O Pensamento Panafricanista
O Pensamento Panafricanista
O Pensamento Panafricanista
Departamento de História
Brasília, 2019
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Resumo
Abstract
The purpose of this paper is to analyze the continuity and influence of Pan-african thinking
by theorists such as Kwame Nkrumah, W.E.B. DuBois and George Padmore in contemporary
Africa. An analysis will be made of the historical trajectory of the movement, the criticism it
received, the attempts at integration of african countries based on the movement and how it
manifests itself in the present.
Keywords: Pan-africanism, African integration, Agenda 2063
2
INTRODUÇÃO
corpo, e se torna nacionalista. Para Nkrumah, a conferência seria um marco na forma como o
mundo olhava a África, já que, agora, os assuntos africanos eram discutidos por africanos e
na África (NKRUMAH, 1963, p. 136).
Na definição d e Guy Martin, exposta na 13° Assembleia Geral da CODESRIA, em
2011, a unificação política de todos os Estados africanos seria a “meta síntese” do
Pan-africanismo:
1
Em seu ensaio Africa Must Unite , de 1963, Nkrumah elabora uma sequência de
motivos que fariam com que a união continental fosse requisito para a mudança completa no
status das novas nações africanas. Para ele, o socialismo era o instrumento para alcançar um
objetivo além das independências individuais das então colônias africanas: a união
Pan-africana. Para o sucesso desse objetivo, se fazia necessário um partido de massas, o qual
se concretizou com a fundação do Convention People’s Party (CPP), em 1949. Na visão de
Nkrumah, o partido teria o papel de lutar contra as elites locais que serviam de intermediários
entre a administração colonial e a população. Representando os interesses de toda a “nação”,
o CPP seria o líder natural da implantação do socialismo. Mais do que ser apenas contra o
colonialismo, ele era contrário à ideia de libertação gradual, defendendo o corte imediato dos
laços políticos com as metrópoles (NKRUMAH, 1963, p. 55-57). Isso permitia uma
generalização extrema de seu discurso, dando ênfase aos nacionalismos africanos com a
intenção de formar uma identidade nacional homogênea em oposição à dominação
imperialista e à oposição nacional colaboracionista.
O ideal Pan-africano evoluiu consideravelmente desde o período das conferências
realizadas no exterior. Em 1963, sob influência direta de Kwame Nkrumah e Haile Selassie,
foi criada em Adis Abeba a Organização da União Africana (OUA), baseada nos ideais
1
NKRUMAH, K. Africa Must Unite. Nova York: 1963.
4
ORIGENS DO PAN-AFRICANISMO
2
A OUA ficou conhecida pela sua ineficiência em relação tanto aos projetos de desenvolvimento econômico e
de integração, quanto pela conivência às atitudes dos diversos ditadores que participavam ativamente da
entidade sem sofrerem sanções, levando-a a receber a alcunha pejorativa de “clube dos ditadores”. 50 ANOS DE
UNIÃO AFRICANA. Disponível em:
<https://m.dw.com/pt-002/50-anos-de-uni%C3%A3o-africana/g-16825352>. Acesso em 20 jul.2019.
5
3
No original: “Pan-African Nationalism is the nationalistic, unified struggle/resistance of African against all
forms of foreign aggression and invasion, in fight for nationhood/ nation building”.
7
superioridade uma raça sobre a outra, elas seriam complementares. Em DuBois há o início do
processo intelectual que propunha a união da raça negra (HERNANDEZ, 2008, p. 143-144).
A ideia de unir todos os negros em único “organismo” é materializada por Marcus
Garvey (1887-1940). Por meio da criação da UNIA (Universal Negro Improvement
Association and African Communities League) em 1914 na Jamaica, ele irá promover a
migração de centenas de afrodescendentes e africanos lançados na diáspora para a Libéria,
que seria a nação central para os negros. Seu desejo era estabelecer na África uma alta cultura
negra, onde haveria orgulho à raça, promoção dos heróis negros e ajuda às “tribos atrasadas
da África”. Seu modelo político-administrativo era baseado nos EUA. Apesar disso, suas
atividades na África não previam um rompimento com o Império Britânico. Apenas
posteriormente, Garvey passa a defender o ideal de independência. Seu projeto de migração
fracassa, mas gera um movimento baseado nos EUA responsável por espalhar seus ideais
pelo mundo (HERNANDEZ, 2008, p. 144-147).
