Simulação
Simulação
Simulação
DIVISÃO I
A simulação
§ 1.º
Noção e modalidades
II. Esta noção decorre do n.º 1 do art. 240.º do C.Civ. e, embora seja
suficientemente clara e não exija desenvolvimentos especiais, justifica ainda
assim algumas notas adicionais. Uma delas prende‑se com o modo como se
configura a simulação relativa, pelo que se reserva o seu esclarecimento para
o momento da exposição do correspondente regime; a outra respeita ao
campo de aplicação do instituto.
Sendo o conluio das partes um dos elementos do conceito, logo se coloca a
questão de saber se a simulação é aplicável a negócios unilaterais (em particular
não recipiendos), uma vez que o referido elemento parece pressupor a existên-
cia de duas partes, como é próprio dos negócios bilaterais.A simulação tem, por
certo, o seu campo de aplicação, por excelência, no contrato; não se verifica,
contudo, obstáculo sério à existência de um acordo simulatório entre quem é
parte no negócio unilateral e quem é seu destinatário ou até, mesmo, benefici-
ário da correspondente declaração, no intuito de enganar outros terceiros1.
O próprio legislador revela que a noção do art. 240.º não exclui este
entendimento, ao falar em simulação no testamento (art. 2200.º do C.Civ.),
que é um negócio unilateral não recipiendo.
o devedor vender os seus bens para os furtar à execução dos credores; simu-
la alguém vender a outrem alguma coisa, que efectivamente lhe doa, para
evitar que a doação seja tomada em conta no cálculo da legítima na heran-
ça por morte do doador, prejudicando‑se, assim, os herdeiros legitimários;
declara‑se, na venda, um preço inferior ao real, em prejuízo do fisco, pela
redução do correspondente valor de incidência do imposto do selo, ou, pelo
contrário, declara‑se um valor superior ao real para afastar o interesse do
titular de um direito de preferência.
E fácil seria multiplicar os exemplos deste e doutros tipos.
Menos frequentes serão os casos de simulação inocente, mas mesmo as-
sim podem verificar‑se, quer para fins de ostentação de riqueza (ad pompam
et ostentationem), quer para manter oculta certa realidade que, embora não
seja prejudicial a terceiro, poderia ocasionar reacções desagradáveis para o
simulador, se fosse conhecida. Assim, quando alguém, sem herdeiros legi-
timários, encobre com uma venda a doação de certos bens, pode fazê‑lo
apenas para evitar o desagrado dos seus eventuais herdeiros legítimos ou de
familiares não contemplados na doação.
Ao contrário do que sucedia no domínio do Código de Seabra1, a distin-
ção tem hoje pouco interesse prático, pois o regime da simulação fraudulen-
ta não se afasta sensivelmente do da inocente, salvo em aspectos particulares
adiante assinalados.
1
O art. 1031.º desse Código só feria de nulidade o acto se a simulação fosse fraudulenta:
«os actos ou contratos, simuladamente celebrados pelos contraentes com o fim de defraudar os
direitos de terceiros».
2
Como se diz na fórmula clássica, o negócio simulado, em tais casos, colorem habet substantiam
vero nullam.
A SIMULAÇÃO 313
1
Em fórmula correspondente à citada na nota anterior, diziam os antigos que, neste caso,
o acto simulado colorem habet substantiam vero alteram.
2
Neste sentido se pronunciam Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. II, pág. 174; Beleza dos
Santos, A Simulação, vol. I, págs. 356‑357; I. Galvão Telles, Manual, pág. 168; Castro Mendes, Teoria
Geral, vol. II, pág. 155; C. Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 468; Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol.
II, pág. 220; e Heinrich E. Hörster, A Parte Geral, pág. 536.
3
Por influência de Coviello, sustentou esta tese, na doutrina portuguesa, Abranches Ferrão,
Das Doações, vol. I, págs. 143‑145. É menos nítida a posição de Cunha Gonçalves, como se pode
ver em Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português, vol. V, Coimbra Editora,
1932, págs. 738‑740, e vol. I, pág. 407.
4
Tratado, vol.V, pág. 738.
5
Cfr., para maiores desenvolvimentos, o exposto em A Conversão, págs. 741‑744.
314 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
Na simulação relativa distingue ainda I. Galvão Telles a total («sempre que os dois negócios,
2
1
Com esta modalidade de simulação não se deve confundir a interposição real de pessoas, figura
afim da simulação, que adiante será referida.
2
Na prática, as partes preferirão adoptar a primeira modalidade de simulação pelos efeitos
sucessórios ligados ao regime da doação.
316 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
§ 2.º
Regime jurídico
admitir este meio de prova «nos casos e termos em que é admitida a prova
testemunhal».
Assim, e sem prejuízo das considerações adiante expostas, quando os si-
muladores pretendam invocar a simulação, só lhes está facultada, sem res-
trições, a prova por confissão e a prova documental, já que neste domínio,
embora admitida, será em geral pouco significativa a prova pericial.
Estando a eficácia da confissão, normalmente, condicionada pela cola-
boração dos próprios simuladores e não sendo corrente, no sistema jurídico
português, a prática de contradeclarações, já se deixa ver que o regime acima
traçado se apresenta particularmente restritivo.
A doutrina, porém, tem vindo a pôr em causa o alcance literal das proi-
bições resultantes do citado art. 394.º A posição corrente foi, num primeiro
momento, a de as entender à letra1, mas deve hoje considerar‑se dominante
uma interpretação restritiva.
Esta segunda orientação foi primariamente defendida, na vigência do
actual Código, por Vaz Serra2 e posteriormente por C. Mota Pinto e Pinto
Monteiro3 e por nós próprios4, sendo perfilhada por Menezes Cordeiro5 e
Pedro Pais de Vasconcelo6 e acolhida na jurisprudência. Todos os defensores
deste entendimento aceitam, em casos particulares, o recurso à prova teste-
munhal, em complemento da prova documental, mas não são inteiramente
coincidentes os termos em que a admitem. A posição mais liberal é a de Vaz
Serra e a mais condicionada a aqui sustentáda.
Limitando aqui a exposição ao essencial7, a questão coloca‑se nos seguin-
tes termos.
Importa ter presente não só o campo de aplicação do art. 394.º8, mas,
ainda, que a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de
documentos, enquanto eles façam prova plena, não impede o recurso àquele
meio de prova «para demonstrar a falta ou os vícios da vontade com base nos
quais se impugna a declaração documentada»9, nem para a «simples interpre-
tação do contexto do documento» (n.º 3 do art. 393.º do C.Civ.).
