaltar esse fato para a cunhada. Além disso,
ainda durante a refeição, Demétrio avisou que não havia ocasiões para se utilizar tantos vestidos
e chapéus que Nina trouxe em sua bagagem e que as mulheres da cidade de Vila Velha se
vestiam como Ana, esposa dele, que naquela ocasião estava com um vestido preto, desbotado
e fora de moda.
A partir da entrada de Nina para família, intensificaram-se os desentendimentos entre
os irmãos Demétrio e Valdo. Enquanto Timóteo ficava dentro de seu quarto tramando uma
vingança contra seus irmãos e com a chegada de Nina, ele a convidou para pactuar numa
conspiração para destruir de vez a família Meneses. Dentro de seu quarto, Timóteo se trajava
com vestidos femininos e ornamentava-se com as joias deixadas pela sua mãe, além de sempre
79
estar com uma maquiagem feminina bem exagerada. Ele dizia a Betty e a Nina que estava
possuído pelo espírito de Maria Sinhá, uma antepassada da família que biologicamente nasceu
mulher, mas que se comportava e se vestia como homem, por isso era considerada uma
vergonha para família, assim como Timóteo.
Nina quando desfez as malas sentiu o impacto da vida na roça, pois as palavras de
Demétrio sobre a bagagem dela foram reforçadas pela governanta Betty, que lhe alertou que
em Vila Velha, não havia eventos para se utilizar tantos vestidos, capas e chapéus. Esse impacto
também foi sentido por Betty quando ela chegou à casa dos Meneses anos atrás e que ela relatou
em seu diário: “Lembrei-me de mim mesma, assim que chegara, sufocada pelo excesso de
folhagem que havia em torno – e os dias que passei, procurando adaptar-me àquele sistema de
vida, tão diferente do meu” (12. Diário de Betty (III), p. 141).
Nina estava muito insatisfeita com a sua vida: reclamava dos empregados, da casa, do
clima, enfim, não estava satisfeita com o novo ambiente, bem díspar da movimentação urbana
que ela estava acostumada no Rio de Janeiro.
A esposa de Valdo adorava violetas e exigia de Alberto, o jardineiro, que deixasse todos
os dias na janela de seu quarto um ramo delas. A partir do elo das violetas, eles acabam se
aproximando e envolvendo-se sexualmente. Apenas Ana, esposa de Demétrio, e Timóteo,
ambos por terem a mania de espreitar as janelas da casa, descobrem que Nina estava tendo um
caso com o jardineiro.
Tempo depois de sua estadia na chácara, Nina avisou aos membros da família que
estava grávida e Demétrio sugere que ela fosse para o Rio de Janeiro, alegando que lá ela teria
mais assistência para ter o bebê. Mas, Demétrio acabou flagrando Alberto ajoelhado diante de
Nina e beijando as mãos dela no Pavilhão, um dos compartimentos da Chácara que ficava
afastado da casa principal. Esse simples gesto era uma pequena parcela de algo maior e
Demétrio acabou ordenando que Nina e Alberto deixassem a Chácara. Diante desse fato,
Demétrio apressa a ida de Nina ao Rio de Janeiro e quando Nina diz que vai embora, Valdo
tenta tirar sua própria vida. Depois desse fato, outros fatos desastrosos começam a ocorrer: Ana
se envolve com Alberto e acaba ficando grávida; e pouco tempo depois de Nina deixar a
chácara, Alberto comete suicídio por se sentir rejeitado por ela.
Nina, deixou a chácara e voltou para o Rio de Janeiro, lá teve o seu filho e foi
reencontrar o Coronel Amadeu Gonçalves, único amigo de seu pai, que jogava cartas com ele.
O pai de Nina era um militar da guarnição de Deodoro que ficou paralítico após ser vítima da
explosão de uma granada. Em razão desse grave acidente, ele foi aposentado de suas atividades.
A mãe dela era atriz de teatro italiana, de segunda classe, que voltou para Europa ainda quando
80
Nina era criança, deixando a responsabilidade da criação da filha apenas para o pai.
Pouco se sabe sobre o que Nina fez durante esses quinzes anos que ela passou no Rio
de Janeiro, pois no romance não há textos que relatem esse período que ela se ausentou da casa
dos Meneses.
Quinze anos depois de sua longa estadia no Rio de Janeiro, Nina decide retornar à
Chácara Meneses, na tentativa de reaver o convívio da família e encontrar apoio, pois estava
doente de câncer na mama. O retorno é malogrado, pois os conflitos entre ela e Demétrio
continuam, e para complicar ainda mais a situação ela acaba se envolvendo sexualmente com
André, seu suposto filho. Para a sorte de Nina, apenas Ana descobriu a existência desse
relacionamento, do contrário haveria um escândalo ainda maior.
O câncer de Nina foi progredindo rapidamente, os médicos consultados disseram que
não havia mais tratamento, pois, a doença estava bem avançada. Nina morre e durante o velório
ocorrem vários acontecimentos: Timóteo entra no velório dentro de uma rede suspensa por
quatro negros, vestindo roupas femininas e usando as joias deixadas por sua mãe,
acontecimento que chocando a todos os presentes; a Chácara finalmente recebe a visita do
Barão de Santo Tirso, tão esperada por Demétrio, que acabou presenciando essa cena
emblemática de Timóteo; Angélica, filha do Barão e com fama de afetada das faculdades
mentais, tem a ousadia de perguntar se Valdo não poderia doar as roupas da morta para as
meninas de um orfanato da cidade; ocorrem duas discussões: uma entre André e Valdo, que
faz André deixar a chácara definitivamente, e outra entre Valdo e Demétrio, sendo que desta
vez foi Valdo quem decidiu deixar a casa dos Meneses; e para completar, Timóteo acaba
passando mal e desmaia durante a sentinela. Não fica muito claro na narrativa o que ocorreu
com Timóteo depois desse desmaio e sobre Demétrio, também não foi mencionado o fim desse
personagem.
O fim definitivo da família Meneses ocorreu quando nenhum dos três irmãos Meneses
deixa algum descendente, pois no último capítulo uma verdade vem à tona: André é filho de
Ana e Alberto, e não de Valdo e Nina, como boa parte da narrativa leva o leitor a acreditar.
Como golpe final para o fim dos Meneses, a estrutura física da Chácara é saqueada pelo bando
de Chico Herrera, considerado um famoso cangaceiro da região e em seguida uma epidemia
devastou a cidade de Vila Velha para completar a destruição. Ainda nesse capítulo, Ana, a
única sobrevivente da família, em sua última confissão ao Padre Justino, revela que o verdadeiro
filho de Nina, provavelmente se chame Glael e talvez more no Rio de Janeiro. O filho de Nina
estar vivo e ela saber onde ele estava, contraria o que ela disse a Ana que jamais criaria um
rebento dos Meneses e que fez questão de transformá-lo em um bebê enjeitado. Não se sabe ao
81
certo, quem realmente era o pai desse filho de Nina, pois na época ela se envolveu tanto com
Valdo, como Alberto e ainda há a possibilidade desse rapaz ser filho do Coronel Amadeus, pois
desde que Nina chegou à Chácara ela não aparentava estar com uma boa saúde, porque ela
apresentava sinais de alguma enfermidade, como percebeu Betty. Então, pode se levantar as
hipóteses de que ela ou estava grávida ou que ela já estava sentindo os primeiros sintomas do
câncer. Desse modo, a verdadeira paternidade do filho de Nina é uma incógnita que a narrativa
deixa em aberto.
Segundo Massaud Moisés (2004), o vocábulo crônica foi mudando de sentido ao longo
dos séculos. “Crônica” foi utilizada pela primeira vez ainda na era cristã e consistia numa lista
de acontecimentos apresentados numa sequência cronológica do tempo. Essa acepção atingiu o
seu auge na Alta Idade Média, depois do século XII. Com o passar do tempo, só eram
consideradas crônicas aquelas obras que narravam acontecimentos com mais riqueza de
detalhes e iam além de uma lista, como as obras de Fernão de Dias, no século XIV. Enquanto
os textos mais simples dessa época, que traziam efemérides, começaram a ser chamados de
“crônicões”. Desde o Renascimento, séc. XVI, “o termo ‘crônica’ começou a ser substituído
por ‘História’ ” (MOISÉS, 2004, p. 112.) e a noção de crônica que conhecemos hoje começa a
se delinear apenas no século XIX. Na noção atual de crônica, o escritor apresenta um tom maior
de sua personalidade literária, ou seja, a partir dela o seu autor pode refletir sua visão subjetiva
de um fato do cotidiano.
O gênero crônica é caracterizado pelo hibridismo, ou seja, pode incorporar
características de outros gêneros, tais como carta, notícia, poema, diário, livro de memórias,
conto, dentre outros. Transitando entre a literatura e jornalismo, a crônica tem um objetivo
comum: refletir sobre o cotidiano de um espaço, em uma determinada época.
