Admin, Gerente Da Revista, 3108-11502-1-CE
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RESUMO: Durante a leitura dos livros infantis de Lobato, familiariza-se com sua criação:
Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia e Emília que habitam num espaço tipicamente
nacional, conhecido como Sítio do Picapau Amarelo. A cada nova leitura das histórias,
percebe-se que esse lugar, além de acolher as figuras concebidas pelo escritor, recebe também
personagens estrangeiras na condição de visitantes. Dessa maneira, observa-se que os textos
lobatianos dialogam com a História, com a Mitologia e com a própria Literatura. Com relação
a esta última, verifica-se que muitas personagens do Mundo das Fábulas passam a viver novas
aventuras junto com as de Monteiro Lobato, no Sítio do Picapau Amarelo. Considerando este
intercâmbio de “mundos”, no presente trabalho pretende-se analisar o modo como o escritor
brasileiro se vale da “tradição literária” na construção de suas histórias. Especificamente, será
analisada a presença da personagem Barba Azul, do conto “La Barbe-Bleue”, da obra Contes
de ma mère l’oye (1697), de Charles Perrault. Para o desenvolvimento desta proposta,
primeiramente, será examinado o tratamento dado a essa personagem no conto francês para,
na seqüência, verificar as adaptações e/ou transformações realizadas por Lobato ao inseri-la
em seu universo ficcional. Desse modo, acredita-se que, o estudo da presença da personagem
de Perrault na saga lobatiana, é significativo para uma melhor configuração da maneira como
Lobato entendia a produção literária destinada às crianças.
PALAVRAS-CHAVE: Charles Perrault, Monteiro Lobato, Barba Azul.
1
Mestranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras e bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
2
José Godofredo de Moura Rangel (1884-1951), mineiro, formado em direito pela Faculdade do Largo São
Francisco, onde conheceu Monteiro Lobato. Depois da formatura, retornou ao seu estado natal, onde exerceu a
função de juiz e de professor de português em algumas cidades. Escreveu também três romances: Os bem
casados (1910), Falange gloriosa (1917) e Vida ociosa (1921).
Geovana Gentili Santos – [email protected] 2
participação de personagens provindas de outras obras, como as dos contos de fadas de
Perrault.
Para o exame desse “intercâmbio de textos” no universo ficcional lobatiano, cumpre
averiguar as proposições teóricas de Dominique Maingueneau sobre a questão: “quando se
consideram as condições de surgimento das obras, o essencial não é a afirmação de uma
intertextualidade radical – tese de resto indiscutível e que se aplica a todo discurso
constituinte –, mas o modo como cada posicionamento gera essa intertextualidade”
(MAINGUENEAU, 2006, p.165, grifo nosso). Pautando-se nessa proposta, pretende-se, no
presente trabalho, verificar a maneira como Lobato posiciona-se perante a tradição literária e
o modo como se vale da personagem Barba Azul na construção do seu universo ficcional.
Para tanto, inicialmente, será analisado o conto “La Barbe Bleue” e, na seqüência, sua
presença no Sítio do Picapau Amarelo.
[...] que ela se divertisse bem durante sua ausência, chamasse as suas boas amigas,
levasse-as ao Campo se quisesse, e comesse bem em todo lugar. “Aqui estão as
chaves do guarda móveis, aqui estão as baixelas de ouro e de prata que não se usam
todos os dias, aqui estão as dos meus cofres-fortes, onde estão o meu ouro e a minha
prata, as das caixas onde ficam minhas pedrarias e aqui está a gazua para todos os
cômodos. Quanto a esta chavinha, é a chave do gabinete no fim da grande galeria
dos aposentos do andar térreo: podes abrir tudo, ir por toda parte, mas quanto a este
gabinete, proíbo-te de entrar nele, e de tal forma proíbo eu, se te acontecer de abri-
lo, não há nada que não possas esperar da minha cólera (PERRAULT, 2007, p.96).
Ao apresentar cada chave dos cômodos, o marido explica à sua esposa o que eles
guardam. Essa pormenorização contribui para a ostentação da riqueza de Barba Azul e, ao
mesmo tempo, contrapõe-se com a apresentação objetiva da chave do gabinete da parte
inferior da casa. Nota-se que, no lugar da descrição do bem material possivelmente guardado
ali, se tem apenas a proibição do acesso, colaborando para instigar a curiosidade feminina,
afinal, se toda a riqueza estava disponível, o que poderia ser protegido por uma chave
pequena?
De início não viu nada, porque as janelas estavam fechadas; depois de alguns
instantes começou a ver que o assoalho estava todo coberto de sangue coagulado, e
que esse sangue refletia os corpos de várias mulheres mortas e dependuradas ao
longo das paredes (eram todas as mulheres com quem Barba Azul havia casado e
que havia degolado uma depois da outra). Ela achou que ia morrer de medo, e a
chave do gabinete, que ela acabara de tirar da fechadura, caiu de sua mão
(PERRAULT, 2007, p.96-7).
