Nicolau Sevcenko - A Capital Irradiante
Nicolau Sevcenko - A Capital Irradiante
Nicolau Sevcenko - A Capital Irradiante
Vários autores.
Bibliografia.
IsBN 85-7164-651-1 (obra completa)
ISBN 85-7164-747-X
98-0431 cDD-981
2001
A CAPITAL IRRADIANTE:;
TÉCNICA, RITMOS E
RITOS DO RIO
Nicolau Sevcenko
ORIG
o
RE] Bo
514 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 515
DI Secrava
nalização, controle e harmonização do mundo contingente. O O fato de que as gerações posteriores, cujos representan-
que ocorre é o contrário: os novos recursos técnicos, por suas tes já nasceram após a consolidação desse processo e portan-
características mesmo, desorientam, intimidam, perturbam, to foram acostumados desde pequenos à experiência das ve-
confundem, distorcem, alucinam. No mínimo porque as esca- locidades tecnológicas, consigam distinguir e interpretar as
las, potenciais e velocidades envolvidos nos novos equipamen- paisagens que vislumbram em movimento, é bastante revela-
tos e instalações excedem em absoluto as proporções e as limi- dor da capacidade humana para assimilar e adaptar-se aos
tadas possibilidades de percepção, força e deslocamento do efeitos desorientadores dos novos recursos e potenciais. Mas
corpo humano. Compare-se o símbolo máximo da nova técni- o preço dessa adaptação é a perda da capacidade de reconhe-
ca, a Torre Eiffel, com o tamanho de um ser humano médio. cer sua estranheza e os modos pelos quais elas reorientam a
Ou a força de uma locomotiva, ou a velocidade de um avião. percepção humana. O hábito, mais que a adaptação ativa,
Ou coteje-se a escala de uma casa familiar de proporções mé- gera a adesão conformada e a sensação de que, no que se
dias com as dimensões de uma usina hidroelétrica ou de um refere ao corpo e à mente, a mudança é pouco relevante e os
complexo siderúrgico ou de um aeroporto. Ou compare-se a homens continuam os mesmos desde que o primeiro mem-
luz de uma vela, acessório milenar da humanidade, com um bro da espécie surgiu na Terra.
holofote, ou uma página de livro com uma tela de cinema. Uma das primeiras apresentações de imagens em movi-
Os escritores do século x1x que já eram adultos quando mento na Europa ocorreu com a exibição do filme A chegada
viveram a experiência das suas primeiras viagens ferroviárias, do trem na estação, de Louis Lumiére, em 1895. Acompanhe-
deixaram registros muito reveladores sobre suas impressões. mos a descrição que o escritor Máximo Górki fez da sua
Eis como Victor Hugo comentou a vista da paisagem rural primeira impressão quando viu o filme: “De repente há um
pela janela do trem em movimento: “As flores ao longo da estalo, tudo se apaga e um trem numa ferrovia aparece na
ferrovia não são mais flores mas manchas, ou melhor, fachos tela. Ele dispara como uma flecha na sua direção — cuidado!
de vermelho ou branco; não há mais pontos, tudo se converte A sensação que se tem é como se ele se arremessasse na escu-
em traços. Os campos de trigo são grandes cabeleiras loiras ridão até onde você está sentado e fosse reduzi-lo a um saco
desgrenhadas... As cidades, as torres das igrejas e as árvores de pele estropiado... e destruir esse salão e esse prédio... tor-
desempenham uma dança louca em que se fundem no hori- nando tudo em fragmentos e pó..”.5
zonte”? Esse impacto sentido por -Górki correspondia fielmente
Pelas distorções registradas na percepção de Victor Hugo ao choque geral que o aparecimento da técnica cinematográ-
pode-se vislumbrar com perfeita clareza o percurso pelo qual fica desencadeou por toda parte. A primeira apresentação
as artes visuais mudaram suas linguagens sob o impacto das desse filme se deu em Lyon, durante o Congresso das Socie-
novas tecnologias. Sua descrição dos efeitos desfigurativos dades Fotográficas Francesas. O tipo de público reunido nes-
produzidos pela aceleração da locomotiva e o consegiiente se evento era bastante familiarizado portanto com instru-
deslocamento do olhar evocam as paisagens dissolvidas de mentos óticos e recursos relacionados à fotografia, não sendo
Turner, ou os efeitos irregulares das irradiações luminosas de esperar que fosse se alterar muito com o espetáculo. Mas o
captados pelos impressionistas, sua visão alucinada dos tri- que sucedeu foi curioso. Quando houve o anúncio da pri-
gais preconiza Van Gogh, a coreografia tresvariada das for- meira sessão de cinema, o desinteresse foi completo, os parti-
mas confundidas do campo e das cidades multiplica as pers- cipantes do Congresso reagiram com ceticismo e pouco-caso
pectivas e aponta para as experiências radicais do cubismo. à suposta “novidade” Apenas 33 gatos-pingados tomaram
Caso mais interessante ainda é o de Gustave Flaubert que, assento no salão para conferir a engenhoca. Quando a luz se
simplesmente, não conseguia interpretar nenhum elemento apagou e a imagem do trem se pôs em movimento, o resulta-
do que via pela janela do trem acelerado: “Eu não consigo do foi conforme o relato do escritor russo. Após a projeção os
captar nada da vista oferecida pela janela da cabine”.* espectadores saíram comentando sua experiência e, em bre-
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mentações populacionais, especialmente voltadas para a con- de símbolos e de ritos sociais, estilos de arte, formas de retóri-
centração nas áreas urbanas que polarizam o processo. É o ca, ritmos de dança, regras de conduta, modas de trajo e de
que desencadeia o fenômeno da metropolização na sua mag- penteado” a fim de “tentar surpreender e interpretar o que
nitude contemporânea. Segundo o planejador Kingsley houve de mais íntimo no caráter de uma época”. O modo de
Davis, as sociedades urbanas “representam um passo novo e elaborar essa síntese interpretativa, porém, deve estar voltado
fundamental na evolução social humana” mas, ainda assim, para um esforço de reunir “verdades contraditórias”. Ou seja,
“nem a condição recente nem a velocidade desse desenvolvi- incorporar perspectivas distintas de pessoas de gerações e con-
mento evolutivo têm sido devidamente compreendidas”! dições sociais diferentes, que vivam e percebam os processos
O que implicaria um esforço para desvendar e compreender de mudança valendo-se de diferentes coordenadas, possibili-
o modo pelo qual a experiência de viver nas grandes cidades tando assim ao historiador uma apreensão mais ampla e varia-
modernas, planejadas em função dos novos fluxos energé- da dessa complexa experiência de transformação dos hábitos e
ticos e marcadas pela onipresença das novas técnicas, in- dos quadros culturais. Sua sugestão é seguir nesse sentido as
fluencia e altera drasticamente a sensibilidade e os estados de lições do mestre espanhol Ortega y Gasset com seu método
disposição dos seus habitantes. Esse aspecto foi bem apreen- “perspectivista”: “É ele quem adverte muito lucidamente, sobre
dido pelo historiador da cultura James Donald, que o obser- as “visões distintas” não se excluírem: “mas ao contrário tende-
va pelo nexo estratégico que a ambiência das megalópoles rem a se integrar” pois nenhuma esgota a realidade.” É que,
mantém com o cinema. “A metrópole moderna e a instituição segundo Ortega, “uma realidade que vista a partir de qualquer
do cinema surgem praticamente no mesmo momento. Sua ponto permanecesse sempre idêntica, seria um conceito absur-
justaposição fornece várias chaves sobre a estética pragmática do” pois 'cada vida é um ponto de vista..” Mais, “a única pers-
pela qual experimentamos a cidade não apenas como cultura pectiva falsa é essa que pretende ser a única”!
visual, mas acima de tudo como um espaço psíquico”2 Nesse espírito, conduzimos esta pesquisa através dos tex-
No Brasil, no período estudado, esse papel de metrópo- tos de diferentes escritores do período, na tentativa de com-
le-modelo recai sem dúvida sobre o Rio de Janeiro, sede do preender tanto as mudanças provocadas pela introdução das
governo, centro cultural, maior porto, maior cidade e cartão novas técnicas e modos de vida quanto os efeitos da constru-
de visita do país, atraindo tanto estrangeiros quanto nacio- ção dos mitos da modernidade e da cidade moderna na expe-
nais. O desenvolvimento dos novos meios de comunicação, riência pessoal de diferentes grupos da sociedade carioca. O
telegrafia sem fio, telefone, os meios de transporte movidos a percurso se inicia com Machado de Assis e João do Rio, in-
derivados de petróleo, a aviação, a imprensa ilustrada, a in- corporando progressivamente outros autores, fontes e vozes
dústria fonográfica, o rádio e o cinema intensificarão esse na medida mesma em que o afluxo das experiências identifi-
papel da capital da República, tornando-a no eixo de irradia- cadas com a modernidade vai se adensando e intensificando.
ção e caixa de ressonância das grandes transformações em Machado e João do Rio são vias privilegiadas para captar
marcha pelo mundo, assim como no palco de sua visibilidade a força e as ressonâncias do impacto tecnológico. Cada um
e atuação em território brasileiro. O Rio passa a ditar não só atua como um sensor de registro diferente mas que se com-
as novas modas -e comportamentos, mas acima de tudo os pletam às maravilhas. Machado, mais velho, cuja sensibilida-
sistemas de valores, o modo de vida, a sensibilidade, o estado de se formou no cenário das instituições imperiais, assinala o
de espírito e as disposições pulsionais que articulam a mo- ímpeto e a velocidade das mudanças, a surpresa dos seus
dernidade como uma experiência existencial e íntima. É nes- contemporâneos e as resistências erguidas como meios de
se momento e graças a essa atuação que o Rio se torna, como defesa contra um fluxo que a tudo parecia levar de roldão.
o formulou Gilberto Freyre, numa cidade “panbrasileira”.!3 João do Rio, mais jovem, cujas possibilidades de carreira se
Esse mesmo autor, aliás, nos lembra o valor precioso que abriram com o advento da República, assinala a ampla difu-
assume o estudo das “predominâncias de palavras, como as são, os efeitos de mitificação e os modos de celebração en-
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Numa das crônicas escritas para a revista A Semana em gens envolvidos. O autor da pergunta inoportuna de fato se
1894, Machado de Assis relata um incidente muito curioso, espanta com a resposta ambivalente do condutor, mas o dado
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relevante é que tanto antes do questionamento ele já não via ro poderia ser justificado por um mecanismo interno, de
a situação como problemática, como a narrativa leva a crer progressiva urbanização, incorporação das populações mar-
que, uma vez imperturbavelmente informado da ambigiida- ginais às práticas e demandas de uma rotina que define com
de definitiva, parece aceitá-la ele também, após a surpresa clareza os âmbitos do público e do privado e sua ulterior
inicial, como realidade imponderável. Sabedor desse consen- redenção pela elevação geral dos usos e costumes aos padrões
so tácito é que o cocheiro fuma tranquilamente seu cigarri- da doutrina liberal. Explicação que se lhe prova insuficiente.
nho, que a ele faz tanto gosto e apenas aos demais, no inte- Já pela segunda, não há que esperar mudanças significativas,
rior do veículo para onde toda a fumaça converge, é que mas, ao contrárió, um recrudescimento dos hábitos enraiza-
pode porventura causar qualquer desconforto ou inconve- dos. E mais uma vez Machado se revela um observador im-
niência. A convicção básica compartilhada por todos, porém, placável. Na sua sutil ironia, a verdade é aqui, o erro lá.
Machado incluído, é que pelo menos até se chegar à área É muito relevante que a cena se passe num bond.” Ainda
central, ninguém, mesmo que incomodado, há de advertir o que visto aqui na sua primeira versão, movido a tração ani-
fumante ou cobrar a aplicação da lei. Até lá, o conjunto do mal, ele já era um poderoso índice de urbanização, transfor-
veículo público é uma extensão do espaço privado do cochei- mação tecnológica e ampliação do espaço público. É fácil
ro e, sem dúvida, do condutor. A partir do centro, a história é deduzir que se o cocheiro fosse o criado de uma família abas-
outra.!é tada ou mesmo o condutor de uma caleça de aluguel, não
Como entender o paradoxo? Machado parece a certa al- fumaria na presença de seus patrões ou seus clientes. O fato
tura evocar o peso da tradição para explicá-lo. Na mesma de que ele fume no bond não se deve apenas à condição de
crônica faz uma indagação sugestiva. “Quem imaginará que este ser público, mas sobretudo porque ele constitui uma
se pegue de um homem dos campos, onde respira o ar livre e presença maciça, ruidosa e perturbadora de um novo poder
puro, para meter-lhe uns calções de Corte e fazê-lo dançar o tecnológico. Ao estabelecer uma intimidade privativa com
minueto?” Por certo, porém, reconhece que a questão é mais essa potência e suas conotações europeizadas, modernas, agi-
complexa e por isso recorre à eminência de Pascal. A referên- gantadas e céleres, o cocheiro e o condutor acentuam sua
cia à “verdade de cá e ao erro de lá”, pelo viés do filósofo identificação pessoal com a nova potestade, diferenciando-se
francês, sugere o confronto maior, entre a sociedade e cultura dos seus concidadãos comuns, sejam eles pedestres ou passa-
brasileiras e sua suposta matriz européia. De modo que, pela geiros ou mesmo gente de classe social superior. E natural-
primeira explicação, o comportamento impróprio do cochei- mente não desejavam se submeter a uma admoestação humi-
11. O charuto representa o lhante, que os repusesse na sua condição subalterna, ao aden-
Prestígio das posições conquistadas,
dois termos, como conceitos correlatos ou equivalentes sim-
trar a área central, a mais policiada e fiscalizada da cidade.'º bólicos.
o prêmio do sucesso, a consagração
de uma reputação, trazendo como O fato de que o objeto das cogitações entre os persona- É com certeza por isso que quando João do Rio cria a
corolário a admiração feminina, gens seja um cigarro também não é de menor interesse. Os figura do janota típico da sociedade carioca no início do sé-
a promessa de maiores prazeres cigarros ou charutos industrializados, diferentemente do culo, na pessoa do elegante empertigado Jacques Pedreira,
e novas conquistas. Atente-se para fumo de corda ou fumo de pitar, eram presenças recentes na egoísta consumado e moderno dernier bateau, o gesto que
a óbvia insinvação fálica vida urbana e se distinguiam dos hábitos tradicionais de fu-
da imagem publicitária, melhor o define é seu jeito de fumar: “Acendeu um cigarro,
associando o charuto à virilidade.
mar ou mascar, sobretudo relacionados com o ambiente ru- acendeu-o à moda, não com fósforo, mas com um isqueiro.
