Peirce

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S.

Peirce

Maria Celeste de Almeida Wanner

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WANNER, MCA. Paisagens sígnicas: uma reflexão sobre as artes visuais contemporâneas [online].
Salvador: EDUFBA, 2010. 302 p. ISBN 978-85-232-0672-7. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.

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2

UMA REFLEXÃO SOBRE A FILOSOFIA


DE C. S. PEIRCE

O real é aquilo que não é o que eventualmente dele pen-


samos, mas que permanece não afetado pelo que dele
possamos pensar.
Charles S. Pierce, Collected Papers1 (8.12)2

Charles Sanders Peirce (1839-1914), cientista, matemático, historiador, fi-


lósofo e lógico, graduou-se com louvor pela Universidade de Harvard em

1 Collected Papers são manuscritos de estudos peircianos, ao todo somam 90 mil, que se encontram
sob os cuidados do Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard. Esta universidade
publicou, em 1931-35 e 1958, os seguintes volumes: I – Princípios da Filosofia; II – Elementos de
Lógica; III – Lógica Exata; IV – A mais simples Matemática; V – Pragmatismo e Pragmaticismo; VI –
Ciência Metafísica; VII – Ciência e Filosofia; e VIII – Comentários, Correspondência e Bibliografia.
Disponível em: <http://www.hup.harvard.edu/catalog/PEICOA.html>. Acesso em: 2007.
2 Usaremos a referência CP para indicar Collected Papers de Charles Sanders Peirce, por exemplo –
CP 3.362, o primeiro número corresponde ao volume e os demais ao parágrafo.

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química, além de ter dado contribuições influentes nos campos da geodésia,


biologia, psicologia, matemática, filosofia etc. Peirce fazia parte do grupo
de intelectuais e filósofos de relevância desse período, dentre eles: William
James, Henry James, John Dewey, Gottlob Frege, Bertrand Russell etc.
Santaella ressalta em vários dos seus livros a grandiosa obra de
Peirce. Primeiramente, em O que é semiótica, essa autora o considera
um “Leonardo das ciências modernas” (SANTAELLA, 1983, p. 19); em
Matrizes da linguagem e do pensamento, sonora, visual, verbal, observa
que “Peirce deixou nada menos do que 12 mil páginas publicadas e 90 mil
páginas de manuscritos inéditos. Os manuscritos foram depositados na
Universidade de Harvard [...]”. (SANTAELLA, 2001, p. 6) Apenas vinte
anos mais tarde, na década de 1930, surgiria a primeira publicação de textos
coligidos nos seis volumes dos Collected Papers, editados por Hartshorne
e Weiss. Infelizmente, grande parte dos textos aí reunidos restringiu-se a
escritos que Peirce já publicara em vida. Santaella (2000a, p. 111) reafirma
que: “A obra de Peirce é oceânica, de uma imensidão tamanha que seus
limites se perdem de vista [...]”. Do mesmo modo, Ivo Ibri (1992, p. xiii),
compara a obra de Peirce “[...] em volume à de Leibniz [...]”.
Desse modo, a análise que ora apresentamos visa introduzir sucinta-
mente alguns dos principais conceitos da filosofia peirciana, os quais devem
ser entendidos como um apêndice complementar ao assunto desenvolvido
neste livro. E como Peirce não teve a oportunidade de documentar sua
valiosa obra, as informações a que tivemos acesso devem-se, portanto,
ao grupo de schollars que vêm se dedicando à organização, pesquisa
e tradução dos manuscritos deixados por esse grande pensador, mais
especificamente por Lucia Santaella, Ivo Ibri e Winfried Nöth.
A partir da diversidade existente, podemos, portanto, dizer que Peirce
construiu um trabalho labiríntico, no qual o pesquisador tem que se deixar
levar pelos meandros do material para decifrar onde começa e termina
cada parte. Por conseguinte, qualquer afirmação ou interpretação que
fuja à devida concepção dos seus conceitos pode se tornar um enorme
equívoco. Desse modo, vamos buscar oferecer apenas concisas e precisas

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informações, sem perder de vista o nosso foco principal, com o cuidado


e o devido respeito que sua obra requer.
Em Estética: de Platão a Peirce, Santaella (2000a, p. 113) apresenta
o quadro desenhado por Peirce que, “de acordo com sua concepção
pragmatista das ciências, o significado de cada ciência só aparece na rede
de inter-relações que ela entretém com as demais”.

FILOSOFIA
1. Fenomenologia
2. Ciências Normativas
2.1. Estética
2.2. Ética
2.3. Lógica ou Semiótica
2.3.1. Gramática Pura
2.3.2. Lógica Crítica
2.3.3. Metodêutica
3. Metafísica.

A partir desse diagrama, podemos verificar que a primeira ciência que


aparece na sua filosofia é a fenomenologia, seguida das ciências normativas.
Assim sendo, a estética, a ética e a lógica ou semiótica são concebidas
como ciências no campo da filosofia. De acordo com Santaella (2000a,
p. 113-114):

Para Peirce, a filosofia em geral tem por tarefa descobrir o que é


verdadeiro, limitando-se, porém, à verdade que pode ser inferida da
experiência comum que está aberta a todo ser humano a qualquer
tempo e hora. A primeira e talvez mais difícil tarefa que a filosofia
tem de enfrentar é a de dar à luz às categorias mais universais da
experiência. Essa tarefa é da alçada da fenomenologia, uma quase
ciência que tem por função fornecer o fundamento observacional
para o restante das disciplinas filosóficas. As ciências normativas
são assim chamadas porque estão voltadas para a compreensão

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dos fins, das normas e ideais que regem o sentimento, a conduta e


o pensamento humanos. Elas não estudam os fenômenos tal como
aparecem, quer dizer, na sua aparência, pois essa é a função da
fenomenologia, mas os estudam na medida em que podemos agir
sobre eles e eles sobre nós. Elas estão voltadas, assim, para o modo
geral para o qual o ser humano, se for agir deliberadamente e sob
autocontrole, deve responder aos apelos da experiência. Usando os
princípios da lógica, a metafísica investiga o que é real, na medida
em que esse real pode ser averiguado na experiência comum. É dela
a tarefa de fazer a mediação entre a fenomenologia e as ciências
normativas, desenvolvendo uma teoria da realidade.