1
Neste sentido, Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. II, pág. 227.
2
Em anotação ao ac. do STJ, de 4/DEZ./73, in RLJ, ano 107.º, pág. 311 e segs., reeditando
posições sustentadas nos trabalhos preparatórios do novo Código: Provas (direito probatório material),
in BMJ, n.º 112, págs. 194‑197, 219‑232, 235 e 292.
3
Arguição da simulação pelos simuladores. Prova testemunhal, parecer, in CJ, ano X, 1995, t. 3, págs.
11 e segs.
4
A Prova da Simulação pelos Simuladores, parecer, sep. O Direito, ano 124.º, 1992, IV (págs. 193
e segs.); em versão actualizada, in Estudos Sobre a Simulação, QUID JURIS, Lisboa, 2004, págs. 45
e segs.
5
Tratado, vol. I, T. I, pág. 851.
6
Teoria Geral, págs. 695-697.
7
Podem ver‑se desenvolvimentos, com referências, no est. cit. na ant. nota 4.
8
Cfr., a este respeito, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, vol. I, pág. 343.
9
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 342.
318 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
1
Era, de resto, a opinião largamente dominante já na vigência do Código de Seabra (vd., por
todos, Rui de Alarcão, Simulação, in BMJ, n.º 84, pág. 308 e autores aí citados).
2
Sobre o valor do negócio dissimulado, vd. I. Galvão Telles, Manual, págs. 179 e segs.; Oliveira
Ascensão, Teoria Geral, vol. II, págs. 224 e segs.; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 473 e segs.; e P.
Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, págs. 686 e segs.
Foi tratada, em particular, esta matéria in Valor do negócio dissimulado, anot. ac. do STJ, de 12/
MAR./96, sep. de O Direito, ano 129.º, 1997, I‑II, págs. 117 e segs.; em versão actualizada, vd.
Estudos sobre a simulação, págs. 13 e segs.
320 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
1
«Anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis o de cessão onerosa de créditos
hipotecários que dissimulavam doações, não podem estas considerar‑se válidas» (Oliveira Ramos
e Simões Correia, Assentos do Supremo Tribunal de Justiça, pág. 120; vd. texto do acórdão, também,
in BMJ, n.º 32, págs. 258 e segs.).
2
Para maior desenvolvimento, no domínio do Direito anterior, cfr. Beleza dos Santos,
A Simulação, vol. I, pág. 365; I. Galvão Telles, Manual, págs. 166 e segs.; Manuel de Andrade, Teoria
Geral, vol. II, págs. 191 e segs.
322 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
1
Manual, pág. 180 (os itálicos são do texto).
2
Teoria Geral, págs. 473 a 475 e notas (618) e (619) desta última página. C. Mota Pinto fun-
dava‑se, não só no regime do negócio formal e da sua prova, mas ainda na seguinte consideração
de ordem prática: a solução oposta possibilita «inclusivamente que, onde houve uma simulação absoluta
(venda fantástica), o pseudo‑comprador venha alegar e provar uma doação dissimulada na realidade inexis-
tente» [em itálico no texto da cit. nota (618)]. Isso seria contrário aos imperativos do princípio da
certeza. Não nos parece este argumento decisivo, dado o regime de prova dos negócios formais
e da simulação, já referidos.
3
Também a solução defendida por Heinrich E. Hörster conduz primariamente à nulidadedo
negócio jurídico formal (A Parte Geral, pág. 547).
4
Teoria Geral, vol. II, págs. 164‑165.
5
Código Civil, vol. I, pág. 228.
6
Sobre este ponto cfr., também,Vaz Serra, em várias anotações de jurisprudência (RLJ, anos
101.º, págs. 171 e segs., 103.º, págs. 361‑362, e 113.º, págs. 57 e segs.).
7
Teoria Geral, vol. II, pág. 225.
A SIMULAÇÃO 323
1
Tratado, vol. I, T. I, pág. 846.
2
Teoria Geral, pág. 691.
3
Neste ponto é invocável o apoio de Castro Mendes, Oliveira Ascensão e, mesmo, de Me-
nezes Cordeiro.
4
Neste ponto afasta-se, pois, a posição de Oliveira Ascensão, acima exposta.
324 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
Esta solução, proposta por Manuel de Andrade na vigência do Código Civil anterior (Teoria
1
Geral, vol. II, págs. 162‑163), tem hoje uma base legal mais sólida no art. 221.º do C.Civ., corro-
borada, no importante campo da interpretação dos negócios formais, pelo n.º 2 do seu art. 238.º
Não se afasta, pois, muito da posição sustentada por Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 164,
nota (1).
2
Não é, porém, aceitável, nesta medida, a formulação de Pires de Lima e Antunes Varela,
quando sustentavam que o n.º 2 do art. 241.º afasta a doutrina do Assento de 1952, «já que a ven-
da e a doação estão sujeitas à mesma forma (escritura pública)» (Código Civil, vol. I, pág. 228).
A SIMULAÇÃO 325
1
Teoria Geral, vol. II, pág. 198.
2
A Simulação, vol. I, pág. 390.
3
Ob. e vol. cits., pág. 391.
4
São manifestamente terceiros, como de seguida se dirá no texto, os herdeiros legitimários
quando arguam a simulação em vida dos autores da simulação, pois, então, em rigor, têm a quali-
dade de sucessíveis e não de herdeiros.
5
Tendo presente o regime do art. 259.º do C.Civ., o representado é terceiro em relação ao
negócio jurídico celebrado pelo seu representante (cfr., neste sentido, ac. do STJ, de 5/MAR./81,
in BMJ, n.º 305, pág. 261).
6
Cfr. o nosso est. Simulação, págs. 79‑81, na versão actualizada já citada.
7
Para maior desenvolvimento, vd. est. cit., págs. 91 e segs. da versão actualizada.
328 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
IV. Pelo que se refere aos herdeiros legitimários, a questão tinha sido
levantada,em termos muito polémicos, no domínio do Direito anterior,
dado o silêncio do Código de Seabra a seu respeito. O problema consiste
em saber se eles podem invocar a simulação em vida do simulador. A dúvida
já não se põe após a morte deste, uma vez que, nesse momento, eles agem
na qualidade de sucessores, como qualquer outro herdeiro; e não são já, em
princípio, terceiros.
