442 2397 1 PB
442 2397 1 PB
442 2397 1 PB
Resumo: A concepção do normal e do patológico associada a como o indivíduo se relaciona com seu
ambiente tem se desenvolvido no campo da psicologia. Nesse contexto, o sujeito com sofrimento
psíquico passa a não ser taxado pelo transtorno, mas como portador deste, aproximando as práticas
classificatórias da lógica dos serviços substitutivos em saúde mental, como os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), oriundos da Reforma Psiquiátrica brasileira. A demanda de cura dos sujeitos é
transformada em demanda de inclusão social e escuta clínica, deixando a patologia determinada pela
exclusão social. Para tanto, torna-se necessária a promoção de novas formas de encarar a clínica e os
aparelhos de saúde mental. Nesse sentido, propõe-se a investigação sobre a hipótese de a Reforma
Psiquiátrica ter relegado a clínica a um segundo plano em relação à demanda social através da
percepção de como se dá a conduta terapêutica de psicólogos e psiquiatras de um CAPS. O presente
estudo é exploratório, descritivo e qualitativo, tendo sido utilizada uma entrevista semiestruturada. Os
participantes da pesquisa são psicólogos e psiquiatras atuantes em um CAPS do interior de Minas Gerais.
Contrariando nossa hipótese inicial, foi percebido que há um trabalho clínico que não é sobrepujado
pela retórica da inclusão, da oferta de discursos de adaptação e ressocialização. Partimos da definição
de clínica ampliada e da perspectiva lacaniana para analisar as práticas institucionais do CAPS. A análise
se deu a partir da teoria lacaniana dos discursos, em especial do discurso do analista, possibilitando a
restituição subjetiva e política de seus usuários. Percebemos que a instituição busca assegurar um lugar
que não cumpre a função de mestria, através de práticas como a ressignificação das crises. Destarte,
buscamos indicar como o funcionamento do CAPS pôde sustentar uma clínica da psicose atrelada ao
posicionamento político nos processos de inclusão social.
1
Psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: [email protected]
2
Psicólogo. Psicanalista. Doutor com dupla titulação em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Doutor pela Université de Rennes 2 (França). Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: [email protected]
Submetido em: 05/07/2023. Primeira decisão editorial: 09/10/2023. Aceito em: 23/10/2023.
26
The Direction of the Treatment from the Listening of Psychologists and
Psychiatrists who Work on a CAPS
Abstract: The conception of the normal and pathological associated to how the individual relates to his environment
has been developed in the psychology field. In this context, the subject with psychic suffering stops being taken by his
disorder, but as bearer of his disorder, approaching the qualifying practices of the logic of mental health substitute
services, such as the Psychossocial Attention Centers (CAPS), natives of the Brazilian Psychiatric Reform. The subject’s
demand of cure is transformed in a social inclusion and clinical listening demand, leaving the pathology determined by
social exclusion. Therefore, it became necessary the promotion of new ways of facing the clinic and the mental health
apparatus. Thus, it’s proposed the investigation of the hypothesis that the Psychiatric Reform has relegated the clinic
to a background compared to the social demand thru the perception of how the therapeutic conduct of psychologists
and psychiatrists of a CAPS occur. This study is exploratory, descriptive, qualitative and has utilized a half-structured
interview. The participants of the research are psychologists and psychiatrists who work on a CAPS of the countryside
of Minas Gerais. Contradicting our initial hypothesis, it was perceived that exists a clinical work not surpassed by the
rhetoric of inclusion, the offer of speeches, adaptation and resocialization. We start by the definition of amplified clinic
and the lacanian perspective to analyse the institutional practices of the CAPS. The analysis was made from the lacanian
theory of discourses, specilly the analyst’s discourse, allowing the subjective and political restitution of its users. We’ve
perceived that the institution seeks to guarantee a place that doesn’t fulfill the mastery function, through practices
like the resignification of the crises. Finally, we pursued to indicate how the operation of the CAPS could sustain the
psychosis clinic associated to the political position in the social inclusion process.