No romance Crônica da casa assassinada, temos uma reunião de diversos gêneros como
o fim de remontar o que seria uma parte da crônica social da cidade de Vila Velha, em específico
os textos que correspondem a uma de suas famílias mais importantes: os Meneses.
No primeiro capítulo do romance, “1. Diário de André (conclusão)”, e aliás, no romance
inteiro, há apenas uma data, que inclusive não está completa, pois falta o mês e o ano: “18
de... de 19...” (CARDOSO, 2008, p. 19). É de suma importância afirmar que só conseguimos
inferir que ela se refere à morte de Nina ao lermos o capítulo “48. Diário de André (X)” e em
seguida o capítulo “1. Diário de André (conclusão)”, que cronologicamente estariam nessa
82
sequência, mas aparecem bem distantes na organização dos capítulos, como se pode perceber
pelos seus respectivos números. Nota-se que a ordem de aparição dessas partes foi alterada
pelo autor implícito, como veremos mais detalhadamente na seção a seguir. Não só no “1.
Diário de André (conclusão)”, mas também nas outras partes do diário, da parte II a X, há
apenas a indicação do dia em que o personagem faz o registro no diário, mas não há a
informação do mês ou ano. Isso também ocorre nos capítulos que são compostos pelas partes
do “Diário de Betty”, que é dividido em cinco partes.
O tempo datado e minucioso é uma característica realista, especificamente o tom
documental, enquanto que em Crônica... temos a ruptura da linearidade cronológica tradicional,
pois o leitor só fica sabendo da passagem do tempo através de acontecimentos do próprio
enredo, como, por exemplo, a gravidez de Nina, o nascimento de André, a indicação da idade
de André, e o avanço da doença de Nina. No romance em análise, pouco se utiliza números
para precisar os fatos narrados, pois não sabemos após quanto tempo depois da chegada de Nina
à chácara ela começou a se envolver com Alberto; também não sabemos ao certo se ela chegou
à casa dos Meneses grávida ou se ela ficou grávida realmente depois que chegou Chácara e
após quantos meses. Todos esses artifícios utilizados pelo autor implícito acabam gerando um
clima de mistério sobre a narrativa, pois o leitor pouco tem certezas.
Em concordância com a perspectiva de Guy Besançon (1996): “[...] uma crônica é um
relato de uma série de acontecimentos importantes, como uma campanha militar ou uma
epidemia. No caso narra-se a queda da casa Meneses ou, mais exatamente, seu assassinato” (p.
690). Na perspectiva de Besançon, que utiliza a noção de crônica adaptada para o contexto
específico do romance Crônica..., estamos diante de uma obra formada por narrativas que
contam a história do declínio e “assassinato” dos Meneses, uma família tradicional mineira, da
cidade ficcional de Vila Velha. O sentido de “assassinato” estaria mais adequado à noção de
destruir, extinguir e aniquilar e não tirar a vida de um ser vivo, como é mais comumente
utilizado. Se bem que muitas vezes, assim como o morro foi personificado em Salgueiro, a casa
também foi personificada, como nesse trecho escrito pelo narrador Padre Justino:
Ainda tenho presente na memória a última vez em que a vi, quando ia meio a
triste epidemia que liquidou nossa cidade. A Chácara Meneses foi das últimas a
tombar [...]. Vejo-a ainda, com seus enormes alicerces de pedra, simples e
majestosa como um monumento em meio à desordem do jardim. A caliça já
tinha quase completamente tombado de suas paredes, as janelas, despencadas,
batiam fora dos caixilhos, o mato invadia francamente as áreas outrora limpas e
subia pelos degraus já carcomidos – e no entanto, para quem conhecia a
crônica de Vila Velha, que vida ainda ressumava ela, pelas fendas abertas,
pelas vias à mostra, pelas telhas tombadas, por tudo enfim que constituía seu
83
esqueleto imóvel, tangido por tão recentes vibrações. (CARDOSO, 2008, p.
495)
Essa descrição da Chácara Meneses, nos faz lembrar de quando o cortiço de João Romão
foi incendiado pela personagem Bruxa, mas o Cortiço foi reconstruído e voltou com ainda mais
imponência, enquanto que a Chácara Meneses desapareceu de vez.
Voltando à discussão sobre o significado do título do romance, nas palavras do próprio
Lúcio Cardoso, citadas por Walmir Ayala: “No título, CASA está no sentido de família, de
brasão. ASSASSINADA quer dizer, atingida na sua pretensa dignidade, pelo pecado. Eis o
ponto nevrálgico do drama: o pecado.” (1963, p. 5)
Desta forma, a explicação de Cardoso parte de duas metonímias presentes no próprio
título do romance. A primeira seria “casa” representando algo mais amplo como símbolo de
uma família, bem como um brasão a representa; enquanto que “assassinada” se refere ao ataque
a moral da família, principalmente, numa perspectiva religiosa do pecado. Como exemplo, tem-
se Nina e Ana são condenadas à morte pelos pecados que cometeram em vida, dentre adultérios
e até um suposto incesto.
A família Meneses, por ser importante na cidade de Vila Velha, sempre fora bastante
comentada pelos moradores da cidade, como relataram o farmacêutico e o médico em suas
narrativas. Desde os tempos em que vivia a mãe dos irmãos Meneses, não faltavam comentários
sobre os eventos ocorridos nas dependências da propriedade da família que faziam parte da
“crônica social da Chácara”, como nomeou a personagem/narradora Betty (CARDOSO, 2008,
p. 115). Por esse motivo, a imponência da família, desde os tempos mais antigos, fez parte da
crônica da cidade de Vila Velha, como mencionou Padre Justino, no último capítulo do livro.
Desse modo, consideramos os Meneses uma metonímia da família mineira, daqueles
seres calados, que pouco falavam ou expressavam seus sentimentos. Era essa tradicional família
mineira que Cardoso queria assassinar em sua narrativa, caracterizada pelos ranços da tradição
provinciana.
A família Meneses é mencionada pela primeira vez na obra de Lúcio Cardoso em seu
primeiro romance Maleita e são descritos como “comerciantes em grosso da cidade de Curvelo”
(CARDOSO, 2005, p. 10). Seriam os mesmos Meneses que agora estavam instalados em Vila
Velha, mas em duas épocas diferentes? Em Maleita, eles estão no auge econômico, já em
Crônica... estão na decadência.
Lúcio Cardoso, em conhecido depoimento a Fausto Cunha, expressou o seu desejo em
mostrar o que realmente caracteriza a família mineira. Seu desejo era desnudá-la, mostrar bem
dentro de suas entranhas o que ela realmente é, expor uma verdade que se esconde por trás de
84
muitos muros e máscaras
Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma
paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais.
Meu inimigo é Minas Gerais.
O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra
Minas Gerais.
Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira.
Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de
vida mineira. Contra a fábula mineira. Contra o espírito judaico e bancário que
assola Minas Gerais. Enfim, contra Minas, na sua carne e no seu espírito.
(CARDOSO, 1996, p. 764)
Com essas palavras, Lúcio Cardoso quer dizer que ele é contra a tradição que Minas
Gerais representa: “esse fundo poeirento de província mineira” (Timóteo no “4. Diário de Betty
I”, p.55). Esses valores morais tradicionais acabaram anulando uma mulher guerreira como
Maria Sinhá, que foi incompreendida por usar roupas masculinas e ter o comportamento de um
gênero que não era o seu de nascimento. Ela, assim como Timóteo, foi vista como uma vergonha
da família, por isso um quadro com a sua foto foi retirado de uma das paredes da Chácara e
esquecido em um galpão da casa levando poeira.
Nina é a novidade que surge na família Meneses e representa a ameaça da destruição
dessa tradição, quando ela diz “Eu não quero viver segundo o sistema do Sr. Demétrio” (“9.
Diário de Betty II”, p. 112). Demétrio por ser o irmão mais velho, era o guardião das tradições
da família. Até ele mesmo se sente ameaçado por Nina e mandá-la de volta para o Rio de Janeiro
é uma forma de negar esse espírito moderno que a urbe trouxe para a chácara. A primeira
desculpa de Demétrio em mandá-la de volta ao Rio, era que, segundo ele, nem em Vila Velha,
e nem nas cidades das redondezas, ela teria a assistência médica que precisava para ter o bebê;
e depois da cena que o primogênito dos Meneses flagrou entre Nina e Alberto, a volta dela ao
Rio foi ainda mais apressada.