(Charutos Príncipe de Gales, ral. Nas grandes cidades, era considerado de bom-tom o con- Para saber a que sociedade pertence um homem, basta vê-lo
1929) sumo do rapé, identificado como um uso da Corte. Machado fumar. Jacques fumando era de primeira classe, com o cigar-
de Assis, uma vez mais, nos lembra como ele se constituía ro grosso no meio do lábio carnudo, tragando vagarosamen-
não só numa nota de elegância, mas acima de tudo num te, nunca, jamais quebrando a cinza com o dedo mínimo”
forte elo de coesão da vida social. Comentando um encontro Por isso mesmo seu traje preferido era o smoking jacket, com
casual entre vetustos cavalheiros numa seção eleitoral, ele re- o qual frequentava o smoking room dos clubs da cidade, divi-
lata, em outra crônica de 1894, a imediata satisfação difundi- dindo seu tempo entre o poker e o flirt. Nesse início de sécu-
da no grupo, quando um deles sacou da “amostrinha”: “Um lo, o cigarro tinha portanto ainda uma conotação europeiza-
velho, ainda maduro, aventou uma boceta de rapé. Foi uma da. Afinal ele havia sido celebrizado, juntamente com o café,
alegria universal. Com quê, ainda tomava rapé? No meu pela juventude revolucionária nas agitações que assinalaram
tempo, disse o velho sorrindo, era o melhor laço de sociabi- a passagem do século xvil para o x1x, sendo ambos dissemi-
lidade; agora todos fumam, e o charuto é egoísta” Sem nados pelos exércitos de Napoleão, depois consagrados pela
dúvida um novo hábito: moderno e egoísta. Machado con- boêmia intelectual e artística da Paris do Segundo Império.
duz o relato de modo a sugerir um efeito de fusão entre esses Somente após a Primeira Guerra, sobretudo pela via do cine-
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A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO
virtude de suas propriedades estimulantes, com os novos rit- para fazer a obra, não fazer a obra, fazer as malas e fazer a
mos do trabalho e a fragmentação da experiência urbana. viagem do céu, com escala pela Europa”
Como já anunciara nosso arauto Machado de Assis, “esse À referência ao céu é precisa, pois se tratava justamente
último quarto de século é o princípio de uma era nova e da nova utopia dos arrivistas: dinheiro a rodo, dinheiro seja
extraordinária”? Esse contexto é crucial para se entender, no
como for, dinheiro. já e já, para gastar com artigos importa-
rigor da palavra, o que significa a vida moderna. Na sua po- dos ou para viajar ao exterior. Naturalmente a contrapartida
sição de cronista do popular jornal Gazeta de Notícias, seu do arrivismo é a cupidez do melado havia muito almejado,
papel era exatamente o de atuar como um intermediário, fonte do clássico aforismo machadiano, “ao vencedor as bata-
comentando as matérias do noticiário internacional e estabe- tas”, Como comenta o autor mais adiante, na mesma crônica
lecendo a ponte para os acontecimentos locais. O que o tor- citada acima: “Mas o pior é que tudo o que agora me cerca
nava num sensor aguçado, captando a maré das mudanças são algarismos, e os mais deles grandes”? Um outro sobrevi-
que do hemisfério norte irradiava as tendências a que o res- vente do Império, o visconde de Taunay, comentou espanta-
tante do mundo se via na contingência de se ajustar e, ao do o espetáculo inusitado da “queima de fortunas seculares”
tm
mesmo tempo, observando as ressonâncias internas desse que, num curto intervalo, foram transferidas para as mãos de
panorama amplo e turbulento. Suas antenas sensíveis se de- “um mundo de desconhecidos”, devotados em sua sanha “à
ram conta do nexo ominoso existente entre as inovações tec- fome do ouro, à sede da riqueza, à sofreguidão do luxo, da
nológicas, a expansão européia, a instabilidade internacional posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo” Ninguém,
e o consequente fluxo de mudanças desencadeadas nas socie- porém, como Machado achou o exato tom sarcástico para
dades por toda parte, dramáticas, céleres e imprevisíveis. revelar o íntimo da consciência da nova burguesia argentária:
“Mas então que é o tempo?” se pergunta ele em crônica de “Mete dinheiro na bolsa — ou no bolso, diremos hoje — e
1894. “É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou esse anda, vai para diante, firme, confiança na alma, ainda que
tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não tenhas feito algum negócio escuro. Não há escuridão quando
há dúvida que os relógios, depois da morte de [Solano] Ló- há fósforos. Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não com-
pez, andam muito mais depressa” De fato, nessa conclusão
pres mal os outros, corrompe e sê corrompido, mas não te
mordente ele condensava a cadeia de eventos que, a partir da
esqueças do dinheiro, que é com que se compram os melões.
Guerra do Paraguai, provocaram a desestabilização do Impé- Mete dinheiro no bolso [...] Make money. E depressa, depres-
rio, a criação da oposição republicana, o golpe de 89, a altera- sa, antes que o dinheiro acabe”
ção da ordem econômica e financeira, a irrupção maciça de Uma vez mais as referências simbólicas são decisivas.
capitais, sobretudo ingleses e norte-americanos no país, a Temos o novo modelo da calça com bolsos, segundo o pa-
bandalheira especulativa do Encilhamento e a modernização drão smart do impecável corte inglês, acessório imprescindí-
acelerada e “a qualquer custo” do país.” vel da recente moda aquisitiva. Temos os melões, e não se
Machado de Assis assistiu impávido ao súbito desabar pode esquecer que eles então eram artigos importados, da
dessa atmosfera de fervor pelo enriquecimento ilícito, quanto Espanha, a preços inimagináveis em virtude das dificuldades
mais rápido mais admirável, que reformulou os quadros de de transporte e conservação, para ser degustados com o au-
valores da veneranda Corte imperial, impondo a febre aquisiti- têntico presunto cru de Parma. E, não menos importante,
va, a fraude escancarada e a exibição ostensiva do luxo como temos o make money, primeiro dos mandamentos da obriga-
os ideais mais elevados de uma nova horda de arrivistas. Numa tória cartilha anglo-saxônica, pela qual rezavam os discípulos
crônica de 1895 ele clamou ao novo panteão republicano: “Se recém-convertidos à nova ordem neocolonial. Se já tínhamos
alguma coisa merecem os meus pecados, peço a Deus a vida visto antes que ser identificado como moderno implicava
precisa para nesses dias futuros incorporar uma companhia, necessariamente algum modo de relação com a tecnologia e a
receber vinte por cento das entradas, levantar um empréstimo
atitude individualista, aqui fica claro que essa identificação
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E
16. Na Belle Époque, o objeto
tes com discrição e luxo. Um dia o nosso frívolo Jacques lhe
do desejo por excelência eram
os chapéus femininos. Os códigos pede a alcova emprestada para um affaire, do que resultou
eram complicadíssimos — essa notável descrição da maisonnette:
variavam conforme a idade, estado
civil, condição social, posição
Jacques submeteu-se ao fetichismo do homem superior
do pai ou marido, estação, [narra João do Rio] e no outro dia, o criado de Belfort,
ambiente, hora do dia, um criado francês, foi pessoalmente entregar-lhe uma
características dos vestidos e jóias chave de prata, com essa palavra a lápis em papel tim-
em uso, as modas das companhias
brado do barão: Excelsior!”
teatrais parisienses e os últimos
À garçonniêre era de um gosto apurado e fino. Ficava
ne H
lançamentos das butiques ego Ouvidor WS a:
francesas. Misteriosos, exuberantes, numa das ruas que desembocam no Flamengo. A casa MODELOS
ousados, eles catalisavam olhares, era própria. Constava de cinco peças. No salão pequeno
ocupavam o espaço, acrescentando havia por mobília um caro tapete, um baú medievo, um
traços de poder, sofisticação e ares contador espanhol, algumas telas de Corot, de Turner,
enigmáticos às usuárias, (Rayon
de Chapéus da Maison Blanche,
uma vitrine com esmaltes e medalhas antigas, cortinas
1908) pesadas de seda, Logo depois, uma sala maior à xvm
século, Jaca e tapeçaria de gobelino moderno. As paredes
17. As “elegâncias” necessariamente
não prescinde também de uma obrigatória associação com eram.forradas de seda rosa. As cortinas eram de seda
deveriam ser francesas, Note-se
símbolos cosmopolitas, em especial aqueles que conotam quase branca. Em medalhões, Lancret, Watteau, Boucher, como o gigantismo da sombra
origem européia ou norte-americana, consolidando a prática três telas em que o amor se repetia galante. O lustre, em projetada insinua o acréscimo
chic de ser snob.? bronze verde fantasiava a escalada dos amores. Havia simbólico com que as roupas
uma bergêre, um divan, um leito, e o ambiente estava e adereços de luxo importados
Mais curioso ainda, nessa miscelânea de emblemas que fariam qualquer criatura “crescer”
traduzem as novas relações de poder e prestígio, assumem impregnado de essência de rosas. A seguir, a sala de ba-
desproporcionalmente aos olhos
um papel da maior importância as referências ao passado,e nho, feita de mármore colorido, alabastro verde, e cris- da sociedade. (Sem título, 1929)
quanto mais remoto melhor, como efeito da insegurança crô- tais de tonalidades mortas. O conforto e a higiene ti-
nica de uma nova gente que não tendo história por trás de si, nham organizado aquela peça, Havia o leito de mármore
precisa criar uma ilusão dela utilizando símbolos e recursos forrado por um tapete persa para as massagens, havia a
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A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 537
MARCENARIA BRAZILEIRA
texto e anula qualquer significação precisa, define-se o pa-
drão eclético com que os “novos homens” disfarçavam com
um mosaico de fragmentos desencontrados a inconsistência
Antiga Moreira Santos de uma trajetória equívoca. Esse é o caldeirão prepóstero em
que fermenta a inautenticidade, decantando o kitsch. Justa-
MOVEIS E TAPEÇARIAS mente porque todo o quadro social se embaralhou, é preciso
reformular uma nova configuração da ordem e como já não
se pode buscar o apoio da história para dispor os papéis, os
heróis e as hierarquias, apela-se para o jornalismo, dando
18. Segundo a lógica eclética origem às indefectíveis colunas sociais.
da Belle Époque, a decoração Acompanham-nas as falanges emergentes dos fiscais do
dos interiores deveria criar uma gosto, os censores da correção, os ditadores da moda, procla-
atmosfera íntima do lar mando seus decretos pelos jornais e revistas mundanas. Por-
completamente isolada que afinal, nos informa João do Rio, em meio à maré mon-
das influências externas, fossem
tante do arrivismo, “ter gosto pode ser uma profissão, dada a
atmosféricas, poeira, sujeira
ou quaisquer agentes estranhos. raridade do gosto”? Nesse caso portanto, o gosto não se refe-
Portas e janelas fechadas, camadas re a nenhum padrão estético ou estável de excelência, típico
sucessivas de cortinados, chão de uma sociedade aristocrática, mas ao empenho dos recém-
acarpetado, paredes forradas,
móveis cobertos, luz indireta,
reflexos e simetrias rigorosamente
calculadas. Os estilos
e procedências variados dos objetos
sugeriam afluência e dissolviam
questões de origem. (Marcenaria
Brasileira, 1907)
impressionista, o decadentista e o moderno, nesse caldo hete- se dão as mãos para estabelecer
o novo padrão de vida sofisticada.
rogêneo em que um pouco de tudo neutraliza qualquer con-
(Sem título, São Paulo, s. d.)
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deputado Arcanjo dos Santos, um dos poderosos do momen- nos magazines mundanos a tecnologia, a língua confusa
to, da qual fazia parte “um faqueiro histórico, faqueiro de da alta-roda, aliás tão limitada! Quando chegou, não quis
setecentas peças de prata lavrada, oferta de um amigo em usar nenhum dos antigos vestidos, nenhum dos antigos
delírio ao Generalíssimo Deodoro”. Após a reforma do deco-. chapéus, que, entretanto, já eram grandes. Esteve incógni-
rador, “a casa ficou vistosa. Parecia um cenário de Antoine,“ ta oito ou dez dias, à espera de toilettes estupendas.º
quando se propõe reproduzir, na montagem das peças, salões
Naturalmente o que Alice dos Santos sentia em relação
de luxo”! Aliás o próprio Jacques Pedreira só se interessava
ao Rio era o equivalente ao que Arcanjo sentia em relação a
nas apresentações teatrais por essas exterioridades do cenário
Paris e Jacques Pedreira em relação a Londres, tudo sendo
ou então do estilo visual dos atores, penteados, maquiagem,
uma questão de posição num amplo movimento geral de
apetrechos, roupas, gestos, tiques. Na platéia, ele ignorava o
emulação, em que a busca sôfrega de modelos indicava justa-
enredo e as falas dos personagens para se concentrar nos
mente a ausência de parâmetros seguros. Isso acontecia por
detalhes da aparência: “Entretinha-se, durante o espetáculo, a
toda parte no mundo, em decorrência da já comentada in-
comparar a elegância das atrizes com a das suas companhei-
tensificação da influência européia no contexto da Revolução
ras e a verificar o mau alfaiate dos atores”.2
Científico-Tecnológica. Mas ocorria de um modo muito par-
Mais interessante ainda do que o caso desse deputado ticular nesta parte do mundo, conforme as pesquisas do his-
Arcanjo dos Santos, alçado ao novo panteão dos “favoritos” toriador britânico Eric Hobsbawm: “A América Latina, nesse
do poder republicano recém-instaurado, era o de sua mulher, período sob estudo, tomou o caminho da “ocidentalização' na
Alice dos Santos. Nascida no interior do Rio Grande do Sul, sua forma burguesa e liberal com grande zelo e ocasional-
filha dileta de um grande estancieiro, coronel local, ela devo- mente grande brutalidade, de uma forma mais virtual que
tara toda a sua vida a uma única e absorvente fantasia: o Rio qualquer outra região do mundo, com exceção do Japão”.