Fenomenologia

Como podemos observar, na citação acima, a fenomenologia está em pri-


meiro lugar, dada a importância que essa ciência desempenha. A estética,
Peirce associa às ciências normativas, que “descobrem leis que relacionam
os fins aos sentimentos [...] à ação, no caso da ética, e ao pensamento, na
lógica”. (SANTAELLA, 2000a, p. 141-142) Já o papel da fenomenologia é
proporcionar o fundamento de observação à lógica e à metafísica, posto
que elas estão relacionadas à experiência com o que se exterioriza, ou seja,
como o ser humano vai reagir diante do real, o que, por sua vez, se dá por
meio da mediação de signos. À percepção interessa tudo aquilo que está
no aqui e agora, nos diz Peirce, mas “só percebemos aquilo que estamos
equipados para interpretar”. (SANTAELLA, 2000a, p. 52) A definição do
termo “perceber” e todos os demais conceitos da obra de Peirce possuem
uma ordem lógica e não podem ser tratados independentemente de
outros conceitos. Perceber algo não requer apenas ver, mas estar diante
de algo que se apresenta como um todo, que deve ser apreendido através
de todos os sentidos, tanto do sensorial como do cognitivo. Assim é
que a filosofia peirciana entende a realidade fenomenologicamente, ou
seja, o real é tudo aquilo que se exterioriza, que aparece e se coloca à

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experiência, por meio de três categorias denominadas de primeiridade,


segundidade e terceiridade.
No artigo Sobre uma nova lista de categorias (1867), Peirce apresenta
suas três categorias universais, incluindo tudo que nos afeta, seja fisicamen-
te, seja emocionalmente e intelectualmente, ou o que vemos, percebemos
e apreendemos. Ao dividir todas essas propriedades em gradações, elas
obedecem a um sistema composto de três elementos formais de toda e
qualquer experiência, categorias denominadas de qualidade, relação e
representação. Mais tarde, Peirce substituiu o termo “relação” por “rea-
ção”, e o termo “representação” por “mediação”, o que veio a se tornar
cientificamente em primeiridade, segundidade e terceiridade. Santaella
(1983), descreve as categorias de Peirce com uma série de exemplos que
ilustram os conceitos desse filósofo. Vejamos então, nas considerações
que se seguem, os principais conceitos à luz dessa autora.
Primeiridade é a qualidade da consciência imediata; é uma impressão
(sentimento) in totum, invisível, não analisável, frágil. Tudo que está ime-
diatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo que está na
sua mente no instante presente. O sentimento como qualidade é, portanto,
aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência imediata, aquilo que se
oculta ao nosso pensamento. A qualidade da consciência, na sua imediati-
cidade, é tão tenra que mal podemos tocá-la sem estragá-la. A secundidade
é a arena da existência cotidiana, estamos continuamente esbarrando em
fatos que nos são externos, tropeçando em obstáculos, coisas reais, factivas,
que não cedem ao sabor de nossas fantasias. O simples fato de estarmos
vivos, existindo, significa, a todo momento, que estamos reagindo em
relação ao mundo. Existir é sentir a ação de fatos externos resistindo à
nossa vontade, é estar numa relação, tomar um lugar na infinita miríade das
determinações do universo, resistir e reagir, ocupar um tempo e espaços
particulares. Onde quer que haja um fenômeno, há uma qualidade, isto
é, sua primeiridade. Mas a qualidade é apenas uma parte do fenômeno,
visto que, para existir, a qualidade tem que estar encarnada numa matéria.
O fato de existir está nessa corporificação material. A terceiridade, a última
das categorias, é a camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos,

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através da qual representamos e interpretamos o mundo. Por exemplo:


“O azul, simples e positivo azul, é o primeiro. O céu, como lugar e tempo,
aqui e agora, onde se encarna o azul é um segundo. A síntese intelectual
e laboração cognitiva — o azul no céu, ou o azul do céu — é um terceiro”.
(SANTAELLA, 1983, p. 51)
Por sua vez, Ivo Ibri (1992, p. 5), com o intuito de reforçar o pensamento
de Peirce para inserir as três categorias que servem de apoio à fenome-
nologia, nos informa que:

As faculdades que devemos nos esforçar por reunir para este tra-
balho são três. A primeira e a principal é aquela rara faculdade, a
faculdade de ver o que está diante dos nossos olhos, tal como se
apresenta sem qualquer interpretação.[...] Esta é a faculdade do
artista que vê, por exemplo, as cores aparentes da natureza como
elas se apresentam.

A concepção epistemológica peirciana das três categorias tem um des-


taque especial na primeiridade, na contemplação, onde o ato de perceber
requer um tipo de integração com o que está sendo visto de tal forma
que, conforme Peirce:

Ao contemplar uma pintura, há um momento em que perdemos a


consciência do fato de que ela não é uma coisa. A distinção do real
e da cópia desaparece e por alguns momentos é puro sonho; não é
qualquer existência particular e ainda não é existência geral. Nesse
momento, estamos contemplando um ícone. (CP 3.362)

Considerando essas três categorias, Ibri (1992, p. 6) as resume como


“ver, atentar para e generalizar, despindo a observação de recursos es-
senciais de cunho mediativo”. A fenomenologia, muito embora apareça
como a primeira ciência no diagrama de Peirce, corresponde à categoria
da segundidade, visto que:

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No fenômeno, surge a idéia de outro, de alter, de alteridade; com


ela aparece a idéia de negação, a partir da idéia elementar de que as
coisas não são o que queremos que sejam, tampouco são estatuídas
pelas nossas concepções. [...] Esta experiência de reação envolvendo
negação é adjetivada de bruta por Peirce, pois traz de modo direto a
força de um segundo, caracterizado por ser esta coisa e não aquela.
A experiência direta com isto que não é aquilo se dá num recorte do
espaço e do tempo, traçando os contornos deste objeto, que é forçado
e reage contra a consciência como algo individual. (IBRI, 1992, p. 7)

Durante o processo de experiência que inclui as categorias, Santaella


(2000a, p. 116) explica que “a fenomenologia peirciana realiza a proeza de
integrar o geral no particular, o concreto no abstrato, dentro de uma lógica
ternária que não busca se livrar do fato bruto, de um lado, além de incluir
o acaso, do outro”. Já a categoria da terceiridade foi concebida por Peirce
para colocar a experiência fenomenológica em processo de continuidade,
ad infinitum, do continuum. É nessa categoria que, conforme nos informa
Peirce (apud IBRI, 1992, p. 14), existe a “consciência sintética, ligação
com o tempo, sentido de aprendizagem. [...] Da natureza do conceito e
do pensamento, o elemento cognitivo deve ser geral e ter o estatuto de
representação”. A partir desse raciocínio “onde quer que a Mediação seja
predominante e que encontre sua plenitude na Representação, Terceiridade,
como eu uso o termo, é apenas um sinônimo para Representação” (IBRI,
1992, p.15), sendo, portanto, todos esses conceitos (mediação, pensamento,
cognição etc.) fenomênicos.
Santaella (2000b, p. 50-51) discorre sobre a tríade perceptiva, da
seguinte maneira:

Peirce chega a uma posição dialética ou esquema triádico (como


não poderia deixar de ser), que determina três e não apenas dois
ingredientes de toda e qualquer percepção: o percepto, o percipuum
e o julgamento perceptivo. [...] Perceber é perceber algo externo
a nós. Mas não podemos dizer nada sobre aquilo que é externo, a

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não ser pela mediação de um julgamento perceptivo. Aquilo que


está fora, Peirce denomina percepto, aquilo que nos diz o que nós
percebemos é o julgamento perceptivo.