Os congressos Pan-africanos
4
No original: “This conference is organized by a Committee of the African Association for the Discussion of the
“Native Races” Question, and will be attended and addressed by those of African descent from all parts of the
british Empire, the United States of America, Abyssinia, Liberia, Hayti, etc”.Disponível em:
<https://www.wikiwand.com/en/First_Pan-African_Conference>. Acesso em 20 jun.2019.
9
Mesmo que não tenha tido resultados concretos duradouros, a primeira Conferência
foi importante para os ainda incipientes movimentos emancipatórios que levariam à
independência das colônias africanas, 60 depois. Ela demonstrou para a população não negra,
graças à imprensa que cobriu amplamente a Conferência, e para os governantes coloniais, a
capacidade dos negros de se reunirem para discutir seu futuro. Além disso, a Conferência
daria início à série de congressos Pan-africanos, culminando com o Congresso Pan-africano
de 1945.
10
Em seu livro Africa Must Unite, o líder ganense Kwame Nkrumah detalha de maneira
pormenorizada todos os fatores que tornariam a união política de todos os países africanos a
melhor, e talvez única, opção para que a África consolidasse sua independência e alcançasse
seu total desenvolvimento. São listados no livro tanto os fatores positivos para a unificação,
com um enfoque nos enormes volumes de riqueza natural do continente, como os negativos,
como a baixa quantidade de profissionais treinados. A união do continente seria a solução
para os problemas e também à forma de se desenvolver por completo o potencial econômico
e humano africano. Num tom extremamente otimista, apesar de levar em conta vários perigos
externos provocados principalmente pelas disputas geopolíticas da Guerra Fria e pelo
interesse que as ex-potências coloniais teriam no continente, o autor escreve na prática uma
espécie de manual para o sucesso africano (NKRUMAH, 1963).
Kwame Nkrumah considerava que a independência de Gana em 1957, conduzida pelo
Convention People´s Party (CPP), seria o estopim para a libertação generalizada das demais
colônias africanas. Na sua visão, a luta pela independência deveria ser supranacional, sendo
uma obrigação do partido e do novo Estado por ele governado apoiar os demais movimentos
11
Socialismo africano
o conceito de conflito de classe, o qual anteriormente ele considerava que não existia em
África. A luta de classes na África seria o fruto das alianças das metrópoles com as diferentes
elites locais. Também desaparece o fator voluntário para a implantação do socialismo, sendo
necessária uma ação mais efetiva do partido e dos líderes (MELLO, 2016, p. 9-10).
Um fator que oporia as trajetórias de Senghor e Nkrumah seriam os resultados que
seus movimentos nacionais teriam. Enquanto o ganense propunha o fim imediato das relações
de dependência com os ingleses, o senegalês, assim como outros chefes de Estado das
ex-colônias francesas, optou por manter o país em uma aliança supranacional, que teria a
França como líder. A liderança e a capacidade de investimentos franceses eram bastante
atraentes para países como o Senegal e a Costa do Marfim, tanto que até hoje a França é
responsável pela política monetária de algumas de suas ex-colônias, algo impensável para
Nkrumah.
A impossibilidade de reprodução do socialismo europeu na África impôs a
necessidade de soluções originais como as propostas por Senghor e Nkrumah. Ambos partem
de uma valorização do fator africano, embora de forma distintas. Enquanto Senghor baseia
seu discurso num elemento como o “ritmo”, que seria a valorização da subjetividade africana
em oposição à objetividade da filosofia greco-romana, Nkrumah valoriza à ausência de
classes, que promoveria uma horizontalidade nas relações, facilitando a introdução do
socialismo no continente (MELLO, 2016, p.5).
Senghor, seria um dos idealizadores do conceito de Negritude e com a independência
do Senegal se tornaria presidente de seu país em 1960, sendo reeleito diversas vezes até 1980.
Apesar do tom crítico em relação à forma como o Ocidente, principalmente a França, se
relacionava com a África, manteria relações próximas sendo eleito para a Académie
Française, vindo a falecer em 2001 na Normandia. Garantiria com isso um legado de
estabilidade ao seu país além de eleger um sucessor. Sempre guiado pelo ideal Pan-africano,
instrumentalizado por meio do socialismo, Nkrumah teria todas as suas decisões pautadas
nesses ideais, o que condicionará fortemente sua resposta às diversas crises por qual passaria
seu país e o continente no momento das independências. A abordagem de Nkrumah vai sendo
modificada com o decorrer dos anos, tentando sempre se adaptar às novas realidades. Mas o
destino político de Nkrumah acabou por ser bastante conturbado - de líder inconteste da
campanha pela independência, para primeiro-ministro, depois presidente vitalício por meio de
uma emenda aprovada por uma eleição claramente fraudulenta, e por fim exilado devido a um
14
golpe organizado por seus rivais. Isso promoveria uma imagem bastante negativa do
movimento, sendo possivelmente um dos fatores responsáveis pelo sucesso de uma visão
mais conservadora para o continente na construção das alternativas de desenvolvimento,
sendo a OUA e sua trajetória um exemplo disso.