de Janeiro. Assim a descreve João do Rio, com um misto de Graças a essa intensificação dos laços neocolonais e ao
excitação e sarcasmo: prodigioso afluxo de riquezas decorrente, alguns subiam na
Alice dos Santos era um caso de frivolismo mundano e escala social e outros, literalmente, subiam expulsos para os
sensual comum. Passara até os vinte e três anos na pro- morros da cidade. Esse contraste de destinos foi exemplar-
víncia, com a atenção voltada para a vida elegante da mente figurado no decurso do célebre processo da “Regene-
capital. Fizera assim uma idéia exagerada de tudo: da ração” do Rio de Janeiro, a febre reformadora do “bota-abai-
moda, dos divertimentos, dos homens, da liberdade, dos xo” Esse episódio e seus desdobramentos, como a Revolta
costumes, acreditando em quanta fantasia lia nos jornais da Vacina, revelaram a amplitude daquele zelo e daquela bru-
e em quanta invenção narram os provincianos de volta, talidade a que se refere o historiador inglês. João do Rio, na
para se darem ares. Os seus modos causavam impressão. sua moderna atuação como reporter dos novos tempos, subiu
Ela os tinha, entretanto, porque os considerava extrema- ele também num desses morros, o de Santo Antônio, que iam
mente cariocas. Ao casar com Arcanjo, muito mais velho sendo rapidamente cobertos por uma densa concentração de
e pobre, posto que com posição política, casara com a barracos de madeira, erguidos pela população despejada pelo
novo projeto urbanístico republicano. O reporter toma como
mira de vir instalar-se no Rio, desejo a que se recusara
guias um grupo de “malandros” que subiam o morro em
sempre o velho estancieiro, seu pai; e não só para gozar
plena noite para uma seresta de violões:
os refinamentos da cidade como para dominar e ser a
primeira entre as senhoras faladas pela beleza, pela for- Acompanhei-os e dei num outro mundo. A iluminação
tuna e pela posição. O cuidado com que se comparava à desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da ci-
fotografia das grandes damas nos jornais ilustrados para dade. O caminho, que serpeava descendo era ora estrei-
se achar melhor sempre! A pertinácia com que estudava to, ora longo, mas cheio de depressões e de buracos. De
542 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 543
que viria a ser comercializada como o samba carioca. Assim, tura da sociedade e cultura. Grande parte do impacto que ela
por meio do maxixe e do samba, de apresentações e mais teve sobre a imaginação dos contemporâneos se devia, como
sc
tarde da indústria fonográfica, os cidadãos pobres tinham sugeria a observação de Lima Barreto, à rapidez inédita das
um acesso parcial à privacidade do lar dos mais abastados e técnicas de construção, permitindo que o aspecto da área
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 547
546 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
central fosse transfigurado num tempo recorde, como num bonde elétrico [...] Um amigo de casa informava: — O
passe de mágica. Essa mágica era a eletricidade, pois fora bonde pode andar até a velocidade de nove pontos. Mas,
graças à iluminação noturna de arcos voltaicos e ao comple- aí é uma disparada dos diabos. Ninguém agiienta. É ca-
xo sistema de esteiras e polias movidas pela nova energia que paz de saltar dos trilhos! E matar todo mundo...
o prefeito pôde coordenar a rápida retirada do entulho das A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se
demolições bem como a recepção dos novos materiais.” Ha- locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam
via, contudo, outros emblemas igualmente relevantes dessas ir até a temeridade de entrar no bonde elétrico! [...]
transformações. Os bondes, por exemplo, como já observa- Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá
mos. Eles são um dos objetos favoritos do olhar escrutinador vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os
de Machado de Assis. Na crônica de 2 de outubro de 1892, às trilhos no centro da via pública [...) Gritavam:
vésperas da abertura da primeira linha eletrificada no Rio, ele — Cuidado! Vem a nove pontos! [...]
faz esta reveladora comparação: “Tannhiiuser e bondes elétri- Uma mulher exclamou:
cos. Teremos finalmente na terra essas grandes novidades. O — Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça! [...]
empresário do Teatro Lírico fez-nos o favor de dar a famosa E ficou no ar, ante o povo boquiaberto que rumava
ópera de Wagner, enquanto a Companhia do Botafogo to- para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos.
mou a peito transportar-nos mais depressa. Cairão de uma
vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunstâncias”
Significativamente, Machado anuncia o evento, mas não
se inclina a ir pessoalmente testemunhar a cerimônia pública
de inauguração do novo serviço. (Não fica claro tampouco se
foi assistir ao Wagner.) Um outro escritor mais jovem, po-
rém, anotou em suas memórias a atmosfera de incerteza com
que as pessoas receberam os novos bondes, inseguras ainda
quanto ao impacto que a eletricidade teria em suas vidas, so-
bretudo devido a sussurros e boatos vindos do Rio, Oswald de
Andrade registrou assim suas lembranças de criança dessas
transformações decisivas na São Paulo do início do século:
Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia
como era. Caso é que funcionava. Para isso as ruas da pe-
quena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes [..] 25. A eletricidade representada
Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos como uma figura misteriosa,
[...] Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as ca- que a autoridade pública cativa
sas, os grupos. Como seriam os novos bondes que anda- e controla, e da qual ela deriva
o seu grande poder simbólico.
vam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notí- Apresentando-se como a fonte
cia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha que monopoliza o novo potencial
tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de miraculoso, a que todos desejam
eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali ter acesso, os dirigentes políticos
grudado e seria esmagado fatalmente pelo bonde. Preci- se revestem da imagem de agentes
legítimos e incontestáveis
sava pular [...]
da modernização. (Calixto
Anunciaram que numa manhã apareceria o primeiro Cordeiro, sem título, 1907)
548 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 549
O texto revela bem as reservas e hesitações com que as Anteontem [...] vindo pela praia da Lapa, em um bonde
pessoas receberam desconfiadas a eletricidade e suas novas comum, encontrei um dos elétricos que descia. Era o
criaturas. Mas as resistências foram obviamente passageiras. primeiro que estes meus olhos viam andar.
Logo ficou claro para todos o potencial extraordinário que os Para não mentir, direi que o que me impressionou,
novos recursos comportavam e a profundidade com que po- antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos
diam alterar as feições e rotinas cotidianas de tudo, de todos do homem passavam por cima da gente que ia no meu
e de cada um. A demanda cresceu muito mais rápido que a bonde, com um grande ar de superioridade. Posto não
oferta, e em breve as seções de cartas dos leitores nos jornais se fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam
acumulavam de queixas contra a demora da companhia em aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inven-
instalar redes de distribuição de energia elétrica em tal ou qual tara, não só o bonde elétrico, mas a eletricidade.
bairro e novas linhas e mais bondes servindo essa ou aquela
À parte esse elã, que dava à corrente elétrica o fulgor do
localidade. Receber ou não energia elétrica e ter ou não aces-
prestígio e a aura do poder a quem se associava com ela, a
so fácil.à rede de bondes passou a ser não apenas o principal
característica que mais a assinalava em sua utilização no
referencial da especulação imobiliária mas também um dos
transporte público era a velocidade. Na crônica seguinte à
mais distintivos elementos de status, para a população que não
citada, Machado voltava ao preeminente assunto dos bondes,
dispunha de veículos próprios. De vilã sinistra, a eletricidade
comentando o súbito aumento no número de atropelamen-
se tornou logo a vedete cobiçada do espetáculo urbano. O pró-
tos, sobretudo de pessoas mais idosas, não adaptadas ainda
prio e relutante Machado, que evitara deliberadamente se en-
ao novo ritmo de deslocamento dos veículos elétricos. “Um
volver no alvoroço ao redor da inauguração do serviço de bon-
precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não
des elétricos, poucos dias após o evento não escapou de cruzar
passava pela frente de um bonde, sem calcular a hipótese de
com a nova criatura, percebendo logo a enorme alteração
comportamental que ela introduzira, brindando-nos com ou-
cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar do
outro lado [...] Eu [...] levo o cálculo adiante: calculo ainda o
tra de suas impagáveis histórias do dia-a-dia:
tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser
longe, mas muito mais longe é a eternidade”s” Esse espírito
de quem sai à rua entre cauteloso e alarmado, imaginando
alerta”. (Augusto Malta, sem Se por um lado, porém, a velocidade das máquinas urba- de oportunidade “à americana”, Não por acaso, o suporte
título, Rio de Janeiro, 1920-30)
nas modernas exigia uma redobrada precaução, pelo outro privilegiado das primeiras campanhas publicitárias com car-
ela se incorporava ao próprio subconsciente das pessoas e, tazes eram as paredes internas e externas dos bondes. En-
inevitavelmente, como toda manifestação de adesão aos con- quanto as antigas caleças, landôs, “aranhas” ou charretes
dicionamentos modernos, virava um sinal de distinção da- (como os futuros táxis) eram em geral alugadas por um gru-
queles que mais ostensivamente os exibiam. Nisso, como não po de pessoas que se conheciam, os bondes (como os futuros
poderia deixar de ser, o nosso estouvado Jacques Pedreira era ônibus e metrôs) introduziram a convivência de multidões
também um mestre: “Safa invariavelmente depois do almoço, de estranhos, anônimos e desconhecidos uns dos outros,
só, com uma pasta cor de granada com fecho douro, saltava além de competidores irascíveis pelo espaço e conforto limi-
do tramway apressado como um businessman, atravessava à tados. A luta na refrega dos bondes era por um respeito míni-
Avenida a passo inglés” Os termos da descrição, mais as mo à privacidade de cada um, mantida como última defesa
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 553
552 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
Mas nem só de remédios viviam as pessoas neste novo as providenciais “Estrelas Americanas, para serem coladas ao
século. Se vimos que há um mal por excelência de que todos rosto onde se quer eliminar manchas, rugas ou verrugas”; o
sofrem, é sobretudo da falta de amor, seja no sentido do afeto fantástico “Emagrecedor de Narizes”; o indispensável “De-
companheiro e fraternal, seja no sentido direto do amor en- senvolvedor de Seios”; o “Sabonete Para Pessoas Peludas”,
tre seres que se desejam intensamente. Uma vez mais é preci- implacável depilador; o infalível “Aparelho Ades” para a cor-
so pensar como a urbanização acelerada pôs em contato gen- reção das orelhas, e por aí afora.
tes estranhas entre si, vindas de diferentes partes do país ou Entre os vários portentos mirabolantes recolhidos pelo
de diferentes regiões do mundo. A passagem do século, por dr. Tosti destaca-se muito particularmente a assombrosa
conta dos reajustamentos populacionais forçados pela Revo- “palmilha elétrica” Ela não só resolvia os problemas de reu-
lução Científico-Tecnológica, assinalou “o maior movimento matismo, artrite, gota, ciática, nevralgias e má circulação,
migratório de toda a história”. Nessa nova situação de mul- como também aliviava as câimbras, secava as bolhas, elimi-
tidões de estranhos vivendo amalgamados entre si, num pro- nava os olhos-de-peixe e neutralizava os calos. Ou seja, ela era
cesso aleatório, dirigido pelas correntes cegas da economia o acessório indispensável para o bom desempenho do “passo
mundial, encontrar o seu par e ser feliz com ele se parece à inglesa” ou do “andar americano”, Pensemos na urbaniza-
cada vez mais com uma gigantesca e inescrutável loteria. Não ção acelerada e na remodelação da cidade. Elas criaram espa-
surpreende portanto que haja uma escalada alarmante das ços de desfile e exibição social, mais ou menos ostensivos,
práticas do jogo, com destaque para essa grande contribuição
carioca ao repertório lúdico da humanidade que é o jogo do A CURA DO GANCRO E DE OUTRAS APPECÇÕES MALIGNAS PELOS RAIOS X
Ganincte do Dr. Alvaro
Alrio — Ruy qu Gonçalves Dias mn. 48 — Rio die Jasalnil
bicho. Como pontifica João do Rio, “ninguém mais acredita media seaslloivo ua ento dicosess são do tal itopurmaaq)
torna os sapatos decisivos, pela simples razão de que um pa- Em qualquer Sapa-
letó e gravata qualquer homem pode vestir, como qualquer taria peça as nossas
incomparaveis fôrmas
mulher usa um vestido que caia bem. Mas é no andar que o 20, 210 80
passado se revela.
Se, como era o caso, muitos vinham de uma área rural,
habituados a andar descalços, ou de ambientes rústicos que
obrigassem ao uso da bota, ou ainda de atividades subalter-
Fabrica de Calçado Fox
nas exercidas com tamancos ou chinelas, adaptar-se aos sapa- RIO DE JANEIRO
circunstâncias, viviam” Tremedal soa como sobre o mundo. Machado, uma vez mais, anteviu com sur- veículos automotores e só
e e
precisa e uma bela definição para essa febre estranha. Macha- preendente argúcia o que estava por vir: “Quem põe o nariz caminham sobre tapetes e carpetes,
o qual, portanto, deverá ser leve,
do aliás, homem de outra geração, já havia detectado com fora da porta, vê que este mundo não vai bem. A Agência fino e suave, como o escarpim da
ps
Havas é melancólica. Todos os dias enche os jornais de uma propaganda. (Calçados Fox, 1930)
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A
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558 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 559
torrente de notícias que, se não matam, afligem profunda- veis. O automóvel é um emblema de poder e força, indispen-
mente [...) Por isso digo que o mundo não vai bem, e descon- sável para atrair as mulheres. O carro permite multiplicar as
fio que há algum plano divino, oculto aos olhos humanos. oportunidades de contato, convívio e desfrute da companhia
Talvez a terra esteja grávida. Que animal se move no útero feminina. O carro é ele mesmo uma mulher, digno de conhe-
desta imensa bolinha de barro, em que nos despedaçamos cimento íntimo, zelo, atavios, carinho e amor. Daí a volúpia
uns aos outros? Não sei; pode ser uma grande guerra social, de ter e dirigir vários carros, de cobiçar o alheio e de trocá-
nacional, política ou religiosa, uma deslocação de classes ou los tão frequentemente quanto possível. A publicidade desde
de raças, um enxame de idéias novas, uma invasão de bárba- cedo se aperceberia desse potencial erótico associado aos au-
ros, uma nova moral, a queda dos suspensórios, O apareci- tomóveis e passaria a explorá-lo em extremo. Os Automóvel
mento dos autos”. Clubs surgiam por toda parte e com eles essa desconcertante
Ele acertou em quase tudo, mas especialmente em prever revelação, a de que os homens preferiam ficar em seus auto-
que a Terra estava grávida de um bando de bárbaros belico- móveis ou então reunir-se para falar de automóveis do que
sos, com uma nova moral, embalados em seus automóveis estar em casa ou tratar de assuntos familiares. Com o tempo
ameaçadores. Uma vez mais, uma tecnologia desenvolvida e a escassez cada vez maior de espaço nas cidades, eles acaba-
nos prestigiosos países do Norte chegava aqui investida de riam dando um jeito de reformar suas casas, diminuindo o
mais que seu potencial utilitário, sobretudo de uma densa espaço das famílias, para colocar os carros dentro do lar. Se-
aura mítica. Como se tratava ademais de um equipamento ria como morar com a mulher e ter a amante sempre ao lado.
