Simulação

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SECÇÃO II

Divergências Intencionais Enganosas

DIVISÃO I
A simulação

§ 1.º
Noção e modalidades

513. Noção de simulação1

I. A simulação é a principal modalidade de divergência intencional entre a


vontade real e a declarada, nomeadamente pela frequência com que ocorre
na prática social e pelos complexos problemas dogmáticos implicados no
seu regime.
Por simulação entende‑se o acordo (ou conluio) entre o declarante e o declara-
tário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e
no intuito de enganarem terceiros.
A análise desta noção revela que, para haver simulação, devem ocorrer
simultaneamente os seguintes elementos:
a) divergência entre a vontade real e a declarada;
b) acordo ou conluio (pactum simulationis) entre as partes;
c) intenção de enganar terceiros (animus deciplendi).
1
Sobre a matéria da simulação, em geral, para além de referências monográficas específicas
adiante feitas, vd. I. Galvão Telles, Manual, págs. 165 e segs.; Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II,
págs. 152 e segs.; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 466 e segs.; Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol.
II, págs. 219 e segs.; Menezes Cordeiro, Tratado, vol. I, T. I, págs. 839 e segs.; P. Pais de Vasconcelos,
Teoria Geral, págs. 682 e segs.; e Heinrich E. Hörster, A Parte Geral, págs. 535 e segs. No domínio
do Código revogado: Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. II, págs. 168 e segs., e Cabral de Mon-
cada, Lições, vol. II, págs. 268 e segs. Para maior desenvolvimento, cfr. estudo de Beleza dos Santos,
A simulação; Alberto Auricchio, A simulação no negócio jurídico. Premissas Gerais, (trad. port. de Fer-
nando Miranda), Coimbra, 1964; e Rui de Alarcão, Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 305 e segs.
A SIMULAÇÃO 311

II. Esta noção decorre do n.º 1 do art. 240.º do C.Civ. e, embora seja
suficientemente clara e não exija desenvolvimentos especiais, justifica ainda
assim algumas notas adicionais. Uma delas prende‑se com o modo como se
configura a simulação relativa, pelo que se reserva o seu esclarecimento para
o momento da exposição do correspondente regime; a outra respeita ao
campo de aplicação do instituto.
Sendo o conluio das partes um dos elementos do conceito, logo se coloca a
questão de saber se a simulação é aplicável a negócios unilaterais (em particular
não recipiendos), uma vez que o referido elemento parece pressupor a existên-
cia de duas partes, como é próprio dos negócios bilaterais.A simulação tem, por
certo, o seu campo de aplicação, por excelência, no contrato; não se verifica,
contudo, obstáculo sério à existência de um acordo simulatório entre quem é
parte no negócio unilateral e quem é seu destinatário ou até, mesmo, benefici-
ário da correspondente declaração, no intuito de enganar outros terceiros1.
O próprio legislador revela que a noção do art. 240.º não exclui este
entendimento, ao falar em simulação no testamento (art. 2200.º do C.Civ.),
que é um negócio unilateral não recipiendo.

III. A simulação ocorre com relativa frequência na vida prática, sendo


determinada por razões múltiplas: as partes fingem praticar negócios que
efectivamente não querem, visando por esse meio alcançar os mais diversos
fins. Compreensível é, por isso, que a simulação se apresente sob múltiplas
modalidades, a algumas das quais correspondem regimes específicos; interes-
sa, por isso, começar por fazer aqui a sua análise.
Serão, por isso, consideradas, de seguida, as mais relevantes distinções que
se podem estabelecer nesta matéria e que demarcam a simulação fraudulenta
da inocente, a absoluta da relativa e a subjectiva da objectiva.

514. Simulação fraudulenta e simulação inocente

A distinção entre simulação fraudulenta e simulação inocente funda‑se na


seguinte ordem de considerações. A simulação implica sempre a intenção de
enganar terceiros. Com esta intenção pode ou não cumular‑se a de prejudi-
car outrem (animus nocendi).
Quando, além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação
diz‑se fraudulenta; se só existe animus decipiendi, a simulação é inocente.
Com frequência significativa ocorre a simulação fraudulenta, determina-
da pelos mais diversos fins que a malícia humana pode criar. Assim, simula
1
Cfr., I. Galvão Telles, Manual, págs. 170‑171; Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 154 e
nota (336); e Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. II, pág. 219.
312 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

o devedor vender os seus bens para os furtar à execução dos credores; simu-
la alguém vender a outrem alguma coisa, que efectivamente lhe doa, para
evitar que a doação seja tomada em conta no cálculo da legítima na heran-
ça por morte do doador, prejudicando‑se, assim, os herdeiros legitimários;
declara‑se, na venda, um preço inferior ao real, em prejuízo do fisco, pela
redução do correspondente valor de incidência do imposto do selo, ou, pelo
contrário, declara‑se um valor superior ao real para afastar o interesse do
titular de um direito de preferência.
E fácil seria multiplicar os exemplos deste e doutros tipos.
Menos frequentes serão os casos de simulação inocente, mas mesmo as-
sim podem verificar‑se, quer para fins de ostentação de riqueza (ad pompam
et ostentationem), quer para manter oculta certa realidade que, embora não
seja prejudicial a terceiro, poderia ocasionar reacções desagradáveis para o
simulador, se fosse conhecida. Assim, quando alguém, sem herdeiros legi-
timários, encobre com uma venda a doação de certos bens, pode fazê‑lo
apenas para evitar o desagrado dos seus eventuais herdeiros legítimos ou de
familiares não contemplados na doação.
Ao contrário do que sucedia no domínio do Código de Seabra1, a distin-
ção tem hoje pouco interesse prático, pois o regime da simulação fraudulen-
ta não se afasta sensivelmente do da inocente, salvo em aspectos particulares
adiante assinalados.

515. Simulação absoluta e simulação relativa

I. Considerada de um ponto de vista diferente, ou seja, atendendo ao


tipo de divergência verificada, a simulação pode classificar‑se em absoluta
ou relativa. Estas duas modalidades de simulação correspondem às seguintes
realidades.
Em certos casos, o pactum simulationis dirige‑se à celebração de um negó-
cio e as partes não querem, na realidade, celebrar esse negócio nem qualquer
outro2. A, devedor de B, simula com C vender‑lhe certa coisa; todavia, A e C
não querem, na verdade, a venda nem qualquer outro negócio, mas impedir
que B, no exercício do seu direito, penhore a coisa objecto da venda. Na
linguagem corrente, fala‑se aqui em venda fantástica. Em casos como este, a
divergência diz‑se absoluta.

1
O art. 1031.º desse Código só feria de nulidade o acto se a simulação fosse fraudulenta:
«os actos ou contratos, simuladamente celebrados pelos contraentes com o fim de defraudar os
direitos de terceiros».
2
Como se diz na fórmula clássica, o negócio simulado, em tais casos, colorem habet substantiam
vero nullam.
A SIMULAÇÃO 313

Noutros, porém, que se podem ilustrar com o exemplo antes referido da


doação encoberta por venda, as partes declaram querer certo negócio, quan-
do, na verdade, querem outro1. Aqui o negócio simulado encobre outro acto
(que é dissimulado); declara‑se vender, mas a vontade real das partes é doar.
A simulação em tal caso é relativa.

II. Tal como está desenhada na lei e a entende a doutrina dominante,


nomeadamente a portuguesa, esta é a configuração da simulação relativa: há
dois negócios, um, a que se dirige o pactum simulationis, o negócio simulado,
que não é efectivamente querido pelas partes; outro, encoberto pela simulação,
mas a que na verdade se dirige a vontade dos simuladores, que é o negócio
dissimulado, cujos efeitos os simuladores realmente querem. Estes dois negó-
cios são distintos e devem ser tratados autonomamente. O n.º 1 do art. 241.º
do C.Civ. reflecte esta configuração do instituto, quando estatui não ser a
validade do negócio dissimulado afectada pela simulação, sendo‑lhe aplicável
o regime que lhe corresponderia se fosse celebrado sem dissimulação2.
Segundo outros autores, porém, o negócio dissimulado só vale se nas de-
clarações que integram o negócio simulado se contiverem os elementos de
fundo e de forma que o devem constituir. Segundo esta forma de conceber
a simulação relativa, de que se encontram também algumas manifestações na
doutrina portuguesa3, de acordo com a posição de Cunha Gonçalves, não
há, na realidade, dois negócios, não sendo a chamada convenção aparente
mais do que o meio de realizar a secreta. «Daí resulta que não pode ser nula a
convenção aparente e válida a secreta. Não há jamais uma tal independência
entre as duas convenções»4.
Como é manifesto, segundo esta concepção, a reconstituição do negócio dissi-
mulado só se torna possível a partir dos elementos de forma e de substância do
simulado. Nomeadamente, é corrente os defensores desta teoria sustentarem
que a validação do negócio dissimulado opera por conversão do simulado5.
É a primeira concepção que traduz, de modo correcto, a realidade da
simulação relativa. Nela, estão em presença dois negócios, pois, para além do

1
Em fórmula correspondente à citada na nota anterior, diziam os antigos que, neste caso,
o acto simulado colorem habet substantiam vero alteram.
2
Neste sentido se pronunciam Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. II, pág. 174; Beleza dos
Santos, A Simulação, vol. I, págs. 356‑357; I. Galvão Telles, Manual, pág. 168; Castro Mendes, Teoria
Geral, vol. II, pág. 155; C. Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 468; Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol.
II, pág. 220; e Heinrich E. Hörster, A Parte Geral, pág. 536.
3
Por influência de Coviello, sustentou esta tese, na doutrina portuguesa, Abranches Ferrão,
Das Doações, vol. I, págs. 143‑145. É menos nítida a posição de Cunha Gonçalves, como se pode
ver em Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português, vol. V, Coimbra Editora,
1932, págs. 738‑740, e vol. I, pág. 407.
4
Tratado, vol.V, pág. 738.
5
Cfr., para maiores desenvolvimentos, o exposto em A Conversão, págs. 741‑744.
314 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

fingido, as partes dirigem, efectivamente, desde o início, a sua vontade aos


efeitos de outro negócio, chegando mesmo a estabelecer para ele um título
jurídico diferente, a chamada contradeclaração. Por isso, o negócio dissimulado
tem de ser valorado em si mesmo, segundo os elementos integrados da si-
mulação, ou seja, os relativos a ambos os negócios.
Como lucidamente escreveu Beleza dos Santos, «na simulação não
há um acto que se transforma, há um acto aparente que é nulo e um
acto real que foi querido pelas partes e que não é a transformação do
primeiro»1.
Em suma, e esta é a conformação ajustada à própria maneira de ser do
instituto, na simulação relativa, as partes querem manter uma aparência cor-
respondente ao negócio simulado, pois não lhes interessa revelar o acto que
efectivamente celebraram e a cujos efeitos ab initio a sua vontade se dirige.
Por isso, se a aparência não puder manter‑se, por ser descoberta a simulação,
o acto dissimulado não deixará de ser invocado para, sendo juridicamente
possível, os seus efeitos subsistirem.

III. A distinção entre simulação absoluta e simulação relativa é particu-


larmente relevante e, como adiante melhor se exporá, vai repercutir de for-
ma significativa no regime dos efeitos da simulação. Na verdade, enquanto
na simulação absoluta só há a considerar o negócio simulado, na relativa
tem de se levar ainda em conta o dissimulado e fixar o seu regime.
A simulação relativa pode verificar‑se quanto a vários elementos dos
negócios jurídicos2. Os casos mais frequentes reconduzem‑se às seguintes
três categorias:
a) simulação de pessoas ou simulação subjectiva, isto é, declara‑se contratar
com A e na verdade contrata‑se com B;
b) simulação da natureza jurídica do negócio, quando se diz fazer uma venda
e efectivamente se faz uma doação, por exemplo; é uma das modalidades de
simulação objectiva ou sobre o conteúdo do negócio;
c) simulação de valor, que ocorre quando se declara no acto simulado um
preço ou elemento correspondente diferente do real (mais elevado ou mais
baixo); é outra modalidade de simulação objectiva.

A Simulação, vol. I, pág. 352.


1

Na simulação relativa distingue ainda I. Galvão Telles a total («sempre que os dois negócios,
2

o simulado e o dissimulado, pertencem a tipos ou categorias diferentes») e parcial (quando «o contrato


dissimulado tem natureza igual à do simulado, coincidindo com ele na generalidade dos aspectos, e
dele só diferindo num ponto ou outro»). Exemplo do primeiro caso verifica‑se na simulação de
venda que dissimula doação e do segundo na simulação de valor mas também na interposição de terceiro
(Manual, págs. 168‑169; os itálicos são dos textos).
A SIMULAÇÃO 315

516. Simulação subjectiva e simulação objectiva

Na distinção entre simulação subjectiva e objectiva atende‑se ao elemento


do acto jurídico a que respeita o pactum simulationis, como resulta do que já
ficou dito no número anterior. Assim, a simulação é subjectiva se se reporta
aos sujeitos do acto e objectiva nos demais casos.
Deste modo, na simulação objectiva está em causa a natureza do acto –
declara‑se celebrar um negócio, quando se quer outro –, ou o conteúdo do
negócio – finge‑se fazer certa estipulação, quando se quer outra.
A simulação subjectiva reporta‑se às partes do negócio, que não são
aquelas que aparentemente nele intervêm. Há várias razões que podem
levar a um conluio sobre quem é parte no negócio. Em certos casos, o ver-
dadeiro interveniente não estaria em condições de, em absoluto, o praticar;
noutros o problema reside no facto de o verdadeiro contraente não poder
celebrar o negócio com o simulador ou só o poder fazer em condições que
se não verificam naquele caso; pode ainda acontecer que ao simulador não
interesse que aquela pessoa – o verdadeiro contraente – surja como parte
do negócio. Nesta modalidade de simulação há uma interposição fictícia de
pessoas1.
Um exemplo clássico deste tipo de simulações, no sistema jurídico por-
tuguês, anda ligado ao regime estatuído no art. 877.º, n.º 1, do C.Civ. e visa
justamente ultrapassar as limitações que dele decorrem. Assim, se A quer
vender um quadro a um seu filho B, sabendo que os demais filhos não
darão o seu acordo a esse negócio, uma forma de ultrapassar a dificuldade
consistirá em simular uma venda a C, que aceita intervir falsamente no acto,
para, a seguir, entregar a coisa a B. Neste caso há uma simulação subjectiva,
C só fingidamente é parte na venda, que em verdade ocorre entre A e B;
a posição de C corresponde ao que na linguagem corrente se designa por
testa de ferro ou homem de palha. Como é manifesto, pode atingir‑se o mes-
mo desiderato através de uma simulação objectiva, simulando uma doação
para encobrir o verdadeiro contrato de compra e venda celebrado entre as
partes2.

1
Com esta modalidade de simulação não se deve confundir a interposição real de pessoas, figura
afim da simulação, que adiante será referida.
2
Na prática, as partes preferirão adoptar a primeira modalidade de simulação pelos efeitos
sucessórios ligados ao regime da doação.
316 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

§ 2.º
Regime jurídico

517. Prova da simulação

I. O regime jurídico da simulação assenta, como é manifesto, na demons-


tração de que o negócio entre as partes é simulado e, sendo caso disso, na da
existência de um negócio dissimulado. Na verdade, enquanto tal não ocor-
rer, prevalece a aparência criada pelo pactum simulationis e, embora de iure os
efeitos produzidos dependam do valor do negócio simulado e, eventualmen-
te, do dissimulado, de facto, aquilo que se revela a terceiros são os efeitos do
negócio simulado.
Deste modo, subjacente ao regime da simulação adiante exposto, está o
da sua prova. É essa relevância que justifica o afastamento da posição que,
em sede de Teoria Geral, em regra se assume em matéria de prova, dando
como assentes os factos cujo regime é estudado, prescindindo, neste sentido,
dos problemas da sua prova. Em matéria de simulação, porém, a questão da
sua prova coloca‑se em termos complexos e específicos, a exigir referência
neste momento.
Desde logo, a prova da simulação respeita ao próprio pactum simulatio-
nis – logo ao negócio simulado, mas pode também referir‑se ao negócio
dissimulado. Noutro plano, interfere com o regime da prova da simulação
a circunstância de a ela pretenderem recorrer os próprios simuladores ou
terceiros. Quanto ao primeiro ponto, interessa desde já assinalar que a lei
estabelece o mesmo regime para a prova do pacto simulatório e do negócio
dissimulado.
Noutro plano, a prova da simulação tanto pode interessar aos simuladores
(rectius, a um deles), como a terceiros. As razões justificativas do tratamento
da matéria da prova da simulação respeitam fundamentalmente ao seu re-
gime quando ela é feita pelos simuladores. É, pois, nessa perspectiva que de
seguida esta matéria vai ser estudada, sem prejuízo de, incidentalmente, se
fazerem algumas referências à prova da simulação por terceiros.