Por percepto, Santaella (2000b, p. 53) define tudo aquilo que se


apresenta, e que percebemos, e isso nos chega apreendido num ato de
percepção, é algo que está fora de nós e de nosso controle; o percepto
tem realidade própria no mundo que está fora de nossa consciência, e
que é apreendido pela consciência no ato perceptivo. O percipuum
(objeto imediato da percepção) faz o percepto (objeto dinâmico da
percepção) se conformar a uma determinada configuração. Por último,
o juízo perceptivo é o julgamento de percepção ou juízo perceptivo que
vai nos dizer o que estamos interpretando; é este último “que nos diz
algo sobre o que é percebido”.

Estética

Como nos diz Santaella (2000a, p. 188-189), “[...] Peirce foi buscar no kalós
grego, algo que toda alma vagamente deseja e muito mais vagamente
percebe – um ideal admirável, tendo a única forma de excelência que uma
idéia desse tipo pode ter: a excelência estética”.
A noção de estética vem da Grécia, quando esse termo estava associa-
do à relação do homem com a natureza. Somente a partir de meados do
século XVIII, aproximadamente nos anos de 1750, a estética aparece como
ciência através de Alexander Gottlieb Baumgarten. Diante do exposto, não
deve causar nenhum estranhamento o significado atribuído por Peirce a
esse termo — admirabilidade —, ideal, como vamos verificar em Santaella
(2000a, p. 13):

Peirce não deixou nenhum tratado sobre estética. Mas, não obs-
tante tenha, quando jovem, estudado, com muito cuidado e paixão,
as cartas Sobre a Educação Estética da Humanidade de Johann

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Christoph Friedrich von Schiller (1759 – 1805), e fosse um grande


conhecedor da obra de Kant, não obstante tivesse um grande in-
teresse pelas artes. [...] Mas, sobretudo a partir de 1900, a Estética
passou a ocupar um lugar proeminente na arquitetura filosófica de
Peirce a um tal ponto que, sem a compreensão aprofundada do
papel fundamental por ela desempenhado como alicerce da ética
e, por extensão, da lógica ou semiótica, não é possível entender o
seu segundo pragmatismo.

Sendo a primeira das ciências normativas, Santaella (2000a, p. 114)


sublinha que na estética peirciana “o ideal estético é nutrido pelo cultivo de
hábitos de sentimentos. Sendo as obras de arte aquelas coisas que encarnam
qualidades de sentimento, os hábitos de sentimento só podem ser cultivados
através da exposição de nossa sensibilidade às obras de arte”.
Quando Peirce afirma ser a estética, juntamente com a ética e a lógica,
responsáveis pela busca de um ideal admirável — o que ele queria dizer
com isso? Vejamos o que Santaella (2000a, p. 127) nos descreve:

O admirável por si só pode ser uma natureza estética. Só qualidades,


reino da Estética, são admiráveis sem exigir explicações. O estado de
coisas admiráveis não pode, assim, ser determinado aporiticamente;
É uma meta ou ideal que descobrimos porque nos sentimos atraídos
por ele como tal, e nele ficamos emanados, empenhando-nos na
sua realização concreta.

Tais considerações nos levam a entender que a estética é uma ciência


voltada para o conhecimento e o crescimento; portanto, as artes devem
ser compreendidas na filosofia peirciana dessa maneira. Tanto é assim, que
“as obras de arte não são apenas ambíguas encarnações de qualidades e
sentimentos, mas formas de sabedoria, de um tipo em que convida a razão
a se integrar ludicamente ao sentir”. (SANTAELLA, 2000a, p. 150) São
elas que enchem de prazer estético tanto o artista, poetas e escritores,
como aos que as apreendem com todos os seus sentidos.

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Todavia, de acordo com Santaella (2000a, p. 182), nada pode haver de


mais vago, incerto, indeterminado e impreciso do que qualidades de sen-
timento. A obra de arte seria aquela instância semiótica muito rara, capaz
de realizar a proeza de dar corpo e forma ao incerto e indeterminado.
De acordo com esta autora, para Peirce, “nenhum ícone representa
nada além de forma, nenhuma forma pura é representada por nada a
não ser um ícone [...] pois, em precisão de discurso, ícones nada podem
representar além de formas e sentimentos, mas, ao mesmo tempo [...]”,
o ícone “[...] é, no entanto, o mais revelador, porque na sua ambigüidade é
capaz de flagrar o cerne da realidade, lá onde o ambíguo e o indeterminado
fazem sua morada”. (SANTAELLA, 2000a, p. 184-185)
Santaella (2000a, p. 180-181) nos informa que Jorge Luis Borges apre-
sentou passagens admiráveis, observando que:

A música, os estados de felicidade, a mitologia, as cores trabalhadas


pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer
algo, ou disseram algo que não deveríamos ter perdido, ou então
para dizer algo, esta iminência de revelação, que não se produz, é,
talvez, o fato estético. Foi isso o que sempre ensinei, limitando-me
ao fato estético, que não pode ser coisa de definição. O fato estético
é algo tão evidente, imediato e indefinível quanto o amor, o gosto
da fruta, a água.

O prazer estético à luz desses estudiosos tem um significado especial;


é um sentimento que possui um continuum e visa atingir um ideal: gerar
hábitos, comunhão de pensamento, aprendizado e conhecimento, algo
que não pode ser aplicado indeterminadamente a qualquer tipo de arte.
Santaella (2000a, p. 34) mais uma vez nos diz que em um “lindo ensaio
sobre ‘Beleza e Imitação’, Jacques Maritain compôs o belo de Santo Tomás
numa orquestração poética que merece ser ouvida”[...], pois:

O belo é que dá alegria, não qualquer alegria, mas alegria no conhe-


cimento; não na alegria peculiar do ato de conhecimento, mas uma

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alegria super abundante, extrapolada. Se algo exalta e delicia a alma


pelo simples fato de ser achado na intuição da alma, é bom de ser
apreendido, é belo. A beleza é essencialmente o objeto de inteligência,
pois o que conhece, no pleno sentido da palavra, é a mente. Apenas
ela aberta para a infinitude do ser. [...] O belo se relaciona à visão
e audição entre todos os sentidos porque esses dois são máxima
cognoscitiva. [...] O belo conatural ao homem é aquele que vem
dedicar à alma através dos sentidos e suas intuições. Esse também é o
belo particular de nossa arte que trabalha sobre uma matéria sensível
para o paraíso terrestre, porque restaura, por um breve momento,
a paz simultânea e a delícia da mente e dos sentidos.