capaz de deslocar uma estrutura pesada de ferro maciço a Outra das virtudes do automóvel era facilitar essa co-
uma velocidade inédita em pleno espaço urbano, ela instan- queluche dos novos tempos, o turismo, O grande impulso
taneamente se tornou num símbolo de poder e instrumento para o desenvolvimento do turismo interno, curiosamente,
de terror. Ademais, os carros começaram a afluir para cá an- foi dado pela Primeira Guerra Mundial. Com a Europa vir-
tes que existissem uma estrutura viária, sinalização ou códi- tualmente bloqueada pela guerra de submarinos, os que
gos de trânsito, gerando uma situação calamitosa, agravada antes tenderiam a gastar suas sobras com a clássica viagem
pelo fato de que atropelamentos, mesmo seguidos da morte à Meca do Velho Mundo buscavam outros atrativos locais.
das vítimas, eram apenas passíveis de uma multa pecuniária Essa circunstância veio se compor com uma tendência já
de valor ínfimo para os infratores. Era o convite para o terro- crescente a partir deste século, que era a grande vocação pa-
rismo automotor que veio para ficar, acrescentando tonalida- ra o corpo e a saúde despertada no coração dos “novos ho-
des mecânicas aos sistemas de privilégios e opressão típicos mens” pelo seu impulso instintivo para a concorrência, a
da sociedade brasileira.” agressividade e o sucesso. A saúde, nesse sentido, imprimia
Nem seria preciso dizer que os automóveis eram o sport uma conotação de auto-estima, autoconfiança e combativi-
predileto do nosso endiabrado Jacques Pedreira. Sim, porque dade, inscrita na coloração irradiante da pele, nos músculos
era como uma modalidade esportiva que os carros eram en- tonificados, na estrutura sólida, nas proporções adequadas,
carados em suas primeiras aparições na cena urbana, impor- nas formas esbeltas e na insinuação de uma sexualidade des-
tados pelos novos protagonistas sociais, o que contribuiu de perta e fértil. A saúde enfim era a chave de um corpo moder-
forma decisiva para sua instantânea identificação como o clí- no. Já vimos o papel que os tônicos, modeladores e aparatos
max da modernidade. Ademais, havia outra associação que elétricos cumpriam para esse fim. Papel semelhante passa-
assinalaria em definitivo o destino mitológico do automóvel, vam a ter também os banhos de mar, os passeios ao ar livre,
tornando-o a base da vaidade masculina, conforme inferên- os piqueniques, o clima das montanhas e as estâncias hidro-
cia de João do Rio sobre a imaginação de seu personagem: “A minerais.
fatalidade naquele momento sobrecarregava-o de dois sports: Até fins do século passado os rapazes e moças se co-
o automóvel e a mulher”. Essa associação opera em três ní- briam da cabeça aos pés, evitando sair nos horários mais en-
560 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 56]
35. Na guerra cotidiana que solarados, a fim de preservar um tom pálido, macilento, fu-
se estabelece nas cidades entre néreo, sinal de distinção daqueles que não precisavam traba-
os pedestres e os veículos lhar sob o sol. Sombrinhas, chapéus, luvas eram indispensá-
automotores, nenhuma arma
veis, além de anquinhas, ombreiras, estofos para os seios e as
é mais poderosa, disseminando
maior pânico e maior número nádegas e espartilhos para a cintura. Algumas moças chega-
de vítimas, que o automóvel. (Raul vam a tomar vinagre pela manhã, com o intuito de produzir
Pederneiras, sem título, 1907) um efeito esverdeado e musgoso à cútis. Ágora a cena era
outra. Havia uma intenção deliberada de denotar o trabalho.
Não o trabalho braçal sob o sol inclemente dos trópicos, mas
a prática metódica, custosa e de longa duração aplicada no
desenvolvimento da exuberância saudável.
Para isso eram necessários não apenas os banhos de mar,
36. Num país como o Brasil, aonde banhos de sol, caminhadas, exercícios físicos, check-ups pe-
os automóveis chegaram como riódicos, tônicos, laxantes, elixires e emolientes, mas também
produtos importados de alto luxo, todo um repertório de pós, loções, cremes, pomadas, emplas-
eles logo se tornaram instrumentos |
tros, sabões, sabonetes, xampus, tinturas, descolorantes, en- ,
de ostentação, prestígio e poder.
Inicialmente são adquiridos para
fim, “dessas coisas que servem ao apuro da higiene cor-
fins desportivos, ou seja, correr pórea””! Como todo esse arsenal tendia a se concentrar no
pelas ruas da cidade, as únicas banheiro das casas, ele acaba assumindo novas funções e no-
pavimentadas. Em seguida, vas feições. É nesse momento que se inicia o desaparecimen-
atormentar os pedestres com to “da latrina de barril, do penico, do “tigre”, que serão então
a buzina ou aterrorizá-los com
substituídos “pelo iwater-closet, completado nas residências
as rodas passa a ser, por si só, um E
mais elegantes pelo bidet” francês.” Os banheiros reforma-
esporte de elite. (Calixto Cordeiro, |
sem título, 1907) dos acabam se tornando o foco dessa incansável energia
ORIGINAL
Sc
562 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 “A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 563
NO TURMILRAD O 7
DA VIDA MODERNA PO despendida todo dia para produzir a exuberância física. Por
AVICTORIA CABE AUS isso e pela sua associação com a higiene e a saúde, eles aca- UMA VIAGEM A
A GALVES'TON
CERESROS FORTES!
bam se tornando a peça mais “moderna” das casas, mesmo as
que tenham um estilo mais sóbrio ou clássico, como ocorria De qm Corno ml palnêeio ve Pepe. jam Podem cqeseper “com deh
O resultado dessa curiosa mutação cultural foi o desen- ralização de uma ética do ativismo, a idéia de que é na ação e
cadeamento de uma febre esportiva que assolou o século xx portanto no engajamento corporal que se concentra a mais
desde os seus primórdios, tendo seu grande salto, tanto qua- plena realização do destino humano. As filosofias da ação, os
litativo quanto quantitativo, logo após a Primeira Guerra e ao homens de ação, as doutrinas militantes, os atos de arrebata-
longo dos anos 20 e 30. Machado de Assis, o arauto de plan- mento e bravura se tornam os índices nos quais as pessoas
tão, vislumbrou logo cedo o furor que se avizinhava e saiu-se passam a se inspirar e pelos quais passam a se guiar. É o
com esta peça preciosa: “Vamos ter... Leitor amigo, prepara-te tremedal de que falava João do Rio. Era a eletricidade pas-
para lamber os beiços. Vamos ter jogos olímpicos, corridas de sando para os corpos, imprimindo-lhes a compulsão do mo-
bigas e quadrigas, ao modo romano e grego, torneios da ida- vimento, da ação, fosse espontânea, fosse mecânica, fosse em
de média, conquista de diademas e cortejo às damas, corridas coordenação de massas. A educação física se torna obriga-
atléticas, caça ao veado. Não é tudo; vamos ter naumaquias. tória nas escolas, mas as pessoas se exercitam voluntariamen-
Encher-se-á de água a arena do anfiteatro até a altura de um te em academias, associações atléticas e na sua própria casa.
metro e vinte centímetros. Aí se farão desafios de barcos à Vicejam os filmes de ação e aventura, os thrillers, os westerns,
maneira antiga, e podemos acrescentar que à de Oxford e as histórias em quadrinhos, os desenhos animados, os livros
Cambridge, torneios em gôndolas de Veneza, e repetir-se-á o de bolso com histórias de detetive, de espionagem e de guer-
cortejo às damas. Combates navais. Desafio de nadadores. ra. Os clubes pululam, com o destaque para o futebol, mas
Caça aos patos, aos marrecos, etc. Tudo acabará com um envolvendo todos os esportes. As modas mudam para se tor-
grande fogo de artifício sobre a água. É quase um sonho essa nar esportivas, leves, curtas, coladas ao corpo, expondo amplas
renascença dos séculos, esta mistura de tempos gregos, roma- áreas para a respiração e a insolação, exibindo os músculos e
45, O ideal clássico da Vênus nos, medievais e modernos, que formarão assim uma ima- formas torneadas do físico. A modelação e o condicionamen-
recebe uma versão modernizada, gem cabal da civilização esportiva” to do corpo e da mente se tornam uma obsessão, um culto.
que funde a alegoria republicana
Essa expressão “civilização esportiva” portanto não deve João do Rio, num texto memorável, descreveu a introdu-
no ideal da beleza desportiva.
(Baraúna & Cia. Calçados Vênus, ser entendida como se referindo exclusivamente à prática ge- ção dessa religião do corpo no Rio de Janeiro do início do
1905) neralizada de diferentes modalidades de esporte, mas à gene- século:
570 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO 571
O Club de Regatas do Flamengo tem, há vinte anos pelo automóveis espalhados pela avenida Beira-Mar e de toda par-
menos, uma dívida a cobrar dos cariocas. Dali partiu a te vinham embarcações com decorações festivas, que se con-
formação das novas gerações, a glorificação do exercício centravam ao redor das balizas, inclusive as barcas da Canta-
físico para a saúde do corpo e a saúde da alma. Fazer reira, apinhadas de povo, que tocava, cantava e dançava
sport há vinte anos ainda era para o Rio uma extravagân- animadamente durante toda a prova. Os ídolos das torcidas
cia. As mães punham a mão na cabeça quando um dos gozavam de enorme popularidade e a população excitada os
meninos arranjava um haltere. Estava perdido. Rapaz aclamava pelo nome.º2 Era o início da vocação balneária que
sem pince-nez, sem discutir literatura dos outros, sem o Rio de Janeiro haveria de levar às últimas consegiências,
cursar as academias — era homem estragado. fazendo das praias o foco principal do lazer e uma extensão
E o Club de Regatas do Flamengo foi o núcleo de natural dos quintais e das salas.
onde irradiou a avassaladora paixão pelos sports. O Fla- Que Pereira Passos concebesse “aquilo”, isto é, a prolife-
mengo era o parapeito sobre o mar [...] As pessoas gra- ração da cultura desportiva como o complemento lógico da
ves olhavam “aquilo” a princípio com susto. O povo en- Regeneração, não era obviamente casual. As regatas do Bota-
cheu-se de simpatia. E os rapazes passavam de calção e fogo correspondiam ao corso e às corridas de carros, bicicle-
camisa-de-meia dentro do mar a manhã inteira e a noite tas e motocicletas disputadas na recém-inaugurada avenida
inteira. Beira-Mar. O desenvolvimento dos esportes na passagem do
Então, de repente, veio outro club, depois outro, mais século se destinava justamente a adaptar os corpos e as men-
outro, enfim, uma porção. O Boqueirão, a Misericórdia, tes à demanda acelerada das novas tecnologias.” Como as
Botafogo, Icaraí, estavam cheios de centros de regatas, metrópoles eram o palco por excelência para o desempenho
Rapazes discutiam muque em toda parte. Pela cidade, dos novos potenciais técnicos, nada mais natural que a refor-
jovens, outrora raquíticos e balofos, ostentavam largos ma urbana incluísse também a reforma dos corpos e das
peitorais e a cinta fina e a perna nervosa e a musculatura mentes. Esse amplo processo de transformação comportaria
herculana dos braços. Era o delírio do rowing, era a pai- uma alteração crucial no quadro de valores. Nessa nova so-
xão dos sports. ciedade da cultura desportiva o valor máximo é necessaria-
Mas se o Club de Regatas do Flamengo teve a precedên- mente a idéia de saúde, cuja condição básica é a limpeza e
cia, a responsabilidade maior pela popularização e rápida di- cuja prova patente é a beleza. Não surpreende por isso que os
fusão dos esportes aquáticos se deveu a ninguém menos que
termos por meio dos quais eram expressos os conflitos so-
ao mentor da reforma urbana e da avenida Central, o enge-
ciais passem a ser mediados pelos conceitos da profilaxia, da
nheiro Pereira Passos. Foi ele que estabeleceu o nexo entre a higiene e da eugenia. Assim, a justificativa para evacuar a
Regeneração, a modernidade e os esportes, ao construir o população pobre da cidade, empurrando-a para os morros e
Pavilhão de Regatas na praia do Botafogo.O novo logradou- os subúrbios, era formulada em termos de “política sanitária”.