II. Pelo que respeita à prova da simulação pelos simuladores, a primeira


nota a referir é a de ser indiferente, quanto a este ponto, se eles pretendem
invocar a simulação entre si ou em relação a terceiros. A prova da simulação
pelos simuladores, nas suas duas vertentes – prova do acordo simulatório e
do negócio dissimulado – está sujeita directamente às limitações do n.º 1
do art. 394.º do C.Civ., quanto à prova testemunhal e, indirectamente, às
do art. 351.º, quanto à prova por presunções judiciais, por este preceito só
A SIMULAÇÃO 317

admitir este meio de prova «nos casos e termos em que é admitida a prova
testemunhal».
Assim, e sem prejuízo das considerações adiante expostas, quando os si-
muladores pretendam invocar a simulação, só lhes está facultada, sem res-
trições, a prova por confissão e a prova documental, já que neste domínio,
embora admitida, será em geral pouco significativa a prova pericial.
Estando a eficácia da confissão, normalmente, condicionada pela cola-
boração dos próprios simuladores e não sendo corrente, no sistema jurídico
português, a prática de contradeclarações, já se deixa ver que o regime acima
traçado se apresenta particularmente restritivo.
A doutrina, porém, tem vindo a pôr em causa o alcance literal das proi-
bições resultantes do citado art. 394.º A posição corrente foi, num primeiro
momento, a de as entender à letra1, mas deve hoje considerar‑se dominante
uma interpretação restritiva.
Esta segunda orientação foi primariamente defendida, na vigência do
actual Código, por Vaz Serra2 e posteriormente por C. Mota Pinto e Pinto
Monteiro3 e por nós próprios4, sendo perfilhada por Menezes Cordeiro5 e
Pedro Pais de Vasconcelo6 e acolhida na jurisprudência. Todos os defensores
deste entendimento aceitam, em casos particulares, o recurso à prova teste-
munhal, em complemento da prova documental, mas não são inteiramente
coincidentes os termos em que a admitem. A posição mais liberal é a de Vaz
Serra e a mais condicionada a aqui sustentáda.
Limitando aqui a exposição ao essencial7, a questão coloca‑se nos seguin-
tes termos.
Importa ter presente não só o campo de aplicação do art. 394.º8, mas,
ainda, que a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de
documentos, enquanto eles façam prova plena, não impede o recurso àquele
meio de prova «para demonstrar a falta ou os vícios da vontade com base nos
quais se impugna a declaração documentada»9, nem para a «simples interpre-
tação do contexto do documento» (n.º 3 do art. 393.º do C.Civ.).
1
Neste sentido, Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. II, pág. 227.
2
Em anotação ao ac. do STJ, de 4/DEZ./73, in RLJ, ano 107.º, pág. 311 e segs., reeditando
posições sustentadas nos trabalhos preparatórios do novo Código: Provas (direito probatório material),
in BMJ, n.º 112, págs. 194‑197, 219‑232, 235 e 292.
3
Arguição da simulação pelos simuladores. Prova testemunhal, parecer, in CJ, ano X, 1995, t. 3, págs.
11 e segs.
4
A Prova da Simulação pelos Simuladores, parecer, sep. O Direito, ano 124.º, 1992, IV (págs. 193
e segs.); em versão actualizada, in Estudos Sobre a Simulação, QUID JURIS, Lisboa, 2004, págs. 45
e segs.
5
Tratado, vol. I, T. I, pág. 851.
6
Teoria Geral, págs. 695-697.
7
Podem ver‑se desenvolvimentos, com referências, no est. cit. na ant. nota 4.
8
Cfr., a este respeito, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, vol. I, pág. 343.
9
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 342.
318 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

A relevância deste preceito reside no facto de assim se poder dar como


assente que as limitações do art. 394.º não se fundam na força probatória do
documento, como, de resto, o confirma o n.º 3 desse mesmo preceito.
Não se trata, também, de sancionar os simuladores, segundo a velha regra
nemo auditur turpitudinem propriam allegans, pois isso envolveria a proibição
absoluta de os simuladores invocarem a simulação, contra o que é admitido
pelo n.º 1 do art. 242.º do C.Civ., que lhes reconhece legitimidade para o
fazer mesmo em relação à simulação fraudulenta.
A razão de ser da proibição do art. 394.º, como a doutrina em geral re-
conhece, reside na necessidade de afastar os riscos próprios da falibilidade e
fragilidade da prova testemunhal, que poderia conduzir à prova de uma simu-
lação efectivamente não existente, contra a prova documental mais segura.
Por outro lado, importa também ter presente que, na generalidade dos
casos, um entendimento muito rigoroso do art. 394.º pode deixar um dos
simuladores nas mãos do outro, facilitando o aproveitamento iníquo da apa-
rência criada pela simulação.
Feito o balanço destes pontos, e não podendo ser ignorado o texto da lei,
deve ter‑se como afastada a possibilidade de recurso a testemunhas e a pre-
sunções judiciais, como meios probatórios exclusivos da simulação, mas não já
se eles funcionarem apenas como meios complementares de prova da simulação,
primariamente fundada em documentos.
Desde logo, a prova testemunhal pode então ser admitida para determi-
nar o sentido das declarações contidas em documentos relativos ao negócio.
Mas pode ir‑se um pouco mais longe, atribuindo à prova testemunhal uma
função complementar, quando exista um começo de prova documental da si-
mulação, contribuindo então para permitir ao juiz formar uma convicção
da existência da simulação, quando a prova documental apenas permitir tê‑la
como plausível ou provável. O mesmo se diga quanto ao recurso a presunções
judiciais, se elas permitirem ao juiz chegar a igual convicção, em circunstân-
cias equivalentes, com base em regras de experiência nascidas da observação
das coisas da vida.
Em qualquer destes casos – e convém deixar isso bem assinalado –, a base
da prova não deixa de ser documental, ficando assim afastados os riscos aci-
ma referenciados. Nunca a prova testemunhal ou pericial poderá, portanto,
assumir o papel mais importante na demonstração da simulação.
Neste sentido, deve ser sustentada, pois, uma interpretação restritiva do art.
394.º, quanto às limitações impostas aos simuladores, em matéria de prova.

III. É muito mais simples o regime da prova da simulação por terceiros,


pois, como claramente resulta do n.º 3 do art. 394.º, não valem para eles as
limitações impostas nos demais números do preceito.
A SIMULAÇÃO 319

Compreende‑se a diferença de tratamento. Os terceiros não têm ao seu


alcance, como acontece com os simuladores, a possibilidade de se munirem
de documentos comprovativos da simulação. Para além disso, quando eles
existam – e mesmo que eles sejam do seu conhecimento –, podem não con-
seguir a demonstração da sua existência ou ter acesso a eles.

518. Valor do negócio simulado

O regime da simulação, pelo que respeita ao valor do negócio simulado,


não sofre influências significativas da modalidade da simulação. Só a simula-
ção fraudulenta tem algum relevo, mas no campo específico da arguição da
simulação por terceiros. A este respeito interessa sobretudo assinalar a irrele-
vância da distinção entre simulação absoluta e relativa.
Na simulação absoluta só está em causa o negócio simulado e, quanto a
ele, é bem clara a disposição expressa do n.º 2 do art. 240.º do C.Civ., ao
declará‑lo nulo. Nem outra solução seria admissível, mesmo em face dos
princípios da equidade e da boa fé1. Tal regime resulta também da aplicação
da teoria da responsabilidade atrás enunciada.
Se, na simulação relativa, a existência de dois negócios torna o regime de
efeitos da simulação mais complexo, por além do negócio simulado exis-
tir o negócio dissimulado, tal não se verifica quanto ao valor do negócio
simulado.
O negócio simulado continua a ser nulo. Se, porventura, o carácter gené-
rico da disposição do n .º 2 do art. 240.º pudesse deixar lugar para dúvidas
(e não deixa), elas ficariam dissipadas pela parte final do n.º 1 do art. 241.º
do mesmo Código, que, regendo especialmente sobre a simulação relativa,
expressamente reafirma a nulidade do acto simulado.

519. Valor do negócio dissimulado

I. O regime de efeitos da simulação apresenta maior complexidade quan-


do se trata de estabelecer o valor do negócio dissimulado2.

1
Era, de resto, a opinião largamente dominante já na vigência do Código de Seabra (vd., por
todos, Rui de Alarcão, Simulação, in BMJ, n.º 84, pág. 308 e autores aí citados).
2
Sobre o valor do negócio dissimulado, vd. I. Galvão Telles, Manual, págs. 179 e segs.; Oliveira
Ascensão, Teoria Geral, vol. II, págs. 224 e segs.; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 473 e segs.; e P.
Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, págs. 686 e segs.
Foi tratada, em particular, esta matéria in Valor do negócio dissimulado, anot. ac. do STJ, de 12/
MAR./96, sep. de O Direito, ano 129.º, 1997, I‑II, págs. 117 e segs.; em versão actualizada, vd.
Estudos sobre a simulação, págs. 13 e segs.
320 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

A primeira parte do n.º 1 do art. 241.º fornece a tal respeito o seguinte


ponto de partida: o negócio dissimulado não é afectado pela simulação e
deve ser apreciado em si mesmo, como se não houvesse dissimulação. Su-
gestivamente, pode dizer‑se que o intérprete deve, pois, afastar o negócio
simulado para deixar a descoberto o negócio dissimulado. Este deverá ser em
seguida examinado como se fosse celebrado isoladamente e não a coberto
de um negócio simulado.
Daí não resulta necessariamente, como poderia pensar um observador
menos atento, a validade do negócio dissimulado; apenas se pode dizer, se-
guindo de perto o texto legal, que a sua validade não é afectada pela si-
mulação1. Assim, ele será válido, anulável ou nulo, eventualmente ineficaz,
como qualquer negócio do seu tipo, consoante nele se verifiquem todos os
requisitos de validade ou falte algum, que produza um daqueles valores ne-
gativos. É isto que o n.º 1 do art. 241.º quer significar, quando estatui que ao
negócio dissimulado é aplicável «o regime que lhe corresponderia se fosse
concluído sem dissimulação»2.
De resto, o alcance do n.º 1 do art. 241.º é esclarecido pelo n.º 2 desse
mesmo preceito, quando, relativamente aos negócios formais dissimulados,
estabelece que a sua validade depende de ter sido observada a forma exigida
por lei. Em rigor, o n.º 2 do art. 241.º mais não faz, quanto a este aspecto,
do que aplicar, a um ponto específico, o regime genericamente estatuído no
n.º 1 do mesmo preceito.
Assim, poderia até entender‑se inútil a sua inclusão no Código; ela jus-
tifica‑se, porém, por o preceito respeitar a problema muito discutido, que
adiante será referido nas suas linhas essenciais, e isso terá levado o legislador
a considerar necessário o esclarecimento contido naquele n.º 23.

II. Em suma, o negócio dissimulado não é prejudicado, no seu valor,


pela simulação, mas pode sê‑lo, naturalmente, por nele ocorrerem outros
vícios4. Se o regime do negócio dissimulado resulta formulado por modo
suficientemente compreensível nos termos genéricos atrás apresentados, já
1
Só neste sentido se pode aceitar a seguinte afirmação de Castro Mendes: «a regra é portanto
a validade do negócio dissimulado» (Teoria Geral, vol. II, pág. 164; os itálicos são do texto).
2
Assim o defendia C. Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 477. No mesmo sentido, cfr., ainda, Pires
de Lima e Antunes Varela, Código Civil, vol. I, pág. 228.
3
Vd. razões expostas pelo autor do Anteprojecto, Rui de Alarcão, Simulação, in BMJ, cit. págs.
309 e segs.
4
Na simulação fiscal rege o art. 39.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Dec.‑Lei n.º
398/98, de 17/DEZ., preceito que, todavia, deve ser articulado com o n.º 2 do art. 38.º da mes-
ma Lei (aditado pela Lei n.º 100/99, de 26/JUL.), e, actualmente, com o art. 63.º do C.P.P.Trib.,
aprovado pelo Dec.‑Lei n.º 433/99, de 26/OUT. Sobre este problema, embora na perspectiva
do art. 32.º‑A do antigo Código de Processo Tributário, vd. o nosso est. Alcance do regime do art.
32.º‑A do Código de Processo Tributário e a simulação fiscal, sep. de Direito e Justiça, vol. XIII, 1999, T.
II; versão actualizada, in Estudos sobre a simulação, págs. 217 e segs.
A SIMULAÇÃO 321

a aplicação prática desse regime não é isenta de dúvidas. Estas prendem‑se


sobretudo com o problema da forma do negócio simulado, por ser o mais
estreitamente ligado com a própria simulação. Esta é uma explicação adicio-
nal para a atenção particular que lhe foi dedicada pelo legislador.
O problema vinha já do direito anterior ao Código vigente. A ju-
risprudência dividira‑se então largamente quanto ao valor dos negócios
dissimulados. A questão surgiu nos contratos de doação dissimulados por
compra e venda e só se tornou líquida, de iure condito, com o Assento do
Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Julho de 1952, que decidiu pela
invalidade da doação1. Pena foi que o legislador, no Código actual, não
tivesse para ele formulado um preceito mais esclarecedor. Na verdade,
o n.º 2 do art. 241.º deixa em aberto o aspecto fulcral da questão2. O pro-
blema é, sem dúvida, delicado e continua a dividir a doutrina, ainda que
o legislador tivesse, porventura, procurado evitá‑lo, com a inclusão desse
preceito.
Para melhor compreensão, formulam‑se, de seguida, alguns exemplos.
Considere‑se que A e B se concertaram no sentido de declararem que
querem celebrar um contrato de compra e venda do prédio X, quando efec-
tivamente A quer fazer uma doação a B.
Outro caso será o de A pretender doar a um seu filho um valioso anel
de família. Mas para evitar o desagrado dos demais filhos, finge vendê‑lo a
C, elaborando‑se um documento particular com intervenção de A, B e C,
em que este reconhece que nenhuma venda lhe foi feita, tendo apenas lugar
uma doação de A a B, a quem o anel deve ser entregue.
Finalmente, considere‑se a hipótese de A, para iludir o fisco, combinar
com B que na venda a fazer entre eles figure o preço € 20 000,00, quando
o preço real é de € 40 000,00. Também aqui em documento particular, B
reconhece ser este o preço verdadeiro e se obriga a pagá‑lo.

III. Estes exemplos ilustram três casos típicos de simulação – no primeiro


e no último objectiva e no segundo subjectiva – e vão permitir explicar o
regime correcto do valor do negócio dissimulado formal.
Em qualquer deles a venda simulada é nula. Mas qual o valor dos negó-
cios dissimulados, ou seja, da doação, nos dois primeiros, e da venda pelo
preço real, no último?

1
«Anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis o de cessão onerosa de créditos
hipotecários que dissimulavam doações, não podem estas considerar‑se válidas» (Oliveira Ramos
e Simões Correia, Assentos do Supremo Tribunal de Justiça, pág. 120; vd. texto do acórdão, também,
in BMJ, n.º 32, págs. 258 e segs.).
2
Para maior desenvolvimento, no domínio do Direito anterior, cfr. Beleza dos Santos,
A Simulação, vol. I, pág. 365; I. Galvão Telles, Manual, págs. 166 e segs.; Manuel de Andrade, Teoria
Geral, vol. II, págs. 191 e segs.
322 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

Segundo I. Galvão Telles, não sendo de admitir que se tenha titulado


especificamente o negócio dissimulado, em geral, o que está em causa é ve-
rificar «se a forma concretamente adoptada para o acto simulado preenche ou não as
exigências formais do acto dissimulado»1, o que conduz à nulidade do negócio
dissimulado se a forma do acto ostensivo é menos solene do que a exigida
para o encoberto.
C. Mota Pinto pensava que, em geral, o negócio dissimulado formal é
nulo por vício de forma, ressalvando apenas o caso da simulação de valor,
em que não vê obstáculo formal à sua validade2/3. Entendia assim que o
Código Civil aderiu à teoria defendida por Beleza dos Santos e consagrada
no Assento de 1952.
Não anda muito longe desta ideia a orientação defendida por Castro
Mendes, ao só afastar a nulidade do negócio dissimulado quando a diferença
entre este e o negócio simulado não «incide justamente num ponto que
representa a razão de ser da exigência da forma legal», invocando para tanto
o regime do art. 221.º do C.Civ.4
Em sentido contrário se manifestavam Pires de Lima e Antunes Varela.
Segundo estes tratadistas, o legislador afastou o regime do Assento citado
para consagrar a solução, mais maleável, de Manuel de Andrade5/6.
Quanto a Oliveira Ascensão, numa solução próxima da adiante sustenta-
da, manda atender ao sentido da exigência da forma, entre aquilo que por
ela é justificado «e aquilo que já não o é». Neste sentido, para o negócio
dissimulado ser válido, devem do texto do negócio simulado constar os ele-
mentos essenciais do dissimulado, o que, todavia, o leva a sustentar a validade
da doação dissimulada por compra e venda7.
Por seu turno, Menezes Cordeiro entende que o n.º 2 do art. 241.º do
C.Civ. deve ser interpretado, levando em conta, por um lado, que nem todo
o negócio dissimulado pode constar do texto do simulado, mas, por outro,
por analogia com o art. 238.º, «terá de haver um mínimo de correspon-

1
Manual, pág. 180 (os itálicos são do texto).
2
Teoria Geral, págs. 473 a 475 e notas (618) e (619) desta última página. C. Mota Pinto fun-
dava‑se, não só no regime do negócio formal e da sua prova, mas ainda na seguinte consideração
de ordem prática: a solução oposta possibilita «inclusivamente que, onde houve uma simulação absoluta
(venda fantástica), o pseudo‑comprador venha alegar e provar uma doação dissimulada na realidade inexis-
tente» [em itálico no texto da cit. nota (618)]. Isso seria contrário aos imperativos do princípio da
certeza. Não nos parece este argumento decisivo, dado o regime de prova dos negócios formais
e da simulação, já referidos.
3
Também a solução defendida por Heinrich E. Hörster conduz primariamente à nulidadedo
negócio jurídico formal (A Parte Geral, pág. 547).
4
Teoria Geral, vol. II, págs. 164‑165.
5
Código Civil, vol. I, pág. 228.
6
Sobre este ponto cfr., também,Vaz Serra, em várias anotações de jurisprudência (RLJ, anos
101.º, págs. 171 e segs., 103.º, págs. 361‑362, e 113.º, págs. 57 e segs.).
7
Teoria Geral, vol. II, pág. 225.
A SIMULAÇÃO 323

dência no texto, salvo se as razões determinantes da forma a tanto não se


opuserem»1.
Uma solução mais favorável à validade do negócio dissimulado é defen-
dida por P. Pais de Vasconcelos, «desde que a forma que a lei exige para a sua
validade tenha sido observada no negócio aparente (simulado) independen-
temente da parte do negócio que tenha sido oculta e do regime formal que,
em si mesmo, justificaria a da razão de ser da exigência legal de forma», exi-
gência suprida pela forma soleníssima da sentença que declara a simulação2.

