Daniel Leite Simoncelos - Protegido
Daniel Leite Simoncelos - Protegido
Daniel Leite Simoncelos - Protegido
ANDREW JUMPER
São Paulo
2022
CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO
ANDREW JUMPER
São Paulo
2022
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da Mackenzie
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
S594a Simoncelos, Daniel Leite.
Uma análise da estrutura literária do evangelho de Marcos como
base para a pregação expositiva de cada pericote : [recurso eletrônico]
da estrutura para o sermão / Daniel Leite Simoncelos.
1390 KB ;
Dissertação (Sacrae Theologiae Magister - Estudos Pastorais) -
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2023.
Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Dario de Araújo Cardoso. Referências
Bibliográficas: f. 136-149.
1. Evangelho De Marcos. 2. Contexto Literário. 3. Inclusio. 4.
Quiasmo. 5. Pregação Expositiva.. I. Cardoso, Dario de Araújo,
orientador(a). II. Título.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
Prof. Dr. Dario de Araújo Cardoso
_____________________________________
Prof. Dr. João Paulo Thomaz de Aquino
_____________________________________
Prof. Dr. Tarcízio José de Freitas Carvalho
Folha de Identificação da Agência de Financiamento
Programa: STM – EP
À minha esposa, Marina, e meus filhos, Davi e Sarah, por todo apoio e serem motivo
de alegria em cada momento de minha vida.
Aos meus pais, José Simoncelos e Maria Aparecida Leite Simoncelos, por terem me
dado todo suporte necessário para minha formação.
Ao Prof. Dr. Dario de Araújo Cardoso, pela instrução, orientação e apoio durante todo
o tempo, por ser uma referência no conhecimento e estudos, e por envidar todos os
esforços necessários para a conclusão deste trabalho.
Aos membros da banca examinadora Prof. Dr. João Paulo Thomaz de Aquino e Prof.
Dr. Tarcízio José de Freitas Carvalho pelas preciosas contribuições dadas para o
aperfeiçoamento dessa pesquisa.
The present work approaches the interpretation of the Gospel of Mark’s structure as a
basis for expository preaching. This work also regards the hermeneutical principles
for the genre of narratives and hermeneutic tools for interpreting the text considering
the chiasms, parallelisms and intercalations that is in the gospel and the author's
intention in structuring the text in this way. This work also addresses how we can
preach a pericope regarding its literary structure. Finally, four sermons are presented
as an example of a preaching that starts from the structure to an expository preaching.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO
A pregação expositiva tem sido um tema amplamente estudado no meio
reformado e a hermenêutica é um assunto que frequentemente vem à tona. Pregadores
levam em conta as ferramentas homiléticas para a construção do sermão, porém,
algumas ferramentas hermenêuticas como o contexto literário do livro, bem como o
gênero literário de narrativas por vezes é ignorado, levando à uma compreensão
parcial ou mesmo incorreta da perícope.
A presente pesquisa utilizará os pressupostos do método histórico-gramatical e
teológico, assim como adotará uma análise narrativa para a interpretação do texto
bíblico. Além disso, não abordaremos cada perícope do evangelho de Marcos, mas
nos ateremos apenas à estrutura do evangelho considerando o contexto literário do
livro. Desta forma, a presente pesquisa terá o título: Uma análise da estrutura literária
do evangelho de Marcos como base para a pregação expositiva de cada perícope.
O objetivo geral da pesquisa é demonstrar como uma compreensão da
estrutura literária de Marcos é essencial para a compreensão da intenção do autor em
abordar cada tema, na sequência exposta, levando a aplicações válidas em um sermão
expositivo.
Com o intuito de atingir o objetivo geral são propostos os seguintes objetivos
específicos, que servirão de fundamento para a hipótese desta pesquisa.
Primeiramente, demonstrar-se-á que o autor sempre tem uma intenção em sua
narrativa que é explicitada também através do uso de recursos estruturais tais como
quiasmos, inclusios, ações parabólicas, paralelismos, etc. Em seguida, mostrar-se-á
como a compreensão da estrutura do evangelho de Marcos afeta a interpretação de
textos particulares em algumas perícopes. Por fim, demonstrar-se-á a interpretação e o
sermão em textos particulares levando em conta a hipótese apresentada.
A questão principal a ser desenvolvida diz respeito à importância da estrutura
literária na interpretação do evangelho e seu impacto para a pregação expositiva. Para
respondê-la, as seguintes questões são propostas:
1. Quais ferramentas devem ser usadas para interpretar adequadamente o
gênero de evangelhos?
2. Como a estrutura literária de Marcos afeta a interpretação do texto e na
aplicação do mesmo?
3. Como pregar expositivamente levando em conta a estrutura literária do
texto?
11
1
GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2011.
13
mostra uma espécie de transformação neste homem após a perda de dois filhos. No
capítulo 43.8-9: Judá diz a Israel: “Envia o jovem (Benjamin) comigo, e nos
levantaremos e iremos, para que vivamos e não morramos, nem nós, nem tu, nem
nossos filhinhos. Eu serei responsável (arab – fiador, tomar como penhor, incumbir-
se em lugar de alguém, dar em garantia) por ele, da minha mão o requererás, se eu to
não trouxer e não to puser à presença serei culpado para contigo para sempre”. No
capítulo 44, depois do estratagema de José para que o filho mais novo (Benjamim)
ficasse como escravo no Egito, Judá entra em ação. A mesma cena de cerca de mais
de duas décadas antes se repete. O filho favorito agora pode se tornar escravo no
Egito. Mas diferentemente da primeira vez em que Judá é o responsável por isso,
agora, na segunda vez, ele diz: “Porque o teu servo se deu por fiador por este moço
para com meu pai, dizendo: Se eu o não tornar a trazer-te, serei culpado para com o
meu pai todos os dias. Agora, pois, fique teu servo em lugar do moço por servo de
meu senhor, e o moço que suba com seus irmãos” (Gn 44.32-33). Judá realmente
experimentou uma transformação, uma redenção. Na bênção de Jacó, antes de sua
morte, em Gênesis 49.8-12 temos: “Judá teus irmãos te louvarão; a tua mão estará
sobre a cerviz de teus inimigos; os filhos de teu pai se inclinarão (shachar - mesma
palavra de Gênesis 37.7 e 9 – os dois sonhos de José) a ti. Judá é leãozinho; da presa
subiste, filho meu. Encurva-se e deita-se como leão e como leoa, quem o despertará?
O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre seus pés, até que venha Siló
(aquele de quem é isto); e a ele obedecerão os povos. Ele amarrará seu jumentinho à
vide e o filho da sua jumenta, à videira mais excelente; lavará as suas vestes no vinho
e sua capa, em sangue de uvas. Os seus olhos serão cintilantes de vinho, e os dentes,
brancos de leite.” De Judá vem o Messias. De Traidor a Redentor e Rei. Do traidor,
Deus suscita o redentor. Se perdermos de vista a trama, os personagens e a estrutura
criada pelo autor, pensaremos que esta história se trata apenas de José, e o autor está
apontando para algo muito maior, a história da redenção.
Semelhantemente, quando lemos o Salmo 119, temos na poesia hebraica um
salmo acróstico onde a cada oito versos o autor inicia cada verso com a mesma letra
do alfabeto hebraico. Os primeiros oito versos iniciam com alef, os próximos oito
versos com bet, e assim até a última letra hebraica tav. Em cada um dos cento e
setenta e seis versos o salmista declara o seu amor pela Palavra de Deus, que é
retratada em um paralelismo sinonímico como mandamentos, lei, decretos, palavra,
preceitos. O autor não apenas quer demonstrar seu amor pela Palavra de Deus, mas de
14
2
MARTÍNEZ, José M. Hermeneutica Biblica. Terrassa (Barcelona): CLIE, 1984, p. 121.
3
HIRSCH JR. E. D. Vality in Interpretation. New Haven: Yale University Press, 1967, p. 220.
4
WERNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Paulo: Paulus, 1998, p.
88.
15
os estudos sobre a estrutura de Marcos há aqueles que defendem não haver estrutura
definida, antes afirmam ser o evangelho mais simples, e há estudos mais avançados e
atuais que demonstram uma estrutura bem elaborada e com propósito que leva à uma
compreensão do evangelho como um todo.
Em sua obra sobre a Teologia do Evangelho de Marcos5, Telford aborda as
características literárias e teológicas do evangelho que conferem à narrativa uma
coerência, progressão e unidade. Essa coerência pode ser vista no estilo de Marcos em
suas técnicas literárias e dispositivos retóricos (por exemplo, na demonstração
6
consistente de padrões lineares e concêntricos ou “sanduíche” ) e seu
desenvolvimento narrativo. Telford, defendendo a autoria de Marcos, e combatendo
Bultmann, que não admite ser Marcos o autor do evangelho, e para isso percebe que a
estrutura do evangelho é coerente e somente um único autor poderia estruturar o
evangelho em inclusios e com dispositivos retóricos tão bem elaborados.
Ainda apontando para a estrutura do evangelho, Telford afirma que a extensão de seu
envolvimento literário e teológico pode ser vista de várias maneiras. Pode-se
observar, por exemplo, em seu uso consistente de um narrador onisciente e em
terceira pessoa. Presente em todas as cenas, esse narrador não está limitado pelo
tempo e pelo espaço. Ele é capaz de conhecer e informar o leitor sobre o que seus
personagens pensam e sentem, estabelecendo-os na mente do leitor como personagens
"confiáveis" ou "não confiáveis". Evidenciando um "ponto de vista" definido e
consistente, ele orienta o leitor ao longo do texto e o influencia a aceitar sua própria
posição ideológica. Telford demonstra a unidade de Marcos ainda apontando para
dispositivos literários usados pelo autor do evangelho que seria o uso de inclusios. O
que ele chama de intercalação, o encaixe ou entrelaçamento de uma perícope com
outra em um padrão A - B - A. Em cada caso, afirma ele, o evangelista começa a
contar uma história, interrompe-a inserindo outra e depois retorna à história anterior
para completá-la. Essas intercalações não apenas funcionam de maneira literária (para
criar suspense ou tensão na narrativa), mas também convidam o leitor a tirar uma
lição teológica das passagens interligadas, tratando-as de uma maneira mutuamente
interpretativa. Telford usa como exemplo o texto da figueira que foi amaldiçoada por
Jesus. A ação de Jesus amaldiçoando a figueira (Mc 11.12-14, 20-26), por exemplo,
5
TELFORD, W. R. The Teology of the Gospel of Mark. New York: Cambridge University Press,
1999.
6
Uma inclusio.
16
deve ser vista em conexão com sua ação no templo (Mc 11.15-19), assim como a
figueira não gerava frutos e foi destruída, assim acontecerá com o Templo. Telford
defende que toda vez que Marcos estrutura o texto em “sanduíche”, ele tem um
objetivo teológico. Por fim, Telford aponta para as configurações topográficas e
geográficas de Marcos. A primeira parte do Evangelho se passa na Galiléia e
arredores, a segunda parte em Jerusalém, com a jornada de Jesus da Galiléia para
Jerusalém, formando a ponte ou peça central. Há uma oposição narrativa entre
Galiléia e Jerusalém (Galiléia é onde Jesus é acolhido, Jerusalém onde é rejeitado).
Telford então, diferentemente de vários comentaristas que afirmam ser o evangelho
mais simples, defende que o evangelho de Marcos é um mundo de histórias
artisticamente construído por um contador de histórias imensamente criativo e
poderoso. É uma narrativa integrada na qual todo o seu conteúdo está coerentemente
relacionado a si mesmo e constitui um universo independente e sistemático, com suas
próprias estruturas inerentes de tempo e espaço.
Ronald Hock, em seu artigo “Reading the Beginning of Mark from the
Perspective of Greco-Roman Education”7, faz um estudo nos versículos iniciais de
Marcos com o intuito de comparar a estrutura do evangelho da introdução do
evangelho com o currículo educacional greco-romano mais especificamente com a
narrativa que era ensinada no nível terciário nos progymnasmata 8 , onde temos a
introdução ao estudo da retórica. Desta forma, Hock introduz tratados progymnasmata
de Rufus e Perinthus e comentários de Aphtholonius fornecendo evidências
detalhadas do que os estudantes gregos aprendiam, na teoria e na prática, sobre a
definição e divisão da narrativa, bem como os elementos envolvidos na composição
de uma narrativa. Hock afirma que o tratado de Rufus acrescenta que os estudantes no
ensino grego aprendiam sobre a composição da introdução de um discurso. Além
disso, o tratado de Lucian, “Como Escrever História”, é um documento raro que nos
mostra como um indivíduo treinado em retórica teria realmente lido e avaliado uma
narrativa histórica, e provavelmente prestado atenção especial à introdução. Após
uma análise inicial da progymnasmata, Hock compara com os versículos iniciais de
Marcos demonstrando que a forma da introdução não é meramente uma narrativa,
7
HOCK, R. F. Reading the Beginning of Mark from the Perspective of Greco-Roman Education.
Perspectives in Religious Studies, [s. l.], v. 44, n. 3, p. 291–309, 2017. Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiFZK171223003645&lang=
pt-br&site=ehost-live>. Acesso em: 21 nov. 2019.
8
Em grego literalmente significa “exercícios preliminares”, e era um método grego antigo para
introduzir retórica aos jovens estudantes.
17
mas uma narrativa histórica e provavelmente uma biografia, dada a menção imediata
do nome de Jesus, seu pai e sua cidade natal (1.1,9). Além disso, a própria palavra
άρχή (princípio) em 1.1 demonstra o intuito de Marcos em escrever uma narrativa
clara e plausível. A narrativa é clara, que advém da prevalência do caso nominativo,
bem como mantém a sequência histórica e usa palavras comuns. Por fim, Hock afirma
que é possível perceber que em 1.14-15 há uma declaração preliminar que concluiu a
introdução e delineou o que seria o restante da narrativa - uma narrativa biográfica
que chamaria a atenção para os leitores, porque o que se segue seja importante,
necessário, pessoal e útil. Ele finaliza afirmando que os versos iniciais de Marcos
apontam para um autor que havia participado de aulas muito além do estágio primário
e, sem dúvida, aprendido aulas de retórica grega.
Larsen, em seu artigo sobre estudos atuais na Estrutura de Marcos9 examina
propostas recentes e atuais que avançaram no estudo de Marcos. Segundo ele, alguns
estudiosos julgam não haver estrutura alguma no evangelho. Entretanto, outros
defendem que uma rede altamente complexa de seções inter-relacionadas, seja
considerando a topografia/geografia (indo da Galiléia para a Judéia); uma separação
na estrutura por temas teológicos; sitz im leben10 dos destinatários ou mesmo alguns
fatores literários. O artigo de Larsen não define uma resposta em termos de qual a
estrutura de Marcos, pelo contrário, ele afirma que dada a multiplicidade das
propostas para a estrutura de Marcos, hoje estamos mais distantes de uma resposta do
que há algumas décadas. Ele afirma que essa multiplicidade de propostas ocorre por
conta dos princípios distintos usados na hora de interpretar o evangelho, sendo que
alguns consideram fatores externos ao texto para sugerir divisões, e outros olham para
o próprio texto para revelar sua estrutura. Em vez de se limitarem a apenas um
princípio, alguns estudiosos até optaram por uma abordagem verdadeiramente eclética
para chegar a uma estrutura do texto. Por fim ele chega à conclusão que apesar de não
haver consenso no sentido de estabelecer uma estrutura para o evangelho de Marcos,
certamente está claro que o evangelho mais antigo é não uma coleção ingênua e
fortuita de incidentes, mas o resultado de uma longa tradição de pregação e ensino.
9
LARSEN, K. W. The structure of Mark’s gospel: current proposals. Currents in Biblical Research,
[s. l.], v. 3, n. 1, p. 140–160, 2004. Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001517768&lang=pt-
br&site=ehost-live>. Acesso em: 22 nov. 2019.
10
Literalmente sitz em alemão significa “assento” e leben significa “vida”. A ideia foi criada pelo
teólogo alemão Hermann Gunkel e a ideia é de levar em conta o texto dentro de seu contexto original e
interpretado em seu gênero próprio.
18
Van Iersel em seu artigo “Concentric structures in Mark 1:14 – 3:35 (4:1)”11
afirma que o Evangelho de Marcos se originou em uma cultura semiliterária, onde os
textos eram lidos para o público a partir de manuscritos escritos em inscrição
contínua. Desta maneira, com o intuito de tornar o conteúdo mais receptível, é
possível notar que há estruturas concêntricas que consistem na repetição dos
elementos usados anteriormente, que eram facilmente reconhecíveis e têm prioridade
sobre as menos identificáveis. Assim, os receptores podiam gravar em suas mentes o
conteúdo por meio das estruturas concêntricas. Com base nesse critério, Iersel, afirma
que há indicadores tanto de macro-divisões quanto de micro-divisões. Ele cita o
exemplo do discurso da parábola em 4.2-34 como uma macro-divisão considerando-a
como uma seção individual e, assim, se torna o centro da segunda parte principal.
Com a ajuda dos critérios usuais, o texto de 1.14-4:1 é analisado e identificado como
a primeira seção do evangelho. Iersel afirma que esta seção é composta por três
segmentos, cada uma concêntrica em sua estrutura. No centro do segmento
intermediário, 2.18-22, a discussão sobre o jejum e os dois ditos a ele relacionados
são sobre a relação entre o antigo e o novo, revelam o tema de toda a seção.
David Ulansey em seu artigo “The Heavenly Veil Torn: Mark’s Cosmic
Inclusio”12 traz um estudo demonstrando uma inclusio no evangelho de Marcos, entre
1.10 e 15.38, trazendo a interpretação de que o rasgo dos céus e o rasgar o véu do
templo estavam interligados na estrutura de Marcos. Ele defende que ambas as
ocorrências acontecem em momentos cruciais da história no ministério de Jesus: o
início (batismo) e o fim (a morte). Considerando esse posicionamento significativo
nesses dois momentos da vida de Jesus e na estrutura do evangelho, Ulansey sugere
que estamos lidando aqui com uma inclusio simbólica: ou seja, o dispositivo narrativo
comum em textos bíblicos em que um detalhe é repetido no início e no final de uma
unidade narrativa. Para apoiar a unidade literária e dar-lhe uma sensação de
fechamento e integridade estrutural, ele ainda salienta que há um conjunto de
repetições que ocorrem em Marcos, tanto no batismo (1.9-11) quanto na morte de
11
IERSEL, B. M. F. van. Concentric Structures in Mark 1:14-3:35 (4:1): With Some Observations on
Method. Biblical Interpretation, [s. l.], v. 3, n. 1, p. 75–98, 1995. Disponível em:
http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001025750&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 27 nov. 2019.
12
ULANSEY, D. The heavenly veil torn: Mark’s cosmic inclusio. Journal of Biblical Literature, [s.
l.], v. 110, n. 1, p. 123–125, 1991. Disponível em:
http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0000837692&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 27 nov. 2019.
19
Jesus (15.36-39). Além do fato que, nesses dois momentos, algo se rasga, o autor
observa que nos dois momentos, uma voz é ouvida declarando que Jesus é o Filho de
Deus (no batismo é a voz do próprio Deus, enquanto na morte é a voz do centurião);
em ambos os momentos, diz-se que algo desce (no batismo é a pomba do espírito,
enquanto na morte é o véu do templo, que Marcos descreve explicitamente como se
movendo para baixo); além disso, em ambos os momentos, a figura de Elias está
simbolicamente presente (no batismo, Elias está presente na forma de João Batista,
enquanto na morte de Jesus os espectadores pensam que Jesus está chamando por
Elias);por fim, o Espírito (πνεύμα) que desce sobre Jesus em seu batismo é lembrado
em sua morte pelo uso repetido por Marcos do verbo εκπνέω (expirar), um cognato de
πνεύμα (espírito). Desta maneira, a repetição por Marcos desse conjunto de motivos,
tanto no batismo como na morte de Jesus, constitui uma inclusio simbólica que
engloba todo o Evangelho, ligando o início e o fim da carreira terrena de Jesus.
Joanna Dewey em seu artigo “Mark as Aural Narrative: Structures as Clues to
Understanding” 13 , afirma que o reconhecimento das técnicas e características da
composição oral é útil para interpretar porções da narrativa que contém agrupamentos
construídos em sequência concêntrica ou paralela. Também é útil para interpretar o
significado da narrativa como um todo. Dewey ilustrando sobre uma narrativa oral
afirma que a primeira metade da narrativa de Marcos está repleta de relatos de curas,
mas estes se tornam mais raros depois de 8.26 e cessam após 10.52. Ela afirma que há
uma mudança no tom da narrativa das curas para a perseguição. A perseguição fica
em primeiro plano à medida que a narrativa continua com a repetição das previsões da
paixão em 8.27-10:45 e a narrativa efetiva da paixão e do fracasso dos discípulos em
Marcos 15.16. Mas, segundo Dewey, as narrativas orais/auditivas são aditivas e
agregativas, o sofrimento não substitui as curas e milagres, mas é adicionado a eles. A
lógica auditiva do evangelho enfatiza tanto milagres (na primeira metade) quanto
perseguição. Segundo a narrativa, os discípulos devem orar e esperar milagres, mas
também devem esperar perseguição. Ambos fazem parte de seguir Jesus no caminho
do discipulado; não é um ou outro. Dewey ainda afirma que ao avaliar a narrativa
oral, precisamos levar em consideração o processo sequencial de identificação com os
personagens que ocorrem na audição da performance auditiva. A narrativa oral antiga
13
DEWEY, J. Mark as aural narrative: structures as clues to understanding. Sewanee Theological
Review, [s. l.], v. 36, n. 1, p. 45–56, 1992. Disponível em:
http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0000859563&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 29 nov. 2019.
20
14
PALMER, David G. The Markan Matrix (a literary-structural analysis of the Gospel of Mark).
1998. 329 f. PhD thesis – Department of Theology, University Of Glasgow, Glasgow, 1998.
Disponível em: < http://theses.gla.ac.uk/1969/>. Acesso em: 21 set. 2019.
21
15
EDWARDS, James R. O Comentário de Marcos. São Paulo: Shedd Publicações, 2018.
22
e 15 enfatizam a paixão. A forma mais antiga do evangelho termina com o relato dos
anjos proclamando a ressurreição (16.1-8), um final secundário posterior inclui várias
aparições do Jesus ressurreto (16.9-20).
Kuruvilla em seu comentário sobre Marcos16 expõe todo o evangelho em vinte
e cinco perícopes assumindo uma unidade integral do texto. Segundo ele, o evangelho
de Marcos é uma narrativa coesa bem elaborada que busca convencer o leitor a seguir
em uma certa direção. Decididamente, não é uma reportagem jornalística neutra ou
desapaixonada, mas o evangelista constrói sua narrativa e os personagens retratando-
os com um propósito específico. Nem tudo o que foi dito ou feito em uma ocasião
específica é descrito e nem tudo o que aconteceu é revelado. A narrativa teológica de
Marcos é determinada através do texto. Essa narrativa teológica que permeia o texto
exige que os intérpretes determinem não apenas o que Marcos está dizendo, mas
também o que ele está fazendo com o que está dizendo (sentido pragmático do texto).
E, na maioria das vezes, o que o autor está fazendo com o que está dizendo é
descoberto a partir do próprio texto. Assim, o discernimento do que Marcos está
fazendo com o que ele está dizendo deve estar diretamente focado nos elementos
concretos do texto e é isso que Kuruvilla procura fazer em seu comentário.
Malbon, em seu livro “Narrative Space and Mythuc Meaning in Mark”17, que
embora publicado em 1986 é uma versão modificada de sua tese de doutorado em
1980 escrita na Florida State University. Seu livro é uma análise estrutural das
relações espaciais / míticas em Marcos baseadas na teoria hermenêutica de Claude
Lévi-Strauss. O que mais interessa Malbon é uma exposição da estrutura mítica de
Marcos, mediada pelas relações espaciais na narrativa. Ela vê a análise estrutural
como apenas um meio para esse fim. Seu trabalho é realmente uma tentativa de
descobrir a “estrutura profunda” de Marcos, manifestada nas várias relações espaciais.