ro se tornou o foco da juventude elegante da cidade. As famí- Na longa e dramática repressão que se seguiu à Revolta da
lias e as moças cercavam o local em seus carros, do interior Vacina, em que eram visados genericamente “todos aqueles
dos quais acompanhavam a movimentação intrépida dos ra- que não puderem comprovar residência ou emprego fixos” o
pazes nadando e remando de shorts e camisetas, exibindo chefe de polícia do Rio de Janeiro se referia a essa operação
seus músculos e os corpos bronzeados. João do Rio observou como sendo destinada a “varrer das ruas” aquilo que ele de-
com precisão que de início os adultos mais conservadores nominava “o rebotalho ou as fezes sociais”
viram “aquilo” com receios, mas que a população no geral se Além de controlar o espaço social, em nome da “política
contagiou da animação desportiva. De fato, nos dias em que sanitária” os “exércitos de fiscalizadores”, os “esquadrões
se realizavam as grandes competições de regatas, a população mata-mosquitos” e os “batalhões de vacinadores” eram auto-
acorria em massa para acompanhar o evento em meio aos rizados a invadir tanto a privacidade das casas quanto a in-
572 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 573
toucas de baeta e sapatos de corda ou de lona”.*” multas e penas de detenção para os transgressores. Apenas
Os banhos de mar só viriam a se tornar uma moda ele- com o boom desportivo dos anos 20 e por emulação das
gante, é claro, no período da reforma urbana, quando então modas vindas dos balneários franceses de Deuville e da Côte
os jovens convergem para o balneário do Flamengo. Em d'Azur, os trajes se tornariam mais leves, curtos e colantes,
1906, ano da inauguração da avenida Beira-Mar, o prefeito enfatizando o sol como a principal atração do banho de mar,
Pereira Passos publica o primeiro regulamento estipulando não por efeitos terapêuticos, mas estéticos, Completa-se as-
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574 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
tação e de sobrevivência, intensificação das tensões sociais e
1 As Praias do Rio disseminação da violência em nível individual ou organiza-
do.” Como uma compensação simbólica para a insegurança
ECOPACABAN; das classes dominantes e grupos ascendentes, nesse momento
de grandes transformações econômicas e sociais, esse sistema
de valores se dissemina por todas as áreas atingidas pela
constituição do mercado em escala mundial. Seus sinais são
visíveis por toda parte na multiplicação das publicações, có-
digos e campanhas destinados a abolir as práticas e materiais
considerados passíveis de acumular sujeiras e propor novas
soluções, equipamentos e produtos de cunho profilático e
efeito higiênico. No âmbito do próprio design dos objetos
50; 51. Os banhos de mar eram industriais padronizados essa preocupação era evidente.” O
originalmente feitos sob condições estilo art nouveau procurava apresentar os objetos industria-
de estrita privacidade, donde lizados em formas que evocassem elementos naturais ou cul-
a necessidade das fortalezas turas pré-industriais. Seu sucessor, o estilo art déco, difun-
em que se internavam sobretudo
dido sobretudo no entreguerras, investia no sentido inverso,
as moças, a fim de se submeterem
ao tratamento terapêutico, mais baseando suas linhas e volumes em projeções futuristas, pre-
por exigência médica do que por nunciando um mundo em que a vitória total da técnica supri-
sua vontade. Aos poucos misse em definitivo as ameaças de contaminação e degeneres-
os trajes foram se encurtando, cência. Ao contrário dos casarões antigos, as casas deveriam
ganhando leveza, modelando ser arejadas, claras, ensolaradas, sem cortinados pesados, de
6 corpo, revelando as formas
estrutura simples e funcional. O mobiliário e objetos decora-
e expondo a pele ao sol
e aos olhares indiscretos. ada tivos deveriam ser mínimos, se possível embutidos, de mate-
sim o círculo que leva de uma atividade profilática destin riais que não absorvessem pó, com superfícies contínuas e
Um grande escândalo sempre saudável voltada para O
acompanhava cada inovação,
a incrementar a saúde a uma prática fáceis de limpar, sem toalhinhas rendadas ou quaisquer co-
o Amado , testem unhand o
ameaçando sobretudo as moças desenvolvimento da beleza. Gilbert berturas de tecidos que absorvessem poeira.
com o quinto dos infernos essa evolução, destaca seu sentido fundamentalmente eugêni- Nesse complexo sistema articulado pelas noções básicas
ou com um quarto no prostíbulo co: “A praia transformou-se. Uma grande transmutação se
de limpeza, saúde e beleza, o símbolo central era sem dúvida
do Mangue. (50. Armando operou [...] Hoje Copacabana, praia multicor, distendendo- a imagem do corpo humano, utilizado intensamente pela
Pacheco, A casa de banhos da tua (4 uma 39 Teblon, entontece o olhar do homem normal publicidade comercial ou pela oficial, e apresentado em geral
ce a o as do Ros que gosta de ver corpo bonito e modo de andar gracioso |
semidespido, jovem, saudável, atlético e impoluto. Desde o
Copacabana, 1921) A nossa capital é a única que, sede de governo, centro indus
mesmo fim da Grande Guerra as tendências de moda são para rou-
trial, universitário, comercial, bancário, político, é ao
pas leves e “esportivas”, caindo com naturalidade, sem cintos
tempo balneário de primeiro de janeiro a trinta é um de ou constrições, de maneira a ressaltar as formas da anatomia
dezembro. Qualquer que tenha sido do ponto de vista moral
e a textura da pele.” Nesse contexto o esporte, e tudo o que
a consegiência desse fato, quanto à melhoria da grei, do traga as suas conotações, se torna de fato um dos códigos
ponto de vista físico, ele foi espantoso Ro
mais expressivos para estabelecer os signos da distinção so-
Essa ética da limpeza, saúde e beleza se torna a con-
cial, Ele surgiu e se impôs como um ritual elitista, revestido
trapartida do amplo processo de industrialização, com seus dos valores aristocráticos do" ócio, do adestramento militar e
efeitos de poluição, toxidez, deslocamentos e migrações for-
do sportsmanship (cavalheirismo, imparcialidade e lealdade).
cadas, difusão da miséria, degradação das condições de habi-
576 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 577
de
Ao se apropriar dele a burguesia o traduziria em e que os gregos venceram em Salamina! Depois disso [...] o
e impera tivo da vitória. ( : a
agressividade, competitividade Rio compreendeu definitivamente a necessidade dos exerci-
prestígio crescente garantiu que as conversões prosseguis E cios[...)”
ao longo da escala social, Daí a sua rápida popularização O primeiro momento de clímax dessa euforia desporti-
fins do século x1x até o boom dos anos 20.% ,
nim
va viria no Rio de Janeiro com a vitória sobre a Seleção do
Um personagem decisivo na configuração e nova Uruguai em 1919, que tornou o Brasil em Campeão Sul-
ética do corpo e da ação” foi o poeta Olavo Bilac. ne oi um Americano de Futebol. Desde então ninguém mais conteve a
dos principais arautos e grande incentivador da re orma E febre dos esportes. Se o prestígio social atraía a população, o
bana e do espírito estético-higienista da Regeneração, de- fato é que a cultura popular da cidade já era marcada tanto
fendendo-a e ao prefeito com acalorado entusiasmo nos pelos valores da exuberância física quanto pelo espírito lúdi-
principais jornais e revistas do Rio. Em seguida Pb co de precipitar os oponentes no ridículo pela destreza e ra-
F
propagandista e fá ardoroso das práticas € competições pidez de movimentos. Uma era evidente pela ampla difusão
Grande Guerra fundou a Liga E
portivas. Na conjuntura da das tatuagens e decorações do corpo, as vestes das negras
Defesa Nacional e se lançou em campa nha obstin ada pela minas e os adereços das “baianas” e o outro pela tradição
criação do serviço militar obrigatório para todos os ioga! popular da capoeira.” Seja como for, o fato é que os esportes
da
brasileiros de dezoito anos. Vemos pela sua progressão que vieram para ficar. Como disse Marques Rebelo, “o carioca é
reforma e sanitização da cidade ele se voltou para a saúde, louco por futebol, sua veste é de torcedor pobre, seu andar é
modelagem e beleza dos corpos, para afinal a a de drible, seu entusiasmo é de braços levantados e punhos
alin ni o)
apelo ao nacionalismo militante de massas. Do cerrados, como quando aplaude um gol” Naturalmente as-
das ruas, ao aprumo dos corpos, às fileiras march ando em sim também era o nosso aloprado Jacques Pedreira, a quem
ordem unida. João do Rio percebeu claramente o seu pa- João do Rio pinta como um devoto da religião dos esportes:
a
pel pioneiro e articulador: “[...] era a paixão dos sports “Tudo na vida é sport. O maior sportsman de todos os tempos
52. O estilo art déco condensava
Faltava apenas a sagração de um poeta. Olavo Bilac escr foi positivamente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro, pre-
assim
todos os símbolos do mundo veu a sua celebrada ode de 'Salamina. — Rapazes, foi destinado de fato, venceu todas as performances e todos os 53. À historiadora Paula Fass
moderno, da ciência e das técnicas, handicaps, e, segundo observações inteligentes foi o inventor denominou os anos 20 de “a era
linhas retas, planos ortogonais, do puzzle na organização do caos. Não é de admirar que a da plástica”. De fato, logo após
superfícies chapadas, silhuetas humanidade, à proporção que conhece mais intimamente a Grande Guerra se propagou
mecânicas, metais cromados, Deus, mais esportiva se revele. A corrente contemporânea é o anseio de fundar um mundo
plásticos, cores industriais, novo, fonte de um novo homem,
particularmente esportiva. Os jornais falam de matches, de
com temas decorativos sugerindo uma nova mulher e uma nova
maquinários, aviões,
velocidades. Os termos ingleses surgem a cada corrida ou a sociedade, A noção imperativa
transatlânticos, esportes, danças cada pontapé; as pessoas andam na rua como quem vai para era a do ideal da juventude como
frenéticas, criaturas exóticas um desafio ou pelo menos para uma aposta. Jacques, além da símbolo do renascimento cultural
e energias primitivas.
A arquitetura pressupunha grandes À corrente pertencia ao grupo que tinha por chefe Jorge de
Araújo [proprietário de seis carros de corrida, além do “len-
da civilização em novas bases:
coletivas, disciplinadas,
janelas, abertas à insolação, soar rigorosamente coordenadas como
dário modelo 720-A-E”]. Comprou um reloginho para pren-
puro e frescor dos jardins, divisões um mecanisino perfeito, efetivas
funcionais, fluxos livres, grandes der no pulso e foi das velocidades”.100 no seu desempenho, agressivas,
volumes espaciais, mobiliário Muito particularmente revelador esse detalhe do relogi- com fibras e músculos de aço
mínimo, sóbrio e objetivo. nho. Ele é o sucessor natural do clássico patacão ou o popu- e conquistadoras, Os esportes,
(Antonio Gomide, Residência lar cebolão, o relógio grande de bolso, sacado através de uma como sucedâneos da guerra,
de Frederico de Souza Queiroz, corrente longa, em geral de ouro, que cruzava toda a frente se difundiram então como o meio
Jardim Europa, São Paulo, mais efetivo para se atingir esse
anos 30)
das casacas dos cavalheiros. Era o relógio do Ruy Barbosa. Já ideal. (Creme e óleo Nivea, 1934)
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 579
578 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
E ALMADA CIDADE!
“uu MIRANDA ni adquiri cantor e locutor carioca Renato Murce, revelou dois episó-
e a principal fonte de seu poder de à E A meia dúzia de sanduíches de presunto, uma garrafa térmica
de café e um gatinho rajado como companhia. Os jornais
ET Eu DANieSa AM TELEVISÃO EEE
transformação cultural. ([Carmen
faziam galhofa dele tratando-o como O Idiota Voador. Às dez
Miranda] anunciando Rádio G.E.
Tom Natural, 1945)
horas do dia seguinte, sem ter feito nenhuma escala, ele des-
cia suavemente no aeroporto de le Bourget em Paris, saudado
que ele teria um impacto decisivo para a transformação da às lágrimas e sorrisos por uma multidão excitada de mais de
cultura brasileira. A idéia inicial era fazer dele uma espécie de 200 mil pessoas. Foi instantaneamente louvado como o herói
teatro burguês irradiado, com músicas clássicas, leituras de emblemático do século xx. Seu nome e sua foto estavam em
longos textos literários, recitação poética e discursos políticos todos os jornais e revistas do mundo. Da obscuridade para a
intermináveis. Portanto, a forma era precária e o conteúdo glória, ele era chamado agora de O Águia Solitária e conside-
tedioso. = rado a prova viva da redenção do homem pela máquina, ten-
da introduçã o do rádio no Brasil, o do abolido os limites do espaço, do tempo e dos elementos.
Um dos pioneiros ORIGINAL.
5€
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 591
590 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
Mascara de dominó
Serpantina
identidade e se incorpore na dimensão maior da multidão 71. À polícia saiu à cata dos
enlouquecida. Se alguém que o conhece permanecer perto mascarados e foliões descomedidos,
dele, ele não pode deixar de se reconhecer no olhar que o dispostos a desafiar o rigor da lei,
O Carnaval popular se converteu
identifica, Daí a necessidade da fantasia e das máscaras como
70. O Carnaval foi sanitizado num melancólico espetáculo
para adquirir ares de festa
recurso auxiliar de despersonalização. O efeito do Carnaval é de caça às bruxas... e aos diabos.
civilizada, ao estilo do Carnaval dissolver a consciência individual na pulsação sensual dos (Calixto Cordeiro, Os caiporas,
de Veneza, com Pierrôs vetustos, corpos em comunicação por meio do ritmo. É apenas estan- 1903)
Arlequins cerimoniosos do sozinho, portanto, que se pode viver a emoção do coletivo.
e Colombinas comedidas. (R. Cs
Nesse sentido Machado tem toda a razão em falar em anar-
Sábado Gordo, 1903)
quismo e Bandeira em vislumbrar a sociedade desfeita em
cacos. À loucura de todos só pode nascer da loucura indivi-
A Lira etérea, a grande Liral...
dual'de cada um. Isso faz do Carnaval uma hora da verdade,
Por que eu extático desfira
ninguém mais precisa manter a personalidade construída
Em seu louvor versos obscenos, 72. As tradicionais brincadeiras
para contemplar as pressões, demandas e convenções sociais.
Evoé Vênus! e máscaras de Carnaval,
Viver em consonância com esse potencial resguardado, por-
em especial a grande favorita,
Manuel Bandeira, porque tinha a paixão do Carnaval, tanto, significa viver “se guardando para quando o Carnaval de diabo, foram reinterpretadas
interpreta com propriedade a perspectiva pela qual a magia chegar”, como bem intuiu essa outra alma foliã, Chico Buar- como armas, instrumentos
da folia se manifesta e que, paradoxalmente, é a individual. É que de Holanda. anti-sociais e ameaças à ordem
preciso que o folião penetre, se integre e se entregue a uma Mas se havia uma prática cultural mais forte ainda que a pública, sendo postas fora da lei
(A, D., Um pequeno arsenal
massa de estranhos para que ele perca as referências da sua dança, a música e o esporte, era sem dúvida o cinema, que
carnavalesco, s. d.)
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 599
598 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
“AS
em ão ngm
"Se
600
o meio sorriso sarcástico, a mudança repentina de humor, o tua famosa espaima rápida + econômica.