5
O envolvimento de Houphouet-Boigny em vários golpes na África Ocidental, além de suas tentativas de conter
os movimentos de independência, exemplifica o alinhamento de seu país com interesses de países da França
principalmente.
6
Atualmente República Democrática do Congo
15
7
continente com 55 Estados . Além disso, o modelo socialista pretendido por Nkrumah e
Sankara, fracassou. Para isso contribuiu o domínio do contexto da política internacional pelos
conflitos político-ideológicos da Guerra Fria, que tiveram um peso considerável no futuro de
diversos países africanos, logo num momento de fragilidade que representava a conquista de
8
suas independências .
Críticas ao Pan-africanismo
Em uma crítica aos modelos sociopolíticos africanos que foram pensados dentro do
contexto da conquista das independências, o pensador camaronês Achille Mbembe tece
importantes considerações sobre as duas principais correntes que surgiram no continente, o
Pan-africanismo e Nègritude (MBEMBE, 2001). Para o autor, o Pan-africanismo se define
como democrático, radical e progressista. Possui caráter marxista e nacionalista, trazendo em
seu discurso uma manipulação dos discursos da autonomia, resistência e emancipação como
critério para construir seu argumento como legitimamente africano. Com o desejo de falar por
todo o continente, o Pan-africanismo, assim como a Nègritude, considera três momentos
chaves responsáveis pela situação experienciada pelos africanos a partir do século XV: a
escravidão, o colonialismo e o apartheid. Esses eventos resultaram na expropriação material e
na sujeição dos africanos, por meio da falsificação da história africana pelos europeus. Esses
fatores seriam responsáveis pela “tragédia” da história africana. Essas duas correntes
teórico-políticas defendem que esses fatores são responsáveis pelo desejo africano de
autonomia e autoconhecimento.
A crítica de Mbembe se direciona ao fato de que nenhuma das correntes buscou
pensar de maneira aprofundada e filosófica a problemática representada pelos três momentos
que reconhecem como chave da história africana. Eles são puramente aceitos e a partir daí são
criadas as supostas teorias originais africanas, sem que sejam feitas as devidas
problematizações, inclusive sobre a participação africana no colonialismo e no tráfico de
escravos. Essa visão acrítica da História cria uma espécie de “vitimismo” entre os africanos,
7
Deve-se levar em consideração o fato de que resolução dos problemas africanos referente à estabilidade do
Estado demanda tempo. A Europa, por exemplo, demorou séculos para consolidar seus regimes e a América
Latina ainda não solucionou essas questões. (ANGLARILL, 1997, p.1-7)
8
Exemplos diretos das dinâmicas da Guerra Fria podem ser encontrados tanto no Congo como nas ex-colônias
portuguesas (SCHMIDT, 2013, p.79-101).
16
que não se consideram responsáveis pelos acontecimentos do seu passado, colocando a culpa
sempre no Outro. O Pan-africanismo se alimentaria disso, colocando a luta revolucionária
acima de tudo, com ênfase na violência, desrespeito pela democracia e elogio ao
autoritarismo populista (MBEMBE, 2001, p. 174-177), características presentes em Gana
durante o governo Nkrumah. Aqui é possível fazer um resgate à crítica proposta por Kwame
Nantambu de renomear o Pan-africanismo como Nacionalismo Pan-africano, pensando a
história do continente além das consequências do contato com os europeus no século XV e do
colonialismo posterior, iniciando a trajetória histórica do movimento a partir da união do
Baixo e do Alto Egito (NANTAMBU, 1998).
Mbembe (2001, p. 175-176) identifica quatro principais características do
Pan-africanismo:
- 1°: conhecimento e ciência não são independentes, estão ao serviço da luta partidária
revolucionária;
- 2°: visão mecânica e reificada da História. Ela seria dominada por um conjunto de
forças invisíveis e reduzida a um conjunto de fenômenos de sujeição, determinista;
- 3°: destruição da tradição e elogio ao proletariado urbano e rural. Reduzir o papel
revolucionário ao proletariado é problemático devido ao fato de negar os demais
grupos sociais;
- 4°: culto à vitimização. São conferidas características “pseudo-históricas” ao
continente africano, que está submetido a um “nome racial”, assim, os indivíduos que
possuem determinadas características podem se identificar
crítica, podem ser feitas leituras tanto sobre as tentativas de integração que compartilham
alguns pontos com os pan-africanistas, como pensar nas futuras tentativas de
desenvolvimento socioeconômico no continente.