Embora, segundo Malbon, Marcos não seja, estritamente falando, um mito, ele
contém, de acordo com a autora, uma “estrutura mítica”. Malbon descreve os quatro
passos que compõem uma análise Lévi-Straussiana. Primeiro, o texto é reduzido às
menores unidades essenciais e completas. Lévi-Strauss se referia a eles como “feixes
de relações”. Essas unidades incluem um “fazer” e um “fazedor” (ou uma função e
um sujeito). Em seguida, a narrativa é analisada em relações e ordens que são
16
KURUVILLA, Abraham. Mark: a theological commentary for preachers. Eugene: Cascade
Books, 2012.
17
MALBON, Elizabeth Struthers. Narrative Space and Mythic Meaning in Mark. San Francisco:
Harper & Row, 1986
23
18
TOLBERT, Mary Ann. Sowing the Gospel. Mark's World in Literary-Historical Perspective.
Minneapolis: Augsburg Fortress, 1989.
24
aberturas de histórias para ajudar o público a seguir o enredo. Estes podem assumir a
forma de sonhos, visões ou algum outro tipo de história na história maior. Tolbert
afirma que as duas longas parábolas em Marcos, o Semeador e sua interpretação em
4.3-8, 14-20 e os Lavradores Maus em 12.1-11, servem como sinopses da trama para
as duas principais divisões do Evangelho: 1.14-10.52 e 11.1-16.8. É essa hipótese que
controla sua interpretação de Marcos. Desta maneira, Jesus é o semeador da palavra,
cujos esforços encontram resultados mistos. Alguns personagens da história são o
terreno à beira do caminho; a palavra nunca penetra em seus corações e eles sempre
se opõem a Jesus, e finalmente organizam sua destruição. Estes seriam os escribas,
fariseus, herodianos e judeus de Jerusalém. Segundo Tolbert, os discípulos
representam a segunda resposta a Jesus. Eles são o terreno rochoso no qual a palavra
se enraíza rapidamente, mas quando surgem tribulações e perseguições, ela seca. A
terceira resposta, a do terreno espinhoso, onde o crescimento da palavra é prejudicado
pelos "cuidados do mundo, o prazer das riquezas e o desejo de outras coisas", pode
ser visto no homem rico (10.17-22) e em Herodes (6.14-29). Finalmente, a boa terra
que dá frutos em abundância é representada na história pelo povo que Jesus cura, cuja
resposta à palavra de Jesus revela que são pessoas de fé. Essas pessoas emergem da
multidão e são, com exceção de Bartimeu (10.46-52), anônimas seguindo o caminho
de Jesus. Jesus também é o herdeiro da vinha (12.1-11). O último de uma longa fila de
mensageiros que transmitem a demanda legítima do Criador por frutos a uma geração
adúltera e pecaminosa de lavradores maus. Os lavradores maus matam o herdeiro e o
expulsam da vinha, precipitando a vinda de Deus para executar julgamento contra
eles. A redação deste romance, segundo Tolbert, deveria ser uma continuação da
semeadura da palavra no curto período de sofrimento e perseguição experimentados
pela "boa terra" antes da intervenção apocalíptica de Deus para salvá-los e justificá-
los, assim como Deus salvou e justificou Jesus na ressurreição. Em seu livro, os dois
pilares da abordagem de Tolbert são, em primeiro lugar, uma atenção cuidadosa às
convenções retóricas greco-romanas e, em segundo lugar, uma ênfase na importância
controladora do gênero na interpretação de textos.
Considerando todos os estudos já realizados sobre o evangelho de Marcos,
nosso propósito é ir além do que já foi feito, enfatizando a estrutura literária do
evangelho para uma melhor compreensão do texto bíblico. Para tal, no próximo
capítulo abordaremos as ferramentas e fundamentos hermenêuticos para tal
interpretação.
25
19
ALTER, R.; KERMODE, F. (Eds.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p.
15.
20
ALTER, R.; KERMODE, F. (Eds.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p.
13.
21
EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, p. 1994, p. 142-143.
22
SCHOLZ, Vilson. Princípios de Interpretação Bíblica. Canoas: Editora Ulbra, 2006, p. 75.
23
STRICKLAND, Michael. YOUNG, David M. The Rhetoric of Jesus in the Gospel of Mark.
Minneapolis: Fortress Press, 2017, p. 11-16.
24
Para se aprofundar veja: SMITH, Stephen H. A Divine Tragedy: Some Observations on the
Dramatic Structure of Mark’s Gospel. Novum Testamentum, vol. 37, no. 3, 1995, pp. 209–31. JSTOR,
http://www.jstor.org/stable/1561221. Acesso em: 4 Out. 2022; e BILEZIKIAN, G. The Liberated
Gospel: A Comparison of the Gospel of Mark and Greek Tragedy. Grand Rapids: Baker, 1977 e
MOSER, T. Mark’s Gospel: A Drama?. Bible Today 80, 1975: p. 528–533.
25
HATTON, S. B. The gospel of Mark as comedy. The Downside Review, [s. l.], v. 120, n. 418, p.
33–56, 2002. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001485264&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 30 set. 2022.
26
TALBERT, Charles H. What Is a Gospel? The Genre of the Canonical Gospels. Macon, GA:
Mercer University Press, 1985; AUNE, David E. The Gospels as Hellenistic Biography. Mosaic 20,
no. 4, 1987: p. 1–10; AUNE, David E. The New Testament in Its Literary Environment.
Philadelphia: Westminster, 1987; BURRIDGE, R. A. What Are the Gospels? A Comparison with
26
antiga sobre seguir e imitar seu personagem central. 34 Dessa maneira, o leitor é
chamado a emular os atos de Cristo. De fato, o evangelho de Marcos é helenizado e
tem características de uma biografia antiga, porque tanto Marcos quanto seus leitores
estavam imersos na cultura greco-romana. 35 Dessa maneira, devemos interpretá-lo
considerando as características de uma biografia antiga, ou seja, não levando em
conta apenas os ensinos de Jesus, mas principalmente suas ações. Kunz afirma que
existem inúmeras ocasiões nos Evangelhos, onde o ensino de Jesus foi realizado
através de ações parabólicas.36 Jesus não só pregou por meio de parábolas, mas usou
milagres para trazer um ensino claro aos seus discípulos.
Além das características de uma biografia antiga, Polzin demonstra a sutileza
retórica dos escritos deuteronômicos que também pode ser encontrada no estilo
narrativo de Marcos. 37 Tolbert afirma que Marcos tem uma influência mais hebraica
do que helenista.38 Marcos tinha origem judaica, tal estilo estava em seu sangue, e é
provável que ele tenha escrito seu Evangelho em continuidade com os textos bíblicos
que ele e seus leitores conheciam bem. Marcos utiliza toda a fundamentação do
Antigo Testamento para a construção do evangelho, bem como é influenciado pela
forma de escrita judaica, utilizando-se de paralelismos, quiasmos e inclusios na
estrutura do texto para ensinar. 39
34
BURRIDGE, R. A. Imitating Mark’s Jesus: imagination, Scripture, and inclusion in Biblical ethics
today. Sewanee Theological Review, [s. l.], v. 50, n. 1, p. 11–31, 2006. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001643590&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 29 set. 2022.
35
HENGEL, Martin. The ' Helenisation ' of Judaea in the First Century after Christ. Londres:
SCM Press, 1989, demonstrou que o helenismo tinha sido difundido dentro do judaísmo antes da era
cristã. RICHARDS, E. Randolph. The Secretary in the Letters of Paul. Tübingen: Mohr, 1991, p.
150, considera provável que todo judeu educado usou textos gregos como parte de sua educação
judaica. BOOMERSHINE, T. E. (Eugene). Jesus of Nazareth and the Watershed of Ancient Orality
and Literacy. Semeia, [s. l.], v. 65, p. 7–36, 1994. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0000899586&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 4 out. 2022, aponta para o uso generalizado do grego na Palestina.
ROBBINS, Vernon K. New Boundaries in Old Territory: Form and Social Rhetoric in Mark Nova
York: Peter Lang Publishing, 1994, p. 219-20, considera que o Evangelho é “um documento
explicitamente multicultural” e que “combina o modo judaico com modos greco-romanos de
pensamento e atividade”.
36
KUNZ, Claiton André. Ações Parabólicas: Uma análise do ensino de Jesus através de suas ações.
Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo, 2006, p. 11.
37
POLZIN, Robert. Moses and the Deuteronomist: A Literary Study of the Deuteronomic History.
Nova York: Seabury Press, 1988; Samuel an the Deuteronomist: A Study of the Deuteronomic
History. San Francisco: Harper and Row, 1989; David and the Deuteronomist: A Literary Study of
the Deuteronomic History. Bloomington: Indiana University Press, 1993.
38
TOLBERT, Mary Ann. Sowing the Gospel. Mark's World in Literary-Historical Perspective.
Minneapolis: Augsburg Fortress, 1989.
39
Uma indicação do judaísmo da retórica de Marcos pode estar em seu uso de inclusios: OYEN, G.
Van. Intercalation and Irony in the Gospel of Mark, em SEGROECK, Van. et al. (eds), Four
Gospels, 2.961 n. 58, ele observa que essa técnica só aparece em textos hebraicos.
28
40
FEE, Gordon D. STUART, Douglas. Entendes o que lês. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 136.
41
ZUCK, Roy B. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade bíblica. São Paulo: Vida
Nova, 1994, p. 34.
42
PLATÃO. A república. 3. ed. Trad., introd. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 53-100.
43
WOLFSON. H. A. Philo: Foundations of Religious Philosophy in Judaism, Christianity, and Islam.
Cambridge: Harvard University, 1962, p. 138.
44
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 133.
29
Após a reforma, grande parte dos evangélicos se voltaram para o sentido único
para cada texto. Hirsch afirmava que o sentido do texto é determinado pela intenção
do autor. 48 Para ele, o significado do texto não pode mudar, apenas as aplicações
podem ser distintas. A Declaração de Chicago sobre Hermenêutica Bíblica afirma:
“Afirmamos que o significado expressado em cada texto bíblico é único, definitivo e
fixo”.49
A narrativa é um gênero que também pode ensinar uma doutrina, entretanto de
forma indireta. Scholz afirma que em vez de afirmar uma verdade em forma de tese, o
narrador mostra exemplos que ensinam este ou aquele princípio, este ou aquele
aspecto da realidade e o leitor deve interpretar a narrativa para compreender a
verdade.50 Fee e Stuart afirmam que geralmente uma narrativa não ensina diretamente
uma doutrina, antes, ilustram uma doutrina de modo proposicional, registrando o que
aconteceu e não o que deveria ter acontecido. Além disso eles afirmam que os
personagens da narrativas não necessariamente são bons exemplos, mas com
frequência são o oposto disso. 51 Fee e Stuart ainda afirmam que “Todas as narrativas
45
STEINMETZ. apud PRATT JR. Richard. Ele nos deu histórias. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
2004, p. 137.
46
PRATT JR. Richard. Ele nos deu histórias. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 139.
47
CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Editora Fiel, 2007, p. 125s.
48
HIRSCH, E. D. Vality in Interpretation. Chicago: University of Chicago Press, 1976.
49
Declaração de Chicago sobre Hermenêutica Bíblica, Artigo 7. Disponível em:
https://www.pregueapalavra.org.br/post/a-declaração-de-chicago-sobre-hermenêutica-b%C3%ADblica,
acessado em 18 de março de 2022.
50
SCHOLZ, Vilson. Princípios de Interpretação Bíblica. Canoas: Editora Ulbra, 2006, p. 77ss.
51
FEE, Gordon D. STUART, Douglas. Entendes o que lês. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 69.
30
são seletivas e incompletas [...] O que realmente aparece na narrativa é tudo quanto o
autor inspirado considerava importante para nós sabermos”.52
Os evangelhos são narrativas inspiradas, porém com perspectivas distintas. Os
quatro evangelhos têm quatro autores distintos com intenções distintas, todos eles
afirmando a verdade. Quanto a isso, Kaiser Jr. e Silva afirmam:
Em resumo, devemos ler os Evangelhos e Atos já esperando que
contenham apenas informações parciais e descrições imprecisas que
tornam difícil - às vezes impossível - resolver aparentes
discrepâncias. Isso não significa em momento algum que os
escritores bíblicos não sejam dignos de confiança. A falta de precisão
absoluta é inerente à linguagem humana. O grau de precisão esperado
de um leitor ou escritor depende da questão em pauta assim como
dos objetivos determinados (ou implícitos).53
Ele ilustra isso em currículos de escola bíblica dominical, onde escolhe-se algumas
histórias bíblicas, tiradas do seu contexto, ignorando a história da redenção e
facilmente moralizando tais histórias.55 É importante compreender que uma narrativa
leva em conta a sequência dos fatos para uma correta interpretação do texto.
Segundo Vitório,
Narrar é a arte de fazer escolhas. O narrador faz contínuas opções e a
narração resulta numa espécie de costura das muitas escolhas feitas.
Ele está sempre se decidindo pelo que mais interessa à narração. As
decisões dependerão do objetivo visado, ou seja, do efeito a ser
produzido no ouvinte-leitor.56
52
FEE, Gordon D. STUART, Douglas. Entendes o que lês. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 69.
53
KAISER JR., Walter. Silva, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2009, p. 104.
54
SCHOLZ, Vilson. Princípios de Interpretação Bíblica. Canoas: Editora Ulbra, 2006, p. 57.
55
SCHOLZ, Vilson. Princípios de Interpretação Bíblica. Canoas: Editora Ulbra, 2006, p. 57.
56
VITÓRIO, Jaldemir. Análise da Narrativa da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 16.
31
imitado. Sobre isso, Fee que “Em última análise, Deus é o herói de todas as narrativas
bíblicas”.57
Devemos, portanto, para isso compreender as ferramentas hermenêuticas para
utilizá-las na interpretação do gênero de narrativa no evangelho de Marcos.
1.3.1 O Narrador
Toda história contada tem um ponto de vista.59 Não há como esgotar todos os
elementos e descrições do evento em si em uma narrativa. De modo que o relato
necessariamente terá um ponto de vista e não todos os pontos de vista possíveis.
Seymour Chatman60 afirma que os dados articulados da história são sempre seletivos,
nunca podem esgotar a gama infinita de detalhes ou descrições da trama, pelas quais o
mundo da narrativa jamais será “completo”, porém o autor cria o próprio mundo da
narrativa. As narrativas ficcionais nos dão um bom exemplo disso, J.R.R. Tolkien,
renomado autor de narrativas ficcionais afirma:
As crianças são capazes, é claro, de ter “crença literária” quando a
arte do narrador é boa o suficiente para produzi-la. Esse estado
mental tem sido chamado de ‘suspensão voluntária da descrença’.
Mas isso não me parece uma boa descrição do que acontece. O que
realmente acontece é que o criador de histórias é um ‘sub-criador’
bem-sucedido. Ele cria um mundo secundário no qual a sua mente
pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é "verdadeiro": está de
acordo com as leis daquele mundo. Você, portanto, acredita nisso
enquanto está lá dentro. No momento em que a descrença surge, o
feitiço é quebrado; a mágica, ou melhor, a arte, falhou. Você está
novamente no Mundo Primário, olhando de fora o pequeno Mundo
Secundário abortado.61
57
FEE, Gordon D. STUART, Douglas. Entendes o que lês. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 69.
58
VITÓRIO, Jaldemir. Análise da Narrativa da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 33.
59
CHRISHOLM JR., Robert B. Da Exegese à Exposição: Guia Prático para o Uso do Hebraico
Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 196.
60
CHATMAN, Seymour. Story and Discourse: Narrative Structure in Fiction and Film. Ithaca:
Cornell University Press, 1978, p. 27-31.
61
TOLKIEN, J.R.R., FLIEGER, Verlyn (edit), ANDERSON, Douglas A. (edit). Tolkien On Fairy-
Stories. Expanded Edition, with commentary and notes. Great Britain: Oxford University Press, 2008,
p. 52 (tradução minha).
32
O que Tolkien afirma é que o autor, ao escrever uma narrativa, cria um mundo para
ser habitado pelo leitor. Enquanto a narrativa ficcional cria os eventos, a narrativa
histórica seleciona eventos reais em uma sequência a fim de criar o mundo narrativo a
ser habitado pelo leitor. Robert Weimann aponta que a narração de uma história
envolve necessariamente uma postura, um ponto de vista, pelo qual seus vários
elementos são avaliados. Ele diz: “Sem [um ponto de vista] nenhuma narração é
possível... É o pré-requisito absoluto de toda atividade narrativa”.62 Hirsch afirma:
“Banir o autor original como o determinante do significado é rejeitar o único princípio
normativo convincente que poderia emprestar validade à uma interpretação”.63
Além disso, o evento por trás da narrativa pode possuir inúmeros enredos que
se cruzariam de inúmeras maneiras, ao passo que a narrativa possui apenas um
enredo. Para explorar a estrutura da narrativa do evangelho precisamos compreender
que devemos adentrar no mundo narrativo dos evangelhos como estão postos, não
procurando estabelecer uma história por trás da história o que seria criar uma segunda
narrativa, própria de quem está escolhendo os fatos e sua ordem. Brown afirma que a
sequência da trama é essencial para compreender o significado da narrativa.64 Nosso
caminho ao interpretar o texto é de interpretá-lo e não reconstruí-lo, de modo que é
necessário adentrar no mundo do texto como está escrito. Desta forma, cada
evangelho foi preservado como está organizado com um propósito, e somos
chamados a compreendê-los na estrutura e ordem que o narrador adotou. Piaget
defende que os acontecimentos em uma narrativa verdadeira entram em cena como já
ordenados. Ao contrário de um aglomerado aleatório de eventos, eles manifestam uma
organização discernível.65 Chrisholm Jr. afirma que historiador precisa ser seletivo e
em relação às narrativas bíblicas, o que é incluído ou omitido é determinado pela
perspectiva teológica e intenção do autor.66 Como exemplo temos as narrativas de
Crônicas. Davi e Salomão são retratados como figuras heroicas, obedientes e
conquistadoras, sendo abençoados por Deus. Seus erros são omitidos em Crônicas. O
autor tem uma ênfase nos seus bons exemplos para a reconstrução da nação.
62
WEIMANN, Robert. Structure and Society in Literary Theory. Charlottes-ville: University of
Virginia Press, 1973, p. 246.
63
HIRSCH, E. D. Validity in Interpretation. London: Yale University Press, 1967, p. 4s.
64
BROWN, Jeannine. The Gospels as Stories: A Narrative Approach to Matthew, Mark, Luke, and
John. Michigan: Baker Academic, 2020, p. 24.
65
PIAGET, Jean. Structuralism, trad. Chaninah Maschler. New York: Routledge Book, 1971, p.14.
66
CHRISHOLM JR. Robert B. História ou estória? A dimensão literária em textos narrativos. In:
HOWARD JR., David M., GRISANTI, Michael A. (Org). O Sentido do Texto. São Paulo: Cultura
Cristã, 2018, p. 54.
33
67
KAISER JR., Walter C. SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura
Cristã, 2009, p. 34.
68
Ibid.
69
CAMERY-HOGGATT, J. Irony in Mark’s Gospel: Text and Subtext. [s. l.]: New York: Cambridge
University Press, 1992, p. 39.
70
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 28.
71
ECO, Umberto. apud MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas:
Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 28.
34
72
HIRSCH, E. D. Validity in Interpretation. London: Yale University Press, 1967, p. 8.
73
FEE, Gordon D., STUART, Douglas. Entendes o que lês?: Um guia para entender a Bíblia com
auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 114.
74
OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 260ss.
35
aconteceria no futuro na destruição do Templo: “não ficará pedra sobre pedra”. Por
fim, o ponto de vista fraseológico que se refere a diálogos ou falas em uma narrativa.
O narrador nesse momento traz para o leitor um diálogo que ele jamais ouviria no
mundo normal, algo privado ou pessoal trazendo informações internas importantes
para o entendimento da narrativa. Em Marcos 2.7 o evangelista revela os pensamentos
dos escribas para nós: “por que fala ele deste modo? Isto é blasfêmia!”.
O narrador pode se situar tanto no exterior como no interior da história
contada. Quando está de fora, Margerat chama isso de instância extradiegética.75 Este
é o caso de Marcos em todo o evangelho. Porém, existe a possibilidade de o narrador
estar dentro da narrativa como um personagem, que Margerat chama de instância
intradiegética. 76 Isso ocorre em alguns momentos no livro de Atos, quando Lucas
passa a narrar a história de dentro dela, tornando-se personagem e utilizando a
primeira pessoa do plural na narrativa (Atos 16.8-10; 16.17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1;
28.16).
Depois de compreender o ponto de vista do narrador, veremos a seguir como
ele estrutura o texto para nos mostrar por meio do enredo o seu ponto de vista.
1.3.2 Enredo
Osborne afirma que “o enredo contém a sucessão conjunta de eventos que
seguem uma ordem de causa e efeito, os quais levam a um clímax e envolvem o leitor
no mundo narrativo da história”.77 No enredo de Marcos há uma ênfase no encontro
de Jesus com as autoridades, as multidões e os discípulos. Marcos enfatiza o segredo
messiânico mostrando como a natureza messiânica foi rejeitada pelos líderes
religiosos e escondida deles, foi incompreendida pelas multidões e pelos discípulos e
reconhecida pelos demônios (Mc 3). Além disso, em seu enredo ele mostra
geograficamente um deslocamento de Jesus da Galiléia para a Judéia, bem como um
deslocamento da sinagoga para as casas, barco ou mesmo o caminho, e chegando a
Jerusalém, indo para o Templo e por fim a cruz.
75
A palavra diegese é uma designação para história contada. Extragiegético literalmente significa
externo à história contada. Além disso é possível ter um narrador homodiegético que está presente na
história contada e o heterodiegético que está ausente da história contada. MARGUERAT, Daniel.
BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Edições
Loyola, 2009, p. 39.
76
Intradiegético significa interno à história contada. MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan.
Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 39.
77
OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 262.
36
78
RYKEN, Leland. Formas Literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 50.
79
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 56.
80
OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 264.
81
ECO, Umberto. apud MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas:
Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 28.
37
enredos pode ser tanto por acumulação, adição ou oposição provocando um efeito de
repetição, o que aumenta a tensão narrativa.82
Dentro do enredo, o autor utiliza o sumário, que segundo Marguerat, é
caracterizado por verbos no imperfeito funcionando como uma recapitulação ou uma
síntese do que já foi dito.83 Em Marcos 4.33-34 temos um sumário: “E com muitas
parábolas semelhantes lhes expunha (imperfeito) a palavra, conforme o permitia
(imperfeito) a capacidade dos ouvintes. E sem parábolas não lhes falava (imperfeito);
tudo, porém, explicava (imperfeito) em particular aos seus próprios discípulos”.84 O
narrador normalmente alterna os sumários com as cenas à medida que o tempo da
narrativa se desenvolve.
O enredo é desenvolvido por meio das cenas. Mais do que construir uma
história em torno dos personagens, Fee e Stuart afirmam que a narrativa judaica
predominante é “cênica”.85 Ou seja, a ação é desenvolvida por uma série de cenas que
juntas perfazem o todo. Isso pode ser comparado a um drama cinematográfico ou
televisivo, que possui cenas sucessivas. É como uma câmera que muda de lugar ou
ponto de vista, aproximando ou afastando-se, focando em um personagem ou outro.