Nina traz consigo os ares metropolitanos do Rio de Janeiro, capital federal brasileira na
época, com seus bailes, cinemas, teatros e outros eventos. Ela não era apenas uma mulher que
encantava os outros pela beleza física, mas os hábitos novos que ela trouxe fizeram com que
outros personagens começassem a se enxergar de uma forma diferente, como a própria Ana
que após se comparar com Nina se percebeu uma mulher com a feminilidade anulada:
Sei apenas que sinto o quanto em torno de mim as coisas são inóspitas e o
quanto eu mesma me converti num ser gelado e triste. Ah, como é difícil reunir
essas duas palavras – gelado e triste – compreendendo que elas correspondem
exatamente ao que existe dentro de nós, a essa coisa pesada, insensível, em
que se converteu nosso coração. Muitas vezes sucede-me parar diante do
85
espelho, e olhar de um modo quase brusco a minha figura. Sou eu mesma, não
há nenhuma dúvida, porque o vulto se movimenta assim e eu me movimento,
e traja antigas roupas sem graça que eu conheço tão bem, e que são
invariavelmente as minhas, com as minhas mãos, meus olhos, minha boca.
Apesar de tudo, no primeiro instante não posso deixar de indagar com certa
curiosidade: de quem é aquele rosto? E aos poucos, com uma lentidão onde há
visível crueldade, vou recompondo a fisionomia que conheço tão bem, e que,
é inútil dizer quanta repulsa me causa. Ah, como me detesto, como me
desprezo, que tremenda hostilidade interna delineia minha figura exterior.
Aquela saia cor de rapé, aquela blusa desbotada e sem nenhum enfeite, aquele
modo relaxado de pentear os cabelos, são a prova do quanto considero a minha
pessoa mesquinha e vil. (27. Terceira confissão de Ana, p. 270)
Assassinar a casa não é apenas derrubar a sua estrutura física, é matar as tradições que
a família tradicional de Minas Gerais representa. Não deixar descendentes é outra metáfora da
interrupção da tradição patriarcal, que por muitas vezes se mostrou tão danosa que anulou a
feminilidade de Ana, e que aniquilou a personalidade de Maria Sinhá e Timóteo.
86
3.3 O papel do autor implícito na organização do romance
Esse papel de escriba do autor se renova a cada obra que ele escreve, é como se a cada
nova obra ele criasse um novo alter ego de si mesmo para contar aquela história em específico.
Mas essas versões que o “autor empírico” cria para si próprio não são totalmente independentes,
pois a perspectiva ideológica do autor sempre estará nas entrelinhas de seus textos, denotando
a sua visão de mundo.
No caso de Lúcio Cardoso, em Salgueiro, o autor implícito apresenta uma versão de si
87
através de um narrador onisciente que, por vezes, chega a expressar a sua opinião sobre os atos
e a personalidade dos personagens da narrativa. Enquanto que em Crônica... , o autor implícito
não é tão direto, pois sua ação na narrativa ocorre por meio da organização do material coletado
dentre as memórias da família Meneses e dos depoimentos colhidos.
Em Salgueiro, a história vai sendo narrada logo após os acontecimentos ocorrerem, o
que se pode perceber pelo predominante uso do pretérito perfeito. Em Crônica... , quando
estamos diante dos suportes diário e livro de memórias, e dos gêneros confissão e carta, ocorre
a preponderância do pretérito perfeito, porque o intervalo entre o acontecimento e a escrita é
mais curto. Em alguns momentos, é utilizado o presente do indicativo, quando, por exemplo,
há reflexões filosóficas pelos narradores – como no “Diário de André (conclusão)”: “O que é a
morte?” e em duas das confissões de Ana: “O que é a verdade?” – e, também, quando há a
transcrição de diálogos entre os personagens.
Há uma variedade maior de tempos verbais, quando os narradores, como o farmacêutico
e o médico, relatam os acontecimentos com uma maior distância no tempo, por isso utilizam
predominantemente o pretérito imperfeito e, por vezes, o pretérito mais-que-perfeito, bem como
adjuntos adverbiais de tempo que indicam uma distância significativa entre os acontecimentos
e o momento em que eles estão sendo trazidos para a diegese, como no seguinte trecho:
“Naturalmente não me é fácil desenterrar essas figuras, pois elas se acham visceralmente presas
ao que eu próprio fui, às minhas emoções daquele tempo” (“Cap. 13. Segunda narrativa do
médico”, p. 144, grifo nosso).
Nesse romance em específico, o autor implícito não tem uma voz delimitada, nem
mesmo através de um narrador, pois cabe a alguns personagens assumirem também essa função.
Liberado da função de narrador, o autor implícito atuou em decidir a ordem em que o material
coletado iria aparecer no romance, bem como quais partes ele iria suprimir para contar a sua
versão história.
Diga-se versão, porque quando o autor implícito opta por não incluir na narrativa
algumas das cartas que são mencionadas pelos narradores9, ele apresenta ao leitor a versão da
história que lhe conveio. Essa foi a forma de manter o mistério sobre a existência do verdadeiro
filho de Nina: Glael. Sendo também uma estratégia narrativa encontrada pelo autor implícito
para manter o clima de mistério e incerteza sobre a existência do incesto entre Nina e André.
A atuação do autor implícito também se manifestou na escolha do que seria o primeiro
9
Como a que Ana enviou para Nina, quando ela estava perto de dar à luz ao bebê que esperava (“56. Pós-escrito
numa carta de Padre Justino), ou quando ele não revela para o leitor o conteúdo da carta que Nina escondeu de
André, Valdo e Ana, bem como outras cartas que são mencionadas, mas que não foram incluídas no romance.
88
capítulo do romance, que é a última parte do diário de André: “1. Diário de André (conclusão)”,
que cronologicamente equivaleria a 11ª parte de seu diário. Se fosse seguida a ordem sequencial
dos fatos, essa parte do diário de André estaria entre os últimos capítulos do romance, pois
nessa parte são mencionados os momentos finais do velório de Nina, que só vai ser apresentada
uma outra versão entre os capítulos 51 e 55, pelos personagens/narradores Valdo e Timóteo.
Outro exemplo dessa manipulação do material, seria a fragmentação, que aparenta ser
proposital, da “Segunda narração do Padre Justino” e da “Terceira confissão de Ana”, com o
intuito criar uma tensão, pois esses dois textos foram fragmentados em três partes cada um e
apresentados da seguinte forma entre os capítulos 27º e 33º:
89
O narrador de Salgueiro se adequaria ao ponto de vista do “narrador onisciente intruso”,
porque além de ter acesso aos pensamentos dos personagens, ele também opinava sobre
algumas das atitudes deles. Mas em Crônica... devido a variabilidade de narradores e pontos
de vista variados que eles assumem no decorrer da narrativa, a classificação de Friedman se
apresenta incapaz de abarcar tal complexidade. Por isso, consideramos que a designação de
“focalização”, proposta por Gérard Génette (1979), é a mais adequada do que a de “ponto de
vista” para analisar o romance em estudo neste capítulo.
Em Crônica..., cada personagem é construído pela percepção que ele tem de si mesmo
e a que os outros tem dele. Não há uma versão única de cada personagem, como a que se tinha
com o narrador onisciente de Salgueiro. Para compor essa variedade de vozes de Crônica... ,
cada personagem/narrador utiliza pelo menos um suporte ou um gênero textual para se
expressar na narrativa. André e Betty utilizam diários; Timóteo redigiu seu “Livro de
Memórias”; e juntam-se a esses suportes os seguintes gêneros textuais: as cartas que Valdo e
Nina trocaram; os depoimentos que Valdo e o Coronel prestaram a uma pessoa provavelmente
do gênero masculino; além das confissões de Ana; as narrações do Padre Justino; as narrativas
do farmacêutico e do médico; e principalmente o pós-escrito na carta de Padre Justino, que foi
colocado como último capítulo do romance e traz reviravoltas sobre a questão do possível
incesto entre Nina e André.
Nina quando escreve cartas para Valdo, mostra apenas uma de suas versões: a de esposa
fiel, que estava passando por um momento delicado em sua saúde e precisava do aconchego da
família. Ela afirmava que tinha muitos amigos no Rio de Janeiro, mas não confessava para ele
que na verdade esses seus supostos amigos, eram na verdade seus amantes. Porém, basta Nina
mudar de interlocutor que alguns assuntos são abordados de outra forma. Quando Nina
conversava com Ana, sua cunhada, ela apresentava a sua faceta de adúltera e desprezava um
possível rebento dos Meneses.