Não hesite: não bb siboveta mais
truque de acender o isqueiro num golpe só, tudo vem da tela fina, luxuoso « perfumado do que
“uma mulatinha com cabelo à Cleo de Mérode”.: Nunca ser baratos, resistentes, multicoloridos e democratizar o aces-
era
um único sistema cultural teve tanto impacto e exerceu efeito so a um enorme acervo de bens, utilitários, eletrodomésticos,
tão profundo na mudança do comportamento e dos padrões móveis, estofados, tapetes e carpetes para grupos sociais que
de gosto e consumo de populações por todo o mundo, como não teriam condições de adquirir madeiras nobres, cristais,
o cinema de Hollywood no seu apogeu. Foi assistindo a essa porcelanas, veludos, sedas, tapeçarias e tecidos finos. As pró-
metamorfose exótica nas ruas do Rio de Janeiro que o poeta prias pesquisas das indústrias americanas relativas, por
Blaise Cendrars decidiu viajar para a Califórnia e entender exemplo, à racionalização do espaço e das atividades da cozi-
como funcionava a maior máquina de sonhos jamais supos- nha, produzindo o arranjo tornado clássico do fogão, armá-
ta, pelo seu poder e eficácia, por qualquer cientista, poeta ou rios embutidos, geladeira, freezer, pia multifuncional e mesa
político. É por causa desse novo poder que ele iria se referir a acabavam se universalizando por meio do showroom da tela
Hollywood como “a Meca”, “a nova Bizâncio” ou “a Babilônia do cinema.!»º O mesmo vale para a convenção das duas pol-
renascida”, Naturalmente os mesmos técnicos de Hollywood tronas, o sofá, a mesa de centro, o abajur, a televisão e o vaso
foram rápidos em perceber como o glamour dos astros do de antúrio ao lado, para o arranjo de todas as salas de estar.
cinema se transmitia diretamente para tudo o que estivesse Assim para os dormitórios, os quartos das crianças, as gara-
ao seu redor, o que eles vestiam, o que tocavam e aquilo gens etc. As casas passam a ser basicamente iguais, as pessoas
sobre o que falavam. Em primeiro lugar, o que calava fundo executam basicamente os mesmos movimentos durante as
nas platéias era a beleza mirífica daqueles seres diáfanos, fei- mesmas rotinas e se parecem elas mesmas muito umas com
tos de maquiagem, coiffure, luz e close-up. O conjunto dos as outras. A televisão viria completar e dar o toque final a
recursos desenvolvidos para as finalidades técnicas das filma- esse processo iniciado pelo cinema, invadindo e comandando
gens passa a ser assim introduzido no mercado, sugerindo a a vida das pessoas dentro do próprio lar e organizando o
possibilidade de as pessoas manipularem suas próprias apa- ritmo e as atividades das famílias pelo fluxo variado da pro-
rências para se assemelharem aos deuses da tela. O mercado gramação e dos intervalos comerciais.!!
será invadido de xampus, condicionadores, bases, ruge, rímel, Além da televisão, outra fonte que se beneficiou da ero-
lápis, sombras, batons, um enorme repertório de cortes, pen- tização dos objetos generalizada pelo cinema foi a publicida-
teados e permanentes, tinturas, cílios, unhas postiças, e natu- de. Os objetos passaram a ser alvo do mesmo culto fetichista
ralmente o “sabonete das estrelas de cinema”. As cabeleireiras, que a imagem dos astros e estrelas, e era muito comum os
barbeiros, modistas, costureiras, chapeleiros, alfaiates, acu- estúdios reforçarem essa associação, para além das roupas, |
jóias e adereços, distribuindo fotos de seus contratados ao
i
para facilitar as decisões de seus clientes. lado de telefones, motocicletas, discos e aparelhos sonoros,
Os cenários passam também a ditar os estilos, objetos e televisores, carros, móveis e ambientes com design moderno,
arranjos obrigatórios para os interiores das casas. Nos perío- além de paisagens, hotéis e locações turísticas. O objeto do
dos de prosperidade e grande diversificação de consumo, desejo se torna inseparável do desejo do objeto e um pode
como após a Segunda Guerra, o cinema se tornou a vitrine suprir simbolicamente a ausência do outro. O ato do consu-
por excelênciada exibição e glamourização dos novos mate- mo se torna assim, ele próprio, carregado de uma energia
riais, objetos utilitários e equipamentos de conforto e decora- sensual, ao mesmo tempo fetichista e voyeurista, marcado
ção doméstica. Ele é a fonte irradiadora dos modelos que se pelo gozo de desfilar entre os artigos, ver bem de perto e
convertem numa ampla demanda, atendida pela invasão tocar os objetos, eventualmente possuí-los e exibi-los a ou-
crescente dos plásticos, polímeros, náilon, raiom, banlon, tros olhos cobiçosos. O poeta Carlos Drummond fez uma
bouclê, blue jeans, acrílico, acetatos, multirresinas, baquelita, ode linda, assinalando essa estranha volúpia do consumo
fórmicas, courvin, linóleos, napas etc. Materiais, todos esses, pela perspectiva de cinco manequins de loja:
que tinham a imensa vantagem de ser produzidos em massa,
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 605
604 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
ORIGINAL |
E]
t
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3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO
606 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL
O musical era centrado no mito do par amoroso. Esse
Na mesa interminável comíamos o bolo
mito vem da tradição romântica e mais além ainda tem suas
interminável
raízes remotas nos rituais do amor cortês e na lenda da prin-
e de súbito O bolo nos comeu. cesa longínqua, difundidos na Idade Média tardia e repletos
Vimo-nos mastigados, deglutidos de conteúdo místicos O que nos interessa, porém, é que o
pela boca de esponja. cinema americano vai resgatá-lo das suas versões diluídas
nos clichês folhetinescos, vai modificá-lo atualizando-o e
No interior da massa não sabemos transformando-o num veículo para suas próprias finalidades.
o que nos acontece mas lá fora Nessa versão, o casal amoroso se torna uma entidade autôno-
o bolo interminável ma, que existe num contexto auto-referido, em que tudo o
na interminável mesa a que preside que acontece ao seu redor só assume significado em virtude
sente falta de nós do desdobramento cômico-dramático da sua relação amo-
f gula saudosa.º* rosa. Nesse sentido é como se eles existissem à parte da socie-
a, mais
Curiosamente ou não, essa imagem de uma pesso dade, tendo como único nexo explicativo de seu comporta-
sumários, sain mento e das demais pessoas que circulam em seu meio a sua
precisamente de uma garota linda, em trajes
a (est é am
do de dentro de um bolo gigantesco no clímax ia,
ligação passional intensa. Eles assim se indispõem sucessiva-
clichê hollywoodiano. Mais do que a erotização a a o mente contra seus pais e familiares, contra seus amigos e
o, da celebração circunstantes, contra as hierarquias e convenções sociais do-
ele represent a a sensualização do aniversári
do indivíduo porta nto. Era uma cena frequ ente nos filmes minantes, enfim, e que, de uma forma ou outra, interferem
se sabe foram o carro-chefe da nesse fim absoluto que é a consumação da sua relação amo-
musicais. Esses musicais com o
rafia americana dos ano s 30 até mead os dos anos rosa. Assim sendo, o par amoroso não realiza seu destino
i
suces so era estrondoso ficcional inserido numa sociedade, mas voltados um para o
50. a era dourada do cinema. Seu
ssiva s da e a outro e ambos investindo contra a sociedade que lhes é hos-
porque fundiam as linguagens mais expre
ut, a coorder so til. Paradoxalmente portanto, o amor se torna um fermento
modernidade, o esporte, a dança, 0 glamo
Sua fonte origin anti-social. Vista de uma perspectiva, essa representação su-
coletiva e o primado do destino individual.
e extras A ca gere a emancipação das noções tradicionais de hierarquia e
eram as grandes apoteoses cênicas de luxo
do pro y a autoridade; de outra, a inserção na lógica do individualismo
dos musicais da Broadway. O gênio por trás
é é ce o) : e da exacerbação da expectativa de realização passional, com
Busby Berkeley, com uma longa experiencia
Se PA toda a carga de ansiedades e frustrações que ela comporta.
dança nos teatros da Broadway antes que Samue
s a concep-
levasse para Hollywood. Ali ele se exceder ma
Outro dos efeitos que essa construção ficcional tem é o
ões Sjo de compor o casal como uma unidade básica de percepção
ção de figurações caleidoscópicas de multt
es pr im e do mundo ao seu redor, como se eles conformassem uma
compostos em formações complexas, grand
com seu: tar única individualidade bipolarizada. O casal se torna assim o
ratórias, padrões geométricos intrincados,
os trajes sumários e gran É pen dios único esteio solidário num meio que não se constitui mais
nos oscilando entre
o o ses numa sociedade propriamente, mas muito mais numa miría-
tules, sedas, paetês, tecidos dourados e pratea
ligas salto A de de individualidades em competição agressiva e constante.
braceletes, pulseiras, tiaras, corpetes e cintas
desenca aa Isso poderia ser assustador e fonte de angústia, mas, hélas!,
e bicos finos. Era o período da grande recessão eles dançam, cantam, sapateiam, se abraçam, pulam, flutuam
do cinema era j
pela crise de 1929. O que as pessoas queriam no ar e os problemas se desvanecem. O público assiste, chora,
que o prazer existi
as mais delirantes fantasias, a certeza de ri, sapateia discretamente no assoalho do cinema, canta jun-
era possível desejá-lo. to, depois sai, compra o disco e ouve aquela música mais
608 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 609
milhares de vezes. Afinal, ao cinema, ou se vai sozinho, ou se novos, produtos novos, mais atualizados, mais versáteis, mais
vai em casal. Quando a luz apaga e nada mais se vê além da identificadores da individualidade do jovem casal em relação
tela prateada, ou se fica isolado na poltrona, ou, se se tem a à geração de seus pais ou mesmo de seus irmãos mais velhos,
suprema felicidade, há um corpo ao lado para afagar. Nesse rearranjo das coisas, a moça é sobretudo a porta-
Há portanto vários sentidos na frase quando as pessoas dora das fantasias relativas ao conforto, ao bem-estar e à de-
dizem que amam o cinema. Ele é, afinal de contas, uma má- coração da casa, enquanto o rapaz fica no papel do provedor
quina de simbolização e difusão do amor, à sua maneira. E é e do provador. É no sentido dessa representação estereotipa-
claro que a partir do cinema e seus desdobramentos pelo star da e desequilibrada dos papéis sexuais que atuam as chama-
system, como vimos, essa forma simbólica transborda para a das revistas femininas, o grosso da publicidade e as diferentes
publicidade, as histórias em quadrinhos, as fotonovelas, as formas de ficção que circulam na cultura massificada. É as-
radionovelas, os livros de bolso, as canções populares, as re- sim com os brinquedos também, ao menos se observarmos
vistas de fofocas, as fórmulas pelas quais a imprensa modela pelo viés da campeã mundial e indisputável de vendas, a bo-
as informações sobre as pessoas e suas vidas, chegando aos neca Barbie.!:? Um dos slogans de promoção da célebre cria-
olhos, ouvidos, mentes e corações de todos, por toda parte. tura é “Eu quero ser como a Barbie, ela tem tudo!” De fato
No limite, o esteio da felicidade em vida é a realização amo- tem, além de roupas, chapéus, carros, casa, móveis, os eletro-
rosa. Obtê-la é o objetivo primordial, a obsessão dominante. domésticos mais modernos e uma decoração doméstica toda
Em caso de dúvida, não se hesite em tentar novamente. Des- cor-de-rosa como o seu baby-doll. Ela também possui o Ken
quite, divórcio e flerte, com todo o seu aparato de bares, que, com o seu robe de chambre azul, tem como único senti-
salões e boates, além dos consegiuentes hotéis, drive-ins e mo- do da sua existência olhar e admirar os apetrechos, as modas,
téis, se incorporam às demandas dos direitos fundamentais o corpo bronzeado, anoréxico e a eterna juventude da sua
do cidadão e da cidadã. No entretempo de um amor ao ou- Barbie. Enfim, eles são de plástico, portanto eles se enten-
tro, o estágio obrigatório pelos serviços esotéricos ou o divã dem. E como seu exemplo sugere, caso alguém queira ser
do analista. Encontrar um interlocutor para as ansiedades, feliz como eles, pode sempre recorrer à intervenção provi-
inseguranças e fantasias individuais se torna um valor de dencial da cirurgia plástica também.
mercado. Valor caro aliás, já que se trata de um mercado Quanto às composições cênicas mirabolantes dos filmes
inflacionário, a luta pela felicidade imaginada fica sempre musicais, o visual de luxo e esplendor dos figurinos e a at-
muito aquém das ofertas reais e cada qual está por demais mosfera mista de sonho, fantasia e mitos modernos/mitos
preocupado com a própria realização para se dispor a cogitar americanos de suas produções, em meio ao vasto âmbito de
na de outros. nm sua influência, eles tiveram também um papel significativo,
Ainda outro efeito interessante dessa ênfase nas peripé- no Brasil e a partir do Rio de Janeiro, na configuração da
cias do par romântico é o seu impacto sobre O consumo. Num estética do Carnaval em geral e das escolas de samba em
mercado cuja competitividade obriga à inovação, variedade especial.':º Muito colaboraram para essa fertilização cruzada,
e sofisticação constante dos produtos, o casal jovem é o alvo tanto o desenvolvimento da forma paródica da chanchada!s
ideal. É fundamental para a indústria de bens de consumo, quanto o apoio que o Estado varguista passou a dar às escolas
usando dos recursos prodigiosos da publicidade, quebrar os de samba, com vistas a fazer delas uma alavanca na difusão
elos de família e a cadeia das gerações. “Você ainda lava o de seu ideário nacionalista, calcado numa versão de cultura
chão como a vovô?” ou “Não perca mais tempo cortando popular amalgamada como pastiche populista. Não por aca-
legumes como a mamãe!” ou “Se seu pai não teve uma conta so essa fusão de influências e intenções ocorreu durante 0
bancária, então ele nunca soube o que são os anos dourados namoro do governo americano com as ditaduras latino-ame-
da juventude? A idéia é que a vida deve começar do zero para ricanas, durante o contexto da Segunda Guerra, conhecido
cada casal que inicia a vida em comum: casa nova, hábitos como a “política de boa vizinhança”, conduzida pela tripla via
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 61]
610 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
Coz. — O quê? A julgar por esse diálogo, como se vê, havia muito que o
Pato Donald poderia ter aprendido com o Zé Carioca. Se
Alm. — ...croquetes, empadas, cozido, ensopado compararmos no mesmo espírito os musicais cariocas e essa
peru recheado, tutu de feijão outra arte que de algum modo eles influenciaram, as escolas
Que acorde bem cedo e durma no aluguel de samba, podemos igualmente inferir coisas interessantes. A
Que seja asseada e que seja fiel estrutura do musical se baseia na perfeita, milimétrica coor-
Para evitar depois complicações denação de conjunto do coro, contrastando com a extrema
eu quero saber já as suas condições mobilidade e desprendimento da dança atlética do par ro-
máântico central. No caso das escolas de samba em particular
Coz. — As minhas condições agora eu vou dizer ou do Carnaval em geral, há também o aspecto da coordena-
Primeiramente aviso não quero saber ção de conjunto, como no caso das alas ou das coreografias
de lavar panelas e varrer cozinha alusivas. Mas simultaneamente se espera do sambista o seu
Não sou uma qualquer e guardo certa linha número particular, todos querem ver o gabarito do seu de-
E louca por cinema eu sou de natureza sempenho rítmico, da sua expressividade corporal, da sua
E gosto de um moreno que é um colosso vibração sensual. Nesse sentido, o musical é altamente estu-
Adoto o sistema da semana inglesa dado e suas performances obedecem a um rigor cronométri-
Aos sábados eu saio depois do almoço co e a uma geometria de deslocamento espacial tecnicamente
Sou empregada sindicalizada impecável. Já no Carnaval prevalecem aqueles elementos de
e quero férias, quero meus papéis esfacelamento e anarquia de que falavam Manuel Bandeira e
Não sou nada exigente, trezentos mil réis Machado de Assis,
vou querer de ordenado, pago adiantado Uma maneira de tentar entender a peculiaridade desse
Carnaval é avaliando uma palavra, já um tanto desgastada
Alm. — E... não sei ainda como é que se chama... mas que pela sua riqueza de significado merece ser sondada.