IV. Ao expor o entendimento adoptado sobre esta delicada e contro-


vertida questão, importa salientar, primariamente, alguns aspectos de ordem
geral que devem ser levados em consideração, na sua correcta configuração.
Assim, não pode abstrair‑se da relevância das formalidades exigidas por
lei para o negócio, nomeadamente se ele deve constar de documento par-
ticular, de documento particular autenticado ou de escritura pública. A re-
levância deste ponto não está tanto no diferente regime desses dois tipos
de documentos, como na possibilidade prática de se titularem, com valor
jurídico, contradeclarações3.
É manifesto que, no primeiro exemplo atrás formulado, se o negócio
dissimulado for celebrado por escritura, desta consta a vontade, não real, de
vender. E mesmo que exista um contradocumento, em que A e B declarem,
recíproca e respectivamente, a sua vontade real de doar X e de aceitar a
doação, já se deixa ver que esse documento não pode ser uma escritura pú-
blica. A tal se opõe o bom senso, pois não faria sentido lavrar num cartório
notarial o negócio simulado e noutro o dissimulado; isso permitiria, além
do mais, pôr a descoberto a simulação, resultado que, naturalmente, contra-
ria a intenção dos simuladores. Assim, a escritura de compra e venda titula,
naturalmente, o preço, como elemento específico da compra e venda; mas
não consta, nem poderá constar noutro documento, a não ser particular,
o animus donandi, que é elemento específico da doação4. Mas estas considera-
ções valem, em termos semelhantes, se a compra e venda simulada tiver sido
celebrada por documento particular autenticado, dados os requisitos a que
deve obedecer a autenticação e de que a sua validade depende (artº 24º do
Decreto-Lei nº 116/2008).
Partindo desta ideia, dir‑se‑ia: afastado o negócio simulado, encontra‑se
outro negócio formal, para o qual não foi observada a forma legal. Donde,

1
Tratado, vol. I, T. I, pág. 846.
2
Teoria Geral, pág. 691.
3
Neste ponto é invocável o apoio de Castro Mendes, Oliveira Ascensão e, mesmo, de Me-
nezes Cordeiro.
4
Neste ponto afasta-se, pois, a posição de Oliveira Ascensão, acima exposta.
324 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

o quadro final, quanto ao regime destes actos, seria o seguinte: a compra e


venda era nula por ser simulada e a doação sê‑lo‑ia por falta de forma, pois
que incide sobre coisa imóvel, logo sujeita a escritura pública ou documento
particular autenticado (artº 875º C. Civ.).
Se se tratar, porém, de negócio dissimulado cuja validade dependa apenas
da sua redução a documento particular, já a contradeclaração relativa a este
acto pode ser formalizada, sem obstáculo. Deste modo, do ponto de vista da
forma legal, ela poderia aqui ser respeitada, quanto ao negócio dissimulado,
com independência do negócio simulado.
A solução exposta traduz um entendimento demasiado rigoroso do art.
241.º, n.º 2, conduzindo à invalidade sistemática dos negócios dissimulados
formais, ao menos quando a forma legal exigida seja um documento autên-
tico ou particular autenticado.
O preceito admite, porém, interpretação diversa, mais favorável à valida-
de do negócio dissimulado formal, que, para além do mais, leve em conta
o regime do âmbito da forma legal (cfr. art. 221.º do C.Civ.), com o qual
mantém manifesta conexão.

V. Sendo, por definição, o negócio dissimulado formal, importa apurar


primariamente quais as razões determinantes da exigência de forma. De
seguida, cabe perguntar se essas razões valem para a generalidade das estipu-
lações do negócio ou apenas para algumas, e quais. Apurados estes pontos,
o negócio dissimulado formal é válido, desde que no documento onde se
consubstancia o simulado, ou em qualquer outro (que revista as formalida-
des exigidas por lei), constem os elementos para os quais seja determinante
a exigência da forma legal1/2. Com efeito, da conjugação dos n.os 1 e 2 do
art. 221.º resulta que, em relação a tais elementos, a exigência da forma legal
é absoluta, pois abrange mesmo as estipulações anteriores ou posteriores
ao documento. Mas daí não decorre a invalidade de outras estipulações do
negócio em relação às quais as razões determinantes da forma não sejam
extensivas.
Assim, no exemplo do contrato de compra e venda com simulação de va-
lor, a compra e venda vale pelo preço verdadeiro, mesmo quando estipulado
verbalmente, pois a forma legal do acto abrange a estipulação de preço, mas

Esta solução, proposta por Manuel de Andrade na vigência do Código Civil anterior (Teoria
1

Geral, vol. II, págs. 162‑163), tem hoje uma base legal mais sólida no art. 221.º do C.Civ., corro-
borada, no importante campo da interpretação dos negócios formais, pelo n.º 2 do seu art. 238.º
Não se afasta, pois, muito da posição sustentada por Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 164,
nota (1).
2
Não é, porém, aceitável, nesta medida, a formulação de Pires de Lima e Antunes Varela,
quando sustentavam que o n.º 2 do art. 241.º afasta a doutrina do Assento de 1952, «já que a ven-
da e a doação estão sujeitas à mesma forma (escritura pública)» (Código Civil, vol. I, pág. 228).
A SIMULAÇÃO 325

não a estipulação de preço determinado (cfr. art. 883.º do C.Civ.)1. Quanto à


validade do negócio dissimulado formal, na simulação de valor, concordam
mesmo os defensores da tese oposta à aqui sustentada.
Esta a interpretação do art. 241.º, n.º 2, que, em tese geral, parece defen-
sável e que haverá que aplicar casuisticamente2.

520. Legitimidade para arguir a simulação: regime geral

I. «Legitimidade para arguir a simulação» é a epígrafe do art. 242.º do


C.Civ. que, contudo, está longe de consagrar directamente o seu tratamento
integral. Em boa verdade, para além de ressalvar o disposto no art. 286.º, re-
lativo ao regime geral da nulidade, o art. 242.º só se ocupa especificamente
de duas questões, que, como a exposição de seguida revelará, tinham gerado
larga polémica no Direito anterior: a arguição da nulidade pelos simuladores
e pelos seus herdeiros, em vida daqueles.
Por outro lado, ao regime geral da legitimidade para arguir a nulidade in-
teressa ainda o art. 605.º do C.Civ., que se integra nos meios da conservação
da garantia patrimonial dos credores.
Deste modo, é pela conjugação dos citados preceitos que se alcança o re-
gime de legitimidade para arguir a simulação. A este respeito há uma primei-
ra distinção fundamental a estabelecer, em função da pessoa que pretende
fazer valer a nulidade: qualquer dos simuladores ou terceiros. Relativamente
a estes, importa de seguida determinar quem se integra nessa categoria, ou
seja, quais os terceiros a quem deve ser reconhecida legitimidade. Pela sua
maior complexidade, será tratado em número próprio este segundo ponto.
Antes de passar a desenvolver este esquema importa esclarecer que, apesar
de a própria lei se referir genericamente à legitimidade para arguir a simulação,
é a nulidade do negócio simulado que fundamentalmente está em causa,
pois o negócio dissimulado, como já ficou dito, segue o seu regime próprio,
não havendo especialidades a referir.

II. A legitimidade dos simuladores para arguirem a simulação constitui


um problema clássico do Direito Civil português, com particular incidência
na modalidade de simulação fraudulenta. A matéria foi amplamente debatida
pela doutrina no domínio do Código de 1867 e dividiu a jurisprudência,
1
Que a estipulação do montante do preço não é elemento essencial da compra e venda,
também o defendia C. Mota Pinto [Teoria Geral, pág. 476 e nota (620)]. Também I. Galvão
Telles afastava, da solução geral por ele adoptada, a hipótese da simulação de valor (Manual,
págs. 181‑182).
2
A respeito desta matéria são elementos relevantes de estudo as anotações, de Vaz Serra, in
RLJ, n.º s 101.º, págs. 71 e segs., 103.º, pág. 361, e 113.º, págs. 57 e segs.
326 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

em termos de sobre ela ser lavrado o Assento de 10 de Maio de 1950, que


admitiu os simuladores a invocar a própria simulação, mesmo quando feita
em prejuízo de terceiros, isto é, fraudulenta1.
A solução consagrada no n.º 1 do art. 242.º do C.Civ. vem, assim, ao encon-
tro da posição anteriormente dominante, ao menos após o mencionado Assen-
to. O principal corolário deste regime é o de, no plano do Direito Civil2, ser
quase irrelevante a distinção entre simulação inocente e simulação fraudulenta.
O alcance deste regime de legitimidade, justificado em parte pela neces-
sidade de proteger um dos simuladores contra o indevido aproveitamento,
pelo outro, da aparência criada pela simulação, não é tão grande como a
um primeiro exame poderia parecer. Prevalecem aqui as já conhecidas li-
mitações dos meios de prova ao alcance dos simuladores, nos termos do
regime atrás exposto, e que se contêm no n.º 2 do art. 394.º e do art. 351.º
do C.Civ., particularmente significativas se não se adoptar a interpretação
restritiva desses preceitos, acima defendida, sobretudo quando se tenha em
conta não ser muito corrente, entre nós, a prática da contradeclaração.

521. Regime de arguição da simulação por terceiros3

I. A ressalva do regime do art. 286.º, constante da primeira parte do n.º


1 do art. 242.º do C.Civ., permite a invocação da nulidade, na simulação,
por quaisquer interessados4. Estão aqui genericamente abrangidos terceiros,
em relação ao negócio simulado, que pretendam valer‑se da nulidade prove-
niente da simulação. Se esta referência pode parecer injustificada, pois é disso
que agora se trata, a experiência mostra a conveniência de chamar desde já a
atenção para o facto de ser diversa a posição de outros terceiros, em relação
ao acto simulado, por a estes interessar valer‑se do negócio simulado e não da
nulidade emergente da simulação. Está aqui em causa o regime da oponibi-
lidade da simulação a terceiros, que adiante será estudado. Não raramente, se
verifica confusão entre estas duas posições de terceiros, quanto à simulação5.
1
É o seguinte o texto deste Assento: «os próprios simuladores podem invocar em juízo, um
contra o outro, a simulação, embora fraudulenta» (cfr. Oliveira e Ramos e Simões Correia, As-
sentos, págs. 112 e 214 e segs.). Os considerandos do acórdão dão uma ideia geral da posição do
problema no domínio do Código velho e da repartição da doutrina a tal respeito.
2
Não era assim no campo do Direito Fiscal antes da vigência da já citada Lei Geral Tributária
(cfr., v.g., art. 162.º do CMSISD); vd. nota 4 da pág. 320.
3
Sobre a matéria deste número, cfr. I. Galvão Telles, Manual, págs. 173‑174; Oliveira Ascensão,
Teoria Geral, vol. II, págs. 228‑229; e C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 477‑479.
4
Foi desenvolvida esta matéria em Simulação e tutela de terceiros, sep. de Estudos em memória do Prof.
Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1988; versão actualizada in Estudos sobre a simulação, págs. 69 e segs.
5
Cfr. o exposto em anot. ao ac. do STJ, de 26/NOV./86, Simulação – Direito de Preferência
– Abuso de Direito, sep. de RDES, ano XXX (1988), vol. III (2.ª s.), n.º 2, págs. 178‑180; versão
actualizada in Estudos sobre a simulação, págs. 163 e segs.
A SIMULAÇÃO 327

II. O primeiro ponto a analisar nesta matéria respeita à fixação do con-


ceito de terceiros, tendo presente que a remissão do n.º 1 do art. 242.º para
o art. 286.º significa o reconhecimento de legitimidade para arguirem a
simulação aos terceiros interessados.
Segundo o ensinamento de Manuel de Andrade1, nesta matéria não mui-
to distanciado do de Beleza dos Santos2, terceiros, para o efeito de arguirem
a simulação, são, além dos simuladores e seus herdeiros, as pessoas titulares
de situação jurídica afectada, seja embora apenas na sua consistência práti-
ca, pela validade do negócio simulado. A esta noção há que fazer, todavia,
a ressalva, já assinalada por Beleza dos Santos3, de os herdeiros dos simuladores4
deverem ser tidos como terceiros quando se proponham defender «um di-
reito próprio contra os actos simulados do autor da herança»5.
Não releva, na apreciação da posição de terceiro interessado na invocação
da simulação, o facto de a simulação ser fraudulenta ou inocente ou de o
terceiro estar ou não de boa fé6 no momento da constituição da situação
jurídica em função de cuja tutela actuam, ao atacar o negócio simulado.
A partir dos elementos atrás reunidos, as mais relevantes categorias de ter-
ceiros legitimados para arguirem a simulação são os herdeiros legitimários,
os subadquirentes, os credores, os preferentes, os herdeiros, os legatários e o
Estado (fazenda nacional).

III. Antes de passar à análise da situação particular de cada uma destas


categorias de terceiros7, uma breve referência a alguns pontos que interessam
a todas elas.
Em primeiro lugar, cabe referir que a arguição da simulação segue o
regime da nulidade típica, como a própria remissão para o art. 286.º sugere.
O único ponto a justificar referência específica seria o relativo a saber se
prevalecem aqui algumas limitações quanto à prova da simulação. Ele foi já
respondido em sede da prova da simulação em geral. Rege o n.º 3 do art.
394.º do C.Civ.; não sendo irrepreensível a redacção desse preceito, ainda
assim ele não deixa dúvidas quanto a não serem aplicáveis aos terceiros, que
arguam a simulação, as limitações impostas aos simuladores.

1
Teoria Geral, vol. II, pág. 198.
2
A Simulação, vol. I, pág. 390.
3
Ob. e vol. cits., pág. 391.
4
São manifestamente terceiros, como de seguida se dirá no texto, os herdeiros legitimários
quando arguam a simulação em vida dos autores da simulação, pois, então, em rigor, têm a quali-
dade de sucessíveis e não de herdeiros.
5
Tendo presente o regime do art. 259.º do C.Civ., o representado é terceiro em relação ao
negócio jurídico celebrado pelo seu representante (cfr., neste sentido, ac. do STJ, de 5/MAR./81,
in BMJ, n.º 305, pág. 261).
6
Cfr. o nosso est. Simulação, págs. 79‑81, na versão actualizada já citada.
7
Para maior desenvolvimento, vd. est. cit., págs. 91 e segs. da versão actualizada.
328 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

Outro ponto a salientar respeita à simulação relativa, em particular quan-


do o negócio dissimulado seja anulável. Justificar‑se‑á, em atenção à existên-
cia da simulação, o alargamento, à arguição do vício do negócio dissimulado,
da legitimidade dos terceiros para invocarem a simulação, quando a não
tenham em função do regime geral do art. 287.º?
A resposta deve ser negativa, não se descortinando razão para afirmar que
a posição dos terceiros, na simulação relativa, justifique melhor tratamento
do que lhes caberia se o negócio não fosse dissimulado. Faz‑se, assim, de
resto, simples aplicação do regime geral consagrado no n.º 1 do art. 241.º
do C.Civ.1

IV. Pelo que se refere aos herdeiros legitimários, a questão tinha sido
levantada,em termos muito polémicos, no domínio do Direito anterior,
dado o silêncio do Código de Seabra a seu respeito. O problema consiste
em saber se eles podem invocar a simulação em vida do simulador. A dúvida
já não se põe após a morte deste, uma vez que, nesse momento, eles agem
na qualidade de sucessores, como qualquer outro herdeiro; e não são já, em
princípio, terceiros.
Também neste caso o problema dividiu a doutrina e a jurisprudência
em termos de provocar a emissão de um Assento, em 19 de Dezembro de
1941, segundo o qual «os filhos podem pedir, mesmo em vida dos pais,
a anulação de dívidas por estes simuladamente contraídas, com o intuito
de os prejudicar, não sendo, portanto, preciso demonstrar a efectividade do
prejuízo»2.
O Código Civil vigente veio tomar posição sobre este ponto, estabele-
cendo no art. 242.º, n.º 2, a legitimidade dos herdeiros (rectius, dos sucessíveis)
legitimários para, em vida dos simuladores, arguirem a nulidade do acto
simulado, desde que a simulação seja fraudulenta. Com efeito, a legitimidade
é‑lhes atribuída, quando o negócio simulado seja feito com o intuito de os
prejudicar.
A solução do Assento e do Código é a correcta e funda‑se na ex-
pectativa jurídica que aos sucessíveis legitimários é atribuída em vida
do autor da sucessão, de que o art. 242.º, n.º 2, é justamente uma das
manifestações. Não colhe, pois, invocar contra este regime o argumento
de os herdeiros legitimários não terem quaisquer direitos sobre os bens

1
Cfr. o est. Simulação, págs. 85 e segs. da versão actualizada.
2
Oliveira Ramos e Simões Correia, Assentos, págs. 88 e 206 e segs. A doutrina alargou depois
o campo de aplicação do Assento aos demais herdeiros legitimários e aos demais actos simulados
praticados pelo de cuius com intuito fraudulento [cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. I, págs.
200‑201, solução acolhida por Rui de Alarcão, no seu estudo para o novo Código Civil – Simu-
lação. Anteprojecto para o novo Código Civil, in BMJ, n.º 84, págs. 316‑317; I. Galvão Telles, Manual,
(3.ª ed.), págs. 161, nota (2)].
A SIMULAÇÃO 329

que são objecto do negócio simulado, pois não é isso que aqui está em
causa1.
A adequada interpretação do preceito – o entendimento da sua ratio –
leva a afirmar que os herdeiros legitimários podem invocar a nulidade desde
que o negócio simulado os prejudique, ainda que não se demonstre aquela
intenção. Só assim o n.º 2 do art. 242.º ganha o alcance prático, visado pelo
legislador, de pôr os herdeiros legitimários a coberto de actos falsamente
praticados pelo autor da sucessão em prejuízo de sua legítima2, pois nem
sempre se torna fácil a prova dessa intenção do autor da sucessão.
Duas notas finais para assinalar, por um lado, que tem aqui relevo a dis-
tinção entre simulação fraudulenta e inocente, e, por outro, que o regime
específico do art. 242.º, n.º 2, não afasta a possibilidade de os legitimários,
já na qualidade de herdeiros, atacarem, depois da morte do de cuius, os actos
simulados por este praticados.