Sobre essa mudança de tom nas cartas de Nina, a perspectiva de Vitor Manuel Aguiar e
Silva (2009) nos ajuda a compreender essa variação: “Nos romances epistolares constituídos
por cartas de várias personagens, a focalização é variável e múltipla, pois cada personagem
apresenta, segundo o seu caráter, os seus interesses, o destinatário da sua missiva etc” (p.784)
Ainda sobre esse mesmo tema, Booth também nos traz uma interessante reflexão:
90
Na narrativa há apenas duas menções sobre quem estaria coligindo essas memórias da
família Meneses. A primeira menção só ocorre no Capítulo “24. Terceira narrativa do médico”,
quando no início Dr. Vilaça diz:
91
capítulo 24, como dissemos acima, e no capítulo 36, ou seja, em pontos bem distantes, que
exigem uma grande atenção de quem lê o romance para estabelecer essas conexões. Observa-
se que enquanto o médico se refere diretamente a um sujeito do sexo masculino, já que utiliza
o pronome “senhor”, o padre já se refere por “essa pessoa”, o que acaba não fechando a ideia
do gênero dessa pessoa, se é masculino ou feminino. Mais à frente, quando o padre se refere ao
seu interlocutor por “meu amigo”, se esvai a dúvida sobre o gênero dessa pessoa: “Creio, meu
amigo, que estamos atingindo o cerne de toda história.” (p.500):
Sim, resolvi atender ao pedido dessa pessoa. Não a conheço, nem sequer
imagino por que colige tais fatos, mas imagino que realmente seja premente o
interesse que a move. E ainda mais do que isto, acredito que qualquer que seja
o motivo desta premência, só pode ser um fato abençoado por Deus, pois a
última das coisas a que o Todo-Poderoso nega seu beneplácito é a eclosão da
verdade. Não sei o que essa pessoa procura, mas sinto nas palavras com que
solicitou meu depoimento uma sede de justiça. E se acedo afinal – e
inteiramente – ao seu convite, é menos pela lembrança total dos
acontecimentos – tantas coisas se perdem com o correr dos tempos... – do que
pelo vago desejo de restabelecer o respeito à memória de um ser que muito
pagou nesse mundo, por faltas que nem sempre foram inteiramente suas. (56.
Pós-escrito numa carta de Padre Justino, CARDOSO, 2008, grifo nosso, p.
495)
92
da narrativa, ou, ainda, o que ele não julgava necessário para compreender a história de Ana.
Ana foi uma vítima do patriarcalismo que anulou não só ela, mas também outras
personagens da história da família Meneses, como Maria Sinhá e o próprio Timóteo. Ana pode
até ter cometido pecados, como o adultério e ter mentido por esconder de todos quem realmente
eram os pais de André, mas por tudo o que ela passou durante a sua vida, acabou sendo perdoada
pelo Padre Justino em sua última confissão, porque na verdade ela foi mais vítima do que algoz.
Talvez duas pessoas seriam as mais interessadas em saber a verdade: André e Glael. É
provável que um deles ou os dois tenham reunido esse material para expor a todos a verdade
tão perseguida por Ana. Teríamos mais indícios de que seria André do que Glael, porque Glael
é apenas mencionado, não é personagem. E Ana é a verdadeira mãe de André e nas discretas
pistas deixadas no decorrer do romance é possível provar seguinte hipótese: que a intenção de
Crônica... é mostrar não só o declínio da família tradicional mineira, mas também expor a
verdade ao revistar os fatos vividos por Ana que acabou sendo uma vítima do sistema patriarcal
e que teve durante toda a sua vida a sua identidade anulada.
Assim como o escritor norte-americano William Faulkner, Lúcio Cardoso tinha o hábito
de retomar personagens e espaços em suas produções narrativas seja nos romances, seja nas
novelas. Como dissemos anteriormente, a família Meneses vai ser mencionada na obra de Lúcio
Cardoso a primeira vez em Maleita e depois em Crônica da casa assassinada. Enaura
Quixabeira Rosa e Silva (2004), em Lúcio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira,
chega criar um quadro com as personagens significativas da obra cardosiana. Damos destaque
as personagens Angélica de Santo Tirso, Aurélio dos Santos, Chico Herrera, Padre Justino, e
em especial Ana Altiva de Oliveira Lara (Donana de Lara) e André, pois foram eles dois que
estabelecem o vínculo entre os romances Crônica... e O viajante, como veremos a seguir.
Na novela O enfeitiçado e Inácio, as personagens Inácio Palma e Rogério Palma
aparecem em ambas as histórias, o diferencial é que eles alternam o protagonismo. Em O
enfeitiçado o protagonista é Inácio, e Rogério é personagem secundária, enquanto em Inácio,
Rogério Palma é o protagonista que busca Inácio Palma, personagem secundária. No que diz
respeito aos espaços, a cidade de Vila Velha também aparece tanto em Crônica... , como em O
viajante.
No romance O viajante, obra que Lúcio Cardoso não chegou a concluir em vida, há um
personagem também chamado André, com os mesmos traços físicos do André de Crônica... .
Esse rapaz fez parte do bando de Chico Herrera, grupo que aparece tanto em O viajante como
em Crônica. Foi esse mesmo bando que invadiu a Chácara Meneses muitos anos depois da
morte Nina, quando apenas Ana era a última moradora da chácara. Supõe-se que André após
93
fugir da casa dos Meneses se uniu ao grupo de Chico Herrera e alguns anos depois ele retorna
à chácara da família junto com o bando para saqueá-la. Provavelmente, é nessa situação que
André recupera o caderno em que escrevia seu diário, bem como recolhe todo o material para
confecção do livro: o Diário de Betty; as cartas trocadas entre Valdo e Nina, e entre Nina e o
Coronel; as confissões de Ana; o Livro de Memórias de Timóteo e os depoimentos de Valdo.
O que une o André de Crônica... ao André de O viajante é Donana de Lara, uma vizinha dos
Meneses que reaparece em O viajante. É ela um dos principais elos entre os dois romances:
Então, ante o seu silêncio, Chico Herrera gritaria para o homem louro: “Repare
bem, André, eu vi, foi esta mulher que atirou o filho pela ribanceira.” [...]
André, que se elevara o braço à altura do rosto como se o sol o cegasse, diria
apenas: “Eu sei, eu conheço essa mulher. É Donana de Lara.” E haveria em
sua voz uma calma, uma certeza que procederia sem dúvida de outros tempos
– onde – quando? Ela não sabia – mas que assim retinindo na rua deserta, só
relembrariam coisas que o passado já sepultara há muito. (CARDOSO, 1973,
p. 192-193)
Em Crônica... as pistas que levariam a crer que foi ele o organizador do romance seriam
as seguintes: André descreve que surpreendeu Nina remexendo em seus papeis e ela pergunta:
“– Que é isto? Um romance? Um diário?” (38. Diário de André (VII), 2008, p. 355); e a outra,
seria o último parágrafo desse mesmo capítulo, uma evidência que vincula com o jovem André
de Crônica... com o André mais maduro de O viajante:
94
e, provavelmente, o André já adulto que retorna anos depois amadurecido à Chácara da família
que lhe criou como um filho. Além disso, a cidade em que o protagonista de O Viajante,
Rafael, visita em uma de suas viagens, é justamente a cidade ficcional de Vila Velha, cenário
de Crônica... .
Outra leitura fundamental para estabelecer o elo entre as duas obras é a introdução de O
viajante, escrita por Octavio de Faria. Nessa introdução, Faria (1973) nos revela que conversou
muito com Lúcio Cardoso quando ele redigia O viajante, antes de Lúcio sofrer o primeiro
acidente vascular cerebral. Eis o que nos revela Faria sobre o sentimento de Lúcio acerca de
seu último romance: “Sua confiança no romance – que, de certo modo, devia, se não ‘continuar’,
mas torna-se ‘uma sequência ligada’ a Crônica da Casa assassinada – era absoluta. Os que com
ele privaram e os que conhecem seu Diário sabem que não há exagero nessa afirmação [...]”
(FARIA, 1973, p. xiii-xvi). E mais a frente, Octavio de Faria ainda nos revela:
E ainda vejo o entusiasmo com uma de suas cenas decisivas – aliás antecipada
no final de um dos capítulos de O Viajante (cap. XII), como uma espécie de
antevisão do triste destino de Donana de Lara: o bandido Chico Herrera,
acompanhado por André (o André, falso filho de Nina, da Crônica da casa
assassinada – ou o ‘outro’, o verdadeiro filho, Glael?) [...] (FARIA, 1973, p.
xvii)
Faria chega a levantar a dúvida se André é o falso filho de Nina, ou verdadeiro, chamado
Glael. Mas temos bem mais elementos para afirmar que o André que aparece em O viajante é
o filho de Ana e o falso filho de Nina, pois Glael não foi um personagem que Lúcio Cardoso
desenvolveu bem, como podemos observar ao revisitarmos a edição crítica de Crônica... e as
edições dos Diários de Cardoso.