27 M P P Vieira e T H R Rocha
Introdução sobre doenças e transtornos mentais. Além disso, o
DSM também surgiu da necessidade de criação de
O conceito de normalidade psíquica não é uma linguagem comum acerca das classificações
algo rígido, mas flexível tal como uma norma que de cada um dos transtornos. Segundo o manual,
se altera de acordo com sua relação com condições um transtorno mental se configura como uma
individuais, tornando o limite entre o normal e o síndrome ou padrão de comportamento psicológico
patológico impreciso. O que é normal, apesar de importante que se manifesta lhe causando algum
ser normativo em determinadas condições, pode sofrimento físico, mental ou prejuízo social (Kyrillos
ser considerado patológico em outra situação. Neto et al., 2014).
O sujeito é que avalia essa transformação, uma Para Kyrillos Neto et al. (2011), o DSM causou
vez que é ele quem sofre suas consequências, profunda transformação na história da psiquiatria
quando se sente incapaz de realizar as tarefas que moderna — desde a sua primeira edição até a mais
a nova situação lhe impõe (Canguilhem, 2009). recente atualização em 2022 (American Psychiatric
Nesse sentido, não é absurdo considerar o estado Association [APA], 2022). Sua proposta é de ser
patológico como normal, visto que este apresenta um sistema classificatório ateórico e operacional
uma relação com o conceito de normatividade da dos grandes quadros sindrômicos psiquiátricos.
vida (Canguilhem, 2009). A partir daí, os diagnósticos seriam considerados
O desenvolvimento da concepção do normal como instrumentos convencionais, dispensando
e do patológico, sob uma perspectiva qualitativa quaisquer referências de caráter ontológico. A
em que tudo se explica em relação ao indivíduo e única exigência seria a correspondência em seu
em como este se relaciona com seu ambiente, foi plano descritivo. O rompimento com a teoria ao se
amplamente estudada por Georges Canguilhem. descomprometer, decorreu então, da lógica em que
Em sua proposta, o autor estabelece a distinção a caracterização das formas de sofrimento psíquico,
de três vias de orientação teórica: a normatividade alienação ou patologia mental era acompanhada
no sentido biológico, social e existencial. Trata-se, da fundamentação ou de crítica filosófica. Além
então, de aspectos fisiológicos da estrutura do disso, após a terceira edição do DSM, quebrou-se
organismo vivo, de valores sociais que determinam a não apenas a união entre psicanálise e psiquiatria,
sua organização e de aspectos individuais que fazem mas também o modo de fundamentar e fazer
referência aos sujeitos que vivenciam a saúde e a psicopatologia na prática clínica de profissionais.
doença. Em sua teoria, Canguilhem apoia a existência É importante ressaltar que não se trata de uma
de normas tanto no estado normal quanto no estado disputa ideológica com a psiquiatria. Pelo contrário:
patológico. O patológico não é apenas a ausência a psicanálise conserva a função diagnóstica da
de normas e não corresponde necessariamente à psiquiatria sem abandonar a psiquiatria clássica,
anormalidade. Nessa mesma direção, o normal não salvaguardando a relevância e a singularidade da
implica em saúde por si mesmo (Camara, 2016). fala de cada sujeito nos níveis do enunciado e da
Assim, encontramos a necessidade de boas enunciação. O conhecimento psiquiátrico clássico
descrições psiquiátricas e psicanalíticas elaboradas consolidado a partir do momento em que se
visando estratégias de intervenção e transformação. começou a descrever, isolar e separar os fenômenos
Se fossem mero reflexo neutro das coisas mesmas, que afetam o doente é o principal referencial das
não seriam descrições de indivíduos (Dunker & práticas do hospital psiquiátrico. O que se coloca em
Kyrillos Neto, 2011). Nesse contexto, em resposta questão é que atualmente a psiquiatria se vê tomada
ao desenvolvimento de pesquisas sobre transtornos pelo furor farmacológico, distanciando-se de seu
de ordem psiquiátrica, tem-se a elaboração da saber clínico clássico (Kyrillos Neto et al., 2011).
primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico O diagnóstico em psicanálise, além de
de Transtornos Mentais (DSM). Ele foi criado a partir ser estrutural é também transferencial, o que
da demanda de coletar informações estatísticas exige do terapeuta um exercício de incitar certa
29 M P P Vieira e T H R Rocha
pelos serviços substitutivos em saúde mental. No para cooperação com a pesquisa. A seleção foi
entanto, é importante ressaltar que as instituições intencional e compreendeu seis psicólogas e dois
de formação assimilaram poucos conteúdos dos psiquiatras atuantes no CAPS em questão. Do
debates suscitados pela Reforma, tanto no que tange total de dez profissionais da instituição, oito foram
aos currículos quanto às práticas extensionistas. entrevistados. Ao longo do texto, os participantes
Estas têm oferecido paulatinas contribuições quanto serão identificados por nomes fictícios: Elisa (54
às avaliações para seu desenvolvimento. Nos anos), Débora (33 anos), Amanda (47 anos), Carolina
aspectos essenciais para o bom funcionamento dos (35 anos), Marisa (65 anos) e Patrícia (44 anos) são
serviços substitutivos em saúde mental descritos as psicólogas e Jaime (43 anos) e Cícero (60 anos), os
previamente, percebe-se a ausência da dimensão psiquiatras, respectivamente.
clínica. A mudança no curso do investimento Em decorrência da pandemia da Covid-19, os
supõe que a Psiquiatria não preconize a patologia participantes foram contatados por telefone obtido
e enfatize a existência complexa dos usuários e sua através da instituição e concederam entrevistas que
ressocialização (Kyrillos Neto, 2009). foram audiogravadas de modo remoto. O material
A partir do exposto, demonstra-se, então, que a foi transcrito na íntegra, — incluindo-se pausas,
diferença da lógica diagnóstica do DSM e da psicanálise, interrupções e demais alterações discursivas que
enquanto teoria norteadora, suscita consequências possam ocorrer — e analisado segundo as diretrizes
relevantes para a condução do tratamento, uma vez da análise de conteúdo, com embasamento no
que o diagnóstico provém de uma definição prévia referencial teórico da psicanálise.
implícita ou explícita sobre a função de uma terapêutica, Segundo Turato (2008), a análise de conteúdo
influenciando a direção do tratamento pelos irá compreender várias fases. São elas: preparação
profissionais (Kyrillos Neto et al., 2011). Dessa forma, o inicial do material, que se refere à transcrição do
louco, ao ser deslocado para a posição de usuário dos material; a pré-análise, que implica a execução de
serviços de saúde mental, tem sua demanda de cura leituras repetidas dos dados até a exaustão e, por fim, o
transformada em demanda de inclusão. Sua patologia processo de categorização. A montagem das categorias
passa a ser definida pela exclusão social concreta e não ocorre a partir de dois critérios: relevância e repetição.
por uma nosologia neutra e transcendente, em um A relevância refere-se a aspectos que o pesquisador
processo de ressignificação do trabalho terapêutico considerou importantes para análise a partir de
(Kyrillos Neto, 2007). suas hipóteses, enquanto a repetição diz respeito
Nesse sentido, propõe-se a investigação sobre ao destaque de determinados pontos em função da
a hipótese de a Reforma Psiquiátrica ter relegado a frequência com que aparecem nas entrevistas dos
clínica a um segundo plano em relação à demanda diferentes participantes. Pode ainda ser necessária a
social através da percepção de como se dá a conduta etapa de subcategorização. Essa é inclusa caso existam
terapêutica de psicólogos e psiquiatras de um CAPS. tópicos que mereçam destaque, mas se relacionam
intrinsecamente a outros tópicos já existentes.
Metodologia Após a categorização será feita a sua análise
a partir do referencial psicanalítico de orientação
lacaniana. Em seguida, a análise tensionará o
O presente trabalho é exploratório, descritivo
resultado da apreciação dos dados com os principais
e qualitativo. O instrumento utilizado foi uma
aspectos da Reforma Psiquiátrica brasileira, o
entrevista semiestruturada. O roteiro foi elaborado a
funcionamento dos aparelhos substitutivos de saúde
fim de compreender quatro eixos temáticos: atuação
mental, a questão ideológica que perpassa todo o
do profissional na instituição; percepções acerca
processo de tratamento e, através do método da
da Reforma Psiquiátrica; das práticas clínicas; e de
psicanálise aplicada, abordaremos as perspectivas
ressocialização presentes no CAPS.
clínicas no tratamento institucional pensando a
Os participantes foram recrutados
realidade do CAPS em questão.
através de convite à coordenação da Instituição
31 M P P Vieira e T H R Rocha
responsabilização dos profissionais em relação aos Teve uma crise uma vez que a moça que faz
usuários dos serviços de saúde; a busca por ajuda comida participou e ela deu o desfecho da
em outros setores denominada de intersetorialidade; crise. O cliente conseguiu voltar da onde
o reconhecimento dos limites do conhecimento ele tava, que ele não queria voltar para o
dos profissionais de saúde e de suas tecnologias CAPS. Ela foi lá na rua buscar ele, porque o
para conseguirem buscar auxílio em outros setores; almoço estava na mesa e ela não abria mão
assumir um grande compromisso ético no trabalho dele almoçar. A gente ficou assim (cara de
em saúde (Ministério da Saúde, 2004). espanto) “que legal!” (Carolina).