V. Os herdeiros do autor do negócio simulado, agindo após a abertura


da correspondente sucessão, podem, sem dúvida, atacar tal negócio; resta
saber se o fazem como sucessores do simulador ou como terceiros3. A res-
posta a esta questão varia em função da posição dos herdeiros perante a
simulação.
Assim, é de admitir a sua intervenção como terceiros se visam tutelar
interesses específicos da sua qualidade de herdeiros, como é o caso flagran-
te dos herdeiros legitimários na defesa da sua legítima. Contudo, podem
configurar‑se hipóteses de intervenção de outros herdeiros, sobretudo tes-
tamentários e pactícios, em função de interesses específicos e, nesta medida,
actuando como terceiros em relação ao negócio simulado4.
Também aos legatários cabe legitimidade para atacar actos simulados do
autor da sucessão relativos ao próprio bem legado, que assim aparentemente
não integra a herança no momento da sua abertura. Neste sentido se pro-
nunciavam, e bem, Pires de Lima e Antunes Varela5, afastando, de resto,
o n.º 1, segunda parte, do art. 2316.º do C.Civ. dúvidas antes levantadas,
nesta matéria, na vigência do art. 1811.º, n.º 1, do C.Civ.676.

1
Por assim ser, só podem ser atacados actos simulados e se se verificarem os requisitos ana-
lisados no texto
2
Em sentido correspondente se pronunciava C. Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 478.
3
É manifesto o interesse da questão, vistas as diferenças de regime, quer em matéria de prova,
quer perante terceiros.
4
Diferente é o caso de simulação do próprio testamento (art. 2200.º do C.Civ.). Um herdeiro,
que não seja designado no testamento nem beneficiário, deve ser tratado como terceiro.
5
Código Civil, vol. I, pág. 228.
6
A dúvida respeitava a saber se o negócio simulado envolvia revogação tácita do legado (cfr.,
a este respeito, o est. Simulação, pág. 99 da versão actualizada).
330 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

VI. Outra categoria de terceiros interessados na invocação da simulação


é a dos credores do simulado alienante. Mesmo na falta de disposição espe-
cífica a tal respeito, o regime geral do art. 286.º sempre levaria a atribuir‑lhes
legitimidade para arguir a simulação. Mas, para além disso, deve ter‑se em
conta o regime estatuído no art. 605.º do C.Civ., que consigna uma das
medidas previstas por este diploma em favor dos credores, como meio de
conservação da garantia patrimonial dos seus direitos.
Algumas das questões que se poderiam levantar neste domínio estão hoje
resolvidas pelo art. 605.º Assim, é indiferente se o crédito é anterior ou pos-
terior ao negócio simulado e se o credor é comum ou privilegiado. Apenas
se exige o interesse do credor na invocação da simulação. Esse interesse existe
sempre que o negócio simulado envolva risco de não realização do crédito,
não se exigindo que este consista na insolvência do devedor, nem no agra-
vamento da insolvência porventura já existente. É o regime que se extrai
do citado art. 605.º Responde assim este preceito a dúvidas levantadas pela
doutrina na vigência do primeiro Código Civil português1.

VII. Tem suscitado menos dúvidas a posição dos preferentes quando


pretendam valer‑se da nulidade. A favor da legitimidade destes terceiros vale
imediatamente o regime do art. 286.º
Trata‑se aqui dos preferentes que têm interesse em afastar a simulação
para poderem exercer o seu direito2. Assim, o interesse destes preferentes
apenas faz sentido na simulação relativa, pois só aí, afastado o véu do negó-
cio simulado, há outro negócio em relação ao qual a preferência pode ser
exercida.

522. Inoponibilidade da simulação a terceiros3

I. A posição dos terceiros, perante o negócio simulado, nem sempre tra-


duz o interesse de o atacarem, para demonstrarem o seu vício e repor a
realidade que ele encobre. Certos terceiros têm interesse em se valer do
negócio simulado, como se ele fosse verdadeiro; por outras palavras, a tutela
destes terceiros obtém‑se desde que lhes não possa ser oposta a nulidade do
negócio simulado.

1
Sobre este ponto, vd. o est. Simulação, págs. 93‑95 da versão actualizada.
2
Sobre as relações dos preferentes em sede de simulação, vd. o est. A posição dos preferentes
perante o negócio simulado, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor João Lumbrales,
págs. 425 e segs.; versão actualizada in Estudos sobre a simulação, págs. 191 e segs.
3
Vd., sobre a matéria deste número, I. Galvão Telles, Manual, págs. 174 e segs.; Oliveira Ascen-
são, Teoria Geral, vol. II, págs. 229‑230; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 479 e segs.; e Menezes
Cordeiro, Tratado, vol. I, T. I, págs. 848‑850.
A SIMULAÇÃO 331

Importa começar por ver como se configura esta questão.


Já ficou esclarecido que a nulidade do negócio simulado realiza a com-
posição mais justa dos interesses nas relações entre os simuladores. Mas pode
acontecer que estes, ou algum deles, hajam celebrado novos actos com ter-
ceiros incidindo sobre o mesmo bem ou interesse a que o negócio simulado
se reporta. Assim, o simulador vendedor, num contrato de compra e venda
não verdadeiro, pode ter vendido novamente a coisa objecto daquele con-
trato. Mas também o simulador adquirente, valendo‑se da aparência criada
pelo contrato simulado, pode fazer o mesmo.
É manifesto que a situação destes dois subadquirentes, terceiros perante o
acto simulado, se não apresenta nos mesmos termos.
No primeiro caso, declarada a nulidade, o adquirente do simulador ven-
dedor adquiriu bem, uma vez que este era o verdadeiro proprietário da
coisa. Mas com o adquirente do simulador comprador passa‑se justamente
o contrário, pois adquiriu a non domino. No primeiro caso, o interesse do
subadquirente consiste em arguir a nulidade e destruir o negócio simulado
para ficar demonstrado que adquiriu do verdadeiro dono. É diametralmente
oposta a posição do adquirente do simulador comprador, cujo interesse é o
de a simulação não ser invocável perante ele, para se poder valer da aparên-
cia, criada pela simulação, de ter adquirido bem.
Importa apurar em que medida o interesse destes terceiros é atendido
pelo Direito positivo.

II. O regime geral dos efeitos da invalidade perante terceiros contém‑se


no art. 289.º do C.Civ., que consagra o princípio geral da sua oponibilida-
de. Quer isto dizer que, apurada a invalidade do negócio, os seus efeitos são
destruídos, retroactivamente, projectando‑se esta situação na esfera jurídica
de terceiros. Da aplicação deste regime geral resultaria a não consideração
do interesse dos terceiros de que aqui se trata.
Cabe dizer que a regra do art. 289.º sofre importantes desvios, nomea-
damente por efeito do estatuído, para a invalidade em geral, no art. 291.º do
C.Civ., que a seu tempo será estudado.
Todavia, no campo da simulação, entendeu o legislador dar um tra-
tamento particular a esta matéria, contido no art. 243.º do C.Civ., que
assim constitui uma norma especial, em relação ao art. 291.º, cujo regime
é, deste modo, afastado, em geral. Por força do art. 243.º, o simulador
não pode invocar a nulidade do negócio simulado perante terceiro de
boa fé.

III. A existência, em matéria de simulação, de um preceito homólogo do


art. 291.º suscita a necessidade de fazer o seu confronto, quanto ao grau da
332 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

tutela por eles estabelecida para terceiros. Em particular, interessa aqui apurar
se o disposto no art. 243.º é mais ou menos eficaz do que o do art. 291.º
Mesmo uma primeira leitura dos dois preceitos revela existirem entre
eles alguns pontos de contacto e outros de afastamento. Assim, ambos exi-
gem a boa fé do terceiro, restando saber se a definem em termos equiva-
lentes. Mas, se o art. 243.º, para proteger o terceiro, se contenta com este
requisito, o art. 291.º é mais exigente, pois a sua aplicação depende do tipo
de direito adquirido por terceiro, da natureza do acto aquisitivo e do bem
que ele tem por objecto e, ainda, da observância de certas regras de registo.
Finalmente, o art. 291.º estabelece um «período de carência», durante o qual
a oponibilidade prevalece.
Assim, em termos gerais, a tutela dos terceiros é mais forte na simulação1
e o aspecto significativo de confronto entre os preceitos em causa circuns-
creve‑se afinal à configuração do requisito da boa fé.

IV. A noção de boa fé de que depende a inoponibilidade da simulação a


terceiros contém‑se no n.º 2 do art. 243.º Há boa fé, segundo este preceito,
se o terceiro, na data em que o seu direito se constituiu, ignorava a existência
da simulação2. Por seu turno, o n.º 3 do mesmo artigo considera «sempre de
má fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da acção
da simulação, quando a este haja lugar».
Quanto ao n.º 3 do art. 291.º, só considera de boa fé «o terceiro ad-
quirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do
negócio nulo ou anulável».
Não é pacífico o entendimento da doutrina, quando se trata de saber se a
não referência a culpa, na noção de boa fé do art. 243.º, conduz à irrelevância,
neste domínio, de um desconhecimento culposo da simulação pelo terceiro.
Por razões desenvolvidas noutro local3, deve entender-se que prevalece-
rem, na simulação, para além das diferenças literais dos preceitos, exigências
de melhor tutela do terceiro que justificam um abrandamento do requisito
da boa fé.
Assim, se o terceiro ignora, de facto4, a simulação, está de boa fé e beneficia
da inoponibilidade da nulidade do negócio simulado. Por outras palavras,

Sobre o fundamento desta particular tutela, vd., o est. Simulação, págs. 102 e segs. da versão
1

actualizada.
2
A má fé dos simuladores faz com que não releve a mera cognoscibilidade da simulação
pelo terceiro, salvo quando a acção de simulação seja registada e a aquisição se verifique após o
registo.
3
Simulação, págs. 117‑118 da versão actualizada; neste sentido, C. Mota Pinto, Teoria Geral,
pág. 484, fundando‑se na Lição de Manuel de Andrade. Em sentido diferente, Menezes Cordeiro,
Tratado, vol. I, T. I, pág. 847, e I. Galvão Telles, Manual, pág. 175.
4
Não há boa fé de terceiro se ele se encontra numa situação de incerteza (dúvida grave) quanto
à existência de simulação.
A SIMULAÇÃO 333

pode prevalecer‑se do negócio simulado, como se ele fosse verdadeiro e


válido.

V. O regime de tutela dos terceiros contra quem não pode ser oposta a
simulação criou ainda um outro ponto de divergência na doutrina.
A dúvida está aqui em saber se só se devem considerar abrangidas pelo
regime do art. 243.º as pessoas a quem a invalidade do negócio prejudica ou
também as que tiram vantagem da sua validade e que a perdem se ele for
invalidado e os correspondentes efeitos a elas oponíveis.
Dois exemplos simples servem para ilustrar o problema. Na simulação
absoluta de um contrato de compra e venda – venda fantástica –, o subad-
quirente do simulador adquirente tem de abrir mão da coisa vendida, se a
simulação lhe for oponível, correndo o risco da não restituição do preço por
ele pago.
A oponibilidade causa‑lhe um prejuízo. Pelo contrário, na simulação de
valor, sendo o preço simulado mais baixo que o verdadeiro, o terceiro prefe-
rente perde o benefício de preferir em melhores condições se a simulação lhe
for oponível. A oponibilidade da simulação priva, pois, este terceiro de uma
vantagem.
A favor do entendimento, segundo o qual o Direito tutela a posição de
todos estes terceiros, invocam‑se em geral a letra do preceito – que não
distingue – e o elemento histórico da interpretação, uma vez que a solução
contrária, que estava no Anteprojecto de Rui de Alarcão1, não veio a ser
consagrada2.
Em sentido oposto se pronunciava C. Mota Pinto3, que assim continuava
a seguir a posição que na vigência do Código Civil anterior era defendida
por Manuel de Andrade4.
Não convencem os argumentos invocados a favor da tese mais favorável
aos terceiros. Desde logo, o argumento literal, de cariz formal, não pode
deixar de ser submetido à sindicância da ratio legis e da adequada ponderação
dos interesses em jogo. Quanto ao elemento histórico, sendo em geral redu-
zido o seu valor interpretativo5, não lhe pode ser atribuído, in casu, relevância
decisiva. Se forem bem analisadas as propostas de Rui de Alarcão e de Vaz

1
Da Simulação, in BMJ, n.º 84, pág. 317.
2
Cfr. Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 159; Pires de Lima e Antunes Varela, Código
Civil, vol. I, págs. 229‑230.Vaz Serra, em estudo publicado in RLJ, ano 101.º, pág. 236, propôs uma
solução ecléctica, que não parece ter base legal em que assente.
3
Teoria Geral, págs. 482‑484 e nota (634) desta última página.
4
Teoria Geral, vol. II, pág. 207.
5
Como bem assinalava C. Mota Pinto (ob. e loc. cits.), nem este é elemento decisivo da in-
terpretação da lei, visto o teor do art. 9.º do C.Civ.
334 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

Serra para o Código Civil nesta matéria1, o mais que se pode concluir é que
o legislador pretendeu manter a questão em aberto, ao não adoptar nenhu-
ma das posições – de sentido contrário – por eles formuladas.
A solução correcta deve assim fundar‑se na razão de ser da inoponibili-
dade e na adequada composição dos interesses em jogo. Com efeito, o que
explica o regime do art. 243.º é a intenção de impedir que a invalidação
do acto simulado venha pôr em causa direitos adquiridos por terceiros com
fundada convicção na sua bondade. Entre a má fé do simulador e a boa fé
do terceiro adquirente deve esta prevalecer, evitando‑se que o terceiro fique
prejudicado por o simulador invocar a sua própria torpeza2.
Ora tais razões não valem no caso de o terceiro apenas tirar vantagem
da manutenção do negócio simulado, por também a posição deste não ser
isenta da censura do Direito. Se A, comproprietário de certo prédio, vende
o seu quinhão a B, mas, para iludir o fisco, acorda com este fazer constar do
negócio preço inferior ao real, onde encontrar fundamento razoável para
a benesse atribuída a C, comproprietário do dito prédio, ao ser admitido a
preferir pelo preço simulado, invocando o art. 243.º e a inoponibilidade da
nulidade do negócio simulado, não sendo, sequer, a simulação determinada
pela intenção de o prejudicar?
Não se identifica aqui mais do que um enriquecimento injustificado
do preferente, que se não pode sancionar com uma interpretação literal da
lei3.
Este é o sentido que hoje prevalece na doutrina, sendo perfilhado por
Oliveira Ascensão4, C. Mota Pinto5, Menezes Cordeiro6 e Almeida Costa7.
A título de esclarecimento final importa aqui deixar bem expresso, ainda
que isso resulte já dos termos do art. 243.º, que a protecção do interesse
do terceiro de boa fé não significa que o negócio simulado se convalide.
Ele continua a ser nulo, a nulidade opera, mas apenas em certo sentido, isto
é, nas relações dos simuladores entre si; assim, e nomeadamente, o simula-
dor comprador não pode invocar o negócio simulado para nele fundar a
aquisição da coisa objecto de tal contrato. Em suma, os efeitos da nulidade

1
BMJ, n.º 84, págs. 319‑320. Por isso não é também de seguir a solução proposta por Vaz Ser-
ra, já na vigência do novo Código, in RLJ, n.º 101.º, pág. 327, anot. ac. do STJ, de 21/FEV./67.
2
Seria manifestamente injusta outra solução, por contrariar o que há de atendível no velho
brocardo, segundo o qual ninguém deve ser admitido a prevalecer‑se da sua própria má fé (nemo
auditur propriam turpitudinem allegans).
3
Para desenvolvimento da posição sustentada no texto vd. os nossos estudos, Simulação –
Direito de Preferência – Abuso de Direito e Posição dos Preferentes, ambos in Estudos sobre a simulação,
respectivamente, págs. 176 e segs. e 202‑205.
4
Teoria Geral, vol. II, págs. 229‑230.
5
Teoria Geral, págs. 482‑483 e nota (634).
6
Tratado, vol. I, T. I, págs. 849‑850.
7
Direito das Obrigações, nota (3) da pág. 457, com referências de doutrina e jurisprudência.
A SIMULAÇÃO 335

são paralisados em relação ao terceiro de boa fé, segundo o característico


regime da inoponibilidade direccional dos efeitos jurídicos, que adiante
será exposto.

523. Conflitos entre terceiros perante a simulação: exposição do


problema

I. A análise até agora feita da posição de terceiros perante o negócio


simulado deixa perceber que eles podem aparecer como portadores de in-
teresses contrapostos, querendo uns prevalecer‑se da nulidade do negócio
e outros pretendendo que ela lhes não seja oposta, independentemente de
quem invocou a nulidade1/2.
Desenha‑se assim um conflito entre terceiros que se pode ilustrar com o
seguinte exemplo: se qualquer dos simuladores tiver alienado novamente a
coisa objecto de um contrato de compra e venda simulado, deve dar‑se pre-
valência a quem adquiriu do simulador vendedor, por ser este o verdadeiro
titular da coisa vendida, ou a quem contratou com o simulador comprador,
por não lhe ser oponível a simulação?

II. O problema dos conflitos de terceiros perante a simulação apresenta


maior complexidade que os referidos nos números anteriores. Desde logo,
a questão pode revestir múltiplas facetas em função da qualidade dos tercei-
ros envolvidos e da posição por eles ocupada em relação ao acto simulado.
Podem estar em causa, por exemplo, credores, comuns ou privilegiados, de
cada um dos simuladores, credores de um dos simuladores e subadquirentes
do outro, subadquirentes do simulador alienante e do simulador adquirente.
Para além de tudo o mais, é relevante saber se os terceiros estão de boa ou
de má fé, sendo aqui várias as hipóteses a considerar.
Por outro lado, ao contrário do que acontecia nas duas situações antes
analisadas, o Código Civil não contém qualquer norma que especifica-
mente se ocupe de tão intrincada matéria. Esta abstenção do legislador só
pode ter sido intencional, não só por a doutrina anterior se ter ocupado
largamente do problema, mas por Rui de Alarcão, Autor do Anteprojecto,

1
Sobre o conflito entre terceiros perante a simulação, vd., em geral, I. Galvão Telles, Manual,
págs. 178‑179; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 484‑486; e Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol.
II, págs. 230‑231.
Para maior desenvolvimento da posição defendida no texto, vd. o est. Simulação, in Estudos
sobre a simulação, págs. 130 e segs.
2
Note‑se que o problema se coloca perante os efeitos da declaração de nulidade, que em si
mesma não é posta em causa, podendo ela ser invocada quer pelo simulador quer pelo terceiro
lesado para o efeito de obter a reparação de danos sofridos.
336 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

ter proposto, no seu estudo para a simulação no novo Código Civil, uma
norma especificamente dirigida à resolução desses conflitos1.
Não cabe aqui recorrer aos arts. 242.º e 243.º do C.Civ., pois eles con-
templam apenas a posição unilateral de cada uma das categorias de terceiros
em conflito com os simuladores.
A questão tem sido largamente debatida na doutrina portuguesa, como
na estrangeira, interessando começar por dar aqui uma visão geral dos ter-
mos em que o problema se coloca no sistema jurídico português.