E será que a madama sabe fazer sala? Trata-se da palavra ginga ou gingado. A origem dessa palavra
é obscura, mas há duas bases principais para a sua interpreta-
Coz. — Pois decerto “seu” moço, isso nem se fala... ção. Uma é de origem náutica e se refere àqueles barcos com
um remo grande na popa, que um navegador move para um
Alm. — E vai ver que a “princesa” toca o seu piano lado ou para o outro quando quer mudar o rumo da embar-
cação. O remo se chama “ginga” e diz-se do navegador que
Coz. — E arranho o francês e o italiano está gingando ou, mais arcaicamente, ginglando.! A outra
acepção é muito mais promissora. Ela procede da capoeira e
Alm. — Então eu lhe faço uma contraproposta se refere à movimentação fundamental do capoeirista, que
balança seu corpo constantemente, de modo rítmico mas
Coz. — Pois seja “seu” moço, mas não tou disposta imprevisível, impedindo assim que o adversário tenha uma
a aceitar coisa que não satisfaça referência fixa para definir sua estratégia de ataque. O se-
gredo da eficácia do capoeirista, portanto, está na qualidade
Alm. — É mais negócio eu me casar consigo do seu gingado. Outro aspecto interessante é que o capoeiris-
que a senhora trabalha para mim de graça ta não se põe a gingar para precipitar a luta, mas ginga a
partir do momento em que está sob assédio. Ou seja, o efeito
Coz. — Ah! éra da ginga é desestabilizar a lógica combativa do oponente.
Nesse sentido a ginga é literalmente uma contrafação, um
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 615
614 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
“EVOLUÇÃO MARCANTE. o
“Homenigem da
«GravAre à indústria
(74) CEM. M. terre, “O retrato de casamento”, em Retratos de família, p. 111. As (95) J. americano, “Durante a semana” em São Paulo nesse tempo (1915-1935), pp. 112-4.
demais citações, salvo indicação em contrário, foram extraídas desse ensaio. (96) As referências aos objetos decorativos aparecem em diversas obras, veja, por
(75) CÉ L. LEwrN, Política e parentela na Paraíba, pp. 156-7. exemplo: J. D. NEEDELL, Belle Époque tropical, M. C. N. Homem, O palacete paulistano e
(76) A. de Alcântara macHaDO, “A sociedade”, em Brás, Bexiga e Barra Funda, p. 46. outras formas de morar da elite cafeeira (1867-1918); ]. amerICANO, “Residências”, em São
Warren Dean tece comentários agudos sobre o desejo de nobilitação dos magnatas italia- Paulo nesse tempo (1915-1935); G. rrevrE, Ordem e progresso.
nos em São Paulo e suas estratégias matrimoniais. “Quando podiam, e eram suficiente- (97) 1. D. nezpeiL, Belle Époque tropical, p. 174.
mente ricos, desposavam aristocratas européias, cujas patentes de nobreza consideravam, (98) S. miceuy, “Olhar sociológico”, em Imagens negociadas, p. 95. Embora ancorado
sem dúvida, mais autênticas. Assim, dos doze filhos casados de Matarazzo, três ingressa- em outros pressupostos, mas explicitando a teia de dependências que assolavam os pinto-
ram em famílias de fazendeiros, mas cinco se consorciaram com nobres italianos, entre os res acadêmicos do final do século xtx; veja Q. camporioRITO, História da pintura brasileira
quais dois príncipes e um conde. Os títulos e honrarias eram mais rapidamente granjea- no século XIX, especialmente vols. 4 e 5.
dos por uns poucos industriais que contribuam para os fundos de beneficência da Itália (99) ]. B. M. LoBaro, “A criação do estilo. A propósito do Liceu de Artes e Ofícios”,
ou do Papa. Matarazzo e Crespi foram nomeados condes por Victor Emmanuel; Siciliano em Idéias do Jeca Tatu, pp. 25-6. '
tornou-se conde papal, e muitos outros foram feitos cavaleiros ou comendadores de (100) T. A. Lima, “Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e
várias ordens italianas”; À industrialização de São Paulo (1880-1945), p. 182. limites sociais no Rio de Janeiro, século xr; Anais do Museu Paulista, 1995, vol. 3, p. 136.
(77) W. BENJAMIN, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em Obras (101) Veja, por exemplo: Cozinheiro nacional (Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1897),
escolhidas, p. 174. apud L. da Câmara cascupo (org.), Antologia da alimentação no Brasil, pp. 27-30; ou ainda
(78) M.M. 1errz, “A mostra”, em Retratos de família, p. 169. o ensaio já mencionado de T. A. LIMA.
(79) M. E. porcas, “Arte funerária: representação da criança despida”, Revista de His- (102) T. A. LIMA, OP. cit., pp. 162-3.
tória, vol. 14, p. 177. Sobre arte tumular no Brasil, veja H. R. BELLOMO, “À estatuária funerária (103) . B. M. LosatO, “Curioso caso de materialização”, em Idéias do Jeca Tatu,
em Porto Alegre” (1900-1950); M. E. sorses, “Arte tumular”; T. A. LIMA, “De morcegos e , 133,
caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século xix º (104) M. C. N. Homem, O palacete paulistano e outras formas de morar da elite
(estudo de identidade e mobilidade social)”, Anais do Museu Paulista, 1994, vol. BJ. E. cafeeira (1867-1918), pp. 165 e 250.
RIBEIRO, “Arte e morte”; C, do Prado vALLADARES, Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. (105) Cf. depoimento concedido pelo sr. Sebastião Martins Vieira.
(80) E B. rerraz, Caderno de recordações de viagem, s. p. O baron d'Anthouard, (106) S. B. de HOLANDA, “Novos tempos”, em Raízes do Brasil, pp. 122-3.
antigo ministro da França no Rio, deixou registrado no seu livro Le progrês brésilien — la (107) J. D. negpELL, Belle Époque tropical, p. 180.
participation de la France (1911) as seguintes observações sobre as estadas parisienses: (108) M. DE csrTEAU, “Espaços privados”, em idem, L. GIARD e P. MAYOL, À invenção do
“Ninguém ignora que nossos hóspedes estrangeiros gastam muito entre nós [...] eo que cotidiano, p. 205,
sabemos dos hábitos brasileiros permite-nos afirmar que participam com uma parte im- (109) A. corsin, “O segredo do indivíduo”, em M. perror (org.), História da vida
portante nessa importação de ouro. Um brasileiro, após ter trabalhado mais ou menos privada, vol. 4, p. 448.
longamente em sua terra, parte com uma forte letra de crédito, além de uma lista enorme (110) Cf. depoimento de d. Nina, apud M. A. S, sita et alii, Memórias e brincadeiras
de encomendas de seus amigos, e volta ao fim de alguns meses com inúmeros pacotes que na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, p. 113.
faz entrar como bagagem pessoal, e que contêm toaletes, vestidos, jóias, obras de arte, etc. (111) Afonso Arino de Mello rranco, “Casa dos Mello Franco em Copacabana”, em
Ele gastou sem medidas, para desfrutar de todas as seduções da vida francesa. Depois M. BANDEIRA € C. D, de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 402-3. A
dessas férias, ele volta ao trabalho”; apud M. carELLI, Culturas cruzadas, p. 189. valorização de peças “barrocas” e “coloniais” é relatada pelo marchand José Claudino da
(81) C. E de LacerDa, Caderneta de apontamentos, s. p. Nóbrega, “Memórias de um viajante”, apud J. C. DURAND, Arte, privilégio e distinção, p. 94,
(82) M. BANDEIRA, “Evocação do Recife”, em Estrela da vida inteira, p. 104. ao anotar que “depois da Segunda Grande Guerra o gosto do brasileiro transformou-se e
(83) “A mulher e a praia”, Eu sei tudo, 1937, nº 7, pp. 34-5. os potentados passaram a interessar-se pelo nosso barroco e por todas as peças usadas no
(84) CEM. 1.M. B. pinto, “Trabalho temporário, ritmo de vida e lazer”, em Cotidia- tempo colonial: cômodas e mesas de encosto D. João v e D. José; camas e mochos de
no e sobrevivência, pp. 229-55. jacarandá da Bahia, sofás e cadeirões. As igrejas passaram a ser o alvo dos compradores de
(85) Apud E. posi, Memória e sociedade, p. 306. antiguidades, pois os tocheiros de prata, as navetas, os turíbulos e até os cálices de comu-
(86) Cf. depoimento concedido por d. Júlia Simmi Carlletti. nhão alcançavam altos preços no mercado de arte. Os entalhes barrocos passaram a ser
(87) Apud E. M. sirva, “As operárias da agulha”, Revista de História, 1991, nº 2-3, p. 222. elementos indispensáveis às mais finas decorações”.
(88) FM. de cru, Novedades para bordar letras y monogramas, s. p. (112) Clarice Lispector, O lustre (1946), apud M. de Lourdes M, jaNorrr (dir.),
(89) J. americano, “Distintivos”, em São Paulo nesse tempo (1915-1935), p. 180. Leitura de fragmentos, p. 17.
(90) CÉ. M. nz certrau, “Espaços privados”, em idem, L. GIARD e P. MAYOL, À invenção
do cotidiano, vol. 2, pp. 203-7,
(91) Guilherme de ALMEIDA, “A casa”, Revista do Arquivo Municipal, 1942, nº 82, 7. A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOSDO RIO (pp. 513-619)
pp. 177-84. Todas as citações reproduzidas no texto foram extraídas desse ensaio,
(92) N. G. reis Fº, “Residências” e “Crítica do ecletismo”, em Quadro da arquitetura (1) 1. ToLsTÓr, The knowledge and the power, p. 205.
no Brasil, pp. 169-87. Veja também C. A. C. LeMos, “Os novos partidos e os estilos do povo”, (2) Sobre o conceito e significado da Revolução Científico-Tecnológica, ver a intro-
em Alvenaria burguesa, especialmente pp. 102-200. dução deste volume.
(93) G. BACHELARD, “A poética do espaço”, em Bachelard. O autor define a topoaná- (3) Victor HuGo, cit. por I. cHRIsTIE, The last machine, p. 16.
lise como “o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima”, (4) Gustave ELAUBERT, cit. por 1. CHRISTIE, The last machine, p. 16.
acrescentando ainda que “no teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém (5) Máximo córxy, cit. por I. cHRIsTIE, The last machine, p. 15.
Os personagens em seu papel dominante. Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, (6) E. TouLET, Birth of the motion picture, p. 17.
ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, (7) As informações e citações do parágrafo acima procedem de A. GonGazaA, Palácios
de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em busca e poeiras, pp. 50-3; as citações estão na página 53.
do tempo perdido, quer 'suspender o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém (8) E. TouLET, Birth of the motion picture, cit. na capa interna a partir de W. K.L.
o tempo comprimido. O espaço serve para isso”, p. 202. DICKSON, History of the photographic and scientific experiments and developments leading to
(94) J. Hanermas, Mudança estrutural da esfera pública, p. 62. the perfection of the Vitascope, 1896.
650 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 NOTAS * 651
(9) W. BeNtaMaN, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, p. 29. (32) Gilberto Freyre observou como há nesse período de acentuada cosmopolitiza-
(10) R. xiLinc, “Mrs. Bathurst”, em Collected stories, pp. 577-600. ção do Rio de Janeiro da Belle Époque uma voga amplamente difundida de dar às crianças
(11) Kingsley Davis, Scientific American, 1965, cit. por V. sMiL, p. 208; ver também nomes em especial anglo-saxônicos, tais como Washington, Franklin, Nelson, Edison,
ibidem, pp. 208-10. , Milton, Darwin, Elizabeth, Lincoln, Gladstone, Spencer etc. Aliás, o período é imensa-
(12) James ponaro, “The city, the cinema: modern spaces”, em C. jexxs (ed.), Visual mente fértil na incorporação de novas palavras de origem estrangeira, tanto pelo efeito
culture, p. 84. cultural da atmosfera cosmopolita como pela necessidade de absorver termos e expressões
(13) G. rrevre, “O carioca Villa-Lobos”, em M. BANDEIRA e C. D. de ANDRADE (orgs.), que nomeassem os novos recursos, artigos, situações e equipamentos advindos da trans-
Rio de Janeiro em prosa & verso, p. 531. Eis um quadro da evolução demográfica da capital formação do modo de vida. O sociólogo fornece uma lista longa mas muito reveladora do
federal, alinhada, para efeitos de comparação, com outras capitais brasileiras. grau e alcance imensos em que o cotidiano das pessoas mudou, num curto período. Fis
alguns exemplos: “madame ou madama, five-o'clock tea, jockey, turfe, spleen, snob,
| População | | IH | causer, wagon ou vagão, dogue, toilette, bife, menu, restaurante, funding, impeachment,
residente, | 1872 | 1890 | 1900 | 1920 | 1940 | 1950 | 1960 tilburi, cabriolé, landô, cupê, deck, smart, ragu, élan, warrantagem, casse-tête, lorgnon,
| 1872-1960 | | charrete, raquette, pince-nez, étagere, etiqueta, clube, clichê, peignoir, repórter, tête-a-tête,
| Recife 16671 | 111556 | bonde, bulevar, water-closet, vaudeville, enveloppe, élite, comitê, clown, bureau, iole, iate,
115106 238843 | 348424] 524682 | 788336 faisandé, trust, maple, bufete, box, rosbife, toast, tênis, pule, linchamento, coterie, high-
[Salvador | 129109| 174412] 205813] 283422] 290443] 417235 | 649453 life, sabotagem, hotel, macadame, bombom, festival, batiste, atelier, meeting, echarpe, bal-
Belo Horizonte | | | 13472] 55563] 211577] 352724] 683908 | masqué, iale, adresse, bebê, book-maker, claque, châtelaine, calembur, bouquet, abajur,
Rio de Janeiro | 274972 522651, 811443| 1157873| 1764141 | 2377451 | 3281908 soirée, marionette, garçon, récamier, surmenage, grogue, chalé, vitrine, turista, chaise-
longue, breque, mise-en-scêne, valet, vieux rose, marrom, boudget, líder, groom, cache-
| São Paulo 31385] 64934 | 239820 579033 | 1326281 | 2198096
| 3781446
nez, gare, pastel, detalhe, apache, escalope, puré, gaffe, canard, placard, entourage,
Porto Alegre 43998 | 52421 | 73647, 179263] 272232 | 394151 635125 dreadnought, scout, destroyer, tender, boycott, boulanger, conhaque, Noel, pônei, lorde,
blague, suite, omelette, bluff, truc, trottoir, detective, maquete, mayonnaise, institutrice,
Fonte: População residente segundo os municípios das capitais. Anuário Estatístico do Bra- dossier, mitaine, manteau, beige, gris, perle, diseuse, passe-partout, marquise, guichet,
sil, 18GE, 1995, forfait, film, gaucherie, matinée, guidon, croquis, mignon, gigolot, demi-monde, crochet,
crêche, debutar, nuance, cocotte, champanha, gendarme, hors d'oeuvre, bijoux, joujou,
(14) As citações estão em G. rrevre, Ordem e progresso, pp. Xvil-a e xvi-b; a tradu-
fin-de-siêcle, frappé, flaneur, robe de chambre, tableau, tailleur, plastron, rótisserie,
ção da citação de Ortega y Gasset é minha.