A intersetorialidade mencionada se constitui Desse modo, o trabalho implica um contato
como um passo à frente do trabalho da equipe direto e duradouro com os diferentes profissionais
multiprofissional. O trabalho no CAPS inclui não apenas que atuam no serviço, dos secretários aos médicos,
psicólogos, psiquiatras, enfermeiros e assistentes atravessando as hierarquias funcionais e burocráticas
sociais, como também conta com a participação de (Figueiredo, 1997). Quando diferentes profissionais
outros profissionais. Os motoristas de van, as auxiliares auxiliam em crises, nem sempre sob uma perspectiva
de serviços gerais (ASG), que são responsáveis pela clínica, mas de cuidado com o usuário, o serviço
manutenção da instituição e pela alimentação dos ganha em termos de qualidade de atendimento e de
usuários, e que muitas vezes acabam participando do intersetorialidade.
acolhimento de crises eventualmente no CAPS. A ressignificação das crises, enquanto
O termo “crise” apresenta múltiplos sentidos passagem e não necessariamente um sintoma, é um
e se encontra em discursos cotidianos, bem como dos pilares mais importantes do projeto terapêutico
no campo da saúde mental. Ele pode portar o do CAPS. Assim, “Às vezes um outro ali né, que
significado de dor, sofrimento, ansiedade, felicidade, não é o profissional da saúde propriamente pode
patologia, dentre vários outros; geralmente indicando até entender essa crise com outro olhar menos
intensidade, incerteza e imprevisibilidade em seu patológico. Isso é muito potente também, né, no
uso. Essa polissemia da “crise” pode ser contraditória auxílio” (Jaime). Aqui, é legítimo pensar a metáfora
e confusa inclusive no modo como lidamos com ela delirante e a construção de um delírio possível serem
(Krachenski & Holanda, 2019). O trabalho com a crise concebíveis em um local onde o sujeito possa se
demanda conhecimentos específicos e técnica, mas o reconhecer como tal. A clínica ampliada, alicerçada
seu acolhimento, o CAPS mostra que a convivência e na prática que prima por não objetalizar o outro, mas
o vínculo com os usuários da instituição no cotidiano que permite que este alcance sua posição de sujeito
contribuem substancialmente para o estabelecimento do inconsciente, desejante, é o que nos permite
do laço entre os usuários e a instituição. Assim, visualizar uma prática que descentraliza da figura do
independentemente se esse acolhimento acaba sendo técnico a responsabilidade última pelo cuidado com
feito por um profissional especializado em saúde o usuário.
mental, se é feito por uma ASG, por uma secretária, A crise não é um sintoma. Como a palavra
por um outro usuário do CAPS ou por um familiar, isso expressa, a crise é um momento da experiência de
diz de uma intersetorialidade do serviço. uma pessoa. Em termos médicos fala-se de urgência,
Esse movimento que acontece na instituição ou em termos sociais, fala-se em gravidade. Já em
evidencia uma organicidade de seu funcionamento termos econômicos, ao se falar de crise, fala-se em
em que, apesar de haver cargos e funcionalidades excessiva despesa (Viganò, 2012). Assim,
específicas, o acolhimento do sofrimento mental é
A Fundação (o CAPS) nasce no momento de
exercitado por todos.
conversa sobre o hospício, no momento de
Eu percebo que todo mundo que precisa está denúncia dos horrores dos pátios do depósito
ali. Daquele cliente, daquela crise específica da desumanização. Então é um projeto que
e aí é hora de você usar sua bagagenzinha. É humaniza e liberta, mas no sentido da clínica
muito legal, inclusive não só a parte técnica. nova do direito à diferença. É a ideia da crise
33 M P P Vieira e T H R Rocha
oferecido pela instituição, alienando o “usuário indefinido —, pode ser entendida como uma forma
consumidor” das ofertas do CAPS. de metonímia da exclusão executada pelo próprio
A relativização de cada caso através do plano sistema que deveria capacitá-los como sujeitos.