Ética

A ética determina a lógica através da análise dos fins aos quais esses meios
se dirigem; a estética determina a ética ao definir qual é a natureza de um
fim que seja em si mesmo admirável e desejável em quaisquer circuns-
tâncias, independentemente de qualquer outra espécie de consideração.
Em Peirce (2005), a ética e a lógica são subsidiárias da estética, visto que
a ética recebe seus princípios básicos da estética. Assim, a ação deve ser
baseada em atos admiráveis (e, portanto, controlados por esse princípio),
remetendo mais uma vez ao summum bonum.
Nas palavras de Peirce (CP 2.199), é possível ter uma noção mais
adequada dessa associação entre a ética, a estética e a lógica. Vejamos:

[...] para apresentar a questão da estética em sua pureza, devemos


eliminar dela não apenas todas as considerações acerca de esforço,
mas todas as considerações sobre ação e reação, incluindo toda
consideração acerca da nossa recepção do prazer, tudo, em sín-
tese, que pertença à oposição entre ego e não-ego. Não temos
em nossa língua uma palavra com a generalidade requisitada.
O grego kalós, o francês beau apenas se aproximam, sem atingi-la

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exatamente na cabeça. “Fine” seria uma pobre substituta. Belo é


mau, porque um modo de ser kalós depende essencialmente da
qualidade ser não-bela. Talvez, contudo, a frase “o belo do não
belo” não fosse ofensiva. Mas “beleza” é muito superficial ainda.
Usando-se kalós, a questão da estética é: Qual é aquela qualidade
que, na sua presença imediata, é kalós? Desta questão, a ética deve
depender, assim como a lógica deve depender da ética. A estética,
portanto, embora eu a tenha negligenciado terrivelmente, aparece
possivelmente como a primeira propedêutica indispensável para a
lógica, e a lógica da estética constitui uma parte distinta da ciência
lógica que não deve ser omitida.

Lógica ou Semiótica

A semiótica concebida por Peirce, que tem sua origem durante o período
correspondente ao final do século XIX e início do século XX, é conside-
rada uma ciência dentro de uma obra filosófica arquitetônica, conforme
ilustrado através do quadro elaborado por esse filósofo, já apresentado.
Santaella (1983, p. 7) assinala que o termo “semiótica vem da raiz grega
semeion, que quer dizer signo”. Devido à sua constituição — e sendo por
definição a ciência que estuda todos os tipos de signo —, a semiótica pode
ser aplicada amplamente em estudos de várias áreas. Conforme a referida
autora, “semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as
linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de
constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e
de sentido”. (SANTAELLA, 1983, p. 13)
Vamos encontrar outras definições em Nöth (1995a, p. 19), que assegura
que “a semiótica é a ciência dos signos e dos processos significativos (semio-
se) na natureza e na cultura”, o que vem reforçar o nosso entendimento de
que dentro dessa ampla possibilidade de abrangência, encontram-se as artes
visuais, que, por serem uma linguagem não-verbal e também signo, podem
ser analisadas através dessa ciência e dos seus meios de representação.

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Contudo, esse termo é mais recente do que suas primeiras aplicações, as


quais estavam implicadas nos conceitos da filosofia da Grécia antiga. Ainda
de acordo com Nöth (1995a, p. 19-20), “o médico grego Galeno de Pérgamo
(139-199), por exemplo, referiu-se à diagnóstica como sendo a parte semiótica
(semeiotikón méros) da medicina” [, e, assim como John Locke,] “postulou
uma ‘doutrina dos signos’ com o nome de Semeiotiké”, [e, no século XVII,
em 1764, Johann H. Lambert escreveu] “um tratado específico intitulado
Semiotik”. No século XX, logo após os meados da década de 1960, o estudo
desta ciência foi retomado por Thomas Sebeok. Portanto, de Saussure a
Peirce, o signo é entendido por meio de diferentes definições.
Segundo Santaella e Nöth (1997, p. 24), “tanto Saussure quanto
Hejelmslev fundaram a tradição do signo concebido a partir de um
paradigma lingüístico” e suas concepções se caracterizavam como uma
semiótica diádica, do mesmo modo como se caracterizam os semioticistas
da Escola de Moscou e Tartu. Somente mais tarde, na década de 1970, em
decorrência da tradução para o inglês das obras da escola de Moscou, Tartu
e do Círculo de Bakhtin, foi que os estudos da semiótica “direcionaram-se
para a cultura em geral”. (SANTAELLA e NÖTH, 1997, p. 79)
Não obstante a obra de Charles Peirce ter sido criada anteriormente
a esses semioticistas já mencionados, só na década de 1970 é que a se-
miótica peirciana foi divulgada graças a Roman Jakobson, que mostrou a
importância “da rica herança e do amplo domínio de pesquisa semiótica
deixada por Charles Sanders Peirce [...] para o estudo dos mais diversos
processos de signos”. (SANTAELLA e NÖTH, 1997, p. 79) Continuando
suas observações e concluindo com as informações sobre a parte histórica,
esses autores ainda esclarecem que:

Assim como a comunicação, também os signos, isto é, a produção


de trocas simbólicas sempre existiu e são fatores de constituição da
própria condição humana. Por isso mesmo, a semiótica, mesmo que
nem sempre com esse nome, enquanto reflexão sobre a linguagem
e seus sentidos, teve suas origens já no mundo grego e atravessou,
com características próprias de sua época, toda a história humana
desde então. (SANTAELLA e NÖTH, 1997, p. 24)

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Ressaltamos que a tríade semiótica envolve dois tipos de relações:


determinação e representação. As relações de representação dependem
das relações de determinação, pelo fato de a representação somente poder
ocorrer através de uma determinação provocada pela mediação. Assim, a
semiótica ocupa-se do estudo do processo de significação, ou seja, pelos
meios da representação, de uma forma ampla e geral, não obstante, neste
livro, nosso eixo ser a representação nas artes visuais.

Signo

Muito embora diversos sejam os significados do signo, é preciso alguns


esclarecimentos básicos sobre sua definição. Para Peirce (2005, p. 46), um
“signo é aquilo que sob determinado aspecto ou de algum modo, representa
alguma coisa para alguém”. Desse ponto de vista, todo pensamento é signo,
incluindo a natureza, todos os seres naturais, as ideias, os sentimentos, assim
como o próprio homem. Para Santaella (2000b, p. 12):

Signo ou representamen é aquilo que, sob certo aspecto ou modo,


representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na
mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo
mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante
do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto.
Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com
referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei funda-
mento do representamen.

Na teoria dos signos,  signo ou representamen é o primeiro que está


em relação de representação para um segundo — o objeto —, para fins de
sua significação em um terceiro, seu interpretante. A noção peirciana de
signo consiste, portanto, nessa relação triádica: signo-objeto-interpretante,
uma relação também denominada de semiose que, “pode ser conside-

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 39

rada como sinônimo de inteligência, continuidade, crescimento e vida”.


(SANTAELLA e NÖTH, 2004, p. 157) Ora, se um signo tem a intenção
de representar um objeto (ou partes dele) através da mediação de um
signo entre um objeto dinâmico e um interpretante final, nas artes visuais
podemos ilustrar essas definições a partir de qualidades, próprias da
categoria da primeiridade, isto é, sensação provocada pelas cores, pelas
formas, textura etc. Nesse caso, o signo da pintura, em princípio, são
essas qualidades. Outro exemplo nos é dado, por Santaella e Nöth (2004,
p. 198), sobre o conceito de representação:

A semiótica peirciana é uma teoria complexa e multifacetada da re-


presentação. Esta apresenta variantes como apresentação, a quase-
representação até o limite da presentificação. [...] Os conceitos
de representação de mediação estão carregados de implicações
filosóficas, [...] por representar o objeto é que o signo pode cumprir
a função mediadora.