Também neste caso o problema dividiu a doutrina e a jurisprudência
em termos de provocar a emissão de um Assento, em 19 de Dezembro de
1941, segundo o qual «os filhos podem pedir, mesmo em vida dos pais,
a anulação de dívidas por estes simuladamente contraídas, com o intuito
de os prejudicar, não sendo, portanto, preciso demonstrar a efectividade do
prejuízo»2.
O Código Civil vigente veio tomar posição sobre este ponto, estabele-
cendo no art. 242.º, n.º 2, a legitimidade dos herdeiros (rectius, dos sucessíveis)
legitimários para, em vida dos simuladores, arguirem a nulidade do acto
simulado, desde que a simulação seja fraudulenta. Com efeito, a legitimidade
é‑lhes atribuída, quando o negócio simulado seja feito com o intuito de os
prejudicar.
A solução do Assento e do Código é a correcta e funda‑se na ex-
pectativa jurídica que aos sucessíveis legitimários é atribuída em vida
do autor da sucessão, de que o art. 242.º, n.º 2, é justamente uma das
manifestações. Não colhe, pois, invocar contra este regime o argumento
de os herdeiros legitimários não terem quaisquer direitos sobre os bens
1
Cfr. o est. Simulação, págs. 85 e segs. da versão actualizada.
2
Oliveira Ramos e Simões Correia, Assentos, págs. 88 e 206 e segs. A doutrina alargou depois
o campo de aplicação do Assento aos demais herdeiros legitimários e aos demais actos simulados
praticados pelo de cuius com intuito fraudulento [cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. I, págs.
200‑201, solução acolhida por Rui de Alarcão, no seu estudo para o novo Código Civil – Simu-
lação. Anteprojecto para o novo Código Civil, in BMJ, n.º 84, págs. 316‑317; I. Galvão Telles, Manual,
(3.ª ed.), págs. 161, nota (2)].
A SIMULAÇÃO 329
que são objecto do negócio simulado, pois não é isso que aqui está em
causa1.
A adequada interpretação do preceito – o entendimento da sua ratio –
leva a afirmar que os herdeiros legitimários podem invocar a nulidade desde
que o negócio simulado os prejudique, ainda que não se demonstre aquela
intenção. Só assim o n.º 2 do art. 242.º ganha o alcance prático, visado pelo
legislador, de pôr os herdeiros legitimários a coberto de actos falsamente
praticados pelo autor da sucessão em prejuízo de sua legítima2, pois nem
sempre se torna fácil a prova dessa intenção do autor da sucessão.
Duas notas finais para assinalar, por um lado, que tem aqui relevo a dis-
tinção entre simulação fraudulenta e inocente, e, por outro, que o regime
específico do art. 242.º, n.º 2, não afasta a possibilidade de os legitimários,
já na qualidade de herdeiros, atacarem, depois da morte do de cuius, os actos
simulados por este praticados.
1
Por assim ser, só podem ser atacados actos simulados e se se verificarem os requisitos ana-
lisados no texto
2
Em sentido correspondente se pronunciava C. Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 478.
3
É manifesto o interesse da questão, vistas as diferenças de regime, quer em matéria de prova,
quer perante terceiros.
4
Diferente é o caso de simulação do próprio testamento (art. 2200.º do C.Civ.). Um herdeiro,
que não seja designado no testamento nem beneficiário, deve ser tratado como terceiro.
5
Código Civil, vol. I, pág. 228.
6
A dúvida respeitava a saber se o negócio simulado envolvia revogação tácita do legado (cfr.,
a este respeito, o est. Simulação, pág. 99 da versão actualizada).
330 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
1
Sobre este ponto, vd. o est. Simulação, págs. 93‑95 da versão actualizada.
2
Sobre as relações dos preferentes em sede de simulação, vd. o est. A posição dos preferentes
perante o negócio simulado, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor João Lumbrales,
págs. 425 e segs.; versão actualizada in Estudos sobre a simulação, págs. 191 e segs.
3
Vd., sobre a matéria deste número, I. Galvão Telles, Manual, págs. 174 e segs.; Oliveira Ascen-
são, Teoria Geral, vol. II, págs. 229‑230; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 479 e segs.; e Menezes
Cordeiro, Tratado, vol. I, T. I, págs. 848‑850.
A SIMULAÇÃO 331
tutela por eles estabelecida para terceiros. Em particular, interessa aqui apurar
se o disposto no art. 243.º é mais ou menos eficaz do que o do art. 291.º
Mesmo uma primeira leitura dos dois preceitos revela existirem entre
eles alguns pontos de contacto e outros de afastamento. Assim, ambos exi-
gem a boa fé do terceiro, restando saber se a definem em termos equiva-
lentes. Mas, se o art. 243.º, para proteger o terceiro, se contenta com este
requisito, o art. 291.º é mais exigente, pois a sua aplicação depende do tipo
de direito adquirido por terceiro, da natureza do acto aquisitivo e do bem
que ele tem por objecto e, ainda, da observância de certas regras de registo.
Finalmente, o art. 291.º estabelece um «período de carência», durante o qual
a oponibilidade prevalece.
Assim, em termos gerais, a tutela dos terceiros é mais forte na simulação1
e o aspecto significativo de confronto entre os preceitos em causa circuns-
creve‑se afinal à configuração do requisito da boa fé.
Sobre o fundamento desta particular tutela, vd., o est. Simulação, págs. 102 e segs. da versão
1
actualizada.
2
A má fé dos simuladores faz com que não releve a mera cognoscibilidade da simulação
pelo terceiro, salvo quando a acção de simulação seja registada e a aquisição se verifique após o
registo.
3
Simulação, págs. 117‑118 da versão actualizada; neste sentido, C. Mota Pinto, Teoria Geral,
pág. 484, fundando‑se na Lição de Manuel de Andrade. Em sentido diferente, Menezes Cordeiro,
Tratado, vol. I, T. I, pág. 847, e I. Galvão Telles, Manual, pág. 175.
4
Não há boa fé de terceiro se ele se encontra numa situação de incerteza (dúvida grave) quanto
à existência de simulação.
A SIMULAÇÃO 333
V. O regime de tutela dos terceiros contra quem não pode ser oposta a
simulação criou ainda um outro ponto de divergência na doutrina.