terapêutico singular permite percebermos que para Metonímia, pois funciona como uma estratégia de
cada usuário a ressocialização significa algo diferente, opressão maior, praticada pelo Estado em relação
como pode ser observado pelo seguinte relato: aos sujeitos que nele deveriam se incluir. Estratégia
Ela (referindo-se à usuária com diagnóstico que começa a ser evidenciada e questionada,
psiquiátrico de transtorno de humor) tem particularmente, a partir do final dos anos 1970 pela
um nível de autonomia muito grande, mas opinião pública no contexto da exposição das práticas
que dentro, ela mesmo coloca assim — Eu de exclusão, de controle e de torturas realizadas pelo
fico pensando se algum dia eu conseguiria Estado durante o regime militar (Kyrillos Neto, 2007).
retornar para o trabalho. Eu acho que eu Nesse sentido, um dos relatos que apareceu
não conseguiria porque aquela questão de nas entrevistas coaduna com essa questão sob uma
estar com muitas pessoas num lugar só e ter outra ótica.
que cumprir uma jornada de trabalho, né. Para que haja um equilíbrio assim eu acho
Isso fez com que eu adoecesse, então eu não que o “lá fora” poderia estar mais “dentro”
consigo, né, tá dentro, caber dentro desse da clínica, dentro do CAPS, dentro da saúde
lugar. É… é… isso foi adoecedor (Amanda, mental. Pra poder ter um entendimento
julho 12, 2020). melhor sobre o que é vivenciado aqui e
Então ressocializar não é retornar ao sobre o que que acontece, sobre o que é a
trabalho e sim recuperar vínculos sociais, tornar a saúde mental, para poder ter uma harmonia
ocupar determinados espaços etc. Logo, a interface entre um e outro (Patrícia).
entre clínica e cidadania fica mesclada e varia de Assim, já que a hipótese inicial da pesquisa
caso a caso, mas prevalece em relativa harmonia. foi contestada, o que se coloca como questão, não
Logo, ao olhar para o sujeito com suas possibilidades é a massificação dos sujeitos ou a perda da clínica,
e inúmeros contornos, o que aparece não são e sim a instituição e o fazer da clínica ampliada
patologias, e sim os modos de ser em um dado como substituintes da personalização do analista.
contexto, permeado de significados e formas de Isso significa dizer que a instituição opera como um
expressar sua humanidade. O sofrimento, então, todo, permitindo que o discurso do analista circule.
não seria algo exterior à pessoa, mas um fragmento Não apenas na figura do profissional, mas no fazer
que o constitui, com a potencialidade de promover institucional em si.
mudanças significativas no sujeito e novas formas de
se colocar no mundo (Faria et al., 2020). O Discurso do Analista
A discussão sobre os processos de produção
de identidade social, tem em relação a estrutura Advertimos, inicialmente, que os profissionais
do sofrimento psíquico, um campo importante de da instituição atendem a partir de diferentes
desenvolvimento. Isso porque, ao ser visto como correntes teóricas. Dessa forma, propomos pensar
patologia, o sofrimento se torna em modo de sobre o discurso do analista não a partir da figura
compartilhamento de identidades que trazem consigo real do analista, ou seja, identificado a determinado
regimes de compreensão de afetos. Assim, podemos profissional. O que propomos é pensar que o
dizer que as patologias são áreas importantes dos discurso do analista é um ato produzido a partir de
processos de socialização (Safatle, 2018). uma posição não encarnada em um sujeito, mas que,
Percebe-se que a repercussão pública da sob determinadas circunstâncias, pode ser pensado
condição a que estavam submetidos os internos, ou a partir de um fazer institucional que independe da
seja, os que estão em um espaço interior — dentro orientação teórica do profissional. Nesse sentido,
de um dispositivo de tratamento, às vezes por tempo pretendemos pensar o que sustenta a prática dos
35 M P P Vieira e T H R Rocha
por um sujeito, mas por um saber (S2) universal. pelo efeito do discurso do analista. Na última
Sob a ótica da instituição de saúde mental, esse posição, inferior esquerda, no lugar da verdade, está
discurso seria encarnado em um domínio muitas S2, que ilustra o saber inconsciente que se torna
vezes assumido pelo profissional sobre o paciente inacessível a qualquer conexão com os S1 do sujeito,
ao colocar o universal da reinserção social como representado pela não realização da alienação do
um operador que “faz funcionar” o cotidiano sujeito (impotência) ao saber do analista. Assim,
institucional. Aqui, concordamos com Nicolau e ao encontro com o pensamento de Pena (2017), a
Calazans (2016) sobre a proposição de tratar-se de circulação do discurso do analista move a construção
um poder atravessado por um pressuposto racional do caso em saúde mental, mas não existe uma forma
que não permite a escuta do sujeito. Isso implica definida, fechada, para tal construção.