95
3.4 Crônica... um romance polifônico?
Para Albergaria (1996), em Crônica... haveria uma ausência de modulação, ou seja, para
ela não haveria uma diferença de tom entre as vozes dos dez narradores. A pesquisadora ainda
chega a afirmar que todas as vozes que compõem Crônica... não passam de monólogos
reunidos, o que fica subentendido que em sua perspectiva não há diálogo entre essas vozes,
dessa forma não há dialogismo, e por conseguinte não haveria polifonia. Tanto para Bandeira,
como para Albergaria, todos os narradores utilizaram uma linguagem com características
estilísticas muito parecidas, que remetiam diretamente ao autor-empírico, que ela chama de
sujeito-autor, e por isso Lúcio Cardoso foi criticado:
96
autor-empírico, ou com a voz daquele que organizou o material diversificado que compõe
Crônica... Outro aspecto que deve ser salientado, é que nenhuma obra está isenta das
concepções do autor-empírico, afinal, foi ele quem a produziu, foi ele quem pôs em palavras
boa parte daquilo que ele experienciou em sua vida, seja nas suas leituras, nos acontecimentos
que ele vivenciou e até mesmo na sua capacidade de imaginação. Sendo assim, o que se tem
em cada obra literária não é o autor empírico que ele é, mas na verdade um alter ego dele
mesmo.
Nas palavras de Bakhtin (2015), a existência de polifonia não depende apenas da
linguagem utilizada pelos personagens, independe se há um estilo único, como aparentemente
acontece em Crônica.... Aliás, se assim fosse, nem Os irmãos Karamázov, de Dostoievski,
romance que Bakhtin utiliza para explicar como funciona a polifonia, seria um romance
polifônico seguindo linha de raciocínio de Albergaria (1996) e de Coelho (1996), devido ao
grau de exigência que elas estabeleceram para considerar Crônica... como um romance
polifônico. O que vai definir se há ou não polifonia no romance é o nível de diálogo existente
entre essas personagens, seja em discursos contrários, seja em discursos concordantes, que
juntos se encontram como peças de um quebra-cabeça:
97
para a narrativa. Dessa forma, segue-se a perspectiva de Bakhtin de que apesar das relações
dialógicas pertencerem ao campo do discurso, não significa dizer que pertençam a um campo
“puramente linguístico”, pois a existência da polifonia vai muito além disso.
Lúcio Cardoso, em Maleita, tentou empreender essa representação na linguagem,
especificamente na variação linguística regional:
Lúcio Cardoso em Maleita ainda estava influenciado por esse tipo de romance regional
e assim como ele outros autores da década de 1930 e 1940 utilizavam uma linguagem mais
culta para o narrador, por meio do discurso indireto, e outra mais regional para representar a
fala de algumas personagens, através da citação das falas em discurso direto. Essa foi uma
contribuição trazida pelo que Antonio Candido (1989), em A nova narrativa, chama de
“Romance do Nordeste” que trouxe consigo um “acentuado realismo no uso do vocabulário”
(p. 203). Esses autores deram continuidade as mudanças estilísticas que iniciaram na década
de 1920, com Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
O que diferencia as personagens/narradoras de Crônica... é algo que vai muito além de
aspectos estilísticos explícitos na linguagem, são as discussões quase que filosóficas
empreendidas por André em seu diário: “O que é a morte?”; por Ana em suas confissões, nas
quais ela se indaga constantemente sobre “O que é a verdade?”; por Timóteo, no seu livro de
memórias, em que faz uma reflexão sobre “O que é a beleza?”. Esse tipo de reflexão não é
empreendido pelos outros narradores e é um traço estilístico de conteúdo que não é comum a
todos eles, é algo que vai bem além de uma análise puramente sociolinguística.
Outro aspecto que podemos ressaltar é que nem todos os narradores fazem
romanticamente a projeção do estado de seu ânimo na natureza, como Timóteo fez. Enquanto
que a narradora Ana imaginava que seu marido Demétrio era apaixonado por Nina, mas nenhum
outro narrador chega a comentar isso, nem mesmo Betty que tinha acesso as movimentações
mais obscuras da casa do Meneses. Como não temos a versão de Demétrio sobre o que ele
realmente sentia por Nina e nem o próprio Valdo percebeu alguma movimentação amorosa
entre sua esposa e seu irmão, temos pistas quase que suficientes para afirmar que Ana
provavelmente estava enganada sobre o que Demétrio realmente sentia por Nina. Quando
reunimos as falas de Demétrio sobre Nina e as atitudes de ele para com ela, o sentimento que
ele demonstra sentir por ela é um imenso ódio e não paixão. Essa confusão de sentimentos se
assemelha àquela abordada no romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, sobre o
98
que realmente existia entre Capitu e Escobar; mas lembremos que o narrador da história é
Bentinho, o que se sente traído, e por não temos a versão de Capitu, nem mesmo de Escobar
para confrontar com a de Bentinho, a versão do narrador único fica sob suspeita.
Outras características peculiares dos narradores é que o médico e o farmacêutico tendem
a narrar especulando as reações dos personagens com quem eles interagem, bem como Nina,
nas cartas que escreveu, ficava supondo as possíveis reações do destinatário ao ler sua carta; a
governanta Betty, apesar de utilizar o suporte diário, escreveu pouco sobre si mesma; o Coronel
trouxe um ponto de vista sobre Nina que só ele por conhecê-la há bem mais tempo que as outras
personagens é capaz de empreender; Valdo apesar de muito observador, desconfiado e
sensitivo, era também bastante inseguro com relação ao que via e não conseguiu interpretar o
real significado das atitudes de Nina e André; o Padre Justino em suas narrações se apresentou
como um representante da Igreja Católica e atuou lembrando os dogmas do catolicismo a alguns
personagens, como quando relembrou a Ana o sentido de pecado e quando conversa com Valdo
sobre a existência do diabo nos lugares onde não se acredita na existência de Deus, como na
Chácara Meneses. Essa reflexão se assemelha à ausência do Bom Deus no morro de Salgueiro,
porque pouquíssimos de seus moradores acreditavam em sua existência e por isso tanto o morro,
como a casa dos Meneses são considerados como Inferno.
99
momentos. Para descobrir o que realmente aconteceu naquela noite com Valdo, o leitor
empreende quase um trabalho de detetive, porque a alteração na sequência de apresentação dos
fatos não traz de imediato uma explicação definitiva para o leitor e ele tem que prestar muita
atenção nas pistas que vão sendo deixadas a cada capítulo.
No caso do ferimento de Valdo, levantaram-se as seguintes possibilidades: 1) ele se
feriu acidentalmente, quando estava limpando a arma, conforme disse Demétrio; 2) ele atirou,
intencionalmente, contra si, tentando cometer suicídio; 3) Demétrio tentou assassinar Valdo,
como insistia Nina; e por fim, 4) Nina tentou matar o marido e por isso estava fugindo.
Tudo começa com o episódio narrado por Aurélio, o farmacêutico, em sua primeira
narrativa que corresponde ao capítulo 3. Nessa narrativa, o farmacêutico conta o dia em que
recebeu a visita inesperada de Demétrio, o irmão mais velho dos Meneses. Demétrio foi até o
estabelecimento com o intuito de encontrar uma solução para eliminar um suposto lobo que
rondava a Chácara e que, segundo ele, assustava a sua esposa Ana. Ele perguntou ao
farmacêutico se ele não teria algum veneno ou algo que pudesse ser colocado em uma armadilha
para um lobo. A resposta de Aurélio foi que não se liquidam lobos com venenos e acabou dando
uma indireta a Demétrio como se quisesse algo em troca de um favor:
− Tempos duros os que vivemos, Senhor Demétrio! Veja esta parede que
carece tanto de reparos! Há dois meses espero conseguir o dinheiro necessário, e
até agora não fiz nem sequer para encomendar um tijolo! (3. Primeira
narrativa do farmacêutico, p. 48)
Dessa forma, pode-se considerar Aurélio um tanto tendencioso, pois mesmo ele não
tendo acesso aos pensamentos de Demétrio, por ser um narrador homodiegético, mesmo assim
ele faz indagações sobre as expressões faciais do irmão mais velho dos Meneses e sugere o que
ele está pensando, como podemos perceber no seguinte trecho que o farmacêutico analisa as
reações mais sutis no olhar de Demétrio: “Ele rodava a arma, e já agora eu podia perceber que
a satisfação brilhava claramente em seus olhos.” (p. 50)
Por não termos a versão de Demétrio sobre quais motivos realmente o levaram ao
estabelecimento do farmacêutico e nenhum outro personagem menciona a existência de
possíveis lobos rondando a Chácara dos Meneses, durante grande parte do romance o suspense
sobre o real intuito de Demétrio adquirir essa arma fica pairando na mente do leitor.
Uma arma aparece no capítulo “5. Primeira narrativa do médico”. Mas até então, o que
se sabia era que Valdo havia se ferido com uma arma, porém não se tinha certeza se era a mesma
que Aurélio negociara com Demétrio. Essa incerteza decorre porque o médico, narrador
escolhido pelo autor implícito para contar o ocorrido, não chegou a vê-la, talvez por isso ele
não teve acesso aos detalhes do cabo da arma. Na fala do médico, percebemos que ao chegar à
Chácara, ele é avisado por uma das empregadas da casa o motivo pelo qual foi chamado até lá:
“Enquanto subia a escada do jardim, fui logo informado de que o Sr. Valdo se ferira ao consertar
uma arma velha.” (p. 68). Demétrio foi outra pessoa que dá essa mesma adjetivação à arma que
Valdo se feriu.