A dúvida está aqui em saber se só se devem considerar abrangidas pelo
regime do art. 243.º as pessoas a quem a invalidade do negócio prejudica ou
também as que tiram vantagem da sua validade e que a perdem se ele for
invalidado e os correspondentes efeitos a elas oponíveis.
Dois exemplos simples servem para ilustrar o problema. Na simulação
absoluta de um contrato de compra e venda – venda fantástica –, o subad-
quirente do simulador adquirente tem de abrir mão da coisa vendida, se a
simulação lhe for oponível, correndo o risco da não restituição do preço por
ele pago.
A oponibilidade causa‑lhe um prejuízo. Pelo contrário, na simulação de
valor, sendo o preço simulado mais baixo que o verdadeiro, o terceiro prefe-
rente perde o benefício de preferir em melhores condições se a simulação lhe
for oponível. A oponibilidade da simulação priva, pois, este terceiro de uma
vantagem.
A favor do entendimento, segundo o qual o Direito tutela a posição de
todos estes terceiros, invocam‑se em geral a letra do preceito – que não
distingue – e o elemento histórico da interpretação, uma vez que a solução
contrária, que estava no Anteprojecto de Rui de Alarcão1, não veio a ser
consagrada2.
Em sentido oposto se pronunciava C. Mota Pinto3, que assim continuava
a seguir a posição que na vigência do Código Civil anterior era defendida
por Manuel de Andrade4.
Não convencem os argumentos invocados a favor da tese mais favorável
aos terceiros. Desde logo, o argumento literal, de cariz formal, não pode
deixar de ser submetido à sindicância da ratio legis e da adequada ponderação
dos interesses em jogo. Quanto ao elemento histórico, sendo em geral redu-
zido o seu valor interpretativo5, não lhe pode ser atribuído, in casu, relevância
decisiva. Se forem bem analisadas as propostas de Rui de Alarcão e de Vaz
1
Da Simulação, in BMJ, n.º 84, pág. 317.
2
Cfr. Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 159; Pires de Lima e Antunes Varela, Código
Civil, vol. I, págs. 229‑230.Vaz Serra, em estudo publicado in RLJ, ano 101.º, pág. 236, propôs uma
solução ecléctica, que não parece ter base legal em que assente.
3
Teoria Geral, págs. 482‑484 e nota (634) desta última página.
4
Teoria Geral, vol. II, pág. 207.
5
Como bem assinalava C. Mota Pinto (ob. e loc. cits.), nem este é elemento decisivo da in-
terpretação da lei, visto o teor do art. 9.º do C.Civ.
334 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
Serra para o Código Civil nesta matéria1, o mais que se pode concluir é que
o legislador pretendeu manter a questão em aberto, ao não adoptar nenhu-
ma das posições – de sentido contrário – por eles formuladas.
A solução correcta deve assim fundar‑se na razão de ser da inoponibili-
dade e na adequada composição dos interesses em jogo. Com efeito, o que
explica o regime do art. 243.º é a intenção de impedir que a invalidação
do acto simulado venha pôr em causa direitos adquiridos por terceiros com
fundada convicção na sua bondade. Entre a má fé do simulador e a boa fé
do terceiro adquirente deve esta prevalecer, evitando‑se que o terceiro fique
prejudicado por o simulador invocar a sua própria torpeza2.
Ora tais razões não valem no caso de o terceiro apenas tirar vantagem
da manutenção do negócio simulado, por também a posição deste não ser
isenta da censura do Direito. Se A, comproprietário de certo prédio, vende
o seu quinhão a B, mas, para iludir o fisco, acorda com este fazer constar do
negócio preço inferior ao real, onde encontrar fundamento razoável para
a benesse atribuída a C, comproprietário do dito prédio, ao ser admitido a
preferir pelo preço simulado, invocando o art. 243.º e a inoponibilidade da
nulidade do negócio simulado, não sendo, sequer, a simulação determinada
pela intenção de o prejudicar?
Não se identifica aqui mais do que um enriquecimento injustificado
do preferente, que se não pode sancionar com uma interpretação literal da
lei3.
Este é o sentido que hoje prevalece na doutrina, sendo perfilhado por
Oliveira Ascensão4, C. Mota Pinto5, Menezes Cordeiro6 e Almeida Costa7.
A título de esclarecimento final importa aqui deixar bem expresso, ainda
que isso resulte já dos termos do art. 243.º, que a protecção do interesse
do terceiro de boa fé não significa que o negócio simulado se convalide.
Ele continua a ser nulo, a nulidade opera, mas apenas em certo sentido, isto
é, nas relações dos simuladores entre si; assim, e nomeadamente, o simula-
dor comprador não pode invocar o negócio simulado para nele fundar a
aquisição da coisa objecto de tal contrato. Em suma, os efeitos da nulidade
1
BMJ, n.º 84, págs. 319‑320. Por isso não é também de seguir a solução proposta por Vaz Ser-
ra, já na vigência do novo Código, in RLJ, n.º 101.º, pág. 327, anot. ac. do STJ, de 21/FEV./67.
2
Seria manifestamente injusta outra solução, por contrariar o que há de atendível no velho
brocardo, segundo o qual ninguém deve ser admitido a prevalecer‑se da sua própria má fé (nemo
auditur propriam turpitudinem allegans).
3
Para desenvolvimento da posição sustentada no texto vd. os nossos estudos, Simulação –
Direito de Preferência – Abuso de Direito e Posição dos Preferentes, ambos in Estudos sobre a simulação,
respectivamente, págs. 176 e segs. e 202‑205.
4
Teoria Geral, vol. II, págs. 229‑230.
5
Teoria Geral, págs. 482‑483 e nota (634).
6
Tratado, vol. I, T. I, págs. 849‑850.
7
Direito das Obrigações, nota (3) da pág. 457, com referências de doutrina e jurisprudência.
A SIMULAÇÃO 335
1
Sobre o conflito entre terceiros perante a simulação, vd., em geral, I. Galvão Telles, Manual,
págs. 178‑179; C. Mota Pinto, Teoria Geral, págs. 484‑486; e Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol.
II, págs. 230‑231.
Para maior desenvolvimento da posição defendida no texto, vd. o est. Simulação, in Estudos
sobre a simulação, págs. 130 e segs.
2
Note‑se que o problema se coloca perante os efeitos da declaração de nulidade, que em si
mesma não é posta em causa, podendo ela ser invocada quer pelo simulador quer pelo terceiro
lesado para o efeito de obter a reparação de danos sofridos.