Outra crítica ao Pan-africanismo é encontrada em um artigo publicado em 1988, do
jornalista sul-africano Paul Trewhela, que constrói um contundente argumento crítico à obra
de um dos principais teóricos Pan-africanos, George Padmore, posteriormente extrapolado
para o movimento em geral. Trewhela usa como fonte principal de sua crítica, o livro
publicado por Padmore em 1956, Pan-Africanism or Communism? The Coming Struggle for
Africa, considerada a principal obra do autor, que têm como premissas o anti-stalinismo, o
nacionalismo e a unidade Pan-africana (TREWHELA, 1988).
Nascido em Trinidad em 1903, Padmore foi membro do Partido Comunista dos EUA,
deputado do Soviete de Moscou e oficial da Terceira Internacional. Apesar disso, irá romper
com Moscou devido à aproximação da União Soviética com as potências coloniais no
contexto da ascensão do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Ele abandona os ideais
marxistas a favor de uma perspectiva estritamente nacionalista, embora ainda deseje um
governo socialista para os futuros Estados Unidos da África, mas que seria alcançado sem a
necessidade de uma revolução proletária no molde bolchevique. Desalentado com a posição
adotada por Stalin na Segunda Guerra Mundial, alinhamento com a Grã-Bretanha e a França,
além do desincentivo aos movimentos revolucionários nas colônias africanas, Padmore passa
a crer que os africanos só poderiam contar consigo mesmos para obter a independência
(TREWHELA, 1988, p.42-43).
Trewhela critica fortemente a aparente dualidade do pensamento de Padmore em
relação à União Soviética. Ele não parece se importar muito com as medidas internas de
Stalin, como a perseguição implacável a inimigos políticos ou o uso de trabalho forçado nos
grandes projetos realizados na União Soviética. Mesmo vivendo em Moscou nesta época, não
há comentários em seu livro sobre as graves consequências sociais e humanitárias do
stalinismo. Outro fator é o seu posicionamento em relação aos movimentos independentistas
e/ou socialistas na Ásia, sendo abertamente favorável ao governo de Ho Chi Minh, que
persegue trotskistas, entre outros dissidentes e opositores, estando, portanto, alinhado aos
interesses stalinistas. Assim, para o autor, a sua posterior crítica e rompimento seriam
superficiais. Segundo Trewhela, Padmore se incomoda com as consequências do stalinismo
em relação à África, mas ignora as consequências na China ou no Vietnã, por exemplo. Fecha
18
10
Esse é o ponto central do programa: as pessoas devem ser mantidas na coleira.
(TREWHELA, 1988, p.57).
9
CUNARD & PADMORE. The white man's duty: an analysis of the colonial question in the light of the Atlantic
Charter. 1942
10
No original: “That is the heart of the programme: the people are to be kept in leash”.
19
11
possuem um tom celebratório e saudosista . Seus posicionamentos parecem variar
largamente de acordo com o contexto, não havendo fidelidade nem aos ideais Pan-africanos e
menos ainda aos ideais marxistas, adotando um tom bastante próximo ao stalinismo. Os
ideais teóricos Pan-africanos entram em questão, sobretudo ao se observar o resultado das
aplicações desses ideais no continente. Deve-se levar em conta que Trewhela ao escrever sua
crítica estava exilado em Londres devido ao seu envolvimento com o Partido Comunista
Sul-Africano e à luta contra o apartheid. Nesse momento chave para o país, os ideais do
Pan-africanismo apareciam como importantes referenciais para o futuro da África do Sul.
Trewhela claramente preferia a implantação do “verdadeiro marxismo”. Ele conclui que
11
Nkrumah dedica seu livro Africa Must Unite a Padmore; C.L.R. James faz vários elogios ao citar o “pai da
emancipação africana” (JAMES, 1980, p.227).
12
Original: Pan Africanism reveals itself as yet another school of intermediation between capital and labour,
obstructing the proletariat from taking its destiny, and the fate of humanity, into its own hands.
13
O slogan cunhado por Nkrumah utilizado na campanha de independência de Gana, “Seek ye first the political
kingdom and all things shall be added unto you”, é bastante ilustrativo do quão importante era a independência
para os pan-africanistas. (NKRUMAH, 1957).