rendez-vous, lanche, bibelot, écran, plateau, demarche, complot, raté, caften, micaremê,
(15) “Verdade aqui, erro lá”. M. de assis, crônica, A Semana, 21/1/1894.
match, goal, troupe, tournée, équipe, crayon, vernissage, aplomb, bijuteria, boudoir,
(16) Essa nítida separação entre o centro e a periferia era um dos temas mais
carnet, reporter, interview. Vários outros” Cf. G. rrerrE, Ordem e progresso; a primeira
candentes de Lima Barreto. Conforme nos ilustra M. P. vELLOSO em As tradições populares
na Belle Époque carioca: “Quando ultrapassa as fronteiras da sua cidade — que é o subúr- citação está na página cxLiv e a segunda nas páginas 215 e 216.
(33) O que em latim significa “ao mais alto”; cf. nota de R. T. vaLENÇA, em J. do RIO,
bio — o personagem barretiano começa a perder sua identidade. “Passado o Campo de
Santana, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabavam a A profissão de Jacques Pedreira. Cabe atentar ao mau gosto sintomático da dupla
sua fama e o seu valimento..”, p. 45. conotação insinuada pelo barão fogoso.
(17) Uma primeira tentativa de instalar um serviço de bonde puxado a burros no (34) J. do ro, À profissão de Jacques Pedreira, pp. 18 e 48-9.
Rio de Janeiro foi malsucedida, durando apenas de 1859 a 1864. Somente em 1868 o novo (35) Idem, ibidem, p. 40.
sistema se firmaria, através da linha que ligava a Cidade Velha ao Flamengo, Botafogo e (36) N. sevcenxo, Literatura como missão, p. 41.
Jardim Botânico, acomparihando e definindo o eixo da especulação imobiliária e a ins- (37) M. de assis, crônica, A Semana, 6/10/1895.
talação das residências mais luxuosas. Os bondes elétricos só seriam instalados em 1892. (38) Jacques Doucet foi um célebre modista parisiense do início do século.
J. D. nespeLL, Belle Époque tropical, pp. 46 e 182. (39) T. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 17.
(18) Os bondes pertenciam à Companhia anglo-americana-canadense Light and (40) Referência ao ator e diretor de teatro francês André Antoine, em grande vigên-
Power, porém a concessão do serviço era prerrogativa exclusiva da autoridade pública. cia no período e especializado em peças ambientadas em interiores burgueses.
(19) N. sevcenro, Literatura como missão, pp. 34-5. (41) J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 41.
(20) M. de assis, crônica, A Semana, 4/3/1894. (42) Idem, ibidem, p. 15.
(21) Ver a respeito do cigarro como símbolo de modernidade, M. KogTZIE é U. (43) Idem, ibidem, pp. 38-9.
SCHEID, Feu d'amour, pp. 6-15. (44) E, HOBSBAWM, À era do capital, pp. 135-6.
(22) J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 32. (45) Ver Introdução e capítulo 2.
(23) N. sevcenko, “Ascensão e queda de uma cultura”, Jornal da Tarde, Caderno (46) ]. do Rio, J. R., L. MARTINS (ed.), pp. 54-8.
Idéias, 28/1/1995, p. 3. A respeito do café, sua identificação com a recém-empossada elite (47) L. BarrETO, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, pp. 268-9.
republicana era tal que Machado, abusando de sua ironia, espicaçava ao mesmo tempo os (48) . do rio, À alma encantadora das ruas, pp. 160-3.
“novos homens” e o novo regime, alterando a reverenciada máxima de Augusto Comte: (49) H. vianna, O mistério do samba, pp. 50-4.
“Nem só de pão vive o homem” para: “Nem só de café vive o homem”. Cf. A Semana, (50) L. sarreto, Os bruzundangas, p. 106.
19/1/1896, p. 93. (51) J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, pp. 36-7.
(24) A, purcess, “Preface”, em M. waLTER (ed.), The book of tea, pp. 9-19. (52) M. de Souza pinto, “O bota-abaixo de Pereira Passos”, em M. BANDEIRA € C, D.
(25) M. de assis, crônica, A Semana, 22/4/1894. de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 408-9.
(26) Idem, crônica, A Semana, 25/3/1894. (53) M. de assis, crônica, A Semana, 2/10/1892.
(27) CE. Introdução, pp. 13-4. (54) O. de anvraDe, Um homem sem profissão, pp. 34-6.
(28) M. de assis, crônica, A Semana, 3/11/1895. (55) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 122-4.
(29) Idem, ibidem. (56) M. de assis, crônica, A Semana, 16/10/1892; note-se a graça especial do autor
(30) Visconde de Taunay, O Encilhamento, pp. 16-7. ao referir-se ao motorneiro como “o cocheiro”,
(31) M. de assis, crônica, A Semana, 2/8/1896. (57) Idem, ibidem, 23/10/1892.
652 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 NOTAS * 653
(58) J. do rio, A profissão de Jacques Pedreira, p. 23. profissão de Jacques Pedreira, tal foi o excesso de erros tipográficos que comprometiam a
(59) Idem, ibidem, p. 36: publicação. Na segunda edição, cujo texto foi anotado e estabelecido por Rachel Valença,
(60) Z. GaTTAL Anarquistas graças a Deus, pp. 247-8. Devo a indicação dessa citação ela registra nesse ponto a expressão “projeções odicas”, cogitando em nota tratar-se de um
a Paulo Roguruna. R ; provável arcaísmo de cunho esotérico, há muito caído em desuso. O contexto, entretanto,
(61) M, de assis, crônica, A Semana, 22/12/1895. nos parece indicar de forma cristalina que se trata de uma referência às teorias sobre as
(62) Idem, ibidem, 2/2/1896. “projeções órficas” e ao orfismo, em plena vigência na Paris do início do século. Cf. N.
(63) E. HoBSBAWM, The age of empire, p. 14. REID & J. GOLDING (orgs.), Léger and purist Paris, passim.
(64) M. HERSCHMANN € K. LERNER, Lance de sorte, pp. 61-79, e C. MATOS, Acertei no (106) 7. do mo, A profissão de Jacques Pedreira, pp. 93-4.
milhar. (107) F.C. de meio NETO, Antologia poética, p. 86.
(65) J. do mo, A profissão de Jacques Pedreira, p. 126. (108) R. simões, “Do pregão ao jingle”, em R. L. MARTENSEN & E REIS, História da
(66) A. TosTI, Contributo alla conoscenza della stupidità umana, passim. Devo a propaganda no Brasil, p. 173. .
indicação desse belo texto a Giulia Crippa. (109) C. D. de anDraDE, Às impurezas do branco, p. 12.
(67) J. do rio, A profissão de Jacques Pedreira, pp. 26-7. (110) A. Ribeiro, J. de Barros e L. Babo, “Cantoras do rádio”, com Carmen e Aurora
(68) Idem, ibidem, Miranda e a Orquestra Odeon, maio 1936. Cf. A. caRDOSO JR. Carmen Miranda, pp. 399-400.
(69) M. de assis, crônica, A Semana, 6/10/1895. (111) A. maRwiCK, Beauty in history, p. 307.
(70) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 73-7. (112) D. E Haussen, Rádio e política, pp. 13-60.
(71) J. do rio, A correspondência de uma estação de cura, p. 20. (113) R. murce, Bastidores do rádio, pp. 27-8.
(72) G. rrevrE, Ordem e progresso, p. Gov. (114) R. punBaR, Grooming, gossip and the evolution of language, passim. No mesmo
(73) J. do RIO, À correspondência de uma estação de cura, p. 23. sentido ver também W. E ALLMAN, The stone age present, especialmente pp. 52-70.
(74) Idem, ibidem, p. 5. (115) A respeito dessa redução das relações de vizinhanças a seres anônimos, mera-
(75) Idem, ibidem, pp. 5-6. mente identificados pelo número dos seus prédios e apartamento, Rubem Braga tem uma
(76) M. de assis, crônica, A Semana, 5/7/1896. crônica impagável, em que escreve a um vizinho que reclamou de seu barulho noturno, o
(77) J. do ro, A correspondência de uma estação de cura, pp. 4, 5 e 24 respectivamente, qual lhe incomodava o sono. “Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso notur-
(78) M. de assis, crônica, A Semana, 5/8/1894: no e é impossível repousar no 903 quando há vozes e passos e música no 1003. Ou
(79) J. do rio, À correspondência de uma estação de cura, p. 75. melhor, é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois, como não sei o seu
(80) M. de assis, crônica, A Semana, 29/3/1896. nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números
(81) ]. do rio, “Hora do footbalP; extraído de Pall-Mall Rio, em R. Ramos (org.), À empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo
palavra é futebol, pp. 18-9. 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo
(82) G. crus, Aparência do Rio de Janeiro, pp. 800-8. 903 — que é o senhor [...] Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número)
(83) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 46-50. será convidado a se retirar às 21h45m, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois
(84) Idem, A Revolta da Vacina, pp. 70-1. às 8h15m deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele
(85) Idem, ibidem, p. 75. trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só
(86) J. do rio, “A parada da ilusão” em H. P, cunHa (sel.), Os melhores contos de João pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita
do Rio, p. 78. ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas — e prometo silêncio”
(87) E. de Assis BargOSA, “Dona Filó é quem diz”, em M. BANDEIRA € C. D. de ANDRADE “Vizinho” em M. BANDEIRA e C. D. de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp.
(orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 538-9. 308-9.
(88) Idem, ibidem, p. 539. (116) R, murce, Bastidores do rádio, pp. 24-5. '
(89) Idem, ibidem, pp. 539-40. -— (117) A. carposo jR.; Carmen Miranda, pp. 39-47; a citação está na página 46.
(90) D. e M. jonnson, The age of illusion, pp. 60-3. (118) R. murce, Bastidores do rádio, p. 33.
(91) G. amapo, em M. BANDEIRA € C. D. de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa (119) M. de assis, crônica, A Semana, 22/4/1894,
& verso, p. 297. (120) N. sevcenko, Orfeu extático na metrópole, pp. 160-81.
(92) K. Baverz, “Biology and beauty: science and aesthtics in fin de siêcie”, em M. (121) ]. do rio, À correspondência de uma estação de cura, p. 4.
TEICH e R, PORTER, Fin de siêcle and its legacy, pp. 278-95. Ver também M. teicH, “The (122) Idem, ibidem, p. 97.
unmastered past of human genetics”, em ibidem, pp. 296-34. (123) M. de assis, crônica, A Semana, 24/11/1895.
(93) A. rorTY, Objects of desire, pp. 156-81. (124) Idem, ibidem, 23/2/1896.
(94) Idem, ibidem, pp. 94-119. (125) M. BanpEiRa, “Carnaval”, da coletânea Poesias, pp. 83-4.
(95) Idem, ibidem, pp. 174. (126) Essas e as subsequentes considerações sobre o cinema americano e o Brasil
(96) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 43-8. fazem parte de um texto inédito de N. sevcenko, “Brazilian Follies: the casting,
(97) J. do rio, “Hora de footbalP, em R. ramos (org.), A palavra é futebol, p. 19. broadcasting and consumption of images of Brazil on both sides of the continent, 1930-
(98) CE E. C. acassiz, “Nobreza e elegância dos Minas”, em M. BANDEIRA e C. D. de 50”, apresentado no simpósio internacional “Ways of Working in Latin American Cultural
ANDRADE (Orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 103-4; ]. do rio, “O corpo marcado”, Studies” ocorrido no Institute of Latin American Studies do University College da Univer-
em ibidem, pp. 187-91; L. campos, “Capoeira, esgrima dos olhos”, em ibidem, pp. 191-4. sidade de Londres em abril de 1995.
(99) M. reBELO, “Corpo que era baile e canção”, em M. BANDEIRA e C. D, de ANDRADE (127) €. D. de annraDE, Farewell, pp. 85-6.
(orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, p. 220. (128) B. cenprars, Hollywood, la Mecque du cinéma, p. 162.
(100) J. do RIO, A profissão de Jacques Pedreira, p. 108. (129) 7. do rio, . R., p. 31.
(101) Cf. nota de R. 'T. vaLENÇA em J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 150. (130) D. Norman, Turn signs are the facial expressions of automobiles, pp. 19-34; A.
(102) 3. do rio, A profissão de Jacques Pedreira, p. 114. FORTY, Objects of desire, pp. 94-119 e 207-21.
(103) Idem, ibidem, p. 34. (131) M. ranuccHI, Nossa próxima atração, pp. 151-62.
(104) M. de assis, crônica, A Semana, 13/10/1893. (132) €. D. de anpraDE, Farewell, pp. 22-3.
(105) João do Rio mandou destruir por ordem judicial toda a primeira edição de A (133) Idem, Reunião, p. 63.
654 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3