Pouco a pouco, o narrador revela a visão da esposa do Barba Azul. O espaço que antes
se distinguia pela beleza da decoração e pelo requinte dos móveis adquire uma nova
caracterização: um cenário terrível, que conta com ausência de luz, com sangue coalho e com
corpos pendurados pela parede. Percebe-se que a revelação desse local horripilante na luxuosa
e suntuosa casa de Barba Azul coopera para instaurar na narrativa o clima de tensão e para
colocar em xeque as qualidades do protagonista.
A explicação entre parêntesis sobre os corpos ali presentes liga-se à primeira referência
feita pelo narrador às ex-mulheres desaparecidas do Barba Azul. Constata-se que,
“Ana, minha irmã Ana, não estás vendo chegar nada?” E a irmã Ana lhe
respondia “Só estou vendo o Sol que empoeira e o mato que verdeja”.
Entrementes Barba Azul, com um grande facão na mão, gritava com toda
força para a sua mulher: “Desce depressa, ou eu vou subir aí em cima”. –
“Mais um momento, por favor”, respondia-lhe a mulher; e logo gritava mais
baixo: “Ana, minha irmã Ana, não estás vendo chegar nada?” E a irmã Ana
respondia “Só estou vendo o Sol que empoeira e o mato que verdeja”.
“Desce depressa”, gritava o Barba Azul, “ou eu vou subir aí em cima”. – “Já
vou”, respondia a sua mulher, e depois gritava: “Ana, minha irmã Ana, não
estás vendo chegar nada?” [...] – “Não queres descer?”, gritava Barba Azul.
– “Mais um momento”, respondia a sua mulher; depois gritava: “Ana, minha
irmã Ana, não estás vendo chegar nada?” – “Estou vendo”, respondeu ela,
“dois Cavaleiros que vêm por este lado, mas ainda estão muito longe...”
“Deus seja louvado”, exclamou um momento depois, “são meus irmãos,
estou lhes fazendo sinal o mais que eu posso para que venham depressa”
(PERRAULT, 2007, p.98, grifo do autor).
O jogo de frases lembra a estrutura de uma ladainha – “oração formada por uma série de
invocações curtas e respostas repetidas” (DICIONÁRIO AURÉLIO), contribuindo para a
preservação da situação dramática da narrativa, por meio da protelação das ações. Verifica-se
que, nesse fragmento, o pedido para encomendar-se a Deus não passa de uma estratégia
feminina para ganhar tempo. Sua “reza”, na verdade, dirige-se à irmã, buscando nela a sua
salvação imediata com a expectativa da chegada dos seus irmãos e, não, a salvação espiritual,
conforme simula.
Essa simulação da personagem feminina evidencia-se também quando a esposa desce
do seu quarto e põe-se aos pés do marido em prantos, pedindo-lhe mais tempo para recolher-
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se. Na realidade, sua pretensão não é a de rezar por sua alma, mas sim, retardar a ação de seu
marido e permitir a chegada de seus irmãos: “‘Não, não’, disse ele, ‘recomenda a tua a alma a
Deus’; e erguendo o braço...” (PERRAULT, 2007, p.98). No ponto máximo da narrativa, com
a tensão em seu nível mais alto, ouvem-se fortes batidas na porta que paralisam Barba Azul:
“abriu-se a porta e logo se viu entrar dois Cavaleiros que, de espada em punho, correram para
cima da Barba Azul” (Idem, p.98). Sem ter herdeiros, toda a riqueza passa a ser da jovem
mulher que utiliza uma parte para casar sua irmã, comprar cargos para seus irmãos e para
promover o seu próprio casamento “com um homem de bem que a fez esquecer os maus
tempos que tinha passado com Barba Azul” (Idem, p.98).
Nesse desfecho dado à narrativa, observa-se que o casamento se torna uma recompensa
às figuras femininas e a aquisição de cargos às masculinas. Além disso, verifica-se a inversão
do desfecho bíblico, pois, se Adão e Eva sofrem as conseqüências de seus atos sendo expulsos
do jardim; no conto “La Barbe Bleue”, o castigo é anulado devido à estratégia da jovem
esposa. Constata-se, portanto, que há na narrativa de Charles Perrault a recuperação da
tradição bíblica com vistas a criar novos planos de sentido. Por fim, cabe ressaltar que a
caracterização da personagem Barba Azul é dinâmica, promovendo um jogo dialético entre
aparência e essência.
– Boa? Está muito enganado. Mais malvada que ela só o Barba Azul. Você
porque é novo nesta casa e não a conhece. Tia Nastácia não tem dó de nada.
Pega aqueles frangos tão lindos e – zás! torce-lhes o pescoço. Mata patos,
mata perus, mata camundongos – não há o que não mate. Outro dia, no
Natal, a diaba assassinou um irmão de Rabicó, tão bonitinho! Pegou naquela
faca de ponta que mora na cozinha e – fuct! Enfiou dentro dele, até no
fundo. E pensa que foi só isso? Está enganado! Depois pelou o coitadinho
numa água bem fervendo e assou o coitadinho num forno tão quente que
nem se podia chegar perto (LOBATO, 1957, p.210).