em seu assujeitamento, por exemplo, ao aceitar Ao contrário do discurso do mestre, o
passivamente prescrições ou intervenções clínicas. discurso do analista não se constitui como um
No discurso do analista, no lugar de agente discurso de domínio. Ele é a causa do desejo de saber
do discurso está o a, representando o sintoma do o sentido dos sintomas que agem sobre o analisando
paciente em que o gozo pode ser colocado em através da associação livre (Álvares, 2006). O
questão, bem como suas saídas próprias em relação discurso do analista se endereça ao sujeito barrado,
a esse modo de gozo. À direita em cima, no lugar do enquanto o discurso do mestre se volta para o outro
outro do discurso, está seu reconhecimento como na posição de objeto, com um saber absoluto sobre
sujeito ($). Neste modo de enlaçamento discursivo, ele. O analista não atende às demandas do sujeito
o profissional de saúde mental, ao se fazer objeto do S barrado com o seu saber, mas com sua atuação
desejo do outro (a), permite que o outro, usuário do que permite ao sujeito um novo encontro com seu
serviço de saúde, tenha possibilidade de reconhecer desejo (Nicolau & Calazans, 2016).
sua condição de sujeito castrado ($), dividido, donde No discurso do analista, trata-se de se colocar
o manejo clínico torna possível o remanejamento como agente de um saber e não como causa do saber.
dos S1. Assim, a posição de escuta permite, a partir Isso significa que, no processo analítico, segundo a
deste modo de laço estabelecido, criar a possibilidade lógica do discurso do analista, em um certo momento,
de fazer-se Outro para o usuário-sujeito. Assim, há o processo de queda do sujeito suposto saber (o
percebe-se que não quer dizer que o sujeito não analista). Tal queda permite que o analisando se
tenha um pé na realidade, e sim que não é aí que ele identifique com essa posição de sujeito suposto saber
encontra seu lugar de sujeito (Tenório & Rocha, 2006). e produza novas organizações psíquicas no processo
Nessa direção, o usuário passa do lugar terapêutico (Ferreira et al., 2014).
de mero consumidor das ofertas protocolares do Nessa direção, o fato de o analista se
CAPS para o de um usuário-sujeito. Vicente (2018), encontrar na posição de agente ou semblante
retomando o pensamento de Basaglia, mostra que, de um discurso enquanto objeto a, possibilita-o
como “sindicalista”, o trabalhador de saúde mental sustentar as fantasias do sujeito barrado, ou seja, do
precisa atuar em termos de conscientização do paciente. Assim, ele poderá entrar em contato com
louco, para que ele seja ativo em suas reivindicações. seus significantes mestres (S1) e sair dessa posição
Em sucinta essência, o sujeito irá se “desalienar” de alienação, produzindo saberes sobre si mesmo.
através da tomada de uma posição reflexiva diante Desse modo, “tal fato combina com a ideia de que
do desconhecimento ideológico. Mais adiante em o analista e a situação da análise se estruturam a
nossa discussão, falaremos mais sobre essa mudança partir das possibilidades de fazer ‘como se’, de fazer
da posição do sujeito no processo terapêutico. a ‘aparência de’, enfim, de fazer semblante” (Dunker,
Abaixo e à direita, no lugar da produção, 2017, p. 55). Essa aparência de sustentação das
está S1 representando os significantes-mestres fantasias do outro, é o que viabiliza a produção do
deste usuário do serviço, mas que, aqui, tem a discurso do analista de uma forma mais solidária e
possibilidade de ter a cadeia significante rearticulada não transcendental, que denota um poder.