20
14
estabilidade econômica acima da média africana . No aspecto político, se envolveria em
tentativas de sufocamento de movimentos de inspiração socialista como o de Nkrumah em
Gana, Mathieu Kérékou no Benin e Thomas Sankara no Burkina Faso, além de manter seu
país como o principal colaborador da política francesa na África Ocidental.
Em um discurso na ONU, em 1957, Houphouët-Boigny advoga pela criação de uma
comunidade Franco-Africana em detrimento da independência total e radical, fazendo
oposição ao que propunha Nkrumah e os demais pan-africanistas. Ele argumentava que
devido ao mundo estar cada vez mais conectado e interdependente, o ideal de independência
não seria tão relevante assim. Citando algumas organizações europeias, onde as nações abrem
mão de parte de sua soberania para participar, Félix Houphouët-Boigny busca validar seu
raciocínio (HOUPHOUËT-BOIGNY, 1957, p. 593-599). Sua decisão de ir contra a tendência
generalizada de independência o isola do restante dos líderes revolucionários. Apesar disso,
sua popularidade interna somada à prosperidade experienciada pela Costa do Marfim o deixa
extremamente confiante no seu posicionamento. Apenas quando a independência se torna
inevitável, devido a fatos como o reconhecimento das independências dos vizinhos por parte
de Paris, a criação da união Gana-Guiné e da Federação do Mali além de conflitos internos,
tem fim seu ideal republicano federativo. Assim, sem ter outras opções, Houphouët-Boigny é
praticamente obrigado a declarar a independência da Costa do Marfim (CARTER, 1964).
Posteriormente à independência, durante as discussões e conferências em que se
debatiam o futuro do continente, Houphouët-Boigny, junto a outros gradualistas como
Nnamdi Azikiwe, da Nigéria, Jomo Kenyatta, do Kenya e Julius Nyerere, da Tanzânia, irá
propor uma unificação lenta e gradual, radicalmente oposta ao pensamento Pan-africano de
Nkrumah, Ahmed Ben Bella, da Argélia, Patrice Lumumba, do Congo, Ahmed Sekou Touré,
da Guiné e Modibo Keita, do Mali (MARTIN, 2012, p.55-71). Essa forma gradual será a
escolhida, se materializando na criação da OUA em 1963, que iniciaria um lento e infrutífero
processo de integração (RODRIGUES; CAPUTO, 2013, p.108), que se arrastaria por
décadas, sendo acelerado com a substituição da OUA pela UA, e que só terá fim em 2063, o
que parece ser uma proposta mais viável do que à união imediata dos 55 Estados africanos.
14
As taxas de crescimento ficariam acima dos 6% por décadas, a agricultura se mantém como a principal setor,
mas como uma diversificação da produção pouco vista na África. (MALDONADO, 2008) Não obstante, o
modelo predatório adotado na Costa do Marfim teria consequências ambientais graves, se prolongando até o
presente. Disponível em
<https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2016/10/17/costa-do-marfim-destroi-florestas-tropicais-por-ca
cau.htm>. Acesso em 21 jun. 2019
21
key-player, que seriam por exemplo, Congo, Egito, Etiópia, Nigéria e África do Sul. Na
estrutura da FAS haveria um elaborado esquema de descentralização, contado com várias
15
instituições do nível da vila até o continental .
Essas teorias e alternativas ajudam a compor um quadro em que à unificação política
do continente é algo recorrente nas ideias de governantes e cientistas sociais. O
Pan-africanismo e as propostas que se baseiam em seus princípios, portanto, não representam
um ponto fora da curva, mas apenas uma forma de compreender e pensar o futuro africano
inserido num contexto ideológico maior.
PAN-AFRICANISMO CONTEMPORÂNEO
Tentativas de integração
15
É importante notar que Martin logo na introdução de seu livro considera que à nova proposta de integração da
UA, à Agenda 2063, está fadada ao fracasso (MARTIN, 2012, p.6).
16
Original: We are ready to abandon partially or totally our sovereignty to join a unity government in Africa.
Disponível em: <https://www.globalpolicy.org/component/content/article/173/30539.html.> Acesso em 29. Jun.
2019
23
crise por qual passava o continente nos anos posteriores às independências, além da forte
ingerência de interesses externos no contexto da Guerra Fria, seriam forte obstáculos para as
tentativas mais arrojadas com fortes fatores ideológicos como, o Pan-africanismo, sendo
substituídas por outras menos ambiciosas e de caráter regional.