Desde o início de suas pesquisas sobre o signo, onde se debruçou


intensamente por toda a sua vida, Peirce concebeu três tricotomias, a
saber: a primeira, relacionada à natureza material do signo, ou seja, uma
relação de pura qualidade, de sensações, de singularidade, de liberdade, na
qual se encontra a arte, um signo que encerra qualidades. Nessa relação
não há um segundo, uma alteridade como efeito bruto. Porém, há de se
considerar que existe um diferente tipo de objeto, que pode ser qualquer
coisa, como sentimentos, emoções, ideias do artista etc. Então, devemos
entender que esse objeto está representado no quali-signo, ou seja, o
representamen, como quali-signo é o ponto principal da semiose artística.
Nesse aspecto, um signo pode ser um quali-signo, um sin-signo ou um legi-
signo. Na segunda, existe uma relação do signo com seu objeto, podendo
o signo ser ícone, índice ou símbolo, e por último, a terceira, que relaciona
o signo ao seu interpretante, em cuja relação o signo pode ser um rema,
um dicente ou um argumento.

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40 Paisagens Sígnicas

Face às considerações enunciadas, as divisões do signo, portanto, se


estabelecem como “as mais conhecidas das tríades formuladas por Peirce”
e descritas por Santaella (2000b, p. 92), a saber:

Ao signo em si mesmo (quali-signo, sin-signo, legi-signo), à relação


do signo com o objeto dinâmico (ícone, índice, símbolo), e à relação
do signo com seu interpretante (rema, dicente, argumento). [...]
Cada uma dessas divisões foi então re-subdividida de acordo com
as variações próprias das categorias de primeiridade, secundidade e
terceiridade. Os signos em si mesmos podem ser: 1.1 qualidades; 1.2
fatos; e 1.3 ter a natureza de leis ou hábitos. Os signos podem estar
conectados com seus objetos em virtude de: 2.1 uma similaridade; 2.2
de uma conexão de fato, não cognitiva; e 2.3 em virtude de hábitos
(de uso). Finalmente, para seus interpretantes, os signos podem
representar seus objetos como: 3.1 sendo qualidades, apresentando-
se ao interpretante como mera hipótese ou rema; 3.2 sendo fatos,
apresentando-se ao interpretante como dicentes; e 3.3 sendo leis,
apresentando-se ao interpretante como argumentos. Dessas nove
modalidades, Peirce extraiu as combinatórias possíveis.

Segundo Peirce, um ícone “é estritamente uma possibilidade envolvendo


uma possibilidade, e assim, a possibilidade de ele ser representado como
uma possibilidade é a possibilidade da possibilidade envolvida” (CP 2.31),
e por ser “um signo cuja qualidade significante provém meramente da sua
qualidade” (CP 2.92), ele inscreve-se na primeiridade. Em artes visuais, os
exemplos mais comuns de hipoícones são pinturas e fotografias. Nöth
(1995a, p. 80), explica que um ícone puro é um signo que serve “como signo
pelo fato de ter uma qualidade que o faz significar”. Em vista disso, o ícone
puro pode apenas constituir “um fragmento de um signo mais completo”.
Por não alcançar a segunda categoria, o ícone não tem existência em relação
ao seu objeto. O seu objeto é tudo aquilo que a ele é semelhante.
Embora a complexidade da obra de Peirce seja notória para seus pes-
quisadores, como já informamos anteriormente, Santaella (2000b, p. 5)
sugere que devemos:

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 41

Aprender a olhar os signos de frente, tanto na finíssima película de


sua superfície, quanto na visão em raio X, despidos dos subterfúgios
ardilosos que o racionalismo exclusivista não cessa de procriar,
poderemos imediatamente enxergar com nossos olhos renovados
as eternas questões do real, da referência, do sujeito, do papel da
representação e da interpretação. A obra de Peirce tem muito
a nos ajudar.

Isto porque vivemos num mundo povoado cada vez mais por signos, a tal
ponto que, ainda segundo essa autora, se Peirce tivesse vivido neste século,
teria se surpreendido com os avanços semióticos, provocados pela própria
característica de nossa era, do milênio digital das máquinas inteligentes.

Objeto

Santaella (2000b, p. 34-35) evidencia “a imensa complexidade da noção


do objeto, ou melhor, a enorme gama de variações que essa noção pode
recobrir”, complementando:

Para abrirmos caminho no labirinto dessas variações, creio que


cumpre reter, para começar, que o objeto é algo diverso do signo
e que este “algo diverso” determina o signo, ou melhor: o signo
representa o objeto, porque, de algum modo, é o próprio objeto que
determina essa representação; porém aquilo que está representado
no signo não corresponde ao todo do objeto, mas apenas a uma
parte ou aspecto dele. Sempre sobram outras partes ou aspectos
que o signo não pode preencher completamente.

Desse modo, podemos dizer que “o objeto é tudo que pode ser
expresso por um signo, todavia, é em virtude da diversidade irredutível
entre signo e objeto que Peirce introduz a noção de experiência colateral
com aquilo que o signo denota, ou representa, ou se aplica, isto é, seu

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42 Paisagens Sígnicas

objeto”. (SANTAELLA, 2000b, p. 35) Mas o que podemos entender por


experiência colateral?

Experiência colateral é algo que está fora do signo, portanto fora do


interpretante que o próprio signo determina. Na medida em que o
interpretante é uma criatura gerada pelo próprio signo, essa criatura
recebe do signo apenas o aspecto que ele carrega na sua correspon-
dência com o objeto e não com todos os outros aspectos do objeto
que o signo não pode recobrir. (SANTAELLA, 2000b, p. 36)

A experiência colateral, de acordo com Peirce (CP 8.181), significa


que, para conhecer o objeto, é preciso uma experiência prévia desse
objeto individual, pois “enquanto o signo denota o Objeto não precisa
de especial inteligência ou Razão da parte de seu Intérprete. [...] para
conhecer o Objeto, o que é preciso é a experiência prévia desse Objeto
Individual”. Com a divisão do objeto, em imediato e dinâmico, podemos
dizer, segundo Santaella (2002, p. 34), que o objeto imediato denota um
objeto dinâmico e, portanto,

[...] o melhor caminho para começar a análise da relação objetal é o


do objeto imediato. Afinal, parece não haver outro modo de come-
çar, visto que o objeto dinâmico só se faz presente, mediatamente,
via objeto imediato, este interno ao signo.

A divisão dos objetos do signo em dinâmico e imediato mostra que,


com o objeto dinâmico, Peirce (5.212) identificou aquilo que está fora
da cadeia sígnica, aquilo que algumas vezes ele chamou de “real” ou
“realidade”, mas que pode ser também fictício. E diante da pergunta “em
que medida esse objeto — que está fora — participa do processo sígnico?”,
Santaella (2000b, p. 46) lembra que, “de acordo com Peirce, o fato de o
objeto dinâmico ser mediado pelo objeto imediato não o leva a perder o
poder de exercer uma influência sobre o signo, uma vez que o signo só
funciona como tal porque é determinado pelo objeto dinâmico”.