As cenas juntas perfazem a história como um todo. Marguerat chama isso de
quadros.86 Ele afirma que estruturar uma narrativa equivale a identificar os quadros
que a compõe. Por exemplo, em Marcos 14.1-11 temos uma mesma perícope com três
cenas. A primeira cena se dá entre os sacerdotes e escribas, que procuram como
matariam Jesus e decidem fazê-lo por meio de traição de alguém próximo deles. A
segunda cena, mostra Jesus, em Betânia, rodeado de seus discípulos, incluindo aquele
que o trairá, e sendo ungido por uma mulher, que derrama aos seus pés um perfume
que valia trezentos denários. A terceira cena, e final, da micronarrativa, foca no
traidor, Judas, agora indo aos sacerdotes para entregar-lhes Jesus e eles lhe prometem
dinheiro.
As cenas, dentro de um enredo, são compostas por personagens que são
inseridos na narrativa. Segundo Fee e Stuart, na natureza cênica da narrativa judaica
82
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 68.
83
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 109.
84
Um sumário clássico encontra-se em Atos 2.42-47.
85
FEE, Gordon D., STUART, Douglas. Entendes o que lês?: Um guia para entender a Bíblia com
auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 115.
86
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 48.
38
87
FEE, Gordon D., STUART, Douglas. Entendes o que lês?: Um guia para entender a Bíblia com
auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 116.
88
FEE, Gordon D., STUART, Douglas. Entendes o que lês?: Um guia para entender a Bíblia com
auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 116.
89
VITÓRIO, Jaldemir. Análise Narrativa da Bíblia: primeiros passos de um método. São Paulo:
Paulinas, 2016, p. 78.
90
PRATT Jr., Richard L. Ele nos deu Histórias. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 165-169.
39
91
PRATT Jr., Richard L. Ele nos deu Histórias. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 172s.
92
VITÓRIO, Jaldemir. Análise Narrativa da Bíblia: primeiros passos de um método. São Paulo:
Paulinas, 2016, p. 79.
93
RYKEN, Leland. Formas Literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 36.
94
RYKEN, Leland. Formas Literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 158.
95
GENETTE, Gerard. Narrative Discourse: An Essay on Method, trans. Jane E. Lewin. Ithaca, NY:
Cornell University Press, 1980, pp. 33-86.
96
OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 262.
40
narrador só pode descrever uma cena de cada vez, como então narrar eventos que
acontecem simultaneamente? Hoggatt afirma que “talvez as resoluções mais diretas
do problema sejam através da lembrança ou da chegada de um mensageiro de ‘outra
cena’, que fornece aos personagens e à plateia uma descrição completa dos
acontecimentos ‘fora do palco’”. 97 Philip Harsh chama isso de cronologia dupla
analisando as narrativas das tragédias gregas.98 Genette afirma que
seria, portanto, necessário distinguir, do ponto de vista simples da
posição temporal, quatro tipos de narração: ulterior (posição clássica
da narrativa no passado, sem dúvida a mais frequente), anterior
(narração preditiva, geralmente no futuro, mas que nada proíbe levar
ao presente), simultâneo (história no presente, contemporânea da
ação) e intercalado (entre os momentos da ação).99
Em Marcos 14.12-15, o leitor fica sabendo das medidas tomadas por Jesus para
preparar a Páscoa. Marcos faz uma narrativa no passado, uma narração ulterior: “E,
no primeiro dia da Festa dos Pães Asmos, quando se fazia o sacrifício do cordeiro
pascal, disseram-lhe...”. Jesus, ao responder faz uma narrativa anterior, preditiva dos
fatos: “Ide à cidade, e vos sairá ao encontro um homem trazendo um cântaro de
água”.
Depois de entender que toda narrativa tem um narrador e devemos
compreender a cadeia de acontecimento para interpretar corretamente o texto é
necessário compreender quais estratégias retóricas o narrador pode guiar o ouvinte
para dentro e ao redor do mundo da narrativa de modo que compreenda o seu
significado. Quais estratégias são essas?
97
CAMERY-HOGGATT, J. Irony in Mark’s Gospel: Text and Subtext. [s. l.]: New York: Cambridge
University Press, 1992, p. 44.
98
HASCH, Philip. Handbook of Classical Drama. Stanford, CA: Stanford University Press, 1944), p.
27.
99
GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Éditions du Seil, 1972, p. 229.
100
CAMERY-HOGGATT, J. Irony in Mark’s Gospel: Text and Subtext. [s. l.]: New York:
Cambridge University Press, 1992, p. 69.
41
101
RHOADS, David M. MICHIE, Donald M. Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a
Gospel. Philadelphia: Fortress Press, 1982, p. 45.
102
RYKEN, Leland. Formas Literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 171.
103
RHOADS, David M. MICHIE, Donald M. Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a
Gospel. Philadelphia: Fortress Press, 1982, p. 46.
104
RHOADS, David M. MICHIE, Donald M. Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a
Gospel. Philadelphia: Fortress Press, 1982, p. 51.
105
RHOADS, David M. MICHIE, Donald M. Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a
Gospel. Philadelphia: Fortress Press, 1982, p. 51.
42
1.3.3.4 Inclusio
Há também a técnica da inclusio, uma das mais utilizadas por Marcos em seu
evangelho. Kee chama inclusio de técnica de interpolação110. Segundo Fee e Stuart
uma inclusio ou inclusão “é um termo técnico para a forma de repetição em que a
106
ROSENBLATT, Jason Philip. SITTERSON, Joseph C. Not in Heaven: Coherence and
Complexity in Biblical Narrative. Bloomington: Indiana Univ. Press, 1991, p. 212.
107
RHOADS, David M. MICHIE, Donald M. Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a
Gospel. Philadelphia: Fortress Press, 1982, p. 52.
108
DORSEY, David A. The Literary Structure of the Old Testament: a commentary on Genesis-
Malachi. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1999, p.30s.
109
DORSEY, David A. The Literary Structure of the Old Testament: a commentary on Genesis-
Malachi. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1999, p.40s.
110
KEE, Howard Clark. Community of the New Age: Studies in Mark`s Gospel. Philadelphia: The
Westminister Press, 1977, p. 56.
43
A inclusio nada mais é do que dois temas semelhantes que estão nas bordas da
narrativa, e no centro um outro tema distinto é abordado, porém, com algum tipo de
relação com o tema das bordas. Moj chama inclusio de intercalação e afirma
As características básicas (principais) das intercalações são as
seguintes: – duas histórias (discursos) conjugadas segundo o
esquema A-B-A’; – a falta de relação ostensiva (entre as narrativas,
discursos A e B); – possibilidade de continuação da narrativa
(discurso) A com a omissão da narrativa (discurso) B; – um
funcionamento independente da narrativa B; – aludindo (por
exemplo, referindo-se a personagens, lugares, eventos etc.) em A'
para a parte um da narrativa (discurso) A.114
111
FEE, Gordon D., STUART, Douglas. Entendes o que lês?: Um guia para entender a Bíblia com
auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 119s.
112
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 69.
113
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 54.
114
MOJ, M. Sandwich Technique in the Gospel of Mark. The Biblical Annals, [s. l.], v. 8, n. 3, p.
363–377, 2018. DOI 10.31743/ba.2018.8.3.03. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGW7180813000457&lang=
pt-br&site=ehost-live. Acesso em: 12 mar. 2022.
115
MOJ, M. Sandwich Technique in the Gospel of Mark. The Biblical Annals, [s. l.], v. 8, n. 3, p.
363–377, 2018. DOI 10.31743/ba.2018.8.3.03. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGW7180813000457&lang=
pt-br&site=ehost-live. Acesso em: 7 out. 2022.
44
1.3.3.5 Eco
Este é um recurso literário que funciona como um déja vu. Chrisholm afirma
que este recurso tem sido mal compreendido por muitos estudiosos, que atribuem
repetições a diferentes fontes literárias.116 Na narrativa, o eco funciona como uma
lembrança de um episódio anterior fazendo que o leitor perceba a semelhança ou
estabeleça contrastes em relação ao tema ou os episódios. No nível mais simples, o
eco é parte estética da obra, mostrando o esmero com que o poeta ou narrador elabora
a coesão e coerência da obra. Mas muitas vezes, o eco abriga uma riqueza de
significados. Ryken afirma que “centenas de detalhes têm eco por toda a Escritura,
todos se harmonizando para construir a narrativa da história da salvação”.117 Hays
afirma sobre eco:
116
CHRISHOLM JR. Robert B. História ou estória? A dimensão literária em textos narrativos. In:
HOWARD JR., David M., GRISANTI, Michael A. (Org). O Sentido do Texto. São Paulo: Cultura
Cristã, 2018, p. 62.
117
RYKEN, Leland. Formas Literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 44.
45
Oyen defende que há um sentido explícito e um não explícito no texto que deve ser
levado em conta. Podemos esclarecer a distinção entre mostrar e contar fazendo uma
breve pausa para contrastar a narrativa apropriada com o drama. No drama, não há
narrador (exceto, é claro, pela decisão consciente do dramaturgo); portanto, o
dramaturgo deve estruturar a peça de tal maneira que o público seja guiado
automaticamente para dentro e ao redor do seu mundo narrativo. 121 O narrador
também pode querer dizer algo ao leitor ao desenvolver o personagem, ou por meio
da mudança de tempo ou do local. Por exemplo, em 1Samuel 17 temos a descrição de
Golias (capacete de bronze, couraça de bronze, armas e seu tamanho, quase três
metros). Em paralelo ele descreve Davi (moço, vestiu a armadura de Saul com
capacete de bronze, couraça, armas, porém não conseguia andar). Ao descrever ele
cria uma tensão na narrativa, e apesar de não dizer claramente, ele mostra o que quer
dizer, que nesta batalha Davi não venceu por capacidade, experiência ou força,
tampouco pelo uso de armas. Ele continua mostrando isso na narrativa, pelo fato de o
nome de Deus aparecer no relato apenas na boca de Davi no versículo 26: “quem é
esse incircunciso filisteu para afrontar os exércitos do Deus vivo?”. E posteriormente,
mostrando que Davi não vence pelo uso de armas ele diz no versículo 45: “Tu vens
contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em
nome do SENHOR dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens
afrontado”. O autor está mostrando o que deseja que os leitores compreendam por
meio da descrição dos personagens ou mesmo por meio do diálogo entre eles. Isso
pode ocorrer tanto nos elementos da narrativa e nos episódios quanto na estrutura da
narrativa, como afirmamos anteriormente por meio da inclusio, quando o narrador
quer mostrar que os episódios estão relacionados criando paralelos que devem ser
notados.
120
OYEN, Geert Van. Ler o Evangelho de Marcos como um romance. São Paulo: Edições Loyola,
2020, p. 16ss.
121
OYEN, Geert Van. Ler o Evangelho de Marcos como um romance. São Paulo: Edições Loyola,
2020, p. 16ss.
47
1.4.3 Pragmática
Segundo Moura, ao ler um texto é necessário levar em conta não apenas o
sentido de cada palavra, mas também o significado, que é determinado a partir da
especificação de uma situação.123 Desta maneira, Moura afirma que “a cada situação
específica de produção de um enunciado, teríamos um significado diferente para o
enunciado”.124
No final da década de 70 e início da década de 80 vários artigos foram
publicados no campo da pragmática no Journal of Pragmatics.125 Basílio afirma que
tarefa da pragmática é analisar o uso concreto da linguagem na prática linguística e
122
KUNZ, Claiton André. Ações Parabólicas: Uma análise do ensino de Jesus através de suas
ações. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Escola Superior de Teologia. São Leopoldo, 2006, p. 11.
123
MOURA, Heronildes M. M. Significação e Contexto: uma introdução a questões de semântica e
pragmática. Florianópolis: Insular, 2013, p. 62.
124
MOURA, Heronildes M. M. Significação e Contexto: uma introdução a questões de semântica e
pragmática. Florianópolis: Insular, 2013, p. 62.
125
Para saber mais visite: https://www.journals.elsevier.com/journal-of-pragmatics
48
estudar as condições que governam essa prática. 126 Kuruvilla afirma que há uma
distinção entre significado de sentença (ou seja, semântica) e o significado de
enunciado (ou seja, pragmática, o que o autor quer fazer com o que está dizendo).127
Enquanto usamos a semântica para decifrar e entender a frase em um processo
objetivo, usamos a pragmática para decifrar e entender a frase em um processo
inferencial e subjetivo, dependendo do contexto ou mesmo da estrutura. Por exemplo,
se uma mulher diz a um homem: “O senhor está pisando no meu pé”, o significado da
sentença indica apenas a posição do homem, pisando no pé da mulher. Enquanto o
significado da expressão exorta que o homem tire seu pé de cima do pé da mulher.
Este é o sentido pragmático do texto.
A pragmática seria a ciência do uso da linguagem. Segundo Moura, a fronteira
entre a semântica e a pragmática é traçada a partir da noção do contexto.128 Goldnadel
afirma que um enunciado linguístico é uma sentença em uso e não pode ser
compreendido considerando apenas o conteúdo linguístico da sentença.129 Ele afirma
ainda que “sem a identificação desse conjunto de determinações contextuais não é
possível acessar o sentido total de um enunciado linguístico”. 130 Goldnadel ainda
afirma
a busca de mais contexto para produzir mais sentido é fortemente
motivada pela busca de plena identificação das intenções de quem
profere um enunciado. Ou seja, não nos contentamos apenas com
interpretações parciais, capazes de evidenciar algum sentido nos
enunciados que processamos, queremos explorar a intenção
informativa em sua totalidade. Nessa busca, a produção de conteúdos
inferidos decorre de um completo processo de reconhecimento de
desejos e intenções, de modo que a comunicação coloca-se a serviço
não apenas do incremento de nossas representações mentais, mas
também de objetivos interacionais mais amplos.131
126
BASÍLIO, Robério. A Linguística e a hermenêutica bíblica: diálogo e desafios para o intérprete
do século 21 In: LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus Intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã,
2013, p. 261
127
KURUVILLA, A. “What Is the Author Doing with What He Is Saying?” Pragmatics and Preaching
- an Appeal! Journal of the Evangelical Theological Society, [s. l.], v. 60, n. 3, p. 564-566, 2017.
Disponível em:
http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGU0171211000589&lang=pt
-br&site=ehost-live. Acesso em: 10 mar. 2021.
128
MOURA, Heronildes M. M. Significação e Contexto: uma introdução a questões de semântica e
pragmática. Florianópolis: Insular, 2013, p. 66.
129
ROMERO, Márcia. GOLDNADEL, Marcos. [et al.]. Manual de linguística: Semântica,
Pragmática e Enunciação. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 98.
130
ROMERO, Márcia. GOLDNADEL, Marcos. [et al.]. Manual de linguística: Semântica,
Pragmática e Enunciação. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 98.
131
ROMERO, Márcia. GOLDNADEL, Marcos. [et al.]. Manual de linguística: Semântica,
Pragmática e Enunciação. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 109.
49
Kuruvilla afirma que o texto bíblico possui um mundo em sua frente que deve
ser compreendido para então aplicarmos o texto. De modo que a interpretação do
texto não pode cessar com a elucidação de seus elementos linguísticos, gramaticais e
sintáticos - o que o autor está dizendo (semântica), mas deve prosseguir para discernir
o mundo na frente do texto - o que o autor está fazendo (pragmática). Green afirma
que “enquanto a semântica lida com o significado da linguagem ou o conteúdo
representacional, a pragmática se concentra no uso da linguagem.” 132 Enquanto a
decodificação de um enunciado fornece a semântica, um processo inferencial conduz
à pragmática. Ambos são necessários para a interpretação. Para Ibaños, a pragmática é
uma teoria da compreensão da linguagem, na qual o contexto dá um tratamento
complementar à semântica para que os problemas de que essa não trata possam ser
tratados de maneira adequada. 133 Ele ainda afirma que a pragmática é necessária para
a complementação da semântica, quando esta se depara com questões que envolvem
implícitos. O significado implícito é um fenômeno linguístico que não é possível ser
explicado apenas através da semântica. O implícito é flexível e variável exatamente
porque se molda em função de cada contexto. Desta maneira, a pragmática é
adequada para o tratamento das questões que envolvem o não-dito, o implicado.134
Por exemplo, se o Sr. A diz à Sra. B: “São 18h50”. Considerando o contexto em que
estão se arrumando para ir ao culto, que começará às 19h00, o significado da sentença
indica apenas o horário, enquanto o significado da expressão exorta a Sra. B: “Se
apresse, senão nos atrasaremos”. A pragmática, um processo inferencial, usa a
declaração de um falante como uma entrada e, com informações contextuais, gera
uma saída com o significado pretendido do falante. Portanto, esse mundo projetado
forma o intermediário entre o texto e a aplicação, e permite que se responda
validamente ao texto.135 Em outras palavras, para entender o que o Sr. A quer dizer, é
132
GREEN, Gene L. “Relevance Theory and Biblical Interpretation” in: The Linguist as Pedagogue:
Trends in the Teaching and Linguistic Analysis of the Greek New Testament. Sheffield: Phoenix, 2009,
219s.
133
IBAÑOS, Ana Maria T.; SILVEIRA, Jane Rita Caetano da. (orgs.) Na interface
semântica/pragmática. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 321.
134
IBAÑOS, Ana Maria T.; SILVEIRA, Jane Rita Caetano da. (orgs.) Na interface
semântica/pragmática. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 344.
135
KURUVILLA, A. “What Is the Author Doing with What He Is Saying?” Pragmatics and Preaching
- an Appeal! Journal of the Evangelical Theological Society, [s. l.], v. 60, n. 3, p. 568, 2017.
Disponível em:
http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGU0171211000589&lang=pt
-br&site=ehost-live. Acesso em: 10 mar. 2021.
50
Fee e Stuart chamam essa abordagem de ensino implícito. Segundo eles esse
ensino “é aquele que está claramente presente na história, mas não é declarado em
muitas palavras”.137 Além disso eles afirmam que o narrador não torna sua intenção
explícita pois tem os mesmos pressupostos dos leitores e portanto pressupõe que
entenderão apenas pelo modo como ele conta a história.138
Desta maneira, usaremos os elementos literários abordados anteriormente com
o propósito de estabelecer a base para a interpretação do evangelho de Marcos bem
como analisar o texto sob uma perspectiva pragmática, ou seja, qual a intenção do
autor em construir o texto da maneira que foi construído, o que ele quer fazer com o
que está dizendo de forma implícita e com isso chegar a aplicações válidas para os
dias de hoje.
136
KURUVILLA, Abraham. O texto primeiro. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 98.
137
FEE, Gordon D. STUART, Douglas. Entendes o que lês. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 121.
138
FEE, Gordon D. STUART, Douglas. Entendes o que lês. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 121.
139
KURUVILLA, Abraham. O Texto Primeiro: Uma Hermenêutica Teológica para a Pregação. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017, p. 97.
51
140
FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 497.
141
BERKHOF, Louis. A História das Doutrinas Cristãs. São Paulo: PES, 1992, p. 107.
142
Rudolf Bultmann é um teólogo que propunha esse tipo de análise do texto.
143
KURUVILLA, Abraham. O Texto Primeiro: Uma Hermenêutica Teológica para a Pregação. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017, p. 97.
52
pregação deve ser fiel à intenção do autor.144 Devemos ler com os olhos do narrador,
pois a interpretação correta é a do autor. Todorov afirma que “nenhuma narrativa é
natural; uma escolha e uma construção sempre presidem sobre sua forma; a narrativa
é um discurso, não uma série de acontecimentos”. 145 Levi-Strauss complementa
dizendo que toda narrativa permanece inevitavelmente parcial – isto é, incompleta – e
isso é um tipo de parcialidade”.146 Ou seja, o autor tem um objetivo específico em
narrar da maneira que está fazendo. Ele está sendo parcial, e tem um propósito. Por
exemplo:
Evento: A – B – C
Narrativa: a – B – c
Interpretação a – B – c
Desta maneira temos a interpretação seguindo as ênfases dadas pelo narrador e não a
busca por expor o evento em si. Assim deve ser o pregador, ele não procura construir
ênfases, ele busca compreender as ênfases do narrador e expô-las aos ouvintes.
Portanto, no próximo capítulo analisaremos a estrutura do evangelho de
Marcos em inclusios, quiasmos e paralelismos, bem como faremos uma interpretação
a partir das ferramentas abordadas neste capítulo a fim de compreender a intenção do
autor e por fim chegar a aplicações válidas para nós hoje.
144
KURUVILLA, Abraham. O Texto Primeiro: Uma Hermenêutica Teológica para a Pregação. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017, p. 98.
145
TODOROV, Tzvetan. The Poetics of Prose. Oxford: Basil Blackwell, 1977, p. 55.
146
LEVI-STRAUSS, Claude. The Savage Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1966, p. 257s.
53
147
VITÓRIO, Jaldemir. Análise da Narrativa da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 34.
148
FOKKELMAN, J. P. apud VITÓRIO, Jaldemir. Análise da Narrativa da Bíblia. São Paulo:
Paulinas, 2016, p. 35.
149
ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 137.
150
ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 151.
54
Quem mais chama Jesus de Filho de Deus em Marcos? É importante notar que
a declaração de Jesus como Filho de Deus é repetida no seu Batismo pelo Pai, pelos
demônios, reconhecendo o seu poder, pelo próprio Filho diante do Sumo Sacerdote e
na afirmação de sua ignorância quanto ao dia e a hora e, por fim, na proclamação do
centurião diante da Cruz. Aqui Marcos utiliza o eco para ensinar quem é Jesus ao
longo da narrativa. Por sete vezes Jesus é chamado de Filho de Deus e também por
56
sete vezes sendo chamado de Cristo em Marcos. Osborne afirma sobre o número sete
que
em toda a Bíblia, cada um dos números geralmente sinaliza a ideia de
plenitude ou completude, como no caso dos quatro cantos da terra ou
dos quatro ventos, no uso do número sete nas Escrituras como um
todo ou do número 12 em referência às 12 tribos e aos 12
apóstolos.151
Ou seja, temos o número sete sendo usado por Marcos para mostrar de forma
completa que Jesus é tanto o Cristo quanto o Filho de Deus. Propositalmente Marcos
oculta o termo “filho de Deus” em algumas passagens onde o termo ocorre nos textos
correlatos nos outros evangelhos. Por exemplo, em Mateus 14.33, quando Jesus anda
sobre as águas, ao entrar no barco os discípulos o adoram e dizem: “Verdadeiramente
é o Filho de Deus”. Em Marcos 6.52, quando Marcos narra o mesmo fato, ele apenas
diz que os discípulos ficaram atônitos porque não haviam compreendido e seu
coração estava endurecido. Outra situação ocorre em Mateus 16.16, quando Jesus
pergunta aos seus discípulos quem eles diziam ser ele, ao que Pedro responde: “Tu és
o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Porém, em Marcos 8.29 temos apenas: “Tu és o
Cristo”. O propósito de Marcos ao longo dessa inclusio (1.1 / 1.2-15.38 / 15.39-16.20)
é mostrar que Jesus é o Filho de Deus, porém, ao longo da narrativa os discípulos não
compreendem quem verdadeiramente ele é, antes estão com o coração endurecido. Os
demônios sabem quem ele é (Mc 3.11 e 5.7), o Pai sabe quem ele é (Mc 1.11 e Mc
9.7), o evangelista sabe quem ele é (Mc 1.1), e o próprio Jesus diz quem ele é (Mc
14.61-62), porém o primeiro homem no evangelho de Marcos a declarar quem é Jesus
é o centurião romano (Mc 15.39). Além disso, Marcos faz questão de enfatizar que
Jesus é condenado à morte pelo sumo-sacerdote Anás exatamente por Jesus se
declarar “o Cristo, o Filho do Deus Bendito” (Mc 14.61-62). Tanto no batismo quanto
na transfiguração (1.11, e 9.7), nas declarações do Pai, Watss afirma que temos um
eco do Salmo 2.152
Da mesma maneira que Marcos expõe ao longo do evangelho o termo “filho
de Deus”, ele também, por sete vezes, declara ser Jesus o Cristo.
151
OSBORNE, Grant R. Apocalipse: Comentário Exegético. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 19.