37 M P P Vieira e T H R Rocha
discurso do analista teria o efeito de produzir fascínio você não tiver esta condição ali dentro desse
ao mesmo tempo em que produz um significante cuidado de estar próximo e o estar próximo
que indaga (Betts, 2006). Conforme supracitado não é só estar do lado né, é estar do lado
por Ferreira et al. (2014), aproximar a enunciação afetivamente (Amanda).
do analista da experiência estética seria, portanto, A fala deve ser priorizada não como
apostar que essa é capaz de alterar o lugar da manifestação patológica que demanda correção
enunciação do sujeito. ou resposta imediata, mas como possibilidade de
Nessa direção, a arte enquanto ferramenta mostrar outra dimensão da queixa que singulariza o
no processo de escuta na clínica da psicose, com pedido de ajuda. Por conseguinte, o tratamento se
frequência aparece nos discursos dos profissionais alicerça, inicialmente, no acolher e escutar ao invés
entrevistados; “o homem é sexualidade, trabalho, de ver e conter (Corbisier, 1992). O psicanalista,
espiritualidade, família, relação de vizinhança, arte. desse modo, não se impõe com seu ego. Isto não
Nós somos n linhas” (Cícero), ao que acrescenta: significa que a pessoa do analista seja pulverizada,
“Então não há arte apenas como produção de obra, despida de vaidades e quereres (Figueiredo, 1997).
mas o viver enquanto um viver artístico. À moda do Nessa direção, como o analista ocupa a
artista então, a arte como modo de vida” (Cícero). posição de sujeito suposto saber, ao fazer isto, ele
A escuta da clínica da psicose aparece restitui ao usuário sua condição de sujeito, saindo da
também pelo intermédio de experiências estéticas, posição de objeto. É através do discurso do analista
tal como segue: que há possibilidade de criação de teias e que estas
nessa oficina de artes a gente trabalha a questão se estendam entre um usuário e outro dentro do
da arte mesmo, mas a partir disso a gente vai serviço. Permite que o acolhimento psicológico não
extraindo nessa oficina conteúdos que têm ocorra apenas entre analista e paciente.
a ver com o dia a dia deles, com a vida deles, Não é só a gente que cuida. Eles cuidam,
que tem a ver com o que eles estão sentindo eles também fazem corpo e isso dá uma
naquele momento e a gente vai trabalhando continência, né, para aquele local. Porque
isso dentro dessa oficina. O objetivo da oficina é eles já viveram isso, e eles falam isso
uma oficina terapêutica também (Patrícia). constantemente em terapia, né. — A gente
Assim, o discurso da equipe na instituição já viveu isso, a gente sabe o que que é uma
muitas vezes se aproxima da linguagem artística para crise, então a gente também sabe como
acessar conteúdos inconscientes através das oficinas cuidar disso aí. A gente compartilha essa
terapêuticas. Ainda assim, elas desvelam a importância solidariedade (Amanda).
da arte pela via da incerteza do saber e não pela verdade Essa questão do cuidado ampliado em
que porta o discurso psicológico e/ou psiquiátrico. saúde aparece em outros discursos, como quando
Assim, “um CAPS com grau denso de psicoterapia nas observamos o seguinte relato:
oficinas não funciona. Que tem hora que é preciso da
Pode ser um outro usuário né, que também
arte pela arte, da alegria pela alegria, do social pelo
está vinculado àquela pessoa que é uma fonte
social, e isso compor um todo” (Cícero).
de confiança do usuário, né? Que às vezes é
Além disso, a relação entre terapeuta e usuário
capaz de intervir mais potentemente do que
nas entrevistas aparece constantemente mediada
o profissional de saúde propriamente, né. Em
pela empatia, denotando certa horizontalidade no
muita situação de crise então, tem isso aqui,
processo terapêutico, característico de um discurso
todo mundo pode intervir e é bom que seja
não dominante, ou seja, que não é de mestria.
assim mesmo, né. Porque é complicado às
Então essa questão de empatia de estar junto vezes, às vezes até acreditam que o psiquiatra
para estar junto, você precisa realmente que tem um poder mágico que vai resolver
estar presente e assim não adianta. Só se totalmente aquela crise, tudo (Jaime).