Por exemplo, o Tratado de Abuja, 1991, estabeleceu a Comunidade Econômica
Africana. Assinado por 51 chefes de Estado africanos, lançou as bases para o projeto de
integração continental. O tratado previa a criação de Comunidades Econômicas Regionais
(CER) e o fortalecimento das já existentes, que serviriam como base para a Comunidade
(AFRICAN UNION, 1991, p. 8). Por meio da integração em etapas, seria alcançado o
objetivo que englobaria todos os países africanos. O Tratado de Abuja previa seis etapas de
integração (RODRIGUES; CAPUTO, 2013, p. 114):
Atualmente, existem no continente 13 CER, das quais 8 são reconhecidas pela União
17
Africana como ponto de partida para o projeto maior de integração continental. A África
Ocidental, África Oriental e a África Austral possuem bons exemplos de tentativas de
17
As CER reconhecidas pela União Africana são: Comunidade Econômica do Sahel-Sahariano (CEN-SAD);
Mercado Comum da África Austral e Oriental ( COMESA); Comunidade da África Oriental (EAC);
Comunidade Econômica dos Estados da África Central (ECCAS); Comunidade Econômica dos Estados da
África Ocidental (ECOWAS); Autoridade Intergovernamental de Desenvolvimento (IGAD), Comunidade de
Desenvolvimento da África Austral (SADC) e União Árabe do Magrebe (UMA). As não reconhecidas são:
União Aduaneira da África Austral (SACU); Comunidade Econômica dos Países dos Grandes Lagos (CEPGL);
União Econômica e Aduaneira da África Ocidental (UEMOA); Comunidade Econômica e Monetária da África
Central (CEMAC); e Comissão do Oceano Índico (IOC). O critério utilizado pela UA inclui todos os Estados do
continente africano, evitando a superposição excessiva de CER.
24
integração, apesar do relativamente baixo nível de sucesso. Criadas em 1975, 1999 e 1992
respectivamente, a ECOWAS (Economic Community of West African States), a EAC (East
African Community) e a SADC (Southern African Development Community) são as CER em
18
estágio mais avançado de integração .
Porém o grande número de CER cria problemas para a integração, tornando difícil o
estabelecimento de taxas comuns, já que a participação dos países em mais de uma
comunidade inviabiliza as medidas tomadas no âmbito regional. Problemas como barreiras
não tarifárias, corrupção de funcionários e bloqueios policiais são fatores dificultadores
(RODRIGUES; CAPUTO, 2013, p.113).
O objetivo da união econômica é a redução dos custos de exportação/importação
estimulando assim o comércio intra-africano, por meio da redução/eliminação de barreiras
alfandegárias. Isso promoveria uma maior independência em relação ao Ocidente ou ao norte
global e aceleração do desenvolvimento. Os ganhos proporcionados por investimentos nos
setores produtivos são maiores ao se investir em escala continental, gerando benefícios como:
1) diversificação econômica; 2) redução da dependência de exportação de commodities; 3)
aumento da competitividade (RODRIGUES; CAPUTO, 2013). A complexidade e a
necessidade de um esforço contínuo de coordenação que a tarefa de integração continental
requer, faz com que uma instituição como a UA seja bastante útil e os projetos da Agenda
2063 vão nesta direção.
Mais do que apenas uma lista de desejos para o futuro, a Agenda África 2063 traz em
seus documentos uma série de projetos que deverão alçar o continente a um patamar de
desenvolvimento econômico-social maior. O projeto da Agenda seria diferente dos demais
19
projetos pensados para o continente devido à "abordagem de cima para baixo" , orientação
para resultados, monitoração e avaliação, coerência de políticas e redefinição dos
18
Apesar de em 1980 ter sido criada a Southern African Development Coordinating Conference (SADCC),
apenas em 1992 é criada uma associação com um “arranjo juridicamente vinculativo”. Disponível em:
<https://www.sadc.int/about-sadc/overview/>. Acesso em 18/05/2019
19
No original, bottom-up approach, significa que no projeto da Agenda 2063 a tomada de decisões é
descentralizada e valoriza a participação popular.