152
WATTS, R. E. The Lord’s house and David’s lord: the Psalms and Mark’s perspective on Jesus and
the temple. Biblical Interpretation, [s. l.], v. 15, n. 3, p. 307–322, 2007. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001596250&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 25 out. 2022.
57
Desta maneira temos o evangelista ecoando em todo o seu evangelho os termos que
ele introduz no primeiro versículo: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho
de Deus”. Cada perícope aponta para isso e a repetição por sete vezes é para mostrar
que ele é perfeitamente o Cristo, e não apenas o Cristo, mas também o Filho de Deus.
Há algumas cenas padrão no primeiro capítulo de Marcos. No livro do Êxodo,
o povo de Israel passa pelo Rio Jordão para entrar na terra prometida. Em Marcos,
Jesus vai ao deserto, e agora passa pelo Jordão (Mc 1.9) para nos conduzir à Nova
Jerusalém. Em Marcos 1.12-13, temos um eco que aponta para o Éden, na tentação e
queda de Adão e Eva em Gênesis 3. 153 Na tentação dos primeiros pais temos um
jardim com animais que são dóceis. Agora, na tentação do segundo Adão, temos um
deserto e feras. Semelhante ecoando em ambos os textos temos a figura de Satanás
tentando tanto o primeiro quanto o segundo Adão. No Éden, a serpente vence e
derruba o homem. No deserto, a serpente falha e o segundo Adão, derruba Satanás e
isso é apenas o começo de seu ministério terreno.
153
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 72.
154
ORR, P. Mark as the Backstory to the Gospel: Mark 1:1 as a Key to Mark’s Gospel. Themelios, [s.
l.], v. 47, n. 2, p. 249–260, 2022. Disponível em:
58
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiFZK220822000290&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
155
BAUCKHAM, Richard. Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitness Testimony, 2nd
ed. Grand Rapids: Eerdmans, 2017, p. 114-127, 510-514.
156
SOARES, Sebastião A. G. CORREIA JR. João Luiz. Evangelho de Marcos: Vol. I: 1-8.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 83.
59
inclusio, A (vs. 21-22) – B (vs. 23-26) – A’ (vs. 27-28). 157 Entretanto, Soares,
demonstra que a estrutura é um pouco mais rebuscada, sendo um quiasmo.158
Seu propósito em cada quiasmo, inclusio e paralelismo ao longo da narrativa é
mostrar que Jesus é o Cristo e o Filho de Deus. O centro do quiasmo é a parte mais
importante da estrutura.159 O versículo 21 é paralelo ao versículo 28 que mostra o
ensino de Jesus na região da Cafarnaum, em um paralelismo sinonímico com um
acréscimo: a fama de Jesus corre por todas as regiões da Galiléia (além de
Cafarnaum). O versículo 22 faz um paralelo com o versículo 27 (ensino com
autoridade), também com um acréscimo de que o ensino de Jesus é novo (vs. 27). Na
sequência temos um paralelismo antitético, que inicia com a tentativa resistência do
espírito impuro (vs. 23-24) e no paralelo temos a obediência do espírito impuro (vs.
26). No centro do quiasmo, chamando toda a atenção, está a palavra autoritativa do
Santo de Deus (vs. 25).160 Marcos chama a atenção nessa perícope para o ensino de
Jesus. Quatro vezes aparecem palavras relacionadas ao verbo “ensinar”, além do
centro do quiasmo que é a palavra de autoridade e repreensão de Jesus. No verso 21
temos o verbo “ensinar” (edídasken). No verso 22 temos a sua “doutrina” (didakè) e
os ensinava (didáskon). No verso 27 temos a “nova doutrina” (didakè kainè). Sobre
esse texto, LaGrand afirma:
Na narrativa de Marcos, João Batista já explicou que a fonte do poder
de Jesus é o Espírito Santo (1:7-8). O leitor agora é desafiado a
acreditar que o governo de Deus está sendo estabelecido (1:15) por
"Jesus Messias, o Filho de Deus" (1:1). A fé no Deus Todo-Poderoso
é básica para qualquer compreensão do Evangelho. Aqui o poder de
Deus é canalizado através de Jesus, especificamente em uma ordem
de restrição dirigida ao espírito maligno (1:25).161
O verso 25 mostra que na sua prática ele revela ainda mais. Ele tem autoridade. Não
são meras palavras, mas carregadas de autoridade (exousían). Essa é a novidade no
157
ELDER, N. A. Scribes and Demons: Literacy and Authority in a Capernaum Synagogue (Mark
1:21–28). The Catholic Biblical Quarterly, [s. l.], v. 83, n. 1, p. 75–94, 2021. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiFZN210118000685&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 13 out. 2022.
158
SOARES, Sebastião A. G. CORREIA JR. João Luiz. Evangelho de Marcos: Vol. I: 1-8.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 83.
159
SOARES, Sebastião A. G. CORREIA JR. João Luiz. Evangelho de Marcos: Vol. I: 1-8.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 83.
160
SOARES, Sebastião A. G. CORREIA JR. João Luiz. Evangelho de Marcos: Vol. I: 1-8.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 83.
161
LAGRAND, J. The First of the Miracle Stories According to Mark (1:21-28). Currents in
Theology and Mission, [s. l.], v. 20, n. 6, p. 479–484, 1993. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0000870379&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 13 out. 2022.
60
ensino de Jesus. Marcos está nos mostrando em sua estrutura que Jesus não é mais um
escriba, fariseu ou mestre da lei, ele tem autoridade e poder sobre os espíritos
imundos para expulsá-los cumprindo e ecoando o que diz o texto messiânico de Isaías
61.1: “o Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu
para [...] proclamar libertação aos cativos e pôr em liberdade os algemados”. Marcos
está mostrando por meio do seu ensino autoritativo e da expulsão do demônio que
Jesus é o Messias prometido, ou seja, o Cristo, e que seu ensino não é por mero
conhecimento, mas com poder (exousían) sobre o mundo espiritual, o que mostra que
ele é o Filho de Deus. Nenhum profeta, rei ou sacerdote do Antigo Testamento tinham
poder e autoridade para expulsar demônios, Marcos nos mostra que Jesus tem essa
autoridade. Ele é o Cristo, o Filho de Deus que agora está em Cafarnaum.
164
RHOADS, David M. MICHIE, Donald M. Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a
62
No primeiro verso temos a entrada de Jesus na sinagoga para trazer vida (vs.
1a), em paralelo, temos a saída dos adversários de Jesus da sinagoga com o intuito de
matá-lo (vs. 6). Temos claramente um contraste entre Jesus e seus adversários. Jesus
entrou na sinagoga para ensinar, porém, algumas pessoas foram à sinagoga não para
aprender, mas, para reunir evidências a fim de montar uma acusação formal contra
Jesus a fim de matá-lo. Na sequência temos o paralelo entre a apresentação do homem
166
HORTON, Michael. Doutrinas da Fé Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 479.
167
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo; Vida Nova, 2003, p. 206.
168
SOARES, Sebastião A. G. CORREIA JR. João Luiz. Evangelho de Marcos: Vol. I: 1-8.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 148s.
64
que tem a mão ressequida (vs. 1b) e a cura do homem (vs. 5c). Jesus vê o homem e o
cura, mas esse não é o centro do texto. O principal objetivo do evangelista não é
enfatizar a cura.
Em seguida temos a intenção dos adversários de Jesus que o observavam para ver se
curaria no sábado a fim de o acusarem (vs. 2) em paralelo com a reação de Jesus ao
perceber a intenção do coração de seus adversários olhando-os com indignação e
tristeza (vs. 5ab). Jesus entra na sinagoga e os fariseus estão atentos para ver o que ele
vai fazer. O verbo “observar” está no tempo imperfeito em grego, isso significa que
era uma ação contínua. Eles observavam Jesus continuamente. Os fariseus estavam
examinando cada movimento do Senhor Jesus para ver se encontravam alguma falha.
Em paralelo, Jesus sabia o que se passava no coração dos fariseus. Em Lucas 6 está
escrito: “Os escribas e os fariseus observavam-no, procurando ver se ele faria uma
cura no sábado, a fim de acharem de que o acusar. Mas ele, conhecendo-lhes os
pensamentos...” (Lc 6.7–8).
Na sequência temos o último paralelo antes do centro do quiasmo onde Jesus fala ao
homem da mão ressequida trazendo-o para o meio da sinagoga (vs. 3) em contraste
com o silêncio dos seus adversários (vs. 4c). No início do Seu ministério, Jesus não
queria que os milagres fossem divulgados. Mas agora não. Jesus convida o homem
com a mão ressequida para ficar no centro da sinagoga de forma que todos pudessem
ver. Jesus poderia ter declarado ao homem para voltar depois do pôr do sol, quando o
sábado terminasse, mas não havia nada errado em curar um homem no sábado. Jesus
questiona seus adversários antes de curar o homem, e eles apenas ficam em silêncio.
Chegamos ao centro do quiasmo, a coisa mais importante, a pergunta retórica de
Jesus: “Então, lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal? Salvar
a vida ou tirá-la? Mas eles ficaram em silêncio” (vs. 4). Temos aqui uma ação
parabólica. Jesus ensinando por meio de uma cura. Não há nada no Antigo
Testamento sobre não ajudar as pessoas no sábado. Tudo o que a Bíblia diz é que não
se deveria trabalhar. Deveria ser um dia descanso. Os fariseus e os escribas sabiam o
que a Escritura dizia. Porém os rabinos ensinavam que ajudar alguém no sábado era
considerado trabalho. Se a vida de alguém estivesse em risco, a cura era permitida,
mas se não fosse o caso, a cura não era permitida. 169 A abrangência da tradição é
revelada também na seguinte decisão: se um prédio caísse no sábado, os escombros
169
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba: Editora Esperança, 1998, p. 126.
65
poderiam ser removidos para descobrir se alguma vítima estava morta ou viva. Se
viva, ela poderia ser resgatada, mas se estivesse morta, o corpo deveria ser deixado
até o entardecer.170 Essas interpretações dos fariseus eram rigorosamente aplicadas.
Infelizmente, mesmo que este homem não estivesse em perigo de morrer, esses
líderes não tinham compaixão por sua necessidade. Eles não se importavam, eles
apenas se preocupavam com suas regras severas para serem obedecidas. Aqui, com
uma pergunta, ele traz o sábado para a sua luz.171 A pergunta ele faz de uma maneira
que ela já traz em si a resposta. É óbvio que o bem sempre deve ser feito e o mal
proibido. O próprio fato de Jesus fazer esta pergunta aos judeus devotos já os acusa,
no sentido de que evidentemente o mais claro de tudo não está mais claro neles. Isto
levanta a acusação mais grave possível contra eles. O sábado deles não tem mais
poder para curar, só para matar. 172 Jesus tenciona fazer dele de novo um dia de
salvação, em que se pode servir a Deus em seu Reino. Eles conheciam a lei do Antigo
Testamento. É legítimo fazer o bem? Claro! É legítimo salvar uma vida? Claro! É
legítimo matar? Não. Todavia, eles não respondem. Eles estavam cheios de ódio,
querendo fazer mal e matar Jesus no sábado enquanto Jesus queria fazer o bem e
salvar uma pessoa.
170
Yoma, Mishnah 8:7.
171
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 153.
172
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 154.
173
KURUVILLA, Abraham. Mark: A Theological Commentary for Preachers. Eugene: Cascade
Books, 2012, p. 69.
66
Kusio ainda afirma que a mãe biológica e os irmãos de Jesus só poderiam ser sua
verdadeira família na medida em que seguissem a vontade de Deus, como faz a
multidão. A casa de Jesus, que ele alcançou em 3.20, é onde está sua comunidade,
Jesus fica em casa com a multidão, enquanto sua família fica do lado de fora e não
consegue se comunicar diretamente com ele.175 Os escribas e a mãe e os irmãos de
Jesus assim como os escribas, estão excluídos de sua comunidade, ou seja, sua
verdadeira família. 176 Desta maneira, Marcos mostra essa semelhança agora no
paralelo C - C’ onde temos os escribas afirmando que Jesus não está fora de si, antes
ele está possesso de Belzebu, um espírito imundo. Eles não o chamam de louco, mas
sim de uma pessoa má e endemoninhada. Eles não estão ali para aprender de Jesus,
mas querem prendê-lo para o matar. No centro do quiasmo (D) temos a explicação de
Jesus sobre quem é ele. Essa é a parte mais importante do texto. Jesus começa com
uma questão de simples lógica: “pode Satanás expelir Satanás?”. Como poderia Jesus
exorcizar servos de Satanás sendo Satanás? Isso é feito por um inimigo de Satanás e
não por um aliado ou por ele mesmo.177 Na sequência Jesus explica que um reino
dividido não prevalece e por fim, demonstra que ele é o valente mais poderoso que
174
KUSIO, Mateusz. Theological Implications of Markan Interpretative Intercalations. Ruch Biblijny i
Liturgiczny, v. 68, n. 3, p. 265–288, 2015. Disponível em:
http://cejsh.icm.edu.pl/cejsh/element/bwmeta1.element.ojs-doi-10_21906_rbl_21/c/21-22.pdf. Acesso
em: 2 dez. 2021.
175
WILHELM, Dawn Ottoni. Preaching the Gospel of Mark. Louisville: Westminster John Knox
Press, 2008, p. 59.
176
KUSIO, Mateusz. Theological Implications of Markan Interpretative Intercalations. Ruch Biblijny i
Liturgiczny, v. 68, n. 3, p. 265–288, 2015. Disponível em:
http://cejsh.icm.edu.pl/cejsh/element/bwmeta1.element.ojs-doi-10_21906_rbl_21/c/21-22.pdf Acesso
em: 2 dez. 2021.
177
KIRSCHNER, Estevan F. Amarrando o “valente”. in: PIERATT, Alan (ed.). Chamados para
Servir. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994, p. 41.
67
Satanás, que veio para subjugá-lo. Ele é o Messias prometido que viria para trazer
libertação aos cativos e pôr em liberdade os algemados (Is 61.1b). Pohl afirma que
esse texto ecoa Isaías 42.24-25, 53.12 e 63.1-3 que mostra o Servo de Deus (o
Messias) saqueando o valente.178
182
HAYS, Richard B. Echoes of Scripture in the Gospel. Waco: Baylor University Press, 2016, p.
128-132.
69
os discípulos não temem a força do vento e do mar, mas temem o criador e soberano
sobre os ventos e o mar, Jesus Cristo. 183 No paralelo seguinte (B - B’) temos o
questionamento dos discípulos a Jesus, perguntando-lhe se não se importava com eles.
Eles questionam seu poder, sua autoridade e seu caráter.184 Eles colocam em dúvida
quem é Jesus diante de circunstâncias adversas que poderiam tirar suas próprias vidas.
Pohl afirma que esse verso ecoa o Salmo 44.23: “Desperta! Por que dormes, Senhor?
Desperta! Não nos rejeites para sempre!”, duvidando assim como o antigo Israel
duvidou da providência de Deus. 185 Em resposta a isso, Marcos organiza o
questionamento de Jesus em B’, mostrando que o problema não está em quem é Jesus,
mas quem eles são: homens sem fé. No centro do quiasmo, temos a ênfase na ação
parabólica de Jesus que mostra quem ele realmente é: aquele que acalma o mar e os
ventos. O Deus que criou o mundo por sua palavra e agora por meio de sua própria
voz cessa a tempestade.186 Cavaco afirma que a tempestade sobressalta, mas Jesus
aterroriza.187 Antes, os discípulos temiam a tempestade, agora, temem a Jesus. Jesus
repreende o vento. Pohl afirma que esse verso ecoa o Salmo 106.9: “Repreendeu o
mar Vermelho, e ele secou; e fê-los passar pelos abismos, como por um deserto”.188 O
mesmo Deus que abriu o mar vermelho, é o Deus que está diante dos discípulos
acalmando a tempestade. Hays afirma que Marcos ecoa o Salmo 107.23-32 nessa
perícope.189 Marcos provocativamente deixa a pergunta “quem é este” sem resposta.
As palavras ficam suspensas sobre a história – deixando o leitor fornecer a resposta.
Para qualquer leitor versado nas Escrituras de Israel, só pode haver uma resposta
possível: é o SENHOR Deus de Israel que tem o poder de comandar o vento e o mar e
subjugar as forças caóticas da natureza. Marcos ressoa no fundo da história de Marcos
sobre Jesus acalmando o mar está uma passagem vívida do Salmo 107.23-32:
Os que, tomando navios, descem aos mares, os que fazem tráfico na
imensidade das águas, esses veem as obras do Senhor e as suas maravilhas
nas profundezas do abismo.
Pois ele falou e fez levantar o vento tempestuoso, que elevou as ondas do
mar. Subiram até aos céus, desceram até aos abismos; no meio destas
angústias, desfalecia-lhes a alma. Andaram, e cambalearam como ébrios, e
perderam todo tino.
183
OSBORNE, Grant R. Marcos. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 81.
184
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 167.
185
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 167.
186
OSBORNE, Grant R. Marcos. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 84.
187
CAVACO, Tiago. Milagres no Coração. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 119.
188
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 168.
189
HAYS, Richard B. Echoes of Scripture in the Gospel. Waco: Baylor University Press, 2016, p.
203-205.
70
No quiasmo 7 temos o primeiro paralelo (A - A’) onde no vs. 1, uma multidão segue
Jesus enquanto ele chega à outra margem, e ao final, no vs. 21, uma multidão vem ao
seu encontro, enquanto Jesus vai para o outro lado. Collins afirma que há um paralelo
entre essa perícope e a anterior. Marcos deseja mostrar por meio dos paralelos o poder
de Jesus sobre o mundo visível e o mundo invisível. Ele afirma:
este Jesus não é apenas um homem comum, ele tem autoridade e
poder sobre as forças da natureza e sobre os demônios. A resposta
190
KURUVILLA, Abraham. Mark: A Theological Commentary for Preachers. Eugene: Cascade
Books, 2012, p. 101.
71
para a pergunta: “Quem é este?” deve ser óbvia para o leitor, porque
somente Deus pode realizar atos tão surpreendentes e poderosos na
natureza e milagres em nossas próprias vidas.191
191
COLLINS, J. B. Mark 4:35-5:20: Diachronic and Synchronic Approaches. The Dunwoodie
Review, [s. l.], v. 26, p. 109–118, 2003. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGU0211206000443&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022.
192
WILHELM, Dawn Ottoni. Preaching the Gospel of Mark. Louisville: Westminster John Knox
Press, 2008, p. 86.
193
WATTS, R. E. Isaiah’s new exodus and Mark. Grand Rapids: Baker, 2000, p. 157.
194
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 173.
72
sequência temos C (vs. 6-8), a reação dos demônios diante de quem é Jesus. Eles
dizem: “... Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por
Deus que não me atormentes!” (Mc 5.7). Eles entendem que não são nada diante de
Jesus. Eles sabem que o destino deles está marcado. Eles sabem que seu fim chegará.
E com absoluta precisão, os demônios declararam quem é Jesus “Filho do Deus
Altíssimo”. 195 Seus discípulos nunca dirão isso em todo o evangelho de Marcos,
porém os demônios o afirmam. Anteriormente, os discípulos perguntam, depois que
Jesus transformou o mar tempestuoso em bonança, “Quem é este que até o vento e o
mar lhe obedecem?” (Mc 4.41). Agora os demônios respondem, “Jesus é o Filho do
Altíssimo”. Um título usado para identificar o verdadeiro Deus de Israel e distinguir
Cristo de todos os falsos deuses. Significa que Jesus possui a mesma autoridade e
essência ou natureza que o Seu Pai (cf. Lc 1.32, 35; Jo 10.30). Em paralelo temos C’,
com a reação dos gadarenos diante de quem é Jesus. Eles rogam (parakalein) a Jesus
que se retirasse da terra deles.196 Os demônios rogam (parekálei) a Jesus que não os
mandassem para fora do país. Apesar de ambos implorarem a Jesus, os demônios
sabem quem é Jesus, o dono da terra, ao passo que os gadarenos não sabem quem é
Jesus, e pensam ser os donos da terra. No centro do quiasmo temos D, a libertação do
homem endemoninhado e a demonstração do poder de Jesus sobre os demônios e o
mundo espiritual. Jesus é poderoso e com apenas uma ordem uma legião 197 de
demônios é expulsa daquele homem e enviada para uma manada de dois mil porcos,
precipitando-os despenhadeiro abaixo.
195
OSBORNE, Grant R. Marcos. São Paulo: Vida Nova, 2019, p. 82.
196
LEWIS, J. P. Farewell Gerasenes: a Bible study on Mark 5:1-20. Evangelical Review of
Theology, [s. l.], v. 30, n. 3, p. 264–270, 2006. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001634193&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
197
Uma legião de soldados romanos era composta por cerca de seis mil soldados.
73
Nesta inclusio temos cinco paralelos traçados por Marcos. Em primeiro lugar
temos duas pessoas que creem em Jesus. Jairo de um lado, um homem importante,
chefe da sinagoga em Cafarnaum. Era um homem religioso, moralmente respeitável,
rico, próspero e proeminente na sociedade. Marcos disse que Jairo era “um dos
principais” da sinagoga, o mais alto funcionário religioso da região, muito estimado e
muito poderoso.198 Ele dirigia os cultos, supervisionava a escola semanal, distribuía
dinheiro aos pobres e cuidava da sinagoga. Jairo tem fé em Jesus e mantem sua fé por
três vezes. Primeiro ele sabe que só Jesus pode curá-la e vai até Jesus. Segundo, ele
passa pelo atraso, mas não desiste. Terceiro, ele recebe a notícia da morte de sua filha.
Entretanto, Cristo diz: Não temas, crê somente. E Jairo manteve a sua fé. Em paralelo
temos a mulher enferma. Ela é uma anônima, uma excluída.199 Ela tinha posses, mas
agora não tem mais nada. Ela tinha uma hemorragia que, como judia, afetava todas as
partes de sua vida.200 Enquanto Jairo era um líder da sinagoga, ela era uma mulher
que não podia entrar na sinagoga. Jairo era conhecido, ela, nem mesmo tem seu nome
mencionado. Jairo era um homem rico, ela perdeu todos os seus bens em busca da
cura. Jairo teve a alegria de conviver doze anos com sua filhinha que agora estava à
morte, ela sofria há doze anos com uma doença que a impedia de ser mãe.201 Jairo fez
um pedido público a Jesus, ela aproximou-se de Jesus com um toque silencioso e
198
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 178.
199
KUSIO, Mateusz. Theological Implications of Markan Interpretative Intercalations. Ruch Biblijny i
Liturgiczny, v. 68, n. 3, p. 265–288, 2015. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn3869316&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 6 dez. 2021.
200
PARK, M. Y. S. Inerrancy and blood: women and Christology in Leviticus 12 and 15, and Mark
5:21-43. Presbyterion, [s. l.], v. 45, n. 1, p. 83–95, 2019. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn4508583&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
201
KURUVILLA, Abraham. Mark. Oregon: Cascade Books, 2012, p. 108.
74
anônimo. Jairo era um homem respeitado, ela uma mulher desprezada. Mas ela crê no
Senhor Jesus e por causa disso é curada e salva por ele.202
Em segundo lugar temos duas filhas que sofrem. Há duas filhas nessa história. Temos
a filhinha (tigátrion) de um chefe da sinagoga que tinha muitos servos. E uma filha
pobre, que não tinha ninguém que a apresentasse, defendesse. E é essa que Jesus
chama de filha (tigáter). Aquela mulher miserável se torna a filha do centro da
história. Jesus se importa com a filha sofredora e desprezada.
Em terceiro lugar temos duas multidões que não têm fé. Jesus estava sendo
comprimido por uma multidão (vs. 30-31) e pergunta: “quem me tocou nas vestes?”.
A ironia do texto é que Jesus sabia quem o tocou. A mulher enferma também sabia
que o tocou. Nós leitores sabemos quem o tocou. Quem não sabia eram justamente os
discípulos e a multidão. Eles não conhecem bem o cuidado, a misericórdia e o amor
de Jesus. Eles não entendem e não creem, mas aquela mulher crê no Senhor Jesus.