336 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
ter proposto, no seu estudo para a simulação no novo Código Civil, uma
norma especificamente dirigida à resolução desses conflitos1.
Não cabe aqui recorrer aos arts. 242.º e 243.º do C.Civ., pois eles con-
templam apenas a posição unilateral de cada uma das categorias de terceiros
em conflito com os simuladores.
A questão tem sido largamente debatida na doutrina portuguesa, como
na estrangeira, interessando começar por dar aqui uma visão geral dos ter-
mos em que o problema se coloca no sistema jurídico português.
Da Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 322 e segs. Essa norma (art. 4.º), subordinada à epígrafe
1
que se pretendem socorrer da realidade das coisas1. Para além disso, tal solu-
ção mostra‑se, por vezes, em colisão com as regras próprias do registo e com
os critérios de prevalência de direitos que delas decorrem.
Embora com resultados opostos, também Castro Mendes defendia uma
solução de tipo unitário, partindo da nulidade do negócio simulado e ex-
traindo daí as consequências inerentes ao seu regime. Se a lei limita a invo-
cação dessa nulidade pelos simuladores contra terceiros de boa fé, o mesmo
regime deve aplicar‑se aos terceiros de má fé que intentam valer‑se da si-
mulação perante terceiros de boa fé. Quanto à invocação da nulidade por
terceiro de boa fé perante outro terceiro de boa fé, não existe na lei tal limi-
tação, pelo que Castro Mendes fazia então prevalecer o regime da nulidade.
Deste modo, os terceiros de boa fé, interessados em arguir a nulidade do
negócio simulado, podem, nos termos gerais dos arts. 240.º, n.º 2, e 286.º,
opor a simulação a terceiros de boa fé, interessados na invocação do negócio
simulado, com as únicas limitações que resultam das regras do registo, nos
termos do art. 291.º2/3.
A tese de Castro Mendes não se afasta da defendida por Pires de Lima
e Antunes Varela, para quem o art. 243.º rege apenas para as relações entre
simuladores e terceiros de boa fé a quem a declaração de nulidade afecta.
Assim, sendo a simulação invocada por terceiros de boa fé contra terceiros
de boa fé, deve recorrer‑se ao regime da nulidade, o que implica remissão
para o art. 291.º do C.Civ.4. Segundo parece, no seu pensamento, a apli-
cação do regime geral da nulidade envolve, como consequência primária,
a protecção do terceiro interessado na declaração de nulidade, contra os
direitos que a favor de terceiros se constituíram com base no negócio in-
validado, salvo se estes puderem beneficiar do regime excepcional do art.
291.º
A solução de tutela do terceiro que se pretende valer da simulação é
também defendida por Oliveira Ascensão, sem fazer, contudo, recurso à apli-
cação do art. 291.º5
Destas teses, as de Castro Mendes e de Pires de Lima e Antunes Varela
vêem o seu carácter unilateral ser de algum modo atenuado, porquanto não
envolvem sistemática tutela de uma das categorias de terceiros em presença.
Por outro lado, o esquema adoptado por elas leva em conta o facto de o art.
243.º do C.Civ. ser uma norma especial, relativamente às normas gerais neste
1
Cfr., neste sentido, Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, pág. 163.
2
Idem, ibidem.
3
Uma solução equivalente fora defendida por Cunha Gonçalves, que, na vigência do Código
de Seabra, sustentava ser a nulidade do negócio, oponível mesmo ao terceiro de boa fé (Tratado,
vol.V, págs. 745‑750).
4
Código Civil, vol. I, pág. 230.
5
Teoria Geral, vol. II, págs. 230‑231, em particular a última.
338 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
diploma contidas em sede de nulidade; ainda assim, não podem ser acolhidas,
e muito menos a de Oliveira Ascensão, que se afigura mais radical.
A primeira objecção, a fazer‑lhe, aliás antecipada por Castro Mendes, é a
do seu conceptualismo, por partir do regime formal da nulidade1. Para além
disso, não parece legítimo transpor as regras gerais da nulidade para preen-
cher o vazio deixado pelo Direito positivo em sede de conflitos de terceiros
na simulação. Note‑se que para alguns dos Autores se resolve pelo art. 291.º
o conflito que os seus defensores não consideram legítimo tratar pelo art.
243.º, sendo certo que estes dois preceitos se ocupam, um em sede geral,
outro em sede especial, do mesmo problema: inoponibilidade da invalidade
do negócio a terceiros. Não parece legítimo recorrer a uma norma geral
quando, no mesmo domínio, há norma especial, tanto mais que a própria
maneira de ser da simulação dá às posições de terceiros uma feição que não
têm nos mais casos de nulidade2.
II. A posição aqui defendida foi pela primeira vez esboçada em lições
policopiadas que datam de 19743. Apontou-se então para a possibilidade de
encontrar, no regime de colisão de direitos, em particular no art. 335.º do
C.Civ., o princípio orientador da solução destes conflitos de terceiros. Em
momento posterior foi desenvolvida, de algum modo, essa ideia embrio-
nária4, mas sem chegar a ser esclarecido o seu verdadeiro alcance, o que só
houve oportunidade de fazer no estudo que tem vindo a ser citado5. Da tese
aí exposta dão-se aqui as linhas mestras.
Bem vistas as coisas, o problema só surge uma vez declarada a nulidade
do negócio simulado, pelo que, em rigor, o conflito não se situa no campo
do direito à declaração da nulidade; nem faz sentido contrapor a tal direito
1
Caberia perguntar se seria necessária. Referindo‑se ao facto de C. Mota Pinto defender as
soluções propostas no Anteprojecto, apesar de elas não terem transitado para o texto aprovado
pelo legislador, comentava Castro Mendes, com alguma ironia, que aquela disposição «não seria
portanto precisa…» (Teoria Geral, vol. II, pág. 162).
2
Rui de Alarcão tinha bem consciência de estar só a regular «alguns dos mais frisantes tipos
que esses conflitos podem assumir», e daí ter esclarecido que na solução de outros «não deixará
de ter interesse a regulamentação das espécies legalmente previstas» [est. e rev. cits., pág. 324 e
nota (57)].
3
Teoria Geral, vol. III, pág. 162
4
Teoria Geral, ed. cit., vol. II, págs. 385‑386.
5
Simulação, págs. 490 e segs., da sua versão original.