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 43

Ícone, Índice e Símbolo

O ícone é um signo cujas condições de significação prescindem da existên-


cia de seu objeto, isto é, o ícone pode significar quer seu objeto seja uma
existência ou realidade. O ícone prescinde do objeto para significar. Toda
hipótese é icônica. O índice é o signo que significa tão somente através
de seu vínculo existencial com o seu objeto. Desta forma, é a existência do
objeto que determina a possibilidade interpretante do índice. O índice não
prescinde do objeto para significar. O símbolo representa através de uma
lei geral (regras), convencional ou semiconvencional. O símbolo refere-se
ao que possa concretizar a ideia ligada à palavra. Quanto à sua divisão
vejamos, nos dois trechos a seguir, a definição de Peirce:

Os signos são divisíveis conforme três tricotomias; a primeira, con-


forme o signo em si mesmo for uma mera qualidade, um existente
concreto ou uma lei geral; a segunda, conforme a relação do signo
para com seu objeto consistir no fato de o signo ter algum caráter
em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse objeto
ou em relação com um interpretante; a terceira, conforme seu inter-
pretante, representá-lo como um signo de possibilidade ou como um
signo de fato ou como um signo de razão. (PEIRCE, 2005, p. 51)

Uma progressão regular de um, dois, três pode ser observada nas
três ordens de signos, Ícone, Índice e Símbolo. O Ícone não tem
conexão dinâmica alguma com o objeto que representa; simples-
mente acontece que suas qualidades se assemelham às do objeto e
excitam sensações análogas na mente para a qual é uma semelhança.
Mas, na verdade, não mantém conexão com elas. O Índice está
fisicamente conectado com seu objeto; formam, ambos, um par
orgânico, porém a mente interpretante nada tem a ver com essa
conexão, exceto o fato de registrá-la, depois de ser estabelecida.
O Símbolo está conectado ao seu objeto por força da idéia da
mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não existiria.
(PEIRCE, 2005, p. 73)

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44 Paisagens Sígnicas

Metafísica

Na filosofia de Charles S. Peirce, a metafísica procura explicar como o mundo


deve ser e como ele se apresenta compatível com as determinações da feno-
menologia, sendo, portanto, a metafísica a ciência que estuda a natureza, suas
leis, comportamento, regularidades, repetições, hábitos etc. De acordo com
Ibri (1992, p. 123), as três categorias da metafísica correspondem também ao
acaso (primeiridade), à existência (segundidade) e à lei (terceiridade):

A Metafísica iluminará a compreensão semiótica, e um dos pontos


focais de luz emana do fato de que a forma do objeto se impõe à
forma com um caráter explicitamente ontológico de morphé, cabe
registrar, também, que tal caráter se perdeu ao longo da história.

Na filosofia peirciana, o acaso manifesta-se na forma de variedade,


diversidade, mera possibilidade. Sua principal característica é a liberdade,
a espontaneidade. A primeiridade metafísica é, portanto, o acaso entendido
como princípio de liberdade presente na natureza, como uma propriedade
que se manifesta no mundo na forma de assimetria. Uma vez que a primeira
categoria ontológica diz respeito ao mero poder-ser, àquele estágio em que
ainda não se manifestou a existência, mas apenas em potencialidade para
vir-a-ser, então não podemos afirmar a existência de informação no âmbito
da primeiridade. Se o problema da representação se encontra enfatizado por
Peirce na sua teoria formal dos signos, os problemas da realidade e da verda-
de são abordados, respectivamente, no âmbito da sua fenomenologia, isto
é, na teoria das categorias, e no âmbito da teoria pragmática dos signos.

Pragmatismo e Semiose

Segundo Santaella (2004a, p. 240), a primeira proposta do pragmatismo foi


feita em 1878, particularmente nos ensaios Como tornar nossas idéias claras
e A fixação das crenças, mas, apenas em 1898, as ideias de Peirce referentes
a esse tema foram expostas, através de William James, durante palestra

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 45

proferida na Universidade da Califórnia. Tal foi a repercussão, que Peirce


retomou “sua análise anterior de crença em cujo núcleo estava inserida sua
original concepção de hábito”. A partir de então, Peirce também retoma
“a teoria dos signos, especialmente dos interpretantes”. (SANTAELLA,
2004a, p. 241) Santaella (2004a, p. 242) conclui, assim, que, para Peirce,
“uma crença não nos coloca em ação prontamente, mas sim numa condição
tal que deveremos agir de um certo modo quando a ocasião surgir”.
Santaella (2000b, p. 75) observa que, segundo Savan (1976),

O efeito semiótico pleno de um signo, se o seu propósito ou inten-


ção viesse a ser atingido, é o interpretante final daquele signo. Uma
vez que esse propósito fornece a norma que influencia a sucessão
dos interpretantes dinâmicos, ele também pode ser chamado de
interpretante normal. E uma vez que a evolução de interpretantes
dinâmicos sucessivos tende para o padrão estabelecido pelo inter-
pretante final, seja este padrão, de fato, plena e exatamente satisfeito
ou não, ele também pode ser chamado de interpretante destinado.
A ação desse padrão, na medida em que ele afeta e influencia cada
interpretante dinâmico real, é o que lhe dá vida e poder para se
transformar em um hábito e numa crença.

Assim posto, por pragmatismo, entende-se a ação do homem frente


a uma experiência fenomenológica, ou seja, a ação perante o alter, um
segundo, o objeto, o real, e a maneira como ele reage, que necessita tanto
a análise dos signos como dos interpretantes. Através desses estudos,
Peirce, então, poderia investigar a conduta, e a partir de sua regularida-
de, a aquisição de hábito. Diferentemente de outras mentes, algumas já
cristalizadas, a mente humana é aquela que está mais propensa a adquirir
hábitos, romper com eles através da ação, estabelecendo novas crenças
e novos hábitos. Trata-se, por conseguinte, de um processo evolutivo de
conhecimento, de devir, pois o universo não é estático. Para ilustrar essas
reflexões, escolhemos um trecho do artigo de Ivo Ibri, O paciente objeto
da semiótica, no qual esse autor poeticamente descreve o conceito do
objeto, “real” e semiótica. Assim, vejamos:

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46 Paisagens Sígnicas

Qual divindade entediada de sua onipotência, o poeta descobre


encanto em sua impotência em anoitecer a noite. A noite diz não e
o desafia a encontrar uma poesia possível escrita em uma espécie
de face oculta da alteridade. Dotado pelos deuses do poder mágico
de sempre dizer de modo oblíquo toda a verdade, o poeta depara
agora com o efetivamente verdadeiro. Não mais poderá dizer que
o universo é idéia sua, não mais poderá trair a noite: num fechar
de olhos suprimir-lhe a existência. Algo exterior desafiadoramente
permanece. Algo objeta. Algo é Objeto. É, fundamentalmente, a
este ser real que Peirce se refere em sua famosa tríade semiótica:
Signo, Objeto, Interpretante. Esta exterioridade sempre desafiadora
que denominamos Mundo, Natureza, sedutoramente convidativa
à decifração pela ciência, produção infinita de arte no dizer de
Schelling. [...] Uma imediata admirabilidade suprime à consciência
o tempo, e a insere novamente, desperta para a temporalidade da
observação intencionalmente cognitiva. Contudo, conhecer como
um transcender da mera aparência, como busca de um modo de
ser, necessita da permanência e daquela independência do objeto
que fará com que este negue representações falsas, ou seja, aquelas
que predizem um curso dos fatos distinto do observável curso dos
fatos. (IBRI, 1996, p. 115-117)

Santaella e Nöth (2004, p. 160-161), observam:

Que a semiótica é também uma teoria da comunicação, está im-


plícito, em primeiro lugar, no fato de que não há comunicação sem
signos. Em segundo lugar, está implícito no fato de que a semiose é,
antes de tudo, um processo de interpretação, pois a ação do signo
é a ação de ser interpretado em um outro signo. Por isso mesmo,
o significado de um signo é um outro signo e assim por diante,
processo através do qual a semiose está em permanente devir.

A esse processo de transitação sígnica, Peirce denomina de semiose,


ou seja, o procedimento que transforma um signo em outro infinitamente.

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 47

Na semiose, o objeto dinâmico equivale à realidade e o interpretante final


à verdade. Se fosse possível o signo se desenvolver até o ponto de chegar
à realização do limite do seu potencial, teríamos a revelação perfeita do
objeto dinâmico, quando haveria uma superposição entre o real e a verdade.
Daí o real ser sinônimo de verdade.

Charles Sanders Peirce: uma possível Filosofia da Natureza

Entra em teu barco do devaneio, desatraca no lago de pen-


samento, e deixa o sopro do firmamento encher tua vela.
Com teus olhos abertos, acorda para o que está à volta ou
dentro de ti, e abre conversa contigo mesmo; pois assim é
toda meditação.
Charles Sanders Peirce (CP 6.461)

De acordo com Ivo Ibri,3 a filosofia da natureza teve seu maior expoente
no filósofo alemão Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling, que reconstrói
uma filosofia na Alemanha de explosão do Romantismo, na passagem do
século XVIII ao século XIX. Schelling recorria à ideia de vida, de paixão, de
inspiração e de beleza, contrariando o conceito de uma visão de mundo
mecanicista; um mundo que desde o século XVI fora concebido como um
mundo mecânico. Nesse momento, Schelling vai presentear os seus amigos
poetas com a experiência maravilhosa de contemplar, atribuir vida onde
há vida, inspirado nos gregos que povoaram a natureza de deuses porque
eles a enxergaram como destino de vida, de inteligência e de aperfeiçoa-
mento. Geneticamente, para Schelling, a natureza é rica em diversidade,
em qualidade, em assimetria, diferentemente de um mundo estritamente
com leis mecânicas. Porém, em termos de qualidade, não há repetição,
visto que todos os dias o sol se põe, a cada dia o pôr do sol é diferente e
essa qualidade não se repete, a natureza é uma celebração. O sentido da
palavra natureza, no entanto, já mostra a particularidade do pensamento de

3 Anotações das aulas do professor Dr. Ivo Assad Ibri, na disciplina “Filosofia: um diálogo entre
Schelling e Peirce”, ministrada na PUC/São Paulo, no segundo semestre de 2007.

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48 Paisagens Sígnicas

Schelling, pois se trata de uma natureza concebida de modo extremamente


autêntico, instaurada na verdade, como um momento de interpenetração
entre necessidade e liberdade, entre real e ideal, e de encantamento pela
unidade de contemplação: o espaço e o tempo em que o eu se perde numa
coisa maior que é ela própria (natureza); lugar onde a razão e a memória se
desmobilizam; lugar onde o eu e o não eu desaparecem; uma experiência
de unidade aglutinante, de unidade agápica.
Ibri fala da natureza como o lugar onde a unidade agápica reside em
plenitude, concepção semelhante ao conceito de belo que, para Schelling
(2001b, p. 193), do mesmo modo, retorna sempre à natureza, pois esse
conceito é, antes de qualquer coisa, a obra de arte: “Na arte, o mistério da
criação se torna objetivo, e a arte é, justamente por isso, pura e simplesmen-
te criadora”. Por ser sensível, o belo encanta, mas não tem permanência;
é um jogo constante entre o particular e o geral; onde a verdade corres-
ponde à necessidade, ao bem, à liberdade, a qualidades que são próprias
da arte. Ainda, segundo Schelling (2001b, p. 193), “chamamos de bela
uma figura em cujo delineamento a natureza parece ter jogado com amor,
liberdade e com a mais sublime clareza de consciência, mas sempre nas
formas, nos limites, da mais rigorosa necessidade e legalidade”. Para esse
filósofo, a arte é, por conseguinte, uma síntese ou interpretação recíproca
absoluta de liberdade e necessidade. Sua filosofia nos diz que a natureza
é um sistema que nunca está em repouso. Independente de nossa obser-
vação sobre seu desenvolvimento, todos os seres naturais crescem, cada
um cria hábitos a depender de seu próprio tempo. A nós ela não aparece
como um todo, são sempre recortes, e “o único conhecimento imediato
que possuímos é do nosso próprio ser. [...] Fora de nós nunca poderemos
compreender, mas podê-lo-emos se ela se realiza em nós, porque nesse
caso somo-la, é ela que constitui a nossa própria natureza”. (SCHELLING,
2001b, p. 193) Na apreciação de Santaella (2000a, p. 72), Schelling queria
“construir uma síntese da arte e da filosofia, na medida em que, para ele,
ambas são representativas [...] e relacionadas com o corpo disponível de
representações compartilháveis”. Contudo, havia uma questão presente
na filosofia da natureza que era chegar à inteligência, partindo da natureza,

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 49

e para esse filósofo a natureza, como um sistema evolutivo, se desenvolve


a partir de suas próprias leis.
Segundo Ibri (1992, p. 57), para Peirce, “a natureza somente parece
inteligível na medida em que parece racional, ou seja, na medida em que
seus processos são considerados similares a processos de pensamento”.
Tal entendimento de Peirce é também reconhecido por Santaella (2000b,
p. 148-149), na passagem que se segue:

A natureza é um repertório de fatos muito mais vasto e muito


menos claramente ordenado do que um relatório do censo; e se a
humanidade não tivesse vindo a ela com aptidões especiais para
adivinhar corretamente, teríamos tudo para duvidar se, nos dez
ou vinte mil anos de sua existência, suas grandes mentes teriam
sido capazes de chegar à quantidade de conhecimento. [...] Todo
conhecimento humano, até os mais altos píncaros da ciência, não
é senão o desenvolvimento de nossos instintos animais inatos.
É sempre a hipótese mais simples, no sentido de mais dócil e natural,
aquela que o instinto sugere, aquela que deve ser proferida.