Assim como essa multidão que não entende Jesus e nem seu poder, temos uma
segunda multidão na casa de Jairo (vs. 38). Essa multidão ri de Jesus. Eles não o
conhecem também. Eles não sabem do seu cuidado, misericórdia e amor. Eles não
têm fé. Mas Jairo foi convidado a crer somente.203
Em quarto lugar temos uma mulher que estava morrendo por doze anos e a filha de
Jairo que morreu aos doze anos. A enfermidade daquela mulher começou na mesma
época em que a filha de Jairo nasceu.
Em quinto lugar temos uma mulher que é curada por tocar nas vestes de Jesus e uma
menina que é curada pelo toque de Jesus. Nos versos 25 a 27, Marcos narra usando
sete particípios até chegar ao verbo principal da oração, “tocou-lhe”. Temos sete
gerúndios até o verbo principal. 1: Havia doze anos, 2: vinha sofrendo, 3: muito
padecera, 4: tendo despendido tudo quanto possuía, 5: indo a pior, 6: tendo ouvido a
fama de Jesus, 7: vindo por trás dele, então ela toca em Jesus. Esse é o centro da
inclusio, a cura da mulher que creu em Jesus e tocou em suas vestes. A imundícia
contamina pelo toque. Porém isso não acontece com Jesus. Ela o toca e não é ele que
fica imundo, porém ela é purificada. Em paralelo temos o toque de Jesus que traz vida
à filha de Jairo. No verso 41 temos: “Tomando-a pela mão”. Ao tocar na menina
202
KURUVILLA, Abraham. Mark. Oregon: Cascade Books, 2012, p. 110.
203
HATTON, S. B. Comic ambiguity in the Markan healing intercalation (Mark 5:21-
43). Neotestamentica, [s. l.], v. 49, n. 1, p. 91–123, 2015. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn3869316&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 3 dez. 2021.
75
morta, não é Jesus quem fica imundo por tocar uma pessoa morta (Nm 19.11), antes,
ela é quem ressuscita. Pohl afirma que “as duas mulheres de 5.21-43 representariam
Israel desonrado e prostrado, para o qual raiou o tempo da salvação”.204
204
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 185.
76
O envio dos doze e seu retorno emoldura a rejeição e morte de João Batista. O
ensino central desta inclusio é que o trabalho missionário traz muitos frutos, mas
também inclui oposição e rejeição. No primeiro paralelo A - A’, temos o envio dos
discípulos para pregar, curar e expulsar demônios na dependência de Jesus e na
autoridade de Jesus, e seu retorno prestando relatório a Cristo sobre tudo que
pregaram e sobre suas curas e exorcismos. Eles são enviados por Jesus e colhem
frutos preciosíssimos, retornam felizes para Jesus. Mas nem sempre é assim. No
centro do quiasmo em B, temos a rejeição e morte de João Batista, o precursor de
Jesus, quando Herodes o rejeita como profeta e o prende por causa de sua pregação
contra o pecado. 205 Ele foi enviado por Deus e agora retorna para Deus. A sua
trajetória não é curta como o envio e retorno dos doze aqui, mas revelada a nós de
forma completa. João Batista é morto por pregar a verdade e por desejar agradar
apenas a Deus. João Batista é um modelo de discípulo aqui, tanto que o confundem
com Jesus.206 Eles pensavam que Jesus era João Batista ressuscitado. Sim, o Messias
morreria e ressuscitaria, mas não seria João. Outros estavam dizendo: "Ele é Elias". É
interessante, pois Elias também repreendeu corajosamente um rei mau em 1Reis 17.1,
o rei Acabe, que governou o reino do norte de Israel de 874 a 853 a.C. Elias
profetizou que uma seca viria sobre toda a terra como consequência da maldade do rei
Acabe (leia 1 Reis 17: 1–7). E semelhante à situação com João Batista, a vida de Elias
foi procurada por uma ímpia rainha Jezabel, mas ao contrário de Herodias que teve
sucesso, Jezabel não foi capaz de matar Elias. 207 Aqui, João Batista, por ser um
discípulo de Jesus e por pregar fielmente a Palavra de Deus, é morto. Nenhum
milagre foi realizado para a libertação de João. Na verdade, João deixou sua prisão
205
KUSIO, Mateusz. Theological Implications of Markan Interpretative Intercalations. Ruch Biblijny i
Liturgiczny, v. 68, n. 3, p. 265–288, 2015. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn3869316&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 6 dez. 2021.
206
SCHMITT, D. R. Anatomy of a Sermon: On Mark 6:14-29 by Mark Rouland. Concordia
Journal, [s. l.], v. 48, n. 1, p. 71–78, 2022. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiREM220507000238&lang=
pt-br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
207
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 198.
77
para o paraíso, por um repentino golpe de espada. O que ainda acontece hoje na
perseguição aos cristãos ao redor do mundo, enquanto cumprem o envio de Jesus para
fazerem discípulos. Sobre o paralelo entre Jesus e João neste texto, Miller afirma
Os paralelos entre Jesus e João são mais notáveis, especialmente no
que diz respeito à maneira de suas mortes. Tanto Jesus quanto João
são vozes proféticas que desafiam o status quo e que atraem a
atenção desfavorável das autoridades políticas no processo. Ambos
encontram sua morte porque um terceiro encontrou um 'momento
oportuno' (εύκαιρο) para traçar sua queda (6.21; 14.11). Ambos são
apreendidos (κρατέω) e amarrados (δέω) (6.17; 14,46 ; 15,1). Ambos
são vítimas inocentes que são injustamente executados (6,27; 15,24).
Os dois são "executados por governantes políticos que reconhecem
sua bondade" e que se sentem em conflito por encerrar a vida de um
homem justo (6.20, 26; 15.6-14). Em ambos os casos, o governante
sucumbe à pressão pública e os mata (6,26-27; 15,15).208
O centro deste quiasmo nos ensina quão pouca recompensa alguns dos melhores
servos de Deus recebem neste mundo. Uma prisão injusta e uma morte violenta foram
os últimos frutos que João Batista colheu em troca do seu trabalho. Seu descanso, sua
coroa, seu salário, sua recompensa, estão todos do outro lado da sepultura. Aqui, nesta
vida, ele deve semear, trabalhar, lutar e suportar a perseguição, e saber que haverá um
dia de retribuição. Ainda há uma colheita gloriosa por vir. Como diz a Escritura:
“Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem
ser comparados com a glória a ser revelada em nós” (Rm 8.18). E “ Porque a nossa
leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda
comparação” (2Co 4.17).
208
MILLER, G. D. An intercalation revisited: Christology, discipleship, and dramatic irony in Mark
6.6b-30. Journal for the Study of the New Testament, [s. l.], v. 35, n. 2, p. 176–195, 2012. DOI
10.1177/0142064X12462659. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn3778773&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 4 dez. 2021.
78
209
KURUVILLA, Abraham. Mark: A Theological Commentary for Preachers. Eugene: Cascade
Books, 2012, p. 133s.
210
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 206.
211
WATTS, R. E. Isaiah’s new exodus and Mark. Grand Rapids: Baker, 2000, p. 179.
79
propõe uma solução inadequada em C, são capacitados para serem agentes de Deus
suprindo a necessidade das pessoas ao seu redor de forma abundante no paralelo de
C’. A ordem de Jesus aos discípulos de darem eles mesmos de comer não era para
envergonhar os discípulos, mas para que dependessem dele.212 Quando Jesus viu a
multidão faminta naquele deserto, já sabia o que estava para fazer. Quando Jesus dá
ordens impossíveis de realizar, ele está mostrando que a obra que eles fariam não é
pelo seu próprio poder. Mas os discípulos estão incrédulos. A possibilidade de que
Jesus pudesse criar os alimentos necessários nunca passou por suas cabeças. Eles
estavam tão focados no problema e na necessidade de encontrar uma solução humana,
que deixaram de considerar o poder divino de seu Senhor. Pelo menos alguns
daqueles discípulos experimentaram o poder de Jesus nas bodas de Caná, onde ele
transformou água em vinho para muitos. Eles o viram acalmar uma tempestade.
Entretanto, sua fé ainda é fraca. Porém, Jesus usa as mãos dos discípulos para
abençoar a multidão. O milagre aconteceu nas mãos de Jesus, não nas mãos deles,
pois somente ele pode abençoar e multiplicar. Porém, Jesus os faz garçons,
abençoadores. Eles não são fabricantes, mas distribuidores das bênçãos de Jesus. No
próximo paralelo (D – D’) temos primeiramente os cinco pães e dois peixinhos sendo
apresentados para Jesus. Algo ínfimo diante de mais de cinco mil homens. Entretanto,
a forma de provisão de Deus sempre começa com o que já temos. Jesus ensina aos
discípulos que o primeiro passo não é medir os recursos, mas confiar, baseado em sua
palavra, que ele atenderá às suas necessidades. Aquilo não era suficiente nem para
eles. Entretanto, Jesus estava aproveitando esta oportunidade para mostrar aos
discípulos que o que eles têm é o suficiente e muito mais se entregarem nas mãos dele
e se confiarem nele. Por fim, o centro do quiasmo é a multidão (como ovelhas que
não tem pastor) assentada em grupos na grama verde, uma alusão ao Salmo 23, com a
divina provisão sendo distribuída pelos discípulos. Ao mesmo tempo que as mãos dos
discípulos servem a eles, eles devem servir uns aos outros e comer uns com os outros.
Eles são cuidados pelo Pastor e agora estão cuidando uns dos outros. Aquelas ovelhas
que não tinham pastor, agora estão diante do Bom Pastor que as conduz às águas
tranquilas e verdes pastos para alimentá-las.
212
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 323.
80
Ao dizer “não temas”, Jesus ecoa todas as palavras ditas pelo Senhor no AT aos seus
servos (Gn 15.1; 21.17; 26.24; Nm 21.34; Dt 1.21; 3.2; Js 1.9; Jz 6.23; 2Rs 19.6; Is
41.10, 13-14; 43.1, 5, 44.2, Jr 1.8; Dn 10.12; Jl 2.21; Sf 3.16). Além disso, temos aqui
a afirmação de Jesus: “Eu sou”. Jesus atribui a si o nome de Deus no Antigo
Testamento (Yahweh que quer dizer Eu Sou, traduzido para o grego Egó Eimí). No
Antigo Testamento, quando Moisés pergunta ao Senhor qual é o seu nome, Deus lhe
responde: “EU SOU O QUE SOU” (Êxodo 3.14). Em Deuteronômio 32.39 temos:
“Vede agora que eu sou, eu somente, e nenhum outro Deus além de mim”. O nome
que Deus se apresenta ao seu povo é Yahweh (YHWH), que significa EU SOU.
Berkower afirma: “O EU SOU de Cristo, absoluto e sem predicado, tem o mesmo
213
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 211.
81
alcance que o EU SOU de Iavé.”.214 Além disso, Watts afirma que esse verso ecoa
Isaías 43.1.11, tanto quando Deus diz em Isaías 43.1: “Não temas”, quanto nos versos
3 e 11 quando ele diz: “Eu Sou”.215
Em paralelo, temos outro milagre, a cura do surdo-gago, em que os discípulos
novamente ficam maravilhados. No próximo paralelo temos dois momentos de curas
de Jesus, sendo o primeiro em Genesaré, na região da Galiléia, onde Jesus cura muitos
judeus. Em C’ temos Jesus indo à Tiro, entre gentios, e ali cura apenas uma pessoa. É
interessante que ali Jesus está ensinando a seus discípulos que há pão para todos. Uma
mulher grega de origem siro-fenícia vem até Jesus. Mas, assim como a mulher com
fluxo de sangue, ela é um paradigma de fé. Vejamos o paralelo enfatizado por
Marcos:
A resposta do Senhor para ela é um ditado muito usado pelos judeus naquela época
em relação aos gentios: ‘Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos”. Os judeus consideravam todos os gentios como cães. Jesus apresenta
um ditado judaico, que era defendido pelos judeus da época. Os judeus chamavam os
gentios de cães. Jesus usa uma parábola. Jesus usa provérbios populares para ensinar.
Ele usa um provérbio popular para ensinar a multidão no Sermão do Monte:
“Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (Mt 5.43).
Essa mulher passa no teste. Ela é humilde. É como se dissesse: “se o que tens para
mim são migalhas, aceito de bom grado”. Ela é a primeira pessoa no evangelho de
Marcos a ouvir e compreender uma parábola de Jesus. Ele não a está relegando, pelo
contrário, em seguida ele a elogia: grande é a tua fé (Mt 15.28). Como seria possível
isso? Ele já sabia de sua fé.216 Ele apenas queria mostrar isso aos seus discípulos, pois
214
BERKOUWER, G. C. A Pessoa de Cristo. São Paulo: ASTE, 2011, p. 109.
215
WATTS, R. E. Isaiah’s new exodus and Mark. Grand Rapids: Baker, 2000, p. 161.
216
RHOADS, D. M. Jesus and the Syrophoenician Woman in Mark: A Narrative-Critical
Study. Currents in Theology and Mission, [s. l.], v. 47, n. 4, p. 36–48, 2020. Disponível em:
82
a fé deles era pequena (Mc 4.40). Essa mulher não é orgulhosa como os fariseus
eram. Eles eram hipócritas, e foram descortinados por Jesus. Essa mulher também,
mas como um paradigma positivo. No centro do quiasmo temos Jesus expondo a
hipocrisia dos fariseus e tornando puros todos os alimentos. Sobre isso Rhoads
afirma:
O episódio central aqui – a declaração de que todos os alimentos são
limpos – fornece as condições para uma transição na trama de uma
alimentação em território judeu para uma alimentação em território
gentio. Como podemos ver, o episódio seguinte da mulher siro-
fenícia é o ponto em que ocorre o avanço para uma missão entre os
gentios. Como tal, nosso episódio, com seus detalhes particulares,
não é uma cura genérica que poderia ocorrer em qualquer outro lugar
da história. Pelo contrário, é o ponto de virada em uma importante
subtrama do Evangelho.217
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGU0201123000513&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 19 out. 2022.
217
RHOADS, D. M. Jesus and the Syrophoenician Woman in Mark: A Narrative-Critical
Study. Currents in Theology and Mission, [s. l.], v. 47, n. 4, p. 36–48, 2020. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGU0201123000513&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 19 out. 2022.
83
218
OWENS, C. “Hear, O Israel”: exegetical blindness and Mark 7:31-37. Sewanee Theological
Review, [s. l.], v. 56, n. 3, p. 251–261, 2013. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001951946&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 19 out. 2022.
84
Adolf Pohl também não consegue explicar o porquê Jesus faz a cura em duas etapas
afirmando apenas:
Na sequência ficamos sabendo que o homem não nascera cego, já
que sabe como eram as árvores. Seus nervos óticos foram
reanimados, mas ainda não funcionavam direito... Jesus, na ocasião,
não acabou com a cegueira de modo geral. Sua capacidade para
tanto, que evidentemente existia e se manifestou, retrocedeu
novamente e limitou-se a um espaço oculto.220
É fato que o poder de Jesus não falhou, tampouco era necessária a fé do cego para ser
curado. Mas, sim, há uma razão que não apenas Jesus sabe, mas Marcos nos deixa
explicito não por meio de palavras, mas no paralelismo do texto. Jesus opera essa cura
219
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 411.
220
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 243.
86
como uma ação parabólica que aponta para a situação espiritual de seus discípulos.
Marguerat afirma que
lidas em sequência, uma depois da outra, as cenas se iluminam
reciprocamente. A difícil cura do cego funciona simbolicamente: ela
ilustra a dificuldade para o homem de captar, de entender, de ter
acesso à verdade, ainda que Jesus intervenha nesta compreensão... o
que está em jogo é a identidade de Jesus como Cristo.221
Eles até enxergam quem é Jesus, mas de forma muito distorcida. Eles também veem
“como árvores”. Eles pensam que enxergam, mas Marcos logo nos mostrará que sua
percepção é como a do cego, antes de ser plenamente curado. Ao final, temos a cura
do cego de Jericó, que aponta para Jesus como o filho de Davi, aquele que dá vista
aos cegos. Agora, ele entrará em Jerusalém, e logo seus discípulos poderão enxergar
claramente como esses dois cegos. Na sequência temos três paralelos (B - B’- B”) que
são os três momentos em que Jesus prediz sua morte e ressurreição (8.27-32, 9.30-32,
10.32-34). Jesus está indo para Jerusalém para morrer. Esse foi o propósito de sua
vinda, e ele sabe o que acontecerá com ele. 222 Por três vezes ele afirma que será
entregue nas mãos dos sacerdotes e fariseus, será escarnecido e morto, mas ao terceiro
dia ressuscitará.223 Watts afirma que essas três alusões ecoam o texto de Isaías 53.224
Em Marcos 8.32 é dito que “E isto ele expunha claramente”. Entretanto, temos na
sequência a cegueira dos discípulos no paralelo (C – C’ – C”). Aqui vemos que eles
não compreenderam ainda quem é Jesus e nem qual é sua missão. Watts afirma em
que nesse texto, se inicia o caminho do Novo Êxodo de Yahweh (8.21-10.45). Além
disso, ele afirma que o que Yahweh prometeu fazer para o Israel “cego” e “surdo”
levando-os por um caminho que não conheciam (Isaías 40-55), ecoa aqui na jornada
de Jesus para Jerusalém e sua tripla afirmação do porquê está indo para Jerusalém.225
Os discípulos ainda não entendiam nem o propósito da vinda de Jesus, e nem quem
ele era verdadeiramente. Jesus pergunta aos discípulos quem eles diziam que ele era
(Mc 8.29), ao que Pedro responde: Tu és o Cristo! Aparentemente ele vê e entende.
221
MARGUERAT, Daniel. O ponto de vista. São Paulo: Edições Loyola, 2018, p. 48.
222
AYE, N. S. N. The Passion and Resurrection Predictions According to Mark. The Dunwoodie
Review, [s. l.], v. 26, p. 119–149, 2003. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGU0211206000444&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
223
PROCTOR, M. “After three days” in Mark 8:31; 9:31; 10:34: subordinating Jesus’ resurrection in
the second Gospel. Perspectives in Religious Studies, [s. l.], v. 30, n. 4, p. 399–424, 2003. Disponível
em: https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001379388&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
224
WATTS, R. E. Isaiah’s new exodus and Mark. Grand Rapids: Baker, 2000, p. 222.
225
WATTS, R. E. Isaiah’s new exodus and Mark. Grand Rapids: Baker, 2000, p. 250.
87
Porém, após Jesus explicar o porquê está indo para Jerusalém, temos a primeira
reação (C) de Pedro repreendendo a Jesus. Ele não entende ainda, tem uma visão
desfocada.226 Após a segunda afirmação de que Jesus morreria e ressuscitaria, temos a
segunda reação dos discípulos (C’). Enquanto o mestre está se revelando como o
servo sofredor, seus discípulos estão no caminho discutindo quem é o maior (Mc
9.33-37). Após a terceira predição de morte e ressurreição, temos a terceira reação dos
discípulos (C”). Tiago e João se aproximam de Jesus, aquele que morrerá em uma
cruz entre dois malfeitores, o justo por injustos, e pedem para assentarem-se um à sua
direita e outro à sua esquerda (Mc 10.35-37). Eles pensam em tronos, enquanto seu
mestre caminha para a cruz. Em seguida temos as respostas de Jesus às reações de
seus discípulos no tríplice paralelo (E – E’ – E”). Em face do erro de seus discípulos,
Jesus os ensina. Três vezes eles reagem mal, três vezes Jesus os reprova, exorta e
ensina. 227 Na primeira resposta (E), Jesus repreende a Pedro, mostrando que seus
pensamentos eram provenientes de Satanás e não da verdade. Na sequência ele ensina
seus discípulos que deveriam tomar a cruz e segui-lo. Não deveriam desejar ganhar a
vida, antes, perder sua vida por causa de Jesus e do evangelho. Na segunda resposta
(E’), depois de haver disputa sobre quem era o maior, Jesus ensina aos discípulos que
quem quer ser o primeiro, seja o último, e quem quer ser o maior, seja aquele que
serve (Mc 9.38-50). Por fim, na terceira resposta (E”), Jesus ensina, não apenas a
Tiago e João, uma vez que não apenas eles desejavam tronos e serem importantes,
mas também os outros, que quem quer ser o primeiro, seja o servo de todos (Mc
10.38-45). Em seguida temos o paralelo (E – E’), em que dois outros milagres
ocorrem entre a cura dos dois cegos, justamente porque os discípulos também não
compreendem o que acontece. O primeiro milagre (E) é a transfiguração de Jesus (Mc
9.2-8). Jesus revela quem ele é para seus discípulos. Ele não é apenas um homem
comum, ou um messias político, ele é o próprio Deus encarnado. O segundo milagre
(E’) é a cura do jovem possesso. Seus discípulos, que discutiam com os fariseus,
agora se veem diante de alguém que precisava de ajuda, porém não puderam ajudá-lo.
Jesus, ao descer do monte, expulsa o demônio e devolve o menino totalmente são a
seu pai (Mc 9.14-27). Os discípulos veem os milagres e o ensino de Jesus e o
interpelam para que lhes explique. Então temos o próximo paralelo (F – F’ – F”) onde
226
MARGUERAT, Daniel. O ponto de vista. São Paulo: Edições Loyola, 2018, p. 48.
227
WILHELM, Dawn Ottoni. Preaching the Gospel of Mark. Louisville: Westminster John Knox
Press, 2008, p. 146s.
88
Jesus ensina novamente a seus discípulos diante da sua não compreensão frente aos
milagres e ensino. Primeiramente, Jesus explica após a transfiguração (F) sobre o
Elias que já veio, e era João Batista. Em segundo lugar, Jesus explica após curar o
jovem possesso (F’) o porquê seus discípulos não puderam expulsá-lo, uma vez que
aquela casta não sairia se eles não estivessem em consagração a Deus. Por fim, a
terceira explicação (F”) se dá após três momentos. O primeiro é a pergunta capciosa
dos fariseus sobre o divórcio, e Jesus remonta à criação para mostrar a
indissolubilidade do casamento diante de Deus. O segundo momento é quando seus
discípulos apartam as crianças de Jesus. Essa era a atitude que os fariseus tomavam.
Não se preocupavam em ensinar crianças. Porém Jesus não é como os fariseus e
mestres da lei. Seus discípulos ainda não enxergam isso, ainda estão “cegos”. Jesus
diz: “Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de
Deus”. E então as recebe e as abençoa. O terceiro momento é a conversa com o jovem
rico. Ele pensa que serve a Deus, porém não percebe que seus joelhos estão dobrados
diante da riqueza. Jesus descortina isso para ele e para seus discípulos. Após esse
grande paralelismo, agora Marcos nos revela Jesus chegando a Jerusalém. Ele será
recebido como rei, com ramos e toda pompa. Seus discípulos ao ver isso, pensarão
que é chegada a hora de assentarem-se em tronos com ele, porém em breve, após sua
ressurreição enxergarão como o sol do meio-dia.
228
BRECK, John. The shape of biblical language: chiasmus in the Scriptures and beyond. Creswood:
St Vladimir’s Seminary Pres, 2008, p. 83.
89
Temos neste quiasmo o elemento central (C) a voz de Deus, o Pai, que vem da
nuvem afirmando que Jesus é o Filho de Deus. Esse é o tema central do evangelho de
Marcos (1.1), e aqui temos uma repetição desse tema, que propositalmente é o centro
desse quiasmo. Primeiramente, temos o paralelo A - A’ onde Jesus se revela de outra
maneira aos seus discípulos. Anteriormente, ele perguntou a eles, quem eles diziam
ser ele, ao que respondem ser Jesus, o Cristo. Agora, na transfiguração, Jesus exibe
uma mudança externa que vem de seu interior, sua verdadeira natureza, sua
divindade. A natureza de Cristo, é claro, não poderia mudar; apenas sua aparência. A
glória de Jesus brilhou através de sua humanidade e suas vestes, demonstrando aos
discípulos o que Jesus realmente era por dentro. A glória, que era a natureza divina e
eterna de Jesus, brilhou em seu corpo, por um breve tempo e em um grau limitado.229
Jesus possuía glória desde a eternidade (João 17.5), mas a velou até esse momento.