Ao adentrar o quarto, o médico encontra Valdo acompanhado apenas por seu irmão
Demétrio e era ele quem respondia às perguntas do Dr. Vilaça, pois, segundo o próprio
Demétrio, Valdo estava impedido de falar devido ao ferimento. A partir do clima de incerteza
gerado pelo médico, enquanto narrador, pode-se indagar: Valdo realmente não conseguia falar
devido ao ferimento; não queria falar talvez por vergonha do ocorrido; ou ainda queria proteger
o irmão por não o acusar logo?
A partir das reações de Demétrio, quando ele foi questionado a respeito do que ocorrera,
nota-se que o médico também acabou o considerando suspeito do que aconteceu: “Perguntei se
fora aquele único lugar atingido, e o Sr. Demétrio respondeu-me que sim, se bem que
acreditasse que a bala não houvesse interessado nenhum órgão importante. Falava depressa, e
como se desejasse dar ao fato a mínima importância possível.” (p. 69). O médico percebe que
Demétrio respondia às perguntas rapidamente como se quisesse encerrar logo o assunto:
101
Perguntei se alguém escutara o tiro, e de que modo o haviam encontrado. O
Sr. Demétrio não pareceu muito satisfeito com essas perguntas, sobretudo
porque revelavam elas mais de um inquérito policial do que propriamente de
uma indagação médica, mas assim mesmo afirmou que o irmão se achava
desde cedo limpando o revólver, e que diversas vezes manifestara ele em voz
alta o receio de que sucedesse alguma coisa, já que tudo era de se esperar de
uma arma velha e emperrada; que não sabia a quem pertencia a arma; que
não ouvira o tiro, e nem ninguém da casa o ouvira; e afinal que, somente
alguns momentos antes de minha chegada, como estranhasse o silêncio do Sr.
Valdo, viera a descobri-lo, de roupão, estirado sobre o tapete da sala.
Informou ainda que havia uma poça de sangue no chão, sangue que ele
mandara a governanta limpar, enquanto conduzia o ferido para o quarto mais
próximo que era aquele. Desde aí o Sr. Valdo ainda não abrira os olhos, e ele,
Demétrio, que não podia desculpar aquela imprudência [...] (5. Primeira
narrativa do médico, p. 70, grifos nossos)
Esse trecho parece ser parte de um inquérito policial, em específico assemelha-se a seção
dos depoimentos pela forma como é conduzido e redigido, através de perguntas feitas a uma
possível testemunha do acontecimento. Pelo que se pode compreender, Valdo estava sozinho
quando se feriu, pois de acordo com o que conta Demétrio, seu irmão estava desde cedo
limpando essa arma e após um período de silêncio, Demétrio decide ir vê-lo e encontra-o ferido.
Com relação à linguagem, nota-se a semelhança com o gênero depoimento, uma das seções do
inquérito policial, como o uso de períodos longos, que possuem um verbo utilizado na primeira
oração e elipsado nas orações seguintes que são separadas por ponto e vírgula, além do uso do
“que” para elencar as orações complementares ao verbo “afirmar”.
Demétrio se faz de desentendido por dizer que não sabia a origem da arma. Ele não
queria se comprometer diante de uma pessoa que não era família? Queria proteger o irmão de
um escândalo maior? A essa altura da narrativa o leitor é conduzido ao caminho da dúvida, pois
com as informações fornecidas, ele não pode ter certeza se a arma com a qual Valdo se feriu é
a mesma que Demétrio negociou com o farmacêutico, pois ela é caracterizada apenas como
uma arma velha e emperrada. O curioso é que segundo Demétrio, nem ele e nem ninguém da
casa ouviu o barulho do tiro, mas ao conversar com Nina o médico fica sabendo que Betty, a
governanta, ouvira o barulho, bem como Ana, como será mostrado mais à frente.
Apenas no capítulo “10. Carta de Valdo Meneses” é que o leitor vai ter a certeza de que
arma com a qual Valdo se fere é a mesma da negociação entre Aurélio e Demétrio. O assunto
sobre a origem da arma e acerca do que realmente aconteceu surge numa carta que Valdo
escreve para Nina, em que ele narra o momento posterior a saída do médico do quarto onde
Valdo se encontrava:
102
O revólver pertencia a Demétrio, que se aproximara de mim certa noite,
dizendo: “É um modelo antigo, muito curioso. Seu Aurélio garantiu-me que
não poderia encontrar melhor em toda a cidade.” Tomei-o nas mãos,
examinando o gatilho. “É antigo”, concordei, “mas funciona bem.” Durante
algum tempo ele ainda fez a arma girar diante de mim, depois colocou-a sobre
um aparador, em lugar bem visível. E na verdade eu o via sempre, desde que
passasse defronte o móvel. A própria Ana, arrumando a sala um dia,
perguntou: Perguntou: “Por que você não guarda este revólver, Demétrio?”
Ele responde um tanto secamente: “Não. As armas devem ficar expostas para
serem apanhadas no instante preciso. (10. Carta de Valdo Meneses, p. 125)
Dr. Vilaça não é um narrador neutro, pois assim como o farmacêutico, ele vai
descrevendo as reações de seu interlocutor, como a alegria fingida e o escárnio que Demétrio
deixava transparecer mesmo diante da situação de sofrimento que ele via seu irmão passar. O
médico utiliza com frequência o discurso indireto livre, pouco utiliza o discurso direto que
geralmente dá mais credibilidade narrador. Nesse trecho, o médico percebe que Demétrio
finge estar alegre em ver seu irmão falar:
– Como? Já pode falar? Isto me alegra – fingiu o Sr. Demétrio, como se não
houvesse escutado perfeitamente o que o ferido dizia. E um tanto de
escarninho: – Quer dizer que tudo não passou realmente de uma brincadeira
imprudente? (5. Primeira narrativa do médico, p. 71, grifo nosso).
Antes do Dr. Vilaça deixar totalmente a Chácara, Nina surgiu entre os canteiros e dirigiu
a palavra a ele, questionando sobre o estado de Valdo: “É grave o seu estado? É realmente
grave? Como está agora? Há alguma esperança?” (p. 73). Ela confessa que já estava de partida
e de malas prontas quando acontecera tal fato com Valdo e o médico descreve a atitude suspeita
dela:
Uma ou outra vez poderia eu ter notado certo tremor em sua voz, mas era fácil
perceber que se tratava apenas de uma irritação contida antes os fatos que
provavelmente tinham vindo deter a marcha de um plano elaborado
anteriormente com maior cuidado. Também não me era difícil verificar quais
era esses planos: ela se achava de partida, provavelmente queria dizer adeus
para sempre à Chácara, e a “imprudência” viera retê-la no minuto exato da
consumação de seus planos. (5. Primeira narrativa do médico, p. 73)
Apesar de Nina deixar transparecer que não estava quando Valdo se feriu, o narrador
percebe que ela demonstrou ter muita certeza da gravidade do ocorrido, além de aparentar estar
calma e fria diante de uma situação dessa magnitude. Ainda no trecho citado, nota-se que
quando se referiu ao que ocorreu com Valdo, o Dr. Vilaça deixa a palavra “imprudência” entre
aspas, como forma de pontuar que essa perspectiva não era dele, mas de Demétrio, como vimos
103
em citação anterior. Nina questiona o médico se há risco de Valdo morrer ainda naquela noite
e ele responde dizendo que não há esse perigo, pois a bala o atingiu superficialmente. A reação
de Nina a essa informação é ainda mais curiosa:
A reação de Nina é como se ela estivesse decepcionada com o fato de o tiro só ter
atingido Valdo superficialmente, porque ela parecia ter a morte de seu marido como certa.
Assim, Nina se acaba tornando mais uma suspeita do ocorrido: será que foi Nina quem atirou
em Valdo? Ou as informações que ela sabia eram apenas as que Demétrio e Betty lhe fornecera
e ela acabou mal interpretando-as.
Ao ficar irritada por Demétrio ter lhe informado uma situação mais grave do que
realmente ocorria, Nina acaba deixando escapar uma informação, que pela reação dela, houve
arrependimento em dizê-la:
Esse ato de colocar as mãos nos lábios denota que ela deixou escapar algo que ela não
deveria ter dito e só nos capítulos seguintes é que vamos entender o porquê: o jardineiro,
Alberto, era seu amante e Demétrio o flagrara ajoelhado, beijando as mãos de Nina. Mas ao
saber pelo médico que Valdo não podia falar, pois havia perdido muito sangue, parece que ela
percebe a gravidade do que dissera e conta a sua própria versão sobre o ocorrido:
104
supor a que paroxismos o marido era capaz de levar a comédia. (5. Primeira
narrativa do médico, p. 76)
Contrariando o que dissera Demétrio ao médico, que ninguém da casa ouvira nada, Betty
ouvira o tiro, mas lembremos que essa é a versão contada por Nina e não pela própria Betty.