340 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
III. Desde logo, não está em causa fixar directamente a solução do conflito,
mas descobrir um sistema de regulação dos interesses conflituantes, através
de um critério geral, que tem a vantagem de ser um esquema já testado pelo
legislador em vários domínios.
Por assim ser, não é ajustado o reparo formulado por C. Mota Pinto, na 2.ª
edição da sua Teoria Geral do Direito Civil1, onde se tinha, por certo, presente a
ideia esboçada nas já referidas lições policopiadas, quando escreveu que «não
parece resultar directamente do art. 335.º do Código Civil uma solução para
o problema. É que justamente o problema consiste em saber se os direitos em
conflito são iguais ou desiguais sob o ponto de vista do merecimento de tutela
jurídica»2. A observação, em si mesma, é pertinente, mas não põe em causa o
entendimento defendido, como resulta do acima exposto.
Esclarecido, assim, o sentido da posição defendida, a sua aplicação envolve
o recurso ao sistema legal de solução de conflitos de direitos e à qualificação
Na ed. referida no texto, vd. pág. 486, nota (1); retomado nas subsequentes [na actual, nota
2
1
O facto de não estarem em causa verdadeiros direitos subjectivos não constitui obstáculo
à aplicação do art. 335.º A doutrina portuguesa vem defendendo o alargamento do âmbito do
art. 334.º a outras situações jurídicas activas, podendo sustentar‑se igual interpretação daquele
preceito.
342 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
1
Segundo Manuel de Andrade (Teoria Geral, vol. II, págs. 209‑210) e C. Mota Pinto (Teoria
Geral, págs. 484‑485), o interesse sacrificado é o de C, independentemente de o seu crédito se ter
constituído antes ou depois do negócio simulado. Para Beleza dos Santos (A Simulação, vol. I, pág.
405), os interesses dos dois credores em presença são equivalentes, prevalecendo o regime da nu-
lidade e sendo sacrificado o interesse de D. Uma solução ecléctica, defendida por Rui de Alarcão
(Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 325‑326), sacrifica umas vezes o interesse de C, outras o de D,
tendo em conta o momento da constituição dos créditos em relação ao negócio simulado.
2
Ob. e vol. cits., pág. 209. Tal ideia conduz a resultados indesejaveis pois, como está exposto
em Simulação (pág. 500), «ou os autores se sentem obrigados a descortinar qual o interesse a sacri-
ficar, entrando em distinções especiosas e inaceitáveis (Manuel de Andrade, Rui de Alarcão, C.
Mota Pinto), ou não hesitam em recorrer a uma solução puramente formal para dar prioridade
a um dos credores, ainda que reconhecendo que os interesses em jogo são equivalentes (Beleza
dos Santos). São facilmente ultrapassados estes escolhos, desde que o problema seja devidamente
equacionado segundo a teoria que perfilhamos».
3
Essas distinções não têm relevo jurídico e, se levadas às últimas consequências, exigiriam
outras ainda mais subtis. Basta pensar em como é falível a garantia patrimonial desses credores: os
bens objecto do negócio simulado, que podem nem ser coisas, podem perder‑se ou deteriorar‑se,
ser consumidos, validamente alienados ou onerados. E sempre se havia de levar em conta se o ob-
jecto do negócio simulado é o único bem penhorável do património do devedor ou, pelo menos,
um elemento determinante da sua solvabilidade. Nem se objecte que haveria apenas de corrigir
ou apurar os critérios da distinção, pois isso redundaria num tão complexo jogo de harmonização
dos elementos atendíveis, que constituiria constante foco de incerteza e de conflitos – summum
ius, summa iniuria.
A SIMULAÇÃO 343
1
Cfr., também, n.º 5 do art. 865.º do C.P.Civ. Sobre esta matéria, vd., Paula Costa e Silva, A
Reforma da Acção Executiva, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2003, págs. 93‑94.
2
Na vigência do Código de Seabra, a doutrina dominante fundava‑se, na resolução do pro-
blema, nos critérios legalmente estatuídos para alienações sucessivas da mesma coisa (Beleza dos
Santos, A Simulação, vol. I, págs. 412‑414; Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. II, págs. 211‑212;
e Rui de Alarcão, Simulação, in BMJ, n.º 84, págs. 327‑328).
3
Teoria Geral, pág. 485.
344 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
§ 3.º
Figuras afins da simulação
1
Esta formulação é nítida em Beleza dos Santos (A Simulação, vol. I, págs. 410‑12), mas
mostra‑se também adequada aos termos em que Manuel de Andrade expunha o problema (Teoria
Geral, vol. II, pág. 211). É ainda perfilhada por Rui de Alarcão, que transcreve o texto de Ma-
nuel de Andrade e cita, aprovando‑a, a tese de Beleza dos Santos (Simulação, in BMJ, n.º 84, págs.
327‑328). C. Mota Pinto referia‑se ao problema de modo sucinto, mas em termos que levam a
incluí‑lo nesta orientação (Teoria Geral, pág. 485).
2
Sobre a aplicação específica deste regime a várias modalidades de direitos, vd. o cit. est.,
Simulação, págs. 158 a 161 da versão actualizada.
3
Além dos institutos que passam a ser analisados, outros mantêm afinidades com a simulação,
embora dela se devam autonomizar: a falsidade e a fraude à lei. Para noções fundamentais sobre
as relações entre a simulação e institutos afins, cfr. I. Galvão Telles, Manual, págs. 186 e segs.; Cas-
tro Mendes, Teoria Geral, vol. II, págs. 165 e segs.; e Oliveira Ascensão, Teoria Geral, vol. II, págs.
221‑223.
A SIMULAÇÃO 345
1
Diferente desta hipótese é a de erro sobre o conteúdo (ou objecto jurídico) do negócio, por
uma das partes o celebrar na convicção de ele produzir certos efeitos que na verdade não tem.
Pode este erro conduzir a uma errada qualificação, mas existem então dois problemas distintos,
cada um a resolver em sede própria.
346 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
produz os efeitos que lhe são próprios. Como se expressa o velho brocardo,
da mihi factum, dabo tibi ius.
Todavia, a errada qualificação não deixa de ser um dos elementos a atender
na interpretação do negócio jurídico celebrado pelas partes.
II. São múltiplos os fins que, por via do pactum fiduciae, o autor do negó-
cio pode pretender realizar; todavia, desde o Direito romano, reconduzem‑se
correntemente a duas as modalidades de negócio fiduciário que os autores
identificam: a fiducia cum creditore contracta e a fiducia cum amico contracta.