Sua glória será totalmente revelada a todo o mundo no futuro, quando “vereis o Filho
do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (Mc
14.62). A transfiguração em si não é um milagre, mas um leve momento de
descortinar de quem é Jesus para seus discípulos. Enquanto Jesus exibia sua glória,
ele demonstra aos seus discípulos que o que acontecerá adiante, está debaixo da sua
vontade e controle. Se iria sofrer, ser rejeitado e morto, mas ele ainda estava no
controle. A Transfiguração, portanto, serve para confirmar que o sofrimento que Jesus
suportará não é incompatível com sua glória. É um prenúncio do tempo em que Deus
entronizará gloriosamente Jesus após a degradação na cruz. Wilhelm afirma que há
um eco aqui de Daniel 7.9: “Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o
Ancião de Dias se assentou; sua veste era branca como a neve, e os cabelos da
cabeça, como a pura lã; o seu trono eram chamas de fogo, e suas rodas eram fogo
ardente”. 230 Na sequência temos B – B’, o aparecimento e desaparecimento de
Moisés e Elias. Moisés e Elias são comumente aceitos como os ilustres representantes
“da lei e dos profetas”, que deram testemunho de Jesus. A presença deles com Jesus
testificou a ele como o verdadeiro Messias. Ao mesmo tempo temos a incompreensão
dos discípulos e por causa disso, Jesus os ordena que não contassem a ninguém.
Ainda chegaria o tempo em que revelariam tão grande momento. Mas agora, eles não
tinham condições, pois não compreendiam ainda. No centro do quiasmo, a voz de
229
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 431.
230
WILHELM, Dawn Ottoni. Preaching the Gospel of Mark. Louisville: Westminster John Knox
Press, 2008, p. 159.
90
Deus Pai (C). Essa é a segunda vez que Deus Pai fala em Marcos, a primeira vez foi
no batismo de Jesus em Marcos 1.11, quando diz: “Este é meu Filho Amado em quem
me comprazo”. A primeira declaração foi dirigida ao próprio Jesus, mas aqui a
declaração é dirigida aos três discípulos. A fala em meio à nuvem ecoa com a nuvem
de glória que guiou Israel para fora do Egito, que repousava acima do Propiciatório da
Arca da Aliança no Santo dos Santos. A ordem de ouvir Jesus lembra a profecia do
AT do profeta como Moisés, mas maior do que Moisés, Jesus. “O Senhor , teu Deus,
te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele
ouvirás” (Dt 18.15). A voz de Deus, o Pai, assegurou aos discípulos que embora os
judeus rejeitassem Jesus e os romanos o executassem, ele ainda agradava ao Pai (cf.
1.11). Além disso revela a superioridade de Cristo sobre Moisés. Essa revelação
encoraja cada discípulo de Jesus. A humilhação do Filho do Homem dará lugar à sua
glorificação. Ele certamente retornará à terra e estabelecerá o reino que os profetas
bíblicos previram.
Temos aqui um eco, o relato batismal subsequente vincula implicitamente
Jesus com o “filho” real davídico do Salmo 2. 231 Além disso, em vista da
proeminência dada a Isaías 40 em Marcos 1.2-3, talvez também devêssemos ouvir
conotações mais fracas aqui de Isaías 42.1: “Aqui está o meu servo, a quem sustento,
o meu escolhido, em quem minha alma se deleita; Eu coloquei meu espírito sobre ele;
ele trará justiça às nações.” Se a voz celestial em Marcos 1.11 está ecoando esta
passagem, a fusão implícita entre o ungido rei davídico do Salmo 2.7 e o servo de
Isaías 42.1 é significativo para a compreensão A cristologia de Markan.68 A mesma
fusão ocorre novamente nas palavras da voz que fala das nuvens na história da
transfiguração: “Este é meu Filho, o Amado ( ὁ υἱός eu ὁ ἀγ απ ητός ); escute-o!”
(Marcos 9.7). Assim, Marcos reforça duplamente a aplicação desse título real a Jesus.
Na história batismal, a voz celestial se dirige ao próprio Jesus; no relato da
transfiguração, os discípulos atemorizados.232
Marcos agora faz um paralelo entre Judas e Maria. Ele emoldura a ação de
Maria em ungir Jesus com a traição de Judas. Esses dois discípulos são colocados em
evidência e em comparação.
233
KUSIO, Mateusz. Theological Implications of Markan Interpretative Intercalations. Ruch Biblijny i
Liturgiczny, v. 68, n. 3, p. 265–288, 2015. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn3869316&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 6 dez. 2021.
234
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba, Editora Esperança, 2018, p. 324.
92
MARIA JUDAS
Deu tudo que tinha a Jesus Tomou tudo que podia de Jesus
Lembrada para sempre pelo seu Lembrado para sempre pela sua
serviço traição
Em primeiro lugar, temos o plano diabólico dos sacerdotes e escribas de prender Jesus
à traição. Eles não se importam em sujar suas mãos, desde que Jesus seja morto. Na
sequência temos o contraste, uma discípula sem posição social e sendo uma mulher,
derrama um bálsamo sobre a cabeça de Jesus. Ela entrega um sacrifício diante de
Jesus que custou cerca de trezentos denários (avaliado pelo próprio Judas, Mc 14.5 e
Jo 12.5), quase um ano de trabalho de um trabalhador comum daquela época. Um
sacrifício profuso, puro e precioso diante do seu Senhor. Ela unge Jesus no momento
certo.235 Posteriormente, Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, vão até o túmulo
para ungir Jesus, porém ele não estava mais lá. Em seguida, temos Judas em outra
cena. Ele é um homem, ele é um dos doze, ele é o tesoureiro do grupo. Porém, ele está
traindo Jesus. Aparentemente, todo aquele “desperdício” de bálsamo foi a gota d’água
para Judas, então ele decide entregar Jesus por trinta moedas de prata. Esse valor não
era incomum em Israel, uma vez que estava presente na Lei de Moisés, que diz: “Se o
boi chifrar um escravo ou uma escrava, dar-se-ão trinta siclos de prata ao senhor
destes, e o boi será apedrejado” (Êx 21.32). Ou seja, Judas “vende” Jesus pelo preço
235
OSEI-BONSU, R. The Anointing of Jesus Christ at Bethany: Mark 14:1-11 Examined. Valley View
University Journal of Theology, [s. l.], v. 3, p. 47–59, 2014. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAi9KZ190722001892&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 14 out. 2022.
93
de um escravo. Ele sacrifica a Jesus, e recebe as trinta moedas. Temos uma mulher
que se sacrifica por Jesus, seu Senhor, ao passo que Judas, se coloca como senhor e
sacrifica a Jesus.
Sobre essa inclusio, Malick afirma
Ao contrário da mulher que mostra sua devoção a Jesus ungindo sua
cabeça com óleo caro, Judas trai seu mestre. Ao contrário da mulher
que derrama um perfume que vale quase 300 denários, Judas recebe a
promessa de uma soma não especificada de dinheiro "para entregar
Jesus". Ao contrário dos que vivem em Betânia, que desprezam a
mulher pelo bom trabalho que ela fez, os principais sacerdotes se
regozijam com a traição de Judas. Ao contrário da mulher que é
elogiada por Jesus por levar o que tinha para realizar uma boa obra
na preparação para seu sepultamento, Judas pega o conhecimento que
possui e faz uma obra de iniquidade.236
237
HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 699.
95
Em paralelo temos A’, onde agora Pedro não apenas segue de longe, mas nega
veementemente a Jesus. Ele por três vezes nega a Jesus, e na terceira vez começou a
praguejar (anathematízo) e jurar. Ele se coloca sob anátema, sob maldição, caso
conhecesse a Jesus. E ele conhecia, não apenas conhecia, mas era o discípulo mais
próximo de Jesus, ele foi o primeiro nome citado entre os doze, quando escolhidos
por Jesus em Marcos 3.16.
Na sequência temos dois julgamentos injustos (B – B’). Enquanto seu discípulo o
abandona, e ninguém resta para defender-lhe, agora ele está diante dos principais
sacerdotes e todo o Sinédrio que não quer julgar Jesus, antes atuam como promotores,
procurando algum testemunho para acusá-lo (vs. 55). Como não conseguiam acusá-lo,
o sumo-sacerdote agora atua como promotor e passa a questionar a Jesus procurando
condená-lo. Ele faz a pergunta que retoma o tema central do Evangelho de Marcos:
“És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?” (vs. 61). A resposta de Jesus é um dos
pontos altos do Evangelho. Ele diz: “Eu sou, e vereis o Filho do Homem assentado à
direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (vs. 62). Botner afirma que
esse verso ecoa Daniel 7.13-14, bem como os Salmos 2.2,7 e 110.1.239 Deus, o Pai,
já havia revelado que Jesus era o Filho de Deus no batismo (Mc 1.11) e na
transfiguração (Mc 9.7). Os demônios já haviam afirmado que ele é o Filho de Deus
(Mc 3.11, 5.7). Agora, o próprio Jesus afirma quem ele é: EU SOU! Ele é o Cristo, o
Filho do Deus Bendito. Apesar de traído e abandonado por seus discípulos, ele é o
Filho do Homem de Daniel 7.13-14. Seu Reino é eterno e não tem fim. Agora ele está
subjugado, humilhado, porém ele conquistará o direito de assentar-se à destra de
Deus, e voltará nas nuvens para destruir todo o mal. Ele é o Deus Todo-Poderoso.
Eles o matarão, mas ele continua sendo Deus. Ele é aquele que purificou um leproso,
que curou a sogra de Pedro. Ele perdoa pecados e fez um paralítico andar. Ele tem
238
HUIZENGA, L. A. The confession of Jesus and the curses of Peter: a narrative-Christological
approach to the text-critical problem of Mark 14:62. Novum testamentum, [s. l.], v. 53, n. 3, p. 244–
266, 2011. DOI 10.1163/156853611X563451. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001855639&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 21 out. 2022.
239
BOTNER, M. A Sanctuary in the Heavens and the Ascension of the Son of Man: Reassessing the
Logic of Jesus’ Trial in Mark 14.53-65. Journal for the Study of the New Testament, [s. l.], v. 41, n.
3, p. 310–334, 2019. DOI 10.1177/0142064x18821544. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAi9KZ190311000873&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 21 out. 2022.
96
poder sobre o mundo visível e invisível. Os demônios se curvam diante dele. Ele
acalmou tempestades. Ele curou uma mulher com fluxo de sangue e ressuscitou uma
menina. Ele andou sobre as águas. Ele multiplicou pães e peixes. Ele fez um paralítico
andar. Ele é. E por ser o Cristo, o Filho do Deus Bendito, ele é condenado à morte, e
morte de cruz.
Em paralelo temos B’, outro julgamento injusto, agora por um gentio, Pilatos. Ele não
encontrou crime algum em Jesus, e seu desejo era de libertá-lo. Ao mesmo tempo, ele
é um governante corrupto, e pelo desejo de manter-se no poder e ganhar simpatia do
povo, ele condena Jesus aos açoites e à morte de cruz.
Em terceiro lugar, temos o paralelo C – C’, onde Jesus é condenado à morte e
executado por ser o Filho do Deus Bendito. Primeiramente os judeus o humilham.
Eles cospem nele, em sinal de reprovação, humilhação e desprezo. Eles cobrem seu
rosto e dão-lhe murros dizendo: “Profetiza quem te bateu”. Eles zombam do ofício
profético de Jesus. Possivelmente, eles vendaram Jesus e o desafiaram a identificar
seus agressores por causa do texto de Isaías 11.2-4, que diz que o Messias que virá
não julgará por sua vista. Então eles zombam dele. Se és o Messias, então diga quem
foi que te bateu. E ele sabia. Porém, como ovelha muda, não abriu a boca. Na
sequência em C’, temos a humilhação de Jesus por parte dos soldados romanos. Todo
um destacamento de soldados se une para zombar dele e crucificá-lo. Agora, Jesus já
está todo dolorido, eles despem suas roupas, ele está nu. Seus amigos o abandonaram.
Os soldados, querendo zombar daquele que é chamado o Rei dos Judeus, e o
humilham pondo-lhe uma coroa de espinhos na cabeça e uma túnica púrpura. Eles o
escarnecem batendo em sua cabeça com um cetro de madeira que colocaram em suas
mãos. E novamente, Jesus não reage. Provavelmente ele está completamente nu. Uma
vergonha que ecoa a vergonha de Adão e Eva no dia em que se tornaram pecadores.
Ele experimenta a mesma vergonha de nossos pais. Entretanto, Adão teve a dignidade
de ter seu corpo coberto, mas Jesus não. E agora ele é açoitado por tiras de couro com
pedaços e ossos pregados na ponta. Um soldado de cada lado batendo de cada vez
para não dar tempo nem de respirar. As tiras pregam na carne e arrancam pedaços de
carne e expõe ossos e talvez até mesmo órgãos internos. Não é de admirar que ele não
consegue nem carregar a cruz, e os soldados não o obrigam, pois sabem que ele não
aguentaria. Simão, o cireneu então carrega a sua cruz. Ele é forçado pelas autoridades
a carregar a cruz. Os que estão lá provavelmente pensam: Veja, um homem inocente
carregando a cruz de um condenado. É uma grande ironia. Porque ali temos um
97
Nesse momento o Pai atende a oração de Cristo para perdoá-los, pois não sabiam o
que faziam. Assim era aquele centurião. Agora ele, que estava cego, enxerga. Jesus
nasce e é adorado, agora, na sua morte, Jesus também é reconhecido como Deus.
Marcos nesse momento ecoa Marcos 1.1, Jesus é o Cristo, o Filho de Deus.
Sobre a interpretação da afirmação desse centurião, Iverson afirma:
Embora um número crescente de estudiosos tenha argumentado que a
resposta do centurião é um pronunciamento ambíguo ou uma forma
irônica de zombaria, essas interpretações estão amarradas a
perspectivas literárias que não levam em conta a relação dinâmica
entre intérprete e público. ... Em suma, apreciar a confissão como
uma afirmação sincera que reflete uma compreensão genuína de
Marcos da identidade de Jesus é coerente com uma interpretação
240
HOOKER, Morna D. The Gospel according to St Mark. London: Bloomsbury Publishing PLC,
2001, p. 379.
241
STEVENSON, P. K. The crucified God: Mark 15:25-39. Direction, [s. l.], v. 41, n. 1, p. 148–164,
2012. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001902542&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022.
98
Justamente por não fazer uma leitura da estrutura do evangelho, alguns estudiosos
afirmam que a exclamação do centurião na morte de Jesus dizendo ser ele o Filho de
Deus seria mais uma zombaria. Considerando apenas o texto em si, isso poderia ser
levado em conta, dado que muitos zombavam de Jesus. Entretanto, essa afirmação é
chave no evangelho, como vimos na primeira inclusio (Mc 1.1 – todo o evangelho -
Mc. 15.39). Huizenga afirma:
Como, no mundo da história, o centurião saberia alguma coisa sobre
Jesus ser o “Filho de Deus”? Por que ele diria: “Verdadeiramente
este homem era o Filho de Deus!” em vez de “verdadeiramente este
homem era o rei dos judeus”, a acusação sob a qual ele foi
condenado por Pilatos (Marcos 15:2, 9, 12), as palavras com que os
soldados zombam de Jesus (15:18), as palavras do título (15:26)? Se
Jesus responde à pergunta dos sumos sacerdotes de maneira decisiva,
a expressão precisa do centurião faz sentido.243
Dessa maneira, a afirmação desse centurião aponta para sua conversão e revela
exatamente quem é Jesus, o Filho de Deus.
242
IVERSON, K. R. A centurion’s “confession”: a performance-critical analysis of Mark
15:39. Journal of Biblical Literature, [s. l.], v. 130, n. 2, p. 329–350, 2011. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001845443&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022.
243
HUIZENGA, L. A. The confession of Jesus and the curses of Peter: a narrative-Christological
approach to the text-critical problem of Mark 14:62. Novum testamentum, [s. l.], v. 53, n. 3, p. 244–
266, 2011. DOI 10.1163/156853611X563451. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0001855639&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 21 out. 2022.
99
Eles enviam mulheres para se arriscarem em seu lugar. 244 Marcos cita Maria
Madalena, Maria, mãe de Tiago e Salomé presentes no momento em que Jesus morre
na cruz. Primeiramente, eles estão com ele no momento em que dá um brado e rende
seu espírito. E na sequência em A’, agora elas vão até o túmulo de Jesus para o
embalsamar, porém não o encontram lá. Nash demonstra um eco aqui em Mc 16.7 em
relação aos pedidos de segredo da parte de Jesus sobre quem ele era na primeira parte
do evangelho. Ele afirma:
Jesus ordena a um espírito imundo que “Cale-se” (1:25), e depois de
expulsar muitos demônios, ele “não permitiu” que falassem (1:34).
Isso foi feito porque os demônios “o conheceram” (1:34). Depois que
um leproso é purificado, ele é instruído a não dizer “nada a ninguém”
(μηδενι μηδέν, 1:44). Em 3:12, Jesus “ordenou severamente” aos
espíritos impuros “que não o dessem a conhecer”. Após a
ressurreição da filha de Jairo, Jesus “ordenou-lhes estritamente que
ninguém (μηδεις) soubesse disso” (5:43). Após a cura de um surdo,
Jesus “ordenou que não contassem a ninguém” (μηδενι 7:36).
Quando Pedro expressa que Jesus é o Messias, Jesus “ordenou
severamente que não contassem a ninguém” (μηδενι, 8:30). Essa
ideologia básica é fundamental para a cena do túmulo. Ao longo do
Evangelho, os personagens foram instruídos a ficarem em silêncio,
mas eles não seguiram o comando. O tema agora foi invertido. As
mulheres são ordenadas a contar, mas elas nada disseram (ούδενι
ούδέν).245
244
ALLEN, O. W., Jr. Easter Sunday: Mark 16:1-8. Currents in Theology and Mission, [s. l.], v. 44,
n. 4, p. 20–24, 2017. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiGEV171016004169&lang=
pt-br&site=ehost-live. Acesso em: 21 out. 2022.
245
NASH, B. A. Point of view and the women’s silence: a reading of Mark 16:1-8. Restoration
Quarterly, [s. l.], v. 57, n. 4, p. 225–232, 2015. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn3826242&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 21 out. 2022.
100
Por fim, nessa última inclusio temos a ênfase na incredulidade anterior dos
discípulos em contraposição com sua obediência e fé posteriores ao encontro com o
Cristo Ressurreto. Marcos, como de costume, emoldura o ensino de Jesus com a ação
dos discípulos. Primeiramente, no paralelo A, temos a incredulidade dos discípulos
diante do relato da ressurreição de Jesus. Eles não creem pois não o viram.
Posteriormente, temos a aparição de Jesus aos seus discípulos, e sua palavra de
repreensão à sua incredulidade, porém, apesar da repreensão, há restauração e graça,
pois ele também os comissiona a irem por todo o mundo fazendo as mesmas obras
que ele fez. Na sequência, temos o paralelo A’, onde os discípulos diante do Cristo
Ressurreto, o Rei da Glória ascendendo para a destra de Deus. A cruz está vazia, o
túmulo está vazio, mas o trono está preenchido. Cristo está reinando em glória sobre
tudo e todos. Agora, em face dessa visão, os embaixadores de Cristo vão por toda
parte proclamando o evangelho do Reino, e os mesmos sinais que Cristo operava,
agora também os segue.
Alguns estudiosos desconsideram essa última perícope do evangelho por não
estar presente em alguns manuscritos antigos.246 Não abordaremos aqui uma defesa
246
Para saber mais veja: LEE, K. Revisiting the Ending of Mark. 신약연구, [s. l.], v. 20, n. 3, p. 437–
465, 2021. DOI 10.24229/kents.2021.20.3.001. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiE8N220523000527&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022. IVERSON, K. R. A Postmodern Riddle?: Gaps,
Inferences and Mark’s Abrupt Ending. Journal for the Study of the New Testament, [s. l.], v. 44, n.
3, p. 337–367, 2022. DOI 10.1177/0142064x211049348. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiE8N220131000713&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022. HELTON, S. N. Origen and the Endings of the Gospel
of Mark. Conversations with the Biblical World, [s. l.], v. 36, p. 103–125, 2016. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiA14180731002329&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022. Para uma defesa da inspiração de Mc 16.9-20 veja:
RIDDLE, J. T. In Defense of the Traditional Ending of Mark. The Confessional Presbyterian, [s. l.],
v. 16, p. 200, 2020. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAn4870142&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 20 out. 2022.
101
247
GREIDANUS, Sidney. O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2006, p. 84.
103
É interessante notar que em quase todos os quiasmos (de 1 a 10) Jesus está
destacado por Marcos no centro da narrativa, seja por sua ação ou por seu ensino.
Marcos propositalmente em sua narrativa nos mostra, na sua forma de escrever por
meio de quiasmos que o centro de toda sua narrativa é Jesus. O único quiasmo onde
Cristo não está no centro é o último (quiasmo 11), onde quem está no centro é o Pai,
afirmando que Jesus é seu Filho Amado e que seus discípulos deveriam dar ouvidos
às suas palavras. Desta maneira, Marcos está nos ensinando por meio dos seus
quiasmos que toda a sua narrativa é cristocêntrica e portanto assim também deve ser
nossa interpretação do texto do evangelho de Marcos.
Em seguida, abordaremos como podemos expor o texto bíblico a partir dessas
estruturas que foram abordadas. Neste caso, mostraremos que o ouvinte, mesmo que
compreenda o que é um quiasmo em si, deve compreender as ênfases do texto dadas
pelo evangelista por meio da estrutura no sermão expositivo. Para isso daremos
alguns exemplos de sermões em quiasmos, inclusios e paralelismos.
104
248
GREIDANUS, Sidney. O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo. São Paulo: Cultura Cristã,
2006, p. 147.
249
O texto escrito em seu original.
250
KURUVILLA, Abraham. O Texto Primeiro: Uma Hermenêutica Teológica para a Pregação. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017, p. 86.
105
Por isso é importante que o pregador leve em conta a estrutura literária para
compreender o significado do texto a fim de aplicar aos seus ouvintes. Greidanus nos
ensina que
Um sermão expositivo, portanto encontra seu propósito de acordo
com os propósitos bíblicos. O expositor deve, em primeiro lugar,
compreender por que uma passagem particular foi incluída na Bíblia
e, com isso, em mente, decidir o que Deus deseja realizar nos seus
ouvintes hoje por meio do sermão.252
251
CHRISHOLM JR., Robert B. Da Exegese à Exposição: Guia Prático para o Uso do Hebraico
Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 185.
252
GREIDANUS, Sidney. O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo. São Paulo: Cultura Cristã,
2006, p. 148.
106
Compreender as estruturas é uma ferramenta exegética que não precisa ser levada ao
púlpito. No entanto, os pregadores se beneficiam atendendo a tais estruturas, estando
certos de que seus sermões refletem o arranjo quiástico proposto pelo escritor bíblico.
Thomas Long afirma:
O efeito do paralelismo no leitor é que essas ideias e imagens
começam a ganhar vida em sua imaginação. O sermão deve procurar
criar um efeito semelhante para os ouvintes, mesmo que as
estratégias retóricas empregadas sejam bastante diferentes.256
253
GREIDANUS, Sidney. O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2006, p. 84s.