III. As soluções defendidas pela doutrina, neste domínio, podem recon-


duzir‑se a dois modelos fundamentais: alguns autores seguem uma solução
unitária para os diversos tipos de conflitos, enquanto outros fazem dos mes-
mos uma análise casuística.
As soluções unitárias formulam uma resposta que se aplica indistinta-
mente a todos os conflitos, embora nem sempre os seus defensores cheguem
à mesma conclusão.
Segundo I. Galvão Telles, «prevalece sempre o interesse do terceiro de boa fé
que deseja subtrair‑se aos efeitos da nulidade do negócio simulado»2. Fundava‑se,
para tanto, na teoria da aparência do direito, que impõe a tutela do interesse
de quem confia na situação aparente, em detrimento de quem se baseia na
situação real, solução que entendia abonar‑se com o espírito do art. 243.º, n.º
1, do C.Civ.
Esta solução não pode ser perfilhada; admitindo, mesmo, que no sistema
vigora um princípio da aparência com a amplitude sustentada por I. Galvão
Telles – o que é posto em causa por Oliveira Ascensão3 –, uma equilibrada
composição de interesses em jogo deve dar prevalência, em certos casos, aos

Da Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 322 e segs. Essa norma (art. 4.º), subordinada à epígrafe
1

«conflitos de interesses entre terceiros», mostrava‑se redigida nos seguintes termos:


«1. Os conflitos entre terceiros com interesse na nulidade do negócio simulado e terceiros a
quem essa nulidade seja inoponível nos termos declarados no artigo antecedente, decidem‑se em
harmonia com as regras dos parágrafos seguintes, onde forem aplicáveis. Mas aqueles terceiros
cujos interesses têm de ser sacrificados em face dos demais não estão impedidos de agir por perdas
e danos contra qualquer dos simuladores.
2. Havendo credores comuns do simulado alienante e credores comuns do adquirente fictício
dá‑se preferência aos interesses destes últimos, salvo se os créditos duns e doutros são anteriores ao
negócio simulado. Mas neste caso têm ainda prevalência os credores do adquirente se houverem
obtido penhora ou arresto sobre os bens objecto do negócio simulado antes de proposta pelos
credores do alienante a competente acção de simulação.
3. Os credores comuns do simulado alienante são sacrificados na colisão com os subadqui-
rentes do fictício adquirente.
4. O conflito entre subadquirentes do simulado alienante e subadquirentes do fictício adqui-
rente resolve‑se considerando o negócio simulado como se fosse verdadeiro.»
2
Manual, pág. 179 (em itálico no texto).
3
Teoria Geral, vol. II, pág. 230.
A SIMULAÇÃO 337

que se pretendem socorrer da realidade das coisas1. Para além disso, tal solu-
ção mostra‑se, por vezes, em colisão com as regras próprias do registo e com
os critérios de prevalência de direitos que delas decorrem.
Embora com resultados opostos, também Castro Mendes defendia uma
solução de tipo unitário, partindo da nulidade do negócio simulado e ex-
traindo daí as consequências inerentes ao seu regime. Se a lei limita a invo-
cação dessa nulidade pelos simuladores contra terceiros de boa fé, o mesmo
regime deve aplicar‑se aos terceiros de má fé que intentam valer‑se da si-
mulação perante terceiros de boa fé. Quanto à invocação da nulidade por
terceiro de boa fé perante outro terceiro de boa fé, não existe na lei tal limi-
tação, pelo que Castro Mendes fazia então prevalecer o regime da nulidade.
Deste modo, os terceiros de boa fé, interessados em arguir a nulidade do
negócio simulado, podem, nos termos gerais dos arts. 240.º, n.º 2, e 286.º,
opor a simulação a terceiros de boa fé, interessados na invocação do negócio
simulado, com as únicas limitações que resultam das regras do registo, nos
termos do art. 291.º2/3.
A tese de Castro Mendes não se afasta da defendida por Pires de Lima
e Antunes Varela, para quem o art. 243.º rege apenas para as relações entre
simuladores e terceiros de boa fé a quem a declaração de nulidade afecta.
Assim, sendo a simulação invocada por terceiros de boa fé contra terceiros
de boa fé, deve recorrer‑se ao regime da nulidade, o que implica remissão
para o art. 291.º do C.Civ.4. Segundo parece, no seu pensamento, a apli-
cação do regime geral da nulidade envolve, como consequência primária,
a protecção do terceiro interessado na declaração de nulidade, contra os
direitos que a favor de terceiros se constituíram com base no negócio in-
validado, salvo se estes puderem beneficiar do regime excepcional do art.
291.º
A solução de tutela do terceiro que se pretende valer da simulação é
também defendida por Oliveira Ascensão, sem fazer, contudo, recurso à apli-
cação do art. 291.º5
Destas teses, as de Castro Mendes e de Pires de Lima e Antunes Varela
vêem o seu carácter unilateral ser de algum modo atenuado, porquanto não
envolvem sistemática tutela de uma das categorias de terceiros em presença.
Por outro lado, o esquema adoptado por elas leva em conta o facto de o art.
243.º do C.Civ. ser uma norma especial, relativamente às normas gerais neste

1
Cfr., neste sentido, Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 163.
2
Idem, ibidem.
3
Uma solução equivalente fora defendida por Cunha Gonçalves, que, na vigência do Código
de Seabra, sustentava ser a nulidade do negócio, oponível mesmo ao terceiro de boa fé (Tratado,
vol.V, págs. 745‑750).
4
Código Civil, vol. I, pág. 230.
5
Teoria Geral, vol. II, págs. 230‑231, em particular a última.
338 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

diploma contidas em sede de nulidade; ainda assim, não podem ser acolhidas,
e muito menos a de Oliveira Ascensão, que se afigura mais radical.
A primeira objecção, a fazer‑lhe, aliás antecipada por Castro Mendes, é a
do seu conceptualismo, por partir do regime formal da nulidade1. Para além
disso, não parece legítimo transpor as regras gerais da nulidade para preen-
cher o vazio deixado pelo Direito positivo em sede de conflitos de terceiros
na simulação. Note‑se que para alguns dos Autores se resolve pelo art. 291.º
o conflito que os seus defensores não consideram legítimo tratar pelo art.
243.º, sendo certo que estes dois preceitos se ocupam, um em sede geral,
outro em sede especial, do mesmo problema: inoponibilidade da invalidade
do negócio a terceiros. Não parece legítimo recorrer a uma norma geral
quando, no mesmo domínio, há norma especial, tanto mais que a própria
maneira de ser da simulação dá às posições de terceiros uma feição que não
têm nos mais casos de nulidade2.

IV. As soluções casuísticas são as dominantes na doutrina portuguesa e


foram defendidas, na vigência do Código de Seabra, por Manuel de Andra-
de3 e Beleza dos Santos4. A tese de Manuel de Andrade influenciou larga-
mente Rui de Alarcão, nomeadamente na elaboração do preceito por ele
proposto para resolver os conflitos de interesses entre terceiros, na simula-
ção5. Na vigência do actual Código, seguiram a mesma rota Paulo Cunha,
nas suas lições orais6, e C. Mota Pinto7.
Não são inteiramente coincidentes as soluções por todos estes autores
preconizadas, mas elas têm de comum o abdicarem de uma solução geral,
que não é tida por conveniente. Por isso, procuram resposta para os vários
tipos de conflitos na análise dos interesses envolvidos, não sendo fácil encon-
trar um denominador comum para todas elas.
Se se atentar em observações antes feitas, não é, por certo, a ponderação
dos interesses em conflito que merece reparo, mas a forma como o problema é
encarado. Importa, por isso, tentar o enquadramento sistemático das múltiplas
1
Teoria Geral, vol. II, pág. 163.
2
Para além do mais, a subordinação da tutela de certos terceiros aos requisitos do art. 291.º,
por este preceito estar fundamentalmente virado para a situação dos subadquirentes de direitos
reais, sacrifica os interesses de todos os terceiros subadquirentes de direitos de outro tipo, o que
se afigura injusto. Por outro lado, a menos que se entendesse que o recurso ao art. 291.º não
envolve à aferição da boa ou má fé pelo seu próprio critério, este entendimento, levado às suas
últimas consequências, sujeitaria a verificação da boa fé dos terceiros interessados na subsistência
do negócio a critério mais exigente que o do art. 243.º; para já não falar de outros requisitos de
aplicação do art. 291.º não contemplados no art. 243.º
3
Teoria Geral, vol. II, págs. 208‑212.
4
A Simulação, vol. II, págs. 404‑416.
5
Est. e rev. cits., págs. 322‑328.
6
Paulo Cunha já no domínio do Código de Seabra se orientava para uma solução deste tipo.
7
Teoria Geral, págs. 484‑485.
A SIMULAÇÃO 339

situações de conflitos, sendo certo que o sistema jurídico português fornece


o modelo que permite pôr ordem nesta matéria.

524. Conflitos entre terceiros perante a simulação: posição adoptada

I. Numa avaliação crítica, no plano legislativo, não teria sido conveniente


adoptar uma norma do tipo da proposta por Rui de Alarcão1, por se correr
o risco de pecar por excesso ou por defeito. Perante a significativa variedade
destes conflitos, se o Código tivesse a veleidade de os cobrir a todos entraria
num casuísmo excessivo. A solução alternativa de apenas contemplar casos
típicos considerados significativos ou mais relevantes – segundo o modelo
italiano –, começava por colocar o problema da selecção dos tipos a eleger,
não sendo fácil chegar a soluções aptas a resolver os conflitos não cobertos
pela norma2.
O legislador poderia ter optado pela definição de um critério geral de
enquadramento destes conflitos; tal norma teria uma função esclarecedora,
de revelação do pensamento legislativo, e não seria inútil, mas, segundo o
entendimento tido como correcto, a solução adoptada dispensa, em rigor,
essa via.

II. A posição aqui defendida foi pela primeira vez esboçada em lições
policopiadas que datam de 19743. Apontou-se então para a possibilidade de
encontrar, no regime de colisão de direitos, em particular no art. 335.º do
C.Civ., o princípio orientador da solução destes conflitos de terceiros. Em
momento posterior foi desenvolvida, de algum modo, essa ideia embrio-
nária4, mas sem chegar a ser esclarecido o seu verdadeiro alcance, o que só
houve oportunidade de fazer no estudo que tem vindo a ser citado5. Da tese
aí exposta dão-se aqui as linhas mestras.
Bem vistas as coisas, o problema só surge uma vez declarada a nulidade
do negócio simulado, pelo que, em rigor, o conflito não se situa no campo
do direito à declaração da nulidade; nem faz sentido contrapor a tal direito

1
Caberia perguntar se seria necessária. Referindo‑se ao facto de C. Mota Pinto defender as
soluções propostas no Anteprojecto, apesar de elas não terem transitado para o texto aprovado
pelo legislador, comentava Castro Mendes, com alguma ironia, que aquela disposição «não seria
portanto precisa…» (Teoria Geral, vol. II, pág. 162).
2
Rui de Alarcão tinha bem consciência de estar só a regular «alguns dos mais frisantes tipos
que esses conflitos podem assumir», e daí ter esclarecido que na solução de outros «não deixará
de ter interesse a regulamentação das espécies legalmente previstas» [est. e rev. cits., pág. 324 e
nota (57)].
3
Teoria Geral, vol. III, pág. 162
4
Teoria Geral, ed. cit., vol. II, págs. 385‑386.
5
Simulação, págs. 490 e segs., da sua versão original.
340 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

um (eventual) poder, de sinal oposto, de obstar a essa declaração. Só após a


verificação da existência de simulação e de declarada a nulidade do negócio
se desenvolve o litígio entre terceiros, que, em relação à eficácia da nulidade,
ocupam posições antagónicas.
Posto isto, tomando o exemplo típico da situação de terceiros que, de boa
fé, adquiriram, de cada um dos simuladores, direitos sobre o bem falsamente
alienado, importa ver como se configura o conflito. O subadquirente do
simulador alienante tem legitimidade para obter a declaração de nulidade
e o outro terceiro não o pode impedir. Uma vez invalidado o acto, logo
se desenham duas situações de sinal oposto potencialmente conflituantes: o
subadquirente do simulador alienante quer ver actuada a eficácia própria
da declaração de nulidade, com o consequente reingresso do bem alienado
no património do alienante; por seu turno, o subadquirente do simulador
adquirente pretende que lhe não seja oposta essa eficácia, para tudo se passar
como se o bem alienado houvesse legitimamente entrado no seu patri-
mónio. Em certos casos, as divergências entre as posições destes terceiros
resolvem‑se logo neste domínio. Mas quando assim não seja, o verdadeiro
conflito dá‑se em relação aos direitos que os terceiros adquiriram sobre o
bem alienado. Neste plano está‑se perante a figura da colisão de direitos, pois
existem dois direitos incompatíveis.
Este enquadramento dos conflitos de terceiros perante a simulação é fér-
til em consequências positivas, quando se trata de apurar qual a composição
dos diversos interesses em conflito. Para tanto importa fixar o seu alcance.

III. Desde logo, não está em causa fixar directamente a solução do conflito,
mas descobrir um sistema de regulação dos interesses conflituantes, através
de um critério geral, que tem a vantagem de ser um esquema já testado pelo
legislador em vários domínios.
Por assim ser, não é ajustado o reparo formulado por C. Mota Pinto, na 2.ª
edição da sua Teoria Geral do Direito Civil1, onde se tinha, por certo, presente a
ideia esboçada nas já referidas lições policopiadas, quando escreveu que «não
parece resultar directamente do art. 335.º do Código Civil uma solução para
o problema. É que justamente o problema consiste em saber se os direitos em
conflito são iguais ou desiguais sob o ponto de vista do merecimento de tutela
jurídica»2. A observação, em si mesma, é pertinente, mas não põe em causa o
entendimento defendido, como resulta do acima exposto.
Esclarecido, assim, o sentido da posição defendida, a sua aplicação envolve
o recurso ao sistema legal de solução de conflitos de direitos e à qualificação

A mesma ideia aparece formulada nas segs. eds. dessa obra.


1

Na ed. referida no texto, vd. pág. 486, nota (1); retomado nas subsequentes [na actual, nota
2

(639), pág. 484].


A SIMULAÇÃO 341

adequada das posições dos terceiros perante o acto simulado, em vista da


sua subsunção naquele sistema. Aqui, impõe‑se uma avaliação específica dos
vários tipos de conflitos, sendo desde logo importante ter em atenção as
diferentes posições dos terceiros, quanto à boa fé. Em termos esquemáticos,
podem:
a) todos os terceiros estar de boa fé;
b) todos os terceiros estar de má fé;
c) estar um deles de boa fé e o outro de má fé, importando aqui distinguir,
ainda, se o terceiro de boa fé é o que pretende invocar a nulidade do negócio
simulado ou o que quer valer‑se da sua inoponibilidade.
O conflito ocorre no primeiro momento acima referido, mas, ainda as-
sim, o problema se esclarece se se fizer apelo aos critérios do art. 335.º do
C.Civ.1
Se todos os terceiros estão de má fé, prevalece a posição do interessado
em se valer da declaração de nulidade, uma vez que a boa fé não é requisito
do direito de a obter, enquanto o afastamento da eficácia da declaração de
nulidade depende de o terceiro estar de boa fé.
Segundo a mesma ordem de considerações, na hipótese de o terceiro de
boa fé ser aquele que invoca a plena eficácia da declaração de nulidade, por
maioria de razão, este tem a posição prevalente.
É mais complexo o caso de só estar de boa fé o terceiro que invoca a
inoponibilidade da nulidade. A má fé do outro terceiro não impede a decla-
ração de nulidade, nem afecta, em princípio, a possibilidade de se valer da
sua eficácia; contudo, no confronto entre a sua posição e a do outro terceiro
– de boa fé –, este merece melhor tutela. Com efeito, aquele conhece, por
definição, a simulação; se, ainda assim, celebrou com o simulador alienante
certo negócio ou não reagiu contra o simulado, fê‑lo a seu risco. O mesmo
não se pode dizer do terceiro de boa fé.
Este esquema não vale para o caso de ambos os terceiros estarem de boa
fé, por as suas posições serem de igual valia. Daí, ser corrente dizer‑se que o
conflito de terceiros só existe quando ambos estão de boa fé. Na perspectiva
correcta, estão, neste caso, em presença direitos incompatíveis relativos a um
mesmo bem, devendo o conflito ser resolvido segundo as regras da colisão
de direitos.
Para ilustrar esta posição vão servir de base à exposição subsequente duas
situações: conflito entre credores comuns e conflito entre subadquirentes.