Consequentemente, a relação do homem com a natureza não é apenas


uma relação de escolha, ou seja, o homem não se volta à natureza por
vontade própria e nela tenta descobrir um mundo diferente do seu, mas,
pelo contrário, homem e natureza estão ligados por elos que são inerentes
à sua constituição. Ainda segundo Santaella (2004a, p. 104-106), de acordo
com Peirce:

Não pode haver nenhuma dúvida razoável de que a mente humana,


tendo se desenvolvido sob as influências das leis naturais, pensa
naturalmente por essa razão, de um modo similar aos padrões
da natureza. [...] A espécie humana desenvolveu essa faculdade
provavelmente no curso do crescimento evolutivo de sua consti-
tuição física e mental. “Certas uniformidades”, “certas idéias gerais
de ação”. Certas leis de movimento operam por todo o universo,
e a mente humana, a mente raciocinante é um produto dessas leis

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50 Paisagens Sígnicas

altamente onipresentes. [...] O homem tem o insight natural das


leis da natureza.

À luz desse entendimento, Richard Rorty assim se expressa:

Sendo parte da natureza, a mente emergiu do mesmo processo


evolutivo que perpassa a biosfera. Há, consequentemente, uma
conaturalidade entre a mente e o cosmos, o que significa que o
homem tem uma afinidade com a natureza, está em sintonia com
ela, e possui uma adaptação natural para imaginar teorias e idéias
que traduzem essa sintonia. Mente e natureza desenvolvem-se
juntas, esta última implantando, na primeira, sementes de idéias que
irão amadurecer em comum concordância. (RORTY, 1988 apud
SANTAELLA, 2004a, p. 106)

Essa teoria vai desmistificar algumas ideias presentes no pensamento


humano, sobretudo na cultura ocidental, de que o homem é um ser supe-
rior que cria e domina a natureza à sua vontade. Do mesmo modo que
Schelling (2001b) entende o belo como um conceito de vida, de beleza
natural, beleza orgânica, beleza no sentido do sistema inteligente e dotada
de telos (palavra grega que significa fim, realização, objetivo, missão), a
estética — conhecida como a filosofia do belo — é também para Peirce a
filosofia da admirabilidade, do que é admirável, o modo pelo qual alguém
age para atingir, alcançar o ideal, a natureza da experiência puramente
sensível. O sentido da palavra admirável de Peirce está contido, segundo
Santaella (2004a, p. 147), nas palavras de Schelling:

O mundo ideal move-se poderosamente para a luz, mas é ainda


refreado pelo fato de a Natureza se ter retirado como mistério.
Os próprios segredos que residem no mundo ideal não se podem
tornar verdadeiramente objetivos senão no referido mistério da
Natureza. As divindades ainda desconhecidas, que o mundo ideal
prepara, não podem surgir enquanto tais antes de poderem tomar

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Uma reflexão sobre a filosofia de C. S. Peirce 51

posse da Natureza. Depois de todas as formas finitas serem des-


troçadas e de no vasto mundo nada existir para além daquilo que
uniu os homens como intuição comum, é somente a intuição da
identidade absoluta na totalidade objetiva mais perfeita.

Em Schelling (2001b), também é possível encontrar a semente do


pragmatismo de Peirce: ação e conhecimento; exteriorizar o conhecimento
através da ação, de um agir. É essa a noção do pragmatismo que será
estudado por Peirce, que se configura por ser uma permanente construção
de interpretantes, de aprendizagem, ou seja, pensar, agir e refletir sobre a
ação. É nessa ação, denominada por Ivo Ibri (1992) de impulso semiótico,
impulso cósmico, que o significado vai se construir, pois todos os seres
naturais agem conforme a alma do mundo. Dessa forma, além do conceito
de pragmatismo, Ibri (1992) ainda esclarece que, desde Sócrates a Peirce,
somente Schelling vai falar sobre a liberdade dos fenômenos. E não foi
outro o interesse de Peirce (2005), ao criar a estética e a categoria de
primeiridade, conceito que já se encontrava na Grécia antiga, conhecido
como acaso, ou seja, a associação de obtenção de um objetivo à perfeição,
que na estética peirciana corresponde ao signo icônico, de pura liberdade.
O belo, para Peirce (2005), é um dos predicados do summum bonum, e a
arte é um dos canais, um dos caminhos para se chegar a uma experiência
de totalidade. Contudo os conceitos de beleza e de arte não devem estar
confinados ao ser humano, pois esse conceito abrange tudo aquilo que
está em torno de nós, incluindo a natureza.4
Santaella (1992, p. 107-108) oferece informações adicionais que ampliam
nosso conhecimento sobre a maneira pela qual Peirce entendia a arte e a
ciência: com uma noção própria, uma “visão sui generis”, ao estabelecer
três espécies de homens:

A primeira consiste naqueles para quem a coisa está nas qualidades


dos sentimentos. Esses homens criam a arte. A segunda consiste

4 Anotações das aulas do professor Dr. Ivo Assad Ibri, na disciplina “Filosofia: um diálogo entre
Schelling e Peirce”, ministrada na PUC/São Paulo, no segundo semestre de 2007.

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52 Paisagens Sígnicas

nesses homens práticos, que levam à frente os negócios do mundo.


Estes não respeitam outra coisa senão o poder, e o respeitam na
medida em que ele pode ser exercido. A terceira espécie consiste
nos homens para quem nada parece ser grande a não ser a razão.
Se a força lhes interessa, não é sob o aspecto do seu exercício, mas
porque ela tem uma razão e uma lei. Para o homem da primeira
espécie, a natureza é uma pintura; para os homens da segunda, ela
é uma oportunidade; para os homens da terceira, ela é um cosmos,
tão admirável que penetrar nos seus caminhos lhe parece a única
coisa que a vida valeu a pena. Esses são os homens que vemos
estarem possuídos pela paixão por aprender, do mesmo modo que
outros têm paixão por ensinar e disseminar sua influência. Se não se
entregam totalmente à paixão por aprender é porque exercitam o
autocontrole. Estes são os homens científicos, e eles são os únicos
homens que têm qualquer sucesso real na pesquisa científica.

Em muitas passagens dos manuscritos deixados por Peirce (apud


SANTAELLA, 2004a, p. 105), vamos encontrar uma maneira poeticamente
particular de ver e entender a relação entre a mente humana e a natureza,
ainda que segundo um raciocínio cientificamente lógico, quando diz, por
exemplo, que: “nossa faculdade de adivinhação corresponde aos poderes
voadores e musicais dos pássaros, isto é, ela é para nós o que estes são
para eles: o mais atirado dos nossos poderes meramente intuitivos”. Assim,
“a habilidade para fazer conjecturas é para o homem aquilo que o vôo e
o canto são para os pássaros”, [pois, na filosofia de Peirce,] o “instinto
funciona como um fio comum unindo todos os seres vivos da natureza,
desde os vegetais, passando pelos animais inferiores até o homem”.

paisagens_signicas.indb 52 16/09/2010 09:29:46

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