Esta distinção aponta, no primeiro caso, para um fim de garantia. Veri-
fica‑se quando A, devedor de B, aliena a este um bem, ficando o credor
vinculado a restituir‑lho (realienando‑o) se a A solver a sua dívida; caso
contrário, B fará definitivamente sua a coisa alienada.
Na fiducia cum amico, a conformação típica do negócio fiduciário é a de
assegurar um fim de administração ou de alienação do bem que dele é ob-
jecto. Em exemplo de escola, A aliena a B um prédio para este o administrar ou
para, por seu turno, o alienar, assumindo, para esse efeito, as correspondentes
obrigações. No caso de administração, o beneficiário da mesma pode ser A
ou outra pessoa para tanto designada, sem prejuízo, entenda‑se, da remune-
ração que a B seja devida pelo encargo da administração.
IV. Como negócio fiduciário, na fiducia cum amico, a figura mais corren-
temente citada pela doutrina é a do mandato sem representação, na moda-
lidade de mandato para alienação (arts. 1180.º e seguintes do C.Civ.)5; igual
entendimento quanto a essa categoria de mandato, no seu regime civilístico
comum, vale para a sua correspondente manifestação no Direito comercial,
a comissão (arts. 266.º e seguintes do C.Com.).
Em qualquer destes casos, o mandante encarrega o mandatário de
alienar certa coisa sua, devendo, porém, fazê‑lo em nome próprio e não
em representação do mandante. Para viabilizar essa finalidade, confiando
no mandatário, o mandante aliena‑lhe a coisa, ficando aquele obrigado
1
É esta a designação legal.
2
Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labereda, Código da Insolvência, notas aos artgos cita-
dos no texto, respectivamente, págs. 777-778, 787 e 793-794.
3
Note‑se que esta estrutura tripartida da fidúcia não é estranha ao negócio fiduciário, consi-
derando‑a mesmo P. Pais de Vasconcelos típica (Teoria Geral, pág. 641), referência com que não se
pode concordar plenamente.
4
Cfr. Fernando Olavo, Desconto Bancário, Lisboa, MCMLV, págs. 170‑172.
5
Neste sentido se pronunciava I. Galvão Telles na vigência do Código Civil de Seabra (Ma-
nual, (2.ª ed.), págs. 178‑180), posição recentemente reafirmada [Manual (4.ª ed.), págs. 194‑195];
cfr., também, Castro Mendes, Teoria Geral, Vol. II, págs. 172. Em sentido contrário se manifestou
Pessoa Jorge, com base numa construção do instituto diferente da que correntemente é sustentada
(O Mandato sem Representação, reimp., Almedina, 2001, págs. 320 e segs. e 329 e segs.).
350 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
1
Segundo Menezes Cordeiro, representa este instituto a situação clássica do reconhecimento
da fiducia com eficácia real, no sistema jurídico português (Tratado, vol. II, T. II, pag.271).
2
Cfr., A Simulação, vol. II, págs. 122‑124.
A SIMULAÇÃO 351
1
Tratado, vol.V, pág. 716. Cunha Gonçalves não considerava fiduciário nem válido o chamado
desdobramento de acções, para fim de votação, em assembleia, depositadas em nome de um testa de
ferro (idem, ibidem, pág. 717, e Comentário ao Código Comercial Português, vol. I, Empresa Editora J.B.,
Lisboa, 1914, págs. 462‑464), ao contrário de Beleza dos Santos, A Simulação, vol. I, pág. 265.
2
Manuel de Andrade leva a natureza obrigacional do pacto fiduciário às suas últimas con-
sequências, afirmando não poder ele ser oposto mesmo a terceiro de má fé [Teoria Geral, vol. II,
nota (2) da pág. 177].
3
Negócio Jurídico Indirecto, sep. BFDUC, Supl. X, Coimbra, 1952, págs. 110‑111.
4
Cfr. O Mandato sem Representação, págs. 324‑329; a posição de Pessoa Jorge sobre a causa
fiduciae foi contraditada por I. Galvão Telles, in Manual (2.ª ed.), nota (3) da pág. 177.
5
P. Pais de Vasconcelos inclui Pessoa Jorge entre os defensores da admissibilidade dos negócios
fiduciários no sistema jurídico português (Contratos Atípicos, pág. 284), com o que não se pode
concordar; por razões adiante reveladas, Pessoa Jorge sustenta opinião contrária, como também
refere Castro Mendes (Teoria Geral, vol. II, pág. 171).
6
Manual, (2.ª ed.), nota (3) da pág. 178.
352 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
Manual, (2.ª ed.), págs. 178 e segs.; a citação é de pág. 178; na 4.ª ed., págs. 194‑195.
1
Cessão de Créditos e de Outros Direitos, BMJ, Número Especial (1955), págs. 170‑172; a citação
2
é da pág. 172.
3
Idem, ibidem, págs. 172‑173.
4
Idem, ibidem, págs. 186 e segs., em particular, págs. 189 e 191.
5
Penhor, in BMJ, n.º 58 (1956), pág. 137.
6
Teoria Geral, vol. II, págs. 171‑172.
7
Adicionalmente, Castro Mendes invocava a admissão, no Direito português, do mandato sem
representação que na sua modalidade de mandato para alienar envolve um negócio fiduciário.
8
Teoria Geral do Direito Civil, pol., vol. III, notas de lições ao 1.º ano, Lisboa, 1972‑1973, págs.
209‑211.
A SIMULAÇÃO 353
1
Teoria Geral, vol. III, págs. 308‑309 (cfr., também, vol. II, págs. 308 e 326).
2
Tratado,vol. II, T. II, págs. 270-271.
3
Assunção Fidejussória de Dívida. Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina,
2000, pág. 99.
4
Em Tema de Negócio Fiduciário, pol., FDL, Lisboa, 1985.
5
Contratos Atípicos, em especial, págs. 277 e segs.
6
Págs. 650-652.
7
Contratos Atípicos, págs. 278 e segs.
354 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
Vd., por todos, Oliveira Ascensão, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968, págs. 168 e
1
segs., e Direito Civil. Reais, 5.ª ed., rev. e ampl., Coimbra Editora, 1993, págs. 286‑287.
2
Cfr. Lições de Direitos Reais, pág. 237-238.