1
O facto de não estarem em causa verdadeiros direitos subjectivos não constitui obstáculo
à aplicação do art. 335.º A doutrina portuguesa vem defendendo o alargamento do âmbito do
art. 334.º a outras situações jurídicas activas, podendo sustentar‑se igual interpretação daquele
preceito.
342 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

IV. Serve de exemplo da primeira situação, uma venda simulada de A


para B, sendo C credor de A e D credor de B1, e ambos os créditos comuns
ou quirografários.
As posições defendidas pela doutrina a este respeito partem do pressu-
posto do sacrifício necessário de um dos credores, claramente afirmado por
Manuel de Andrade: «temos de dar prevalência a um só destes interesses,
sacrificando o outro»2.
Não é necessariamente assim, se se pensar este caso como um conflito
de direitos de crédito que pretendem exercer‑se sobre um mesmo bem, im-
portando saber se eles são de igual valia ou se um deles é superior ao outro,
para, em conformidade, aplicar um dos números do art. 335.º A resposta
correcta é a de Beleza dos Santos: são equivalentes os interesses dos credores
do simulador alienante e do simulador adquirente. Este entendimento é im-
posto pela idêntica natureza destes direitos e pela irrelevância das distinções
quanto a eles feitas, fundadas na expectativa de solvabilidade do devedor,
sobretudo tratando‑se de credores comuns3. Para além disso, essas expecta-
tivas só fazem algum sentido se a vontade do credor se projectar de modo
relevante na constituição do crédito, argumento que não foi ignorado pelos
defensores das posições em análise, quando ressalvam os créditos emergentes
de acto ilícito.
No essencial, sendo equivalentes os interesses dos credores de ambas as
partes do negócio simulado, e tal como a doutrina portuguesa em geral con-
figura o problema, dar vantagem a um deles não se justifica. A questão cla-

1
Segundo Manuel de Andrade (Teoria Geral, vol. II, págs. 209‑210) e C. Mota Pinto (Teoria
Geral, págs. 484‑485), o interesse sacrificado é o de C, independentemente de o seu crédito se ter
constituído antes ou depois do negócio simulado. Para Beleza dos Santos (A Simulação, vol. I, pág.
405), os interesses dos dois credores em presença são equivalentes, prevalecendo o regime da nu-
lidade e sendo sacrificado o interesse de D. Uma solução ecléctica, defendida por Rui de Alarcão
(Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 325‑326), sacrifica umas vezes o interesse de C, outras o de D,
tendo em conta o momento da constituição dos créditos em relação ao negócio simulado.
2
Ob. e vol. cits., pág. 209. Tal ideia conduz a resultados indesejaveis pois, como está exposto
em Simulação (pág. 500), «ou os autores se sentem obrigados a descortinar qual o interesse a sacri-
ficar, entrando em distinções especiosas e inaceitáveis (Manuel de Andrade, Rui de Alarcão, C.
Mota Pinto), ou não hesitam em recorrer a uma solução puramente formal para dar prioridade
a um dos credores, ainda que reconhecendo que os interesses em jogo são equivalentes (Beleza
dos Santos). São facilmente ultrapassados estes escolhos, desde que o problema seja devidamente
equacionado segundo a teoria que perfilhamos».
3
Essas distinções não têm relevo jurídico e, se levadas às últimas consequências, exigiriam
outras ainda mais subtis. Basta pensar em como é falível a garantia patrimonial desses credores: os
bens objecto do negócio simulado, que podem nem ser coisas, podem perder‑se ou deteriorar‑se,
ser consumidos, validamente alienados ou onerados. E sempre se havia de levar em conta se o ob-
jecto do negócio simulado é o único bem penhorável do património do devedor ou, pelo menos,
um elemento determinante da sua solvabilidade. Nem se objecte que haveria apenas de corrigir
ou apurar os critérios da distinção, pois isso redundaria num tão complexo jogo de harmonização
dos elementos atendíveis, que constituiria constante foco de incerteza e de conflitos – summum
ius, summa iniuria.
A SIMULAÇÃO 343

rifica‑se na posição adaptada, pois da aplicação do n.º 1 do art. 335.º resulta


que os titulares dos créditos devem ceder «na medida do necessário para
que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para
qualquer das partes». Por força desta regra, os credores estão em igualdade de
condições para se fazer pagar pelo bem em causa, podendo sobre ele obter
penhora, tudo se passando de modo semelhante ao que ocorre entre credo-
res comuns que possam exercer o seu direito sobre bens do mesmo devedor.
Assim, atentas as regras processuais sobre a execução, vai ter prevalência o
terceiro mais expedito na obtenção e registo da penhora, seguindo‑se, para
o credor retardatário, o regime do art. 871.º em articulação com o n.º 5 do
art. 832.º, ambos do C.P.Civ.1.
A solução proposta ajusta‑se aos princípios da garantia patrimonial e leva em
conta a situação de paridade dos direitos dos credores. Tem apenas de se abs-
trair de quem é o verdadeiro titular do bem simuladamente alienado: é como
se se tratasse do concurso entre credores comuns do simulador alienante.

V. No conflito entre subadquirentes, tanto faz que se trate de aquisição


derivada translativa como constitutiva, ou que o direito adquirido seja a pro-
priedade ou outro direito real de gozo ou de garantia, ou mesmo um direito
de crédito, embora as soluções da doutrina se dirijam em geral a direitos
reais de gozo. Nesta base, considere‑se a hipótese de A simular vender a B
certo prédio, alienando‑o, de seguida, por acto verdadeiro, a C, e de, por seu
turno, B, valendo‑se da aparência criada pela simulação, vender, também por
acto verdadeiro, essa mesma coisa a D.
No domínio do Código actual2, C. Mota Pinto resolvia o problema nos
seguintes termos: «visto que as duas aquisições são havidas como válidas,
a situação é análoga à do problema geral da incompatibilidade entre direitos
reais adquiridos do mesmo transmitente: prevalece a venda mais antiga ou a
que primeiro foi registada»3.
Este entendimento segue, neste tipo de conflitos, o esquema acima de-
fendido em tese geral, pois faz aplicação de critérios normativos específicos
de resolução de colisão entre direitos incompatíveis. Esta solução merece,
como é manifesto, acolhimento e só exige alguma aclaração.
Na simulação, estão em causa várias alienações (entre os simuladores e
destes para com terceiros), pelo que importa esclarecer que os direitos em

1
Cfr., também, n.º 5 do art. 865.º do C.P.Civ. Sobre esta matéria, vd., Paula Costa e Silva, A
Reforma da Acção Executiva, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2003, págs. 93‑94.
2
Na vigência do Código de Seabra, a doutrina dominante fundava‑se, na resolução do pro-
blema, nos critérios legalmente estatuídos para alienações sucessivas da mesma coisa (Beleza dos
Santos, A Simulação, vol. I, págs. 412‑414; Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. II, págs. 211‑212;
e Rui de Alarcão, Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 327‑328).
3
Teoria Geral, pág. 485.
344 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

conflito são os adquiridos por C e D; contudo, não é indiferente se se to-


mam em conta a alienação de A para C e a de A para B (tratada esta como
verdadeira, em homenagem ao interesse de D), ou os dois actos de aquisição
dos terceiros, pois para a solução do conflito releva, em geral, a antiguidade
do acto em si mesmo ou a do seu registo. Em termos mais ou menos claros,
os tratadistas portugueses resolvem a questão com base nas alienações – si-
mulada e verdadeira – do simulador alienante1.
Esta é a solução adequada, pois o subadquirente do titular aparente não
pode pretender melhor tutela do que a que teria se a aquisição do simulador
adquirente fosse verdadeira. Em geral, esta solução é‑lhe favorável, pois só
em casos muito excepcionais a aquisição do subadquirente do simulador
alienante será anterior ao negócio simulado2.

§ 3.º
Figuras afins da simulação

525. Razão de ordem

Vários institutos jurídicos apresentam certa proximidade da simulação,


sem com ela se confundirem, devendo antes sustentar‑se a sua autonomia.
À análise subsequente de alguns dos mais significativos presidem dois fins.
Por um lado, trata‑se naturalmente de marcar as suas diferenças em relação à
simulação; por outro, será esta uma oportunidade de obter esclarecimentos
adicionais sobre o próprio conceito da simulação.
Tendo presente esta ordem de preocupações, vão ser estabelecidos os
pontos comuns e de diferença entre a simulação e a errada qualificação (ou de-
nominação) do negócio jurídico, a interposição real de pessoas, o negócio fiduciário
e o negócio indirecto3.

1
Esta formulação é nítida em Beleza dos Santos (A Simulação, vol. I, págs. 410‑12), mas
mostra‑se também adequada aos termos em que Manuel de Andrade expunha o problema (Teoria
Geral, vol. II, pág. 211). É ainda perfilhada por Rui de Alarcão, que transcreve o texto de Ma-
nuel de Andrade e cita, aprovando‑a, a tese de Beleza dos Santos (Simulação, in BMJ, n.º 84, págs.
327‑328). C. Mota Pinto referia‑se ao problema de modo sucinto, mas em termos que levam a
incluí‑lo nesta orientação (Teoria Geral, pág. 485).
2
Sobre a aplicação específica deste regime a várias modalidades de direitos, vd. o cit. est.,
Simulação, págs. 158 a 161 da versão actualizada.
3
Além dos institutos que passam a ser analisados, outros mantêm afinidades com a simulação,
embora dela se devam autonomizar: a falsidade e a fraude à lei. Para noções fundamentais sobre
as relações entre a simulação e institutos afins, cfr. I. Galvão Telles, Manual, págs. 186 e segs.; Cas-
tro Mendes, Teoria Geral, vol. II, págs. 165 e segs.; e Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. II, págs.
221‑223.
A SIMULAÇÃO 345

526. A errada qualificação do negócio jurídico

I. A simulação não deve confundir‑se com os casos de errada qualificação


ou denominação do negócio jurídico: error in nomine negotii. Há errada qua-
lificação, em sentido próprio, quando as partes, ao celebrarem certo negócio
jurídico, por erro lhe apõem um nomen iuris não conforme ao conteúdo
do acto por elas efectivamente celebrado. Deste modo, há uma divergência
entre as estipulações negociais das partes e a qualificação por elas atribuída
ao negócio.

II. Num primeiro exame, vista a questão objectivamente, dir‑se‑ia haver


uma certa proximidade entre a simulação e a errada qualificação, pelo menos
na simulação relativa.
Com efeito, neste último caso, as partes pretendem fazer crer que ce-
lebraram uma compra e venda e celebraram na verdade uma dação em
cumprimento; na errada qualificação, as partes designam como compra e
venda o negócio de dação em cumprimento que efectivamente celebra-
ram. Facilmente, porém, se afasta a aparente proximidade entre estas duas
hipóteses.
Segundo o entendimento mais adequado, acima defendido, na simulação
relativa há na verdade dois negócios – o simulado e o dissimulado –, e não um
só, sob falsa denominação. Dito por outras palavras: tanto ao negócio simu-
lado como ao dissimulado as partes atribuem a qualificação correcta, só que
o primeiro não é efectivamente querido.
Na errada qualificação, as partes erram quanto ao nome que atribuem ao
negócio por elas querido e celebrado – só há um negócio; quando confron-
tada essa qualificação com as estipulações que efectivamente o integram,
verifica‑se que ao negócio efectivamente celebrado e querido foi dado um
nome errado1.

III. Também quanto aos efeitos a errada qualificação se demarca da si-


mulação relativa.
Nesta, o negócio simulado é nulo e o dissimulado pode ou não ser váli-
do. Segundo o entendimento da doutrina, a falsa ou errada qualificação não
releva – falsa demonstratio non nocet –, precisamente por o nome pelas partes
atribuído ao negócio não se ajustar à sua materialidade. O negócio é válido
segundo a qualificação adequada, isto é, a correspondente ao seu conteúdo e

1
Diferente desta hipótese é a de erro sobre o conteúdo (ou objecto jurídico) do negócio, por
uma das partes o celebrar na convicção de ele produzir certos efeitos que na verdade não tem.
Pode este erro conduzir a uma errada qualificação, mas existem então dois problemas distintos,
cada um a resolver em sede própria.
346 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

produz os efeitos que lhe são próprios. Como se expressa o velho brocardo,
da mihi factum, dabo tibi ius.
Todavia, a errada qualificação não deixa de ser um dos elementos a atender
na interpretação do negócio jurídico celebrado pelas partes.

527. A interposição real de pessoas

I. Como referido atrás, ao analisar a simulação subjectiva, esta constitui


uma interposição fictícia de pessoas. Dela se demarcam, pois, outras figuras
jurídicas em que há interposição real de pessoas.
Para exclarecer a diferença, considere‑se um exemplo desta figura: A,
como tutor de B, não pode adquirir um prédio deste [cfr. art. 1937.º, al. b),
do C.Civ.].Para ultrapassar este obstáculo legal, A, em nome do seu repre-
sentado, faz a venda a C, com a obrigação de este, de seguida, o vender a
ele, A. Não há aqui simulação, sendo verdadeiros os negócios celebrados,
e efectivamente queridos pelas partes. A quer efectivamente fazer essa venda
a B e este fica adstrito à obrigação de revender a A.
Diferente seria o caso de A fazer intervir falsamente no negócio C, para
encobrir a venda feita a ele próprio. Aqui há simulação, na modalidade de
interposição fictícia de pessoas.

II. Em teoria, é fácil demarcar a interposição real da interposição


fictícia de pessoas, na simulação relativa. Naquela, há dois negócios real-
mente queridos, enquanto nesta só um dos negócios – o dissimulado – é
querido.
Em termos práticos, porém, a destrinça entre estes dois casos nem sempre
é fácil e envolve uma delicada questão de prova dirigida ao apuramento da
vontade real dos intervenientes, logo de interpretação negocial.
Questão diversa é a de saber se os negócios celebrados com interposição
real de pessoas são válidos.
A resposta não é sempre necessariamente a mesma, tudo dependendo das
circunstâncias da sua celebração. No exemplo dado, o negócio será nulo, por
ter sido celebrado com o fim de violar a lei que o proibia (cfr. arts. 294.º
e1939.º, n.º 1, do C.Civ.).
É frequente os negócios celebrados com interposição real de pessoas se-
rem celebrados com o intuito de ultrapassar proibições legais. Daí, como
justamente acontece no caso do exemplo acima dado, o legislador, por vezes,
proibir a celebração do negócio quer directamente, quer indirectamente –
por interposição real de pessoas –, com o fim de evitar que através dela se
obtenha o resultado que a norma pretende afastar.
A SIMULAÇÃO 347

528. O negócio fiduciário

I. Da simulação demarca‑se também o negócio fiduciário1.


A figura do negócio fiduciário, cujas raízes mergulham no Direito
Romano2, caracteriza‑se, por, em certo negócio – em regra de trans-
missão –, os poderes dele emergentes excederem o fim visado pelas partes
com a sua celebração, obrigando‑se, porém, aquele a quem são atribuí-
dos (fiduciário) a usá‑los apenas para aquele fim. A limitação imposta ao
fiduciário implica a inclusão, no negócio, de uma cláusula acessória (pacto
fiduciário).
Por outras palavras, a celebração do negócio nesses termos envolve, da
parte do transmitente (fiduciante), uma certa confiança – fiducia, em latim,
e daí a sua denominação – em relação a outra pessoa, na futura actuação
desta, no uso desses poderes.
Na conformação corrente, a confiança de quem confere os poderes di-
rige‑se à outra parte no negócio, o que significa que este reveste a modali-
dade de contrato. Mas nada impede que o negócio fiduciário seja unilate-
ral, identificando‑se no Direito português casos concretos de negócio dessa
modalidade que preenchem requisitos da fidúcia.
Na sua configuração típica, os poderes atribuídos ao fiduciário desti-
nam‑se a ser utilizados na realização de certo fim que o autor do negócio
tem em vista – e que nisso confia. Daqui resulta uma limitação que tem por
fonte uma cláusula do negócio – o pactum fiduciae.
Em abstracto, o pactum fiduciae pode ter natureza real ou obrigacional,
mas, o negócio a que o pacto é aposto tem, em qualquer caso, uma eficácia
típica que excede o fim visado com a sua celebração, nota que relaciona a fi-
dúcia com a causa do negócio jurídico mas também com o seu fim mediato.
É em vista deste fim que a cláusula fiduciária é aposta, o que não significa
que o autor do negócio não queira o excesso de poderes que atribui ao fidu-
ciário; mas só os quer por confiar que, no seu exercício, serão apenas utilizados
para o fim especificado na cláusula fiduciária3.
A partir dos elementos até agora recolhidos, fiduciário é o negócio atípico
pelo qual as partes adequam, mediante uma cláusula obrigacional ou real, o conteúdo
1
Foi desenvolvido esta matéria no est. A Admissibilidade do Negócio Fiduciário no Direito Portu-
guês, in Estudos sobre a simulação, págs. 243 e segs.
2
A doutrina distingue entre a fidúcia romana e a fidúcia germânica (Treuhand). Por seu turno,
no Direito inglês, um processo próprio, pela via da «equity», criou o instituto do «trust». Para a
distinção entre a fidúcia romana e a fidúcia alemã, vd. P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos,
Almedina, Coimbra, 1995, págs. 263 e segs, e Menezes Cordeiro, Tratado, vol. I. T. II, págs. 255 e
segs. Relativamente ao trust, cfr. M.ª João Vaz Tomé e D. Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária,
págs. 19 e segs.
3
A relevância desse fim ou escopo, na configuração do negocio fiduciário, é assinalado por
Menezes Cordeiro, Tratado, vol. II, T. II, págs. 269-270.
348 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

de um negócio típico a uma finalidade diferente da correspondente à causa do negócio


instrumental por elas seleccionado.

II. São múltiplos os fins que, por via do pactum fiduciae, o autor do negó-
cio pode pretender realizar; todavia, desde o Direito romano, reconduzem‑se
correntemente a duas as modalidades de negócio fiduciário que os autores
identificam: a fiducia cum creditore contracta e a fiducia cum amico contracta.
Esta distinção aponta, no primeiro caso, para um fim de garantia. Veri-
fica‑se quando A, devedor de B, aliena a este um bem, ficando o credor
vinculado a restituir‑lho (realienando‑o) se a A solver a sua dívida; caso
contrário, B fará definitivamente sua a coisa alienada.
Na fiducia cum amico, a conformação típica do negócio fiduciário é a de
assegurar um fim de administração ou de alienação do bem que dele é ob-
jecto. Em exemplo de escola, A aliena a B um prédio para este o administrar ou
para, por seu turno, o alienar, assumindo, para esse efeito, as correspondentes
obrigações. No caso de administração, o beneficiário da mesma pode ser A
ou outra pessoa para tanto designada, sem prejuízo, entenda‑se, da remune-
ração que a B seja devida pelo encargo da administração.