254
Para aprofundar em como fazer um sermão expositivo veja: ROBINSON, Haddon W. Pregação
Bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2003. CHAPELL, Bryan. Pregação Cristocêntrica. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 1994. HELM, David. Pregação Expositiva. São Paulo: Vida Nova,
2016.
255
TORNFELT, J. V. Preaching the Psalms: Understanding Chiastic Structures For Greater
Clarity. The Journal of the Evangelical Homiletics Society, [s. l.], v. 2, n. 2, p. 4–31, 2002.
Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiFZK190610000472&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 17 fev. 2022.
256
LONG, Thomas G. Preaching and the Literary Forms of the Bible. Philadelphia: Fortress, 1989,
49s.
107
que crê em Jesus. Ela é o paradigma de fé a ser seguido pelos discípulos e por Jairo. A
ênfase do texto está na fé em Jesus, não na cura ou questões secundárias.
De acordo com Parunak, as estruturas de paralelismo e quiasmos são
utilizadas nas Escrituras em virtude de a literatura bíblica ser “essencialmente
auditiva... destinada a ser entendida com o ouvido, e não com o olho”.257 Além disso,
Parunak também afirma que
Não podemos supor, porém, que, como os escritores antigos não
usam o mesmo tipo de sinal para o leitor que a impressora moderna,
eles não usam nenhum. Comparativamente falando, [o mundo] dos
antigos é mais orientado para a palavra falada. Onde usamos sinais
especialmente adaptados à página impressa, eles empregam um
sistema de indicadores que podem funcionar em apresentações orais
ou escritas. Estudiosos bíblicos nos últimos anos dedicam atenção
considerável aos padrões estruturais na literatura bíblica.258
257
PARUNAK, H. Van Dyke. Some Axioms for Literary Architecture. Semitics 8, 1982, p. 2.
258
PARUNAK, H. V. D. Oral typesetting: some uses of biblical structure. Biblica, [s. l.], v. 62, n. 2, p.
154, 1981. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0000786766&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 17 fev. 2022.
259
GREIDANUS, Sidney. O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo. São Paulo: Cultura Cristã,
2006, p. 82
108
sobre ele. É como se ao ler um bilhete de um amigo, que escreve: “Por favor, se
lembre que devemos sair AMANHÃ às 07h em ponto. Avise seu pai também.” Ao ler
esse bilhete, a ênfase encontra-se na palavra “amanhã” por causa das letras em caixa
alta, ou seja, o autor quer que o amigo não se esqueça de que sairão amanhã. Há outra
marcação no texto, não por meio das letras em caixa alta, mas na ênfase por repetição,
o em ponto enfatiza o 07h, ou seja, não iremos atrasar. Se o bilhete for escrito: “Por
favor, lembre que devemos sair amanhã às 07h em ponto. AVISE SEU PAI
TAMBÉM”. A ênfase mudou, mantém-se a ênfase por repetição no horário, mas
agora, a ênfase passa ao aviso ao pai. No texto bíblico, Marcos não faz isso por meio
de caixa alta, mas por repetição e paralelismos, de forma que o texto, como foi
escrito, aponta para nós o que o evangelista gostaria que prestássemos ainda mais
atenção. Desta maneira, quando lemos o texto bíblico, precisamos levar em conta
essas marcações e ênfases dadas pelo autor, e refletir isso no sermão, com as mesmas
ênfase, não necessariamente mostrando toda a estrutura do quiasmo, mas mostrando
os paralelos e a ênfase principal que encontra-se no centro do quiasmo.
Parunak ainda afirma que a estrutura do texto além de estabelecer a unidade interna
da perícope, também dá mais ênfase a algumas partes do que a outras. Ele afirma que
as estruturas quiásticas frequentemente têm um único item central
que não é dividido entre os dois painéis do quiasma. A singularidade
deste local torna-o adequado para enfatizar o que quer que seja
colocado ali. Este método de ênfase usa a forma intrínseca da
estrutura para focar a atenção do leitor (ou ouvinte) no item de
interesse.260
Mas como usar essa ênfase em um sermão? Ou seja, como pregar em uma estrutura
de quiasmo, paralelismo ou de inclusio? Sobre como pregar um sermão quiástico,
Tornfelt afirma que
As unidades quiásticas têm um centro único, projetado
intencionalmente pelo salmista, para ser o foco de sua atenção. A
partir da estruturação quiástica, você pode descobrir a verdade
central do sermão. Mas, como em toda pregação eficaz, você ainda
precisa trabalhar para declarar essa verdade central de uma maneira
que seja memorável para os ouvintes.261
260
PARUNAK, H. V. D. Oral typesetting: some uses of biblical structure. Biblica, [s. l.], v. 62, n. 2, p.
165, 1981. Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLA0000786766&lang=pt-
br&site=ehost-live. Acesso em: 29 mar. 2022.
261
TORNFELT, J. V. Preaching The Psalms: Understanding Chiastic Structures For Greater
Clarity. The Journal of the Evangelical Homiletics Society, [s. l.], v. 2, n. 2, p. 4–31, 2002.
Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiFZK190610000472&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 29 mar. 2022.
109
Tornfelt ainda propõe que não necessariamente o pregador precisa afirmar no púlpito
diretamente sobre a estrutura do texto, porém a compreensão da estrutura é necessária
para que seu sermão reflita o arranjo quiástico proposto pelo escritor bíblico. Além
disso, ele afirma que essa estrutura leva à compreensão da verdade central do texto e
sugere que “Em uma abordagem dedutiva, a verdade central é colocada na introdução
ou primeiro ponto principal do sermão com aplicações específicas da vida sendo
fornecidas”.262
Ao elaborar um sermão expositivo em uma estrutura de paralelismo, somos
chamados a identificar essa estrutura, seja de quiasmo, inclusio ou paralelismo, e
então fazer a divisão do texto seguindo esses paralelos. Por exemplo, se é um quiasmo
(A – B – C – B’ – A’), o primeiro ponto do sermão pode ser à partir do paralelo A –
A’, o segundo ponto do sermão pode ser à partir do paralelo B – B’ e o último ponto,
e mais importante, que levará à conclusão e aplicação, o centro do quiasmo C, algo
semelhante será exposto no sermão em Marcos 3.20-35 à seguir. Em uma estrutura de
inclusio (A – B – A’), a divisão pode ser feita em dois pontos A – A’ (primeiro ponto)
e B (segundo ponto), como acontece na exposição em Marcos 14.1-10 no tópico a
seguir, ou podemos identificar outros paralelos no texto que podemos nos auxiliar a
expô-lo de forma mais efetiva, como veremos no sermão a ser apresentado no texto de
Marcos 5.21-43.
Desta maneira, o pregador ao fazer a exegese do texto, deve compreender que
a estrutura do mesmo também é importante para a compreensão do significado, a fim
de que encontre aplicações válidas para o ouvinte. Como podemos fazer isso de forma
prática? Abordaremos a seguir algumas perícopes do Evangelho de Marcos propondo
um esboço do sermão levando em conta principalmente sua estrutura. É importante
ressaltar que os sermões são expositivos, entretanto, não levam em conta a estrutura
de versículos para a pregação, seguindo sequencialmente versículo por versículo, mas
a estrutura do texto considerando o quiasmo ou inclusio, que altera consideravelmente
a divisão do texto.
262
TORNFELT, J. V. Preaching The Psalms: Understanding Chiastic Structures For Greater
Clarity. The Journal of the Evangelical Homiletics Society, [s. l.], v. 2, n. 2, p. 4–31, 2002.
Disponível em:
https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rfh&AN=ATLAiFZK190610000472&lang=p
t-br&site=ehost-live. Acesso em: 29 mar. 2022.
110
moral. Ou ele seria um lunático - ao nível com o homem que diz ser
um ovo escalfado - ou então ele seria o Diabo do Inferno. Você
precisa fazer a sua escolha. Ou esse homem foi, e é, o Filho de Deus,
ou então um homem louco ou algo pior. Você pode tê-lo por um tolo,
você pode cuspir nele e matá-lo como um demônio ou você pode cair
aos seus pés e chamá-lo Senhor e Deus. Mas ninguém venha com
paternal condescendência, dizer que ele não passava de um grande
mestre humano. Ele não nos deixa essa opção, e não quis deixá-la
(...) Ora, parece-me óbvio que Ele não era nem um lunático nem um
demônio; consequentemente, por mais estranho ou assustador ou
insólito que pareça, eu tenho de aceitar a ideia de que ele era e é,
Deus.263
Cristo não é louco e nem maligno, então ele é o Messias, o Filho de Deus.
Estrutura do Texto:
A: Multidão vem para ouvir Jesus (3.20)
B: Parentes de Jesus – ele está fora de si e saem para o prender (3.21)
C: Escribas – ele está possesso de Belzebu (3.22)
D: Jesus – o homem mais forte que o valente (blasfêmia contra
o ES – não é família (3.23-29)
C’: Escribas – está possesso de espírito imundo (3.30)
B’: Parentes de Jesus – seus parentes chegam e mandam chamá-lo para o
prender (3.31)
A’: Multidão aprende de Jesus quem é sua verdadeira família (3.32-35).264
263
LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 69-71.
264
KURUVILLA, Abraham. Mark: A Theological Commentary for Preachers. Eugene: Cascade
Books, 2012, p. 69.
265
Aqui a divisão do texto não leva em conta os versículos de forma sequencial, mas sim o paralelo B
– B’. Considerando a estrutura do texto para a divisão e não a ordem dos versículos sequencialmente.
112
ser parado. Seus parentes pensam que para sua própria proteção, precisavam cuidar
dele, ou senão, ele poderia se prejudicar, ou mesmo ser morto. Eles pensam que
sabem o que é melhor para ele, mais do que ele mesmo.
Aplicação:
1) A igreja foi chamada de louca. Caluniada. Talvez você tenha passado por
isso na sua própria casa. Na escola, as pessoas não entendem por que você
faz a loucura de não fazer aquilo que é mal. Além disso se encontra com
um bando de loucos para cultuar a Deus no domingo. Felizes aqueles que
são chamados de loucos por causa de Jesus, afinal ele também é chamado
de louco.
2) A cruz de Cristo é loucura para os que se perdem, mas poder de Deus para
nós. A pregação do evangelho deve ser centrada na cruz, um chamado ao
arrependimento, confrontação de pecados. Ao fazer isso podemos ser
chamados de loucos, entretanto, nosso Senhor também foi. Viver
piedosamente no senhor Jesus leva à perseguição. Mas a loucura deve ser
por seguir a Bíblia e não por fazer coisas tolas.
266
Aqui, novamente é considerado para a segunda divisão do texto o paralelismo C – C’.
113
3) Jesus é o Filho de Deus – a verdadeira família de Jesus – Deus cria uma nova
família (vs. 23-29 e 32-35)267
A casa do valente: Como pode Satanás expulsar Satanás? Em uma batalha, um
exército não luta contra si mesmo. Brigas internas destroem grandes impérios. O que
eles pensam é incoerente. A acusação de maldade é infundada. Você não pode delegar
mais do que já delegou. Satanás não pode delegar mais poder do que já possui. Se o
poder que está sendo usado contra Satanás é maior do que o próprio Satanás, então ele
não pode ser a fonte desse poder. Isso é ilustrado por um homem forte que está prestes
a ser roubado. Se você quiser roubar um homem forte, não entre na casa dele e peça a
ele para ajudá-lo. Você deve primeiro amarrá-lo. É isso que Jesus está dizendo. Ele
veio para prender Satanás e saquear-lhe de volta aqueles que ele usurpou. O texto de
Gênesis 3.15 já apontava que os filhos de Satanás iriam tentar confundir o povo de
Deus e persegui-los. Porém, viria o descendente da mulher que pisaria na cabeça da
serpente, sendo maior e mais forte que ela. Jesus utiliza a ilustração de um valente que
entra na casa de outro valente, o saqueando. Mas, Jesus está se comparando a um
ladrão? Certo que não. O valente que está na casa não está lá porque é sua casa por
direito, mas como um usurpador. É como um ladrão que rouba diversos bens da sua
casa, então a polícia encontra onde ele mora, entra lá, o prende e pega os seus bens de
volta. Jesus é o mais valente. Ele não está a serviço de Satanás, antes, ele veio para
lhe destruir.
267
Por fim, a última divisão do texto considera o centro do quiasmo (D), e o último paralelismo (A –
A’). Essa é a parte mais importante do texto, e por isso é enfatizada aqui.
114
Aplicação:
1) Muitos entendem errado esse texto. Não somos nós que amarramos o
diabo. Jesus é quem esmaga a cabeça da serpente. Ele é quem morre na
cruz e os expõe à vergonha. Não é algo que ele nos ensina a fazer. Ele faz
de uma vez por todas. O que a igreja hoje faz, é alegremente buscar os
despojos da vitória. A cabeça já foi esmagada, então vamos lá pregar a
vitória de Cristo.
Com essa parábola, Jesus rememora a missão do sumo sacerdote messiânico de
amarrar Satanás. Os essênios aguardavam dois Messias, um da tribo de Levi, que
seria sumo sacerdote e um da tribo de Judá que seria Rei. O testamento de Levi, que é
parte do Testamento do Doze Patriarcas, diz: “E Belial deve ser amarrado [pelo sumo
sacerdote messiânico], e ele deve conceder a seus filhos a autoridade para pisar os
espíritos perversos”. (T. Levi 18.12).268 Mais importante temos Isaías 49.24-26:
Tirar-se-ia a presa ao valente? Acaso os presos poderiam fugir ao
tirano? Mas assim diz o SENHOR: Por certo que os presos se tirarão
ao valente, e a presa do tirano fugirá, porque eu contenderei com os
que contendem contigo e salvarei os teus filhos. Sustentarei os teus
opressores com a sua própria carne, e com o seu próprio sangue se
embriagarão, como com vinho novo. Todo homem saberá que eu sou
o SENHOR, o teu Salvador e o teu Redentor, o Poderoso de Jacó.
Então Jesus passa a discorrer sobre a blasfêmia contra o Espírito Santo. Negar a Jesus
tem perdão? Sim, Pedro negou a Jesus. Adultério tem perdão? Sim, Davi foi
perdoado. Perseguir a igreja tem perdão? Sim, Paulo foi perdoado. O que não tem
perdão? É justamente aquilo que é o oposto do arrependimento e fé. Achar que Cristo
não é verdadeiro. Aqueles que se recusam a entender quem ele é e o que ele faz. Que
têm o seu coração endurecido e negam o único caminho pelo qual poderiam ter
salvação. A FAMILIA PODE BLASFEMAR E ESTAVAM FAZENDO ISSO.
Conclusão do Sermão:
Quem é o irmão e a irmã e mãe de Jesus? Aquele que faz a vontade de seu Pai.
Aquele que reconhece quem ele é. Ele não é um louco, nem um mentiroso ou mal. Ele
268
FILHO, José Adriano. Expectativas Messiânicas Sacerdotais no Judaísmo e as origens da
Cristologia. Oracula, v. 1, n. 1, p. 54s, 2005. Disponível em:
https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiZlaDcu5P2
AhWqGbkGHd7-
DVAQFnoECAMQAQ&url=https%3A%2F%2Ffanyv88.com%3A443%2Fhttps%2Fwww.metodista.br%2Frevistas%2Frevistas-
metodista%2Findex.php%2Foracula%2Farticle%2Fdownload%2F5922%2F4792&usg=AOvVaw0coC
8CSlGvhzcdM_aYio5j. Acesso em: 22 fev. 2022.
115
é o Filho de Deus. Sua resposta a princípio parece um tanto áspera, mas não era essa a
sua intenção. Sua intenção era introduzir um novo conceito a respeito da família de
Deus. John Phillips faz um ponto interessante observando que
Agora ele colocou uma eternidade de distância entre ele e sua família
natural. A distância sempre existiu, é claro, dadas as circunstâncias
extraordinárias de seu nascimento, dado quem ele era e quem era seu
Pai , e dado o fato de que, embora ele fosse verdadeiramente
humano, ele era ao mesmo tempo Deus. Sua família natural agora
havia dado a ele a oportunidade de pôr fim à mera conexão
familiar.269
Ele disse: “Quem são minha mãe e meus irmãos?” Claro que Jesus sabia quem eram
sua mãe e seus irmãos e certamente não pretendia tratá-los com desrespeito. Ele não
está dizendo que não os amou, mesmo na cruz, quando “viu sua mãe e o discípulo que
ele amava perto dele, disse à sua mãe:” Mulher, eis o teu filho! Depois disse ao
discípulo: “Eis a tua mãe!” A partir daquela hora, o discípulo a recebeu em sua casa”.
(João 19.26-27). A pergunta de Jesus pretendia chamar a atenção para o fato de que,
em sua obra, havia laços mais elevados do que os de carne e osso. A verdadeira
família de Jesus consiste naqueles que respondem positivamente a ele, em vez de
aqueles que estão fisicamente relacionados a ele. Mais próximos do que sua própria
família terrena, eram aqueles que eram seus irmãos e irmãs e sua mãe na família de
Deus.
Aplicação: Somos chamados a reconhecer quem é Jesus: Não é louco e nem
mentiroso, ele é Deus. Precisamos ter uma vida centrada nele. Não devemos buscá-lo
por conveniência, ou desejar manipulá-lo pensando ter proximidade. Somos
chamados a reconhecer nossos irmãos. Não somos melhores do que ninguém.
Fazemos parte da família da fé. Além disso, nosso inimigo já está derrotado, e temos
a certeza da vitória. Não precisamos temer. Nosso Deus reina para sempre e Cristo já
está reinando.
Da Estrutura para o Sermão (Apontamentos): Em primeiro lugar o texto
não foi exposto seguindo os versículos sequencialmente do vs. 20 ao 35 de forma
linear. Note que as divisões do sermão foram levando em conta os paralelismos do
quiasmo A-B-C-D-C’-B’-A’. Sendo a primeira divisão a exposição do paralelo B-B’,
onde os parentes de Jesus (sua mãe e seus irmãos) o chamam de louco. Marcos os
269
PHILLIPS, John. Exploring the Gospel of Mark: An Expository Commentary. Grand Rapids:
Kregel Academic, 2003, p. 84.
116
coloca em paralelo com os escribas que chamam Jesus de Belzebu, ou seja, mau. Essa
é a segunda divisão do sermão no paralelo C-C’. Por fim, temos o centro do quiasmo,
D, como último ponto juntamente com o paralelo A-A’ na última divisão do sermão.
Aqui temos o contraste entre a visão da família de Jesus (louco), a visão dos escribas
(mau) e quem verdadeiramente é Jesus (o mais valente). Além disso, ao final, Jesus
mostra que mais importante que proximidade de parentesco sanguíneo é fazer parte de
sua família da fé, reconhecendo quem ele é, o Filho de Deus.
Contexto:
Nesse texto temos duas historias de desastres. Temos aqui um sanduíche. O
evangelista João Marcos gosta disso. Ele começa com uma história, a corta no meio
contando outra história e depois termina com a historia que começou mostrando que
estão relacionadas.
117
A: Jairo, o principal da sinagoga prostra-se aos pés de Jesus e roga para que
cure sua filha (vs. 22-24)
B: Certa mulher, sofredora, toca nas vestes de Jesus e é curada (vs. 25-
34)
A’: Jesus ressuscita a filha de Jairo (vs. 35-43)
A primeira história mostra um chefe da sinagoga. Ele tinha tudo, mas sua filha
estava em estado terminal. Um desastre. Sem esperança. Ele a viu nascer, crescer,
falar as primeiras palavras. Uma filha preciosa de apenas doze anos. Mas, agora sua
vida está se esvaindo. Você sabe qual o sentimento de um pai vendo seu filho
morrer?
Marcos relaciona essa história com uma segunda história, que mostra uma
mulher que está vendo sua vida esvair há doze anos. Uma hemorragia. Uma
enfermidade cruel que a afasta de tudo. Ela não pode ser tocada por ninguém, pois
que a tocar é considerado impuro cerimonialmente. Ela não sabe o que é um abraço
há doze anos. Onde ela senta, ninguém mais senta. Onde ela toca, ninguém mais toca.
Ela perdeu sua vida social, e cerimonialmente não pode entrar no templo. Ela gastou
tudo tentando melhorar mas só piorava. Um desastre. Sem esperança.
Nessa inclusio temos quatro paralelos:
270
Aqui a divisão do texto não leva em conta os versículos de forma sequencial, mas sim o primeiro
paralelo entre a fé da mulher enferma e a fé de Jairo.
118
271
WALVOORD, J. F., ZUCK, R. B. The Bible Knowledge Commentary: An Exposition of the
Scriptures. Wheaton, IL: Victor Books, 1985, (Lc 8.40–42).
119
272
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1999, p.
66.
273
MORGAN, Jill. A Man of the Word. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 2010, p. 82-83
274
Novamente temos o paralelo entre as duas filhas do texto. Os versículos não são expostos
sequencialmente, mas seguindo a lógica dos paralelos estabelecidos por Marcos.
120
por doze anos, a filha de Jairo morreu aos doze anos. Essa mulher é o discípulo que
devemos imitar. Ela está no lugar certo, ela tem fé, ela é curada. Então ela é chamada
de filha por Jesus. Ela é a única mulher chamada de filha por Jesus no evangelho de
Marcos. Ela agora faz parte da família de Jesus. Purificada, justificada, salva. Filha de
Deus.
“Então, a mulher, atemorizada e tremendo, cônscia do que nela se operara, veio,
prostrou-se diante dele e declarou-lhe toda a verdade. E ele lhe disse: Filha, a tua fé
te salvou; vai-te em paz e fica livre do teu mal”. (Mc 5.33– 34).
Agora há duas filhas nessa história. Temos a filha de um chefe da sinagoga
que tinha muitos servos. E uma filha pobre, que não tinha ninguém que a
apresentasse, defendesse. E é a essa que Jesus chama de filha. Aquela miserável se
torna a filha do centro da história. Jesus se importa. A agenda de Jesus não é a agenda
dos homens. Importa a ponto de parar. Importa a ponto de chamá-la de filha. Ele é o
Deus que para diante dos não importantes.
Aplicação: Eu não sei que desastre acometeu você esse ano. Talvez nenhum
ainda. Morte e enfermidade podem vir. Você sabe que Jesus se importa?
275
Duas multidões são colocadas em paralelo pois não compreendem as palavras e o agir de Jesus.
121
276
Aqui temos o último paralelo, ambas filhas são curadas mediante a fé e mediante o toque de Jesus.
Novamente não seguimos a sequência de versículos mas dos paralelismos.
122
Mulher Enferma e a filha de Jairo, ambas são chamadas de filhas, ambas sofrem, a
mulher sofre há doze anos, a filha de Jairo tem doze anos. A terceira divisão leva em
conta os paralelos da duas multidões que não têm fé. Por fim, a última divisão mostra
o poder do toque em Jesus e de Jesus. A primeira mulher toca em Jesus e é curada, a
filha de Jairo é tocada por Jesus e é ressuscitada.
Contexto:
Na época de Jesus muitos viram seus milagres e ouviram seus ensinamentos.
Mas será que estavam realmente compreendendo ou interpretavam como eles
queriam? Muitos pegaram o bonde andando e não entendiam nada. Os evangelhos nos
trazem alguns milagres que são ações parabólicas de Jesus. Jesus opera esses milagres
com o intuito de ensinar seus discípulos.
A cura do cego de Betsaida inicia uma grande estrutura quiásmica que vai de 8.22 a
10.52, durante toda a jornada de Jesus para Jerusalém.
A: A Cura do Cego de Betsaida (8.22-26)
B: Jesus prediz sua morte e ressurreição a primeira vez (8.27-32a)
C: A reação dos discípulos à primeira predição – Pedro repreende
Jesus (8.32b)
D: O ensino de Jesus diante da reação (8.33-9.1)
B’: Jesus prediz sua morte e ressurreição a segunda vez (9.30-32)
277
Desta vez abordaremos a perícope de Mc 8.22-26 à luz de todo o paralelismo de 8.22 a 10.52. Nesse
caso é necessário compreender toda essa estrutura para conseguir interpretar corretamente a cura do
cego em duas etapas e aplicar essa ação parabólica de Jesus para a vida dos discípulos e posteriormente
para a vida dos ouvintes.