25
Desenvolvida por meio de uma parceria entre a Comissão da União Africana (AUF), a
21
Agência de Planeamento e Coordenação (NPCA) da NEPAD e em colaboração com o
Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB) e a Comissão Econômica das Nações Unidas
para África (UNECA), a Agenda é definida pela União Africana como
20
São 11 Flagship Programmes ao todo. AFRICAN UNION. The Key Agenda 2063 Flagship Programmes
Projects
21
“A Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) é um documento oficial adotado pelos chefes
de Estado e de Governo africanos, em outubro de 2001, em Abuja, capital da Nigéria. Esse documento apresenta
os objetivos do NEPAD como uma promessa feita pelos dirigentes africanos, fundada numa visão comum, assim
como uma convicção firme e compartilhada, fazendo com que haja urgência para erradicar a pobreza, colocar os
países, individual e coletivamente na via de um crescimento e de um desenvolvimento duradouros, participando
ativamente na economia e na política mundial” (DIALLO, 2006, p. 64)
22
Original: AGENDA 2063 is Africa’s blueprint and master plan for transforming Africa into the global
powerhouse of the future. The continent’s strategic framework aims to deliver on its goal for inclusive and
sustainable development and is a concrete manifestation of the pan-African drive for unity, self-determination,
freedom, progress and collective prosperity pursued under Pan-Africanism and African Renaissance. Disponível
em: <https://au.int/en/agenda2063/overview>. Acesso em 01/07/2019
26
23
AFRICAN UNION. Background Note. 2015, Disponível em: <https://au.int/en/agenda2063/overview>.
Acesso em 01/07/2019
24
A presidente Zuma usa em seu “e-mail” o termo BRIC, Apesar da entrada África do Sul em 2011 no grupo
que reúne as principais economias em desenvolvimento do mundo, mudando a sigla para BRICS.
25
A economia azul seria a reunião de todos os elementos produtivos encontrados nos oceanos, desde frutos do
mar até o petróleo.
27
visão de futuro expressa pela presidente, o que fica evidente é, além do otimismo exacerbado,
a constante presença de ideais Pan-africanos e o desejo de que os africanos, sobretudo
mulheres e jovens, se tornem protagonistas de sua história e agentes do progresso africano. A
questão identitária dos africanos no continente e na diáspora, bastante cara para os primeiros
pan-africanistas, também se faz presente, e como arremate do “e-mail”, Zuma escreve sobre
as conversas para a criação da Confederação dos Estados Africanos e do Caribe (ZUMA,
2014, p. 7).
Não só no “e-mail” da presidente Zuma, mas por todo o texto dos documentos da
Agenda são recorrentes vários exemplos da influência dos ideais Pan-africanos, sobretudo na
26
segunda e na quinta aspirações . Tratando respectivamente de aspectos políticos e culturais,
essas aspirações possuem influências diretas dos textos dos líderes dos movimentos
identitários que influenciaram as conquistas das independências na década de 1960.
A segunda e mais delicada aspiração da Agenda 2063 traz logo em seu título a
fonte de sua inspiração: “ Um continente integrado, politicamente unido e baseado nos ideais
do Pan-africanismo e na visão do Renascimento Africano”. Assim como Nkrumah em 1963
propôs à unificação do continente em uma única entidade, como forma de alcançar seu pleno
desenvolvimento, combater o imperialismo e consolidar as independências, os líderes
africanos signatários dos projetos da Agenda consideram a união como alternativa para a
África.
Já o desejo expresso por Zuma de usar o KiSwahili como língua franca do continente
é bastante ilustrativo de como as questões identitárias são vistas pela União Africana e
aproximam-se das teses Pan-africanas: “Uma África com forte identidade cultural,
patrimônio comum, valores compartilhados e ética”. A redução do uso de línguas
europeias em favor de uma língua africana, atualmente a terceira em número de falantes
depois do inglês e do árabe, é uma tentativa de criar uma maior coesão entre os 55 países, que
possuem diferenças socioculturais enormes, sendo um dos maiores desafios da hipotética
Confederação de Estados Africanos e a quinta aspiração da Agenda.
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A Agenda é composta por sete aspirações gerais: 1. Uma África próspera baseada no crescimento inclusivo e
desenvolvimento sustentável; 2. Um continente integrado, politicamente unido e baseado nos ideais do
pan-africanismo e a visão do Renascimento Africano; 3. Uma África de boa governança, democracia, respeito
pelos direitos humanos, justiça e estado de direito; 4. Uma África pacífica e segura; 5. Uma África com forte
identidade cultural, patrimônio comum, valores compartilhados e ética; 6. Uma África cujo desenvolvimento é
orientado para as pessoas, contando com o potencial dos povos africanos, especialmente suas mulheres e jovens
e cuidado das crianças; 7. África como uma comunidade global forte, unida, resiliente e influente jogador e
parceiro. (AFRICAN UNION, 2015, p. 2)
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O acordo tinha como pré-requisito a assinatura de 22 países. Para alcançar esse número, contaram com a
República Saharaui. Os demais membros que ratificaram o acordo são: África do Sul, Chade, Costa do Marfim,
Djibouti, Egito, Etiópia, Gâmbia, Gana, Guiné, Mali, Mauritânia, Namíbia, Níger, Quênia, República do Congo,
Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Togo e Uganda. AFRICAN UNION. Agreement secures minimum threshold of
22 ratification as Sierra Leone and the Sahrawi Republic deposit instruments. 2019
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African Union urges Nigeria to join new trade zone. Disponível em:
<https://www.ft.com/content/b1d880a2-723b-11e9-bf5c-6eeb837566c5> Acesso em 01. Jul.2019
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Apesar disso, 52 países africanos assinaram o acordo. As exceções são Nigéria, Eritreia e Benin. AFRICAN
UNION. TREATY ESTABLISHING THE AFRICAN ECONOMIC COMMUNITY
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cidadãos que fazem parte da comunidade, houve poucos avanços nesse sentido. A
implantação de um passaporte que torne possível a livre movimentação entre os cidadãos dos
países-membros pode ser uma das medidas mais importantes, tanto social como
economicamente para um continente recortado em 55 unidades políticas.