Além disso, ainda nos é apresentada a versão em discurso indireto do que o médico ouviu de
Nina, então tem-se quase que uma versão terciária da história, porque em seu diário Betty não
faz nenhuma menção a esse ocorrido.
Segundo a versão da própria Nina, contada ao médico, ela chegou a ir ao pequeno quarto
em que colocaram Valdo e diante da cena de seu marido ferido estendido no divã, ela não
aguentou cena e saiu correndo. Essa pode ser uma informação que descarte ter sido de Nina a
autoria do tiro, apesar dela se considerar culpada por tal ato, já que é provável que a atitude de
Valdo foi uma reação à notícia de que ela deixaria a Chácara dos Meneses.
Outra disparidade de versões ocorre sobre o real estado de Valdo: a) A governanta
adentrou o quarto de Nina e disse: “Patroa, o Sr. Valdo feriu-se mortalmente.” (p. 76), o que
levou a Nina achar que Valdo estava quase morto. Mas quando ela encontra Demétrio, ele
ameniza a informação: “Nina, é meu dever informá-la do que se passa. Meu irmão cometeu
uma imprudência, mas, pelo que vi, não é nada importante. Apenas um arranhão no peito. Se
você pretende partir, não se detenha por isto.” (p. 76). A mais provável intenção de Demétrio
em dizer que o ferimento de Valdo não passou de um arranhão foi convencer Nina a não desistir
da viagem e de se ver livre dela. Só após Nina conversar com o médico, é que ela acaba
percebendo que era essa a intenção de Demétrio.
Como até então tem-se apenas a versão Demétrio e não do próprio Valdo, Nina levanta
a hipótese de que seu marido pode ter sido vítima de um assassinato. E a partir dessa suspeita
de Nina, o médico começa a rememorar momentos no quarto do enfermo que chegam a
corroborar com essa possibilidade:
Desta feita, o médico levanta suspeitas que Demétrio pode ter sido o responsável do
ferimento de Valdo e acaba levantando mais uma dúvida no leitor: “Tudo naquele homem era
falso, estudado. [...] Aquele homem, sem dúvida, ocultava um criminoso desígnio em seu
105
coração” (p.77). Ao médico, não faltavam elementos para desconfiar de Demétrio: os olhares
que os dois irmãos trocaram dentro do quarto; Demétrio dizendo que Valdo estava incapaz de
falar sobre o que ocorrera, contrastando com o olhar suplicante de Valdo, como se quisesse
dizer alguma coisa; e quando questionado por Nina, Demétrio confirma que Valdo tentou
suicídio, para despistar o seu possível envolvimento no ocorrido.
As dúvidas sobre o que realmente ocorreu com Valdo repercutiram na cidade de Vila
Velha e, até aquele momento da narrativa, não podiam ser dirimidas pelo leitor. O
farmacêutico, em sua segunda narrativa, capítulo 7, relata essa repercussão: “Foi por essa
época que começaram a circular em nossa cidade os mais desencontrados rumores sobre a
Chácara; não se sabia ao certo o que se passava, mas suspeitava-se de tudo, até mesmo de um
crime. (O Dr. Vilaça, médico que atendia na Chácara, havia deixado escapar qualquer coisa a
este respeito...)” (p. 88). Valdo estava indo com frequência para a farmácia trocar os curativos
de um ferimento de arma de fogo, por praticamente durante três semanas. Numa dessas
visitas, o próprio Valdo dissera ao farmacêutico que se feriu “acidentalmente” e não
propositalmente como ele vai nos revelar no capítulo 10.
Leva-se em consideração que Valdo fez um relato para uma pessoa que não era de sua
família, por isso é provável que ele não tenha se sentido a vontade para confessar coisas da sua
intimidade. Então, ainda não foi dessa vez que o leitor ficou sabendo sobre o que ocorreu
naquele dia. O que Valdo diz ao farmacêutico é uma versão bem diferente daquela que ele narra
em uma carta que tem Nina como destinatária. Nessa carta, ele relembra o que aconteceu e
confessa que não foi um acidente, pois ele realmente quis atirar contra si mesmo.
Um tempo depois da saída de Nina da casa, ela envia uma carta para Valdo, no capítulo
6, depois de tanto tempo de silêncio por parte dele, e ela refere-se àquele momento de “noite
do acidente”:
Como fizera mal em ceder da primeira vez, como fora tola em não ter partido
naquela noite do tiro... (6. Segunda carta de Nina a Valdo Meneses, p. 84,
grifo nosso)
Segundo Nina, na carta, Demétrio interpretou mal uma cena entre ela e Alberto, na qual
o empregado estava aos pés dela tentando beijar as suas mãos. Mas na verdade, é revelado que
Demétrio interpretou essa cena como um forte indício de um adultério, que realmente acontecia,
106
e esse foi o motivo para ele expulsá-la da Chácara.
Nina acaba tentando reforçar a ideia que Demétrio se equivocou, pois o destinatário de
sua carta dela é o marido e não lhe convinha confirmar que ela estava traindo ele. Ela vai
argumentar tanto na primeira, como na segunda carta que foi vítima do ódio que Demétrio
sentia por ela, que ela foi mal compreendida e acusada de algo que não tinha culpa. Mas o leitor
sabe muito bem que Demétrio estava correto e através das confissões de Ana é que se tem essa
certeza. Era ela quem espreitava Nina e que descobriu o caso dela com Alberto: “À força de
farejar, de espreitar, de seguir como um animal cauteloso e faminto, acabei descobrindo a pista
infernal que me levaria a este fogo onde hoje me queimo.” (8. Primeira confissão de Ana, p.
108)
Como informamos anteriormente, apenas no capítulo 10, tem-se a versão do próprio
Valdo sobre esse incidente com a arma. Neste capítulo, é transcrita uma carta de Valdo para
Nina, na qual destacamos o trecho identificado como “pós-escrito à margem do papel”. Esta
carta é a resposta de Valdo a “6. Segunda carta de Nina a Valdo Meneses”, citada no parágrafo
anterior, em que ela expressou o seu desejo de voltar a Chácara quinze anos após o referido
acidente. Valdo, em sua carta, deixa Nina à vontade para voltar, mas lhe avisa que as coisas
estão bem diferentes de quando ela deixou a Chácara Meneses. Temporalmente, essa carta é
escrita quinze anos depois da saída de Nina da chácara, como pode ser identificada na seguinte
passagem: “Sim, você pode vir, é verdade, ninguém poderá impedi-la de regressar a esta casa
que você própria desdenhou outrora (quinze anos, quinze anos já, Nina!) com a sua
inacreditável leviandade” (10. Carta de Valdo Meneses, p. 121).
Apesar de termos agora a versão do próprio ferido, há um fator problematizador dessa
versão: o distanciamento temporal de Valdo do acontecimento. Esse lapso de tempo poderá ter
implicações significativas no detalhamento do ocorrido. Ele começa utilizando um parêntese e
o verbo lembrar: “(Lembro-me, neste instante, de modo particular, da noite em que você veio à
minha cabeceira para se despedir.” (p. 122). Essa é uma informação nova que os outros
narradores não mencionam e, em seguida, continua relembrando como foi o momento da
despedida de Nina que já não suportava o que ela chamava de “comédia tola” (p. 123) o que
fazia principalmente Demétrio contra ela:
107
Passados esses quinze anos, Valdo avalia seu “ato inútil de desvario” como um excesso
daquele momento e mais à frente se refere a um “gesto desesperado”.
Depois da saída do médico, Nina entrou no quarto em que o marido estava e ao conversar
com Valdo parece estar procurando algum objeto e o próprio Valdo percebe:
O objeto que procurava – e eu sabia tão bem quanto você – era o revólver que
me servira. Sim, Nina, o revólver com o qual tentara meu suicídio malogrado.
Provavelmente, você também percebeu que eu adivinhara tudo, e como
instintivamente meu olhar se dirigisse para a gaveta da cômoda, você se
precipitou, abriu-a, retirando a arma triunfalmente. Demétrio o enrolara num
lenço, a fim de subtraí-lo às minhas vistas.
– Aqui está ele – bradou você – o revólver assassino. Só você, Valdo, só você
pode tentar enganar-me a respeito de fatos tão estúpidos. (p. 124)
[...]
– Não foi uma tentativa de suicídio – continuou você – e sim de assassinato.