123
1) Jesus é o Messias que veio para dar vista aos cegos (8.22-26)
“E lhe trouxeram um cego”. Vemos outros trazendo pessoas a Jesus várias
vezes em Marcos (Mc 2.3 Mc 6.55,56). Esta é a primeira menção no Evangelho de
Marcos de um cego sendo levado a Jesus para cura , sendo o segundo em Mc 10:46.
Lembre-se de que a cura da cegueira é um dos sinais de que o Messias tinha
vindo quando Jesus retransmitiu a João Batista. Uma das profecias de Isaías sobre o
Messias era que Ele traria visão aos cegos (cf. Is 29.18-35.5; 42.7,16,18-19). A
cegueira física é uma metáfora do Antigo Testamento para a cegueira espiritual (cf. Is
56.10; 59.10). Este mesmo jogo com a cegueira física e espiritual é visto claramente
em João 9. Isso também está obviamente relacionado à cegueira dos discípulos em
8.15,18.
Jesus curou vários cegos ao longo de Seu ministério (Mt 9.27–31; 11.5;
12.22; 15.30–31; 20.30–34; 21.14; Marcos 10.46–52; Lucas 4.18; 18.35–42; João 9.1-
12). Porém, apenas aqui a cura foi realizada em duas etapas.
Aqueles que sofriam de cegueira estavam desamparados e reduzidos a um
estado de mendicância (cf. Marcos 10:46). Além disso, como outros com deficiências
ou doenças debilitantes, eles foram considerados amaldiçoados por Deus (cf. João
9.1-2). Esse tipo de estigma tornava a vida com a cegueira duplamente dolorosa.
Aplicação: Essa também era a nossa situação. Mendigos espirituais.
“Rogando-lhe que o tocasse”. Há um paralelo entre as histórias do surdo
(7.31-37) e do cego de Betsaida. Ambos são levados a Jesus. Ambos pedem para que
Jesus os cure com um toque. Ambos são curados por Jesus com saliva. Ambos são
exortados a não compartilharem o acontecimento. A visão e a audição eram uma
metáfora comum para a compreensão. Jesus afirma isso, entre as narrativas dos dois
milagres em Marcos 7.17b-18a: “Ainda não considerastes, nem compreendestes?
124
Tendes o coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não
ouvis?”. Os discípulos deveriam ter visto o surdo como uma imagem de si mesmos
como incapazes de compreender o que Jesus os ensinava. Também deveriam perceber
que o homem cego apontava para sua incapacidade de compreender quem era Jesus.
Além disso, eles pedem que Jesus o cure com um toque. Jesus não está sujeito
a regras e não faz aquilo que nós queremos que ele faça. Ele opera segundo o seu
propósito. O Senhor segue seus caminhos usuais, mas não está preso a eles. Ele já
havia curado outros com um toque, então pensavam que o método também era
importante para a cura.
Aplicação: Agimos da mesma maneira quando pensamos em avivamento de
forma estereotipada. Quando pensamos que por meio de regras, pessoas serão salvas
ou a igreja irá crescer.
Jesus o tocou (“tomando o cego pela mão” – vs. 23), mas nenhuma cura veio,
e assim ele provou que o milagre não estava ligado ao método, mas a sua pessoa.
Jesus também não o curou instantaneamente, como eles esperavam.
Jesus o leva para fora da aldeia, para evitar a publicidade. Quanto mais seus
milagres se tornassem conhecidos, mais próximo ele estaria da cruz. Então, Jesus
aplica saliva em seus olhos. O método usado não é importante, mas o propósito da
cura. Como dito, essa cura era uma ação parabólica feita por Cristo, não apenas para
curar o cego, mas para ensinar seus discípulos. E por isso, a cura ocorre em duas
etapas. Depois da saliva, o cego diz: “Vejo os homens, porque como árvores os vejo,
andando”. Então, Jesus novamente põe a mão nos seus olhos, e ele passa a ver
claramente.
O que aconteceu aqui? Por que o cego é curado em duas etapas? Teria o poder
de Jesus falhado? Ou, teria a fé do cego fraquejado? É certo que não. Esse milagre
mostra a cegueira espiritual dos discípulos. Espiritualmente estava como aquele cego,
vendo, mas não claramente. Eles sabiam quem é Jesus, mas uma visão turva. Tendo
crescido no judaísmo tradicional, eles foram ensinados a seguir a orientação dos
fariseus e escribas cegos (Mt 23:16). Mesmo com a luz das Escrituras do Antigo
Testamento (Sl 119.105), sua compreensão da verdade espiritual tinha sido
irremediavelmente borrada por séculos de tradição rabínica e uma expectativa
messiânica segundo suas interpretações. Eles criam que Jesus era o Cristo, mas sua
expectativa era de que o Cristo fosse um líder político que os libertasse da escravidão
de Roma. Marcos coloca a cura do cego de Betsaida no início da jornada de Jesus
125
para Jerusalém, e o fim dessa jornada se dá com a cura do cego de Jericó. Temos
então uma inclusio. Duas curas de dois cegos, e o que temos como centro da inclusio?
A jornada para Jerusalém, onde Jesus ensina seus discípulos sua missão e eles reagem
mostrando sua cegueira e surdez espiritual.
Temos:
A: A Cura do Cego de Betsaida (8.22-26)
B: A Jornada para Jerusalém (8.23-10.45)
A’: A Cura do Cego de Jericó (8.46-52).
278
É importante ressaltar que a exposição da sequência do paralelismo é no intuito de elucidar a cura
do cego de Betsaida para mostrar como Marcos apresenta a cegueira dos discípulos de Jesus nas três
vezes em que Jesus afirma que subiria para Jerusalém com o intuito de morrer e ressuscitar ao terceiro
dia, porém eles não compreenderam. Dessa maneira, Marcos faz uma grande inclusio, tendo a cura do
cego de Batsaida e a cura do cego de Jericó emoldurando a cegueira dos discípulos.
126
dizia: O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão; mas, três
dias depois da sua morte, ressuscitará. Eles, contudo, não compreendiam isto e
temiam interrogá-lo”. Claramente ele os ensinava, mas eles não compreendiam que
seu caminho era para a cruz. Logo na sequência, em Marcos 9.33-34, o evangelista
nos mostra que nada compreenderam pois discutiam entre si no caminho sobre quem
era o maior, estão cegos.
Por fim, em Marcos 10.33-34 temos a terceira vez em que Jesus explica sobre
o propósito de sua vinda como Messias aos discípulos: “Eis que subimos para
Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas;
condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele,
açoitá-lo e matá-lo; mas, depois de três dias, ressuscitará”. Entretanto, novamente
Marcos nos mostra que eles nada compreendem e estão cegos. Em Marcos 10.35-37
temos Tiago e João pedindo a Jesus para se assentarem em tronos à sua direita e à sua
esquerda. Eles pensam que o reino está próximo, e que devem ter lugares mais
privilegiados do que os outros. Eles acabaram de ouvir que Jesus está indo para a
cruz, mas querem tronos, eles não entendem ainda.
Por fim, chegamos à cura do cego de Jericó, e então Jesus entra em Jerusalém.
Eles logo verão, logo perceberão, logo enxergarão claramente, mas ainda estão
entorpecidos, ainda têm uma visão turva.
Aplicação: Muitas vezes agimos da mesma maneira. Queremos tronos,
queremos ser servidos, queremos que Jesus aja da nossa maneira, e criamos um Cristo
à nossa imagem e semelhança. Somente Cristo pode abrir os nossos olhos, somente
nele temos redenção e vida.
Conclusão do Sermão:
Fanny Crosby, grande poetisa evangélica, ficou cega aos oito meses de idade,
mas decidiu aos nove anos, que sua cegueira não seria motivo de tristeza e desânimo e
sim de alegria. Certa vez recebeu sua amiga Phoebe em sua casa; ela tinha escrito
uma linda melodia e gostaria de saber o que Fanny sentia a respeito. Sentou-se ao
piano e começou a tocar. Quando terminou, Fanny estava ajoelhada e disse: “Que
segurança, pois sou de Jesus, e já desfruto o gozo da luz; sou por Jesus, herdeiro de
Deus, Ele me leva à glória dos céus”.
Que segurança tenho em Jesus, Pois nele gozo paz, vida e luz!
Com Cristo herdeiro, Deus me aceitou Mediante o Filho que me salvou!
127
Conto esta história, cantando assim: Cristo, na cruz, foi morto por mim!
Conto esta história cantado assim: Cristo, na cruz, foi morto por mim!
Cega fisicamente, mas teve seus olhos plenamente abertos para viver o evangelho.
Da Estrutura para o Sermão (apontamentos): Esse texto talvez seja o que
mais deve levar em conta a estrutura para ser compreendido. Por que Jesus cura o
cego em duas etapas? A explicação para isso pode ser encontrada na estrutura do
texto. Marcos responde isso de forma implícita e utiliza para isso uma ação
parabólica. Antes da perícope (Mc 8.22-26), Jesus questiona seus discípulos em
Marcos 8.17-18a: “Jesus, percebendo-o, lhes perguntou: Por que discorreis sobre o
não terdes pão? Ainda não considerastes, nem compreendestes? Tendes o coração
endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não ouvis?”. Na sequência
temos uma estrutura quiásmica onde há um paralelo A-A’ entre a cura do cego de
Betsaida (Mc 8.22-26) e a cura do cego de Jericó (Mc 10.46-52). Essas duas curas
emolduram a ida de Jesus para Jerusalém. Nesse caminho para Jerusalém, por três
vezes Jesus explica aos seus discípulos que seria morto, mas que ressuscitaria ao
terceiro dia e eles não compreendem. Marcos está colocando em paralelo a cura do
cego de Betsaida com os discípulos de Jesus. Ele não diz isso explicitamente, mas usa
a estrutura do texto para mostrar a nós. Os discípulos estão como aquele cego, eles
enxergam, mas não claramente.
Contexto:
Temos uma inclusio nessa perícope:
A: Os fariseus buscam matar Jesus por meio de uma traição
B: A pecadora que ungiu Jesus
A’: A traição de Judas por dinheiro.
128
Temos dois tipos de discípulos nessa perícope: 1) Aquele que sabe quem é Jesus e
reconhece sua missão sacrificando-se por aquele que sacrificou-se por ele; 2) Aquele
que não sabe quem é Jesus, não reconhece sua missão e por isso sacrifica Jesus para
obter lucro ou autopromoção.
MARIA JUDAS
Deu tudo que tinha a Jesus Tomou tudo que podia de Jesus
Lembrada para sempre pelo seu Lembrado para sempre pela sua
serviço traição
279
Na primeira divisão do texto expomos o centro da inclusio, que é a parte mais importante,
mostrando o paralelo que é feito no texto entre Judas e aquela mulher. Ela é o paradigma de discípulo a
ser imitado enquanto ele o exemplo a ser evitado.
129
dia das suas núpcias. Maria coloca a serviço de Jesus aquilo que tinha mais
significado em sua vida. Tudo para o Senhor.
C) Preciosíssimo
Eu estou fazendo para Jesus o meu melhor? O alabastro é uma pedra ornamental com
um perfume precioso - preciosíssimo. Nardo - essência pura. Essa essência não era
encontrada em Israel. Só no alto das montanhas do Himalaia. Mateus 26 diz que o
vaso estava cheio com uma libra de perfume (meio litro). Judas avaliou o perfume em
300 denários (300 dias de trabalho). Era comprado gota e gota e acondicionado nesse
vaso de pedra. Ela quebra o vaso, ela não abre. Ela não quer que sobre nem uma
última gota.
Ilustração: A mulher deixou o frango congelado por 23 anos. Ela então ligou
para a empresa perguntando se ainda estava bom. O atendente respondeu que se
manteve sempre congelado, então possivelmente não estaria estragado, entretanto
certamente o gosto não estaria bom. Recomendou então que eles não comessem.
Perfeito, diz a mulher, vamos doar para a igreja.
Aquela mulher se sacrifica para Cristo e por causa disso é reprovada pelos
discípulos, aqueles que nada querem oferecer (vs. 4 - 5). Como desperdiçar tanto
dinheiro aos pés de Jesus? Tantos iPhones, Macbooks, impressoras, ar-condicionados,
tanto investimento que poderia ser feito para a igreja ou para os pobres. Estão com
raiva não porque derramou o bálsamo, mas pra quem: Jesus. Se fossem os pobres eles
gostariam. Eles murmuravam contra ela por causa do valor ofertado a Jesus. Judas
avalia o perfume em trezentos denários. Esse valor poderia resolver o problema de
muita gente. Não se trata de Jesus não cuidar dos pobres. Em Marcos 10, depois de
encontrar o Jovem rico, Cristo fala do perigo das riquezas. Se trata da prioridade na
missão. Maria entendeu. Ela sabe que Jesus vai morrer. Mas os discípulos não. Eles
ainda não compreenderam sua missão e nem quem é Jesus.
Por três vezes em Marcos 8.31, 9.31, 10.33-34, Jesus fala sobre sua missão
com seus discípulos, sobre sua morte e ressurreição. Qual foi a resposta desses
homens? Em Marcos 8.31, Pedro o repreende. Em Marcos 9.31, eles discutem entre si
quem é o maior. E em Marcos 10.33-34, Tiago e João querem sentar-se à direita e
esquerda de Cristo. Seus discípulos buscam autopromoção. Estão consumidos por um
auto direcionamento. Totalmente ignorantes sobre a missão de Jesus. A mulher dessa
história não fala uma palavra, entretanto, ela entendeu a missão de Jesus. E faz algo
que marcou Jesus profundamente. Ela faz um sacrifício extravagante. Profuso, puro e
130
precioso. Por causa disso ela foi (vs. 9) profundamente prestigiada. Sem nome,
insignificante, inconveniente, pecadora, rejeitada, ignorada. Porém, agora ela será
lembrada para sempre, porque ela entendeu a missão de Jesus. Ela entendeu, ouviu, e
respondeu. Os discípulos? Não deram nada. Queriam levar vantagem por estar com
Jesus.
Conclusão do Sermão:
Amy Carmichael (1867-1951) foi rejeitada por duas agencias missionárias. Na
terceira foi enviada para a Índia. Pegou uma febre altíssima que disseram que ela não
duraria 6 meses. Ela ficou 55 anos na Índia sem nunca ter voltado para sua terra natal,
sacrifício extravagante. Seu sacrifício rendeu 35 livros e honrarias. Mas ela nunca
voltou para recebê-las. “Por favor, me ajude! Não me mande de volta para o
templo”, gritou Preena, agarrando o pescoço da missionária. A data era 6 de março de
1901, e o local era Pannaivilai, uma vila do estado de Tamil Nadu, perto da ponta
280
A segunda divisão considera o paralelo A – A’ considerando os sacerdotes e escribas que queriam
prender Jesus à traição juntamente com Judas, que efetivamente trai Jesus. Dessa maneira não expomos
o texto na sequência de versículos, mas considerando a estrutura da inclusio.
131
meridional da península indiana. Os gritos eram de uma criança de apenas 7 anos que
acabara de fugir de um templo hindu, onde era mantida em escravidão, ao lado de
muitas outras, sendo preparada para “casar-se” com os deuses – ou, em outras
palavras, tornar-se uma prostituta cultual.
Preena (ou “olhos de pérola”) já tinha uma história. Vendida ao templo pela
própria mãe, tentara fugir duas vezes. Com apenas 5 anos, conseguiu percorrer mais
de 30 km sozinha e voltar para a família. A guardiã do templo chegou logo atrás, e a
mãe, com medo de incitar a ira dos deuses, desprendeu à força os braços da filha que
a agarravam desesperadamente e a devolveu à sua carrasca. Depois da segunda fuga,
Preena teve as duas mãos marcadas por um ferro incandescente.
Amy Carmichael, filha de pais presbiterianos, com apenas 3 anos, depois de
aprender que Deus faz milagres em resposta à oração, Amy resolveu colocar a lição
em prática: orou para que seus olhos castanhos fossem trocados por azuis, iguaizinhos
aos de sua mãe! No dia seguinte, cheia de fé, acordou e foi diretamente ao espelho
para ver a resposta. Qual não foi sua decepção quando viu que nada havia mudado!
“‘Não’ também é uma resposta”, explicou a mãe.
Foi só muitos anos mais tarde, na Índia, que Amy entendeu o porquê dessa
resposta negativa. Depois de ouvir histórias chocantes sobre o que acontecia com as
meninas que eram levadas para o templo, Amy quis descobrir por si mesma a
verdade. Para não chamar a atenção, ela escureceu a pele com pó de café e colocou
trajes indianos. Ao vê-la, uma amiga exclamou: “Que bom que você tem olhos
castanhos, Amy! Se tivesse olhos azuis, jamais passaria como indiana!”.
Foi assim que, sozinha, sem nem mesmo o apoio de alguns colegas
missionários, Amy começou a invadir os recintos escuros dos templos indianos e
enfrentar o poderoso sistema maligno que imperava ali desde o século 6. Durante os
50 anos de ministério da Amy Carmichael na Comunidade Dohnavur, mais de mil
meninas e meninos (que eram escravizados também, embora em menor número)
foram resgatados e adotados. Ela afirmou: “Se eu não tiver compaixão pelos meus
colegas, como o Senhor teve compaixão de mim, então não conheço nada do amor do
Calvário. Se posso ferir o outro ao falar a verdade, mas sem me preparar
espiritualmente, e sem sentir mais dor do que o outro, então não conheço nada do
amor do Calvário. Se os elogios dos outros me alegram demais e acusações me
deprimem; se não posso passar por mal-entendidos sem me defender; se eu gosto de
ser amado mais que amar, servido mais que servir, então não conheço nada do amor
132
do Calvário. Se quero ser conhecido como quem acertou em uma decisão, ou quem a
sugeriu, então não conheço nada do amor do Calvário. Se eu ficar no lugar que
pertence apenas a Jesus, fazendo-me necessária demais para uma pessoa, em vez de
levá-la a se agarrar nele, então não conheço nada do amor do Calvário. Se eu me
recusar a ser um grão de trigo que cai na terra e morre, então não conheço nada do
amor do Calvário. Se eu quero qualquer lugar no mundo, a não estar no pó ao pé da
cruz, então não conheço nada do amor do Calvário.” Uma mulher que se sacrificou
pelo Senhor. Quem é você no caminho do discipulado?
Da Estrutura para o Sermão (apontamento): Nesse último sermão temos
uma estrutura de inclusio, onde Marcos coloca em paralelo Judas Iscariotes e Maria,
irmã de Lázaro. Dessa maneira, as divisões não levam em conta a sequência dos
versículos, mas os paralelos do texto. O centro do inclusio está na primeira divisão
(Mc 14.3-9), onde Maria é apresentada como paradigma para os discípulos de Jesus.
Ela se sacrifica por Jesus. Enquanto, a segunda divisão do texto (Mc 14.1-2, 10-11) é
o paralelo A-A’, que apresenta Judas como o discípulo que sacrifica Jesus para
benefício próprio. A traição de Judas emoldura a atitude de Maria de ungir Jesus. O
sermão deve então mostrar esse paralelo.
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou demonstrar como uma compreensão clara da
estrutura literária de Marcos é essencial para uma correta compreensão da intenção do
autor em abordar cada tema, na sequência exposta, levando a aplicações válidas em
um sermão expositivo. Primeiramente, de forma introdutória foram apresentados
diversos estudos já realizados tanto em relação à análise da estrutura do texto quanto
do evangelho de Marcos.
No primeiro capítulo, abordamos sobre as diferentes ferramentas para a
interpretação do evangelho de Marcos como narrativa biográfica. Desta forma, foram
apresentados princípios hermenêuticos para interpretar narrativas como o narrador,
cenas, personagens, enredo, etc. Depois de entender que toda narrativa tem um
narrador e devemos compreender seu ponto de vista para interpretar corretamente o
texto é necessário compreender quais estratégias retóricas o narrador pode guiar o
ouvinte para dentro e ao redor do mundo da narrativa de modo que compreenda o seu
significado. Vimos que o autor sempre tem uma intenção em sua narrativa e que ao
escrever o texto, também tem uma intenção por trás da estrutura do texto utilizando
quiasmos, inclusios, ações parabólicas, paralelos. Em seguida abordamos a
pragmática, que diz respeito à intenção do autor por trás das palavras, ou seja, o que o
autor quer que compreendamos ou façamos ao narrar da maneira que o fez, desta
forma, a pragmática afirma que o contexto e a estrutura podem nos ajudar a
compreender a intenção do autor.
No segundo capítulo, conforme a sugestão inicial, utilizamos as ferramentas
apresentadas no capítulo anterior para analisar algumas perícopes do evangelho de
Marcos, destacando algumas estruturas do evangelho de Marcos de quiasmos,
inclusios e paralelismos para serem interpretados dentro de seu contexto. Vimos que o
evangelho como um todo está inserido em uma grande inclusio (A – B – A’), onde A
é o primeiro versículo do primeiro capítulo que mostra todo o conteúdo do evangelho:
“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus”. E A’ seria Marcos 15.39,
quando na morte de Jesus temos o primeiro homem que reconhece Jesus como Filho
de Deus: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus”. Entre essas duas
afirmações de que Jesus é Filho de Deus, temos o conteúdo do evangelho (B).
Analisamos em seguida 11 quiasmos, 8 inclusios e 3 paralelismos contidos ao longo
do evangelho. Não abordamos todas as estruturas encontradas, apenas aquelas que
134
281
Para conhecer mais quiasmos e inclusios no Novo Testamento veja
https://chiasmusresources.org/new-testament#4.
135
Marcos 5.21-43 temos uma inclusio e diversos paralelismos que nos mostram duas
histórias em paralelo, Jairo, o principal da sinagoga e sua filhinha de doze anos, em
paralelo com uma anônima, que não podia sequer entrar na sinagoga por ter uma
hemorragia há doze anos. Em Marcos 8.22-26, abordamos todo o contexto de Marcos
8.22 a Marcos 10.52 em um paralelismo quiásmico para compreender o propósito do
Senhor Jesus curar o cego em duas etapas. Apenas Marcos narra tal milagre. Seu
propósito é claro quando visto nos paralelismos seguintes, quando seus discípulos não
enxergam bem quem ele é. Eles até compreendem um pouco dizendo “tu és o Cristo”,
mas enxergam “homens como árvores”, pois não compreendem quando Jesus afirma
que veio para morrer em Jerusalém e que ressuscitaria ao terceiro dia (Mc 8.27-32;
9.30-32 e 10.32-34). Por fim utilizamos o texto de Marcos 14.1-11, uma inclusio,
para mostrar o paralelo entre a mulher que sacrifica-se por Jesus oferecendo-lhe um
sacrifício profuso, puro e precioso, que custava trezentos denários, um ano de
trabalho, em contraposição de Judas, que sacrifica Jesus para lucrar trinta moedas de
prata, o preço de um escravo (Êx 21.32).
Concluímos que de fato a hipótese inicial pode ser comprovada, ou seja, sem
compreender a estrutura do texto não é possível compreender com clareza e
profundidade a intenção do autor e consequentemente as aplicações ficarão
prejudicadas no sermão. Por isso, o pregador necessita utilizar e dominar as
ferramentas que apresentamos neste trabalho para fazer a exegese do texto,
compreender a estrutura literária e seu contexto para então adentrar ao mundo do
texto a fim de fazer aplicações válidas para o nosso mundo.
A presente pesquisa não tratou extensivamente todos os quiasmos e inclusios
do evangelho de Marcos, que podem ser abordados em pesquisas futuras. Futuras
pesquisas também poderão utilizar da mesma hipótese e ferramentas para analisar os
outros evangelhos e atos, ou mesmo narrativas no Antigo Testamento.
136
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