Segundo o Africa Visa Openness Report 2016, apenas 13 países africanos não exigem
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vistos de entrada para todos os cidadãos africanos . Isso limita, em vários aspectos, o
desenvolvimento e a integração de um continente que conta com mais de 600 fronteiras
políticas. Considerando a imigração como algo positivo e necessário para a economia da
África, essa medida tornaria ainda mais fácil os deslocamentos humanos, aumentando a
integração e criando um sentimento de unidade, indispensável em um projeto de união
política (AFRICAN DEVELOPMENT BANK, 2016, p. 25).
No relatório são apresentados dois estudos de caso, Ruanda e Ilhas Maurício, em que
o fim de exigências de visto teve consequências extremamente positivas nos dois países,
sobretudo nas áreas de viagens e turismo. Houve um salto no número de visitantes africanos
em ambos os países, o que contribuiu para melhorar os índices de investimento e facilitou o
preenchimento de vagas de trabalho ociosas (AFRICAN DEVELOPMENT BANK. 2016, p.
19-20).
O fim da necessidade de visto é ao mesmo tempo necessário para a realização dos
objetivos que compõem a segunda aspiração da Agenda África 2063, e um passo em direção
à integração. Aliada à zona de livre comércio a ser implementada ainda em 2019, pode
significar o começo de uma revolução no continente, a partir da qual os países africanos se
voltariam a si mesmos para encontrar as soluções de desenvolvimento e não mais para o
exterior.
Conclusão
Independente de quão efetivo ou ideal para a resolução das questões que se impõem
ao continente africano no século XXI, é explícito o fato de que as teorias identitárias
desenvolvidas na África, Pan-africanismo e Nègritude, ainda se mantêm vivas na mentalidade
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Na verdade, apenas Seychelles não exige nenhum tipo de visto. Os outros 12 países (Madagascar, Comoros,
Burundi, Rwanda, Maurício, Moçambique, Mauritânia, Guiné-Bissau Togo Cabo Verde, Uganda e Mali)
oferecem o visto no desembarque.
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de vários líderes africanos. A Agenda África 2063 é o maior exemplo disso, ao trazer em seu
corpo vários ideais e conceitos originários dessas correntes. Os intelectuais africanos,
notadamente Nkrumah e Senghor, possuem um papel enorme no sentido de que, mesmo não
tendo conseguido materializar suas teorias em vida, são os responsáveis por criar os
parâmetros da solução africana para a África, apesar das críticas que suas visões de mundo
recebam.
O ideal de integração continental é discutido por vários teóricos e políticos. O desejo
de que o desenvolvimento africano seja dirigido pelos próprios africanos é antigo e chega
com força total ao presente. Isso pode representar uma tentativa de ruptura com o que
Mbembe chamou de vitimização, dado que na Agenda 2063, os africanos serão os
protagonistas em todos os aspectos.
Assim como na época das independências, um otimismo baseado no rápido nível de
crescimento observado em grande parte dos Estados africanos se observa no presente,
gerando novas esperanças para o continente. A renovação do otimismo parece vir
acompanhada de um renascimento das teorias originais para se pensar África. Essas teorias,
apesar de passíveis de críticas, são incontornáveis e fornecem um instrumental altamente
influente nas políticas pensadas para o continente.
O consenso existente sobre a necessidade africana de integração tem uma
oportunidade de finalmente se materializar (RODRIGUES; CAPUTO, 2014, p.119). E tudo
indica que será sob os ideais Pan-africanos.
Bibliografia
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Hinterlândia Editorial. 2009.
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