III. A admissibilidade do negócio fiduciário no sistema jurídico portu-


guês é uma questão de há muito debatida pela doutrina que, na sua configu-
ração adequada, tem de ser analisada e respondida em dois planos, porquanto
nele se identificam negócios que assentam numa ideia de fidúcia. Assim, o
verdadeiro problema a dilucidar é o de apurar se, para além deles, são ad-
missíveis negócios fiduciários livremente construídos pelas partes ao abrigo do
princípio da autonomia privada.
Na modalidade de fiducia cum creditore identifica‑se a chamada alienação fidu-
ciária em garantia, como uma das modalidades de contratos de garantia financei-
ra, previstos no n.º 2 do art. 2.º do Decreto‑Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio1.
Resulta desta mesma norma que a nota característica deste negócio jurídico é
a de ele operar a transmissão da propriedade com função de garantia2.
Na mesma categoria cabe a cessão de bens aos credores, regulada nos arts.
831.º e seguintes do C.Civ.3, porquanto dos arts. 835.º, 836.º e 837.º resulta
que aos credores cessionários são atribuídos poderes de administração e de
disposição dos bens cedidos, mas com o fim de pagamento dos débitos do
cedente.

A outra modalidades de contrato financeiro referida no mesmo preceito legal é o penhor


1

financeiro, a que adiante terá ainda necessidade de se fazer referência.


2
O n.º 3 do citado art. 2.º identifica o reporte como uma modalidade de contrato de alie-
nação fiduciária em garantia.
3
Este exemplo concreto de negócio fiduciário é identificado, embora não em termos definiti-
vos, por I. Galvão Telles, Manual, pág. 194.
A SIMULAÇÃO 349

Próxima da cessão de bens aos credores é a cessão do rendimento disponível,


que o CIRE criou, na insolvência de pessoas singulares, quando lhes seja
concedida a exoneração do passivo restante (art. 235.º e seguintes).
Neste instituto, durante cinco anos após o encerramento do processo de
insolvência, o rendimento disponível auferido pelo devedor considera‑se
cedido a um fiduciário1, escolhido pelo tribunal (art. 239.º, n.º 2, do CIRE),
que deve afectá‑lo, no final de cada ano de duração da cessão, entre outros
fins, ao pagamento dos credores da insolvência, nos termos prescritos no
respectivo processo [art. 241.º, n.º 1, al. d), do CIRE]2.
Quem recebe os rendimentos do insolvente é o fiduciário, não os cre-
dores, sendo àquele que compete afectá‑los, nos termos atrás sinteticamente
expostos. Por assim ser, ao contrário do que é corrente, além do fiduciário,
verifica‑se, na figura jurídica em análise, a presença de beneficiários da fidú-
cia, à semelhança do que ocorre no «trust»3.
Outra situação que participa de elementos da fiducia cum creditore ocorre
no endosso a que é aposta uma menção particular – «valor em garantia»,
«valor em penhor» ou outra semelhante – que implique caução (art. 19.º
da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças). Também aqui o endossado pode
exercer todos os poderes emergentes da letra, mas o endosso por ele feito só
vale a título de procuração e para o fim nele consignado4.

IV. Como negócio fiduciário, na fiducia cum amico, a figura mais corren-
temente citada pela doutrina é a do mandato sem representação, na moda-
lidade de mandato para alienação (arts. 1180.º e seguintes do C.Civ.)5; igual
entendimento quanto a essa categoria de mandato, no seu regime civilístico
comum, vale para a sua correspondente manifestação no Direito comercial,
a comissão (arts. 266.º e seguintes do C.Com.).
Em qualquer destes casos, o mandante encarrega o mandatário de
alienar certa coisa sua, devendo, porém, fazê‑lo em nome próprio e não
em representação do mandante. Para viabilizar essa finalidade, confiando
no mandatário, o mandante aliena‑lhe a coisa, ficando aquele obrigado

1
É esta a designação legal.
2
Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labereda, Código da Insolvência, notas aos artgos cita-
dos no texto, respectivamente, págs. 777-778, 787 e 793-794.
3
Note‑se que esta estrutura tripartida da fidúcia não é estranha ao negócio fiduciário, consi-
derando‑a mesmo P. Pais de Vasconcelos típica (Teoria Geral, pág. 641), referência com que não se
pode concordar plenamente.
4
Cfr. Fernando Olavo, Desconto Bancário, Lisboa, MCMLV, págs. 170‑172.
5
Neste sentido se pronunciava I. Galvão Telles na vigência do Código Civil de Seabra (Ma-
nual, (2.ª ed.), págs. 178‑180), posição recentemente reafirmada [Manual (4.ª ed.), págs. 194‑195];
cfr., também, Castro Mendes, Teoria Geral, Vol. II, págs. 172. Em sentido contrário se manifestou
Pessoa Jorge, com base numa construção do instituto diferente da que correntemente é sustentada
(O Mandato sem Representação, reimp., Almedina, 2001, págs. 320 e segs. e 329 e segs.).
350 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

a usar o direito de propriedade que assim lhe é atribuído apenas para


esse fim de venda da mesma no interesse do mandante, ficando perante
este obrigado a transmitir‑lhe os respectivos direitos (art. 1181.º, n.º 1,
do C.Civ.).
A chamada substituição fideicomissária ou fideicomisso, nas liberalidades
(testamento, arts. 2286.º e seguintes do C.Civ., e doação, art. 962.º do
mesmo Código), pela extensa e cuidada regulamentação de que no pri-
meiro caso é objecto, constitui, por certo, no Direito português, a mais
relevante manifestação da fiducia cum amico, na finalidade de fidúcia para
administração. Em qualquer dos casos, o fideicomisso envolve a disposi-
ção de bens em benefício de uma pessoa – o fiduciário –, que tem a facul-
dade de os usar, fruir e administrar, mas com a obrigação de os conservar,
a fim de reverterem, por sua morte, para outrem – o fideicomissário (art.
2286.º)1.
Verifica‑se, pois, em função do fim visado – a conservação dos bens no
interesse de terceiro –, uma limitação dos poderes que o negócio instrumen-
tal (testamento ou doação) atribuiria, prima facie, na sua eficácia típica, ao
fiduciário, com a particularidade de ela assumir uma eficácia real.
Outra manifestação de negócio fiduciário cum amico verifica‑se no en-
dosso de letra para cobrança.
Nesta modalidade, ao endosso é aposta a menção «valor a cobrar», «para
cobrança», «por procuração», ou outra que implique simples mandato (art.
18.º da LU). Segundo o primeiro parágrafo deste mesmo preceito, o por-
tador pode exercer todos os poderes da letra, mas só pode endossá‑la como
procurador.

V. A admissibilidade de negócios fiduciários atípicos no sistema jurídico


português envolve não tanto a sua viabilidade, em abstracto – que no prin-
cípio da autonomia privada encontra fundamento –, mas a sua validade.
Verificou‑se quanto a esta uma significativa evolução na doutrina portu-
guesa, que se processou, essencialmente, em concomitância com a sucessão
do Código Civil vigente ao Código de Seabra: na doutrina mais antiga,
contemporânea deste Código, prevalecia uma posição negativista; a doutrina
mais moderna orienta‑se claramente no sentido oposto.
A posição negativista, na vigência do Código de Seabra, teve o seu prin-
cipal defensor em Beleza dos Santos2, mas foi também sustentada por Cunha

1
Segundo Menezes Cordeiro, representa este instituto a situação clássica do reconhecimento
da fiducia com eficácia real, no sistema jurídico português (Tratado, vol. II, T. II, pag.271).
2
Cfr., A Simulação, vol. II, págs. 122‑124.
A SIMULAÇÃO 351

Gonçalves1, Manuel de Andrade2, Orlando de Carvalho3 e Pessoa Jorge4/5.


Numa orientação mitigada, I. Galvão Telles considerava inválido o negócio
na fiducia cum creditore, por implicar fraude à lei, mas sustentava a sua validade
na fiducia cum amico. Posição favorável à viabilidade dos negócios fiduciários
foi sustentada por Vaz Serra, nos estudos preparatórios para o actual Código
Civil, a respeito da cessão de créditos.
Na doutrina posterior ao Código Civil vigente a solução favorável à ad-
missibilidade da fidúcia no Direito português, adiante acolhida, é defendida
por Castro Mendes, seguido por Bigotte Chorão, mas também por Oliveira
Ascensão, Menezes Cordeiro, P. Pais de Vasconcelos e M. Januário da Costa
Gomes. Por seu turno, I. Galvão Telles reafirmou recentemente a posição
atrás referida.

VI. Os mais relevantes argumentos invocados, na doutrina portuguesa,


contra a admissibilidade dos negócios fiduciários, em redor dos quais operou
a evolução para a tese oposta, podem reconduzir‑se aos seguintes:
a) natureza causal dos actos translativos de direitos reais;
b) numerus clausus dos direitos reais e dos negócios com eficácia real.
Qualquer destes argumentos relaciona‑se, por um lado, com a natureza
do negócio fiduciário e, por outro, com a viabilidade de se configurar uma
causa fiduciae, nem sempre admitida.
Para I. Galvão Telles o argumento fundado na tipicidade dos contratos
reais quoad effectum não é válido, afirmando expressamente que o numerus
clausus se aplica aos direitos reais mas não aos contratos alienatórios, para
usar a sua expressão6. Por outro lado, identificando uma causa fiduciae, em
geral, considerava ser admitida, pelo Direito português, a fiducia cum amico –
fundando‑se no regime do mandato sem representação –, mas não a fiducia
cum creditore, que deve ser reprovada por envolver fraude à lei, porquanto
representa «um desvio a disposições limitativas, protectoras dos legítimos

1
Tratado, vol.V, pág. 716. Cunha Gonçalves não considerava fiduciário nem válido o chamado
desdobramento de acções, para fim de votação, em assembleia, depositadas em nome de um testa de
ferro (idem, ibidem, pág. 717, e Comentário ao Código Comercial Português, vol. I, Empresa Editora J.B.,
Lisboa, 1914, págs. 462‑464), ao contrário de Beleza dos Santos, A Simulação, vol. I, pág. 265.
2
Manuel de Andrade leva a natureza obrigacional do pacto fiduciário às suas últimas con-
sequências, afirmando não poder ele ser oposto mesmo a terceiro de má fé [Teoria Geral, vol. II,
nota (2) da pág. 177].
3
Negócio Jurídico Indirecto, sep. BFDUC, Supl. X, Coimbra, 1952, págs. 110‑111.
4
Cfr. O Mandato sem Representação, págs. 324‑329; a posição de Pessoa Jorge sobre a causa
fiduciae foi contraditada por I. Galvão Telles, in Manual (2.ª ed.), nota (3) da pág. 177.
5
P. Pais de Vasconcelos inclui Pessoa Jorge entre os defensores da admissibilidade dos negócios
fiduciários no sistema jurídico português (Contratos Atípicos, pág. 284), com o que não se pode
concordar; por razões adiante reveladas, Pessoa Jorge sustenta opinião contrária, como também
refere Castro Mendes (Teoria Geral, vol. II, pág. 171).
6
Manual, (2.ª ed.), nota (3) da pág. 178.
352 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

interesses do dono do objecto de garantia ou até de terceiros, em matéria de


hipoteca ou de penhor»1.
Também Vaz Serra, questionando a validade da opinião que sujeita os
negócios reais quoad effectum ao princípio do numerus clausus, afirmava ser
concebível uma solução diferente, desde que a causa da transmissão seja
justa, pelo que admitia que a lei consinta «contratos inominados reais,
que se julguem dignos de protecção, como seja um negócio fiduciário de
transmissão»2. Noutro plano, a propósito da natureza abstracta ou causal da
cessão de créditos, afirmava que mesmo nesta segunda hipótese o negócio
fiduciário é admissível, já que, sendo abstracto, não haveria obstáculo a tal
solução; do seu ponto de vista, com base na autonomia privada, e desde que
se vise um fim lícito e razoável, é possível uma cessão de crédito com causa
fiduciae 3, embora, de lege ferenda, ela deva ficar sujeita ao respeito de certas
disposições relativas ao penhor, como sejam a necessidade da entrega cons-
titutiva e a proibição da lex commissoria4.
Esta posição é reafirmada no estudo para o actual Código Civil que Vaz
Serra dedicou ao penhor, onde afirmava que «não parece que, entre nós, se
for admitida transmissão fiduciária para fins de garantia, deva poder ela iludir
as regras fundamentais do penhor»5.
Já na vigência do actual Código Civil, Castro Mendes sustentava a
validade do negócio fiduciário com fundamento no princípio da auto-
nomia da vontade e na admissibilidade de limitações obrigacionais ao
direito de propriedade (respectivamente, arts. 405.º e 1306.º, n.º 1, do
C.Civ.). Para além disso, admitia a causa fiduciae enquanto corresponda
a interesses legítimos do autor do negócio6. Em suma, para além de ser
formulada com carácter genérico, a sua posição aproxima‑se da de Vaz
Serra. Só assim não será, manifestamente, se ocorrer fraude à lei, mas ao
contrário de I. Galvão Telles, não aceitava que a fiducia cum creditore seja
necessariamente fraudulenta7.
O pensamento de Castro Mendes foi seguido por M. Bigotte Chorão,
que transcreve, sem comentários, os argumentos daquele A.8
Por seu turno, Oliveira Ascensão faz apenas ao negócio fiduciário breve

Manual, (2.ª ed.), págs. 178 e segs.; a citação é de pág. 178; na 4.ª ed., págs. 194‑195.
1

Cessão de Créditos e de Outros Direitos, BMJ, Número Especial (1955), págs. 170‑172; a citação
2

é da pág. 172.
3
Idem, ibidem, págs. 172‑173.
4
Idem, ibidem, págs. 186 e segs., em particular, págs. 189 e 191.
5
Penhor, in BMJ, n.º 58 (1956), pág. 137.
6
Teoria Geral, vol. II, págs. 171‑172.
7
Adicionalmente, Castro Mendes invocava a admissão, no Direito português, do mandato sem
representação que na sua modalidade de mandato para alienar envolve um negócio fiduciário.
8
Teoria Geral do Direito Civil, pol., vol. III, notas de lições ao 1.º ano, Lisboa, 1972‑1973, págs.
209‑211.
A SIMULAÇÃO 353

referência, em termos que envolvem a sua validade, como modalidade do


negócio indirecto, salvo fraude à lei1.
A admissibilidade de negócios fiduciários, configurando a limitação da
clãusula fiduciária como obrigacional, não levanta dúvidas para Menezes
Cordeito, salvo se o escopo visado for proibido ou se dirigir a enganar ter-
ceiros; em qualquer destes casos, o negocio é nulo. Quanto à alienação com
fim de garantia, «defronta a regra da proibição dos pactos comissórios»2.
Quanto a M. Januário da Costa Gomes, mostra‑se favorável à admissão
do negócio fiduciário, em geral, mas faz reservas à sua modalidade de trans-
missão com efeito de garantia, fundadas na proibição do pacto comissório3.
Foi P. Pais de Vasconcelos quem estudou o instituto com mais desenvolvi-
mento; tendo‑o tomado como tema da sua Dissertação de Pós‑Graduação4;
tratou também dele na Dissertação de Doutoramento5, na qual manteve
a posição antes sustentada, claramente favorável à sua admissibilidade no
ordenamento jurídico português e à sua consequente validade, orientação
retomada em Teoria Geral do Direito Civil6.
A partir da construção de Beleza dos Santos, P. Pais de Vasconcelos demons-
tra a improcedência dos seus argumentos, quer no domínio da causa, quer no
da tipicidade dos contratos reais quanto aos seus efeitos, por ser hoje dominan-
te, no sistema jurídico português, o princípio da atipicidade de tais contratos.
Pelo que respeita à causa, sustenta que a circunstância de, nos negócios
fiduciários, o fim visado pelas partes não coincidir com a causa do tipo
contratual adoptado interfere, não com a validade do contrato, mas com a
sua tipicidade. O mais que pode verificar‑se é a causa do negócio fiduciário
atípico – causa fiduciae –, como causa função, não merecer tutela jurídica7.

VII. Na posição adoptada, o negócio fiduciário é um acto unitário, em-


bora de conteúdo complexo e atípico; a sua complexidade resulta de ao
negócio de transmissão, em geral típico – o negócio fundamento –, se apor uma
cláusula (pactum fiduciae) que orienta os poderes por ele atribuídos ao fiduciá-
rio para um certo fim visado por aquele que confia.
O negócio fundamento pode ser causal ou abstracto – em geral, no siste-
ma jurídico português, é causal –, mas o negócio fiduciário, em si mesmo,
é causal: a sua função económico‑social diz‑se fiduciária.

1
Teoria Geral, vol. III, págs. 308‑309 (cfr., também, vol. II, págs. 308 e 326).
2
Tratado,vol. II, T. II, págs. 270-271.
3
Assunção Fidejussória de Dívida. Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina,
2000, pág. 99.
4
Em Tema de Negócio Fiduciário, pol., FDL, Lisboa, 1985.
5
Contratos Atípicos, em especial, págs. 277 e segs.
6
Págs. 650-652.
7
Contratos Atípicos, págs. 278 e segs.
354 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

Uma vez reconhecida a validade da causa fiduciária, o obstáculo fundado


na extensão do princípio do numerus clausus aos negócios reais quoad effectum
é hoje correntemente afastado – e bem –, pelos autores portugueses1, sendo
esta a solução que deve ser sustentada2.
Assim, com base na liberdade de celebrar negócios diferentes dos previs-
tos na lei (art. 405.º, n.º 1, do C.Civ.), uma vez afastadas as dúvidas fundadas
na natureza causal do sistema, pela via da causa fiduciária, fica aberto cami-
nho à admissibilidade de negócios fiduciários.
Reforça este entendimento a circunstância de se poderem identificar no
Direito português negócios jurídicos em que se manifestam notas caracte-
rísticas da fidúcia, por revelarem a sua conformidade, de princípio, com o
sistema.
O afastamento dos vários obstáculos que na doutrina portuguesa foram
levantados à admissibilidade dos negócios fiduciários conduz apenas ao re-
conhecimento da sua conformidade, em abstracto, com o Direito português;
não necessariamente à sua validade, pois fica em aberto a dúvida de ele, pelo
seu conteúdo e estrutura, coenvolver fraude à lei ou simulação.
Quanto à fraude à lei, é na fiducia cum creditore que a questão merece
ser ponderada, porquanto na sua configuração corrente, tendo a alienação
eficácia real e a limitação do correspondente direito eficácia obrigacional,
o fiduciante assegura ao fiduciário uma tutela mais forte, como garantia da
realização do seu direito, do que a que resultaria de penhor ou hipoteca
constituído sobre o bem alienado, consoante a sua natureza. Esta modalidade
de fiducia, assegura ao fiduciário a faculdade de fazer sua a coisa transmitida,
se o fiduciante não cumprir a obrigação em função da qual a transmissão
fiduciária é feita. Já se deixa ver que, por esta via, o fiduciário alcança uma
vantagem que, em geral, lhe estava negada tanto na qualidade de credor
hipotecário, como de credor pignoratício, dada a proibição do pacto comis-
sório (arts. 694.º e 678.º do C.Civ.)3.
A relevância desta proibição, que estava presente no pensamento de Vaz
Serra, expresso nos seus citados estudos para o novo Código Civil e foi ulti-
mamente reafirmada por M. Januário da Costa Gomes, não é posta em causa
pelo recente regime introduzido, em sede de penhor financeiro, pelo art.