A quem pertence este revólver, Valdo, há quanto tempo se acha ele exposto a
todos os olhares, ocupando o lugar mais visível, tentando-o, induzindo-o ao
gesto daquela noite? (p. 125)
Ainda nessa mesma página, Valdo conta que Demétrio comprou essa arma a Seu
Aurélio, o que comprova que é a mesma arma do farmacêutico e conta também em que situação
Demétrio fez questão de deixar a arma em cima do aparador, alegando que armas devem ficar
expostas para serem rapidamente apanhadas quando surgir necessidade. Mesmo apresentado
esses fatos anteriores à tentativa de suicídio, Valdo confirma que acredita na tentativa de
indução, mas não acha que ele era o alvo, mesmo assim Nina insistia que Demétrio tentou
assassiná-lo e Valdo reafirma que ele mesmo tentou tirar sua própria vida e não o irmão dele.
Ana é a narradora que se apresentou mais precisa quanto aos detalhes do acontecimento
com Valdo. Ela em sua segunda confissão, que está transcrita no capítulo 14, informa-nos:
“Eram exatamente quatro horas da tarde [...]” (p. 156), e contrariando a versão apresentada por
Demétrio ao médico, que ninguém mais da casa ouvira o tiro, a sua esposa Ana relata ao Padre
Justino que ouviu não uma detonação, mas duas:
Ana achava que os tiros tinham sido disparados por Alberto contra Nina, e assim seria
o fim daquela que a incomodava com o seu modo diferente de ser. Mas quando Alberto passou
correndo para chamar o médico, Ana descobriu que foi Valdo que estava ferido e não Nina.
Alberto ao dizer: “O patrão: feriu-se.”, utiliza o pronome reflexivo “se”, o que reafirma que
108
Valdo tentou atirar contra si mesmo e que não foi um ato de outra pessoa.
Apesar do leitor a essa altura da narrativa já saber pelo próprio Valdo o que aconteceu
naquela noite, Ana demonstrava não saber o que realmente havia acontecido:
Assim, pois, fora Valdo. Talvez tivesse tentado contra a vida. Talvez fosse a
vítima, a vítima inesperada do crime que tanto aguardava. (14. Segunda
confissão de Ana, p. 158)
109
incrustações de madrepérola no cabo.
[...]
O Sr. Valdo atalhou-me com certa aspereza:
– É bastante, Senhor Aurélio, que se lembre de tê-lo vendido.
- Por quê? Aconteceu algum acidente? Neste caso – e fiz um gesto de quem
salvaguardava sua responsabilidade.
(50. Quarta narrativa do farmacêutico, p. 445)
Valdo acaba oferecendo uma recompensa para Aurélio lhe contar o resto da história e
assim o farmacêutico consegue uma contrapartida de outro irmão Meneses. Diante da
recompensa, Aurélio acaba contando o que houve depois desse primeiro encontro com
Demétrio. Ele confessa que cerca de um ano depois da venda do revólver, Demétrio voltou ao
estabelecimento do farmacêutico aparentando nervosismo e Aurélio acaba perguntando se a
arma já havia lhe servido e ele lhe informa que ainda não, pois o lobo não voltara mais. Aurélio
responde que nunca ouvira falar de lobos rondando pela região, assim como dissera da primeira
vez que Demétrio se queixou da existência desse tipo de animal. Num tom de brincadeira, talvez
na tentativa de demonstrar que entendeu que o lobo na verdade não era o animal, mas na verdade
um humano inconveniente, Aurélio acaba dando uma sugestão a Demétrio: “Sugeri com ironia
que talvez os lobos adivinhassem onde existiam armas” (p. 448) e que ele acaba achando muito
boa: “O senhor está fazendo uma boa sugestão – preciso deixar a arma bem à mostra.” (p. 448).
Mesmo fazendo a ironia, Aurélio confessa que não sabia exatamente sobre o quê e até
110
mesmo sobre quem eles falavam. Valdo ainda instiga o farmacêutico a lembrar mais detalhes
daquela conversa e ele acaba lembrando que Demétrio estava muito agitado, amedrontado,
como se estivesse com medo de alguma coisa. E uma fala de Demétrio que Aurélio acaba
lembrando deixa Valdo satisfeito:
O que se subentende que Valdo ficou satisfeito com essa revelação de Aurélio, pois foi
como se as peças do quebra-cabeça tivessem todas se encaixado. É provável que Demétrio havia
adquirido a arma e a deixou talvez guardada em um local escondido, por isso talvez o efeito
que Demétrio esperava não foi logo obtido. Então a ideia do farmacêutico de deixar a arma
amostra contribuiu para a tentativa de suicídio de Valdo, ao se ver diante da situação de
desespero na qual Nina iria deixar a Chácara.
Dessa forma, constata-se que deixar a arma amostra foi uma estratégia do próprio
Demétrio, sugerida indiretamente pelo farmacêutico, por volta de um ano depois desse encontro
em que ele adquiriu a arma. Porém, o leitor só vai ter acesso a essa informação no capítulo 50,
ou seja, quarenta e sete capítulos depois em que a arma apareceu pela primeira vez na narrativa.
Sobre o episódio do suicídio de Valdo, pelo menos cinco dos dez narradores contribuíram
para a elucidação sobre o que realmente aconteceu naquele final de tarde na Chácara dos
Meneses, foram eles: o farmacêutico, o médico, Ana, Nina e o próprio Valdo. Além dos
cinco narradores, a fala do personagem Demétrio que surge dentro das narrativas do
farmacêutico e do médico, também contribuíram para o esclarecimento de tal fato. Nota-se que
tanto houve dissonâncias entre alguns discursos, como também consonâncias, e que todos se
dispuseram a apresentar a sua versão sobre o mesmo fato acabaram estabelecendo um diálogo
provido pelo autor implícito, o regente de todas essas vozes, dessa forma podemos afirmar que
realmente há polifonia em Crônica da Casa Assassinada.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
112
efetivando mais a participação do leitor na obra, que na época do realismo, naturalismo e no
romance de 1930 atuava como um sujeito passivo diante da condução do narrador único, que
muitas vezes utilizava uma cronologia linear, em que a diegese seguia geralmente a mesma
sequência da história. No romance moderno do século XX, o leitor é um sujeito ativo, cabe a
ele preencher as lacunas deixadas pelo texto do autor, diferentemente do narrador tradicional
que dava tudo detalhado para o leitor: o espaço, o ano e se possível até a data, bem como as
características físicas e psicológicas das personagens, além de facilitar o trabalho do leitor ao
utilizar a sequência começo-meio-fim.
Sendo assim, podemos concluir que Lúcio Cardoso iniciou sua produção romanesca
com Maleita seguindo o modelo de narrativa de acordo com aquela em voga na época, com a
focalização fixa, a cronologia linear, as personagens sendo influenciadas pelo meio em que
viviam, traços que ainda encontramos em Salgueiro em suas duas primeiras partes. Porém, a
partir da terceira parte de Salgueiro percebe-se a focalização se modificando do externo para o
interno, isto é, Geraldo deixa de ser apenas uma marionete de seu destino e passa a usar o
livre arbítrio sobre a sua própria vida. Isso vai ser obtido através do desenvolvimento do
psicológico do personagem, reflexo na literatura do que vinha acontecendo na sociedade nas
primeiras décadas do século XX, como os significativos estudos sobre a mente humana de
Sigmund Freud.
A partir de A luz no subsolo, o estilo intimista de Lúcio Cardoso foi dando seus próximos
passos e a focalização passou de fixa, para variável, pois o narrador através do recurso da
onisciência seletiva múltipla foi alternando a focalização da diegese entre as mentes das
personagens. Em Crônica da casa assassinada, o ápice do intimismo ocorre através da
fragmentação discursos, pois a relação entre as personagens era marcada pela
incomunicabilidade, o que acabava reforçando o intimismo de cada personagem/narrador.
Dessa fragmentação estrutural dos discursos dos personagens/narradores, eles acabavam muitas
vezes se completando e se contradizendo como peças de um quebra-cabeça que não tinha como
resultado formar uma imagem única, pelo contrário, o principal intuito era mostrar o
estilhaçamento da família tradicional mineira.
Portanto, concluímos que a mudança no tipo de focalização e na opção pela
variabilidade de narradores contribuiu substancialmente para constituir o estilo de Lúcio
Cardoso. Com essa alteração, Cardoso entrou em consonância com narrativa moderna do século
XX, pois além dele outros autores da literatura brasileira e estrangeira passaram a utilizar o
recurso da diegese narrada por pontos de vista múltiplos com o fim de representar a era da
certezas voláteis, a exemplo de Jogo da amarelinha (1953), de Julio Cortázar; As meninas
113
(1973), Lygia Fagundes Telles; A ostra e o vento (1997), de Moacir Costa Lopes (1997);
Detetives Selvagens (1998), de Roberto Bolaño, só para citar alguns.
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