colocar nesse lugar de terapeuta, né, se
39 M P P Vieira e T H R Rocha
trabalho da equipe do CAPS ainda têm sustentado a Referências
clínica e o resgate da cidadania dos usuários, como
efeito da prática e não como produto de oferta a ser
American Psychiatric Association. (2022). Manual
incorporado.
diagnóstico e estatístico de transtornos
A atuação dos profissionais entrevistados
mentais: DSM5-TR (5a ed.). Artmed.
demonstrou que o trabalho executado pela clínica
extensa do CAPS viabiliza a ressignificação das Álvares, C. (2006). Os quatro discursos no Seminário
crises e do sentido do que seja estabelecer um laço XVII de Jacques Lacan, no seminário de Literatura
social de real implicação subjetiva. De tal maneira, Portuguesa dirigido por Américo Diogo. Aula
aberta, Universidade do Minho, Portugal.
diz de um trabalho caso a caso, considerando as
particularidades de cada sujeito numa tentativa de Badin, R., & Martinho, M. (2018). O discurso
escapar da massificação da cidadania ou de uma capitalista e seus gadgets. Trivium:
normalização do sofrimento mental. O que tem Estudos Interdisciplinares, 10(2), 140-154.
sido feito é um trabalho de caos, é ressignificar a doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.140
crise enquanto passagem e não como retrocesso Betts, J. (2006). Ato analítico, ato religioso e ato de
no processo terapêutico. É nortear o tratamento criação artística. Correio da APPOA, (149), 13-16.
da clínica pela lógica do discurso do analista, Brousse, M. H. (2003). O inconsciente é a política.
reposicionando o sujeito em torno do significante. Escola Brasileira de Psicanálise.
Camara, K. C. (2016). Le normal et le pathologique:
étude comparative de l’approche de Boorse et de
Canguilhem à propos de la définition de la maladie
et de la santé. Revue Phares, 16, 141-165.
Canguilhem, G. (2009). O normal e o patológico (6a
ed.). Forense Universitária.
Corbisier, C. (1992). A escuta da diferença na
emergência psiquiátrica. Psiquiatria sem
Hospício. Relume-Dumará.
Dunker, C. I. L., & Kyrillos, F., Neto. (2011). A crítica
psicanalítica do DSM-IV – breve história do
casamento psicopatológico entre psicanálise
e psiquiatria. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.,
14(4), 611-626. doi.org/10.1590/S1415-
47142011000400003
Dunker, C. I. L. (2017). Discurso e semblante.
nVersos.
Faria, N., Ferreira, F., & Pinto, J. (2020). A medicalização
do cotidiano como supressão da iniciativa. Revista
PsicoFAE: Pluralidades em Saúde Mental, 9(1),
81-94. Recuperado de https://revistapsicofae.fae.
edu/psico/article/view/294
Ferreira, D. D., Silva, R. J., & Carrijo, C. (2014). O
estilo em psicanálise: o discurso do analista
como arte do bem dizer. Psicol. USP, 25(1).
doi.org/10.1590/S0103-65642014000100008
41 M P P Vieira e T H R Rocha
Santos, D. R. G., Reis, J. K. N., Rosário, A. B., &
Kyrillos, F., Neto. O paradoxo da inclusão: a
relevância da escuta do sujeito nos CAPS.
Vínculo, 16(2), 68-87. doi.org/10.32467/
issn.19982-1492v16n2p68-87
Tenório, F., & Rocha, E. C. (2006). A psicopatologia
como elemento da atenção psicossocial. In S.
Alberti, & A. C. Figueiredo (Orgs.), Psicanálise
e saúde mental: uma aposta (pp. 55-72).
Companhia de Freud.
Torres, R. S. (2013). Do ato psicanalítico ao
discurso do analista: a estrutura do campo
lacaniano. [Tese de Doutorado, Universidade
de São Paulo].
Turato, E. R. (2008). Tratado da metodologia da
pesquisa clínico-qualitativa. Vozes.
Vicente, T. A. F. (2018). Psicose e CAPS entre a
metapsicologia, clínica e política. [Dissertação
de Mestrado, Universidade Federal de São João
del-Rei].
Viganò, C. (2012). Psicose e laço social. In W. D.
Alkmim (Org.), Novas conferências (pp. 51-66).
Scriptum Livros.