Vd., por todos, Oliveira Ascensão, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968, págs. 168 e
1

segs., e Direito Civil. Reais, 5.ª ed., rev. e ampl., Coimbra Editora, 1993, págs. 286‑287.
2
Cfr. Lições de Direitos Reais, pág. 237-238.
3
Não se pode acolher a construção de P. Pais de Vasconcelos quando vê no regime da
usura (arts. 282.º e segs. do C.Civ.) uma forma de realizar a ratio legis que preside à proibição
do pacto comissório: evitar que o credor obtenha do devedor bens superiores ao seu crédito,
enriquecendo‑se à custa deste (Teoria Geral, pág. 486). Sem pôr em causa a afinidade das razões
que presidem à proibição do pacto comissório e à sanção da usura, certo é que esta depende de
requisitos subjectivos – além da lesão – que podem não se verificar num negócio de transmissão
com função de garantia.
A SIMULAÇÃO 355

11.º do Decreto‑Lei n.º 105/2004, de 22 de Julho. Em verdade, ao contrário


do que uma leitura menos atenta do preceito podia sugerir e é afirmado no
Relatório desse diploma legal1, nele não se afasta, mesmo no campo especí-
fico em que rege, o regime do art. 694.º do C.Civ.2.
Do art. 11.º do Decreto‑Lei n.º 105/2004 não resulta, portanto, qual-
quer argumento que afecte a relevância da proibição do pacto comissório
na perspectiva da admissibilidade do negócio fiduciário cum creditore. Dá,
porém, algum contributo útil ao esclarecimento desse problema, mas de um
ponto de vista diferente, nos termos que se passam a expor.
O entendimento a perfilhar é o de a transmissão fiduciária em garantia
não poder assegurar ao credor uma faculdade que lhe está negada na genera-
lidade dos direitos reais de garantia3, por assim o impor a tutela do devedor4
que tem de ser atendida naquela figura jurídica, por paridade, ou mesmo por
maioria de razão.
Na verdade, o negócio fiduciário propicia um resultado que a proibição
do pacto comissório visa afastar: o risco de o credor se enriquecer à custa do
devedor, fazendo sua a coisa dada em garantia.
Assim, para a fiducia cum creditore não implicar fraude da proibição do pac-
to comissório, não pode deixar de se exigir que no correspondente negócio
se insiram disposições que, à semelhança daquela de que emerge a obrigação
de restituição que caracteriza o pacto marciano, ponham o devedor a coberto
de um locupletamento injustificado do credor, obtido mediante a apropriação
do bem transmitido. Sem tal estipulação, a transmissão atípica em função de
garantia é nula.

VIII. Nesta medida, na anterior edição deste livro, foi alterado a posição
antes defendida; passou, pois, a ser sustentada uma solução próxima da de I.
Galvão Telles, sob a inspiração das observações de Vaz Serra, e que encontra

1
Na parte em que se refere a «aceitação do pacto comissório, em desvio da regra consagrada
no artigo 694.º do Código Civil».
2
A razão da afirmação feita no texto reside no n.º 2 do referido art. 11.º É certo que no n.º 1
desta norma se prevê a possibilidade de o beneficiário da garantia proceder à sua execução, fazen-
do seu o objecto do penhor, desde que as partes assim o hajam consignado ou se houver acordo
delas relativamente ao valor desse objecto. Todavia, o n.º 2 do art. 11.º impõe ao beneficiário da
garantia a obrigação de restituir, a quem a presta, a diferença entre o valor do objecto do penhor
e o montante das obrigações financeiras garantidas. Ora, este regime não corresponde ao pacto
comissório, em que o credor faz seu o bem dado em garantia, sem mais, mas ao chamado pacto
marciano, do qual, como no n.º 2 do art. 11.º, justamente consta a referida obrigação de restituir
a diferença do valor, quando o credor, no caso de incumprimento, adquire a titularidade do bem
dado em garantia.
3
Além de relativa ao penhor e à hipoteca, a mesma proibição vale para a consignação de
rendimentos (por remissão do art. 665.º do C.Civ.).
4
Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., reimp., Almedina, 2001, pág.
555.
356 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

uma manifestação positiva no art. 11.º do Decreto‑Lei n.º 105/2004. Segue-


-se, em suma, uma construção que, no essencial, acompanha a de M. Januário
da Costa Gomes a respeito da cessão em garantia1.

IX. Os elementos recolhidos na exposição anterior abrem fácil caminho


ao esclarecimento do negócio fiduciário como figura afim da simulação.
A corrente doutrinal contrária à admissibilidade dos negócios fiduciários
no Direito português – nomeadamente pela autoridade dos Autores que
a subscreveram –, ao lançar a dúvida sobre a sua validade, contribuiu, por
certo, para o facto, que a prática forense revela, de a fidúcia não ser, em regra,
patente, mas oculta. Por outras palavras, o pactum fiduciae não é revelado, não
sendo consequentemente perceptível por terceiros.
Esta prática, além de agravar a possibilidade de o fiduciante invocar as
limitações ao exercício, pelo fiduciário, do direito transmitido, nomeada-
mente quanto a terceiros, implica uma maior proximidade entre a fiducia e
a simulatio, tornando mais premente a necessidade de demarcar estas duas
figuras.
É que se, em geral, se poderia supor que no negócio fiduciário há simu-
lação, pois que «se declara coisa diferente do que se quer», «se declara alienar
ao mandatário quando verdadeiramente se deseja conservar a propriedade»,
«ou se declara alienar ao credor quando no fundo apenas se pretende dar‑lhe
hipoteca ou penhor»2, esta aparência resulta reforçada na fidúcia oculta.

X. O problema da delimitação entre estas duas figuras coloca‑se na mo-


dalidade de simulação relativa, mas por referência ao negócio simulado.
Segundo a doutrina dominante3, em termos dogmáticos, a distinção es-
tabelece‑se a partir do seguinte quadro. O negócio fiduciário é um acto
verdadeiro e efectivamente querido pelas partes, enquanto na simulação re-
lativa o negócio aparente – o simulado – não é querido, embora o seja o
dissimulado. Em complemento, afirma‑se não existir no negócio fiduciário
a divergência que caracteriza a simulação.
Sem pôr em causa este argumento, a distinção ganha clareza quando se
constrói o negócio fiduciário, nos termos atrás expostos, como um único

Ob. cit., pág. 99. Próxima da posição de Januário Costa Gomes é a de Isabel Andrade de
1

Matos, ao admitir a validade de alienação fiduciária em garantia, se se verificar uma equivalência


entre o valor do bem alienado e o débito garantido. No fundo, está em causa a proibição do pac-
to comissorio (O Pacto Comissório. Contributo para o Estudo do Âmbito da sua Proibição, Almedina,
2006, págs. 193-194).
2
I. Galvão Telles, Manual, pág. 193.
3
Cfr., sobre este ponto, Beleza dos Santos, Simulação, vol. I, pág. 144; Manuel de Andrade,
Teoria Geral, vol. II, pág. 175; I. Galvão Telles, Manual, pág. 193; Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II,
pág. 171; Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. II, págs. 222‑223; e P. Pais de Vasconcelos, Contratos
Atípicos, págs. 299‑301.
A SIMULAÇÃO 357

acto, atípico e causal. Para além de não haver, pois, dois negócios, como na
simulação relativa, a invalidade que nele pode ocorrer, por inerência àquela
configuração, prende‑se com a ilicitude do fim visado1 e não com o facto de
o negócio não ter sido querido.
Por outro lado, o pactum fiduciae desempenha uma função bem diferente
do pactum simulationis. Aquele é um elemento do conteúdo de um negócio
unitário que, aposto ao chamado negócio fundamento, é, afinal, a fonte da atipi-
cidade do negócio fiduciário. Bem diversamente, o pactum simulationis é um
acordo que tem apenas de comum, com os negócios envolvidos na simula-
ção, as pessoas que nestes são partes (ou uma delas, na simulação de negócios
unilaterais). Mas não é elemento do conteúdo de qualquer deles, antes um
negócio autónomo, instrumental, que, explicitando a não correspondência
do simulado com a verdadeira vontade das partes, faz a ligação entre ele e o
simulado.
Mas pode ainda afirmar‑se outra diferença. Na fiducia, por via do pacto
fiduciário, adequa‑se a causa do negócio fundamento a uma função económi-
co‑social diferente – a causa fiduciária – para assegurar um fim mediato em
razão do qual o negócio é celebrado e que, qua tale, é querido. Na simulação
relativa, qualquer dos negócios mantém incólume a sua causa, podendo nem
sequer verificar‑se desvio no fim mediato. Quem finge vender certa coisa
por € 1000 e a quer doar, tem em vista assegurar ao comprador um certo
resultado, quanto à titularidade da coisa alienada, que é juridicamente alcan-
çável por qualquer desses negócios.
Em suma, o fiduciante e o fiduciário querem efectivamente celebrar o
acto. Somente não o querem com todas as consequências jurídicas do negó-
cio fundamento, inerentes aos seus efeitos típicos, mas apenas para certo fim
específico, que justifica a inclusão, nele, do pacto fiduciário.
Cabe, contudo, reconhecer que a delimitação entre estas duas figuras –
simulação e fidúcia – se revela na prática, com frequência, muito mais intrin-
cada, do que no plano dogmático.
A razão de ser desta dificuldade resulta, como não custa a compreender,
de na destrinça das duas figuras estar envolvida uma complexa questão de
interpretação do negócio jurídico, dirigida ao apuramento da vontade real
das partes e da eventual existência de uma vontade aparente, que daquela
divirja. Concretizando, na fiducia cum amico, por exemplo, está por vezes em
causa saber se no caso existe uma interposição fictícia ou real de pessoas.
Mas, para além da dificuldade inerente à tarefa interpretativa do negócio
jurídico, assim evidenciada, outra ocorre, com frequência, na prática nego-
cial, sobretudo nos casos em que a validade do negócio jurídico fiduciário
1
A obtenção de um resultado que a lei pretende afastar, como o que justifica a proibição do
pacto comissório, logo, envolvendo fraude à lei.
358 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

é mais problemática – a fidúcia para fim de garantia. Com a agravante de,


nesta, como a experiência forense revela, as partes, para ultrapassarem o pro-
blema da validade do negócio fiduciário, não só não manifestarem o pactum
fiduciae, como intentarem dar‑lhe uma feição diferente, nomeadamente a da
venda a retro (arts. 927.º e segs.)1.

529. O negócio indirecto

I. Outro instituto a referir nas figuras afins da simulação é o negócio in-


directo2.
Diz‑se negócio indirecto, em sentido estrito, o acto típico cujas cláusu-
las são executadas visando atingir um fim diferente do seu fim típico; em
sentido amplo, o negócio indirecto abrange também os actos em que o fim
(indirecto) visado pelas partes é prosseguido mediante o aditamento, ao ne-
gócio típico seleccionado, de cláusulas dirigidas à realização de tal fim3. Na
noção de Manuel de Andrade, negócio indirecto é aquele «cujos efeitos são
realmente queridos pelas partes», mas é celebrado «por um motivo ou para
um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com a função caracte-
rística (causa) desse tipo negocial e correspondente a outro negócio típico
ou tipificável»4.
Como desta noção resulta, ainda que o negócio indirecto seja pelas partes
dirigido a um fim diferente do que o tipo a que elas recorrem permite reali-
zar, é da sua função típica (causa) que o negócio indirecto se afasta, sendo esta
a nota que o caracteriza e lhe dá autonomia dogmática e de regime5.
1
Por exemplo: A emprestou a B € 50.000,00, ao juro de 5% ao ano, pelo prazo de 5 anos.
Mas, querendo garantir‑se melhor, conseguiu convencer B a vender‑lhe um prédio urbano de
que é proprietário, com o compromisso de A lho revender, se B pagar a dívida. Não querendo
correr o risco de o negócio, como fiduciário, ser declarado nulo, A e B, configuram‑no como
venda a retro; todavia, dadas as limitações de que o regime deste negócio sofre, por efeito do art.
928.º do C.Civ., o preço que figura na escritura não é o valor do empréstimo, mas este mais juros,
isto é, no caso, € 62.500,00, para ser este o valor que o vendedor tem de entregar ao comprador,
se exercer a faculdade de resolução.
2
Sobre negócio indirecto, vd. Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. III, págs. 306 e 308; Me-
nezes Cordeiro, Tratado, vol. II, T. II, págs. 248 e segs.; e P. Pais de Vasconcelos, Teoria Geral,
págs. 636-640, e Contratos Atípicos, págs. 243 e segs. Para maior desenvolvimento, Tullio Ascarelli,
O Negócio Jurídico Indirecto (trad. port.), sep. Jornal do Foro, Lisboa, 1965, e Contrato Misto, Negócio
Indirecto, Negotium mixtum cum donatione, (trad. port.), sep. Jornal do Foro, Lisboa, 1954; Pires de
Lima e Vasco Lobo Xavier, Três pareceres jurídicos, sep. RDES, ano XVIII, n.os 1‑2‑3‑4, Coimbra,
1972, págs. 16 e segs.; Orlando de Carvalho, Negócio Jurídico Indirecto (Teoria Geral), in BFDUC,
supl. X, 1952; Ferrer Correia, Sociedades Fictícias e Unipessoais, Coimbra, págs. 148 e segs.; Alberto
Xavier, O negócio indirecto em direito fiscal, in CTF, n.º 147, págs. 7 e segs.
3
Cfr., sobre esta matéria, P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 246 e segs.
4
Teoria Geral, vol. II, pág. 179.
5
Neste sentido, cfr. Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. III, págs. 306‑307. Orlando de Carvalho,
Negócio Jurídico Indirecto, pág. 130, sustenta que o fim do negócio indirecto se situa «no puro plano
A SIMULAÇÃO 359

Assim, há negócio indirecto se A e B celebram entre si um contrato de


compra e venda com um preço simbólico, em relação ao valor da coisa vendida,
mas sério1: estão afinal a realizar um fim de doação através de uma compra e
venda. É o chamado negotium mixtum cum donatione. Do mesmo modo, se A,
devedor de B, vende a este alguma coisa sob a condição resolutiva de paga-
mento da dívida do vendedor, há um negócio indirecto; estão, neste caso,
a realizar uma função de garantia2.

II. O negócio indirecto não é necessariamente um negócio em fraude à


lei, como já foi correntemente entendido. Embora seja, por vezes, utilizado
como um meio de prosseguir um fim proibido, esta situação pode não se
verificar. Às partes, ao abrigo da autonomia privada, não está vedado o re-
curso a um tipo negocial para prosseguir um fim lícito diverso do que ele
normalmente assegura.
Assim, em tese geral, o negócio indirecto, como figura autónoma, é vá-
lido. Mas, como qualquer outro negócio, será nulo, nos termos gerais de
Direito, se o seu fim for contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos
bons costumes (art. 281.º do C.Civ.). Há apenas a assinalar que esta ilicitude
lato sensu do fim não deixará, no negócio indirecto, de ser comum a ambas
as partes, porquanto foi ele que presidiu à sua celebração.
Para além disso, como assinala – e bem – Oliveira Ascensão, o negócio
indirecto é nulo se «a função do negócio utilizado for injuntiva; quer dizer,
aquele negócio não pode ser desfuncionalizado». Tal situação ocorre, num
exemplo deste Autor, no casamento celebrado para obter um fim (vanta-
gem) alheio à família: de aquisição da nacionalidade, fiscal3.

III. O negócio indirecto é verdadeiro e daí não se confundir com o si-


mulado, nomeadamente na simulação relativa.
As partes querem efectivamente celebrar o negócio por elas seleccionado,
embora para um fim diverso do do seu tipo. Há apenas um negócio4 e este

dos motivos». Segundo P. Pais de Vasconcelos, o negócio indirecto é um negócio misto «de tipo
modificado em que a modificação relevante consiste na diferença do fim» (Teoria Geral, pág. 636).
1
Se não for sério, há dissimulação de uma doação sob uma compra e venda.
2
Esta hipótese não se confunde com a da fiducia cum creditore. Assim, enquanto naquela o
pagamento da dívida implica a resolução (automática) do contrato, no negócio fiduciário com
fim de garantia o pagamento apenas cria a obrigação de o comprador revender a coisa objecto do
contrato. Não há, no negócio indirecto, o pactum fiduciae.
Mas também não se confunde com o caso da resolução do contrato de compra e venda por
falta de pagamento do preço pelo comprador, quando convencionada (cfr. art. 886.º do C.Civ.).
Finalmente, importa relacionar com esta matéria a figura da venda a retro, prevista nos arts. 927.º e se-
guintes do C.Civ., sendo de particular interesse ter aqui em conta o regime estatuído no art. 930.º
3
Teoria Geral, vol. III, pág. 307.
4
O carácter unitário do negocio indirecto é assinalado por Menezes Cordeiro, Tratado, vol. II,
T. II, pág. 252.
360 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA

corresponde à vontade das partes; não há também, correspondentemente,


a intenção de enganar terceiros.
Assim, no negotium mixtum cum donatione as partes querem a compra e
venda que celebram, mas, por via da estipulação de um preço simbólico, que-
rem realizar uma liberalidade.
Por outro, sendo o negócio indirecto, qua tale, válido, também esta nota
o demarca do simulado, que é nulo. Para além disso, ainda quando, como
atrás exposto, seja nulo, o seu vício não respeita à vontade como elemento
estrutural do acto, mas ao fim visado pelas partes.

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