Barba Azul torna-se sinônimo de maldade, de modo que sua figura passa a ser evocada
em situações que exploram o lado considerado como “mal” por Emília, tais como as matanças
de Tia Nastácia e as ameaças de Pedrinho. Verifica-se, portanto, que a boneca sabe se valer,
perspicazmente, da má fama do Barba Azul, sobretudo quando deseja dar ênfase à ação
negativa das outras personagens, como no caso da briga com Pedrinho, situação na qual
“todos tomaram o partido dela, inclusive Dona Beta” (LOBATO, 1957, p.216). Em mais de
um episódio, nota-se que a presença de uma personagem estrangeira auxilia na construção da
personagem lobatiana.
Sempre gerando tumulto com sua presença, Barba Azul, em “O Circo de cavalinhos”
(Reinações de Narizinho), tenta se aproximar do Sítio para acompanhar o espetáculo do
Circo de Cavalinhos organizado pela turma do Sítio aos amigos do Reino Encantado, mas
logo é posto para correr: – “Calma! Calma! Não se assustem! O monstro já vai longe. Maroto
ferrou-lhe uma dentada na barba, que até arrancou um chumaço – e mostrou um punhado de
barba de Barba Azul. / Todos vieram ver e cada qual levou um fio como lembrança”
Sancho logo fez camaradagem com Pedrinho, ao qual contou várias proezas
de seu amo que não figuram no famoso livro de Cervantes.
– Ah! Menino, este meu amo é na verdade o herói dos heróis. Ainda há
pouco, ali na entrada das Terras Novas, espetou com a lança um homem
muito feio, de grandes barbas azuis.
– De barbas azuis? Então era o Barba-Azul! Bem feito! Esse homem é o
maior especialista em matar mulheres. Já liquidou sete. Não estava de faca
na mão?
– Trazia na cintura uma enorme faca de ponta, sim.
– Pois é isso mesmo. Com aquela faca o malvado já matou sete esposas – e
matará a oitava, se aparecer outra tola que se case com ele.
– Pois ficou bem espetado pela lança de meu amo – continuou Sancho. –
Quis resistir; mas quando ia puxando a faca, foi alcançado no peito e
derrubado (LOBATO, 1956, p.31-2).
Sempre indesejado pelas demais personagens dos contos de fadas, Barba Azul – que no
conto “La Barbe Bleue” é morto pelos irmãos da sua última esposa –, tem um novo fim no
espaço ficcional lobatiano: ele é morto por Dom Quixote. Com esse novo final, Lobato rompe
com os limites de autoria e aproxima diferentes personagens em um único espaço ficcional.
Se nos contos anteriores notou-se a presença de um novo adereço na figura de Barba Azul – o
cinto com a cabeça de suas ex-mulheres – que lhe conferia uma imagem mais aterrorizante,
neste, verifica-se a retomada de um objeto já mencionado no conto francês: a faca. A pergunta
que Pedrinho faz a Sancho a fim de identificar se se tratava realmente de Barba Azul, faz
remissão à cena final da versão francesa do conto, na qual a personagem ameaça matar sua
esposa com um facão. Com essa questão, observa-se que Pedrinho possui um repertório de
leitura capaz de lhe fornecer condições para identificar as personagens.
Já em relação à história do Barba Azul, verifica-se que, no trecho citado, ocorre uma
alteração na quantidade de ex-mulheres do rico homem. Na primeira participação no Sítio, a
personagem aparece usando um cinto com as seis cabeças de suas ex-esposas, já na fala de
Pedrinho, Barba Azul teria matado sete mulheres, enquanto que, na versão francesa, não há
nenhuma especificação. Pode-se pensar que essas divergências seriam uma maneira de
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mostrar que “quem conta um conto sempre aumenta um ponto”, isto é, de que na fala de
diferentes personagens a mesma história pode sofrer variações. Esses desencontros de dados
podem ser considerados também como uma estratégia de Lobato para despertar no leitor,
exigindo-lhe uma postura mais ativa perante o texto literário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o desenvolvimento deste trabalho, pôde constatar que a obra infantil de Monteiro
Lobato se constrói a partir da assimilação dos contos de fadas e da combinação de suas
convenções com elementos próprios. Para estabelecer essas novas combinações, Monteiro
Lobato vale-se da paródia como técnica narrativa. Nas palavras de Sant’Anna (1998, p.31) “o
que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido
recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação
do discurso. É uma tomada de consciência crítica”. Associando essa definição às análise das
narrativas de Lobato em que Barba Azul é incorporado, nota-se que o escritor re-apresenta a
personagem, mostrando uma nova forma de ler (ou de valer-se) dos clássicos amplamente
divulgados na cultura brasileira. Lobato “libera” esse discurso ao extrapolar os limites do
conto “La Barbe Bleue” e ao transpor essa personagem da tradição literária para um universo
ficcional totalmente diferente. Esse modo de criação revela a consciência crítica de Monteiro
Lobato em relação ao panorama da literatura infantil brasileira que se pautava, sobretudo na
“importação” de obras estrangeiras para a formação literária dos pequenos leitores.
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______. Conferências, artigos e crônicas. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964e.
Geovana Gentili Santos – [email protected] 15
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REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução: Mario
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