3
Não se pode acolher a construção de P. Pais de Vasconcelos quando vê no regime da
usura (arts. 282.º e segs. do C.Civ.) uma forma de realizar a ratio legis que preside à proibição
do pacto comissório: evitar que o credor obtenha do devedor bens superiores ao seu crédito,
enriquecendo‑se à custa deste (Teoria Geral, pág. 486). Sem pôr em causa a afinidade das razões
que presidem à proibição do pacto comissório e à sanção da usura, certo é que esta depende de
requisitos subjectivos – além da lesão – que podem não se verificar num negócio de transmissão
com função de garantia.
A SIMULAÇÃO 355
VIII. Nesta medida, na anterior edição deste livro, foi alterado a posição
antes defendida; passou, pois, a ser sustentada uma solução próxima da de I.
Galvão Telles, sob a inspiração das observações de Vaz Serra, e que encontra
1
Na parte em que se refere a «aceitação do pacto comissório, em desvio da regra consagrada
no artigo 694.º do Código Civil».
2
A razão da afirmação feita no texto reside no n.º 2 do referido art. 11.º É certo que no n.º 1
desta norma se prevê a possibilidade de o beneficiário da garantia proceder à sua execução, fazen-
do seu o objecto do penhor, desde que as partes assim o hajam consignado ou se houver acordo
delas relativamente ao valor desse objecto. Todavia, o n.º 2 do art. 11.º impõe ao beneficiário da
garantia a obrigação de restituir, a quem a presta, a diferença entre o valor do objecto do penhor
e o montante das obrigações financeiras garantidas. Ora, este regime não corresponde ao pacto
comissório, em que o credor faz seu o bem dado em garantia, sem mais, mas ao chamado pacto
marciano, do qual, como no n.º 2 do art. 11.º, justamente consta a referida obrigação de restituir
a diferença do valor, quando o credor, no caso de incumprimento, adquire a titularidade do bem
dado em garantia.
3
Além de relativa ao penhor e à hipoteca, a mesma proibição vale para a consignação de
rendimentos (por remissão do art. 665.º do C.Civ.).
4
Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., reimp., Almedina, 2001, pág.
555.
356 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
Ob. cit., pág. 99. Próxima da posição de Januário Costa Gomes é a de Isabel Andrade de
1
acto, atípico e causal. Para além de não haver, pois, dois negócios, como na
simulação relativa, a invalidade que nele pode ocorrer, por inerência àquela
configuração, prende‑se com a ilicitude do fim visado1 e não com o facto de
o negócio não ter sido querido.
Por outro lado, o pactum fiduciae desempenha uma função bem diferente
do pactum simulationis. Aquele é um elemento do conteúdo de um negócio
unitário que, aposto ao chamado negócio fundamento, é, afinal, a fonte da atipi-
cidade do negócio fiduciário. Bem diversamente, o pactum simulationis é um
acordo que tem apenas de comum, com os negócios envolvidos na simula-
ção, as pessoas que nestes são partes (ou uma delas, na simulação de negócios
unilaterais). Mas não é elemento do conteúdo de qualquer deles, antes um
negócio autónomo, instrumental, que, explicitando a não correspondência
do simulado com a verdadeira vontade das partes, faz a ligação entre ele e o
simulado.
Mas pode ainda afirmar‑se outra diferença. Na fiducia, por via do pacto
fiduciário, adequa‑se a causa do negócio fundamento a uma função económi-
co‑social diferente – a causa fiduciária – para assegurar um fim mediato em
razão do qual o negócio é celebrado e que, qua tale, é querido. Na simulação
relativa, qualquer dos negócios mantém incólume a sua causa, podendo nem
sequer verificar‑se desvio no fim mediato. Quem finge vender certa coisa
por € 1000 e a quer doar, tem em vista assegurar ao comprador um certo
resultado, quanto à titularidade da coisa alienada, que é juridicamente alcan-
çável por qualquer desses negócios.
Em suma, o fiduciante e o fiduciário querem efectivamente celebrar o
acto. Somente não o querem com todas as consequências jurídicas do negó-
cio fundamento, inerentes aos seus efeitos típicos, mas apenas para certo fim
específico, que justifica a inclusão, nele, do pacto fiduciário.
Cabe, contudo, reconhecer que a delimitação entre estas duas figuras –
simulação e fidúcia – se revela na prática, com frequência, muito mais intrin-
cada, do que no plano dogmático.
A razão de ser desta dificuldade resulta, como não custa a compreender,
de na destrinça das duas figuras estar envolvida uma complexa questão de
interpretação do negócio jurídico, dirigida ao apuramento da vontade real
das partes e da eventual existência de uma vontade aparente, que daquela
divirja. Concretizando, na fiducia cum amico, por exemplo, está por vezes em
causa saber se no caso existe uma interposição fictícia ou real de pessoas.
Mas, para além da dificuldade inerente à tarefa interpretativa do negócio
jurídico, assim evidenciada, outra ocorre, com frequência, na prática nego-
cial, sobretudo nos casos em que a validade do negócio jurídico fiduciário
1
A obtenção de um resultado que a lei pretende afastar, como o que justifica a proibição do
pacto comissório, logo, envolvendo fraude à lei.
358 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA
dos motivos». Segundo P. Pais de Vasconcelos, o negócio indirecto é um negócio misto «de tipo
modificado em que a modificação relevante consiste na diferença do fim» (Teoria Geral, pág. 636).
1
Se não for sério, há dissimulação de uma doação sob uma compra e venda.
2
Esta hipótese não se confunde com a da fiducia cum creditore. Assim, enquanto naquela o
pagamento da dívida implica a resolução (automática) do contrato, no negócio fiduciário com
fim de garantia o pagamento apenas cria a obrigação de o comprador revender a coisa objecto do
contrato. Não há, no negócio indirecto, o pactum fiduciae.
Mas também não se confunde com o caso da resolução do contrato de compra e venda por
falta de pagamento do preço pelo comprador, quando convencionada (cfr. art. 886.º do C.Civ.).
Finalmente, importa relacionar com esta matéria a figura da venda a retro, prevista nos arts. 927.º e se-
guintes do C.Civ., sendo de particular interesse ter aqui em conta o regime estatuído no art. 930.º
3
Teoria Geral, vol. III, pág. 307.
4
O carácter unitário do negocio indirecto é assinalado por Menezes Cordeiro, Tratado, vol. II,
T. II, pág. 252.
360 O NEGÓCIO JURÍDICO – ESTRUTURA